Recuperação de Rios Urbanos
Recuperação de Rios Urbanos
Recuperação de Rios Urbanos
Laboratório de Hidrogeomorfologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil Recebido (Received): 16/09/2019
E-mails: [email protected] (FHSM); [email protected] (IS) Aceito (Accepted):11/06/2020
*E-mail para correspondência: [email protected]
Resumo: O presente estudo avalia do ponto de vista teórico e prático a interdependência e sincronicidade
dos processos de desnaturalização que ocorrem no rio e na bacia hidrográfica em ambientes urbanos. De
maneira complementar, avalia como a interdependência destes processos é abordada nos trabalhos de
recuperação de rios urbanos. Do ponto de vista teórico, verificou-se que há uma gama de projetos de
recuperação de rios urbanos degradados com diferentes abordagens e propósitos, e que tais projetos se
voltam especialmente aos processos que ocorrem estritamente nos rios. A literatura sugere que esta pode ser
a causa do insucesso de muitos dos projetos de recuperação de rios urbanos. A avaliação prática foi realizada
na bacia hidrográfica Córrego do Aviário, localizada em área urbana da cidade de Curitiba/PR. A área foi
compartimentada em Ottobacias, para que fosse realizada a quantificação da desnaturalização dos elementos
rio e bacia hidrográfica em cada uma das unidades de análise. A aplicação prática permite concluir que as
modificações verificadas na rede de drenagem são um reflexo da impermeabilização do solo ou
desnaturalização das Ottobacias. Espera-se que na medida em que aumentem as porções impermeáveis das
Ottobacias esta condição esteja refletida na alteração da rede de drenagem. De maneira geral, a metodologia
empregada no presente estudo pode ser utilizada como ferramenta para diagnóstico no planejamento do
espaço urbano e na recuperação de rios degradados.
Abstract: The current study evaluates, from a theoretical and practical perspective, the interdependence and
synchronicity among denaturalization processes that occur in urban rivers and watersheds. In a
complementary way, it assesses how the interdependence of these processes is approached in urban river
recovery projects. From the theoretical perspective, it was found that there is a range of recovery projects
for degraded urban rivers with different approaches and purposes and that such projects are mainly focused
on the processes that occur strictly in the rivers. The literature suggests that it may be the cause of the
failure of many urban river restoration projects. The practical evaluation was carried out in the córrego do
Aviário watershed, located in an urban area of Curitiba/PR. The area was compartmentalized in Ottobacias
so that the denaturalization of the river and watershed elements could be quantified in each of the units of
analysis. The practical application allows concluding that the modifications verified in the drainage network
are the reflection of soil impermeabilization or Ottobacias´ denaturalization. It is expected that as the
Ottobacias impervious areas increase, this condition will be reflected in the drainage network
denaturalization. In general, the methodology used in this study can be used as a diagnostic tool for urban
planning and the recovery of degraded rivers.
1. Introdução
A urbanização é uma das tendências mais transformadoras do século XXI (WWC, 2018) e carrega
consigo fortes implicações em relação a geração de impactos nas mais diversas esferas e escalas. Muitos
destes impactos são verificados na dinâmica hídrica das bacias hidrográficas, onde o crescimento da malha
urbana se dá juntamente com a desnaturalização dos rios e dos processos envolvidos na dinâmica hídrica das
bacias de drenagem.
As alterações mais visíveis se dão diretamente nos canais fluviais. Em função do crescimento urbano,
muitos rios são canalizados com o objetivo de viabilizar o aumento de áreas disponíveis para ocupação e de
solucionar problemas ligados às inundações e propagação de doenças de veiculação hídrica. Entende-se
como obras de canalização as obras de engenharia praticadas no canal fluvial, sejam elas alargamento e
aprofundamento da calha fluvial, retificação do canal, construção de canais artificiais, proteção de margens,
diques ou obras de desassoreamento (ASSUMPÇÃO; MARÇAL, 2012; CUNHA, 2012). Tais obras, em
geral, transformam os leitos dos rios em perfis regulares, extinguem meandros, encurtam o curso do rio e,
por consequência, aumentam a velocidade de escoamento, picos de vazão máxima, erosão de margens e
alteram o ecossistema aquático. Em ambientes mais densamente urbanizados, a rede de drenagem é
transformada em canalização subterrânea, tornando a paisagem urbana mais profundamente alterada.
