Relaçõs de Gênero e Escutas Clinicas 1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 260

RELAÇÕES DE GÊNERO E ESCUTAS CLÍNICAS JOSÉ STONA iorg.

i
I
sta obra está organizada a partir de um trabalho narrativo
E feito, principalmente, por profissionais da psicologia
que, quando pensam seus fazeres clínicos, éticos e
políticos, levam em consideração, não como elemento
central, mas como elemento não passível de isenção, os
atravessamentos singulares das relações de gênero (sejam
eles de raça, etnia, classe, gênero, orientação sexual,
religião, deficiência, nacionalidade etc.). São, além disso,
autores que, em seu campo de atuação, deixam que a
clínica seja primária em relação à teoria e fazem dos seus
corpos ações políticas, partindo do pressuposto de que a sua
teoria, independentemente da linha teórica adotada, não
é imparcial frente a estigmas, violências e discriminações.

ISBN 978-65-86481-26-6

9 786586 481266
RELA0ES DE GÊNERO
E ESCUTAS CLÍNICAS

JOSÉ STONA (ORG.)


:>editorr
DEVIRES
Lá se vão seis anos do momento em que, ao
começar a existir publicamente como Amara, a
psicóloga com quem eu fazia acompanhamen­
to à época me pediu para ter paciência com
ela, pois ainda estava tentando entender o que
a levava a não conseguir nem me chamar de
Amara nem me tratar no feminino. Insisti por
mais duas sessões, até me dar conta de que
aquela situação estava me fazendo mais mal do
que bem e que, na realidade, parecia que nos­
sas posições tinham se invertido. Eu não tinha
(nem tenho, aliás) formação em psicologia e
tampouco tinha psicológico para suportar a si­
tuação em que me via, não me restando senão
romper drasticamente o acompanhamento. 0
curioso, no entanto, é que, dois anos antes,
quando eu havia chegado ao seu consultório
pedindo ajuda para não voltar a tomar hormô­
nios nem pensar mais em transição, as palavras
que ela me disse foram cruciais para me aju­
dar a me tornar o que hoje sou: “por que, ao
invés disso, a gente não tenta entender o que
levou você a querer transformar seu corpo, a
se imaginar de outro gênero?”. Àquela época,
pessoas trans eram sujeira estatística nas uni­
versidades, mas de lá para cá essa presença
tem se tornado cada vez mais marcante, e os
primeiros frutos começam a ser colhidos agora,
sob a forma de produções que nos permitem
tanto compreender melhor o que somos e o
que deixamos de ser (problematizando a pers­
pectiva cisgênera a partir da qual aprendemos
a nos ver) quanto transformar os próprios pa­
radigmas que orientam a construção do saber
acadêmico de forma ampla. Chegará um dia
em que profissionais psi não serão mais for­
mados sem um debate profundo sobre gênero
e sexualidade, dia em que não precisarei mais
me preocupar em procurar profissionais psi
LGBTQIA+ para que o processo de escuta clí­
nica não seja pautado pela LGBTTQIA+fobia.
Chegará esse dia, e chegará logo. Os artigos
aqui presentes terão um papel crucial na in­
venção desse dia.

Amara Moira
RELAÇÕES DE GÊNERO
E ESCUTAS CLÍNICAS
\
■#:' ?««!:.* ém.i

E ESCUTAS CLINICAS

JOSÉ STONA I0RGJ

^editora^
DEVIRES
eekbik atacas
JQSÊ STOMA mu

Editor(a) | Gilmaro Nogueira


Revisão | Patrícia Azevedo Gonçalves
Diagramação | Daniel Rebouças
Ilustração | Jenifer Prince

Conselho Editorial
Prof. Dc Carlos Henrique Lucas Lima
Universidade Federal do Oeste da Bahia - UFOB Prof. Dr. Leandro Colling
Prof. Dr. DjalmaThürler Universidade Federal da Bahia - UFBA
Universidade Federal da Bahia - UFBA Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade,
Profa. Dra, Fran Demétrio Universidade da Integração Internacional da l.jsofcnia
Universidade Federai do Recôncavo da Bahia - UFRB Afro-Brasileira - UN1LAB

Proí. Dr. Helder Thiago Maia Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida


Universidade Federal Fluminense - UFF Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Prof. Dr. Hilan Bensusan Prof. Dr. Márcio Caetano


Universidade de Brasília - UNB Universidade Federal do Rio Grande - FURG

Profa. Dra. Jaqueiine Gomes de Jesus Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Instituto Federal Rio de Janeiro - IFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Profa, Dra. Joana Azevedo Lima Dr. Pablo Pérez Navarro (Universidade de Coimbra - CES/
Devry Brasil - Faculdade Ruy Barbosa Portugal e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)

Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CiS-lUL, instituto Universitário de lisboa Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa
Universidade Estadual da Paraíba - UHPB

CIP BRASIL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


S877r Stona. José,—
Relações de Gênero e Escutas Clínicas/José Stona
(Organizador). Ia edição/Salvador - BA. Editora Devires,
2021.

260p.; 16x23 cm

ISBN 978-65-86481-26-6
1. Psicologia 2. Diversidade 3. Saúde mental I. Título

CDD 159.9 CDU 308.1-13

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

^editorr
DEVIRES
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro - Simões Filho - BA
www.editoradevires.com.br
A vida é certamente mais vivível
quando nós não estamos confinados a
categorias que não funcionam para nós.

Judith Butler, Corpos Que Ainda Importam


SUMARIO

PREFÁCIO 9
Jaquelíne Gomes de Jesus

APRESENTAÇÃO 12

GÊNERO: DA FORMAÇÃO A NÃOESCUTA DO ANALISTA 19


José Stona
Andrea Ferrari

SOBRE MACACOS, CYBORGS E TRANSEXUAIS:


A PSICANÁLISE E OS LIMITESDO HUMANO 35
Eduardo Leal Cunha

DE ONDE ESCUTO? DE FREUD E LACAN E FOUCAULT


E DELEUZE E... 51
Patrícia Porchat

SEDIMENTAÇÕES DE UMA ODALISTA ANDROIDE:


ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
GÊNERO E CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR 63
Céu Silva Cavalcanti

A METAFÍSICA GENERIFICADA DA ESCUTA PSICANALÍTICA 79


Daniel Kveller
Flenrique Caetano Nardi

GÊNERO E RAÇA: MARCAS PERSISTENTES DE


UM FAZER-SABER DENEGADO ■ 93
José Damico

VOZES NEGRAS FEMININAS: ECOAM POÉTICAS


E AQUILOMBAMENTOS SUBJETIVOS 119
Liziane Guedes da Silva

INDAGAÇÕES CONTRANORMATIVAS SOBRE OS USOS


DOS CONCEITOS DE “FUNÇÃO MATERNA”, “FUNÇÃO
PATERNA” E MATERNAGEM 141
Andrea Gabriela Ferrari
Milena Silva
IDENTIDADES TRANSGÊNERAS E O CAMPO DE CUIDADO COM
A SAÚDE: UMA ANÁLISE DE EXPRESSÕES COM VIÉS
PATOLOGIZANTE 159
Beatriz Bagagli

IDENTIDADE DE GÊNERO E PARENTALIDADE \ 175


Gerson Smiech Pinho
Analice de Lima Palombini

TRUQUES E MAIS TRUQUES: SOB O RÓTULO DA DIVERSIDADE


ESTÃO AS PRÁTICAS NORMATIVAS PEDINDO PASSAGEM 193
Sofia Favero
Emilly Mel Fernandes

RELAÇÕES ENTRE GÊNERO E SEXUALIDADE INFANTIL 205


Fernanda Isabel Dornelles Hoff

ATITUDES CORRETIVAS (OU TERAPIAS CONVERSIVAS)


DA ORIENTAÇÃO SEXUAL NA CLÍNICA PSICOLÓGICA:
UMA ANÁLISE DE CASO 219
Mozer de Miranda Ramos

A VIDA PSÍQUICA DO ARMÁRIO 235


Lucas Demingos
José Stona

SOBRE OS AUTORES 253


PREFACIO
Jaqueline Gomes de Jesus

Quem escuta quem na sociedade do espetáculo?

“...a política constrói o gênero e o gênero constrói a política”


(Scott, 1989, p. 89)1.

“0 subalterno não pode falar”


(Spivak, 2010, p. 126)2.

O isolamento que me impus, para minha segurança e a dos meus próxi­


mos, durante a pandemia da COVID-19, trouxe consigo as demais dificuldades
esperadas, especialmente no campo da produção acadêmica. São tantos pen­
samentos circulando que o simples ato de sentar-se frente ao computador e
escrever estas linhas torna-se quase doloroso. Sei que muitos colegas, muitos
mesmo, estão passando pelo mesmo martírio.
Apesar de tanta dificuldade em me externar por meio da escrita, de ordem
menos cognitiva do que afetivo e até psicomotora, a escuta prossegue, explode,
exponencialmente, por meio de centenas de lives e atendimentos psicológicos
on-line. Escutas, escutas, escutas. Elaborações e reelaborações. De novo. O
desgaste estressa e me aponta para o horizonte de um burnout, como sói a
tantos que tenho aconselhado ou falado sobre ao longo destes meses. ALTO LÁ!
Dou-me um tempo, permito-me, aplico-me, permito-me ser ouvida. Abro
mão de algumas dezenas de compromissos aceitos na dinâmica produtivista
on-line que nos está sendo naturalizada, desnaturalizo-a, refaço-me, durmo
antes das quatro da manhã, das três, das duas, quando progresso sentir sono
antes da uma da madrugada! Ainda estou viva, apesar das urgências que pu­
lulam.

1 SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995,
pp. 71-99.
2 SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

9
Curiosamente, identifico neste livro que se propõe, corajosamente,
a falar de relações de gênero e escutas clínicas fora de alguns vieses tradi­
cionais de nosso vasto campo psi, sem cometer o erro de ignorá-los — uma
ressonância dos nossos tempos, uma vibração anterior à disseminação do
novo coronavírus que já decorria do nosso estadp de coisas na globalização,
nesta Sociedade do Conhecimento na qual o que mais temos, em overdose,
são informações, ao passo que não sabemos de onde extrair, nesse monturo
de dados, algo útil para nossas vidas chamado, sim, de conhecimento. Seja
de nós, seja do mundo que nos cerca.
Eu encontro neste livro muitas vozes jovens, periféricas até, subalternas
portanto, aquelas que trazem a potência de, quiçá, mudarem futuramente o
nosso paradigma científico, obviamente que determinadas pelo que Thomas
Kuhn já estabeleceu como parâmetros para tamanha empreitada. Mas elas
estão aqui, nas linhas que me seguem.
Propõem-se a refletir, sempre criticamente, sobre temas que povoam o
inconsciente coletivo ou o mainstream dos trending topics, que no entanto
não encontraram profundidade de teorização antes de pousarem nestas pá­
ginas, como a articulação entre o tema da diversidade e a saúde mental; os
corpos androides cujos componentes são hieróglifos (corpo e subjetividade/
subjetificação, pulsando Donna Harraway); a linguagem e seus usos e abusos
para a (des)patologização das identidades trans; maternidade, paternidade,
maternagem no contexto da figura hegemônica da família, tão confusamente
amalgamada com a imagem de propriedade (privada); sexualidade e infân­
cias; filiação e identidades parentais em conflito com a cisnormatividade que
não se nomeia como tal; uma necessária análise das chamadas — e famige­
radas — Terapias Conversivas (escrevo aqui em um duplo sentido, que inclui
o religioso) da orientação sexual (homossexual); debates metafísicos sobre
gênero e sexualidade, de fato raros de irromperem no campo psi, tão afeito à
funcionalidade no trato dos conceitos; uma reflexão sobre o tão dito “armário”;
entre outras desafiadoras interpretações acerca da escuta.
Compreendo esta obra como um manancial de relevantes saberes e re­
latos de experiências potentes para a transformação de você, profissional da
escuta - qualificada, ativa, qualquerque seja, entretanto, principalmente, da
clínica, seja ela feita na clínica ou em qualquer outro lugar, curiosamente, por
não se restringir ao lugar onde ocorre, mas se constituir nele.
Como uma mais velha que aponta a trilha mais proveitosa para o que você
busca, indico-lhe esta leitura. Que ela lhe fortaleça, empodere, em vários sen­
tidos, certamente não em todos, mas em mais de um. Este é o seu propósito,

10
e ele é necessário, urgente. Nunca a escuta se demonstrou tão emergencial e
precisa quanto nestes tempos que estamos vivemos, inclusive para nós que
escutamos profissionalmente, que sejamos escutados, desde os nossos dife­
rentes e complexos lugares de fala, como se costuma falar ultimamente. Temos
tanto a dizer para além do que esperam que falemos. Então nos ouça, leia-nos.

Bairro da Glória, Cidade do Rio de Janeiro, em 09 de setembro de 2020,


há cinco meses do isolamento físico, mas não social, decorrente da pandemia da
COVID-19.

11
APRESENTAÇÃO
Já não é novidade que nós, psicólogues ou interessades nas múltiplas
áreas da psicologia, começamos a entender que o problema central não é
apenas a teoria, que ainda pode (re)produzir uma possibilidade de leitura
discriminatória, estigmatizante e violenta sobre o sujeito por meio de con­
ceitos que foram construídos colonialmente e que se tornam dispositivos
de poder-saber-ser e ajudam a fabricar condições prévias de inteligibilidade
por meio de n normatizações. Nem mesmo deveríamos ficar surpresos com
o comportamento reativo e defensivo de alguns discursos psis (psicólogues,
psiquiatres e psicanalistes) diante das nomeações de questões coloniais como
branquitude, patriarcado, machismo, elitismo, capacitismo, cisheteronorma
etc (KlLOMBA, 2010)3.
Assim, recusar a interseccionalidade no fazer clínico (a sobreposição ou
intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de exploração,
dominação ou discriminação que, a partir de categorias, visam, dentre outras
coisas, a subverter hegemonias de opressão públicas e privadas para que ga­
nhem visibilidade e reconhecimento social) hoje é, justamente, tentar a todo
custo manter um certo legado normativo intacto. É, também, tentar conservar
pactos narcísicos de opressão, discriminação e estigma, perpetuando o silen-
ciamento das múltiplas corporeidades possíveis na cultura.
Diante disso, pergunto-lhe: na sua formação, seja ela qual for, quantes
autores trans, não bináries, não branques, indígenas, travestis, feministas,
LGBTTQIA+ ou com deficiência você já leu ou tem lido? Quais são os efeitos de
tais ausências na nossa formação? Quais são os efeitos desses apagamentos e
dessas invisibilidades na nossa escuta e prática clínica? Cada vez mais se torna
importante situarmos o nosso lugar de escuta, que é fabricado por uma teoria
que não é neutra e isenta de uma historicidade que apaga os marcadores in-
terseccionais de diferença. Se, como nos avisa Gayatri Spivak (1988)4 e Djamila
Ribeiro (2017)5, quem tem o privilégio social tem o privilégio epistêmico, ainda
cabe uma posição defensiva ou de silenciamento? Qual o lugar das relações
de gênero na clínica? Qual o lugar da identidade na clínica?
O livro que o leitor tem em mãos parte dos questionamentos supracitados
e, certamente, não consegue dar conta, e nem pretende, “falar de tudo”, dei­
xando questões e ausências para um debate contínuo. A ideia foi organizar um
trabalho narrativo feito, principalmente, por profissionais da psicologia que,

3 Kl LOMBA, G. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Munster: Unrast Ver-
lag, 2. Edição, 2010.
4 SPIVAK, G. Can the Subaltern Speak?” In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Larry (Ed.). Marxism and the In­

terpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988a. p. 271-313.


5 RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento: Justificando, 2017.

13
quando pensam seus fazeres clínicos, éticos e políticos, levam em considera­
ção, não como elemento central, mas como elemento não passível de isenção,
os atravessamentos singulares das relações de gênero (sejam eles de raça,
etnia, classe, gênero, orientação sexual, religião, deficiência, nacionalidade
etc.). São, além disso, autores que, em seu cam^o de atuação, deixam que a
clínica seja primária em relação à teoria e fazem dos seus corpos ações políti­
cas, partindo do pressuposto de que a sua teoria, independentemente da linha
teórica adotada, não é imparcial frente a estigmas, violências e discriminações.
A justificativa da obra está pautada no entendimento de que a prática clínica
em psicologia esteve, durante longas décadas, colada aos saberes médicos,
jurídicos e terapêuticos, que, a partir de seus dispositivos dç “cuidado” e tutela,
produziram uma dívida histórica por meio de patologizações e silenciamentos
em face das relações de gênero. Longe de ser algo ampíamente resolvido, os
campos discursivos das psicologias ainda atuam como dispositivos de controle,
violência, discriminação e patologização.
Nesse contexto, a obra parte desses (des)encontros entre os campos teó­
ricos de saber e as escutas clínicas para problematizar, enfaticamente, que
gênero é um conceito que não pode ser pensado isoladamente (Davis, 2016)6.
Esta coletânea de textos apresenta as múltiplas faces das relações de gênero
nas escutas clínicas dentro dos campos das psicologias.
Em Gênero: da formação a não escuta do analista, os autores discutem
como a formação do psicanalista, devido a sua possibilidade de manuten­
ção normativa, pode ter como conseqüência um impedimento da escuta do
analista sobre determinadas questões, a exemplo do gênero. A partirde uma
breve retomada histórica, os autores refletem sobre como certas posições
normativas na formação do psicanalista podem, ainda, estar presentes con-
temporaneamente.
Em De onde escuto? De Freud e Lacan e Foucault e Deleuze e..., o texto
apresenta autores franceses que vêm construindo uma psicanálise em diálogo
com a obra de Foucault e de Deleuze. O objetivo da autora é pensar um campo
psicanalítico que seja constantemente crítico de si mesmo para desconstruir
os efeitos de saber que colocam em cena os dispositivos de poder. A atenção
que a psicanálise dispensa às minorias é problematizada de modo a não correr
o risco de se fundar uma nova psicanálise normativa, universalizante e que
essencializa identidades.
Em Macacos, cyborgs e transexuais: a psicanálise e os limites do humano,
o autor propõe uma breve discussão sobre o lugar, na clínica psicanalítica, de

6 DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016,244p.

14
uma interrogação quanto aos (imites do humano e seus modos de determina­
ção. Ele propõe, ainda, pensarmos na escuta das experiências transidentitárias
e a sua articulação a uma problematização do que poderia ser descrito como
“humanismo” psicanalítico, situando que, ao invés de um lugar de afirmação
a partir de certo ideal antropológico, a clínica psicanalítica deve ser, ao con­
trário, um campo de experimentação ética, no qual novas formas de existência
possam se produzir e ser reconhecidas.
Em Sedimentações de uma odalisca androide - algumas reflexões sobre
gênero e clínica transdisciplinar, a autora toma emprestado, como guia provi­
sório, a imagem mítica da Odalisca Andróide, poema de Fausto Fawcett, texto
que propõe um passeio pelos campos de reflexão sobre clínica transdisciplinar
e perspectivas de gênero pós-estruturalistas. Através de um diálogo entre
Espinosa e Butler, a autora atenta para um traçado de subjetividade no qual
os códigos morais do ordenamento transcendente corporificam, inclusive, os
marcos regulatórios do gênero. Por meio do conceito-metáfora de corpo sem
órgãos, o texto faz ser possível vislumbrarmos como os diferentes estratos se
compõem por sobre o corpo, construindo formas completamente atravessadas
pelas linhas históricas, sociais e econômicas.
Em A metafísica generificada da escuta psicanalítica, os autores refletem
sobre uma posição ambígua da psicanálise, onde existe, de um lado, uma
atitude de resistência em relação aos debates de gênero e sexualidade e, de
outro, uma pressuposição naturalizada do gênero em suas práticas através de
uma metafísica sustentada no a priori da diferença sexual. Os autores sugerem
que o gênero só se torna um problema para a psicanálise quando ele desafia
os rituais heteronormativos que atravessam seu funcionamento cotidiano,
argumentando que, se a psicanálise almeja sustentar uma ética realmente
não-identitária, deve começar examinando as expectativas e os preconceitos
relacionados ao gênero que operam na sua teoria e prática de maneira natu­
ralizada.
Em Gênero e raça: marcas persistentes de uma fazer-saber denegado, o
autor articula duas categorias que foram negligenciadas pela psicanálise du­
rante muito tempo e que vagarosamente começam a ter seu caminho estriado
pelas discussões de grupos que historicamente foram subalternizados. O autor
coloca que essa abertura/rasura não se dá sem resistências, indicando que, nos
tempos em que vivemos, ninguém que se percebe minimamente ao lado de
uma sociedade ma is justa gostaria de receber os selos de racistas, machistas,
homofóbicos e transfóbicos.
Em l/ozes negras femininas: ecoam poéticas e aquilombamentos subjetivos,
a autora interroga a ética da psicologia que se produz, muitas vezes, a partir

15
de uma caixa eurocêntrica. A autora, recorrendo às vozes negras femininas do
Sarau Sopapo Poético, busca problematizar as idéias de escuta e de sujeito,
em uma perspectiva pluriversal e posicionada, em diálogo com a Psicologia
Preta e a Filosofia Afroperspectivista. A autora aposta no Aquilombar, como
categoria clínico-política, para a (re)construçãq de modos de subjetivação
negros e afroperspectivistas, na diaspora africana ao sul do Brasil, evocando
vozes africanas e ameríndias no intuito de afirmar multiplicidades subjetivas a
partir de corporeidades e vozes negras, que têm muito a ensinar à psicologia.
Em Indagações contranormativas sobre os usos dos conceitos de “função
materna” “função paterno” e “maternagem”, as autoras partem dos qualifi­
cativos materno e paterno atrelados às funções constituintes, bem como da
noção de maternagem acoplada à figura da mãe, para questionar, a partir de
autores contemporâneos, a manutenção desses termos acoplados, ainda que
imaginariamente, aos personagens da mãe/mulher e do pai/homem.
Em Identidades transgêneras e o campo de cuidado com a saúde: uma
análise de expressões com viés patologizante, a autora trabalha o tema pato-
logização das identidades transgêneras em discursos do campo do cuidado
com a saúde. Para tanto, ela seleciona artigos e documentos de referência,
abordando as seguintes noções utilizadas para descrever as experiências de
pessoas trans: “surgimento precoce/tardio/rápido”, “contágio social”, “sofri­
mento”, “desistência”, “persistência”, “riscos” e “benefícios”. A autora propõe
uma discussão sobre como essas expressões são inadequadas para a com­
preensão das identidades trans, entendendo que elas possuem um viés pa-
tologizantes, e busca desenvolver no artigo as perspectivas dos sujeitos trans
como um contrapeso a tais expressões.
Em Identidade de gênero e parentalidade, os autores problematizam as
mudanças ocorridas nas últimas décadas nas configurações das famílias,
pensando o estatuto dos laços de filiação e das identidades parentais que se
estabelecem no âmbito das minorias sexuais. Os autores referem que, mes­
mo com uma maior flexibilidade nos papéis desempenhados no interior das
famílias, não é raro que as relações constituídas fora da heteronormatividade
sejam consideradas socialmente inviáveis, segundo o pressuposto de que a
ligação heterossexual seria o único caminho concebível para a organização
do parentesco. Com base nas noções de função materna e função paterna, o
texto visa a refletir sobre a questão proposta, tanto na prática clínica quanto
nas formulações teóricas no campo da psicanálise.
Em Truques e mais truques: sob o rótulo da diversidade estão as práticas
normativas pedindo passagem, as autoras propõem uma reflexão sobre como
a “diversidade” tem sido uma categoria articulada na saúde mental de maneira

16
controversa. Ao passo que os debates sobre gênero e sexualidade se encon­
tram fortalecidos na esfera pública, nem tudo aquilo que responde ao termo
“diversidade” indica ser exatamente uma prática voltada à desconstrução de
estereótipos sexistas e LGBTfóbicos. Através de reflexões baseadas nos estu­
dos de gênero, o texto pretende expor como tal “lugar comum” se direciona à
produção de dependências clínicas, fazendo com que a figura do/a terapeuta
adquira maior autoridade e que nós, pessoas interessadas em outros projetos
à psicologia, distanciemo-nos de horizontes éticos com a diferença.
Em Relações entre gênero e sexualidade infantil, a autora pensa sobre como
o modo de o sujeito se reconhecer e buscar um lugar junto aos seus amores
está relacionado a complexos movimentos pulsionais, identificatórios e trau­
máticos, que permeiam posicionamentos constitutivos da identidade sexual e
da identidade de gênero. O texto evidencia como esses movimentos singulares
ocorrem a partir da relação com quem assume a parentalidade e suas funções,
atravessados pela cultura. A partir dessa sustentação, a pulsão, o narcisismo
e o complexo de Édipo podem ser instaurados numa organização singular do
sujeito. A autora ilustra esses percursos constitutivos numa intersecção entre
a teoria e alguns recortes da escuta psicanalítica de crianças e adolescentes.
Em Atitudes corretivas (ou terapias conversivas) da orientação sexual na
clínica psicológica: uma análise de caso, o autor reflete sobre o relato de aten­
dimento clínico de um psicólogo que praticou atitudes corretivas da orienta­
ção sexual com um cliente. O texto problematiza as conseqüências clínicas e
políticas de tal ação a partir de diretrizes e referências contemporâneas so­
bre o assunto.
Em A vida psíquica do armário, os autores refletem sobre os efeitos psíqui­
cos exercidos pelo dispositivo do armário sobre o sujeito. Para isso, recorrem
tanto a elaborações de Judith Butler, a partir do conceito de melancolia de
gênero, quanto às maneiras pelas quais esses efeitos psíquicos se manifestam
materialmente nos sujeitos, a partir de breves menções de documentários e
recortes da escuta clínica. Em um segundo momento, a investigação reelabora
e complexifica a estrutura do armário ao vinculá-la aos relatos de formação
do sujeito e suas possibilidades de resistência.

Boa leitura!
José Stona

17
Eu ouvi que eu era “bicha”, que eu era “viado”, quando eu tinha, sei lá, 6 anos de idade.
Eu tava numa padaria, eu acho, e um cara falou isso pra mim. Eu não sabia o que era
aquilo, mas o jeito que ele falou era tão pesado que eu entendi que aquilo era uma
coisa muito ruim [...]. E quando eu tinha uns 8 anos, aí eu entrei numa terapia, por
conta do meu comportamento [...]. E aí eu comecei a ser treinado pra agir diferente.
Na verdade, comecei a ser ensinado que tudo que eu fazia tava errado. As coisas que
eu brincava, as pessoas que eu brincava, o jeito que eu falava, o jeito que eu andava.
Então, tipo, na terapia, ela gravava tudo que eu dizia pra eu ouvir depois. Ela fazia
eu repetir as mesmas coisas com outra voz, pra treinar uma voz mais masculina. Eu
caminhei várias vezes pela sala para, tipo, treinar um caminhar “de homem”. Eu fiz um
tipo de caligrafia também para escrever igual um menino. E ela falava, por exemplo, o
meu “A” e o meu “O”, eles eram quase iguais. E ela falava que isso era uma coisa muito
errada, porque eu tinha que diferenciar o que era feminino e o que era masculino. E eu
lembro muito disso que parece uma besteira quando você fala assim, fora do contexto,
mas era uma coisa que, tipo, que me marcou muito. E eu não conseguia e não me sentia
bem fazendo as coisas que ela queria que eu fizesse. O meu modelo estabelecido foi
o meu irmão. E eu tinha que me comportar igual a ele. E eu comecei a entender que,
quanto mais eu demorasse pra fazer do jeito que ela queria, mais tempo eu ia ficar lá.
Durou mais ou menos 1 ano essa terapia... E aí eu comecei a me comportar do jeito
que ela queria. E isso não acabava quando eu saía da sala de terapia porque ela tinha
criado uns sinais com a minha mãe e com o meu irmão. Então, se eu me comportasse
de maneira errada em público, a minha mãe e o meu irmão tinham que me corrigir.
E aí quando eu via aquilo eu tinha que parar, tipo, se eu tivesse correndo, sei lá, de
alguma forma, eu tinha que parar e correr feito homem. Se eu tivesse falando com voz
de menina eu tinha que falar com voz de homem. E aí começou aquela perseguição,
né, na minha cabeça e.. sobre todo o meu comportamento, sobre a minha persona­
lidade, sobretudo...

Bruno, em Bichas, o documentário.

18
GÊNERO:
DA FORMAÇÃO A
NÃO ESCUTA DO ANALISTA
José Stona
Andrea Ferrari
“Nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios
complexos e resistências internas”.
(Sigmund Freud, As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica).

As discussões dos estudos de gênero, proposições teórico-políticas que


tentam propor uma atualização nas temáticas científicas sobre corpo, sexo e
gênero (CONNEL & PEARSE, 2015), em diálogo com a psicanálise, nos últimos
anos, têm revelado diversas fragilidades e potências da teoria psicanalítica
diante da clínica com experiências gênero-díssidentes. Conforme apontam
os autores Porch at (2015), Ayouch (2017), Cunha (2016) e Gherovici (2017),
há conceitos da teoria psicanalítica que acabaram produzindo uma clínica
normativa, patologizante e estigmatizante frente a tais experiências.
Nesse contexto, além dos estudos de gênero, outros saberes também
apontam essa dimensão branco-cis-hetero-normativa e elitista da psicanálise,
como os estudos sobre interseccionalidade, de Crenshaw (1989) e Davis (2016),
e os estudos raciais, de Fanon (2008) e Mbembe (2013), que denunciam uma
certa norma não escrita na teoria psicanalítica e na formação de psicanalistas.
Essa norma tem trazido diversas conseqüências negativas na clínica ao longo
do tempo.
Assim, o presente artigo surge do confronto não só com a teoria, mas da
escuta clínica de experiências transidentitárias diante das possibilidades de
formação de um analista, tendo em vista que há problemáticas, para além
da teoria7, que também merecem atenção, conforme se verá a seguir. Porém,
cabe justificar que empregaremos o termo experiências transidentitárias ou
transidentidades, neste trabalho, de acordo com a noção de Ayouch (2015),
Tenório e Prado (2016) e Cunha (2016), que compreendem que essa é uma
nomenclatura fora do campo médico-jurídico-terapêutico e uma expressão
particular entre as muitas denominações possíveis relacionadas às dissidên­
cias de gênero em cada contexto cultural. Concordamos com o uso do termo,
principalmente, porque ele surge dentro do movimento trans e abrange uma
multiplicidade identitária não passível de unificação.
Gherovici (2017), Porch at (2018), Cossi (2018) e Ambra (2019) são autores
que nos mostram como o gênero, ou melhor, as discussões sobre gênero ense­
jam críticas importantes para ampliar o debate e esvaziar a lacuna normativa
produzida por diversos psicanalistas ao longo do tempo. As discussões de

7Em psicanálise, não separamos diretamente clínica de teoria. Essa separação está sendo feita apenas
para fins didáticos.

20
gênero deixam, assim, cada vez mais nítido que é impossível, hoje, ignorarmos
os atravessamentos de marcadores sociais na produção de pesquisa, ensino
e transmissão da psicanálise (como questões geracionais, capacitistas, de
raça, classe, identidade, gênero e orientação sexual). Como apontam laconelli
(2018) e Zambrano (2018), um texto que não leve em conta essas contribuições
estará datado de saída. Entretanto, será que é possível, para os psicanalistas,
transitarem de um pensamento cada vez menos etiológico, essencialista e
normativo para um pensamento mais polifônico e plural, se as formações
continuam mantendo um certo regime normativo de inclusão e exclusão?
Quando se trata de aproximar as propostas dos estudos de gênero com a
psicanálise, a teoria psicanalítica, por meio dos estudos da sexualidade, nos
ofereceu cisões históricas importantes. Tanto Freud - ao separar a pulsão
do instinto, retirando qualquer determinismo biológico - quanto Lacan - ao
pensar a matemática, a lógica e a topologia para a retirada de qualquer possi­
bilidade de essencialismos de leitura em significantes já carregados de sentido
imaginário - se preocuparam em contribuir para os avanços clínicos sobre a
sexualidade. Isso, então, nos faz perceber que o problema não são somente
as particularidades teóricas da psicanálise freudo-lacaniana, mas o que fazem
dela, ou seja, o problema são os próprios psicanalistas.
Freud e Lacan produziram um movimento subversivo importante para
sua época, mas inevitavelmente sofreram o efeito de seu tempo. Contudo,
o problema central não são, de fato, esses dois autores, mas a recepção que
lhes foi dada, que não parece ter mantido o movimento subversivo de suas
propostas teóricas, as quais sempre tiveram por intenção respeitar a hiper-
singularidade do sujeito. Há, efetivamente, paradoxos que demonstram essa
dualidade na forma de utilizar a psicanálise tanto como potência quanto como
um dispositivo de normatização.
Todavia, ao longo deste texto, queremos propor reflexões que se fizeram
presentes durante o nosso percurso, a partir de uma questão principal: a forma­
ção do psicanalista pode ser uma das problemáticas que impede a subversão
de uma escuta normativa na clínica?

As problemáticas da formação do analista


Aformação do psicanalista é o caminho pelo qual cada analista vai cons­
truir o seu percurso, nas psicanálises, a partir do seu desejo, apossando-se da
sua formação e autorizando-se a um ser analista por meio de princípios que
foram formalizados ao longo do tempo.

21
No entanto, ao pensarmos esses “princípios” da formação do psicanalista,
entendemos que há, pelo menos, dois principais vieses históricos. Primeira­
mente, o rigor estabelecido na instituição criada por Sigmund Freud, em 1910,
a IPA8 (Associação Psicanalítica Internacional), que sustentava a formação
baseando-se na obrigatoriedade do tripé procesáo pessoal de análise, estudo
teórico e supervisão. Em segundo lugar, os diversos rompimentos propostos
por Jacques Lacan até a fundação de sua escola, a EFP9 (Escola Freudiana de
Paris), que se propunha a uma nova forma de ensino estruturada na trans­
missão e instauração de um novo discurso (analítico), em conjunto com os
dispositivos do cartel10 e do passe, ou seja, “quando o analista compartilha o
ato de tornar-se analista com alguns outros” (WEILL, 2006, p. 16), devido aos
usos instrumentais, tecnicistas e adaptativos pelos psicanalistas da época.
A partir das recomendações de Sigmund Freud (1910), nós temos, em um
momento inicial, a instauração de uma tradição que, desde o princípio, tentou
normatizar um processo de formação, a exemplo da negação à formação para
pessoas fora do campo da medicina. Segundo Roudinesco (1988), Calligaris
(1990), Fingermann (2016) e Medeiros (2018), a IPA apenas reconheceria ana­
listas que se submetessem a um tratamento normatizado, onde a frequência, o
tempo, a posição do analisante e a mudez do analista eram, durante as sessões
de análise, padronizadas. Esses elementos, que “por muito tempo levaram a
psicanálise a constituir-se numa prática funcionalista de adaptação a um ideal
de normalidade, mais bem adaptado ao discurso e à ordem médica” (Medeiros,
2018, p. 249), produzem resquícios até hoje.
Posteriormente, temos um posicionamento de Freud reconhecendo que
a formação do analista, afastanda de sua característica exclusiva a praticantes
da medicina, deveria ser mais autônoma. Já com Jacques Lacan, criticando as
formatações da IPA, nós temos um novo momento com seu retorno a Freud.
Jacques Lacan, ao concordar com a importância do tripé, vai, além de enfa­
tizar que a base para a formação é a passagem por uma análise, perceber a
necessidade de levarmos em conta mais dois fatores no processo formativo:
a transmissão e o discurso analítico.
A transmissão (saber como trabalho) não é apenas um ensino, mas a pala­
vra posta por um psicanalista que articula o seu percurso teórico, a sua análise

8 Suas recomendações aos interessados em se tornarem psicanalistas acabaram por inspirar uma regra
sustentada rigidamente pela I PA e seus grupos filiados ao redor do mundo, construída em torno da análise
didática, da supervisão e da escuta de pacientes.
9 Fundada em 21/07/1964 e dissolvida em 11/03/1980.

10 Proposição de 09/10/1967.

22
pessoal e o não-saber inerente à experiência analítica em um ensino. Sobre
o discurso, Lacan (1992, p. 11) o define como “um discurso sem palavras”, ou
seja, a instauração de atos e formas de gozo que existem em certas relações
fundamentais que não podem ser mantidas sem a linguagem. Para o autor,
dessa inevitável relação do sujeito com a linguagem surgem cinco produções
fundamentais que marcam conduta, ato e enunciação. Assim, ele nos apresenta
a sua organização dos dispositivos dos discursos (formas de enlaçamento com
o outro) em cinco lugares, para cada uma das quatro permutações: o discurso
da histeria, o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso capitalista
e o discurso do analista - sendo este último o objeto de nosso enfoque (apesar
de todos estarem direta mente ligados em um circuito).
0 discurso do analista põe em cena a ética da psicanálise e coloca o desejo
em sua busca. 0 desejo, desse modo, emerge em um momento raro e preciso
para sustentar a experiência do sujeito de afirmar-se na sua pura diferença.
Diante disso, o discurso do psicanalista surge no árduo exercício de suspender
qualquertipo de saber prévio (se é que isso é possível) que cria condições nor­
mativas de inteligibilidade, esse saber da ciência clássica e do senso comum,
para uma posição que renuncia a qualquer tentativa de ser agente de um
saber, tendo em vista que este deve ser “colocado na berlinda pela experiên­
cia psicanalítica” (LACAN, 1992, p. 31) para que o analista ocupe a posição de
objeto o - causa do desejo. Segundo a posição do discurso do analista, o único
saber que importa é aquele que se adquire escutando o analisante (diferente
da relação do discurso do mestre: daquele que sabe e ponto). A questão é do
sujeito (efeito dos significantes) e foi por ele construída. É o sujeito que sofre.
Por essa razão, o próprio analista deve representar aqui, de algum modo, “o
efeito de rechaço do discurso” (LACAN, 1992, p. 45), a queda do efeito do dis­
curso, lugar destinado no ato psicanalítico sustentado pelo não-saber.
Com Jacques Lacan, temos, ainda, uma ruptura central na forma de pensar
a formação de psicanalistas: a inserção, dada por ele, da psicanálise na univer­
sidade, em 1964, nos seus seminários na École Normole Supérieure, momento
que terá amplas conseqüências para a circulação cultura! da psicanálise, “já
que, no contexto da inscrição universitária, os jogos de filiação (fidelidade e
submissão), serão complicados ou mesmo subvertidos, em relação ao mode­
lo hegemônico” (KUPERMANN, PERELSON, FRANCO Et al., 2019, p. 150) das
sociedades até então. Assim, a partir das premissas freudianas e lacanianas
apresentadas, contemporaneamente, ao pensarmos a formação do psicana­
lista, além de levarmos em conta que as tradições referidas ainda existem,
em menor ou maior grau, dependendo da instituição, devemos lembrar que

23
são tantas e tão variadas as instituições hoje existentes e espalhadas
pelo mundo, que muitas vezes os estudantes não têm acesso às produ­
ções teóricas e clínicas dos analistas de filiação institucional diferente da
sua própria. É o que atesta boa parte das construções bibliográficas dos
trabalhos acadêmicos (monografias, dissertações, teses etc.), que não raro
demonstram essa linha de filiação, a qual,'de forma bastante determinista,
propõe uma direção unívoca, a começar em Freud, passando por Lacan e
desaguando no próprio orientador e nos psicanalistas de mesma escola.
Sendo assim, torna-se fácil constatar a pouca abertura a outros saberes,
como se os psicanalistas tendessem a se fechar no circuito das suas tra­
dições de leitura e de interpretação dos seminários lacanianos utilizando,
para tanto, o argumento das trilhas e afinidades transferenciais. (MARTINS
& POLI, 2017, p. 902).

Portanto, quando pensamos que a formação do analista pode ser um


entrave para uma escuta clínica não normativa, estamos considerando os
seguintes pontos: o primeiro deles é a institucionalização, na medida em que
nos parece existir a psicanálise freudiana e o processo de institucionalização
da psicanálise, no qual havia um Freud clínico e pesquisador e um Freud que
disputava poder, querendo a todo custo firmara psicanálise como uma ciência.
São, certamente, momentos diferentes, mas que retomam a lembrança das
duas vozes divergentes do próprio Freud e nos mostram como, no processo
de institucionalização, não se valorizou esse duplo empreendimento. Flouve,
sim, a escolha (de uma matriz cisheterossexista), e a outra (desubversão) ainda
nos parece estar silenciada (ou despertando).
Essa dualidade, que provocou diversos efeitos na história da psicanáli­
se, acaba se imbricando à patologização e reforçando as variadas formas de
deslegitimação da diversidade sexual. Ainda assim, existem psicanalistas que
conseguem fazer o exercício crítico de seu tempo e aqueles que não conseguem
e nem querem romper com pressupostos normativos, o que nos traz a seguinte
questão: independentemente de como o futuro analista irá se interessar pela
teoria, há uma leitura das obras a ser feita. Essa leitura cria a possibilidade de
escolha, daquele que lê, de fazer um exercício crítico, desmontando pressu­
postos de uma teoria da época vitoriana para um momento contemporâneo,
seja ele qual for, mas, principalmente, levando em conta as demandas da
clínica, que, por certo, não se mantêm exata mente iguais àquela época. Se
hoje, na leitura da obra freudiana, o leitor não sente nenhum desconforto,
existe, de fato, um problema do ponto de vista ético, justamente por ser uma
teoria que possibilita a sustentação de normativas e categorias dos processos
de subjetivação e do sujeito.

24
0 segundo ponto é o da singularidade do leitor - quem é esse leitor, que
bagagem ele carrega, que vida teve, que experiências viveu... Tudo isso vai ser
importante para pensar que perguntas o leitor endereçará ao texto, pois a lei­
tura vai se alterando e se modificando a partir dessas premissas. A recepção do
texto nos parece trazer a pergunta de como as pessoas estão lendo e de como
é a compreensão do texto. Para além de pensar uma leitura certa ou errada, ela
nos convoca a pensar sobre a aproximação a um campo conceituai analítico
do ponto de vista ético que leve em conta a hipersingularidade do sujeito e
a ética do desejo como mais importantes que as diversas normativas que a
teoria possa oferecer. As pessoas podem estar abertas a um movimento crítico
de leitura ou podem peneirar no texto elementos normativos para justificar
suas atitudes racistas, transfóbicas, homofóbicas etc. Porém, sendo a questão
extremamente delicada, como ela seria colocada de forma mais adequada?
Seria possível, ou mesmo desejável, sustentar que há um problema de “erro
de leitura”, quando esse suposto engano é utilizado para justificar mecanismos
de violências, normatizações e patologizações, considerando que essa mesma
teoria se propõe a uma exterioridade à norma desde o princípio?
O terceiro ponto é o dos pares e da transmissão, levando em conta que
um dos principais meios de estudo em psicanálise é a troca entre os iguais, a
partirda herança metodológica na forma de cartéis, deixada por Lacan (1964),
de grupos de estudo e até mesmo da academia. O risco de uma certa pedago­
gia de transmissão infecciosa à normatização, conservando idéias patriarcais
embutidas em conceitos, é, efetiva mente, inegável. Portanto, sob o horizonte
de troca entre os pares de leitura, parece-nos haver uma escolha, nem que seja
inconsciente, na medida em que muitos psicanalistas que ocupam o lugar da
maestria insistem em dizer da leitura correta a partir da intenção de Freud no
texto. Esse ato, no entanto, pode ter por conseqüência um ordenamento ou
um direcionamento de leitura, ou seja, uma conservação de relações de poder.
O quarto ponto é o texto psicanalítico. Diante das questões de gênero,
ele ainda oferece respostas às nossas perguntas? Ainda podemos transpor
um deslocamento, ou a diferença sexual, o complexo de Édipo freudiano e a
sexuação lacaniana esta ri am em declínio nesse horizonte de percepção em
relação às demandas da clínica?
O quinto ponto são os dispositivos de formação, pois não devemos es­
quecer que ainda temos instituições que estabelecem critérios de seleção para
formação de analistas, ou seja, microcosmos que tendem a reproduzir, na
contemporaneidade, o contexto social vitoriano em sua lógica, sua virtude e
seus preconceitos. Nas palavras de Zambrano (2018), um dos resultados dessa

25
reprodução é a possibilidade de colocar em foco uma compreensão teórica
específica da psicanálise, observada em dinâmicas institucionais, clínicas
e pessoais que podem levar a distorções na condução dos tratamentos e a
prejuízos para a vida pessoal e institucional dos terapeutas. Nesse processo
seletivo, o interessado (que deve passar por uma êntrevista pautada por crité­
rios da instituição), além de obrigado a fazer análise (quatro vezes na semana)
e supervisão no mesmo espaço, ainda precisa dispor de recursos financeiros
suficientes ao pagamento da formação teórica, cujo custo é alto, para que
possa ser reconhecido como psicanalista.
Tais apontamentos nos remetem a pensar que, se pudéssemos aproxi­
mar essa discussão das denúncias do transfeminismo, sobre a dificuldade do
acesso a direitos básicos da população trans à vida (como saúde, assistência,
educação, trabalho etc.), bem como do movimento negro no Brasil, frente à
desigualdade salarial e de educação, poderíamos perceber que, mesmo não
direta mente, essa exclusividade seletiva na formação do analista dá origem a
uma espécie de categoria normativa e a uma ausência de representatividades
para a formação e figura desse profissional11:

são questões referentes às lutas pelo capital cultural, ao poder simbólico


das hierarquias constituídas durante a formação, à submissão ou resis­
tência dos candidatos a algumas imposições teóricas, ao machismo e a
homofobia travestidos de conhecimento científico que aparecem nos se­
minários, congressos, publicações e principalmente, suas conseqüências
na formação dos analistas. (ZAMBRANO, 2018, p. 17).

Por fim, mas não menos relevante, é a análise como condição essencial
para a autorização de si mesmo a analisar um outro. Aqui, poderíamos pensar
que essa seria uma chave importante para a aposta contra normatividades,
mas acreditamos que nem mesmo ela seja garantia, tendo em vista que, se
existe uma manutenção seletiva na formação, é inevitável que o interessado na
psicanálise - ou até mesmo futuro analista - possa vir a cair nas mãos de um
analista que participa do fluxo normativo acerca do qual estamos discorrendo.

11 Público
facilmente observado em eventos de instituições psicanalíticas: pessoas brancas-hetero-cisgê-
neras-sem deficiência assistindo a palestrantes brancos-heteros-cisgêneros-sem deficiência etc.

26
Da exclusividade seletiva na formação a não escuta do
analista
Se pensarmos na ausência de representatividade por meio de marcadores
interseccionais na formação de psicanalistas (como identidade de gênero,
orientação sexual, classe, raça etc.), podemos perceber que todo ponto de
vista da rede significante, quando está em relação à rede enunciativa, é pos­
sível de ser utilizada e inteligível em um determinado tempo e contexto. Essa
situação nos faz lembrar como, até 1980, ou seja, há pouco tempo, era proi­
bida a formação em psicanálise para homossexuais, como explica Bulamah
(2016). O autor evidencia, ainda, como, após a queda dessa proibição, com a
inserção de homossexuais fazendo formação em psicanálise, um certo tipo de
colagem etiológica das homossexualidades à categoria clínica da perversão
pôde ser colocada em questão, gerando um movimento da teoria psicanalítica
que caminha no sentido de uma escuta não normativa e não patologizante.
Assim, se a representatividade de homossexuais na formação mudou ou
colocou a teoria em questão, devemos lembrar que ela está sempre em relação
ao regime de verdades, como aponta Foucault (2008). Tanto a formação quanto
a escuta estão atadas a esse regime, o que não quer dizer que ele seja imutá­
vel, mas que é sempre tenso e dependente do jogo de relações de poder, cujo
efeito de verdade mais legítimo é sempre um acoplamento - que vai definiro
que se pode falar e escutar. Nesse sentido, a ausência de representatividades
interseccionais na formação de analistas pode colocar em cena leituras nor­
mativas frente às identidades dos sujeitos contemporâneos.
Um exemplo de leitura normativa do gênero é aquela que conduz, muitas
vezes, a maneira de organizar e compreender o sexo, o gênero, o corpo e a
identidade, segundo Butler (2016), possibilitando uma legitimação da mul­
tiplicidade das posições corporificadas ou a manutenção de normativas que
acabam por levar o tratamento a uma linearidade cis-hetero-sexista. Desse
modo, ao pensarmos a formação do psicanalista, temos, todavia, que retomar
as recomendações fundamentais sobre o exercício da psicanálise em Freud
(1912/1996). No texto, o autor é enfático ao prever os caminhos éticos a todo
interessado na psicanálise, advertindo, principalmente, sobre o cuidado que
o psicanalista deve ter para certificar-se de não estar exercendo resistências ao
caminho da escuta. Ele nos oferece proposições essenciais para o manejo da
transferência e a direção do tratamento com qualquer sujeito. Porém, como
poderíamos pensar essas resistências da escuta, hoje, se a epistemologia ofe­
recida para a clínica, muitas vezes, não faz o exercício de atualizar-se para as

27
questões do nosso tempo? Como pensar as resistências do analista, diante
das questões de gênero, se as instituições ainda são rigidamente seletivas na
forma de ingresso?
Nesse contexto, se estamos nos deparando com um certo limite da teoria
psicanalítica diante das questões de gênero, como'afirma Porch at (2018), acres­
centaríamos, ainda, a ausência de representatividades nas formações, pois isso
nos parece ter como conseqüência algo que já era objeto de alerta por Freud
(1912/1996): um psicanalista escolhendo o que se escuta e inclinando-se nas
suas próprias expectativas - situação nos faz lembrartoda a produção teórica
violenta, patologizante e estigmatizante psicanalítica frente a experiências
não-cisgêneras, conforme aponta Butler (2003).
Assim, se a formação não der conta de pensar as questões do seu tempo,
repensando constantemente a teoria, e se o analista não estiver atento a ofe­
recer a tudo o que se ouve a mesma atenção flutuante, mantendo a influência
consciente longe de sua capacidade de observação e escuta, o efeito disso
pode ser uma escuta que se preocupa em notar alguma coisa ou encaixar
a teoria naquilo que o paciente fala. Nesse sentido, pensando no recorte a
que este escrito se destina, se o analista pensar o gênero como um elemento
central e acabar esquecendo de prestar atenção aos outros elementos caoti­
camente desordenados, sem ligação ou continuidade, ele poderá fazer uma
seleção prejudicial do que ouve, tornando o gênero o principal problema do
tratamento, em uma direção da cura centrada na busca por etiologias. Ainda
no texto, Freud destaca que

para ter as condições de escuta, além do analista ter de ser capaz de usar
de tal forma seu inconsciente como instrumento de análise, ele precisa ser
um indivíduo aproximadamente normal [...] submetido a uma purificação
psicanalítica e tenha tomado conhecimento daqueles seus complexos que
seriam capazes de perturbar a apreensão do que é oferecido pelo anali­
sando. (FREUD, 1912/1996, p. 157).

Diante disso, será que poderíamos pensarque essa “purificação psicana­


lítica” provocou uma formatação normativa do analista e, consequentemente,
da escuta, razão pela qual há profissionais que escolhem, ainda, pensar em
etiologias e diagnósticos 12frente às questões de gênero? Esta ri am os analistas
fazendo uma escolha inconsciente - já que gênero não se torna questão - do

12 Oproblema não é hipotetizar etiologias e diagnósticos, mas a antecipação prévia de psicose/perversão


antes da escuta do sujeito.

28
gênero como problema em um silenciamento e uma impossibilidade de es­
cuta para outras questões do sujeito? Poderíamos pensar, hoje, a partir das
possibilidades críticas que temos, à luz dos estudos de gênero, que existiu um
histórico de patologização das dissidências de gênero por meio de um diag­
nóstico apressado, selvagem, sem escuta do sujeito, ou seja, um diagnóstico
não psicanalítico por parte dos psicanalistas, justificado pela possibilidade
normativa de leitura, escuta e intervenção? Seria o gênero um elemento in­
consciente que os analistas ainda não levam em conta como conhecimento
necessário do que está oculto em si mesmo, conforme enfatizou Freud?
Essas questões, enfim, estão se apresentando e nos lembrando que não
parece à toa que Freud (1913) compara o tratamento psicanalítico ao jogo de
xadrez, na infinita variedade de movimentos. Por fim, se a psicanálise ressalta
a hipersingularidade enunciada em uma situação de comunicação entre pa­
ciente e analista, pelas vias de acesso ao desconhecido que habita cada um,
muito mais do que padrões de adaptação à moral e aos costumes vigentes,
conforme apontam Macedo e Falcão (2005, p. 67), por que razão existe um
histórico de patologização que coloca as experiências gênero-dissentes na
psicanálise, na maioria das vezes, alocadas a um diagnóstico de psicose e
perversão, como já referenciado porStona (2019)?
Em nosso entendimento, acreditamos que a formação do psicanalista é
um processo essencial que contribui para essa forma de manejo clínico, na
medida em que, como método e técnica, ela deve ser (re)pensada no que diz
respeito ao efeito de sua ação terapêutica/analítica sobre o sujeito. Portanto,
apostamos que ações afirmativas poderiam ser uma forma de contrapor esse
discurso normativo estabelecido, intencionalmente ou não, nas instituições
de formação. As ações afirmativas, segundo Barroso (2004), Piovesan (2008) e
Chaves (2015), referem-se a um conjunto de políticas públicas de acesso para
determinados grupos (étnicos, raciais, religiosos, de gênero ou de casta) que
historicamente são discriminados e estão em constante desvantagem social
e econômica, no passado ou no presente.
As políticas de ação afirmativa visam a romper com essas barreiras ins­
tituídas estruturalmente, permitindo uma forma mais justa de acesso de tais
grupos a espaços de educação, saúde, emprego, bens materiais e redes de
proteção social, assim como de reconhecimento cultural e, por que não, da
formação em psicanálise.

29
Considerações finais

Com o objetivo de pensar uma escuta clínica ética e afinada às questões


de seu tempo, escapando de normatizações, percorremos pontos da formação,
entre os quais as institucionalizações, o leitor, os fjares e a transmissão, o texto
psicanalítico e os dispositivos de formação, que chamaram nossa atenção.
Isso foi feito a fim de que, quando tais questões surgirem, estejamos prontos
a romper com essas manutenções normativas, visto que, se assim não o fizer­
mos, elas poderão ter como efeito violências, discriminações, estigmatizações,
patologizações e normatizações contra as dissidências de gênero, operando
por meio e em nome da psicanálise.
Percebemos, enfim, o quão delicado é falar da formação do psicanalista
como um elemento que dificulta o processo de rompimentos com normati­
vas, na medida em que a psicanálise se estruturou por meio de uma ética do
desejo exterior a qualquer normatização desde a sua fundação e, também,
porque não há possibilidade de controle desses pressupostos. De qualquer
sorte, mesmo que houvesse, não teríamos a garantia de um analista “seguro”,
como apontam Santos & Polverei (2016), produzindo uma escuta sensível a
questões de gênero, por exemplo.
O que podemos pensar é que, se partirmos da ideia de quetudojá estaria
em Freud e Lacan, acabaríamos por limitar a psicanálise apenas a uma teo­
ria normativa e criadora de categorias do sujeito. A partir disso, acreditamos
cada vez mais na necessidade de pensarmos em uma clínica da potência,
em contraponto a uma clínica da patologização, tensionando os espaços de
formação para atravessarem as fronteiras entre as áreas do conhecimento,
em busca de diálogos com as questões do nosso tempo. Os argumentos apre­
sentados por uma maioria de psicanalistas, frente às questões de gênero, nos
colocam diante de certos paradoxos quando tentamos nos aproximar de um
possível fazer clínico não normatizante. Portanto, apesar deste artigo ter se
originado da experiência de escuta clínica das transidentidades e do confronto
de discussão entre a formação em psicanálise e os estudos de gênero, nosso
interesse se resumiu a problematizar a formação do analista como principal
entrave diante das possibilidades de rompimento de pressupostos normativos
na escuta clínica.
Nesse cenário, se não tivermos uma formação que nos permita escutar
as novas enunciações da clínica, hoje, a exemplo das dissidências de gêne­
ro, sem condições prévias de inteligibilidade diagnostica, nós entenderemos
conceitos como complexo de Édipo, psicose, perversão etc. como conceitos

30
prontos, prescindindo da escuta singular. Essa situação nos mostra a neces­
sidade de uma reinvenção constante e uma desacomodação da teoria, mas,
principalmente, indica o quanto é fundamental questionarmos como estão as
análises e as formações dos analistas, pois, em última observação, é como se
gênero não se tornasse questão de análise. Em vista disso, uma dúvida se faz
presente: o que se produz, enquanto teoria, mantendo uma forma exclusiva de
formação? Quais são as conseqüências dessa exclusividade na teoria, na escuta
e na intervenção dos psicanalistas frente às questões de gênero na clínica?
Assim, a formação do psicanalista não é a aquisição de competências
técnicas oriundas de regras burocratizadas e rígidas. Embora não exista uma
formação em psicanálise fora de uma experiência comum, atualmente, consi­
derando os diversos dispositivos (escolas, grupos de estudos, cartéis e a pes­
quisa na universidade) disponíveis, a formação do analista pode, ainda, estar
alocada em uma ética totalitária com posturas normativas, adaptativas, com
técnicas diagnosticas e de doutrinamento, ou pode estar situada em uma ética
contingente e polifônica, que leve em conta cada um como responsável por
sua formação, em sua radical singularidade de experiência com a psicanálise.
Por fim, a formação em psicanálise é algo a ser refeito, continuamente,
devido à necessidade de ocuparmos uma posição subjetiva de não saber.
Afinal, o psicanalista só se autoriza de si mesmo e por alguns outros a partir
do seu desejo, segundo Lacan (1973-1974), e a formação é, sempre, uma (de)
formação, pois não cessa de se inscrever, como explica Fingerman (2016).

31
REFERÊNCIAS
AM BRA, Pedro; LAUFER; Laurie. SILVA, Nelson. (2019). “Oser sexual só se autoriza porsi mesmo
e por alguns outros”. Psicologia em estudo.v 24, p. 1-14.
AYOUCH, Thamy. (2015). “Da transexualidade às transidentidades: psicanálise e gênero plurais”.
Percurso, 54(28), 23-32. \
AYOUCH, Thamy. (2016). “Quem tem medo dos saberes T.? Psicanálise, estudos transgêneros,
saberes situados”. Periódicus, 5(1), 3-7.
BARROZO, Paulo Daflon. (2004). “A ideia de igualdade e as ações afirmativas”. Lua Nova: revist
de cultura de política, São Paulo, n. 63, p. 103-141.
BATISTA, Neusa Chaves. (2015). “Políticas públicas de ações afirmativas para a Educação Supe­
rior: o Conselho Universitário como arena de disputas”. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas
em Educação, 23(86), 95-128.
BULAMAH, Lucas. (2016). História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade
masculina no movimento psicanalítico. 1. ed. São Paulo: Annablume. 227p.
Butler, Judith. (2016). Corpos que ainda importa. In: Colling, L. Dissidências Sexuais e de gê­
nero. Salvador, EDUFBA.
CALLIGARIS, Contardo. (1990). “Questão da Formação do Psi-canalista”. Uma História Crítica.
Boletim de Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Ano 1, n.3/4, nov.
CONNELL, Raewyn., & PEARSE, Rebbeca. (2015). Gênero: uma perspectiva global. São Paulo
nVersos.
CRENSHAW, Kimberlé. (1989). Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: a Black
Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The
University of Chicago Legal Forum, 140,139-167.
COSSI, Rafael Kalaf. (2018). “A não relação sexual lacaniana em face do debate entre gênero e
diferença sexual”. Revista Subjetividades, v. 18, p. 59-67.
CUNHA, Eduardo Leal. (2016). “A psicanálise e o perigo trans (ou: por que psicanalistas têm
medo de travestis?)”. Periódicus, 5(1), 7-21.
DAVIS, Angela. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo. Boitempo.
FANON, Frantz. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Bahia: EDUFBA.
FINGERMANN, Dominic. (2016). A (de)formação do analista -As condições do ato psicanalítico.
São Paulo: Escuta. 212p.
FREUD, Sigmund. (1910/1996). “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica”. In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira. Vol. XI. Rio de Janeiro:
Imago.
FREUD, Sigmund. (1912/1996). “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. In:
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, edição standard brasileira, vol. XII Rio de
Janeiro: Imago.
GHEROVICI, Patricia. (2017). Transgender Psychoanalysis: A Lacanian Perspective on Sexua
Difference. New York: Routledge.

32
IACONELLI,Vera. (2018). “Mulherfalada, psicanálise e gênero: narrativas feministas e queer no
Brasil e na Argentina”. In: Patricia porch at; Patrizia Corsetto; Carla Françoia. (Org.). Psicanálise
e Gênero: Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina, led.Curitiba: Calligraphic,
v. l, p. 25-31.
KUPERMANN, Daniel; PERELSON, Simone.; FRANCO, Wilson.; BULAMAH, Lucas. (2018). “Da
“ciência bastarda” à crítica da lógica identitária: transescolas e transgêneros na psicanálise
contemporânea”. In: Leopoldo Fulgencio; Joel Birman; Daniel Kupermann; Eduardo Leal Cunha.
(Org.). Modalidades de Pesquisa em Psicanálise; Métodos e Objetivos, led.São Paulo: Zago-
doni, v. 1, p. 167-177.
LACAN, Jacques. (1964). “Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris”. In: Outros Escritos.
Rio de janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, Jacques. (1973-1974). O seminário, livro 21. Les non-dupres errent. Inédito.
LACAN, Jacques. (2003). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MARTINS, Ana Carolina Borges., & POLI, Maria Cristina. (2017). “A diferença e o contingente na
formação dos psicanalistas”. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, 23(3), 901-919.
MBEMBE, Achile. (2013). A crítica da razão negra. Lisboa: Antígona.
MEDEIROS, Roberto Amorim. (2018). “Elementos iniciais para uma crítica da formação profissio­
nal superior inspirada pelos dispositivos da escola de Lacan e a formação do analista”. Ágora:
estudos em teoria psicanalítica. 21(2), 277-288.
PIOVESAN, Flávia. (2008). Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Revista Estudos
Feministas, 16(3), 887-896.
PORCHAT, Patricia. (2014). Psicanálise e transexualismo: desconstruindo gêneros e pato­
logias com Judith Butler. Curitiba: Juruá.
PORCHAT, Patricia. (2018). “Barulhos de gênero”. In: Patricia porchat; Patrizia Corsetto; Carla
Françoia. (Org.). Psicanálise e Gênero: Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina.
led.Curitiba: Calligraphie, v. 1, p. 35-43.
ROUDINESCO, Elisabeth. (1988). História da psicanálise na França; batalha dos cem anos 1925-
1985. V. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
SANTOS, Beatriz., & POLVEREL, Elsa. (2016). “Procura-se psicanalista segurx. Uma conversa
sobre normatividade e escuta analítica”. Lacuna: uma revista de psicanálise, 1(3). Recuperado
em 25 fev. 2019, de https://revistalacuna.com/2016/05/22/normatividade-e-escuta- analítica/.
STONA, José. (2019). “Uma escuta desmontada: paradoxos entre psicanálise e gênero a partir
da escuta de experiências transidentitárias”. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
TENÓRIO, Leonardo, & PRADO, Marco Aurélio Máximo. (2016). “As contradições da patologiza-
ção das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma”. Periódicus, 5, 41-55.
WEILL, Allan Didier. (2006). “A questão da formação do psicanalista para Lacan”. In: Marco Anto­
nio Coutinho Jorge. (Org.). Lacan e a formação do psicanalista. Contra Capa, p. 15-29.290 p.
ZAMBRANO, Elisabeth. (2018). “Diálogos de uma psicanalista com a antropoligia: um relato
pessoal”. In: Patricia Porchat; Patrizia Corsetto; Carla Françoia. (Org.). Psicanálise e Gênero: Nar­
rativas feministas e queer no Brasil e na Argentina. 1. ed. Curitiba: Calligraphie, v. 1, p. 40-55.

33
\
SOBRE MACACOS, CYBORGS
E TRANSEXUAIS:
A PSICANÁLISE E
OS LIMITES DO HUMANO
Eduardo Leal Cunha
Em 17 de novembro de 2019, Paul B. Preciado, filósofo autodeclarado
homem trans, responde ao convite da Escola da Causa Freudiana de Paris,
uma das mais tradicionais e poderosas instituições psicanalíticas de herança
lacaniana, com uma fala contundente que teve imediata repercussão no meio
psicanalítico internacional. \
Há, certamente, no texto que Preciado endereça aos psicanalistas e à
própria psicanálise, muitas coisas - idéias, perguntas, provocações - que po­
dem nos fazer trabalhar tanto teórica quanto psiquicamente, mobilizando
conceitos e afetos, nos fazendo, muitas vezes, nos confrontarmos com nossas
resistências. Assim, ao lê-lo, me vem à mente a famosa e praticamente intradu-
zível noção freudiana de Durcharbeitung, o trabalho psíquico necessário após
uma interpretação - trabalho que só é possível quando identificamos nossos
pontos cegos e percebemos o que repetimos sem elaborar. Esse, me parece,
é o trabalho a ser feito por nós com o texto de Preciado, e é nessa direção que
este texto se movimenta.
Preciado, com sua fala, não apenas nos interpela, mas, sobretudo, nos
interpreta, tenta nos dizer o que não conseguimos pensar, o que nos parece
impossível, ou simplesmente inaceitável, ameaçador ou por demais íntimo,
estranho, intimidante, infamiliar. De forma inversa aos analistas da audiên­
cia, que muitas vezes o ouvem, mas não o escutam, Preciado procura tornar
audível - nos textos teóricos ou nos risos, vaias e silêncios da platéia - o que,
embora não seja dito ou sequer pensado, está ali, produzindo esses efeitos,
determinando o incômodo que se converte em vais, risos, silêncios e impos­
sibilidade de escutar. É assim que ele nos oferece “a oportunidade de uma
terapia política de suas [nossas] próprias práticas institucionais.” (PRECIADO,
2020, p. 532), terapia que se apoia em uma crítica epistemológica com a qual
se reafirma a articulação - em verdade familiar a Freud - entre modos de ser,
modos de saber e modos de sofrer.
Este trabalho de interpelação/interpretação se faz presente desde os pri­
meiros momentos da sua fala, sobretudo no enunciado que se materializa em
seguida no título do livro que dá corpo à sua intervenção: eu sou um monstro
que lhes fala. É, portanto, já na capa do pequeno volume, em sua face mais
visível, feita para nos provocar e nos seduzir, que se encontra o que me parece o
principal eixo da sua enunciação, sobretudo quando pensamos em tomá-la em
referência à nossa escuta das experiências transidentitárias e às suas condições
de possibilidade. Ali, na capa, posta de modo tão evidente que corre o risco de
passar desapercebida, como a célebre carta roubada do conto de Edgar Allan
Poe que tanto serviu a Lacan para nos dizer dos mistérios do inconsciente.

36
É sobre essa frase bem curta que desenvolvo o meu argumento e a in­
terrogação, o enigma que o conduz: o que pode fazer um analista e o que se
passa em uma análise que se faz em torno de um sujeito que se apresenta
como monstro, que se sujeita a ser monstruoso, que se percebe ou é percebido
como tal? Um monstro que fala e que será ou não escutado: como monstro
por um humano, como humano por um humano, como monstro por outro.
É a partir daí que endereço ao leitor algumas reflexões sobre o impacto
das experiências transidentitárias sobre a clínica psicanalítica, e o faço como
psicanalista que tem nos últimos anos não apenas procurado escutar analiti-
camente pessoas trans, mas também as escutar politicamente, interrogando,
ao mesmo tempo, as respostas que a psicanálise tem dado a essas pessoas
e o modo como essas respostas ressoam a teoria, repercutem na elaboração
contemporânea da clínica e impactam nossa compreensão dos modos de viver
juntos e o nosso posicionamento sócio-político.
Começo nosso breve percurso com uma pergunta simples: o que define
um monstro?
Segue a resposta de Preciado: “O monstro é aquele que vive em transição.
Aquele cujo rosto, corpo e práticas não podem ainda serem considerados
como verdadeiros em um regime de saber e de poder determinados” (PRECIA­
DO, 2020, p. 300). Ser monstruoso, sentir-se como tal, é tocar nos limites da
humanidade, é correr o risco de não se reconhecer ou ser reconhecido como
humano. Mas Preciado nos diz que não há - e não deve haver - neste humano
e na demarcação dos seus limites nada de natural ou de transcendente. Hou­
ve um tempo em que ser humano requeria uma alma cristã, e foi assim que
os povos originários das Américas se viram reduzidos a objetos ou animais,
ainda que a humanidade possível estivesse sempre no horizonte, ao preço
da conversão à fé cristã, o que não era outra coisa senão a submissão ao que
Preciado descreve como epistemologia: uma certo regime político e estético
regulado por um sistema dê saber-poder particular.
O monstro pode ser também, nos termos de outra pessoa trans, aquele
percebido como motivo de estranhamento e curiosidade, que vive, na melhor
das hipóteses, uma “segunda humanidade” (BEAUVOIR, 2018, p. 12).
Ser monstro, habitar o registro do monstruoso, implica, portanto, viver a
experiência de exclusão de uma humanidade primeira, afirmada como a única
verdadeira e em seguida naturalizada, como no mito barthesiano (BARTHES,
1985), que faz com que aqueles que vivem experiências transidentitárias sejam

37
excluídos do regime da verdade. Eles seriam, no máximo, simulacros de huma­
nos, posto que encarnados em uma simulação do masculino e do feminino.
Mas é a partir desse lugar de exclusão, da verdade e do humano, des­
se lugar impossível, que autores como Ate na Beauvoir e Paul B. Preciado se
engajam na desconstrução daquela antropologia que as faz monstruosas e
procuram “assumir que não há um modelo humano. Não há verdade de uma
unidade humana. Não há destino para a espécie humana senão aquele que
ela mesma constrói para si, querendo chamarde natural, comum ou normal.”
(BEAUVOIR, 2018, p. 12).
Ate na Beauvoir, mulher trans de Porto Alegre, universitária, se aproxima
aqui do homem trans europeu para nos dizer que sua interrogação transan-
tropológica pretende transformar também as existências ditas cisgêneras e
desvelar “as razões pelas quais suas existências foram construídas ou como
nunca foram livres para a construção de si mesmos.” (BEAUVOIR, 2018, p. 13).
Assim, a novidade que vivemos hoje é que, se muitos de nós parecem
acomodados a esse incômodo produzido pelo encontro com pessoas trans,
que nos leva a acomodá-las em jaulas diagnosticas, essas pessoas trans, por
sua vez, não apenas já não se contentam em habitar esse zoológico que po­
demos visitar esporadicamente, mas percebem que, para sair dessas jaulas,
é preciso subverter a antropologia e o que nos define ou não como humanos.
É desse modo que a questão do confronto entre o humano e o monstruo­
so não pode ser percebido como mero artifício retórico, mas deve, sim, ser
tomado como índice do que se passa efetiva mente, do que está em questão,
na experiência transferenciai que marca a escuta clínica das dissidências de
gênero.
Refiro-me a essa demarcação dos limites entre o humano e o não humano,
ao modo como reconhecemos no outro um ser como nós, ou o posicionamos
para além das fronteiras da humanidade, ou em suas bordas: animal, objeto,
monstro. Refiro-me ainda aos modos como esses limites podem ou devem
aparecer numa experiência de análise, pois indissociável das maneiras e dos
caminhos pelos quais nos autoformamos, nos reconhecemos como sujeitos
e nos posicionamos no mundo.
O que se passa, portanto, com a escuta de pessoas trans, equeé colocado
de maneira clara por Preciado, desde o título da sua intervenção, é, a meu ver,
uma interrogação sobre os limites do humano e como estes podem ou devem
ser ultrapassados ou redefinidos.

