Direito Ideias Praticas Instituicoes e Agentes Juridicos

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Direito: ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos

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Correção: Maiara Ferreira
Indexação: Amanda Kelly da Costa Veiga
Revisão: Os autores
Organizador: Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D598 Direito: ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos /


Organizador Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos. –
Ponta Grossa - PR: Atena, 2023.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-258-1219-9
DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.199231603

1. Direito. 2. Leis. I. Vasconcelos, Adaylson Wagner


Sousa de (Organizador). II. Título.
CDD 340
Elaborado por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
Fonte 8 franklin espaçamento simples

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Ponta Grossa – Paraná – Brasil
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dos mesmos, para qualquer finalidade que não o escopo da divulgação desta obra.
Em DIREITO: IDEIAS, PRÁTICAS, INSTITUIÇÕES E AGENTES
JURÍDICOS, coletânea de dezessete capítulos que une pesquisadores de
diversas instituições, congregamos discussões e temáticas que circundam
a grande área do Direito a partir de uma ótica que contempla as mais vastas
questões da sociedade.
Temos, no presente volume, reflexões que explicitam essas interações.
Neles estão debates que circundam direito de ir e vir, saúde, direitos
reprodutivos, crime de estupro de vulnerável, homotransfobia, racismo, justiça,
vingança privada, violência contra a mulher, drogas ilícitas, consumo pessoal,
maioridade penal, segurança pública, piso salarial da enfermagem, usucapião
urbana coletiva, função social da propriedade, unidade de conservação, filiação,
relações afetivas, relação sugar, democracia, literatura e direito.
Assim sendo, convidamos todos os leitores para exercitar diálogos com
os estudos aqui contemplados.
Tenham proveitosas leituras!
APRESENTAÇÃO

Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos


CAPÍTULO 1.............................................................................. 1
LIMITAÇÕES AO DIREITO CONSTITUCIONAL DE IR E VIR EM TEMPOS DE
PANDEMIA
Isabel de Sousa Marques
Letícia Alves de Araújo
Kelys Barbora da Silveira
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316031

CAPÍTULO 2............................................................................ 10
A SAÚDE ÚNICA COMO VALOR CONSTITUCIONAL
Roberto Santos da Silva
Maria Fernanda Tóffoli
Lucy Souza Faccioli
Patricia Gorisch
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316032

CAPÍTULO 3............................................................................ 15
RAÇA, GÊNERO E CONDIÇÃO DE CLASSE: OS DESAFIOS DO FEMINISMO
NEGRO NO ACESSO AOS DIREITOS REPRODUTIVOS
Laura Beatriz Pires
SUMÁRIO

Paula Cristina Moraes da Silva


https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316033

CAPÍTULO 4............................................................................ 31
A DESNECESSIDADE DO CONTATO FÍSICO PARA CONFIGURAÇÃO DE
AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Pedro Daniel Lopes Vieira
Bernardino Cosobeck da Costa
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316034

CAPÍTULO 5............................................................................ 41
EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA AO CRIME DE RACISMO:
DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL OU INTERPRETAÇÃO
CONFORME A CONSTITUIÇÃO?
Elisangela Maximiano
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316035

CAPÍTULO 6............................................................................56
JUSTIÇA, VINGANÇA PRIVADA E O IMAGINÁRIO POPULAR PUNITIVISTA
Bruno Gabriel Lisboa Lima
Mauro Vinícius Brito dos Santos Filho
Paulo Sérgio de Almeida Corrêa
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316036

CAPÍTULO 7............................................................................72
ESTUPRO UMA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER: MUDANÇAS DE
PENALIDADES COM A LEI 12.015/2009
Jéssyca da Silva Garcia
Luciane Santos Coelho
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316037

CAPÍTULO 8............................................................................85
POSSE DE DROGAS ILÍCITAS PARA CONSUMO PESSOAL:
DESCRIMINALIZAÇÃO OU DESPENALIZAÇÃO?
Matheus Nascimento Pinheiro de Miranda
João Victor Oliveira Brito
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316038

CAPÍTULO 9............................................................................98
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Luís César da Silva Gonçalves
https://doi.org/10.22533/at.ed.1992316039

CAPÍTULO 10......................................................................... 107


SEGURANÇA PÚBLICA: DESAFIOS DA POLICIA MILITAR EM DIAGNOSTICAR
AS CAUSAS QUE OCASIONAM A VIOLÊNCIA NO CONTEXTO SOCIEDADE
Geison Leandro Rodrigues Pereira
SUMÁRIO

https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160310

CAPÍTULO 11..........................................................................117
PISO DA ENFERMAGEM NA VISÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
Matheus Martins Sant’Anna
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160311

CAPÍTULO 12......................................................................... 129


A USUCAPIÃO URBANA COLETIVA COMO FORMA DE EFETIVAR A FUNÇÃO
SOCIAL DA PROPRIEDADE
Joseph Murta Chalhoub
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160312

CAPÍTULO 13......................................................................... 153


ANÁLISE DO TERMO DE COMPROMISSO COMO INSTRUMENTO DE
GESTÃO DE CONFLITOS EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO: O CASO DA
ESTAÇÃO ECOLÓGICA SERRA GERAL DO TOCANTINS
Juliana Almeida Calmon Vasconcelos
Ítalo Schelive Correia
Ana Carolina Sena Barradas
Rogers Ribeiro Vasconcelos
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160313
CAPÍTULO 14......................................................................... 174
CONCEITO DE FILIAÇÃO: ORIGENS E EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILIEIRO
Marília de Lourdes Lima dos Santos
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160314

CAPÍTULO 15......................................................................... 182


VÍNCULO NAS RELAÇÕES AFETIVAS NÃO REGULAMENTADAS POR LEI:
ANÁLISE COM ÊNFASE NA RELAÇÃO SUGAR
Gabriela Orlando Marin
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160315

CAPÍTULO 16.........................................................................202
ESSÊNCIA OU APARÊNCIA DE DEMOCRACIA À LUZ DA CÁTEDRA
ARISTOTÉLICA
Mário Luiz Silva
https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160316

CAPÍTULO 17.........................................................................207
DUELO DE OLHARES: O ESTRANHAMENTO AOS OLHOS DE MADEIRA SOB
AS LENTES DE TOLSTÓI E DE DOSTOIÉVSKI
SUMÁRIO

Roberta Puccini Gontijo


https://doi.org/10.22533/at.ed.19923160317

SOBRE O ORGANIZADOR........................................................ 221

ÍNDICE REMISSIVO.................................................................222
CAPÍTULO 1

LIMITAÇÕES AO DIREITO CONSTITUCIONAL DE


IR E VIR EM TEMPOS DE PANDEMIA

Data de aceite: 01/03/2023

Isabel de Sousa Marques no âmbito do direito constitucional de


Faculdade de Colinas do Tocantins S.A. cada Estado. Os direitos fundamentais
Bacharelado em Direito andam junto com a liberdade, a equidade
Colinas do Tocantins - TO e a dignidade da pessoa humana, fazendo
com que ela se desenvolva de forma digna.
Letícia Alves de Araújo
Embora a liberdade esteja elencada no art.
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A.
5º, CF/1988, é um direito fundamental não
Bacharelado em Direito
Colinas do Tocantins - TO absoluto, visto que a própria Constituição
estabelece situações em que o direito de
Kelys Barbora da Silveira ir e vir venha a ser limitado. Na pandemia
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A. gerada pelo vírus COVID-19, o direito de ir e
Colinas do Tocantins - TO vir foi delimitado, e embora assegurado pela
Carta Marga, o direito de ir e vir resultou em
uma limitação transitória.
Este Artigo será apresentado à disciplina de O presente artigo tem por objetivo analisar o
Trabalho de Conclusão de Curso. da Faculdade direito de ir e vir no contexto Constitucional
de Colinas do Tocantins – FIESC/UNIESP exigido da Carta Magna de 1988 e a situação da
como parte dos requisitos para conclusão do
Curso Bacharel em Direito, sob a orientação da pandemia do vírus COVID-19, baseando-se
prof. Kelys Barbosa da Silveira. na necessidade da suspensão dos direitos
de ir e vir. De modo que, irá analisar as
medidas de isolamento que foram instituídas
para manter as pessoas afastadas,
RESUMO: Direitos e garantias fundamentais
reduzindo dessa forma a movimentação em
são parte das cláusulas pétreas, ou
locais públicos e evitando aglomerações.
seja, são princípios absolutos e relativos
A questão analisada será se tais medidas
positivados, os quais tem por objetivo
adotadas foram o suficiente para combater
assegurar aos seres humanos elencados
a pandemia, bem como a observância de
nos moldes da Carta Magna. Direitos
um princípio se sobressair em prol do bem
fundamentais fazem referência aos direitos
comum.
dos seres humanos que são reconhecidos
PALAVRAS-CHAVE: Direito de ir e vir,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 1


Constituição Federal, Pandemia, Quarentena, COVID-19.

LIMITATIONS ON THE CONSTITUTIONAL RIGHT TO COME AND COME IN


TIMES OF PANDEMIC
ABSTRACT: Fundamental rights and guarantees are part of the stony clauses, that is, they
are positive absolute and relative principles, which aim to ensure human beings listed in
the framework of the Magna Carta. Fundamental rights refer to the rights of human beings
that are recognized under the constitutional law of each State. Fundamental rights go hand
in hand with freedom, equity and the dignity of thehuman person, making it possible for it
to develop in a dignified manner. Although freedom is listed in art. 5, CF/1988, is not an
absolute fundamental right, since the Constitution itself establishes situations in which the
right to come and go is limited. In the pandemic generated by the COVID-19 virus, the right to
come and go was delimited, and although guaranteed by Carta Marga, the right to come and
go resulted in a transitory limitation. This article aims to analyze the right to come and go in
the Constitutional context of the Magna Carta of 1988 and the situation of the COVID-19 virus
pandemic, based on the need to suspend the rights to come and go. Therefore, it will analyze
the isolation measures that were instituted to keep people away, thus reducing movement in
public places and avoiding crowds. The question analyzed will be whether such measures
adopted were enough to combat the pandemic, as well as the observance of a principle that
stands out for the common good.
KEYWORDS: Right to come and go, Federal Constitution, Pandemic, Quarantine, COVID-19.

1 | INTRODUÇÃO
A partir de dezembro de 2019, a pandemia COVID-19 comprometeu a saúde
mundial, com a aparição do vírus “Wuhan” na China, e a partir de 20 de fevereiro de 2020
foi diagnosticado o primeiro caso no Brasil.
Um dos motivos evidenciados para o contágio com rapidez foi a facilidade
de deslocamento das pessoas de um local para outro em um curto período de tempo,
facilitando que o agente infeccioso causador do COVID-19 possa ser transportado de um
local para outro, infectando demais pessoas com mais rapidez.
Ainda no ano de 2020, enquanto eram estudados tratamentos e imunizantes, o Brasil
adotava medidas de prevenção para melhor proteger os indivíduos, utilizando de medidas
como quarentena, “lockdown”, isolamento social, decretos adotados pelos governos
federal, estadual e municipal em todos os Estados da Federação Brasileira.
No Brasil, os entes federados tiveram a liberdade de decidir sobre o funcionamento
de comércio, que por muitas vezes precisaram fechar suas portas. Além disso, também era
proibido que os cidadãos transitassem em locais públicos e comércio local, onde poderia
haver aglomeração de pessoas.
Em decorrência disso, acabou ocasionando o fechamento definitivo de diversos
mercados, lojas, devido a não circulação de clientes e baixa consumação de seus produtos,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 2


fato que levou os comerciantes a decretarem falência de empresas e segmentos de
mercado.

2 | O DIREITO DE IR E VIR PERANTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


Em um primeiro momento, ao analisar o direito de ir e vir, este se enquadra no rol das
cláusulas pétreas, dessa maneira, são incluídos princípios positivos absolutos e relativos,
que possuem como finalidade assegurar a condição individual da pessoa humana, no que
tange sobre seus direitos, e que estão consagrados na Constituição Federal Brasileira de
1988.
Direitos fundamentais e/ou Liberdades Públicas referem-se àqueles direitos do
ser humano que são reconhecidos no âmbito do direito constitucional positivo de um
determinado Estado. Os direitos fundamentais estão alicerçados na liberdade, na equidade
e na dignidade da pessoa humana e, como tal, permitem que ela se desenvolva e viva de
forma livre e digna.
O direito de ir e vir no Brasil é um direito fundamental, enraizado no art. 5º, inciso
XV, da Constituição Federal de 1988 que dispõe: “e livre a locomoção no território nacional
em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou
dele sair com seus bens;” (BRASIL. Constituição Federal. 1988. Art. 5º, XV)
No entanto, esse direito fundamental não é absoluto, pois a própria Constituição
prevê situações em que o direito pode ser limitado.
Então, devido à pandemia, observou-se que aqui no Brasil algumas regras foram
editadas, limitando o direito de ir e vir. Na pandemia gerada pela COVID-19, o direito de
acesso é limitado, ou seja, embora a Constituição Federal de 1988 garanta liberdade total,
esse direito pode ser analisado sob outras óticas de proteção igualitária e, assim, pode
levar a restrições pontuais/temporárias.

3 | DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

a) Conceito
Os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos reconhecidos na constituição
escrita de um determinado país (caráter nacional)
Os direitos fundamentais são baseados na liberdade, igualdade e dignidade da
pessoa humana e, portanto, permitem que a pessoa se desenvolva livremente e com
dignidade.
Vale a pena notar que os direitos fundamentais diferem dos direitos humanos, isto
porque os direitos humanos buscam validade universal, ou seja, são inerentes a cada
indivíduo e a todos os povos em todos os tempos.
Reconhecida pelo Direito Internacional por tratado e, portanto, válida

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 3


independentemente de sua positivação em determinada ordem constitucional (caráter
supranacional).
Embora haja diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos, é possível
notar que essas duas categorias não são incompatíveis, mas sim complementares.

b) Evolução dos Direitos Fundamentais


A linha do tempo dos Direitos Fundamentas são uma criação de m contexto-histórico
composto por várias gerações de direito em evolução da sociedade.
Desta forma, temos:
i. A primeira geração
Chamada também de primeira dimensão, foi inspirada nas doutrinas iluministas
e jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, e pode ser classificada como os Direitos da
Liberdade, liberdades estas que podem ser especificadas como: religiosas, políticas, direito
à vida, direito à segurança, direito à propriedade, direito a igualdade formal, e liberdades
de expressão coletiva. Foram estes os primeiros direitos a constarem como instrumento
normativo constitucional. Os diretos a liberdade possuem como titular o indivíduo,
caracterizam-se como atributos pessoais e ostentam uma subjetividade que é seu traço
mais marcante, sendo, desta forma, os direitos de resistência ou de oposição perante o
Estado, em outras palavras, limitam a ação do Estado.
ii. A segunda geração
Também chamada de segunda dimensão, esta se trata dos Direitos da Igualdade, no
qual estão a proteção do trabalho contra o desemprego, direito à educação para combater
o analfabetismo, direito à saúde, cultura etc. Na segunda geração, que dominou o século
XX, são encontrados os direitos sociais, culturais, econômicos e os direitos coletivos.
São direitos objetivos, visto que conduzem os indivíduos de baixa renda à ascender aos
conteúdos dos direitos através de mecanismos e intervenção do Estado. Pedem a igualdade
material, através da intervenção positiva do Estado, para que possa ser concretizado. São
vinculados à “liberdade positiva”, exigindo que o Estado se posicione de forma positiva,
visando a busca pelo bem-estar social.
iii. A terceira geração
A terceira geração ou terceira dimensão, desenvolvidos o século XX, são os Direitos
de Fraternidade, no qual podem ser listados os direitos a um meio ambiente equilibrado,
o direito à qualidade de vida, o direito ao progresso, etc. Essa dimensão é caracterizada
pelo seu alto teor de humanismo e universalidade, pois não eram destinados somente a
proteger os interesses do indivíduo, de um grupo ou momento, mas refletiam sobre temas
referentes ao desenvolvimento, À paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio
comum da humanidade.
iv. A quarta geração
Chamada de quarta dimensão, com surgimento na primeira década do século XXI,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 4


se trata dos Direitos de Responsabilidade, tais como promoção e manutenção da paz,
da democracia, da informação, à autodeterminação dos povos, promoção a ética da vida
defendida pelas ciências biológicas, diretos difusos, direito ao pluralismo etc.
Como foi possível notar com a apresentação das gerações, a globalização politica
na esfera da normatividade jurídica foi a responsável por introduzir os direitos da quarta
geração na última fase de institucionalização do Estado Social. É ligado à pesquisa
genética, tendo a necessidade de impor certo controla na manipulação do genótipo dos
seres, especialmente do homem.
Se faz válido salientar que, os Direitos Fundamentais, atualmente, são reconhecidos
mundialmente, por meio de pactos, tratados, declarações e outros instrumentos de caráter
internacional. Os Direitos Fundamentais são adquiridos através do nascimento.

c) Diferença entre direitos e garantias fundamentais


Os direitos fundamentais são os direitos do indivíduo jurídico- institucionalizadamente
garantidos. Em outras palavras, são os direitos objetivamente vigentes em uma ordem
jurídica concreta, ou seja, são os enunciados constitucionais de cunho declaratório, cujo
objetivo consistiria em reconhecer, no plano jurídico, a existência de uma prerrogativa
fundamental do cidadão. A livre expressão (art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal), a
intimidade e a honra (art. 5º, inciso X, da Constituição Federal) e a propriedade e defesa
do consumidor são direitos fundamentais que cumprem a função de direitos de defesa dos
cidadãos sob uma dupla perspectiva: No plano juridicamente objetivo, constituem as regras
de competência das autoridades públicas, vedando-lhes a interferência na esfera jurídica
pessoal; as autoridades nada fazem para evitar sua perniciosa agressão.
Logo, as garantias fundamentais seriam os enunciados do conteúdo assecuratório
cujo propósito consiste em fornecer mecanismos ou instrumentos, para a proteção,
reparação ou reingresso em eventual direito fundamental violado. São remédios, tais como
o direito de resposta (art. 5º, inciso V, da Constituição Federal), a indenização prevista, o
Habeas Corpus e o Habeas Data são garantias fundamentais.
Os direitos individuais, situados no art. 5º, da Constituição Federal, são direito à
vida, direito à intimidade, direito de igualdade, direito de liberdade e direito de propriedade,
porém, as garantias constitucionais individuais compreendem o princípio da legalidade, o
princípio da proteção judiciária, a estabilidade dos direitos subjetivos, o direito à segurança
e os remédios constitucionais.

d) Características dos Direitos e Garantias Fundamentais


As principais características dos direitos fundamentais estão ancoradas na
Historicidade, Imprescritibilidade, Irrenunciabilidade, Inviolabilidade, Universalidade,
Concorrência e Efetividade.
No que tange à imprescritibilidade, os Direitos Fundamentais não prescrevem, isso

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 5


pois, não se perdem com o decurso do tempo, são direitos permanentes. A prescrição é
um instituto jurídico que afeta a exigibilidade de direitos patrimoniais apenas através de
limitações, mas não de direitos muito pessoais, senão individualistas, como neste caso. Se
sempre exercíveis e exercíveis, não há inadimplência temporária que justifique a perda da
exigibilidade por prescrição.
A irrenunciabilidade é aplicada de forma parcial e não absoluta/integral no
Ordenamento Jurídico, principalmente no que tange a reclamação trabalhista.
Em relação a inviolabilidade, os direitos de outrem não podem ser desrespeitados
por nenhuma autoridade ou lei infraconstitucional, sob pena de responsabilização civil,
penal ou administrativa. Mas, é válido salientar que, o legislador tenha uma boa postura,
sendo cuidadoso com as necessidades do Estado, por isso existem as exceções, para que
haja um consenso com as necessidades da sociedade e do homem.
Quanto a universalidade, os Direitos Fundamentais são dirigidos a todo ser humano
em geral sem restrições, independentemente de sua raça, crença, nacionalidade ou
convicção política.
Na concorrência, podem ser exercidos vários Direitos Fundamentais ao mesmo
tempo, ou seja, contribui para que o mesmo titular preencha os pressupostos de vários
desses direitos concomitantes.
Ao final, temos a efetividade, na qual o Poder Público deve atuar para garantir a
efetivação dos Direitos e Garantias Fundamentais, usando quando necessário, meios
coercitivos.

4 | O DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR


O direito de ir e vir do indivíduo está ancorado no art. 5º, inciso XV, da Constituição
Federal de 1988, que preconiza o seguinte: “É livre a locomoção no território nacional e
tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, ou sair com seus
bens” (BRASIL. Constituição Federal. 1988. Art. 5º, XV).
Dessa maneira, subentende-se que todo cidadão brasileiro tem direito de se
locomover de forma livre nas ruas, praças, nos lugares públicos, sem medo de verem
tolhida sua liberdade.

a) Síntese do conceito do direito de ir e vir


Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo
comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível
do todo. Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação
produz um corpo moral e coletivo, composto desse mesmo ato, seu eu comum, sua vida e
sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomada antes
pelo nome de cidade e hoje é chamado de república ou corpo político, o qual é chamado

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 6


por seus membros, Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade,
quando comparado a seus semelhantes. No que diz respeito aos associados, adquirem
coletivamente o nome do povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de
participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando se veem sujeitos as leis do
Estado.
Conforme dito acima, a organização social deve ter por base um contrato social
firmado entre todos os cidadãos que formam a sociedade, visando a realização do bem
geral.

b) Direito de Locomoção no Brasil


A primeira constituição outorgada em 25 de março de 1824, seguiu a mesma linha
da constituição portuguesa de 1822, dedicando o titulo VIII à garantia dos direitos civis
políticos do cidadão brasileiro. No entanto a garantia de locomoção não era expressa, este
direito estava implícito no art.178.
Na constituição de 1934 repetiu expressamente essa garantia, resalvando a
exigência de passaporte. Em 1937 a carta política, no art.122, II, garantiu apenas aos
brasileiros o direito de circulação em território nacional, não se pronunciou em relação
aos estrangeiros. Em 1946 a constituição, no art.142, assegurou o direto de circulação a
qualquer pessoa, respeitando os limites da lei.
O direito de ir e vir ou direito de locomoção, foi sendo introduzido em nossa
legislação a século atrás, e hoje se encontra no art.5° Inciso XV da nossa constituição
federal, garantindo a todos esse direito.

c) O Direito de ir e vir à luz da Pandemia


Conforme já apresentado, o direito de locomoção está regulamentado no art. 5º,
inciso XV, da Constituição Federal de 1988, porém o direito fundamental não é absoluto,
como não o é o direito de ir e vir, pois, a própria Carta Magna estabelece situações em
que este direito pode vir a ser limitado, tais como: prisão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada de Juiz.
O Direito Fundamental de locomoção pode sofrer restrição quando ocorrer prisão
civil, administrativa ou especial para fins de deportação, nos casos cabíveis na legislação
específica; durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da
população em determinada localidade.
Com a Pandemia, foi possível notar que algumas normas foram editadas no Brasil
restringindo ao direito de locomoção, tais como, o isolamento social, quarentena, bem
como, outros decretos editados pelos governadores em seus respectivos Estados.
Na Lei 13.979/2020, art. 2º, inciso I, podemos compreender a “separação de pessoas
sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar
a propagação da infecção e transmissão local”. No mesmo artigo, inciso II, consiste:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 7


“Restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação
das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais,
meios de transporte ou mercadorias, suspeitos de contaminação, de maneira
a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus” (BRASIL,
Lei nº 13.979/20, art. 2, II).

Como se vê com a pandemia gerada pela COVID 19, o direito de ir e vir foi
restringido, ou seja, apesar de total liberdade assegurada pela Constituição Federal/88,
esse direito pode ser analisado sob outros prismas de igual tutela, podendo, pois, resultar
numa limitação pontual/transitória.
Esse novo cenário, decorrente da COVID 19, coloca em discussão a supremacia da
saúde pública, expresso no art. 6º, da Constituição Federal/88, sobre os demais direitos,
tais como o da liberdade de locomoção (art. 5º, inciso II e XV), de reunião (art. 5º, inciso
XVI), inviolabilidade da intimidade (art. 5º, inciso X e XII), dentre outros.
Importante se faz salientar em relação ao elucidado acima que, o princípio da
proporcionalidade pode ser aplicado, pois o mesmo deixa explícito que um direito deve
ceder ao outro desde que atenda aos requisitos da adequação e da necessidade.

5 | CONCLUSÃO
O Direito de ir e vir do cidadão Brasileiro está previsto no art. 5º, inciso XV, da
Constituição Federal de 1988. Conforme o preceituado, subentende-se que todo indivíduo
brasileiro tem direito de se locomover de forma livre nas ruas, praças, nos lugares públicos.
Porém, esse direito fundamental não é absoluto, pois a própria Constituição
estabelece situações em que esse direito pode vir a ser limitado.
Com a pandemia, observa-se que algumas normas foram editadas aqui no Brasil
restringindo o direito de locomoção, tais como, o isolamento social, quarentena, bem como,
outros decretos editados pelos governadores em seus respectivos Estados.
Na pandemia gerada pela COVID 19, o direito de ir e vir foi restringido, ou seja,
apesar de total liberdade assegurada pela Constituição Federal/88, esse direito pode
ser analisado sob outros prismas de igual tutela, podendo, pois, resultar numa limitação
pontual/transitória.
Assim, esse novo cenário, decorrente da COVID 19, coloca em discussão a
supremacia da saúde pública, expresso no art. 6º, da Constituição Federal/88, sobre os
demais direitos, tais como o da liberdade de locomoção (art. 5º, inciso II e XV), de reunião
(art. 5º, inciso XVI), inviolabilidade da intimidade (art. 5º, inciso X e XII), dentre outros.
Portanto, importante se faz salientar em relação ao elucidado acima que, o princípio
da proporcionalidade pode ser aplicado, pois o mesmo deixa explícito que um direito deve
ceder ao outro desde que atenda aos requisitos da adequação e da necessidade.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 8


REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia (Pandemia
Capital). Trad. Isabella Marcatti. São Paulo: Boitempo, 2020.

BRASIL. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, para definir os
serviços públicos e as atividades essenciais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato20192022/2020/Decreto/D10282. htm Acesso em: 26 nov. 2022.

BRASIL. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 454, de 20 de março de 2020: declara, em todo o
território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (Covid-19). Diário Oficial
da União. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-454-de-20-de- marco-de-2020-
249091587. Acesso em: 27 nov. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ministro assegura que estados, DF e municípios podem
adotar medidas contra pandemia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=441075. A Acesso em 27 nov. 2022

Direção Geral da Saúde. Plano Nacional de Preparação e Resposta à Doença por Novo
Coronavírus (COVID-19). 2020. Disponível em: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/plano--
nacional-de-preparacao-eresposta-para--a-doenca-por-novo-coronavirus-covid-19. Acesso em: 28 nov.
2022

FERNANDES, Fernando; MARCHIONI, Guilherme, Vírus do autoritarismo na pandemia do


coronavírus. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://https://www.conjur.com.br/2020-mar-
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G1. Bolsonaro pede na TV volta à normalidade e fim do confinamento em massa e diz que
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FILHO, Corrêa. A utopia do debate democrático na vigilância em saúde. Saúde debate 2020.
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HEESTERBEEK, Anderson. Como as medidas de mitigação baseadas no país influenciarão o


curso da pandemia de Covid-19? Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-
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FIRPO, Sergio. Por que salvar vidas ou a economia na crise do coronavírus é um falso dilema.
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br/2020-abr- 22/opiniao-direito-saudeprevalece-ir-vir. Acesso em: 20 dezembro 2022.

SILVA, AAM. Sobre a importância da ampliação da capacidade de testagem dos sintomáticos para a
contenção da epidemia pela COVID-19 no Brasil. Agência Bori. Disponível em: https://abori.com.
br/artigos/sobre-a-importancia-da-ampliacao- dacapacidade-de-testagem-dos-sintomaticos-para-a-
contencao-da- epidemia-pela-covid-19- no-brasil/. Acesso em: 27 dezembro 2022.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 1 9


CAPÍTULO 2

A SAÚDE ÚNICA COMO VALOR


CONSTITUCIONAL

Data de aceite: 01/03/2023

Roberto Santos da Silva coleta de dados e informações sobre o


Universidade Santa Cecília (Unisanta) tema realizada nas principais plataformas
Santos-SP, Brasil científicas. Concluindo-se que o direito à
saúde na constituição refere-se à saúde
Maria Fernanda Tóffoli
única.
Universidade Santa Cecília (Unisanta)
PALAVRAS-CHAVE: Saúde humana;
Santos-SP, Brasil
saúde não humana; saúde única; saúde
Lucy Souza Faccioli ambiental; saúde coletiva.
Universidade Santa Cecília (Unisanta)
Santos-SP, Brasil
THE ONE HEALTH AS A
Patricia Gorisch CONSTITUTIONAL VALUE
Professora Doutora (orientadora)
ABSTRACT: The authors critically analyze
Universidade Santa Cecília (Unisanta)
the evolution of the right to health to arrive
Santos-SP, Brasil
at the concept of single health, addressing
the development of this concept, which
is the general objective and having as
RESUMO: Os autores analisam criticamente specific objectives to conceptualize single
a evolução do direito à saúde para chegar health, human health, non-human health,
ao conceito de saúde única, abordando environmental health and collective health
o desenvolvimento deste conceito, sendo and to analyze the implications of the single
esse o objetivo geral e tendo como objetivos health concept in relation to individual
específicos conceituar saúde única, saúde and collective aspects. The research
humana, saúde não humana, saúde is exploratory, based on legislative and
ambiental e saúde coletiva e analisar as doctrinal bibliographic survey, with data
implicações do conceito de saúde única and information collection on the subject
em relação aos aspectos individuais carried out in the main scientific platforms.
e coletivos. A pesquisa é de cunho Concluding that the right to health in the
exploratório, baseada em levantamento constitution refers to the single health.
bibliográfico legislativo e doutrinário, com KEYWORDS: Human health; non-human

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 2 10


health; unique health; environmental health; collective health.

INTRODUÇÃO
O direito à saúde vem sendo ampliado em seu conteúdo. Se no início de sua
compreensão a saúde era conceituada como a ausência de doenças, denotando uma
preocupação meramente biologicista, focada no indivíduo, em seu aspecto médico, aos
poucos o conceito de saúde foi sendo ampliado, pois, percebeu-se que o ser humano, ainda
que individualmente considerado, vive em coletividade, portanto, a saúde deveria alcançar
esse aspecto coletivo, sem deixar de lado a individualidade. Ainda, o ser humano, individual
ou coletivamente considerado, tem interações não só com outros seres humanos, mas, com
o meio ambiente. Desse modo o conceito de saúde evoluiu para compreender o entorno do
ser humano, a ausência de doenças, a fruição de direitos coletivos sanitários, alimentação,
trabalho e modo de vida. Mas, eis que, observa-se que a saúde também tem implicações
com os animais que convivem com o ser humano, seja no ambiente doméstico, no ambiente
do trabalho e no nicho ecológico no qual o ser humano vive. Essa teia complexa entre o
indivíduo, suas interações sociais com outros seres humanos (sociedade), sua interação
com animais não-humanos e, por fim, com o meio ambiente no qual está inserido e do qual
faz parte, apresente um novo quadro para atualizar o conceito de saúde. Surge, dessa nova
compreensão, o conceito de saúde única, saúde integral ou saúde ambiental, abrangendo
num mesmo valor (saúde) e num mesmo direito (direito à saúde) todas as interações,
diretas e indiretas, que refletem na saúde do ser humano em seu âmbito individual, social e
ambiental. Sobre o conceito de saúde única que este trabalho pretende refletir, bem como
suas parcelaridades, ou seja, a saúde humana, a saúde não-humana, compreendendo a
saúde animal e a saúde ambiental. As implicações no dever prestacional do Estado, posto
que, ao ampliar o conceito de saúde para além da saúde humana, alcançando a saúde
dos animais (veterinária, pecuária e zoonoses) e a saúde ecológica (saúde ambiental), do
ponto de vista orçamentário.

OBJETIVOS
A presente pesquisa tem como objetivo geral refletir sobre o conceito de saúde única
com a finalidade de atualizar o valor “saúde” expresso na Constituição Federal.
Os objetivos específicos, entre outros, se destinam a conceituar saúde única;
analisar as implicações do conceito de saúde única em relação aos aspectos individuais
e coletivos do direito à saúde; compreender as mudanças nas obrigações positivas do
Estado em relação à saúde única e, por fim, conhecer as diversas terminologias pelas quais
a saúde única pode ser designada.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 2 11


MATERIAL E MÉTODOS
A pesquisa é de cunho exploratório, baseada em levantamento bibliográfico
legislativo e doutrinário, com coleta de dados e informações sobre o tema realizada nas
principais plataformas científicas.

DISCUSSÃO
O artigo 196 da Constituição Federal dá ao direito à saúde natureza de direito
fundamental ao registrar que “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Ao lado da
saúde, individualmente considerada, existe a dimensão coletiva, isto é, a saúde enquanto
direito difuso, social, nos termos do artigo 6º da CF/88. O fato do direito à saúde ter também
a dimensão de direito fundamental social, implica em um fazer, ou seja, prestações positivas
por parte do Estado. Neste sentido Carvalho (2003)[1]:
Os direitos sociais caracterizam-se por serem direitos a prestações
materiais (direitos a prestação em sentido estrito), isto é, exigem
que o Estado aja prestando serviços ou atividades, para melhorar as
condições de vida e o desenvolvimento da população, tentando atenuar
desigualdades e moldar o país para um futuro melhor.

Ocorre que, ao contrário da visão médica e individual, a saúde não deve ser encarada
somente como a ausência de doenças do indivíduo, mas, como um direito fundamental de
natureza difusa. A esse respeito vale citar Garcia (2021) [2]
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de 1966, aprovado no Brasil pelo Congresso Nacional pelo Decreto
Legislativo 226/1991 e promulgado pelo Decreto 591/1992, assegura que
os Estados Partes reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o
mais elevado nível possível de saúde física e mental (art. 12). As medidas
que os Estados-Partes devem adotar com o fim de assegurar o pleno
exercício do direito à saúde devem incluir as medidas que se façam
necessárias para assegurar: a diminuição da “mortinatalidade” (ou seja,
mortes quando do nascimento) e da mortalidade infantil, bem como o
desenvolvimento das crianças; a melhoria de todos os aspectos de
higiene do trabalho e do meio ambiente; a prevenção e o tratamento das
doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta
contra essas doenças; a criação de condições que assegurem a todos
assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

O aspecto coletivo da saúde, como direito social, decorre não só do fato de que o ser
humano vive coletivamente em sociedade, mas, também, que existe um entrelaçamento
entre as relações sociais, os serviços públicos ofertados e a produção ou não de saúde.
Tome-se como ilustração a COVID-19, em que percebe-se a dimensão social e biológica no
mesmo contexto. Tome-se as regras de distanciamento “social”, a quarentena, a suspensão
dos abraços e apertos de mãos, o uso de máscaras e, além do antigo costume de lavar as
mãos, o reforço com álcool em gel. De fato, biologicamente a doença existe, todavia, é a

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 2 12


relação da Covid-19 (biológico) com o comportamento social (processo social) que resultará
em doença ou saúde. A adesão às regras sanitárias produz saúde. Por essas razões que a
saúde animal afeta a saúde humana, e o contrário também se mostra verdadeiro, surgindo
dessa inteiração o conceito de saúde única, visto que o ser humano pode se contaminar por
doenças de animais e contrário também pode suceder. Em relação ao conceito de saúde
única a contribuição de LIMONGI e OLIVEIRA (2020) [3]:
Em todo o mundo, esse grupo de profissionais tem promovido o conceito
de One Health para tratar de questões como segurança alimentar,
resistência antimicrobiana, mudança climática e vínculo humano-animal.
(…) Esse enfoque colaborativo entende que o estado sanitário dos seres
humanos está relacionado com a saúde dos animais e que ambas as
populações (homens e animais) afetam o ambiente que coexistem e são
igualmente afetados por esse ambiente. Essa compreensão mais ampla
das situações de saúde tem possibilitado a adoção de estratégias mais
efetivas sobre os determinantes de saúde-adoecimento-cuidado nos
âmbitos dos serviços de saúde.

Neste ponto deflui-se a importância da atuação do poder público no âmbito da saúde


humana, na saúde não humana e na questão ambiental como âmbitos que compreendem
a saúde, conforme BRANDÃO (2016) [4] “A Saúde Única pode ser entendida como uma
abordagem integrada que reconhece a interconectividade entre a saúde humana, a
dos demais seres vivos e a do ambiente. Na perspectiva constitucional de que o valor
saúde, previsto no artigo 196 da Constituição Federal, abrange a saúde humana, a saúde
animal (considerando-se os animais de estimação, os animais de uso no trabalho e/ou
pecuária, estes últimos destinados à alimentação, e por fim, os animais que vivem no meio
ambiente, as vezes se quer sendo percebidos pelo ser humano, deve-se ampliar o conceito
de saúde individual e coletiva, para abrangendo esses animais, chegarmos ao conceito de
Saúde Única, e que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde”, cabendo ao
Poder Público a “regulamentação, fiscalização e controle”.

CONCLUSÕES
Conclui-se que o direito à saúde, previsto na Constituição Federal, deve ser
atualizado para compreender a saúde em seu aspecto individual, coletivo e ambiental, este
último como resultado das interações entre os seres humanos, individual ou coletivamente
considerado, com os animais e o meio ambiente, devendo o Estado buscar a realização
dos comandos constitucionais sob esse novo prisma.

AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem as orientações da Professora Doutora Patricia Gorisch
durante o desenvolvimento deste estudo.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 2 13


REFERÊNCIAS
1. Carvalho, Mariana Siqueira de. A saúde como Direito Social Fundamental na Constituição Federal de
1988. Revista de Direito Sanitário, vol.4, n. 2, 2003.

2. Garcia, Gustavo Filipe Barbosa. Coronavírus e Direito à Saúde : repercussões trabalhistas,


previdenciárias e na assistência social / Gustavo Filipe Barbosa Garcia. - 1. ed. – São Paulo: Saraiva
Educação, 2021.

3. Limongi, Jean Ezequiel; OLIVEIRA, Stefan Vilges de COVID-19 e a abordagem One Health (Saúde
Única): uma revisão sistemática Vigilância Sanitária em Debate, vol. 8, núm. 3, 2020, Julho-Setembro,
pp. 139-149.

4. Brandão, M. V. A. P. D. Saúde Única em articulação com a saúde global: o papel da Medicina


Veterinária do coletivo. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do
CRMV-SP, v. 13, n. 3, p. 77-77, 18 jan. 2016.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 2 14


CAPÍTULO 3

RAÇA, GÊNERO E CONDIÇÃO DE CLASSE: OS


DESAFIOS DO FEMINISMO NEGRO NO ACESSO
AOS DIREITOS REPRODUTIVOS

Data de aceite: 01/03/2023

Laura Beatriz Pires perspectiva, busca-se desvelar a influência


Advogada, Mestranda em Direitos do racismo estrutural e sistêmico no
Humanos pela Universidade Federal negacionismo prático estatal que conota os
de Pernambuco - UFPE e bolsista diplomas legislativos de corte racial a mero
pela Fundação de Amparo à Ciência e teor positivista e os esvaziam de eficiência
Tecnologia do Estado de Pernambuco - prática, o que corrobora com as gravosas
FACEPE violações e violências sofridas pelas
Paula Cristina Moraes da Silva mulheres negras na busca da sua saúde
Advogada, Pós-Graduada em Direito do reprodutiva. Nesse contexto, é construído
Trabalho pela Universidade Federal de o pensamento argumentativo sobre o
Pernambuco, Pós- Graduada em Direito viés Interseccional como à medida que
Processual Civil pela Instituição de se impõe para uma leitura interconectada
Ensino Damásio de Jesus e Mestranda dos entraves sociais que estigmatizam/
em Direitos Humanos pela Universidade coisificam a figura feminina negra e torna
Federal de Pernambuco - UFPE inaplicável a justiça social voltada para
estas mulheres. Assim, serão ilustrados
os avanços estruturais conduzidos
pelo Feminismo Negro sobre uma ótica
RESUMO: Este ensaio pretende
parametrizada entre interseccionalidade.,
estabelecer uma análise elucidativa sobre
justiça social e saúde reprodutiva.
os reflexos das opressões de raça, gênero
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos.
e condição de classe que repercutem
Feminismo Negro. Direitos Reprodutivos.
no acesso das mulheres negras aos
Interseccionalidade.
seus direitos reprodutivos. Partimos do
posicionamento de que há uma íntima
RESUMEN: Este ensayo pretende
relação entre o passado escravocrata
establecer un análisis esclarecedor sobre
moderno com o estabelecimento dos
los reflejos de las opresiones de raza,
estereótipos sociais, históricos e culturais
género y condición de clase que reverberan
que negam o estabelecimento das mulheres
en el acceso de las mujeres negras a sus
negras como uma sujeita de direitos. Nessa
derechos reproductivos. Partimos del

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 15


posicionamiento de que existe una íntima relación entre el pasado negrero moderno y el
establecimiento de las mujeres negras como sujetos de derechos. En esta perspectiva, se
busca descubrir la influencia del racismo estructural y sistémico en el negacionismo práctico
estatal que connota los diplomas legislativos de corte racial a mero contenido positivista y los
vacían de eficiencia práctica, lo que corrobora con las graves violaciones y violencias sufridas
por las mujeres negras en busca de su salud reproductiva. En este sentido, se construye el
pensamiento argumentativo sobre el sesgo interseccional como la medida que se impone
para una lectura interconectada de las barreras sociales que estigmatizan/cosifican la figura
femenina negra y hace inaplicable la justicia social volcada para estas mujeres. De esta,
serán ilustrados los avances estructurales conducidos por el Feminismo Negro bajo una
óptica parametrizada entre interseccionalidad, justicia social y salud reproductiva.
PALABRAS CLAVE: Derechos Humanos. Feminismo Negro. Derechos Reproductivos.
Interseccionalidad.

1 | INTRODUÇÃO
A discriminação é o fundamento base no estabelecimento da estrutura de poder.
Dominar o outro pelas características que são inerentes a sua pessoa é fulcral para fincar
o preconceito e desconstruir a autonomia feminina negra. O controle da vida e do corpo
das mulheres negras, emerge do “nada social” que considera suas carnes e suas almas.
Conforme canta Elza Soares 1:
[...]

E esse país vai deixando todo mundo preto

E o cabelo esticado

Mesmo assim ainda guarda o direito

De algum antepassado da cor

Brigar sutilmente por respeito

Brigar bravamente por respeito

Brigar por justiça e por respeito (Pode acreditar)

De algum antepassado da cor

Brigar, brigar, brigar, brigar, brigar

Se liga aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Na cara dura, só cego que não vê

A carne mais barata do mercado é a carne negra

[...]