O termo desnaturalização, utilizado em diferentes aplicações em outras áreas do conhecimento,
atualmente começa a ser também utilizado na literatura das ciências hidrológicas. Cunha (2012) e Sartório
(2018) utilizam-se do termo associado a ambientes fluviais, para referirem-se à perda de características
naturais e à artificialização de cursos d´água, associados à geração de impactos no meio físico e biótico.
Cunha (2012) aborda questões relacionadas a rios desnaturalizados por meio de obras de canalização. De
acordo com a autora, o grau de degradação do canal depende do nível de alteração de sua dinâmica e
morfologia. As mudanças hidrológicas, geomorfológicas e bióticas podem ser verificadas tanto no trecho
alterado, quanto nos trechos a jusante e a montante. Botelho (2011) e Stevaux e Latrubesse (2017) também
destacam que, devido ao seu equilíbrio dinâmico, a alteração de um trecho de rio é transmitida ao rio como
um todo. A canalização de um dado trecho intensifica os processos erosivos à montante, bem como transfere
volume de água, sedimentos e poluentes para jusante.
Sartório (2018) investiga o processo evolutivo da desnaturalização do sistema fluvial dos canais da Costa
e Bigossi em Vila Velha/ES. Conclui que a canalização dos rios, a criação de novos canais e a
impermeabilização da bacia de drenagem, alteraram o equilíbrio do sistema, gerando um ambiente mais
vulnerável às inundações.
Diante de cenários de degradação dos rios urbanos e do aumento da intensidade e frequência das
inundações, projetos de recuperação de rios urbanos, com diferentes abordagens vem sendo desenvolvidas.
Restauração, reabilitação, remediação, revitalização e renaturalização são alguns dos conceitos encontrados
na literatura, sendo os dois últimos os mais difundidos e encontrados em projetos aplicados.
O termo restauração refere-se ao conjunto de ações que permitem que o rio retorne às suas condições
hidrológicas, geomorfológicas e bióticas originais, incluindo a zona ripária (RUTHERFURD et al. 2000a).
Enquanto a restauração propõe o retorno ao estado original do rio, a reabilitação é representada por ações que
possibilitem o retorno parcial das condições biológicas e físicas da sua condição original (FINDLAY;
TAYLOR, 2006). Remediação, por sua vez, possui objetivo de melhorar as condições ecológicas de um rio e
resulta na formação de um ambiente diferente do original. Ela é aplicada em casos em que os impactos
ambientais constatados foram muito intensos, inviabilizando os processos de reabilitação e restauração
(RUTHERFURD et al. 2000a).
Machado (2008) verifica que não há um conceito bem definido ou legislação específica no Brasil que
defina o termo revitalização. Apesar das diversas abordagens do conceito, é consenso que a revitalização
abrange uma gama de ações no sentido de recuperar, conservar e preservar as funções ou serviços que os rios
desempenham, sejam elas biofísicas, econômicas, estéticas ou culturais. Os rios Stony e Muddy
(Boston/EUA), Cheonggyecheon (Coreia do Sul), Torrens (Austrália), La Piedad e Churubusco (Cidade do
México/México) e os córregos Tiquatira (São Paulo/SP), Sapé (São Paulo/SP) e 1° de Maio (Belo
Horizonte/MG) são exemplos de projetos de revitalização que se utilizaram da construção de Parques
Lineares para melhoria na qualidade ambiental dos cursos d´água (MARTINS, 2015).
A renaturalização, por sua vez, é definida por Binder (2001) como processo complexo de retorno às
condições sustentáveis de um determinado rio, iniciado com princípios de revitalização, precedido de
recomposição de substratos e margens, recuperação de áreas úmidas, biota aquática e conservação de áreas
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naturais de inundação. Binder (2001) reitera que a renaturalização não significa a volta à paisagem original
não modificada pelo homem, mas corresponde a recomposição do desenvolvimento sustentável do rio.