38
Penso que esse confronto com o inumano, em nós ou no outro, é um
elemento central a qualquer experiência analítica, mas que tem se mostrado
evidente no encontro com experiências transidentitárias, pois é sobretudo
neste encontro que nossos modos de demarcar as fronteiras da humanidade
e nossa forma de reconhecer ou não o outro como verdadeiro têm sido atual­
mente postos em questão.
Por fim, pensando na centralidade desse confronto com o monstruoso em
nossas análises, talvez seja preciso considerar que só nos embrenhamos no
passado e exploramos a nossa história porque temos no horizonte a constru­
ção, ou reconstrução, de nós mesmos e de nossa humanidade singular. Assim,
curiosamente, talvez não seja mera coincidência que Ate na Beauvoir situe
como objeto do seu projeto transantropológico “teorizar sobre meu próprio
existir” (BEAUVOIR, 2018, p. 15), enquanto Jean Laplanche (1992) define como
objeto da psicanálise e de sua clínica o homem enquanto teórico de si mesmo.

Fabricando monstros
Preciado nos conta a história de um macaco kafkiano, “transportado para a
Europa e levado a um circo de animais” (PRECIADO, 2020, p. 40), mas nos podia
ter lembrado de outros personagens, como, por exemplo, Joseph Merrick, o
homem elefante, ou Saartjie Baartman, a vênus hotentote, ambos transforma­
dos pelo cinema em heróis marginais; da mesma forma que Lili Elbe, a segunda
mulher a sersubmetida à dita cirurgia de redesignação sexual.13 Os monstros,
ao que parece, ficam muito bem na tela do cinema, quando nossa relação com
eles é mediada por um processo de espetacularização, mas incomodam um
pouco mais quando invadem o nosso cotidiano e se colocam diante de nós
demandando reconhecimento como seres iguais ou, ao menos, com o mesmo
direito à existência e à presença na esfera pública.
Na vida, no entanto, como no cinema, a produção de monstros se alia,
portanto, à espetacularização e objetificação do diferente, do desviante, muitas
vezes em sintonia com sua patologização e condenação moral. Nesse pon­
to, como retomaremos em seguida, a discussão sobre as transidentidades
se encontra com reflexões sobre a experiência perversa e a história da sua
apropriação pela medicina e pela psicanálise, nos mostrando como essa de­
marcação das fronteiras do humano é indissociável não apenas da questão

13O homem elefante (The elefant man, 1980). Direção de David Lynch. A Vênus negra (Vénus noire, 2010).
Direção de Abdellatif Kechiche. A garota dinamarquesa (The Danish girl, 2015). Direção de Tom Hooper.

39
epistemológica e do registro estético, como destaca Preciado, mas também
dos valores e normas que regulam nossa vida em comum.
No argumento de Preciado, a fabricação do monstro corresponde ao esta­
belecimento de um modo universal, verdadeiro, de constituição do humano,
o que ele articula, no campo psicanalítico, ao paVadigma da diferença sexual.
Não podemos, certa mente, no escopo deste capítulo, seguir todos os seus pas­
sos - e menos ainda considerar algumas respostas já dadas pela comunidade
psicanalítica mas creio ser legítimo destacar um aspecto dessa problemática
que toca direta mente à questão dos limites do humano: a figuração do regime
da diferença sexual “como uma rede semio-técnica e cognitiva que limita
nossa percepção” (PRECIADO, 2020, p. 177). A dita ordem simbólica passa a
ser compreendida sobretudo como regime estético, o qual não apenas esta­
belece o modo como percebemos o mundo, demarcando limites para o que
conseguimos perceber, mas define, ainda, a maneira como compreenderemos
aquilo que chegarmos a perceber.
Esse limite perceptivo-cognitivo definido pelo regime estético vigente faz
com que certas formas de existência se tornem ininteligíveis ou mesmo imper­
ceptíveis, nos fazendo pensar e agir como se não houvesse outra humanidade
possível que não aquela definida por esse regime estético e por essa “rede
semio-técnica e cognitiva”.
Com base nessas formulações de Preciado, somos levados a pensar nos
riscos de se estabelecer na psicanálise qualquer forma de antropologia, uma
antropogênese, e também um humanismo psicanalítico. Ou seja: o risco de que
a psicanálise, ignorando o caráter transitório historicamente e socialmente de­
terminado do regime estético que sustenta uma concepção da ordem simbólica
referida a categorias como Complexo de Édipo e Diferença Sexual, legitime um
ideal de humano - pretensamente a-histórico -, o qual produz inevitavelmen­
te um campo do inumano ou insuficientemente humano, a ser habitado por
aqueles que escapam aos padrões de inteligibilidade hegemônicos: o monstro
de Preciado, a segunda humanidade de Ate na Beauvoir. Nos termos, ainda, de
Preciado, estamos nos referindo muito simplesmente à possibilidade de que
a psicanálise se reduza de fato a um “etnocentrismo que não reconhece sua
posição politicamente situada” (PRECIADO, 2020, p. 249).
O tema da percepção nos conduz ainda às recentes discussões sobre uma
utopia queer e a autores como Jack Halberstan (2020), que trata não apenas
da perturbação dos limites do humano, mas de como tal perturbação requer
o compromisso de produção de um novo real, posto que os limites do huma­
no, como do mundo e do universo, são, no fundo, definidos pelos limites do

40
nosso pensamento, da nossa forma de perceber a realidade e de imaginar
outros mundos e existências possíveis: “os processos que nos conduzem a
uma mudança epistemológica implicam profundas modificações tecnológicas,
sociais, visuais e sensoriais” (PRECIADO, 2020, p. 784).
Assim, quando Preciado nos fala de uma “estética da diferença sexual”
(PRECIADO, 2020, p. 494), ele procura articular diferentes registros, eviden­
ciando tanto a dimensão política dos processos de subjetivação quanto os
impactos dos nossos modos de perceber e compreender o mundo à nossa volta
sobre os processos de transformação social. Com isso, a mudança subjetiva e
a mudança política se tornam indissociáveis, ao tempo em que se vinculam à
produção de novos regimes estético e epistemológico, ou seja, à invenção de
novas formas de compreender o mundo e nossa própria existência.
A própria psicanálise talvez nos dê outras pistas interessantes sobre o
modo como, enquadrados em certo regime estético e epistemológico, expe­
rimentamos psiquicamente - inclusive na clínica - essa atribuição do caráter
monstruoso ao outro, inviabilizando assim o reconhecimento de novas formas
de existência. Para tanto, é preciso lembrar que, na breve história da apropria­
ção psicanalítica das experiências transidentitárias, a questão do humano e
dos seus limites parece se configurar numa espécie de herança deixada pela
compreensão de outras formas de dissidência, agrupadas na categoria geral
das perversões sexuais.
Apesar de a maior parte das leituras psicanalíticas das dissidências de
gênero fazer referência à psicose, baseando-se principalmente no cruzamento
da descrição estabelecida por Robert Stoller do que seria o dito transexual
verdadeiro com a leitura lacaniana das psicoses com base no mecanismo da
foraclusão, podemos perceber uma espécie de sombra produzida pela refe­
rência, às vezes lateral, às vezes implícita, à categoria de perversão. Tal sombra
aparece, por exemplo, na crítica de muitos psicanalistas a autores da teoria
queer, na qual estes são acusados de recusar a diferença sexual e a dimensão
real da sexualidade ao concebê-la como meramente discursiva, e na tomada
de certas formas de dissidência em relação à norma binária de gênero como
modalidades contemporâneas de perversão, assentadas no desmentido da
castração e da lei simbólica14.

14 Para uma discussão sobre os usos da categoria de perversão na crítica da cultura e dos processos con­
temporâneos de subjetivação, inclusive no que se refere à teoria queer, ver: CUNHA, Eduardo L. O homem
e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora - Estudos
em Teoria Psicanalítica vol.19 n.l, 2016; CUNHA, E. L.. Sexualidade e perversão entre o homossexual e o
transgênero: notas sobre psicanálise e teoria queer. Revista EPOS, Vol. 4 n .2. 2013.

41
Tomada de modo crítico, e a partir de uma perspectiva radicalmente di­
ferente, a referência à perversão nos parece, no entanto, verdadeiramente
central ao entendimento das dificuldades - e também das potências - pro­
duzidas no encontro dos psicanalistas com as experiências transidentitárias,
pois nos permite compreender a articulação entre a questão transidentitária
e o problema das identificações e dos seus limites. Desse modo, o encaminha­
mento dado nesta minha breve reflexão é responder a essa questão a partir
do entendimento de que a figura do monstruoso aparece em relação com a
demarcação dos limites daquilo com o que podemos nos identificar e assim
reconhecer como humanos.
Lembremos mais uma vez que, ao menos de início, não é a pessoa trans
que se coloca voluntariamente na posição de monstro. Assumir tal posição e
reivindicar para si a anormalidadejá é em verdade um segundo passo e uma
forma de resistência. Ela havia sido posta em tal lugar antecipadamente, e
esta posição, como nos mostra Preciado, é ratificada pela platéia que, diante
de sua fala, ri, vaia, quer expulsá-lo ou simplesmente se reduz a um silêncio
constrangedor.
O ponto relevante, e que a meu ver nos conduz ao tema dos vínculos
identificatórios e de seus limites, é que não se trata de um silêncio que possa
abrir lugar para que o outro fale, e assim abra espaço também para a transfe­
rência que tornará possível a análise. Este silêncio é, principalmente, contra-
transferencial; ele fala da transferência do analista, das reações, sobretudo
inconscientes, deste em relação àquele sujeito que não consegue suportar.
Um tipo de silêncio que me parece ter marcado desde sempre a relação da
psicanálise com essa figura privilegiada do monstruoso, que é o dito perverso.

O interesse teórico do masoquismo perverso é tão evidente que é de espe­


rar que, quando se tem a oportunidade de observar um caso desses, nos
debrucemos sobre ele sem hesitar. Todavia, a observação que porei aqui
à vossa disposição já tem mais de dez anos, e não creio que se possa por
entre parêntesis esse longo período, pois ele díz-nos precisamente qualquer
coisa de essencial e significativo acerca deste caso. Aproveito para acres­
centar que o material não provém de um tratamento, mas de duas longas
entrevistas que na altura não desejei continuar - o que teria sido possível
-, da mesma forma que adiei durante todos estes anos o momento em que
me debrucei sobre o caso. Com efeito, as práticas perversas em questão
neste caso são tão extremas, tão espetaculares, que a nossa primeira rea­
ção é ficar perplexo. A tal ponto que quase tudo o que foi relatado acerca
do masoquismo parece uma brincadeira terna ao lado das sevícias sofridas
pelo meu interlocutor. Este quadro inspirará sem dúvida a muita gente um

42
misto de fascínio e de incredulidade horrorizada, com o sentimento vivo
de que tudo o que se possa dizer a este respeito nunca passará de uma
racionalização defensiva mais ou menos bem conseguida. O próprio Sr.
M, o meu paciente, estava provavelmente de acordo com isto. Todavia,
apesar da grande simplicidade e do ar ameno com que me apareceu, M.
deixava transparecer um certo ar irônico e provocante face ao interlocutor.
Estas particularidades relacionais explicam, pelo menos tanto quanto o
caráter monstruoso das suas práticas perversas, a pouca pressa que tive
em estudar o caso. (DE M’UZAN, 1988, pp. 11-12).

O que me parece importante sublinhar no depoimento de Michel de


M’Uzan, em um dos mais conhecidos textos psicanalíticos sobre a experiên­
cia perversa, é seu mal-estar diante do seu paciente. Mal-estar que me parece
central à própria delimitação do que seja a perversão e nos remete a isso que
podemos chamar sua dimensão monstruosa. Minha hipótese é que este efeito
inquietante se liga a essa perturbação dos limites do humano, e por isso a
questão fundamental não me parece ter sido ainda devidamente colocada:
há algo de intrinsecamente monstruoso, antinatural, inumano naquele sujeito
que se coloca diante do analista, ou é o mal-estar do analista, o fato de que
aquela experiência por meio da qual o outro se apresenta lhe é ininteligível,
insuportável, que lhe faz ela ser, enfim, descrita como monstruosa. Que faz,
inclusive, com que seja capaz de provocar aquela mesma “espécie de rancor
existencial frente à liberdade do existir trans” (BEAUVOIR, 2018, p. 14).
A meu ver, o que define essa experiência do encontro com o monstruoso
- produzindo, de fato, sua monstruosidade - é sobretudo o fato de que não
conseguimos nos identificar com ele em praticamente nenhuma medida, não
podendo, assim, reconhecer nele o humano que acreditamos ser. Identificá-lo
como monstro é assim a resposta à impossibilidade de identificar-se a ele; im­
possibilidade, em última instância, de nos imaginarmos em seu lugar, vivendo
o que ele vive. Definir o perverso como monstruoso implica, portanto, situar
sua experiência fora do campo de possibilidades subjetivas que habitamos
ou podemos habitar.
Trata-se, portanto, nesse (des)encontro, não do confronto com a mons­
truosidade “em si”, mas da irrupção de um limite das possibilidades identifica-
tórias. Em termos muitos simples, como bem aponta Preciado repetidas vezes:
ninguém naquela sala é como ele e para quase todos é impossível imaginar-se
sendo-o.
Este dado contratransferencial participa assim da construção, a que se
refere Preciado, de monstros. Eles não são apenas produzidos pelas nossas

43
teorias ou por nossas tecnologias - químicas, cirúrgicas ou de subjetivação
eles também são o resultado de nosso aprisionamento em certos limites
identificatórios. Ou seja: o monstro perverso, ou trans, bem como tudo que
sabemos sobre ele, é também fruto da nossa incapacidade de nos reconhecer
em certas experiências vividas pelo outro, experiências queo tornam radical­
mente estrangeiro.
Ainda que associada de um modo ou de outro à nossa história pessoal,
esta incapacidade é resultado do nosso processo de socialização e, portanto,
da nossa inscrição em um regime estético específico e do nosso pertencimento
a determinado contexto sócio-histórico. Assim, ainda que ta! impossibilidade
de identificar-se ao outro e percebê-lo como um ser fundamentalmente igual
a nós materialize a história individual de cada um, e possa ser num segundo
tempo legitimada pela teoria que adotamos para justificar essa compreensão
do outro com um serà parte, ela é em última instância definida por aquilo que,
seguindo Preciado, podemos descrever como o encontro dos regimes episte-
mológico e estético de nosso tempo. Como nos lembra Lanteri-Laura (1994),
precisamente em sua leitura dos processos de apropriação da experiência
perversa pela medicina, não se pode dissociar um saber das suas condições
de produção.
Com essa referência ao estatuto de estrangeiro, ininteligível da figura do
perverso, ou daquele que vive uma experiência transidentitária, penso que
podemos agora reformular nossa questão sobre a escuta de pessoas trans
e, pela via do monstruoso e da perversão, chegar a uma enunciado que nos
coloque, por fim, em outra posição diante das dissidências de gênero, ao mes­
mo tempo em que modifica radicalmente a amplitude da nossa interrogação,
liberando-nos dessa obsessão contemporânea pelas transidentidades que
beira o fetichismo: como lidar com o estrangeiro na clínica? Será este estran­
geiro sempre da ordem do infamiliar? Será ele, por ser inteligível, por não
falar a nossa língua, nem se reconhecer em nossa ordem simbólica e seus
fundamentos, sempre monstruoso?
Não podemos responder a essas questões sem considerar que Preciado
nos propõe o reconhecimento dessa experiência da anormalidade, do sentir-se
monstruoso, não para em seguida procurar a normalização e a cura, mas para
avançar na expansão e transformação dos sentidos do humano, que já não
transitará apenas pelo mundo animal, passando a tangenciar a esfera dos seres
inanimados, das máquinas. Nesse sentido, numa espécie de parêntesis, acre­
dito que valha a pena considerar que talvez estejamos diante de uma quarta
ferida narcísica a marcara humanidade: depois de deixarmos o centro do uni-

44
verso, nos tornarmos irmãos e herdeiros dos macacos e de perdermos o con­
trole sobre nossos atos e pensamentos, já não sendo mais senhores em nossa
própria casa, nos confundimos hoje com os objetos que fabricamos, que apren­
demos a controlar e agora tememos que um dia assumam o controle sobre nós.
Normalmente associada à figura do animal, como uma espécie de sub-hu-
mano ou de humano incompleto, a figura do monstro se encontra hoje conta­
minada pela imagem do cyborg, do maquínico, e assim o que se passa no en­
contro com as dissidências contemporâneas de gênero, marcadas não apenas
pela recusa da norma binária da diferença sexual, mas pela transformação da
materialidade corpórea, é que nos confrontamos com - ou testemunhamos - “a
invenção de outas modalidade de existência, entre o organismo e a máquina, o
vivente e o não vivente, o humano e o não humano, enquanto novas hierarquias
no domínio do político aparecem e desaparecem” (PRECIADO, 2020, p. 797).
Para o filósofo trans, essa figura do monstruoso, no mesmo instante em
que nos dá testemunho do que acreditamos serem as fronteiras do humano -
do que descrevi como nossos limites identificatórios permite-nos vislumbrar
a expansão possível dessas fronteiras, ou mesmo o apagamento de suas
bordas, de modo que possamos reconhecer como humanas outras formas
de existência, ainda que estas continuem a nos perturbar e permanecerem
de algum modo infamiliares.
Com as recentes discussões sobre a patologização das transidentidades
e o esforço de crítica a categorias como transexualismo e transexualidade e
em especial a seu uso no campo psicanalítico, nos voltamos até agora à des-
construção dessa ideia de monstruosidade e pretendemos, ao que parece,
nos dispor a aceitar estes seres como pessoas relativamente iguais a nós. Mas,
e se isso não for suficiente, se essa experiência da monstruosidade for algo
necessário ao enfrentamento de aspectos críticos dos modos contemporâneos
de subjetivação? Se for mesmo necessário, como nos afirma Preciado, nos
entregarmos a uma espécie de mutação?
Assim, a resposta sobre como lidar com o estrangeiro se articula direta­
mente a uma outra: terá a clínica psicanalítica a condição de ser o lócus de
potencial produção de novas formas de existência, um espaço onde são pos­
síveis mutações? Será a psicanálise um campo possível de experimentação
ética na qual esse estrangeiro possa perceber-se e ser percebido como uma
forma legítima de existência? Preciado, a despeito da severidade da sua crítica
à psicanálise, parece nos responder de forma positiva, ao mesmo tempo em
que coloca claramente os desafios para que tal positivação se revele exeqüível:

45
A psicanálise deve entrar em uma retroalimentação crítica com as tradi­
ções de resistência política transfeministas se ela quer parar de ser uma
tecnologia de normalização hetero-patriarcal e de legitimação da violência
necropolítica, para tornar-se uma tecnologia de invenção de subjetividades
dissidentes frente à norma. (...) Contrariamente ao que os mais conservado­
res dentre vocês poderiam imaginar, aqufeles que temem que uma psicaná­
lise desprovida da epistemologia da diferença sexual seja uma psicanálise
desfigurada, eu lhes digo que apenas essa transformação profunda pode
fazer a psicanálise sobreviver. (PRECIADO, 2020, pp. 869-870).

Nos meus próprios termos, eu diria que tal retroalimentação crítica da


psicanálise implica necessariamente não apenas a transformação tanto do
conteúdo quanto do estatuto da sua teoria - com o reconhecimento de sua
localização sócio-histórica mas sobretudo o reconhecimento do setting
analítico como campo de experimentação ética para a produção, o reconhe­
cimento e a legitimação de novas formas de existência.
Se a psicanálise historicamente se revelou um campo de produção de
monstros, a partir do estabelecimento de certo ideal de humano, ela também
carrega em si uma possível potência como lugar de desconstrução dessa uni­
versalidade de homem branco europeu privilegiado - e de qualquer outra
-, para reemergência, no indivíduo/sujeito, do singular, o que significa reco­
nhecer a dimensão alteritária (PRECIADO, 2020), ou precária, nos termos de
Butler (2006), de cada um de nós. Não o seremos todos monstros, ao menos
quando estivermos em análise? Pode uma análise se dar sem que, em algum
momento, nos tornemos monstruosos, sem que apareça em nosso rosto,
corpos e práticas, algo da ordem do ininteligível, que não caiba nas narrati­
vas e estruturas que definem nosso eu?
Ao mesmo tempo, se a fabricação monstruosa se ancora na linguagem e,
portanto, se desdobra - para além da hierarquização e da exclusão, do bani­
mento para fora das fronteiras do humano - em silenciamento, em impossibili­
dade de falar - e daí a ironia do título na figura do monstro que lhes fala -, será
também a partir da linguagem, campo por excelência da prática psicanalítica,
que sua desconstrução deve se dar.

Eu, como corpo trans, como corpo não binário, a quem nem a medicina,
nem o direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito
de falar com um saber de especialista sobre minha própria condição, nem
a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento
sobre mim mesmo, aprendi, como Pierre, o Vermelho, a língua de Freud e
de Lacan, aquela do patriarcado colonial, vossa língua, e estou aqui para
me dirigir a vós (aos senhores e senhoras). (PRECIADO, 2020, p. 54).

46
Do monstruoso, produzido por uma linguagem particular - a qual o maca­
co e Preciado precisaram aprender para lhe resistir-, passamos a uma questão
presente desde o início na cena psicanalítica: aquela da verdade. Começamos
pela verdade enunciada por um outro, especialista, e pelo silenciamento do
subalterno, mas devemos ir além, e pensar nas condições de assunção das
verdades produzidas nos enunciados e atos de enunciação de pessoas trans
que, numa análise, deveriam encontrar as condições de sua produção, a escrita
- em voz e corpo - de uma história, uma biografia, na qual possam se reco­
nhecer e que lhes permita colocar - ou recolocar - em movimento seu desejo.
Afabricação singular de si, fundada na construção de uma história devida
na qual o sujeito possa se reconhecer, mas que não o aprisione em uma iden­
tidade, se faz com atos de enunciação. Como, então, encontrar ferramentas
simbólicas que sustentem tais atos de construção de uma linguagem singular,
que nos possibilitem explorar novas formas de ser, de existir? Provavelmente
deixando muito simplesmente que o não humano penetre em nossos ouvidos e
corpos, ampliando, assim, os limites das nossas possibilidades identificatórias
e, portanto, do que podemos reconhecer como humano.
Para tanto, contudo, precisamos avaliar em que medida as ferramentas
teóricas da psicanálise, das quais dispomos atualmente, podem ser úteis, e
em que medida será necessário produzir novas teorias e conceitos - “termos
de uma nova gramática” (PRECIADO, 2020, p. 395). Isso só poderá ser feito em
conjunto com aqueles que vivem essas experiências-limites de ininteligibilida-
de, das quais as transidentidades são hoje um exemplo privilegiado, de forma
próxima ao que já se passou efetivamente na própria história da psicanálise,
na medida em que, não custa lembrar, a teoria psicanalítica, sua concepção
da experiência subjetiva e a definição de sua técnica foram feitas com o auxílio
luxuoso das pacientes histéricas de Freud.
É aí que entra uma figura central para que possamos viver plenamente a
experiência do encontro com o monstruoso e inclusive com o inumano que
habita em nós mesmos: a hospitalidade, uma hospitalidade necessária até para
sabotar a produção automática de identidades compulsórias que acabam por
restabelecer continuamente fronteiras entre o próximo e o estrangeiro, entre o
que posso conhecer e o desconhecido com o qual não consigo me identificar.
Quando se refere à sua filiação a Foucault e Butler, dentre outras, e critica
a surdez de seus analistas, Preciado está nos dizendo de identificações e seus
limites, aqueles possíveis e os que se revelam impossíveis, pois ele encontra,
nos textos queer, traços identificatórios (que possibilitam outros modelos

47
subjetivos) de que o discurso psicanalista e mesmo o próprio analista não
dispõem ou que recusam.
Nesse caso, não se trata, no processo analítico, de modo algum, da iden­
tificação do analisante ao analista, mas, em sentido inverso, da necessidade
de que o analista se identifique minimamente tom a experiência vivida por
seu analisando, para que possa reconhecê-lo como humano, interessar-se
peta sua língua e assim ir ao encontro da sua fala.

48
REFERÊNCIAS
BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1985,
BEAUVOIR, A. Contos transantropológicos. Porto Alegre: Taverna, 2018.
BUTLER, J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London; New York: Verso, 2006.
CUNHA, E. L. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria
de perversão. Ágora, v. 19, n. 1, p. 85-101, jan./abr. 2016.
CUNHA, E. L. Sexualidade e perversão entre o homossexual e o transgênero: notas sobre psica­
nálise e teoria queer. EPOS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 1-13, dez. 2013.
DE M’UZAN, M. Um caso de masoquismo perverso. Esboço de uma teoria. In: DE M’UZAN, M. et
al. A sexualidade perversa. Lisboa: Vega, 1988. p. 11-34.
HALBERSTAN, J. A arte queer do fracasso. Recife: CEPE, 2020.
LAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LANTERI-LAURA, G. Leituras da perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
PRECIADO, P. B. Je suis un monstre qui vous parle. Paris: Grasset, 2020.

49
DE ONDE ESCUTO?
DE FREUD E LACAN E FOUCAULT
E DELEUZE E...
Patrícia Porchat
No texto Uma psicanálise foucaultiana (2015), a psicanalista Laurie Laufer
parte de um anúncio de Jean Allouch de que “A psicanálise será foucaultiana ou
não será mais” (La psychanalyse sera foucaldienne ou ne sera plus) (ALLOUCH,
1998, apud LAUFER, 2015)15. Laufer se assume como uma psicanalista feminista,
lacaniana e de inspiração foucaultiana. Próxima de Allouch, mantém, assim
como este, um constante diálogo entre a psicanálise e a obra de Foucault. O
texto de Allouch ao qual ela se refere fez história no meio psicanalítico francês
através dessa frase. Recentemente, em entrevista a Pascale Molinier (2019),
ele lembra que a continuação da frase era “Na verdade, sempre o foi” (D’ail-
leurs, ça a toujours été le cas), pois acredita que Freud, em certo sentido, já
era bastante foucaultiano.
A célebre frase de Allouch, dita em 1998, praticamente vinte anos depois
da publicação de A vontade de saber (1976), indica que ele continuava a ver
em Foucault um interlocutor privilegiado. Na entrevista a Molinier, faz ques­
tão de dizer que seu movimento foi o inverso de muitos analistas que vão de
Lacan a Foucault. Ele conheceu e se apaixonou pela História da loucura antes
de conhecer a obra de Lacan. Segundo ele, isso permitiu que sua aproximação
a Lacan não tenha sido da ordem da obediência, ainda que se refira a Lacan
como mestre16. A posição crítica jamais abandonou Allouch. Para Laufer, ali­
nhada a Allouch e a Foucault, há um compromisso permanente de crítica a
uma psicanálise normalizadora.
Retomando Allouch, Laufer dirá: “são precisamente os elementos de crítica
que convidam a uma extensão prática e a um prolongamento teórico da psica­
nálise” (2015, p. 235). A partir dessa ideia, ela estabelece alguns pontos do que
poderia ser uma psicanálise foucaultiana. Em linhas gerais, destaca-se a ideia
de um sujeito que é produção, e não representação. Não se trata de interpretar
e descobrir sentidos articulados a representações, mas de entender as condi­
ções de produção do sujeito. Quem fala e em que condições? Essa pergunta,
em Foucault, é respondida pela análise das produções discursivas. Mas, além
disso, Laufer também encontra em Foucault um experimentador, que diz: “A
experiência [...] tem por função arrancar o sujeito de si próprio, fazer de modo
que ele não seja mais ele mesmo” (FOUCAULT, 1978, apud LAUFER, 2015, p.
238). Em comparação direta com a psicanálise, Laufer dirá que a experiência

15 Jean Allouch é um dos fundadores da Escola Lacaniana de Psicanálise, em 1985, e foi analisando de La­
can. É autor de Ombre de ton chien: Discours psychanalytique, discours iesbien (2004), livro em que comen­
ta o amor lésbico, a partir de SidonieCsillag, a paciente de Freud conhecida como “a jovem homossexual”.
16 Na entrevista a Molinier, Allouch comenta uma curiosidade: Foucault também era bastante atento às

idéias de Lacan, mas.... “à distância”.

52
analítica permitirá ao sujeito se livrar “das atribuições conjunturais de uma
determinada época e assim criar suas próprias capacidades de invenção de si”.
Que psicanálise crítica e ousada é essa? Este me parece ser um bom mo­
mento para apresentar psicanalistas que vêm trabalhando a partir da leitura
de Foucault, dos estudos gays e lésbicos, dos estudos de gênero, da teoria
queer e da french theory (que é o que se convencionou chamar a releitura de
autorxs francesxs como Foucault, Deleuze e Derrida, centradxs em torno da
ideia de “desconstrução”, por acadêmicxs americanxs como Judith Butler,
Donna H ara way, Gayatri Spivak, entre outrxs).
Porque banhar a psicanálise nessas águas? Por dois motivos, dirá Laufer:
“para que a psicanálise não se torne uma língua morta e fossilizada, mas seja
aberta a revisões”, e para permitir “pensar o sexual, a sexualidade e a identida­
de sexuada diferentemente de um quadro de gênero binário, heteronormativo
e universalizante” (2019, p. 2). O mesmo pensa Allouch, que retomou sua
célebre frase de 1998 em 2014, num colóquio organizado pelo CRPMS17 sobre
Foucault e o psicanálise. Para ele, sem Foucault, os analistas estariam cegos
em relação ao lugar que ocupam na cultura. Sem Foucault e sem os estudos
gays e lésbicos, não conseguiriam fazer a crítica da psicopatologia (MOLINIER,
2019). Não foi à toa que ele criou a coleção “Les grands classiques de 1’éroto-
logie moderne”, traduzindo David Halperin (Saint-Foucault), Lynda Hart (La
performancesadomasochiste), Pat Califia (Le Mouvement transgenre), e Gayle
Rubin (Surveilleretjouir), autorxs dos estudos gays e lésbicos18. Não é à toa,
também, que ele admite ter na filosofia a possibilidade de um “arejamento”
ou “liberdade” de base para aproximar-se da psicanálise. Seu primeiro grande
amor intelectual, diz ele, foi Kierkegaard. Depois Foucault, depois Lacan, mas
aí, como ele diz, já era uma série, e não era mais necessário acreditar no prín­
cipe encantado da psicanálise, como muitos no passado precisaram e outros
até hoje precisam (MOLINIER, 2019).
Outro autor que vamos aqui introduzir para ilustrar um pensamento psi-
canalítico crítico e independente é Thamy Ayouch, que incorpora, além de
Foucault, Deleuze, teorias de gênero, a teoria queer e as teorias pós-cotoniais
e decoloniais19. Sua afinidade com a psicanálise é menos com a obra de Lacan,
e mais com a de Jean Laplanche e Pierre Fédida.

17 Centre de Recherches Psychanalyse, Médecine et Societé, da Universidade de Paris (antiga Paris 7), atual­
mente coordenado por Laurie Laufer.
18 A coleção é publicada pela editora Epel, que pertence à Escola Lacaniana de Paris.

19 Pós-colonialé o nome dado às teorias que analisam os efeitos políticos, filosóficos, artísticos e literários

deixados pela situação do colonialismo, seja nos países colonizados, seja nos próprios países colonizadores.

53
Voltando à construção de uma psicanálise foucaultiana, vemos Laufer
identificar no sujeito foucaultiano características do sujeito freudiano e laca-
niano, e, nesse sentido, pode-se dizer que usa Foucault para reencontrar na
psicanálise o que esta tem de potente e subversiva. Diz Laufer que esses três
sujeitos: \

deram destaque a essa liberdade subjetiva, mas tentando alcançar um


saber de si e de produzir um saber de si que levaria o sujeito a entender
que ele não é senão pura contingência, determinado pelos discursos que
o constituem. A exigência da experiência analítica permite ao sujeito não
ser enganado por essas determinações, de ser um pouco menos ignorante
e um pouco mais consciente dos movimentos de alienação que o colocam
sob a linguagem (LAUFER, 2015, p. 238).

Apoiada em Allouch e em Gayle Rubin, ela sugere que a psicanálise fou­


caultiana propõe uma transformação do sujeito, que passa de hermeneuta a
experimentador. Trata-se de produção, experimentação e invenção de si no
lugar de conhecimento de si. Uma experimentação do amor, de uma certa
erótica da experiência da transferência, dirá ela. A psicanálise foucaultiana é
uma erotologia, termo que Allouch toma emprestado a Lacan e que demarca a
diferença entre uma psicanálise inserida num sistema que extrai a “verdade” da
sexualidade e transforma esse “conhecimento” em ciência, a scientiasexualis;
e, por outro lado, uma psicanálise que resiste à normalização, principalmente
no que diz respeito ao sexual, propondo um sujeito sem identidade sexual
(.sexuelle), afastando-se da partição homem/mulher, “assim como, afastando-se
de todo excesso de significação concernente às práticas sexuais” (ALLOUCH,
1998, apud LAUFER, 2015, p. 239).
Afastar-se da identidade sexual, para Allouch, significa não definir uma
erótica a partirde uma identidade sexuada (sexuée), mas, ao contrário, consi­
derar que a erótica acessada pela erotologia analítica (ou seja, pela experiência
analítica) possa dar uma identidade sexuada ao sujeito (ALLOUCH, 1988, apud
LAUFER, 2015, p. 240). A psicanálise, dessa forma, pode ser aproximada ao que
Foucault chamou de ars erotica.
Rubin, por sua vez, critica a obsessão pela etiologia que quer explicar a
diversidade sexual desqualificando-a. Pelo contrário, deveríamos identificar,

Os estudos decoloniais, por sua vez, seriam uma continuação dos estudos subalternos, que começaram no
sul da Ásia - na índia, em particular-, buscando reverter o olhar ocidental europeu sobre a historiada índia
e a historiografia eurocêntrica produzida pelos próprios indianos. Posteriormente, surgiram estudos desse
tipo na América Latina, a partir de questionamentos acerca da classificação étnica sobre a qual os estados-
nação da região se desenvolveram. Outros grupos de teóricos também apareceram no norte da África.

54
explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual, diz ela (Rubin,
2010, apud Laufer, 2015, p. 239). Considerando desse modo a erotologia, dirá
Laufer, a sexualidade humana não é mais pensada em termos de estruturas
a priori, nem de clivagens normativas, mas como uma plasticidade capaz de
incluir todas as formas de experiências pelas quais os seres humanos se con­
frontam à sexualidade” (LAUFER, 2015, p. 240). A erotologia dispensa a ideia
de causalidade e se torna resistência à padronização do sexo.
Vemos aqui uma importante contribuição à escuta clínica, que deve recu­
sar a investigação com fins explicativos das práticas sexuais não-normativas e
das expressões de gênero dissidentes dos padrões esperados, e atentar para
a produção e invenção de si, de uma erótica própria. Não se trata de conheci­
mento adquirido a partir de uma verdade extraída de uma suposta essência,
mas de um fazer, através da experiência analítica. Vejamos como Laufer fala
de sua prática.
Em artigo publicado em 2019, Laufer retoma a ideia do que seria a eroto­
logia, esclarecendo sobre a sua prática clínica como uma espécie de ironia. A
erotologia é referenciada ao amor de transferência, por um lado, e ao “estilo
de vida” ou “estética da existência” foucaultianos, por outro. Essas experiên­
cias, de acordo com Foucault, são fundadas sobre a ética dos prazeres, não
necessariamente sexuais; são os “modos de vida relacionais”. (Foucault, apud
Laufer, 2019, pp. 8-9). Encontrando eco dessa ideia em Lacan, Laufer o cita:
“Quando se ama, não se trata de sexo”.

A experiência erotológica (seja ela prática sexual, prática de amizade, es­


tilo de vida) é uma forma de saber sobre Eros. Ora, a experiência de uma
psicanálise reside na intensificação da experiência da transferência. “Se a
psicanálise é um meio, é no lugar do amor que ela se instala” (Lacan, Les
non-dupes errent - sessão do 19 de março, 1974). Sem dúvida uma análise é
a própria experiência do amor, sua intensidade, sua dor, sua sabedoria, suas
chamas e queimaduras, sua esperança e seus recursos (LAUFER, 2019, p. 9).

Para trabalhar com o Amor, Laufer propõe o uso da ironia, que aponta para
um deslocamento radical das posições de saber e de poder. Para ela, Foucault,
Freud e Lacan “eram os ironistas necessários face a todo dogmatismo do saber
e a todo imaginário do poder” (LAUFER, 2015, p. 243). Rir é rir-se de todas as
formas de saberes fixos, congetados. Além de propor o riso como uma forma
de desafiar, ou melhor, ter uma atitude de descaso frente aos saberes que se
impõem como verdades absolutas, Laufer sugere que haveria uma relação
estreita entre os dois textos de Freud compostos em 1905 - Três Ensaios e O
chiste e sua relação com o inconsciente. Ele passava de um a outro e os comen-

55
tad ores não saberiam a ordem de composição e elaboração. Segundo ela, um
não poderia ter sido escrito sem o outro. Algo do infantil, do desejável, das
possibilidades, do prazer é expresso através do rir. O chiste se livra da razão,
das restrições comuns do discurso, e “por essa mesma emancipação ele vai
direto ao ponto e perturba a fala, a razão e o significado” (LAUFER, 2019, pp.
10-11). Como trabalhar com o rir?

A ironia como intervenção: rir, rir de si, fazer rir


Retomemos as idéias de Laufer concernentes a uma psicanálise foucaul-
tiana: esta seria uma erotologia, uma psicanálise que dèsconstrói os efeitos
de saber que botam em cena os dispositivos de poder, que despsicologiza o
sujeito ao desconsiderar uma etiologia da sexualidade e, nesse sentido, per­
mite transformar uma scientia sexualis em ars erotica. É uma psicanálise que
trabalha com a ironia, sem discurso sobre a família heterossexual, e, acrescenta
ela, sem Édipo ou além do Édipo (LAUFER, 2019). Essa última consideração,
acerca do Édipo, localiza Laufer entre psicanalistas que levaram a sério a crítica
de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (1972), embora isso não a torne uma
esquizoanalista. A adesão a uma crítica do Édipo, para analistas que, ainda
assim, permanecem no domínio do freudo-lacanismo, significa considerar o
Édipo não mais como um universal, mas como uma passagem possível, numa
dada época, para a constituição da subjetividade. Ele deixa de ser a única
referência consistente para a constituição do sujeito.
Vemos, por exemplo, essa ideia em Jean Laplanche, que critica a concep­
ção de parentesco edípica indexada como mito sobre a evolução psicossexual
do indivíduo. A psicanálise erraria, segundo Laplanche, por querer incluir entre
suas verdades metapsicológicas esquemas de narrativa contingentes “que
servem ao ser humano, em determinadas culturas, a colocar ordem, a histo-
ricizar seu destino” (LAPLANCFIE, 2009, apud AYOUCH, 2017).
Uma alternativa que surge no último ensino de Lacan, na clínica do nó
borromeano, compreende a amarração dos elos20, que correspondem aos
registros (Real, Simbólico e Imaginário) caso a caso (BOURLEZ, 2018). Salta ao
primeiro plano a importância de se considerar novas maneiras de escutar a
queixa dos sujeitos, fazendo vacilar as certezas familialistas que acompanham
as narrativas edipianas e o que elas trazem de violência em suas implicações
normativas.

20 Elos, aros e nós são os termos usados para se referir a clínica do nó borromeano ou borromeu.

56
No Seminário 23, O Sinthoma, Lacan (1975-1976/2005) testa a hipótese
de que o que garante que os três elos (RSI) fiquem juntos, no caso do escritor
James Joyce, é urn quarto elo - sua escrita, o Sinthoma. Lacan afirma:

é no tanto em que o inconsciente se ata ao sinthome, que é o que há de sin­


gular em cada indivíduo, que podemos dizer que Joyce, como ele escreveu
em alguma parte, se identifica ao individual. Ele é aquele que se privilegia
de ter estado no ponto extremo para encarnar nele o symptôme (LACAN,
1975-1976/2005 p. 168).

Todavia, a ideia de um quarto elo como necessário para a manutenção da


amarração dos outros três elos é polêmica. Pode-se encontrar, entre analistas
lacanianos, a concepção de que a cadeia borromeana de três elos é a estrutura
básica, necessária e suficiente para se manter um sujeito neurótico. O quarto
elo viria apenas como um recurso para ajudar a compreender e abordar alguns
casos de diagnósticos complexos ou indecidíveis, nos quais somente a cadeia
de três não daria conta (VICTORA, 2020). Essa afirmação sugere estarmos diante
de uma atitude comum a muitos analistas, de ver na diferença e na singulari­
dade - quando dizem respeito a narrativas não familialistas - uma espécie de
“anormalidade”. Há trabalhos em que a “compreensão/explicação” da transe-
xualidade, por exemplo, é estabelecida a partir da ideia de que a constituição
subjetiva desse ser (a pessoa transexual, como se aí houvesse um “tipo” ou
qualquer generalização possível) se assemelha à de Joyce (COSSI, 2010; TEI­
XEIRA, 2012). O quarto elo, o Sinthoma, é o que em Joyce faz suplência, ou
seja, garante a estabilidade psíquica e não permite que haja crises, comuns
em estruturas psicóticas.
Mas, ainda que recorram constantemente ao argumento de que diagnós­
ticos psicanalíticos sejam apenas nomes a serem considerados no âmbito da
própria teoria, o que não nos permitiria falar em “anormalidade”, sabemos do
efeito que o significado atribuído a determinados termos, sua origem e seu uso
em outros campos tem sobre aqueles que se veem nomeados de tal maneira.
Novamente, somente um recurso à crítica de uma psicanálise normalizado-
ra nos livra da tendência de alguns analistas de enxergarem complexidade
e indecidibilidade diagnostica em diferenças e singularidades do humano
no que tange a gêneros e sexualidades. Mas voltemos à psicanálise crítica e
independente.

57
A hibridez e a psicanálise menor21
Thamy Ayouch se posiciona criticamente de modo a não permitir que a
psicanálise escorregue para um lugar de controle dos corpos, da subjetividade
e da vida,} conforme
\ a crítica de Foucault. Em squ livro Psicanálise e Hibridez:
gênero, colonialidade e subjetivações (2019), propõe refletir sobre a especifi­
cidade de processos de subjetivação próprios aos sujeitos tornados minorias
(minorizados). Trata-se de “pensar as subjetivações menores".
Sua psicanálise menor, que o conceito de hibridez ajuda a construir, é
inspirada na literatura menor de Deleuze e questiona a universalidade das
noções psicanalíticas, perguntando se a situação histórica da psicanálise e de
seus conceitos não limitaria sua extensão apenas à singularidade do sujeito
branco, ocidental, em geral masculino, de classe média, heterocentrado e
ciscentrado (AYOUCH, 2019, p. 131).
Para além da crítica, não se trataria de uma psicanálise que visa a descobrir
sentidos ou revelar uma verdade. Não se propõe um conhecimento de si, mas
um conhecimento das práticas de si. Não existiria conhecimento universal, mas
saberes situados que botam em cena a hipersingularidade. O diálogo com os
estudos queer, transgêneros, pós-coloniais e decoloniais, junto com a parti­
cularidade clínica das populações minorizadas, propiciam o que ele chama
de hibridez da psicanálise. “A reivindicação da hibridez22 como ferramenta
epistemológica tem efeitos políticos: aparece neste procedimento, o jogo en­
tre relações de poder que convoca a identidade e a estabilidade das normas
e resistências visando reconfigurá-las” (LAUFER apud LAUFER, 2018, p. 8).
O trabalho de pensar as subjetivações menores se justifica. A psicanálise
precisa escutar o que ele chama de mutações antropológicas contemporâneas
que chegam como ininteligíveis, pois a inteligibilidade está dada por modelos
historicamente e culturalmente definidos. Como dar conta das minorizações
(da produção de um menor) que aí ocorrem? (AYOUCH, 2017).
Além da análise das relações de poder e dos modos de produção de sub-
jetivação, ele propõe

tentar construir instrumentos metapsicológicos capazes de dar conta da


especificidade das identificações e experiências contemporâneas dos gêne­
ros, sexualidades e diferenças culturais, e compreender a sua singularidade

210 termo menor (mineure, em francês) remete à literatura mineure, proposta por Deleuze, como logo será

explicado. Não há qualquer diminuição de valor implicada aqui.


22 Em comunicação pessoal, Ayouch afirmou preferir o termo hibridez a hibridismo, em português, para a

tradução de hibridité.

58
para além da normatividade social e política da binaridade de gênero ou
da universalidade cultural (AYOUCH, 2019, pp. 26-27).

Ayouch analisa a hibridez como uma questão freudiana inicial da própria


constituição da psicanálise enquanto teoria. A hibridez seria visível em muitos
momentos da obra freudiana, mas o exemplo escolhido é o da questão em
torno da identidade de Moisés, um estrangeiro que foi adotado como chefe.
Moisés é egípcio, a circuncisão inicialmente é uma prática egípcia, outros ele­
mentos que participam da formação da identidade judaica também seriam
estrangeiros. “Nessa genealogia, o judaísmo só existe através da inclusão de
um elemento estrangeiro: ser judeu não pode ser definido sem referência ao
não-judeu” (AYOUCH, 2019, p. 24). A partir dessa ideia, Ayouch sustentará que
uma identidade da psicanálise se funda, necessariamente, a partir e através de
suas exterioridades: “a hibridez, isto é, a inclusão de elementos estrangeiros,
díspares, heterogêneos, é constitutiva da psicanálise” (Ibid., p. 24).
Ayouch dedica-se a explorar o conceito de hibridez, propondo uma divisão
inicial entre hibridez estrutural da psicanálise, motor da escuta e da teorização
analítica, e hibridez programática da psicanálise, pelas perspectivas dos estu­
dos de gênero, queer, pós-coloniais e decoloniais. O mergulho na concepção
de hibridez estrutural leva Ayouch a dizer que existe em Freud uma hibridez
heurística, metodológica, de hipóteses, do afeto, do recalque, da influência
recíproca dos sistemas (Pc, Ics e Pcp-Cs) e dos fantasmas (Ibid., pp. 92-96).
Já a hibridez programática propõe que a psicanálise entre em contato e
seja hibridizada pelas teorias de gênero, queer, pós-coloniais e decoloniais, e
que com isso se transforme. Ayouch (2015,2017) vem realizando esse trabalho,
e podemos observar, no contato com a obra de Foucault e de Deleuze, novas
perspectivas para se pensar sexo, sexualidade, corpo, gênero e família.
Além da ideia de que seus conceitos não se limitem apenas à singularidade
do sujeito branco, ocidental, em geral masculino, de classe média, heterocen-
trado e ciscentrado, a psicanálise menor trabalha no sentido de perceber se,
de fato, o uso de noções maiores23 da teoria psicanalítica podem ser efetuadas
no caso específico de minorias clínicas - de gênero, classe ou cultura.
Uma característica importante da literatura menor de Deleuze é aplicável
à psicanálise menor. Trata-se da ideia de que não existe enunciação individual
separada de uma enunciação coletiva. Assim como na escrita menor, o campo

23Termo também oriundo da teoria deleuziana (majeures), que remete aos conceitos standard que, na
psicanálise, sugerem a universalidade do psíquico.

59
político contamina qualquer enunciado. Considera-se que um dizer ou um
ato individual, portanto subjetivo, pode correspondera uma ação comum. “0
enunciado não reenvia a um sujeito da enunciação, que seria a sua causa, nem
a um sujeito do enunciado, que seria o seu efeito” (DELEUZE e GUATTARI, apud
AYOUCH, 2017, p. 217). A enunciação é sem sujèito individualizado, continua
Ayouch com Deleuze e Guattari. A escuta deve se aplicar aos “agenciamentos
coletivos de enunciação”.
Por último, em se tratando de Deleuze, a psicanálise menor é também
uma psicanálise do devir, que caracteriza os processos de determinação da
singularidade subjetiva em sua relação com as normas - e, nesse sentido, serve
para todos os sujeitos, e não apenas aqueles que são minonzados (AYOUCH,
2019). O devir, que Deleuze apresenta como uma neorrealidade que escapa à
representação e que é concebido como sendo o próprio afeto, a própria pulsão,
“...desafia toda classificação por gênero, seja os gêneros do Ser, as espécies
biológicas ou os gêneros sexuais” (DAVID-MÉNARD, 2005, p. 79). Nesse senti­
do, serve para todxs nós. Mas são poucos analistas que se deixam hibridizar
por Deleuze. Esse movimento tem sido mais constante quando as minorias
chamam a psicanálise a se pronunciar.
O risco de se fundar uma nova psicanálise, uma psicanálise das mino­
rias, uma nova psicanálise estável e normatizante, que substituirá verdades
universais por novos universais é evidente, pois, afinal, existe uma clínica de
sujeitos com alguma particularidade, no caso, populações minorizadas. Ayouch
antecipa esse risco ao dizer que “o objetivo é refletir sobre a especificidade dos
processos de subjetivação próprio aos sujeitos minorizados, e a reformulação
das noções psicanalíticas que disso resultariam” (AYOUCH, 2019, p. 18). Aqui
vemos uma herança foucaultiana. Trabalha-se sobre os modos de produção de
um sujeito, e nesse ponto o analista está incluído. Tanto Laufer quanto Ayou­
ch, seja pela posição irônica e crítica do analista sobre seu próprio saber (no
caso de Laufer), seja pela análise da contratransferência (no caso de Ayouch),
entendem que o analista não escapa da produção de “verdades” sobre seus
analisandos, um saber imaginário que deve ser analisado e desconstruído. Não
se pode evitar analisar a própria condição de produção do analista.
Um segundo risco que se coloca é o de que uma psicanálise não univer-
salista, que reconhece as vozes minoritárias e que as retira da invisibilidade e
de seu silêncio, pode vira essencializar essas identidades, o que, em termos
de psicanálise, não faria sentido.
Em Ayouch, já são possíveis ver, na forma como abordava o tema do gêne­
ro e das transidentidades em 2015, prenúncios da teoria da hibridez. Veja-se

60
por exemplo a ideia de que as transidentidades (termo adotado a partir da
desconstrução das visões psiquiátricas e psicanalíticas sobre a transexualidade
pelas teorias de gênero, queer e transgênero) poderiam desfazer a narcisização
da teoria psicanalítica. Se o analista se fecha (para a cultura, para a política,
para o social e para novas teorias), “a teorização passa a ser um processo au-
toerótico do núcleo pulsional do/a teorizador/a” (Ayouch, 2015). E aí aparece
a proposta de que a psicanálise seja hibridizada, embora, à época, Ayouch não
usasse esse termo: “O que permite evitar este narcisismo seria então uma inter-
subjetividade da teoria, garantida pela transferência, pela abertura da teoria às
mudanças sociais, e pela freqüentação de outras disciplinas e teorias” (Ibid).
Por último, cabe também mencionar que Foucault é uma referência
constante em seus trabalhos, embora talvez, particularmente na exposição
do conceito de hibridez e de psicanálise menor, isso não tenha ficado claro.
Foucault se faz presente nas críticas endereçadas à psicanálise maior, assim
como na forma de compreender a sexualidade. É a partir de Foucault e de
sua leitura pelos estudos de gênero e queer que Ayouch propõe: desconstruir
as hierarquias sexuais próprias aos discursos sociais e destacar os discursos
sobre o sexual-infantil aí contidos; evidenciar a dimensão política da sexua­
lidade, vista como uma inscrição da subjetivação nas normas sociais; refletir
sobre a distinção, na teoria psicanalítica, entre sexualidade (como conjunto de
práticas, a partir das quais é historicamente pensado o recalque freudiano) e
c sexual-infantil, concebido como um mais-de-prazer irredutível à satisfação
de uma função vital; e, finalmente, analisaro modo pelo qual o sexual-infantil
se encontra confundido frequentemente com a sexualidade, gerando, assim,
uma teoria psicanalítica normativa (AYOUCH, 2017, p. 202).
Vimos no percurso a que aqui nos propusemos que a novidade teórica,
quando chega na clínica, pode gerar normatividade (caso da clínica do nó
borromeano e do conceito de Sinthoma); e que leituras pouco rigorosas, ainda
que de conceitos potentes como o sexual-infantil perverso-polimorfo de Freud,
podem igualmente levar a uma psicanálise normativa. O risco é eterno. Habita
em todxs nós a oscilação entre novidade e estabilidade. A novidade particula-
riza, a estabilidade universaliza. Mas se vivêssemos apenas de novidade, não
haveria teoria nenhuma. A escuta clínica é feita de delicadeza na aproximação a
nossas referências conceituais e a nossxs mestres, por um lado; também é feita
de capacidade de suportar a angústia do não-saber e do desconhecido, por
outro lado; e, como há sempre mais do que apenas dois lados, de criatividade
e risco. Por isso o título deste capítulo termina em reticências.

61
REFERÊNCIAS
AYOUCH, T. Da transexualidade às transidentidades: psicanálise e gêneros plurais
Percurso, v. 54, p. 23-32,2015.
AYOUCH, T. Genre, classe, “race” et subalternité: pour une psychanalyse mineure: pour un rega
neuf de la psychanalyse sur le genre et les parentalités. Cáirn, p. 171-203,2017.
AYOUCH, T. Psichanalyse, et Hibridité: genre, colonialité, subjectivations. Leuven: Leuven
University Press, 2018.
AYOUCH, T. Psicanálise e Hibridez: gênero, colonialidade, subjetivações. São Paulo: Calligra
phic, 2019.
BOURLEZ, F. Queer Psychanalyse: Clinique mineure et déconstructions du genre. Paris: Her­
mann Éditeurs, 2018.
COSSI, R. K. O corpo em obra. São Paulo: nVersos, 2011.
DAVID-MÉNARD, M. Deleuze et la psychanalyse: 1’altercation. Paris: PUF, 2005.
LACAN, J. Le séminaire: livre XXIII, le sinthome. Paris: Editions du Seuil, 2005.
LAUFER, L. Une psychanalyse foucaldienne est-elle possible? Nouvelle Revue de Psychoso-
ciologie, Erès, p. 233-247,2015.
LAUFER, L. Michel Foucault: drôle de genre pour une psychanalyse? Genre, Sexualité & Socié
v. 21,juin.2019.
MOLINIER, P. Foucaldienne, la psychanalyse? Genre, Sexualité & Société, v. 21,juin. 2019.
TEIXEIRA, M. C. Os transexuais e o sexo para chamar de seu. aSEPHallus, v. 7, v. 14, p. 43-7
maio/out. 2012.
VÍCTORA, L. G. O quarto nó é necessário? Sobre as nominações do pai. Correio APPOA, n. 29
mar. 2020.

62
SEDIMENTAÇÕES DE UMA
ODALISTA ANDROIDE:
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
GÊNERO E CLÍNICA TRANSDISCIPUNAR
Céu Silva Cavalcanti
“iCuántas hijas de perra son necesarias
para hacerestallar el mundo?”
(VENEGAS; CABELLO & D1AZ)

Uma cena disparadora inicia este ensaio!} Um corpo-mulher (?) com­


posto por camadas múltiplas de sedimentações e deslocamentos corta o
campo-imagem. Ela (é um ela?) olha pela janela vazia de transcendências
e não vê “arranhões no céu nem discos voadores”. Em seu corpo-mundo ela
mistura uma composição diversa de fragmentos, desde as bregas e proble-
matizáveis capturas de uma odalisca até as vertigens pós-humanas de an-
droides. Uma odalisca androide24 é nossa curiosa e inusitada guia em uma
discussão sobre clínica transdisciplinar, perspectivas de gênero feministas
e queer e certo traçado de uma filosofia da diferença. Mas um aviso inicial:
o corpo de nossa odalisca androide é multidão. Polimorfa, essa matéria
toma formas movediças num jogo contínuo de composições e decomposi­
ções. Corpo-subjetividade seguindo na dinâmica de estratificações e disso­
luções de territorialidades físicas, políticas, históricas e sociais. Pedaços de
tudo compõem o mundo-corpo da odalisca androide, que inclusive toma
a forma de “hijas de perra”. Quantas “hijas de perra” são necessárias para
fazer o mundo quebrar? De quais modos há de se fazer o mundo quebrar?
Clínica aqui é entendida tanto como espaço de encontro quanto como
perspectiva de ação para além dos muros privatizados do consultório do analis­
ta. Assim há, nestas linhas, certa indissociabilidade entre corpo-sujeito-mundo,
ao mesmo tempo em que se busca a transversalização dos temas como plano
a compor a clínica. Se transversalidade é uma proposta a ser retomada mais
adiante nestas linhas, a transdisciplinaridade aqui assume irônica centralidade
ao implodir a centralização de determinado esquema teórico em detrimento de
outros. Uma clínica em teias, como rizoma, se possibilita quando os próprios
saberes que a fundam podem ser também postos em diálogo com esferas
múltiplas, incluindo as epistemologias feministas, queer e interseccionais.
Cristina Rauter (2015), ao propor uma clínica transdisciplinar, traz que

O que temos chamado de clínica transdisciplinar é uma construção que


emerge da atitude do clínico, do Psicólogo ou Psicanalista, de explorar
as regiões de vizinhança da clínica com outros saberes para, a partir daí,
construir suas estratégias. A função do clínico é a de catalisar a produti-

24 Personagem criada pela poesia de Fausto Fawcett em uma performance disponível em https://www.

youtube.com/watch?v=-2ouhNOL028.

64
vidade do inconsciente, numa concepção de inconsciente que possui
forte inspiração spinozista. (RAUTER, 2015. p. 45).

Explorar as regiões de vizinhança da clínica é um convite, mas também é


uma postura. Um modo de constituição do próprio ser analista que convoca
aberturas de miradas. Tomar a clínica nesse ponto é estar atenta a como os
casos convocam o acionamento de lentes conceituais a cruzar o espaço do
encontro clínico. Como guia, nossa Odalisca Androide nos deixa algumas pistas
pelo caminho.

Pista 1 - Nem arranhões no céu nem discos voadores

Eu estou sempre aqui, olhando pela janela.


Não vejo arranhões no céu nem discos voadores.
Os céus estão explorados, mas vazios.
(FAUSTO FAWCETT, Odalista androide)

Se pudermos pensar numa inspiração Espinosista (ou Spinozista, como


queiram), o início da composição da odalisca androidejá nos empresta metá­
foras. Um primeiro salto nessa perspectiva de leitura do mundo é a passagem
entre as perspectivas que buscam as transcendências para as perspectivas que
operam desde a imanência. Para a nossa Odalisca Androide, não há promessas
de outros mundos, de um céu mais possível ou de discos voadores a vir de
mundos maiores a acolher as dores e resolver nossas questões.
Baruch de Espinosa é um filósofo que viveu no século XVII, cuja obra marca
profundamente muito do que produzimos ao pensar sujeito e subjetividade
dali em diante. Sua filosofia, que inspira importantes pensadores posteriores,
foi em vida motivo de sua excomunhão e isolamento, o que, na prática, o fez
morrerem condições miseráveis. As pistas de um pensador maldito nos ajudam
aqui a rascunhar caminhos que nos levam a perceber como estar atentas ao
plano de imanência nos ajuda a estar aqui de formas mais adequadas.

Com a sentença dos anjos e dos santos, com o consentimento do Deus ben­
dito e com o consentimento de toda a congregação, diante desses santos
livros, nós esconjuramos Baruch de Spinoza, com os seiscentos e treze pre­
ceitos que estão escritos neles, com o anátema com que Josué excomungou
Jerico, com a maldição que Elias amaldiçoou aos moços, e com todas as
maldições que estão escritas na Lei. Maldito seja de dia e maldito seja de

65
noite, maldito seja em seu deitar, maldito seja em seu levantar, maldito seja
em seu sair, maldito seja em ele em seu entrar... Advertindo que ninguém
lhe pode falar bocalmente nem por escrito nem conceder-lhe nenhum favor,
nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma distância de menos
de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou escrito por ele. (Anátema
pronunciado contra Espinosa em 27 de^ulho de 165625).

O anátema da excomunhão de Espinosa já nos chama atenção sobre o


que um pensador pode ter escrito de tão terrível a ponto de ser amaldiçoado
por toda a sua comunidade de origem. Deleuze (2002), em um livro chamado
Espinosa: filosofia prática, aponta que os maiores perigos do pensamento deste
autor é que ele pressupõe três tarefas práticas que partem de três grandes
denúncias. A denúncia 1) da consciência, 2) dos valores e 3' das paixões tristes.
1) Na denúncia da consciência, há uma perspectiva posteriormente no­
meada como tese do paralelismo. A distinção mente-corpo aqui não diz muito,
ao passo que, para Espinosa, o que é ação na alma é necessariamente ação
no corpo. Um dos axiomas mais evocados nos ajuda a pensar quando traz
em si a pergunta (amplamente repetida nos mais diversos fins pelas pessoas
que leem Espinosa): “o que pode o corpo?”. Com essa pergunta, e no contexto
em que ela aparece, o filósofo faz uma declaração profunda de ignorância ao
perguntar como ousamos supor saber das verdades universais e absolutas
quando sequer sabemos o que pode o nosso corpo. A partir dessa percepção
de ignorância, desenha-se todo um modelo de inconsciente que aponta para
a limitação da nossa consciência diante das causas que organizam o mundo.
A consciência é, ainda, um efeito.
O mundo nos afeta a todo momento, e nos movemos por entre todo um
conjunto de causas que a todo momento produzem efeitos que são, por sua
vez, causa de outros efeitos. Ao traçado de um conjunto complexo de causa-
lidades infinitas, que movem (e se movem por) todas as coisas que existem,
Espinosa nomeia Deus. Poderíamos pensarem um racionalismo radical, mas
mesmo essa alcunha não captura o tamanho dos quadros filosóficos dese­
nhados especialmente no livro chamado Ética. Deus, em Espinosa, foi depois
rebatizado na filosofia Deleuziana como Plano de Imanência. Mas, voltando
à consciência, se há uma rede infinita de causalidades, num jogo infinito de
forças e efeitos se movendo em todas as direções ao mesmo tempo, nossa
limitada capacidade de compreensão diante das forças que moldam o mundo
faz com que percebamos apenas os efeitos que essas forças produzem em nós;

25 Disponível em fragmentosdaintensidade.tumblr.com.

66
e esses efeitos, chamados de paixões, podem ser de duas ordens - podem ser
de composição ou de decomposição. Podem nos aumentar em potência ou
nos diminuir em potência. São direções; e essas direções Espinosa nomeia
como paixões alegres ou paixões tristes, entendendo aqui alegria como tudo
o que nos aumenta a capacidade de agir e pensar, e tristeza tudo que nos
diminui a capacidade de agir e pensar. A partir dessas lentes, faz-se possível
estabelecer um complexo mapa dos efeitos que todas as relações que estabe­
lecemos produz em nós (e não há separação entre mente e corpo, portanto as
afecções podem ser de ambas as ordens. Um alimento que consumo produz
determinada afecção, do mesmo modo que o contato com alguém, algo visto,
pensado, ouvido e imaginado também).
Consciência é um efeito, então, de três grandes ilusões: a ilusão das causas
finais, a ilusão dos decretos livres e a ilusão teológica. Estas três falam tam­
bém de nossa ignorância, e, por não entendermos as forças que nos afetam,
tomamos os efeitos que sentimos como a causa das coisas. Também cremos
ter domínio pleno sobre todas as forças do mundo e cremos nos mover livre­
mente pela nossa própria ação consciente e, quando nos deparamos com uma
limitação de nossa vontade no mundo, acionamos a ilusão teológica para jus­
tificar uma vontade contrária maior que a nossa, a de um Deus transcendente
que também por livre vontade e consciência quis ou não as coisas. Essas três
ilusões nos produzem a consciência como efeito, daí que denunciar os limites
dela é a primeira tarefa prática desse pensamento.
2) A segunda tarefa prática é a denúncia dos valores. Aqui uma divisão en­
tre moral e ética se faz necessária ao passo que a moral só se possibilita como
efeito de um profundo desconhecimento das causas. Por não conhecermos
as forças, criamos um conjunto de interditos que se convertem em leis que
se operacionalizam a partir de ordem do Cumpra-se. Se cria, então, toda uma
diferença qualitativa entre morale, ética, na medida em que moral se assemelha
a um código de valores transcendentes incompreensíveis e superiores a nós
e aciona a grande dicotomia entre o bem e o mal. Um grande erro teológico
aqui apontado é que, na composição da moral, é propagada a ilusão de que
a única forma de conhecer é obedecer. Obediência é cega porque pede que
obedeçamos ao que nem sequer entendemos, e, ainda por não entendermos,
o julgamento da transcendência é o maior motivador da obediência a leis
completamente exteriores a nós. Ética, então, seria uma desarticulação de
todo esse sistema de julgamentos, na medida em que se configura como um
modo de vida imanente. Buscar a compreensão das forças que estão aqui neste
momento e que nos movem nas variadas direções é, a partir do entendimento

67
das causas, poder produzir incidências mais adequadas em nós e no mundo.
Nossa relação com as coisas todas se modifica quando no campo, e desde as
lentes da ética, e passam a ser de alegria ou tristeza. O bem e o mal dão lugar
ao bom e ao mau como filtro, na medida em que, conhecendo as causas e
os efeitos, podemos pensar se as coisas nos còmpõem em potência ou nos
diminuem a capacidade de agir e pensar.
3) Após essas duas denúncias, a terceira tarefa prática apontada pela filo­
sofia de Espinosa é a denúncia constante das paixões tristes. Se os afectos tris­
tes são tudo o que nos diminui a capacidade de agire pensar, inevitavelmente
há uma atenção necessária aos usos políticos que se pode ter da produção de
afectos tristes. E esse sistema de pensamento também se ateve a isso. A moral
pressupõe uma dinâmica de poderes estabelecidos com base em preceitos
transcendentes e inacessíveis, mas que regulam as vidas cotidianas de todas
as pessoas. A institucionalização da moral é baseada no agenciamento de
paixões tristes e, na leitura Deleuziana de Espinosa, se sustenta em três figu­
ras: o resignado, o tirano e o padre. Tirania seria nesse vocabulário o uso da
despotencialização das pessoas governadas como prerrogativa de governar,
ao mesmo tempo em que o lugar de resignado seria uma certa aceitação da
despotência como campo de vida, na medida em que se delega ao tirano a
capacidade plena sobre nossas vidas. Padres seriam, na leitura Deleuziana,
aqueles que vivem de compadecimentos pelos afectos tristes, contudo sem
nada mover de modo a promover emancipação e potência àqueles de quem
se compadecem. Essa seria a trindade moralista que se alimenta da produção
de tristezas (diminuição constante da capacidade de agir e pensar) de modo
a estabelecer toda uma dinâmica de poderes.
A alegria, por fim, seria um aumento de nossas capacidades, de modo
que muitas vezes a filosofia de Espinosa (e de Deleuze, por tabela) é entendi­
da como uma filosofia da alegria. Mas alegria aqui é palavra que carrega um
sentido diferente daquele comumente associado. É pobre e leviano colar os
sentidos presentes nas palavras evocadas na Ética, de modo que alegria é o
efeito de tudo aquilo que se compõe conosco, nos amplificando os modos de
estar no mundo. Esse aumento de capacidades vai se convertendo em alegrias
ativas, onde os efeitos que sentimos em nós nos produzem em certa medida
a capacidade de também ser agente ativa diante das forças que nos movem.
As três denúncias convocam a uma mudança de perspectiva, a que aban­
donemos a moral como prerrogativa e apostemos na ética como modo mais
adequado de nos movermos neste mundo, atentes às forças que, estando aqui,
produzem efeito aqui, em nossos corpos e nossas subjetividades.