É com parâmetros nessa realidade ostensiva e abusiva que, corriqueiramente,

1 Música: A carne. Compositores: Seu Jorge / Ulises Capelleti / Marcelo Fontes Do Nascimento.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 16


diversas e reiteradas formas de violência contra a saúde reprodutiva das mulheres negras
adentram no cenário midiático, seja em noticiários, redes sociais e outros meios de
comunicação. Com isso, observa-se que o corpo feminino negro não tem vez, voz ou direitos,
uma vez que os cenários históricos de supremacia branca, patriarcal, heteronormativa e
hegemônica legitimam a projeção social de sua inferioridade.
É diante desse complexo opressivo que, a identidade de gênero não se desdobra
naturalmente em solidariedade racial intragênero. Diante disso, as mulheres negras foram
conduzidas a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as
desigualdades as mais variadas, além daquelas que o(s) racismo(s) produz (em) entre as
mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil.
Em tal prisma, com forma de fundamentar a discussão sobre a precariedade na
saúde reprodutiva das mulheres negras, faremos uso da teoria interseccional para expor as
interconexões do processo estrutural e institucional que ocasionam a falácia da liberdade
reprodutiva no tocante as mulheres negras, bem como as novas nuances exploradas
pelo feminismo negro na árdua e longa batalha para que ocorra a efetividade de políticas
públicas voltadas à implementação e à implantação da saúde reprodutiva que favoreça
estas mulheres.
Sendo assim, o presente estudo baseia-se na leitura de interpretação de documentos
bibliográficos acerca das violações aos direitos reprodutivos com um viés exploratório,
por uma análise de conteúdo, através da análise qualitativa, em três etapas: a) pesquisa
bibliográfica das informações acerca das violências reprodutivas contra mulheres negras
no Brasil; b) análise histórica do racismo e sexismo contra as mulheres negras no Brasil; c)
estudo empírico realizado mediante análise à entrevista semiestruturada realizada com a
bióloga sanitarista Rose Santos.

2 | A NATURALIDADE PRÉ-MOLDADA DO CORPO FEMININO E A INCIDÊNCIA


HISTÓRICA DO GÊNERO, RAÇA E CONDIÇÃO DE CLASSE NA VIDA DAS
MULHERES NEGRAS
As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres
negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação
de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais,
de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação
ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação
colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos (WERNECK,
2009, p.11).

Essa citação de Jurema Werneck (2009) sintetiza com maestria como as mulheres
negras são construídas através de um processo histórico-social de inexistência. A autora,
ao parametrizar as heterogeneidades, dimensiona a longa e árdua batalha com preceitos
raciais, sexuais, políticos e desiguais vivida pelas mulheres negras e a influência destes
entraves sociais ao “aceite” jurídico, político e social destas mulheres como sujeitas de

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 17


direitos.
Assim, os pesos nas raízes coloniais enfatizam o racismo e o sexismo aflorados
socialmente, bem como a incidência do conservadorismo colonizado perpetuado sobre a
figura feminina negra, o que ocasiona a inaplicabilidade às leis postas em defesa destas
mulheres, as colocando no lugar de subalternidade.
Nessa linha, as circunstâncias históricas tiveram fulcral importância na construção,
controle e manutenção das relações de poder que fomentam ainda atualmente diferentes
processos de dominação, tanto racial, sexual e cultural, quanto política, social e econômica.
Isto porque, a escravidão moderna foi um espaço privilegiado de concubinatos
onde a exploração sexual e a coisificação do corpo da escrava eram levadas às últimas
consequências, na medida em que os senhores acreditavam ter o direito de estender seu
domínio até a posse sexual (DEL PRIORE, 2000 p. 26).
Desse modo, por meio das premissas de perversidade do oprimido/a, do direito sobre
a sexualidade da oprimida, bem como da negação estrutural hierárquica e colonizadora do
opressor, a pessoa negra é usada como tela para as projeções do que a sociedade branca
tornou tabu (KILOMBA, 2019, p.78).
Nota-se com clareza, em análise à figura feminina negra, que a criação desses
estereótipos possui o intuito de justificar as violências experienciadas por essas mulheres,
ao colocar sua raça, origem, sexualidade, idade, etnia ou condição física como motivos
determinantes e plausíveis para o descaso com os horrores sofridos por elas (BUENO,
2019, p.111).
Esses são os efeitos da hegemonia da “branquitude” no imaginário social e
nas relações sociais concretas. É uma violência invisível que contrai saldos
negativos para a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade
e sexualidade destas. Tal dimensão da violência racial e as particularidades
que ela assume em relação às mulheres dos grupos raciais não-hegemônicos
vem despertando análises cuidadosas e a recriação de práticas que se
mostram capazes de construir outros referenciais (CARNEIRO, 2003, p.122).

Nesse viés, a filosofa e ativista negra Sueli Carneiro (2003), complementa ao


colocar que tal problemática histórica induz a “variável” racial como produtora de uma
dupla subvalorização, uma vez que fomenta gêneros subalternizados, tanto no que toca
a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades
subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo
racialmente dominante (das mulheres brancas).
Marcela Lagarde (2005) ressalta que essas nuances das subalternidades originadas
das opressões são as que justamente consolidam os parâmetros tradicionalistas. Assim,
para a antropóloga, os aspectos culturais presentes na sociedade condicionam a figura
feminina a cativeiros parametrizados e estruturados com suas próprias especificidades,
as quais são utilizadas como combustível de sua inferiorização. Isso porque impedem
a aglutinação de suas particularidades e experiências, as reduzindo em imagéticos

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 18


estereotipados.
Esses cativeiros, portanto, estabelecem e sustentam o poder sobre os corpos e
a vida das mulheres. Nessa esteira, Michel Foucault (2018), em seu livro: A história da
sexualidade I: a vontade de saber pontua o uso do poder como unidade legitimadora do
controle da vida em vários vieses. Na visão do filósofo, o engendramento de controle sobre
os corpos se dá pelo biopoder. É justamente essa concepção que estabelece sobre a figura
feminina a docilização do seu corpo e o domínio sobre sua vida, uma vez que possibilitam
o exercício da soberania.
Pode-se entender, portanto, que o eixo de opressões vividas pelas mulheres negras
são tecnologias de poder que permitem o desempenho da denominação sobre os seus
corpos, suas vidas e suas escolhas. Através disso, visualiza-se com clareza a necessidade
de analisar as estruturas que legitimam o sistema de controle dos corpos femininos negros
por meio desses entraves sociais, visto que culminam, a todo momento, no descaso às
violências e violações experienciadas por estas mulheres.

3 | AS VIOLÊNCIAS E VIOLAÇÕES AOS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS


MULHERES NEGRAS
O reconhecimento dos direitos reprodutivos pode ser compreendido a partir das
próprias características inerentes aos direitos humanos. A universalidade, a historicidade,
a inalienabilidade, a indivisibilidade e a interdependência são pontos chaves para assimilar
com clareza o viés garantista que norteia a proteção jurídica dos direitos humanos de
um ponto de vista específico, uma vez que a proteção genérica e abstrata ratificada na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por muitas vezes, não parece ser
suficiente para suprir as necessidades de determinados sujeitos de direitos. É através
desse contexto específico que os direitos reprodutivos se desenvolvem.
Para Ventura (2010) os direitos reprodutivos:
...são constituídos por princípios e normas de direitos humanos que garantem
o exercício individual, livre e responsável, da sexualidade e da reprodução
humana. E, portanto, o direito subjetivo de toda pessoa decidir sobre o número
de filhos e os intervalos entre nascimentos, ter acesso aos meios necessários
para o exercício livre de sua autonomia reprodutiva, sem sofrer discriminação,
coerção, violência ou restrição de qualquer natureza.

Assim, Sueli Carneiro (2003) pontua que tal premissa protetiva advém da luta das
mulheres para terem autonomia sobre os seus próprios corpos, pelo exercício prazeroso
da sexualidade, para poderem decidir sobre quando ter ou não filhos, resultou na conquista
de novos direitos para toda a humanidade.
A partir de tal ótica, é mister salientar que as mulheres negras enfrentam os mais
elevados índices de violações aos seus direitos reprodutivos. Um exemplo claro destas
nuances violadoras está na política de controle da natalidade desenvolvida nos Estados

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 19


Unidos, no início do século XX, e no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, as quais tiveram
como foco as mulheres negras, por estas serem acusadas de ser as grandes inibidoras do
embranquecimento populacional.
Nós estamos gritando por justiça, há séculos. Desde quando as mulheres
negras abortavam seus filhos, para que eles não fossem escravos. Passando
pela luta de mulheres ante esterilização compulsória e, agora, lutando contra
o genocídio da nossa população pela violência do Estado. Nos idos dos anos
1990, por meio da luta das mulheres e principalmente das mulheres negras –
que eram as mais atingidas- ocorreu a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
da laqueadura involuntária. A CPMI constatou a incidência de esterilização
em massa de mulheres no Brasil. Houve uma grande mobilização feminista.
Grandes nomes de mulheres negras, como Edna Rolland, foram ouvidos e
a conclusão apontou para um uso indevido e eleitoreiro das laqueaduras
em partes extremamente pobres. Muitos depoimentos davam conta de que
havia uma ideia de que essas medidas eram necessárias para diminuir o
número de pobres. Essa postura eugênica, de limpeza racial, parte de teorias
criadas no final do século 19 e início do século 20, quando se acreditava que
o Brasil deveria ser mais branco e menos “degenerado” – lembrando que os
degenerados eram sempre pessoas negras, sobretudo (ANJOS, 2020).

Nessa linha, são inegáveis as influências do feminismo branco hegemônico,


bem como do viés racista, sistêmico e estruturante, na construção “universalizada” dos
corpos femininos negros, uma vez que as mulheres negras tiveram (e tem) seus direitos
reprodutivos esquecidos (direitos somente para mulheres brancas) e usados para controlar
seus próprios corpos.
No que tange ao controle sobre os corpos femininos negros, é mister salientar a
influência da classe social nas violações a tais direitos. Nessa conjuntura, pontua bell
hooks (2018):
Inserir classe na pauta feminista abriu um espaço em que interseções entre
classe e raça ficaram aparentes. Dentro do sistema social de raça, sexo e
classe institucionalizados, mulheres negras estavam claramente na base
da pirâmide econômica. Inicialmente, nos movimentos feministas, mulheres
brancas com alto nível de educação e origem na classe trabalhadora eram
mais visíveis do que mulheres negras de todas as classes (hooks, 2018, p.
53).

A divisão de classes na qual a mulher negra e pobre é submetida na busca pelos


seus direitos reprodutivos, gera uma forte hierarquia de classe intragênero, tendo em vista a
diferenciação de tratamento entre mulheres brancas e negras, pautados nas suas condições
socioeconômicas. Nesta senda, Sandra Harding (1993) entende que a experiência isolada
de uma mulher não pode servir de base para concepções e políticas que emanciparam a
todas. Ante tal realidade, constatam-se as lutas de grupos sociais, contra a hegemonia da
visão de mundo ocidental, branca, burguesa, homofóbica e androcêntrica.
Em tal âmbito, há forte correlação no Brasil entre raça, racismo, discriminação racial
e renda, cabendo aos grupos racialmente discriminados ocupar patamares inferiores,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 20


estando sujeitos à oferta de ações precárias de saúde pública ou privada. (WERNECK,
2016, p. 543-544).

3.1 A violência obstétrica e sua incidência nas mulheres negras


Dentre as principais violações sofridas pelas mulheres negras, destaca-se a violência
obstétrica, uma vez que através dela se estabelece e legitima o processo de violação ao
corpo feminino negro no âmbito reprodutivo.
Assim, a violência obstétrica pode ser lida como toda aquela violência praticada
contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva e que pode ser cometida
por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnico-administrativos de
instituições públicas e privadas, bem como civis (Mulheres em Rede pela Maternidade
Ativa, 2012, p.60).
Isso porque, a violência obstétrica permeia os aspectos sexual, físico, psicológico,
institucional, midiático e material que legitimam violações interventivas contra as
mulheres em seu (seus) processo(os) reprodutivo(os), abarcando-se também as espécies
interventivas de maus tratos, aborto e a esterilização forçada ou ausência dela.
Estudos realizados pelo Ministério da Saúde (2019) comprovam que no Brasil a
mortalidade materna é maior em mulheres negras do que em mulheres brancas. Assim
como, foi constatado que em 2018 os óbitos maternos no Brasil totalizam 65% em mulheres
pretas e pardas. (Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde, 2020, p.26).
Em tal linha, é mister pontuar que diferentemente de países como Argentina (Lei
Nacional nº 25.929) e Venezuela (GUERRA, 2012), que possuem diplomas específicos
caracterizadores da violência obstétrica, o Brasil carece de uma legislação com esse
enfoque (PALOMA; DONELli, 2017, p.217). Nessa ótica, em que pese o alto índice de
mortalidade da mulher negra, até o momento foram conduzidas poucas pesquisas voltadas
para a análise das influências da raça/cor no tocante à experiência de gestação e parto,
sendo em geral, as investigações realizadas em contextos locais específicos, não havendo
análises de abrangência nacional. (LEAL; et al, 2017, p.2).
Essa ausência de olhar legislativo e científico tem uma forte repercussão no que
diz respeito às mulheres negras. O artigo cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-
natal e ao parto no Brasil (2017) retrata tal contexto ao produzir dados alarmantes sobre
a violência obstétrica nas mulheres pretas e pardas, as quais têm um maior risco de pré-
natais inadequados, ausência na vinculação acerca da maternidade, e peregrinação para o
parto. O artigo ainda coloca que apesar de mulheres pretas terem menor chance de serem
eleitas à realização de uma cesariana e maiores chances de passarem por intervenções
dolorosas no parto vaginal, como episiotomia e uso de ocitocina, em comparação às
mulheres brancas, elas recebem menos anestesia local quando a episiotomia foi realizada.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 21


3.2 A invisibilidade negra: A falta do recorte racial na especialização médica,
o racismo no SUS e a inaplicabilidade normativa
A ausência da temática negra na formação acadêmica dos profissionais da saúde é
inegável. A escassez do recorte racial na formação acadêmica dos profissionais de saúde é
fator determinante no acesso e na prestação adequada da saúde dessas mulheres negras,
o que acarreta a inviabilização do atendimento por repulsa ao corpo negro, colocando
em evidência as negligências médicas manifestadas, desde erros em diagnósticos a altos
índices de mortalidade materna.
Dessa feita, Jurema Werneck demarca a inexpressiva produção de conhecimento
científico na área de saúde da mulher negra, onde o tema não participa do currículo de
diferentes cursos de graduação e pós-graduação, sendo o assunto ainda vago e ignorado
pela maioria de pesquisadoras e pesquisadores, estudantes e profissionais no Brasil,
(WERNECK, 2016, p. 535-536).
Nesse sentido, os direitos reprodutivos das mulheres negras são de difícil exercício,
visto que os Determinantes Sociais de Saúde (DSS), tais como acesso à educação,
moradia, renda, alimentação e condições de trabalho trazem um nítido prejuízo na atuação
estatal no processo de conscientização, proteção e viabilização destes direitos junto à
população feminina negra, uma vez que tais indicadores, juntamente com as manifestações
institucionalizadas e estruturais do racismo, ressaltam a desvantagem da mulher negra em
todos esses marcadores.
Vale ressaltar que a camada populacional negra é a que mais faz uso do Sistema
Único de Saúde, uma vez que soma 80% de toda a demanda do SUS (CAPELO, 2015).
Sendo assim, observa-se que a reforma sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde,
apesar de terem contribuído para a concepção de um sistema universal de saúde com
integralidade, equidade e participação social, não foram suficientes para inserir, no novo
Sistema, mecanismos explícitos de superação das barreiras enfrentadas pela população
negra no acesso à saúde, particularmente aquelas interpostas pelo racismo. (WERNECK,
2016, p. 536).
Em que pese a Constituição Federal de 1988, em seu art. 6º, pontuar o direito à
saúde como direito fundamental, e reforça, no art. 196, a saúde como direito de todos
e dever do Estado, observa-se a inaplicabilidade dos direitos reprodutivos das mulheres
como meio extensor da própria liberdade de seus corpos, o que proporciona constantes
violações a esses direitos.
Há uma dicotomia entre a proteção legal e o real desempenho do Estado brasileiro
na proteção à saúde reprodutiva de mulheres negras. Isso se dá em razão das normas
constitucionais e infraconstitucionais induzirem uma falaciosa ideia de equidade, ao
abdicar-se de projetar as especificidades e práticas institucionais e estruturais racistas que
entravam o acesso à saúde das mulheres negras.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 22


Para uma melhor elucidação, em entrevista realizada com a bióloga sanitarista
Rose Santos (ver mais detalhes no Anexo, p.19) a entrevistada, precipuamente pontuou a
inexistência nos governos de uma luta antirracista e antissexista, sendo presente apenas
um processo de reconhecimento do racismo, o qual se limita ao combate, mas a luta de fato
não foi ainda assumida por parte dos governos.
Nessa mesma linha de raciocínio, a entrevistada complementa, e ainda, pontua o
impacto da questão racial nos atendimentos maternos das mulheres negras e a necessidade
de aprimoramento dos profissionais da área de Saúde para que seja oferecido um
atendimento de qualidade às mulheres negras no Sistema Único de Saúde, acrescentando
que o racismo é institucional e algo do nosso dia a dia, intrínseco dentro das instituições.
Uma ilustração clara de tal realidade é o caso de Rafaela Santos. Mulher negra
portadora de uma gravidez de alto risco que procurou o Sistema Único de Saúde para a
realização do seu trabalho de parto. Após esperar três horas por atendimento médico e
apresentar sinais de complicação, pressão alta e pré-eclâmpsia, a junta médica negou-se
a encaminhá-la para o parto cirúrgico e optou por forçar manobras para o parto normal, o
que ocasionou eclampsia, ruptura do útero e hemorragia em Rafaela que veio a óbito horas
depois com apenas 15 anos de idade (CAPELO, 2015).
Percebe-se, portanto, que o racismo sistêmico e estrutural tem impacto determinante
no acesso de mulheres negras aos seus direitos reprodutivos. Isso porque, o arcabouço
jurídico brasileiro, apesar de ser vasto ao pontuar legislações específicas no aspecto
racial, como por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/ 2010), a Política
Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886/2003), Lei nº 7.716/ 1989
(que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), não há realização
de ações e estratégias necessárias que viabilizem o cunho prático da saúde reprodutiva.
Assim, conforme pontua Werneck (2016), a saúde do negro virou lei, porém continua sendo
ignorada.

4 | AVANÇOS E CRÍTICAS SOBRE A TEMÁTICA


Criada em 1989 e desenvolvida por Kimberlé Crenshaw a partir do artigo:
Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina
da antidiscriminação, da teoria feminista e da política antirracista2, a Interseccionalidade
surge ante a necessidade de analisar as estruturas que legitimam as formas de opressão
existentes sobre os corpos femininos negros de forma interconectada com a conjuntura
histórica, garantista e protecionista que emerge das violações sofridas por elas.
Historicamente, a negação sobre a amplitude e aglutinações típicas das experiências
discriminatórias sofridas por mulheres negras permeiam não só o judiciário, mas também o

2 Traduzido do título original: Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: a Black Feminist Critique of Antidiscri-
mination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 23


próprio feminismo, o qual silenciou a pauta negra e a reduziu a uma luta feminista e a uma
equiparação salarial entre homens e mulheres.
Ao teorizar o patriarcado, o posicionamento do feminismo radical enxergava o poder
dos homens sobre as mulheres como sendo uma estrutura autônoma e fundamental nas
relações sociais e o feminismo marxista como local de tipos particulares de efeitos dentro
de uma totalidade social e não realmente análoga à estrutura de classes (CONNEL,1990,
p.87).
Em tal prisma, pontua bell hooks (2018):
Mesmo que mulheres negras individuais fossem ativas no movimento
feminista contemporâneo desde seu início, elas não foram os indivíduos que
se tornaram “estrelas” do movimento, que atraíam a atenção da mídia de
massa. Muitas vezes, essas mulheres negras ativistas do movimento feminista
eram feministas revolucionárias (como várias lésbicas brancas). Elas já
discordavam de feministas reformistas que estavam decididas a projetar a
noção do movimento como se ele fosse, exclusivamente, pela igualdade entre
mulheres e homens no sistema existente. Mesmo antes de raça se tornar
uma questão debatida nos círculos feministas, estava claro para as mulheres
negras (e para as revolucionárias aliadas da luta) que jamais alcançariam
igualdade dentro do patriarcado capitalista de supremacia branca existente
(hooks, 2018, p. 19).

Em que pese a importância da Interseccionalidade para os rumos do feminismo


negro e na busca da libertação das amarras de dominação perpetuadas em face das
mulheres negras, Adriana Piscitelli (2012) faz algumas ressalvas à abordagem do termo
Interseccionalidade.
Piscitelli pontua, a partir dos estudos conduzidos por Avtar Brah (2006), que a análise
dessas interconexões (racismo, gênero, classe, sexualidade etc.) necessitam observar
especificidades que constituem a posição de diversos racismos. Assim, através do uso
da diferença como categoria analítica de compreensão das peculiaridades, seria possível
compreender, de forma contextualizada, os discursos formuladores das experiências
subjetivas, sociais e identitárias vividas pelas mulheres negras.
Diante disso, Brah (2006) faz uma crítica notável sobre a carência de estudos
parametrizados sobre as especificidades que compõem essas interconexões. Isso porque,
para a autora, essa escassez interfere de maneira nítida em uma análise mais aprofundada
na influência dessas interconexões nas relações contextuais diante de circunstâncias
históricas.
Dessa feita, tal crítica permite uma compreensão aprofundada da leitura das
interconexões das opressões vivenciadas pela figura feminina negra projetada, o que
permite compreender de forma detalhada as experiências vividas por mulheres negras e, a
partir disso, auxiliar no enfrentamento dos problemas sociais com maior efetividade.
Em tal contexto, a Interseccionalidade elevou a voz do movimento feminista negro, o
qual, segundo Clare Hemmings (2009), a partir dos 1980, elevou a produção histórica a uma

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 24


virada significativa. Pontua a autora que a intelectualidade feminina negra promoveu uma
correção na historiografia feminista, uma vez que esse período significou uma ampliação
da consciência feminista em relação às distinções sociais que são operadas a partir do
critério racial, principalmente a partir da forma com que as diferentes mulheres contam a
sua própria história (BUENO, 2019, p.63).
É através dessa postura mais crítica que feministas negras gritaram ao genocídio
negro e à usurpação de sua liberdade reprodutiva. Em meio a este cenário, o movimento de
mulheres negras e o movimento negro iniciaram, em 1990, uma agenda incisiva na saúde
pública, ao acompanhar o processo da saúde reprodutiva das mulheres negras, visto que
o Comitê de Fiscalização da Convenção Racial da ONU reconhece que são as mulheres
negras as mais vulneráveis à esterilização forçada e aos abusos sexuais (GOES; MOORE;
FIGUEIREDO, 2014, p.824).
Nessa senda, em 1994, ocorreu em Chicago, Estados Unidos, a National Pro-choice
Conference for the Black Women’s Caucus. Nesse encontro, um grupo de feministas negras
denominadas Mulheres de Descendência Africana pela Justiça Reprodutiva (Women of
African Descent for Reproductive Justice) deu luz a um conceito inovador e abrangente à
questão reprodutiva feminina negra.
Assim, o termo ‘justiça reprodutiva’ originou-se através do lugar de fala das
mulheres esquecidas, uma vez que mulheres racializadas, marginalizadas e trans não se
sentiam representadas pela voz de mulheres brancas. Com isso, o conceito de Justiça
Reprodutiva pode ser compreendido através de uma sistemática inter-relacionada do
acesso à saúde reprodutiva, à justiça social, às mulheres racializadas em conjunto a uma
leitura Interseccional.
Para Emanuelle Goes (2017) a Justiça Reprodutiva é um dos conceitos que se
apresenta com a finalidade de ampliar o olhar sobre os direitos reprodutivos porque traz
conjuntamente os direitos humanos e a justiça social para o exercício pleno da saúde
reprodutiva.
O conceito de Justiça Reprodutiva aproveitou-se da abertura do debate sobre
liberdade reprodutiva realizado pela Conferência Internacional de 1994 para analisar
o direito à saúde sexual e reprodutiva mediante as condições de vida dos grupos
discriminados. Assim, o termo possibilitou aos diplomas internacionais e nacionais
vislumbrar a essencialidade em distinguir o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de
mulheres negras e brancas, posto que mulheres negras ainda lutavam (e lutam) para se
firmar como sujeitas de direitos e se desprender do contexto objetificado e coisificado de
seus corpos marcados pelo passado escravocrata.
Dessa maneira, o termo tem fulcral importância na compreensão de eixo de
opressões (raça, gênero, sexualidade e classe) e refletem no acesso à saúde de mulheres
negras de forma integrativa e não aditiva.
Nessa esteira, a Justiça Reprodutiva se apresenta como o meio reivindicatório

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 25


feminino negro que permite a criação de estratégias políticas que vislumbrem a justiça social
através de uma ótica interseccional tanto no campo sexual quanto no campo reprodutivo.
Reconhecer o racismo, gênero e condições de classe como fatores centrais na
produção das iniquidades em saúde sofridas por mulheres negras em todas as áreas
e instituições, torna possível compreender a insuficiência do plano político e jurídico no
processo de quebra da hierarquização social que ocasiona tais violações ao direito à saúde
feminina negra.

5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o objetivo deste ensaio, as discussões foram realizadas a partir da
temática dos direitos humanos das mulheres negras com ênfase no aspecto interseccional
de raça, gênero e condição de classe. Procuramos estabelecer relações entre a
inaplicabilidade dos direitos reprodutivos com base em um resgate histórico colonial,
opressor do corpo feminino negro.
Nesse sentido, foi possível observar que os aspectos raciais, de gênero e de
condição de classe ensejam no engendramento prático sobre a ausência de efetividade
dos direitos reprodutivos das mulheres negras. Como consequência, os cativeiros em que
estas mulheres são subestabelecidas acarretam estereótipos culturais enraizados à sua
imagem, visto que remetem a naturalização da exclusão e a coisificação do corpo negro
como um corpo de direitos.
Sendo assim, almeja-se com este ensaio dar continuidade a uma reflexão
que privilegie a mudança das conjecturas opressivas que permeiam as violações
reprodutivas que circundam a realidade feminina negra, com a busca pela conscientização
antidiscriminatória e a desconstrução da imagem existente de naturalização racista,
classista e sexista, trazendo à baila a implementação efetiva de políticas públicas, com
ênfase na saúde reprodutiva destas mulheres, por meio do arcabouço sociológico inovador
advindo do recorte Interseccional sobre a Justiça Reprodutiva.
Por este motivo, o presente trabalho foi idealizado com o intuito de buscar embasar
políticas públicas de favorecimento a este grupo extremamente vulnerável que necessita
de reflexões como a presente para intensificar uma mudança positiva e eficaz das suas
realidades pessoais, evitando que o cunho protecionista jurídico somente expresse um teor
positivista em detrimento do essencial caráter humanitário.

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WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e


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bJdS7R46GV7PB3wV54qW7vm/?lang=pt>.

ANEXO - ENTREVISTA COM ROSE SANTOS


Como entrevista semiestruturada, realizada pelo sistema ZOOM, foram formuladas
perguntas com roteiro base preestabelecido, incluindo-se novos questionamentos ao longo
da conversa, tornando assim o instrumento de pesquisa mais flexível.
A escolha da entrevistada pautou-se na especificidade técnica e profissional dela
e na sua experiência na temática, vez que é bióloga, especialista em saúde coletiva,
coordenadora da Política de Saúde da População Negra do Recife, integrante do Comitê
de Mortalidade Materna do Recife e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.
Sendo assim, a entrevista permitiu compreender a atuação prática no protecionismo
à liberdade reprodutiva feminina negra, bem como esclareceu o porquê da obscuridade
sobre as questões de raça, gênero e sexualidade e a necessidade no acesso aos direitos
reprodutivos das mulheres negras.
Desta feita, a entrevistada, pontuou a fulcral relevância acerca do resgate ancestral
na percepção dos efeitos do racismo institucional e estrutural, levando-nos a compreender
a complexidade que é o processo gradativo de desconstrução da interferência dos
determinantes sociais de saúde no acesso aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
negras.
A entrevista realizada traz ao ensaio objeto de trabalho a realidade sobre os entraves
que é lutar pela igualdade racial em um país que foi grandioso berço da escravidão e que
reforça diariamente práticas sexistas na sociedade e na saúde.
Das perguntas realizadas podemos sopesar que:
1. Ao ser questionada de que maneira a Política de Saúde da População Negra
promove a saúde integral destas mulheres e influência na participação popular e no debate
de políticas públicas que beneficiam a população negra, a entrevistada, precipuamente
respondeu que não existe nos governos uma luta antirracista e antissexista, o que se tem é
um processo de reconhecimento do racismo e esse reconhecimento se limita ao combate,
mas essa luta de fato não foi ainda assumida por parte dos governos.
2. Questionada sobre como a questão racial impacta diretamente nos atendimentos
maternos das mulheres negras, no âmbito do aprimoramento dos profissionais de Saúde
para que seja oferecido um atendimento de qualidade para essas mulheres no Sistema
Único de Saúde, a entrevistada destaca como a saúde da população negra é um constante
processo de formação e atualização desses profissionais, tanto no quesito cor, quanto no
processo de discussão do que seria o racismo (base racial). Acrescentando que o racismo
é institucional e algo do nosso dia a dia, intrínseco dentro das instituições.
Faz refletir como a questão racial deve ser trabalhada com profissionais e até

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 29


mesmo com os não profissionais que estão no ambiente hospitalar de algum modo. Com
isso, cursos de atualização e aperfeiçoamento são fulcrais e urgentes nesse processo de
aprendizado e desconstrução, uma vez que o modelo hospitalocêntrico e automatizado
ainda impera nos cursos de saúde.
3. Questionada sobre as estratégias mais urgentes que devem ser implementadas
na rede de saúde em prol da redução no índice de mortalidade materna negra, a
entrevistada tratou a violência obstétrica como um dos pontos fulcrais, entendendo que é
fator diretamente proporcional, a morte materna. Avalia também os contextos de violência
social onde a mulher negra está inserida, pondera os determinantes sociais na saúde
(moradia, alimentação, saneamento básico, coleta seletiva, dentre outros).
Relata também a dificuldade atual em fazer esses trabalhos porque não há
investimento dentro do Sistema Único de Saúde, sendo a estratégia de governo dar
prioridade à medicina curativa, o qual sai do processo preventivo e retorna ao modelo
hospitalocêntrico.
Neste contexto, ante todo o exposto e dimensionado nessa entrevista, percebe-se,
portanto, que para uma aplicabilidade efetiva do país na garantia e exercício dos direitos
reprodutivos das mulheres negras é necessário um processo conjunto entre o Estado, a
população, educação e saúde da família que permita trabalhar o prisma negro por meio do
resgate ancestral e específico.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 3 30


CAPÍTULO 4

A DESNECESSIDADE DO CONTATO FÍSICO PARA


CONFIGURAÇÃO DE AÇÃO PENAL POR CRIME
DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

Data de aceite: 01/03/2023

Pedro Daniel Lopes Vieira com a lei vieram as determinações para que
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A. tenha sido efetivado o referido delito.
Bacharelado em Direito Essa perspectiva a ser apresentada à
Colinas do Tocantins - TO sociedade irá trazer um novo olhar para
aproximar o direito de seu fim, tornando
Bernardino Cosobeck da Costa
assim as decisões mais justas, limitando-
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A.
se aos crimes sexuais, e se desprendendo
Colinas do Tocantins - TO
da tipicidade, mostrando que, apesar da
previsão legal, determinadas condutas, não
são consideradas crimes.
Este Artigo será apresentado à disciplina de PALAVRAS-CHAVE: Estupro, Código
Trabalho de Conclusão de Curso. da Faculdade
de Colinas do Tocantins – FIESC/UNIESP exigido
Penal, Desconfiguração, Crimes Sexuais,
como parte dos requisitos para conclusão do Interpretação.
Curso Bacharel em Direito sob a orientação do
Professor Me. Bernardino Cosobeck da Costa.
THE NEED FOR PHYSICAL
CONTACT FOR THE
CONFIGURATION OF CRIMINAL
RESUMO: O objetivo do presente ACTION FOR CRIME OF RAPE OF
trabalho é mostrar uma nova perspectiva VULNERABLE
para o intérprete de Direito sobre a realidade ABSTRACT: The objective of this work is to
social no momento de aplicar a norma penal show a new perspective for the interpreter
incriminadora, presente no artigo 217-A, do of Law on the social reality when applying
Código Penal Brasileiro. A intenção é the incriminating criminal norm, present in
que deixe de ser apenas uma forma de article 217-A, of the Brazilian Penal Code.
entendimento puramente gramatical, e passe The intention is that it ceases to be just a
a se adequar à maneira de interpretação purely grammatical form of understanding,
presente no caput do presente artigo. and starts to adapt to the way of
A Lei 12.015/2009 trouxe para a sociedade interpretation present in the caput of this
a determinação com relação à ter havido article. Law 12.015/2009 brought to society
ou não o crime de estupro de vulnerável, e the determination regarding whether or not

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 31


there was the crime of rape of a vulnerable person, and with the law came the determinations
so that the referred crime was carried out. This perspective to be presented to society will
bring a new look to bring the right closer to its end, thus making decisions fairer, limiting itself
to sexual crimes, and detaching itself from typicality, showing that, despite the legal provision,
certain behaviors , are not considered crimes.
KEYWORDS: Rape, Penal Code, Deconfiguration, Sexual Crimes, Interpretation.

1 | INTRODUÇÃO
O presente artigo possui como tema: “A desnecessidade do contato físico para
configuração de Ação Penal por crime de estupro de vulnerável”. A partir do advento da Lei
nº 12.015/2009, o critério passou a ser objetivo (idade da vítima), e não mera presunção que
por natureza é subjetiva. Pela redação atual do artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, ter
conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, caracteriza
estupro de vulnerável.
O estupro é um crime previsto em todos os ordenamentos jurídicos dos povos
civilizados. Entre os crimes sexuais é a infração de natureza mais grave. E na criminalidade
comum, o estupro se qualifica como uma das condutas penais onde se pode perceber a
maior periculosidade do agente.
N século XX, quando teve início a palavra “Pedofilia”, o estuprador, antes visto
como pessoa fora do círculo, passou a também poder ser o pai, o padre, o pastor, o
professor, o tio, dentre outros tão próximos quanto. No século atual, as vítimas passaram
a ser vistas de forma mais atenciosa pela sociedade e o pós-estupro é mais perscrutado
pelos profissionais. Ainda assim, alguns Códigos Penais buscam renovar o sentido do
crime, desassociando o assédio do atentado ao pudor e do estupro.
A lei mais recente unificou o estupro e o tentado violento ao pudor como sendo um
único crime, previsto no Código Penal, de forma a evitar diversos litígios a respeito do tipo
penal. De acordo com a redação atual, caso haja o constrangimento do tipo penal previsto
no artigo, não havendo diferença se o sujeito passivo for do sexo feminino ou masculino,
estaremos diante do crime de Estupro.
A lei tutela sobre o direito de qualquer pessoa quanto a disposição de seu corpo
se e quando desejar, em se tratando se ato sexual. O estupro consegue agredir tanto
a liberdade sexual quanto a dignidade do indivíduo, que logo, se sente humilhado pela
prática sexual.
O Título VI do Código Penal traz em seu rol os crimes contra a liberdade e
desenvolvimento sexual. O desenvolvimento sexual, neste título, pode ser visualizado
como bem juridicamente protegido.
Portanto, são considerados bens juridicamente protegidos: a dignidade, a liberdade
e o desenvolvimento sexual. E ainda, o objeto material do crime de estupro pode ser tanto
na mulher quanto no homem, ou seja, qualquer pessoa, que é a vítima deste delito.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 32


Quanto à forma de consumação do estupro, esta se demonstra ampla, bastante
o toque físico para gerar a lascívia ou o constrangimento efetivo da vítima a se expor
sexualmente ao agente pode ser atingida a consumação. É, pois, crime material, comissivo,
de dano, uni-subjetivo, plurissubsistente, pois é praticado em vários atos, admitindo
tentativa.
Não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o
agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo
(masturbação), somente para contemplação (imaginar a vítima desnuda para caracterização
do crime).
Na prática de atos libidinosos, a vítima também pode vir a desempenhar, ao mesmo
tempo, os papéis ativo e passivo. Nestas últimas duas condutas, praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica
entre o estuprador e a vítima.

2 | EVOLUÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL NO SISTEMA


JURÍDICO BRASILEIRO
No antigo Código Penal, a violência sexual estava prevista no Livro V, Capítulo
XVIII. A imagem criminosa do estupro existe desde o início da civilização.
O Código Penal Imperial de 1830 listava vários crimes sexuais, em regra geral,
conhecidos como estupro, contra a mulher honesta. Previa uma pena de três a doze anos
de prisão e um dote para a vítima. Porém, se a vítima for prostituta, a pena será reduzida de
01 (um) mês a 02 (dois) anos. Além disso, quem se casasse com a vítima não seria punido.
Desta forma, cumprem-se os artigos 222.º a 225.º do referido Código.
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer
mulher honesta.

Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas - de prisão por um mez a dous annos.

Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando
dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula
carnal.

Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade


do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa.

Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula
carnal.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um


a tres annos, e de dotar a esta.

Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que
casarem com as offendidas.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 33


No Código de 1890, estavam previstos os artigos 219 a 221, que tratavam da
combinação de relação sexual e violência, mantendo tratamento diferenciado quando a
vítima fosse mulher pública ou prostituta. Desta forma, consulte a descrição no artigo.
Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um


a tres annos, e de dotar a esta.

Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas.

Art. 220. Se o que commetter o estupro, tiver em seu poder ou guarda a


deflorada.

Penas - de desterro para fóra da provincia, em que residir a deflorada, por


dous a seis annos, e de dotar esta.

Art. 221. Se o estupro fôr commettido por parente da deflorada em gráo, que
não admitta dispensa para casamento.

Penas - de degredo por dous a seis annos para a provincia mais remota da
em que residir a deflorada, e de dotar a esta.

2.1 Código penal de 1940


Em relação ao Código Penal de 1940, o estupro só poderia ser cometido por homens
e apenas as mulheres poderiam ser contribuintes. A pena prevista é de 03 (três) a 08 (oito)
anos de reclusão. Portanto, estipulado no art. 213.
213: constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça: Pena - reclusão, de três a oito anos.

Pode-se ver que ele não previu que uma mulher pudesse se envolver na conduta
envolvida no delito em questão. Assim, esse pensamento levou à forma como a padronização
do tempo foi implementada, pois os legisladores entenderam apenas para protegê-lo da
influência humana.
A dignidade sexual é um direito fundamental que diz respeito à intimidade, à vida
privada e à honra. Este é um direito da personalidade e, portanto, inviolável. Assim, a
intimidade e a vida privada são interpretadas na carta constitucional como valores humanos,
no plano dos direitos individuais e na defesa desses direitos.

3 | REFORMA PENAL EM 2009


A versão original do código penal, alterada em 7 de dezembro de 1940, retratava
uma maior modéstia de costume em relação aos delitos sexuais, que as normas eram feitas
de acordo com as conveniências sociais, de modo que os delitos previsíveis no código
penal eram acima de tudo, eles procuram proteger um padrão moral mínimo em relação às
necessidades sexuais individuais.
A Lei nº 12.015, de 2009, promoveu a revisão substantiva do Título VI do Código

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 34


Penal, alterando a antiga expressão “crimes contra os costumes” para “crimes contra a
dignidade sexual”, que principalmente se mostrou mais realista.
A revogação do código destinava-se a proteger a boa moral, não a dignidade
sexual. No entanto, graças à santificação das garantias constitucionais e ao progresso da
sociedade, essa percepção foi superada, sendo imprescindível moldá-la de acordo com a
dignidade e a liberdade sexual de cada ser humano.
Assim, a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, unificou estupro e atentado ao pudor
no âmbito do art. Artigo 213 do Código Penal para evitar muita confusão relacionada ao tipo
de crime. A partir de agora, de acordo com o art. 213, a pena para o crime foi aumentada de
06 (seis) anos para 10 (dez) anos de reclusão e estabeleceu que não importa se o sujeito
passivo é mulher ou homem.
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é


menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§2º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

Antes dessa alteração legislativa, para qualificar o estupro como crime, era
necessária a união física, entendida como a relação sexual entre um homem e uma mulher.
No entanto, com as alterações legislativas acima referidas, as infracções passaram a incluir
qualquer ato obsceno ou sexual praticado contra o sujeito passivo (ou seja, homem ou
mulher).

4 | CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL SEM CONTATO


FÍSICO
O estupro cometido por outra pessoa sem capacidade ou condições de
discernimento, com violência comprovada, deixou de Penal Brasileiro para configuração
de crime autônomo, previsto no art. 217-A sob o termo “estupro de vulnerável”. A redação
diz o seguinte:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1 º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com


alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não
pode oferecer resistência

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 35


§ 2 o (VETADO)

§ 3 o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

§ 4 o Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se


independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido
relações sexuais anteriormente ao crime.

a) Quem é o sujeito vulnerável?


É o indivíduo que está suscetível a ser ferido, ofendido ou tocado, ou seja, aquela
pessoa frágil ou incapaz de algum ato. São pessoas com maior fragilidade perante outros
grupos a sociedade, como por exemplo, o indivíduo menor de 14 anos ou aquele que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário para a prática do ato, ou que, por
qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

b) O que é ato libidinoso?