A renaturalização do Rio Isar, na Alemanha, descrito por Binder (2008) é um dos exemplos de
recuperação de rios degradados por obras de canalização. Nele foi realizada a remoção dos diques de
concreto, alargamento da seção do rio e aplainamento das margens. O material de concreto foi realocado no
fundo para reforçar o substrato e criar possíveis espaços para o habitat de novas espécies. O rio Anacostia,
localizado em área densamente urbanizada de Washington (EUA) também passou por obras de
renaturalização, onde foram promovidas ações para recuperação de áreas úmidas e da mata ciliar, remoção
de plantas invasoras, estabilização bancos e instalação de trash-traps para diminuição da poluição hídrica
(AWS, 2013). Outros exemplos de experiências internacionais são o rio Regge (Holanda) (Boher e Bressers,
2011) e o rio Mapocho (Chile) (KATZ et al. 2009), com intervenções realizadas também diretamente dos
rios.
No Brasil, destacam-se os projetos de renaturalização realizados no rio das Velhas, em Minas Gerais, e no
rio Tijuco Preto, em São Paulo. Dentre as práticas adotadas no rio das Velhas, estão a reconstrução de
habitats para a biodiversidade, replantio de mata ciliar, conservação de áreas úmidas e construção de estações
de tratamento de esgoto (DINIZ et al. 2008). No rio Tijuco Preto, inserido em área densamente urbanizada
da cidade de São Carlos/SP, foram retiradas as estruturas de concreto, foi feita a reconstrução do habitat
fluvial com madeiras e gabiões para favorecimento da formação de remansos e corredeiras. Foram também
eliminados pontos de despejo de efluentes, realizadas desapropriações em terrenos de APP, além da
construção de um parque linear (BARBOSA et al. 2005).
Nota-se que as iniciativas de recuperação mencionadas anteriormente apresentam como característica
comum a rede de drenagem como objeto de intervenção. Nesse sentido, Palmer et al. (2010) constatam que a
ausência de uma visão sistêmica e integrada entre rio e bacia hidrográfica pode ser o motivo de insucesso de
muitas das obras de revitalização ou renaturalização de rios urbanos, que se concentram, em geral, apenas
nas características do canal físico. Evidenciam ainda que muito mais deve ser feito para restaurar fluxos
impactados por múltiplos estressores do que reconfigurar canais e aumentar a complexidade estrutural com
meandros, pedregulhos, madeira ou outras estruturas que renaturalizem processos, mesmo que de modo
artificial.
Palmer e Ruhi (2019) elaboraram uma revisão sobre as relações entre regime de escoamento, biota e
processos ecossistêmicos na restauração de rios. Constatam a grande dificuldade em recuperar rios
degradados. De acordo com os autores, o sucesso depende de ir além da restauração do canal fluvial,
alcançando, portanto, a conectividade hidrológica entre um rio e seus arredores. Rutherfurd et al. (2000b),
por sua vez, inferem que as características da bacia, tais como uso do solo e dinâmica de escoamento
superficial e subsuperficial podem influir diretamente nas características do rio. Como critério para
compreensão dos processos e também para posterior seleção de áreas prioritárias para ação, os autores
propõe dividir a área de estudo em unidades de análise.
Tais inferências levam à compreensão de que se faz necessário também lançar o olhar aos processos de
desnaturalização que ocorrem nas bacias urbanas. Isto porque o ambiente urbano construído tem forte
influência também nas características da dinâmica hídrica das vertentes, especialmente em decorrência da
impermeabilização do solo. Estudos que avaliam os efeitos da urbanização no balanço hídrico, tais como
Mitchell et al. (2001), Tucci (2002; 2008), Lekkas et al. (2008), Lee et al. (2010), Mejía (2014) e Carvalho
(2016) evidenciam que o incremento nas áreas impermeáveis diminuem os índices de evapotranspiração, de
infiltração da água no solo, aumentam o escoamento superficial e os picos de vazão máxima durante eventos
pluviométricos. Os efeitos no balanço hídrico ligados diretamente ao volume e velocidade da vazão afetam
diretamente a dinâmica fluvial. Durante eventos pluviométricos há a intensificação dos processos
hidrológicos e das inundações, bem como rápido carreamento de poluentes difusos da bacia de drenagem
diretamente para o rio. Durante períodos de estiagem, há diminuição do escoamento de base, alterando o
regime de escoamento e a condição ecossistêmica do rio. Tais efeitos caracterizam a desnaturalização de
processos do ciclo hidrológico em ambiente urbano.