68
Pista 2 - Dançar com as normas
Eu já sei, não precisa me dizer.
Eu sou um fragmento gótico.
Eu sou um castelo projetado.
Eu sou um slide no meio do deserto.
Eu sempre quis ser isso mesmo.
Uma adolescente nua, que nunca viu discos voadores,
e que acaba capturada por um trovador de fala cinematográfica.
(FAUSTO FAWCETT, Odalista andróide)

Partindo da perspectiva ética, podemos traçar uma linha de diálogo que


nos ajuda a entender como a moral transcendente se complexifica, a ponto de
tanto criar e justificar boa parte de nossas instituições quanto afirmar grandes
sistemas de códigos rigidamente esboçados, como o nosso sistema de gênero.
Gayle Rubin (1986) define como sistema sexo/gênero todo um aparato sociocul­
tural que captura a diferença corporal a partir de moralidades que produzem
como efeito direto a disjunção binária entre os sujeitos, e todo um sistema de
valores hierarquizantes que definiu homens como senhores, mulheres como
objetos e a heterossexualidade cisgênera como destino universal. A autora
se debruça por sobre a questão de como foram possibilitadas as trocas entre
diferentes comunidades de modo a estabelecer as cidades e as civilizações e
lança a hipótese de que as trocas de mercadorias eram insuficientes para es­
tabelecer laços comunitários entre grupos diferentes. Como saída, ela propõe
que os laços foram estabelecidos com uma troca muito específica - a troca de
mulheres. Na construção teórica proposta por ela, ao mesmo tempo em que o
tabu do incesto é estabelecido, as alianças passam a ser definidas a partir de
casamentos arranjados como e com negociações de mercadorias. A divisão
sexual aqui é investida de sentidos que justificam a “natural” inferioridade e
submissão feminina, que fazem com que os homens chefes do grupo/família
sejam os mercadores e as mulheres desse grupo/família sejam as mercadorias.
Com a troca de mulheres, os laços entre os dois grupos se tornam muito mais
duradouros do que trocando outras mercadorias, pois se mantêm inclusive
pelas próximas gerações através dos descendentes em comum.
A imagem do tráfego/tráfico de mulheres desenhada por Gayle Rubin
aponta para o que ela chama de sistema sexo/gênero. Publicado originalmente
em 1975, o texto O tráfico de mulheres: notas para uma “economia política ” do
sexo se inscreve como importante arquivo da construção das epistemologias
feministas dos anos 70. Contudo, inclusive por ser atravessado pelos contextos
históricos que o possibilitam, o binômio sexo/gênero, que aparece sempre

69
como um par, aponta para uma diferença entre as duas esferas - cultura x bio­
logia. Haveria uma base biológica por sobre a qual a cultura se inscreve. A bio­
logia, apesar de ser entendida quase como um quadro em branco, informaria
a cultura sobre diferenças capturáveis na hierarquia rígida que separa homens
e mulheres. Os usos possíveis do corpo e da séxualidade como conjunto de
experimentações de si passam a ser regulados por uma série de moralidades
cujo objetivo é manter os lugares hierárquicos estabelecidos.
Judith Butler (2010) pensa desde a percepção de uma matriz de inteligi­
bilidade a legitimar as posições possíveis de alguém acionar desde dentro do
sistema que Rubin nomeou como sexo/gênero. Para Butler, há uma matriz, uma
certa linearidade estabelecida e constantemente cobrada entre as esferas de
sexo-gênero-desejo-práticas eróticas que produz como efeito um certo ideal
de humanidade calcado na distinção rígida e binária entre homens e mulheres.
Tal distinção, sustentada pelas normas estereotipadas de formas de ser univer­
salizadas, só se sustenta pelo acionamento do que a autora vai definir como
metafísica da substância. Há um curioso retorno (mas alguma vez saímos?)
a uma perspectiva transcendental, contudo o que agora é posto como para
além de nós mesmes é a própria “estrutura” de gênero. Butler aponta como
há um colamento entre um suposto sentido metafísico de gênero e a própria
identidade, marcando que alguém é de um determinado gênero, a partir de
ser de determinado sexo num conjunto de composições de subjetividade que
produzem a linearidade como efeito direto. Contudo, gênero aqui seria imposto
como princípio unificador das subjetividades e como medida a marcar nossos
lugares no mundo e nossas interações, com gente do “mesmo” gênero e do
gênero “oposto”.

A aparência de uma substância constante ou de um eu com gênero (o que o


psiquiatra Robert Stoller denomina um “núcleo de gênero”) se estabelece
dessa forma pela regulação de atributos que estão ao longo de linhas de
coerência culturalmente estabelecidas. A conseqüência é que o descobri­
mento dessa produção fictícia é condicionada pelo jogo desregulado de
atributos que se opõem a assimilação ao marco pré-fabricado de substan­
tivos primários e adjetivos subordinados. (BUTLER, 2010, p. 84).

Uma pista para o “ser” de um determinado gênero é perceber todo o con­


junto de regulações que se estabelecem às dinâmicas culturalmente estabe­
lecidas para cada sujeito. O status de metafísica dado à suposta substância
(e substantivos) de gênero se marca como verdade transcendente e inques­
tionável, semelhante ao código moral de Espinosa - um conjunto de regras e
julgamentos cujas causas e efeitos ignoramos. Descobrir a ficção pelo desvio

70
é tarefa ambígua, pois, ao desviar, os efeitos da regulação se convertem em
violência corretiva, tentando produzir a recaptura e o realinhamento das pes­
soas desviantes pelo ato de violência em suas múltiplas faces. Não se pode
deixar de mencionar como aqui no Brasil há mesmo hoje certo projeto de uma
clínica que se dispõe a “curar” pessoas dissidentes, numa pobre atualização
do mesmo discurso da norma cisheterossexual já apontada por Butler. “Cura”
aqui é apenas sinônimo de aniquilamento e parte do mesmo campo semântico
que produz os altos índices de assassinatos de pessoas LGBTI no Brasil.
Pensar a moralidade como a composição dos códigos transcendentes nos
ajuda a perceber como tais códigos seguem se atualizando mesmo para além
dos cânones religiosos. Na análise Butleriana, ao fim, quando falamos gênero,
falamos apenas de sua própria regulação, posto que falamos e visualizamos
apenas os efeitos da norma incisiva a recortar corpos e imagens de si suposta­
mente estratificadas e endurecidas num sistema binário. Podemos, então, em
um diálogo direto, entender como as regulações necessitam das ferramentas
morais, e, por conseqüência, só se sustentam desde um sistema de ação no
mundo que pressupõe a transcendência como modelo. O Deus pai todo po­
deroso que impõe regras inquestionáveis ao seu bel prazer até pode sair do
palco, mas deixa suas regras talhadas em pedras muito bem estabelecidas
em esconderijos estratégicos, como nos discursos sobre natureza, biologia,
verdade e normalidade.

Pista 3 - Armar hieróglifos com pedaços de tudo


Eu sempre quis isso mesmo: armar hieróglifos
com pedaços de tudo, restos de filmes, gestos de rua,
gravações de rádio, fragmentos de TV.
(FAUSTO FAWCETT, Odalista andróide)

Corpo é componente multifacetado e comporta tanto suas dimensões


materiais (as formas) quanto o conjunto de linhas que se cruzam e se movem
continuamente (as forças). Há uma complexa imagem trabalhada por Deleuze e
Guattari numa tentativa de composição sobre o corpo que comporte em si toda
a complexa gama de causalidades, inferências e interpelações semiótico-po-
líticas que não são nunca opostas às dinâmicas da materialidade. Na filosofia
Deleuze-Guattari, corpo sem órgãos é a metáfora lançada para pensar sobre
como construímos corpos com dimensões para além das próprias capturas

71
engessadas que nos tentam fixar, imóveis, num determinado lugar de sujeito.
Rupturas possíveis partem de um plano de imanência para a delineação de um
plano de consistência, e corpo sem órgãos se inscreve nos entremeios, como
composição rizomática efeito de linhas múltiplas. Sendo uma construção que
não literaliza na experiência do corpo vivido, a perspectiva de corpo sem órgãos
(CsO) se compõe pelo desmoronamento e fuga das camadas de sedimenta­
ção que se acumulam sobre ele próprio, criando estratos duros. Em suma,
três estratificações são aqui elementos de atenção justa mente porque seriam
aquelas que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a
subjetivação. Como efeito, o organismo, enquanto força de estratificação, nos
amarra a uma organização, um determinado modo de organização do corpo
e suas zonas fixado em uma forma. Significância, nessa perspectiva, produz
determinadas interpretações, ao passo que subjetivação é o movimento de
produção de sujeitos a partir de determinadas sujeições.
Na composição conceituai do CsO, estar atenta às camadas de estratifica­
ções que colam no nosso corpo, produzindo determinados modos de estar no
mundo, é tarefa fundamental do exercício de análise. Tarefa que necessaria­
mente se atenta para as linhas complexamente emaranhadas advindas das di­
nâmicas políticas, sociais, históricas e econômicas também. Nessa perspectiva,
nos interessa pensar como gênero pode também ser entendido como camada
de estratificação a colar sobre o corpo, produzindo a tríade organismo-signifi-
cância-subjetivação. Butler (2010) aqui nos é valiosa ao pensar como gênero
ao fim se traduz em seus próprios mecanismos regulatórios, numa composi­
ção onde o corpo generificado aponta já necessariamente para camadas de
estratificações supostamente fixas. Como criar para si um corpo sem órgãos
é o irônico título do capítulo onde Deleuze e Guattari apresentam de uma
forma mais alongada o conceito do CsO. Para eles, a tarefa da esquizoanálise
atravessaria também entender os movimentos de dissolução e recomposição
contínua de estratificações.
Entender gênero como mais um dos estratos que colam e constroem o
corpo convida a pensar tanto sobre sua artificialidade quanto sobre suas pos­
síveis linhas de fuga. CsO pode nos ser metáfora-convite a atentar para as ter-
ritorialidades estabelecidas como imutáveis, compondo corpos endurecidos
pelas normas que os moldam e que impossibilitam a passagem de forças que
produzam outras formas de habitar o mundo.
Corpo sem órgão não é inimigo dos órgãos em si, mas dos organismos
enquanto determinada forma de organização do e sobre o corpo. Desse modo,

72
construir ironicamente corpos sem órgãos pode nos aproximar politicamente
da proposta do feminismo ciborgue de Donna Haraway.
Ao construir uma teoria pensando as subjetividades contemporâneas,
Donna Haraway se esforça para produzir, segundo a própria autora, um mito
irônico. Entendendo que abandonar grandes narrativas transcendentais po­
deria nos ser mais útil para entender as relações que se colocam do final do
século passado para cá, a autora estabelece uma certa política de visão que
produz o ciborgue como imagem-modelo dos nossos modos atuais de sujeição.
Chama-se aqui atenção para como as camadas de estratificação que se­
dimentam o corpo, produzindo sujeitos contemporâneos como efeito direto,
são compostas por relações múltiplas dificilmente capturáveis em miradas
pré-estabelecidas em mitos universalizantes e individualizados. O ciborgue
como metáfora fala de determinado conjunto de acoplamentos políticos tec­
nológicos que integra parte considerável de nossas possibilidades de vida
singular e coletiva. Longe do mito da biologia, o corpo ciborgue é ele próprio
inseparável da tecnologia de melhoramentos e intervenções artificiais. Natu­
reza X Cultura se torna um velho conto que dizemos às nossas crianças que
iniciam seus trajetos nas ciências humanas e na epistemologia do pós-humano
de Haraway. Os velhos pares dicotômicos dão lugar a uma complexa rede de
circuitos sem possível linearidade - circuitos rizomas.

Em certo sentido o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça


um apelo a um estado original, de uma “narrativa de origem”, no senti­
do ocidental, o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue
é também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação
ocidental que postulam a subjetivação abstrata, que prefiguram um eu
último, libertado afinal, de toda dependência - um homem no espaço.
(HARAWAY, 2009, p.38).

Aqui nossa odalisca androide, encontrada em sua mal disfarçada con-


temporaneidade precária, ganha uma forma provisória no mito ciborgue. Se
subjetividade fala também de dinâmicas de sujeição, como separar os novelos
de componentes que, juntos, tentam capturar a odalisca num corpo-destino
mulher? Cisgeneridade é dispositivo a somar, senão efeito direto de estrati­
ficações por sobre o corpo. Linha de fuga, desumanizada em suas origens, a
humanização é em si um dos grandes monolitos coloniais a produzir orga­
nismos. O feminismo não é um humanismo, diz Preciado (2014) ao lembrar
que humanismo é em muitas medidas apenas uma parte do grande sonho
europeu de dominação e expansão de si. Se humanizar, parecer com os hu­
manos corretos não é utopia para a odalisca androide-ciborgue. Apagar seus

73
componentes artificiais na tentativa vã de retornara alguma natureza é tarefa
inviável, e a política ciborgue como estratégia de sobrevivência passa inclusive
pela denúncia dessa suposta natureza.

Diferentemente das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue


não espera que seu pai vá salvá-lo por meio da restauração do paraíso,
isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de
sua complemeritação em um todo, uma cidade e um cosmos acabados. 0
ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo de família
orgânica mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. 0 ciborgue não re­
conheceria o Jardim do Éden; ele não é feito de barro e não pode retornar
ao pó (HARAWAY, 2009, p. 39-40).

Concluindo - Subjetividades ciborgue


e a clínica sem paredes

Eu sou a transmutação de alguma coisa eletrônica.


Uma notícia de saturno esquecida,
uma pulseira de temperaturas,
um manequim mutilado,
uma odalisca androide que tinha uma grande dor,
que improvisou com restos de cinema e com seu amor,
um disco voador.
(FAUSTO FAWCETT, Odalista andróide)

Armar hieróglifos com pedaços de tudo nos faz pensar, mais uma vez,
sobre as variadas linhas que se acoplam na produção de subjetividades. Nas li­
nhas de segmentação, por onde passam as intensidades moleculares, qualquer
coisa é passível de produzir efeitos de intensidades desestabilizadoras. Por
alguns momentos incapturáveis pelas palavras anteriores, a pista que evoca,
quando um encontro com algo se compõe conosco e forma um acontecimento,
é a pergunta “o que se passou?” (DELEUZE e GUATTARI, 2012). Algo se passa em
alguns momentos por vezes nomeados como epifania, e as fronteiras do mun­
do se remodelam, ainda que por um breve instante cuja duração se desdobra
o suficiente para produzir o espanto como matéria de vida. Clarice Lispector
nos empresta imagens desse espanto-linha de desorganização dos territórios,
e o conto “Tentação” aponta para uma menina (devir odalisca androide?)
sentada numa calçada quente, até que o encontro fortuito e passageiro com

74
um basset ruivo, passeando com sua dona, a desorganiza “numa mudez que
nem pai nem mãe entenderiam”. 0 que se passou? Afetos pediram passagem,
num campo molecular produzindo segmentações em terrenos supostamente
estáveis. O que se passou? Nem ela é capaz de dizer. Nas mãos, apenas o seu
espanto com o encontro e com sua infância impossível capturada na força com
que ela agarrava nas mãos a bolsa velha de senhora com alças quebradas.
CsO, como campo de movimentações moleculares, fala de uma dimen­
são que se move a todo momento. Os estratos colados por cima, apesar da
sua tentativa de fixidez, são sempre expostos a rachaduras de intensidades
percebidas pelo espanto “o que se passou?” Crer que mesmo as normas de
gênero são grandes blocos monolíticos é tão ineficaz quanto raso, pois apaga
as fissuras, as recomposições, os rearranjos e as micropolíticas (dinâmicas
moleculares) que a todo momento pedem passagem. Temos, então, como jogo
teórico-político-clínico a perspectiva de compor duas direções na mirada: com­
posições molares/macropolíticas e composições moleculares/micropolíticas.
Em outros termos, observar a violência e a rigidez das normas regulatórias,
contudo sem esquecer de atentar também para os curtos-circuitos, pirata­
rias, desobediências e usos irônicos. Não se trata, contudo, de uma dicotomia
marcada pelo disjuntivo ou: ou macro ou micropolítica. Ambas atravessam os
estratos continuamente, em direções variadas e ao mesmo tempo.
Pensar subjetividade desde a filosofia do ciborgue de Donna Haraway
convoca a perceber como o tempo histórico, as normas regulatórias, a cultura
e todos os seus artefatos tecnomidiáticos nos atravessam compondo corpos-
sujeitos que se agenciam de formas absolutamente múltiplas.

O principal problema com os ciborgues é, obviamente, que eles são filhos


ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não men­
cionar o socialismo de estado. Mas os filhos ilegítimos são, com frequência.
Extremamente infiéis às suas origens. Seus pais são, afinal, descartáveis.
(HARAWAY, 2009, p. 40).

Filhos ilegítimos de toda a produção do século vinte, o mito da origem


nos ajuda a perceber o caráter artificial das normas que nos fundam. Ficções,
podemos pesar como lente conceituai política a nos ajudar a ver. Mas o fato
de algo ser ficcional não significa que não exista. Muito pelo contrário, é só
a partir das ficções normativas que gênero se estabelece como verdade; só a
partir das ficções de Estado que os aparelhos repressivos seguem existindo
como política a produzir inimigos (MOMBAÇA, 2016); e só a partir de uma certa
ficção de clínica que entendemos o trabalho com subjetividade como elemento

75
privativo e descolado de todos os contextos. Entender como as sedimentações
colam por sobre o corpo e o constroem desde as normas generificadas nos é
indispensável no trabalho clínico como dispositivo de amplificação que con­
voca a clínica a se alargar sempre para além de suas próprias paredes.
V

76
referências

BUTLER, J. El gênero em disputa: el feminismo y la subversion de la identidade. Barcelona:


Espasa Libros, 2010.
DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 3 São Paulo: Ed. 34,2012.
FAWCETT, F. Odalisca andróide. Zebeto. 1990. Disponível em: http://www.zebeto.com.
br/2017/09/28/odalisca-androide/#.Xlec-yhKjcc. Acesso em: 20 ago 2020.
HARAWAY, D. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século
XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; TADEU, T. Antropologia do Ciborgue: As Vertigens do Pós-
humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 32-118.
LISPECTOR, C. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MOMBAÇA, J. Lauren Olamina e eu nos portõesdofimdo mundo. 2016a. Disponível em: https://issuu.
com/amilcarpacker/docs/caderno_oip_6_digital Acesso em 28/11/20181. Acesso em: 9 ago. 2020.
MOMBAÇA, J. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência.
2016b. Disponível em https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a__uma_redistribuic__ a______o_
da_vi. Acesso em: 9 ago. 2020.
PRECIADO, P. B. O feminismo não é um humanismo. O Povo, 2014. Disponível em: https://
www20.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/ll/24/noticiasfilosofiapop,3352134/0-
feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml. Acesso em: 20 ago 2020.
RAUTER, C. Clínica Transdisciplinar: Afirmação da multiplicidade em Deleuze/Spinoza. Trágica,
v. 8, n. 1, p. 45-56,2015.
RUBIN, G. El tráfico de mujeres: notas sobre la economia política dei sexo. Nueva Antropologia,
v. 7, n. 30, p. 157-209,1986.
VENEGAS, L.; CABELLO, C.; DIAZ, J. £Cuántas hijas de perra son necesarias para hacer estallar
el mundo? Escrituras transgénicas en homenaje a Hija de Perra. Punto Gênero, n. 4, p. 17-22,
dez. 2014.

77
A METAFÍSICA GENERIFICADA
DA ESCUTA PSICANALÍTICA
Daniel Kveller
Henrique Caetano Nardi
A psicanálise é uma teoria feminista que
não chegou a se configurar plenamente como tal.
(Gayle Rubin)

Dentre os desafios lançados pelos novos ativismos de gênero e sexuali­


dade à psicanálise, a demanda por “analistas seguras/os” é certamente um
dos mais polêmicos. A lógica em jogo é a mesma que orienta a formação, em
contextos de militância, de espaços afastados, ou pelo menos alertas, em re­
lação às normas patriarcais e heteronormativas que estruturam a sociedade
de maneira geral. No contexto clínico, um/a analista segura/o seria aquela/e
que está capacitada/o para atender pacientes estigmatizadas/os ou margi-
nalizadas/os pela sua identidade de gênero ou orientação sexual. Ela/e teria
o conhecimento e/ou experiência necessária para reconhecer os efeitos sub­
jetivos da violência e da discriminação, e assim evitar que essas práticas se
reproduzam dentro do contexto de atendimento. Em alguns casos, a busca por
profissionais seguras/os se baseia na própria identidade da/o analista, como
quando pacientes LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais,
Intersexuais e outras formas de identidade ou expressões da sexualidade e do
gênero, como assexuais e não-bináries, por exemplo) buscam profissionais
que também se identifiquem por alguma das letras da sigla.
Do ponto de vista psicanalítico, demandas como essa são no mínimo con­
troversas. O que significa para a/o analista garantir re(conhecer) o lugar de
onde fala o sujeito? - questionam Beatriz Santos e Elsa Polverel (2016). Não
seria a análise precisamente um processo em que a singularidade radical de
cada sujeito desestabiliza qualquer possível encapsulamento identitário? Pode­
ríamos afirmar com segurança que um/a psicanalista identificada/o como gay
ou trans está imune à reprodução de condutas homo, lesbo, bi ou transfóbicas?
Além disso, seria possível garantir que um processo de análise, marcado pelo
encontro com lembranças traumáticas e por desejos inconscientes nem sempre
adequados do ponto de vista moral, seja um espaço “seguro”?
Tais questionamentos são fundamentais para sublinharas complexidades
do encontro entre as políticas de identidade e a clínica psicanalítica. Entre­
tanto, parecem deixar de lado o fato de que muitas vezes são as/os próprias/
os psicanalistas que acionam identidades de gênero e sexuais quando tratam
do encaminhamento de pacientes a colegas. Quem circula por espaços de
formação psi e clínicas de atendimento psicanalítico, seja nos seus espaços
formais ou pelos corredores, certamente já presenciou situações em que o
gênero aparece como critério decisivo. Para o paciente X, seria melhor um

80
analista homem ou uma analista mulher? Essa pergunta, embora possa ser
justificada por elementos prévios do caso em questão, é, fundamentalmente,
uma antecipação de possíveis efeitos transferenciais baseada em expectativas
relacionadas ao gênero. Ela se baseia em premissas muito similares à busca por
analistas seguras/os, mas é muito mais comum e muito menos questionada,
sendo por isso, a nosso ver, muito mais insidiosa.
Neste capítulo, questionamos o que nos parece ser um posicionamento
contraditório da psicanálise: por um lado, uma atitude de resistência em re­
lação aos debates de gênero e sexualidade, e, por outro, uma pressuposição
naturalizada do gênero, em suas práticas, através de uma metafísica26 sustenta­
da no a priori da diferença sexual. Ao apontarmos alguns desses pressupostos,
sugerimos que o gênero só se torna um problema para a psicanálise quando
desafia os rituais heteronormativos que atravessam seu funcionamento coti­
diano. Nesse sentido, argumentamos que, se a psicanálise almeja sustentar
uma ética realmente não-identitária, deve começar examinando em que me­
dida identidades, expectativas e preconceitos relacionados ao gênero já estão
operando na sua teoria e prática de maneira naturalizada.

A metafísica generificada da psicanálise


A recente abertura da comunidade psicanalítica brasileira ao debate so­
bre questões envolvendo diversidade sexual e de gênero - como as transi-
dentidades e a adoção por casais homoparentais, por exemplo - geralmente
se apresenta como uma espécie de atualização teórica e temática. Eventos,
cursos e seminários são divulgados frequentemente por meio de perguntas
tais como: Como a psicanálise deve se posicionar diante das novas formas de
sexualidade? Como a psicanálise pode entender os novos modelos familiares
surgidos nos últimos anos? Embora reconheçamos a pertinência dessa aber­
tura - que é certamente resultado de disputas internas dentro das instituições
de psicanálise -, é importante que consideremos um perigo posto de maneira

26 Entendemos a metafísica, a partir de Henri Bergson (2009/1938), como a ciência (ou o pensamento)
que pressupõe uma neutralidade em relação às configurações históricas, culturais e sociais que marcam
tanto a teoria como as práticas individuais e institucionais que a materializam no cotidiano. No caso des­
te ensaio, seria pensar a psicanálise como não atravessada pelas relações de poder que marcaram sua
emergência. Essas relações de poder, que são encobertas pela metafísica, são, ao mesmo tempo, negadas
e substancializadas, guiando assim o pensamento, a teoria e a escuta psicanalítica. A metafísica generi-
ficada remete à metafísica da substância, que apaga a genealogia da emergência da ideia de um corpo
sexuado, naturalizando assim o que entendemos por sexo, esquecendo que ele é desde sempre gênero,
tal como lembrado por Judith Butler (que toma o conceito de Nietzsche), já na obra Gender Trouble (1990).

81
.

colateral pelo modo como é expressa. Do ponto de vista histórico e antropoló­


gico, não há nada de propriamente novo nessas “novas sexualidades” e nesses
“novos arranjos familiares”. A novidade é o reconhecimento legal e cultural da
legitimidade de existências que desafiam a norma heterossexual e cisgênera.
Se a psicanálise pode enxergá-las apenas agora1} então a pergunta deveria ser
mais sobre a invisibilidade dessas categorias nos radares psicanalíticos (ou sua
visibilização guiada exclusivamente pelo esquadrinhamento patologizante) e
a influência de moralismos na prática do dia a dia.
Seguindo a esteira desse pensamento, poderíamos dizerque as questões
de gênero estão presentes desde o momento fundacional da psicanálise. Basta
lembrarmos que a análise de Freud e Breuer (1893/1996) do sofrimento das
histéricas está intimamente relacionada à repressão e ao controle da sexuali­
dade feminina burguesa característica dos costumes vitorianos da passagem
do século XiX ao XX. Uma das primeiras hipóteses publicadas por Freud era que
os sintomas histéricos funcionavam como uma espécie de retorno traumático
de abusos sexuais sofridos por suas pacientes na infância ou juventude que,
após um período de latência, eram desencadeados por alguma nova situação
que as remetia à primeira.
Freud logo abandonou essa teoria. Seus interesses se deslocaram desde a
busca por uma etiologia “real” da neurose para uma análise das fantasias em
jogo no trabalho inconsciente. Os atravessamentos de gênero mesmo assim
se mantiveram presentes, e um dos exemplos mais impressionantes de seus
efeitos aparecem décadas depois, nas tentativas de assinalar as especificidades
do complexo de Édipo feminino em oposição ao complexo de Édipo masculino.
Em texto publicado em 1924, por exemplo, Freud afirma:

O complexo de Édipo da menina é muito mais simples do que o do pe­


queno portador de pênis; em minha experiência, raramente ele vai além
de assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude feminina para com o pai.
A renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de
compensação. Ela desliza - ao longo da linha de uma equação simbólica
- do pênis para um bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo,
mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente -
dar-lhe um filho. Tem-se a impressão de que o complexo de Édipo é então
gradativamente abandonado de vez que esse desejo jamais se realiza. Os
dois desejos - possuir um pênis e um filho - permanecem fortemente ca-
texizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino
para seu papel posterior (FREUD, 1924/1996 p. 198).

82
0 que se estabelece nesse trecho, com efeito, é uma teoria psicanalítica
do gênero. Freud está interessado em entender como um sujeito a princípio
sem gênero definido torna-se uma menina e o que isso implica do ponto de
vista do seu desejo. A resposta, baseada em sua “experiência”, leva-o à con­
cepção de um processo por meio do qual as disposições subjetivas de cada
indivíduo, marcada por uma bissexualidade constitutiva, se “organizam” a
partir da dinâmica de identificação, renúncia e desejo característica da trian­
gulação edípica. Com raras exceções, diz “o pai” da psicanálise, a incorporação
de uma identidade feminina tem como ponto de partida o reconhecimento da
ausência do pênis (sexo biológico), que motiva um processo de identificação
com a mãe (gênero feminino) e, este, por sua vez, conduz ao desejo de ter um
filho do pai (orientação heterossexual do desejo).
0 que inquietava Freud naquele momento é principalmente a dissolução
do complexo de Édipo. No caso dos meninos, o fim se dá com o complexo de
castração, mas nas meninas o complexo de castração antecede o complexo
de Édipo. Para elas, portanto, resta que o complexo de Édipo seja lentamente
abandonado ou reprimido; em ambos os casos, os efeitos podem persistir com
ênfase acentuada no funcionamento mental normal das mulheres. Sobre isso,
diz Freud (1925/1996) em outro texto escrito mais ou menos na mesma época:
“não posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as
mulheres, o nível daquilo que é eticamente normal, é diferente do que ele é nos
homens” (p. 286, grifo nosso). Como devemos interpretar a hesitação de Freud
senão como reconhecimento dos possíveis efeitos culturais e sociais de sua
hipótese? Não seria esse momento de hesitação - em que a metapsicologia e a
crítica social parecem se aproximar-a oportunidade para sugerimos uma outra
hipótese, a hipótese de que é justamente o atravessamento da inferiorização
social das mulheres na “experiência” clínica de Freud o que o leva a teorizara
constituição psíquica feminina a partir de um déficit em relação à masculina?
Não há nada de novo na hipótese que propomos. Ela nos parece implí­
cita em um dos mais importantes textos associados aos estudos de gênero,
O Tráfico de Mulheres, de Gayle Rubin (2017), quando a autora afirma que “a
psicanálise é uma teoria feminista que não chegou a se configurar plenamente
como tal” (RUBIN, 2017, p. 36). O que Rubin sugere não é que Freud estava
necessariamente errado quando escreveu sobre bissexualidade ou sobre o
complexo de Édipo, mas que lhe faltou articular os insights clínicos sobre o
inconsciente a uma análise mais ampla sobre a construção e regulação de
gênero na sociedade em que vivia. A partir dessa contextualização, podería­
mos dizer que a “inveja do pênis” e o “rebaixamento ético das mulheres” não

83
são fenômenos espontâneos de um desenvolvimento psicossexual feminino
“normal”, mas sintomas do sexismo naturalizado socialmente. Isso não dissol­
ve a importância analítica desses conceitos; eles ainda podem ser úteis para
entendermos como a regulação de gênero depende - e, portanto, reitera - a
produção de subjetividade das mulheres comdvalgo da ordem de uma infe­
rioridade em relação aos homens.
Se a inveja do pênis é a resposta teórica de Freud à inferioridade que
reconhece nas mulheres de seu tempo, a angústia de castração e a neurose
obsessiva são os retratos oferecidos por ele para o drama da masculinidade.
Neste ponto, o mito de fundação da cultura explorado em Totem e Tabu (FREUD,
1913 [1912-13]) pode ser de ajuda. Como sabemos, essa história começa com
um pai tirano que detém o controle de todas as mulheres de sua tribo. Um belo
dia, os irmãos se unem, matam o pai, devoram-no em um banquete canibal e
erigem um totem como lembrança do ato parricida e como alerta para que se
evite que o lugar do pai seja outra vez preenchido. Nesse mito, que pressupõe
que os homens não tenham desejo por outros homens e que as mulheres não
tenham qualquer desejo, os irmãos são atormentados obsessivamente pela
aspiração interna que cada um nutre de ocupar a antiga posição do pai, agora
proibida, pela necessidade de renunciar a essa vontade em prol da vida co­
munitária, e pelo medo de ser outra vez subjugado caso um dos outros irmãos
viole as novas regras acordadas. Embora aqui não encontremos um momen­
to de hesitação, podemos colocar ao texto freudiano um questionamento
análogo ao que dirigimos ao complexo de Édipo feminino: em que medida
podemos pensar Totem e Tabu não como um mito da fundação da Cultura,
com C maiúsculo, mas como mito da fundação do patriarcado tal como Freud
o viveu em sua época?
Ponto fundamental na concepção psicanalítica da masculinidade é a rela­
ção estabelecida por Freud entre homossexualidade e paranoia. Na sua análise
sobre o caso Schreber, Freud (1911/1996) argumenta que a paranoia persecu­
tor! a tem uma relação com a repressão do componente homossexual da libido:
“tenderíamos a dizer que caracteristicamente paranoico na doença foi o fato
de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagido
precisa mente com delírios de perseguição dessa espécie” (FREDU, 1911/1996,
p. 67). A paranoia, nesse sentido, é uma manifestação disfarçada de inclinação
em direção a uma pessoa do mesmo sexo. Para embasaressa hipótese, Freud
resume brevemente uma teoria do desenvolvimento psicossexual, em que
a escolha de objeto homossexual figura como etapa a ser ultrapassada em
direção à aquisição da heterossexualidade. Pode-se presumir, a partir deste

84
modelo, que “as pessoas que se tomam homossexuais manifestas mais tarde
nunca se emanciparam (...) da condição obrigatória de que o objeto de sua
escolha deve possuir órgãos genitais como os seus” (Ibid., p. 69). É preciso
destacar que no caso das pessoas que chegam ao momento da escolha objetai
também se mantêm as tendências homossexuais, mas elas são “desviadas
de seu objetivo sexual e aplicadas a novas utilizações (...), contribuindo as­
sim como um fator erótico para a amizade e a camaradagem, para o espirit
de corps e o amor à humanidade em geral” (Ibid., p. 69). Onze anos depois,
com a publicação de outro texto em que explora as relações neuróticas entre
paranoia e homossexualidade, Freud (1922/1996) reitera essa hipótese: “à luz
da psicanálise, estamos acostumados a considerar o sentimento social como
uma sublimação de atitudes homossexuais para com objetos” (Ibid., p. 247).
Para situarmos o raciocínio de Freud historicamente, é preciso lembrar
que tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade emergem como
conceitos no final do século XIX. De acordo com Foucault (1988), é apenas neste
momento que a sexualidade deixa de estar relacionada hegemonicamente a
uma prática para se tornar uma verdade atrelada à essência de cada indivíduo:
“o homossexual do século XIX torna-se uma personagem (...) nada do que
ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 50).
Não por acaso, também mais ou menos nessa mesma época, Eve Sedgwick
(1985) assinala uma mudança estrutural importante nos laços “homosso-
ciais” masculinos; uma mudança no continuum entre desejo e sociabilidade
que permeiam laços de amizade, mentoria, lealdade, rivalidade etc. Com o
surgimento do conceito de homossexualidade como uma verdade do desejo,
como uma degenerescência patológica que pode ser camuflada, o espectro
da “inversão” passa a assombrar todos os homens, mesmo que não tenham
práticas sexuais com outros homens. É preciso, a partir de então, evitar reite-
radamente qualquer suspeita, o que demanda que o estabelecimento de laços
de amizade e afeto entre si seja acompanhado por uma repulsa explícita - que
chega muitas vezes à violência física - à homossexualidade e à feminilidade.
Frente à tendência patologizante dos escritos freudianos, o anseio em
descartar suas reflexões pode ser muito tentador. Mas isso acabaria ofuscando
um insight fundamental que o próprio Freud, hipnotizado demais pelo brilho
sedutor da psicopatologia individual, não conseguiu explorar com a devida
atenção: não é apenas o sujeito que se torna paranoico no processo de re­
pressão da homossexualidade, mas a própria cultura que se torna paranoica
ao construir seus laços de coletividade e camaradagem na dependência des­
sa repressão. O problema do texto de Freud não é exatamente a associação

85
entre homossexualidade e paranoia, mas seu caráter anti-homossexual, que
poderia muito bem, como assinala Sedgwick (1985), ser anti-homofobia. Para
isso, Freud precisaria desestabilizar a universalidade que atribui à “amizade
e a camaradagem, para o espirit de corps e o amor à humanidade em geral”,
entendendo-a como um modo de relação bastante específica do desejo homos-
social masculino, baseado no “pânico homossexual” produzido na emergência
do dispositivo da sexualidade (SEDGWICK, 1985, p. 89). Isso não só evitaria a
formulação de uma teoria patologizante, mas também forneceria uma chave
importante para pensarmos a sobreposição entre homoerotismo e homofobia
que estrutura a sociabilidade masculina em nossa sociedade.
Com isso em mente, podemos entender porque Juciit:' Butler (1990) su­
gere que deveria haver outro tabu anterior ao tabu do incesto na constituição
psíquica e do laço social. Lembremos que, em Totem e Tabu, quando Freud
(1913 [1912-13]) define como fundador da cultura um conflito entre pai e fithos
pelo controle das mulheres, um conflito que se mantém de outras formas entre
os irmãos após a morte do pai, ele reitera o papel social das mulheres como
objetos de troca. Essa naturalização simultaneamente depende e é necessária
para que se oculte a carga libidinal que estrutura o laço entre os homens. Do
ponto de vista da constituição psíquica de cada sujeito, é preciso destacar que
a bissexualidade psíquica “universal” mencionada por Freud não correspon­
de ao que entenderíamos hoje por esse termo; trata-se melhor, como coloca
Butler (1990), de uma potência que o sujeito guarda de identificar-se com os
dois gêneros, algo como um “hermafroditismo” psíquico. Seja qual for o gênero
escolhido como identificação, no entanto, o encaminhamento do desejo em
direção ao gênero oposto é o caminho normal e mais desejável da triangulação
edípica, o que pressupõe que, em um momento anterior, tenha sido imposto
outro tabu, o tabu da homossexualidade. Em resumo, o que a desconsidera­
ção de um tabu da homossexualidade revela é a pressuposição freudiana de
uma heterossexualidade “natural”, o que acontece tanto no seu modelo da
constituição psíquica quanto na sua hipótese sobre o nascimento da cultura.
Muitos psicanalistas lacanianos reconhecem esses impasses. Eles argu­
mentam que o contato com a antropologia, as artes e a história não haveria
sido suficiente para Freud perceber os vestígios de um biologismo essencia-
lista em suas teorias, mas Lacan, sim, teria conseguido resolver o problema
no diálogo com a lingüística estrutural e com a lógica. Em geral, destacam-se
alguns temas específicos do ensino lacaniano quando se entra nessa discus­
são: a transição de um discurso centrado no Édipo para um discurso centra-

86
do no complexo de castração27; a transição de um foco na anatomia para a
compreensão da diferença sexual como uma diferença lógica, sintetizável em
fórmulas matemáticas que nada teriam a ver com o sexo anatômico; e, por
fim, a compreensão da díade masculino/feminino não como identidades ou
papéis de gênero, mas como modos de gozo que podem se articular, porém não
estão necessariamente presos ao que entendemos convencionalmente como
homens e mulheres (LACAN, 1972-1973/2008). Para os lacanianos, portanto,
os problemas de Freud podem ser resolvidos a partir de uma interpretação
estrutural do complexo de Édipo e do mito da horda primeva, em que o impor­
tante são as funções desempenhadas mais do que a identidade dos agentes
que as desempenham em determinados contextos históricos e geográficos.
Se a formalização das categorias psicanalíticas efetiva mente as esvazia
de seus conteúdos historicamente situados, essa é uma longa e complexa
discussão28. De todo modo, parece-nos bastante claro que, no dia a dia da prá­
tica clínica e do funcionamento institucional das sociedades de psicanálise, a
diferença sexual muito facilmente volta a significar sexo biológico. A evidência
mais óbvia disso são os diversos trabalhos lacanianos que equiparam a transi-
dentidade à psicose, como os desenvolvidos por Millot (1992) e Frignet (2000).
A base desse argumento se dá justamente pela ideia de que as pessoas trans
querem transformar seus órgãos genitais, e isso seria uma forma de negação
da diferença sexual associada à forclusão do nome-do-pai. Vê-se assim como a
diferença sexual, em desacordo com a própria rigorosidade da reflexão teórica
lacaniana, é novamente reduzida à diferença ordinária entre pênis e vagina.
Recentemente, essa discussão voltou a causar polêmica no meio lacaniano
com a fala de Paul Preciado na 49a Jornada da Escola da Causa Freudiana, em
Paris. Reproduzimos um dos trechos que fazem menção específica à questão
da diferença sexual:

Antes de mais nada, senhoras e senhores e outros [risos], o regime da dife­


rença sexual que vocês conhecem e consideram como universal — e qua­
se metafísico — sobre o qual se assentam e se articulam todas as teorias
psicanalíticas, não é uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica
fundadora do inconsciente. Não passa de uma epistemologia do ser vivo,
uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão
coletiva das suas energias reprodutivas. Trata-se de uma epistemologia
histórica que se constrói em relação com uma taxonomia racial, no período

27 “Aquilo que nós propomos é a análise do complexo de Édipo como sendo um sonho de Freud” (LACAN,
1969-70/1992, p. 135).
28 Ver a discussão entre Butler, Laclau e Zizek (2000).

87
de desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na
segunda metade do século XIX (PRECIADO, 2019, p. 12).

Outro exemplo politicamente significativo\em que diferença sexual é re­


duzida à diferença anatômica ou de gênero é a associação clínica e teórica
entre a homossexualidade e a perversão29, associação quejustificou a posição
de psicanalistas lacanianos franceses contra o PACS (Pacto Civil de Solidarie­
dade30, equivalente ao contrato de união estável no Brasil) nos anos noventa.
Fora isso, um exemplo mais corriqueiro é o que apresentamos no início deste
ensaio, o encaminhamento de pacientes e a busca de terapeutas conforme
critérios de gênero. O que vemos nesses três exemplos é que a promessa laca-
niana de esvaziar as categorias psicanalíticas talvez tenha deixado ainda mais
forte, porque criptografado em uma metafísica generificada, o seu conteúdo
historicamente localizável.

Os limites da psicanálise: considerações finais


É comum que psicanalistas reajam às críticas dos estudos feministas, de
gênero e queer de maneira defensiva, acusando seus interlocutores de lerem
Freud e Lacan superficialmente e, portanto, de serem incapazes de reconhe­
cer o particular potencial revolucionário guardados na complexidade de seus
escritos e seminários. Algumas vezes, é preciso reconhecer, estão de fato cer­
tos. Há muitas críticas dirigidas à psicanálise de maneira reducionista e até
mesmo superficial. Porém, ao assumir esse tipo de defesa inquestionável da
psicanálise, reforça-se a ideia bastante problemática de que apenas as/os
psicanalistas realmente entendem Freud e Lacan e de que todas as respostas
às críticas se encontram nas suas próprias obras, se analisadas com cuidado
e parcimônia. Essa ideia é problemática porque não existem consensos sobre
uma leitura correta de Freud e Lacan nem mesmo dentro das próprias socie-

28 Para uma análise mais ampla da economia moral da perversão na psicanálise, ver Cunha (2016).
30A lei que instaurou o PACS, em 1999, sofreu um duro ataque de psicanalistas de várias correntes, que vão
desde o padre e psicanalista homofóbico Tony Anatrella até o genro de Lacan e represèntante maior da
Escola da Causa Freudiana, Jacques-Alain Miller (que revê sua posição posteriormente) e Charles Melman,
da Associação Freudiana Internacional. Um debate que ficou famoso na época do PACS foi aquele prota­
gonizado pela filósofa Sylviane Agacinski e Judith Butler sobre naturalização da diferença sexual como
fundamento da sociedade, retomando as Estruturas Elementares do Parentesco, de Lévi-Strauss (que irá
dizer posteriormente, ele mesmo, que não seriam aplicáveis às sociedades contemporâneas). Para um
detalhamento desse debate, ver Judith Butler (2003) e Élisabeth Roudinesco (2002).

88
dades de psicanálise. Indícios disso são as intermináveis discussões sobre as
traduções de Freud e as disputas em torno do legado lacaniano.

Nesse sentido, gostaríamos de sugerir que os problemas de gênero na


psicanálise não se resolvem nem com a formalização da teoria (embora isso
não queira dizer que a formalização não possa ajudar) nem na busca por um
suposto entendimento mais verdadeiro de Freud e Lacan (embora isso não
queira dizer que não se deva discutir rigorosamente seus escritos). Parece-nos,
antes, que é mais interessante assinalar justamente as contradições internas
em suas obras (comum tanto a Freud e a Lacan); os momentos de hesitação
e a dúvida (mais comuns em Freud); e seus próprios chamados para que os
psicanalistas estejam mais a par dos acontecimentos de seu momento político
do que presos em teorias (mais comuns em Lacan). Entender o pensamento
psicanalítico como um processo em tensão, de constante dúvida, pode nos
ajudar a fazer com que a transmissão da psicanálise se dê menos na univer­
salização das teorias e mais na exploração do potencial de suas perguntas em
seus tempos e no desafio de transformá-las para que continuem instigantes
nos nossos.
Mesmo que a ética psicanalítica se configure como um permanente ques­
tionamento do discurso social, ela não é, como instituição e como prática,
imune a esse discurso, tampouco é imune às relações de poder e opressão
que a atravessa. Os binarismos da ordenação generificada do mundo estão
presentes na psicanálise, como fruto da modernidade e da emergência do li­
beralismo enquanto regime político e econômico. O indivíduo, forma assumida
pelo sujeito na modernidade (sujeito europeu e sua imposição colonialista no
restante do mundo ocupado), deve ter sua sexualidade conhecida, escrutinada
e confessada. Uma verdade já buscada na confissão cristã (os pecados da car­
ne) e que passa a orientar a escuta psicanalítica ou da sexologia/criminologia
nascentes no século XIX, como Michel Foucault descreve na sua História da
Sexualidade (1988).
A psicanálise tampouco é apenas uma lente de leitura dos fenômenos
sociais. Suas publicações, teorias e práticas atuam performativamente cons­
truindo a cultura na qual se insere. A iteração binária do ordenamento social
do gênero não é exclusividade da psicanálise, é claro. Na intersecção com raça,
origem e classe, a perspectiva descolonial mostra como o que hoje chama­
mos de gênero foi sendo produzido para a construção do outro selvagem e a
emergência do europeu civilizado (LUGONES, 2008). A natureza fica ao lado
dos povos originários, das e dos negras/os escravizadas/os nas colônias eu­
ropéias (CARNEIRO, 2011; DORLIN, 2006), estabelecendo aí já uma hierarquia

89
do humano. Os rastros dessa hierarquização e das formas como a dominação
masculina penetrou o universo do saber científico dos séculos XIX e XX foi
incorporado pela psicanálise. A psicanálise emerge do arquivo do século XIX,
aquele composto pelo romantismo moderno, pela psiquiatria nascente e pela
antropologia colonial, os quais permitiram a Freiid a construção da sua teoria.
Ele foi um agente importante no jogo de verdades de sua época, performatizan-
do as hierarquias de gênero no interior das análises derivadas de sua escuta,
mas também do que era possível dizer a partir dos enunciados disponíveis no
seu tempo. Isso não implica passividade em relação ao arquivo e ao regime de
verdades, mas sim jogar o jogo do inteligível, mesmo que propondo rupturas
e construindo conceitos. Afinal, como afirma Judith Butler, mas também o
próprio Freud, a história nos precede e nos excede.
Se retomamos nosso ponto de partida, podemos indagar outra vez sobre
o tipo de “segurança” que é pedido dos psicanalistas quando falamos sobre
a demanda por analistas seguros/as no contexto da militância. Consideran­
do o histórico de patologizações psicanalíticas das dissidências sexuais e de
gênero ao longo do século XX, considerando a proibição de homossexuais
dos quadros de algumas sociedades vinculadas à Associação Internacional
de Psicanálise (IPA) até poucos anos atrás (BULAMAH, 2016) e considerando
os inúmeros relatos de violências cometidas contra pessoas homossexuais
em contextos de psicoterapia (MARQUES & NARDI, 2011), não nos parece que
essa demanda seja infundada. O problema a ser discutido neste momento de
amplo debate sobre a interface psicanálise-gênero é em que medida uma lista
de psicanalistas seguros pode efetivamente solucionar esse problema. Como
sugerem Santos e Polverel (2016), a busca por psicanalistas seguros coloca um
problema do ponto de vista da transferência. Esta se dá a partir de diversas
demandas, e se espera que a/o psicanalista, para podertrabalhar, abstenha-se
de respondê-las. Nesse sentido, mesmo psicanalistas “esclarecidos” sobre as
questões de gênero, mesmo psicanalistas leitores de Butler e Preciado, não
podem, no setting psicanalítico, garantir a segurança subjetiva do processo
analítico. Eles não podem garantir que a homo ou transfobia não se atualize
em sessão, pois a psicanálise é feita justa mente na conjuração dos fantasmas
que nos assombram.
O que psicanalistas podem fazer é se responsabilizar para que não sejam
eles/as mesmas/os agentes nesse processo. E, para isso, não basta que sim­
plesmente busquem neutralidade. É preciso que a psicanálise se engaje em
um processo amplo e complexo de despatologização de sua própria prática e
funcionamento institucional. Neste capítulo, buscamos sugerir que as pistas

90
para esse processo talvez se encontrem mais no reconhecimento dos limites
dos seus textos canônicos do que na defesa de sua atemporalídade. Enten­
demos a potência aqui não apenas do ponto de vista do corpus teórico e da
prática psicanalítica, mas também dos estudos de gênero e sexualidade. Como
sugeriu a própria Rubin (2017, p. 36), “desejar salvar a psicanálise de suas pró­
prias motivações de repressão não se faz em proveito da reputação de Freud.
A psicanálise dispõe de um conjunto único de conceitos para a compreensão
dos homens, das mulheres e da sexualidade”.
Entendemos que as perguntas que guiam este livro dizem respeito à cons­
tituição de uma escuta clínica, ética e política que respeite os sujeitos na sua
singularidade, e à elaboração de ferramentas que auxiliem o/a analista a man­
ter sua escuta atenta à metafísica da heterocisnormatividade. Nessa direção,
parece-nos conveniente encerrar nossa contribuição com o chamado de Paul
Preciado (2019):

Eu penso que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de
despatriarcalização, deseterossexualização e descolonização da psicaná­
lise [aplausos] (...) uma psicanálise mutante à altura dessa mutação de
paradigma. Talvez somente este processo de transformação — por mais
terrível e desmantelador que lhes possa parecer — mereça hoje, de novo,
ser chamado de “psicanálise” (PRECIADO, 2019, p. 12).

91
REFERÊNCIAS
BERGSON, H. La pensée et le mouvant. Paris: PUF, 2009.
BULAMAH, L. História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade masculin
no movimento psicanalítico. São Paulo: Annablume, 2016.
BUTLER, J. Gender Trouble: feminism and the subversion ovf identity. New York: Routledge, 19
BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n.
21, p. 219-260,2003.
BUTLER, J.; LACLAU, E.; ZIZEK, S. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dia
logues on the Left. Londres e Nova Iorque: Verso, 2000.
CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CUNHA, E. L. O homem e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categori
de perversão. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, y. IS, n. 1, p. 85-101,2016
DORLIN, E. La matrice de la race: Généalogie sexuelle et coloniale de la r ation française. Pari
La Découverte, 2006.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade: Volume 1: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graa
FREUD, S. Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: FREUD
S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 19
Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 277-286.
FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo. In:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Fre
v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1966. p. 237-247.
FREUD, S. Dissolução do Complexo de Édipo. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 193-199.
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psi
lógicas Completas de Sigmund Freud, v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1963. p. 17-297.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (demen
paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas d
Sigmund Freud, v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 2009. p. 15-85.
FREUD, S. Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 2009. p. 21-162.
FRIGNET, H. Le transsexualisme. Paris: Desclée de Brouwer, 2000.
LACAN, J. O Seminário: Livro 17:0 Avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1
LACAN, J. O Seminário; Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LUGONES, M. Colonialidad y gênero. Tabula Rasa, v. 9, p. 73-101,2008.
MARQUES, D. M.; NARDI, H. C. Anormais, bárbaros e bárbaras: trajetórias de vida e homossex
e clínica psicológica. Aletheia, Canoas, n. 35-36, p. 109-122,2011.
MILLOT, C. Extrasexo: ensaio sobre o transexualismo. São Paulo: Escuta, 1992.
PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano (Conferência). Lacuna, São Paulo, n. 8, p. 12,201
ROUDINESCO, E. Psychanalyse et homosexualité: réflexions sur le désir pervers, 1’injure et la
fonction paternelle. Cliniques Méditerranéennes, Paris, v. 65, n. 1, p. 7-34,2002.
RUBIN, G. O Tráfico de Mulheres, in Políticas do sexo: Gayle Rubin. São Paulo: Ubu Editora. 2
SANTOS, B.; POLVEREL, E. Procura-se psicanalista segurx: uma conversa sobre normatividade
e escuta analítica. Lacuna, São Paulo, n. 1, p. 3,2016.
SEDGWICK, E. K. Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire. New York:
Columbia University Press, 1985.

92
GÊNERO E RAÇA:
MARCAS PERSISTENTES DE
UM FAZER-SABER DENEGADO
José Damico
“nenhum psicanalista avança além do quanto permitem
seus próprios complexos e resistências internas”
(Sigmund Freud, As perspectivas futuras da terapêutica
psicanalítica).
\
Inicio este artigo assumindo o lugar de fala em que estou inserido. Homem
negro, heterossexual, cisgênero, professor universitário, doutor (pelo douto­
rado), de classe média. Essa estratégia de visibilizar as diferentes posições
que ocupo no discurso permite dizer da minha implicação com o assunto a
ser abordado, ao mesmo tempo que estabelece limites do que consigo dizer
desde esse lugar31. Por conseguinte, é um dispositivo politico de honestidade
intelectual que objetiva romper com uma noção de ciência neutra, branca,
ocidental, equilibrada, estável etc.
Eu posso ser definido como o típico negro em ascensão descrito por Neusa
Santos Souza32 no seu livro Tornar-se negro (1983), ou seja, segui os padrões
de adaptação da ideologia do branqueamento no Brasil. Recebi chamados,
durante toda a minha vida até aqui, para me comportar de modo cordato,
para me vestir discretamente, para alisar o cabelo33 ou usá-lo curto, para curtir
certas culturas advindas mais do mainstream cult em detrimento de outras
mais populares34. Tais regulações envolviam uma infinidade de dispositivos de
vigilâncias em todos os aspectos da vida social e psíquica. Durante o processo
de escolarização, a história da escravização era contada do ponto de vista dos
colonizadores como sendo a única possível. Só ingressei no mestrado quan­
do apresentei uma proposta para estudar uma patologia (anorexia nervosa)
que atingia, sobretudo, mulheres brancas e de classe média. No mundo do
trabalho, o limite era mais sentido, mas não mais explícito. Entretanto, toda
vez que eu me sobressaía, surgiam adversários que eu não tinha percebido.

31 Refiro-me a minha posição de homem negro e aos privilégios decorrentes. Há limites no que consigo
enunciar por não ter outro lugar de fala e riscos em razão de que meu processo de socialização reproduz
valores machistas nas minhas análises. Lélia Gonzalez afirma: "No Brasil, ser negra e mulher significa ser
objeto de uma tripla discriminação (...). Enquanto seus familiares homens (marido, filhos, irmãos, pai etc.)
são objeto da perseguição, repressão e violência policiais, a mulher negra presta serviços domésticos jun­
to às famílias de classe média e alta brasileiras” (GONZALEZ, 1982, p. 99).
33 Utilizo, ao logo do texto, o recurso lingüístico de usar nome e sobrenome para ressaltar a autoria das

mulheres.
33 Jacques Lacan interroga: “É aceitável reduzir o sucesso da análise a uma posição de conforto individual,

(...) que podemos chamar de serviço dos bens - bens privados, bens da família, bens da casa, outros bens
que também nos solicitam, bens da profissão da cidade?” (LACAN, Seminário VII, 1959-1960, p. 363,2002).
34Eu tinha uma posição crítica de que o movimento da Black Music e Rithim and Blues era de gente alie­
nada, que era comercial etc. Não tinha ideia de que a juventude negra se reunia também para produzir
resistência nos espaços de sociabilidade.
Minha capacidade deveria estar circunscrita e não poderia ser muito capaz; se
não, rapidamente, seria posicionado como pedante, mascarado, metido. Um
verdadeiro negro de alma branca era o que estava sub-repticiamente ofertado.
Esse mundo branco era vivido por mim como um “forasteiro de dentro” (COL­
LINS, 2016). De algum jeito eu parecia saber que, por mais que me esforçasse,
jamais pertenceria a tal mundo. Apesar do envolvimento, permaneceria como
um outsider within. Em outros momentos, me aproximava das manifestações
do meu povo, terreiras de umbanda, carnaval e movimento negro35. E confes­
so que sentia um certo temor de me enegrecer, de perder as conquistas que
estava obtendo, de ser chamado de batuqueiro ou ser patologizado. E na hora
H o chamado para ser GENTE36 falava mais alto.
Uma outra experiência comum para parte da negritude em ascensão é
a sensação de solidão. Mesmo na escola pública (se o bairro é mais central,
como era meu caso), nos cursos de línguas estrangeiras, na universidade e no
percurso psicanalítico sempre estive só, como o único negro. A mobilidade so­
cial que atingi em termos de classe e acesso a bens e capitais culturais se deu
não por uma concessão, mas como conseqüência da minha adaptabilidade
ao mundo branco. Escapando do lugar destinado aos negros. A capacidade
que desenvolvi com alto custo subjetivo de me enquadrar nos códigos so­
ciais produzia seus efeitos: quanto mais eu estudava e entendia os códigos de
comportamento, os jogos de poder, mais eu ficava inseguro e mais precisava
me submeter ao embranquecimento para sustentar os desejos que deveriam
estar disponíveis por direito.
É preciso dizer que meus mais de vinte anos como analisando foram o
contrário do que era de se esperar, em termos de libertação e de encontro
com a verdade da direção da cura na clínica freudo-lacaniana. Uma espécie
de camisa de força prescritiva e adaptativa, talvez pela ânsia de generalização
da teoria para culpabilizar a vítima naquilo que reafirma uma suposta posição
de gozo em ser vítima predileta (CAON e D’AGORD, 2019), o tema do racismo,
quando aparecia, era de algum modo relativizado37e quase patologizado. É

35 É fato que, durante toda a adolescência, estive interessado em saber o máximo que podia sobre a luta
dos negros nos Estados Unidos, as lideranças de Malcon X e os Panteras Negras. Sabia de cor a letra da
música Hurricane, de Bob Dylan.
36“Branqueamento, não importa em que nível, é o que a consciência cobra da gente, prá mal aceitara pre­

sença da gente. Se a gente parte pra alguma crioulice, ela arma logo um esquema prá gente ‘se comportar
como gente”’ (GONZALEZ, 1984, p. 225).
37 José Reis Filho interroga sobre a presença da temática racial na análise de pacientes negros: “Será que

os analisantes não se perguntam? Não querem saber? Ou os analistas não se perguntam e, ao não se per­
guntarem calam seus analisantes?” (REIS FILHO, 2005, pp. 20-21).

í
95
difícil precisar quando as somas de tais opressões se tornaram insuportáveis, a
ponto de finalmente poder assumir minha negritude, podendo, assim, ressig-
nificar meus desejos, meus objetivos, e ter como horizonte de vida e trabalho
a descolonização de todas aquelas teorias sofisticadas com que fui formado
para um caminho de corporificação da negritude, e, portanto, de cura, uma
cura afro-diaspórica.
A narrativa que inicia este texto não é comum na escrita acadêmica e psi-
canalítica. Expor fragilidades e instabilidades não combinam com o padrão
da autoria teórica, ocidental, eurocêntrica. No âmbito da psicanálise, é mais
arriscado ainda, já que a autoria deixa seu lugar seguro de intérprete das vi­
cissitudes da psique para ser um possível objeto. A escrita autobiográfica na
primeira pessoa é uma das reinvindicações dos estudos feministas, de gênero e
de negritude com o qual pretendo dialogar ao longo das páginas que seguem.
Aliás, pretendo, a partir do honroso convite para fazer parte desta co­
letânea, articular centralmente duas categorias que foram, no mínimo, ne­
gligenciadas pela psicanálise durante muito tempo e que muito vagarosa­
mente começam a ter seu caminho estriado pelas discussões de grupos que,
historicamente, foram subalternizados. Essa abertura/rasura não se dá sem
resistências. Ao mesmo tempo, indica que vivemos em tempos que ninguém
que se perceba minimamente ao lado de uma sociedade mais justa gostaria
de receber os selos de racistas, machistas, homofóbicos e transfóbicos, só para
citar algumas categorias centrais e que estão em disputa nas arenas políticas
e sociais com o avanço de posições fascistas na sociedade brasileira.

Gênero e feminismo negro: uma síntese contextual


A tensão entre a psicanálise e o feminismo não é novidade. Vem desde as
formulações iniciais de Freud e percorrem todo o século passado, ganhando
novo impulso nestas primeiras décadas do século XXI. Esse diálogo, na maior
parte das vezes, foi tenso e marcado por posições antagônicas, tanto pelas
críticas a conteúdos tidos como misóginos de várias das teses psicanalíticas
sobre a sexualidade feminina quanto pela posição defensiva de muitos teóricos
da psicanálise, que apontavam que Freud e Lacanjá faziam aberturas para tais
questões e que o problema era de quem os lia.
A psicanálise foi construída nos estudos, nas práticas clínicas e nas refle­
xões de Freud como um pensamento outro sobre o psiquismo. Buscou sub­
verter a concepção iluminista de sujeito universal, consciente, proprietário da

96
razão, entretanto sem questionar o fato de esse sujeito universal ser europeu,
branco, burguês e homem.
Um conjunto de querelas marca o diálogo entre os dois campos. Várias
analistas (Karen Homey, Josine Müller, Melanie Klein, Hélène Deutsch e Marie
Bonaparte), ainda nas primeiras décadas do século passado, contestaram a
primazia do falo a partir das experiências clínicas, para as quais homens e mu­
lheres teriam psicologias diferentes oriundas de influências culturais também
distintas, procurando dar uma positividade à feminilidade.
A partir da década de 1960, historiadoras, filósofas, psicanalistas e so­
ciólogas feministas discutiram gênero. Luce Iriagaray, Helene Cixous, Joan
Scott, Gayle Rubine, Susan Bordo e Judith Butler são algumas que buscaram
inverter a lógica com que psicólogos estadunidenses, como John Money e
Robert Stoller, pensaram a categoria gênero como forma de medicalizara
sexuação e naturalizar a feminilidade. Mais recentemente, os estudos de gê­
nero contemporâneos de Judith Butler e Paul Preciado vêm tensionando os
ranços normativos que teimam em se fazer presente no campo psicanalítico.
Joan Scott, em seu clássico texto Gênero: uma categoria útil de análise
histórica, refere-se ao gênero para enfatizar “o caráter fundamentalmente
social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT, 1995, p. 72), o que não signi­
fica desconsiderar a materialidade biológica dos corpos ou assumir que não
existem diferenças sexuais físicas marcadas nos corpos.
As teorias de gênero trouxeram, desde muito tempo, embaraços e incô­
modos para o arcabouço teórico da psicanálise. Se o sexo é tão historicizável
quanto o gênero (BUTLER, 2003), isto é, responde às posições ideológicas e de
poder, como, então, repensar o masculino e o feminino, que, para a psicanálise,
são calcados no biológico? As teorias de gênero reformularam o enunciado
“torna-se mulher”: “o que o sujeito pode se tornar, sendo (também) mulher”?
(KEHL, 1998, p.5).
Nessa mesma linha, Thamy Ayouch apresenta um diagnóstico:

Se os freudianos procuram encontrar “verdadeiros transexuais”, para per­


mitir o acesso protocolizado aos cuidados, a abordagem lacaniana, mais
categórica, brande liturgicamente o diagnóstico de psicose. Na linhagem
do mestre, as abordagens de muitos/as lacanianos/as são nada mais do que
variações sobre o mesmo tema: um analista reduz o “transexualismo” a uma
identificação psicótica simbiótica da criança com a sua mãe porforclusão
do Nome do Pai” um outro coloca-o na fronteira entre psicose e perversão,
um terceiro o considera como paradigma da patologia de identidade sexual
própria a toda organização psicótica, e muitos/as são os/as que exilam os

97
sujeitos trans no ‘fora do sexo’, devido à sua reusa em reconhecer o falo
simbólico (AYOUCH, 2019, p. 15).

A abordagem psicanalítica de gênero deixa nítido, ainda, o enorme es­


forço da modernidade ocidental para recalca çe se opor, de modo hostil, às
sexualidades e sexuações subalternizadas em nome da civilização masculi­
na, eurocêntrica, cristã e da racionalidade ocidental baseadas na biologia e
nas normas sociais. Ocorre que, pelo menos entre as estudiosas feministas e
psicanalistas mulheres brancas, o debate com o campo psicanalítico se deu.
Não fora completamente silenciado - ainda que os resultados não tenham
sido os esperados em termos de renovar parte de seu arcabouço teórico e, por
conseguinte, possibilitar um outro lugar de escuta e de pensar a sexualidade
e as produções discursivas que a acompanham (normas, regras, interdições,
leis, próteses, etc.).
No entanto, no que se refere à articulação entre racismo e gênero, o silên­
cio só foi quebrado pelas intelectuais negras, e quase sem nenhuma repercus­
são de peso na psicanálise. O percurso dos movimentos feministas nos ajuda
a compreender tal ausência/silenciamento como uma repetição no seio da
psicanálise, principalmente da praticada no Brasil.
Com raríssimas exceções, essas manifestações eram lideradas por mulhe­
res brancas da classe média, as quais não pautavam as especificidades das
mulheres negras, como as lutas contra o racismo e por melhores condições
de trabalho. Assim, não tinham uma abordagem interseccional e racial, não
pautando, dessa forma, as discriminações pelas quais as mulheres negras pas­
sam, tanto de gênero quanto de raça. Além disso, dentro do movimento negro,
liderado por homens, não havia interesse em atuar nas lutas contra o sexismo.
Raça, gênero, classe social e orientação sexual reconfiguram-se mutua­
mente, formando um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimen-
sionalidade. De acordo com o ponto de vista feminista, a experiência de ser
mulher se dá de forma social e historicamente determinadas. Considero essa
formulação particularmente importante não apenas pelo que ela nos ajuda
a entender de diferentes feminismos, mas pelo que ela permite pensar em
termos dos movimentos negro e de mulheres negras no Brasil. Estes seriam
fruto da necessidade de dar expressão a diferentes formas da experiência de
ser negro (vivida através do gênero) e de ser mulher (vivida através da raça),
o que tornam supérfluas discussões a respeito de qual seria a prioridade do
movimento de mulheres negras na luta contra o sexismo ou contra o racismo

98
_ já que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de vista da
reflexão e da ação políticas, uma não existe sem a outra.

A partir do final da década de 1980, feministas negras norte-americanas


fundaram grupos direcionados às posições sociais das mulheres negras e ati­
vidades políticas. A libertação social, sexual e política, tal a ênfase na análise
ocupacional de mulheres pretas na sociedade racista e patriarcal, reivindica­
ram estruturas no escopo do movimento, através do surgimento de grandes
teóricas como Angela Davis, Patricia Hill Collins, Audre Lorde e Barbara Smith.
O potente resgaste de ativismos como o de SojournerTruth38 inspirou o Pensa­
mento Feminista Negro formulado naquela época. Um dos objetivos principais
do Feminismo Negro foca na reformulação das estruturas sociais, através da
abolição de opressões impostas às mulheres negras, que, por sua vez, ocupam
a base das pirâmides sociais no sistema racista-patriarcal.
Sueli Carneiro (2005) enfatiza que a consciência de que a identidade de
gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero con­
duziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento fe­
minista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação
racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas
no Brasil. O mesmo se pode dizerem relação à solidariedade de gênero intra-
grupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de
gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais
na agenda dos movimentos negros brasileiros.
A psicanálise e os feminismos foram movimentos que se articularam a par­
tir dos finais do século XIX e por todo século XX. Ambos os campos não foram
estranhos desde sempre, mesmo que suas relações tenham sido marcadas por
desencontros, polêmicas, oposições. Essas relações, que são ambivalentes,
continuam se fazendo na atualidade.
Os diálogos da psicanálise com os estudos de gênero produziram fendas
e, consequentemente, avanços, tanto para a psicanálise quanto para os fe­
minismos. No entanto, a psicanálise não produziu uma reflexão crítica sobre
a estrutura patriarcal da sociedade e da família. Suas perguntas eram outras
e suas concepções se elaboraram dentro dessas estruturas do pensamento
ocidental patriarcal, em que a categoria “homem” eqüivale à humanidade,
englobando a categoria mulher subsumida neste sujeito universal homem
(não mais o sujeito racional, mas o sujeito do inconsciente).

38 Abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher (1797-1883).

99
A história hegemônica dos movimentos e estudos feministas é contada
numa cartografia a partir de países do Norte global - Estados Unidos, França e
Inglaterra enquanto a Améfrica Ladina e outros países do Sul permaneceram
posicionados naquilo que Frantz Fanon (2005) nomeou como condenados da
terra, portanto, em posição de inferioridade epistêmica em relação as nações
líderes do sistema do mundo ocidental. O impacto das contestações das mu­
lheres negras ao feminismo ocidental, de mulheres brancas (de classe média,
com níveis superiores de instrução), exigiram espaços para a consideração das
diferenças entre as mulheres. As vozes das mulheres lésbicas e dos movimen­
tos gays e trans (movimento LGBTTQIA+) dentro do feminismo produziram
também significativas rupturas teóricas.
No entanto, no que se refere às discussões raciais em articulação com
gênero, são escassas, para dizer o mínimo. Do meu ponto de vista, isso fala
mais da psicanálise do que dos outros campos de estudos, uma vez que uma
série de tentativas de autoras desses campos de saberes de grupos minoritários
propôs, ao longo do tempo, criar pontes com a psicanálise. De bate-pronto,
posso afirmar que a psicanálise é generificada, racista e classista. Portanto,
moderna e colonial - tanto no âmbito das instituições formadoras de futuros
analistas como no corpo conceituai e na bibliografia utilizada.

Epistemicídio e repetição
A preocupação dos estudos sobre descolonização e decolonialidade39 se
refere ao tema do conhecimento. E, nesse sentido, o trabalho dessas vertentes
é identificar, na lógica colonial, toda uma reprodução de elementos econô­
micos, políticos, cognitivos, de existência e da relação com a natureza que
emergiram a partir do século XVI.
O racismo é um princípio organizador constitutivo da modernidade/oci-
dental, seja na definição das racionalidades daqueles que podem viver e/
ou devem morrer, seja também na definição daqueles que podem formular
conhecimento legítimo e daqueles que não podem.
A colonialidade/modernidade empreende diferentes modos de narrar e
gerir o racismo. No caso brasileiro, o mito da democracia racial, conjugado
com a estratégia da elite, de miscigenação, com vista ao embranquecimento

39 Os termos colonialidade e colonialismo e decolonialidade e descolonização não sinônimos. Ao longo do


texto, eu mantenho as diferenciações segundo a posição da autoria que está referenciada e o momento
de sua produção.

100
e a conseqüente cordialidade do povo, produziram o substrato para que se
pudesse formular a noção de que não existe racismo no país. Desse modo,
a estratégia brasileira pode ser nomeada como de denegação, uma vez que
seu efeito “é de uma abolição simbólica”, por efeito de uma não-afirmação
(GONZALEZ, 1988).
A dificuldade em falar do racismo no nosso país é central para entender­
mos a diferença com outros lugares em que o racismo foi explícito, oficializado
e institucionalizado, como no caso do Nazismo, na Europa; da lei Jim Crow,
nos Estados Unidos (separados, mas iguais); e do Apartheid, na África do Sul.
Portanto, negar a história, negar o passado, é modelo nativo. Fio resta n Fer­
nandes (1972, p. 122) afirmou que temos “preconceito de ter preconceito”.
Grada Kilomba (2019) utiliza a máscara do silenciamento, instrumento
de tortura40 durante a escravização perpetrada pelo projeto colonial, como
símbolo do que persiste. “Neste sentido, a máscara representa o colonialis­
mo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação
e seus regimes brutais de silenciamento dos/as chamados/as ‘Outros/as’”
(KILOMBA, 2019, p.39).
Para além do antagonismo racial, o postulado que nos desconectou, en­
quanto seres de um mesmo mundo, produziu a noção de guerra permanen­
te e outras hierarquias nefastas, como gênero e diferenciação sexual. Tais
hierarquias são responsáveis por diferenciar ontologicamente dois tipos de
existência: a do ser e a do não ser, a do humano e não do humano, do sujeito e
do objeto. Nesse sentido, raça, gênero e diferenciação sexual também surgem
como categorias de uma diferença ontológica, já que, na condição de guerra
permanente, corpos negros e não negros são tratados de modos opostos, ou
corpos masculinos e corpos femininos, e também a sexualidade não normativa.
Essas dimensões do não ser geram medo e ansiedade, mas também desejo.
Patrícia Hill Collins (2016), em seu artigo Aprendendo com a outsider wi­
thin: a significação sociológica do pensam ento discute como
fem inista negro,
a posição das mulheres negras na sociedade estadunidense é marcada por
uma simultaneidade de opressões, o que fez com que elas tenham ocupado
posições marginais em ambientes acadêmicos:

Esse status de outsider within tem proporcionado às mulheres afro-ame-


ricanas um ponto de vista especial quanto ao self, à família e à sociedade.