Pode ser considerado ato libidinoso todo aquele pelo qual a o sujeito ativo busca
satisfazer instintos lúbricos. Atos que incentivam aos prazeres do sexo. A conjunção carnal
ilícita também é ato libidinoso.

c) Caracterização do tipo penal


De acordo com decisão do STJ, a conduta de contemplar lascivamente, sem
contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a
deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. Segundo
a posição majoritária na doutrina, a simples contemplação lasciva já configura o tal “ato
libidinoso” descrito nos artigos 213 e 217-A do Código Penal Brasileiro, sendo considerado
irrelevante, para que sejam consumados os delitos, que haja contato físico entre o ofensor
e o ofendido. (STJ. 5ª Turma. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
0/09/2016)
Diante desta decisão, entende-se por contemplação lasciva o ato de, sem tocar na
vítima, mesmo à distância, satisfazer a sua libido com a nudez alheia.
Quando essa contemplação lasciva é realizada junto com o ato de constranger a
vítima, teremos o tipo penal contra dignidade sexual.
Caso a vítima se enquadre no conceito legal de vulnerável, estarão preenchidos
todos os requisitos típicos do crime de estupro de vulnerável – art. 217-A, CPB.
A Constituição Federal de 1988 traz na redação do art. 5º, inciso X, a inviolabilidade,
a intimidade, a vida privada e a honra, sendo estas como garantias fundamentais e
primordiais a proteção da vida humana e o bem-estar em sociedade.
A dignidade sexual é, de certa forma, derivada da dignidade da pessoa humana,
visto que se dá a percepção de que a pessoa tem direito de escolher com quem deseja ter

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 36


o relacionamento sexual, desde que seja plenamente capaz.
Além disso, tem a opção de reagir e ter como vestimenta aquilo que lhe aprecia.
A maioria da sociedade compreende que inúmeros indivíduos são vítimas de agressores,
sendo estuprada ou imposta ao ato libidinoso pelo fato de terem permitido a conduta do
agressor.

5 | O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL


O Título VI do Código Penal Brasileiro prevê a forma de proteção quanto aos
indivíduos se portam sexualmente, e passou a proteger a dignidade sexual. Nos termos da
Constituição Federal de 1988, a integridade da pessoa humana vem na espécie de gênero
principiológico, e sua redação nos traz que a dignidade é uma característica intrínseca que
o faz merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da sociedade, evitando
um ato com o viés desonroso e anti-humano, a fim de que lhe seja garantido ocorrências
mínimas e existenciais para uma vida saudável e proporcionar uma cooperação ágil em
comunhão com os demais seres humanos.
O nome dado ao Título VI no Código Penal possui por finalidade induzir a
hermenêutica do objeto e da pesquisa de cada ilustração referente ao crime de estupro
nele contida, com finalidade de, através de uma compreensão estruturada, ocorra uma
efetiva tutoria do bem jurídico em quesito. A finalidade do tipo penal é a real proteção da
liberdade sexual da vítima, e, num conceito mais amplo, sua integridade sexual.
Na legislação brasileiro não há um tipo penal nomeado abuso, que geralmente é
o termo utilizado para demonstrar as inúmeras maneiras de compreensão sexual com
crianças e adolescentes.
A Lei nº 12.015/09 originou um capítulo exclusivo denominado “Dos Crimes Sexuais
Contra Vulnerável”, que compreende o estupro de vulnerável explicado no artigo 217-A do
Código Penal Brasileiro vigente.
O Art. 217-A do Código Penal Brasileiro descreve:
“Art. 217-A. Ter conjunção canal ou praticar ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. §1º Incorre
na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém eu,
por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. §2º (Vetado). §3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza
grave: Pena reclusão, de 10 (Dez) a 20 (vinte) anos. §4º Se da conduta resulta
morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”

Consagra a lei penal como comportamento típico à realização de qualquer ato


obsceno, consensual ou não, com vulneráveis que não sejam capazes, por qualquer razão,
de reagir ao agente.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 37


6 | O CONCEITO DE VULNERABILIDADE
Em algumas situações nos encontramos em estado de vulnerabilidade, apenas
pela circunstância da situação. Nas situações de fragilidade trazidas pelo legislador na
redação do art. 217-A é espontaneamente perceptível que se referem a indivíduos menores
de 14 (catorze) anos, ou alguém que, por debilidade ou incapacidade mental, não tem a
necessária prudência para o desempenho do ato, ou que, por qualquer outra razão, não
pode disponibilizar resistência.
O conceito de vulnerabilidade é bastante confundido pelo legislador, visto que se
refere a menor de 14 (catorze) anos, ora também menor de 18 (dezoito) anos. Ora aqui,
temos das espécies de vulnerabilidade, a absoluta (menor de catorze anos) e a relativa
(menor de dezoito anos).
O Estupro de Vulnerável se enquadra da qualificação de crime comum, ou seja, quer
dizer que possui como indivíduo ativo qualquer pessoa de idade superior a 18 (dezoito)
anos.
O sujeito passivo deste crime é o vulnerável menor de 14 (catorze) anos de idade e
a pessoa acometida de debilidade ou insuficiência mental.

a) Tipo objetivo vs. tipo subjetivo


O tipo objetivo deste crime é a intimidação, ou seja, ameaçar a vítima com intuito de
obter vantagem ou favorecimento sexual (para conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso).
É consubstanciado em duas condutas distintas: a conjunção carnal e o ato libidinoso.
O elemento subjetivo do tipo penal é o dolo, vez que o agente precisará ter o
conhecimento que a vítima possui idade abaixo de 14 (catorze) anos ou que seja acometida
por enfermidade. Na hipótese de o agente ignorar qualquer dessas propriedades, afasta-se
o dolo e por tanto a tipicidade da conduta visto que inexiste modalidade culposa.

b) Conjunção carnal e ato libidinoso


Por se tratar de crime polinuclear, isto é, figura típica com dois núcleos, conjunção
carnal e prática de ato libidinoso, o primeiro ato típico se consuma com a cópula carnal,
consistindo na penetração, independente desta ser imparcial ou não.
Na conjunção carnal não é necessário a ruptura do hímen e nem a ejaculação, e o
ato libidinoso pode se consumar apenas pela vista do agente à vítima sexualmente exibida.
Importante lembrar que a conjunção carnal poderá ser forçada tanto por homem quanto por
mulher e a relação deve ser obrigatoriamente heterossexual.

7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do artigo apresentado, foi possível concluir que dá pouco respaldo acerca
do assunto, porém não podemos deixar de ressaltar que é necessária uma adequação à

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 38


legislação acerca do tema discorrido, em especial o art. 217-A, do Código Penal, deixando
de haver como característica ímpar do crime a existência e demonstração de contato físico
entre vítima e agressor.
A violência sexual ocorre em qualquer ambiente, mas para definir essa caracterização
é necessário um olhar minucioso e detalhado, pois muitos legisladores confundem com o
princípio bis in idem, levando em conta a proteção à dignidade da pessoa humana, quando
a sexualidade desta se demonstra violada. A sociedade não é capaz de distinguir o que
pode ser considerado estupro de fato, visto que somente o expresso em lei é informado nos
canais de comunicação.
O art. 217-A trata a respeito da dignidade sexual do vulnerável. Porém, antes a
Lei nº 12.015/2009 ter sido promulgada, o ato da prática sexual com pessoa em situação
de vulnerabilidade configurava, dependendo do caso, estupro 9art. 213, CP) ou atentado
violento ao pudor (art. 214, CP), mesmo que tenha sido praticado sem violência física ou
moral, bastava a presunção do art. 224, CP.
Por fim, pode-se perceber que no Direito Penal Brasileiro, o Estupro de Vulnerável é
uma Espécie Penal criada com a Lei nº 12.015 de agosto de 2009, que alterou o artigo 224
do Código Penal, que tratava da presunção de violência. Com o atual crime, a presunção
de violência encontra-se em tese absoluta e não mais relativa. Esta mesma lei que originou
o conceito do estupro de vulnerável, também foi responsável pela modificação no texto do
crime de corrupção de menores, estabelecendo a idade de consentimento no Brasil aos 14
(catorze) anos, com exceção dos casos de prostituição.

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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 4 40


CAPÍTULO 5

EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA AO CRIME


DE RACISMO: DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS DO
DIREITO PENAL OU INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO?
Data de aceite: 01/03/2023

Elisangela Maximiano direito penal, para concluir se a solução


Pós-graduanda em Ciências Criminais apresentada encontra respaldo no
pela UniAmérica Centro Universitário. ordenamento jurídico nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Homotransfobia.
Racismo. Analogia. Legalidade.
Constituição. Dignidade da Pessoa
RESUMO: A homotransfobia, responsável
Humana.
por grande onda de violência no país, ainda
não foi objeto de lei penal por parte do poder
ABSTRACT: Homotransphobia, responsible
legislativo pátrio, de forma a coibir a conduta
for a great wave of violence in the country,
e repreender os agressores, culminando
has still not been the object of criminal law
em protestos e manifestações por parte
by the country’s legislative power, in order
dos defensores do público LGBTQIA+,
to curb the conduct and punish aggressors,
bem como ajuizamento de ações para
culminating in protests and manifestations
reconhecimento de tal comportamento
by GLBTQIA defenders, as well as the
como criminoso, a exemplo da Ação Direta
filing of lawsuits for the recognition of such
de Inconstitucionalidade por Omissão –
behavior as criminal, such as the Direct
ADI nº 26 e do Mandado de Injunção – MI
Action of Unconstitutionality by Omission
nº 4.733, cujo julgamento pelo Supremo
(number 26) and the Writ of Injunction
Tribunal Federal – STF, levou à decisão de
(number 4.733), whose judgment by the
reconhecimento da homotransfobia como
Federal Supreme Court, led to the decision
crime de racismo, dividindo a doutrina entre
recognizing homotransphobia as a crime of
os que concordam e os que não concordam
racism, dividing the doctrine between those
com a decisão adotada pela suprema
who agree and those who do not agree
corte. O presente artigo cientifico tem
with the decision adopted by the supreme
como objetivo o estudo das supracitadas
court. This scientific article aims to study
ações constitucionais, com o intuito de
the aforementioned constitutional actions, in
analisar os argumentos antagônicos à luz
order to analyze the antagonistic arguments
da Constituição da República Federativa
in light of the Constitution of the Federative
do Brasil e dos princípios que regem o
Republic of Brazil and the principles that

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 41


govern criminal law, to conclude whether the solution presented is supported by the national
legal system.
KEYWORDS: Homotransphobia. Racism. Analogy. Legality. Constitution. Dignity of the
Human Person.

1 | INTRODUÇÃO
A homotransfobia é um mal vivenciado por pessoas no mundo todo. A violência
exercida contra o público LGBTQIA+ e a falta de tipificação penal para coibir a conduta
deixa vulnerável esse público, que necessita de ações protetivas exercidas pelos três
poderes.
Nesse sentido, aportaram no Supremo Tribunal Federal – STF, ações
constitucionais com o intuito de proteger as pessoas LGBTQIA+, tais como a Ação Direta
de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO nº 26 e o Mandado de Injunção – MI nº 4.733,
e após longo julgamento, os ministros do STF reconheceram a homotransfobia como crime
de Racismo, com fulcro na Lei nº 7.716/89, causando grande debate dentre os estudiosos
do direito.
A doutrina se divide, já que o tema é controverso, parte discordando do
posicionamento do STF, sob a alegação de desrespeito ao Princípio da Legalidade, não
adoção de Analogia em Direito Penal e Violação do Princípio da Separação dos Poderes,
e outra parcela defendendo o reconhecimento, com fundamento na interpretação conforme
a Constituição.
O presente artigo cientifico tem como objetivo o estudo da decisão do STF, bem como
das diferentes correntes doutrinárias, para analisar se o reconhecimento da homotransfobia
como crime de racismo foi a decisão mais correta para solucionar a problemática.

2 | PESSOAS LGBTQIA+ E A HOMOTRANSFOBIA


Atualmente o gênero é mais do que feminino e masculino e a sexualidade humana
não é mais definida simplesmente como heterossexual e homossexual, havendo diversas
nomenclaturas para abordar diferentes identidades e expressões de gênero.
A sigla LGBTQIA+ representa apenas parcela dessas nomeações e é uma evolução
da antiga sigla GLS, que significava gay, lésbicas e simpatizantes, o que hoje em dia é
deveras simplório e até ultrapassado para se referir à diversidade sexual.
A letra “L” advém de lésbica; “G” de gay; “B” de bissexual; “T” de travestis e
transexuais, “Q” de queer (utilizado para se referir às pessoas que transitam entre os
gêneros), “I” de intersexuais (pessoas que estão entre o feminino e o masculino e não
se adequam à forma binária); “A” de assexuais (pessoas que não sentem atração sexual,
não importando o gênero ou identidade da outra pessoa), e o “+”, representa tantas outras

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 42


definições1. A classificação acima é de extrema importância para o reconhecimento da
diversidade sexual e também para a inclusão do público LGBTQIA+ e seus direitos.
Em contrapartida, o que é diferente por vezes causa estranhamento, preconceito
e medo, e muitos indivíduos expressam esses sentimentos por meio de violência, não
aceitação e desrespeito ao que não julgam correto, natural ou normal.
Em estado de dicionário, fobia é o “sentimento exagerado de medo ou aversão”2.
Assim, “a homotransfobia consiste na discriminação decorrente da orientação sexual,
dirigida à homossexualidade, e a discriminação por identidade de gênero, dirigida aos
travestis e transexuais”3.
Pelo exposto, a homotransfobia atinge não somente gays, lésbicas, travestis e
transexuais, mas a todos aqueles que se identificam ou expressam sua sexualidade fora dos
padrões adotados pelo homotransfóbico como aceitável, tornando esse público vulnerável
aos ditames e ao comportamento agressivo e mortal de seu algoz. Estudos relacionados às
mortes violentas dentre o público LGBTQIA+ no Brasil revelam um aumento de 130 mortes
no ano 2.000, para um ápice de 445 em 2.017, seguido de 420 mortes no ano de 2.018,
com uma redução para 329 em 2.019 e a queda de 91 casos, totalizando 237 mortes em
2.020. Contudo, apesar da queda nos últimos dois anos, o total de vítimas soma 5.047
nos últimos vinte anos. Dos 237 casos computados em 2.020, 161 são entre travestis
e transexuais e 51 são de vítimas gays. Em relação ao perfil das vítimas, mais de 32%
possuem entre 15 e 30 anos e 54% são negras ou pardas.4
Há de se destacar que, além das pessoas LGBTQIA+, os defensores de seus direitos,
ainda que heteros cis-normativos, são sujeitos à essa barbárie, bem como como indivíduos
que ao expressarem afeto por meio de abraços, por exemplo, podem ser confundidos como
homossexuais.
Para Maria Berenice Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem
dos Advogados do Brasil, OAB Nacional:
É enorme preconceito de que são alvo, a perseguição que sofrem, a violência
de que são vítimas. E mesmo assim, não existe legislação que reconheça
direitos a gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais, ou criminalize
os atos homofóbicos de que são vítimas.5

A omissão legislativa, não apenas deixa vulnerável esse público, mas também lhes

1 Definição dada pelo site EDUCA + BRASIL. Disponível em: < https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/dicas/
qual-o-significado-da-sigla- lgbtqia?gclid=cj0kcq jw1dgjbhd4arisanb 6odn4wpk4iabq3hpvtdtmrgxjqdsrpav5b_0umerao-
6zqqkyqoyrrr3qaalaa ealw_wcb>. Acesso em 05 de setembro de 2021.
2 Definição dada pelo Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/fobia/. Acesso em 05
de setembro de 2021.
3 OLIVEIRA, Frederico. HOMOTRANSFOBIA E O ESTADO. Disponível em: https://www.aredacao.com.br/arti-
gos/40547/homotransfobia-e-o-estado>. Acesso em 05 de setembro de 2021.
4 Dados divulgados pelo Observatório de Mortes Violentas de LBTI no Brasil – 2020. Disponível em: < https://observa-
toriomortesviolentaslgbtibrasil.org/2020>. Acesso em 05 de setembro de 2021.
5 DIAS. Maria Berenice. A HOMOFOBIA E A OMISSÃO DO LEGISLADOR. Disponível em: < http://www.berenice-
dias.com.br/manager/arq/(cod2_612)a_homofobia_e_a_omissao_do_legislador__rlatorio_azul.pdf. Acesso em 05 de
setembro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 43


tira a voz, vez que não encontram representatividade dentre os legisladores, que devem se
atentar para os problemas que acometem a população como um todo, como bem aborda
Maria Berenice Dias:
Dos segmentos minoritários, a população LGBT são as maiores vítimas da
exclusão social, da discriminação. Ainda assim, projetos que busquem
atender a esta parcela de cidadãos acabam não interessando ao legislador.
Ora, como apresentar uma lei? Como votar a favor? Como se manifestar em
prol de projeto de lei que tutele os seus interesses? Tal pode desagradar
ao eleitorado. Pode comprometer a reeleição. E pode haver o risco de ser
rotulado como homossexual.6

A homotransfobia é um mal real a ser combatido e a omissão legislativa revela


desinteresse do poder legislativo em resolver a problemática, no entanto, as milhares de
mortes e as famílias destruídas pela violência necessitam de uma solução, fazendo chegar
aos tribunais demandas para atender a deficiência, fazendo nascer o debate: Pode o poder
judiciário adotar medidas punitivas, ou seja, pode criminalizar uma conduta?

3 | PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL

3.1 Princípio da Legalidade


Nas palavras do ilustre Miguel Reale:
Princípios são, pois verdades e juízos fundamentais, que servem de alicerce
ou garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenado em um sistema
de conceitos relativos à dada porção da realidade. Às vezes também
se denominam princípios certas proposições, que apesar de não serem
evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da
validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos
necessários.7

Dessa forma, o princípio é um norteador de interpretação, logo, traz em seu escopo


uma carga valorativa que auxilia o interprete na compreensão e aplicação da norma.
O Direito Penal é carregado de princípios, tais como o Princípio da Presunção de Não
Culpabilidade, Princípio da Lesividade, Princípio da Alteridade, Princípio da Insignificância,
dentre outros, mas seu fundamental princípio é, sem sombra de dúvidas, o Princípio
da Legalidade, que de acordo com parte da doutrina, pode ser dividido em Princípio da
Reserva Legal e o Princípio da Anterioridade.
O Princípio da Legalidade tem previsão constitucional no Art. 5º, XXXIX – CF: Não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, bem como
está expresso no Código Penal, no Art. 1º - CP: Não há crime sem lei anterior que o defina.
Não há pena sem prévia cominação legal.
6 DIAS, Maria Berenice. A HOMOFOBIA E A OMISSÃO DO LEGISLADOR. Disponível em: < http://www.berenicedias.
com.br/manager/arq/(cod2_612)a_homofobia_e_a_omissao_do_legislador__rlatorio_azul.pdf Acesso em 05 de setem-
bro de 2021.
7 REALE, Miguel. FILOSOFIA DO DIREITO. 11ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 1986. P. 60.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 44


De acordo com Fernando Capez:
(...) Com efeito, o princípio da legalidade corresponde aos enunciados dos
arts. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e 1º do Código Penal (..) e contém,
nele embutidos, dois princípios diferentes: o da reserva legal, reservando para
o estrito campo da lei a existência do crime e sua correspondente pena (...), e
o da anterioridade, exigindo que a lei esteja em vigor no momento da prática
da infração penal (...). Assim, a regra do artigo 1º, denominada princípio da
legalidade, compreende os princípios da reserva legal e da anterioridade.8

Dessa forma, é necessário que haja lei em sentido formal que defina um
comportamento como criminoso, sendo que tal lei deve ser anterior a esse comportamento
para que ele seja punido, e esta lei deve estabelecer os limites da pena a ser aplicada.

3.2 Princípio da Taxatividade


Outro princípio que exerce grande importância em matéria penal é o Princípio da
Taxatividade, que expressa que os tipos penais devem ser redigidos com clareza, de forma
a ser de fácil compreensão.
O princípio da taxatividade ou da determinação exige clareza quando
da criação de infração penal porque a norma incriminadora deve ser de
fácil entendimento por todos, ou seja, as condutas criminosas precisam
ser redigidas com clareza pelo legislador para facilitar o entendimento da
população em geral, portanto, não se admite tipos penais com expressão
vaga.9

Nesse sentido, para que haja crime deve existir uma lei em sentido estrito, que
determine que uma conduta descrita com clareza seja considerada incriminadora, sendo
que para tal conduta deve haver um limite de pena, e tanto a lei como a pena devem ser
anteriores ao comportamento do agente.
Logo, se a competência de legislar sobre direito penal, como estabelecido no Art.
22, I, da Constituição Federal, é do poder legislativo federal, que até o presente momento
se quietou inerte em relação à criminalização da homotransfobia, esta não pode ser punida
como crime na ótica dos princípios da legalidade e da taxatividade. Mas, frisa-se que além
dos abordados princípios gerais do direito, são fontes mediatas os costumes e a analogia.

4 | ANALOGIA EM DIREITO PENAL


“Analogia significa aplicar a uma hipótese não regulada por lei, a legislação de um
caso semelhante”10. As expressões latinas ubi eadem ratio ibi idem jus e ubi eadem legis
ratio ibi eadem dispositivo enunciam bem a ideia e significam, respectivamente “onde

8 CAPEZ, Fernando. CURSO DE DIREITO PENAL. Parte Geral 1. 19º Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2015. P. 54.
9 MELO, Paulo César da Silva. PRINCIPIO DA TAXATIVIDADE E A CONSEQUENTE FRAGMENTARIEDADE ÀS
AVESSAS. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88270/principio-da-taxatividade-e-a-consequente- fragmentarieda-
de-as-avessas. Acesso em 06 de setembro de 2021.
10 CASTELLO, Rodrigo. ANALOGIA EM DIREITO PENAL. Disponível em: https://rodrigocastello.jusbrasil.com.br/arti-
gos/121936756/analogia-em-direito-penal. Acesso em 06 de setembro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 45


houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito” e “onde impera a mesma razão
deverá imperar a mesma decisão”. Destarte:
(...) a analogia consiste no complexo de meios dos quais se vale o intérprete
para suprir a lacuna do direito positivo e integrá-lo com elementos buscados
no próprio Direito. Nesta ótica, seu fundamento é sempre a inexistência de
uma disposição precisa da lei que alcance o caso concreto.11

Compreender o que é analogia é importante para entender se é possível sua


aplicação em direito penal, cuja resposta se faz negativa, com fundamento nos princípios
do direito penal. Fernando Capez expõe:
A aplicação da analogia em norma penal incriminadora fere o princípio
da reserva legal, uma vez que um fato não definito em lei estaria sendo
considerado como tal. (...). Neste caso, um fato não considerado criminoso
pela lei passaria a sê-lo, em evidente afronta ao princípio constitucional do
art. 5º, XXXIX.12

Dessa maneira, como o constituinte e o legislador dispuseram expressamente a


necessidade de lei formal para a criminalização de um comportamento, não é possível a
analogia in malan partem, isto é, que seja contrária aos interesses do réu, que seja aplicada
em desfavor do réu, pois tal fato poderia causar uma insegurança jurídica, visto que o
indivíduo não pode ser punido por um comportamento que não foi tipificado como crime.

5 | OMISSÃO LEGISLATIVA
Há insegurança jurídica quando um indivíduo é punido por uma conduta não
tipificada como infração penal, entretanto, também há insegurança jurídica quando um
comportamento causa grande mal à população e nada se faz para coibi-lo, ademais, a
insegurança não é somente jurídica, é concreta dos pontos de vista físico, emocional e
psicológico, gerando consequências negativas à toda sociedade.
Como bem aborda Maria Berenice Dias:
Pontes de Miranda, o nosso juiz maior, diz que a lei carimba um fato, atribuindo-
lhe uma consequência. Grosso modo esta é a função do legislador: apreender
um fato social, transformá-lo numa norma jurídica e prever uma sanção em
caso de descumprimento.

Portanto, as leis servem de norte de como as pessoas devem agir. Criam


pautas de conduta, modelos de comportamento que irão reger a vida em
sociedade. Este e o significado maior da atividade legiferante13.

Se cabe ao poder legislativo a produção das leis no objetivo de atender as

11 CUNHA, Rogério Sanches. A ANALOGIA NO DIREITO PENAL E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. Disponível em:
<https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/08/08/analogia-no-direito-penal-e-jurisprudencia-stj/>. Acesso
em 06 de setembro de 2021.
12 CAPEZ, Fernando. CURSO DE PENAL. Parte Geral 1. 19º Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2015. P. 53.
13 DIAS, Maria Berenice. A HOMOFOBIA E A OMISSÃO DO LEGISLADOR. Disponível em: <http://www.berenice-
dias.com.br/manager/arq/(cod2_612)a_homofobia_e_a_omissao_do_legislador rlator io_azul.pdf>. Acesso em 11 de
setembro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 46


necessidades das pessoas, levando em consideração as mudanças no entendimento dos
valores da sociedade e a evolução dos arquétipos, qual a solução quando este poder não
cumpre seu papel?
A Constituição Federal prevê duas formas de se discutir e buscar soluções para uma
omissão legislativa, o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão.

5.1 Mandado de Injunção - MI


O Mandado de Injução está previsto no artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal e
na Lei nº 13.300/16, e tem seu cabimento quando a falta de norma regulamentadora torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das garantias inerentes da
nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Com efeito, o mandado de injunção tem a finalidade de realizar concretamente
em favor do impetrante, o direito, a liberdade ou a prerrogativa constitucional,
sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício
in concreto. Destarte, não visa obter a regulamentação prevista na norma
constitucional14.

O artigo 8º da Lei nº 13.300/16 determina que o Mandado de Injunção julgado


procedente vincula o juízo competente a:
Lei nº 13.300/16

Art. 8º - Reconhecendo o estado de mora legislativa, será deferida a injunção


para:

I – determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da


norma regulamentadora;

II – estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das


liberdades ou das prorrogativas reclamados, ou, se for o caso, as condições
em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los,
coso não seja suprida a mora legislativa no prazo determinado.

Dessa maneira, a decisão do poder judiciário deverá estabelecer um prazo para que
o poder legislativo edite lei para tratar da matéria discutida no mandado de injunção e dar
ao impetrante as condições para que este exerça seus direitos enquanto a lei não entre
em vigor.
A omissão legislativa pode ser parcial ou total, sendo que o mandado de injunção
constitui controle difuso de constitucionalidade e pode ser impetrado por qualquer pessoa
natural ou jurídica, inclusive em primeira instância, cuja decisão do poder judiciário tem
aplicação inter partes.
Para discutir a omissão legislativa em relação à discriminação dos direitos do público
LBTQIA+ foi impetrado o Mandado de Injunção nº 4.733.
14 AMARAL, Robson Santos. A OMISSÃO LEGISLATIVA E O MANDADO DE INJUNÇÃO. Disponível em: <https://
www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/141087/RUBSON%20SANTOS%20AMARAL.pdf>. Acesso em 11 de se-
tembro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 47


5.2 Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO
Outra forma de se discutir a omissão legislativa é por meio de uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO, prevista nos artigos 102, I, “a” e 103 da
Constituição Federal, e na Lei nº 9.868/99.
Através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, busca-se
combater a “síndrome da inefetividade das normas constitucionais”. Ou seja,
aquelas normas que necessitam de leis para regulamentá-las e produzir seus
efeitos jurídicos. Afinal o fundamento da impugnação da ADO é justamente o
comportamento omissivo por parte do Poder Público.

Portanto, para que seja proposta ação direta de inconstitucionalidade


por omissão, pressupõe que o Poder Público competente para legislar em
determinado assunto não cumpriu o seu dever. Ou seja, não editou norma
advinda de uma determinação constitucional específica15.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão constitui controle concentrado


de constitucionalidade e somente pode ser proposta pelos sujeitos citados no artigo 103 da
Constituição Federal, conforme manda o artigo 12 A da Lei nº 9.868/99, e intenta discutir
uma norma in abstrato, e não a discussão de um caso concreto, como ocorre no Mandado
de Injunção, cujo controle de constitucionalidade é difuso.
Insta constar que conforme o artigo 12-H da Lei nº 9.868/99, declarada a
inconstitucionalidade por omissão, será dada ciência ao poder competente para a adoção
das providências necessárias.
A ADO discute uma omissão legislativa, isto é, o descumprimento de uma ordem
emanada na constituição. Como exemplo desse tipo de ordem podemos citar os mandados
de criminalização, em que o poder constituinte determinou que o poder legislativo tipificasse
crimes de racismo, tortura, dentre outros.
De acordo com Cleber Masson “os mandados de criminalização indicam matérias
sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de legislar, mas a obrigatoriedade
de tratar, protegendo determinados bens e interesses de forma adequada e, dentro do
possível, integral.”16
Os mandados de criminalização podem ser expressos, como no caso do artigo 5º,
XLI, da Constituição Federal, que contém o mandamento de que a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, bem como do inciso XLII
do mesmo artigo, o qual dispõe que o crime de racismo seja inafiançável e imprescritível,
notando-se que além de mandar criminalizar o racismo, o referido dispositivo ordena que
seja insuscetível de fiança e que não prescreva.

15 FONTENELE, Vivian. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO: SAIBA MAIS. Disponível
em: < https://masterjuris.com.br/acao-direta-de-inconstitucionalidade-por-omissao-saiba-mais/>. Acesso em 11 de se-
tembro de 2021.
16 MASSON, Cleber. Apud em ORTEGA, Flavia Teixeira. O QUE SÃO OS MANDADOS DE CRIMINALIZAÇÃO. Dis-
ponível em: < https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/388280706/o-que-sao-os-mandados-de- criminalizacao>.
Acesso em 11 de setembro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 48


Vale salientar que além de expresso, o mandado de criminalização pode ser implícito,
quando há o descumprimento de uma ordem da constituição, como a proteção dos direitos
fundamentais, por exemplo.
Pelo exposto, no que tange à homotransfobia é possível concluir que há sim uma
omissão legislativa, visto que o poder legislativo federal, responsável por legislar sobre
direito penal, não tomou a iniciativa em punir a conduta de quem desrespeita direitos e
liberdades fundamentais relacionados às pessoas LGBTQIA+.
Para discutir esta omissão foi proposta a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
por Omissão nº 26.

6 | AÇÕES PARA DISCUTIR A MORA LEGISLATIVA NO QUE TANGE À


DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS LGBTQIA+
Dentre as ações e remédios constitucionais ajuizados para requerer soluções para
a problemática do desrespeito de direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais do
público LGBTQIA+, destacam-se o Mandado de Injunção nº 4.733 e a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, mote do presente artigo científico.

6.1 Mandado de Injunção – MI nº 4.733


O Mandado de Injunção nº 4.733 foi impetrado pela Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas e Transgéneros – ABGLT em face do Congresso Nacional, tendo como Relatador
o Ministro Edson Facchin, sendo julgados procedentes os pedidos de: i) Reconhecer a
mora inconstitucional do Congresso Nacional e, ii) Aplicar, até que o Congresso Nacional
venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 (Lei Antirracismo).
O MI nº 4.733 contou como amicus curiae o Grupo Dignidade – Pela Cidadania de
Gays, Lésbicas e Transgêneros, em apoio à impetrante, e o Instituto Brasileiro de Direito
de Família – IBDFAM em apoio ao impetrado, além de tantos outros advogados, tais como
Maria Berenice Dias, já citada no presente artigo.
O cabimento do referido MI teve por fundamento o artigo 5º, LXXI, CF, que dispõe
que caberá Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes
à nacionalidade, à soberania e à cidadania, visto que o direito e a liberdade para ser e
expressar sua sexualidade é constantemente ameaçado pela violência praticada por
grupos intolerantes.
Em sua sustentação oral, o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti expos:
Sobre o cabimento do Mandado de Injunção [4733]: embora haja um
inconsciente coletivo na doutrina que acha que “só cabe” mandado de
injunção para criar direito subjetivo que precisa constitutivamente criado por
lei, não é isso que diz a Constituição: A Constituição diz que cabe mandado
de injunção sempre que a ausência de norma regulamentadora inviabilizar
direitos e liberdades constitucionais – é a primeira parte [do dispositivo] – e

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 49


prerrogativa inerentes à cidadania sua parte final. (...) Porque a ordem de
criminalizar não é um amesquinhamento de direitos fundamentais de quem
vai ter a conduta criminalizada, (...) é um mecanismo de proteção dos direitos
fundamentais e direitos humanos do grupo a ser protegido.17

O julgamento do MI nº 4.733 foi conjunto com o da Ação Direta de Inconstitucionalidade


por Omissão – ADO nº 26, razão pela qual os argumentos para a decisão serão abordados
posteriormente.
6.2 Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO nº 26
A Ação Direto de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO nº 26 foi proposta
pelo Partido Popular Socialista em face do Congresso Nacional, pelo mesmo escopo
do MI nº 4.733, tendo como Relator o Ministro Celso de Mello e cujo julgamento decidiu
procedente para: i) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional
na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação
a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção
penal aos integrantes do grupo LGBT; ii) declarar, em consequência, a existência de
omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; ii) cientificar o Congresso
Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art.
12-H, caput, da Lei nº 9.868/99; iv) dar interpretação conforme à Constituição, em face
dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da
Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua
manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha
legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional.18

6.3 Dos argumentos do julgamento conjunto


Conforme abordado anteriormente, o julgamento do MI nº 4.733 e da ADO nº 26 foi
realizado conjuntamente, pelo fato de ambas as ações versarem sobre o mesmo tema, com
a mesma causa de pedir e pedidos semelhantes.
O extenso julgamento se pautou na discussão principal de criminalização da
homotransfobia, seu reconhecimento como mora inconstitucional do Congresso Nacional,
responsável por legislar sobre matéria penal, com pedido de estabelecimento de prazo
para edição da norma e aplicação da Lei Antirracismo até a edição de lei própria.
Os argumentos contrários aos pedidos sustentaram: i) a impossibilidade de
criminalizar uma conduta que não tipificada por lei emanada pelo poder legislativo federal;
ii) o descumprimento dos princípios penais como legalidade e reserva legal; iii) a inaplicação
de analogia em direito penal, assim como iv) a violação do princípio da separação dos
poderes, sob a alegação que o poder judiciário estaria usurpando uma atividade típica do

17 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF, A HOMOTRANSFOBIA E O SEU RECONHECIMENTO


COMO CRIME DE RACISMO. Editora Spessoto. Bauru. 2020. P. 58 / 59.
18 Retirado da Decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da ADO nº 26, disponível em: http://portal.stf.jus.br/proces-
sos/detalhe.asp?incidente=4515053. Acesso em 11 de outubro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 50


poder legislativo.
Em relação à vedação do uso da analogia em direito penal, bem como os princípios
que regem a criação de uma norma criminalizadora, estes já foram abordados no inicio
deste artigo, restando então verificar o Princípio da Separação dos Poderes, expresso no
artigo 2º da Constituição Federal, que trata os poderes legislativo, executivo e judiciário
como independentes e harmônicos entre si.
Para entender se há usurpação da função típica do poder legislativo pelo poder
judiciário, vale salientar que os poderes possuem suas funções típicas e atípicas, sendo
possível ainda o controle de um sobre o outro no chamado Sistema de Freios e Contrapesos.
O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio
poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas
seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse
abusos no exercício por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário). Dessa forma, embora cada Poder seja independente e autônomo,
deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.19

Ademais, além das funções típicas, os Poderes possuem funções atípicas, sendo
certo que o Poder Judiciário possui função atípica administrativa e legislativa. “Além da
função típica de julgar, é também do Judiciário a função classificada como função atípica,
de natureza legislativa, a edição de normas regimentais e preenchimento de lacunas das
leis mediante intepretação do caso concreto”.20
Os argumentos favoráveis aos pedidos das supracitadas ações estão embasados
na interpretação conforme a Constituição Federal, ressaltando que a carta magna rege o
ordenamento jurídico pátrio e seus princípios devem nortear a intepretação da legislação
infraconstitucional.
A hermenêutica jurídica possibilita diversas formas de interpretação: literal,
histórica, teleológica, extensiva, restritiva, dentre outras. Dessa forma, entende-se que a
interpretação se dá não apenas pela decodificação gramatical do texto legal, mas deve
levar em consideração o momento histórico da produção da norma e sua finalidade.
“A interpretação conforme a Constituição é aquela em que o intérprete adota a
interpretação mais favorável à Constituição Federal, considerando-se seus princípios e
jurisprudência, sem, contudo, se afastar da finalidade da lei.”21
Nesse sentido, Claudio de Oliveira Santos Colnago ensina:

19 PISKE, Oriana e SARACHO, Antonio Benites. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEOORIA DOS FREIOS E CON-
TRAPESOS (CHECKS AND BALANCES SYSTEM). Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/
campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e- entrevistas/artigos/2018/consideracoes-sobre-a-teoria-dos-freios-e-contra-
pesos-checks-and-balances-system- juiza-oriana-piske>. Acesso em 11 de outubro de 2021.
20 MALAQUIAS, Felipe Coli. DA FUNÇÃO ATÍPICA ATRIBUÍDA AO PODER JUDICIÁRIO. Disponível em: <https://
domtotal.com/direito/pagina/detalhe/38383/da-funcao-atipica-atribuida-ao-poder- judiciario#:~:text=Al%C3%A9m%20
da%20fun%C3%A7%C3%A3o%20t%C3%ADpica%20de,mediante%20interpre ta%C3%A7%C3%A3o%20do%20
caso%20concreto.. Acesso em 11 de outubro de 2021.
21 LIMA, Caroline Silva EM QUE CONSISTE O MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO?
Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2235579/em-que-consiste-o-metodo-de-interpretacao- conforme-a-
-constituicao-caroline-silva-lima. Acesso em 11 de outubro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 51


(...) no que diz respeito aos fundamentos justificadores da adoção das
decisões interpretativas pelo Supremo Tribunal Federal, a doutrina elege,
basicamente, os seguintes: a) supremacia da Constituição, da qual deriva a
unidade do ordenamento jurídico; b) presunção de constitucionalidade das
leis; c) princípio de economia no máximo aproveitamento dos atos legislativos;
d) harmonia entre os Poderes ou deferência ao legislador.

Poderíamos, ainda, destacar como fundamento relevante para as decisões


interpretativas a expressão de um ativismo judicial, ou seja, de um poder
discricionário de interpretação da Constituição, exercido pelas Cortes
Constitucionais.22

Assim, os princípios e fundamento que levaram ao entendimento de que sim, há uma


mora legislativa na não criminalização da homotransfobia, estão na Constituição Federal
de 1988, a iniciar pelo fundamento expresso no artigo 1º, III – CF, a Dignidade da Pessoa
Humana, expressão que possui diversos conceitos, mas que se traduz na ideia de respeito
e proteção à pessoa humana, pelo simples fato de ser humana.
A Constituição Federal elenca ainda em seu artigo 4º, os objetivos da República
Federativa do Brasil, dentre eles: I) Construir uma sociedade livre, justa e solidária e, IV)
Promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, expõe que:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão
e de consciência, devem agir uns para os outros em espirito de fraternidade”.
Corroborando a DUDH, o caput do artigo 5º da Constituição Federal declara que:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, entendendo-se que
a orientação sexual não deve ser justificativa para a discriminação, muito menos para a
violência e extermínio.
Pelo exposto, é evidente que a Constituição Federal tem como foco a proteção da
pessoa humana e repudia qualquer forma de discriminação, sendo que algumas condutas
o constituinte entendeu tão graves que determinou sua criminalização, são os chamados
Mandados de Criminalização, dentre eles, o mandado de criminalização do racismo,
expresso nos incisos XLI e XLII da Constituição Federal,

7 | RECONHECIMENTO DA HOMOTRANSFOBIA COMO CRIME DE RACISMO


No julgamento do MI nº 4.733 e da ADO nº 26, o Supremo Tribunal Federal reconheceu
haver mora inconstitucional já que ainda não há lei que criminalize a homotransfobia,
determinando a cientificação do Congresso Nacional acerca do mandamento do § 2º do
artigo 103 da Constituição Federal e do caput do artigo 12-H da Lei nº 9.868/99, isto é, que
edite a norma para solução da mora inconstitucional, determinando ainda, que até a edição
22 COLNADO, Cláudio de Oliveira Santos. INTERPRETAÇAO CONFOME A CONSTITUIÇÃO: DECISÕES INTER-
PRETATIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. São Paulo. Editora Método. 2007.P.
130.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 52


de lei própria, se reconhece a homotransfobia como crime previsto no artigo 20 da Lei nº
7.716/89, a Lei Antirracismo.
A decisão causou descontentamento em parte da doutrina, sob a alegação de
a Lei nº 7.716/89 não deveria abarcar a homotransfobia, contudo, o STF justificou que
o racismo não protege somente a raça, ou seja, não são levados em conta apenas os
critérios biológicos, mas também critérios como etnia, religião e orientação sexual, que são
entendidos como componentes de um racismo social.
O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se
para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta,
enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-
cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao
controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação
da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem
grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém
posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados
estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento
jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa
estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral
de proteção do direito.23

O entendimento do STF é que o racismo social se traduz pela dominação de um


grupo social por outro, por motivos ideológicos, deixando-o marginalizado e mais vulnerável,
carente de proteção de seus direitos.

8 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
O julgamento do Mandado de Injunção nº 4.733 e da Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão – ADO nº 26, foi longo e polêmico, dividindo a doutrina
e a opinião pública, de um lado os defensores da criminalização da homotransfobia, de
outro os contrários à criminalização, seja por considerar correta a conduta e incorreta a
manifestação da sexualidade diversa ao gênero hetero cis- normativo, seja por acreditar
contrariar o ordenamento jurídico, sob a tese de desrespeito ao Princípio da Separação dos
Poderes e aos princípios penais.
Os argumentos contrários à criminalização se fundaram na ideia de que o Poder
Judiciário não pode usurpar a função típica de legislar do Poder Legislativo, além de
considerar desrespeitar os princípios penais que determinam que apenas a lei em sentido
estrito pode criminalizar uma conduta, lei esta que deve emanar do Congresso Nacional,
sendo inadmissível também, a utilização de analogia em direito penal.
Em contrapartida, os favoráveis à criminalização suscitaram a mora legislativa, sob
a alegação de que há um mandado de criminalização da conduta, expresso nos incisos XLI
e XLII da Constituição Federal.