Destaca-se ainda que o percentual de impermeabilização do solo é um importante parâmetro para
determinação do grau de desnaturalização da bacia hidrográfica. Os estudos citados sobre balanço hídrico
urbano (MITCHELL et al. 2001; TUCCI, 2002, 2008; LEKKAS et al. 2008; LEE et al. 2010; MEJÍA, 2014
e CARVALHO, 2016) evidenciam que a impermeabilização do solo é indicador do processo da urbanização,
sendo capaz de sintetizar vários elementos relativos aos processos hidrológicos em bacias hidrográficas.
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Um dos grandes desafios para os gestores urbanos é o de visualizar o rio no contexto da bacia, a partir de
uma compreensão sistêmica. O rio não é um elemento isolado. Por este motivo, não é possível conhecer seu
funcionamento sem compreender os fenômenos que se dão em seu entorno, assim como não é possível
restaurar o rio sem considerar restaurar alguns dos processos hidrológicos que se dão na bacia, mesmo que
artificialmente. Assim, destaca-se a problemática associada ao olhar centrado exclusivamente para o rio em
processos diagnósticos e em projetos de recuperação de rios degradados, sendo que esta degradação resulta
da interação com os processos que ocorrem na bacia hidrográfica.
Com base nas questões expostas, este trabalho tem por objetivo avaliar do ponto de vista teórico e prático
a interdependência e sincronicidade dos processos de desnaturalização que ocorrem no rio e na bacia
hidrográfica. De maneira complementar, buscou também avaliar como a interdependência destes processos é
abordada nos trabalhos de recuperação de rios urbanos.
Uma revisão teórica foi realizada a cerca de projetos de recuperação de rios urbanos, buscando identificar
a abordagem utilizada. Destaca-se não foram encontrados estudos na literatura que investiguem de forma
direta o quanto os processos de desnaturalização dos rios estão atrelados aos processos hidrológicos que
ocorrem na bacia em ambientes urbanos.
Uma avaliação prática foi conduzida na bacia hidrográfica córrego do Aviário, localizada em área urbana
da cidade de Curitiba/PR. A área foi compartimentada em Ottobacias, para que fosse realizada a
quantificação da desnaturalização dos elementos rio e bacia em cada uma das unidades de análise. O critério
para definição do grau de desnaturalização das bacias foi o percentual de impermeabilização do solo. Para o
rio, o critério foi o grau de interferência antrópica e o tipo de obra de canalização empregada.
A bacia hidrográfica córrego do Aviário foi escolhida pois apresenta características comuns à realidade de
muitas das bacias hidrográficas urbanas brasileiras, tais como diversidade de usos da terra,
impermeabilização de importante percentual do solo, poluição hídrica, inundações frequentes e múltiplas
obras de canalização nos rios. É também uma amostra representativa em relação ao contexto da cidade de
Curitiba devido a sua diversidade de usos, incluindo áreas verdes, áreas residenciais e institucionais e devido
ao fato de apresentar um percentual médio de áreas impermeabilizadas em relação ao contexto da cidade
(CARVALHO, 2016).
2. Materiais e métodos
2.1 Descrição da área de estudo
Com 2.7km², a bacia hidrográfica do córrego do Aviário está inserida na bacia do rio Belém (Figura 1).
Esta, por sua vez, drena cerca de 20% da cidade de Curitiba/PR e abrange a área mais densamente
urbanizada do município. A área abrange parte dos bairros Jardim das Américas, Jardim Botânico,
Guabirotuba e Prado Velho, cuja ocupação é caracterizada por áreas residenciais, comerciais e institucionais,
incluindo os Campus Politécnico e Botânico da UFPR (Universidade Federal do Paraná), a PUC-PR
(Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e a FIEP (Federação das Indústrias do Estado do Paraná). A
área de estudo localiza-se integralmente no primeiro planalto paranaense. Na bacia predomina a formação
Guabirotuba, recoberta por sedimentos de origem flúvio-lacustre de idade holocênica-pleistocênica
(MINEROPAR, 2006). A altitude da área de estudo varia de 880m a 925m.