40 Consistiaem um metal colocado na boca dos sujeitos negros, entre a língua e a mandíbula, e amarrado
por detrás da cabeça, para evitar que comessem a cana de açúcar ou o cacau enquanto trabalhavam.
;!V.
•if \

101
Uma revisão cuidadosa da emergente literatura feminista negra revela que
muitas intelectuais negras, especialmente aquelas em contato com sua
marginalidade em contextos acadêmicos, exploram esse ponto de vista
produzindo análises distintas quanto às questões de raça, classe e gênero
(COLLINS, 2016, p. 100).

É importante a virada proposta por Patrícia Hill Collins, uma vez que des­
creve aberturas por dentro de posições interiorizadas, o que reatualiza o medo
da supremacia branca de que se encontrem outras posições de sujeito e de
produção de conhecimento onde não se esperaria41.
Cabe chamar atenção que, no caso da psicanálise em sua articulação com
as categorias raça, gênero e sexualidade, apesar de obras de notória qualidade
terem sido escritas por autoras negras, o destino se repete: o silenciamento
forçado. O assassinato do conhecimento produzido e a reificação da sentença
de que pessoas negras têm de ficar no lugar reservado a elas segue sendo a
tônica da psicanálise enquanto institucionalidade.
O epistemícidio constitui-se como uma das armas principais e mais efi­
cazes da supremacia branca, tanto por silenciar produções de conhecimento
de grupos subalternizados quanto pela tentativa de torná-los ineptos para a
produção de conhecimento. Sueli Carneiro formula assim:

O epistemícidio é, para além da anulação e desqualificação do conheci­


mento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da
indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qua­
lidade; pela produção da inferiorização intelectual (...). Isto porque não é
possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados
sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos
cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar
o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemícidio fere de
morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade
de aprender etc. (CARNEIRO, 2005, p. 97).

O racismo epistêmico ou epistemológico é uma das dimensões mais per­


niciosas da discriminação étnico-racial. Em linhas gerais, significa a recusa em
reconhecer que a produção de conhecimento de algumas pessoas seja válida.
Significa o não reconhecimento dos fazeres psis, e nisso a psicanálise, no que
tange ao racismo, pode ser colocada em (ne)grito. Há benefícios concretos e

41 ParaAchille Mbembe (2018), a primeira razão negra, a chamada consciência ocidental do negro, é com­
posta por uma série de saberes e práticas dos brancos, em torno da ciência colonial, que buscava em
uma relação de domínio produzir e fixar o negro em um determinado “não lugar”, justificando, assim, a
dominação racial (MBEMBE, 2018, p. 60).

102
simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco - que evita,
de todas as formas, se reconhecer como grupo racial - como beneficiário de
uma história e um presente racistas.
A primeira situação a que vou me remeter foi o livro Tornar-se negro (1983),
de Neusa Santos Souza. O psicanalista Jurandir Freire Costa escreveu um pre­
fácio contundente, inclusive chamando a atenção para o que ele nomeia como
“a flácida omissão da psicanálise em relação as questões raciais” (COSTA,
2003, p. 152). O interessante - e, permitam que eu diga, o sintomático - é
que, um tempo depois, o mesmo psicanalista lança um livro com a temática
racial, no qual um dos artigos era justamente o prefácio do livro de autoria de
Neusa Santos, retirando todas as menções à obra com quem ele dialogou42
(c.f. MUSATTI-BRAGA, 2015).

Assim, como é que, na ausência de vestígios, de fontes de fatos historio-


gráficos, se escreve a História? Rapidamente se tem a impressão de que a
escrita da história dos negros só pode ser feita com base em fragmentos,
mobilizados para dar conta de uma experiência em si mesma fragmentada,
a de um povo em pontilhado, lutando para se definir não como um com­
posite disparatado, mas como uma comunidade cujas manchas de sangue
são visíveis por toda a superfície da modernidade. (MBEMBE, 2018, p. 63).

As mulheres negras e seus feitos, sejam lá quais forem, são deixados de


lado e até banidos de alguns ciclos de conhecimento, principalmente acadêmi­
cos. Virgínia Bicudo (1910-2003) foi uma pioneira tanto da psicanálise quanto
dos estudos das relações raciais no Brasil, já que, além de ter sido a primeira
mulher a fazer análise no continente sul-americano, cofundou a Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mulher, negra, neta de escrava alfor­
riada, primeira psicanalista não-médica no Brasil e primeira a escrever uma
dissertação sobre relações raciais43, ela disseminou o saber psicanalítico no
país, mas seu protagonismo e sua história permanecem invisíveis para muitos
(c.f. CARNEIRO e MORI, 2018).

Difícil saber o quanto cada uma das características de Virgínia Bicudo es­
taria em jogo nessas acusações truculentas: mulher, negra, psicanalista
não médica. O fato de que o nome de Bicudo não apareça como referência

42 Não citei, no corpo do texto, o caso de Frantz Fanon, pela opção política de visibilizar a produção de
intelectuais negras brasileiras. Mas, para demonstrar a regularidade desse tipo de fato, é preciso lembrar
que uma das obras mais importantes de Frantz Fanon (Os Condenados da Terra) teve seu prefácio escrito
por Jean Paul Sartre. Enquanto o texto de Sartre foi discutido à exaustação, o texto de Fanon foi pratica­
mente esquecido.
43. Ver nas referências: BICUDO, [1945] 2010.

103
nos trabalhos de psicanálise que tratam da questão da negritude, nem nos
artigos de psicólogos que pretenderam recuperar o trajeto dos estudos
das questões raciais do Brasil, não pode ser atribuído a uma suposta falta
de importância histórica de suas produções ou de suas posições, nem na
sociologia, nem na psicanálise (MUSATTJ-BRAGA, 2015, p. 75).
V
Janaína Damaceno Gomes (2013) dá a dimensão do que ocorrera com
a psicanalista e os efeitos da negação de sua trajetória: “por que ela mesma
tornou-se um segredo que só começou a se desvelar para mim, por força do
acaso e das coincidências [...] o segredo de Virgínia é Virgínia como segredo”
(GOMES, 2013, p. 27).
E, por último, mas não menos importante, a intelectual^4 e ativista negra
Lélia Gonzalez44 45. Lélia Gonzalez tem inegável pioneirismo na crítica ao racismo
estrutural na sociedade brasileira e na articulação entre racismo e sexismo, o
que fez dela uma aguda observa d ora da nossa situação colonial, antes mesmo
que termos como coloniolidade, decolonial ou pensamento ameríndio ganhas­
sem destaque na pauta da intelectualidade branca (que, aos poucos, tem
reconstruído outra concepção da dominação europeia que nos fundou e da
violência intrínseca na formação do Brasil como Estado-nação).
Seu encontro com a psicanálise permitiu que ela acessasse “seus meca­
nismos de racionalização, de esquecimento, de recalcamento”:

Em 1975, junto com Magno Machado Dias (mais conhecido como M.D mag­
no) e Betty Milan, discípulos e analisandos de Jacques Lacan, ela participa
da Fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, que viria a ser um
dos principais centros de propagação do pensamento psicanaiítico em sua
vertente lacaniana no país (RATS e RIOS, 2010, p. 61).

Lélia percebe muito cedo a necessidade de entrelaçar a desigualdade


racial e social brasileira com as formações inconscientes, que ela observa
serem exclusivamente brancas e europeias, operando uma denegação das
nossas origens indígenas, latinas e africanas. É assim que ela identifica uma
característica fundamental do “racismo à brasileira”: voltar-se contra negros
é denegar, no sentido freudiano, nossa amefrícanidade.
Conforme Lélia Gonzalez, a presença da “latinidade” no Novo Mundo foi
inexistente: a preponderância se deu com elementos ameríndios, e africanos

44 Léliatem tantas realizações acadêmicas e políticas que não caberiam no espaço deste texto. Indico ver
nas referências bibliográficas: RATTS, RIOS, 2010.
45 Optei por citar, no corpo do texto, apenas as autoras já falecidas. Por essa razão, não citei Isildinha Bap-

tista Nogueira em sua importante tese de doutorado (USP, 1998).

104
e,por isso, defendia uma Am éfrica Ladina. Para a autora, todos os brasileiros
são ladinoam efricanos, e não somente os negros. A negação da presença afro-
ameríndia seria decorrente do racismo.
Aqui novamente encontramos uma pesquisadora que tinha a psicanálise
e a negritude como pontos articulados e inseparáveis, seja na vida, seja nos
textos acadêmicos. Tanto assim que fez uma apropriação bastante curiosa
da linguagem na sua estrutura narrativa, de modo que seus textos pudessem
manter, ao mesmo tempo, um rigor acadêmico e as marcas da fala cotidiana.
“Essa característica de Lélia se liga a uma prática das narrativas do feminismo
negro, a utilização de exemplos pessoais para exemplificar as teorias” (BAR­
RETO, 2005, p. 27).
A peculiaridade do diálogo com a psicanálise exerce influência também
na forma de operar os significantes: am efricanidade, ladino, pretuguês ou
pretoguês são algumas das intervenções, ao modo lacaniano, que faz funcio­
nar seu pensamento na mesma direção de seu ativismo, inventivo em forma
e conteúdo.
De acordo com Ana Paula Braga Musati:

O reconhecimento de Lélia Gonzalez é inquestionável dentro da militância


negra feminista, tanto assim que seu nome aparece em diversas home­
nagens. O mesmo não se pode dizer da psicanálise, já que não é possível
encontrar seus artigos nem nas publicações sobre o feminino, nem nas
publicações sobre o racismo e a negritude. O encontro com essas três mu­
lheres, Virgínia Bicudo, Neusa Souza e Lélia Gonzalez que, movidas assumi-
damente por um desejo de articular questões sobre a própria cor e o mal
estar vivido nesse mundo dos brancos, foram capazes de uma produção tão
interessante, nos mostrou mais uma vez um silenciamento, que podemos
chamar de produção de esquecimento (MUSATI, 2015, p. 54).

Um exemplo sem dúvida vivenciado por psicanalistas são as produções


intelectuais de grupos cujo lugar social dificulta a visibilidade e a legitimidade
dessas produções. Quantas professoras e professores negros tivemos? Quantas
autoras e autores negros lemos na graduação?46 Quantas pessoas negras já se
deitaram nos divãs ou freqüentaram os consultórios? Quantos colegas negros
e negras contamos na formação psicanalítica?
São três mulheres negras, intelectuais, que alcançaram excelência acadê­
mica. Além disso, Neusa Santos, Virgínia Bicudo e Lélia Gonzalez tiveram papel

46Essa mesma pergunta precisa ser feita colocando, em vez de negros e negras, trans, indígenas, entre
outras posições de sujeito subalternizadas.

105
importante na institucionalização da psicanálise no Brasil. Recorro nova mente
a Grada Kilomba (2019), ao afirmar que as mulheres negras foram posicionadas
nessa condição em vários discursos que deturpam nossa realidade: um debate
sobre o racismo onde o sujeito é o homem negro; um discurso de gênero onde
o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobte a classe onde raça não tem
lugar. Invisíveis, as mulheres negras habitam um espaço vazio.

A psicanálise no divã4748
Em abril de 1999, ocorreu um evento com a psicanalista e historiadora
francesa Elisabeth Roudinesco, para o lançamento do D it i otário de Psicaná­
lise47 48 49 produzido por ela e M. Plon, na Unisinos, na cidade de São Leopoldo-RS.
Em uma das respostas sobre a psicanálise no Brasil, Roudinesco disse algo
que eu nunca esqueci, talvez pelo inusitado da resposta. Foi mais ou menos
assim: “os psicanalistas brasileiros sabem mais de Lacan que nós, franceses”.
A fala de Roudinesco retorna e parece que pode ajudar na tarefa de pensarmos
a colonialidade da psicanálise e sua relação com o sexismo e racismo. Cabe
perguntar se a psicanálise, nas terras brasilis, não seria afrancesada demais,
europeia demais. Qual a relação da psicanálise praticada por aqui com o laço
ladino ou afro-diaspórico? Seria possível estabelecer um ‘lesteamento’ com
outras matrizes culturais? Onde está o específico da psicanálise brasileira, e
nisso o pretuguês50 como língua e linguagem?
Freud (1996b), numa de suas obras mais clássicas, escrita em plena crise
de 1929, portanto após a I Guerra Mundial, a quebra da bolsa e, principalmente,
a ascensão do nazifascismo, discute pela primeira vez o racismo. Em Mal-estar
na Civilização, Freud, entre outras coisas, aborda a dicotomia entre as pulsões
e as regras postas pela cultura; o que cada um deseja dessas pulsões morais e

47 0 colega e psicanalista negro Emiliano de Camargo David, por mais de uma vez, chamou atenção em
palestras, debates e entrevistas de que é fundamental colocar a psicanálise no divã (do racismo). A fala
de Emiliano, imagino, seja na direção de provocar a branquitude das instituições psicanaiíticas e nos
mecanismos de resistência e de defesa ancorados na lógica colonial que impedem uma transformação
decolonial.
48 Vários insights dessa seção e da próxima foram resultados de discussões coletivas do Grupo de Estudos

ÊGBÉ: negritude, clínica e comum (UFRGS), ao qual sou grato.


49 http://www.appoa.org.br/uploads/arquivos/correio/correio69.pdf.

50 LéliaGonzalez afirma: “É engraçado como eles [sociedade branca elitista] gozam a gente quando a gente
diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram
que a presença desse r no lugar do /nada mais é do que a marca lingüística de um idioma africano, no qual
o / inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira que
corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que
tão falando pretuguês” (GONZALEZ, 1988, p. 70).

106
sexuais; e a própria ética do desejo. Nesses termos estava o descompasso entre
o desejo e a moral. A angústia desse descompasso nos constitui como seres
humanos modernos. Para onde são projetadas as agressões que têm de ser
reprimidas para não levarem à desagregação social? Em termos fanonianos,
para que exista uma agregação social na Europa, para que seja possível uma
civilização, essa energia não reprimida, esses incestos não interditados vão ser
projetados para as colônias. É na colônia que a Europa transfere a barbárie, a
bestialidade e a violência. Essa transferência permite que a Europa branca se
veja como civilização, como humanidade, e, portanto, consegue produzir no
outro a noção de selvagem. “A bestialização do negro é gêmea umbilical do
liberalismo” (MBEMBE, 2018, p. 34).
De acordo com Frantz Fanon (2008) e Aníbal Quijano (2010), o colonialismo
tem funções precípuas: a) a econômica, por meio da acumulação primitiva
do capital (a partir das formulações do marxismo), para enriquecer a Europa,
tendo, como conseqüência, o empobrecimento da África, das Américas e da
Ásia; b) uma transferência das contradições para fora da Europa, função sub­
jetiva que é esta de projetar tudo que ela não quer enxergar em si, a violência,
a agressividade; e c) a dominação étnico-racial, o patriarcado e o controle das
formas de subjetividade (colonialidade de gênero).
É interessante perceber que a intelectualidade branca europeia só passa a
se preocupar com o racismo a partir de Hitler e Mussolini, ou seja, da tentativa
de um colonialismo na própria Europa. Mas é preciso lembrar que, depois da
Segunda Guerra, existiu um processo de reparação não só econômica como
simbólica, no sentido de reconhecer que o povo judeu foi vítima do holocaus­
to perpetrado pelo nazifascismo, muito diferente do que aconteceu com o
processo de escravização e genocídio de negros e dos povos originários que,
durante quase cinco séculos nas colônias, foram mortos e torturados, ou no
genocídio armênio no início do século XX51.
A tese de Freud, do binômio civilização-renúncia pulsional, como única
forma de constituição do laço social, diria respeito a uma forma universal de
cultura, ou seria a defesa de uma determinada concepção de cultura marcada
pelo projeto iluminista-humanista do domínio da natureza pela razão e que
segue sendo uma questão no mínimo polêmica.
Se Freud e Lacan rompem com o império da razão, portanto, de uma cons­
ciência que nos governaria, positivando a castração/renúncia em nome do

51 Cercade 1,5 milhão de armênios foram mortos entre 1910 e 1920, e, até hoje, esse crime não foi assu­
mido pelos turcos.
processo civilizatório, o que teria ficado recalcado? Para uma série de pensa-
dores/as da negritude no Brasil, a cena primária de fundação seria o estupro
para nós, negros/as. O que fica nos porões da branquitude brasileira e, por
conseguinte, do inconsciente da própria psicanálise praticada no Brasil?
É lugar-comum na psicanálise lacaniana qi)e o sujeito se constitui na lin­
guagem, que não é nada menos que uma dimensão estrutural da cultura. E
como pensar a linguagem/cultura fora do contexto francês, no caso brasileiro,
de séculos de colonização, e, também, de uma utilização desigual de refe­
rências culturais? Se formos pensar em trauma e em recalque, por exemplo,
é preciso olhar para as várias matrizes culturais que nos constituem, como a
capoeira, o samba, ojongo, o batuque etc., e o quanto a experiência racista é
empobrecedora psiquicamente até para os brancos. O que resta é uma visão
eurocêntrica e castrada de si, porque, ao pensar, o humano se restringe à Eu­
ropa52. Qual a experiência cultural brasileira expressada pela branquitude? É
bastante comum que até mesmo a branquitude, ao se referir às experiências
culturais brasileiras, principalmente quando precisa defender uma certa bra-
silidade, fale do carnaval, de nossa música e da capoeira53.
A colonialidade age silenciosamente, como o inconsciente psicanalítico,
e, ao mesmo tempo, faz barulho e grita nos seus tropeços, enganos, lapsos,
atos falhos e modos de violência.
Vivemos um momento de incrível visibilidade para as questões de gênero,
sexualidade e raça, inclusive para a psicanálise praticada em nosso país. Num
ótimo e recente texto (AMBRA, 2019), o autor, um psicanalista branco e que
tem se debruçado nessas temáticas marginais ou subalternas, resgata com
propriedade várias das contribuições de Lélia Gonzalez, o fazendo, inclusive,
de modo muito respeitoso às contribuições inovadoras da autora. No entanto,
como no caso relatado no episódio do pós-prefácio de Jurandir Freire Costa,
o autor escorrega, tropeça. Afinal de contas, mesmo que o inconsciente não
tenha cor, ele é atravessado pela branquitude e sexismo, como extraio dos
seguintes recortes:

52 No dia 3 de juiho de 2020, em uma live com cineastas gaúchos, promovida por Técnicos Cinematográfi­
cos do Rio Grande do Sul, um das cineastas dispara, depois de dizer os sobrenomes “europeus” e a escolha
porfazer um determinado filme: “não adianta fazer um filme da senzala, não seria nosso melhor lugar (...)
eu tenho sangue francês, (...) cada um tem que fazer um filme da sua história (...)”.
53 Os poucos textos da Psicanálise escritos num momento em que se sentiram atacados pelos europeus

coloniais recorreram a tal brasilidade. Ver, por exemplo: JERUSALINSKY (1999); CHNAIDERMAN (2005).

108
Tomaremos Djamila Ribeiro na qualidade de interlocutors, já que é
de sua autoria a reflexão de maior fôlego sobre a questão. Em O que é
lugar de fala (RIBEIRO, 2017), a filósofa constrói seu argumento a partir da
ideia de que as distintas modalidades de resistência de mulheres negras
poderiam ser reunidas sob a noção de lugar de fala, ou ao menos seriam
por essa ideia embasadas (AMBRA, 2019, p. 86, grifos meus).

Diferentemente, portanto, da concepção contemporânea segundo a qual


uma verdadeira reflexão sobre o racismo (e no limite sobre qualquertema)
deve partir e se amparar tanto em seu lugar de fala quanto na (cor de)
origem de suas autoras e autores, sublinhando suas potências e limites,
Gonzalez abre seu texto colocando suas cartas epistemológicas na mesa:
éa partir da europeia psicanálise que ela irá se debruçar sobre o problema
do racismo na América (Ibid., p. 94, grifos meus).

Seria justo acusá-la (a Lélia) de acreditar ingenuamente que as ferramen­


tas do senhor podem desmantelar a casa grande? Não me parece ser o
caso. Ao contrário do que Ribeiro dá a entender, o impasse não é cons­
truído pelos limites que uma teoria europeia impõe a análises e problemas
interseccionais, que precisariam de um novo standpoint para serem anali­
sados e criticados. Observa-se, antes, o contrário: são as contradições e
inquietudes presentes nas figuras da mulata, da doméstica e da mãe
preta que conduziram aquela mulher negra à psicanálise enquanto
suporte epistemológico (Ibid., p. 95 grifos meus).

A pergunta que não quer calar é o que move o autor a colocar duas mu­
lheres e intelectuais negras para “brigar”. Uma viva, e no auge de sua potência
intelectual e ativismo político; e a outra morta, esquecida e negada por muitos
anos na psicanálise brasileira e que, portanto, não pode falar mais, para além
do que seus textos já disseram. A questão mesmo que merece ser colocada
no âmbito da discussão que esse texto focaliza é a de perceber recorrências,
regularidades (para a antropologia) ou repetições sintomáticas para a psica­
nálise. Ou seja, quais as razões que a própria razão desconhece para obedecer
a uma determinada lógica enunciativa.
A discussão empreendida sobre a noção de Lugar de Fala, proposta por
Djamila Ribeiro (2017), se vale de outros paradigmas que não a psicanálise. Para
além de uma discussão acadêmica strictosensu e inócua, ela foi popularizada,
está na boca do povo, porque é autoexplicativa, porque permitiu separar as
posições no discurso hegemônico, e qualquer militante de movimentos sociais
sabe diferenciar quem está falando e desde qual lugar.
Há uma característica no feminismo negro fundamental de ser destacada.
Trata-se do dispositivo de tradução de teorias, enquanto uma metáfora para

109
descrever como o deslocamento das idéias está profundamente imerso em
questões mais amplas de globalização. A política epistemológica do feminismo
negro, como no caso da noção de lugar de fala, em Djamila Ribeiro (2017), é
construída através do tráfico de teorias e práticas feministas, atravessando
fronteiras geopolíticas e disciplinares. É o trânsito de “[...] insights dos femi-
nismos de latinas, de mulheres de cor e do feminismo pós-colonial do norte
das Américas para as nossas análises de teorias, práticas, culturas e políticas
do Sul, e vice-versa» (ALVARES, 2009, p. 743).
Talvez seja difícil para a branquitude perceber psiquicamente certas nuan­
ces das críticas, quando elas estão dirigidas para a psicanálise, em função de
uma dada posição narcísica. Frantz Fanon, por exemplo, ao responder a Octave
Mannoni, respondia na e através da psicanálise para afirmar que a psicanálise
europeia teria feito parte da sua tarefa com Freud ao substituir a tese filoge-
nética pela perspectiva ontogenética. “Ao lado da filogenia e da ontogenia,
há a sociogenia. (...) digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um
sócio-diagnóstico”. (FANON, 2008, p. 28). Fanon, psiquiatra e pensador preocu­
pado com as dimensões sociais do sofrimento psíquico, comemora as rupturas
representadas por Freud, mas advoga a necessidade de ir além da dimensão
psicoafetiva para compreender os indivíduos e os seus conflitos existenciais
em seu contexto histórico e social concreto.
Lélia Gonzalez (1988), ao fazer uso de noções da psicanálise, em parceria
com Betty Milan e M. D. Magno, de modo muito rigoroso e bastante irônico,
tinha como objetivo atravessá-la e descentrá-la, ou seja, descolonizá-la. Lélia
coloca para conversar com a psicanálise a cultura, para dizer que, mesmo de­
terminados aspectos tão íntimos e privados, como a educação dos filhos - que
desde os tempos idos da escravização seriam tão brancos e tão burgueses -,
são atravessados pela negritude, pela cultura negra.
Lélia Gonzalez elaborou de modo muito preciso que era impossível com­
bater o racismo se as pessoas brancas não reconhecessem nossa condição
colonial. Sabemos que se trata de um trabalho muito complexo, uma vez que
a identificação com a suposta origem europeia agregaria valor simbólico, além
de constituir parte do processo de apagar a latinidade e de fundamentar uma
diferenciação com base na outridade em relação àqueles a serem marcados
como “os outros”, “os bárbaros” ou, no vocabulário contemporâneo, “os bandi­
dos”. Tem-se uma dinâmica de inversões da qual depende a opressão colonial:
para afirmar-se no poder, os colonizadores precisam dominar não apenas os
corpos, mas sobretudo o imaginário de cada povo dominado, atribuindo valor
simbólico ao europeu branco, naturalizado como quem tem o direito de ocupar

110
o lugarde dominação; e destituindo de valor simbólico todo não branco, que
fica destinado à subalternidade. Assim se constitui um duplo mecanismo, a
afirmação da superioridade do colonizador e a alienação do colonizado. Nas
palavras de Lélia Gonzalez:

Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade


brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma
indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta
por Miller, ou seja: porque o negro é isso que a lógica da dominação tenta
(e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que as­
sumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente
porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem
fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos
adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo
vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).

O artigo de Pedro Ambra acaba ao tomaro diálogo de Lélia com a psicaná­


lise como uma aliança de alguém que chegou ao esclarecimento (adorniano).
O autor parece precisar reafirmar o lugar teórico do saber nascido no ventre
europeu, além de uma posição hierárquica narcísica típica da branquitude54.
Segundo Grada Kilomba, “Quando acadêmicas/os brancas/os afirmam ter um
discurso neutro e objetivo, não estão reconhecendo o fato de que elas e eles
também escrevem de um lugar específico que, naturalmente não é objetivo
ou universal, mas dominante. É um lugar de poder” (KILOMBA, 2019, p. 58).
Lélia Gonzales (1988) precisava da psicanálise para dizer da relação co­
lonial sexista e racista da sociedade brasileira, pois, para a autora, as análi­
ses sociológicas não tinham chegado naquele momento. Descolonizar não é
abandonar a produção de conhecimento produzido no âmbito da Europa, mas
o ler com outras lentes, inclusive se utilizando de outros recursos narrativos.
Lélia se apoia em Freud e Lacan, como também em Frantz Fanon e outras
tantas referências. Infelizmente, o autor não percebe que a genialidade de
Lélia está justamente em rasgar a psicanálise por dentro, mostrando como
o racismo no Brasil se movimenta, e nisso os diferentes campos de saberes
(inclusive a psicanálise) convidam a negritude para participar, desde que não
falem. A expressão “o lixo vai falar e numa boa” é a análoga a dar um basta,

54No momento da redação final deste artigo, mais um episódio é exemplar do modo de funcionamento
da branquitude. No caso, a historiadora Lilia Schwarcz teceu críticas à cantora Beyoncé, por seu novo
álbum visual “Black is King”. Beyoncé erra ao “glamorizar a negritude” e “precisa aprender” a fazer uma
luta antirracista que não envolva “pompa” e “brilho”. Ver, por exemplo, a análise: https://rioencena.com/
black-is-king-uma-analise-afrorreferenciada-do-novo-album-visual-de-beyonce/.

111
ou melhor, colocar a merda no ventilador. O que significa não querer que a
sujeira seja escondida para debaixo do tapete, ou colocada no destino que os
bons modos ocidentais dão a qualquer lixo que não queiram que seja visto.
Vejamos no trecho que segue:
\
Ou seja, a psicanálise passa a ser uma ferramenta importante no pensa­
mento sobre o lugar do negro do Brasiljustamente porque é uma teoria
que pensa a verdade ocultada nas exclusões, apagamentos e dominação
por intermédio da valorização dos lugares das descontinuidades da fala em
sua concretude e ato. Neste caso, assumir a fala não é sinônimo apenas de
tomar a voz ou ocupar lugares de poder que historicamente são ocupados
por brancos. (AMBRA, 2019, p. 98, grifos meus}.

Ambra argumenta na direção de recentrar a psicanálise, na sua matriz eu­


ropéia, inclusive posicionando a psicanálise como a lata de lixo, ou seja, aquela
que pode servir de invólucro do lixo. Mesmo admitindo que as experiências de
Lélia, como ativista, militante, mulher e negra fazem toda a diferença na sua
elaboração, seria, do meu ponto de vista, muito mais produtivo para o autor
e para a branquitude que ele representa que admitisse um não saber, uma
surpresa com as elaborações de Lélia.
Nós, intelectuais negros/as, continuamos tendo de engolir as bibliografias
de intelectuais brancos e brancas que só permitem a negritude como objeto de
pesquisa ou como objeto de sofrimento psíquico, mas não como protagonista
narrando a sua própria existência. O referido artigo reproduz a lógica - um
homem branco determinando o certo ou o errado, a hierarquia entre duas
formulações de duas autoras negras. Há algo que impede que a branquitude,
mesmo mais de 30 anos depois, leia o texto de Lélia no que ele tem de mais
poderoso, ou seja, a crítica ao racismo (branquitude) e ao sexismo a partir da
própria psicanálise, que se negou a pensar sobre isso.
Contudo, para Fanon, essa superioridade coloca o branco diante de um
curioso paradoxo:

O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o com­


primento do pênis, é a potência sexual que o impressiona. Ele (o branco)
tem necessidade de se defender deste “diferente”, isto é, de caracterizar
o Outro. O Outro será o suporte de suas preocupações e de seus desejos.
(FANON, 2008, p. 147).

Esse fetiche de poder pode assombrar o branco colonialista/racista em


seus medos e desejos mais profundos, pois essas representações não podem
ser racionalmente contestadas por assentarem-se em uma supremacia ra-

112
cialmente estruturada. A racialização oriunda desse processo alienante cria
mecanismos de compensação e liberação psíquicas que permitem ao branco
liberar simbolicamente a sua agressividade e, ao mesmo tempo, isentar-se da
culpa ou responsabilidade pelos privilégios vividos.
Se a psicanálise é um questionamento constante sobre a enunciação e o
endereçamento do discurso, parece fundamental que passe a integrar a crítica
deocolonial, uma vez que essa crítica, quando dirigida à psicanálise, consiste
em perguntar se é possível problematizar a enunciação sem ter em conta a
colonialidade do saber em nível clínico, teórico e epistemológico. Ou, sendo
ainda mais incisivo, até que ponto a teoria psicanalítica não carregaria em si
o imaginário europeu?

O importante na memória, na lembrança ou no esquecimento não é pois


tanto a verdade, mas o jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios,
as mentiras, as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhos e
os lapsos, em suma, a resistência à admissão. Enquanto complexos de
representação poderosos, a memória, a lembrança e o esquecimento
são, estritamente falando, atos sintomáticos. Esses atos só têm sentido
em relação a um segredo, que não chega realmente a sê-lo, mas que nos
recusamos a admitir. É nesse aspecto que derivam de uma operação
psíquica e de uma crítica do tempo. (MBEMBE, 2018, p. 186).

No entanto, se a psicanálise, por definição, posiciona-se como o avesso


da razão, e visa, na sua escuta, a desconstruir o imaginário da razão, em que
medida ela faz esse trabalho de arqueologia dos seus próprios conceitos e
não perpetua certos aspectos implícitos do pensamento da razão? (AYOUCH,
2019, p. 194).

Uma negra para chamar de sua55


Descolonizar os conhecimentos é imbricar-se em uma luta contra o epis-
temícidio e, assim, contra o racismo. É um trabalho árduo e contínuo. É uma
responsabilidade de todes que querem se somar em uma luta antirracista.
Em 2020, a colonialidade brasileira e branca continua [de]negando a in­
telectualidade de pretas e pretos. E não é porque não existam. Nas palavras
de Neusa Santos Souza,

(...) saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua


identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências,
compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a ex-

55 Djamila Ribeiro, por exemplo, tem ocupado um espaço amplo e freqüente na mídia de massa.

113
periência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas
potencialidades. Aqui esta experiência é a matéria prima. É ela quem trans­
forma o que poderia ser um mero exercício acadêmico, exigido como mais
um requisito da ascensão social, num anseio apaixonado de produção de
conhecimento. É ela que, articula com experiências vividas por outros ne­
gros e negras, transmutar-se-á num sabe^ que - racional e emocionalmente
- reivindico como indispensável para negros e brancos, num processo real
de libertação. (SOUZA, 1983, p. 18).

A universidade e as referências bibliográficas, na psicanálise, continuam


sendo a biblioteca da Casa-Grande. Com raras exceções, não vemos pretas
e pretos nas instituições psicanalíticas. Nos consultórios e nas instituições
psicanalíticas, os quadros, os livros e os bibelôs formam uma decoração tipi­
camente europeia.
Nos últimos anos, uma série de mudanças relativas a essa (in)visibilidade
dos negros surgiu, seja por interesses mercadológicos, seja pela luta política,
seja como efeitos de políticas públicas como as ações afirmativas. Entre as
primeiras, é significativo o aumento da presença de negros em propagandas,
decorrente do aumento de negros consumidores no mercado, como também
a presença em revistas, jornais, cadernos e seções especializados. Talvez por
isso a chamada onda negra não seja apenas uma onda e venha para ficar.
Mas, nesse caso, a territorialidade local, os insiders (pretas e pretos) avisam
que não é para ir chegando e surfar essa onda sem ir nas águas profundas da
alma da branquitude, naquilo que insiste em desumanizar o outro e em não
reconhecer que há uma neurose fundante marcada pela colonialidade e pelo
pacto civilizatório da branquitude.
Mesmo quando autores negros vêm sendo amplamente citados, como o
filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe e seu conceito de Necropo-
lítica (2019), é preciso desconfiar tanto das intenções quanto do uso. Achille
Mbembe, apesar de dialogar .com autores europeus, o faz de modo a subverter
toda a filosofia europeia. Ele olha desde a África para pensar de modo original
a colonialidade. Nesse sentido, a “descolonização como um processo político
é sempre uma luta para nos definir internamente, e que vai além do ato de
resistência à dominação, estamos sempre no processo de recordar o passado,
mesmo enquanto criamos novas formas de imaginar e construir o futuro”
(HOOKES, 2019, p. 36).
Lélia Gonzales também vem caindo nas graças da psicanálise, “uma negra
para chamar de sua”, provavelmente porque dialogou com a psicanálise, com
seu arcabouço teórico e suas ferramentas conceituais, e esse fato a torna mais

114
palatável. No entanto, a autora o fez para denunciar o racismo e o sexismo em
relação à mulher negra e, ao mesmo tempo, revirar o que chama de consciên­
cia, como o que se expressa como efeito do discurso dominante numa dada
cultura, mediante a imposição do que fica afirmado como verdade, numa
ocultação da memória. “A memória, a gente considera como o não saber que
conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi es­
crita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como
ficção” (GONZALEZ, 1984, p. 226).
Paul Gilroy descreve cinco mecanismos distintos de defesa do ego pe­
los quais o sujeito branco passa para que possa se tornar consciente de sua
branquitude e de si próprio como perpetrador/a do racismo: negação, culpa,
vergonha, reconhecimento e reparação (GILROY apud Kl LOMBA, 2019, p. 43).
Os/as psicanalistas brancos/as, no Brasil, parecem ainda estar pulando etapas,
tendo muito trabalho de elaboração pela frente. Um modo de começar seria
uma discussão profunda sobre as ações afirmativas (para grupos e indivíduos
subalternizados) nas instituições psicanalíticas. A convivência com a diferen­
ça funciona como um potente motor de mudança, bem como o exercício de
escrita e a análise pessoal sobre a própria branquitude.
O privilégio construído epistemológico, cultural e socialmente em torno de
raça, classe e gênero dá autoridade de fala a unse nega a Outros (fala, aqui, no
sentido de pensarmos e reivindicarmos nossos direitos, em todos os aspectos,
refletindo-se, assim, acerca da justiça e da liberdade).
Segundo Ana Mussati-Braga (2015):

Ao encontrarmos estudos de psicanalistas negras que tinham se debruçado


sobre a questão da negritude, numa interface entre psicologia social, psi­
canálise e sociologia, fomos nos deparando com um outro-mesmo tipo de
apagamento dessas autoras: fosse ele em relação ao nome ou à história de
cada uma delas, ou ainda à obra e até mesmo à cor de suas peles. Com isso,
podemos dizer que esse silêncio da psicanálise brasileira sobre o negro tem
consistido num duplo silenciamento e apagamento sobre os negros e ne­
gras, seja como autores, seja como temática relevante (BRAGA, 2015, p. 79).

Diante de todo esse contexto, percebe-se a necessidade de representativi-


dade da mulher negra na sociedade para encarar essas feridas, para curá-las.
As pessoas negras e nossos aliados nessa luta devem estar comprometidos em
realizar os esforços de intervir criticamente no mundo, incorporando a autocrí­
tica, no seu processo de análise, à própria branquitude, a fim de que possam

115
ter uma desalienação e assumir uma posição sobre o racismo, se colocar no
lugar do outro e não colonizar seu lugar de fala, como teimam em repetir.
À guisa de concluir, pergunto: quais as questões, para a psicanálise pra­
ticada no Brasil, relativa às marcas de um saber, que se tentou apagar, re­
cusar, desmentir? Parece que temos um efeito Vie denunciação por parte da
sociedade brasileira e da própria psicanálise, ou seja, um modo de enunciar
a presença de uma representação recalcada que insiste em não reconhecer e
não validar a experiência perceptiva e afetiva da violência sofrida e perpetrada
cotidianamente. Portanto, o que se desmente não é o evento, mas o sujeito
(GEBRIM, 2018).
Caso a insistência/repetição/desmentido sobre o racismo e o sexismo se
perpetue em nosso país, como realizar uma intervenção clínica, se esta só é
possível no reconhecimento do trauma coletivo e singular, do analisante e
do analista implicado? Maria Lúcia da Silva aponta um percurso: “É preciso a
inauguração de uma psicanálise brasileira comprometida com a construção
de uma clínica que não recuse a realidade histórico-social de nosso país e que
leve em consideração o impacto dessa história na construção das subjetivida-
des” (SILVA, 2017, p. 87).
referências

ALVAREZ, S. E. Construindo uma política feminista translocal da tradução. Estudos Feministas,


Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 743-753, set./dez. 2009.
AMBRA, P. O lugar e a fala: a psicanálise contra o racismo em Lélia Gonzales. Sig Revista de
Psicanálise, Porto Alegre, p. 85-101, 2019.

AYOUCH,T. PsicanáliseeHibridez: gênero, colonialidadeesubjetivações. Curitiba: Caligraphie, 2019.


BARRETO, R. A. Enegrecendo o feminismo ou feminizando a raça: narrativas de libertação em
Ângela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
BICUDO, V. L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo [1945]. São Paulo: Sociologia
e Política, 2010.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civi­
lização Brasileira, 2003.
CARNEIRO, C. A.; MORI, M. E. Lugares de Fala: rotas da escravidão da mulher negra brasileira.
Associação Livre IX, p. 28-31,2018.
CARNEIRO, S. Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese (Doutorado
em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.
CAON, J. L.; D’AGORD, M. Do gozo de ser vítima predileta. Deslocamentos, v. 1, n. 1, p. 55-69,
jun./nov. 2019.
CHNAIDERMAN, M. Brasil perverso, Brasil melancólico, Brasil histérico - e daí? In: ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Narrativas do Brasil. Porto Alegre: Associação Psicanalítíca
de Porto Alegre, 2005. p. 70-80.
COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento
feminista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127,2016.
COSTA, J. F. Prefácio: da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, N. Tornar-se negro.
2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p. 1-16.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.
FANON, F. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
FERNANDEZ, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
FREUD, S. As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 11. Rio de Janeiro: Imago,
[193Q]1996a. p. 13-22.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psi­
cológicas Completas de Sigmund Freud, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, [1930]1996b. p. 75-174.
GEBRIM, A. C. C. Psicanálise no front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica
com migrantes. IPUSP/INALCO: Tese de Doutorado, 2018.
GOMES, J. D. Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955).
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

117
GONZALEZ, L. A categoria politico-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro
n. 92-93, p. 69-82, jan./jun.1988.
GONZALEZ, L. Racismo e sexismo. Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, p. 223-244,1984.
GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, M. T. (org.). O lugar da mulhe
estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Riç> de Janeiro: Edições Graal, 1982. p.
87-106.
HOOKS, B. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
JERUSALINSKY, A. A psicanálise e o cocar (os limites éticos do discurso colonial). Correio da
APPOA, v. 71, p. 42-46,1999.
Kl LOMBA, G. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobo
2019.
LACAN, J. O Seminário: livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-l Edições, 2018.
MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São
Paulo: N-l Edições, 2019.
MUSATTI-BRAGA, A. P. Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da psican
se sobre mulheres negras. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidad
de São Paulo, São Paulo, 2015.
NOGUEIRA, I. B. Significações do Corpo Negro. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P
(orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 73-118.
RATTS, A.; RIOS, F. Lélia Gonzales. São Paulo: Selo Negro, 2010.
RIBEIRO, D. Lugar de Fala. São Paulo: Polén, 2017.
REIS FILHO, J. T. Negritude e sofrimento psíquico: uma leitura psicanalítica. Tese (Doutorado
em Psicologia) - Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
SILVA, M. L. Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In: KON, N. M. ABUD,
C. SILVA, M. L. (orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, São Pa
Perspectiva, 2017,304 p.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre
v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
SOUZA, N. S. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em as­
censão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
TEPERMAN, M. H. I.; KNOPF, S. Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira. Jornal
Psicanálise, São Paulo, v. 44, n. 80, p. 65-77, jun. 2011.
VOZES NEGRAS FEMININAS
ECOAM POÉTICAS
E AQUILOMBAMENTOS
SUBJETIVOS
Liziane Guedes da Silva
A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo.
Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.

(NASCIMENTO, 1989 apud NASCIMENTO, 2018, p. 38)

No princípio estava a questão: por que escrevemos?


Desde o início, ao receber o convite para compor esta obra, venho me
interrogando sobre as possíveis contribuições. Ora, meu debate não está lo­
calizado a partir das questões de gênero, considerando que minhas pesquisas
versam sobre as experiências de pessoas negras na diáspora africana no Brasil
atualmente, focadas nas infâncias de crianças negras (SILVA, 2020; SILVA &
NOGUERA, 2020). Mas então, sendo assim, por que aceito este convite? +
Primeiro, por não se tratar de um convite e de uma resposta óbvia, o que
me faz supor que é a sustentação dos dissensos que pode interessar nesta
obra (NOGUEIRA, 2017). Segundo, pela complexidade em afroperspectivizar
as experiências subjetivas de pessoas negras imbricando gênero, classe e ter­
ritório, sobretudo por ser essa uma questão que certamente já me interessa­
va. Terceiro, pela possibilidade de articular idéias e questionar onde escutas
clínicas são colhidas (NASCIMENTO, 2018; DAVID, 2018). Quarto, em busca de
pensar as experiências subjetivas negras diasporizadas a partir de narrativas
potencializadas e pluriversais, apontando alegrias e amores, enquanto estra­
tégias de reinvenção às experiências do colonialismo, racismo e sexismo, entre
outras opressões que se apresentem nas experiências singulares.
A partir de alguns questionamentos, evocamos vozes negras femininas,
colhidas em uma pesquisa de conclusão de graduação em psicologia, realizada
juntamente com o Sarau Sopapo Poético, para auxiliar a pensar, em processos
de diálogo com a Psicologia Preta, a Filosofia Afroperspectivista e Aquilombar,
enquanto categoria clínico-política.

“Há portas que só se abrem por dentro”


Ao longo da graduação e pós-graduação em psicologia na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, venho pensando sobre a psicologia que está aí.
Mas não foi de cara que essa questão se apresentou. Ela se foi anunciando,
em disciplinas coloniais de um debate supostamente universal e que tomava,
muitas vezes, de forma hegemônica, um determinado sujeito a ser ouvido.

120
0 estopim se deu com a participação nos espaços de formação dos mo­
vimentos negros, dentro da universidade, mais especificamente através dos
Coletivos Negros Negração e Psicopreta. Da mesma forma, mais que os espa­
ços da categoria, foi o contato com psicólogas e instituições negras (ou seja,
geridas por pessoas negras e com postura ético-política antirracista), fora da
universidade, que me levou a fazer novas proposições. Foi dessa forma que o
pensamento deixou de partir de um “eu” para se situar desde um “nós”.
Mãe Preta, mentora espiritual da Comunidade Quilombola Morada da
Paz, diz que “há portas que só se abrem por dentro”. Com a psicologia, histo­
ricamente, tem sido dessa forma para nós. Enegrecer, denegrir, afrocentrar,
afroperspectivizar são caminhos no intuito de visibilizar a construção de pen­
samento de sujeitos negros. Tais autorias costumam ser invisibilizadas pelo
racismo epistêmico (NOGUERA, 2014) e seu correlato epistemicídio, entendido
como

o assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquis­


tados. O epistemicídio não nivelou e nem eliminou totalmente as manei­
ras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu,
entretanto, - e numa dimensão muito sustentada através de meios ilícitos
e “justos” - a tensão subsequente na relação entre as filosofias africana e
ocidental na África. Um dos pontos fundamentais da argumentação nes­
te ensaio é investigar a fonte de autoridade que supostamente pertence
ao Ocidente para definir e descrever, em última instância, o significado
de experiência, conhecimento e verdade em nome dos povos africanos
(RAMOSE, 2011, pp. 5-6).

Considerando esses apontamentos iniciais, este capítulo pretende costurar


interrogações, no intuito de refletir quais arranjos a psicologia precisa fazer
para escutar pessoas negras, desde suas centralidades. Como pode a psicologia
auxiliá-las em seus processos subjetivos? Com quais autorias é preciso dialogar
para que esses sujeitos possam ter suas narrativas escutadas e acolhidas?

Afrocentricidade e filosofia afroperspectivista: evocam


vozes africanas diasporizadas:
Faz tempo que não utilizo a palavra “claro” no sentido de esclarecer. Bus­
co substituí-la por “salientar”, “tornar nítido” ou coisa do tipo. Por quê? Você
nunca parou para pensar nas palavras que escolhe e naquelas que deixa de
lado? Se não, quero lhe dizer que você não é a única/o único. Mas, ainda assim,

121
a pergunta é necessária. De quais palavras você faz uso sem refletir sobre as
raízes?
Molefi Asante aponta que toda linguagem é epistêmica; portanto, ela pre­
cisa “contribuir para o entendimento de nossa realidade” (ASANTE, 2014, p,
54). No que diz respeito à produção de conhecimento e de espaços de escuta,
temos contribuído para os múltiplos entendimentos das realidades sociais no
campo da psicologia?
No intuito de fazer pensar, traremos para o diálogo a Afroperspectividade,
a Afrocentricidade e Aquilombar. Entendemos que tais recursos são importan­
tes porque partem das centralidades e da pluriversalidade de pessoas negras
na diáspora africana, considerando o tempo e espaço em que se inserem.
A Afrocentricidade nasce nos anos 80, a partir do Block Studies, nos Estados
Unidos, tendo como referência Molefi Asante. Sua “proposta epistemológica
de lugar” afirma a importância do lugar social, geográfico e epistemológico
de qualquer narrativa (ASANTE, 2009). Nesse sentido, a proposição de conhe­
cimento precisa dialogar com a posição do próprio sujeito no mundo e partir
de suas necessidades e referenciais. Ou seja,

tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, eco­


nômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condi­
ções em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na
África e sua diáspora [...] procuramos reorientaros africanos a uma posição
centrada (ASANTE, 2009, pp. 93-94).

A Filosofia Afroperspectivista, por sua vez, oferece elementos para pro-


blematizar a produção de conhecimento (tomada como) hegemônica e as
corporeidades brancas-eurocêntricas-cisheteronormativas de quem as pro­
duz. Parte do campo da filosofia e da educação, em busca de uma reunião
de “produções filosóficas africanas, afrodiaspóricas e comprometidas com
o combate ao racismo epistêmico”, para assumir a pluriversalidade da pro­
dução de pensamentos, conhecimentos e saberes (NOGUERA, 2014, p. 81).
Sua diferença em relação à Afrocentricidade é justa mente o lugar e o tempo
de onde parte. A afroperspectividade nasce em território brasileiro, nos anos
2000, com as proposições iniciais de Renato Noguera, que conceitua a Filosofia
Afroperspectivista enquanto

uma cosmossensação policêntrica, uma abordagem polirracional que se


orienta com pretensão à pluriversalidade, uma abordagem teórica e me­
todológica que surge no contexto das ciências humanas tendo como ins­
pirações o quilombismo de Abdias do Nascimento, a afrocentricidade na
formulação de Molefi Asante e o perspectivismo ameríndio pensado pela
antropóloga Tânia Stolze Lima (NOGUERA, 2019, pp. 54-55).

Pode-se dizer que a afroperspectividade “reconhece diversos territórios


epistêmicos” e tem como pressuposto lançar mão de perspectivas e métodos
distintos (NOGUERA, 2014, p. 68). Com isso, visa a abrir brechas para “trabalhos
africanos e afrodiaspóricos em prol da desconstrução do racismo epistêmico”,
para uma sociedade que respeite e valorize matrizes culturais múltiplas (NO­
GUERA, 2014, p. 68). Ela não necessariamente se ocupa de buscar a paz, mas
sim de reconhecer os conflitos e erigir as bases para uma convivência no dis-
senso, numa aposta para a pluriversalidade (NOGUEIRA, 2017; RAMOSE, 2011).
De fato, ao longo da história das sociedades, quando compreensões universais
se sobrepujaram às compreensões pluriversais, acabamos por testemunhar
experiências de colonialismo, antissemitismo, escravidão etc., a negação do
outro e de sua forma de ser/estar/conhecer (FANON, 2008).
Por esses motivos, um debate entre os saberes do campo psi com a Afro­
centricidade e a Afroperspectividade são tão caros e férteis para pensarmos
as questões subjetivas e tantas outras sobre as quais a Psicologia Preta vem
se debruçando.

Psicologia preta e o dispositivo clínico-político


aquilombar
A Psicologia Preta é uma teoria cunhada nos anos 70, nos Estados Unidos,
a partir dos Black Studies, tendo como principal autor Wade Nobles. A partir
desse corpus teórico, ela visibiliza que os efeitos perversos do colonialismo e
do racismo na construção ocidental têm ocupado a centralidade do debate,
prejudicando o reconhecimento das importantes estratégias utilizadas pelos
povos diasporizados para lidar com essas violências. Para Nobles, o “poder do
senso de africanidade” utilizado para sobreviver pelos africanos e africanas,
na diáspora e no continente, tem sido deixado de lado, o que é um equívoco e
constrói leituras distorcidas a respeito das pessoas africanas, nos contextos em
que se inserem (NOBLES, 2009). A Psicologia Preta assume a necessidade de

destacar as limitações da psicologia, uma ciência colonial, em analisar os


efeitos que este mesmo sistema cria no sujeito negro, e principalmente pro­
por uma compreensão psicológica a partir dos termos dos/as próprios/as
africanos na diáspora, na busca de enxergá-los/as para além dos desajustes
de uma vida em uma sociedade racista (NOBLES, 2009, P 283).

123
Diante dessa proposição, qualquer sujeito localizado a partirda Psicolo­
gia Preta deveria se debruçar sobre os significados a respeito de “ser africano
(negro), seus significados psicológicos e funções associativas ou a teoria(s)
necessárias(s) com respeito aos processos psicológicos africanos normais”
(NOBLES, 2009, pp. 277-278). Nobles não negá os efeitos da violência colo­
nial. Pelo contrário, afirma que os caminhos que os povos africanos seguiriam
foi desviado com o processo de colonialismo e escravidão. Para ele, essa é a
metáfora do descarrilhamento, em que aponta que vivemos os efeitos de sair
dos trilhos do “desenvolvimento africano”, em termos sociais, econômicos,
políticos, psicológicos, históricos etc., diretamente relacionado aos processos
de colonialismo e seus efeitos atuais (NOBLES, 2009, pp. 283-284).
Em busca de um processo de recarrilhamento, Nobles aponta a necessida­
de um cuidado coletivo, visto que toda a comunidade, e não apenas sujeitos
individuais, tem sofrido esses efeitos. Dessa forma, o recarrilhamento subjetivo
só poderia se dar mediante o caminhar coletivo, colocando duas questões
importantes: a) os processos de sofrimento impostos a pessoas negras não
são acontecimentos isolados, visto que o cerne do problema é a estrutura
racista da sociedade e sua episteme colonial - portanto, precisam ser tratados
coletivamente; b) as pessoas negras, na diáspora e no continente, precisam ser
narradas em sua integralidade, e não apenas em situações de dor, sofrimento
e opressão, visto que esse é um efeito de um processo produzido por agentes
externos - portanto, é uma parte da história, e não a visão inteira.
Produzir conhecimento e escuta desde a Psicologia Preta tem a ver com
“entender, interrogar, explicar o significado, a natureza e o funcionamento do
ser humano para o povo africano”, na diáspora e no continente, no intuito de
reinventar possibilidades de diálogo entre a psicologia e os sujeitos negros
diasporizados, a partir das necessidades e de termos desses sujeitos, tanto
de opressão e sofrimento quanto de cuidado e reinvenção, respeitados o(s)
tempo(s) e espaço(s) em que se encontrem (NOBLES, 2009, p. 293).
Ou seja, mais do que apenas compreender o “eu” numa perspectiva am­
pliada, a Psicologia Preta interroga se é possível construir processos de ree-
laboração de si sem que a comunidade esteja envolvida, sustentando que “o
paciente tem de ser a comunidade inteira” (NOBLES, 2009, p. 291). O que está
em questão é assumirque uma construção subjetiva sempre passa pela comu­
nidade na qual esse sujeito se insere, ideia que dialoga com a Filosofia Ubuntu,
para a qual “a pessoa é uma pessoa através de outras pessoas” (KASHINDI,
2017, p. 7). Nossas (re)existências estão interligadas com as pessoas que nos
constituíram, com as comunidades com as quais temos laços de afeto e con-
fiança. Não quer dizer que não há espaço para o individual, mas que ele está
fortemente interligado com as coletividades de sua constituição, para além
de questões de consangüinidade.
Um posicionamento epistêmico preto e afroperspectivista exige reconhe­
cer as múltiplas compreensões negras em qualquer território, considerando
as dimensões geográficas e socioculturais. Sustentamos a existência de uma
conexão entre as diversas formas de ser sujeito negro na diáspora africana, re­
conhecendo que há pontos de conexão, mesmo em territórios geograficamente
longínquos, como as regiões do próprio Brasil, que colocam singularidades
em cada território.
Trazendo esses aspectos, entendemos que Aquilombar, para as pessoas
negras, pode operar enquanto uma ferramenta clínico-política de (re)existência
subjetiva. Na história do território brasileiro, os quilombos foram as primeiras
experiências de vida em liberdade, bem como em muitos outros territórios
amefricanos, uma composição americana, ameríndia e africana, que repousa
sobre a categoria politico-cultural de amefricanidade, como nos ensina Lélia
González (1988). Tais organizações sociais erigidas em solo brasileiro (antes
de o Brasil existir enquanto nação) perduraram por mais de um século em
luta contracolonial.
As sociedades quilombolas de outrora constituíram a sociedade brasileira
e podem oferecer pistas sobre como (con)viver na diferença hoje. Por isso,
apostamos em Aquilombar como possibilidade de forjar modos de subjeti-
vação, a partir desse lugar geográfico e subjetivo. Entendemos Aquilombar
como estar entre os seus e as suas, ser apresentado a informações-chaves
para problematizar narrativas estereotipadas, perceber fios de aproximação
socioculturais entre sujeito tomados como desviantes, afirmar-se na diferença
e potencialidade de ser quem se é, entre outras possibilidades. Não se rela­
ciona com segregar (apesar de já vivermos em sociedades segregadas), mas
sim com construir espaços seguros, coletivos e de enlaces de confiança, em
tempos de luta e de paz (NASCIMENTO, 2018).
Para Beatriz Nascimento (2018), herdamos dos quilombos uma continuida­
de histórica. A autora percebia uma conexão entre as lutas contra a escravidão
e a resistência à opressão atualmente vivida por pessoas negras. Ou seja, “o
quilombo para nós, não é um fato subordinado, mas um processo continuum
na História total do país” (NASCIMENTO, 2018, p. 225). Em sua hipótese, os
quilombos não acabaram com o fim oficial da escravidão, mas se mantiveram
em funcionamento na reorganização da sociedade negra, presentes com outros
nomes e estratégias de luta.

I

125
É nesse sentido que apostamos em Aquitombar enquanto um dispositivo
clínico-político, remetendo aos quilombos de outrora e reivindicando a ances-
tralidade presente nas comunidades negras atuais. Ou seja, Aquilombar resgata
os quilombos como espaços de sustentação de um sistema social alternativo
e diz de uma afirmação existencial, em que V

o quilombo é hoje uma metáfora, um verbo, um imperativo, uma tradição.


Uma forma de estar no mundo pautada na junção de saberes do corpo, do
intelecto e da alma. O quilombo hoje habita em nós. Não como um territó­
rio externo a ser alcançado, como no período da escravidão, mas como uma
episteme negra, elaborada a partir do acúmulo de resistência, tradições,
valores sociais, culturais e políticos. Dentro de cada aquilombado está o
imperativo de reinterpretar a tradição e segui-la (BARRETO, 2018, p. 37).

Essa aposta, ressaltamos, não exclui a compreensão das diferenças das


pessoas negras no Brasil. Pelo contrário, nos implicamos com a ideia de “isso e
aquilo”, idéias de inclusão, visto que ser uma pessoa negra assume diferentes
aspectos e concepções, a respeito de si e sua comunidade, de acordo com o
tempo e espaço habitados (NOGUERA, 2014, pp. 33-34). Cientes da problemati-
zação constante de um resgate de uma África mítica, ressaltamos as dinâmicas
plurais e distintas das populações africanas diasporizadas; portanto,

o primeiro aspecto a levarmos em consideração é o das populações afri­


canas em sua diversidade, mas que são uníssonas a seus ancestrais, e que
precisam trazer à tona o reconhecimento de suas produções, suas con­
quistas, o como aprenderam a cuidar enquanto comunidades ancestrais.
O segundo aspecto é que a colonização foi desastrosa, desestruturante e
cruel contra as populações africanas (bem como das outras colônias em
outros continentes), mas não absoluta (SILVA, DIAS & SANTOS, 2020, p. 177).

Para David (2018), Aquilombaré uma ação política, equitativa e singular,


estrita mente necessária para dialogar com matrizes socioculturais e de cui­
dado da maioria da população - que é, em território brasileiro, a maior parte
atendida pelo SUS -, ou seja, a população negra. Assim,

aquilombar-se, enquanto princípio, é resistir em busca libertária, aboli­


cionista e antirracista, valorizando os aspectos territoriais e culturais da
população que predominantemente tem sido vitimada à lógica manicomial:
a população negra. Esta é vítima diuturna de um estado que busca lhe fazer
anônima, indigente, presa, morta e, acima de tudo, medicaiizada (DAVID,
2018, pp. 122-123).

126
Assim como entendem Santos & Lanari (2020), apostamos que “há um
quilombo em nós, ele não é geográfico, é cartográfico, isto é, trata-se de uma
dimensão afetiva-diaspórica, o afeto enquanto uma avaliação, uma perspectiva
ética”, que afirma “as linhas de singularização de cada um” e onde é possível
sustentar as “diferenças que entram em composição [...] das fronteiras inter-
seccionais de raça, gênero, classe, orientação sexual, possibilitam a experiência
da subjetividade” em construção constante (SANTOS & LANARI, 2020, p. 27).
Para o debate do cuidado em saúde mental, compreendemos a riqueza e
potência do diálogo entre a Afrocentricidade, a Afroperspectividade e Aquilom-
bar, porque as três perspectivas ético-teórico-políticas apostam no “resgate
dos saberes tradicionais; a descolonização das práticas terapêuticas; o trazer
para o contexto da reforma psiquiátrica as teorias e os ensinamentos africanos
e diaspóricos” (DAVID, 2018, p. 122). Dito isso, gostaríamos de chamar o Sarau
Sopapo Poético à roda do debate com seus processos de aquilombamento,
desde o sul do Brasil.

Sarau sopapo poético - (re)existências aquilombadas a


partir de vozes negras femininas
Minhas pesquisas, ao longo da graduação e pós-graduação no campo da
psicologia, têm se concentrado em territórios negros afroperspectivistas e suas
produções clínico-políticas. Elas versam sobre os modos de subjetivação para
pessoas negras na diáspora africana, sobretudo ao sul do Brasil. Nesses deba­
tes, os espaços em que a arte negra se insere são privilegiados, considerando
a potencialidade que oferece para que modos de subjetivação se propaguem,
forjando brechas nas narrativas estereotipadas sobre ser negra e negro.
O Sarau Sopapo Poético - Ponto Negro da Poesia é um desses espaços
no sul do Brasil. Foi nos pátios do Instituto de Psicologia da UFRGS que co­
nheci o Sambarau (samba com sarau), organizado pelo coletivo Negração.
Pouco depois, o Sambarau e o Negração me apresentaram ao Sopapo Poético
(FONTOURA, 2019; FONTOURA; SALOM; TETTAMANZY, 2016). Neles encontrei a
poesia negra. E “me encontrei”, como nos poemas de Oliveira Silveira.
O Sopapo “busca, além da criação de um espaço comunitário e de trânsito
de vivências, promover a integração entre a arte negra e seu sujeito, mediante
o discurso poético” (SOPAPO POÉTICO, 2015). Um artista negro ou negra é
homenageado em cada edição, juntamente com a arte que ocupa o centro da
roda. O principal elemento de manutenção da agência desse sarau é a narrativa
de afirmação de sujeitos negros.
0 território de existência alimentado no sarau me encantava. Era como
se, na aproximação com esses sujeitos, se construísse uma possibilidade de
enunciação de si, produzindo modos de subjetivação. Parecia-me que uma
energia vital encostava nas pessoas, presentes de corpo e espírito, de forma
material mesmo, na musicalidade, na estética, nós corpos negros, nas pinturas
das paredes e, principalmente, na evocação da palavra. Ali enxerguei a palavra
operando enquanto elemento de costura e, por essa potência, escolhi o So­
pa po como campo de pesquisa. Fazia muito sentido apostar nesse território
constituído pela palavra, visto que nosso fazer psi se constitui também pela
palavra e pela escuta.
Nas linhas a seguir, trazemos as palavras colhidas e proferidas por mulhe­
res negras, participantes ou organizadoras do sarau, fruto de cinco entrevistas
individuais e duas entrevistas com casal (com pessoas mulheres organizadoras
do sarau), e uma roda de conversa com dezessete pessoas.
Para disparar o diálogo, as seguintes questões foram organizadas: Pen­
sando a respeito do Sarau Sopapo Poético na vida de cada uma e cada um de
vocês: Como surgiu? Como tem sido? E por que se mantém? O que representa
negritude para vocês? Como o Sarau influencia/influenciou nessa compreen­
são? O que o Sarau necessita para se manter, se reinventar? Quais os planos
possíveis para esse território, na sua concepção?
Os nomes abaixo (em itálico) retomam mulheres negras importantes na
história do território brasileiro e substituem os nomes das participantes do sa­
rau, que, embora tenham optado por serem identificadas na época da pesquisa
do TCC, não o serão, por questões colocadas pela ética em pesquisa. Os grifos
em negrito são nossos. Chamamos à roda Luiza Mahin, Lélia González, Carolina
Maria de Jesus, Léia Garcia, Maria Firmina dos Reis, Assata Shakur, Noémia de
Sousa, Virgínia Leone Bicudo, Luiza Bairros e Paulina Chiziane,
Luiza Mahin, que integra a organização do Sarau, havia passado a compor
a organização há pouco tempo. Sua fala me marcou, enquanto pesquisadora,
e sempre me recordo da importância do sarau em sua vida. A respeito de sua
chegada no Sopapo, ela diz que foi como

Se eu estivesse de volta em casa. Toda aquela gente preta, gente igual,


gente diferente, gente que aceita a diferença, homossexual, gente que não
tem uma formação e gente que tá na faculdade, gente preta estudando
medicina, sabe!? Foi uma coisa, e continua sendo pra mim, muito forte!
Outro dia eu tava comentando com uma amiga: nossa, o pessoal do Sopa­
po não imagina quantas vezes eles salvaram a minha vida e continuam
me ajudando nesse sentido.

128
Recordo-me que, após narrar sua experiência com o Sopapo, Luiza Mahin
estava emocionada, assim como eu. Parece-me que, ao referir que o Sopa­
po havia salvado sua vida, Luiza Mahin estava se referindo aos processos de
(re)existir que aquele aquilombamento permitiu, a partir de todo o enredo
que compõe o Sarau. Com o passar do tempo, ela já estava com o microfone
anunciando as pessoas que iriam adentrar na roda, cada vez mais inserida no
território do sarau.
Lélia Gonzálezé atualmente uma das organizadoras do sarau. Declama
suas poesias com sua voz estrondosa e com o corpo inteiro, traçando um cor-
poema (OHNMACHT, 2019). Por vezes, articula letras delicadas, mas nem sem­
pre, visto que a palavra cura, mas pode matar; fere, mas pode curar; como o
poema anterior referiu. Ela conta que reconheceu no Sopapo as “caraspretas
dos irmãos”. Assim, soube que era seu lugar, fazendo referência aos espaços
de poesia da cidade por onde já havia transitado.

É aqui que eu quero ficar. E as pessoas me receberam muito bem. O grupo


é uma família. Eu posso dizer que o sarau me proporcionou conviver com
pessoas maravilhosas. Hoje em dia também tenho vários parceiros musi­
cais em função do próprio sarau. Surgiram músicas minhas musicadas [...]
A gente acabou gravando, né!? E outros tão surgindo aí, o próprio poema
do nosso querido Oliveira [Silveira] [a respeito] de Palmares, que vai sair
em CD e vai sair em livro, que tá ficando lindo, gente, um trabalho mara­
vilhoso. Então, são coisas que vão se criando porque a gente tem essa
ancestralidade, a gente tem um fio que nos une que é muito forte, e
isso cada vez mais vai se tornando mais forte porque a gente conhece
as nossas lutas, as nossas causas, e a gente se olha e se compreende. E
é difícil, eu já participei de vários grupos, o quanto é difícil isso acontecer
nos grupos... e hoje em dia é uma casa, é uma casa de amigos, que me faz
muito bem toda vez que tem, a gente sabe que vai ter uma vez por mês.
Quando a gente vê, ultimamente é o [fotógrafo] Feijão que tem tirado as
fotos, né, quando a gente vê aquela foto final, aquelas caras pretas tudo
assim, irradiando alegria, tá valendo a pena.

Lélia González não esconde que Aquilombar não é uma tarefa fácil, apesar
de haver fios ancestrais de enlace. Sua fala demonstra os desafios que há em
sustentar a existência de um espaço como o Sopapo, mês após mês, envolven­
do planejamento, organização, investimento financeiro (visto que a entrada é
sempre gratuita, embora seja passada uma caixa de contribuição que reúne
dinheiro de quem freqüenta o espaço) e, principalmente, de tempo. Mesmo
assim, ela ressalta que o esforço vale sempre, o que é reafirmado a cada final

129
de sarau, quando o encontro é registrado pelas lentes da fotografia, com os
sorrisos e as cores das pessoas ali reunidas.
Carolina Maria de Jesus, uma das fundadoras do sarau e a mais velha que
abre a roda de poesia saudando os orixás, comenta que um dos efeitos de par­
ticipar do Sarau é se sentirem casa e contar os dias para o próximo encontro.

As pessoas se sentem assim, meio protegidas, meio que num quilombo.


Aqui eu posso, é meu território, eu posso rir do jeito que eu gosto, falar
as coisas do jeito que eu gosto, eu encontro as coisas que me identificam
que eu não encontro lá fora. [...] E o grupo, e a coisa da poesia e da arte,
ela é curadora. O grupo é muito curador, e a gente vê a transformação
das pessoas acontecendo. De todos nós, mas com certeza a gente vê mais
daquelas pessoas que não tinham a militância negra, política, que faziam
poesia, mas não tinha essa preocupação e esse reconhecimento.

Na entrevista realizada com ela e o marido, as questões espirituais de


integrar uma comunidade de matriz africana apareceram a todo momento.
O Sarau leva o nome de um tambor, Sopapo. Tambor característico do sul do
Brasil, da mesma forma que o batuque. Para Carolina Maria de Jesus, o Sarau
é de xangô, o orixá relacionado ao tambor, mas talvez também seja de Bará
- brincamos com isso -, porque, no fim das contas, é muito comum que as
pessoas atribuam as qualidades de algo aos orixás que fazem passagem em
quem enuncia. O Sopapo é de toda a ancestralidade, o que fica muito nítido
nas imagens de Oliveira Silveira e de Giba-Giba penduradas nas paredes da
sala em todos os encontros.
Léia Garcia é uma das fundadoras do sarau. Por muito tempo, abria as
rodas, até que traçou novos caminhos, morando em outra cidade, na qual
segue tendo uma relação muito próxima com a arte. Na época da entrevista,
ela fez questão de ler o projeto de pesquisa e o trouxe grafado. Conversamos
por bastante tempo, e suas contribuições foram essenciais para perceber uma
série de questões que compõem o sarau - algumas exploradas neste capítulo
e outras em diferentes trabalhos.

Outro dia, participando de um debate com uma professora de literatura,


ela falou que a nossa subjetividade é criada, forjada para a gente entender
o lugar do negro como um lugar de subalterno, o lugar do sofrimento, o
lugar do menos capaz, o lugar daquele que suporta todas as dores; en­
quanto o branco, ele é aquele ser mais delicado, aquele ser mais frágil, que
vai trabalhar com o intelecto. E aí ela disse: ‘eu me preparo, eu tenho me
preparado para não me comover com o branco em situação nenhuma, eu
tenho feito isso, eu me preparo para isso, porque o tempo inteiro a gente

130
é preparado para esse outro lugar’. Então, eu tenho tentado esse olhar.
Já faz algum tempo que eu fiz algumas opções na vida. Trabalho com
autores e autoras negros e negras. Eu não vou levar autores brancos ou
brancas para um trabalho público, porque tem muita gente pra fazer
isso, enquanto nós, ou somos nós que vamos fazer, ou somos nós que
vamos fazer.

Léia Garcia segue apontando a potência do Sarau em várias áreas que se


costuram com a arte:

Além das pessoas que são dedicadas à escrita, à música, tu vai ter as pes­
soas que cozinham, que costuram, tu vai ter quem faz cinema, tu vai ter
os vídeos. Então, eu acho que o sarau congrega uma série de atividades,
trabalhos, que é muito bacana, que é também esse espaço de troca, esse
espaço da gente se ver, esse espaço da convivência, o espaço de tentar fazer
minimamente que o nosso dinheiro circule na nossa mão. Então, são essas
experiências que são possíveis de serem realizadas em outros espaços que
me encantam no sarau, são coisas do sarau que realmente me encantam.