23 Retirado da Decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da ADO nº 26, disponível em: http://portal.stf.jus.br/proces-
sos/detalhe.asp?incidente=4515053. Acesso em 11 de outubro de 2021.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 53


Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora inconstitucional, e
determinou a cientificarão do Congresso Nacional para edição da lei, determinando ainda
que, até a sua edição, seja a homotransfobia reconhecida como crime de racismo, com
fulcro na Lei nº 7.716/89, por entender se tratar de um racismo social.
Destarte, entende-se acertada a decisão da suprema corte, pois no julgamento do MI
nº 4.733 e da ADO nº 26, o Supremo Tribunal Federal não criou uma nova figura típica, de
forma a desrespeitar o Princípio da Separação dos Poderes e princípios penais, tampouco
fez analogia in mallam partem ou extensiva, apenas deu à Lei nº 7.716/89 uma interpretação
conforme à Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, entendendo que a
homotransfobia constitui crime de racismo na medida em que é a expressão da dominação
de um grupo social por outro, visto que o racismo abarca muito mais que as características
biológicas do indivíduo.
Por conseguinte, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tem
como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana e como objetivos construir
uma sociedade livre, justa e solidária, e promover o bem de todos, sem qualquer forma de
discriminação, e ignorar a homotransfobia, deixando as pessoas LGBTQIA+ ainda mais
vulneráveis à violência física, institucional e praticada pelo próprio Estado, configura mais
que uma proteção insuficiente, é desumano e degradante.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Robson Santos. A OMISSÃO LEGISLATIVA E O MANDADO DE INJUNÇÃO. Disponível
em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/141087/RUBSON%20SANTO S%20
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CASTELLO, Rodrigo. ANALOGIA EM DIREITO PENAL. Disponível em: https://rodrigocastello.jusbrasil.


com.br/artigos/121936756/analogia-em-direito-penal. Acesso em 06 de setembro de 2021;

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DECISÕES INTERPRETATIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.
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Disponível em: < https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/08/08/analogia-no-direito-penal-
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rlatorio_azul.pdf>. Acesso em 05 de setembro de 2021; FONTENELE, Vivian. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO: SAIBA MAIS. Disponível em: < https://masterjuris.
com.br/acao-direta-de- inconstitucionalidade-por-omissao-saiba-mais/>. Acesso em 11 de setembro
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MELO, Paulo César da Silva. PRINCIPIO DA TAXATIVIDADE E A CONSEQUENTE


FRAGMENTARIEDADE ÀS AVESSAS. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88270/principio-da-
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FREIOS E CONTRAPESOS (CHECKS AND BALANCES SYSTEM). Disponível em: <https://www.
tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e- produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2018/
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REALE, Miguel. FILOSOFIA DO DIREITO. 11ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 1986;

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo. Editora Companhia das Letras. 2019;

SANTOS, Poandson. A CRIMINALIZAÇÃO DA TRANSFOBIA NO BRASIL. UMA ANÁLISE DO ADO


Nº 26 E DO MI Nº 4.733. Livro Digital formato Kindle, não paginado. 2021;

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF, A TRANSFOBIA E O SEU RECONHECIMENTO COMO


CRIME DE RACISMO. Bauru. Editora Spessoto. 2020.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 5 55


CAPÍTULO 6

JUSTIÇA, VINGANÇA PRIVADA E O IMAGINÁRIO


POPULAR PUNITIVISTA

Data de aceite: 01/03/2023

Bruno Gabriel Lisboa Lima RESUMO: Almejou-se com este artigo


Graduando em Direito. Pesquisador do analisar a presença da vingança na
Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre concepção popular de justiça ao longo do
Crime e Criminalidade - NUPECC (CNPq). tempo e as punições desproporcionais
Estagiário de Direito na Empresa de ocasionadas por esse imaginário. Como
Tecnologia da Informação e Comunicação evoluiu historicamente o imaginário
do Estado do Pará (PRODEPA). punitivista a partir da concepção popular
Associado ao Conselho Nacional de
do que seja a justiça? De que forma a ideia
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito -
de Justiça e de punibilidade foi abordada
CONPEDI. Militante da Frente Estadual
pelos pensadores do Direito? Quais as
Pelo Desencarceramento do Pará.
Membro da Comissão Universitária da reverberações desse imaginário vingativo
OAB (COUNI) no momento contemporâneo? Realizou-se
Belém – Pará leituras e análises de fontes bibliográficas
e estudos de casos contemporâneos que
Mauro Vinícius Brito dos Santos Filho
evidenciam a relação entre vingança e
Graduando em Direito. Pesquisador do justiça. Tem-se como principal conclusão que
Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre
a natureza humana, com seu pensamento
Crime e Criminalidade - NUPECC (CNPq)
coletivo respaldado no senso comum e
Belém – Pará
levando em consideração suas emoções
Paulo Sérgio de Almeida Corrêa apenas e não uma moral criada com testes
Professor Titular. Faculdade de Educação. ao passar de gerações, ainda tende a
Instituto de Ciências da Educação. elevar a vingança ao patamar de justiça,
Universidade Federal do Pará. Bacharel efeito que não é originado propositalmente,
e Especialista em Direito. Doutor em mas sim derivado da junção de ausência do
Educação Estado no cumprimento do seu dever em
Belém – Pará
aplicar e executar leis e um desalinhamento
https://orcid.org/0000-0002-9975-9919
moral das leis escritas, e da política pública
criminal, àquelas que atenderiam ao apelo
ético e moral do povo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal; Justiça;

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 56


Vingança; Sociedade.

ABSTRACT: This article aimed to analyze the presence of revenge in the popular conception
of justice over time and the disproportionate punishments caused by this imagination. How did
the punitive imaginary evolve from the popular conception of what justice is? How was the idea
of justice and punishment addressed by legal thinkers? What are the reverberations of this
vengeful imagination in the contemporary moment? Readings and analyzes of bibliographic
sources and contemporary case studies were carried out that show the relationship between
revenge and justice. Its main conclusion is that human nature, with its collective thinking
supported by common sense and taking into account only its emotions and not a morality
created with tests over generations, still tends to raise revenge to the level of justice, an effect
which is not purposefully originated but rather derived from the combination of the State’s
failure to fulfill its duty to apply and execute laws and a moral misalignment of written laws,
and criminal public policy, with those that would meet the ethical and moral appeal of the
people.
KEYWORDS: Criminal Law; Justice, Revenge; Society.

INTRODUÇÃO
No decorrer dos séculos houve inúmeras tentativas de criar uma concepção de
justiça a qual de fato fosse justa, no entanto, durante muito tempo o que se conseguiu
foi apenas criar conceitos de justiça imbuídos, em sua essência, de vingança, pois,
primeiramente criou-se a concepção popular de justiça que associava dois elementos
distintos, a justiça e a religião, criando-se uma concepção ligada às divindades da época,
o que acabou desembocando em um punitivismo desenfreado, pois toda violação cometida
contra a sociedade era tida como uma ofensa a um deus, portanto, era punida com a morte.
Superada essa ideia de justiça divina, iniciou-se uma época de justiça privada,
na qual, os próprios cidadãos - os quais possuíam seus direitos infligidos - buscavam a
justiça com as próprias mãos e essas ações reativas, muitas vezes, eram desmedidas e
imbuídas de um sentimento de vingança extrema. Ainda, mais adiante no tempo, foi cedido
ao Estado o ius puniendi, o direito de punir os cidadãos, e, com isso, acreditou-se fielmente
termos conseguido criar uma forma de justiça a qual de fato fosse justa, no entanto, logo
se percebeu o quão cruel também pode ser o Estado por meio das medidas de coerção
e consenso que busca efetivar a justiça social (AZEVEDO, 2013, p. 129) junto aos seus
jurisdicionados.
Atualmente, vivemos uma época em que o Estado punitivo foi parcialmente freado,
principalmente, pelo advento das constituições e do direito internacional. Apesar disso,
percebe-se que entre a população, permanece vivo um extremo clamor, possuído por um
sentimento de vingança, de volta à justiça privada. Por isso, a vingança tem sido um tema
extremamente recorrente nas sociedades contemporâneas, sendo retratada em inúmeros

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 57


filmes e livros, como os clássicos “Código de conduta”1, “V de Vingança”2 e o livro “ O
Conde de Monte Cristo”3. Devido a sua importância, é necessário que ela seja debatida
profundamente, principalmente para que se crie um conhecimento acadêmico aprofundado
sobre o assunto.
Com isso, compete aos coautores do presente artigo analisar a presença da vingança
na concepção popular de justiça ao longo do tempo e as punições desproporcionais
ocasionadas por esse imaginário, principalmente, da segunda categoria de justiça
supracitada (os indivíduos que acreditam na íntima ligação entre os conceitos de vingança
e justiça), que devido ao crescimento exponencial da violência e da criminalidade, tornou-
se uma concepção cada vez mais ostensiva. Ocasionando assim, inúmeros problemas
sociais, a título de exemplo: a superlotação dos presídios (MACHADO, GUIMARÃES, 2014,
p. 566), as violações dos direitos humanos dos reclusos no Brasil (BRIZI, PINHEIRO, 2008,
p. 8135) e os inúmeros casos de linchamentos públicos ocorridos ao longo do território
brasileiro (PAGLIARINI, 2015, p. 6).
A crença na relação íntima entre justiça e vingança não é um conceito novo, mas um
fenômeno social e cultural que passou por vários estágios antes de se chegar na concepção
atual. Possuindo sua origem, aproximadamente, na época das sociedades antigas, como
a asteca, perpassando pelos povos da idade média, sendo discutida em vários estratos da
sociedade, seja por filósofos e literatos até finalmente se chegar à idade moderna e, por
fim, à idade contemporânea, onde é flagrante a existência de uma polarização ideológica
entre sujeitos que acreditam na prevalência dos Direitos Humanos frente a qualquer coisa
e aqueles declaradamente contrários a essa concepção.
Nota-se que a perpetuação desse discurso extremamente punitivista, trouxe à tona a
necessidade de se debater o conceito de proporcionalidade das penas, devido a incoerência
na aplicabilidade penal, principalmente, na época da idade moderna, no período de grande
força da igreja católica na Europa, onde foram aplicadas penas extremamente brutais e
controversas.
A presente pesquisa está fundamentada em fontes bibliográficas, documentais e o
estudo de caso para evidenciar a manifestação da problemática nos dias atuais. Fez-se
a contextualização histórica com base na obra “Tratado de Direito Penal” do Dr. Cezar
Roberto Bitencourt (2020); para a análise literária foram consultados os livros “Crime e
Castigo” de Fiódor Dostoievski (2016) e Laranja Mecânica de Anthony Burgess (2019).
Para uma análise dos pensadores, houve consultas às obras de Thomas Hobbes, Frédéric
Bastiat, “ O Livro da Psicologia” de Catherine Collin (2012) e o artigo “ Bastiat e o conceito

1 Lançado no ano de 2009, seu personagem principal tenta revelar as incoerências existentes no sistema judicial,
uma vez que certos assassinos são absolvidos e retomam a liberdade, ou, obtêm o benefício da redução das penas
aplicadas.
2 Teve sua estreia no ano de 2006. Retrata uma perspectiva futurista na qual a Inglaterra se rege por um Estado tota-
litário, mas um de seus personagens exorta os ingleses a se rebelar contra a situação e unificar forças em defesa da
libertação e da justiça.
3 Aborda a vida de jovem preso injustamente, porém, elabora estratégias vingativas contra quem o traiu.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 58


de lei e justiça” de Jo Pires O’Brien (2013).
Por sua vez, a análise contemporânea se efetivou a partir de situações ocorridas
em várias localidades do Brasil, a fim de evidenciar que esse não é apenas um problema
de uma localidade específica, mas um fenômeno social e cultural de abrangência nacional.
Somando-se a esta introdução, o texto está distribuído em 4 seções: na primeira,
tem-se como foco o contexto histórico em que surge a vingança enquanto medida de
justiça; na segunda, abordou-se a vingança a partir da produção de determinados autores
que se dedicaram ao assunto; na terceira, analisou-se a relação entre justiça e vingança;
na quarta, explanou-se diversas situações em que a vingança privada prevaleceu enquanto
medida para se fazer prevalecer a justiça; registrou-se as reflexões finais na conclusão e,
posteriormente, foram indicadas as referências consultadas.

UM BREVE HISTÓRICO DA VINGANÇA COMO JUSTIÇA


A concepção de justiça como a conhecemos hoje não teve uma evolução linear e
sistemática como muitos acreditam, mas sim possuiu três estágios antes de chegar no
significado atual, foram estes: o da vingança divina, vingança privada e vingança pública
(BITENCOURT, 2020, p. 88). De modo a compreender o processo de evolução do conceito
de justiça, faz-se necessário a análise dessas três eras.
A vingança denominada de divina foi praticada desde os primórdios das civilizações
humanas, era praticada principalmente quando uma sociedade se via ante a um mal
específico, sendo geralmente fenômenos naturais, que eram tidos como um castigo por
alguma ofensa feita aos deuses por um indivíduo daquele povo, assim, esse infrator pagava
por sua ofensa com a própria vida. Demonstrando um conceito de justiça extremamente
arcaico e sem arcabouço jurídico algum, baseado apenas na religião.
A tentativa de superação dessa vindita divina deu origem à vingança privada que,
nos seus primórdios, vigorava em duas situações, uma era quando um membro do grupo
ofendia qualquer de seus integrantes (este era punido com o banimento), outra era quando
havia ofensa entre grupos (que desencadeavam guerras grupais) (BITENCOURT, 2020,
p.89). Com o advento das cidades-estados, tentou-se trazer mais justeza para essa
vingança, o que deu origem à lei de talião, que criou o conceito famoso “olho por olho,
dente por dente” e que basicamente garantia que o mal sofrido pela vítima também fosse
infligido ao seu agressor.
Finalmente, superando as fases da vingança divina e da vingança privada
chegou-se a vindita pública. Nesta fase, o objetivo da repressão criminal
é a segurança do soberano ou monarca pela sanção penal, que mantém
as características da crueldade e da severidade, com o mesmo objetivo
intimidatório (BITENCOURT, 2020, p.90).

O ápice dessa fase se deu com o advento dos estados absolutistas que se utilizavam
da religiosidade, por meio da crença no direito divino dos reis (O monarca era um enviado

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 59


por deus para governar o povo), para justificar as suas sanções penais extremamente
arbitrárias e desproporcionais, entre elas o esquartejamento, a roda e a fogueira.
Com isso, se concebe que o conceito popular do que é justiça precisou de séculos
até chegar a concepção que temos hoje, a qual, mesmo não sendo uma das melhores,
ainda é o melhor disponível até hoje, pois, mesmo que tenhamos abandonado as penas
cruéis e a vingança de sangue, a população, no geral, clama por penas duríssimas para
certos crimes, suplica por pena de morte, mesmo Beccaria já tendo formulado argumentos
extremamente convincentes do por que esse tipo de pena se constitui um tremendo
absurdo, e ainda pratica linchamentos públicos para com aqueles que intitulam a escória
da sociedade, os criminosos.

A VINGANÇA NA LITERATURA
Na literatura em geral, há dois casos que chamam bastante atenção no que diz
respeito à vingança. O primeiro, trata-se do caso de Ródion Românovitch Raskólnikov
personagem principal do romance Crime e Castigo, que desenvolve uma peculiar teoria
que prega que o mundo se divide entre homens ordinários e extraordinários e afirma que
os ordinários são sempre submissos à lei e os extraordinários, como Napoleão, são dignos
das maiores atrocidades em nome de um bem maior sem que com isso devam sofrer os
rigores da justiça legal (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 254-273).
Embora na trama dostoiévskiana o protagonista, após pôr em prática sua teoria
se deparar com falhas morais grosseiras em suas atitudes que o levam a uma grave
desestabilização psicológica, revertida apenas após a conquista da redenção outorgada
pela sua punição devida dentro dos trâmites legais, ainda hoje vemos um fenômeno
semelhante na sociedade moderna.
Tal fenômeno é observável após a união de dois fatores que são a inefetividade
do Estado no cumprimento de leis e/ou leis não condizentes com a moral geral da
população. Com essa combinação no mínimo “explosiva” vêm à tona indivíduos à imagem
e semelhança de Raskólnikov, crentes de que são dignos de estabelecer a justiça por si
mesmos, praticando a vingança privada, em nome de uma suposta sociedade melhor.
Vários são os problemas disso que nomeamos aqui de “raskolnificação”. O principal,
que é do que trataremos, refere-se à vulnerabilidade e corruptividade de pessoas que
outrora seriam inclinadas à lei, como é o caso do aumento do surgimento de milícias4,
entidades formadas por policiais e agentes da lei em atividade ou aposentados atuando
dentro de um próprio código moral deturpado na execução e aplicação de vinganças em
nome de um suposto “bem da população”.
4 Matéria recente destaca que “Milícias se alastram por pelo menos 11 estados”. Entre os milicianos estão “ações de
grupos paramilitares armados e chefiados por agentes públicos da área de segurança”. Além disso, eles expandem
suas atuações por “territórios urbanos e rurais, onde impõem lei própria e serviços econômicos, além de se envolverem
em assassinatos”. Disponível em: https://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/2907553/milicias-se-alastram-por-pelo-menos-
-11-estados. Acesso em: 01 fev. 2023.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 60


Isso se torna evidente quando da análise da notícia publicada pela UOL notícias em
2022 , que diz que em um período de 16 anos, somente no Rio de Janeiro, as milícias quase
5

quintuplicaram seus territórios de domínio e atualmente são os maiores grupos criminosos


localizados nessa Unidade Federada. Em termos mais exatos, o domínio desses grupos
paramilitares cresceu em 387,3% no período concernente a 2006-2021.
Além disso, o problema é ainda pior quando analisamos a notícia da CNN6, a qual fala
que o MPE foi acionado para investigar o envolvimento de candidatos a deputado federal e
estadual com organizações criminosas responsáveis por tráfico de drogas, milícias e jogo
do bicho. Evidenciando uma tentativa de entrada no poder público, por essas organizações,
como uma estratégia de proteção e perpetuação dessa vindita privada.
Por isso, ainda em analogia à trama de Dostoiévski, deve-se observar os efeitos
colaterais negativos no decorrer do romance russo, com o personagem sendo consumido
pelo peso que adquiriu ao tentar tomar para si a responsabilidade do que achava necessário
para provar a si que era um homem digno de poder contrariar a lei para realizar um ato
que acreditava ser irrelevante dado ao que considerava ser a vítima originalmente visada
ter natureza desprezível (na visão de Ródion) como usurária, exploradora da dificuldade
alheia, e de modos rudes.
Ressalta-se, que Raskólnikov fez duas vítimas diretas. A primeira, dentro de seus
planos, representava ao jovem tudo o que deveria ser descartável no mundo; o que não
faria falta. No entanto, contra todo seu planejamento, durante a execução da velha usurária,
faz-se necessário, contra seus planos, o assasinato da irmã da mulher, que figura de certa
forma como duplo da assassinada Aliena Ivánovna. Enquanto a primeira expressava
amargor e atitudes reprováveis socialmente, a segunda era querida pela comunidade.
Empregando a narrativa à realidade brasileira, podemos fazer uma analogia aos
casos nacionais de vingança privada, que, mesmo alegando buscar a justiça, os efeitos
colaterais são imprevisíveis e quase sempre com tendência à tragédia, ferindo o bem
jurídico que, via de regra, se promete proteger: a vida.
O segundo caso, consiste na análise da obra Laranja Mecânica, onde o personagem
principal Alex após cometer um assassinato, passa por todo o processo legal de julgamento
e condenação. No entanto, já inserido na prisão, passa por tratamento experimental
chamado tratamento Ludovico, que consiste em despertar desconforto e vertigens nos que
se inclinarem a atos de violência.
O imbróglio moral é que Alex não passa por uma evolução real e sim por uma
artificial que apaga não só sua inclinação à criminalidade, mas também traços de sua
personalidade, tal como a capacidade de apreciação da música clássica. Isso, por si só
5 Milícia cresce 387% e ocupa metade do território do crime no RJ, diz estudo. Disponível em: https://noticias.uol.com.
br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/09/13/milicia-cresce-161-e-ocupa-metade-do-territorio-do-crime-no-rj-diz-estudo.
htm. Acesso em: 01 fev. 2023.
6 MPE apura suposta ligação de candidatos do RJ com organizações criminosas. Disponível em: https://www.cnnbra-
sil.com.br/politica/mpe-apura-suposta-ligacao-de-candidatos-do-rj-com-organizacoes-criminosas/. Acesso em: 01 fev.
2023.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 61


configura um paralelo com a realidade nacional que demonstra que a vingança pode
também partir por parte do Estado como é visto na falta de políticas dedicadas a reinserção
de ex-criminosos na sociedade, fazendo com que boa parte desses, tornem-se reincidentes
condenados a um ciclo de violência.
Portanto, entendemos que o ‘’tratamento ludovico’’ pode ser compreendido como
uma alegoria, representativa de que as políticas estatais não estão de fato focadas em
alcançar a reabilitação dos infratores, e sim em buscar diminuir o possíveis problemas, de
forma barata, que podem a vir sofrer causações por indivíduos que resultam da negligência
estatal em proporcionar políticas públicas que afastariam os cidadãos da criminalidade.

A JUSTIÇA E VINGANÇA SOB O PRISMA DE HOBBES E BASTIAT


Algumas das características da visão de Thomas Hobbes de contrato social servem
ainda hoje como ponto de partida para conclusões importantes na discussão que tenta
delimitar os significados de vingança e justiça de modo que não se tenha intercessão entre
uma e outra, aplique-se penas que sejam razoáveis no sentido de não serem brandas
ao ponto de transmitirem sensação de impunidade e nem severas para se considerar
arbitrárias e desproporcionais.
Pena é um dano infligido pela autoridade pública àquele que fez ou omitiu
aquilo que, pela mesma autoridade, é julgado transgressão da lei, com a
finalidade de que a vontade dos homens fique, desse modo, mais inclinada à
obediência. [...] Antes da instituição do Estado, cada um possuía o direito a
todas as coisas, fazendo o que considerasse necessário a sua preservação,
podendo com essa finalidade, subjugar, ferir, ou matar qualquer um. Esse é
o fundamento do direito de punir exercido em todos os Estados (HOBBES,
2014, p. 244).

É possível inferir, com base nessa proposta, que essencialmente o que vem a diferir
a justiça da vingança é o agente que põe em prática a ação. Uma vez que o contrato social
estabeleceria a delegação desse direito do povo ao Estado. Obviamente, não levaremos
em consideração integralmente a ideia oferecida pelo autor, mas devemos conservar a
ideia central do que justificaria o Estado agir em nome do indivíduo, afastando, tanto quanto
possível, a emotividade humana inerente no momento de aplicação da pena.
Obviamente, é esperado que a vítima não deve julgar e tampouco executar uma
punição de uma situação que figure como parte, a fim de evitar arbitrariedade, desproporção
e insegurança jurídica, devendo, por isso, o Estado tomar naturalmente o seu lugar,
fazendo prevalecer o princípio do contraditório e da ampla defesa, inscrito no art. 5º, LV
da Constituição do Brasil (BRASIL, 1988), consequentemente que os homens fiquem mais
inclinados à obediência.
Quando isso ocorre, pode-se ter dois problemas possíveis interpretáveis pela visão
de Hobbes e de Frédéric Bastiat. De acordo com o primeiro, isso tem seu desencadeamento

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 62


pela ausência do Estado no que tange ao cumprimento das leis, causando momentos de
volta ao estado de natureza selvagem de todos contra todos. Seguindo o raciocínio de
Frédéric Bastiat, a lei seria a manifestação coletiva do direito individual de autodefesa
(BASTIAT, 2016, p. 25).
Desse modo, caso estivesse de acordo com a moral, a lei seria representação da
justiça, que, por sua vez, teria como definição, de forma deveras abstrata, a ausência da
injustiça, essa sim, palpável e com existência observável a partir do dano a que condena
seus contemplados (O´BRIEN, 2018). Assim sendo, o problema surge quando as leis ou
sua execução passam a ser consideradas imorais pela sociedade, gerando episódios
pontuais de aplicação da “justiça com as próprias mãos”, um eufemismo para a vingança
quando exercida de forma privativa.
É válido buscar as interpretações do conceito do que de fato é a pena para fins
principalmente de uma melhor compreensão acerca da sua legitimação. As leituras da
finalidade da pena basicamente se dividem entre retribucionistas e prevencionistas, duas
visões diferentes sobre um mesmo assunto que mudam totalmente a forma com que a
justiça e vingança são apropriadas.
Ninguém pode negar que a pena é um mal que se impõe como consequência
de um delito. A pena é, sem dúvida, um castigo. Aqui não valem eufemismos,
e também a teoria preventiva deve começar a reconhecer o caráter de castigo
da pena. Entretanto, uma coisa é o que seja a pena e outra, distinta, qual seja
a sua função e o que legitima o seu exercício.[...] os retribucionistas creem
que a pena serve à realização da justiça e que se legitima suficientemente
como exigência de pagar o mal com outro mal. Os prevencionistas estimam,
noutro prisma, que o castigo da pena se impõe para evitar a delinquência na
medida do possível e que somente está justificado o castigo quando resulta
necessário para combater o delito [...] (PUIG, p.41, apud NUCCI, 2021, p.
307).

Assim sendo, acreditamos que, de fato, penas de caráter prevencionista tendem


muito mais a abusos e desproporção no que diz respeito à aplicação do castigo, devido
ao fato de, em sua natureza, já se esperar causar um dano maior ao infrator do que o que
foi delinquido, a fim mesmo de coibir terceiros de praticarem o mesmo ato. No entanto,
devemos considerar que, ao menos quando se aplica, em certo grau, o pensamento de
Hobbes, penas retribucionistas também podem ser configuradas como vingança. Um
cidadão que resolve, com base nos próprios critérios do que considera proporcional, aplicar
um castigo àquele que lhe causou dano, não deixa de exercer uma vingança particular ao
romper o cumprimento de sua parte no contrato social, no que diz respeito a delegar essa
obrigação ao Estado-Juiz.
Ao associar a ideia dos dois pensadores, pode-se chegar à conclusão de que o
Estado, ausentando-se de sua função primordial de fornecer segurança a seus habitantes e,
abstendo-se de promulgar leis com simetria à moral de seus cidadãos, acaba por propiciar
um terreno fértil ao surgimento de recorrentes casos de aplicação de punições (na maioria

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 63


das vezes, desproporcionais) a indivíduos considerados transgressores da moral.
Observa-se que transgredir a moral quase sempre gera algum tipo de punição, seja
de caráter de desaprovação social ou mesmo agressões físicas, enquanto que alguns atos
tipificados no ordenamento jurídico, não contam com o mesmo grau de repúdio, como o
caso da prática do jogo do bicho. Isso se deve ao fato de normas dessa orientação não
terem uma origem em que a moral é seu alicerce, mas sim nascerem com fins de mudar
a visão moral, artificialmente, acerca de um costume que é visto com grau de reprovação
baixo ou indiferente pelos cidadãos.
Da mesma maneira, ao aplicar castigos que são entendidos como inefetivos e
brandos, quando comparados com o dano causado por um infrator, estimula cada vez
mais a descrença nas instituições e em suas políticas públicas criminais, ocasionando
rotineiramente casos de linchamento ou mesmo organização de movimentos ordenados de
repressão, tais como as milícias.
Esses casos de vingança privada, passam a ser naturalizados e até aprovados
por parte da população, que é induzida a acreditar que cada um recebe o que merece,
efeito que é estimulado pelo inconsciente na tentativa de fazer o indivíduo sentir que esteja
habitando e transitando em um ambiente seguro, estável e organizado (COLLIN, et al,
2016, p. 242-243).
Verifica-se que tanto propostas baseadas em interpretações de castigo com fins
prevencionistas ou retribucionistas podem se desdobrar em vingança, dependendo da
proporcionalidade ou do agente que julga e/ou a executa. Por isso, o importante, é, seja
uma natureza prevencionista ou retribucionista da pena, um alicerce baseado na moral
emanada do povo que a lei deve proteger. Caso haja dissonância com esse critério, mais
cedo ou mais tarde o cidadão perderá a crença nas instituições que deveriam protegê-lo,
e tentará, por meio da vingança particular, reaver o poder que outrora delegou ao Estado,
de manter a segurança e garantir a ordem, e, com isso, abalar toda a segurança jurídica e
ordem social na sociedade da qual é membro.

LINCHAMENTOS: UM CASO DE HISTERIA PÚBLICA


O brilhante filósofo e sociólogo Michel Foucault (1987) dedicou sua vida aos estudos
das relações de poder, com isso, publicou o livro “Vigiar e punir”, no qual se dedicou a
fazer análises acerca da evolução da punição perpetrada pelo Estado até desembocar na
mais atual forma de punição que são as prisões. No livro ele conceitua o termo suplício,
que seriam as penas altamente violentas perpetradas pelo estado no Séc. XVIII contra
seus populares como forma de espetacularização da punição para que a sociedade ficasse
tomada de medo e não mais delinquisse, trabalhando assim, uma das funções penais que
seria a retributiva geral, a qual visa intimidar a população por intermédio da aplicação da
lei penal.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 64


Entretanto, Foucault ao trabalhar sua teoria dos suplícios, toma como superada
a forma penal da vingança privada, porém, as reflexões e análises de nosso estudo,
demonstram que essa forma de aplicação da lei penal ainda se constitui extremamente
viva na nossa sociedade atual, materializando-se especificamente por intermédio dos
linchamentos públicos.
O sociólogo Martins (1996, p.14), caracteriza o linchamento como:
O linchamento tem caráter espontâneo e o típico linchamento se configura
em decisão súbita, difusa, irresponsável e irracional da multidão. Mesmo nos
casos em que o linchamento não é praticado “pela típica multidão anônima
e o é por grupos mais bem comunitários”, não decorre de uma atitude de
vigilância, como é próprio do vigilantismo.

No Brasil, esse ainda é um fenômeno pouco estudado, e sua existência remete à


vingança privada, pois, como foi mostrada anteriormente com os estudos realizados por
Cezar Bitencourt em seu Tratado de Direito Penal, a justiça privada é aquela perpetrada de
populares contra populares, de semelhantes para semelhante e se dá quando um ou vários
populares possuídos por uma vontade de fazer justiça, em face de um bem jurídico violado,
retomam a força o ius puniendi cedido ao Estado e, acometidos por um poder de autotutela,
realizam a justiça da forma que bem entendem, de modo a praticar uma retribuição “justa”,
justeza essa que a história já provou ser desproporcional, mas atualmente somasse esse
sentimento contra a falta do poder judiciário, com os frequentes casos de impunidade dos
criminosos, e por isso a população advoga para si o poder e a necessidade de praticar
justiça com as próprias mãos.
Assim, preleciona Ribeiro (2014):
Os linchamentos são motivados por crimes contra a pessoa e, dentre eles, os
sexuais e os crimes contra a propriedade, essas são agressões diretamente
voltadas ao EU-POSSE que tornam o ato uma violação direta ao sagrado, ao
meu corpo, à minha propriedade, a minha individualidade.

De outra parte, o professor Damásio de Jesus (2014) também elencou os cinco


motivos os quais ele acredita que são a grande causa desses linchamentos e é possível
ver clara relação com as motivações dadas até agora:
1- As penas criminais, no Brasil, não amedrontam. A maior severidade do
quantum da pena não reduz a criminalidade. Como é sabido o qua reduz a
criminalidade é a certeza da punição, o que não ocorre em nosso sistema
criminal. Além disso, salvo casos raros de premeditação, na fase de cogitação
do delito o autr não pensa nos efeitos dele e sim no resultado ou finalidade
da conduta;

2- Há uma sensação de impunidade. Os criminosos não acreditam na função


preventiva de coerção das penas. Tanto que não se preocupam mais em
cobrir os rostos nos assaltos. As leis do sistema criminal só aproveitam
aos criminosos, havendo excessivo número de normas que admitem a
liberdade provisória e a concessão de fiança, permitindo que eles, ainda que
surpreendidos em flagrantes, ganhem a liberdade saindo pela porta da frente

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 65


das delegacias de polícia. Nesse item de falar-se também nas “saidinhas” e
indultos, os quais na ausência de exames criminológicos liberam condenados
perigosos;

3- Há um número insuficiente de policiais;

4- Imputabilidade penal aos 18 anos de idade;

5- Condições socioeconômicas.

Ademais, visa salientar que o tipo penal desses linchamentos públicos foi instituído
pelo Decreto-Lei n° 2.848/40, pelo artigo 345 o qual preleciona em seu caput “Art. 345 -
Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando
a lei o permite:”. Assim, mesmo essa conduta sendo tipificada pelo Código Penal brasileiro,
ainda é uma conduta extremamente comum e seus agentes quase nunca são punidos,
com exceção de raros exemplos, como se observará nos casos estudados mais adiante,
pois, essa é uma conduta que apesar de tipificada é tida como normal pelas camadas mais
populares da sociedade. Com isso, tendo demonstrado o por que a vingança privada ainda
ocupa tanto espaço na sociedade brasileira, passa-se agora para a análise de alguns casos
de linchamento os quais ficaram famosos no Brasil no ano de 2022.
O primeiro exemplo de linchamento ocorreu no Estado do Rio de Janeiro. A CNN
NEWS BRASIL em cobertura jornalística publicou no dia 4 de fevereiro de 2022: Caso
Moïse: os fatores que levam a tantos casos de linchamento no Brasil.
Moïse se mudou do Congo em 2011 com a mãe e os irmãos, como refugiado
político, para fugir da guerra e da fome.O rapaz de 24 anos foi espancado
até a morte no dia 24 de janeiro, depois de, segundo sua família, cobrar o
pagamento de duas diárias atrasadas no quiosque onde trabalhava na praia
da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio.

Esse é um dos raros casos em que realmente foi investigado os autores do


linchamento, e isso só aconteceu devido a uma grande pressão internacional e pelo fato
de Moïse ser considerado o tal “cidadão de bem”, o cidadão que não possui ficha criminal,
além disso, ele não foi linchado devido a prática de um crime, como se verá mais adiante, o
procedimento é diferente quando a pessoa agredida foi linchada por ter cometido um crime.
O segundo exemplo de linchamento ocorreu no Estado do Pará. O jornal Folha do
Progresso em cobertura jornalística publicou no dia 2 de dezembro de 2022: Homem é
linchado após tentar matar quatro pessoas no Pará
A Polícia Militar de Curuçá foi informada que havia acontecido um homicídio
dentro de uma casa, localizada no km 42, mais precisamente na Travessa
Belo Horizonte. Policiais militares de serviço na viatura 0512 foram até o local
informado e identificaram a vítima como Reginaldo Avelino Aguiar. De acordo
com as informações colhidas pelos policiais militares e que constam no Boletim
de Ocorrência da PM, Reginaldo entrou na casa de seus familiares e começou
a desferir vários golpes de terçado nas pessoas que estavam na residência.
Ao menos quatro pessoas ficaram feridas gravemente. Testemunhas disseram

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 66


que, antes de invadir o imóvel, Reginaldo teria sofrido um surto psicótico. As
vítimas foram socorridas e encaminhadas ao hospital. Revoltados, populares
espancaram Reginaldo até a morte. O corpo dele ficou jogado dentro de uma
residência até ser removido pela Polícia Científica.

O caso noticiado anteriormente é um dos exemplos em que em momento algum


foi mencionado na notícia se os culpados pelo linchamento e homicídio do Sr. Reginaldo
estariam sendo investigados, o que nos leva a crer que essas pessoas que são acusadas
de cometer crimes bárbaros são tidas como dignas de serem linchadas e indignas pelo
poder público de que sejam cumpridos os seus direitos ao contraditório, à ampla defesa e
ao devido processo legal.
O terceiro exemplo de linchamento ocorreu em Porto Velho. O jornal Folha de
Vilhena em cobertura jornalística publicou no dia 16 de dezembro de 2021: Homem agride
esposa e é linchado por vizinhos em conjunto habitacional de Porto Velho
Um homem de 36 anos, foi morto depois de ser espancado dentro do
apartamento da irmã no Residencial Morar Melhor, em Porto Velho. Vizinhos
invadiram o local e o lincharam após presenciarem o homem agredindo a
esposa. O crime foi registrado na segunda-feira (7) e a Delegacia Especializada
em Crimes Contra a Vida investiga o caso.

Outro caso em que os autores que praticaram o crime de linchamento público


tipificado no artigo 315 do Código Penal não foram investigados e muito menos condenados,
o que nos faz levantar a questão paradoxal de que um dos motivos desses linchamentos é a
impunibilidade de criminosos, mas esses que lincham em prol de uma dita justiça, acabam
se tornando criminosos e também ficam impunes, levando à retroalimentação infinita. Além
disso, vale mencionar que no ordenamento jurídico brasileiro existe o conceito do princípio
do Juiz Natural que está previsto no Art 5° nos incisos XXXVII, LII, LIV, LV da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade


competente;

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido


processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados


em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;

Com isso, é evidente que esse princípio é extremamente aviltado por esses
linchamentos públicos visto que, ao linchar as pessoas as quais cometeram um crime,
cria-se um tribunal de exceção, no qual o juiz é a opinião pública, e esses, os quais são

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 67


julgados por esses tribunais da opinião pública, não têm direito a um julgamento digno pelo
Estado, muito menos a um juiz de direito de verdade, violando assim, um dos artigos mais
importantes da constituição brasileira.
Além disso, o Brasil ratificou a Declaração Universal de Direitos Humanos na qual
nos artigos 3° e 5° se comprometeu a resguardar os direitos básicos inerentes a todo ser
humano e a proteger contra a tortura e ao tratamento cruel toda pessoa que resida em
seu território. Por isso, a não apuração desses casos de linchamento pelo simples fato da
maioria das pessoas linchadas, salvo raros exemplos, terem cometido um crime, constitui-
se clara violação desse compromisso internacional, nos termos do que fixou a Constituição
do Brasil de 1988:
Artigo 3. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal.

Artigo 5. Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo


cruel, desumano ou degradante.

Por fim, fica evidente que o Estado brasileiro precisa tomar uma atitude para frear
essa problemática dos linchamentos públicos, visto que, caso contrário, estaremos cada
vez mais próximos de voltar a uma justiça privada como preleciona o doutrinador Cezar
Bitencourt, ou caminharemos para um estado de violência de todos contra todos, como
prelecionou o filósofo Thomas Hobbes.

CONCLUSÃO
O presente artigo possuiu como pressuposto a análise de como se desenvolveu
o conceito de justiça na mente da população e como que se chegou a essa ideia vulgar
de mistura conceitual entre a justiça e a vingança. Assim, as finalidades e os problemas
da pesquisa foram esclarecidos visto que, após minuciosa análise, iniciando-se com a
contextualização histórica, passando por uma análise desse ideal em umas das principais
literaturas do mundo, e até mesmo nas ideias dos maiores pensadores da história, chegou-
se à comprovação dessa teoria de confusão conceitual por intermédio dos inúmeros casos
de linchamento relatados.
Além disso, o método utilizado foi extremamente promissor, visto que, devido
à finalidade da pesquisa, somente por intermédio da análise bibliográfica e documental
poderia ser feito o seu estudo da melhor forma possível e apenas com a análise de casos
reais relatados pela mídia brasileira se conseguiria, de fato, comprovar a problemática ora
apresentada dentro da realidade do país.
Após as análises sobre a linha tênue entre vingança e justiça, permeando dúvidas
e sendo discutida ao longo da história, na literatura, para os pensadores mais diversos e,
ainda, na sociedade moderna, através mesmo da cultura popular, ainda é difícil identificar
uma concepção ideológica sobre justiça que, definitivamente, determine e delimite onde

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 68


uma começa e a outra termina.
O que se percebe é que a natureza humana, com seu pensamento coletivo
respaldado no senso comum, e levando em consideração suas emoções apenas e não uma
moral criada ao longo de testes ao passar de gerações, ainda tende a elevar a vingança
ao patamar de justiça, efeito que não é originado propositalmente, mas que, no entanto,
pode ser muito influenciado por diversos atores, principalmente aqueles que se dedicam
à vida pública como políticos, e isso se evidencia quando da análise da polarização a
qual vivemos hoje, concretiza-se quando da análise da influência da política criminal do
armamento coletivo sancionada pelo Presidente do Brasil Jair Messias Bolsonaro (2019-
2022) sob o imaginário de justiceiro da população em geral, em que indivíduos os quais
normalmente, apesar de clamarem por vingança quando na verdade o que caberia seria a
justiça acabam por praticar sua justiça de sangue com armas e agressões letais.
Ainda, derivado da junção de ausência do Estado no cumprimento do seu dever em
aplicar e executar leis e um desalinhamento moral das leis escritas, e da política pública
criminal, àquelas que atenderam ao apelo ético e moral do povo. O que nos resta, seria
definir objetivamente o que seriam essa ética e moral que emanam da população, todavia,
todas as tentativas até agora resultam não em justiça, mas em vingança disfarçada de
justiça, como nos mencionados casos de linchamentos públicos demonstrados neste
estudo.
A conclusão que se abstrai, portanto, é de que caso não haja esforço por parte dos
governantes, conjuntamente com a população, a vingança ainda influirá na mentalidade da
população, usurpando o lugar de direito da justiça, como tem acontecido há muitos séculos.
Vide a lei de talião, que vigorou em uma sociedade fruto de uma vontade errônea de criar
uma certa justiça, mas que na verdade criou uma justiça de sangue na qual cidadãos
buscavam não a reparação ao mal que lhes foi infligido, mas a retaliação, a vingança
contra seus concidadãos, pois, que justiça há em um cidadão poder infligir o mal que lhe foi
causado na igual proporcionalidade na qual lhe foi aplicado, que justiça há em um cidadão
que teve seu filho tirado de suas mãos por homicídio poder tirar o filho de um concidadão
com as suas próprias mãos, não há justiça nenhuma, apenas uma vingança desmedida e
sem precedentes, contrária ao Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS
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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 6 71


CAPÍTULO 7

ESTUPRO UMA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A


MULHER: MUDANÇAS DE PENALIDADES COM A
LEI 12.015/2009

Data de aceite: 01/03/2023

Jéssyca da Silva Garcia em todos os aspectos. E como resultados


Bacharel em direito pela Faculdade de detecta-se a inovação coerente da
Colinas do Tocantins – FACT legislação brasileira mediante as mudanças
dos contextos sociais e culturais, focando
Luciane Santos Coelho
cada vez mais na dignidade humana em
Bacharel em direito pela Faculdade de
todas circunstâncias, como psicológica,
Colinas do Tocantins – FACT
física, social, economia, política e histórica.
PALAVRAS-CHAVE: Lei nº 12.015/2009.
Mulher. Estupro. Dignidade humana/sexual.
RESUMO: Este artigo objetiva-se em Constituição Federal de 1988.
evidenciar a Lei nº 12.015/2009 na defesa
da dignidade sexual da mulher, inovando
RAPE A SEXUAL VIOLENCE
com penalidades e unificando as tipologias
AGAINST WOMEN: CHANGES
penais, estupro e atentado ao pudor, como IN PENALTIES UNDER LAW
um único crime, “estupro”. Para com estas 12.015/2009
inovações defender as pessoas da violência
ABSTRACT: This article aims to highlight
sexual, especialmente as mulheres que
Law nº 12.015/2009 in the defense
sofrem em seus domicílios com agressores
of women’s sexual dignity, innovating
conhecidos, parentes e até cônjuges
with penalties and unifying the criminal
que atentam contra dignidade humana e
typologies, rape and indecent assault,
sexual. Assim, para estudar esta realidade
as a single crime, “rape”. Stop with these
foi utilizada como metodologia a pesquisa
innovations to defend people from sexual
bibliográfica, a qual por meio de teorias e
violence, especially women who suffer
legislações apresentou a história de luta do
in their homes with known aggressors,
sexo feminino em prol da isonomia entre
relatives and even spouses who violate
homens e mulheres, no que se refere aos
human and sexual dignity. Thus, to study
direitos e deveres na sociedade que foram
this reality, bibliographic research was used
proporcionados pelos textos constitucionais
as a methodology, which through theories
de 1988, os quais trouxeram muitos direitos
and legislation presented the history of the
fundamentais e humanos ao meio social

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 72


struggle of the female sex in favor of isonomy between men and women, with regard to the
rights and duties in the society that were provided by the 1988 constitutional texts, which
brought many fundamental and human rights to the social environment in all aspects. And as
a result, the coherent innovation of Brazilian legislation is detected through changes in social
and cultural contexts, focusing more and more on human dignity in all circumstances, such as
psychological, physical, social, economic, political and historical.
KEYWORDS: Law nº 12.015/2009. Women. Rape. Human/sexual dignity. Federal Constitution
of 1988.