O córrego do Aviário nasce nas dependências do Campus Politécnico da UFPR e deságua no rio Belém.
O rio principal é alimentado por outros nove afluentes que se distribuem regularmente por toda a bacia. Em
campo, constatou-se que a qualidade ambiental do córrego do Aviário deprecia no sentido de jusante, em
função da presença de fontes pontuais e difusas de poluição, obras de canalização, degradação de áreas
úmidas, ausência de mata ciliar em vários trechos e ocupações irregulares.
Devido à associação de características climáticas, baixa permeabilidade natural dos solos, alto percentual
de impermeabilização do solo e mal dimensionamento dos sistemas de drenagem urbana, a bacia
hidrográfica do rio Belém sofreu mais de 200 episódios de inundação nos últimos 30 anos (GOUDARD,
2018), sendo que muitos deles ocorreram também no contexto da bacia hidrográfica córrego do Aviário,
especialmente na área confluência com o rio Belém. Dentre os eventos pluviométricos mais significativos e
recentes em termos de impactos, destaca-se o episódio de 21/02/2019, com precipitação de 119,6 mm/24h. A
Figura 2 exibe imagens do evento na região da Vila Torres (A), próximo à foz do córrego do Aviário e na
região da UFPR campus Politécnico (C e D).
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Como critério para compreensão e avaliação dos processos (conforme proposto por RUTHERFORD et al.
2000b) de desnaturalização na bacia hidrográfica, a área de estudo foi compartimentada em unidades de
análise. A metodologia escolhida foi a delimitação de Ottobacias, de acordo com o modelo proposto por
Pfafstetter (1989). Ottobacias são áreas de contribuição dos trechos da rede hidrográfica, delimitadas de
acordo com um método hierárquico de subdivisão e codificação de sub-bacias, relacionando trechos de rio à
sua respectiva área de drenagem. Tendo como base a topografia do terreno, o método permite detalhamento
do sistema hídrico, facilitando a visualização de impactos provenientes de determinadas ações em áreas
específicas.
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A delimitação foi realizada em ambiente SIG, a partir da análise da rede de drenagem e da topografia. No
método de Pfafstatter (1989), as quatro maiores bacias identificadas são denominadas Ottobacias, as quais
recebem códigos dos números pares 2, 4, 6 e 8, atribuídos de jusante para montante ao longo do rio principal.
A área de drenagem correspondente à nascente do rio principal é a de número 9. As áreas restantes são
chamadas Interbacias, sendo elas numeradas de acordo com a mesma lógica, no entanto, com os números
ímpares 1,3,5 e 7. A Interbacia 3, localiza-se sempre entre as Ottobacias 2 e 4, a 5, entre 4 e 6, e assim
sucessivamente. Todas as bacias identificadas devem ser subdivididas de modo que, ao fim, todos os
afluentes estejam em áreas distintas. Às subdivisões, acrescenta-se mais um número. À exemplo: 21, 22, 23,
com suas novas subdivisões 221, 222, 223, e assim progressivamente.
O parâmetro escolhido para determinação do nível de desnaturalização das Ottobacias foi o percentual de
impermeabilização do solo. Conforme anteriormente citado, estudos sobre balanço hídrico urbano, tais como
Mitchell et al. (2001), Tucci (2002; 2008), Lekkas et al. (2008), Lee et al. (2010), Mejía (2014) e Carvalho
(2016) evidenciam que a impermeabilização do solo é indicador do processo da urbanização, sendo capaz de
sintetizar vários elementos relativos à bacia no contexto hidrológico e, portanto, o grau de desnaturalização
da mesma.