Maria Firmina dos Reis é uma das fundadoras do sarau, já atuou direta-
mente com o Sopapinho e hoje tem uma relação importante com a feira de
afroempreendedores. Ela aponta que

As pessoas estão tendo esse reconhecimento, e essa importância, e se


modificando também de algum modo, dentro do sarau, porque as pessoas
chegam com uma ideia e elas ficam impressionadas com esse efeito
que tem a poesia negra, sobretudo feita por pessoas negras. E essa
coisa do protagonismo negro, as pessoas estarem no centro da roda,
serem elas que falam por si. Então, isso é muito importante. Esse trabalho
[refere-se ao TCC] realmente é essencial, porque aprofunda bastante esse
efeito psicológico que faz nas pessoas.

Na entrevista realizada com Maria Firmina dos Reis, ela foi uma das pessoas
que mais adentrou nos desafios de construir uma imagem de si, enquanto
sujeito negro, que possa apostar na valorização da negritude. Além disso,
ela também anunciou os possíveis efeitos, para as crianças, de participar do
Sopapinho, inclusive fazendo brotar parte das questões da pesquisa atual
com o Sopapinho.
Assata Shakuré uma participante assídua do sarau.

Eu sempre digo, o Sopapo é algo que tá na minha agenda todo mês,


é meu espaço de terapia coletiva, muito potente, em diversas formas
e situações. Quando a gente tá dentro da universidade, a gente é toma­
do por tanta coisa ruim... e também tem isto: eu sou criada no campo da
Tuca, depois mudei pra zona norte. Minha família sempre foi muito grande,
uma família negra grande, muitas pessoas, de fato. Meu vô e minha vó
tiveram 18 filhos; então, muitos netos, uma família grande, real, criada
no quintal, brincando no campo. E quando... a primeira vez em que eu me
deparo com essa coisa do racismo, enfirçi, de como ele vai se estabelecen­
do, é dentro da universidade, e por isso também eu nunca tinha pensado
politicamente sobre ser uma mulher negra, sobre ser uma pessoa negra
dentro do Rio Grande do Sul, porque isso não me passava, eu sempre vivi
numa comunidade negra. Também sou cria de escola de samba, me criei
dentro da ‘Imperadores’. As coisas estiveram sempre muito conectadas.
Meu primo é MC, enfim... Então, quando eu encontrei o Sopapo, já nessa
fase de estar na universidade, passando por um processo bem inicial do
racismo que nos atravessa todos os dias, de situações bem específicas na
psicologia mesmo, na universidade federal, foi muito importante retomar
essa escrita, retomar essa leitura, que eu acho que, bem ou mal, sempre
estiveram ali. Por isso que eu falo sempre de um retorno. Na minha vida
nada aparece do nada, sempre tem algo que puxa alguma outra coisa que
já tava ali, mas não daquele jeito. [...] Esse encontro geracional é de uma
africanidade que me remete muito a minha infância, muito a essa vivência,
de quem foi criado numa comunidade com uma família negra, com todos
esses elementos... Eu tô no processo de escrita. Eu acho que essa é uma
nova proposta, de uma geração de pessoas que tão na universidade,
pessoas negras, de não mais denunciar o racismo nas nossas escritas,
nos nossos TCC’s e trabalhos, mas de buscar isso, essa africanidade, de
produção de saúde [...] porque, se a gente fica só no nível do racismo,
a gente não vive, nél? Então, buscar esses outros elementos [....] viver a
negritude, promoção de saúde, promoção de vida.

Noémia de Sousa é uma organizadora mais recente do sarau, uma artista,


poeta, cantora, compositora, que foi se revelando em cada roda do Sopapo.
Ela nos conta:

Só passei a me assumir enquanto negra depois que comecei a freqüen­


tar o Sopapo. Antes disso eu era morena, mulata, cor de cuia, sarará, me­
nos negra [...] acreditando que tudo aquilo é exagero, mentira, não quero
enxergar, tem aquela venda ainda nos olhos que a pessoa se nega a tirar.

Referindo-se à vizinhança do bairro periférico em que mora e que forjou


sua relação com sua negritude. Ela se questiona:

O que ia ser de mim se não tivesse o Sopapo Poético? Então a gente tem
que lutar por mais espaços como esses, entendeu!? Eu agradeço ao Sopapo
porter me convidado a fazer parte. Muitas parcerias de samba surgiram
ali, mas não apenas isso, parcerias de luta!

132
Noémia de Sousa traz em sua narrativa a experiência de viver em uma
comunidade periférica, onde o debate das relações raciais, muitas vezes, não
chega - apesar de serem bairros majoritariamente habitados por pessoas
negras. Assim, quando ela se pergunta o que seria de si sem o Sopapo, parece
que está trazendo uma pergunta: ela teria acesso a essa narrativa em outros
meios? É isso que talvez torne o Sopapo tão especial em sua história.
Virgínia Leone Bicudo, uma das fundadoras do sarau, que hoje está apa­
rentemente mais conectada com a Associação Negra de Cultura, conta de
uma experiência de um sarau itinerante do Sopapo Poético na escola em que
é diretora. Conta que

A revelação de escritores ali, que tavam no anonimato, e músicos, aí vêm


outras questões na área da psicologia mesmo, o que aquilo ali causou,
uma explosão de sentimentos, de liberdade, só fazendo aí uma análise...
mas enfim, foi muito positivo, eu acho que o sarau deveria circular, sabe!?
Deveria ser itinerante, nem que seja assim, duas vezes no ano, ir pra
uma escola [...] Pra mim em particular [estar no Sopapo] é mais que uma
participação só, às vezes eu não quero nem falar, não quero declamar, só
de estar ali, pra mim é acolhida, tem muito a ver com encontro espiritual,
da energia do meu pai ali, eu sinto muito, muito ele presente, aquilo me traz
uma força, renova, e eu volto pra casa assim, feliz, uma felicidade. Muito
bom, muito gosto, ver o crescimento de 2012 para cá.

Virgínia Leone Bicudo é familiarde um poeta muito declamado no sarau e


que foi importante para as rodas de poesia na cidade, em uma época em que
não havia redes sociais e o convite se dava através de panfletos na esquina do
“Zaire” (conhecida hoje como Esquina Democrática). A potência da atuação
do sarau nas escolas, com crianças e adolescentes, é inegável e já foi tema de
pesquisa de muitas e muitos participantes do sarau (FONTOURA, 2012).
Luiza Bairros, participante muito assídua do sarau, ressalta a importância
da autoestima. Ela sinaliza que tons pasteis são considerados bonitos nos
espaços brancos, mas não no Sopapo:

Lá eu boto amarelo, vermelho e ninguém vai me dizer isso. É muito impor­


tante tudo isso que faz parte da nossa cultura para nós. A minha evolução
é graças ao Movimento Negro, é graças aos poetas negros, os Cadernos
Negros foram muito importantes também.

Ao longo das entrevistas, ela afirma a importância de pesquisas versa­


rem sobre o racismo, considerando que, “Quem milita no movimento negro,
adoece! Então a gente adoece, adoece militando, adoece na favela, adoece em

133

1
todos os momentos” Assim, ela sustenta a necessidade de seguirenunciando
o que faz mal.
Paulina Chiziane é umas das fundadoras mais jovens do sarau. Para ela,
sarau
\
Cria uma rede que foi fundamental para gente se fortalecer. Hoje em dia
todo mundo se conhece, independente de qualquer diferença que haja de
militância, de forma política de ver a militância negra, todo mundo sabe
um pouco da trajetória do outro, o quanto o outro foi importante na sua,
e isso é fundamental, nél? Porque o Sopapo, uma vez por mês, parecia
pra nós um momento de carregar uma energia que ao longo do mês ia
sendo gastada por essa energia racista do mundo branco. Então a gente
ia lá, tomava um ânimo com o convidado que vinha, que era sempre um
convidado porreta, a gente saia de lá gigantescos e enfrentava o mês
nos seus trabalhos, nas escolas, e ia perdendo, e vinha o Sarau de novo, e
assim a gente sentia o sarau como uma fonte de energia, de autoesti-
ma, pra enfrentar... [...] Se não tiver as pessoas negras, não tem um sarau
negro, são as principais agentes, porque se não tiver pessoas negras pra
declamar, não tem roda, não tem sarau. E as imagens são importantes pra
gente construir esse lugar, onde tu tem um Oliveira Silveira, um Giba-Giba,
o Grito da Periferia, tudo nos localiza, é esse ponto negro, né, porque tem
pessoas negras, a literatura é negra, as imagens, as referência de artes, tudo
é negro aqui. [...] O tambor vai fazer toda essa parte que pra mim é um
dos elementos do sarau, é o ritual, é não deixar que o sarau perca o seu
ritual, porque ali tu canta pra começar o sarau, pra convocar as pessoas pra
roda de poesia, tu canta pra chamar as pessoas, e, se possível, tu canta pra
acabaro sarau também. E eu acho que isso tá muito ligado aos elementos
da nossa cultura, até da nossa religião mesmo, de tudo ser cantiga, e de
todo mundo cantarjunto, cantigas mais fáceis, cantigas coletivas... faz da
música do canto, com o tambor, ser essa coisa do espaço do ritual. O que
é religioso pra nós ali é a literatura, literatura negra é a nossa palavra,
tudo gira em torno da poesia negra ali, então a roda tem que ter tambor,
tem que ter a roda de poesia, tem que ter poesia, tem que ter também
o axé inicial, a licença é muito fundamental, porque isso também é um
outro fator dos nossos valores [...] A poesia mexe com meu mundo, até
chegar um ponto que eu não queria mais fazer trabalhos baseados na
branquitude. Uma vez que tu conhece o teu lugar, que tu já sabe o tipo de
papel que tu merece e deve fazer, não tem outro que vá te convencer. [...] o
sarau tem essa potencialidade de transformar as pessoas [...] quem não
escrevia ontem, escreve hoje, já faz e vende seu livro, ou já não aceita mais
determinadas posições na sociedade, já mudou de emprego e tá buscando
outras coisas, tá estudando ou ... porque essa arte, porque esse espaço
mexeu, eu não vou mais ser subalterno, eu vou buscar um outro lugar

134
pra mim. E a escrita possibilita isso, escrita é poder e a pessoa te dizer
que é uma escritora, uma poetisa, já te coloca num outro lugar.

Paulina Chiziane conta do processo de escolha do nome do Sarau. Diz


que recebeu um sopro em seu ouvido que unia Sopapo, o nome do tambor
característico do Rio Grande do Sul, com Poético. E só depois eles se deram
conta de que sopapo poderia significar sopapo de tabefe, de tapa, só papo,
da palavra, e sopapo do tambor. A multiplicidade de significados do nome do
sarau enuncia, por si, a pluriversalidade.
Na primeira vez em que minha coorientadora do TCC esteve na roda do
sarau, em uma das terças-feiras de 2019, um de seus comentário fora: “uau,
quanto protagonismo feminino!”. Isso não me passava despercebido, ao mes­
mo tempo que não era necessariamente uma questão da pesquisa, consi­
derando o propósito do trabalho, que interrogava se e de que forma o sarau
era capaz de promover saúde para pessoas negras. Como operava em cada
história singular? Como elas se entrelaçavam? Se e como essas participações
permitiam construir compreensões de mundo?
Com as falas durante e após o sarau, bem como a partir dos poemas de­
clamados na roda, essa questão já se respondia. Sim, o sarau era capaz de
pôr em movimento modos de subjetivação afroperspectivistas, antirracistas,
aquilombados e afirmativos, respeitando multiplicidades de pessoas negras.
Nesse sentido, as narrativas das mulheres apresentadas aqui elucidam a
agência dessas mulheres negras, do sujeito que enuncia e para quem enun­
ciam. Essas narrativas são pluriversais, assim como essas mulheres e as pessoas
negras. Algumas referiam um incômodo com a presença de pessoas brancas
no sarau, outras nem tanto. Léia Garcia apontou que, para haver um sarau de
poesia negra, era necessário haver pessoas negras, agência negra, e que essa
era uma das questões em que se detinha ao criar pontes entre pessoas negras
e oportunidades. Por outro lado, também se defendia uma certa aproximação
com os espaços de gestão pública, inclusive porque o Centro de Referência
do Negro é gerido pela prefeitura da cidade. Assim, talvez possamos supor
que sustentar o dissenso poderia construir caminhos alternativos para algo
similar: a manutenção da existência desse território de realização do sarau,
inclusive porque se trata de um espaço historicamente disputado na cidade,
o atual bairro Menino Deus e a antiga Ilhota, onde a população negra residia
em outras épocas e da qual foi removida (VIEIRA, 2018). Por esse motivo, a
agência das pessoas se faz tão importante, pois não seria a primeira vez em que
o Estado decide expulsar pessoas negras e sua cultura de determinado local.

135
Um segundo ponto (de tantos outros possíveis) diz respeito a quais estraté­
gias devemos lançar mão frente às demandas que o racismo coloca. Léia Garcia
comenta que “o novo sempre vem”. A entrevista de Assata Shakur demonstra
um posicionamento político sobre descentralizar o racismo, apostando em
formas de existências múltiplas, para além do sofómento que ele produz. Luiza
Bairros por sua vez, ressalta que é preciso visibilizar os efeitos adoecedoresdo
racismo para que eles não fiquem a pagados. Assata Shakur é ao menos 25-30
anos mais jovem que Luiza Bairros e Léia Garcia, que já militavam na época em
que as rodas de poesia aconteciam no Mercado Público, nos anos 80. Não quer
dizer que uma está mais correta que outra, mas sim que mulheres negras de
diferentes gerações e com diferentes (in)formações, acadêmicas e subjetivas,
fazem uso de recursos e estratégias diversas de luta, que são complementares,
a nosso ver. Sobretudo porque a geração dos anos 80-90 só pode, hoje, afirmar
a necessidade de apostar na vida e na potência de sujeitos negros porque ge­
rações anteriores visibilizaram/combateram o racismo e seus efeitos perversos
e nefastos no passado (e seguem fazendo, porque se faz preciso).
Talvez seja disso que Léia Garcia estivesse falando ao referir que o novo
sempre vem, e, com isso, é preciso costurar tais estratégias para que um espaço
não se torne apartado, pessoas mais velhas de um lado e pessoas jovem do
outro. Essa não é uma questão da qual o Sopapo está livre. Justamente por
isso alguns movimentos são feitos para acolher a juventude (que costuma
chegar ao Sopapo após uma vivência no Slam ou ‘poetry slam’, que consiste
em um campeonato de poesia falada, geralmente realizado nas rua da cidade.
Surgiu nos anos 1980 em Chicago, Estados Unidos, contemporaneamente ao
surgimento do movimento hip hop. Em março de 2019, o sarau contou com
uma convidada de 91 anos. Em abril, com uma convidada de 16 anos e um
convidado com aproximadamente 25 anos. O livro publicado pelo Sopapo
em 2016, Pretessência, leva no título um poema de um dos participantes/
integrantes mais jovens a ser publicado na época.
O ponto que desejamos salientar é que há espaço para todas as idades
em uma construção aquilombada, pensamentos e corporeidades. O que não
significa ter necessariamente acordo em todos os pontos. Mesmo assim, preci­
samos assumirque o Sopapo não é o reino da diversidade (em se tratando de
gênero e sexualidade, por exemplo, considerando que a maioria das pessoas
que freqüentam o sarau são cisgêneras e heterossexuais, a princípio), mas tem
construído uma bela aldeia, com sua possibilidade de acolher múltiplas faixas
etárias, artes e pensamentos, enquanto constitui um espaço de acolhimento
e resistência para pessoas negras.

136
Por fim - por que escrevemos?
Com este escrito, buscamos evidenciar que a psicologia precisa ser posta
cm movimento, em busca de repensar sua escuta e tornar-se acolhedora para
as diversas corporeidades e subjetividades que constroem esta sociedade.
Assim, não se trata de negar esse ou aquele saber, mas sim de afirmar que é
preciso e possível construir narrativas pluriversais e localizadas.
Aqui estabelecemos um diálogo entre a Psicologia Preta, a Filosofia Afro-
perspectivista e Aquilombar, enquanto categoria cíínico-política. Realizamos
essa proposição a partir das narrativas de quem habita o Sarau Sopapo Poé­
tico (e é habitada por ele) e tudo que lhe constitui. Entendemos que produ­
ções artísticas que partam da centralidade das pessoas negras e assumam
seu próprio lugar epistemológico são capazes de potencializar processos de
(re)existência para essas pessoas, fortalecendo um senso de africanidade,
apesar das experiências de racismo e colonialismo (entre outras opressões
que se coloquem para tais sujeitos). Dos rituais de pedir licença no início de
cada sarau, passando pela roda de poesia, pela apresentação do Sopapinho,
até a fotografia final do sarau, pontilhamos perspectivas de cuidado, centra­
das nas narrativas, histórias e pertencimentos de pessoas negras, apostando
em Aquilombar enquanto ação de (re)existência e de “agrupamento para a
resistência cultural e racial dos negros” e negras (NASCIMENTO, 2018, p. 78).
Entendemos também, e principalmente, que um posicionamento ético-
político-metodológico da Psicologia Preta e da Filosofia Afroperspectivista, em
uma escuta preta e afroperspectivista, exige colocar nossos corpos na roda,
enquanto postura ético-política. Ao longo deste escrito, buscamos articular
uma conexão entre esses saberes localizados em territórios diasporizados,
entendendo as ressalvas que cada território e singularidade exigem. Devido
a isso, alicerçamos o debate em nossas localidades geográficas e subjetivas,
para inscrever uma análise centrada nas existências das pessoas negras
diasporizadas, que, apesar da opressão e colonialismo, seja capaz de ressaltar
suas riquezas e potencialidades singulares e coletivas.

137
-i

REFERÊNCIAS
ASANTE, M. K. A afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, E. L.
(org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica invovadora. São Paulo: Selo Negro,
2009. p. 93-110.
ASANTE, M. K. Afrocentricidade: a teoria de mudança social. Philadelphia: Afrocentricity In­
ternational, 2014.
BARRETO, R. Introdução. In: NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelec­
tual: possibilidade nos dias de destruição. Diáspora africana: Filhos de África, 2018. p. 26- 39.
DAVID, E, C. Saúde mental e racismo: a atuação de um Centro de Atenção Psicossocial II Infan
tojuvenil. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.
FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FONTOURA, P. A. A palavra poética enquanto voz viva: efeitos de um encontro intercultural
entre estudantes da escola pública básica e a poesia de Oliveira Silveira. Monografia (Licen­
ciatura em Teatro) - Departamento de Arte Dramática, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2012.
FONTOURA, P. A. Sarar-Sopapar-Aquilombar: o sarau como experiência educativa da comuni­
dade negra em Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduaçã
em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
FONTOURA, P. A.; SALOM, J. S.; TETTAMANZY, A. L. Sopapo Poético: sarau de poesia negra
extremo sul do Brasil. Revista de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 49, p.
153-181, set./dez. 2016.
KASHINDI, J. B. K. Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva. Cadernos IHU Idéias, v.
15, n. 254, v. 15, p. 3-21,2017.
NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias de
destruição. Lisboa: Filhos de África, 2018.
NOGUERA, R. Infância em afroperspectivista: articulações entre Sankofa, ndaweterrisxistir. Rev
Sul-americana de Filosofia e Educação - RESAFE, n.31, mai-out, 2019, p. 53 -70. Disponível
em: <https://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/view/28256>. Acesso em 27 nov. 2019.

NOGUERA, R. O ensino da filosofia e a lei 10.639. Ia ed. Rio de Janeiro: Pallas: Biblioteca
Nacional, 2014.
ONMACTCH,T. M. Do laço social ao corpoema: enlaces entre negritude e psicanálise. Disserta
ção (Mestrado em Psicanálise) - Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
RAMOSE, M. Sobre legitimidade e o estudo da Filosofia Africana. Ensaios Filosóficos, Rio de
Janeiro, v. IV, out. 2011. Disponível em: < http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Aftigos/Artigo4/
RAMOSE_MB.pdf >. Acesso em 09 ago. 2019.
SANTOS, K. Y. P.; LANARI, L. (orgs.). Saúde mental, relações raciais e Covid. São Paulo: Col
Margens Clínicas, 2020.

138
SILVA, J. 0.; DIAS, M. D. L.; SANTOS, T. R. Contribuições à Reflexão Afrocêntrica: aprendizagens
matricentrais em processos de longa duração. In: ALVES, M. C.; ALVES, A. C. (orgs.). Epistemo-
logias e metodologias negras, descoloniais e antirracistas. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2020.
p. 176-189.

SILVA, L. G. Quando a pesquisadora ganha colo: afroperspectiva em pesquisas com crianças


negras. Jornal da UFRGS, Porto Alegre, ed. 14, 25 jun. 2020.
SILVA, L. G.; NOGUERA, R. Repensando as infâncias das crianças negras: notas afroperspectivistas
e introdutórias a partir do Sopapinho Poético. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura,
v. 3, n. 9, p. 187-203, 2020.
SOPAPO POÉTICO. Sopapo Poético: Edição de Maio/2015. 2015. Disponível em: http:// sopa-
popoetico. blogspot.com. br/search?Updated-max=2015-05-19T23:55:0003:00&max-results=
4&start=15&by-date=false. Acesso em: 1 dez. 2017.
VIEIRA, D. M. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): geografia histórica da presen­
ça negra no espaço urbano. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação
em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
í
\
INDAGAÇÕES CONTRANORMATIVAS
SOBRE OS USOS DOS CONCEITOS
DE “FUNÇÃO MATERNA”, “FUNÇÃO
PATERNA” E MATERNAGEM
Andrea Gabriela Ferrari
Milena Silva
Este capítulo é fruto de uma reflexão que tem acontecido no Núcleo de
Estudos em Psicanálise e Infâncias - NEPts, linha que compõe o Núcleo de
Ensino Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência - NEPEIA/CNPq. 0
NEPis dedica-se a trabalhar a potência das relações entre educadoras(es) e
bebês na escola de educação infantil. ^
Aproximando-nos de estudos que abordam as funções constituintes que
podem ser exercidas pelas(os) educadoras(es), ou seja, aquelas funções das(os)
educadoras(es) que atuam no sentido da constituição de uma subjetividade
no bebê, deparamo-nos com a discussão das quatro operações constitutivas
do sujeito psíquico, conforme elencadas na construção do instrumento IRDI56
nas escolas de educação infantil. Uma dessas funções é a Função Paterna -
aquela que impõe um limite ao gozo materno na relação com o bebê. Essa
denominação vem nos incomodando tanto por entendimentos que parecem
estar subjacentes às proposições psicanalíticas e às operações constitutivas
quanto pelo seu aspecto lingüístico, ou seja, pelo uso dos qualificativos ma­
terno e paterno atrelado a essas operações.
A psicanálise tende a colocar no centro da cena as funções maternas e
paternas, e os outros adultos importantes para a criança, como as(os) educa-
doras(es), tias(os), avós(ôs) etc. poderiam operar como substitutos no exercício
dessas funções. A partir da leitura de uma série de artigos que tentam encai­
xar as operações das(os) educadoras(es) como sendo semblante das funções
maternas e/ou paternas, passamos a nos perguntar se não está na hora de
iniciar um debate sobre os aspectos centrais e complementares do materno
e do paterno na psicanálise.
Este escrito não pretende propor nominações outras para as funções cons­
titutivas operadas pelos adultos que cuidam da criança, mas, sim, questionare
refletir a respeito da manutenção de determinadas nomenclaturas, apesar de
mudanças sociais e culturais como, por exemplo, a ida cada vez mais cedo das
crianças às escolas de educação infantil e as modificações nas configurações

56 O instrumento Indicadores de Risco de Desenvolvimento Infantil (IRDI) (KUPFER, et. al, 2009) foi orga­
nizado considerando 31 indicadores que ocorrem na relação adulto-bebê do zero aos 18 meses. Esses 31
indicadores são derivados de quatro operações fundamentais da constituição do sujeito - “Suposição do
sujeito (SS) se refere à capacidade da mie ou do cuidador de supor no bebê a existência de um sujeito
psíquico, ainda que este não esteja constituído. Estabelecimento da demanda (ED) é um eixo que se refere
à função que o cuidador tem de interpretar os gestos da criança como um apelo dirigido a ele. Alternância
presença/ausência (PA) diz respeito ao período entre a demanda da criança e sua satisfação, período que
corresponde a um intervalo de onde pode surgir a resposta da criança. Instalação da função paterna (FP)
procura identificar o lugar do terceiro na relação mãe-bebê” (FERRARI, et. al, 2017, p. 18).

142
familiares, nas quais não se faz necessário um homem e uma mulher para que
uma criança advenha.
Nesse sentido, o capítulo reflete as discussões iniciadas no grupo de
pesquisa, considerando o ir e vir de nossas leituras. Brevemente trazemos
as noções de função materna e paterna na vertente lacaniana e a noção de
maternagem em Winnicott (1990), para, posteriormente, questionar, a partir
de estudos antropológicos, a noção de família subentendida pela psicanálise.
Na terceira parte deste capítulo, tentamos, a partir da leitura de autores con­
temporâneos, questionar as nominações centrais e oposicionais da função
materna, da função paterna e da maternagem.

A constituição do sujeito e as funções parentais: o


materno, a maternagem e o paterno
A psicanálise propõe que o bebê não nasce pronto e que, para ingressar
no mundo, precisa de adultos que dele se encarreguem física e subjetiva men­
te. Esses adultos, de acordo com a vertente lacaniana, exercem as funções
materna e paterna, subjetivando o corpo do bebê e iniciando o processo de
humanização. Já seguindo a vertente winnicottiana, cabe à mãe se ocupar do
cuidado do bebê, colocando em cena sua maternagem, o que constituiria o
ambiente inicial para o bebê.
O conceito de função, em semiótica, refere-se a um conjunto de elementos
e às relações necessárias entre eles para definir uma estrutura (BLEICHMAR,
2016). Função materna seria o exercício das operações de subjetivação pelo
cuidador primordial - segundo a psicanálise lacaniana, o Outro primordial
(KUPFER, 2004). Segundo Ferrari e Piccinini (2010), desde antes do nascimento,
o bebê vai sendo personificado a partir dos desejos narcísicos daquela(e) que
o espera. Dada a prematuridade do bebê, é necessário que o Outro primordial
lhe sinalize, através dos seus desejos e enunciados identificantes (AULAGNIER,
1989), o que dele é esperado. Esse movimento faz com que o bebê se aliene
(LACAN, 1964/1985) ao desejo do Outro primordial. Essa operação desejante
e alienante em relação ao bebê foi cunhada de função materna (GUILLERAULT,
2009), e, segundo Bergès e Balbo (1997), cabe à mãe a operação de uma fun­
ção, mas também ela se ocupa do funcionamento do corpo do bebê. Já a
função paterna é considerada aquela que intercede na separação do bebê
em relação ao corpo da mãe, ou seja, a instância terceira que permite que o
bebê possa operar a separação (LACAN, 1964/1985) do desejo materno para ir
construindo seu próprio desejo. O que se coloca aqui é a entrada do bebê no

143
i

mundo social e cultural, enlaçando-se àquilo que permeia todas as relações


entre os seres humanos.
A introdução da função paterna se dá através da operação da função ma­
terna nos momentos em que o cuidador primordial se endereça a um terceiro
por não saber o que o bebê lhe demanda (FERRARI, et. al, 2013). Para Lacan
(1957/1958), a função paterna diz respeito à operação de substituição do de­
sejo materno, interditando o desejo incestuoso e o gozo. Nesse processo de
afastamento de um saber inicialmente engolfante, o cuidador primordial vai
abrindo espaço para que a função paterna comece a operar e permita que a
separação (LACAN, 1964/1985) aconteça. Assim, ao pai ou a sua função ca­
beria desvincular o filho do objeto fálico materno (CHERER, et. al, 2016). As
funções materna e paterna precisam ser operadas pelos adultos implicados
de forma desejante no cuidado cotidiano do bebê. Sendo uma função, ela não
está atrelada, ou pelo menos não deveria estar, à mãe e ao pai propriamente
ditos, mas àqueles que, implicados na constituição subjetiva do bebê, se en­
carregam de operar na humanização de seu corpo. Apesar das funções não
precisarem estar acopladas às pessoas da mãe e do pai, frequentemente nos
deparamos com escritos de psicanalistas onde esses termos são utilizados
como sinônimos de função materna e paterna (como referido anteriormente
em Bergès e Balbo, 1997).
A partir de outra perspectiva, Winnicott (1990), em Natureza Humana,
refere que as necessidades dos bebês podem ser supridas, em certa medida,
por quem quer que goste de bebês. Mas haveria, segundo o autor, “razões
pelas quais a mãe é a pessoa certa” (ibid., 132). Uma dessas razões seria que
ela estaria em melhores condições para preservar os pequenos detalhes de
sua técnica pessoal, fornecendo, assim, um cuidado emocionalmente sim­
plificado e sustentando a situação no tempo, o que facilitaria a experiência
de continuidade. Um bebê cuidado por diversas pessoas teria, de acordo
com Winnicott (1990), um início de vida mais complexo. Refere também que
a gestação exerceria uma preparação para a enorme adaptação, que é neces­
sária, às necessidades do bebê, e que o amor de uma mãe pelo seu bebê é
provavelmente mais verdadeiro e menos sentimental do que o de qualquer
substituto, uma vez que a maternidade envolve sentimentos muito intensos e
nem sempre agradáveis. Além disso, Winnicott (1990) refere que é na estrutura
familiar, através de uma triangulação normativa e nuclear (mãe, pai, bebê),
que a criança vai se capacitando para complexificar suas relações. Ou seja, é
necessária uma relação entre três pessoas, no interior de uma família, para que

144
a criança possa “avançar passo a passo, do relacionamento entre três pessoas
para outros mais e mais complexos” (ARAÚJO, 2003, p. 57).
Assim, Winnicott (1990) não trabalha propriamente com a ideia de funções,
dando ênfase às figuras de carne e osso que realizam as atividades de cuidado
com os bebês e que, através desses cuidados, atuam na sua possibilidade de
dar sentido ávida, às experiências. Nesses cuidados, o papel da mãe é realçado.
Contudo, ao falarem maternagem e propor o conceito de ambiente, também
realiza um certo descolamento das figuras materna e paterna. Araújo (2003)
destaca que, “na teoria winnicottiana, sabe-se que a vida do ser humano é
uma busca da continuidade de ser e a ameaça, que envolve todo o processo
de desenvolvimento do indivíduo, é a possibilidade de não se integrar e de não
continuar sendo” (ARAÚJO, 2003, p. 7). Assim, de acordo com Araújo (2007),
duas características são fundamentais a esse ambiente: adaptabilidade -
possibilidade de se adaptar, desadaptar e readaptar às necessidades cam-
biantes da criança; e sua qualidade humana - falibilidade e imperfeição. Esse
ambiente, capaz de fornecer as condições de sustentação, foi chamado por
Winnicott (1990) de ambiente inicial. No início, devido à dependência extrema
do bebê, o ambiente deveria adaptar-se totalmente às suas necessidades e, à
medida que o bebê fosse amadurecendo, deveria conseguir desadaptar-se, de
acordo com a capacidade crescente do bebê de utilizar seus próprios recursos
(ARAÚJO, 2003).
Lacan (1956-57/1995; 1957/58/1999) e Winnicott (1990), ao trabalharem,
respectivamente, com os conceitos de funções e ambiente, propõem processos
que não precisam estar atrelados necessariamente a um pai e a uma mãe. No
entanto, é inegável que a psicanálise toma a concepção de família patriarcal
burguesa como modelo hegemônico, a partir do qual tece sua concepção
de constituição subjetiva. Considerando que as configurações familiares se
modificaram a ponto de não ser necessário uma mulher e um homem para
serem pais, e considerando que sempre houve outras estruturas familiares ao
longo da história, porque ainda continuamos nominando as funções parentais
como materna e paterna, forçando a universalização de um tipo de família
considerada hegemônica?
Via de regra, caímos no engodo de personificar essas funções na mãe e no
pai do bebê. Conforme afirma laconelli (2018), os termos função materna e fun­
ção paterna costumam ser acompanhados da ressalva de que não se referem
diretamente aos binômios mãe/pai e mulher/homem, “sem que essa ressalva,
contudo, evite os efeitos imaginários que esses significantes têm” (IACONELLI,
2018, p. 158). Sendo a função materna aquela que inscreve, no corpo do bebê,
a pulsão, através dos cuidados erogeneizantes; a função paterna aquela que
defende o bebê do engolfamento do desejo materno; e a m ãe a pessoa certa
para constituir o ambiente inicial do bebê; percebe-se que essas teorizações
estão pautadas em um tipo de família muito específico - a mãe que fica em
casa cuidando da prole e o pai que sai para trabalhar e provê as necessidades
materiais. Sabe-se que esse tipo de família foi sendo implementado a partir
do século XVIII, tendo como marco, segundo Badinter (1985), a publicação
Emilie, de Rousseau, em 1762, que tinha como pano de fundo a tentativa de
diminuir a mortalidade infantil na França. Esse movimento gerou a ideia de a
mulher passara cuidar dos filhos e do marido no âmbito privado ou doméstico,
enquanto o homem deveria se dedicar ao trabalho no espaço público. Pode-se
pensar que é com esse ideal de família que a psicanálise surge e que Freud
pensa os trabalhos sobre o Complexo de Édipo (FREUD, 1916/2019,1923/2019,
1924/2019,1925/2019).
Conforme enfatizado anteriormente, apesar da tentativa de desvinculação
das funções materna e paterna e da maternagem do sexo biológico dos pais,
há ainda uma necessidade de, a cada vez que nos referimos a esses termos,
esclarecer que, para a psicanálise, se trata de conceitos, e não de personagens.
Essa discussão é importante já que, como refere Fiorini (2015), as teorias estão
sustentadas por determinadas epistemes, que, por sua vez, sustentam certa
prática clínica, além de forjar a formação do psicanalista e sua ética na con­
dução do tratamento. Para além da formação do analista, algo que nos tem
preocupado é que nem sempre é um psicanalista quem lê nossos textos, de
modo que o leitor, muitas vezes, não tem clareza de que, quando falamos em
materno/paterno, nos referimos a conceitos. Além disso, preocupamo-nos
porque, talvez, estejamos impondo, desde o lugar de saber, violências por
meio de matrizes heteronormativas àqueles que não se reconhecem perten­
centes a esse tipo de estrutura familiar. Visto isso, será que não é tempo de
tentar repensar tais funções constitutivas, retirando o peso dos personagens
de uma família idealizada e universalizante?

O cuidado à criança e as famílias brasileiras - alguns


estudos
Segundo Fonseca (2002), dois grandes teóricos - Freire, no Brasil, e Par­
sons, nos Estados Unidos da América - trabalharam, na década de 1950, com
a ideia de família patriarcal e moderna, respectivamente, disseminando uma
ideia de hegemonia e normalidade que facilmente pode desembocar em jul-

146
r

gamentos morais e patologizações, pois era esse tipo de família considerado


natural para um desenvolvimento saudável do indivíduo. Ao longo dos últimos
anos, essa ideia da existência de uma hegemonia foi ruindo, abrindo espaços
para a complexificação da ideia de família, considerando a ampliação de seus
modelos, mesmo naqueles países onde se pensava a normalidade da família
patriarcal e/ou moderna. Nesse sentido, as “crenças consoladoras” (ibid., p. 4)
dos pesquisadores e estudiosos da família foram abolidas, deixando-nos sem
parâmetros normativos de análise. Apesar de tais mudanças, as pessoas ainda
se organizam considerando a construção de relações familiares, a partir das
quais se vive o mundo e se transmitem valores simbólicos nas culturas ociden­
tais. Assim, faz-se necessário não abolir a noção de família, mas “precisamos,
portanto, de uma linguagem para falar desse conjunto de valores e práticas
familiares sem cair no erro do passado - de imaginar um modelo homogêneo,
coerente, hegemônico” (Ibid., p. 5).
Pressupor uma hegemonia para a ideia de família, considerando o modelo
de sujeito universal, tem sido problemático, na medida em que se pressupõe
que existiria uma normalidade a partir da qual se analisariam os comporta­
mentos de todos, patologizando aqueles que não partilham dessa univer­
salidade. É preciso, assim, explicitar que família é um construto ideológico
e historicamente construído, e que as estruturas subjacentes à concepção
de família carregam desigualdades como as de gênero, raça, sexualidade e
geração (FONSECA, 2007). A autora lembra que “conceitos tão aparentemen­
te óbvios como pai e mãe podem ter, num dado contexto, significações não
previstas pelo observador de fora” (Ibid., p. 53). A autora aponta que, nas suas
pesquisas de campo, encontrou pessoas que se situavam como tendo tido
duas ou três mães.
Referindo-nos especificamente à história de criação de crianças no Brasil,
as práticas de maternidade transferida (COSTA, 2002) estiveram presentes na
vida social desde os primórdios coloniais, e incluíram, durante a Colônia e até a
segunda metade do século XIX, os serviços das amas-de-leite. A partir de então,
foram deslizando os serviços de ama-de-leite para os de amas-secas ou babás,
como conseqüência das pressões higienistas exercidas sobre a sociedade (SE-
GATO, 2006). De acordo com a autora, a tão conhecida frase mãe tem uma só
remonta aos esforços higienistas para que as mulheres negras deixassem de
amamentar os bebês brancos, o que deveria, a partir de então, ser feito pelas
senhoras brancas, as mães. Kilomba (2019) também destaca que, nas socie­
dades coloniais, o corpo das mulheres negras escravizadas era usado como
mamadouro para as crianças brancas, gerando uma forte associação entre

147
negritude e maternidade, a qual é violentamente apagada pela branquitude.
Assim, Segato (2006) e Kilomba (2019) apontam para o apagamento, ou fora-
clusão, desse cuidado transferido, especialmente em função da associação
entre a babá/cuidadora/educadora e as amas-de-leite escravizadas.
Ainda sobre os cuidados às crianças nas famílias brasileiras, Fonseca (2002)
observou, em seu extenso trabalho de campo, que tanto as famílias patrili-
neares quanto matrilineares cuidam dos filhos de seus filhos; porém, quem
se responsabiliza pela criação das crianças são as mulheres da família (seja a
da família materna ou a da paterna). Nesse sentido, para a autora (FONSECA,
2005), há a preocupação em considerar as redes de parentesco extensiva às
consanguinidades. Essas redes se inserem em uma geraciorialidade, onde há
o resgate de questões passadas e projetos futuros. As redes de parentesco
funcionariam através daquilo que Mauss (1950/2003) conceituou como dom,
onde vão sendo traçadas ajudas mútuas e recíprocas, a partirdas necessidades,
nos diferentes tempos de uma família. Assim, como aponta Fonseca (2005, p.
54), “... definimos o laço familiar como uma relação marcada pela identificação
estreita e duradoura entre determinadas pessoas que reconhecem entre elas
certos direitos e obrigações mútuos”. Nesse sentido, em lugar de um declínio
da família, e porque não acrescentar o tão discutido declínio da função pater­
na, como apontado por vários trabalhos no campo da psicanálise, pode-se
pensar que as famílias estão sendo potencialmente ressituadas nos estudos
acadêmicos.

A descentraçõo da mãe e do pai - algumas


contribuições de psicanalistas contemporâneos
Reconhecendo nossa longa história de cuidado transferido ou comparti­
lhado com babás, tias, avós, educadoras, professoras e, bem recentemente,
com pais e alguns homens, será que podemos sustentar, como proposto por
Winnicott (1990), que um cuidado realizado unicamente pela família, com ên­
fase na mãe biológica, é necessário para facilitar a experiência de continuidade
do bebê? Talvez a teorização de Winnicott (1990) nos pareça mais interessante
quando ele coloca a ênfase não necessariamente na mãe, mas no ambiente,
o qual se refere, em geral, ao lugar, ao espaço ou às pessoas propiciadoras de
condições físicas e psicológicas nas quais o indivíduo vive (ARAÚJO, 2007).
Em relação ao viés freudo-lacaniano, Rodulfo (2008) refere que as teorias
psicanalíticas tradicionais colocam o paterno no centro de toda teorização
psicopatológica, estando o materno do lado da literalidade e o paterno do

148
r

[ado da metaforização. Nessa diferenciação entre literalidade (materno) x


metaforização (paterno), podemos pensar, como refere Tort (2017), que, se
a função paterna é aquela necessária para retirar o bebê do gozo materno e
garantir sua existência subjetiva, isso pode nos levar a supor que a mãe não
é “socialmente verdadeiro sujeito” (TORT, 2017, p. 66). Nessa concepção, a
função paterna seria uma operação fundamental para o surgimento do bebê
como sujeito, a partir da separação do desejo engolfante materno. Novamente
destacamos que, embora a teoria trate de funções, Fiorini (2015) sustenta que
ainda existe, no campo psicanalítico, uma soldagem entre função paterna, pai
simbólico, metáfora paterna e a concepção de sociedades androcêntricas,
patriarcais, fundadas no pater familiae do Direito Romano.
Uma das tantas questões que se colocam diz respeito à imposição de
um modelo ideal tradicional, que, segundo Tort (2017), subordina a figura
materna, o que é sustentado e justificado pelo suposto bem de uma consti­
tuição subjetiva adequada. É o patriarcado que sustenta o modelo teórico da
função paterna e, nesse sentido, o “rechaço do feminino é uma configuração
sintomática do homem patriarcal” (TORT, 2017, p. 68). De qualquer forma,
Tort (2017) lembra que a psicanálise não inventou o rechaço do feminino nem
a ideia de função materna subordinada à paterna, mas foi a psicanálise que
formulou essas questões como fantasias.
Mas, mesmo nesse tipo de estrutura familiar eurocêntrica moderna, as
funções realizadas pelas pessoas do pai e da mãe não estão atreladas, de modo
fixo, às funções paterna e materna. Precisamos considerar que, no cotidiano
das famílias, alguns homens estão cuidando do bebê e dividindo as responsa­
bilidades diárias com os filhos (SILVA, et. al, 2017), negando-se a se restringir
ao papel tradicional de provedor e de imposição da Lei simbólica que implica a
separação do bebê do desejo engolfante da mãe (LACAN, 1956-57/1995; 1957-
58/1999), ou, ainda, a ser apenas o apoio para a mãe, a qual seria a pessoa
certa para cuidar do bebê (WINNICOTT, 1990). Como aponta Rodulfo (2008),

o pai procura ter uma relação pessoal com seu filho ou com sua filha inde-
pendentementeda mãe e das triangulações com ela, uma relação por sua
própria conta (...) não deseja o lugar terceiro (...) tendo consciência ou não,
este novo pai está em profundo conflito com todos os valores clássicos do
termo pai, sem exceção aos psicanalíticos. (RODULFO, 2008, p. 113).

Esse conflito aparece na questão colocada por Tort (2017) à psicanálise,


quando aponta que, se no mundo democrático há várias tentativas de modifi­
car legislações a fim de garantir igualdade de direitos entre homens e mulheres,

149

i
por que a psicanálise e alguns psicanalistas têm “a tendência a considerar que
essas leis não formam parte do simbólico”? (TORT, 2017, p. 62). Segundo o au­
tor, temos de lembrar que as modificações nas legislações também dão conta
de outra possibilidade de subjetivação, visto que elas surgem por demandas da
sociedade. Nesse sentido, pensamos que a psicaViálise e os psicanalistas não
questionarem os qualificativos materno, paterno e maternagem, em relação
às funções constituintes e subjetivantes, pode dar a entender que pregamos
a manutenção de uma única ideia de família, com seus papéis e funções bem
demarcadas e delimitadas. Rodulfo (2012) lembra que as relações familiares
estão mudando rapidamente e não temos, ainda, termos para nomear, por
exemplo, o(a) esposo(a) da mãe, ou a (o) esposa(o) do pai, ou o filho da(o)
esposa(o) do pai... apesar de esses personagens exercerem as funções cons­
titutivas cotidianas tanto quanto os personagens consanguíneos. Assim, a
nova complexidade dos laços de família desbordou o sistema de nominações
ainda em uso: “Para toda esta complexa e tão pouco binária rede, a psicanálise
tradicional conta com uma só-esó uma - determinação: a do substituto, que
assegura a primazia do pai e da mãe” (RODULFO, 2012, p. 44).
Pensamos que continuar enfatizando funções materna e paterna difi­
culta, inclusive, intervenções na clínica com crianças, quando, por exemplo,
precisamos falar com os pais de determinada criança, mas não sabemos da
necessidade de conversar com o cônjuge desses pais. Marcar desse modo as
funções, mesmo que seja pela ilusão didática, pode confundir a clínica. As­
sim, no cuidado cotidiano com as crianças, os adultos operam e encarnam as
diferentes funções constituintes.
Nesse sentido, as mudanças nas organizações familiares implicam também
novas formas de cuidado. A clássica triangulação freudiana tem acontecido
cada vez menos e, por isso, deveríamos rever as funções parentais não mais
como funções que se complementam no exercício de diferenciações rígidas,
mas que podem se suplementar. Rodulfo (2012) aponta que a introdução de
elementos inéditos na família exige que repensemos a essencialidade da ma­
ternidade e da paternidade. O autor refere, ainda, que, nas readequações
dos papéis clássicos da família, não podemos mais pensar em binarismos
complementares, mas, sim, em como cada adulto atua como suplemento,
acrescentando aquilo que falta no outro, colocando o acento naquilo que,
segundo Rodulfo (2012), Derrida definiu como diferença não oposicional:

150
r

Homens e mulheres que não se posicionam em oposição ao outro sexo,


não temem os traços mistos e mesclados, não cifram sua identidade no
dualismo binário, não atuam com o suposto de complementar o que falta
ao outro, atuam como suplementos acrescentando algo singular ao que o
outro por sua vez acrescenta, longe da fantasia de que entre ambos dese­
nhariam um círculo para conter o filho (RODULFO, 2012, p. 47).

Nesse aspecto, podemos pensar em uma retomada da ideia, trazida ante­


riormente, de maternidade transferida (COSTA, 2002), onde a criança é cuidada
por outras pessoas que não a mãe biológica. Em relação a isso, não podemos
deixar de marcar que as crianças freqüentam, desde muito cedo, a escola
de educação infantil. Segundo dados do Censo Escolar do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP (2020), houve um aumento de
23,8% no número de crianças de até três anos matriculadas em escolas de
educação infantil entre 2014 e 2018. No ano de 2018, 32,7% das crianças de
até três anos estavam matriculadas em creches. Esse fato contraria algumas
indicações de psicanalistas clássicos, como Dolto (1985) e Winnicott (1990),
que deixam subentendido, nos seus escritos, que a criança de menos de três
anos não se beneficiaria da escola, já que ela ainda é muito dependente das
figuras parentais e ainda não tem a autonomia necessária para falar em nome
próprio. Pensamos que não podemos continuar creditando essa orientação
como verdade, sendo mais um aspecto que nos força a pensar as operações
constitutivas exercidas, em relação a um bebê, pelos adultos - adultos estes
que não se reduzem ao pai e à mãe. Nesse sentido, coloca-se à psicanálise o
questionamento a respeito do uso de determinadas terminologias, mesmo
que seja em caráter conceituai. Como refere Moreno (2014), “a psicanálise
ainda não conseguiu incorporar mudanças na sua teoria nem na sua prática
ao compasso das variações no social” (MORENO, 2014, p. 58).

Podemos desencarnar o materno e o paterno? Algumas


propostas trazidas na literatura
Em relação a não encarnação de funções em personagens, já havia indica­
tivos no próprio Freud (1895/1986), quando, no Projeto, ele se refere à função
auxiliar do alheio.

Se um indivíduo auxiliador operou o trabalho da ação específica no mun­


do exterior no lugar do indivíduo desvalido, este é capaz de consumar no
interior de seu corpo a operação requerida para cancelar o estímulo en-
dógeno. O todo constitui, então, uma vivência de satisfação, que tem as

151
mais profundas conseqüências para o desenvolvimento das funções do
indivíduo (FREUD, 1985/1986, p. 363).

Nesse sentido, o indivíduo auxiliador operaria na metabolizaçõo dos mon­


tantes de energia do bebê (AULAGNIER, 1990) ou\Como o sistema deparaexita-
çao do bebê (LEBOVICI, 1987), através da função reverie (BION, 1962/1971) ou
da função self object (KOHUT, 1977). Apesar dessas inúmeras possibilidades de
nomenclaturas, os mesmos autores não recuperam a ideia de indivíduo auxilia­
dor, mas referem que essas funções ou operações são maternas e dependem
da capacidade da mãe, e, nesse aspecto, seguiremos responsabilizando a mãe
por tudo o que acontece a sua prole.
Alguns autores têm proposto novas nomenclaturas para o exercício das
funções maternas, paternas e maternagem, desvinculando-as da mãe e do
pai. Campana, et. al (2019), através de pesquisa realizada com casais hete­
rossexuais de classe média, onde tanto o homem quanto a mulher cuidavam
dos filhos pequenos, discutem a capacidade do pai também entrar no estado
de preocupação materna primária, e, em função disso, propõem que essa
função passe a se nomear como preocupação parental primária. Já Fiorini
(2016) propõe que aquilo que denominamos de função paterna deveria se no­
mear como função terceira, a fim de extraí-la de dicotomias empobrecedoras,
as quais retiram a complexidade do processo de subjetivação e das funções
simbólicas enquanto tais.
Mesmo com essas tentativas de renomeação das funções primordiais, não
podemos esquecer que todos os personagens implicados no cuidado com o
bebê e a criança pequena operam as diferentes dimensões desse cuidado.
Talvez seja oportuno, então, não pensar em novas nomenclaturas para o par
oposicional de sempre. Nessa via, Alizade (2016) propõe o conceito de função
família para nomear esse trabalho de oferecer à criança acesso ao mundo
simbólico, dando espaço às novas formas de família e de parentalidade e com­
preendendo que família inclui tanto filiações biológicas quanto não biológicas.
E laconelli (2018) propõe o termo função parental, entendido como

algo que se dá entre dois sujeitos, sendo um que virá a se constituir psi­
quicamente, enquanto o outro se dispõe a criar condições mínimas ne­
cessárias para que isso ocorra. É uma relação assimétrica, que pressupõe
que o adulto já tenha alcançado uma posição de sujeito desejante, e que o
infans advenha como sujeito num ato insondável que não está ao alcance
do desejo do outro parental (IACONELLI, 2018, p. 161).

152
p

Tal proposição nos parece interessante por fugir da lógica de paroposicio-


nal, o que precisa vir acompanhado da tarefa de desmembrar a complexidade
das funções implicadas no cuidado de bebês. Figueiredo (2012), ao propor uma
“teoria geral do cuidar”, aborda o que compreende como a dimensão ética do
cuidar, a qual se refere à disposição do mundo humano em receber seus novos
membros. Quem acolhe esses novos membros precisa oferecer a eles “uma
possibilidade de ‘fazer sentido’ de sua vida e das vicissitudes de sua existência
ao longo do tempo, do nascimento à morte” (FIGUEIREDO, 2012, p. 134). Ou
seja, cuidar significa se ocupar das operações decisivas, da passagem da ex­
periência da loucura precoce para um funcionamento psíquico estruturado. O
fazer sentido deve, segundo o autor, “ser entendido como sempre implicando
as operações de desligamento, separação e recorte e, simultaneamente, as
operações de articulação e reunião” (Ibid., p. 116).
Ao pensar quais seriam as funções do cuidado articuladas a tais operações,
Figueiredo não as associa ao familiar, ao materno ou ao paterno, mas descreve
as seguintes dimensões da presença implicada do cuidador: sustentar e conter;
reconhecer; interpelar e reclamor. Coloca, ainda, que o cuidador pode atuar
como presença em reserva, quando ele ‘“deixa ser’ seu ‘objeto’ (...) Nesta po­
sição, o cuidador exerce a renúncia à sua própria onipotência” (Ibid., p.141).
Nas funções de sustentar e conter, o agente de cuidados se apresenta como
“outro englobante” (Ibid., p.135), o ambiente ou objeto que acolhe, hospeda,
agasalha, sustenta. A função de reconhecimento se desdobra em testemunhar
e refletir, sendo o segundo nível dependente do primeiro. A respeito da fun­
ção de interpelar e reclamar, Figueiredo (2012) aponta que, aqui, o outro se
apresenta marcado, desde sempre, pela diferença e pela incompletude. É o
outro sexuado e desejante, dotado de um inconsciente, que exerce a função
de “excitar, chamar para fora, chamar às falas” (Ibid., p. 139). Também é função
desse outro “chamar à ordem” (Ibid., p.139), confrontar seu objeto de cuidado
com os limites da existência, como a finitude, a alteridade e a lei. Parece-nos
que esforços, como o de Figueredo (2012), de pensar nas funções constitutivas
do cuidar, retirando o aspecto imaginário que fica acoplado à mãe e ao pai,
deveriam ser mais fortemente empreendidos pela psicanálise. Trata-se de
trazer à tona uma reflexão e propor uma discussão sobre os riscos normativos
e patologizantes, para a formação e a intervenção na clínica com crianças, de
continuarmos fixando funções a personagens.

153
Considerações finais
Este escrito teve a pretensão de explicitar um incômodo a respeito da
utilização dos qualificativos materno, paterno e maternagem para se referir
às funções primordiais exercidas pelos adultos rçsponsáveis na constituição
psíquica e no cuidado com bebês e crianças. Autores contemporâneos têm
criticado a ideia da existência de um modelo hegemônico de família, construída
ao longo dos anos, nos quais se foram delimitando e diferenciando o que era
do exercício do masculino e do feminino. Ancorada nessa divisão, a psicanálise
diferenciou as funções maternas e paternas, bem como a ideia de maternagem,
e, em certo sentido, as encarnou na mãe/mulher e no pai/homem. Embora
seja evidente que outros modelos de organização familiar sempre estiveram
presentes, a partir do momento em que começamos a questionar a hegemo­
nia de um tipo de família considerada ideal, e a organização do cotidiano das
famílias começa a se modificar, vimos a necessidade de refletir a respeito da
manutenção desses qualificativos.
Se tanto uma mãe, um pai, uma avó, um avô, uma educadora, um edu­
cador, tios e tias, irmãos e irmãs, desde uma implicação afetiva com o bebê
e com a criança, operam funções constituintes, por que reduzir uma possível
variedade de experiências e lugares a dois personagens que se colocam como
substitutos de todas as outras relações no cotidiano de uma criança? Não
podemos esquecer que a criança, em função da reorganização da cidade e do
trabalho dos pais, cada vez mais cedo freqüenta escolas de educação infantil.
Nesses lugares, elas chegam a passar 12 horas de seu dia. Considerando isso,
é possível continuar insistindo em uma nomenclatura que reduz a responsa­
bilidade e implicação com a constituição subjetiva apenas à mãe e ao pai?
Além disso, se mantemos as funções exercidas pelos adultos que convivem e
cuidam das crianças como substitutos do pai e da mãe, passamos a exigir que
essas pessoas se comportem como pai e mãe, esquecendo que, em se tratando
de escolas, babás ou outras cuidadoras profissionais, elas são remuneradas
para exercer um trabalho. Não pertencem ao registro do familiar, mas, em
se implicando no cuidado cotidiano com a criança, essa adulta/esse adulto
necessariamente coloca seu desejo em cena e, consequentemente, opera em
direção ao processo constitutivo do bebê. Nesse sentido, temos que atentar
às marcas subjetivantes que estão fora da família. As funções se diluem, se
multiplicam e se dialetizam nos diversos personagens que se encarregam
cotidianamente da criança (FERRARI, et al. 2012).

154
r

Assim, não basta trocar os qualificativos materna ou paterna por outros


dois. Não propomos uma renomeação que invoque novamente relações bi­
nárias e complementares. Como questiona Rodulfo (2012), “pode-se seguir
pedindo-nos que acreditemos em funções invariáveis sem importar que pes­
soas as cumpram, em processos subjetivos à margem da história? Em tempos
de gêneros misturados, é possível distribuir oposicionalmente tarefas das
funções como se nada acontecesse?” (Ibid. p. 42). Talvez tenhamos que pensar
em nomeações que não impliquem complementaridades e binarismos, mas
naquelas que Rodulfo (2012), através de Derrida, propõe como funções dife­
renciais não oposicionais, onde “pai” e “mãe” não têm um significado certo.
Nesse sentido, se pai e mãe não têm um significado certo, as funções a eles
atreladas teriam?

155
REFERÊNCIAS

ALIZADE, M. (2016). La liberación de Ia parentalidad en elsigloXXL In:ALKOMBRE, R; HOLOVKO,


C. S. (orgs.). Parentalidades y gênero: su incidência en la subjetividad. Buenos Aires: Letra
Viva, 2016. p. 25-30.
ARAÚJO, C. A. S. O ambiente na obra de Winnicott: teoria errática clínica. Winnicott E-prints,
v. 2, n. 2,2003.
ARAÚJO, C. A. S. (2007). Uma abordagem teórica e clínica do ambiente a partir de Winnicott.
Tese (Doutorado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.
AULAGNIER, P. O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro: do discurso identificante ao
discurso delirante. São Paulo: Escuta, 1989.
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro-Nova Fronteira, 19
BERGÈS, J.; BALBO, G. A criança e a Psicanálise: novas perspectivas. Perto Alegre: Artes Mé­
dicas, 1997.
BION, W. R. Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1971.
BLEICHMAR, E. D. Lo que falta en la formulación de la función maternal. In: ALKOMBRE, R; HO­
LOVKO, C. S. (orgs.). Parentalidades y gênero: su incidência en la subjetividad. Buenos Aires:
Letra Viva, 2016. p. 47-56.
CAMPANA, N. T. C.; SANTOS, C. V. M.; GOMES, I. C. De quem é a preocupação primária? A teor
winnicottiana e o cuidado parental na contemporaneidade. Psicologia Clínica, v. 31, n. 1, p.
32-53,2019.
CHERER, E.; FERRARI, A.; PICCININI, C. A amamentação e o desmame no processo de tornar-se
pai. Estilos da Clínica, v. 21, n. 1, p. 12-29,2016. _
COSTA, S. G. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. Estudos
Feministas, v. 10, n. 2, p. 301-323, 2002.
DOLTO, F. La dificultad de vivir: Familia y sentimientos, El psicoanalista y la prevención de las
neurosis. Buenos Aires: Gedisa, 1985.
FERRARI, A. G; SILVA, M. R.; DONELLI, T. S. A criança e seus pais: alguns interrogantes sobre a
funções parentais na atualidade. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, maio/ out. 2012.
FERRARI, A. G. et ai A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito.
Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental, v. 20, n. 1, p. 17-33,2017.
FERRARI, A. G.; PICCININI, C. A.; LOPES, R. C. S. Atualização do Complexo de Édipo na relação
com o bebê: evidências a partir de um estudo de caso. Estudos de Psicologia, Campinas, v.
30, n. 2, p. 239-248, 2013.
FERRARI, A. G.; PICCININI, C. A. Função materna e mito familiar: evidências a partir de um estudo
de caso. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 13(2), 243-257,2010.
FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea.
São Paulo: Escuta, 2012.
FIORINI, L. G. La diferencia sexual em debate: cuerpos, deseosy ficciones. Buenos Aires: Lugar
Editorial, 2015.

156
FIORINI, L. G. (2016). La nostalgia del padre: Función paterna o función tercera? In: ALKOMBRE,
P.; HOLOVKO, C. S. (orgs.). Parentalidades y gênero: su incidência en la subjetividad. Buenos
Aires: Letra Viva, 2016. p. 31-38.
FONSECA, C. O lugar da família na ciência contemporânea: desafios e tendências na pesquisa.
In: ARTHOFF, R.; ELSEN, I.; NITSCHKE, R. G. (eds.). Pesquisando a família: olhares contempo­
râneos. Florianópolis: Papa-Livro, 2002. p. 55-68.
FONSECA, C. Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica.
Saúde e Sociedade, v. 14, n. 2, p. 50-59, 2005.
FONSECA, C. Apresentação de família, reprodução e parentesco: algumas considerações. Ca­
dernos Pagu, Campinas, n. 29, p. 9-35,2007.
FONSECA, C. (2002). O lugar da família na ciência contemporânea: desafios e tendências. In: CON­
GRESSO INTERNACIONAL PESQUISANDO A FAMÍLIA, 2002. Anais [...]. Florianópolis: UFSC, 2002.
FREUD, S. Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: FREUD,
S. Amor, Sexualidade, Feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019a. p. 259-276.
FREUD, S. Desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. In: FREUD, S. Amor, Sexuali­
dade, Feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019b. p. 211-235.
FREUD, S. O declínio do complexo de Édipo. In: FREUD, S. Amor, Sexualidade, Feminilidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2019c. p. 247-257.
FREUD, S. Organização genital infantil. In: FREUD, S. Amor, Sexualidade, Feminilidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019d. p. 237-245.
FREUD, S. Proyecto de Psicologia. In: FREUD, S. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu,
1986. p. 323-446.
GUILLERAULT, G. Dolto/Winnicott: el bebê en el psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 2009.
IACONELLE, V. Função parental, papel parental e gênero. In: MARIOTTO, R. M. M. (org.). Gênero
e Sexualidade na Infância e Adolescência: Reflexões Psicanalíticas. Salvador: Ágalma, 2018.
p, 157-167.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Ce
Escolar 2018. Brasília: INEP, 2018.
KILOMBA,G. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019
KOHUT, H. La restauración dei si-mismo. Buenos Aires: Paidós, 1977.
KUPFER, M. C. M. Autismo: uma estrutura decidida? Uma contribuição dos estudos sobre bebês
para a clínica do autismo. In: COLÓQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5., 2004. Anais [...]. São Paulo:
USP, 2004.
KUPFER, M. C. M. et al. Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento
infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental
Psychopathology, v. 6, n. 1, p. 48-68,2009.
LACAN, J. O Seminário: Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
LACAN, J. O Seminário: Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. O Seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985.

157
LEBOVICI. S. A mãe, o bebê e o psicanalista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MORENO, J. La infanciaysus bordes. Buenos Aires: Paidós, 2014.
RODULFO, R. Futuro porvenir, ensayos sobre la actitud psicoanalitica en la clínica y ado­
lescência. Buenos Aires: Noveduc, 2008. V
RODULFO, R. Padres e hijos en tiempos de la retirada de las oposiciones. Buenos Aires:
Paidós, 2012.
SEGATO, R. L. O édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Brasília: Departamento
de Antropologia UNB, 2006.
SILVA, M. R. etal. Os conceitos de envolvimento e experiência nos estudos sobre paternidade.
Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 69, n. 3, p. 116-132,2017.
TORT, M. Las subjetividades patriarcales: un psicoanálisis inserto en Ias transformaciones
históricas. Buenos Aires: Topía Editorial, 2017.
WINNICOTT, D. W. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
IDENTIDADES TRANSGÊNERAS
E O CAMPO DE CUIDADO COM
A SAÚDE: UMA ANÁLISE DE
EXPRESSÕES COM VIÉS
PATOLOGIZANTE

Beatriz Bagagli
A patologização das identidades trans, isto é, a compreensão de que essas
identidades configuram doenças diagnosticáveis serviu de justificativa para
a inclusão e conquista a procedimentos biomédicos de alteração corporal
(LIONÇO, 2019). Um dos argumentos a favor da inclusão de uma categoria diag­
nostica reside na ideia de que ela poderia legitirhar a identidade transgênera e
permitira assistência no desenvolvimento de tratamento e atenção profissional
para essa população (LEV, 2013). Em função desse cenário, a comunidadetrans
acaba tendo receio de adotar uma posição a favor da despatologização pelo
medo de que ela implique uma perda na cobertura do processo de transição.
Esse debate se complexifica pois, segundo Sousa, Amaral e Santos (2019),
a patologização das experiências travestis e trans tem funcionado, há décadas,
como uma forma de gestão e tutela de sujeitos que desafiam padrões norma­
tivos de gênero e que instauram outras modalidades discursivas e materiais
de reconhecimento e inteligibilidade do corpo. Pesquisadores e ativistas têm
observado a inter-relação entre a conceitualização e a classificação diagnostica
da transição de gênero como uma doença mental e a situação de discriminação
a que pessoas trans estão expostas em diferentes partes do mundo (SUESS
SCHWEND, 2020).
Em contraposição a abordagens com tendências patologizantes, as abor­
dagens de gênero afirmativas, por outro lado, atestam a importância do reco­
nhecimento identitário para a saúde mental. A posição a favor da despatolo­
gização defende basicamente que o acesso a cuidados médicos não deveria
estar condicionado a um diagnóstico de doença mental. Essas perspectivas,
em função disso, questionam a avaliação médico-psicológica como condição
de acesso ao tratamento (ARÁN, MURTA e LIONÇO, 2009). A despatologização
pode ser entendida, nesse contexto, como uma ampliação do reconhecimento
da diversidade das expressões e identidades de gênero (LIONÇO, 2019) e como
a tomada de palavra na qual as pessoas trans falam sobre suas próprias vidas
e reivindicam autonomia sobre seus corpos (MISSÉ e COLL-PLANAS, 2010).
Tendo em vista essas considerações, propomos analisar a forma como
as identidades transgêneras são compreendidas no Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM); em Littman (2011); em Steensma,
Biemond, de Boer e Cohen-Kettenis (2011); e em Levine (2018). Esta análise irá
incidir sobre alguns recortes de expressões com viés patologizante utilizadas
nesses documentos, tais como: “surgimento precoce/tardio/rápido”, “sofri­
mento”, “desistência”, “persistência”, “contágio social”, “riscos” e “benefícios”.

160
Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM): sofrimento e surgimento da disforia
de gênero
0 DSM é um manual de diagnóstico de transtornos mentais publicado
e atualizado periodicamente pela American Psychiatric Association (APA). 0
manual tem a intenção de estabelecer um consenso no uso de termos e cri­
térios para diagnósticos no campo da psicologia e psiquiatria, tanto para fins
clínicos quanto de pesquisa (DAVY e TOZE, 2018). No entanto, o manual tem
recebido inúmeras críticas desde a sua primeira versão, publicada em 1952
(TOSH, 2016). Ao longo das últimas décadas, o DSM tem servido, principal­
mente no contexto estadunidense, como um instrumento de referência para
o diagnóstico de disforia de gênero.
Lev (2013) aponta uma mudança de enfoque do DSM-IV para o DSM-V
quanto ao diagnóstico: enquanto, na quarta edição do documento, utilizava-
se a expressão “transtorno de identidade de gênero”, a quinta edição passa a
utilizar “disforia de gênero”57. A autora aponta que o foco diagnóstico mudou da
identificação dos desvios dos comportamentos de gênero para a identificação
do sofrimento psíquico individual. Por outro lado, o manual afirma que
“nem todos os indivíduos vão experimentar sofrimento em decorrência da
incongruência de gênero”, ao mesmo tempo em que afirma que “a condição
está associada com sofrimento clinicamente significante”, resultando em uma
inconsistência que pode confundir os psiquiatras (DAVY, 2015, p. 116).
A mudança, segundo Lev, tem o mérito de distinguir a não conformidade
de gênero da disforia de gênero. Assim, estar em não conformidade de gênero
não implica experienciar disforia de gênero, isto é, sofrimento psíquico. Ar­
gumentos favoráveis a essa diferenciação apontam que o diagnóstico passa
a ser mais “útil” na prática clínica cotidiana, pois é capaz de incluir aqueles
sujeitos que efetivamente se beneficiariam do tratamento e excluir aqueles
que, desde o princípio, não o seriam.
Em que pesem as interpretações que entendem que essa mudança re­
presenta um avanço, na medida em que o diagnóstico deixa de incidir sobre
os comportamentos não conformes às normas de gênero, o enfoque no sofri­
mento psíquico, em nosso entendimento, também não é uma posição mera-
mente “descritiva”, como explicitamente concebe o DSM-V. O sofrimento, como

57 A versão atualizada do DSM-V, publicada em maio de 2013, substitui o DSM-IV, criado em 1994 e revisado
critério normativo capaz de excluir pessoas trans de um diagnóstico formal,
pode impactar negativamente os processos terapêuticos (TENÓRIO e PRADO,
2016), pois pode negar o atendimento a pessoas que efetiva mente se benefi­
ciariam de procedimentos de alteração corporal assistidos por profissionais da
saúde e que não se enquadram em modelos hegemônicos de reconhecimento
identitário e corporal, tomando-se prescritivo. Essa forma de compreender
o sofrimento acaba por incentivar as pessoas trans a enquadrar as suas nar­
rativas de acordo com o modelo de sofrimento do DSM-5, para garantir que
suas reivindicações de reconhecimento identitário sejam inteligíveis para os
médicos (DAVY, 2015).
Isso pode gerar a desconfiança nos profissionais de saúde de que os usuá­
rios de saúde transgêneros estejam conscientemente forjando suas narrativas
para deliberadamente obter o tratamento. Muitas pessoas trans se tornam relu­
tantes em transmitir informações que seriam sinceras a respeito de si mesmas
aos psiquiatras e acabam, muitas vezes, por efetivamente se autossilenciar.
Em resposta a essa situação, uma perspectiva patologizante espontaneamente
poderá defender o recrudescimento dos critérios diagnósticos, em busca de
uma narrativa transgênera cada vez mais “depurada” das narrativas supos­
tamente falsas. Por outro lado, os defensores da despatologização apontam
que, caso as pessoas trans não tenham de corresponder previamente às expec­
tativas diagnosticas para receberem atendimento, uma relação mais sincera
entre usuário e profissional de saúde pode ser estabelecida, incluindo uma
compreensão mais precisa da identidade de gênero para além do binarismo
de gênero.
Como aponta Davy (2015), a literatura científica utilizada para a mudança
diagnostica na quinta versão do manual se baseou fortemente em um seleto
grupo de sexologistas que geralmente apoiam mutuamente os seus próprios
trabalhos, além de ignorar inúmeros outros trabalhos na área de pesquisa
das ciências sociais e humanas. Os autores utilizados pelo grupo de trabalho
incluem aqueles que associam mulheres trans lésbicas ou bissexuais ao “fe-
tichismo transvéstico” e mobilizam a noção de “autoginefilia” (BAILEY, 2003;
BLANCHARD, 1991). As teorias que postulam o conceito de autoginefilia (como
a excitação sexual decorrente de imaginara si mesmo como mulher) suscitaram
uma reação profundamente crítica e negativa por parte da comunidade trans58.