1 | INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como tema “Estupro uma Violência Sexual contra a
Mulher: Mudanças de Penalidades com a Lei 12.015/2009”, discute as mudanças da
legislação brasileira para punir os agressores sexuais que violentam crianças e adultos
independentemente do sexo, mas aqui o foco é o estupro praticado contra a mulher, a qual
tem uma trajetória de luta na sociedade brasileira e no mundo.
Destarte, o estudo bibliográfico faz uma retrospectiva da história da mulher dando
ênfase às suas conquistas adquiridas por meio dos movimentos feministas, os quais se
tornaram poder constituinte por se tornarem textos constitucionais de direitos e deveres da
mulher perante a sociedade, tornando o direito de isonomia uma realidade entre homens
e mulheres, mas é claro que a excelência deste direito ainda está na teoria porque na
prática ainda se encontra no processo de construção, já que diversas mulheres sofrem
com várias tipologias de violências na sociedade e em seus próprios lares, inclusive com o
estupro cometido por agressores desconhecidos, conhecidos, parentes e até pelos próprios
cônjuges.
Assim, o objetivo deste artigo é de evidenciar a Lei nº 12.015/2009 na defesa da
dignidade sexual da mulher, inovando com penalidades e unificando as tipologias penais,
estupro e atentado ao pudor, como um único crime, “estupro”. E tem como questão
problema a seguinte: Quais foram as mudanças de melhorias das penalidades para o crime
de estupro, trazida pela Lei nº 12.015/2009?
A hipótese inicial é a de que Lei nº 12.015/2009 inovou a legislação brasileira
contra o crime do estupro, punindo aqueles que agridem a dignidade sexual das pessoas
e consequentemente a dignidade humana, porque impedem os sujeitos de usufruírem a
liberdade de praticar o sexo como desejam sem atingir terceiros.
Neste viés, os textos elaborados em seções deste artigo cumprem com o dever
de direcionar o leitor a uma sequência de raciocínio para melhor compreensão, então
primeiramente foram apresentados os direitos e a identidade da mulher no Brasil, abordagem
sobre a sociedade machista que impedia e impede a plenitude da mulher no seu contexto
social, cultural, político e econômico. E ainda, descreve a trajetória das legislações sobre
o crime do estupro.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 73


E por fim, as considerações finais do assunto discutido e as referências bibliográficas
com os autores e suas respectivas obras.

2 | CONHECENDO OS DIREITOS E A IDENTIDADE DA MULHER NO BRASIL


Falar do gênero ou sexo feminino é destacar sobre os mais nobres movimentos
sociais existentes na sociedade mundial, especialmente no Brasil que na atualidade
apresenta uma identidade de valoração e empoderamento, a qual foi conquistada e
amparada pelos textos constitucionais, como aborda o artigo 5º da Constituição Federal de
1988 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Sendo este um dos principais e polêmicos direitos, porque tem como destaque de
discussão a igualdade, ou seja, que equipara os direitos entre homens e mulheres, visto
que a grande luta do movimento feminista foi pela erradicação do machismo ou domínio do
sexo masculino no que se refere ao mercado de trabalho, na política e em todos os setores
da sociedade, sendo estes espaços a visão de conquista das mulheres.
Ressalta-se que esta luta pela isonomia teve início no século XIX com várias
personagens, dentre elas Nísia Floresta no ano de 1832, a qual é um dos principais nomes
em prol dos direitos feministas. Observe que Floresta (1832), refletia sobre o interesse dos
homens em retirar as mulheres do mundo da ciência e em outras áreas do conhecimento,
que em sua concepção são direitos que também devem ser usufruídos pelas mulheres.
E é neste viés que Fonseca (2011), afirma que a trajetória histórica da sociedade
apresenta os papéis e as funções desempenhadas tanto pelo homem quanto pela mulher,
as quais são permeadas pela desigualdade devido o sexo de cada um, uma vez que
existe “supervalorização” do masculino e desvalorização do feminino por causa da cultura
machista enraizada.
Nesta perspectiva, é relevante enfatizar que a identidade feminina é constituída
pela cultura, da interatividade dos sujeitos sociais e a imagem que permite reconhecer a
mulher no meio social, oportunizando o posicionamento na maneira individual e coletiva na
sociedade, assim a identidade nasce da construção social, que o com o tempo interioriza
e passa a ser vivida por uma maioria, em outros termos esta construção ganha diferentes
nuances no decorrer da história que muda conforme as organizações sociais e suas
respectivas características que são imprescindíveis para adequar o sistema vivido por uma
determinada sociedade ou população.
Neste emaranhado, é possível afirmar que a identidade feminina pode ser
compreendida por meio dos grupos sociais e contextos familiares, como mostra Silva
(2005):
Uma das formas de se entende o lugar da mulher na sociedade é conhecendo

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 74


a relação afetiva que esta estabelece com seus pares (companheiro, filho(s)
e familiares). Compreender a construção de sua sexualidade ao longo da
história e o que perpassa no seu imaginário em relação ao companheiro
escolhido, trazendo uma compreensão de sua realidade atual e da evolução
que ela vivenciou até então. (SILVA, 2005, p.65).

Contudo, as mudanças econômicas, culturais, políticas, tecnológicas e sociais ou a


evolução global dificulta a construção da identidade, já que altera a vida ou a familiaridade
com o processo evolutivo por ocasionar mudanças no modo de ser. E consequentemente
a igualdade de gênero, entre homens e mulheres, visto que o gênero fundamenta-se em
aspectos ideológicos, valores e crenças no que se refere ao sexo biológico, em outros
termos é a maneira que a sociedade visualiza o sexo feminino e masculino.
Deste modo, a discussão sobre desigualdade ou igualdade de gêneros discutido
neste trabalho científico quer evidenciar que homens e mulheres precisam ter os
mesmos direitos e deveres, o que é considerado alicerce para construir uma sociedade
menos preconceituosa, como defende Bezerra (2016), a desigualdade de gênero é um
dos elementos que eterniza as heterogeneidades sociais, especialmente aquelas que se
fundamenta na diferença entre sexos.
Observa-se que este contexto de desigualdade é cristalizada principalmente pelo
senso comum minimiza a mulher e protegem situações que a estigmatiza no contexto
social, político, cultural e econômico, o que por sua vez se torna visível nas diferenças de
valores salariais, nos cargos e nas funções exercidas pelos homens e mulheres.
Segundo Gikovate (1989), estas diferenças que valoriza o sexo masculino e
desvaloriza o sexo feminino existe no seio familiar e no meio social, uma vez que as famílias
cobram desde cedo o destaque do homem como profissional, ou seja, existe uma cobrança
para que o homem seja causa de orgulho para a família e enfim de sempre manter um nível
padronizado de supremacia por meio da masculinidade.
Diante das reflexões aqui apresentadas é possível perceber que a cultura
machista tem como base a valorização extrema do sexo masculino e em contrapartida a
desvalorização do sexo feminino, o que fez muitas mulheres do passado ir para as ruas
lutar em prol de um poder constituinte de direitos, tornando-se uma realidade nos textos
constitucionais, principalmente na Constituição Federal Brasileira de 1988.
Como Castilho (2010), afirma que os direitos humanos e fundamentais foram
estabelecidos de acordo com os movimentos sociais aos seus governantes, dos quais
nasceram as constituições nas diferentes nações, como por exemplo, França, México,
Estados Unidos e Brasil com as diversas Constituições que começaram a ser promulgadas
de 1824 até 1988, nas quais as mulheres ganham diferentes destaques somente em
algumas, observe:

• Na Constituição de 1824 apresenta benefícios ao poder governamental como


garantia da educação primária e previsões de construções de colégios e

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 75


Universidades;

• Constituição de 1891 evidencia instituição de eleições, liberdade para criação


de partidos, constitui também voto para os homens, exceto para mulheres,
analfabetos, religiosos e outros;

• Constituição de 1934 institui voto direto e secreto para homens e mulheres a


partir dos 18 anos e faz previsão do nascimento dos órgãos da justiça eleitoral
e do trabalho;

• Constituição de 1937 faz evidencia sobre a pena de morte e eleição indireta,


destitui a liberdade partidária e ainda cria prisões e exílios para aqueles que
forem opositores do governo;

• Constituição de 1946 descreve diversos direitos, tais como: igualdade dos cida-
dãos diante da lei, liberdade para opinar, de consciência, de crença, extinguiu a
censura e pena de morte e estabeleceu a eleição direta.

• Constituição de 1967 é considerada a legislação autoritária da história brasilei-


ra, visto que o comando era feito pelas instituições militares exército, marinha e
aeronáutica e estas comandaram a ditadura por 21 anos.
Além destas, houve a promulgação da Constituição de 1988, a qual trouxe diversos
avanços em direitos fundamentais e humanos, dentre eles é interessante frisar o direito da
igualdade dos sujeitos, inclusive a isonomia dos sexos, feminino e masculino, ou melhor,
trouxe a equiparação de direitos a todos os cidadãos no que se refere a liberdade, a
diversidade e enfim alcança a sociedade com respeito a cultura, a etnia, a raça, a cor e a
todos os aspectos sociais, políticos e econômicos. Embora, muitos destes direitos estejam
apenas em teoria, ainda sim significa “avanço” porque eles terão que se tornar prática, por
ser uma legislação constituída.
Observa-se que por muito tempo as mulheres viveram em situação de submissão
plena, devido à sociedade durante séculos cultivar uma ideologia ou cultura patriarcal e
machista, que deixou resquícios na atualidade em forma de exploração, preconceito e
discriminação. Como escreve Telles (1999, p. 9-10):
Compreender que a submissão, por mais sutil que seja, é o resultado de um
processo de tal forma brutal, que acaba por impedir a própria vontade de
viver dignamente. Ninguém é oprimido, explorado e discriminado porque
quer. Uma ideologia patriarcal e machista tem negado à mulher o seu
desenvolvimento pleno, omitindo a sua contribuição histórica. A mulher não é
apenas a metade da população e mãe de toda humanidade. É um ser social,
criativo e inovador. (TELLES, 199, p.9-10)

É possível compreender diante desta reflexão que o poder inovador do sexo ou


do gênero feminino por meio dos diversos movimentos feministas que surge de forma
gradativa o exercício dos direitos em todos os âmbitos da sociedade, que na opinião de
Telles (1999, p. 13): “[...] O feminismo é um movimento político. Questiona as relações de
poder, a opressão e a exploração de grupos de pessoas sobre as outras. Contrapõe-se

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 76


radicalmente ao poder patriarcal. Propõe uma transformação social, econômica, política e
ideológica da sociedade”.
Porém, nem todos os avanços femininos se tornaram conhecidos, visto que no
passado a literatura ou os textos eram escritos pelas mãos masculinas, o que por sua vez
pode ter impedido uma sequência linear dos fatos ou das conquistas, pois conforme Telles
(1999), quem escrevia os acontecimentos eram os homens e por isso, estes registravam
como atos heroicos somente quando as mulheres morriam no lugar dos homens em alguma
luta para defendê-los. E assim, os fatos mais expressivos começaram a se evidenciarem
a partir das literaturas escritas pelas próprias mulheres, especialmente a partir de 1850.
Destaca-se que as mulheres começaram a ingressar no mercado de trabalho,
principalmente nas indústrias no século XVIII e XIX, época em que veio o advento do
capitalismo e da revolução industrial. Lembra que o avanço foi apenas de adentrar o
mercado de trabalho como os homens, mas eram consideradas subalternas e recebiam
salários menores que os homens.
Devido a esta desigualdade dos valores de salários surgiram várias lutas por espaço
e direitos na sociedade, o que por sua vez requereu muitas lutas pela promulgação de
legislações que equiparasse estes direitos entre homens e mulheres, não somente na
questão salarial mais em todos os aspectos.
Nesta época a luta entre homem/mulher segundo Perrot (2017), acontecia porque
os homens não aceitavam o preenchimento de seu espaço evidenciado na produção fabril.
Insatisfação que é vivenciada também pelo sexo feminino no século XIX, por causa das
desigualdades existentes entre masculino e feminino, quanto à remuneração salarial,
direitos trabalhistas, igualdade no trabalho e ao voto.
Ressalva que estas regalias concedidas surgiram após o movimento feminista
que reuniu diversas mulheres para clamarem por escolas, creches e outros benefícios,
como por exemplo, direitos iguais ou a efetivação da democracia. Contudo, as mulheres
contrariam as regras sociais da época com estas lutas, que trouxeram a oportunidade de
usufruto de melhorias por meio das leis em todos os seus aspectos democráticos.
Segundo Perrot (2017), a ação feminina realmente data desde séculos passados,
mas é relevante frisar que além das afrontas ocorreram vários avanços na questão dos
direitos constitucionais, principalmente nas legislações contemporâneas, tornando assim
a Constituição Federal brasileira de 1988 de grande relevância na efetivação dos direitos
humanos dos cidadãos, tornando-a uma Constituição cidadã.
Na concepção de Piovesan (apud CASTILHO, 2010, p. 108), a Constituição de 1988
foi baseada e incrementada pelas ações de “[...] convenções, pactos internacionais que
tratam do fim da tortura; direitos da criança; direitos civis e políticos; direitos econômicos,
culturais e sociais; prevenção, punição e amenização das práticas violentas” cometidas
em desfavor da mulher e ainda o Protocolo que erradica todas as afrontas discriminatória
contra a mulher.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 77


Apesar de todas as legislações que amparam as mulheres a cultura machista não
admite o empoderamento do sexo feminino, por isso, continuam acontecendo inúmeros
tipos de violências e morte, que a cada dia crescem exorbitantemente. Freitas (2007), fala
sobre uma das violências, a doméstica, que segundo ele é o retrato da cultura que mostra
a mulher como um ser diminuído ou inferior que tem como finalidade servir aos caprichos
dos seus companheiros.
Assim, é possível presumir que a melhoria deste cenário em que as mulheres estão
aquém no usufruto dos direitos, o Código Penal inclui em seu bojo penalidades em favor
das mulheres e em desfavor dos agressores, para que assim seja amenizada as limitações
de direitos (BRASIL, 1940).
Neste aspecto Lombroso (1871 apud FARIA, 2007), defende as penalidades
apresentadas pelo Código Penal, as quais contribuíram para o advento da ciência
denominada Criminologia Positivista, a qual no Brasil cooperou na ideia de estudos sobre
os estereótipos que podem influenciar no relacionamento social e também elaborou ideias
de comportamentos padronizados para as mulheres, dentre estes evidenciam-se as regras
padronizadas que se referem a sexualidade, de onde apareceram ações preconceituosas
e violentas que estão enraizadas na cultura e no meio social brasileiro, como por exemplo,
estupros praticados por muitos agressores na sociedade.
Para melhor, compreender sobre o estupro no meio social veja a próxima seção.

2.1 Sociedade Machista e as suas Consequências: Estupro contra a Mulher


Conforme Drummont (1980), o machismo é um sistema ideológico que possibilita
várias formas de identificação, tanto para o sexo masculino quanto para o sexo feminino,
visto que desde a infância é possível perceber determinadas situações de relacionamentos
que independem das vontades, mas que de uma forma ou de outra formam consciências,
no que diz respeito a superioridade masculina e inferioridade feminina.
Esta relação diferenciada de superioridade masculina, de acordo com Saffioti e
Almeida (1995), mostram que a dominação legitimada do homem no seio familiar é um
elemento decisivo para que exista maus tratos de todas as tipologias tanto contra crianças
quanto contra mulheres, por serem estes sujeitos considerados mais vulneráveis.
Desta maneira, considera-se que esta cultura machista com o passar do tempo
nasceram vários domicílios violentos com humilhações, atos libidinosos/estupros para
mulheres e crianças dos dois sexos, especialmente meninas ou mulheres é que sofrem
entre as quatro paredes de muitos lares por causa da supremacia masculina. Saffioti e
Almeida (1995), argumentam que os agressores das mulheres são, principalmente pessoas
conhecidas e parentes, os quais usufruem da confiança das vítimas.
Segundo Cerqueira e Coelho (2014), os estupros não ocorrem somente com
crianças, mas com adultos também. Visto que 97,5% são mulheres vítimas de estupros
praticados por pessoas desconhecidas amigos, conhecidos e cônjuges. Mas, como

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 78


acontece o estupro por cônjuge? _ De acordo com Damásio de Jesus, comentando o artigo
213 do Código Penal, afirma que nenhuma mulher tem a obrigação de manter relações
sexuais com o esposo, mediante uma causa justa para se negar ao ato sexual. Como
evidencia Lara et.al (2016):
Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em
matéria sexual, obrigada a manter relações com seu corpo, ou seja, o
direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter
mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal,
e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio
caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a
negativa (LARA et.al, p. 168).

Relevante, destacar que a prática do sexo pela mulher se tornou uma obrigatoriedade
no casamento, devido à cultura da sociedade patriarcal, onde a mulher ocupa uma posição
de subordinação, tanto que Simone de Beauvoir (1967), afirma que o casamento está para
a mulher por meio da manutenção da vida sexual ativa, atendendo sempre as vontades
do marido assim como a realização profissional está para o homem em obter sucesso.
Em outras palavras, o sexo no casamento é considerado pela ideologia machista uma
imposição ou um serviço de obrigatoriedade da mulher.
Nestes viés é que se aglomera a violência de gênero que age como resultado do
reflexo da ideologia patriarcal, mostrando com clareza as relações de poder existentes
entre homens e mulheres. Então, segundo Cerqueira e Coelho (2014, p.2):
[...] subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas
vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de
desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando
diversos tipos de violência, entre os quais o estupro. (CERQUEIRA e COELHO,
2014, p.2)

Na legislação brasileira, principalmente no Código Penal existem alguns artigos


que descrevem as penalidades para o agressor ou estuprador, os quais serão descritos e
comentados na próxima seção.

3 | EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CRIME CONTRA A DIGNIDADE HUMANA:


ESTUPRO
Observa-se em algumas literaturas que desde a formação da humanidade que
existe a luta contra o crime de estupro, conforme Rheder (2011), os hebreus estabelecia
pena de morte ao sujeito, especialmente o homem que abusasse de uma mulher que
estivesse prometida ao casamento, e assim existiam outras legislações para coibir aqueles
indivíduos que cometiam crimes sexuais, como por exemplo, o Código de Hamurabi que foi
instituído pelo Rei Hamurabi, quinto rei da primeira dinastia de Babel, que reinou dos anos
de 2057 até 1758 a.C.
De acordo com Rheder (2011), que a primeira regra que incriminava a liberdade

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 79


sexual foi prevista pelo art. 130 do Código de Hamurabi, o qual descrevia que se uma
mulher virgem ou que não tinha tido contato sexual e que morasse na casa de seus pais e
fosse violada por alguém, este deveria ser morto.
Além das normas do Hamurabi existiram também outros ordenamentos, como por
exemplo, do Código de Manu que teve sua promulgação entre os anos de 1300 e 800
a.C, o qual em seu art. 361 tratava dos crimes sexuais, determinando que o sujeito que
praticasse violência contra uma mulher, deveria sofrer pena física. Rheder (2011), enfatiza
que o art. 22 do Código de Manu colocava uma pena de 3 (três) a 12 (doze) anos para o
sujeito que cometia violência ou grave ameaça, praticando a cópula carnal com mulher de
boa índole ou honesta, e quando a violência fosse praticada contra uma mulher de conduta
imoral, o agressor teria que cumprir pena de um mês a 2 (dois) anos.
Ressalta-se que com a evolução social as legislações também evoluem ou mudam
conforme as modificações dos diferentes contextos, como se observa na discussão sobre
a liberdade sexual ou dignidade sexual no Código Penal Brasileiro que é relativamente
atual, já que data do ano de 1940, por isso traz uma linguagem conservadora e considerada
inadequada para a sociedade brasileira e mundial da atualidade, daí a necessidade da
promulgação de uma nova Lei que é a Lei nº 12.015/2009 com o escopo de trazer alteração,
especialmente ao Título VI do Código Penal. Como mostra Nucci (2009):
[...] Lei 12.015/2009, no cenário do estupro e do atentado violento ao pudor,
foi produto de política criminal legislativa legitima, pois não há crime sem
lei que o defina, cabendo ao Poder Legislativo e sua composição. [...] Em
primeiro lugar, deve-se deixar claro que não houve uma revogação do art. 214
do CP (atentado violento ao pudor) como forma de abolitio criminis (extinção
do delito). Houve uma mera novatio legis, provocando-se a integração
de dois crimes numa única figura delitiva, o que é natural e possível, pois
similares. Hoje tem-se o estupro, congregando todos os atos libidinosos (do
qual conjunção carnal é apenas uma espécie) no tipo penal do art. 213. Esse
modelo foi construído de forma alternativa, o que também não deve causar
nenhum choque, pois o que havia antes, provocando o concurso material,
fazia parte de um excesso punitivo não encontrado em outros cenários de
tutela penal a bens jurídicos igualmente relevantes. (NUCCI, 2009, p. 816)

Nesta Citação Nucci aponta as mudanças trazidas pela Lei 12.015/2009 aos crimes
de estupro ou contra a dignidade sexual, apontamentos que trouxeram maior segurança e
harmonia para a vida em coletividade ou no meio social. Uma vez que a pessoa é livre até
na vida sexual, por isso a dignidade sexual compreende a pratica do sexo de acordo com
o desejo dos cidadãos, desde que não afete os direitos de outras pessoas ou terceiros.
Na concepção de Capez (2015), a Lei nº 12.015/20009 mudou o Título VI do Código
Penal Brasileiro tratando dos delitos contra a dignidade sexual, suprimindo a expressão
“Dos crimes contra os costumes”. Destarte, muda o foco da assistência jurídica, deixando
a questão do resguardo da moral e dos bons costumes e focando agora na tutela da
dignidade do sujeito, especificamente a dignidade sexual.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 80


Sendo que estes ajustes estão alinhado à Constituição Brasileira Federal de
1988, ou seja, formula-se novas concepções de objeto jurídico do crime dando ênfase a
dignidade do sujeito quando esta corre risco de ser lesada no aspecto psicológico, físico,
moral e integridade da personalidade, e não aos bons costumes como era no passado. Na
compreensão de Capez (2015), a Lei 12.015/2009 trouxe uma complexidade de direitos
e deveres essenciais para assegurar proteção da pessoa contra toda tipologia de atos
degradantes e desumanos, o que efetiva as normas constitucionais que unifica os direitos
fundamentais à espécie humana. E destaca que uma das principais modificações está na
unificação das tipologias penais, estupro e atentado ao pudor, os quais se tornaram um
único tipo penal, “estupro”, o qual é traduzido como crime pelo artigo 213 do Código Penal,
observe:
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1º Se da conduta resulta lesão
corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior
de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º Se
da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
(BRASIL, 1940).

Nesta perspectiva, a legislação traz como reflexão que a dignidade sexual tão
relevante quanto à dignidade humana, visto que as pessoas tem o direito de liberdade para
utilizar o corpo da forma que desejar, sem atingir os direitos ou a integridade de outros
sujeitos.
O advento da Lei nº 12.015/2009, alterou o Código Penal também na substituição
de outro termo, “mulher”, onde foi colocado o termo “alguém”, o que mostra que esta
legislação não protege somente a mulher, mas todos os sujeitos que são vítimas ou que
sofrerem violência de estupro.
Diante do exposto, é imprescindível frisar que quem pratica o crime de estupro sofre
consequências ou penalidades que pode ser de 6 (seis) a 10 anos de reclusão. Mas, esta
quantidade pode variar quando a conduta traz lesão corporal grave ou quando a vítima é
menor de 18 anos, a pena é reclusão de 8 (oito) a 12 (doze) anos. E se a conduta do crime
de estupro levar à morte, a pena de reclusão é de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Em complemento a estas penalidades que protegem à espécie humana é importante
evidenciar que foi criada também a Lei nº 12.845/2013 que impõe um dever aos hospitais
do Sistema Único de Saúde que é de atender as emergências constituídas pelas vítimas
de violência sexual, além disso, fazer diagnóstico e tratamento de lesões e ainda exames
para identificar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.

4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo aqui apresentado buscou de uma forma clara e objetiva mostrar a

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 81


trajetória da mulher na sociedade brasileira, que é constituída de muitas lutas e conquistas,
já que em todo o contexto histórico percebe-se que o gênero ou sexo feminino foi muito
estigmatizado e inferiorizado em relação ao sexo masculino considerado sempre como
supremacia em todos os aspectos na cultura machista e patriarcal na época dos primórdios.
Com a esperança de mudar o cenário as mulheres fizeram muitos movimentos
denominados como feministas, dos quais surgiram vários direitos e deveres equiparados
entre os homens e mulheres, os quais se tornaram Leis constitucionais que se evidenciam
principalmente na Constituição de 1988, considerada como mais cidadã e democrática.
Em seguida, enfatiza as legislações criadas desde a primeira constituição no Brasil
no ano de 1824 até o ano de 1988, sendo que em algumas foram apresentados direitos
em prol da mulher na sociedade brasileira e em outras nem foi citada. Sendo a mulher
evidencia apenas na Constituição de 1988 que buscou inovar com diferentes leis para
acompanhar as demandas dos contextos sociais e culturais.
Dentre as leis inovadoras destacou-se nesta pesquisa a Lei nº 12.015/2009 que
alterou as normas que coíbem o atentado ao pudor e o estupro, unificando como um único
crime e modificando as penalidades para proteção da dignidade humana e sexual, e assim
a legislação brasileira desde o Código Penal de 1940 deixa a ideia de defesa da moral e
dos bons costumes como era defendido pelos Códigos, Hamurabi e Menu, e focaliza na
dignidade sexual que é parte intrínseca da dignidade humana.
Em suma, o estupro na atualidade é um dos assuntos de violência contra a mulher
mais debatido na sociedade devido ao grande índice de incidências deste ato cruel, que
aproveita da fragilidade da mulher para efetivar a cultura de machismo que continua
enraizada, mas que precisa ser erradica para que o gênero feminino usufrua dos seus
direitos de liberdade, de dignidade e de igualdade de ser quem quiser ser no mundo.

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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 82


BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990,
que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e
revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Brasília, DF, 7 ago.
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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 7 84


CAPÍTULO 8

POSSE DE DROGAS ILÍCITAS PARA CONSUMO


PESSOAL: DESCRIMINALIZAÇÃO OU
DESPENALIZAÇÃO?

Data de aceite: 01/03/2023

Matheus Nascimento Pinheiro de Lei nº 11.343/06. No Brasil, o sujeito ativo


Miranda de uma conduta considerada como crime
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A. não pode ser também sujeito passivo,
Curso Bacharel em Direito portanto não poderá ser punido pelo
Colinas do Tocantins - TO ordenamento. Entretanto, o usuário de
João Victor Oliveira Brito drogas, por fazer mal a ele próprio com o
Faculdade de Colinas do Tocantins S.A. uso de entorpecentes, deve ser considerado
Curso Bacharel em Direito como crime de perigo concreto, visto que o
Colinas do Tocantins - TO mal que a substância causa é somente ao
usuário, e não a sociedade como um todo.
Importante ressaltar que esta não deve ser
uma medida tomada para toda e qualquer
Este Artigo será apresentado à disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso. da Faculdade droga, já que algumas delas fazem mal à
de Colinas do Tocantins – FIESC/UNIESP exigido sociedade como um todo e não apenas ao
como parte dos requisitos para conclusão do usuário. A lei nos traz, no artigo 28, §2º da lei
Curso Bacharel em Direito sob a orientação do
Professor Me. Bernardino Cosobeck da Costa.
em epígrafe, a determinação da quantidade
de drogas para que seja configurado uso ou
porte para tráfico.
PALAVRAS-CHAVE: Lei. 11.343/06;
RESUMO: Após a vigência da nova lei Despenalização, Descriminalização;
de drogas nº 11.343 de 2006, o usuário Drogas; Consumo x Tráfico.
de drogas, que na Lei anterior era tratado
de uma forma dura e baseada em penas
altas, passou a ter um tratamento diferente, POSSESSION OF ILLICIT DRUGS
baseado em penas alternativas, diferente FOR PERSONAL CONSUMPTION:
daquelas previstas anteriormente. A DECRIMINALIZATION OR
DESPENALIZATION?
utilização de drogas continua sendo crime,
porém, não deve mais ter penas com ABSTRACT: After the new drug law number
reclusão e/ou detenção, mas somente será 11.343 of 2006 came into effect, the drug
possível com as hipóteses do artigo 28 da user, who in the previous law was treated

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 85


harshly and based on high penalties, now has a different treatment, based on alternative
penalties, different from those previously foreseen. The use of drugs continues to be a
crime, however, it should no longer have prison and/or detention sentences, but only with the
hypotheses of article 28 of Law 11.343/06. In Brazil, the active subject of conduct considered
a crime cannot also be a passive subject, and therefore cannot be punished by the law.
However, the drug user, for harming himself with the use of narcotics, must be considered a
crime of concrete danger, since the harm that the substance causes is only to the user and not
to society as a whole. It is important to emphasize that this should not be a measure taken for
every drug, since some drugs cause harm to society as a whole and not only to the user. The
law brings us, in article 28, §2o of the above law, the determination of the number of drugs to
be considered drug use or possession for trafficking.
KEYWORDS: Drugs; Trafficking; Law number 11.343/06; Crime.

1 | INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, muito tem se falado sobre a legalização, liberação, descriminalização,
despenalização do uso de drogas, isto que muitos países vizinhos tem tomado medidas
significativas quanto ao assunto em questão. O Uruguai, por exemplo, em 2013 legalizou
o uso da maconha e também reprovou a comercialização e produção da droga em todo
o país, sendo assim, usuários da maconha além de não serem mais punidos pelo uso,
também poderão encontrar lugares onde a venda é legal e poderão usar em qualquer local,
sem medo, vergonha ou constrangimento, visto que a droga passou a ser legalizada.
No presente artigo, iremos tratar acerca de 2 (dois) institutos, são eles:
descriminalização e despenalização do uso de drogas.
A descriminalização é fazer com que o fato em si não seja crime. A despenalização é
fazer com que o crime não seja mais punido com pena privativa de liberdade, ou seja, será
punido com uma advertência, mas ainda sim continuará sendo crime.

2 | CONCEITO DE DROGA E SEUS EFEITOS


De origem peculiar, a palavra droga deriva do persa droa (odor aromático), do
hebraico rekab (perfume) ou do holandês antigo droog (folha seca).
A droga, pode ser compreendida como qualquer substância, seja ela natural ou
sintética, que ao entrar em contato com o organismo do indivíduo, pode modificar uma ou
várias de suas funções.
A Lei nº 11.343/2006, traz em seu art. 1º, parágrafo único, o conceito de droga:
Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
- Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas
para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e
define crimes.

Parágrafo único: Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 86


substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim
especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente
pelo Poder Executivo da União.

(BRASIL, 2006)

Para que uma substância ou produto seja classificado como droga, apenas a
dependência daquele produto não é suficiente, sendo necessário, ainda, que, esteja em lei
ou em lista elaborada pelo Poder Executivo da União.
Olhando atentamente para o artigo supramencionado, percebemos o motivo de o
cigarro ou a bebida alcóolica não serem proibidos no Brasil, pois, muito embora causem
dependência aos seus usuários e, por vezes, consequências severas à saúde, as
substâncias que os compõem não são tidas como entorpecentes, para fins de aplicação do
elencado no art. 28 da Lei de Drogas.
É sabido que as drogas, independente de seu tipo, trazem severas consequências,
não apenas psíquicas e físicas, mas também dependências física e psicológica, podendo
leva-los à morte devido ao uso excessivo da droga, o que chamamos de Overdose.
a) Papel do Operador de Direito quanto a Análise da Legislação Antidrogas
A análise acerca do consumo de drogas é muito importante, de tal forma que,
reduzi-la a uma explicação de causalidade linear seria negar-lhe toda sua complexidade.
O fenômeno está inserido no âmbito de diversas problemáticas impostas à sociedade,
comunidades locais e desafiam as autoridades e pesquisadores a apresentar soluções.
Ainda que o consumo de drogas seja uma das práticas mais antigas da humanidade, o
homem ainda busca alternativas para conseguir lidar com a questão, variando de maneiras
políticas e culturais, de acordo com cada localidade.
O conhecimento acerca de consumo de drogas nas diversas sociedades humanas
tem nos mostrado que o consumo atualmente tem se mostrado cada vez mais amplo e
distribuído em diferentes grupos sociais, culturais, profissionais, etários, ao mesmo tempo
em que consegue adquirir novos e diferentes significados. O uso de drogas é, num primeiro
momento, identificado como a busca pelo prazer imediato. Mas há também, diversos outros
significados, tais como: estratégia de socialização; aquisição de uma identidade de algum
grupo específico; ocupação do tempo livre. De qualquer forma, a compreensão acerca
do motivo do consumo de drogas pelo usuário necessita da adoção de uma perspectiva
sistêmica.
b) O uso abusivo de drogas
As consequências do uso abusivo de drogas afetam sociedades ao redor do
mundo, envolvendo homens e mulheres de diversos grupos étnicos, socioeconômicos e
etários. O consumo de drogas no Brasil mostra que as mais consumidas e causam maior
dependência são as drogas lícitas (álcool e cigarro). A presença de drogas no país não se
deve apenas aos traficantes internacionais, mas obedece a lógica de funcionamento da
sociedade, caracterizada por interesses econômicos e norteada pelo consumo em geral.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 87


Os usuários de drogas ilícitas têm recebido tratamentos contraditórios, sendo tratados ora
como doentes ora como criminosos. Qualquer uma das formas de tratamento elencadas
levam a sociedade ao estigma contribuindo para o consumo de forma clandestina, limitando
a compreensão do uso.
As abordagens repressivas que acompanham esses tratamentos estigmatizados,
têm se mostrado cada vez mais ineficazes, tendo ampla responsabilidade na reprodução da
violência associada ao mundo das drogas. O resultado das táticas repressivas de combate
às drogas se reflete no resultado dos presídios super lotados e na alta taxa de mortalidade
causada por overdose.
c) Medidas alternativas
Quanto às medidas alternativas para se tratar o consumo de drogas, existem quatro
correntes existentes para discorrer sobre o assunto: (I) Liberação total da venda e o uso de
Drogas; (II) Legalização e Regulamentação do uso de Drogas; (III) Legalização do consumo
individual de todas as drogas; (IV) Descriminalização do uso de drogas com a manutenção
da proibição na esfera administrativa.
I. Liberação Total da Venda e Consumo de Drogas
A guerra contra as drogas tem se mostrado bastante ineficaz, não apenas pelo
aumento e consumo do tráfico, mas também pelo fracasso de medidas ressocializadoras,
sendo que a única solução é liberar totalmente a venda e o consumo de drogas.
Por outro lado, ao observar a liberação de drogas em outros países, fora observada
em uma reportagem publicada pela Revista Veja em 05 de agosto de 1999, nas páginas
98 e 99, que quando Holanda, Suíça e Dinamarca optaram por esta liberação, o tiro
saiu pela culatra, pois o tráfico de drogas aumentou significativamente, o que acarretou
descontentamento da população quanto a decisão tomada.
II. Legalização e Regulamentação do uso de Drogas
Com a legalização e regulamentação de drogas, além de o tráfico ser combatido,
poderá oferecer um entorpecente que será submetido a controles de qualidade, evitando,
dessa forma, possíveis overdoses pela má qualidade do produto. Na forma da lei, haveria
o recolhimento de impostos sobre a compra e venda de drogas, que seriam revertidos para
o tratamento de usuários.
Para fortalecer o argumento, há oito anos, o Uruguai aprovou um Lei que estabelece
a compra e venda de maconha, baseando-se na necessidade de melhorar a saúde da
população através de uma política destinada a minimizar os danos e reduzir os riscos
relacionados ao uso de cannabis. Além disso, a Lei busca reduzir a incidência do
narcotráfico e do crime organizado, proporcionando à sociedade a possibilidade de educar
e conscientizar toda a população sobre os riscos envolvidos no vínculo com o comércio
ilegal.
III. Legalização e Regulamentação do uso de Drogas
As drogas poderiam ser utilizadas para uso individual, tal como álcool e cigarro.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 88


Se trata de uma liberdade individual exercida pelo próprio cidadão em fazer o que quiser
com o próprio corpo (Princípio da alteridade – prevê que o direito só deve punir condutas
que firam direitos alheios), não podendo o Estado interferir em tal esfera. Tal restrição ao
consumo estaria ferindo o direito a liberdade estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Em desacordo com o argumento acima, segundo dados da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), a decisão de usar drogas interfere diretamente o direito coletivo,
pois, para cada dependente/usuário de drogas, existem em média mais 4 pessoas afetadas
(no âmbito familiar), atingindo cerca de 30 milhões de brasileiros.
IV. Descriminalização do uso de drogas com a manutenção da proibição na esfera
administrativa
Digamos que o Direito Penal não deva cuidar de infrações menos graves, mas
que este deve ser subsidiário, subjetivo ou mínimo, atuando apenas naquelas situações
específicas em que outras áreas do direito não sejam suficientes. Nesse caso, deveria
haver uma espécie de órgão, que multaria os consumidores flagrados com drogas, fazendo
com que a conduta fosse punida administrativamente, sem deixar de ser crime.
Do contrário, é percebido que o consumo de drogas não é proibido somente pelo fato
de causar danos ao usuário, mas também pelo risco que este oferece à sociedade. Caso
seja adotada a conduta de descriminalização, as condutas de perigo devem ser retiradas
do código penal, por não poderem ser criminalizadas.

3 | A POLÍTICA CRIMINAL ADOTADA PELO BRASIL


Após promulgação da Lei nº 11.343/2006, se demonstra clara a intenção do
legislador em não punir com a prisão o portador de drogas para o próprio consumo, tendo
em vista que o sistema prisional brasileiro, além de não possuir verba suficiente, é precário
e superlotado, sendo considerado uma “escola para o crime”, onde os indivíduos saem da
prisão com o modus operandi para cometer novos e piores delitos/infrações.
a) O tratamento do usuário de drogas à luz da Lei nº 11.343/2006
Com a entrada em vigor da Lei de Drogas, Lei no 11.343/2006, o Brasil estabelecia
como propósito tratar o dependente e o usuário com maior dignidade, buscando tratamento
em vez de punição. Em 2000, Portugal, também preocupado com a dignidade dos
dependentes e usuários de drogas, apresentou uma atitude mais inovadora do que o
Brasil, descriminalizando o consumo de drogas em pequena quantidade. Nesse contexto,
esta reflexão apresenta uma comparação entre a legislação recente desses dois países,
especialmente no que se refere à diferenciação entre usuário/dependente de drogas e
traficantes e seus respectivos tratamentos. Apesar das alterações legislativas no Brasil,
há incipiente foco em programas de saúde pública que lidem com o problema das drogas
no país. Assim, a experiência de Portugal pode trazer importantes elementos para o
delineamento de políticas mais efetivas no Brasil, que considerem as particularidades

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 89


nacionais e a multidimensionalidade do fenômeno das drogas.
b) Brasil X Portugal
I. Semelhanças e Diferenças
Em relação ao procedimento para a aplicação das medidas previstas na legislação,
no Brasil não cabe prisão em flagrante, sendo assim, não será lavrado auto de prisão em
flagrante e, consequentemente, o portador da droga para consumo pessoal não será preso.
O autor do fato, possível dependente ou usuário, deverá ser encaminhado
imediatamente ao juízo competente. Na falta de uma autoridade judicial de plantão, deverá
assumir o compromisso de comparecer oportunamente ao juízo.
Assim, na ausência de um juiz, a autoridade policial deverá proceder à lavratura do
termo circunstanciado e requisitar a realização de exames periciais. Concluída essa fase,
o agente do fato será submetido ao exame de corpo de delito se assim o requerer ou se a
autoridade policial entender conveniente, sendo em seguida liberado.
Ao agente do fato será aplicada a Lei no 9.099/1995, dos juizados especiais criminais.
Na audiência de conciliação será proposta pelo Ministério Público a transação penal, sendo
essa uma espécie de acordo em que não se discute a responsabilidade ou não do agente.
Caso o agente aceite a transação, será necessária a presença de seu advogado.
Como não se discute a responsabilidade, serão aplicadas automaticamente as penas
expressas na Lei no 11.343/2006, ou seja, advertência sobre os efeitos das drogas,
prestação de serviços à comunidade e medida de comparecimento a programa ou curso
educativo.
Em Portugal, o indivíduo que for detido com substância ilícita, desde que não
excedente, será conduzido para uma Comissão de Dissuasão. Nesse momento será
analisado se o indivíduo é dependente ou consumidor, a fim de determinar o tratamento
correto. Sendo constatada a dependência química, ele será convidado para um centro de
tratamento. É importante ressaltar que o consumidor pode não aceitar o tratamento.
Tanto Portugal como Brasil possuem como meta a recuperação do dependente,
com caminhos diferentes. Apesar de o Brasil considerar crime o consumo de drogas em
pequena quantidade e Portugal não o considerar crime, a meta principal de ambos é
recuperar e tratar o dependente.
Não há como deixar também de comentar que vários dados surgem a respeito
da descriminalização do consumo de drogas em Portugal, ou seja, da pessoa que for
encontrada consumindo drogas. Com relação a essa matéria, destacam-se notícias
afirmando que o consumo de drogas aumentou em Portugal e que as mortes por consumo
de drogas elevaram-se.