O mapeamento de áreas permeáveis e impermeáveis foi realizado com base na fotointerpretação de
imagens orbitais, disponibilizadas pelo Google Earth Proo. Edificações, calçadas e ruas foram classificadas
como impermeáveis. Gramados, pavimentos semipermeáveis e áreas vegetadas, foram classificadas como
permeáveis. Os elementos foram vetorizados manualmente, dado o tamanho reduzido da área de estudo e
possibilidade de uma maior escala de detalhe.
Após a determinação do percentual de impermeabilização, as Ottobacias foram classificadas por grau de
desnaturalização conforme abaixo:
Muito Baixo (de 0% a 20% de áreas impermeáveis)
Baixo (20,1% a 40% de áreas impermeáveis)
Médio (40,1% a 60% de áreas impermeáveis)
Alto (60,1% a 80% de áreas impermeáveis)
Muito Alto (80,1% a 100% de áreas impermeáveis)
Para classificação da condição dos corpos hídricos, foi considerada apenas a condição física do leito
fluvial. Assim como Cunha (2012), este artigo trata de rios desnaturalizados, degradados por meio de obras
de canalização. As condições do rio consideradas na área de estudo foram leito não modificado (natural),
leito canalizado aberto e leito canalizado subterrâneo.
A condição do leito dos corpos hídricos foi aferida in situ, com auxílio de aparelho GPS. Os dados
coletados foram exportados para o software SIG, onde então foram feitas correções no curso do córrego
principal e dos afluentes, bem como realizada a classificação do leito para cada segmento de rio. Foi
considerada apenas a modalidade predominante em cada umas das unidades de análise.
Para verificação das relações existentes entre grau de desnaturalização das Ottobacias e da condição do
leito fluvial, foram realizadas algumas análises estatísticas. Primeiramente, foi efetuada a estatística
descritiva básica das variáveis analisadas (área da bacia e percentual de área impermeabilizada) para cada
categoria, bem como a distribuição de frequências relativa e absoluta acumulada da variável “percentual
impermeável”.
Em seguida, foram elaborados gráficos de caixa (BoxPlot), utilizados para avaliar visualmente a
distribuição empírica dos dados, em relação à impermeabilização e modificações dos canais de drenagem.
Adicionalmente, para avaliar se as proporções de áreas impermeabilizadas em Ottobacias com canais
modificados diferem significativamente de Ottobacias com canais naturais foi aplicado o teste estatístico não
paramétrico de Kruskal e Wallis (1952).
3. Resultados e discussões
Os dados obtidos através do mapeamento de áreas permeáveis e impermeáveis (Figura 3) indicam que
53,8% do solo na bacia córrego do Aviário está impermeabilizado. Este percentual é inferior ao da bacia
hidrográfica do rio Belém, que, na área de drenagem definida até a seção transversal de controle, Estação
Fluviométrica Prado Velho, apresenta 72% de impermeabilização do solo (CARVALHO, 2016). A
representatividade de áreas impermeáveis nas Ottobacias se dá de forma bastante heterogênea, variando de
zero a 83%.
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Isso se deve, em especial, à heterogeneidade espacial da área de estudo, com a presença de instituições
educacionais (UFPR, FIEP e PUC-PR) nas porções norte, nordeste e central da bacia, onde predominam as
áreas vegetadas; e com a presença de comércios e residências nas porções sul e oeste, onde há maior
densidade de edificações, ruas e calçadas. As áreas permeáveis se restringem à jardins residenciais, pequenas
praças e canteiros públicos.
Mesmo apresentando percentual de impermeabilização inferior à bacia hidrográfica do rio Belém, nota-se
alto grau de desenvolvimento urbano na área de estudo, com consequente desnaturalização dos processos
hidrológicos e intensificação dos problemas ligados a dinâmica hídrica em meio urbano. A
impermeabilização de 53,8% da área de uma bacia traz significativas alterações no regime natural de
escoamento, diminuindo a infiltração da água no solo, aumentando os picos de vazão máxima e,
consequentemente, aumentando risco, frequência e magnitude das inundações.
Dados os critérios metodológicos descritos na seção anterior, um segundo produto cartográfico foi gerado
(Figura 4). O mapa de desnaturalização por Ottobacia e condições do leito fluvial retrata a espacialização de
ambos os elementos, bem como esboça as possíveis relações entre as condições do rio e da bacia.