58 Conferir Serano (2010).

162
Para Davy (2015), se a sexualidade está subjacente à disforia de gênero
em termos de etiologia, como os autores do DSM-5 supuseram ao incluir au­
toginefilia no manual, seria prudente considerar também outras pesquisas
disponíveis que refletem um conhecimento mais amplo sobre as sexualida-
des das pessoas trans. A adesão, mesmo sutil, a essa perspectiva teórica se
expressa nas designações “surgimento precoce” e “surgimento tardio”, na
medida em que o DSM-V associa o primeiro a uma atração sexual androfí-
lica e o segundo, a “comportamentos transvésticos com excitação sexual”
que podem se desenvolver para a “autoginefilia” (ambos os casos se aplicam
aos indivíduos assignados com o sexo masculino ao nascer). Ao categorizar o
surgimento da disforia de gênero como ora “tardio”, ora “precoce”, o DSM-V
também desconsidera as perspectivas das próprias pessoas transgêneras a res­
peito do desenvolvimento de suas identidades. Ao pressupor a temporalidade
emergindo “cedo” ou “tarde demais”, o documento assume a ideia, mesmo
implicitamente, de que não há um momento “adequado” para o surgimento
de uma identificação trans.

Riscos e benefícios
Levine (2018) tece considerações a respeito das condições de possibilidade
dos pacientes trans serem capazes de consentirem ao tratamento. Isso supõe,
segundo o autor, se perguntar se os pacientes são capazes de compreender
os “riscos” que envolvem as tomadas de decisão em relação à transição e às
alterações corporais, o que resulta em abordar as circunstâncias que seriam
necessárias para que os pacientes sejam capazes de compreender os “riscos”
de suas decisões.
O autor cita diversos “riscos” em potenciais que deveriam ser abordados
na relação entre médico e paciente, o que incluiria, segundo ele, a “diminuição
da expectativa de vida”, “o distanciamento emocional e isolamento de familia­
res”, a “discriminação social” e, até mesmo, uma “grande diminuição do leque
de indivíduos que estão dispostos a manter um relacionamento íntimo ou
amoroso”. Quanto a este último item, o autor alega que jovens e adultos trans
precisam ser “lembrados” que pessoas trans, como a maior parte das pessoas,
buscam ser amadas, mas, enquanto pessoas trans, elas deveriam ser “realis­
tas” e, assim, não criar maiores expectativas, já que “a maioria das pessoas
na sociedade as evitam como objetos de amor”. No caso de mulheres trans, o
autor admite que as próprias mulheres trans são eventualmente capazes de
perceber que acabam “sendo alvo de interesse sexual de um grupo específico

163
de homens que são curiosos sobre sua condição trans”. Alega, ainda, que esse
grupo específico de homens que se interessam por mulheres trans constroem
relacionamentos fugazes, nos quais não haveria interesse na mulher trans
como pessoa (Ibid., p. 8). O autor acredita que seja importante discutir esse
padrão nos relacionamentos interpessoais, tendd em vista a melhor “proteção
contra decepções”.
O autor entende que muitosjovens trans se mostram “chocados e tristes”
ao serem “alertados” quanto a isso, e que “acreditariam” que seriam ou pode­
riam ser exceção. Assim, o autor fomenta a imagem de si mesmo como aquele
que “informa” os pacientes sobre uma “realidade” a respeito das relações
interpessoais que eles poderiam ignorar ou acerca das quais serem ingênuos.
Levine admite que o que entende ser a “exposição honesta de fatos” pode, de
fato, criar “intensa animosidade”, pois o profissional de saúde se torna rapida­
mente um inimigo do paciente (Ibid., p. 9). Podemos assinalar o funcionamento
de um imaginário do médico como detentor de um saber e da capacidade de
revelar as evidências a respeito da situação em que os pacientes se implicam
ou se encontram, às quais os próprios pacientes não teriam acesso ou capa­
cidade de apreensão cognoscível sem a mediação médica.
Levine formula que seja de responsabilidade do profissional “expandir”
a visão do paciente a respeito dos riscos que estão tomando - presumindo,
dessa forma, que a “visão” dos pacientes tende a ser ou é, a princípio, limitada,
e precisa ser tutelada, isto é, “expandida” pela perspectiva profissional; e que
pessoas trans podem se eximir dos “riscos” através da abdicação da transição
-, mas ignora, por outro lado, os “riscos” de uma pessoa trans não afirmar a
própria identidade de gênero por meio da transição. Ou seja, o autor incide
unilateralmente o seu olhar nos riscos da transição, não explicitando os po­
tenciais riscos, para a saúde mental, da ausência de transição.
O autor também não fornece nenhuma evidência que corrobore a ideia
de que a saúde mental e física de pessoas trans possa melhorar através da
escolha deliberada pela não transição - apesar de seu artigo, por outro lado,
parecer estar direcionado à adesão dessa hipótese, implicitamente. Ao for­
mular a questão dos “riscos” dessa maneira, categorizando-os como “riscos
biológicos, psicológicos e sociais”, Levine pressupõe que, de alguma forma,
os sujeitos trans poderiam conscientemente se “esquivarem” de tais “riscos”
através da ausência de transição, isto é, se eximirem detransicionarse assim,
de algum forma, lhes parecer “benéfico”, por meio de um cálculo de “custos
e benefícios” - ignorando que, a partir da perspectiva dos sujeitos trans, as
suas identidades de gênero jamais poderiam ser entendidas dessa maneira,
isto é, como resultados de “escolhas” nas quais se poderiam conscientemente
mensurar “riscos” e “benefícios”. Tampouco seria tão simples, como faz parecer
o autor, se eximir das discriminações transfóbicas através de um cálculo racio­
nal. A vulnerabilidade à violência transfóbica, em várias ocasiões, independe
da transição física ou médica, estando muito mais relacionada propriamente
aos estigmas decorrentes da não conformidade das expressões de gênero, as
quais, muitas vezes, já estão presentes antes mesmo da demanda por alte­
rações corporais diante de um profissional de saúde. Moldar a expressão de
gênero tendo em vista o enquadramento na cisnormatividade simplesmente
não está no “leque” de opções dos indivíduos trans, a não ser sob a autone-
gação da própria identidade, o que resulta em flagrante sofrimento psíquico.
0 autor acaba por reificar as opressões socialmente estruturadas ao tratá-las
como “riscos” relacionados à escolha individual pela transição de gênero, que
deveriam apenas serem expostas no interior de um “cálculo” que contraba-
lancearia ônus e bônus. A ideia de que um profissional de saúde seja o único
capaz de “informar” corretamente o paciente ou usuário de saúde a respeito
de quais seriam os evidentes pesos e contrapesos desse “cálculo” expressa,
por sua vez, uma atitude tipicamente paternalista.
Levine também parece, inclusive, ignorar que a mera exposição das vulne-
rabilidades sociais associadas à condição transgênera por um profissional seja
incapaz de dirimir esses efeitos concretos sobre a vida das pessoas trans. Na
medida em que as discriminações transfóbicas e situações de vulnerabilidade
sociais são vistas como “riscos”, a transição em si passa a ser desaconselhável,
mesmo que sob diversas nuances. Assim, embora reconheça a importância
do engajamento político de pessoas trans para efetivação de direitos coleti­
vos como um aspecto protetor da saúde física e mental, o direcionamento
argumentative que predomina, nesse artigo, é de que, “se existem riscos, é
aconselhável evitar”, ao invés de, “se existem riscos, é necessário denunciar e
lutar, tendo em vista a mudança social”.
Em uma publicação no portal da APA (2016), “O que é Disforia de Gênero”,
lemos, na seção “Desafios/Compticações”:

A disforia de gênero está associada a altos níveis de estigmatização, dis­


criminação e vitimização, contribuindo para a auto-imagem negativa e
aumento das taxas de outros transtornos mentais. Os indivíduos transe­
xuais correm maior risco de vitimização e crimes de ódio do que o público
em geral. Adolescentes e adultos com disforia de gênero têm maior risco
de suicídio. Em adolescentes e adultos, a preocupação com questões de
gênero pode interferir nas atividades diárias e causar problemas nos rela-

165
cionamentos ou no funcionamento na escola ou no trabalho. As crianças
com disforia de gênero podem sofrer provocações e assédio na escola ou
pressão para se vestirem mais como o gênero designado. Crianças com
disforia de gênero correm maior risco de problemas emocionais e compor-
tamentais, incluindo ansiedade e depressão (APA, 2016, p. I)59.

Ao estabelecer uma relação entre identidade trans e diversos efeitos ne­


gativos (como estigmatização, discriminação, vitimização, maior risco de sui­
cídio etc.), o artigo da APA se assemelha à forma como Levine compreende os
“riscos” de uma transição de gênero. Tal forma de estabelecer essas relações
de causalidade mistificam a origem dos problemas relacionados à condição
transgênera, como se esta origem pudesse ser traçada na própria identificação
transgênera, ao invés de incidir nas estruturas sociais de opressão. Essa ma­
neira de formular a questão acaba naturalizando as ideologias quejustificam
as discriminações de pessoas transgêneras na sociedade.

Desistência e persistência
Ansara e Hegarty (2012) analisaram a presença de linguagem cisnormativa
em artigos científicos na área de psicologia e atestaram a presença freqüente
do viés cisnormativo na linguagem usada para descrever comportamentos e
identidades, pois termos como “extremo”, “persistente”, “comorbidade”, “seve­
ridade” etc. não são usados para descrever as mesmas características presentes
em sujeitos cisgêneros, em especial nas crianças e jovens. Isso significa que a
linguagem cisnormativa, assim como qualquer outro viés, se caracteriza pela
ausência de paralelismo e pela aplicação de conceitos ou noções assimétricas.
Em algumas pesquisas psicológicas60, a mudança da compreensão dos
jovens a respeito de suas identidades de gênero foi descrita a partir do binômio
“persistência” versus “desistência”, isto é, aqueles jovens que persistem ou
desistem de uma identificação transgênera. Temple-Newhook, Pyne, Winters,
Feder, Holmes, Tosh, Sinnott, Jamieson e Pickett (2018) nos mostram como o
enquadramento da subjetividade transgênera nesse binômio pode ser capcio-
so. A palavra “desistência”, lembram os autores, remonta à memória discursiva
da criminologia: “a desistência é definida como a cessação de ofender ou cessar
outro comportamento anti-social” (Ibid., p. 8). Por uma associação metafórica,

“Tradução nossa.
60 Conferir Steensma et al (2011).

166
*

é como se a subjetividade transgênera fosse enquadrada no âmbito da trans­


gressão não somente das normas de gênero, mas das leis de uma sociedade.
Além disso, há uma discrepância na forma como a temporalidade é inter­
pretada na constituição subjetiva da identidade de gênero entre posições cis
e trans, pois a asserção de uma identidade cisgênera, em qualquer ponto da
trajetória de vida de um jovem, é frequentemente considerada válida e como
a sua “verdadeira” identidade, tornando qualquer eventual legitimação e re­
conhecimento de uma asserção de identidade transgênera menos provável.
Por outro lado, uma identidade transgênera tende a ser mais dificilmente
reconhecida e validada, pois só é considerada válida se for estática e inaba­
lável ao longo da vida (TEMPLE-NEWHOOK et al, 2018). Nesse enquadre, não
somos instados a pensar com a mesma frequência ou facilidade que um jovem
desiste de ser cisgênero porque é, “na verdade”, transgênero. Por outro lado, a
persistência na cisgeneridade é simplesmente assumida como uma pré-con-
dição de todos os sujeitos, tendendo igualmente a escapar do escrutínio da
investigação crítica.
O par opositivo autoexcludente “persistente” e “desistente” também não
dá conta das especificidades de experiências de gênero mais fluidas em fun­
ção da trajetória de vida individual, como mais nitidamente presentes nas
identidades trans não binárias. A escolha dessa terminologia, portanto, não é
totalmente “neutra”, pois posiciona o desenvolvimento da identidade de gêne­
ro como um caminho de identidade que distingue o “normal” do “desviante”
(Ibid., p. 8). Podemos observar e conceber, nesse sentido, o arrependimento em
função da desistência pela escolha ou caminho da identificação transgênera,
enquanto não tendemos a fazer o mesmo em relação à escolha ou ao caminho
pela identificação cisgênera. Ademais, a busca por pretensos “fatores” que
contribuiriam para o processo de “desistência” ou “persistência” (STEENSMA
et al, 2011) acaba sendo irrelevante, na medida em que o campo de saúde de
pessoas trans deve enfocar as melhores e efetivas formas de apoiar a saúde
e o bem-estar dos jovens no momento presente (TEMPLE-NEWHOOK, 2018).

Surgimento rápido e contágio social


Littman (2018) concebe a hipótese de que existe uma nova forma de disfo­
ria de gênero, que surgiria “rapidamente” em jovens que não teriam histórias
anteriores de inconformidade de gênero em suas infâncias. A autora, então,
postula que a “rápida velocidade” decorreria de “contágio social”, nos quais os
jovens, “imersos em mídias sociais” com conteúdos a respeito das identidades

167
'
1

trans, seriam influenciados a se identificarem como transgêneros - assumin­


do, assim, que, caso esses jovens não tivessem acesso a tais conteúdos em
plataformas digitais, eles, de alguma outra forma, não teriam se identificado
como trans. Esses jovens pertenceriam a um grupo de indivíduos vulneráveis
que poderiam estar mais predispostos a acreditarem equivocadamente que
sejam transgêneros.
As fontes de informação do artigo, no entanto, provêm exclusivamente
de pais reprovadores das identidades trans desses jovens. Segundo Jones
(2018), Littman falha em estabelecer a plausibilidade em suas hipóteses, pois
seria muito mais plausível simplesmente supor que os dados apresentados
por ela já sejam explicados pela literatura científica consolidada a respeito da
disforia de gênero61 (ao contrário do que explicitamente a autora alega), não
fazendo sentido, portanto, postular um novo “tipo” de disforia de gênero, de
surgimento supostamente “rápido”, que decorreria de “contágio social”. Não
há nenhuma evidência consolidada capaz de corroborar a ideia de que as pes­
soas sejam intrinsecamente mais predispostas ao autoengano em relação à
identificação transgênera do que à identificação cisgênera ou, mesmo, de que
o autoengano em relação à própria identidade de gênero seja um fenômeno
comum (ASHLEY, 2019).
Para Littman, o fato de que mais pessoas, em especial jovens que foram
designados como meninas ao nascimento, estejam recentemente se iden­
tificando como transgêneros configura um fenômeno que demandaria ser
explicado. Serano (2016), por outro lado, enquadra a questão de forma dia-
metralmente oposta: o que necessitaria ser “explicado” seria a ausência ou o
menor número de pessoas trans no passado, ao invés do aumento do número
no presente. O aumento da visibilidade positiva e a diminuição do preconceito
são apontados como fatores capazes de explicar o aumento de pessoas trans-
gêneras, em especial um aumento de pessoas transgêneras que demandam
um atendimento em clínicas especializadas na transição de gênero - mas isso
não significa, como argumenta Serano, que seria verossímil supor que essas
pessoas simplesmente não seriam transgêneras, e sim que elas, muitas vezes,
não se assumiam publicamente como trans ou não realizavam uma transição
de gênero medicamente assistida. Alegações de que jovens esta ri am sendo
levados a acreditar equivocadamente que são trans (e posteriormente se arre-

61 Asnormas de atenção da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) já preveem que
muitos/as adolescentes e adultos/as com disforia de gênero não relatam uma história de infância com
comportamentos de variabilidade de gênero.

168
f

penderem), em função de uma alegada nova “moda midiática”, simplesmente


ignoram ou minimizam o fato de que a pressão social pela conformidade de
gênero na posição cis é muito maior.
Segundo uma nota62publicada em 2019 pela Associação Nacional de Tra­
vestis e Transexuais (ANTRA),

Se concebemos que jovens cisgêneros podem equivocadamente serem


levados a pensarem que são transgêneros temos que conceber recipro­
camente que jovens transgêneros podem equivocadamente pensarem
que são cisgêneros em virtude de normas sociais, pressão entre pares,
colegas, “modas” nas redes sociais, “fenômenos midiáticos” mais diversos
possíveis... O problema aqui justamente é que a recíproca nunca chega a
ser verdadeira, e os pesquisadores só parecem se importar com as dores
e sofrimentos psíquicos de jovens que pensam equivocadamente que são
transgêneros, ao invés de cisgêneros (ANTRA, 2019, p. 1).

Modelos de desenvolvimento da identidade transgênera propostos por


Levitt e Ippolito (2014) concebem diversos “estágios” no processo de autorre-
conhecimento como transgênero, incluindo momentos de conflito, isolamento,
desconforto, indecisão, dificuldades, postergação das demandas por reconhe­
cimento identitário e introspecção. Essas considerações nos afastam de uma
concepção a respeito da subjetividade transgênera como simples emanação es­
pontânea (e, por isso mesmo, muito propensa a ser vista como pretensa mente
“irrefletida”, “precipitada”, “ingênua” etc.) de uma “verdadeira” identidade de
gênero cujo “núcleo” se encontraria previamente pressuposto e estabelecido
de antemão. Afinal, o caminho até o autorreconhecimento, a autoaceitação e
a “saída do armário” implica, de múltiplas e diferentes maneiras, um trabalho
psíquico singular, bastante dispendioso e ativo, por parte dos sujeitos trans,
tendo em vista os inúmeros desafios e obstáculos que a transição de gênero
frequentemente impõe, sobretudo em sociedades altamente discriminató­
rias. Além disso, a representação estigmatizante de pessoas trans, sobretudo
pela grande mídia, impacta negativamente no processo de se assumir como
trans (LEVITT e IPPOLITO, 2014). Isso significa que um modelo a respeito do
desenvolvimento de uma identidade transgênera não pode desconsiderar o
impacto dessa representação no processo de subjetivação. Esconder, ignorar
ou rejeitar a própria identidade de gênero são aspectos que podem ser rela-

62 Trata-se de um documento intitulado Réplica a Alexandre Saadeh a respeito de “disforia de gênero de


início rápido” e “contágio social”, cujo objetivo foi criticar a forma como Saadeh veiculou, no portal de
mídia brasileiro UOL, em uma entrevista, o artigo supracitado de Lisa Littman (2018).

169
tad os por pessoas trans em função de pressões sociais para a conformidade
de gênero, sendo fontes constantes de sofrimento psíquico.
Pessoas transgêneras relatam que acessar informação a respeito da tran-
sexualidade e ouvir as histórias e experiências de outras pessoas trans foi
importante para o próprio processo de descobrimento de desenvolvimento
de suas identidades (LEVITT e IPPOLITO, 2014). O reconhecimento identitário
transgênero produzido através do aprendizado das narrativas e experiências
de outras pessoas só pode ser descrito como “contágio” se assumirmos uma
perspectiva patologizante. Compreender esse aspecto como um possível “con­
tágio social” é adotar uma linguagem que estigmatiza e distorce o processo de
subjetivação transgênero, além de desconsiderar, por completo, a importân­
cia do estabelecimento de laços de solidariedade e reconhecimento entre as
próprias pessoas trans. A noção de “contágio social”, aplicada unilateralmente
às identificações trans, só parece fazer sentido na medida em que se presume
que as identidades cisgêneras sejam normais, saudáveis e mais desejadas do
que as transgêneras.

Considerações finais
A representação de uma temporalidade como “rápida”, “precoce” ou “tar­
dia” não corresponde a um referencial pautado nas perspectivas das próprias
pessoas transgêneras a respeito dos seus processos de subjetivação. Essas
designações enquadram o aparecimento de uma identificação transgênera
como temporalmente inadequada, expressando, assim, a cisnormatividade,
O sofrimento psíquico, utilizado como critério diagnóstico, não é meramente
descritivo,já que ele pode excluir indivíduos que efetiva mente se beneficiariam
dos processos terapêuticos, mas não se enquadram nos modelos de reconhe­
cimento hegemônicos. O binômio “persistência” e “desistência” é incapaz de
descrever os processos de subjetivação trans para além de uma lógica binária,
expressando uma conceituação inconsistente com as melhores práticas de
cuidado com a saúde. Pares como “riscos” versus “benefícios” podem reifi-
car as situações de discriminação social, estabelecendo uma falsa relação
de causalidade entre identidades transgêneras e efeitos psíquicos adversos
decorrentes da exclusão social. Todas as expressões supracitadas funcionam
como formas de patologização das identidades transgêneras.
As considerações de Serano (2016) são preciosas para a compreensão
dos efeitos da patologização. Segundo a autora, a patologização é uma ma­
neira de invalidação identitária em que há uma negação de reconhecimento

170
de autenticidade. A autora pontua que “a incessante busca para descobrir a
causa da transexualidade é projetada para manter as identidades de gênero
transexuais em um estado perpetuamente questionável, garantindo assim
que as identidades de gênero cissexuais continuem a ser inquestionáveis”; e
que, portanto, a pergunta “por que transexuais existem?” não é uma questão
de pura curiosidade, mas, sim, um ato de não aceitação. O que as expressões
analisadas neste artigo produzem é precisamente um controle e uma invali­
dação das perspectivas dos sujeitos trans. Diante de nossas análises críticas,
concluímos que a patologização não se refere apenas a uma mera categoriza-
ção de identidades de gênero desviantes em manuais diagnósticos, mas, sim,
a uma forma mais ampla pela qual os profissionais de saúde ouvem, acolhem,
compreendem e significam as demandas e vivências transgêneras; em suma,
como efetivamente esses profissionais se relacionam intersubjetivamente com
usuários de saúde transgêneros.

171
REFERÊNCIAS
ANSARA, Y. G.; HEGARTY, P. Cisgenderism in psychology: Pathologisingand misgenderingchildre
from 1999 to 2008. Psychology & Sexuality, v. 3, n. 2, p. 137-160, 2012.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ANTRA). Réplica a Alexandre Sa
a respeito de “disforia de gênero de início rápido” e “contágio social”. 2019. Disponível
em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/04/nota-publica-dr.-sadeeh-replica-2.pdf.
Acesso em: 15 jul. 2020.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). What Is Gender Dysphoria? 2016. Disponíve
https://www.psychiatry.org/patients-families/gender-dysphoria/what-is-gen der-dysphoria.
Acesso em: 15 jul. 2020.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders. 5th. ed. Arlington: American Psychiatric Association, 2013.
ARÁN, M.; MURTA, D.; LI0NÇ0, T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 14, p. 1141-1149, 2009.
ASHLEY, F. Homophobia, conversion therapy, and care models fortrans youth: defending the
gender-affirmative approach. Journal of LGBT Youth, p. 1-23, 2019.
BAILEY, J. M. The man who would be queen: The science of gender-bending and transsexualism
Washington: Joseph Henry Press, 2003.
BLANCHARD, R. Clinical observations and systematic study of autogynephilia. Journal of Sex
and Marital Therapy, v. 17, n. 4, p. 235-257,1991.
DAVY, Z. The DSM-5 and the politics of diagnosing transpeople. Archives of Sexual Behavior,
v. 44, n. 5, p. 1165-1176,2015.
DAVY, Z.; TOZE, M. (2018). What is gender dysphoria? a critical systematic narrative review. Tran
gender Health, v. 3, n. 1, p. 159-169, 2018.
JONES, Z. “Rapid onset gender dysphoria” is not one thing: Mapping the claims of ROGD pro­
ponentes. 2018. Disponível em: https://genderanalysis.net/2018/07/rapid-onset-gender-dys-
phoria-is-not-one-thing-mapping-the-claims-of-rogd-proponents/. Acesso em: 15 jul. 2020.
LEV, A. I. Gender dysphoria: Two steps forward, one step back. Clinical Social Work Journal,
v. 41, n. 3, p. 288-296,2013.
LEVINE, S. B. Informed Consent for Transgendered Patients. Journal of Sex & Marital Thera­
py, v. 45, n. 3, p. 218-229,2018.
LEVITT, H. M.; IPPOLITO, M. R. Being transgender: The experience of transgender identity deve­
lopment. Journal of Homosexuality, v. 61, n. 12, p. 1727-1758,2014.
LIONÇO, T. A psicologia entre a patologização e a despatologização das identidades trans. In:
SOUSA, E. T.; AMARAL, M. S.; SANTOS, D. K. (orgs.). Psicologia, travestilidades e transexual
dades: compromissos ético-políticos da despatologização. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019.
p. 43-57.
LITTMAN, L. Rapid-onset gender dysphoria in adolescents and young adults: A study of parental
reports. PloS One, v. 13, n. 8, e0202330,2018.
MISSÉ, M.; COLL-PLANAS, G. La patologización de la transexualidad: Reflexiones críticas y pro-
puestas. Norte de Salud Mental, v. 8, n. 38, p. 44-55, 2010.

172
SCHWEND, A. S. Trans health care from a depathologization and human rights perspective.
Public Health Reviews, v. 41, n. 1, p. 2107-6952, 2020.
SERANO, J. The case against autogynephilia. International Journal of Transgenderism, v. 12,
n. 3, p. 176-187,2010.
SERANO, J. Whipping girl: A transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity.
London: Hachette, 2016.
SERANO, J. Everything You Need to Know About Rapid Onset Gender Dysphoria. 2018. Dis­
ponível em: https://medium.com/@juliaserano/everything-you-need-to-know-about-rapid-on-
set-gender-dysphoria-1940b8afdeba. Acesso em: 15 jul. 2020.
SOUSA, E. T.; AMARAL, M. S.; SANTOS, D. K. (orgs.). Psicologia, travestilidades e transexuali-
dades: compromissos ético-poiíticos da despatologização. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019.
STEENSMA, T. D.etal. (2011). Desisting and persisting gender dysphoria after childhood: a qua­
litative follow-up study. Clinical Child Psychology and Psychiatry, v. 16, n. 4, p. 499-516, 2011.
TEMPLE-NEWHOOK, J. etal. A critical commentary on follow-up studies and “desistance” theories
about transgender and gender-nonconforming children. International Journal of Transgen-
derism, v. 19, n. 2, p. 212-224,2018.
TENÓRIO, L. F. P.; PRADO, M. A. M. Os impactos e contradições da patologização dastransiden-
tidades e argumentos para a mudança de paradigma. In: VAL, A. C.; GOMES, G. L.; DIAS, F. V.
Multiplicando os gêneros nas práticas em saúde. Ouro Preto: UFOP, 2016. p. 130-148.
TOSFI, J. Psychology and gender dysphoria: Feminist and transgender perspectives. London:
Routledge, 2016.
\
IDENTIDADE DE GÊNERO
E PARENTALIDADE

Gerson Smiech Pinho


Analicede Lima Palombini
Um casal de mulheres procura uma consulta em psicanálise, preocupa­
das com seu filho, uma criança ainda em idade pré-escolar. Entre as diversas
questões que trazem durante a primeira conversa, sublinham o fato de que
com frequência ele não as escuta. Frente à grande parte das rotinas cotidia­
nas - como tomar banho, escovar os dentes, coiner, deitar-se para dormir ou
guardar os brinquedos tem por costume se recusar com gritos e choro. Por
vezes, fica agressivo e bate. Apesar disso, no restante do tempo, quando não
está sendo demandado, costuma ser um menino afetivo e carinhoso.
No primeiro encontro com o psicanalista, entra na sala e imediatamente se
coloca a brincar. Vai ao armário e pega alguns soldados e carrinhos. Enquanto
isso, fala bastante, simpático e alegre. Constrói uma brincadeira que ocupa
boa parte do tempo e que irá se repetir também em outros encontros. Amarra
os bonecos e os carros com barbante e coloca-os na beira da poltrona. Inicial­
mente, faz os soldados caírem em um abismo. “Eles não morrem”, comenta
sorrindo. “A corda segura. Não tem perigo”. A seguir, faz os carrinhos andarem
pelas bordas do buraco vazio. Quando caem, também ficam suspensos, atados
ao fio que os segura.
Ao ser tocado pelo encontro com esse menino e sua família, o analista é
conduzido a algumas associações. Recorda as inúmeras vezes em que escutou
preocupações semelhantes às relatadas pelas mães do garoto. E também das
diversas ocasiões em que testemunhou brincadeiras com bordas, limites e
fronteiras, como as feitas por ele. Como de costume, interpretou aquilo que
escutava a partirde certos pressupostos construídos ao longo de sua trajetória
de trabalho e formação, segundo os quais é fundamental não antecipar ou
inferir questões com base na simples presença ou ausência de membros de
uma família nuclear convencional, como um pai ou uma mãe, por exemplo. Ao
contrário, é necessário estar atento à posição discursiva singular desde a qual
cada um se coloca, e não somente aos acontecimentos objetivos da situação.
Com base na centralidade do complexo de Édipo para a constituição de
um sujeito, as funções materna e paterna costumam ter um lugar de relevo na
teorização dos psicanalistas, visto serem consideradas operações necessárias à
estruturação daquele complexo. No que tange a pensar sobre o eventual lugar
paterno em diferentes circunstâncias familiares, a diferença conceituai entre a
figura do pai enquanto agente concreto e a função simbólica do pai, assentada
no campo da psicanálise a partirda obra de Lacan (1957-1958/1999), permite
desvincular a função paterna de uma pessoa específica. De acordo com essa
distinção, não é necessário ter um pai presente para que a função paterna
opere simbolicamente. E, por sua vez, a presença de um pai na realidade em

176
nada garante o exercício efetivo dessa função. Falar do pai como pessoa que
pode estar presente ou ausente na vida de um sujeito é diferente de falar do
exercício de uma função. Esta última tem um caráter discursivo e pode operar
de forma eminentemente simbólica, independentemente da existência real
de alguém que faça cargo de modo concreto do papel de pai.
Nessa mesma direção, designa-se como materno o significante atrelado
ao desejo que primeiramente nos acolheu e nos permitiu existir. Ser algo para
alguém é o que garante um primeiro sentido à nossa existência como humanos.
Essa é uma operação tão vital e necessária quanto potencialmente mortífe­
ra, pois estar preso de modo absoluto ao que o outro quer de nós implica o
desaparecimento como sujeito, ou seja, não poder falar em nome próprio. É
aí que entra em cena a função paterna propriamente dita, a qual permite ao
sujeito se destacar e se diferenciar dessa primeira significação e abrir-se a uma
pluralidade de novos sentidos.
A introdução de um terceiro elemento na relação inicialmente dual possi­
bilita à criança livrar-se da entrega total ao desejo do Outro primordial. Pode
sair do aprisionamento a uma significação unívoca, em que “se é algo para
alguém”, para ingressar no universo das múltiplas significações presentes na
cultura. O primeiro significante materno é substituído pelo significante pater­
no, que funciona como uma espécie de trampolim para a abertura no campo
das significações63. A partir da teorização de Lacan (1957-1958/1999), tanto a
função materna quanto a função paterna deixam de estar ancoradas em figuras
específicas e podem ser exercidas por diferentes personagens.
Desse modo, em diferentes circunstâncias familiares, não é possível pres­
supor as funções materna e paterna com base na pura e simples presença con­
creta de mães ou pais. É necessário escutar, sem se antecipar. A esse respeito,
Lacan (1957-1958/1999) afirma que a presença ou ausência do pai na família
não eqüivale à sua presença ou ausência no complexo de Édipo.

Falar de sua carência na família não é falar de sua carência no complexo.


De fato, para falar de sua carência no complexo, é preciso introduzir uma
outra dimensão que não a dimensão realista, definida pelo modo carac-

63 Lacan (1957-1958/1999) toma o conceito de metáfora para descrever a operação de entrada da função
do pai no universo do sujeito. A estrutura básica da metáfora é a da substituição significante: uma palavra
por outra. Quando alguém utiliza uma metáfora, um significante substitui outro, o qual permanece ocul­
to, mas se mantém presente em sua conexão com o restante do discurso. Com base nisso, Lacan (1957-
1958/1999) denomina a operação de substituição do primeiro significante materno pelo significante pa­
terno de “metáfora paterna”.

177
terológico, biográfico ou outro de sua presença na família (LACAN, 1957-
1958/1999, p. 174).

A “outra dimensão”, referida no trecho citado, é a da linguagem. É nesse


plano que se situam as funções parentais para Lacan (1957-1958/1999). Dessa
forma, mesmo que uma mãe ou um pai não se façam presentes em carne e
osso, as funções materna e paterna podem existir simbolicamente. E vice-versa,
já que a presença das figuras parentais na realidade não garante a existência
dessas funções no discurso. O que realmente importa está em outro plano,
aquele da linguagem, que vai além dos fatos concretos.
Ao se afastar dos dados da realidade para dar lugar ao modo como um
sujeito significa sua vida, Lacan subverteu a teoria e a prática da psicanálise,
desvinculando-a de um modelo padronizado de família para abrir-se à pos­
sibilidade de novos formatos e modos de existência. Ao mesmo tempo, man­
tém como pano de fundo a composição triangular básica da família nuclear
moderna - pai, mãe e filho - ao transpor os lugares vigentes nessa estrutura
para outras situações na categoria de funções. Com a diferenciação entre fun­
ções parentais e a eventual existência dos personagens materno e paterno na
realidade, Lacan (1957-1958/ 1999) põe em relevo a centralidade da função
simbólica na constituição do sujeito, responsável por situar uma primeira sig­
nificação para o sujeito, bem como um limite em relação ao Outro primordial.
Foi toda essa teorização que veio em auxílio para entender o que acontecia
com o menino da cena relatada no início. Ele tem duas mães, não há um pai
de carne e osso em sua realidade cotidiana, mas a função paterna está lá. Na
brincadeira diante do abismo, há um sujeito que se sente seguro, que não cai
e que encontra elementos simbólicos que o sustentem. Ele é capaz de brincar
nas bordas de um buraco e contornar o vazio com seus carros e soldados. E,
à primeira vista, confirma-se mais uma vez a importância da distinção entre
os personagens da realidade e as funções parentais articuladas à estrutura do
discurso, bem como seu proveito como operadores na prática clínica.
Para seguir na elaboração dessa cena, tomemos o trabalho de Dor (2011)
a respeito do pai e sua função em psicanálise. Ao fazer um apanhado dos ele­
mentos mais significativos da obra de Lacan sobre o tema, Dor (2011) insiste
vigorosamente na distinção entre o pai da realidade e o pai simbólico ao longo
de todo seu livro. De acordo com ele, “no campo psicanalítico, a noção de pai
é investida de uma conotação bem particular. O pai a que nos referimos per­
manece, sob certos aspectos, excluído da acepção comum que dele fazemos
enquanto agente da paternidade comum”. (DOR, 2011, p. 11).

178
V

Assim, ao tomar a trilha das idéias já estabelecidas por Lacan acerca do


Lema, Dor (2011) coloca em destaque a diferença entre a paternidade comum
e a função paterna e declara, em relação ao pai, que se trata “menos de um
ser encarnado do que de uma entidade essencialmente simbólica que ordena
uma função”. (Ibid., p. 12) Até esse ponto, nada de essencialmente novo em
comparação ao que já foi exposto até aqui. Entretanto, não é sem surpresa
que encontramos a seguinte afirmação na seqüência do texto:

A instituição da função paterna é diretamente tributária da circulação do


falo na dialética edipiana. Todavia, esta circulação supõe, por sua vez, que
diferentes protagonistas sejam levados a ocupar lugares específicos nesse
espaço de configuração edipiana. Ainda que se trate de lugares, isso não
implica que os protagonistas sejam, no entanto, elementos situáveis indi­
ferentemente entre eles. Um pai não pode ser uma mãe; da mesma forma,
uma mãe não pode substituir um pai. (Ibid., p. 53).

Para exemplificartal asserção, Dor (2011) assegura que, num casal homos­
sexual composto por duas mulheres, nenhuma das parceiras poderia jamais
assumir a função paterna junto à criança, por mais que se esforçasse para isso.

A solução deste problema, por mais que as homossexuais experimentem


sofrimento ao tentar resolvê-lo, é infelizmente bem mais simples: está li­
gada, fundamentalmente, ao real da diferença entre os sexos. Ora, quer se
queira sabê-lo ou não, esta é irredutível. O papel materno é inexpugnável,
no sentido em que é instituído e sustentado pela questão da diferença dos
sexos aos olhos da criança. Por sua vez, a função paterna só é operatória
simbolicamente por proceder diretamente dela. Em outras palavras, é a
lei do falo que é determinante. (Ibid., p. 54).

O estranhamento em relação a esta passagem do texto de Dor (2011) se


relaciona ao que ele encerra de visivelmente contraditório, pois, ao mesmo
tempo que separa a paternidade comum da função paterna, volta a confundi-
las ao conectar tanto essa função quanto a outra, definida como materna, à
diferença sexual anatômica entre homens e mulheres. De acordo com o autor,
os protagonistas desses lugares só podem ser definidos com base na marca
biológica distintiva que carregam em seus corpos64.
Nessa direção, Dor (2011) incide em uma imprecisão conceituai, ao jus­
tapor a circulação do falo na dialética edipiana com a “questão da diferença

64 Como será examinado a seguir, esta posição não se restringe ao citado autor, mas foi partilhada por mui­
tos psicanalistas, na França, durante o debate a respeito da adoção de crianças por casais homossexuais.

179
dos sexos aos olhos da criança”. Ora, já no início de seu ensino, Lacan (1956-
1957/1995) diferencia o pênis, enquanto órgão real e concreto, do falo, que
tem o estatuto de significante, em suas vertentes imaginária e simbólica.
Se o falo é o significante que marca a diferença e a falta - e que, por isso,
dá suporte ao desejo -, ele pode ou não estar ancorado como representante
em uma determinada parte específica do corpo. Ou seja, a diferença que mo­
vimenta um humano em direção a um objeto de desejo, qualquerque seja ele,
pode estar situada em pontos diversos e variados, pois se encontra fundada
no campo da linguagem.
Dor (2011), além disso, ao afirmarque o real da diferença entre os sexos é
irredutível, desconsidera a relação entre o real e o simbólico, tal como é pro­
posta por Lacan. Como indica Zizek (2000), na medida em que o real lacaniano
é definido como aquilo que resiste à simbolização, seus limites são determi­
nados pelo próprio simbólico e fundados na impossibilidade deste último de
constituir uma totalidade. Assim, o real da diferença sexual não comporta um
conjunto fixo de elementos que definem papéis masculinos ou femininos a
priori. Ao contrário, revela o fracasso da tentativa de tal simbolização, já que
não comporta uma entidade substancial preexistente.
Finalmente, mesmo que a afirmação de Dor (2011) acerca da sustentação
da função paterna seja exemplificada especificamente através das famílias ho-
moparentais, seu pressuposto coloca em xeque qualquer configuração familiar
que não disponha ao menos de um homem e de uma mulherque possam ser
investidos das funções de pai e de mãe, como as famílias monoparentais ou
as famílias compostas por uma mãe e uma avó, por exemplo. Sua afirmação
vai na direção inversa daquilo que ele próprio acentua ao longo das primeiras
cinqüenta páginas do seu livro, além de obstruir a potência da distinção entre
função e presença real de ambas as figuras, pai ou mãe, para a leitura dos
múltiplos estilos e formatos de famílias na atualidade.
Se, no interior do campo da psicanálise, dispomos de proposições sobre
as funções parentais que aparentam avançar em direções opostas, como con­
ceber, nesse âmbito, configurações diferentes da família nuclear tradicional,
calcada no paradigma pai, mãe e filhos, como as famílias homoparentais? Para
prosseguir no exame dessa questão, propomos abordar a posição tomada por
diferentes psicanalistas em relação ao debate que se produziu na França, em
1999, a respeito da adoção de crianças por casais homossexuais.

180
Funções parentais, homoparentalidade e normatividade
em psicanálise
Para Birman (2006), o discurso lacaniano, em decorrência de alguns de
seus postulados, muitas vezes, entra em discordância com o que ocorre na
atualidade, a partir da ruptura que os discursos feminista e LGBT propuseram
em relação aos pressupostos do patriarcado. Segundo ele, essa dissonância
pode ser observada, por exemplo, na posição que muitos psicanalistas lacania-
nos tomaram frente às demandas dos homossexuais em relação ao Pacto Civil
de Solidariedade (PACS), na França, em 1999. Esse pacto permitiu o casamento
entre pessoas do mesmo sexo, porém sem incluir o direito à filiação por parte
do casal, nem através do direito de adoção de crianças, nem por procriação
medicamente assistida.
O Pacto Civil de Solidariedade provocou um amplo debate sobre o reco­
nhecimento da filiação homossexual, do qual muitos psicanalistas franceses
participaram ativamente. Na discussão travada entre os psicanalistas em re­
lação à legitimidade da homoparentalidade, Perelson (2006) faz referência ao
lugar que a psicanálise ocupou, a partir do posicionamento de muitos analistas,
como guardiã das boas condições de subjetivação, associadas à manutenção
de estruturas familiares calcadas na heterossexualidade dos pais65. Em contra­
partida, outros psicanalistas explicitaram claramente sua posição favorável à
homoparentalidade, afirmando não reconhecer no discurso normalizador, pro­
ferido em nome da psicanálise, a verdade da prática proposta em seu campo.
O posicionamento contrário à homoparentalidade de parte dos psicanalis­
tas lacanianos nos debates sobre o PACS está relacionado ao discurso susten­
tado sobre as noções de ordem simbólica e de função paterna. Quinet (2016)
atribui a uma leitura normativa do Édipo, tal como descrita por Lacan (1957-
1958/1999) em seu quinto seminário66, este episódio em que psicanalistas eu­
ropeus foram à mídia manifestar suas preocupações com a sanidade mental de
uma criança adotada por casais do mesmo sexo biológico. Como bem destaca
Quinet (2016), ao propor a metáfora paterna, Lacan (1957-1958/1999) não se
refere ao “papai” e à “mamãe”, mas às funções do Nome-do-Pai e do desejo
da mãe, em um deslocamento do contexto da família para a função da fala e o

65 Segundo Roudinesco (2003), entre os nomes que se posicionaram contrariamente à homoparentalidade


estavam Gilbert Diatkine, César Botella, Jean Pierre Winter, Simone Korfsausse, Charles Melman e Pierre
Legendre.
66 Trata-se do seminário “As formações do inconsciente” (LACAN, 1957-1958/1999), no qual é formulada a

noção de metáfora paterna, referida na parte inicial deste trabalho.

181
campo significante do desejo. Porém, os analistas lacanianos que se ativeram
a uma concepção normativa do Édipo, que associa a heterossexualidade à
normalidade, confundem a diferença sexual com a diferença sexual anatômica,
Quinet (2016) acrescenta que, apesar de a psicanálise fornecer elementos
suficientes contra a patologização e a discriminação sexual, foram os movimen­
tos sociais e os estudos de gênero que promoveram mudanças significativas
nesse sentido. Isto porque, ao longo da história, a regulação das modalidades
de gozo tem sido sustentada por alguns psicanalistas que preconizam nor­
mas a respeito da sexualidade e dos laços amorosos, como nas recém-citadas
manifestações homofóbicas a respeito do PACS. De acordo < :>m o autor, essa
posição dos analistas nada mais faz do que produzir repúdio em relação à
própria psicanálise, bem como incrementar a segregação e a discriminação
em relação às minorias sexuais, aliando-se ao discurso de incitação ao ódio
existente na sociedade. Segundo Quinet (2016), os esforços para regular as
parcerias amorosas são meras tentativas fracassadas de suprir o real ligado à
impossibilidade de relação sexual67.
Consoante com a necessidade de crítica destacada por Quinet (2016), Pe-
relson (2006) aponta que, como reação à cruzada homofóbica68 mencionada,
a psicanálise viu surgir e se desenvolver em seu interior um movimento que,
no intuito de refletir sobre suas bases teóricas, vem efetuando uma reconsi­
deração completa de suas certezas e trabalhando sobre novas e instigantes
teorizações acerca das problemáticas da função paterna, do Édipo e, sobretu­
do, da diferença sexual. Assim, ao invés de se opor à novidade, a psicanálise
pode, antes de tudo, ser positivamente provocada por ela.
Para Perelson (2006), a possibilidade que se apresenta, no caso de uma
recusa do determinismo a partir das noções de ordem simbólica e função
paterna, é pensarmos a instituição dessa função pela fragmentação e mul­
tiplicação de seus agentes. Nesse caso, não seria mais necessário reunirmos
em uma mesma figura encarnada a atribuição do falo e o real da diferença
entre os sexos.

67 Nos últimos anos de sua obra, ao afirmar que “a relação sexual não existe”, Lacan propõe que a busca de
complementaridade no encontro de parceiros sexuais está fadada ao fracasso, visto que a junção perfeita
entre os amantes é impossível.
68 Ainda que tenha sido nesses termos que o debate se colocou naquele momento na França, hoje o movi­

mento LGBT reivindica o termo LGBTfobia para abranger a diversidade de condições relativas à sexualida­
de ou ao gênero que se reúnem sob a mesma sigla e que são objeto de preconceito.

182
Talvez devêssemos pensar que, com a desarticulação entre sexo e reprodu­
ção - seja pelas novas práticas sociais, seja pelas novas práticas médicas - e
com o despedaçamento tanto das famílias quanto da experiência reprodu­
tiva, a figura do terceiro termo perde a sua unidade; ela se fragmenta e se
multiplica. Não há mais o Nome-do-Pai, e sim os nomes-do-pai, ou ainda,
como dirá Lacan, as père-versions, as várias versões e ao mesmo tempo
perversões, no sentido de subversões, do pai. (PERELSON, 2006, p. 717).

Essa possibilidade de revisão e de abertura teórica implica um posiciona­


mento quanto ao determinismo histórico e social do inconsciente, pois, como
afirma Birman (2006):

Se a leitura inicial de Freud foi efetivamente falocêntríca, marcada pela


moral do patriarcado, leitura que foi bastante radicalizada por Lacan,
o que ambos revelaram foi como o inconsciente, tal como a psicanálise
evidenciou, foi permeado pelos valores fundamentais do patriarcado. O
que é preciso destacar é que o inconsciente sexual, tal como descrito pela
psicanálise, foi historicamente construído, de forma que é preciso retirá-lo
agora de sua a-historicidade pretensamente universalista para submetê-lo,
sob a forma de uma genealogia, a uma desconstrução conceituai, ética e
política, como nos indicou o discurso freudiano no fim do seu percurso.
(BIRMAN, 2006, p. 177-8).

Frente a essas questões, propomos verificar como as posições de mãe


e pai emergem na vida de um sujeito e a partir de quais caminhos alguém
passa a se representar como mãe ou como pai no discurso. Ou seja, como se
estabelecem as identidades em relação à parentalidade ou, de modo mais
amplo, em relação ao parentesco.

Da palavra que toma corpo


Durante uma sessão, um homem conta sobre como se sentiu ao ser cha­
mado, pela primeira vez, de pai por seu filho. A pequena criança, com menos de
um ano, começava a balbuciar as primeiras palavras. Seus enunciados, pouco
articulados ainda, eram compostos basicamente por sílabas repetidas e por
onomatopéias. Em meio à massa sonora ainda um tanto indiferenciada, sem
que esperasse, escuta “papai”. É pego de surpresa e se sente dominado por
uma sensação de vertigem, afetado corporalmente. Diz: “é como se, naquele
momento, tivesse me caído a ficha de quem eu era para ele”.
O breve instante em que este homem escuta o filho lhe chamar de “papai”
é um momento de corte, que divide o tempo entre um “antes” e um “depois”.
Após ouvir o menino, já não se reconhece mais o mesmo que antes, como

183
indica a sensação descrita por ele. Essa situação pode ser pensada como
uma espécie de batismo às avessas, já que é o filho quem nomeia e designa
o pai. Para refletir acerca dessa cena, retomemos o modo como Lacan (1968-
1969/2008) propõe a noção de significante em sua articulação com o sujeito
do inconsciente. ^
Lacan (1968-1969/2008) conceitua o significante como “aquilo que repre­
senta um sujeito para outro significante” e, com essa definição, coloca pelo
menos duas relações em relevo. A primeira corresponde à conexão necessária
entre dois ou mais signifi cantes, sempre inseridos em redes associativas na
produção de sentido. A segunda aponta sua inevitável e indispensável ligação
com o sujeito do inconsciente. Ou seja, os significantes não só funcionam asso-
ciativamente, uns em relação aos outros, mas também engendram um sujeito
que se expressa e se produz no instante mesmo em que a fala se desenrola,
no próprio ato de enunciação. O sentido, sempre renovado, advém do modo
como as palavras se combinam e se associam, o que implica necessariamente
a manifestação de um sujeito que se faz representar através elas.
Com base nesta definição, pode-se depreender também que, em meio ao
universo de significantes existentes, cada sujeito irá circunscrever um conjunto
de termos cuja função é representá-lo em sua singularidade. Mesmo que al­
guns elementos cumpram este papel de forma estável e permanente, como é
o caso do nome próprio de alguém, um ato enunciativo pode produzir novos
componentes para ocupar tal posição. É o caso da situação acima, em que o
termo “pai” inaugura, a partir de um certo momento, uma nova posição do
sujeito no discurso.
Lacan (1969-1970/1992) denomina de significante-mestre o lugar, na es­
trutura do discurso, reservado aos significantes que representam um sujeito.
Como um significante não detém capacidade representativa de modo solitário,
o significante-mestre necessita se conectar com o restante do conjunto de
significantes, o qual compõe um saber69 que confere sentido àquele primeiro
termo. É importante destacar que tanto o significante-mestre (S,) quanto o sa­
ber (S2) são lugares na estrutura do discurso e que os significantes que venham
a ocupar essas posições não são fixos nem estão dados o priori. É no próprio
movimento promovido pela fala que os termos quevenham a preencher estas
duas posições vão sendo gerados e gradualmente estabelecidos.

69 Lacan costuma empregar letras para representar alguns conceitos: S, para designar o significante-mes­
tre, S2 para se referir ao saber e $ para indicar o sujeito.

184
V

Ao comentar sobre a noção de significante, Lacan acrescenta ainda que,


“em sua relação com outro significante, S2, um significante S, representa o
sujeito, o S barrado quejamais poderá apreender-se.” (LACAN, 1968-1969/2008,
p. 22) Com isso, fica demarcado o caráter inapreensível do sujeito, visto que
nenhum significante é suficiente para representá-lo plenamente ou em sua
totalidade. Nenhuma palavra tem condições de definir alguém de modo coe­
so e integral. O sujeito do inconsciente é destituído de qualquer essência e
só aflora na medida em que as palavras se animam e se deslocam, através
do movimento da fala que transita de um significante ao outro, por meio do
intervalo que se abre na passagem de S, a S2.
A princípio, todos os significantes se eqüivalem entre si, pois jogam com
a diferença de cada um com todos os outros, e, por sua condição eventual de
representar um sujeito para outro significante, cada um deles é capaz de vir
em posição de significante-mestre. Contudo, mesmo quando uma constelação
de termos passa a delimitar o lugar de S1} o sujeito não está representado de
modo unívoco, de uma vez portodas, ou de forma acabada. Um resto, não sim­
bolizado, sempre subsiste dessa operação de divisão entre S-, e S2, que Lacan
irá situar com o conceito de objeto o, “causa de desejo” ou “mais-de-gozar”70.
Se retomarmos a cena descrita acima, o lugar do sujeito se transforma na
medida em que passa a ser representado enquanto “pai”, como revelado pela
sensação de vertigem. Nesse contexto, é possível afirmar que o significante
permite fundar uma nova posição discursiva, o que coloca em evidência a
função criativa e transformadora da linguagem. Afinal de contas, uma psica­
nálise encontra seu fundamento no fato de que as palavras proferidas, seja
pelo analisando, seja pelo analista, são capazes de promover mudanças e
deslocamentos na subjetividade. Pode-se dizer que, nessas circunstâncias, a
fala adquire um verdadeiro valor de ato.
As questões assinaladas até aqui são fundamentais para compreender
como se processa a inscrição na condição de pai ou de mãe. Com efeito, a
função de ato da palavra autoriza o sujeito a se situar em um novo lugar dis­
cursivo, o que permite interpretar a cena descrita anteriormente. Quando o
homem escuta o filho lhe chamar de “papai”, produz-se um efeito que incide
em sua subjetividade e em seu corpo. Após esse ato de enunciação, ambos os
sujeitos em questão já não estão mais na mesma posição em que se encon-

™ Segundo Lacan, o objeto a apresenta duas facetas - enquanto ausente ou faltante, causa desejo; ao
passo que, fazendo-se presente, produz gozo. Por essa razão, é denominado tanto de “objeto causa de
desejo” quanto de “mais de gozar”, esta última expressão por analogia à noção marxista de mais-valia.

185
travam no início, visto que um novo estado de coisas é instaurado. A inclusão
de novos termos sob a égide do significante-mestre oportuniza aos referidos
sujeitos se representarem uma nova posição no discurso. Com base nisso, fica
posto que não há qualquer essência ou substância pré-discursiva que possa
ser atribuída às categorias de pai, mãe, homem bu mulher. Aquilo que somos
é conseqüência do discurso que, num efeito retroativo, nos constitui. Como
afirma Lacan, “o homem e a mulher não têm nenhuma necessidade de falar
para ficar presos num discurso. Como tais, com o mesmo termo que usei há
pouco, eles são fatos de discurso.” (LACAN, 1971/2009, p. 136).
A partir do que foi dito, também podemos pressupor que uma identidade
parental - ou seja, representar-se como mãe ou pai - é construída socialmente
em um sentido semelhante ao proposto por Butler (2003) quando fala da pro­
dução do gênero. Para a autora, o gênero é produzido através dos comporta­
mentos, atos e palavras que se colocam em cena e são repetidos, não existindo
qualquer essência naquilo que poderia se definir como “masculinidade” ou
como “feminilidade”, por exemplo. Desse modo, o gênero é realizado e fabri­
cado através das palavras e dos comportamentos que são exteriorizados ao
longo da vida dos sujeitos. Tem-se a ilusão de que o gênero determina nossas
ações, mas, ao contrário disso, são nossos comportamentos que criam, retroa-
tivamente, as categorias de gênero que supostamente esta ri am por trás deles.
O mesmo se pode depreender em relação à paternidade e à maternidade.
Ou seja, uma identidade parental não existe preliminarmente por trás das
expressões que a delimitam, mas é constituída através de atos enunciativos
por essas próprias expressões, que são tomadas como seus resultados. Tanto
na realização da parentalidade quanto do parentesco em geral, assim como
acontece com o gênero, trata-se sempre de um feito, de uma obra, e não de
uma substância ou de uma essência preexistentes à sua própria produção.
Butler (2000) acrescenta, ainda, que o campo social é composto por movi­
mentos de inclusão e exclusão que o redefinem permanentemente. Ou seja, os
elementos que conferem reconhecimento a determinados lugares sociais estão
em constante deslocamento. Assim, os atributos que vão ser reconhecidos
como associados à maternidade e à paternidade, bem como à possibilidade
de exercício das funções materna e paterna, vão variar de acordo com as coor­
denadas de tempo e de espaço em que o sujeito está inserido.
Essa autora parte da ideia de que qualquer identidade, seja de que tipo for,
é caracterizada por uma “incompletude constitutiva”. Assim, a identidade que
podemos formular do que seja “o pai” ou “a mãe” no campo social não dá conta
da singularidade de todos aqueles que são definidos por estes significantes. Ao

186
falarmos de “pai” ou “mãe”, não estamos falando de “uma” identidade fixa ou
acabada, mas de “identidades”, no plural, entendidas como faltantes em sua
localização cultural e política. Nesse sentido, não existe uma entidade como “o
pai”, mas um constante movimento de rearticulação que inclui diversos pais:
o pai separado, o pai solteiro, o pai adotivo, o pai biológico, o pai negro, o pai
gay, o pai trans e tantos outros. O mesmo pode ser dito em relação à “mãe”.
Para Butler (2000), o campo social é um território dinâmico e em cons­
tante mudança, em que os elementos não incluídos, que ficam de fora de
determinada constelação identitária, produzem um constante deslocamento
e reconfiguração de todo o conjunto. Tal incomptetude está ligada ao fracasso
inevitável de qualquer articulação particular para descrever a totalidade da
população que representa. Algum traço sempre restará excluído e retornará
colocando em movimento todo o sistema novamente.
Dessa forma, se podemos circunscrever termos como “identidade pater­
na” e “identidade materna” no campo social, estas são mutáveis, e é possível
acompanhar como são construídas e realizadas historicamente. Trata-se de
termos que estão, desde o princípio, para além de qualquer indivíduo, em
uma socialização que não comporta um único autor. Importa, a partir dessas
colocações, refletir também sobre o destino daqueles que não encontram
vias de sancionar socialmente uma identidade, seja ela paterna, materna ou
de alguma outra forma de parentesco.
Referida à tradição hegeliana, Butler (2004) vincula desejo e reconheci­
mento como dois termos intrinsecamente associados, ou seja, somente se
corna possível afirmar a própria existência por meio do reconhecimento de si
que cada sujeito é capaz de encontrar no outro, seu semelhante. Com base
nessa relação, a experiência de reconhecimento constitui o caminho através
do qual um sujeito chega a estar habilitado a se constituir de modo viável
socialmente. Segundo a autora, os elementos articulados, no campo social,
que reconhecem humanidade para alguns indivíduos são os mesmos que
privam outros da possibilidade de conquistar esse mesmo estatuto, o que leva
a diferenciar entre quem é considerado humano e quem é visto como menos
humano, sem os requisitos necessários para uma vida possível.
Dentre diversas questões associadas ao gênero que permitem incluir ou
não um sujeito dentro das normas de reconhecimento social, Butler (2004)
destaca uma que concerne diretamente ao tema do parentesco e da parenta-
lidade - os esforços para promover o casamento gay e lésbico, em oposição
às objeções homofóbicas a sua admissão, que se estabelecem na cultura.
Aqui, podem-se incluir os laços de filiação provenientes das ligações amorosas

187
estabelecidas no âmbito dessas minorias sexuais, bem como as identidades
parentais a elas relacionadas.
Em seu tratamento psicanalítico, um homem aborda seu desejo de tor­
nar-se pai. Ao longo dos últimos anos, tem estado casado com outro homem
e cogita seriamente aceitara proposta feita por uma amiga para que doe seu
sêmen e tenha um filho com ela. Ainda que as questões levantadas por ele
sobre sua relação com a amiga sejam de fundamental importância na elabo­
ração do assunto, outra, menos evidente, também atravessa suas associações
em torno do tema.
Com frequência, afirma que “quer mostrar que também tem condições,
como qualquer outro homem, de ser pai”. Algumas vezes.; complementa a
sentença dizendo que “quer mostrar que é capaz de ser pai para sua família,
para os amigos, para as pessoas”. Estes enunciados indicam que a imagem
de pai sancionada no discurso social e internalizada por ele não condiz com
um possível exercício de paternidade a partir de sua escolha homossexual.
Ao reiterar insistentemente o desejo de ter reconhecida sua capacidade de
tornar-se pai, supõe com a mesma intensidade que tal reconhecimento pode
não se realizar. Dessa forma, o conflito que o leva a vacilar na realização de
seu desejo de tornar-se pai também está associado à instância psíquica que
Freud (1923/2011) denominou de Ideal do Eu, constituído pela internalização
de traços valorizados culturalmente e adotados como parâmetros para avaliar
o próprio Eu. Na cena descrita, o homem que profere as palavras relatadas
sente-se distante da representação ideal de pai que constituiu para si.
Segundo Butler (2004), os esforços para constituir relações familiares fors
do matrimônio validado tradicionalmente tornam-se ilegíveis e inviáveis, na
medida em que os termos que definem tais laços são legitimados somente
pelo casamento entre um homem e uma mulher. Desse modo, as ligações
duradouras que também poderiam fundarfamílias a partir de uniões estáveis
de pessoas pertencentes a minorias sexuais são ameaçadas por tornarem-se
irreconhecíveis, visto que a ligação heterossexual é com frequência considera­
da o caminho exclusivo através do qual a organização do parentesco torna-se
concebível.
Kehl (2001) observa que a patologia própria das formações familiares
atuais é viver em dívida com uma estrutura de família idealizada, a qual impede
os adultos de se autorizarem aos riscos de criar e educar as crianças a partir
de novos modelos, diferentes da família nuclear tradicional. A dívida com a
família perdida faz com que os adultos se sintam sempre insuficientes como
pais, mães e educadores, já que se encontram fora do modelo da família tal

188
r

como “deveria ser”. A comparação com um padrão de família, tão ideal quanto
iostrito em sua forma, tem como efeito a inibição ou o impedimento dos adul­
tos a se autorizarem aos riscos de exercer a paternidade ou a maternidade a
partir de novos modelos, distintos da família nuclear tradicional.
Butler (2004) coloca em questão tal ideal de modelo familiar, ao se per­
guntar sobre quais recomposições seriam necessárias às normas sexuais, para
que aqueles que vivem sexual e afetiva mente fora da ligação de casamento ou
em relações de parentesco próximas ao casamento encontrem autenticidade
legal e cultural, assim como reconhecimento da duração e da importância de
seus laços íntimos. A pergunta suscitada pela autora reporta também ao re­
conhecimento da legitimidade dos laços entre pais, mães e filhos em arranjos
distintos da tradicional família nuclear.
Assim, a crença na impossibilidade de exercício das funções parentais,
materna ou paterna, por casais homossexuais, preconizada por Dor (2011) e
referida no início deste artigo, é efeito do não reconhecimento social de certas
formas de conjugalidade, parentalidade e família. Como já foi assinalado, o
real da diferença sexual não congrega um conjunto estático de elementos,
mas é constantemente redefinido pelos limites impostos pelos movimentos
iie deslocamento do campo simbólico. Assim, não é necessário reunirem um
único personagem, sustentado pela diferença sexual anatômica, a atribuição
das funções parentais. Ao contrário, conforme aponta Perelson (2006), nas
íamílias contemporâneas, tais funções tendem a se multiplicar e a se situar
em diversos pontos.
Em uma conferência proferida no Congresso Internacional da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, o psicanalista Roland Chemama (2019) desta­
cou que a diferença que institui a falta e o desejo não necessariamente está
atrelada à diferença sexual anatômica, podendo assumir diferentes formas
e matizes, já que se sustenta por meio da linguagem. Nessa mesma direção,
Chnaiderman (2016) afirma que

Castração não tem nada a ver com presença ou ausência do pênis. O ino­
vador na psicanálise seria ter mostrado a castração no homem. Tanto o
homem como a mulher poderiam viver na ilusão de ter o falo. Mas, não
há, tanto em Freud como em Lacan, uma confusão entre pênis e falo? (CH­
NAIDERMAN, 2016, p. 16).

A confusão apontada pela autora, que atrela e fixa o significante fálico


à imagem do órgão peniano, conduz à outra - a crença de que o enfraque­
cimento da imago paterna é equivalente à diminuição na eficácia da função

189
simbólica. Na medida que este equívoco se elucida, pode-se pensar que a
diversidade de configurações familiares existentes hoje, em variações que se
somam à família nuclear moderna, não está associada diretamente a um de­
clínio daquela função. Ou seja, a constatação de que a figura do pai-patriarca
tem menor eficácia social não tem como conseqüência nefasta a restrição da
capacidade de simbolização dos sujeitos em geral. Ao contrário, se esta função
se caracteriza pela mobilidade do significante e sua capacidade polissêmica,
pode-se considerar que a circulação da função paterna por uma diversidade
de pontos é efeito de sua própria colocação em funcionamento.
Kehl (2004) afirma que seria impossível falarem função paterna, no sentido
simbólico do termo, em um contexto no qual o patriarca determinasse arbitra­
riamente o rumo e os destinos de todos os membros da família. É em razão de
que não há um pai que concentra todo o poder em si que a função simbólica
do pai tem condições de adquirirseu caráter estruturante. Em contrapartida,
pode-se atribuir parte do mal-estar social contemporâneo à persistência das
equivalências “pênis-falo” e “imago paterna-função simbólica”, as quais in­
sistem em evocar a imagem de um pai idealizado, capaz de restituir a lei e a
ordem em uma conjuntura social supostamente decadente. É tal conjuntura
que tem dado lugar a manifestações de nostalgia e saudosismo pelo modelo
familiar padronizado que perdeu sua hegemonia. Nessa direção, é fundamental
interrogar o quanto nossas formulações teóricas podem compactuar com tal
tipo de posicionamento.

190
REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Genealogia do feminino e da paternidade em psicanálise. Natureza Humana: Revista


Internacional de Filosofia e Psicanálise, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 163-180,2006.
BUTLER, J. Reescinificación de lo universal: hegemonia y limites dei formalismo. In: BUTLER,
J.; LACLAU, E.; ZIZEK, S. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on
the Left. Londres e Nova Iorque: Verso, 2000. p. 11-43.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civi­
lização Brasileira, 2003.
BUTLER, J. Undoing gender. New York: Routledge, 2004.
CHEMAMA, R. A palavra civilização será sempre sinônimo de mal-estar? In: CONGRESSO PSICANÁ
LISE E O ESPÍRITO DO NOSSO TEMPO, 1., 2009. Anais [...]. Porto Alegre: Associação Psicanalítica
de Porto Alegre, 2009.
CHNAIDERMAN, M. É possível ser gender fucker? Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, Porto Alegre, v. 50, p. 9-22,2016.
DOR, J. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
FREUD, S. O e u e o id. In: FREUD, S. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
p. 13-74.
KEHL, M. R. Lugares do feminino e do masculino na família. In: COMPARATO, M. C. M.; MONTEI­
RO, D. S. F. A criança na contemporaneidade e a psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2001. p. 29-38.
KEHL, M. R. A impostura do macho. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto
Alegre, v. 27, p. 90-102, 2004.
LACAN, J. O Seminário: Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, J. O Seminário: Livro 5: As formações do inconsciente. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LACAN, J. O Seminário: Livro 16: De um outro a Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. O Seminário: Livro 17:0 Avesso da psicanálise. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. O Seminário: Livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.
PERELSON, S. A parentalidade homossexual: uma exposição do debate psicanalítico no cenário
francês atual. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 3, p. 709-730,2006.
QUINET, A. Homofobias psicanalíticas na psicologização do Édipo. Stylus, Rio de Janeiro, n.
33, p. 191-199,2016.
ZIZEK, S. Lucha de claseso posmodernismo? Si, por favor! In: BUTLER, J.; LACLAU, E.; ZIZEK, S.
Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. Londres e Nova
Iorque: Verso, 2000. p. 90-135.

191
\

192
TRUQUES E MAIS TRUQUES:
SOB O RÓTULO DA DIVERSIDADE
ESTÃO AS PRÁTICAS NORMATIVAS
PEDINDO PASSAGEM

Sofia Favero
Emilly Mel Fernandes
0 que faz uma psicologia que discute questões ligadas à diversidade?
Aliás, de que modo a psicologia absorve uma concepção de diferença diante
da produção de uma prática clínica? Escrevemos este texto com uma inquie­
tação em mente: por que não estamos nós, pessoas trans e travestis, inseridas
naquilo que uma psicologia mainstream tem erkendido por diversidade? A
diversidade estaria presumida como própria das questões sexuais, mas não
das de gênero? Em alguma medida, há uma generalização abusiva quando a
clínica diz dar conta das expressões da diferença?
Recentemente, deparamo-nos com um curso sobre a especialização de
profissionais de saúde mental em “disforia de gênero” - que, longe de ser uma
categoria neutra, parece operar entre as boas intenções como um vocabulário
psicológico esgotado de discussões. Disforia de Gênero surgiu entre a transição
do DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) para o
DSM-5, tratando-se de um eixo avaliativo sobre os prejuízos sociais e subjetivos
acerca do “sofrimento” que é (ou que deveria ser, segundo parâmetros contro­
versos) a própria identidade. De fato, muito além de acionar um debate sobre
a gramática, queremos entender a forma que as identidades trans e travestis
não estão presumidas nos discursos pela diversidade. Ora, seria aceitável que
víssemos, ainda hoje, cursos de especialização sob o título de homossexua-
lismo? Ou homossexualidade egodistônica? Embora categorias igualmente
clínicas, como tenta nos lembrar uma história de intolerância médica, elas
não estão operando a partir de nenhuma neutralidade.
De fato, embora falemos cada vez mais em movimento LGBT ou LGBT-
QIA+, não estamos necessariamente dizendo de uma unidade. Deixamos de
ser GLS ou GLBT, como fomos conhecidos durante um tempo, pelo menos até
a Conferência de Saúde LGBT de 2008 (SUS), mas não deixamos para trás as
diferentes problemáticas que nos acompanhavam. Steven Butterman (2012),
com sua produção sobre a invisibilidade vigilante, reflete sobre o modo que as
homossexualidades foram retiradas da Classificação Internacional de Doenças
(CID) e do DSM. De acordo com o autor, foi a partir da atuação intensa de psi­
quiatras gays que a APA (Associação Norte-Americana de Psiquiatria) e a OMS
(Organização Mundial de Saúde) passaram a retirar gradativamente a identi­
dade homossexual dos seus guias - desde uma perspectiva psicopatológica.
Embora, no mesmo processo, as identidades trans e travestis tenham sido
patologizadas, conforme aponta Berenice Bento (2006), o que pretendemos
discutir é o uso de um discurso que, pouco a pouco, se apresenta como uma
necessidade. Butterman (2012) aponta uma tendência positivista nos modos
de constituir matrizes de inteligibilidade às identidades sexuais e de gênero

194
dissidentes. Seria essa a mesma tendência que observamos agora, quando
pulverizam formações, sobretudo normativas, acerca do que seria o ato de
estar terapeuticamente com a diferença? É um dado esgotado que tenhamos,
enquanto profissionais de psicologia, que nos basear em saberes nosológicos
para escutar pessoas trans e travestis? Se sim, quais seriam os efeitos disso na
técnica? De que forma uma prática, atravessada por uma caricatura psiquiá­
trica, produz uma subjetivação, se tem como horizonte a doença?
Para que não soe como uma proposição persecutória, qualquer breve
pesquisa no mecanismo de buscas Google Search torna possível encontrar
uma série de especializações com o mesmo tema: disforia de gênero. A Escola
de Educação Permanente, do Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo,
é uma dessas instituições. Mantém em seu portal digital um curso voltado a
ensinar modos de realizar um diagnóstico diferencial dos “Transtornos de
identidade de Gênero” - chegando, até mesmo, a utilizar um termo (trans­
torno) que essa “mesma” medicina tem dado indícios de abandonar. De todo
modo, no portal71 da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) se encontra o
referido curso, mas outros também estão disponíveis, como seria o caso do
que foi ofertado pelo Núcleo Pesquisas72, onde a transexualidade está situada
ao lado dos ditos transtornos parafílicos.
Não poderíamos esquecer, ainda, das próprias diretrizes que a APA estabe­
lece e que foram implementadas no Brasil. Com tradução de Ramiro Catellan
e Angelo Costa (2015), as “Diretrizes para Práticas Psicológicas com Pessoas
Trans e em Não Conformidade de Gênero” dissertam sobre os modos conside­
rados adequados de atendimento. Neste documento, a expressão “disforia de
gênero” chega a ser citada exata mente vinte vezes. Por razões óbvias, talvez,
tendo em vista que a categoria é a que está em vigor no DSM-5, mas por razões
políticas também, uma vez que a escolha pela divulgação de determinados
tipos de materiais declara uma posição epistemológica. Em outros termos,
o que faz com que a APA se consolide como um recurso de consulta, ainda
mais caso a gente considere o histórico da instituição de marginalização e
estereotipia das identidades homossexuais?