4 | O PORTE DE DROGAS COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA


O porte de drogas para consumo pessoal, observando do ponto de vista lógico, se

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 90


trata de uma questão de saúde pública, visto que a dependência química é reconhecida pela
OMS (Organização Mundial de Saúde), sendo de conhecimento mundial as consequências
derivadas da propagação do uso de drogas, gerando diversos problemas, tais como:
violência no âmbito familiar; e formações de organizações criminosas para sustentar e
favorecer o uso pessoal.
O bem jurídico se demonstra relevante quanto a necessidade de prevenir o
comportamento do indivíduo, que atualmente demonstra de grande preocupação da saúde
coletiva no âmbito nacional e internacional.
Ao analisar o crime, o uso do entorpecente não tipifica o crime, mas sim os problemas
que seu uso acarreta para a sociedade. A dependência química está classificada na
“Classificação Internacional de Doenças (CID)”, como transtorno mental e comportamentos
indevidos, devido ao mau uso de múltiplas drogas e substâncias ilícitas.
a) Internação do usuário de Drogas
A internação do usuário de drogas pode ser feita pelo SUS, após o indivíduo
passar por uma avaliação psicológica com profissional habilitado do Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS). Caso o paciente não consiga a internação, deverá ser requerida em
entidades filantrópicas, ou deve ser recorrido na justiça, via processo judicial.
Atualmente, a maneira mais rápida de conseguir tratamento é recorrendo via
processos judicial, visto que mesmo que algumas clínicas sejam filantrópicas, estas cobram
por mensalidades por terem as chamadas “vagas sociais”
A Lei da reforma Psiquiátrica, no art. 6º, inciso III, nos traz a seguinte redação:
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação


psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário


e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

(BRASIL, 2001)

Ao analisar o artigo acima, é percebido que, ocorrendo a descriminalização do


porte de drogas, haverá grandes prejuízos ao Sistema de Saúde, agravando em todos os
aspectos a saúde pública atual, pois a liberação do porte transmitirá à população a imagem
de que não há problema em consumir drogas de um modo geral, fazendo com que os
jovens comecem ou continuem o uso, aumentando, dessa maneira, o uso de substâncias
ilícitas no Brasil.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 91


5 | SÍNTESE SOBRE A LEI Nº 11.343/2006
A partir da redação da Carta Magna sobe a saúde pública brasileira, houve a
necessidade de se punir as condutas que prejudiquem a saúde do indivíduo que cheguem a
causar danos além do previsto. Quando se fala no “usuário de drogas” pouco se sabe sobre
a conduta ser punível pelo fato de fazer mal à própria pessoa, prejudicando sua saúde por
uma droga capaz de levar a pessoa a ficar dependente da mesma e como consequência,
acarretar diversos ‘males como o tráfico, o furto, o roubo. Muitas pessoas acreditam que
se trata de “paternalismo penal”, ou seja, acreditam que a pessoa tem liberdade para agir
conforme achar conveniente mesmo que isso lhe acarrete grave prejuízo à saúde.
A Lei de Drogas, entrou em vigor em outubro de 1006, e seu artigo 75 revoga as
Leis de Drogas anteriores a esta (Lei nº 6.368/76 e Lei nº 10.409/2002). A Lei de Drogas
atual trata do objeto da conduta criminosa como sendo apenas a droga em si, quando
nas Leis anteriores era tratador por “substâncias entorpecentes ou capazes de determinar
dependência física ou psíquica”, e deveria ser especificado em lei quais eram as drogas
a qual se tratava, tratando - se de norma penal em branco, onde seu texto deveria ser
complementado com outras leis previstas no ordenamento.

6 | A NATUREZA JURÍDICA DO ART 28 DA LEI DE DROGAS E SUAS


DISCREPÂNCIAS
O artigo 28 da Lei em análise trata as seguintes condutas:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,


semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física
ou psíquica.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz


atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e
às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão


aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput


deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas


comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 92


estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que
se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação
de usuários e dependentes de drogas.

§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere


o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente,
poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator,


gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial,
para tratamento especializado.

(BRASIL, 2006)

A conduta de quem “adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo,


para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal
ou regulamentar” não foi descriminalizada e, assim, longe está de ter ocorrido o fenômeno
da abolitio criminis.
Conforme se depreende da Lei n.º 11.343/06, a conduta acima retratada foi tipificada
como Crime, inclusive estando situada no Capítulo III, denominado “DOS CRIMES E DAS
PENAS”.
Ainda, além da questão de localização normativa que impinge ao exegeta análise
sistemática, tem-se que ao final do caput do art. 28, encontra-se redigido: “Art. 28. Quem
adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas: [...]”
Assim, além da análise sistemática, há a previsão de que a conduta tida como
criminosa deve ser “punida” com “pena”.
Ainda, vale lembrar que uma análise teleológica [3] da lei posta a manutenção da
conduta como criminosa, a partir do momento em que ao invés de ensejar tratamento
sanitário ao caso utilizando a falácia “é caso de saúde e não de polícia”, posto que o tema
é bem mais complexo, o legislador definiu que quem detiver a droga para consumo pessoal
deve, ao invés de tratamento, receber reprimenda penal.
Poderia alguém dizer que, não obstante a conceituação e tipificação das condutas
descritas no caput do art. 28 da Lei n.º 11.343/06 como sendo crimes, assim não se
enquadrariam, uma vez que o próprio legislador, no art. 1º da Lei de Introdução ao Código
Penal, estampou que “considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de
reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena
de multa”.
a) Discrepâncias acerca do art. 28
Podem ser identificadas diversas discrepâncias acerca do art. 28. Dentre elas,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 93


podem ser destacadas 04 (quatro) principais teorias acerca dessa natureza, estas se
baseiam na possibilidade desse ilícito penal ser uma infração sui generis, infração penal
inominada, contravenção penal u crime, há discussões também que se tratam de uma
infração administrativa.
A abrangente discussão acerca do art. 28 da Lei de Drogas nº 11.343/2006 se deu
com a forma mais branda de punir as pessoas que são usuárias de drogas sem autorização
ou em desacordo com a determinação legal, os crimes são caracterizados por utilizar como
punição a pena de detenção ou reclusão, de acordo com a o art. 1º da Lei de Introdução do
Código Penal que, diferente do art. 28 da Lei de Drogas que não utiliza nenhuma dessas
formas para punição do usuário de drogas, gerando então uma discussão acerca da sua
natureza jurídica.
b) Natureza Jurídica do art. 28
No que se refere à natureza jurídica do art. 28, as principais teorias se apoiam na
posição de esta ser crime, infração administrativa, infração sui generis, contravenção penal
ou infração penal inominada.
A natureza jurídica do art. 28, pode ser considerada por muitos como ilícita, quando
em seu texto, o art. traz como Título “Dos crimes e das penas”, falando sobre a possibilidade
de haver reincidência, e a reincidência está diretamente ligada a quem pratica um crime
e posteriormente pratica nova infração penal, ou seja, seria apenas mais uma justificativa
para ser caracterizado crime. A posição de considerar o art. 28 um crime é a mais aceita
pela maioria da doutrina.
Acerca da possibilidade de ser uma infração administrativa, muitos doutrinadores
sequer pensam sobre tal possibilidade, isto posto o referido art. tratar como quem impõe
suas sanções sendo o Juiz de Direito e não uma autoridade administrativa visível a
impossibilidade de se chegar a essa teoria da infração administrativa.

7 | DESCRIMINALIZAÇÃO OU DESPENALIZAÇÃO?
Quando se fala sobre descriminalizar, falamos sobre abolir a criminalização
(tipificação), tornando a ação jurídico-penal irrelevante. Já quando se trata acerca da
despenalização falamos sobre a substituição (legislativa ou judicial) da pena de prisão
por penas de outra natureza (por exemplo: restritiva de direito). Portanto, se com a
descriminalização o fato deixa de ser infração penal (seja crime ou contravenção). Com a
despenalização a conduta permanece sendo criminosa.
A partir da vigência da nova Lei de Drogas (nº 11.343/2006), a letra de lei sofreu
revogação expressa da Lei nº 6.368/1976 que trazia tipificada e apenada a conduta de
“adquirir, guardar consigo, para uso próprio, substância entorpecente [...]” a qual era
atribuído uma pena ao infrator de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos cumulada
com a pena de multa. Portanto, pela revogada lei era crime, punido com pena de restrição

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 94


a liberdade, a compra ou o porte de drogas para uso próprio.
Todavia, na atual Lei, não se encontra mais a penalização da conduta de compra
e porte de drogas para consumo próprio com privativa de liberdade. O art. 28, da Lei n
11.343/2006, afirma que o uso pessoal de substâncias entorpecentes será penalizado com:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

(BRASIL,2006)

Ainda no art. 28 encontra-se que:


§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere
o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente,
poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II – multa

(BRASIL, 2006)

Dessa forma, resta percebido que, em nenhum momento ficou disposto na nova
lei que o usuário que adquire, armazena, transporta consigo, para uso pessoal drogas ou
substâncias ilícitas será submetido à pena privativa de liberdade, como era então prevista
na antiga Lei nº 6.638/76, estando disposto somente penas restritivas de direitos.
O que realmente interessa, para a definição legal de crime, não é propriamente a
espécie de pena cominada, mas os seus pressupostos legais formais. Além do mais, as
espécies e possibilidades de cominação de penas pelo legislador não provém de um rol
taxativo, mas somente imprescritível que tantas penas quanto forem criadas pelo legislador
sejam compatíveis com a dignidade da pessoa humana e o princípio da humanidade das
penas, proibitivo de penas cruéis.
a) Porte para consumo X Tráfico
Como saber se o indivíduo está portando droga para uso ou tráfico? Esta decisão
será discricionária do juiz que julgará o caso, porém com alguns critérios estabelecidos no
parágrafo 2º do art. 28:
Art. 28 [...]

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz


atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e
às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

(BRASIL, 2006)

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 95


Não existe uma quantidade certa e determinante para a diferenciação de porte
para tráfico, será uma decisão subjetiva do juiz, obviamente ligada ao princípio do livre
convencimento motivado do juiz, tendo este que esclarecer o motivo de suas decisões.

8 | CONCLUSÃO
Pode ser concluído, quando se fala em Lei de Drogas, que a descriminalização
e a despenalização são faladas de forma equivocada, pois é necessário que se tenha
atenção a cada significado diferenciado. Em relação ao usuário, que é tratado de maneira
diferenciada nesta Lei em relação à anterior, pode-se dizer que foi despenalizado, não
sofrendo mais penas de detenção e reclusão, mas sim penas alternativas a estas, que
punem pelo perigo que o agente apresenta e não pelo delito cometido, visando reeducar o
sujeito ao invés de retribuir o mal feito.
Conforme visto desde as legislações anteriores até os dias atuais a criminalização
do porte de drogas mostra a necessidade de proteger em primeiro ponto a saúde pública
e depois a saúde do usuário, de forma que seu uso incontrolável acaba gerando danos a
saúde e se tornando dependente, ao modo que precise de tratamento com dificuldades de
ser custeados pelo SUS.
Outra consequência derivada pelo usuário eventual por simples vontade de se
drogar e acaba com essa atitude financiar o tráfico e a criminalidade gerada pelo tráfico,
pois dele advêm outros crimes como homicídio, tráfico de armas entre outros, lesando
assim de forma indireta a coletividade, como também lesa de forma direta a sociedade
quando pratica crimes sob a influência do entorpecente, neste caso, se faz necessária à
sanção punitiva para quem faz o uso eventual das drogas, para intimidar o agente a não
cometer novamente o crime. Assim, entende-se que não há outro ramo do direito para
intervir do que o Direito Penal, já que o delito de porte de entorpecentes põe em risco a
vida, a saúde, a integridade física e a segurança de toda a coletividade.
Pelo ordenamento jurídico vigente, para ser considerada droga a substância deve
estar inserida na portaria 344 do Ministério da Saúde, portanto só será unida se estiver lá
descrita, não podendo aumentar este rol sem uma atualização do próprio Ministério.
É necessário que haja uma maior atenção voltada ao tratamento dado ao usuário de
drogas, pois crime de perigo abstrato não é conveniente a todo e qualquer tipo de droga e a
sociedade não é atingida e colocada em risco pelo uso de qualquer das substâncias ilícitas,
seria mais conveniente um tratamento de crime de perigo concreto, sendo necessário avaliar
o mal que a determinada droga pode ter feito ao caso mais específico a ser analisado por
autoridade competente.
Nos dias atuais, o Brasil busca adotar o princípio da insignificância para o usuário
de drogas com base em três critérios: I – mínima ofensividade da conduta do agente;
II – Nenhuma periculosidade social da ação; III – Reduzido grau de reprovabilidade do

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 96


comportamento; e IV – Relativa inexpressividade da lesão jurídica. Entretanto, não há que
se falar neste princípio quando o agente é um militar, pois este cidadão representante das
forças armadas do Estado precisa defender o país e obedecer às normas.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO PORTELA, André Luiz. Descriminalização ou Despenalização? In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XI, n. 49, jan 2008. Disponível em: <http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_
link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4024>. Acesso em 10 de Novembro de 2022.

DORNELLES, Marcelo Lemos. A natureza jurídica da punição do usuário de drogas no Brasil.


Descriminalização, despenalização ou descarcerização? Revista do Ministério Público do RSnº
7016. Indd. Disponível em:<http://www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1325185570.pdf>
Acesso em: 12/11/2022.

GOMES, Luiz Flávio; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal.
MP-MG, Ano II, n. 07. 2006. Disponível em:<https://aplicacao.mp.mg.gov.br/xmlui/bitstream/
handle/123456789/795/4.2.1%20Posse%20de%20drogas%20para%20consumo%20pessoal.
pdf?sequence=1> Acesso em: 12/11/2022.

QUEIROZ, Paulo. Posse de droga para consumo pessoal: descriminalização ou despenalização?


Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/posse-de-droga-para-consumo-pessoal-descriminalizacao-ou-
despenalizacao/>. Acesso em: 21. Novembro de 2022

SOUZA, Murilo Camozeli de. Da natureza jurídica da conduta de consumo pessoal de droga na
nova lei antidrogas. Disponível em: <http://www.esadvogados.adv.br/Artigos/artigo_02.pdf> Acesso
em: 22/11/2022.

SAMPAIO, José Adécio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey,2002. Acesso em: 25/11/2022.

BRASIL. Lei nº 10.216 de 6 de Abril de 2002, Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm#:~:text=LEI%20No%20
10.216%2C%20DE,modelo%20assistencial%20em%20sa%C3%BAde%20mental.

BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de Agosto de 2006, Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção
social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, define crimes e dá outras providências. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm Acesso em: 26/11/2022

BRASIL. Portaria MTP nº 334 de 17/02/2022. Estabelece diretrizes sobre a emissão do PPP em
meio eletrônico. Disponível em: http://www.normaslegais.com.br/legislacao/portaria-mtp-334-2022.
htm#:~:text=Estabelece%20diretrizes%20sobre%20a%20emiss%C3%A3o%20do%20PPP%20em%20
meio%20eletr%C3%B4nico.&text=Considerando%20a%20necessidade%20de%20garantir,Art. Acesso
em: 27/11/2022

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 8 97


CAPÍTULO 9

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Data de aceite: 01/03/2023

Luís César da Silva Gonçalves os quais levam esses menores infratores


Pós-graduação PERFIS CRIMINAIS E a entrar na vida do crime. O trabalho se
COMPORTAMENTAIS – FAGRAN – 360H preocupou em mostrar a omissão do Estado
em investir na educação e na criação
de projetos, que podem ajudar muito na
ressocialização desses menores.
Artigo científico apresentado ao Grupo
Educacional IBRA como requisito para a PALAVRAS-CHAVE: Crianças e
aprovação na disciplina de TCC. adolescentes, inimputabilidade, menores
infratores, soluções da criminalidade.

ABSTRACT: This article aims to


RESUMO: Este artigo tem como objetivo
demonstrate that reducing the age of
demonstrar que a redução da maioridade
criminal responsibility will not solve crime
penal não ira resolver a criminalidade
involving minor offenders, all the necessary
envolvendo menores infratores, será
explanations will be presented on criminal
apresentado todas as explicações
imputability and non-imputability, how the
necessárias sobre a imputabilidade penal
classification of the non-imputable is carried
e a inimputabilidade, como é realizada
out, how the Child Statute works and (ECA),
a classificação dos inimputáveis, como
as well as the socio-educational measures
funciona o Estatuto da Criança e do
that the ECA applies to these juvenile
adolescente (ECA), também, as medidas
offenders. Analyzes of related works were
socioeducativas que o ECA aplica a esses
carried out, in order to show the position of
menores infratores. Foram feitas análises
other authors regarding the discussed topic,
de trabalhos correlatos, a fim de mostrar o
possible solutions for the reduction of crime
posicionamento de outros autores a respeito
involving minor offenders, showing that
do tema discutido, possíveis soluções para
reducing the age of criminal responsibility is
a redução da criminalidade que envolve
not the solution, emphasizing which are the
os menores infratores, mostrando que
problems which lead these juvenile offenders
a redução da maioridade penal não é a
to enter the life of crime. The work was
solução, enfatizando quais são os problemas
concerned with showing the State’s failure to

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 98


invest in education and in the creation of projects, which can help a lot in the resocialization
of these minors.
KEYWORDS: Children and adolescents, non-imputability, juvenile offenders, criminality
solutions.

1 | INTRODUÇÃO
A redução da maioridade penal é um tema muito discutido, posto que há vários
posicionamentos diferentes, pessoas as quais são a favor a essa redução e pessoas as
quais são contra, cada pessoa tem um posicionamento diferente, contudo o importante é
frisar nas consequências, que poderão trazer caso essa redução fosse discutida e aprovada
pelo Congresso Nacional.
A redução da maioridade penal quer dizer, que, se ela viesse a ser aprovada, os
menores entre 16 anos e de 18 anos não responderiam mais por lei especial, no caso a ECA
(Estatuto da Criança e do adolescente), mas sim pelo Código Penal, no caso, responderiam
igualmente os maiores de idade, sofrendo as mesmas penalizações e encarceramento nas
cadeias públicas e nas penitenciárias.
A redução não seria a solução, esse é o posicionamento que grande parte dos
doutrinadores do direito penal e processual penal, pois com a redução não resolveria
o problema da sociedade, muito pelo contrário com a redução da maioridade penal os
problemas de segurança, violência e criminalidade tenderiam a se agravar, visto que os
menores infratores responderiam pelos seus crimes com pena privativa de liberdade e não
com pena de internação que é a pena adotada hoje pelo ECA, pena essa limitada a 3 anos.
Com base na coleta de dados, sabe-se que existem outros meios, outras soluções
para a redução dos atos infracionais cometidos por menores, sem precisar reduzir a
maioridade penal, alguns desses métodos seriam o investimento na educação continuada
e incentivos a cursos profissionalizantes como extensão do ensino médio para o ingresso
na vida profissional.
Ainda, este trabalho foi desenvolvido com base em pesquisas, sendo utilizados
o Código Penal, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), o Estatuto da Criança e do
Adolescente comentada, do Autor Guilherme de Souza Nucci, a Execução das Medidas
Socioeducativas Comentada lei n° 12.594/2012, o Autor José Alberto Cavagnini, somos
inimputáveis: O Problema Da Redução Da Maioridade Penal No Brasil.

2 | INIMPUTABILIDADE
O Código Penal Brasileiro traz em diversas modalidades de pessoas que são
consideradas inimputáveis, dentre esses estão:

• Os doentes mentais, desenvolvimento mental retardado, desenvolvimento in-


completo, incapazes de entender o caráter ilícito do fato:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 99


• Menores de 18 anos;

• Inimputáveis por embriaguez completa, que decorreu de caso fortuito ou força


maior.
Essas são as causas de inimputabilidade de acordo com o Código Penal:
Art. 26 diz: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento. Redução de pena Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois
terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento
mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Art. 27 diz: Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando
sujeitos às normas estabelecidos na legislação especial. Emoção e paixão.
Art. 28 diz: Não excluem a imputabilidade penal: I – a emoção ou paixão; Embriaguez
II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. §
1º É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito
ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o
caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. § 2º A pena
pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso
fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade
de entender o caráter ilícito do fato.
Nesse mesmo sentido o Autor Damásio (2002, pg. 500) traz o conceito de
inimputabilidade vejamos: A inimputabilidade no direito penal brasileiro pode ser excluída
por determinadas causas, denominadas causas de inimputabilidade. Não havendo
imputabilidade, não há culpabilidade e, em consequência não há pena. Então, em caso de
inimputabilidade, o agente o qual praticou o fato típico e ilícito deve ser absolvido aplicando-
se medida de segurança, que não se confunde com pena privativa de liberdade. Sendo
assim responderá por uma Lei Especial ou por medida de segurança.

3 | MAIORIDADE PENAL
No que diz respeito à maioridade penal, a legislação brasileira adotou um limite de
idade para a imputabilidade penal, no caso, 18 (dezoito) anos. A CF/88 traz a proteção à
criança e ao adolescente assegurando a inimputabilidade ao menor de 18 (dezoito) anos.

• O Art. 227 estabelece: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar


à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 100


violência, crueldade e opressão.

• O Art. 228 estabelece: são penalmente inimputáveis os menores de dezoito


anos, sujeitos às normas da legislação especial.
É nítida a confusão entre maioridade penal e responsabilidade penal, são coisas
distintas, a responsabilidade penal significa que todos as crianças (até 12 anos incompletos)
e os adolescentes (de 12 até 18 incompletos) são considerados pela lei penalmente
inimputáveis, mas caso se cometerem alguma infração penal análoga a crime, no caso de
criança, será o conselho tutelar responsável e sendo adolescentes será punido pelo ECA
e não pelo Código Penal.

4 | ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA


Ao se falar sobre os menores de 18 anos que cometem os atos infracionais análogos
a crime, entende-se que não deverão ser punidos pelo Código Penal, mas sim pela ECA, e só
responderão pelo Código Penal se o crime for cometido quando completarem a maioridade
penal, no caso aos 18 anos. O estatuto da criança e do adolescente é regulamentado
pela Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 - ECA, de acordo com a CF/88, essa lei veio fazer
a substituição do antigo Código de Menores, que era muito diferente do ECA, pois o ECA
é destinada para todas as crianças e adolescentes, o código de menores não funcionava
dessa maneira, pois eram destinados às crianças que viviam em verdadeiras situações de
abandono.
O estatuto é uma Lei Especial que resguarda os direitos e deveres das crianças e
dos adolescentes trazendo proteções e garantias. Além dessas proteções o ECA também
traz medidas socioeducativas, logo o Estatuto é um conjunto de regras e normas voltadas
inteiramente às crianças e aos adolescentes.
O ECA entrou no ordenamento jurídico brasileiro e seus artigos foram bem recebidos
pelos estudiosos do direito brasileiro, vejamos alguns:

• Artigo 2º Considera-se criança para efeito dessa Lei a pessoa até 12 anos de
idade incompletos e adolescentes, aquela entre 12 e 18 anos de idade.

• Artigo 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais


inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a
Lei, assegurando- lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, es-
piritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. A
garantia de prioridade compreende: primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos serviços públicos ou
de relevância pública; preferência na formulação e na execução das políticas
sociais públicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas areas relacio-
nadas com a proteção à infância e à juventude.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 101


• Artigo 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punin-
do na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais.

• Artigo 6º Na interpretação desta lei leva-se em conta os fins sociais a que ela
se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
Um dos principais pilares do ECA é a proteção e o direito à vida e à saúde, direito
à vida é assegurado no artigo 5º da CF/88, e dessa mesma maneira o ECA também
assegura esse direito a todas as crianças e adolescentes, sendo dever do Estado proteger,
assegurar todos os direitos cabíveis aos mesmos. O ECA também assegura esse direito
a todas as crianças e adolescentes, o direito à liberdade quer dizer que todas as crianças
e adolescentes são livres tendo o direito de ir e vir, de brincar, de escolher e ter uma
determinada religião, sempre respeitando a sua dignidade humana.
O ECA traz ainda as medidas que serão tomadas quando um adolescente comete
algum fato análogo a crime, medidas essas que sempre serão aplicadas todas as vezes
que os adolescentes cometerem atos infracionais, visto que o mesmo por terem essa
condição de serem inimputável não irá responder pelo Código Penal, mas sim pelas
medidas socioeducativas.

• Artigo 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente po-


derá aplicar ao adolescente as seguintes medidas. I - Advertência; II - Obriga-
ção de reparar o dano; III - Prestação de serviços à comunidade; IV - Liberdade
assistida; V - Inserção em regime de semiliberdade; VI - Internação em esta-
belecimento educacional; VII - Qualquer uma das previstas no art. 101, I, a
VI. § 1.º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade
de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2.º Em hipótese
alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.
§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão
tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições
Ainda em outro sentido, um dos direitos das crianças e dos adolescentes é serem
criados pela sua família natural, ou seja, aquela que possui laços sanguíneos e é um dever
dos pais educar, criar, proteger seus filhos, no caso, os menores de idade. Outrossim, é
dever de o Estado garantir que todas as crianças e adolescentes tenham direito e acesso
à educação, cultura, esporte e ao lazer, que esteja matriculada e com frequência regular
ao ensino de educação, sendo este gratuito, em relação ao esporte, lazer e cultura, cabe a
cada município proporcionar essas programações de projetos de esportes para que todos
os destinados tenham acesso.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 102


5 | DEBATE SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Nos últimos anos, o Brasil teve um grande avanço com a entrada em vigor do ECA,
essa lei segue os mesmos ditames da Constituição Federal, a fim de proteger as crianças
e os adolescentes, respeitando sempre o princípio da dignidade da pessoa humana,
efetivando os seus direitos fundamentais, reconhecendo que o Estado tem a obrigação
o dever de proteger as crianças e os adolescentes. Nesse sentido, toda criança e todo
adolescente tem direito à vida, à saúde, à educação, à alimentação, entre outros direitos.
O estatuto sempre irá visar aos interesses das crianças e dos adolescentes, pensando
sempre naquilo que for o melhor para os mesmos, sendo que todos os operadores do
direito, juízes, promotores, dentre outros, precisam pensar dessa forma, trazendo soluções
tentando resolver os conflitos da melhor maneira possível, não permitindo que os seus
direitos constitucionais e fundamentais sejam violados. No passado não muito distante,
existia o código de menores que por sua vez, foi revogado pelo ECA, o ECA veio para
renovar, com o objetivo de proteger as crianças e os adolescentes, fazer com que os seus
direitos fossem resguardados, a fim de integrar esses menores a sociedade, sem que os
seus direitos e garantias fossem violados.
A Constituição Federal adotou essa idade da responsabilidade penal aos 18 anos
(considerada cláusula pétrea), sendo esse o motivo da sua inimputabilidade, ou seja, o
menor de 18 anos não iria responder pelo Código penal, e uma possível mudança na
legislação brasileira para redução da maioridade penal seria inconstitucional, por se tratar
de cláusula pétrea sendo que por sua vez, consequentemente violariam os princípios
constitucionais, não sendo essa a solução da violência e criminalidade que envolve os
menores infratores.
Conforme já explicitado, é dever do Estado proteger o menor, e é necessário frisar
que esse dever de proteger não é somente voltado ao Estado, esse dever de proteção
aos interesses das crianças e dos adolescentes também recai aos seus pais, sua família
ou o seu responsável, devendo esses proteger, cuidar, apoiar, zelar pela sua educação,
seu crescimento e desenvolvimento físico e mental, a família por si só acaba assumindo
essa responsabilidade com o menor de zelar pelos os seus interesses. Nesse sentido,
por muita das vezes, muitas famílias acabam sendo omissas em relação aos cuidados
com os menores que por consequência dessa omissão acabam crescendo em verdadeiras
situações de abandonos, sem amor e carinho, sem a devida alfabetização, geralmente
esse abandono começa nos primeiros anos de vida da criança, a qual prejudica e muito
no seu desenvolvimento. A omissão dos pais e do Estado interfere muito na vida dessas
crianças, visto que é na infância que a criança começa a entender as coisas, que começa
a descobrir o mundo e desenvolver a sua personalidade.
No Brasil a violência cresce a cada dia, e com isso surgem algumas propostas de
possíveis soluções para tentar reduzir essa violência, e uma dessa proposta é a redução

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 103


da maioridade penal. A proposta de redução da maioridade não é recente, e por sua vez,
acabam dividindo a população, de um lado pessoas que são a favor, e de outro lado
pessoas que são contra a redução. A redução da maioridade penal não é a solução para a
diminuição da violência e da criminalidade, a solução mais cabível seria fazer uma análise
no estatuto da criança e do adolescente e após fazer essa análise seria feito algumas
alterações, pois o estatuto é do ano de 1990, então muitas coisas mudaram e evoluíram.
Muitas violências e crimes são praticados por menores de idade, comumente
adolescentes e a população acaba clamando por mudanças querendo uma solução para
que esse problema seja resolvido, e grande parte dos políticos acabam se aproveitando
dessa situação usando esse motivo como uma estratégia para ganhar votos, dizendo
que sua proposta política é a redução da maioridade penal, a fim de que se diminua a
criminalidade dos atos praticados pelos mesmos, como se a redução da maioridade penal
por si só resolveria o problema em questão.
O problema da criminalidade como um todo é social, visto que a maioria dos
adolescentes que cometem as infrações são adolescentes pobres e negros, desempregados
e com ensino de escolarização baixa, na maioria das vezes nem tem o ensino fundamental
completo. Ainda, o problema do ato infracional deve ser encarado como um problema social
e não como um problema em relação à maneira que esse ato infracional deve ser respondido
ou punido, no caso uma prisão penal, esses atos infracionais continuariam acontecendo,
continuaria sendo praticados causando mais problemas ao sistema prisional brasileiro que
por sua vez encontra- se em situações deploráveis com alto índice de superlotação.
O encarceramento precoce do menor infrator não iria diminuir a criminalidade,
sendo o menor infrator encarcerado precocemente o mesmo perderá a chance de ser
educado da maneira correta, porque a educação é a chave, e essa educação não deve ser
dada somente ao menor infrator, mas sim para toda a população, sem contar que havendo
o encarceramento precoce o menor infrator terá convívio diariamente na prisão com os
criminosos adultos, os quais, com certeza, iria influenciar esses menores.
O encarceramento precoce viola completamente os ditames da CF/88, que resguarda
em seus artigos a proteção aos menores, sendo assim violaria todos os direitos sociais os
quais prejudicaria e interferiria no processo físico e mental do mesmo tornando muito mais
difícil a sua recuperação, e provavelmente tornando-se um adulto revoltado, violento, e o
pior de tudo, continuaria na criminalidade.
A redução não é a solução, investir na educação em vários e diferentes termos é a
solução para acabar com os problemas sociais referentes aos atos infracionais praticados
por menores infratores, cabe ao Estado investir e com isso diminuir a criminalidade e a
violência, sem precisar aumentar os problemas já existentes ou tornando-os piores, seria
uma grande evolução para a sociedade o crescimento e desenvolvimento do caráter das
crianças e dos adolescentes aconteceriam de maneira totalmente positiva.
Nesse sentido, é preciso recuperar os menores infratores, e não ao invés disso jogá-

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 104


lo definitivamente ao mundo do crime os encarcerando e os entregando à criminalidade
dentro de uma penitenciária, situação essa que será difícil desse menor um dia sair da
vida do crime, que por consequência continuará praticando crimes de diversas naturezas
tanto leves ou graves, sendo assim não iria resolver o problema em si, pelo contrário só
agravaria.

6 | CONCLUSÃO
Realizada as análises do assunto como um todo, chega-se à conclusão que
o posicionamento da CF/88 em relação à maioridade penal, está em consonância com
doutrinadores do direito e com as leis especiais como o ECA. A redução da maioridade
penal não seria a solução para a redução da criminalidade, trata-se de um problema social
que começa muito antes das crianças e dos adolescentes cometerem os atos infracionais.
Há uma grande omissão por parte do Estado que não investe devidamente como
deveria na educação das crianças e dos adolescentes, há também uma grande omissão
por parte da família dos pais ou do representante legal do menor que não dá o devido
suporte, o devido cuidado, o afeto, isso é muito importante e todos precisam de muito amor
e carinho, principalmente na infância quando a criança começa a desenvolver o seu caráter
intelectual.
Ainda, fazer com que os menores infratores respondem como adultos pelo Código
penal seria a mesma coisa que desistir da recuperação desse menor e entregá-lo de vez
a criminalidade, isso só agravaria muito mais a situação da violência e da criminalidade,
aumentando a população carcerária que já se encontra em estado de superlotação.
O menor de 18 anos é inimputável, fazendo a alteração e reduzindo essa maioridade
penal para os 16 anos, seria uma medida totalmente inconstitucional, ferindo os ditames da
CF/88. A sociedade clama pela redução da maioridade penal, a fim de que consiga reduzir
a criminalidade, porém a redução da maioridade penal não seria a solução para que o
índice de criminalidade diminuísse.
Há uma grande omissão do Estado em investir na educação e a negligência da
família que muitas das vezes não tem estrutura para contribuir na formação desses
adolescentes. A redução da maioridade penal não é a saída que a sociedade encontra para
a diminuição da criminalidade, existem outros meios mais eficazes do que punir.
Outrossim, colocando os menores infratores em regimes mais gravosos, juntos com
os adultos, não contribuiria nenhum pouco para que esse menor não se torne mais um
reincidente, como encontra-se hoje a população carcerária - a maioria reincidente. Logo,
se o sistema prisional não está dando conta dos criminosos adultos, pior ainda com os
menores infratores.
Portanto, com a redução da maioridade penal, aumentaria ainda mais a população
carcerária que já se encontra em estado se superlotação, sendo assim aumentaria ainda

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 105


mais os números de rebeliões e mortes dentro do sistema prisional brasileiro, medida essa
que não atingiria às suas propostas de redução da criminalidade na sociedade brasileira.

DECLARAÇÃO DO AUTOR
Declaro que o trabalho apresentado é de minha autoria, não contendo plágios
ou citações não referenciadas. Informo que, caso o trabalho seja reprovado duas vezes
por conter plágio pagarei uma taxa no valor de R$ 250,00 para terceira correção. Caso o
trabalho seja reprovado não poderei pedir dispensa, conforme Cláusula 2.6 do Contrato de
Prestação de Serviços (referente aos cursos de pós-graduação lato sensu, com exceção
à Engenharia de Segurança do Trabalho. Em cursos de Complementação Pedagógica e
Segunda Licenciatura a apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso é obrigatória).

REFERÊNCIAS
BRASIL, Código de processo penal (1941). Ed. São Paulo. 2010. Código Penal Brasileiro,
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848.htm Constituição
Federal da República Federativa do Brasil, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao.htm.

MOREIRA, Carine. A Inconstitucionalidade da Redução da Maioridade Penal’’ artigo científico


apresentado como exigência de conclusão de curso de PósGraduação, da Escola de
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

NUCCI. Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente: Comentado em busca


da Constituição Federal das Crianças e do Adolescente, 2ª ed. Ver. e ampl. – Rio de Janeiro:
Fonseca, 2015.

JESUS, Damásio de. Direito Penal. 25. Ed. São Paulo: Saraiva 2002.

CRONER, Antônio Carlos. “A Redução da Maioridade Penal”, artigo apresentado como requisito
parcial à obtenção do título de Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal, no
curso de Pós-Graduação, do Instituto Brasiliense de Direito público, Brasília/DF. 2011

CAPEZ, Fernando. Curso de direito Penal. Parte Penal.21ª. Ed. São Paulo: Saraiva 2012.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 9 106


CAPÍTULO 10

SEGURANÇA PÚBLICA: DESAFIOS DA POLICIA


MILITAR EM DIAGNOSTICAR AS CAUSAS QUE
OCASIONAM A VIOLÊNCIA NO CONTEXTO
SOCIEDADE
Data de aceite: 01/03/2023

Geison Leandro Rodrigues Pereira dispões sobre a segurança pública e o


Assaí/PR papel da polícia militar em diagnosticar o
que erradicam e ocasionam a violência no
contexto sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Família. Participação.
RESUMO: A metodologia utilizada foi Segurança Pública.
de pesquisa bibliográfica, elencando os
vários autores que tratam do assunto,
considerando o tema pertinente e atual, pois 1 | INTRODUÇÃO
se faz necessário a revisão bibliográfica
O presente trabalho dispõe sobre
para que haja maior entendimento sobre
esse processo, que se encontra em a segurança pública e o papel da polícia
grande ascensão, pois vivemos em um militar em diagnosticar as causas que
país heterogêneo, de várias raças, credos, ocasionam a violência no contexto
religiões, opções sexuais, gêneros, etc. sociedade.
necessitando avaliar em qual momento
É importante salientar que, a evasão
acontecem à evasão escolar e como esta
escolar, a indisciplina e a diversidade como
pode ser minimizada através da participação
da família nas decisões escolares, bem como vários motivos que levam os indivíduos a
a gestão democrática participativa, onde abandonarem os estudos, ocasionando a
todos façam parte das comunidades escolar. prática de crimes desde cedo.
Porém o maior desafio da diversidade A finalidade dessa pesquisa nos
cultural é estabelecer uma postura ética e leva a uma compreensão significativa em
não hierarquizar as diferenças, entendendo
distinguir o que era integra de evasão e
que nenhum grupo é melhor do que outro
os sintomas dos problemas relacionados
no contexto social, pois de verdade todos
somos diferentes, mas essa diferença existe a indisciplina e, consequentemente a
não para diminuir uns aos outros, mas que violência. Entretanto, são muitas as razões
efetive a prática da inclusão da diversidade para que uma pessoa venha mostrar uma
em todos os âmbitos. O presente trabalho atitude de indisciplina, bem como fatores

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 107


que podem levá-la a baixo estima cujas razões por algumas vezes ignoradas e até deixadas
passar despercebidas, tais como: problemas emocionais, baixo nível intelectual, etc.
É notável que pessoas excessivamente inquietas, agitadas, com tendência à
agressividade, se destacam do grupo pela dificuldade de aceitar e cumprir as normas e,
consequentemente em algumas vezes, não conseguem produzir o esperado de acordo
com sua faixa etária, representam um constante desafio para a família e a sociedade.
Infelizmente, muitas famílias apresentam grande dificuldade para lidar com seu filho
propriamente dito “normal”, porém a maior dificuldade deverá encontrar para lidar com o
indisciplinado.
O presente trabalho tem por principal objetivo investigar a segurança pública e o
papel da polícia militar em diagnosticar as causas que ocasionam a violência no contexto
sociedade.
Porém, aborda também os seguintes objetivos específicos: identificar o que é a
indisciplina; verificar os motivos que levam a violência praticada; analisar o comportamento
do indivíduo diferenciando a indisciplina.
Contudo o policial militar terá que buscar conhecimentos, bem como o apoio com
pessoas especializadas, visando contribuir ações positivas que contribuam na erradicação
da violência na sociedade.
No que tange aos procedimentos práticos, será realizada uma pesquisa bibliográfica
sobre o tema: segurança pública: desafios da polícia militar em diagnosticar as causas que
ocasionam a violência no contexto sociedade.
Este artigo teve como embasamento autores que estão citados ao fim deste trabalho,
ou seja, teve embasamento teórico.

2 | SEGURANÇA PÚBLICA: EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO


FUNDAMENTAL DIANTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA COMO FORMA DE
AMENIZAR A VIOLÊNCIA
Os direitos fundamentais consistem naqueles direitos considerados como cruciais
para uma determinada ordem estatal, contudo por tal razão, os mesmos são inscritos na
normal fundamental do Estado, ou seja, sua Constituição. Assim os direitos fundamentais
são direitos positivados na ordem constitucional, isto é delimitado, porém por uma
cultura e costumes desarticulados por uma especifica sociedade, tendo o intermédio dos
colaboradores deste documento. Por outro lado, os direitos humanos estão relacionados
a todos aqueles direitos cautelosamente ligados ao valor dignidade da pessoa humana.
Porém tais direitos são universais, nesse sentido não estão vinculados aos costumes e
cultura de especifica sociedades. Nessa perspectiva, compreende-se que os direitos
humanos são mais amplos, em nosso país, a Constituição Federal de 1988 retrata de
forma bem explícita que a educação é um direito fundamental. Podemos ressaltar que a
educação na perspectiva dos direitos sociais consiste num direito de todos, entretanto tal

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 108


direito foi incorporado na Constituição brasileira de 1988, que trata a educação como um
direito social (art. 6º, caput), e destina um capítulo ao trato desta questão (Capítulo III – Da
educação, da cultura e do desporto, que por sua vez está inserido no Título VIII, que trata
da ordem social). Inserido neste contexto, dispõe que:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar opensamento, a arte


e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de


instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma


da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público
de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII - garantia de padrão de qualidade. (BRASIL. 1998).

É importante ressaltarmos que, a educação é constituída por um direito de todos


e, consequentemente é dever do Estado e da família, nesse sentido será promovida e
incentivada, de forma que haja a colaboração da sociedade, cujo intuito seja voltado para
o pleno desenvolvimento da pessoa, considerando que esta seja voltada para seu preparo,
bem como para o exercício pleno da cidadania e, consequentemente a sua qualificação
profissional.
As políticas públicas para a educação no Brasil em todos os seus níveis e aspectos
é extremamente fundamental, pois a educação é uma atividade essencial para a vida do
cidadão, democratização e consequentemente para o desenvolvimento social completo.
Infelizmente, nosso país apresenta grandes desigualdades sociais, e especificamente,
no setor educacional onde revelam-se pela oferta da melhor escola para uma pequena
parcela da população e uma “educação possível”, uma escola de simples frequência, para
a grande maioria. A escola por sua vez, tem que fazer valer, mediante seus princípios e
fundamentos pedagógicos, os direitos da infância e da juventude.
Quando abordamos a questão da repetência, as legislações educacionais LDBEN,
juntamente com as diretrizes curriculares preconizavam um trabalho mais diversificado e,
consequentemente contextualizado, nesse aspecto:
V - As escolas deverão explicitar em suas propostas curriculares processos
de ensino voltados para as relações com sua comunidade local, regional e
planetária, visando à interação entre a educação fundamental e a vida cidadã;

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 109


os alunos, ao aprenderem os conhecimentos e valores da base nacional
comum e da parte diversificada, estarão também constituindo sua identidade
como cidadãos, capazes de serem protagonistas de ações responsáveis,
solidárias e autônomas em relação a si próprios, às suas famílias e às
comunidades.

VI - As escolas utilizarão a parte diversificada de suas propostas curriculares


para enriquecer e complementar a base nacional comum, propiciando, de
maneira específica, a introdução de projetos e atividades do interesse de
suas comunidades. (BRASIL, 1998).