Visualmente, constata-se que nas unidades de análise menos desnaturalizadas, localizadas na porção
norte, há predominância de canais não modificados. Nas unidades mais desnaturalizadas, entretanto,
prevalecem os canais modificados e, em especial, a categoria “canalizado subterrâneo”. As bacias 321, 351,
361, que possuem 100% de solo permeável, encontram-se inseridas no maior fragmento de vegetação do
campus Botânico da UFPR, onde o rio é natural em toda sua extensão. Os maiores percentuais de
desnaturalização, por sua vez, são encontrados nas bacias 211 e 251, situadas nas porções residenciais oeste e
sul, onde o rio é canalizado subterrâneo.
A Figura 4 evidencia o predomínio de áreas alteradas pela expansão urbana, tanto ao que se refere à
impermeabilização do solo, quanto à modificação dos canais de drenagem via retificação a canalização. A
Tabela 1 apresenta dados gerais da bacia em relação a extensão e porcentagem de cada categoria de leito
fluvial encontrada na área em estudo, com evidente predomínio de rios na condição “canalizado subterrâneo”
(56%). A categoria “canalizado aberto” corresponde a apenas 10% da extensão total dos córregos, enquanto
que “natural” representa 34%.
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A Figura 5 apresenta a distribuição de frequências das condições do leito fluvial avaliadas. Neste sentido,
é possível observar que na bacia do Aviário os canais de drenagem se dividem basicamente entre duas
condições: “canalizado subterrâneo” ou “não modificado/natural”. Assim, as Ottobacias com rios com
condição “canalizado aberto” apresentam a menor representatividade na área de estudo analisada, sendo
predominantes em apenas 6 das 47 Ottobacias, ou seja, em apenas 12,8% delas. Uma inferência possível sob
este aspecto é a de que, ao longo do tempo, uma vez consumada a condição de modificação dos canais,
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inicialmente categorizados como “canalizado aberto”, haja uma tendência de transformação para a condição
“canalizado subterrâneo”.
A Figura 6 apresenta o gráfico de caixa (BoxPlot) que relaciona a dispersão das áreas das Ottobacias e a
proporção de suas áreas impermeáveis com condição dos seus respectivos canais de drenagem. Neste gráfico,
a haste inferior representa o menor elemento da amostra, enquanto a superior representa o maior. As caixas,
por sua vez, apresentam três quartis (Q1, Q2 e Q3), os quais descrevem valores dados a partir do conjunto de
observações em ordem crescente. Q1 é o número que separa 25% das observações abaixo e 75% acima,
enquanto Q3 separa 75% das observações abaixo e 25% acima. Q2 é a mediana e, portanto, deixa 50% das
observações abaixo e 50% das observações acima. O “X” representa a média.
A Figura 6 demonstra indícios de um ordenamento das proporções de áreas impermeabilizadas nas
Ottobacias em função das condições de seus respectivos canais de drenagem. Nota-se que, apesar de
apresentar maior dispersão, as unidades de análise cujos canais permanecem inalterados apresentam as
menores taxas de impermeabilização. Por outro lado, unidades cujos canais apresentam o maior grau de
modificação (leito canalizado subterrâneo) possuem também as maiores taxas de impermeabilização
verificadas, corroborando com a espacialização visível na Figura 3.
Figura 6: Gráfico de caixa para avaliação da distribuição das variáveis entre as categorias analisadas
(percentual de áreas impermeabilizadas das Ottobacias). Nota: CS é leito canalizado subterrâneo; CA é
canalizado aberto; NM/N não modificado/natural.
Desta maneira, estabelece-se a hipótese de que as Ottobacias cujos canais não foram modificados
possuem proporções de área impermeabilizada significativamente diferentes de Ottobacias cujos canais
foram alterados (canalizados abertos ou subterrâneos). Para avaliar esta hipótese foi aplicado o teste de
Kruskal-Wallis.