71Disponível em: <https://eephcfmusp.org.br/portal/online/curso/transexualizador-medico/>. Acesso em


18 de julho de 2020.
72 Disponível em: < http://www.nucleopesquisas.com.br/mobile/cursosformacao/integrando-a-terapia-

-sexual-a-terapia-de-casal>. Acesso em 18 de julho de 2020.

195
Diversidades ambivalentes: entre o acolhimento e a
negligência
Por certo, esse dilema não é novo para nós. Em Sopa de Letrinhas, Regina
Facchini (2002) elabora uma crítica sobre o dilqma da cidadania e do orgu­
lho. Para a antropóloga, existia um necessário desafio: pensar uma forma de
articulação em que um aspecto não esvaziasse o sentido do outro. Quando
pensamos cidadania, todavia, costumamos fazer referência a questões como
casamento igualitário e criminalização da homofobia - bandeiras pouco alinha­
das a uma “agenda trans” em disputa. Ao falarmos em agendas trans, estamos
pensando como a questão do amor (ou do afeto) não é suficiente para buscar
uma cidadania relacionada ao gênero, não para afirmar que tais políticas sobre
matrimônio não possam, sim, ser estendidas a outras populações, mas para
refletir sobre as especificidades da transfobia.
Pensada por Bento (2014) como uma cidadania a conta gotas ou cidada­
nia precária, a realidade das pessoas trans e travestis brasileiras ainda está
circunscrita a uma profunda violência. A socióloga afirma que em nosso país
ainda pode ser observada uma cultura de brutalizações que é dirigida às pes­
soas que subvertem o binário de gênero (masculino e feminino). Ao traçar
um paralelo com os processos de emancipação da população negra, Bento
(2014) problematiza que é como se a garantia de acesso à assistência, quando
acionada por pessoas trans e travestis, se desse de maneira extremamente
gradativa, e que, portanto, seria melhor compreendida através da metáfora do
conta-gotas, em que a partirde pequenas brechas seria possível instaurar um
processo de ruptura com as forças estruturantes que, mais tarde, passamos a
chamar de cisnormatividade.
Cis, ou do lado de cá, como propõe o latim, é um conceito que não se
refere somente a uma identidade, conforme aponta Viviane Vergueiro (2016),
mas a um sistema epistemológico, subjetivo, coletivo. Assim, se a cisgeneri-
dade está para a cultura, ela pode ser encontrada ao lado de conceitos como
“branquitude” ou “heteronormatividade”, responsáveis por propor leituras
do social a respeito da produção das diferentes desigualdades. Os níveis que
discutimos aqui, todavia, servem para que entendamos a forma que uma
cultura cisgênera interfere na escuta. Ora, se reconhecemos que a psicologia
está situada em um contexto onde a dinâmica racial se impõe sobre sujeitos
negros de maneira violenta, como pensar que a formação está saindo ilesa
desse trajeto? De modo parecido, reconhecemos como a cisgeneridade passa

196
a se tornar parte constitutiva de um saber psicológico, mesmo quando esse
saber está afirmando o seu próprio caráter diverso.
O que se afirma, enfim, é que, embora a diversidade apareça agora como
um termo guarda-chuva, é justamente por causa do seu aspecto universali­
za nte que muitas práticas normativas acabam ganhando força e voz. Afinal,
quando falamos de uma psicologia para LGBTs, estamos falando de uma psico­
logia desligada de preconceitos ou de uma produção mercadológica sobre esse
novo perfil de paciente? É por esse ângulo que nos surpreende observar que,
muitas vezes, o que se apresenta como “boas práticas” na realidade é algo que
está condensado em um saber psicopatológico por excelência - responsável
por alimentar o mesmo obstáculo que busca, depois, corrigir. Dito de outro
modo, por que a psicologia está incansavelmente pensando formas de tomar
ético o atendimento a pacientes trans e travestis sem sequer consultar o que
essas pessoas têm pensado sobre esses atendimentos, em primeiro lugar?
Tal como apontava Avtar Brah (2006), ao afirmar que os discursos nacio­
nalistas serviam a diferentes fins, tanto a partir de um orgulho de si mesmo,
particular, para menosprezar o diferente, quanto através da compreensão
desse outro como parte constitutiva de um processo civilizatório, pensamos
que a diversidade aparece como um termo capaz de substituirá “nação” - não
no sentido de país, território, mas no sentido de que os efeitos da “diversidade”
na saúde mental podem responder tanto a anseios emancipatórios quanto a
aceitos normatizantes. Brah (2006) traz, ainda, que as perspectivas não-es-
sencialistas não necessariamente se opõem, pensando o feminismo, mas aqui
situando a cisgeneridade, às investidas de uma masculinidade hegemônica.
Ou seja, nem sempre os meios produzem fins em comum, embora uma ideia
de “coletivo” ou “comunidade” busque nos fazer acreditar nisso.
Podemos pensar, ainda, numa proposição bastante conhecida pelos es­
tudos pós-estruturalistas ou pós-coloniais, que é o conceito de essencialismo
estratégico, proposto por Diane Fuss (1990) e Gayatri Spivak (1996). As autoras
refletem uma forma de assumir o essencialismo desde que ele esteja enqua­
drado pela perspectiva dos sujeitos subalternos - embora, saibamos, não
exista nas terras tupiniquins um alto número de pessoas trans e travestis no
ensino superior, tampouco nos quadros de medicina e suas múltiplas espe­
cializações -, o que nos leva a pensar que esse essencialismo, onde pessoas
trans e travestis necessariamente viriam a sofrer disforia devido a seus corpos
e autoimagens, é muito mais impositivo do que colaborativo.
O que obteríamos caso afirmássemos que, em algum momento de suas
vidas, não sabendo exatamente quando, mas tendo a certeza de que isso acon-

197
teceria, os sujeitos homossexuais iriam recusar suas próprias sexualidades?
Para além disso, imaginemos que nós, enquanto profissão ligada à fabricação
de bem-estar, passássemos a dar cursos e especializações voltadas a iden­
tificar esse desconforto, tendo como finalidade a elaboração de um laudo
que pudesse permitir a esse sujeito que ele realizasse algumas atividades
de sua vontade. A situação, gostamos de acreditar, parece-nos absurda, mas
é um paralelo para o que tem acontecido às travestis e pessoas trans. Neste
texto, não entendemos a “disforia” como uma categoria isenta de intenções,
pois, ao passo que se tenta estabilizar enquanto uma verdade sobre o (trans)
gênero, é também o material do qual a psicologia tem buscado se apropriar.
E, se tem algo que a psicologia gosta de dizer que faz bem, aparentemente, é
lidar com a dor.
Os significados de disforia podem variar muito. Desconforto. Mal-estar.
Inquietação. No que diz respeito à transexualidade, aparenta fazer referên­
cia a uma condição que se coloca enquanto a priori, ou seja, conforme uma
realidade à espreita. Não só é dito que pessoas trans e travestis podem vir
a sofrer, mas que esse sofrimento é constitutivo de suas identidades, uma
discussão também já apontada por Flávia Teixeira (2012). Em outros termos,
se essa diversidade de que estamos falando dá indícios de estar sobreposta
a um comum, que seria a dor e o desconforto, quais seriam as possibilidades
de abertura que esta riam os disputando? Contraditoriamente, isso não estaria
fazendo com que as psicopatologias, tidas atualmente como ultrapassadas
ou “feias” desde uma perspectiva das boas práticas, fossem atualizadas nas
agora chamadas psicoterapias para diversidade?
Quando discute diversidade, diferença e diferenciação, Brah (2006) nos
situa um problema central: uma contínua interrogação ao essencialismo diante
de todas as suas facetas, formas e conteúdos. Caso a gente reconheça que a
“essência” do gênero não aparece, necessariamente, em nossas práticas de
maneira escancarada, seria preciso que buscássemos, tal como um trabalho
arqueológico propõe, limparmos a escuta de sua sujeira normativa. Nesse caso,
falamos sobre como a cisgeneridade, conforme um sistema hegemônico, é
capaz de produzirtécnicas bastante sofisticadas dentro e fora da clínica, como,
por exemplo, são possíveis de observar as indagações a respeito do momento
inicial do desvio, sobre desde quando se é da forma que se apresenta, sobre a
primeira memória relacionada ao gênero, dentre tantas outras que não buscam
produzir uma narrativa sensível, mas buscar (no sentido de procura) sinais que
estabilizem a identidade em uma rigidez subjetiva.

198
(Re)pensando vínculos, propondo redes
É na discussão sobre a reinscrição topográfica do imperialismo que Spi-
vak (1985), em Pode o Subalterno Falar?, irá fundamentar sua crítica. A autora
traz que a história escrita pelo ocidente se apresenta como neutra, e que é
justamente essa neutralidade que a torna útil para consolidar seus efeitos.
Evidentemente que Spivak estava, naquele momento, discutindo questões
ligadas à soberania, mas aqui é interessante para refletir sobre como a cons­
trução de uma psicologia apartada das discussões sobre cisnormatividade só
faz com que a cisnormativa, mesma, incorpore-se à disciplina psicológica. O
movimento deste texto está, assim, colaborativo com a proposição de Brah
(2006), que joga suas esperanças numa contínua interrogação do essencialismo
em todas as suas expressões.
Entretanto, não se trata de um trabalho exata men te novo. O empreendi­
mento de desconstrução da escuta, ou da técnica, mais precisamente, já foi
realizado por diversas pessoas interessadas em outras potências em saúde.
Esse é o caso, também, de Thiago Oliveira e André Leite (2015), que passaram
a investigar a maneira que as normas de gênero marcam o funcionamento do
discurso sobre a formação médica no Brasil. Os autores apontam que, embora
exista uma expectativa de que o currículo da medicina seja homogêneo e es­
tável, toda a relação constituída com o outro, logo, com o desconhecido, faz
com que seu horizonte biomédico não seja alcançado. Ou seja, pelo menos
na educação médica, haveria um fracasso dessa tentativa de nos tornar uma
massa inerte e passiva.
Estamos falando, de todo modo, de como a saúde mental, não especifi­
camente a saúde física, tem produzido um currículo sobre a escuta. E, embo­
ra possamos pensar que essa escuta “problemática” deva ser, em sua com-
pletude, descartada, pensamos, em paralelo a Oliveira e Leite (2015), que é
justamente a educação (psicológica) que fornece potências de resistência. A
abertura para o outro, colocando em suspenso suas próprias prerrogativas,
é um anseio de praticamente toda abordagem clínica. Seu princípio pode ser
conhecido a partir de diversos nomes. Reserva terapêutica. Encontro. Análise
intencional. Transferência. São as mais diversas estratégias que funcionam
enquanto recursos para que compreendamos os atravessamentos da nor­
ma em nossas formações. Racismo, transfobia, gordofobia, capacitismo, são
igualmente variados os tipos de opressão que precisamos levar à consciência.
Mas, para além de pensar o que o terapeuta traz para aquela relação,
convém questionar se pessoas trans e travestis só podem nos ensinar (ou só

199
possam trazer algo) caso estejam sendo atendidas por nós. Caso estejamos
partindo dessa compreensão, significa que mantemos a lógica “vertical” na
relação que queremos ter com o gênero na clínica, levando em consideração
as disputas entre a cisgeneridade e a transgeneridade. Assim, talvez faça mais
sentido mesmo que busquemos especializações ém “disforia” ou “incongruên­
cia” - pois estaríamos, ainda, trabalhando com um conceito, não com o sujeito.
Todavia, quando partimos de uma compreensão que envolve o combate às
sistematizações subalternas, que geram violências epistêmicas, poderíamos,
então, situar que o conhecimento sobre “diversidade” reside não nos gran­
des manuais de saúde, mas nas próprias demandas que são negligenciadas,
tanto por um senso de “comunidade” quanto pela própria política institu­
cional - pois, se temos avanços nas áreas civis em relação ao matrimônio,
temos poucas diminuições no panorama mortífero que atinge pessoas trans
e travestis brasileiras.
Para que a crítica não fique solta, é importante resgatar Spivak (1985) mais
uma vez. A autora reflete como as idéias de “consciência” ou de “sujeito” em
construção estão competindo com um trabalho que permanece tributário ao
imperialismo. Talvez pensemos, apressadamente, que basta que tenhamos
mais pessoas trans e travestis na psicologia para que a escuta se refaça, mas é
necessário, para além, que os paradigmas que a sustentam encontrem outros
destinos. Algo que afirmamos, pois: não se trata aqui de um mero avanço da
saúde mental, e sim da interrupção desaberes psi (psicológicos, psicanalíticos
e psiquiátricos) viciados em uma leitura de doença, uma vez que a progressão
da psicologia talvez seja útil a uma lógica de mercado, mas não necessariamen­
te ao fim do silenciamento imposto a grupos subalternos. É preciso, então, que,
ao invés de consultar o que tais campos têm a dizer sobre nós, compreender,
antes, o que nós achamos deles.
Tampouco propomos isso para que os profissionais cisgêneros abstenham-
se da tarefa da escuta, uma vez que não cabe a nós a incumbência de colocar
o gênero para rodar de maneira diferente - embora, para sermos justas, suas
repercussões sejam mais óbvias para uns do que para outros. Ainda assim,
o gênero e seus efeitos estão para todos. Por esse ângulo, tal como aponta
Glória Anzaldúa (2000), não queremos nos responsabilizar pela pedagogia na
clínica ou na própria relação de trabalho, pois estamos ocupadas lidando com
nossas próprias realidades. Assim, “não podemos educaras mulheres brancas
e carregá-las pela mão. A maioria de nós deseja ajudar, mas não podemos fazer
para a mulher branca o seu dever de casa. Isto é um desperdício de energia”

200
(ANZALDÚA, 2000, p. 231). De modo igual, a psicologia não pode esperar que
nós apontemos, isoladamente, onde estão seus pontos cegos.
Talvez, para que isso não se torne uma necessidade, de certa forma, passa
a ser necessário (e coerente) que determinadas aproximações da disciplina
com os próprios recursos trans já existentes se concretizem. O que produzem
as organizações, associações e coletivos trans? De que forma uma história
social pode contar uma história sobre a clínica? O fato de pessoas trans e
travestis terem saído de organizações “LGBTs” e migrado para aquelas que
discutiam a experiência trans, mais especificamente, nos diz de alguma coi­
sa sobre a preterização de bandeiras sobre autonomia a respeito do próprio
corpo? Não é algo que trazemos para dizer que, caso haja uma resposta, ela
será homogeneizante, mas para pensar que, possivelmente, a saúde mental
esteja presenciando um processo histórico que já foi apontado pela Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e pela Rede Nacional de Pessoas
Trans (REDETRANS): a inércia da diversidade.
Não é um equívoco que o afeto tenha se tornado um eixo estruturante das
lutas pela liberação sexual, mas, naquilo que diz respeito ao gênero, o afeto
ainda é incapaz de dar respostas igualmente satisfatórias, pois, nesse caso,
estaríamos falando de uma condição de humanidade mais profunda, não de
uma mera disputa de direitos humanos, como nos lembra Bento (2014). E,
caso compremos de antemão essa ideia de que as questões LGBTQIA+ estão
circunscritas pela negação de um sentimento, não pela negação de um lugar
num projeto social, poderíamos perder de vista algumas das especificidades
que envolvem a transfobia: abandono familiar, evasão escolar, pulverização
do círculo de amizades, raras oportunidades de emprego, trabalho informal
e/ou sexual. Como é possível observar, uma lista de atribuições que não po­
dem ser traduzidas somente por uma batalha pelo direito de amar, mas pelo
direito de possuir uma rede, uma relação com as instituições que não esteja
baseada na ojeriza.
Nossa hipótese está em compreender que, quando transportamos essa
ideia precária de diversidade para a clínica, algo afeta a escuta, pois passa­
mos a achar que os problemas e as demandas das pessoas que atendemos
estão inscritos nesses vocabulários. Quando não, ou não necessariamente.
Até porque, caso nossa proposta seja que, durante uma psicoterapia, os este­
reótipos possam perder sua autoridade, ou seja, que a pessoa busque outras
experiências para além da mesma relação de sempre, cabe questionar se es­
taríamos fazendo isso em relação a um autoconceito (LGBTQIA+), por mais
bem-intencionado que fosse. O que poderíamos fazer, em contrapartida, é

201
..

apostar naquilo que Daniela Murta (2011) denominou de “trans-autonomia”.


Para além de um conceito, a autora afirma, tratar-se-ia de uma prática atenta
à produção de dependências, de âncoras que permitem pouca abertura ao
dissenso.
\

Liberdade para (não) ser: caminhando para um fim


Quando estamos em um processo de indagação sobre a prática clínica,
precisamos ter em mente que muitas vezes aquilo que queremos combater
pode ser justamente o material do nosso trabalho, escondido atrás de ban­
deiras que entendemos como autoevidentes. Assim, ao invés de fomentar um
discurso sobre igualdade que é permissivo com a patologizaçào das transexua-
lidades, travestilidades e transgeneridades, convém perceber que as pessoas
não são categorias clínicas. E que, se a disforia for essa busca pela verdade,
não seria através da “diversidade” que essa averiguação adquiriria coerência,
pois, paradoxalmente, pressuporia um “eu” comum, uma personalidade imersa
numa lógica varejista sobre diagnósticos.
Dessa forma, o que entendemos por “clínica LGBT” ou “clínica LGBTQIA+”
não pode ser uma compreensão esgotada, tendo em vista as vozes dissonantes
que estão, desde muito, historicamente, denunciando que essa mesma diver­
sidade surge como um modo de permitir silenciamentos, exclusões e, agora,
avaliações psicológicas. Por trás do guarda-chuva do epistemicídio, há uma
série de sujeitos afirmando que não há essência para o gênero. Querem dizera
nós, profissionais de saúde mental, que essa lógica de uma “euforia” desejada
para o gênero seria justa mente a adaptação a um sistema adoecedor que se
dá sobre a cultura. Em contrapartida, observamos vozes trans participativas,
interessadas em uma ativa colaboração que diz, para além da palavra, que não
são só as pessoas subalternizadas que têm a ganhar com a psicologia, mas a
psicologia que tem a ganhar com elas.

202
referências

ASSOCIAÇÃO NORTE-AMERICANA DE PSIQUIATRIA (APA). Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Washington APA, 2013.
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION (APA). Guidelines for psychological practice with trans
gender and gender nonconforming people. American Psychologist, v. 70, n. 9, p. 832-864,2015.
BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Ja­
neiro: Garamond, 2006.
BENTO, B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporâ­
nea: Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, jan./jun. 2014.
BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376,2006.
BUTTERMAN, S. Invisibilidade vigilante: representações midiáticas da maior parada gay do
planeta. São Paulo: nVersos, 2012.
FACCHINI, R. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas
nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropolo­
gia) - Departamento de Antropologia do IFCH, UNICAMP, Campinas, 2002.
FUSS, D. Essentially Speaking: Feminism, Nature and Difference. New York: Routledge, 1990.
LEITE, A. F. S.; OLIVEIRA, T. R. M. Sobre educar médicas e médicos: marcas de gênero em um
currículo de Medicina. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 779-801,
dez. 2015.
MURTA, D. Os desafios da despatologização da transexualidade: reflexões sobre a assistência
a transexuais no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Classificação Internacional de Doenças e Proble­
mas Relacionados à Saúde. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para a Classificação de
Doenças em Português, 1993.
SPIVAK, G. Can the Subaltern Speak? Speculationson Widow Sacrifice. Wedge, v. 7, n. 8, p.
120-130,1985.
SPIVAK, G. The Spivak Reader. New York: Routledge, 1996.
TEIXEIRA, F. Histórias que não têm era uma vez: as (in)certezas da transexualidade. Revista de
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20; n. 2, p. 501-512, ago. 2012.
VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes:
uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado em
Cultura e Sociedade) - Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

203
RELAÇÕES ENTRE GÊNERO
E SEXUALIDADE INFANTIL
hernanda Isabel Dornelles Hoff
í.

“Mãe, se a nenê que tá na tua barriga, minha mana, quiser


ser menino, a gente vai aceitar, né\V (Heitor, 7 anos).
“Então minha família tem dois pais? Mas tem coisas dife­
rentes em vocês...” (Anita, 9 anos).
“Posso ser como a minh^ mãe ou, porque sou menino,
tenho que ser igual ao meu pai?” (Jonas, 6 anos).
“E, se eu for homossexual, qual o problema? Na verdade,
acho que eu tô querendo saber quem mesmo eu sou...”
(Breno, 17 anos).

As mudanças em nossa cultura ampliam as possibilidades de o sujeito po­


sicionar-se, desde a infância, quanto à sexualidade e ao gênero, considerando
os complexos movimentos nas diferentes tramas constitutivas. A forma como
o sujeito se reconhece, a identidade sexual e o equivalente lugar que ocupa
com relação a seus amores não são definidos pelo corpo biológico, e sim por
sua posição subjetiva, construída a partir das origens do sujeito psíquico e dos
destinos de sua constituição.
Conquistar uma identidade e se reconhecer enquanto ser diferenciado exi­
ge infinitos movimentos que se iniciam já nos primeiros momentos devida, em
que se fundam laços, promovendo uma alienação. Com o desamparo inicial,
surge a necessidade de o pequeno ser encontrar-se com alguém que lhe dirija o
cuidado e o amor. Desse modo, apropria-se, aos poucos, de certos traços para,
então, fazer-se, e, assim, a perspectiva futura de autonomia é vislumbrada. O
alicerce está no que é dito pela cultura, representada por aqueles que cuidam
e que, por sua vez, são atravessados pela sexualidade e pela linguagem. Esse
conjunto de características possibilita que a criança se identifique. Num pri­
meiro momento, o pequeno ser é passivo, submetido à sexualidade do outro
que lhe invade, o que constitui o autoerotismo. Ou seja, inicialmente, o bebê
fica entregue aos movimentos pulsionais de quem lhe cuida ao exercer os
cuidados primordiais. A transformação de passivo a ativo, enquanto atividade
pulsional, implica uma ressignificação de posição através do recalque e das
tramas edípicas, possibilitando que o amor próprio constituído dirija-se a
alguém e à cultura, o que permite ao sujeito amar e criar.
Proponho, aqui, percorrer os modos constitutivos do sujeito num caminho
que vai desde o corpo biológico até a construção de si mesmo, capaz de orga-
nizarsua posição identitária e de se encontrar com seus objetos amorosos. A
descoberta de Freud sobre a sexualidade infantil abriu um campo para enten-

206
dermos o sujeito que se constitui na relação com o outro. A função sexual inicia
muito cedo, desde os primeiros contatos com o cuidador amoroso. A infância
é um tempo de alicerçar as possibilidades que dão ao sujeito as condições de
reconhecer uma posição que qualifique as suas relações.
Nesse caminho, sabemos da importância de quem recebe amorosamente
o recém-nascido, satisfazendo suas necessidades primordiais, por um lado, e,
por outro, oferecendo propostas de impedimento à satisfação ilimitada. Tais
movimentos não serão necessariamente exercidos por um casal heterossexual,
estando seu valor no atravessamento da marca da diferença naqueles que
cuidam. Houve um tempo em que a homossexualidade era entendida como
uma estrutura perversa, o que construiu a crença heteronormativa de que
casais homossexuais não poderiam criar filhos. Existem homossexualidades
neuróticas, perversas e psicóticas, tal como heterossexualidades, importando
ao sujeito que se constrói muito mais aquilo que deriva da estrutura daqueles
que exercem a parentalidade do que o seu gênero identitário.
Com as mudanças da cultura, o destino identitário quanto ao gênero fica
compreendido como desconectado da anatomia. Contudo, na maioria das
vezes, o corpo biológico - portanto, a dualidade masculino-feminino - é refe­
rência à posição identitária da criança, sendo, num primeiro tempo, designa­
da por seus pais ou cuidadores. A esse respeito, cabe assinalar que o gênero
antecede ao sexo na constituição subjetiva, de tal modo que, geralmente, o
pequeno que cresce sabe que é menino ou menina antes de ter alguma noção
sobre o que implica isso com o prazer sexual. A criança, nesse primeiro mo­
mento, nomeia-se como masculino ou feminino, menino ou menina, porque
lhe propuseram um lugar determinado, o que pega para si por concordância
ou oposição, mas o que ainda não sabe é o que fará disso. Hoje, temos também
situações em que as famílias optam por identificar a criança com nomes que
não expressem uma posição masculina ou feminina.
É importante pontuar que o sexual, na infância, é múltiplo e polimorfo, e
que a proposta referida por seus cuidadores e pela sociedade, quanto à posição
de gênero, seja ela mais ou menos arbitrária, sempre terá efeitos naquele que
se constitui. E, para a identidade sexual e de gênero sedimentar-se, a cons­
trução subjetiva se dará considerando a bissexualidade, as identificações, os
fantasmas, as satisfações sexuais, o narcisismo e o Édipo, bem como as esco­
lhas objetais. Então, após uma montagem que exige complexos movimentos,
a identidade de gênero se efetivará - e, hoje, entendemos que ela é diversa,
abandonando aos poucos o acronismo dos preceitos cisheteronormativos,
embora nessa direção ainda haja muito a superar em nossa sociedade.

207
0 recorte da fala do menino que chamo de Heitor, no início do texto, per­
guntando sobre a identidade de gênero de sua irmã, ao questionar a possibi­
lidade de ela não querer seguir a posição compulsoriamente designada pela
anatomia do seu corpo, visto numa ecografia, denota a capacidade da criança
de desconectar identidade de gênero e corpo biológico. Embora houvesse,
nesse caso, o desejo do menino implicado quanto ao gênero do bebê que
estava por nascer, há uma posição, nessa narrativa, que décadas atrás seria
improvável que ocorresse.
Olhar para o outro considerando que ele possa desejar uma posição tal é
organizador. Lidar com as bordas singulares é o que faz cada um se situar. Os
excessos de determinação, por vezes, impedem os caminhos singulares; no
entanto, a indeterminação deixa o sujeito sem referências. A criança precisa
de balizas. Os símbolos da cultura se emprestam a isso, mas, muitas vezes,
esterilizamos a sexualidade infantil ao vigiarmos, impondo lugares, ao invés
de acompanhar e cuidar das crianças. A cultura tem seus significantes para
marcar as diferenças de gênero, o que se modifica no decorrer dos tempos. Mu­
lher pinta a unha e a boca, menino usa azul, menina usa rosa: são convenções
que podem ser arbitrárias. Podemos pensar que, justamente por inquietar-se
ao buscar o seu lugar identitário, num tempo constitutivo, a criança se utiliza
tão fortemente desses símbolos. Porém, a bissexualidade infantil precisa ser
experienciada especialmente através da fantasia, como ao usar acessórios de
uma ou outra posição quanto ao gênero nas brincadeiras, assumindo também
diferentes posições nesse período da infância.
A construção da identidade sexual ocorre desde os primeiros encontros
da criança com quem lhe cuida. Esses encontros promovem a ação específica,
definida por Freud (1895/1980) como o movimento do cuidador na direção
de satisfazer às necessidades do bebê, possibilitando a experiência de satis­
fação e a pulsão, ponto de partida do psiquismo, do ego e de sua identidade.
A partir dessas experiências, criam-se, aos poucos, condições de o pequeno
ser identificar-se e, a partir disso, fazer-se. A estruturação subjetiva é, então,
um produto da experiência pulsional e da experiência com a cultura humana,
viabilizada pela identificação e mediada pelo semelhante.
Conforme Lévinas (2005), a condição humana se dá a partir de uma ética,
a consideração do outro, alter, alteridade, o que está fora de si, e por quem
sente algo. Portanto, a humanidade surge quando nos tornamos capazes de
ter responsabilidade perante o outro. Ou seja, quando um se sensibiliza com
esse outro que é igual a si, mas também diferente em relação a sua face, sua
expressão. Desse modo, um bebê só se torna humano a partirda consideração

208
do outro, que implica um cuidado que considere sua singularidade. Se assim
ocorre, está lançada a proposta de um reconhecimento, e muito cedo o bebê
é capturado pelo olhar de quem lhe cuida, buscando uma interação.
Trago, aqui, o recorte de uma observação de bebês, registro descrito
no trabalho Construção subjetiva num encontro amoroso entre mãe e bebês
gêmeas, apresentado no V Seminário Internacional Transdisciplinar sobre o
Bebê (HOFF, 2017). A mãe olha para as suas filhas e se pergunta: “O que será
que uma pensa quando olha para a outra?”
É interessante essa fala da mãe, que denota uma posição imaginária,
considerando os bebês com alteridade. Cada fala, sorriso, expressão e toque
de quem cuida é recebido a partir do inquestionável desamparo do filhote
humano, desprovido de impressões instintivas que dariam conta da sua so­
brevivência. As palavras da mãe em questão mostram um encontro, um laço
com suas crias que a sensibiliza, considerando, também, que cada uma possa
ser diferente dela e entre si, quando se antecipa refletindo sobre o que uma
poderá pensar quando olha para a outra. Podemos dizer que, no imaginário
da mãe, está o lugar de dois sujeitos.
Então, é a partir do reconhecimento amoroso de quem exerce a materna-
gem, inserindo a sexualidade e a cultura, que se dá a possibilidade de o sujeito
psíquico se apropriar do corpo biológico (que é animado através do contato
corporal, da libidinização) e se subjetivar, fundando a pulsão. Do contrário,
o bebê não consegue nem ter fome, como pode ocorrer em funcionamentos
autísticos. Amparada pela teoria de Laplanche (1988), Bleichmar (1994) aponta
os necessários movimentos de sedução sobre o qual a criança fica submetida
no encontro com quem lhe cuida, uma sedução originária, contendo significan-
tes enigmáticos, e que faz surgir a pulsão. Tais enigmas precisam ser ligados,
simbolizados, o que se dá nos movimentos organizativos que a relação com
o cuidador propicia. Nesse caminho, o bebê se torna ativo no sentido de en­
contrar vias de investimentos colaterais de representação. É o autoerotismo
que cumpre essa função, que se constitui nos movimentos de sugar o dedo,
chupar o bico, cheirar o paninho. As quantidades de excitação ou são ligadas
de algum modo ou evacuadas, o que pode ser desorganizador e mortífero.
Quando o cuidador sustenta o bebê, acalentando-o em seus braços, olhando
seu rosto, conversando, cria outras vias para o pulsional.
Somado a isso, Laznik (2013), amparada nos conceitos lacanianos, reco­
nhece a voz e o olhar como objetos da pulsão. Entende que a voz comanda o
olhar e tem um poder capturante - como o que assistimos ao observar quem
exerce a função de cuidado, conversando com o bebê, utilizando-se de um

209
tom diferente daquele que emprega com outros adultos, ou seja, o manhês ou
parentês. Orna linguagem tomada de entonação e afeto. Laznik (2013) propõe
pensar o circuito pulsional, quando, a partir de impulso, fonte, objeto e meta,
o sujeito busca atingir a satisfação. Baseando-se no texto freudiano Pulsão
e seus destinos (1915/1980), afirma que um priméiro tempo se dá quando o
bebê vai ao encontro do objeto externo para satisfazer-se, como ao mamar. O
segundo, quando faz de si mesmo objeto de satisfação, uma parte do seu corpo,
como ao sugar o dedo. E um terceiro tempo, quando faz de si o objeto de um
outro. A autora pontua não ser esse terceiro tempo passivo, contraponto que
faz em sua leitura da obra de Freud, dizendo que, ao entregar-se como objeto,
o bebê também invoca esse outro, que, por sua vez, também promove algo,
num circuito inesgotável. Podemos colocar um acréscimo nesse raciocínio,
entendendo ser esse tempo ativo em direção à meta e passivo quanto ao ob­
jeto. Aqui, surge um ponto importante para pensarmos na identidade sexual:
para o pequeno ir ao encontro do outro, é preciso haver alguém disponível, e,
nesses complexos movimentos, há uma parte do bebê que, em espelhamento,
vai constituindo sua posição de desejo. Do contrário, podemos estar diante
de um movimento autista.
É nessa troca sedutora que o bebê é capturado pelo toque, cheiro, fala,
canto e toda sua sensorialidade. Entretanto, o outro primordial, ao ter a sa­
tisfação, estando provido de uma organização egoica, em seguida se dá conta
de que há algo mais entre ele e o bebê. Assim, abre mão do que lhe satisfaz ao
pôr limites em si e no bebê, como, por exemplo, quando, ao fazer a troca de
fraldas, morde seu pezinho, e logo encerra a cena dizendo ao bebê ser hora
de colocar a fralda limpa. É justamente esse movimento que barra a satisfa­
ção; o que faz o bebê, a partir do registro da marca anterior, alucinar e, então,
buscar a satisfação consigo mesmo, o autoerotismo. Aí podemos juntar esses
conceitos com a proposição de Lévinas sobre a alteridade, mencionada acima.
O cuidador precisa reconhecer o bebê não apenas como um corpo, mas como
um ser total, um outro com sua face. No início da vida, o bebê não vê quem lhe
cuida como um ser integrado, mas é imprescindível que aquele que exerce a
parentalidade o faça, para que dê sustentação ao amor próprio da criança e
que o narcisismo se construa.
Diz Freud (1914/1980, p. 108): “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo
tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transfor­
mado em amor objetai, inequivocamente revela sua natureza anterior”. Como
o que se espera de um filho estará, de algum modo, atravessado por desejos
construídos anteriormente pelos pais, há um lugar reservado à criança mesmo

210
antes do seu nascimento - e essa expectativa será, de algum modo, frustrada
pelo filho. O corpo, ao nascer, precisa ser recebido por aquilo que representa
aos seus cuidadores, o que lhe faz uma proposta de ancoragem. Parece haver,
na cultura atual, uma ideia de que não desejar pelo filho lhe dará liberdade de
escolha. Mas a liberdade está em, a partir da ligação com o desejo do outro,
ter espaço para fazer suas próprias escolhas.
Na proposta do estádio do espelho de Lacan (1966/1998), o bebê olha o
outro primordial para receber o que este vê da imagem do espelho. É como se
dissesse: “Me diga o que vês desse outro para que a partir disso eu me faça”.
Por esse caminho, surge a identificação imaginária, e com esta a constituição
de um ideal. O bebê precisa ser envolto pelo corpo e peto olhar do cuidador.
Partimos de um início que funda o sujeito desejante, marcado pela sexuali­
dade de quem lhe cuidou, e, posteriormente, pela castração, a partir de um
interdito. Terá de abdicar de algumas satisfações e encontrar novos destinos
para outras tantas. Ao ser forjado por uma alienação ao outro, a busca por
um destino próprio implica uma separação necessária para fazer-se, até que
o sujeito possa ter estruturado um modo de reconhecer-se.
Há intensidades que precisam ser administradas em um tempo e um espa­
ço, sendo a presença que satisfaz e a ausência que frustra constantes necessá­
rias ao nascimento da subjetividade. Esse tempo separa a demanda do outro
da possibilidade de o sujeito responder a ela e, aos poucos, também demandar.
A identificação guarda elementos ativos que são dados pela metábola, que,
de acordo com Laplanche (1988), implica desconstrução e recomposição, ou
seja, uma reconstrução daquilo que vem dos seus cuidadores como mensagem,
para, então, ocorrer a implantação no inconsciente. Diferentemente desse
processo, na mimesis, a imitação é como um espelho no qual o sujeito reflete
passivamente o outro, cola-se a ele. Quanto maior o mimetismo, menor a
metabolização e, portanto, o sujeito não estará instalado em si mesmo.
Trago aqui um recorte clínico.
Jonas tem 6 anos. No início de sua análise, conta que ganha castigos do
seu pai, sem entender. Fica preso em um cômodo da casa que é usado como
lavanderia, o que lhe deixa triste. Afirma que vai ser como a mãe e se pergunta
se pode ser mulher.
Ao ficar bravo em uma sessão, porque não lhe é permitido mexer em um
espaço do consultório que, nitidamente, está identificado como privado, baixa
as calças e mostra seu bumbum, de modo que não tenho tempo de impedir.

211
A posição ativa em que me coloca ao olhá-lo faz pensar que o menino
reproduz a posição passiva em que fica frente ao pai. Aos poucos, vamos tra­
balhando, e o brincar começa a tomar a cena das sessões de Jonas. Diz em
uma sessão: “Quero brincar de fast food de sanduíches... Tu faz e eu como,
tá?l”. Vamos brincando - ora ele produz os lancKes e eu sou a cliente, ora in­
vertemos. Nos seus sanduíches, começa a colocar xixi e cocô, dizendo ser um
chefe de cozinha do mau. Na brincadeira, eu como o sanduíche, mostrando
nojo e repulsa, momento em que demonstra muita satisfação. Repetimos por
várias sessões essa brincadeira, até que ele diz: “Tem algo de errado nesse
restaurante. Alguém precisa fazer alguma coisa. Vou chamara polícia!”.
Após uma seqüência dessas sessões, ele chega e diz ao pai, na sala de
espera, quando abro a porta para recebê-lo: “Não vale bater na minha bunda!”
Pergunto a Jonas, na sessão, sobre a que se referia em sua fala ao chegar. Con­
ta que, ao ajudá-lo no banho, o pai bate nele se não fizer certo a sua higiene.
O menino demonstra, aos poucos, que a posição de diferença tem espaço
entre ele e o pai. Coloca-se numa posição ativa, dizendo o que “não vale”!
No espaço transferenciai, brinca e põe o cocô em cena, ao invés de mostrar o
bumbum. O simbolismo vai ganhando espaço.
Ao iniciar outra sessão, diz que o pai lhe pediu que contasse alguma coisa
em específico para mim. Demonstra estar bravo e me pergunta: “Então não
posso dizer o que eu quiser?” Ao que lhe digo: “Isso se pensarmos que tu não
poderias fazer diferente daquilo que o pai te propõe. Aqui o espaço é teu. Tu
és um e ele é outro!” Olha-me e pensa.
Podemos considerar que se inicia aí, entre Jonas e o pai, um movimento
de separação que, até então, não se fazia presente, possibilitando uma me­
ta botização e um reordenamento psíquico por parte do menino. Há traços,
nesse caso, que nos ajudam a pensar que uma captura narcísica e uma mi­
mesis podem ocorrer também na relação com o pai, e que não é a presença
real deste que dará garantia da efetivação do interdito com relação à ligação
inicial amorosa. Poder ser como a mãe, no momento expresso pelo menino,
parece estar ligado à busca pela diferença com relação ao submetimento que
se dá nas tramas com seu pai - apesar de que a expressão do gênero precisa
também ser considerada, pois se dará sobre as bases das identificações e da
sedimentação da identidade sexual.
Com isso, vale revisarmos a posição com relação ao complexo de Édipo,
historicamente constituído na diferença dos sexos, no modelo de família tradi­
cional, estando os elementos necessários à sua dissolução, conforme apontado

212
por Freud (1924/1980), na diferença anatômica entre os sexos, o que é motivo
de muita polêmica. Sabemos, hoje, que a relação entre lei e autoridade circula
entre as figuras primordiais para a criança, não estando pautadas pelo mas­
culino e pelo feminino ou pelas presenças reais da mãe e do pai.
O que se mantém, quanto ao Édipo, seria o limite do adulto no que diz
respeito ao corpo da criança, estando o cuidador numa posição assimétrica,
atravessado pela castração e pela proibição do incesto. Ainda, a metáfora
paterna, enquanto função de castração, ou seja, função terciária de mediação
de desejos entre crianças e adultos, deve se fazer presente desde o imaginário
materno, não estando, portanto, situada necessariamente na figura de um
pai real.
A castração, enigma da diferença, constituição subjetiva da alteridade,
deve estar inscrita. A posição passiva ou ativa é o ponto nodal. A diferença
marcada pela estrutura familiar não está posta na diferença entre sexos, mas,
sim, num movimento que considera a posição de um terceiro entre o cuidador
e o filho, a partir das identidades implicadas. A função alienadora implicada
nos cuidados primordiais pode ser tirânica, caso a excitação impressa pela
sexualidade no adulto não vier acompanhada de movimentos organizadores
pautados pelo ego de quem cuida. Essas funções precisam se fazer presentes,
pois pai e mãe (ou cuidadores) passam a ser concebidos por sua diferença de
posição.
Diz-nos Anita, de 8 anos, ao vivenciar o processo de adoção por um casal
gay: “Então eu tenho dois pais..., mas vocês são diferentes... Acho que eu me
acostumo.”
A menina se surpreende ao identificar que terá dois pais, mas, em seguida,
afirma identificar diferenças neles. É na diferença de gerações e de posições
que está a possibilidade de o sujeito ver-se castrado, podendo olhar os seus
objetos não como parte de si. A criança precisa identificar e reconhecer algo
que estabeleça uma diferença presente no imaginário de quem cuida, podendo
dar espaço aos enigmas que surgem.
A sexualidade impressa inicialmente, fundando a pulsão, instaura um cor­
po erógeno e, com ele, a curiosidade sobre si e sobre o outro. As curiosidades
sexuais e suas pesquisas são barradas quando as crianças ficam entregues
às imagens e às palavras que contam tudo, por exemplo, quando têm acesso
livre à internet. Com a perda do espaço do brincar, as pesquisas sexuais podem
ficar impossibilitadas quando também as crianças ficam a maior parte do
seu tempo em instituições escolares, especialmente em estruturas em que a

213
formalidade educacional se sobrepõe à espontaneidade do infantil. Portan­
to, é importante destacar a indiscutível importância do tempo e do espaço à
construção subjetiva.
Na família, por vezes, portas que deveriam estar fechadas se abrem. Não
é nada incomum o coleito, bem como que os pafis tomem banho com seus
filhos, que ficam expostos ao corpo adulto, estando, nesses casos, a sexuali­
dade infantil, a posição polimorfa, posta em cena com seus cuidadores, e não
com outras crianças, o que pode ser excessivo e traumático. A diferença entre
adulto e criança e as implicações das suas sexualidades ficam negadas. Assim,
a tarefa das crianças de se olharem é substituída por olhares adultos, numa
posição de satisfação perversa, o gozo sem limites. Em Três Ensaios sobre a
teoria da sexualidade, Freud (1905/1980) nos fala sobre a pulsão de domínio
e dos processos que ocorrem na criança ao tocar seu próprio corpo, acariciar,
masturbar-se, bem como ao olhar o corpo do outro, dos seus pares infantis,
sendo esses atos que possibilitam a confluência e a condensação de fantasmas
de autoafirmação narcisista e da construção simbólica. Se tais experiências
não puderem ocorrer na primeira infância por intrusão do adulto e da cultura,
corremos o risco de que a adolescência não seja uma revivência do objeto
prometido na infância a partir do recalque, ou seja, o encontro com um par
amoroso. A sexualidade pré-genital, o autoerotismo, fica posta em ato quando
a castração ainda não se deu. Diante disso, poderiam estar relacionadas a essas
posições as festas jovens, nas quais todos “ficam” com todos, em que não há
uma escolha objetai, e sim a busca por experienciar. Ou seja, experienciar o
que não fora podido em outro tempo, hipótese que vou construindo.
Em A Sexualidade entre o Estruturalismo e o Bioiogismo, Bleichmar (2014)
nos fala das compulsões, sobre a redução da vida interna representativa a
que se submete um indivíduo em função de não renunciar ao prazer autoeró-
tico, ficando a libido capturada no próprio eu. Castiel (2019), em Narcisismo,
pulsões e sexualidade, sublinha que o retorno ao ego ocorre no início do pro­
cesso sublimatório. A sublimação, portanto, efetiva-se quando o ego passa a
fornecer outro objetivo e objeto à libido. Nesse sentido, o retorno ao eu seria
um processo intermediário, a partir da perda, para, posteriormente, criar no­
vas formas de ligação em outros objetos. Esse raciocínio difere daquele que
entende que a sublimação seria a dessexualização, um processo do ego que,
em luta com as pulsões inconscientes, faria adequações moralmente valoriza­
das, ligadas às idealizações. A dessexualização é, então, apenas um caminho
para a sublimação, ou esta riam os no campo da pulsão de morte, a serviço de
Tánatos. Nesse processo, ocorrem desinvestimentos dos objetos primários,

214
com a efetivação do recalcamento, para, então, mais tarde, encontrar canais
de sublimação. Esse movimento é necessário, a meu ver, para que o sujeito
se reconheça na relação com aqueles a quem escolhe para satisfazer-se num
encontro amoroso em que um e outro estão diferenciados, portanto, inte­
grados com suas identidades sexuais, podendo chegara satisfações genitais.
Para ilustrar esses processos implicados na busca da identidade sexual,
trago o caso de um adolescente.
Breno, aos 17 anos, em seu processo de análise, conta que, aos 10 anos,
quando buscava sua autonomia ao conseguir dormir em seu quarto, pois,
até então, dormia com a mãe, recebe um amigo que, pela primeira vez, dor­
me fora de casa. O menino convidado acorda à noite, se angustia e chora.
A mãe de Breno coloca o amigo a dormir na cama com ela. B. se pergunta:
“Por que minha mãe não encontrou outra solução para acalmar meu amigo,
como chamar os pais dele, por exemplo?”. Diz que sempre lhe foram confusos
os modos da mãe ao lidar com ele ou com seus amigos, mas que, ao mesmo
tempo, não consegue se desprender dela. Nas festas que freqüenta, B. tem
beijado homens e mulheres, às vezes muitos na mesma noite, e conta para sua
mãe, que diz: “Nunca imaginei que tu serias homossexual!”. Ao que ele pensa:
“E, se eu fosse, que problema teria? Minha mãe não sabe nada de mim. Na
verdade, acho que eu tô em busca de saber quem mesmo eu sou... Às vezes,
tenho vontade de morrer.”.
É importante refletirmos sobre a narrativa desse jovem que fala de uma
busca quanto a sua identidade sexual e de gênero. Para ele, quem sabe, “ficar”
com alguém de modo indiferenciado esteja tendo o sentido de vivenciar as
sensações corporais da parcialidade pulsional, do autoerotismo, o que não
fora devidamente experienciado e recalcado. Fala de cenas vividas em que a
intimidade da infância ficava invadida por estar muito junto do corpo da mãe, o
que pode questionar a partir da cena que ocorre com seu amigo. Ao seguirmos
sobre a ótica das pulsões, quando Breno nos diz “estou em busca de saber quem
sou”, fala de uma indiscriminação. Nesse momento, falha a posição de alteri-
dade, a castração e o recalque. Parece que o objeto primordial não pode ser
por ele substituído. As experiências atuais não são da ordem da satisfação pul-
sional, e sim de uma descarga, força que não se desdobra em representações,
portanto, da ordem da compulsão. A sexualidade precisa ser metabolizada para
que o outro seja visto como um ser integrado. No caso, parece haver falhas
no atravessamento do interdito falha, o que teria interferência na satisfação
ilimitada. Nesse contexto, a marca da diferença não estaria possibilitada pela
presença de um casal parental nem na lógica binária, e sim no imaginário da

215
mãe, qualidade que se constrói através das relações de contraste e distinção,
Breno, o protagonista acima, faz um movimento de apropriar-se de um lugar
que considera as diferenças, quando ativamente se pergunta sobre por que a
mãe não inseriu outros na solução da angústia do seu amigo. Com isso, abre a
possibilidade de sairde um processo autoerótico,Voltado a si, complexizando
suas relações, podendo viver enlaces amorosos satisfatórios.
Conforme Bleichmar,

La sexualidad no es um camino lineal que vá de la pulsion parcial a la asun-


cion de la identidad, pasando por el estádio falico y el édipo como mojones
de su recorrido, sino que se constituye como um corrsplejo movimento
de ensamblajes y ressignificaciones, de articulaciones provenientes de
diversos estratos de la vida psíquica y de la cultura , de ias incidências de
la ideologia y Ias mociones deseantes, y es necesarioentonces darle a cada
elemento su peso específico. (BLEICHMAR, 2014, p. 254).

É a partir dos complexos movimentos psicossexuais e da possibilidade de


a satisfação ilimitada ser barrada por quem cuida e ama que a criança abre
mão de certas satisfações e dá-se conta da diferença eu-outro e da castração,
desenvolvendo a socialização e buscando aprender sobre o mundo e a amar
alguém. O autoerotismo precisa evoluirá posição de amor sobre si, para, pos­
teriormente, desejar estar com alguém e com este satisfazer-se.
Com essas construções, propus um trânsito pelos caminhos diversos que a
identidade sexual percorre para que, sobre ela, a identidade de gênero se sus­
tente. Entendo que os pré-requisitos da construção identitária são montados
a partir dos enunciados nucleares que organizam a instância do eu, possibili­
tada pelo encontro com cuidadores, passando por necessárias elaborações e
ressignificações singulares. A complexidade da identidade sexual convida-nos
a sempre revisitarmos as origens da pulsão, do psíquico e da subjetividade,
pois é dali que o destino do sujeito deriva em sua capacidade de, a partir do
amor recebido, também amar, buscando suas satisfações de modo efetivo.

216
REFERÊNCIAS

BLEICHMAR, S. Las Teorias Sexuales en Psicoanálisis: que permanence de ellas en la practica


atual. Buenos Aires: Paidós, 2014.
BLEICHMAR, S. A Fundação do Inconsciente: destino de pulsão, destinos do sujeito. Porto
Alegre, Brasil: Artes Médicas, 1994.
BLESTCHER, F. La sexualidad infantil más acá dei gênero y de lá sexuación: extravios y encami-
namientos de la teoria sexual. In: MORENO GARCIA, R. (org.). La Sexualidad infantile más acá
dei gênero y de la sexuación: extravios y encaminamentos de la teoria sexual. Porto Alegre:
Sulina, 2017. p. 63-84.
CASH EL, S. V. Narcisismo, pulsões e sexualidade: repercussões clínicas. São Paulo: Escuta, 2019
FREUD, S. O projeto para uma Psicanálise Científica. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p.
305-362.
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 85-122.
FREUD, S. Pulsão e seus Destinos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psico­
lógicas Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 123-164.
FREUD, S. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p.
123-252
FREUD, S. Dissolução do Complexo de Édipo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psico­
lógicas Completas de Sigmund Freud, v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 193-199.
HOFF, F. D. Construção subjetiva num encontro amoroso entre mãe e bebês gêmeas. In: COLÓ-
QUIO DE BEBÊS, 4., 2017. Anais [...]. Paris, 2017.
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 96-103.
LA PLANCHE, J. Teoria da Sedução Generalizada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
LAZNIK, M. C. A Hora e a Vez do Bebê. São Paulo: Instituto Langage, 2013.
LÉVINAS, E. Entre nós: Ensaio sobre alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005.

217
1
ATITUDES CORRETIVAS
(OU TERAPIAS CONVERSIVAS)
DA ORIENTAÇÃO SEXUAL NA
CLÍNICA PSICOLÓGICA:
UMA ANÁLISE DE CASO
Mozer de Miranda Ramos
0 presente capítulo se propõe a analisar o relato de atendimento clínico
de um psicólogo que praticou Atitudes Corretivas (AC) da Orientação Sexuai
(OS) com um adolescente. 0 relato foi espontaneamente enviado a este autor
pelo próprio cliente, que forneceu autorização para que fossem realizadas
produções científicas, desde que sua identidade fosse preservada. Por isso,
aqui, o chamaremos de Gil, um nome fictício.
A Psicologia no Brasil tem vivido um período delicado de recrudescimen-
to conservador voltado para a patologização da diversidade sexual. A batalha
jurídica intentada à liberação da “cura gay”, que vem ocorrendo nos últimos
anos, demonstra o quão importante é reafirmar o posicionamento da catego­
ria acerca dessas práticas.

Atitudes corretivas da orientação sexual


As atitudes corretivas (AC) são o conjunto de práticas e intervenções des­
tinadas a “corrigir” as manifestações espontâneas das orientações sexuais
(OS) não-heterossexuais, constituindo processos terapêuticos. Inclusive, é
importante destacar o caráter equivocado dessa denominação, visto que as
OS não são passíveis de conserto, correção ou cura (LINGIARDI etal., 2015; VE-
ZZOSI et al., 2019), sendo entendidas como expressão normal da sexualidade
humana (APA, 2012). O termo se perpetuou através da literatura defensora
dessas práticas, comumente referidas como “conversivas” ou de “reorien-
tação”. Essas atitudes podem ser mais explícitas (como a recomendação da
repressão sexual e do desejo ou a aplicação de punições) ou mais discretas
(como o incentivo a práticas heterossexuais ou a deslegitimação do desejo).
Os manuais médicos, como a Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), retiram de seus nú­
meros mais recentes as normativas patologizantes da diversidade sexual,
jornada ainda iniciada nos anos de 1970. No Brasil, desde a publicação da
Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), é vedado aos psi­
cólogos exercer qualquer ação que favoreça a patologização da homossexua­
lidade, como participar de serviços que proponham o tratamento ou a cura
da homossexualidade (CFP, 1999).
Além disso, o Código de Ética do Psicólogo, em artigo 2o, alínea “b”,
diz que aos psicólogos é vedado “Induzir a convicções políticas, filosóficas,
morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de
preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”; reforçan­
do a inviabilidade de práticas de AC por parte da classe, visto que tais ações

220
configuram a indução a convicções sobre orientações sexuais, preconceito e,
possivelmente, tortura ou coerção, o que é vedado pela alínea “c” do mesmo
artigo73.
Atualmente, a homofobia internalizada já é uma variável conhecida
nesse campo de estudos, e sabe-se que ela está associada a sentimentos ne­
gativos com relação a si, à ideação suicida ou mesmo a uma solicitação de
mudança da orientação sexual (ANTUNES, 2017; BAIOCCO et al., 2014). En­
tão, mesmo que haja desejo do cliente, os psicólogos, como direcionado pela
Resolução 01/99, devem contribuir “para uma reflexão sobre o preconceito e
o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que
apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas” (artigo 2o). É im­
portante salientar o papel fundamental que, com suas normas e valores, a
sociedade, a família, a religião, o desejo de aceitação social e o preconceito
desempenham nos desejos de reorientação, criando, em muitos casos, uma
demanda antes mesmo de o indivíduo ter plena ciência da sua orientação se­
xual ou antes de vivenciá-la. Desconsiderar esses fatores é descolar o sujeito
da sociedade, da cultura, da história; postura que conflita com as postula-
ções da Psicologia, da Sociologia e da Antropologia.
Há evidências de que as terapias de cunho corretivo ou conversivos
“não são eficazes, direcionam-se ao tratamento de um fenômeno que não é
um distúrbio psicológico, desvalorizam a vida dos indivíduos LGB (lésbicas,
gays e bissexuais) e reforçam o preconceito, e causam danos aos clientes”
(SCHROEDER e SHIDLO, 2002, p. 132). Mesmo nos frágeis textos que defen­
dem essas práticas, é importante apontar a falta de consideração sobre os
efeitos adversos (DRESCHER, 2002). É comum que essas práticas estejam
ancoradas em informações imprecisas sobre gênero e sexualidade, além de
crenças pouco científicas dos terapeutas (e.g. SCHROEDER e SHIDLO, 2002;
VEZZOSI et al., 2019). Diversos são os efeitos prejudiciais aos clientes oriun­
dos dessas terapias, como baixa autoestima, depressão, homofobia interna­
lizada, comportamento suicida, ansiedade, exacerbado sentimento de culpa,
retraimento social, uso de álcool e outras drogas, monitoramento de “tre­
jeitos” homossexuais, comportamentos sexuais de risco e disfunção sexual
(DRESCHER, 2002; FORD, 2002; HALDEMAN, 2001; SHIDLO e SCHROEDER,
2002) .

73“[Ao psicólogo é vedado:] Utilizar ou favorecer o uso de conhecimento e a utilização de práticas psicoló­
gicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência”.

221
Entretanto, pesquisas realizadas no Brasil ainda apontam para práticas
corretivas da OS entre os psicólogos. Em pesquisa recente (VEZZOSI et al,
2019), com uma amostra de 692 psicólogos, 29% dos participantes apresen­
taram AC ao concordar com a afirmação de que, se o cliente solicitar, o psico-
terapeuta deve ajudar a mudar sua orientação sexual de homossexual para
heterossexual. Considerando apenas os psicólogos heterossexuais, maioria
da amostra (75%), esse percentual sobe para 35%. Todavia, mesmo os psi­
cólogos LGB apresentaram AC nesse estudo. Além disso, 12% acreditam que
o psicólogo deve ajudar a mudar a orientação sexual de homossexual para
heterossexual (mesmo sem ter sido solicitado).
Nesse mesmo estudo, 65% se considerava bem preparado para atender a
pessoas LGB e 17% já havia recebido solicitações de clientes para mudar sua
orientação sexual. Essa pesquisa investigou, também, os preditores relacio­
nados às AC, tendo sido encontradas seis variáveis significativas: a crença de
que a homossexualidade é uma patologia; a crença de que crianças criadas
por homossexuais têm mais chance de ter problemas no seu desenvolvimen­
to; a crença de que a homossexualidade é originada de uma incompetência
nas relações heterossexuais; a crença de que existe uma causa para a homos­
sexualidade; o gênero (masculino); e o nível de crença religiosa (maior) (VEZ­
ZOSI et al., 2019). Assim, é preciso considerar que, apesar da instrumentação
normativa para atuação da classe contra AC ou terapias conversivas da OS,
as crenças carregadas por muitos psicólogos ainda são capazes de promover
esse tipo de ação.
Além disso, a ineficácia ou falta de comprometimento da classe em me­
lhorar os processos formativos, e assim incluir as dimensões da sexualidade
humana, entre elas a OS, nas graduações, postergam o problema para futu­
ras gerações de psicólogos. O Conselho Federal de Psicologia (2019) produziu
um livro com o agrupamento de diversos depoimentos de pessoas LGBTls,
vários deles relacionados a experiências de terapias de conversão ou corre­
ção. Elas descrevem suas experiências, e a análise desses depoimentos pro­
voca um debate necessário sobre as práticas dos psicólogos.

A psicoterapia como espaço de homofobia


O precário cenário social acerca da diversidade sexual e de gênero no
Brasil, associado aos fundamentos heteronormativos e compulsórios da
sociedade, fazem com que o jovem LGB nasça no “armário”. Então, é comum
que adolescentes vivenciem de forma traumática o processo de se descobrir

222
homossexual ou bissexual. Entretanto, em uma sociedade que pauta de
forma determinista a suposta continuidade da expressão de gênero e da
orientação sexual, não é incomum que jovens sejam apontados como não-
heterossexuais mesmo antes de internalizar o significado dessa condição
(CORNEJO, 2015; COSTA et al., 2013; RAMOS e CERQUEIRA-SANTOS, 2020).
De certo modo, o estigma da homossexualidade chega antes mesmo da
homossexualidade para diversos jovens, fazendo com que o processo de
identificação com sua OS seja comumente marcado por negação, angústia
e medo.
A política do “armário” impõe dois processos aos LGBs: identificar-se
como LGB subjetivamente e identificar-se como LGB publicamente. Com fre­
quência, o silêncio, o segredo e a negação podem aparentar-se como mais
acolhedores e seguros diante das intermitentes reafirmações nas normas he-
terossexistas (JUNQUEIRA, 2012). Essa política serve, principalmente, como
mecanismo de controle da sexualidade, sendo, com efeito, uma tentativa
de descaracterizar a diferença e transformá-la em ignorância (LOURO, 2015;
SEDGWICK, 2007).
É possível identificar as dificuldades desse processo de identificação
com a sexualidade no relato de Gil. O sentimento de não-pertencimento é
legítimo e combina com a experimentação do contato com as fronteiras das
dissidências sexuais.
Gil é um adulto jovem, abertamente gay, cisgênero, branco, de classe
média, possui um relacionamento com outro rapaz e reside em uma cidade
brasileira com mais de 500 mil habitantes. Seu jeito alegre, levemente delica­
do e tímido, contrasta com alguns ideais de masculinidade vigentes, fazendo
com que Gil seja lido como um homem afeminado (RAMOS et al., 2020).

Tinha 12 para 13 anos quando minha mãe percebeu um adolescente que,


aos poucos, estava perdendo aquele sorriso e alegria de viver bem carac­
terístico do que lembro em minha infância. Em um determinado momento,
ela me questionou sobre o que estava sentindo, pois me via diferente não
só por estar simplesmente crescendo e mudando, mas por parecer infeliz.
E eu não soube e não saberia durante muito tempo explicar o que, de fato,
estava acontecendo. Só lembro de ter falado algo do tipo: não sinto que
me “encaixo” em lugar algum. Minha mãe procurou na família mesmo in­
dicações de psicólogos que, de repente, poderiam me ajudar e ajudá-la a
entender o que se passava, saber como melhor lidar diante dessa mudança.
Lembro que isso aconteceu em meados de 2003; então, ainda naquela
época, a discussão sobre família e diversidade sexual e de gênero era bem
superficial, pensando em especial no contexto brasileiro. Minha tia, que era

223
evangélica, e que me levava a cultos de sua religião, indicou um psicólogo
que era da mesma igreja. Destaco isso pois, em alguns momentos, senti
uma sobreposição da crença do psicólogo com a conduta profissional. (Gil)

A saúde, inclusive a mental, de jovens LGBTTQIA+ é negativamente in­


fluenciada pelos estigmas sociais depositados ntos indivíduos que rompem
normas sexuais e de gênero. E, mesmo com a diminuição de eventos de dis­
criminação flagrantes ou mesmo com o amadurecimento, essas conseqüên ­
cias tendem a continuar presentes na idade adulta (HATZENBUEHLER e PA
CHANKIS, 2016; MEYER, 1995; PACHANKIS et al., 2018). Essa desconexão de
Gil, seu sentimento de infelicidade e a saída da infância podem formular un­
co ntexto propício para desfechos negativos à saúde mental. A decisão da sua
mãe de buscar atendimento psicológico parece acertada e capaz de promo­
ver a Gil ferramentas para lidar com todas essas variáveis.
A atuação dos psicólogos não pode ser pautada pelas suas crenças reli­
giosas, sendo, inclusive, a laicidade importante fundamento para a prática
da Psicologia. Tem sido necessária a defesa desse valor para a manutenção
da Psicologia como uma ciência crítica e ética (LIONÇO, 2017). Assim, é preo­
cupante a percepção de Gil quanto à sobreposição de seu psicólogo à sua
prática clínica e terapêutica. É ainda mais preocupante por sabermos qi.e
maiores níveis de crença religiosa estão mais associados à AC da OS (VEZZG-
Sl et al., 2019).

Lembro que ia a essa igreja com frequência, porque era de algum modo
um “lugar tranqüilo”, livre do bullying homofóbico que começava a sofrer
na escola e, em parte, nos momentos de recreação com outras crianças/
adolescentes da minha vizinhança, seja pelos trejeitos femininos, postu­
ra mais tranquila/quieta, seja pela escolha/preferência de brincadeiras/
esportes e maior número de amigas. Na igreja, havia classes destinadas a
adolescentes, e a interação sobre o assunto de sexualidade era algo qi le
acontecia de acordo com a ideia de que “é um pecado ser não heterosse­
xual”. Então, não se falava e comentava nada sobre comportamento de
ninguém nesse sentido. Era uma total invisibilização, mas que acabava
sendo um ambiente “mais tranqüilo” - lamentavelmente, naquele momento
- de estar e socializar. (Gil)

Ambientes religiosos cristãos não costumam ser receptivos à homosse­


xualidade no Brasil (NATIVIDADE, 2013; NATIVIDADE e OLIVEIRA, 2009; SILVA
et al., 2013), mas, curiosamente, Gil sentia-se mais confortável na igreja. Pos
sivelmente, isso funcionava como uma espécie de mecanismo de diminuição
de danos, visto que a escola e a comunidade se apresentavam como ambien-

224
tes ainda mais aversivos. A violência da invisibilidade era menos dolorosa
naquele momento. No entanto, como alertado por Natividade e Oliveira
(2009), há uma popular estratégia de acolhimento de pessoas LGBT para sua
posterior “transformação” em diversos agrupamentos religiosos cristãos, na
medida em que esses indivíduos são vistos como doentes, desviantes e pe­
caminosos. É, nas palavras dos autores, uma “estratégia política higienista”.

Uma forma particularmente insidiosa de homofobia pastoral poderia ser


identificada na perspectiva evangélica de “acolhimento” aos homossexuais,
sustentada por certas iniciativas religiosas, que incorpora pessoas LGBT
aos cultos, visando ao seu engajamento em um projeto de regeneração
moral, pela libertação [da homossexualidade]74. Esta atitude perante a
diversidade sexual transcende os efeitos da homofobia cordial, na medi­
da em que não apenas incorpora sujeitos marcados como inferiores, mas
pretende eliminar tal “marca” por meio de “exorcismos”, cura ou terapias.
(NATIVIDADE e OLIVEIRA, 2009, p. 129).

A afeminação de Gil era um marcador importante para sua localização


enquanto indivíduo não-heterossexual na sociedade. A afeminação funcio­
na como um estigma facilmente identificável para homens gays e bissexuais.
Representa uma transgressão das supostas normas sexuais e de gênero, e
parece autorizar a violência com essas pessoas. A escola é, repetidamente,
cenário para o bullying homofóbico e para a vitimização de jovens afemina-
dos, por parte de colegas e funcionários. Meninos afeminados, muitas vezes,
abandonam o cotidiano escolar para não lidar com a violência diária: física,
psicológica ou institucional (JUNQUEIRA, 2015; FERREIRA e FERREIRA, 2015;
RAMOS e CERQUEIRA-SANTOS, 2020).

Antes de iniciarmos as consultas individuais, ele fez algumas sessões em


conjunto com a minha mãe, que explicou mais por mim o que eu estava
sentindo. Lembro que, no início, não queria muito estarem terapia porque
tinha o pensamento de que quem ia para psicólogo em geral “estava muito
mal”, e não queria me ver/sentir assim; mas logo, com as falas e brincadeiras
iniciais, isso foi substituído pela ideia de que ele era alguém que estava
ali para me ensinar a como lidar com o que eu estava sentindo - e, mais
tarde, até como “modificar” minha orientação sexual. Durante o processo
psicoterápico, recordo de ter sido gradualmente convencido de que eu,
enquanto adolescente, deveria seguir as “recomendações e conselhos”
dele, um profissional que entendia de saúde mental. O psicólogo era cadei-
rante, e essa característica, de algum modo, foi importante para fortalecer

74 Substituição realizada para não reproduzir um termo patologizante, por indicação do organizador.

225
a crença de que ele estava ali para me ajudar mesmo, “pois, se ele era tão
minoria quanto eu, entendia um pouco mais sobre ser discriminado em
alguns momentos, e seria um profissional mais empático para comigo”. (Gil)

Gil chega a acreditar que o psicólogo pode modificar sua OS. Como um
psicólogo constrói a ideia de que pode modificada OS de alguém? A OS não
é passível de determinismos externos, razão pela qual costumamos clas­
sificá-la como espécie de “auto-orientação”. Mesmo sem entrar em longos
debates acerca da etiologia da homossexualidade, é possível pensar sobre
os efeitos de ter uma orientação sexual dissidente da norma. Em uma so­
ciedade onde as minorias são tratadas como de segunda ordem, é possível
entender em que ponto Gil se enxerga no seu psicólogo cadeírante. Entretan­
to, para além das identificações possíveis, o poder da autoridade médico-te-
rapêutica, capaz de produzir fantasias por meio do “sujeito suposto saber”
(LACAN, 1964), torna possível construir e transmitir crenças, como a possi­
bilidade de mudança na orientação sexual. A direcionalidade do desejo, po­
rém, não é uma questão de fé e não é passível de modulação pelo indivíduo.