Quando discutimos políticas públicas para a educação brasileira, especialmente


aquelas voltadas para a melhoria do Ensino Fundamental, a base são os textos legais
que organizam o poder do Estado, cujos são chamados de atos político se declaram o
interesse do Poder Público pelo bem estar social. De forma que, buscam a garantia de
qualidade ao processo de escolarização das crianças de seis a catorze anos, constituem-
se em diretrizes, atribuindo assim em estabelecimentos de ensino formal.
Para Saviani (2009), o Ideb acrescenta maior credibilidade aos “[...] pontos de
estrangulamento [...]” e auxilia na tomada de [...] medidas para saná-los [...]” (p.43). O
Artigo 205 da Constituição Federal de 1988 descreve que, a educação brasileira é um
direito de todo cidadão que deve ser assegurado pelo Estado, pela família e pela sociedade
civil. O direito à educação, exposto no texto legal da Constituição Federal do Brasil, é
ratificado no Estatuto da Criança e Adolescente como Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990
e também nas orientações na Lei Diretrizes e Base Nacional - LDB nº 9394, promulgada em
20 de dezembro de 1996 e o Plano Nacional de Educação - PNE, instituído pelo Ministério
da Educação, em 2001.
No entanto, vale salientar que é através da educação que alcançamos o status de
seres humanos conscientes da nossa liberdade cidadã, a compreensão do papel da educação
escolar e de sua função social, enquanto comunidade organizada institucionalmente livre
e democraticamente ativa.
O conhecimento dos modos de organização social e da soberania do Estado
sobre a vida e a liberdade dos cidadãos se constitui recursos intelectuais indispensáveis
ao entendimento do que a educação representa para os indivíduos a partir da união dos
homens, quer em nível micro (família/ comunidade) ou macro (sociedade/Estado).
No Brasil, as políticas públicas voltadas à educação adquiriram maior destaque e
transformaram-se em leis de grande amplitude social a partir da década de 1980. Com a
promulgação da Constituição Federal do Brasil, em 1988, e com os debates acadêmicos
que fizeram parte da Assembleia Constituinte, teve avanços qualitativos e quantitativos
importantes no sentido de garantir mudanças reais nas propostas de educação escolar para
o Ensino Fundamental. Contudo, esta variedade de programas e projetos desenvolvidos,
cujos os quais foram idealizados com o intuito de ampliar e manter o Ensino Fundamental
e consequentemente como prioridade legal e política, é administrado de modo diferenciado

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 110


e recebe incentivos econômicos e sociais diversos.
Com um discurso de participação democrática, formação para a cidadania,
descentralização do poder do Estado e inclusão social com direito à educação para
todos, surgiram no cenário nacional, inúmeras leis, decretos, pareceres e emendas,
além do ensino fundamental no Brasil: considerações necessárias um número elevado
de programas e projetos governamentais, que neste momento estão em plena vigor no
Brasil. São documentos que tratam das decisões que se sobressaem como política pública
voltada para a educação fundamental. Nesse contexto, que se estabelecem conceitos e
medidas educacionais que viabilizam a constante busca de qualidade na educação pública.
No entanto, a preocupação como o acesso ficou evidente, onde preconiza:
Do Direito à Educação e do Dever de Educar

Art. 4º. O dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado
mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não


tiveram acesso na idade própria;

II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;

III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com


necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis


anos de idade;

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação


artística, segundo a capacidade de cada um;

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com


características e modalidades adequadas às suas necessidades e
disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições
de acesso e permanência na escola.

(BRASIL, 1996).

Contudo ao analisarmos as considerações atribuídas acerca da educação


compreendemos que é indiscutivelmente um formato de direito humano, considerando o
fato de que estão atrelados ao direito à educação outros direitos, tais como econômicos e
sociais, portanto fazendo desta um centro irradiador de conhecimentos que de uma forma
geral permitem às pessoas, concretizar outros direitos. É notável que o ponto de partida
para “transformar” nosso país consiste em uma ampla mobilização da sociedade em voltado
problema da qualidade da educação básica. Nesse contexto deve ser viabilizado um
ambicioso plano de transformação, que vá além das tradicionais limitações de mandatos,
esferas governamentais e alianças políticas, cujo foco seja, portanto, liderarem uma ampla
mobilização da sociedade, voltada para a necessidade de promover uma relevante melhoria
da qualidade da Educação Básica no Brasil. Cabe ressaltar que é de responsabilidade

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 111


das lideranças políticas, juntamente com apoio de setores da sociedade, mobilizar e unir
a população de uma maneira geral, para poder estabelecer um significativo pacto para
enfrentarmos bravamente o desafio que se coloca nosso país, quebrando paradigmas e,
consequentemente superando obstáculos de difícil transposição no que tange a educação.

2.1 A diversidade do gênero relevância da violência


Historicamente, o conceito “gênero”, vem sendo moldado a partir de debates
epistemológicos interdisciplinares; de início “as teorias feministas criaram a noção de
gênero como categoria analítica da divisão sexuada do mundo, trazendo à luz a construção
dos papéis sociais naturalizados em torno da matriz genital/biológica” (SWAIM, [200?],
p.1), produzindo uma estrutura binária de sujeitos com base no discurso da sexualidade
reprodutiva, heterossexual, discurso este fortemente debatido e contraposto posteriormente.
Vale ressaltar que, não existe um modelo único de família, assim ao desvelarmos o modelo
de família de cada comunidade é que, com base nele, podemos aprender os valores morais
e as regras sociais sobre os quais se constrói o conjunto das relações sociais. Nesse
sentido, as aproximações de ambos transexualidade e travestismo na sociedade ocidental
contemporânea, estão relacionadas aos valores que definem uma família são a união, a
solidariedade, o amor, a amizade.
Porém estamos cientes que gênero é a construção social do sexo, no entanto é
preciso considerar que aquilo que no corpo interpretamos como masculino ou feminino não
é natural, assim transexualidade e travestismo não foi construído assim, porém não se trata
da mesma coisa.
De fato, a construção do gênero embasada no sexo biológico é fundamento dos
mecanismos de divisão e controle de um sexo sobre o outro, da dominação e do poder
exercidos nessa relação (SWAIN, [2000], p.16). Porém, essa divisão binária que cria corpos
femininos e masculinos, de significado universal, que delimita a identidade do humano em
práticas normativas de sexualidade heterossexual começa a ser desconstruída a partir do
filosofo francês Michel Foucault.
O pensamento foucaltiano casa-se à análise feminista na medida em que
ambos pretendem desvelar os discursos de verdade sobre o humano e
seus recortes sexuados/sexualizados, pois segundo este autor, “[...]somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas
e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função de discursos
verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT
apud SWAIN [200?],p.2).

Com base em Foucault, ela explica que o gênero nasce a partir das relações de
poder entre subordinação e dominação, entre quem obedece e quem manda. Essas
relações são construídas no meio social, no convívio com outras pessoas, portanto, sempre
relativas e relacionais. Gênero em consonância com Scott (1990) é a organização social
da diferença sexual, um saber que dá significados para as diferenças corporais, o modo

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 112


como a sociedade, como as pessoas em seu tempo e no contexto histórico em que vivem,
as entende e as define.
Nota-se que hoje em dia a sociedade capitalista fornece grandes desigualdades
e discriminações raciais e sociais, portanto, precisa-se analisar de onde surgem
determinadas desigualdades e a quem elas mais atingem. No contexto atual da sociedade
percebe-se o quanto as instituições perderam valores, e dentro dessas encontra-se a
escola, que necessita urgentemente resgatar o seu valor e reavaliar os aspectos da sua
responsabilidade de transmitir os conhecimentos produzidos socialmente.
A atenção que deve ser dado a diversidade obriga que se tomem decisões que
ajudem na adaptação do ensino à diversidade dos alunos, em todos os níveis e modalidades
de ensino, configurando em práticas educativas escolares (ANDRADE, 2009).
Portanto, a família tem um papel imprescindível na vida de seus filhos; é onde
acontece o primeiro desenvolvimento, onde os ensinamentos pela educação doméstica
são aprendidos e respeitados, evidenciando a cultura de cada clã no decorrer da formação
da sociedade.
O sujeito que tem um ambiente familiar harmonioso e satisfatório, com pais
compreensivos, assertivamente terá suas atitudes positivas em relação a si mesma e aos
outros.
Portanto, Batanero (2003, p. 18), relata que:
Educar em diversidade supõe partir de ideias básicas: crer que todas
as pessoas podem aprender e que todas as pessoas possuem sabedoria
necessária para o seu desenvolvimento. Assim, a diversidade não devemos
vê-la como um problema, sim como uma oportunidade para alcançar objetivos
educativos.

Esse reconhecimento não é tarefa fácil, pois diversas vezes nos deparamos com
esse desafio, fazendo-nos olhar para a nossa própria história, fazendo com que pensemos
as nossas ações, opções e valores. O reconhecimento das diferenças incide em romper
preconceitos, superar velhos paradigmas.

2.2 A importância das relações raciais para uma sociedade de igualdade


Durante anos vêm se aprimorando uma série de medidas, como a criação de leis
que se destinem ao incentivo à disseminação da cultura afro-brasileira nas escolas e
também medidas que visem reforçar o reconhecimento e valorização de toda população
afrodescendente.
A ligação entre indivíduos brancos e negros numa sociedade pode suceder-se de
maneira tensa, isto é, afastando, excluindo, incentivando a pessoas negra a adotar em
alguns pontos uma atitude introvertida, por medo de ser rejeitada ou ridicularizada pelo seu
grupo social.
A sociedade deve ser contemplada como um meio de acesso à cidadania, à

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 113


capacidade crítica, ao mercado de trabalho, também é considerada como um mecanismo
de exclusão social. É necessário ter conhecimento do desafio a ser encarado para combater
o racismo.
Conclui-se que, simultaneamente, ao fazer uma análise sobre as questões étnico-
raciais, constata-se uma lastimável situação que perdura por décadas. Referente à
continuidade de uma realidade de desigualdades de condições nas relações étnico-raciais
na sociedade.
Todavia, sobre a desigualdade é importante destacar que ela é uma diferença que
existe entre as pessoas e até mesmo nos grupos sociais. Vale salientar que uma maneira de
combater o preconceito, o racismo, enfim a própria intolerância consiste no reconhecimento
e na valorização das diferenças. Nessa perspectiva, podemos dizer que a diversidade é
de suma importância para propiciar significativas mudanças na vida das pessoas, onde
possibilita encontrar caminhos para elaboração de propostas de combate aos conflitos para
exercer o papel pleno de cidadania. Na verdade as desigualdades estão presentes na
estratificação econômica, social e política, ou seja, no mundo. É visível essa desigualdade,
porque cada um é por si, mantém a ordem social, ou seja, o descendente do rico herdará
sua herança, já o filho do pobre, deverá lutar para conquistar seu espaço na sociedade e
enriquecer com trabalho árduo.
O importante é lutar pela igualdade, pois somos iguais e temos o mesmo direito.
Sabemos que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Essa desigualdade
acaba gerando a exclusão perante uma moradia, educação, emprego, saúde, tudo direito
dos cidadãos, mas infelizmente essa desigualdade está presente fortemente produzida
pelo capitalismo.
Contudo entende-se que, na sociedade brasileira, a existência de uma efetiva lei
não assegura a sua aplicação e, assim sendo, não garante mudanças. Para que haja
mudança, é necessária a adoção de uma atitude as questões étnico-raciais também de
forma politizada.

2.3 O papel da Polícia Militar na prevenção da violência


A polícia militar, consiste em reduzir a violência e a criminalidade na sociedade
que está inserida. Todavia, seu principal objetivo é basicamente a prevenção e,
consequentemente repressão aos crimes e também atos infracionais.
Neste contexto, a polícia militar vem de encontro a inserção dos indivíduos na
sociedade, bem como frequentar ambientes independentemente do nível cognitivo, genero,
raça sem que venha a sofrer qualquer tipo de discriminação e ou violência.
Nesse sentido, a polícia direciona a comunidade a percorrer os caminhos da
segurança pois estabelecem medidas que minimizem a ação de violência na sociedade.
Vale ressaltar que, muitas vezes problemas de violência, discriminação são gerados
pela falta de educação (evasão escolar), pois o mundo do crime está disseminando

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 114


sonhos surreal, muitas vezes podados sem ao menos chegar na adolescência. Assim a
Polícia Militar, propõe as regras a serem seguidas a partir de uma tomada de decisões,
estabelecendo o aumento da segurança.
Em suma, este trabalho abordou a segurança pública e o papel da polícia militar em
diagnosticar o que erradicam e ocasionam a violência no contexto sociedade.

3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
As conquistas e desafios em manter uma sociedade longe da violência infelizmente
continua distante, pois não depende apenas de um orgão, mas de todo um conjunto,
começando pela educação de qualidade, moradia digna, direito as principais refeições do
dia, segurança pública, empresas que geram emprego para sociedade, com isso um ponto
irá completar o outro, para enfim, diminuir drásticamente os índices criminais.
A educação básica de qualidade irá preparar jovens e crianças para construção de
uma sociedade melhor, por isso o combate a violência pode ser visto como uma pirâmide,
a qual possui vários degraus , onde um complementa o outro.
Não podemos dar valor excessivo á apenas um deles, pois a educação e respeito
nos lares também é um ponto muito importante que não depende das escolas e professores.
Contudo, o ensino propicia uma imensa riqueza no processo de criatividade, e
apresenta o papel principal de construtor do conhecimento como um todo. Entretanto o
ensino também é essencial para a aquisição de outros conhecimentos, habilitando, portanto
o sujeito nas práticas que envolvem um quantitativo da realidade.
A segurança pública por sua vez, tem o papel não somente de reprimir o crime e a
violência, mas também na sua prevenção, e ela se dá desde a base da pirâmide, juntamente
com a educação básica, pois as crianças serão o futuro. O papel da polícia comunitária e
preventiva é de suma importância na vida dos jovens, realizando esse trabalho preventivo
e de mãos dadas com a educação básica, formando não somente jovens , mas cidadãos
com futuro promissor, o qual consequentemente irá diminuir os índices de violência a longo
prazo.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Benilde Vieira Fontes Fernandes. Gestão da diversidade na sala de aula. Estudo de
Caso: Escola Secundária de Achada Grande. Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, 2009.

AQUINO, J. G (org.). A desordem na relação professor-aluno: indisciplina, moralidade e


conhecimento. Indisciplina na escola. São Paulo: Summus, 1996;

ARAÚJO, U. F. de. Moralidade e indisciplina: uma leitura possível a partir do referencial


piagetiano. Indisciplina na escola. São Paulo: Summus, 1999;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 115


CASALI, A. D. O que é educação de qualidade. In: MANHAS, Cleomar (Org.).Quanto custa
universalizar o direito a educação? Brasília: UNICEF/CONANDA, 2011.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/


ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm Acesso em 15 ago.2014. Acesso em 02 fev.2021.

DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.uff.br/seminariodireitoshumanos/direitos-humanos.


htmlAcesso em 22 jul.2014. Acesso em 03 fev.2021.

ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE: Disponível em : http://www.desenvolvimentosocial.


sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/182.pdf Acesso em 02 fev.2021.

LA TAILLE, Yves de. A indisciplina e o sentimento de vergonha. Indisciplina na escola. São Paulo:
Summus, 1996.

SIMILI, Ivana Guilherme (Org.) Corpo, gênero e sexualidade. Maringá: EDUEM, 2011. (Formação de
Professores - EaD, n. 50).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 10 116


CAPÍTULO 11

PISO DA ENFERMAGEM NA VISÃO DO DIREITO


ADMINISTRATIVO

Data de aceite: 01/03/2023

Matheus Martins Sant’Anna Nursing Salary Floor was the subject of


discussion in the Federal Supreme Court,
which suspended its execution in response
to the request of the National Confederation
RESUMO: A Lei nº 14.434, de 4 de agosto of Health, Hospitals, Establishments and
de 2022 instituiu o piso salarial para os Services (CNSaúde). The scope of this
profissionais da enfermagem da rede pública work is to analyze the impact of the eventual
e privada. Com consideráveis repercussões implementation of the Nursing Salary in the
de caráter político e orçamentário, o Piso sphere of Administrative Law, especially
Salarial da Enfermagem foi objeto de in management contracts and other
discussão no Supremo Tribunal Federal a instruments used in Public Administration.
qual suspendeu sua execução atendendo KEYWORDS: Salary Floor, Nursing,
ao pedido da Confederação Nacional de Constitution, STF, Administrative Law.
Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e
Serviços (CNSaúde). O presente trabalho
INTRODUÇÃO
tem como escopo a análise do impacto
de eventual execução do Piso Salarial A Lei nº 14.434, de 4 de agosto
da Enfermagem no âmbito do Direito de 2022 institui o piso salarial para os
Administrativo, em especial nos contratos profissionais da enfermagem – enfermeiros,
de gestão e demais instrumentos utilizados
técnicos, auxiliares e parteiras – entrou
na Adminsitração Pública.
em vigor no dia 5 de agosto de 2022 com
PALAVRAS-CHAVE: Piso Salarial,
Enfermagem, Constituição, STF, Direito consideráveis repercussões orçamentárias
Administrativo. e financeiras a todos os contratantes
desses profissionais – públicos ou privados.
ABSTRACT: The Law No. 14,434, of A instituição do piso salarial da
August 4, 2022, established the minimum
enfermagem é fruto da luta histórica da
wage for nursing professionals in the public
categoria e representa um notório avanço
and private network. With considerable
political and budgetary repercussions, the na promoção profissional, que ganha maior

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 117


relevância após o turbulento período da pandemia da Covid-19.
Contudo, a instituição do piso salarial da enfermagem vem acompanhada de
repercussão econômica e jurídica para a administração pública e privada.
Tais repercussões invadem o campo do Direito Administrativo, em especial, a seara
de licitações e contratos firmados pelo Poder Público no que tange à gestão da saúde.
Neste sentido, urge demonstrar o instituto cabível à Administração Pública, orientada
pelo princípio da legalidade, para modificação dos contratos de gestão firmados com as
Organizações Sociais de Saúde.
Neste ponto, foram analisados os institutos jurídicos pertinentes à alteração de
valor do contrato de gestão, a qual demonstramos o cabimento da Revisão Administrativa
positivada no artigo 65, II, “d” da Lei Federal nº 8666/1993.
O presente trabalho analisa, ainda, a Revisão Administrativa na Nova Lei de
Licitações – Lei Federal nº 14.113/2021 e o motivo de não cabimento dos demais institutos.

LEI 14.434/2022 – PISO DOS TRABALHADORES DA ENFERMAGEM


A Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022 institui o piso salarial dos trabalhadores
da enfermagem, abarcando enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras com as seguintes
disposições:
Art. 1º A Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, passa a vigorar acrescida dos
seguintes arts. 15-A, 15-B, 15-C e 15-D:
“Art. 15-A. O piso salarial nacional dos Enfermeiros contratados sob o regime
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943, será de R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e
cinquenta reais) mensais.

Parágrafo único. O piso salarial dos profissionais celetistas de que tratam os


arts. 7º, 8º e 9º desta Lei é fixado com base no piso estabelecido no caput
deste artigo, para o Enfermeiro, na razão de:

I - 70% (setenta por cento) para o Técnico de Enfermagem;

II - 50% (cinquenta por cento) para o Auxiliar de Enfermagem e para a


Parteira.”

“Art. 15-B. O piso salarial nacional dos Enfermeiros contratados sob o regime
dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações
públicas federais, nos termos da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990,
será de R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) mensais.

Parágrafo único. O piso salarial dos servidores de que tratam os arts. 7º, 8º
e 9º desta Lei é fixado com base no piso estabelecido no caput deste artigo,
para o Enfermeiro, na razão de:

I - 70% (setenta por cento) para o Técnico de Enfermagem;

II - 50% (cinquenta por cento) para o Auxiliar de Enfermagem e para a


Parteira.”

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 118


“Art. 15-C. O piso salarial nacional dos Enfermeiros servidores dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios e de suas autarquias e fundações será de
R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) mensais.

Parágrafo único. O piso salarial dos servidores de que tratam os arts. 7º, 8º
e 9º desta Lei é fixado com base no piso estabelecido no caput deste artigo,
para o Enfermeiro, na razão de:

I - 70% (setenta por cento) para o Técnico de Enfermagem;

II - 50% (cinquenta por cento) para o Auxiliar de Enfermagem e para a


Parteira.”

“Art. 15-D. (VETADO).”

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

§ 1º O piso salarial previsto na Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, entrará


em vigor imediatamente, assegurada a manutenção das remunerações e
dos salários vigentes superiores a ele na data de entrada em vigor desta
Lei, independentemente da jornada de trabalho para a qual o profissional ou
trabalhador foi admitido ou contratado.

§ 2º Os acordos individuais e os acordos, contratos e convenções coletivas


respeitarão o piso salarial previsto na Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986,
considerada ilegal e ilícita a sua desconsideração ou supressão.

A Emenda Constitucional nº 124, de 14 de julho de 2022, que instituiu o piso na


Constituição Federal, define que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
até o final do exercício financeiro de 2022, adequarão a remuneração dos cargos ou dos
respectivos planos de carreiras, quando houver, de modo a atender aos pisos estabelecidos
para cada categoria profissional.
Neste sentido, conforme se extrai na leitura do dispositivo infraconstitucional e da
emenda à Constituição, o Piso da Enfermagem incide de imediato aos trabalhadores do
sistema privado, o que inclui as fundações e autarquias públicas.
No tocante aos servidores públicos da administração direta federal, estadual,
municipal e distrital, o piso vigorará obrigatoriamente no primeiro dia do exercício de 2023.
Diante da legislação eleitoral, ainda que os estados e a União queiram antecipar a
vigência do piso salarial, haverá óbice diante da disposição do inciso VIII do artigo 73 da
Lei Federal nº 9504/1997, que veda revisão geral da remuneração dos servidores públicos
que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição
até a posse dos eleitos.
Portanto, a administração direta dos entes federativos terão tempo maior para
adequação orçamentária e financeira, enquanto fundações públicas e privadas, bem como
o sistema privado de saúde terá que aplicar o piso da enfermagem de forma imediata.
Por fim, em 04 de setembro de 2022, por decisão interlocutória e monocrática do
Ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, o piso salarial da enfermagem
foi suspenso por 60 (sessenta) dias, atendendo o pedido de Confederação Nacional de

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 119


Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde). Em sua decisão, o Ministro
Barroso concordou com o argumento da entidade sobre os riscos de demissão em massa
nos hospitais.

CONTRATO DE GESTÃO DE SAÚDE


A onda do neoliberalismo econômico da década de 90 criou o movimento internacional
de Reforma do Estado nos países em desenvolvimento.
Estimulados por financiamento do Banco Mundial, os países emergentes buscaram
a incorporação de experiências do ambiente privado na área da gestão pública, cujas
características visavam conferir maior flexibilidade gerencial com relação à compra de
insumos e materiais, à contratação e dispensa de recursos humanos, à gestão financeira
dos recursos orçamentários, além de estimular a implantação de gerência que priorizasse
resultados, satisfação dos usuários e qualidade dos serviços prestados.
No caso brasileiro, nas últimas décadas, os modelos jurídico-administrativos
passaram a privatização com regulação por agências estatais e auditoriais privadas
custeadas pelos auditados.
Na prestação final do serviço público houve acordes com estas inovações que
obedeceram às figuras da administração indireta (autarquias, empresas públicas) ou,
até mesmo, às fundações de direito privado, de apoio à administração direta e, mais
recentemente, o de Organização Social, formulado pelo Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado – MARE (1995).
Lima (1996) define o contrato de gestão como instrumento gerencial originado da
administração por objetivos ou administração sistêmica por objetivos e resultados.
A ideia, em princípio, é que a administração pública conceda à OSS maior autonomia
gerencial, liberando-a do controle dos meios, que passa a ser realizado sobre os resultados
alcançados, sem desprezar o controle realizado pelos órgãos de fiscalização como Tribunal
de Contas local e Ministério Público.
Outra abordagem para este tipo de contrato no setor da saúde refere-se à sua
dimensão sistêmica, visando o atendimento do princípio da universalidade do SUS.
O estado de São Paulo adotou a nova figura de organização social dentro das
medidas de gestão. A proposta de organização social do governo estadual, em 1996-
1997, abrangia, inicialmente, as áreas de saúde, agricultura e cultura, conforme minuta de
anteprojeto de lei complementar.
Porém, a necessidade premente de incorporar à rede de serviços de saúde dez
hospitais gerais em condições de operação restringiu a proposta de OSS exclusivamente
à área de saúde.
Posteriormente, a Lei Federal nº 9.637/1998 regulamentou a qualificação das
Organizações Sociais, definindo os requisitos no seu artigo 2º, a saber:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 120


Art. 2o São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo
anterior habilitem-se à qualificação como organização social:
I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:
a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus


excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de


direção, um conselho de administração e uma diretoria, definidos nos termos do
estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle
básicas previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de


representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória
capacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios


financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;

g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do


estatuto;

h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer


hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado
ou membro da entidade;

i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações


que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de
suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra
organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação,
ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na
proporção dos recursos e bens por estes alocados;

II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como


organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de
atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração
Federal e Reforma do Estado.
Assim, podemos definir Organização Social de Saúde como pessoa jurídica de
direito privado, sem fim econômico ou lucrativo, instituída por iniciativa de particular ou de
ente público, para desempenhar serviços sociais não exclusivos do Estado, com incentivo
e fiscalização do poder concedente e dos órgãos de fiscalização, por meio de Contrato de
Gestão.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 121


CONTRATO DE GESTÃO
O contrato de gestão é um instrumento gerencial originado da administração por
objetivo. Segundo Maristela de André (1994), o contrato de gestão é um instrumento
moderno de administração por objetivos, criado na França na década de 60.
No âmbito da administração pública brasileira, verifica-se a existência de contratos
de gestão nas seguintes áreas: (1) Empresas Estatais; (2) Agências Executivas, sendo o
Inmetro como exemplo mais factível; (3) Agências Reguladoras; (4) OSCIPs, regulamentadas
pela Lei Federal nº 9.790/1999 e, por último, (5) OS – Organizações Sociais de Saúde.

IMPACTO DO PISO DA ENFERMAGEM NO CONTRATO DE GESTÃO –


REVISÃO ADMINISTRATIVA
De início, é necessário distinguir os institutos reajuste e revisão, pois embora ambos
os institutos tenham como escopo a hipótese legal de possível alteração do contrato no que
se refere ao valor, é certo que o aumento da folha salarial de trabalhadores por força de
instituição de lei ferirá a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro.
Neste caso, se trata de alteração de valor por força do art. 65, II, “d” da Lei Federal
nº 8666/1993, uma vez que há necessidade de “restabelecer a relação que as partes
pactuaram inicialmente.”
Diferentemente, o reajuste é cláusula necessária nos contratos administrativos que
tenha por objetivo preservar o valor do contrato em sua origem, em razão da inflação anual,
cuja previsão está na Lei Federal nº 8.666/1993 nos arts. 40, XI e 55, III. Sua periodicidade
mínima de 12 meses, contados da data da apresentação da proposta ou orçamento a que
esta se referir, é um direito disponível, com possibilidade de renúncia tácita em caso de
preclusão ou perda de prazo nos contratos com prazo prorrogado.
A revisão representa um direito do contratado e dever da Administração Pública
que deve ser observado, independente de previsão contratual, quando for constatado o
desequilíbrio do ajuste em razão de fatos supervenientes e imprevisíveis ou previsíveis,
mas de consequências incalculáveis, conforme previsão dos arts. 58, §2º e 65, II, “d” e §§
5º e 6º da Lei 8666/93.
Sobre os fatos imprevisíveis, condição fundamental do instituto da revisão contratual,
envolve situações externas ao contrato, do qual o contratado não conseguiria antecipar-se.
Nesse sentido, pode-se conceituar a Teoria da Imprevisão, segundo Hely Lopes Meirelles
(1990, p. 230), citado por Pereira (2001) como o “reconhecimento de que a ocorrência de
eventos novos, imprevistos e imprevisíveis pelas partes autoriza a revisão do contrato para
o seu ajustamento às circunstâncias supervenientes” e suas formas de manifestação, quais
sejam: força maior/caso fortuito, fato do príncipe, fato da administração e interferências
imprevistas.
Do mesmo modo, se entende como fatos previsíveis de consequências incalculáveis,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 122


assim como o caso fortuito/força maior e fato do príncipe, os seguintes conceitos:

• Fatos previsíveis de consequências incalculáveis: são situações internas ao


contrato, previsíveis, mas que, teve uma repercussão muito mais gravosa do
que o que se poderia imaginar. Ou seja, a imprevisibilidade não está no fato,
mas sim, no resultado que ele provoca. Exemplo disso é a elevação do câmbio
muito acima da curva esperada.

• Caso fortuito/força maior: são eventos externos ao contrato, originários da ação


humana ou de forças da natureza que gera consequências imprevisíveis, im-
possíveis de evitar ou impedir. Destarte, podem ser exemplos: greve dos cami-
nhoneiros, terremoto, inundações, etc.

• Fato do príncipe: situação na qual o próprio estado, mediante ato lícito, modifica
as condições do contrato, provocando prejuízo ao contratado. São exemplos:
Covid-19, oneração ou desoneração da folha de pagamento.
Com efeito, como os custos do contratado sofre variação de preço ao longo do tempo
sem que nada de anormal ou extraordinário aconteça, a lei prescreve que a administração
deve dispor de critério de reajuste no edital e no contrato para fazer frente a variação de
preço decorrente do processo inflacionário.
Em outras palavras, há necessidade de indexação de índice anual de reajuste no
corpo editalício e contratual, que preservará o equilíbrio da relação jurídica e econômica
firmada quando da homologação da licitação ou do orçamento a que essa se referir.
Entretanto, a jurisprudência diverge quando da utilização da revisão como
mecanismo de reequilíbrio financeiro em virtude de dissidio salarial anual.
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. CONTRATO ADMINISTRATIVO.
DISSÍDIO COLETIVO QUE PROVOCA AUMENTO SALARIAL. REVISÃO
CONTRATUAL. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. FATO PREVISÍVEL.
NÃO-INCIDÊNCIA DO ART. 65, INC. II, ALÍNEA “D”, DA LEI N. 8.666/93. ÁLEA
ECONÔMICA QUE NÃO SE DESCARACTERIZA PELA RETROATIVIDADE. 1.
É pacífico o entendimento desta Corte Superior no sentido de que eventual
aumento de salário proveniente de dissídio coletivo não autoriza a revisão o
contrato administrativo para fins de reequilíbrio econômico-financeiro, uma
vez que não se trata de fato imprevisível - o que afasta, portanto, a incidência
do art. 65, inc. II, “d”, da Lei n. 8.666/93. Precedentes.

2. A retroatividade do dissídio coletivo em relação aos contratos administrativos


não o descaracteriza como pura e simples álea econômica. 3. Agravo regimental
não provido. (AgRg no REsp 957.999/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL
MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 05/08/2010).
PROCESSUAL CIVIL ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO.
EXECUÇÃO DE OBRAS DE CONSTRUÇÃO CIVIL E TERRAPLENAGEM.
PLANO REAL. CONVERSÃO EM URV. DISSÍDIO COLETIVO. AUMENTO DE
SALÁRIO. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. TEORIA DA IMPREVISÃO.
INAPLICABILIDADE AO CASO. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
1. A conversão da moeda em URV de que trata a Lei n. 8.880/94 não se
apresenta como extorsiva ou exorbitante a justificar a excepcionalidade da
Teoria da Imprevisão. 2. O aumento salarial a que está obrigada a contratada

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 123


por força de dissídio coletivo não é fato imprevisível capaz de autorizar a
revisão contratual de que trata o art. 65 da Lei n. 8.666/93. 3. Recurso
especial improvido. (REsp 650.613/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE
NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/10/2007, DJ 23/11/2007, p.
454) CONTRATO ADMINISTRATIVO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. REVISÃO. A
obrigação de a empresa conceder aumento de salário a seus funcionários por
força de dissídio coletivo não constitui fato imprevisível capaz de autorizar a
revisão do contrato administrativo, nos termos do art. 65 da Lei n. 8.666/1993.
Precedente citado: REsp 134.797-DF, DJ 1º/8/2000. REsp 382.260 - RS, Rel.
Min. Eliana Calmon, julgado em 3/12/2002.

Desta forma, o dissídio anual dos trabalhadores estaria incluso na hipótese de


reajuste, pois previsível de acordo com o calendário anual de negociação sindical.
O Tribunal de Contas da União compartilha do mesmo entendimento, a saber:
“...o incremento dos custos de mão-de-obra decorrente da data-base das categorias
profissionais trata-se de mero reajuste provocado pela inflação. Em consequência, são
aplicáveis a esse incremento de custos as regras atinentes ao reajuste dos contratos, que
fixam o prazo anual para a realização de cada novo reajustamento.” Acórdão nº 1.563/2004.
(negritei e grifei).
Contudo, há situações em que a majoração salarial é tamanha, decorrente de greves
ou lutas sindicais, que foge da previsão habitual.
Nesse contexto, excepcionalmente, a revisão seria admitida quando estabelecesse
aumentos extraordinários, fugindo a previsibilidade daquela categoria, capaz, por esta
razão, de tornar o contrato demasiadamente oneroso para o contratado.
No mesmo sentido adverte o professor Flávio Amaral Garcia:
“Somente seria admissível a aplicação da revisão se o dissídio estabelecesse
um índice fora dos padrões normais e que acarretasse uma onerosidade
excessiva ao contratado. Neste caso, estar-se-ia diante de um fato previsível,
mas de consequências incalculáveis, conforme dispõe o art. 65, d, da Lei
8666/93.” (negritei)

No caso em tela, trata-se de clara hipótese descrita na alínea d, inciso II do artigo


65 da Lei Federal nº 8.666/1993.
Em que pese a Lei Federal nº 14.434/2022 que instituiu o piso salarial da
enfermagem ser conquista histórica diante de uma luta por décadas para sua aprovação,
é certo que a sanção da lei, diante de todas as nuances que envolvem o trâmite legislativo
no Brasil, impõe a situação como fato imprevisível, ou se fosse previsível, de consequência
incalculável.
Como o dispositivo do artigo 65, inciso II alínea b, ampara a alteração dos contratos
também na ocorrência de fatos previsíveis, porém de consequências incalculáveis, os
aumentos salariais trazidos por lei, de comprovada repercussão nos preços contratados,
ampara a revisão desses preços, na forma prevista no art. 65, § 5º, desse diploma.
Cabe ressaltar que não há impedimento legal para que um mesmo contrato seja

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 124


revisado e reajustado ou repactuado, uma vez que a causa determinante da revisão é
diversa daquela que determina o reajuste ou a repactuação, desde que sejam preenchidos
todos os requisitos de cada um desses institutos.
Também é importante frisar que a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, seja por meio da revisão, da repactuação ou do reajuste, é direito tanto do
particular quanto da Administração Pública. Não se trata de garantia de aumento de preços
e maior lucratividade em favor do particular, mas de um preceito legal que visa manter o
equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Desta forma, no caso em tela, o instituto adequado a ajustar os contratos de gestão
diante do aumento realizado pela lei que institui o piso da enfermagem é a revisão do artigo
65, inciso II, alínea d c.c §5º do mesmo artigo na Lei Federal 8.666/1993.
A Nova Lei de Licitação – Lei Federal nº 14.133/2021 - ao tema de equilíbrio
financeiro do contrato, trouxe inovações importantes.
No artigo 6º, inc. LVIII, tratou do reajustamento em sentido estrito, como “forma de
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contrato consistente na aplicação do
índice de correção monetária previsto no contrato, que deve retratar a variação efetiva do
custo de produção, admitida a adoção de índices específicos ou setoriais.”
Trata-se aqui de medida prévia para manutenção do equilíbrio econômico, havendo,
em regra, o mesmo tratamento da lei anterior.
Em relação ao instituto da repactuação, definida no mesmo art. 6º, inc. LIX, como
“forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contrato utilizada para serviços
contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão
de obra, por meio da análise da variação dos custos contratuais, devendo estar prevista
no edital com data vinculada à apresentação das propostas, para os custos decorrentes do
mercado, e com data vinculada ao acordo, à convenção coletiva ou ao dissídio coletivo ao
qual o orçamento esteja vinculado, para os custos decorrentes da mão de obra”.
Verifica-se que a repactuação está atrelada aos serviços contínuos de mão de obra,
o que poderia gerar dúvida sobre a utilização deste instituto ao caso em tela.
Neste ponto, vale a pena melhor digressão do assunto, a saber:

• A repactuação é uma espécie de reajuste e, assim como ele, serve para corrigir
a desvalorização da moeda em virtude da inflação. No entanto, a repactuação
é utilizada apenas quando se trata de serviços contínuos com dedicação exclu-
siva de mão-de-obra.

• A repactuação se dá pela análise das variações dos componentes na planilha


de custos e formação de preços, como acordos, convenções coletivas ou dissí-
dios coletivos aos quais a proposta esteja vinculada.
Tanto o reajuste quanto a repactuação devem estar previstos no edital e no contrato,
tendo periodicidade mínima de 1 ano, contado a partir da data limite para apresentação da
proposta ou do orçamento a que se referir.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 125


“A diferença entre repactuação e reajuste é que este é automático e deve ser
realizado periodicamente, mediante a simples aplicação de um índice de preço, que deve,
dentro do possível, refletir os custos setoriais. Naquela, embora haja periodicidade anual,
não há automatismo, pois é necessário demonstrar a variação dos custos do serviço.”
(Acórdão 1105/2008 Plenário – Voto do Ministro Relator)
A Instrução Normativa n.º 05/2017 do Ministério da Economia indica em seu art. 59,
o entendimento acerca da repactuação contratual:
“As repactuações não interferem no direito das partes de solicitar, a qualquer
momento, a manutenção do equilíbrio econômico dos contratos com base no disposto no
art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993”.
Em outras palavras, caso o administrador contratual, tenha já aplicado o índice de
reajuste de preço previsto em contrato, isso per si não invalida o direito ao prestador de
serviço solicitar a revisão contratual.
É o que indica o art. 65, inciso II, alínea d, da Lei 8.666/1993, ou seja, é condição
fundamental na relação entre o particular e a Administração Pública manter o equilíbrio
econômico-financeiro da relação estabelecida, sempre que houver desequilíbrio advindo
de fato imprevisível ou previsível, mas com consequências incalculáveis.
Em outros termos, reajuste e repactuação são aplicáveis em razão das perdas
inflacionárias, para devolver o custo contratual ao valor originário, enquanto que a revisão
decorre de imprevisibilidades, de fatos ou situações que não podiam ser previstas ao tempo
da elaboração da proposta e que produzam impacto nos custos do contrato.
Além disso, a concessão do reajuste e da repactuação está condicionada a um prazo
mínimo de 12 meses, contados da data da apresentação da proposta ou da convenção,
acordo ou dissídio coletivo, respectivamente, enquanto que a revisão, justamente pela
imprevisibilidade que a fundamenta, não está atrelada a esta condicionante.
Outrossim, o edital e contrato devem contemplar a previsão de repactuação/ou
reajuste, com seu respectivo índice; entretanto, tal condição não existe para o instituto da
revisão administrativa.
A revisão dos contratos, com vistas à manutenção da sua equação financeira inicial,
na sistemática da lei 14.133/2021 tem disciplina parecida com a da lei n. 8666/93, ou
seja, quando da ocorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências
incalculáveis, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe.
O artigo 124, inciso II, alínea “d” tem praticamente o mesmo conteúdo do artigo 65,
inciso II, alínea “d” da lei 8666/93, invertida a ordem de algumas das palavras contidas nos
citados dispositivos.
Na lei 14.133/2021, temos texto que justifica a revisão contratual:
“Em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos
imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução
do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 126


estabelecida no contrato”.
Cabe revisão administrativa nas contratações de obras e serviços de engenharia,
quando a execução for obstada pelo atraso na conclusão de procedimentos de
desapropriação, desocupação, servidão administrativa ou licenciamento ambiental, por
circunstâncias alheias ao contratado – artigo 124, § 2º da Nova Lei de Licitações.
Consta, ainda, no corpo positivo que há autorização expressa para utilização da
revisão administrativa do preço do contrato quando, após a data da apresentação da
proposta, vier a ocorrer a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos
legais ou a superveniência de disposições legais, com comprovada repercussão sobre
os preços contratados – artigo 134 cuja disposição, vale lembrar, já constava na Lei de
Licitações anterior.
A autorização expressa contida no dispositivo acima mencionado veio trazer
segurança para o contratado no sentido de dar início à execução do objeto do contrato já
com seu preço devidamente revisto.
Inexiste, por fim, prazo peremptório definido em lei para o pedido de revisão. Isso
significa que o pedido de revisão administrativa poderá ser realizado ainda que o contrato
esteja extinto a termo, ou seja, finalizado por decurso de prazo.
Em outras palavras, não há preclusão temporal, em que pese há prescrição para o
pedido.
Contudo, deverá ser observado a prescrição lógica nos contratos de gestão em
andamento.
Acórdão 1.828/2008, o TCU consignou, em um primeiro momento, que “há a
preclusão lógica quando se pretende praticar ato incompatível com outro anteriormente
praticado. In casu, a incompatibilidade residiria no pedido de repactuação de preços
que, em momento anterior, receberam a anuência da contratada. A aceitação dos preços
quando da assinatura da prorrogação contratual envolve uma preclusão lógica de não mais
questioná-los (…)”.
Mais adiante, lê-se em tal acórdão:
“8. A partir da data em que passou a viger as majorações salariais da categoria
profissional que deu ensejo à revisão, a contratada passou deter o direito à repactuação
de preços. Todavia, ao firmar o termo aditivo de prorrogação contratual sem suscitar os
novos valores pactuados no acordo coletivo, ratificando os preços até então acordados, a
contratada deixou de exercer o seu direito à repactuação pretérita, dando azo à ocorrência
de preclusão lógica.”
A partir destes julgados, o TCU passou a adotar o entendimento de que, durante
um contrato administrativo, ocorre preclusão lógica quando o contratado formaliza termo
aditivo sem ter apresentado, anteriormente, pedido de repactuação do equilíbrio econômico-
financeiro.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 127


CONCLUSÃO
O objetivo do presente trabalho é proporcionar uma visão ampla dos impactos legais
da aprovação do Piso Salarial da Enfermagem no âmbito dos contratos administrativos, em
especial, ao contrato de gestão das Organizações Sociais de Saúde.
Todos os institutos do Direito Administrativo possivelmente aplicáveis à ocasião
foram analisados, chegando a conclusão da viabilidade jurídica de utilização da Revisão
como métrica adequada à manutenção do equilíbrio econômico financeiro.

REFERÊNCIAS
LIMA 1996. O contrato de gestão e modelos gerenciais para as organizações hospitalares públicas.
Revista de Administração Pública.

ANDRÉ, Maristela Afonso de. Subsídios para a Reforma do Estado: contratos de gestão. Brasília:
IPEA/ENAP/IBAM, 1994. v.4

MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 9. ed. São Paulo: RT, 1990.

PEREIRA. Kylce Anne de Araujo. A aplicabilidade da Teoria da Imprevisão no âmbito dos contratos
administrativos . 2001.