O Kruskal-Wallis é um teste estatístico não paramétrico utilizado para testar a hipótese nula de que todas
as populações possuem funções de distribuição iguais, contra a hipótese alternativa de que, ao menos, duas
das populações possuem funções de distribuição diferentes (KRUSKAL; WALLIS, 1952). Este teste avalia
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as diferenças entre três ou mais grupos amostrados independentemente em uma única variável contínua com
distribuição não normal. É uma alternativa à análise de variância unidirecional (ANOVA), que é um teste
paramétrico adequado para variáveis contínuas com distribuição normal (VARGHA; DELANEY, 1998).
Com relação à avaliação conjunta destas três categorias, a Tabela 3 apresenta um resumo dos resultados
do teste não paramétrico de Kruskal-Wallis. Constatou-se que as Ottobacias cujos canais de drenagem estão
modificados, subterrâneos ou abertos, não apresentam diferenças significativas entre si. Contudo, no que diz
respeito a proporção e área impermeabilizada, diferem significativamente das Ottobacias com canais não
modificados.
Neste sentido, tais resultados indicam uma relação direta entre a condição da rede de drenagem em meio
urbano com grau de desnaturalização da bacia. Assim, espera-se que, na medida em que aumentem as
porções impermeáveis das bacias hidrográficas, tal condição esteja refletida na alteração da rede de
drenagem. Ou seja, quanto maior o grau de desnaturalização de uma bacia em ambiente urbano, maior será
possibilidade de a rede de drenagem imediata se apresentar modificada.
4. Considerações finais
O presente estudo teve por objetivo avaliar do ponto de vista teórico e prático a interdependência e
sincronicidade dos processos de desnaturalização que ocorrem no rio e na bacia hidrográfica. De maneira
complementar, buscou também avaliar como a interdependência destes processos é abordada nos trabalhos
de recuperação de rios urbanos.
A revisão da literatura permite as seguintes considerações: 1) diferentes processos de desnaturalização
ocorrem simultaneamente e de forma interdependente no rio e na bacia hidrográfica; 2) há uma gama de
projetos de recuperação de rios urbanos degradados com diferentes abordagens e propósitos, dentre os quais,
destacam-se os conceitos revitalização e renaturalização de rios; 3) tais projetos voltam-se especialmente aos
processos que ocorrem estritamente nos rios, desconsiderando os processos desnaturalizantes que se dão na
bacia hidrográfica, fato este que conduz ao insucesso de muitos deles; 4) não foram encontrados estudos na
literatura que investiguem o quanto os processos de desnaturalização que ocorrem no rio podem estar
atrelados aos processos hidrológicos que ocorrem na bacia em ambientes urbanos.
A aplicação prática foi realizada na bacia hidrográfica córrego do Aviário, que possui características
comuns a muitas outras áreas urbanas do país, o que torna a bacia representativa no contexto urbano
brasileiro. A bacia foi compartimentada em Ottobacias, utilizadas como unidades individualizadas de análise.
Foi realizado o mapeamento de áreas impermeáveis, bem como da condição dos canais fluviais. A
quantificação e as análises estatísticas foram realizadas para avaliação do grau de relação entre a
desnaturalização das Ottobacias e seus respectivos segmentos de rio.
A aplicação prática do método permitiu as seguintes conclusões: 1) as modificações verificadas na rede
de drenagem são um reflexo da impermeabilização do solo ou desnaturalização das Ottobacias analisadas; 2)
como consequência desta dinâmica já consolidada, é possível afirmar que, de maneira geral, os canais
modificados estão associados a Ottobacias predominantemente impermeabilizadas. Do mesmo modo, canais
mais próximos de suas condições naturais encontram-se normalmente em áreas menos impermeabilizadas; 3)
não há associação de canais considerados naturais em áreas com altas proporções de impermeabilização; 4)
ademais, infere-se que uma vez modificados, com retificação e canalização aberta, a condição de
desnaturalização dos canais de drenagem tende a evoluir para um grau de modificação mais elevado, com
canalização subterrânea.
De maneira geral, conclui-se que a metodologia empregada no presente estudo, do ponto de vista teórico
e prático, com abordagem voltada a interdependência e sincronicidade que se dão nos processos que ocorrem
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no rio e na bacia hidrográfica bacia, pode ser utilizada como ferramenta para diagnostico no planejamento do
espaço urbano e na recuperação de rios degradados.
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