Houve muitas sessões com jogos de tabuleiro ao início, entrevista com os


pais, e lembro que, quando foi a vez do meu pai, ele voltou para casa bem
irritado, mas nunca quis falar sobre o que tinha acontecido ou sido colocado
na terapia. Só disse que não iria mais participar. Com a minha mãe houve
mais sessões, acredito que umas quatro ou cinco, e uma sessão conjunta,
no período de um ano que durou essa “terapia”. Depois conferi várias coisas
que ele me dizia que a minha mãe havia lhe dito para trabalhar em sessão,
e muitas delas foram coisas que ela nunca mencionou, como o fato de que
o meu tom de voz e as minhas gesticulações precisavam ser “modeladas”.
Além disso, o objetivo da busca por terapia, por parte da minha família,
era conseguir entender o momento que eu estava passando, pois estava
ficando cada vez menos comunicativo com meus pais e irmã. Nas sessões
seguintes, ele começou a realizar o que chamava de “treino comportamen-
tal para se comportar de modo mais masculino”. Era algo extremamente
incômodo. Eu saía bem mal dessas sessões, que eram intercaladas com
brincadeiras de jogos de tabuleiro quando me negava a continuar fazendo
o treino. Cada sessão tinha um foco - gesto das mãos, tom de voz, jeito de
vestir, andar -, e eu ia me fechando cada vez mais, inclusive em compartilhar
o que aconteceu na terapia com meus pais, porque comecei a sentir ainda
muito mais vergonha de mim mesmo, de ser como era: “errado”. E, sempre
que estava próxima a sessão seguinte, não me sentia bem, mas achava que
era “necessária”, e “robotizava” ainda mais ou pensava bastante sobre meu
comportamento, linguagem corporal e expressão de gênero. (Gil)

226
A postura antiética do psicólogo incluiu mentir sobre as solicitações
da família acerca das sessões. A imposição de convicções pessoais no aten­
dimento clínico coloca em xeque a postura profissional e a capacidade de
separação do psicólogo em relação ao seu cliente. É possível que haja um
emaranhamento dos seus desejos com as demandas da terapia, de forma
a colocar em risco a ética e a capacidade de produzir bem-estar no proces­
so terapêutico. A distorção das demandas terapêuticas está, possivelmente,
ancorada em uma visão da “homossexualidade como sintoma”, que distorce
o conhecimento das ciências acerca da orientação sexual. Essa crença pode
ter provocado um ímpeto panfletário e curador, com o qual esse psicólogo se
sentiu no dever de proteger Gil da abominação (ou pecado) da homossexua­
lidade. Nunca é demais lembrar que essa não é a função dos psicólogos - e
os que atuam assim deveriam sofrer as sanções disciplinares e passar por
atualização profissional, com processos formativos consistentes.
O psicólogo de Gil faz parte do grupo que acredita ser função do terapeu­
ta modificar a OS do cliente, mesmo sem que tenha havido uma solicitação
(VEZZOSI et al., 2019). É o grupo que costuma desenvolver de maneira mais
explícita as AC por acreditar que são corretas e necessárias. O treino compor-
tamental desenvolvido com Gil indica que seu psicólogo pertence ao escopo
das terapias cognitivo-comportamentais.
Um relato semelhante foi dado no documentário Bichas (2016), de Mar­
lon Parente, onde um rapaz relata que, aos oito anos, começou a participar
de uma terapia cognitivo-comportamental para ser treinado a agir diferente.
Foi-lhe ensinado que tudo que ele fazia e do que gostava estava “errado”. “Ela
gravava tudo o que eu falava e depois me fazia ouvir. Ela me fazia repetir tudo
que eu dizia com outra voz para treinar uma voz mais masculina” (PARENTE,
2016). As ações dessa psicóloga repercutiam fora do espaço terapêutico. Ela
criou sinais de vigilância com a família para que eles também “controlassem”
as expressões afeminadas dele, numa clara crença de continuidade entre OS
e expressão de gênero, onde uma expressão de gênero mais “masculina” e
menos afeminada seria capaz de produzir a heterossexualidade. O modo de
enfrentamento adotado por ele foi semelhante ao de Gil: começou a se fe­
char para o mundo. Todo esse processo repetido de treinar gestuais, voz, for­
ma de andar e continuamente produzir sofrimento para esses garotos pode
ser interpretado como análogo à prática de tortura. O inciso II do artigo Io da
Lei n° 9.455, de 07 de abril de 1997, sobre o que constitui o crime de tortura,
tem em seu texto a seguinte definição: “submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso

227
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medi­
da de caráter preventivo”.
As intervenções expressivas realizadas são direcionadas a expressões de
gênero constituintes em homens, da afeminação (gesto das mãos, tom de
voz, jeito de vestir e andar). Quando um homem tem expressões femininas,
ele frustra as expectativas de masculinidade ideal depositadas sobre ele (RA­
MOS e CERQUEIRA-SANTOS, 2020). Por outro lado, aproxima-se das mulhe­
res, que, pela lógica machista e patriarcal, seriam “inferiores” aos homens
(SAFFIOTI, 2004). Essa visão normativa e binária pauta as leituras de gêne­
ro na sociedade brasileira. Poucas coisas são tão afirmativas da homosse­
xualidade de um garoto quanto as suas expressões de gênero. Quando se é
masculino, é possível ter intimidade com outros rapazes, fazer brincadeiras
sexuais ou mesmo transar, sem perder o status de heterossexual. A antiafe-
minação75 está na matriz da sociedade (RAMOS et al., 2020) e, por conseguin­
te, na matriz das terapias reversivas. É sabido, por exemplo, que, quando o
rapaz homossexual não possui expressões afeminadas, o descrédito de sua
homossexualidade é flagrante: “você só está confuso”, “você não é gay”, “é só
você se esforçar mais um pouco”.
A afeminação de Gil funcionava para esse terapeuta como um agravan­
te, que, se solucionado, repercutiria na sua OS. Em outra direção, diminuir
a afeminação de Gil representaria uma “diminuição de dano”, tornando o
“problema” menos detectável e reforçando as “estruturas do armário”. As
perversas sessões de terapia corretiva/conversiva estimularam Gil a interna­
lizar uma culpa por ser “errado”. Certamente, esse não deveria ser o papel de
um processo terapêutico; mas foi através dele que Gil pode maximizar suas
crenças de inadequação, muito justificadas pelo sentimento de que toda a
forma como ele agia deveria ser modificada. A diminuição da autoestima é
inevitável nesse cenário, e com ela diversos riscos para a saúde mental se tor­
nam possibilidades, como autolesão, depressão e ideação suicida (GÓMEZ e
CAMARGO, 2017; HAWTON et al., 2002; MADGE et al., 2011; ORTH et al., 2008;
SILVA, 2019).

Eu realmente acreditava que ele estava ali para me ajudar, mas minha
família ia percebendo que a terapia, ao invés de ajuda, me deixou mais
retraído, e a comunicação entre nós era cada vez mais travada sobre o que
sentia e pensava. Estava mais irritadiço com todos. Até me afastei mais de
alguns amigos na época, porque comecei a pensar que não era merecedor

75Termo referente ao sistema de rejeiçãoda afeminaçãoem homens, expresso através de atitudes negativas.

228
do amor ou de qualquer afeto dos outros, antes que eu me “corrigisse”.
Nesse período, também lembro que, sempre que pensava em homens de
maneira sexualizada, ficava bastante tempo ajoelhado pedindo perdão
pelos pensamentos e sentimentos que tinha, quase como forma de me
punir, porque os joelhos doíam. (Gil)

A diminuição da autoestima está associada às atitudes de autopunição e


de autolesão de Gil. O exacerbamento da culpa, acompanhado de um baixo
valor autoatribuído, fizeram-no se sentir merecedor de punição. Os efeitos
negativos do processo foram se tornando mais aparentes para a família de
Gil. Seu retraimento social deve ser lido como um efeito de não ser merece­
dor “do amor ou de qualquer afeto dos outros”, até que ele fosse “corrigido”.
A internalização da homofobia é o componente psicológico que liga esses
pontos.
Homofobia internalizada é o nome dado ao produto do processo de in­
corporação ou introjeção da homofobia, com suas crenças e valores, existen­
te na sociedade por indivíduos homossexuais (ou bissexuais). Através desse
processo, é comum que essas pessoas passem a direcionar para si sentimen­
tos, crenças e atitudes negativas originados das normativas homofóbicas,
como agressividade, tristeza ou culpa (ANTUNES, 2017). Assim, a vivência da
sua OS esbarra na estrutura proibitiva e punitiva que foi desenvolvida através
do sistemático rebaixamento das orientações não-heterossexuais existentes
na sociedade. Podemos nos perguntar: qual a primeira vez que ouvimos uma
ofensa homofóbica? Certamente, termos constituídos para serem ofensivos,
como viado, sapatão e bicha, nos foram apresentados ainda na primeira in­
fância. Um dos efeitos dessa exposição contínua à negativização dessas OS é
a homofobia internalizada.
Há eventos durante a vida que podem ajudar a amplificar ou solidificar
a homofobia internalizada. Alguns exemplos: vivência cotidiana em ambien­
tes muito homofóbicos; contato com discurso religioso que advoga contra
as expressões não-heterossexuais; experiências clínicas ou terapêuticas de
tentativa de “cura gay”; grave e sistemática violência homofóbica sofrida etc.
(ANTUNES, 2017). Alguns desses fatores nos foram relatados por Gil, como
a vivência religiosa e sua terapia conversiva. Essas experiências podem ter
reforçado sua homofobia internalizada (comum em indivíduos de minorias
sexuais, em alguma medida) e provocado atitudes punitivas e autolesivas,
bem como seu isolamento afetivo e social.
Em seu livro, Antunes (2017) reúne uma série de possíveis desdobra­
mentos da homofobia internalizada (baseado em diversas pesquisas empíri-

229
cas), citando, como exemplo, depressão, vulnerabilidade, baixa autoestima,
vergonha, culpa, confusão, estresse, ansiedade, queixas psicossomáticas,
autodestruição, embotamento afetivo, isolamento social, comportamentos
sexuais de risco, ideação suicida, problemas relacionados a práticas sexuais
ou relacionamentos afetivos e adição às drogas. Existem diversos efeitos ne­
gativos registrados na literatura, sejam relacionados à saúde, ao bem-estar
ou ao comportamento.

A minha irmã, em especial, ficou muito incomodada, e acredito que ela deu
o primeiro movimento para me fazer repensar se aquilo estava me fazendo
bem. Ela, que é quase dois anos mais nova que eu, sempre dizia: “Você não
está em nada melhor. Por que ainda vai pra essa terapia? M|e, você não está
vendo que não está adiantada nada?”. Lembro que 0 bullying que sofri no
ambiente escolar foi maior nesse momento, porque era como se sentisse
que merecia e “deixava passar” as agressões sofridas. Minha mãe sempre
me perguntava se queria continuar, ao que eu dizia que sim. Foi num dia
em que algum menino veio me agredir fisicamente no colégio, e minha irmã
me defendeu dando um baita murro na cara do menino, que me toquei que
talvez a terapia não estivesse me fazendo bem. Foi preciso que alguém de
fora me desse esse chacoalhão para perceber que não tinha nada “errado”
e que eu não precisava me corrigir para “ser digno do amor dos outros”.
Lembro que, depois desse dia, minha mãe me perguntou como estava e
eu falei que achava que ia ficar melhor, mas que ainda não me sentia bem.
Comecei a ficar mais atento às demonstrações de afeto de outras pessoas
da família e dos amigos de infância. Na outra semana, ela disse que eu não
precisava ir à terapia e que podíamos fazer algo diferente no horário da
sessão. Eu não voltei mais desde então, e foi minha mãe que comunicou
ao terapeuta que não iria mais à terapia. (Gil).

A autodepreciação de Gil começava a repercutir na naturalização da vio­


lência sofrida. Essa é uma das armadilhas da internalização da homofobia:
a “confissão de culpa” e a necessidade de “castigo”. No artigo de Ferreira e
Ferreira (2015) sobre vivências escolares de jovens homossexuais afemina-
dos, um dos entrevistados trata como “normal” as violências que sofria na
sua escola anterior equeo haviam feito trocar de escola. Os autores colocam
que “esse aspecto de normalidade, no sentido de dentro da norma, do espe­
rado, faz perceber que ele configura em sua subjetividade a ‘normalidade’ de
ser agredido, cotidianamente, por ser homossexual” (FERREIRA E FERREIRA,
2015, p. 126).
É importante destacar dois diferenciais que marcaram a história de Gil.
O primeiro seria sua capacidade de olhar para si, refletir criticamente sobre
suas afetividades e sua identidade, mesmo com tão pouca idade. Mesmo fra-

230
gilizado com o processo, Gil conseguiu atribuir novos sentidos aos aconteci­
mentos de sua vida. O segundo seria a importância do suporte familiar e da
aceitação familiar. A atenção, o cuidado e o afeto devotados a ele pela família
foram fundamentais para que sua história caminhasse para desfechos mais
positivos. A epifania de Gil é relatada por outros indivíduos que passaram por
processos semelhantes, como diz a frase clássica da drag queen RuPaul (um
pouco brega talvez, mas que combina muito com esse momento): “se você
não pode amar a si mesmo, como ***** você vai amar alguém?”.

Não me fechei à psicoterapia, e depois de alguns anos retomei com outro


profissional, que foi muito mais afirmativo em relação a minha orientação
não heterossexual. Isso me auxiliou a melhorar, e muito, a comunicação em
família. Acredito que só me dei conta de que tinha passado por uma ten­
tativa de terapia de reversão ou reorientação sexual já ao longo da minha
graduação em psicologia, rememorando e ressignificando aquele momento
anterior. Foi um momento bem dolorido. Senti muita raiva e tristeza. Colo­
quei isso para quase todo mundo da minha rede de apoio no meu tempo,
que foi aos poucos. Comentei sobre a vontade de ir e jogar tudo na cara do
psicólogo, que nem sabia se ainda atendia no mesmo lugar, mas, ao invés
disso, segui o conselho de escrever uma carta sobre os meus sentimentos
e sobre o que tinha passado, colocando o quanto acho irresponsáveis e
criminosas - tudo, menos psicologia, principalmente quando se trata de
prática psicoterápicas clínicas com crianças e adolescentes - as condutas
que aquele profissional teve. (Gil)

O desfecho clínico de Gil é bem animador. Contudo, quantas marcas esse


processo lhe deixou? A compreensão da violência sofrida foi importante para
a ressignificação da sua própria história e do seu desenvolvimento pessoal.
Gil teve excelentes aliados. Por um lado, uma ótima rede familiar e, por outro,
a possibilidade de vivenciar uma psicoterapia afirmativa. As terapias afirma­
tivas são um conjunto de práticas, baseadas em evidências empíricas, que vi­
sam à despatologização das identidades LGBTTQIA+. Não estão inseridas em
uma única orientação teórica e buscam auxiliar indivíduos de minorias se­
xuais e de gênero a melhorar sua relação e a vivenciar suas particularidades
desenvolvimentais de forma adequada. Um terapeuta de cunho afirmativo
se preocupa com sua formação, pois reconhece que existem idiossincrasias
peculiares a esse grupo, tanto em um sentido mais teórico quanto em um
sentido cultural (e.g. BORGES, 2009; PACHANKIS e SAFREN, 2019). Em suma,
todo indivíduo LGBTTQIA+ deveria encontrar as habilidades de um terapeuta
afirmativo quando procura um profissional da Psicologia.

231
A quern servem esses processos conversivos, se são tão prejudiciais aos
clientes? Seria para padronizar e normatizaras pessoas? Seria para diminuir
o incômodo homofóbico daqueles que não conseguem lidar com a diversi­
dade sexual? Seria para punir pessoas LGB e condená-las a um sofrimento
prolongado? Os psicólogos devem zelar pelo bèm-estar de seus clientes.
Esse é o seu dever profissional. Exercícios de imaginação podem ser compli­
cados, mas não é difícil pensar outros desfechos para a história de Gil. Muito
possivelmente, todos nós ouvimos histórias de pessoas que, por conta de
intervenções corretivas em sua orientação sexual, se suicidaram ou desen­
volveram graves questões com seus padrões afetivos e sexuais, que tiveram
repercussões duramente negativas para sua saúde mental ou reforçaram
as “estruturas subjetivas do armário”. É flagrantemente contraditória a não
aceitação de uma identidade em um processo psicoterapico. Vai contra
qualquer possibilidade terapêutica. Os mecanismos de fiscalização, de orien­
tação e de denúncia precisam ser reforçados e melhor divulgados. É preciso
que a Psicologia se comprometa a formar melhor seus profissionais e que
todos se engajem na eliminação desse tipo de prática nociva.

232
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION (APA). Guidelines for psychological practice with
lesbian, gay, and bisexual clients. American Psychologist, v. 67, p. 10-42,2012.
ANTUNES, P. P. S. Homofobia internalizada: o preconceito do homossexual contra si mesmo.
São Paulo: Annablume, 2017.
BAIOCCO, R. etal. Suicidal ideation in Spanish and Italian lesbian and gay young adults: The
role of internalized sexual stigma. Psicothema, v. 26, n. 4, p. 490-496,2014.
BORGES, K. Terapia afirmativa: uma introdução à psicologia e à psicoterapia dirigida a gays,
lésbicas e bissexuais. São Paulo: Edições GLS, 2009.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Tentativas de aniquilamento de subjetividades
LGBTIs. Brasília: CFP, 2019.
CORNEJO, G. A guerra declarada contra o menino afeminado. In: MISKOLCI, R. Teoria Queer:
um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 73-82.
COSTA, A. B. etal. Homophobia or sexism? A systematic review of prejudice against nonhetero­
sexual orientation in Brazil. International Journal of Psychology, v. 48, n. 5, p. 900-909,2013.
DRESCHER, J. Sexual conversion (“reparative”) therapies: History and update. In: JONES, B. E.;
HILL, M. J. (eds.). Mental health issues in lesbian, gay, bisexual, and transgender commu­
nities. Washington: American Psychiatric Press, 2002. p. 71-91.
FERREIRA, C. C.; FERREIRA, S. P. A. Vivências escolares de jovens homossexuais afeminados: es-
tratégiasde resistência e permanência.Tópicos Educacionais, Recife, v.21, n. 2, p. 103-138,2015.
FORD, J. G. Healing homosexuals: A psychologist’s journey through the ex-gay movement and
the pseudo-science of reparative therapy. Journal of Gay & Lesbian Psychotherapy, v. 5, n.
3-4, p. 69-86, 2002.
GÓMEZ, N. P.; CAMARGO, Y. S. Relación entre autoestima e ideación suicida en adolescentes
colombianos. Revista de Psicologia GEPU, v. 8, n. 1, p. 8-21, 2017.
HALDEMAN, D. C. Therapeutic antidotes: Helping gay and bisexual men recover from conver­
sion therapies. Journal of Gay & Lesbian Psychotherapy, v. 5, n. 3-4, p. 117-130,2001.
HATZENBUEHLER, M. L.; PACHANKIS, J. E. Stigma and minority stress as social determinants
of health among lesbian, gay, bisexual, and transgender youth: research evidence and clinical
implications. Pediatric Clinics, v. 63, n. 6, p. 985-997, 2016.
HAWTON, K. etal. Deliberate self harm in adolescents: self report survey in schools in England.
BMJ, v. 325, n. 7374, p. 1207-1211,2002.
JUNQUEIRA, R. D. A Pedagogia do Armário: heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano
escolar. Revista Educação Online PUC, Rio de Janeiro, n. 10, p. 64-83,2012.
JUNQUEIRA, R. D. Temos um problema em nossa escola: um garoto afeminado demais: Peda­
gogia do armário e currículo em ação. Revista Educação e Políticas em Debate, v. 4, n. 2, p.
221-239,2015.
LACAN, J. O Seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Ja­
neiro: Zahar, 1964.
LIONÇO, T. Psicologia, democracia e laicidade em tempos de fundamentalismo religioso no
Brasil. Psicologia, v. 37, n. esp., p. 208-223,2017.
LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed. Belo Hori­
zonte: Autêntica, 2015.

233
MADGE, N. et at. Psychological characteristics, stressful life events and deliberate self-harm:
findings from the Child & Adolescent Self-harm in Europe (CASE) Study. European Child &
Adolescent Psychiatry, v. 20, n. 10, p. 499-508,2011.
MEYER, I. H. Minority stress and mental health in gay men. Journal of health and social beha
vior, p. 38-56,1995.
NATIVIDADE, M. T. Homofobia religiosa e direitos LGBT: notas de pesquisa. Latitude, v. 7, n. 1
p. 33-51,2013.
NATIVIDADE, M. 1; OLIVEIRA, L. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia (s) em dis­
cursos evangélicos conservadores. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana,
n. 2, p. 121-161,2009.
ORTH, U.; ROBINS, R. W.; ROBERTS, B. W. Low self-esteem prospectively predicts depressio
adolescence and young adulthood. Journal of Personality and Social Psychology, v. 95, n.
3, p. 695-708,2008.
PACHANKIS, J. E. et al. Young adult gay and bisexual men’s stigma experiences and mental
health: An 8-year longitudinal study. Developmental Psychology, v. 54, n. 7, p. 1381-1393,201
PACHANKIS, J. E.; SAFREN, S. A. (eds.). Handbook of evidence-based mental health pract
with sexual and gender minorities. Oxford: Oxford University Press, 2019.
PARENTE, M. Bichas, o documentário. Youtube, 1 video (38m57s). 2016. Disponível em: ht-
tps://goo.gl/bLEAa4. Acesso em: 29 jul. 2020.
RAMOS, M. M.; CERQUEIRA-SANTOS, E. Afeminação, Hipermasculinidade e Hierarquia. Arqu
vos Brasileiros de Psicologia. No prelo.
RAMOS, M.M.; COSTA,A. B.;CERQUEIRA-SANTOS, E. Effeminacy and anti-effeminacy: intera
with internalized homophobia, outness, and masculinity. Trends in Psychology, p. 1-16,2020.
SAFFIOT1, H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 20
SCHROEDER, M.; SHIDLO, A. Ethical issues in sexual orientation conversion therapies: An em
rical study of consumers. Journalof Gay & Lesbian Psychotherapy, v. 5, n.3-4, p. 131-166,20
SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 19-54, jan
jun. 2007.
SHIDLO, A.; SCHROEDER, M. Changing sexual orientation: A consumers’ report. Professiona
Psychology: Research and Practice, v. 33, n. 3, p. 249,2002.
SILVA, C. G.; PAIVA, V.; PARKER, R. Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a
promoção da saúde e de direitos sexuais. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 17, p.
103-117,2013.
SILVA, D. A. A autoestima e o comportamento suicida em estudantes universitários: uma revi­
são da literatura. Revista Eletrônica Acervo Saúde, n. 23, p. e422-e422, 2019.
VEZZOSI, J. I. P. et al. Crenças e Atitudes Corretivas de Profissionais de Psicologia sobre a Ho
mossexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 39, n. esp., p, 174-193,2019.

234
A VIDA PSÍQUICA DO ARMÁRIO
Lucas Demingos
José Stona
No documentarioA Secret Love (2020), traduzido como “Secreto e Proibi­
do” pela Netflix Brasil, Terry e Pat, um casal de lésbicas americanas, brancas,
de classe média, que vivem juntas há 72 anos, precisam tomar uma decisão
crucial para o seu futuro, na medida em que a condição de saúde debilitada
das duas está começando a colocar as suas vidas em risco. Para tomar essa
decisão, elas contam com a ajuda de Diana, sobrinha de Terry, que está ten­
tando, a todo custo, negociara mudança das tias para uma casa de passagem,
dentre várias outras questões importantes que aparecem no documentário.
No caminho da negociação, Diana encontra uma suposta «resistência» de
Pat, a qual, do ponto de vista da sobrinha de Terry, é interpretada como “ela
é muito difícil» e, até mesmo, «ela não gosta de mim». Nesse conflito, o que
Diana parece não perceber é que Pat, aos 90 anos, já não está mais disposta
a lidar com o armário, pois ir para uma casa de passagem representa, para a
nonagenária, ter de prestar contas a respeito de sua relação com Terry a todos
os moradores, enfermeiros e médicos do local, fazendo com que ela resista
a sair de sua própria casa. O problema é que Terry e Pat já não dispõem de
muito tempo para tomar a sua decisão, porque o que se coloca em jogo, em
um primeiro momento, é a necessidade de cuidados especializados. Por sorte,
no caso específico de Terry e Pat, o desfecho de sua história será bem diferente
do que o esperado pelo imaginário de Pat (MURPHY et al., 2020).
O recorte acima tenta ilustrar que, mesmo após uma transformação afir­
mativa no campo do reconhecimento daqueles que não se identificam com
um regime epistemológico e social cisheterossexista, declarações e atos in­
juriosos ainda circulam, e a história das violências sofridas não encontra, na
mesma proporção, atos de reparação. Declarações e atos possuem efeitos,
isto é, conseqüências que, em muito, superam a suposta intenção do falante
de injuriar. Ainda, declarações e atos também se acoplam e extraem sua força
de uma história de injúrias anteriores para subordinaraqueles aos quais, com
violência dominadora, são direcionadas (BUTLER, 1997).
Em outras palavras, após uma série de conquistas legais em nome da
dignidade e do respeito à vida daqueles que se identificam para além do
regime cisheterossexista, a proteção legal contra atos de discriminação e
violência nem sempre se traduz de maneira tão simples ou efetiva, ainda
que dentro do discurso jurídico. A violência persiste, sendo distribuída e

236
induzida de formas diferentes a pessoas que se enquadram em tal regime76. As
desigualdades das violências podem aumentar ou diminuir conforme afiliações
ou categorias identitárias - como raça, etnia, classe, deficiências e religião - se
interseccionam, destacando a pluralidade e as contradições agonísticas das
lutas sociais.
A partir desse esboço, não é de surpreender que a presença da figura do
armário seja ainda estruturante e central na formação dos sujeitos, mobili­
zando uma série de recursos psíquicos - ou mesmo materiais - e impondo
investimentos e riscos assimetricamente distribuídos. Em Epistemology of the
closet, Eve K. Sedgwick (2008 [1990]) argumenta que a figura do armário é não
apenas central na compreensão da opressão homossexual contemporânea,
mas destaca que “as incoerências e contradições da identidade homossexual
na cultura do século XX respondem e, portanto, evocam, as incoerências e
contradições da heterossexualidade compulsória” (SEDGWICK, 2008, p. 81).
Como conseqüência, para Sedgwick, toda a cultura ocidental é “estruturada -
de fato, fraturada” (Ibid., p. 1) pela construção do binário homo/heterossexual.
Na obra de Sedgwick (2008), já está implícito que o armário não é somente
sobre as experiências de homossexuais - tanto que o texto veio a se tornar
fundamental nos estudos queer-, razão pela qual, neste escrito, gostaríamos
de enfatizar e ampliar a discussão pensando as relações do armário, também,
com corpos queer e não cisgêneros.
Em um primeiro momento desta investigação, procuramos compreender
melhor os possíveis efeitos psíquicos exercidos pela estrutura do armário sobre
o sujeito. Para isso, recorremos tanto a elaborações de Judith Butler (1990/2017),
principalmente a respeito de melancolia de gênero, quanto às maneiras pelas
quais esses efeitos se manifestam materialmente nos sujeitos, a partir de breves
menções de documentários e recortes da escuta clínica. Em um segundo mo­
mento, a investigação reelabora e complexifica a estrutura do armário ao vincu-
lá-la aos relatos de formação do sujeito e suas possibilidades de resistência ao
poder propostos em A vido psíquica do poder (1997/2017) e em Relatar a si mes­
mo (2005/2017c). Desse modo, ao longo deste percurso, buscamos caminhos

76 E,
dependendo do recorte geográfico ao qual o sujeito se encontra, os destinos das suas identificações
poderão lhe custar a própria vida. A exemplo de alguns países que ainda possuem pena de morte para
pessoas LGBTTQ1A+.

237
possíveis para compreender a força que o armário exerce sobre os sujeitos e de
que modo ele poderia dar origem a relações menos subordinantes e violentas,

O armário e seus efeitos psíquicos ^


As últimas décadas trouxeram, por meio de ativismos e conflitos sociais,
várias mudanças em termos de reconhecimento e respeito social para a po­
pulação LGBTTQIA+77, de certo modo enfraquecendo opressões e restrições
impostas àqueles que não se identificam com um regime cisheterossexista.
Todavia, o “reino do segredo revelado foi escassa mente afetado” (SEDGWICK,
2008, p. 67), isto é, a estrutura do armário ainda se apresenta como uma espécie
de fronteira a ser continuamente cruzada.
Se, para alguns, ser abertamente não cisgênero e não heterossexual é uma
possibilidade de poucas conseqüências, para outros os custos de tal forma de
vida ainda se apresentam muito altos. É extrema mente atual o diagnóstico de
que, “até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que
não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institu-
cionalmente importante para elas” (Ibid., p. 68). Para Sedgwick (2008, p. 68),
a presunção cisheterossexista constantemente reergue armários a cada novo
encontro, exigindo “novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e
demandas de sigilo ou exposição”.
O armário é, consequentemente, compreendido como uma estrutura
narrativa que exerce um controle difuso e flexível sobre como determinados
sujeitos se compreendem e se formam social e discursivamente. Essa presença
não é arbitrária, mas histórica e contingencial, e se distribui assimetricamente
ao acoplar-se a outras estruturas, tanto de opressão quanto de emancipação,
transformando-se e assumindo novas - ou velhas - formas. Embora a perma­
nência dentro do armário, além de possivelmente extorsivo, seja um lugar de
silenciamento, não é uma posição inevitável. Mesmo que essa posição não seja
exaltada, o fato é que ela permite até hoje a sobrevivência de muitos sujeitos
em contextos nos quais a “saída” não significa a possibilidade de empodera-
mento, mas a morte legalizada (SEDGWICK, 2008).

77 Em fevereiro de 2019, o Supremo Tribunal Federal do Brasil iniciou o julgamento que avaliava se a discri­
minação por identidade de gênero ou orientação sexual deveria ser considerada crime. Para o relator do
processo, ministro Celso de Mello, o crime de homofobia etransfobia possui uma configuração análoga ao
racismo, crime inafiançável e imprescritível. Em junho de 2019, os ministros decidiram que a conduta deve
ser punida pela Lei de Racismo (Lei n° 7.716/89), que hoje prevê crimes de discriminação ou preconceito
por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional (STF, 2020).

238
Escapando a uma temporalidade cronológica ou previsível, a estrutura
do armário nem sempre se enfraquece ao longo de suas “saídas”. Devemos
destacar, a propósito, que, embora utilizemos a conhecida expressão idiomá­
tica “saída” do armário, do inglês outing, deve-se ter muito cuidado com seu
uso e entendimento: o sujeito pode até sair do armário, mas ele não sai da
estrutura que produz o armário. O sujeito está sempre transitando nessa linha,
sempre negociando seus termos de maneiras mais ou menos subordinantes.
Dificilmente é possível prever o retorno de suas paredes ou seu esfacelamento.
Considerando que aqueles sujeitos que não se identificam com uma matriz
cisheterossexista raramente crescem e se formam em famílias que compar­
tilham dos mesmos predicados, é freqüente a possibilidade de que estejam,
desde cedo, expostos a uma discriminação em razão da sua identidade de
gênero ou orientação sexual potencial, tendo de “construir, com dificuldade e
sempre tardiamente, a partir de fragmentos, uma comunidade, uma herança
utilizável, uma política de sobrevivência ou resistência” (Ibid., p. 81). Contudo,
essa construção de comunidade e pertencimento não faz com que a figura do
armário desapareça por completo, ainda que, certamente, facilite sua nave­
gação na topografia social.
Sedgwick (2008) sugere, a partir de sua leitura de A Fero no Selva, de Henry
James (1986), que, por vezes, o armário se constrói numa espécie de tempo­
ralidade anterior à própria consciência da sexualidade, com um conteúdo de
“pânico homossexual”. Assim, ampliando a discussão, o armário pode consistir
até mesmo em um terror da possibilidade de um desejo/segredo não cisgê-
nero e não heterossexual que impede o sujeito de experienciar propriamente
sua sexualidade e seu gênero, não importando como eles se manifestem. Na
obra, a força da heterossexualidade compulsória é tão esmagadora que o
personagem Marcher passa a organizar e centralizar sua vida em torno “da
fascinação com e do terror da possibilidade da homossexualidade” (SEDG­
WICK, 2008, p. 206). Por conseguinte, a figura do armário assombra a todos,
inclusive aqueles que se identificam com o regime cisheterossexista, na me­
dida que os impele a se diferenciar e distanciar compulsivamente de tudo
o que poderia remeter à possibilidade de uma não cisheterossexualidade.
O armário confunde o público e o privado, aquilo que deve ser revelado
e aquilo deve ser protegido. Algumas vezes o sujeito é punido por revelar-se
demais, outras vezes é punido porter ocultado uma informação que suposta­
mente seria essencial. Ainda que compreendido como estrutura narrativa, o
“sair do armário” não fornece segurança ou qualquer tipo de controle para o
sujeito, já que a figura do armário atravessa e organiza “todos os códigos múlti-

239
pios e muitas vezes contraditórios pelos quais a informação sobre a identidade
e atividade sexuais parece ser transmitida” (Ibid., p. 79). Essas contradições,
associadas ao caráter difuso e plástico do armário, revelam, também, um dis­
tanciamento entre o sujeito e sua autodeterminação, expondo sua identidade
ao debate externo: \

Como você sabe que é realmente gay? [Ou ainda: como você sabe que é
realmente não cisgênero?] Por que a pressa de chegar a conclusões? Afinal,
o que você diz se baseia apenas em poucos sentimentos, e não em ações
reais, ou, alternativamente, em algumas ações, e não necessariamente em
seus verdadeiros sentimentos (Ibid., p. 79).

Quer dizer, o sujeito é interrogado a respeito de sua suposta certeza e es­


tabilidade sexual, mas tais questionados não são direcionados àqueles que se
identificam com o regime cisheterossexista, como se eles possuíssem, o priori,
uma estabilidade e legitimidade (BUTLER, 2017b). Dentro dos esquemas do
poder contemporâneo, na grande maioria dos casos, o armário não constitui
uma questão de privacidade que o sujeito escolhe - ainda que possa em algu­
mas situações se tratar disso -, mas serve como instrumento disciplinar para
restringir as possibilidades do sujeito.
Quando nos debruçamos a refletir sobre os efeitos psíquicos do armário,
devemos lembrar que, muito antes da ação que supõe uma “saída” do armário,
somos convocados, desde muito cedo, a nos identificarmos com os modelos
disponíveis de existência e de reconhecimento. Tais modelos fazem o possí­
vel para excluir a multiplicidade das sexualidades e dos gêneros ao custo de
manter compulsoriamente, pela reiteração, uma cisheteronormatização em
ação sobre os corpos (VERGUEIRO, 2016). Alguns sujeitos demoram a perceber
a existência de uma diversidade de que não se fala, em decorrência das re­
petições dos modos de ser (re)produzidos por uma domesticação normativa.
Assim, ao pensarmos quais efeitos psíquicos são produzidos pelo armário,
estamos mais interessados em evidenciar aqueles descobertos em práticas
locais de conhecimento situado (H ARA WAY, 1995) do que em estruturar con­
seqüências universais. Os efeitos podem ser agudos ou crônicos. Eles podem
se manifestar de forma similar, mesmo apresentando origens diversificadas.
Por vezes, os efeitos são contraditórios e, por vezes, um intensifica o outro,
expondo o quão hipersingularé a forma pela qual agimos e nos relacionamos
com o armário/poder.
Um dos efeitos que observamos é a própria produção cultural de melan-
colização que acompanha os dispositivos de poder fabricadores do gênero.

240
A melancolia de gênero, como descrito por Butler (2017a), serve para expli­
car as maneiras pelas quais o gênero é elaborado, a partir de certos proce­
dimentos psíquicos de poder que visam, a todo custo, a submeter o corpo a
certas regulações compulsórias. Essas regulações são produzidas por meio
dos campos de inteligibilidade vigentes, que tentam induzir o sujeito a se
constituir nos moldes fornecidos pelo gênero e pela sexualidade em deter­
minado tempo histórico e em determinada cultura. Em Problemas de Gênero,
as sexualidades e os gêneros, para Butler (2017b), são produzidos melanco-
licamente, devido à impossibilidade de trabalho de luto diante de formas
de identificação e escolhas de objeto que são colocadas fora dos campos de
possibilidade, desde o princípio, a partir de uma matriz cisheteronormativa.
Os efeitos da melancolia de gênero podem ser uma extraordinária dimi­
nuição do sentimento de si, por meio da instauração de um supereu78 severo
e punitivo que faz o sujeito se sentir incapaz, e que se expressa em recrimina-
ções e ofensas à própria pessoa, podendo chegara uma delirante expectativa
de punição em razão de ele se sentir “sujo”, “doente”, “pecador”. Ela também
pode produzir uma apatia e desinteresse pela vida, o que leva o sujeito a um
empobrecimento da excitação por tudo aquilo que o cerca, um cansaço ex­
tremo que gera uma fraqueza e perda da vitalidade. Em casos mais extremos,
ela pode levar ao desinteresse pelo mundo exterior, à perda da capacidade
de amar, à inibição de toda atividade libidinal, à diminuição da autoestima e
até à morte por iniciativa própria (Butler, 2004).
Sobre a negação das possibilidades de certos apegos e identificações
na constituição do psiquismo, uma outra pista possível é o conceito de ho-
mofobia internalizada, entendido como o ódio, o medo, a repulsa da própria
sexualidade (ANTUNES, 2017). Dentre os efeitos da homofobia internalizada,
podemos encontrar hostilidade, repúdio e discriminação do sujeito contra si
mesmo. Esses repúdios, discriminações e hostilidades nem sempre se dão em
um campo consciente de percepção, mas, na maior parte das vezes, são de uma
dimensão inconsciente, aparecendo em certos atos falhos, lapsos e acting outs.
Na homofobia internalizada, o sujeito nega afetos, desejos e experiências
em prol de um “gosto” (não curto afeminados, por exemplo) e apreciação esté­
tica de corpos que supostamente esta ri am em um vácuo livre de assimetrias,
dominações e violências - as quais, muitas vezes, se traduzem em discursos
e práticas como racismo, misoginia e xenofobia. Como apontam Cerqueira

78 A instância psíquica responsável pela “voz” ou “agência” interna de controle moral sobre o sujeito.

241
e Ramos (2020) em seu estudo recente, no contexto de homens que fazem
sexo com homens, a ideia de que “não curto afeminado” está mais atrelada a
um fator de antiafeminação, eefeito da homofobia social e internalizada, do
que, de fato, ao “gosto”. Podemos ainda ponderar sobre como esse repúdio
reflete também uma misoginia fundada na noção cie que, na oposição binária
masculino e feminino, o segundo é sempre entendido como subordinado hie­
rarquicamente ao primeiro, como argumentado por Jacques Derrida (1988).
Outro exemplo dos efeitos possíveis dessa internalização é solidão, ideação,
uso e abuso de drogas e até mesmo a tentativa de suicídio (ANTUNES, 2017).
Por mais que o conceito seja comumente como homofobia internalizada, hoje
já temos autores que propõem pensarmos em LGBTTQIA+fobia internalizada
(KULICK, 2008), na qual o sujeito pode rejeitar agressivamente qualquertraço
de outro gênero como “feminino” ou “masculino” (BUTLER, 2017b).
Outro possível efeito psíquico do armário é quando o sujeito já fez, em
sua vida, as negociações com o armário, de forma que o armário não é mais
um problema central (pois ele vai ser, sempre, um problema), mas ele reen­
contra em suas relações uma nova interpelação que o faz ter de, no melhor
dos casos, renegociar a centralidade do armário em sua vida, ou, no pior dos
casos, recolocá-lo lá dentro. Essa cena põe em jogo as relações de apego obs­
tinado existentes no dispositivo do armário e explica, em parte, tanto o desejo
de permanecer no armário quanto o desejo de não voltar para ele. Um dos
sujeitos em questão pode não se reconhecer fora dos campos disponíveis da
cisheteronormatividade. Já o outro sujeito, a partir de um processo de elabo­
ração psíquica, seja por qual meio for, pode reconhecer a ação de uma matriz
cisheteronormativa compulsoriamente imposta às relações e, por meio disso,
encontrar outros termos possíveis que funcionam mais adequadamente para
si. Ou seja, o armário é sempre uma estrutura relacionai, pois está sempre em
relação ao outro sujeito que se está no armário. O outro pode te “colocar” no
armário, afinal, mesmo que, numa maior parte da sua vida, você esteja fora
dele, dando ensejo a uma relação que pode ser psiquicamente prejudicial para
o sujeito, em diversos âmbitos.
Um outro elemento que pode se somar a nossa análise sobre os efeitos psí­
quicos do armário parece estar ligado diretamente ao conceito de estressores
de minoria. Por mais que tal estudo fale de uma pesquisa apenas com pessoas
lésbicas, gays e bissexuais, e de como esses grupos tem três vezes mais chance
de adquirir transtornos mentais, tais como ansiedade, depressão e estresse,
que outros sujeitos (MEYER, 1995). Acreditamos que é possível fazermos um
deslocamento para pensarmos como a maior parte das corporeidades e se-

242
xualidades não cisgêneras e não heterossexuais perpassam por regimes muito
semelhantes. Essa maior propensão está ligada de forma direta aos efeitos
que a cisheteronorma produz psiquicamente nos sujeitos, questões que são
comuns na experiência clínica com a população LGBTTQIA+, a exemplo dos
relatos a seguir, de Antônio, Joana e Pedro79:

Eu morei durante boa parte da minha vida no interior. Quando passei no


vestibular e fui para uma graduação na capital, parece que minha vida
mudou completamente. Encontrei um novo mundo. No interior eu vivia
com a minha família e era cercado de falas discriminatórias e violentas. Eu
praticamente tinha de me esconder de tudo. Chegando na capital eu saí
do armário. Vi tantas pessoas diferentes... Na universidade conheci várias
pessoas LGBTTQIA+ e isso tudo fez com que eu fosse me liberando tanto
que até comecei a namorar. Com a pandemia (COVID-19) eu tive de voltar
para o interior por não ter condições de me manter na capital. Chegando
devolta em casa, começo a perceber que eu tenho de me policiar o tempo
todo. Tenho de cuidar o que visto, como ando, como me alimento, ao que
assisto. Tenho medo de que minha família descubra. Eu tenho medo de con­
tar que sou gay pois tenho medo de perder o amor da minha mãe (Antônio).

Durante a minha adolescência eu tive de sair do armário, meio que forçada,


como “gay”. Eu era muito afeminada e minha família ficava dizendo isso o
tempo todo, como se eu tivesse que sair para os satisfazer. Mas gay nunca
foi um lugar que fez sentido para mim. Eu sempre me senti mulher, eu
sempre fui mulher. Quando tive condições de ir morar sozinha, comecei
a entender que não era gay, mas uma mulher trans. Aí que veio a solução
pra mim e o problema para eles: tive que sair do armário de novo, agora
como mulher (Joana).

Eu tenho dificuldade de achar caras para namorar. Hoje em dia todo mun­
do faz a unha e, quando fala, “parece que vai sair uma flor da boca” [em
razão da voz afeminada]. Fica difícil levar esses caras para apresentar para
a família, nél? (Pedro). -

Os relatos acima descrevem as diversas maneiras pelas quais o armário


pode se apresentar na vida dos sujeitos e, assim como Terry e Pat, em A secret
love (2020), tiveram de se posicionar diante dos dilemas que o armário coloca,
Antônio, Joana e Pedro são interpelados, assujeitados e, nem sempre, con­
seguem encontrar estratégias para resistir às condições que o armário coloca
para cada um. Em vista disso, considerando as elaborações de Sedgwick (2008),
bem como a pletora intricada e contraditória de suas possíveis conseqüências

79 Nomes fictícios.

243
psíquicas apresentadas, a figura do armário evidencia algumas possibilidades
de ser expandida e complexificada. De modo a ser compreendida não mais
como uma força externa de opressão, o armário passará a ser entendido como
parte central de um complexo de relações de poder, que, na gramática de Butler
(2017a), de forma paradoxal e ambivalente, fomeéem tanto os termos dados
aos sujeitos para se formarem quanto sustentam as condições de sua ação.

Apegos apaixonados à sujeição


O contexto do qual emerge/A vida psíquica do poder (2017a) é complexo
e busca responder a questionamentos de diferentes frentes;. Sg, por um lado,
há inquietações imanentes da tradição foucaultiana relacionadas às motiva­
ções e ao desejo do sujeito de sujeitar-se às normas disciplinares, há também
inquietações levantadas a partir das interlocuções com outras autoras femi­
nistas da Teoria Crítica, principalmente Nancy Fraser e Seyla Benhabib, em
Debates Feministas (1995/2018), a respeito da possibilidade de desenredar
crítica, agência e resistência do poder que constitui o próprio sujeito. Ou, como
colocado de forma precisa por Fraser (2018), o que motiva o sujeito a continuar
apegado às normas reguladoras que o colocam em posições desvantajosas e
injustas, “mesmo depois de serem racionalmente desmistificadas?” (FRASER,
2018, p. 239). Para tentar respondera tais questionamentos, Butler, com base
em Foucault, pondera que

Estamos acostumados a pensar no poder como algo que pressiona o su­


jeito de fora, que subordina, submete e relega a uma ordem inferior [...] se
entendermos o poder também como algo que forma o sujeito, que deter­
mina a própria condição de sua existência e a trajetória de seu desejo, o
poder não é apenas aquilo a que nos opomos, mas também, e de modo
bem marcado, aquilo de que dependemos para existir e que abrigamos e
preservamos nos seres que somos (BUTLER, 2017a, p. 10).

Assumindo os limites da análise da sujeição feita por Foucault, ao expli­


car a motivação por trás da sujeição - limites igualmente significativos para
a expansão do relato do armário -, Butler precisa articular autores tão dife­
rentes como Flegel, Freud e Althusser para analisar como a sujeição ao poder
funciona no nível intrapsíquico, assim como o que motiva o sujeito a se apegar
obstinadamente e, até mesmo, a desejara própria sujeição.
O argumento central de Butler, que parte de sua interpretação singular
da dialética senhor-escravo hegeliana, é que “[...] o sujeito prefere se apegar
à dor do que não se apegar de modo nenhum” (BUTLER, 2017a, p. 68). Isso

244
significa que a sobrevivência, tanto discursiva quanto material do sujeito, de­
pende fundamentalmente de seu reconhecimento enquanto tal - adiantando
elaboração posterior que a autora irá realizar, sobre vida vivível e passível de
luto (2006/2015). Se os únicos modos de reconhecimento e sujeição oferecidos
são subordinantes, o sujeito prefere apegar-se a tais termos do que não se
apegar a termo algum, segundo Butler (2017a).
O caminho percorrido pela autora aponta que o poder, inicialmente en­
tendido como externo, “assume uma forma psíquica que constitui a identidade
do sujeito” (Butler, 2017a, p. 11), tornando-se essencial não apenas na sua
formação, mas também para sua continuidade e sobrevivência. Se essa figura
paradoxal encena a formação do sujeito, sua sujeição ao poder, ela deve ainda
ser entendida como uma narrativa pedagógica, na medida em que não há, no
sentido estrito, sujeito antes da sujeição. Ao nos referirmos àquilo que ainda
não está ou é e que assume sempre uma incerteza ontológica, “parece que
entramos em um dilema tropológico”, visto que “não podemos pressupor um
sujeito capaz de internalização sem que a formação do sujeito seja explicada.
A figura a que nos referimos ainda não adquiriu existência” (Ibid., p. 12).
Há uma promessa de continuidade de existência daquele que se subordi­
na, o que acaba por implicar uma espécie de compulsão em reiterar as normas
regulatórias: aquele que não se subordina coloca sua existência em risco. De
acordo com Butler (2017a), há um vínculo entre relato de sujeição que subor­
dina e forma o sujeito simultaneamente à noção psicanalítica de que “nenhum
sujeito surge sem um apego apaixonado àqueles de quem dependente funda­
mentalmente” (Ibid., p. 15). Retomando a figura da criança, a autora faz uma
consideração acerca de seu amor àqueles dos quais ela depende, salientando
que, “para a criança persistir, no sentido psíquico e social, é preciso haver a
dependência e a formação do apego: não existe a possibilidade de não amar
quando o amor está vinculado aos requisitos da vida” (Ibid., p. 16). É, por­
tanto, a partir da exploração e do abuso de uma vulnerabilidade primária ao
apego, mesmo que à dor, que o poder e os regimes regulatórios são capazes
de operar dessa maneira.
Se pensarmos no armário como uma das formas que o poder pode tomar,
devemos considerá-lo, então, como uma estrutura, dentre outras possíveis,
que precede o sujeito e fornece certos termos que restringem a sujeição por
meio do abuso de uma vulnerabilidade. Seria um erro pensar o armário como
uma estrutura que se coloca ao sujeito depois de sua formação, como pura
exterioridade. Como ilustra o personagem de A fera na Selva (1986), desde
antes da formação do sujeito, de sua própria compreensão e possibilidade de

245
narrar a si mesmo, o armário já se faz presente, como fantasmagoria daquilo
que, por vezes, não pode nem ao menos ser elaborado.
Nesse sentido, Butler apresenta um relato de sujeição que nos é mais
atenuado e produtivo em Relatar a si mesmo (2017c): o sujeito não é apenas
um efeito do poder, mas também não pode se constituir sem se relacionar
a ele e seus termos. Isso possibilita pensarmos, mais adiante, nos aspectos
não determinantes e alternativos ao armário. Por se tratar de um termo para
a formação do sujeito, sem ao menos se relacionar com o armário, o sujeito
não pode se constituir -o que não querdizer de modo algum que não há cor-
poreidade para fora dos termos do poder/armário ou que não há legibilidade
em nenhuma cena interpelativa ou lugar algum, mas que ela possivelmente
não é legível pelo regime epistemológico cisheterossexista vigente.
Butler defende que “esse processo de internalização [da norma] cria a dis­
tinção entre a vida interior e exterior” (BUTLER, 2017a, p. 28), não se tratando,
então, de uma internalização da norma em uma vida psíquica já dada, mas
que esse processo produz a internalidade - a própria topografia psíquica seria
um efeito da volta do poder sobre si. Assim sendo, não se trata apenas das
negociações intersubjetivas que são moduladas e estruturadas pelo armário,
mas, se ele faz parte da produção da internalidade, também estrutura a própria
autocompreensão do sujeito, afetando como ele pode compreender e relatar
a si mesmo. Por conseguinte, mesmo em contextos interpelativos nos quais é
encorajada uma autodeterminação do sujeito, essa autodeterminação já vai
estar em relação e, em maior ou menor medida, possivelmente subordinada
ao armário.
Os documentários americanos The Celluloid Closet (1995) e Disclosure
(2020) apontam algumas estratégias usadas para pensarmos como represen­
tações afetam e tentam delimitar como sujeitos podem se compreender ao
propor análises das maneiras pelas quais Hollywood tramou e sedimentou a
representação de pessoas não cisgêneras e não heterossexuais, bem como seu
impacto nas histórias e vidas desses sujeitos na cultura americana. Um dos
elementos que as narrativas expõem e denunciam ao expectadoré justamente
o lugar pejorativo e de sátira que tais corporeidades tradicionalmente ocupam
na mídia. Os documentários mostram como, historicamente, por meio de reite­
rações, vão se construindo e se cristalizando imagens de corpos não cisgêneros
e não heterossexuais como corpos que só poderiam ser representados para o
deboche, para a sátira ou para a morte (seja a morte do próprio sujeito, seja o
sujeito como disseminador da morte, pelos estigmas). Essa circunscrição mi-
diática do que pode significartoda aquela corporeidade que não se apresenta

246
de acordo com os requisitos da cisheteronormatividade branca fornece uma
ilustração descritiva dos enquadramentos epistemológicos que delimitam os
termos do reconhecimento. Esses termos do reconhecimento têm como efeito
psíquico reforçar a narrativa de que talvez seja mais seguro estar no armário
do que fora dele, uma vez que sair dele significa ser somente motivo de riso,
de sátira ou ainda a morte (BUTLER, 2015).
Em vista disso, surge o questionamento de como podemos elaborar uma
noção de agência e resistência, para esse sujeito, sem desconsiderar que sua
ação é condicionada pela sua sujeição ao poder. Ou seja, de que modos o sujei­
to poderia estabelecer relações menos circunscritas e limitadas pela estrutura
do armário? Para responder a esse questionamento, devemos ter em conta a
distinção entre o poder que forma o sujeito e o poder que é exercido por ele
e que restabelece as relações de poder. Essa segunda forma, quer dizer, a exi­
gência de renovação do poder por meio dos indivíduos que ele regula, assinala
a descontinuidade e vulnerabilidade momentânea do poder (BUTLER, 2017a).
Compreendido dessa maneira, o sujeito acaba por ocupar um lugar de
“ambigüidade insolúvel”, posto que ele emerge tanto a partir de sua relação
com os termos oferecidos pelo poder que o precede “quanto como condição de
possibilidade de uma forma de ação radicalmente condicionada". A agência e
resistência são possíveis porque, embora o podercondicione a ação do sujeito,
isso não significa que esse condicionamento seja totalizante, possibilitando
reiterações do poder - ou contra ele - com efeitos inesperados. Como nem
sempre os propósitos da ação são os mesmos do poder, há lacunas nessa
operação que possibilitam resistência. A necessidade do poder de ser reiterado
para persistir é sua vulnerabilidade, pois essa reiteração não é mecânica ou
algorítmica, podendo falhar, ser infeliz, tomar diferentes direções e formas,
causar efeitos que não foram intencionados. Todavia, Butler (2017a) é enfáti­
ca: “exceder não é escapar, e o sujeito excede precisamente aquilo a que está
vinculado” (BUTLER, 2017, p. 26).
Nesse cenário, por mais que o sujeito reflita sobre seu relato de si, sobre
quem ele é, a reflexão encontra seus limites quando seu relato não pertence
mais ao si mesmo, mas a sua formação. Não é possível chegar a uma auto-
transparência do si porque há certas opacidades que são constitutivas: tanto
não há como o sujeito refletir sobre o todo do poder simultaneamente, dan­
do uma volta para trás de si mesmo, como seu relato também possui uma
opacidade constituída pelo atravessamento de suas relações com o Outro
(BUTLER, 2017c).

247
No entanto, observando que o poder é sustentado por meio das reite­
rações da norma, as quais são feitas pelas ações dos sujeitos, essas ações
frequentemente superam os propósitos do poder, seja de forma deliberada
ou não, e seus efeitos podem ser inesperados ou até certa medida calculados.
Dessa forma, o sujeito pode rearticular, redireciona^e recontextualizar o armá­
rio buscando negociar maneiras mais adequadas para se relacionar aos seus
termos, seja refazendo-os, contestando-os, parodiando-os, perturbando e cru­
zando linhas da cisheteronormatividade antes consideradas intransponíveis.
Devemos ainda levar em conta que, na facticidade da vida, outras cenas
interpelativas formadoras podem se apresentar aos sujeitos, cenas menos
violentas, menos autoritárias, menos normatizantes, mais abertas e mais de­
mocráticas. Sem diminuir os relatos de violência sofrida pelas comunidades
LGBTTQIA+, devemos ter em mente a quantidade de sujeitos que, dadas cer­
tas contingências, estabelecem relações afirmativas. Nem toda família vai
promover um ambiente em que a cisheteronormatividade possui uma força
compulsória, assim como há famílias que já possuem outros membros que
pavimentaram o caminho para uma melhor inclusão daqueles que não se
identificam com esses termos.
Ademais, a família, embora constitua uma presença forte para muitas
pessoas, não é a mais central ou única provedora de cenas interpelativas para
os sujeitos. Por vezes, a introdução de outros ambientes, como o ingresso no
sistema educacional, ou até mesmo no mercado de trabalho - ainda que nem
sempre e nem em todos lugares -, fornecem cenas alternativas que promovem
a possibilidade de os sujeitos compreenderem-se em termos mais elásticos e
flexíveis. A diversidade de ambientes e cenas interpelativas e, por conseguin­
te, a variedade de termos para a sujeição e o reconhecimento como sujeito
parecem essenciais - como evidenciam os casos clínicos mencionados, ainda
que não sejam a única possibilidade -, para que possamos rearticular os ter­
mos do poder. Além disso, parecem essenciais para que o sujeito estabeleça
relações com o poder mais adequadas de acordo com suas identificações e
seus desejos, contraproduzindo o armário e utilizando seus termos para obter
os mais diversos resultados.

Um armário sem fim?


Ao longo desta investigação, tentamos evidenciar as contingências do
armário e enfatizamos que as negociações do sujeito diante dele devem sem­
pre ser abordadas de maneira hipersingular. O armário é algo que pode ser

248
manejado de uma forma menos sofrida, mas nunca superado/elaborado to­
talmente. Enquanto os arranjos políticos se articularem a favor de um regime
cisheterossexista compulsório, haverá armário. Nesse contexto, respeitar o
tempo do outro é essencial para não tornar a saída do armário algo violento
e traumático, pois, para o sujeito em questão, o custo a ser pago pela “saída”
pode ser muito alto, variando desde a perda dos termos de sua legibilidade
discursiva e social até a própria vida. Assim, perceber as contingências do
dispositivo do armário é levar em conta que, a cada encontro com o Outro, o
sujeito vai estar diante de uma nova possibilidade de reinserção no armário.
Um fator relevante nesta discussão é a inegável importância dos movimen­
tos LGBTTQIA+, que, por mais que produzam uma ambivalência política por
meio tanto da produção de novas matrizes de inteligibilidade quanto da pro­
dução de aprisionamentos identitários, desempenham um importante papel
na conquista e reivindicação de direitos e reconhecimento. Ressaltamos que
a saída do armário pode ser uma forma de tornar a vida mais vivível e menos
aprisionada aos termos do poder. Porém, acreditamos que a saída do armário
deve ser permeada pela temporalidade e pelo desejo singular do sujeito em
questão, sendo a sua segurança biopsicossocial um critério de decisão.
Ainda, quando propomos uma expansão do relato do armário, não descon­
sideramos de modo algum que a própria “saída” pode ser instrumentalizada
em nome de uma normatividade específica, ou seja, a “saída” não é encarada
acriticamente e como único modelo emancipador e libertador ou única traje­
tória possível de vida. Entretanto, não podemos ignorar como essa estrutura,
quando não elaborada - no sentido político, ético e psíquico - compromete
e restringe de forma aguda o “menu” de possibilidades da gramática da vida
e a participação dos sujeitos nas operações e decisões sobre como ele deve
ou pode desejar viver.
Finalmente, cada vez mais se torna evidente o quanto precisamos alargar
os termos do reconhecimento, criando novas possibilidades e matrizes de inte­
ligibilidade para o sujeito se reconhecer de uma maneira menos sofrida. Esse
alargamento dos enquadramentos epistemológicos contemporâneos daquilo
que conta ou não como humano, ou do que conta ou não como uma vida que
deve ser preservada, precisa ser elaborado de modo a estar em constante
expansão (BUTLER, 2006, 2020). Isso não significa que sabemos que formas
essas sujeições podem ou devem tomar, mas é certo que parece propício e
promissor pensarmos em um caráter aberto à experiência dos sujeitos, mul­
tiplicando suas possibilidades de experimentações de diferentes trajetórias
do desejo. Tais formas de sujeições devem estar sempre sujeitas a críticas e

249
reelaborações, admitindo-se que esses processos podem assumir diferentes
formas de luta e conflito social, afirmativos ou transformadores, radiciais e
revolucionários ou reformatistas, por vias institucionais ou políticas de rua,
evadindo ou confrontando o poder. Afinal, estamos entrando/saindo do ar­
mário para quem? A que custos? V

250
REFERÊNCIAS

A SECRET LOVE. Direção de Chris Bolan. EUA: Netflix, 2020. Documentário (lh23min). MURPHY,
R.; MASON, B.; FOGEL, A. L. (prods.). A Secret Love. 2020.
ANTUNES, P. S. Homofobia internalizada: o preconceito do homossexual contra si mesmo.
São Paulo: Annablume, 2017.
ANTUNES, P. S. Homens homossexuais, envelhecimento e homofobia internalizada. Kairós, v.
20, n.l, p. 311-335, 2017.
FRASER, N. Pragmatismo, feminismo e a virada lingüística. In: BENHABIB, S.; BUTLER, J.; COR­
NELL, D.; FRASER, N. Debates Feministas: um intercâmbio filosófico. São Paulo: UNESP, 2018.
p. 233-253.
BUTLER, J. Excitable speech: a politics of the performative. London: Routledge, 1997.
BUTLER, J. Precarious Life: the powers of morning and violence. London: Verso, 2006.
BUTLER, J. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora, 2017a.
BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Ci­
vilização Brasileira, 2017b.
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017c.
DISCLOSURE. Direção: Sam Feder. Documentário (100 minutos). EUA: Field of Vision, Bow and
Arrow Entertainment. Level Forward. Disclosure. 2020.
KUYPER, L.; FOKKEMA, T. Loneliness Among Older Lesbian, Gay, and Bisexual Adults: The Role
of Minority Stress. Archives of Sexual Behavior, v. 39, n. 5, p. 264-275, 2010.
MEYER, I. H. Minority stress and mental health in gay men. Journal of Health and Social Beha­
vior, v. 36, n. 1, p. 38-56,1995.
RAMOS, M. M; CERQUEIRA-SANTOS, E. Effeminacy, hyper-masculinity and hierarchy. Arquivos
Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 72, n. 1, p. 159-72, apr. 2020.
SEDGWICK, E. K. Epistemology of the Closet. Berkeley; Los Angeles: University of California
Press, 2008.
STF. Notícias STF: STF enquadra homofobia etransfobia como crimes de racismo ao reconhe­
cer omissão legislativa. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=414010>. Acesso em 5 de setembro de 2020.
THE CELLULOID CLOSET. Direção de Rob Epstein, Jeffrey Friedman. Documentário (107 minu­
tos). Los Angeles: Sony Pictures Classics. The celluloid closet 1995.

251
SOBRE OS AUTORES
Anatice de Lima Patombini
Mestre em Filosofia pela UFRGS e Doutora em Saúde Coletiva pela UERJ, é
docente do Instituto de Psicologia da UFRGS, vinculada ao Departamento
de Psicanálise e Psicopatologia e ao PPG em Psicologia Social e Institucio­
nal. Coordenadora do Programa de Residência em S^úde Mental Coletiva e
do Projeto de Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública -ATnaRede,
ambos vinculados ao Instituto de Psicologia, atua nas áreas de Saúde Men­
tal Coletiva, Psicanálise, Acompanhamento Terapêutico e Gestão Autônoma
da Medicação.

Andrea Gabriela Ferrari


Psicóloga e Psicanalista. Possui Doutorado em Psicologia do Desenvolvi­
mento (UFRGS). É Professora associada do Departamento de Psicanálise
e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Orientadora de Mestrado no PPG Psicanálise: Clínica
e Cultura (UFRGS). Cocoordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise
e Infâncias (NEPIs), um dos eixos do NEPEIA: Núcleo de Ensino Pesquisa
e Extensão e Infância e Adolescência. Tem trabalhado com Psicologia e
Psicanálise, atuando principalmente nas seguintes áreas temáticas: psica­
nálise com bebês, educação infantil (berçário/creche), clínica da criança,
parentalidades e entrelaçamentos entre psicanálise e gênero.

Amara Moira
É travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e
autora do livro autobiográfico E se eu fosse puta (HOO Editora, 2016); do
capítulo “Destino amargo”, publicado na obra Vidas Trans - A coragem de
existir (Astral Cultural, 2017); e do monólogo em pajubá “Neca”, incluído na
antologia LGBTQIA+ A Resistência dos Vagalumes (Nós, 2019). Além disso,
tem publicado vários ensaios de crítica literária feminista e sobre a presença
LGBTQIA+ (sobretudo T) na literatura brasileira.

Beatriz Pagtiarini Bagagli


Mestra em lingüística pela Unicamp e atualmente doutoranda em lingüística
pela mesma universidade. Pesquisa questões relacionadas às identida­
des de gênero de pessoas transgêneras na análise do discurso. Integra o
grupo de pesquisa Mulheres em Discurso, liderado pela professora Mónica
Zoppi Fontana. Escreve para o transfeminismo.com. transadvocate Brasil e
a plataforma medium. Aborda as relações entre movimento transgênero e
feminismo, incluindo as correntes feministas radicais e transfeministas, e
as formas como as corporeidades são pensadas em contextos de cuidado
com a saúde e pelos movimentos a favor da despatologização das identi­
dades trans.

254
Céu Cavalcanti
Psicóloga clínica. Mestre em psicologia pela Universidade Federal de Per­
nambuco. Doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (Bolsista CAPES). Integrante da articulação nacional de psicólogues
trans (ANP Trans).

Daniel Kveller
Psicólogo, especialista em Psicologia em Saúde pela Escola de Saúde Pú­
blica do Rio Grande do Sul, mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura e dou­
torando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. É membro do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e
Relações de Gênero da mesma universidade (NUPSEX/UFRGS). Trabalha e
pesquisa na interface entre Psicologia Social, Psicanálise e Estudos Queer.

Eduardo Leal Cunha


Psicanalista. Doutorem Saúde Coletiva (1MS/UERJ). Professor da Universi­
dade Federal de Sergipe. Pesquisador Associado do Centre de Recherches
Psychanalyse Médecine etSociété da Université de Paris. Membro da Rede
Interamericana de Pesquisas em Psicanálise e Política e da Sociedade In­
ternacional de Psicanálise e Filosofia.

Emilly Mel Fernandes


Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde também cursou a gra­
duação de Psicologia. Faz parte da associação Atransparência/RN, ligada à
luta pela cidadania das pessoas trans potiguares. Seus temas de pesquisa
estão voltados à fenomenologia, existencialismo, gênero, sexualidade,
escrita e autobiografia.

Fernanda Isabel Dornelles Hoff


Psicóloga e Psicanalista. Dedica-se à clínica com crianças, adolescentes
e adultos. É membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica,
coordenadora de seminários e supervisora da formação em Psicanálise.
Foi diretora administrativa dessa instituição de 2002 a 2004 e diretora da
clínica psicanalítica de 2010 a 2012, tendo coordenado os estágios de psico­
logia clínica e do básico de 2016 a 2018. É autora de artigos, dedicando-se
especialmente aos fundamentos da construção subjetiva e constituição
psíquica, estudo amparado na metapsicologia freudiana. Sendo membro
da Sociedade de Psicologia do RS, coordenou os comitês de Psicanálise com
crianças e de observação de bebês na cidade de São Leopoldo. Atua como
conselheira do Conselho Municipal de Saúde da cidade de São Leopoldo,
sendo representante da Sociedade de Psicologia do RS. Coordena o grupo

255
de estudos A Construção do Simbolismo. Fundadora do Grupo Rede de
Conversas Lúdicas juntamente com Mayra Redin, grupo que integra profis­
sionais da educação e da saúde em torno dos temas da infância e do brincar.

Gerson Smiech Pinho \


Psicólogo e psicanalista, Mestre e Doutor em Psicologia Social e Institu­
cional pela UFRGS, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre,
membro da Equipe do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e professor do
Centro de Estudos Paulo César d’Ávila Brandão. Tem como principal área
de atuação e interesse a psicanálise, infância, adolescência, parentalidade
e gênero.

Henrique Caetano Nardi


Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (1990), Residência em Medicina Social (1993), Mestrado em Socio­
logia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996), Doutorado
em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002) e Pós
Doutorado pela EHESS de Paris (2008). Atualmente é Professor Titular da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É Coordenador do Núcleo de
Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (NUPSEX) e do Centro de
Referência em Direitos Humanos: Relações de Gênero, Diversidade Sexual
e Raça (CRDH) do Instituto de Psicologia da UFRGS. Pesquisador associado
do Instituí de Recherche Interdisciplinaire sur les EnjeuxSociaux (1RIS-EHES-
S-França) e da Chaire de Recherche sur 1’Homophobie (UQAM-Canadá). Tem
experiência na área de Psicologia, Sociologia e Saúde Coletiva, com ênfase
em Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: sub­
jetividade, sexualidade, diversidade sexual, relações de gênero, políticas
públicas e ética. Diretor do Instituto de Psicologia da UFRGS (2014-2018).
Desde 2017 é editor da Revista Polis e Psique.

Jaqueline Gomes de Jesus


Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Dou­
tora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universida­
de de Brasília (UnB), com Pós-Doutorado pela Escola Superior de Ciências
Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Pesquisadora-líder do
ODARA - Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Di­
versidade (CNPq).

256
José Damico
Possui graduação em Licenciatura em Educação Física pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1989), mestrado em Educação pela Univer­
sidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e em Doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011) em Cotutela com a
Universidade de Paris 8. Atualmente é Professor Associado 1 da Universida­
de Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de saúde mental e
psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: juventude, saúde
coletiva, relações de gênero, relações étnico-raciais e violência. Coordena a
Rede Observatório Programa Mais Médicos, financiado pelo Fundo Nacional
de Saúde. É coordenador adjunto da Rede Multicêntrica e da Coordenação
da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da UFRGS.

José Stona
Psicólogo e Psicanalista. Especialista em Problemas do Desenvolvimento
da Infância e Adolescência (Lydia Coriat). Mestre em Psicanálise: Clínica e
Cultura (UFRGS). Doutorando em Psicanálise e Cultura Contemporânea
(UFS). Coordenador do Grupo de Estudos em Psicanálise e Dissidências
Sexuais e de Gênero (UFS) e Psicanalista no Projeto Remonta (Clínica
LGBTI+). Tem como principal área de atuação e interesse a psicanálise, com
enfoque nos temas: estudos queer, estudos de gênero, transidentidades,
população LGBTTQIA+ e infâncias.

Liziane Guedes
É filha de Claudenice e Carlos. Mulher negra em diáspora ao sul do Brasil.
Atua como psicóloga clínica e é mestranda em psicologia social (UFRGS).
Integra o Coletivo Adinkra - Saúde Mental e Relações Raciais, além de ser
uma das idealizadoras da Articulação Saúde Preta RS. No mestrado, vem
pesquisando sobre infâncias de crianças negras. Na clínica, tem realizado
ações que envolvem o dispositivo do aquilombamento, enquanto fio clí-
nico-político de (re)existência.

Lucas Demingos
Doutorando em Teoria, Crítica e Comparatismo (UFRGS). Possui graduação
em Licenciatura em Língua Alemã e Literaturas de Língua Alemã (UFRGS) e
mestrado em Teoria, Crítica e Comparatismo (UFRGS). Coordena o Grupo
de Estudos Judith Butler (PPGLET/UFRGS). Tem como principais áreas de
atuação e interesse os entrecruzamentos entre teoria literária, filosofia e
política, atuando principalmente nos seguintes temas: reconhecimento,
sujeito, hermenêutica e trauma.

257
Milena da Rosa Silva
Psicóloga (UFRGS). Possui Doutorado em Psicologia (UFRGS). É
Professora Associada do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e Orientadora de Mestrado no PPG Psicanálise: Clíniça e Cultura (UFRGS).
Cocoordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs),
um dos eixos do NEPEIA: Núcleo de Ensino Pesquisa e Extensão e Infância
e Adolescência. Tem trabalhado com Psicologia e Psicanálise, atuando
principalmente nas seguintes áreas temáticas: psicanálise com bebês,
educação infantil (berçário/creche), clínica da criança, parentalidades e
entrelaçamentos entre psicanálise e gênero.

Mozer de Miranda Ramos


Doutorando e Mestre (2019) em Psicologia pela Universidade Federal de
Sergipe (UFS). Membro do Grupo de Pesquisa em Sexualidade, Saúde e
Desenvolvimento Humano (SexUS). Pesquisador da área de sexualidade
humana, com publicações sobre afeminação, desenvolvimento e psicologia
evolucionista.

Patrícia Porchat
Psicóloga, Psicanalista. Possui Doutorado em Psicologia Clínica (USP).
É Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências
da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru) e dos Programas de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da
UNESP/Bauru e em Educação Sexual (Mestrado Profissionalizante) da
UNESP/Araraquara. Pós-doutorado na Université Paris Diderot (Paris 7).
Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Saúde da População LGBT
(NUDHES), do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Sofia Favero
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde
também adquiriu título de mestra (PPGPSI). Graduada em Psicologia pela
Associação de Ensino e Cultura Faculdade Pio Décimo (SE). Integrante da
Comissão Científica (CCAT) do Ambulatório de Cuidado Integral à Saúde
da Pessoa Trans (UFS). Participa da Associação e Movimento Sergipano de
Transexuais e Travestis (AMOSERTRANS). Faz parte do Núcleo de Pesquisa
em Sexualidade e Relações de Gênero (NUPSEX) e representa o Conselho
Regional de Psicologia (RS) no Comitê Técnico de Saúde LGBT do Rio Grande
do Sul. Escritora e ativista feminista. Suas pesquisas são voltadas para
temas como gênero, sexualidade, movimentos sociais, epistemologia,
infância, diagnóstico e patologização.

258
2021 © Editora Devires
José Stona é Psicólogo e Psicanalista.
Doutorando em Psicanálise e Cultura
Contemporânea (UFS). Mestre
em Psicanálise: Clínica e Cultura
(UFRGS). Especialista em Problemas
do Desenvolvimento da Infância e
Adolescência (Lydia Coriat). Tem
como principal área de atuação e
interesse a psicanálise, com enfoque
nos temas: estudos queer, estudos
de gênero, transidentidades,
população LGBTTQIA+ e infâncias.

Você também pode gostar