GARCIA. Flavio Amaral. in Licitações e Contratos Administrativos, 2012.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 11 128


CAPÍTULO 12

A USUCAPIÃO URBANA COLETIVA COMO


FORMA DE EFETIVAR A FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE

Data de aceite: 01/03/2023

Joseph Murta Chalhoub racional.


Graduando em Direito pela Universidade PALAVRAS-CHAVE: Usucapião especial
Estadual de Santa Cruz (UESC) urbana coletiva. Propriedade. Função
http://lattes.cnpq.br/4954048839728580 social. Direito à moradia.

ABSTRACT: This article aims to address


the institute of collective urban special
RESUMO: O presente artigo objetiva
adverse possession as a public policy
abordar o instituto da usucapião especial
instrument whose purpose is to ensure
urbana coletiva como um instrumento de
the realization of the constitutional right to
política pública cuja finalidade é assegurar
decent housing for needy populations. To do
a efetivação do direito constitucional
so, it addresses the concepts, foundations
a uma moradia digna às populações
and requirements of the adverse possession
carentes. Para tanto, aborda os conceitos,
institute; provides a brief explanation about
fundamentos e requisitos do instituto da
each of the types of adverse possession;
usucapião; traz uma breve explicação sobre
and analyzes the special urban collective
cada uma das espécies de usucapião;
adverse possession as a way of realizing
e analisa a usucapião especial urbana
the social function of property. Regarding the
coletiva como forma de efetivar a função
research method employed, the teleological
social da propriedade. Referente ao método
and systematic method of interpretation was
de pesquisa empregado, optou-se pelo
chosen, with the purpose of understanding
uso do método teleológico e sistemático
the norms that refer to this type of adverse
de interpretação, com o propósito de
possession, in accordance with the values
compreender as normas que se referem
and principles set forth in the CRFB/1988,
a esta modalidade de usucapião, em
aiming at prevent, regularize and seek
conformidade com os valores e princípios
solutions to conflicts involving housing and
previstos na CRFB/1988, visando prevenir,
use of property in informal urban centers in
regularizar e buscar soluções para conflitos
a rational manner.
envolvendo a moradia e uso da propriedade
KEYWORDS: Collective urban special
nos núcleos urbanos informais de maneira
adverse possession. Property. Social role.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 129


Right to housing.

1 | INTRODUÇÃO
É certo que a propriedade cumpre funções em favor do proprietário, mas certo é que
ela atua também em prol da sociedade. Muitas modalidades de bens não têm nenhuma
função senão a de satisfazer o dono, como no exemplo dos sapatos e dos objetos de uso
pessoal. Ninguém exigirá que bens dessa natureza cumpram funções para a sociedade. No
entanto, os bens imóveis sempre irão desempenhar funções que extrapolam o proprietário.
Os imóveis rurais têm função econômica, função ambiental, função trabalhista e
função humano-social.
No âmbito urbano o mesmo raciocínio é aplicado. Prédios particulares cumprem
uma função cultural e histórica, pois simbolizam a cultura de determinada época.
As várias funções desempenhadas pela propriedade, e que se projetam para além
dos interesses do titular, reúnem-se sob o rótulo “função social”. Emprega-se o adjetivo
“social” quando o bem traz uma utilidade que não tem natureza pública no sentido estrito,
mas uma natureza especial e em torno do qual estão unidos todos os membros da
sociedade.
Sabe-se que com o crescimento desordenado dos grandes núcleos urbanos,
a população mais empobrecida das grandes cidades passou a se agrupar em grandes
aglomerados, antes chamados de favelas e, atualmente, com maior recorrência de
comunidades. As pessoas que habitam essas comunidades sofrem com a falta de
infraestrutura básica, a exemplo do acesso a água potável, além de viverem em habitações
precárias e não regularizadas. A usucapião especial urbana foi pensada para ajudar a
legalizar a propriedade das moradias nesses locais, assegurando sua função humano
social.
Feitas estas pontuações iniciais, este artigo estabeleceu como problema a ser
investigado: quais as razões que tornam possível afirmar que a usucapião coletiva urbana
serve como instrumento de efetivação da função social da propriedade?
Visando responder ao problema de pesquisa delineado, o presente artigo objetiva
abordar o instituto da usucapião especial urbana coletiva como um instrumento de política
pública cuja finalidade é assegurar a efetivação do direito constitucional a uma moradia
digna às populações carentes.
Sabe-se que a usucapião, por ser um modo originário de aquisição do direito de
propriedade após posse prolongada e inconteste, é um instituto pertencente ao direito
privado que já é previsto no Brasil desde a Consolidação das Leis Civis, que datam de
1858. O Código Civil Brasileiro de 1916 (CC/1916) previa existir somente a usucapião
extraordinária e a usucapião ordinária. Atualmente, o CC/2002 recepcionou novas
modalidades deste instituto, além de ter reduzido os prazos para que o domínio por meio

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 130


da usucapião seja adquirido. Ademais, em consonância com os fundamentos e objetivos
estabelecidos pela CRFB/1988, algumas outras espécies de usucapião especial foram
surgindo no ordenamento jurídico brasileiro, dentre as quais destaca-se a usucapião
especial urbana coletiva.
A importância de abordar o instituto da usucapião especial coletiva urbana encontra-
se em demonstrar que essa modalidade de usucapião tem se mostrado de grande relevância
na proteção a direitos coletivos das populações urbanas, que em razão do grande déficit
habitacional oriundo da crescente urbanização que ocorreu no Brasil a partir do século
XVIII, passaram a ocupar, de forma precária, irregular e desumana, áreas abandonadas,
sem nenhum planejamento e infraestrutura.
Nesses termos, o propósito deste estudo foi tornar possível, com a utilização do
método teleológico e sistemático de interpretação, a compreensão sobre as normas que
se referem a esta modalidade de usucapião, em conformidade com os princípios previstos
na CRFB/1988, visando prevenir, regularizar e buscar soluções para conflitos envolvendo a
moradia e uso da propriedade nos núcleos urbanos infirmais de maneira racional.

2 | ASPECTOS GERAIS DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO


A usucapião constitui-se em uma forma originária de aquisição da propriedade
imóvel, que se opera através da posse contínua da terra durante certo período de tempo,
sem interrupção nem oposição do primitivo dono.
O CC/1916 empregava o vocábulo usucapião, no masculino (Do usucapião), a
exemplo dos arts. 553 e 619, § único, enquanto o atual CC preferiu a forma purista, no
feminino (Da usucapião), a exemplo dos arts. 1.244 e 1.262 (ALVIM, 2022).
Fabrício (2008) prefere o gênero feminino, usado pelo CC/2002 (a usucapião), mas a
preferência de alguns é pelo masculino (o usucapião), porque não soaria bem a usucapião,
por ser mais eufônica a expressão “o usucapião”1, sendo esta a predileção de Pinto (2008),
Marcato (2013) e Santos (2017). Orlando Gomes, acertadamente, dispõe que:
O fundamento da usucapião está assentado no princípio da utilidade social,
na convivência de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio.
Tal instituto repousa na paz social e estabelece firmeza da propriedade,
libertando-a de reivindicações inesperadas, corta pela raiz um grande número
de pleitos, planta a paz e a tranquilidade na vida social: tem a aprovação dos
séculos e o consenso unânime dos povos antigos e modernos (GOMES, 2012,
p. 187-188).

Após breve apontamento do instituto, deve-se questionar o que vem a ser a


usucapião. Para Fachin (1988), a usucapião consumada e reconhecida judicialmente

1 Novo Dicionário Aurélio consigna o substantivo “usucapião” no feminino, enquanto o Michaelis, Moderno Dicionário
da Língua Portuguesa consigna os dois gêneros, masculino + feminino; e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
consigna apenas o masculino. Portanto, se os próprios gramáticos não se entendem, vou preferir usar o vocábulo “usu-
capião” no masculino, embora reconheça que o Código Civil optou pelo feminino.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 131


chancela e legitima a posse que lhe deu causa, gerando a aquisição do direito real sobre o
qual incidiu. Seria a usucapião, assim, um efeito da posse prolongada.
Dessa forma, a usucapião deriva, a princípio, de uma situação de fato, em que a
posse prolongada, exercida por determinado tempo, desde que acompanhada de seus
requisitos legais, pode se transformar em direito de propriedade.
A usucapião, em conformidade com o entendimento majoritário da doutrina brasileira,
é uma aquisição originária do direito de propriedade, pois não deriva de qualquer ato de
vontade previamente existente entre o usucapiente e o proprietário (PEREIRA, 2004).
Ademais, a usucapião faz com que todos os direitos reais que forem constituídos sobre a
coisa por seu antigo proprietário sejam extintos, em decorrência de sua negligência para
com o bem imóvel usucapido.
Para Pereira e Teixeira (2004), a aquisição originária se configura quando o domínio
adquirido começa a existir com o ato de que diretamente resulta, sem relação de causalidade
com o estado jurídico de coisa anterior. Por sua vez Rosenvald e Farias, assim dispuseram:
Com efeito, a posse é o poder de fato sobre a coisa; já a propriedade é o
poder de direito nela incidente. O fato objetivo da posse, unido ao tempo –
como força que opera a transformação do fato em direito – e a constatação
dos demais requisitos legais, confere juridicidade a uma situação de fato,
convertendo-se em propriedade. A usucapião é a ponte que realiza essa
travessia, como forma jurídica de solução de tensões derivadas do confronto
entre a posse e a propriedade, provocando uma mutação objetiva na relação
de ingerência entre o titular e o objeto (FARIAS; ROSENVALD, 2021, p. 212).

Por todo o exposto, constata-se ser a usucapião um modo originário para aquisição
do direito de propriedade, o que ocorre em virtude da inércia do proprietário e da posse
prolongada exercida pelo possuidor, desde que respeitados seus requisitos legais, o
que pode variar de acordo com cada modalidade de usucapião prevista no ordenamento
jurídico, consoante será demonstrado em tópico específico.

2.1 Requisitos
Os requisitos da usucapião se dividem em requisitos pessoais, reais e formais.
Os requisitos pessoais podem ser definidos como exigências relacionadas à pessoa
do usucapiente que almeja adquirir a coisa através da usucapião. Também, envolve o
proprietário, que, em razão da aquisição da propriedade pelo possuidor (usucapiente),
perde a sua (FARIAS; ROSENVALD, 2021).
Também, é necessário que o adquirente da propriedade, pela usucapião, seja
considerado capaz e seja detentor da qualidade para adquiri-la de tal maneira (MARQUESI,
2019). Neste ponto, importa ressaltar que os relativamente e absolutamente incapazes
podem sofrer os efeitos da usucapião, tendo em vista que são seus assistentes e
representantes que devem impedir que a usucapião ocorra.
Os requisitos reais dizem respeito às coisas e direitos suscetíveis de serem
usucapidos, sabendo-se que há direitos e coisas sobre as quais a prescrição aquisitiva

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 132


não pode incidir (FARIAS; ROSENVALD, 2021). Portanto, há determinados bens que são
eivados pela imprescritibilidade, como é o caso dos bens públicos, ou, melhor dizendo,
aqueles que pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno.
Acrescente-se que a prescrição aquisitiva incide somente sobre os direitos reais que
recaem sobre coisas que a prescrição pode alcançar, sendo certo que apenas os direitos
reais que recaiam sobre coisas usucapíveis é que poderão ser obtidos fazendo uso deste
modo de aquisição originário (GOMES, 2012).
Os últimos requisitos são os requisitos formais. Para que ocorra a aquisição do
direito de propriedade por meio da usucapião, devem ser preenchidos requisitos gerais e
específicos para cada modalidade prevista no ordenamento jurídico brasileiro.
O elemento precípuo que gera a aquisição do direito de propriedade é a posse
prolongada por um determinado lapso temporal previsto pela lei. Entretanto, para efeitos
da usucapião, a posse deve ser exercida com animus domini, ou, melhor dizendo, com
intenção de ser dono, com o desejo de exercer o direito de propriedade.
Dessa forma, não obstante o CC/2002 adote a teoria objetiva de Ihering para
conceituar o fenômeno possessório, para efeitos da usucapião a demonstração do
animus domini, requisito indicado pela teoria subjetiva da posse de Savigny, passa a
ser indispensável (RADBRUCH, 1997). É com a presença do animus domini, ou seja, da
intenção de se ter a coisa como sua, que a posse se torna apta desde que somada a
outros requisitos, a gerar a aquisição do direito de propriedade com o decurso do tempo
(CORDEIRO, 2011).
Na visão de Araújo, para averiguar o animus domini no caso concreto, o que
determinará a que título o sujeito detém a posse será a causa possessionis, e não a vontade
(ARAÚJO, 2005). Ademais, a posse, para fins de usucapião, precisa ser mansa, pacífica,
ininterrupta, e livre de vícios objetivos que a macule, ou seja, a posse deverá ser justa, nos
ditames do artigo 1.2002 do CC/2002.
Para Lenine Nequete (1981, p. 119), “a posse para a usucapião deve ser a título de
propriedade, contínua, ininterrupta, pública, pacífica, inequívoca e atual”.
A posse contínua é a posse sem interrupção, o que faz com que a mesma seja
assídua, tendo o possuidor contato frequente com o bem, ainda que esse contato ocorra
através de terceiros. A posse será descontínua, ao contrário, quando o possuidor abandonar
o poder físico sobre o bem por um prazo representativo, sem que nenhuma pessoa ocupe
a coisa.
O mesmo não se pode afirmar do possuidor que desocupar um imóvel por períodos
recorrentes, porém breves, a ponto de não macular o seu vínculo com a coisa. Certo é que
a questão sobre o quantum aproximado desse lapso de ausência é mais probatória e fática
do que jurídica (FARIAS; ROSENVALD, 2021).
No que tange aos requisitos da mansidão e pacificidade, referem-se à não ocorrência
2 Art. 1200 CC/2002 – “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária. ”

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 133


de violência, já que a violência, ao menos enquanto subsistir, é um vício objetivo que
impede a aquisição do domínio (ANDRADE, 1988).
Exige-se, ainda, que a posse não seja clandestina, nem precária, vícios que também
obstam a aquisição do direito de propriedade, posto que tornam a posse injusta.
Quanto à clandestinidade, tal vício impede, de forma relativa, a aquisição do direito
de propriedade, já que deve a posse ser pública. O que caracteriza a clandestinidade
segundo Araújo (2005, p. 141) é “a dissimulação realizada pelo possuidor que procura
esconder sua atitude”. Enquanto clandestina, a posse se encontra maculada.
Já a posse precária é aquela que deriva do descumprimento de uma relação jurídica
pré-existente entre o possuidor e o proprietário, o que impede a aquisição do domínio
(FARIAS; ROSENVALD, 2021).
Verifica-se, portanto, que a posse injusta, ou seja, a posse violenta, clandestina
ou precária, enquanto mantiver tais características, não possui o condão de gerar a
aquisição do domínio. Tais vícios constituem caracteres objetivamente verificáveis, pois no
entendimento de Cimardi (2007, p. 44) “dependem apenas da análise dos fatos ensejadores
da aquisição da posse, sem se levar em conta a intenção do sujeito”. A ausência destes
vícios implica, assim, a caracterização da posse como justa, isto é, adquirida de forma
mansa, pacífica e pública.
Cumpre esclarecer que a posse de boa-fé não constitui um requisito genérico
aplicável a todas as espécies de usucapião. Segundo o art. 1.201 do CC/2002, “é de boa-fé
a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”
(BRASIL, 2002, s.p.). Em sentido oposto, o possuidor que tem plena consciência de que
sua posse é ilegítima é considerado um possuidor de má-fé (CIMARDI, 2007).
A comprovação da posse de boa-fé faz-se imprescindível apenas na modalidade
de usucapião ordinária. Já nas demais espécies, o exame do elemento intencional do
possuidor, no que diz respeito a conhecer ou não o obstáculo que torna ilegítima a sua
posse, será irrelevante para a aquisição do domínio.
A doutrina afasta, ainda, a possibilidade de usucapir pelos servidores ou fâmulos
da posse, ou seja, aqueles que, estando em relação de dependência para com o dono da
coisa, conservam a posse em nome deste, não por poder próprio, a título de possuidores,
mas como simples detentores3. Falta aos detentores, assim, o requisito da posse com
animus domini, também denominada posse ad usucapionem, elemento indispensável para
aquisição do domínio (CORDEIRO, 2011).
Crescente, pois, é o entendimento doutrinário no sentido de que, expirado o prazo
que lhes foram outorgados para atuar como detentores, estes podem adquirir a propriedade,
após a inércia dos proprietários e preenchidos os requisitos legais (FARIAS; ROSENVALD,
2021).

3 Segundo o artigo 1.198 do Código Civil de 2002, “considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de de-
pendência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 134


Por fim, é requisito genérico aplicável a todas as modalidades de usucapião a coisa
hábil a ser usucapida. Sobre tal requisito, a CRFB/1988 veda, expressamente, a usucapião
sobre imóveis públicos4. Assim sendo, para que exista a possibilidade de aquisição por
usucapião, é necessário que a coisa seja de propriedade privada. Além disso, necessário
ainda que a coisa esteja dentro do comércio e que não haja qualquer impedimento que
vede a sua alienação ou aquisição.
Expostos os requisitos regais aplicáveis a todas as espécies de usucapião, faz-se
então necessária uma abordagem mais detida acerca das modalidades do instituto, que se
encontram em vigor no ordenamento jurídico brasileiro.

3 | ESPÉCIES DE USUCAPIÃO
São espécies de usucapião: a usucapião extraordinária; a ordinária; a especial rural;
a indígena; e a especial urbana familiar.

3.1 Usucapião extraordinária


A usucapião extraordinária é aquela a que falta justo título ou boa-fé. É a usucapião
do esbulhador, do sem-teto, do sem-terra, ou então daquele que, embora em boa-fé, não
dispõe de título para demonstrar a aquisição animus domini da posse (MARQUESI, 2019).
Essa forma de usucapião aplica-se a qualquer bem imóvel, urbano ou rural, não
importando suas dimensões físicas. O prazo para a aquisição por essa espécie é de 15
anos, tal como se constata da leitura daquele dispositivo. Contudo, o parágrafo único o
reduz para um decênio, caso o usucapiente esteja residindo no imóvel ou nele esteja
exercendo alguma atividade produtiva. Prestigia-se, também aqui, a posse/trabalho.
Os prazos são maiores que os estabelecidos para a usucapião ordinária. Tal como
fizera na codificação anterior, o legislador procurou compensar com o alargamento do
prazo a ausência de título ou de boa-fé. Nessa forma de usucapião, não existe requisito
específico algum, motivo pelo qual se faz remissão aos requisitos comuns. Ou seja, na
modalidade extraordinária só se levam em conta a posse, o tempo e a coisa. Não se cogita
da consciência do possuidor (se em boa ou imbuído de má-fé) ou da causa do poder sobre
a coisa (título)5.
A usucapião extraordinária também se aplica aos direitos reais de gozo na coisa

4 Tal vedação encontra-se expressa nos artigos 183, § 3º e 191, parágrafo único da CRFB/1988, que dispõem, textual-
mente: “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.
5 Para que seja reconhecida a usucapião extraordinária, é necessária a existência da posse, que perdure, ininterrup-
tamente, por determinado período de tempo, de forma mansa e pacífica, com a intenção do possuidor de tê-la como
sua, consoante se extrai do art. 1238 do CC brasileiro de 2002. Cabe ao autor, portanto, produzir a prova de sua posse
prolongada, ininterrupta, mansa e pacífica, como também do animus domini, nos termos do art. 333, I, do CPC, sob
pena de não se lhe declarar o domínio da terra a que pretende. A prova testemunhal não comprovou a posse alegada.
Ausência prova exercício da posse do terreno. Restando ausente alguns desses requisitos, rejeita-se a pretensão por-
tal” (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS – 19ª. Câm. Cív. Ap. 70051791135. Rel.
Des. Mylene Maria Michel. Julgado em: 21.05.2013).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 135


alheia, com os mesmos prazos, exceto nas servidões, por força da regra timbrada no
parágrafo do art. 1.379, que estabelece lapso vintenário.

3.2 Usucapião ordinária


Essa modalidade é assim chamada por ser a usucapião “padrão” e exige do possuidor
a boa-fé, além de um justo título, tal como a praescritio longi temporis dos romanos. É a
usucapião das pessoas que pagam pela coisa, entram-lhe na posse, usam-na crendo-
se donas, mas que não conseguem obter a transferência do domínio. Ao contrário da
usucapião extraordinária, ela tem por base um negócio jurídico, é dizer, um contrato, como
o compromisso de compra e venda e a compra e venda por forma particular (RIBEIRO,
2012).
Consoante dispõe o art. 1.2426 do CC brasileiro em vigor, a modalidade de usucapião
ordinária exige que a posse seja exercida, em regra, por um lapso temporal de dez anos,
vinculada à existência de um justo título e boa-fé.
Dessa forma, para adquirir a propriedade por meio dessa modalidade, o possuidor
deve, além de preencher os requisitos gerais da usucapião – posse ad usucapionem,
mansa, pacífica, inconteste e pública –, completar os demais requisitos legais exigidos
para essa espécie, quais sejam, o lapso temporal de dez anos, o justo título e a boa-fé.
Essa modalidade é tida como ordinária, por serem seus elementos os requisitos
ordinariamente exigidos daquele que adquire a propriedade imobiliária pelas vias de
compra e venda ou doação, já que deverá fazer prova que possui o justo título e boa-fé
para galgar o domínio.
Como se pode notar, o cerne da usucapião ordinária é a presença de justo título
e boa-fé, pressupostos estes que a permeiam e a diferenciam de outras modalidades de
usucapião.
Nessa modalidade de usucapião, a coisa a ser usucapida pode estar localizada
em área urbana ou rural, sem limitação de metragem ou hectares, podendo o usucapiente
valer-se dessa espécie por mais de uma vez, sendo irrelevante ser o possuidor proprietário
de outros imóveis.
Assim como ocorreu com a usucapião extraordinária, foi instituída no CC brasileiro
atual uma subespécie da usucapião ordinária, denominada usucapião tabular, com prazo
reduzido para 5 anos e aplicável tão somente nos casos em que o possuidor de boa-fé
teve seu título de propriedade cancelado junto ao Cartório de Registro de Imóveis, desde
que mantenha no imóvel sua moradia ou tenha realizado nesses investimentos de caráter
econômico (FARIAS; ROSENVALD, 2021).

6 Art. 1.242 do CC/2002. “Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com
justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o
imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada poste-
riormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse
social e econômico”.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 136


Percebe-se que essa subespécie de usucapião ordinária veio, mais uma vez,
garantir a função econômico-social da propriedade, além da proteção ao direito à moradia
em benefício daquele possuidor imbuído de boa-fé, que fez de determinado imóvel sua
moradia ou realizou investimentos produtivos no bem.

3.3 Usucapião indígena


Na modalidade de usucapião especial indígena, o beneficiado é o indígena ou
silvícola, encontrando-se o fundamento na legislação que dispõe sobre o chamado Estatuto
do Índio – Lei nº 6.001/1973.
O art. 3º7 da Lei nº 6.001/1973 define índio ou silvícola como “todo indivíduo de
origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente
a um grupo étnico cujas características o distinguem da sociedade nacional” (BRASIL,
1973, s.p.). Já o art. 33 desse mesmo Estatuto prescreve os requisitos necessários para a
aquisição do domínio pelo indígena8.
Conforme descrito pelo Estatuto, a área usucapienda deve ser rural e particular,
posto que as terras da União e dos demais entes da federação não podem ser usucapidas,
seja por tal modalidade ou por qualquer outra, nos termos dos arts. 183, § 3º e 191, § único
da CRFB/1988.
Além de tal requisito, a posse do indígena deve ser exercida pelo tempo mínimo
de dez anos consecutivos, em área inferior a 50 hectares, nos ditames da legislação
supramencionada.
Farias e Rosenvald (2021) criticam, com maestria, a norma trazida pelo Estatuto do
Índio de 1973, face à CRFB/1988, que possibilitou a usucapião de área rural com limite de
até 50 hectares por um lapso temporal menor, de 5 anos.
Vê-se que, à época em que foi concebida a usucapião indígena dispunha de
operabilidade. Porém, de 1973 para cá, a criação de novas modalidades de usucapião
e a repaginação do requisito temporal do modelo tradicional culminaram por subtrair a
efetividade de uma norma cuja prioridade era propiciar ao vulnerável um tratamento
diferenciado em função de sua posição de exclusão social.
Fato é que, não se enquadrando a situação do indígena na usucapião constitucional
rural, poderia o mesmo usucapir pela modalidade extraordinária prevista no parágrafo
único do art. 1.238 do CC/2002, cujo lapso temporal é de dez anos, mas não há o requisito
da metragem máxima, nem tampouco a exigência de não ser proprietário de outro imóvel.
Em relação às pessoas jurídicas de Direito Público ou Privado, acentuam Farias e
Rosenvald (2021) que, quanto às espécies extraordinária e ordinária, há plena legitimidade
7 BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l6001.htm. Acesso em: 24 de janeiro 2023.
8 Art. 33 da Lei nº 6.001/1973. “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho
de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. Parágrafo único. O disposto neste artigo não
se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem
às terras de propriedade coletiva de grupo tribal” (BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o
Estatuto do Índio. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/leis/l6001.htm. Acesso em: 24 de janeiro 2023.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 137


conferida às mesmas. Contudo não há a possibilidade de conferir a mesma legitimidade
a essas pessoas jurídicas nas espécies de usucapião especial urbana e rural, já que o
sentido de pessoalidade da posse afasta tal viabilidade; ademais, pessoa jurídica não mora
e, sim, possui sede.
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento ressalta, acerca da usucapião especial:
Não basta não ser proprietário no momento em que houver o pedido de
usucapião. A condição de não ser proprietário deve se protrair durante todo
tempo de posse exigido, ou seja, durante os cinco anos, porque se trata de
requisito para admitir o direito à usucapião e não para legitimar a ação judicial.
Assim, se no transcurso do prazo prescricional, o interessado passou a ser
proprietário mesmo que, posteriormente, tenha deixado de sê-lo, a condição
não se satisfaz (NASCIMENTO, 1986, p. 213-214).

A intenção do legislador brasileiro, ao inserir na CRFB/1988 essa espécie de


usucapião, foi beneficiar a população de baixa renda, com nítida proteção ao direito à
moradia dessa população, visto que a delimitação da área em até 250 m2 demonstra a
preocupação em garantir esse direito fundamental à maior parte possível de cidadãos.
Necessário ressaltar que o Estatuto da Cidade, no art. 9º, não apenas repetiu o
preceito do art. 183 da CRFB/1988, ao contrário, há acréscimos e pormenores contidos no
Estatuto da Cidade acerca da usucapião especial urbana individual.
Uma das inovações trazidas pelo Estatuto da Cidade, em seu art. 12, consiste
na possibilidade de os possuidores pleitearem usucapião em litisconsórcio originário ou
superveniente (RIBEIRO, 2012).
Ressalta-se, ainda, como peculiaridade trazida pelo Estatuto da Cidade, o acréscimo
da expressão “edificação urbana”, para efeitos dessa modalidade do instituto, o que direciona
para uma adequada interpretação da norma constitucional, levando-se em consideração a
teleologia do art. 183 da CRFB/1988 vigente, que, nas palavras de Medauar e Almeida
(2004, p. 136), “foi a de proteger aqueles que detenham a posse de porções moderadas de
áreas urbanas, e não ser a fonte de criação de novo magnatas citadinos.” Assim, o limite
assinalado não pode ultrapassar os 250 m2 para a área do terreno e da edificação.
O Estatuto da Cidade traz também, expressamente, a possibilidade de continuação
da posse nessa espécie de usucapião especial, já que dispõe, no § 3º do seu art. 9º, que “o
herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida
no imóvel por ocasião da abertura da sucessão” (BRASIL, 2001, s.p.). Tal previsão legal
encontra-se em plena conformidade com a finalidade social do instituto, uma vez que a
posse do imóvel é destinada à moradia do possuidor e de sua família. Assim, necessário se
faz que o herdeiro já esteja a residir no imóvel ao momento da abertura da sucessão, pois
o objeto de proteção da norma jurídica em questão é a moradia (CARVALHO FILHO, 2013).
Por fim, o Estatuto da Cidade dispõe, na literalidade de seu art. 14, que o rito
processual a ser observado na ação judicial de usucapião especial urbana será o sumário.
No entanto tal dispositivo deverá ser interpretado à luz do atual Código de Processo Civil

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 138


de 2015 (CPC/2015).
No CPC atualmente vigente não há mais que se falar em procedimento sumário, uma
vez que os únicos procedimentos previstos são o comum e os especiais. O procedimento
da usucapião, qualquer que seja a sua espécie, será sempre o comum, pois a ação de
usucapião não mais vigora dentre os procedimentos especiais, como ocorria no CPC de
1973.
A usucapião especial urbana coletiva consiste em uma das inovações trazidas pelo
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), que, ao regulamentar o capítulo da Política Urbana
disposto na CRFB/1988, veio traçar diretrizes para a efetivação do direito à moradia da
população carente e de baixa renda, a qual, principalmente em função do êxodo rural
e da crescente industrialização e desenvolvimento urbano, deslocou-se para as grandes
cidades e acabou por se concentrar nas periferias dos centros urbanos. Fato que ocorreu
de modo desordenado e à margem das leis específicas, tais ocupações se mostram, na
maioria das vezes, sem condições mínimas de segurança ou conforto para os moradores.
Com o advento da Lei nº 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária
urbana e rural, ocorreu alteração nos requisitos para a aquisição, por parte da coletividade,
da propriedade imóvel por meio dessa modalidade de usucapião.
O art. 10 do Estatuto da Cidade, após as alterações trazidas por essa legislação,
passou a vigorar da seguinte forma:
Artigo 10. Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de
cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior
a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis
de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam
proprietários de outro imóvel urbano ou rural (BRASIL, 2001, s.p.).

Assim, verifica-se que os novos requisitos para a usucapião coletiva, após a vigência
da Lei 13.465/2017, são os seguintes: existência de um núcleo urbano informal; posse
de mais de 5 anos; fracionamento total da área de modo que atribua a cada possuidor
até 250 m2; finalidade de moradia e ausência de qualquer outra propriedade por parte
dos possuidores (PEDROSA, 2018). A alteração legislativa, como se observa, alcançou
apenas o caput do art. 10 do Estatuto da Cidade, mantendo-se inalterados os §§ 1º a 5º
do dispositivo.
A primeira alteração significativa diz respeito à expressão “núcleos urbanos informais”,
em substituição à antiga expressão “áreas urbanas”. A Lei nº 13.465/2017, na tentativa de
desburocratizar, simplificar, agilizar e destravar os procedimentos da regularização fundiária
urbana, bem como aumentar as possibilidades de acesso a terrenos urbanizados, resulta
na ampliação do alcance da regularização de terrenos ocupados, quando se considera
todos os núcleos informais com usos e características urbanas, mesmo quando situados
em zonas rurais.
São considerados “núcleos urbanos informais” aqueles conglomerados habitacionais

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 139


formados de modo clandestino e irregular ou aqueles nos quais, em cumprimento à
legislação vigente à época em que se deu a implantação ou regularização, não foi possível
concretizar a titulação de seus ocupantes, seja em forma de parcelamento do solo, de
conjuntos habitacionais ou condomínios horizontais, verticais ou mistos. Observa-se que
houve ampliação do anterior conceito de “áreas urbanas” ocorrendo assim sua substituição,
por meio da expressão “núcleos urbanos informais”, visando alcançar, inclusive, aqueles
núcleos que têm características urbanas, mesmo que localizados em área rural, adotando-se
expressamente o critério da destinação do bem, e não apenas o critério da sua localização.
A nova redação do art. 10 do Estatuto da Cidade excluiu, ainda, a exigência de que
os possuidores sejam, comprovadamente, “de baixa renda”. Tal supressão foi acertada, já
que se trata de conceito vago, indeterminado e que em muito dificultava a concessão da
usucapião à coletividade. Com isso, entende-se não ser mais necessária a comprovação,
por parte de cada possuidor, a sua situação de carência financeira. Nesse sentido, entendem
Farias e Rosenvald (2021) que com a vigência da nova lei torna-se possível a contagem
de prazo para a regularização por usucapião coletiva de núcleos informais possuídos por
grupos de média e alta renda, desde que incluídos na denominada Reurb-E (Regularização
Fundiária Urbana de Interesse Específico), prevista no art. 13, inc. II da Lei 13.465/2017.
Farias e Rosenvald explicam que a Regularização Fundiária Urbana (Reurb),
[...] é um instrumento jurídico de política urbana, um conjunto de normas
gerais e procedimentos que abrangem medidas jurídicas, ambientais,
urbanísticas e sociais com vistas a tirar da informalidade determinados
núcleos urbanos e seus ocupantes. Pode ser de interesse social (Reurb-S),
aplicável exclusivamente aos núcleos urbanos ocupados por população de
baixa renda, assim como pode ser de interesse específico (Reurb-E), aplicável
aos núcleos urbanos ocupados por população com outra qualificação, em
conformidade com o disposto no artigo 13, incs. I e II da Lei em questão
(FARIAS; ROSENVALD, 2021, p. 452).

Outra significativa modificação na redação da lei da usucapião especial urbana


coletiva, hoje aplicada aos núcleos urbanos informais, como foi mencionado, é no que diz
respeito à exigência de que a área total do assentamento a ser usucapido coletivamente,
dividida pelo número dos possuidores ocupantes seja inferior a 250 m2 por possuidor
(FARIAS; ROSENVALD, 2021).
A usucapião especial urbana coletiva, especialmente após essas significativas
mudanças trazidas pela Lei 13.465/2017, torna-se cada vez mais uma forma de garantir,
efetivamente, a função social da posse e o direito à moradia a uma coletividade de pessoas
que, nas áreas urbanas, venham a preencher os requisitos expressos no dispositivo em
questão, atingindo espaços de ocupações múltiplas, nos quais muitas vezes sequer é
possível identificar fração do terreno ocupado por cada possuidor. Dessa forma, Ribeiro
(2012, p. 999) pontua que o legislador “viu o núcleo habitacional desorganizado como uma
unidade, na impossibilidade de destacar parcelas individuais”.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 140


Nos dizeres de Ribeiro (2012, p. 995), “a ação de usucapião coletiva exige que os
interesses individuais sejam homogêneos, isto é, que procedam das mesmas circunstâncias
de fato, portanto, que tenham origem comum”
Nessa modalidade coletiva de usucapião especial, os requisitos delimitadores são
a posse mansa, pacífica, ininterrupta, por um período superior a 5 anos, por moradores
que residam em núcleos urbanos informais, sendo que nenhum dos possuidores pode ser
proprietário de outro imóvel, seja urbano ou rural. Além disso, conforme já ressaltado, a
área usucapienda total dividida pelo número de seus possuidores deverá ser inferior a 250
m2 por possuidor, o que atende à exigência constitucional já anteriormente estabelecida no
art. 183 da CRFB/1988.
Há, ainda, nessa modalidade, a expressa possibilidade de soma das posses, com
o que se denota que não se trata de várias demandas individuais propostas sob o mesmo
imóvel, mas sim de verdadeiro processo coletivo, com vistas a assegurar o interesse da
comunidade em ação específica (PENTEADO, 2008).
O prazo de 5 anos de posse qualificada exigido como requisito não deverá ser
contado de forma individualizada para cada um dos possuidores, possuidores, mas, sim,
deverá ser observada a área como um todo para fins de contagem do início da ocupação.
Sendo a demanda coletiva, trata-se a hipótese de condomínio necessário entre os
usucapientes, em que os usucapientes terão iguais frações indivisíveis, exceto nos casos
em que os condôminos venham a deliberar pela divisão em frações ideais diferenciadas.
A criação da usucapião especial urbana coletiva significa um grande avanço
legislativo, em termos de instrumento de regularização fundiária, haja vista as extensas
áreas ocupadas ilegalmente nas diversas cidades brasileiras.

3.4 A usucapião especial urbana familiar


A Medida Provisória nº 514 de 2010, que dispõe sobre o Programa Federal Minha
Casa Minha Vida e que trata da regularização fundiária de assentamentos localizados
em áreas urbanas, foi convertida na Lei nº 12.424/2011, que, por sua vez, acrescentou
o art. 1.240-A ao CC/2002 quanto na legislação infraconstitucional, o prazo de 5 anos,
até então, consistia no menor prazo para a aquisição do domínio de bem imóvel por
meio da usucapião; com o advento da Lei nº 12.424/2011, esse prazo foi reduzido para a
modalidade em questão. Entretanto trata-se de modalidade especial, já que não inclui um
terceiro proprietário e, sim, ocorre em caso de composse e entre os compossuidores, na
medida em que um deles passa a deter a propriedade individual sobre o bem usucapido,
em face do outro.
Para a aplicação dessa espécie de usucapião, o regime de bens dos cônjuges
poderá ser o da comunhão total ou parcial, ou o regime de participação final de aquestos.
Se o regime for de separação convencional de bens, o fato de não haver bens comuns não
autoriza a aplicação dessa modalidade de usucapião (FARIAS; ROSENVALD, 2021).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 141


Percebe-se, pelo texto legal supracitado, que o legislador brasileiro desejou, de
alguma forma, punir o cônjuge ou companheiro por ter abandonado o lar. Dessa forma,
tal instituto também vem reacender as mais calorosas discussões, no âmbito do Direito de
Família, acerca da culpa pelo fim do casamento ou da união. É sabido que, atualmente,
impera nas relações familiares o vínculo da afetividade e, por conseguinte, não há mais
que se falar em culpa pelo rompimento da relação conjugal. Assim, nas palavras de Ozéias
J. Santos,
Deve-se ter cuidado em não confundir o abandono de lar do Direito de Família,
que não mais existe, com o abandono de lar previsto para a usucapião
conjugal, devendo ser visto sob a ótica da função social da posse e não
quanto à moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal (SANTOS,
2017, p. 205).

O legislador brasileiro, na tentativa de proteger o cônjuge ou companheiro vítima do


abandono de lar pelo seu consorte, utilizou-se de um mecanismo retrógrado, para não dizer
obsoleto, ao punir o cidadão com a perda de um bem por não querer manter a convivência
conjugal. Por outro lado, ao instituir tal possibilidade, o legislador também obrigou àquele
cônjuge que pretende efetivamente deixar seu companheiro, que somente o faça após
solucionar as questões patrimoniais. Sem dúvida, é esse o tema mais espinhoso a ser
enfrentado nas dissoluções das diversas espécies de sociedades conjugais existentes na
atualidade (SILVA, 2018).
Tal crítica também é efetuada por Farias e Rosenvald, que dispõem, em obra
atualizada:
Via de consequência, ao inserir dentre os requisitos da usucapião o abandono
voluntário e injustificado do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros,
a Lei n. 12.424/11 resgata a discussão da infração aos deveres do casamento
ou união estável. Vale dizer, em detrimento da liberdade e da constatação
do fim da afetividade, avalia-se a culpa e a causa da separação, temáticas
que haviam sido abolidas pela referida EC, cuja eficácia é imediata e direta,
não reclamando a edição de qualquer norma infraconstitucional (FARIAS;
ROSENVALD, 2021, p. 465).

Entende-se que o requisito do “abandono de lar” deve ser interpretado com muita
cautela, uma vez que não é qualquer abandono que levará à fluência do prazo para
aquisição do bem imóvel, especialmente quando esse ato decorre de um consenso entre
os cônjuges ou companheiros, ou mesmo quando a continuidade da vida em comum se
torna insuportável.
Ademais, com o divórcio ou dissolução de união estável cessa a posse mansa e
pacífica apta a gerar o domínio do bem, já que, nesses casos, haverá a resolução das
questões familiares e patrimoniais, desde que ajuizada a ação dentro do prazo de dois anos
após o fim da relação conjugal (SILVA, 2-18).
Ressalta-se que o art. 1240-A pode ser também aplicado às uniões homoafetivas. Tal
entendimento foi consagrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após o julgamento da

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 142


Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental - ADPF 132/RJ, publicada em 14 de outubro de 2011, que interpretou o art.
1723 do CC conforme a CRFB/1988 ainda vigente, para estender à união homoafetiva os
mesmos direitos conferidos à união estável.
Outro aspecto a ser ponderado é que tal espécie de usucapião não se aplica às
propriedades localizadas em área rural. O art. 1240-A do CC vigente faz menção apenas
ao imóvel de até 250 m2, localizado em área urbana. Denota-se aqui que não há qualquer
justificativa para o tratamento diferenciado, pois também deveria ser conferida a mesma
proteção ao cônjuge ou companheiro em situação de abandono e que reside em área rural.
Fato é que a criação dessa nova espécie de usucapião, de natureza patrimonialista
e de controle moral, acaba por deixar mais dúvidas que soluções, o que pode motivar, por
vezes, conflitos ainda maiores entre os cônjuges ou companheiros.

3.5 Usucapião especial rural


A usucapião especial rural, também denominada usucapião pro labore, foi instituída
pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição da República de 1934.
Nas Constituições da República seguintes, essa modalidade de usucapião foi mantida, à
exceção da Constituição da República de 1967 e da EC nº 01/1969, que silenciaram a
respeito.
Não obstante a omissão nas Constituições de 1967 e de 1969, o instituto continuou
existindo com apoio em leis especiais. Primeiramente, foi o mesmo inserido no art. 98 da
Lei nº 4.504/64, o Estatuto da Terra; posteriormente, a usucapião pro labore foi disciplinada
pela Lei nº 6.969/81, ainda em vigor, com as alterações trazidas pela CRFB/1988.
A Lei nº 6.969/81, em seu art. 1º, possibilitou a aquisição do domínio ao possuidor
de boa-fé que ocupar área rural não superior a 25 hectares, durante 5 anos, desde que
tenha nela sua moradia e a torne produtiva com seu trabalho, somado ao requisito de não
ser possuidor proprietário de imóvel rural ou urbano. Facultava o diploma legislativo em
questão, ainda, a usucapião de terras devolutas, consoante disposto no art. 2º (NADER,
1988).
A Constituição da República em vigor, por sua vez, reinstituiu a usucapião pró-labore
no art. 191, alterando, como consequência, dispositivos da Lei nº 6.969/1981. Consoante o
art. 191 da CRFB/1988, o limite da área rural ocupada pelo usucapiente foi alargado para
cinquenta hectares. Ademais, foi vedada a usucapião pro labore sobre terras devolutas,
pertencentes à União (SALLES, 2010).
A CRFB/1988, ao reinserir a usucapião pró-labore em seu texto, mais uma vez
primou pela função social da propriedade, na busca por mais igualdade social, acesso à
moradia e incentivo à produtividade nas vastas zonas rurais ainda desocupadas do País
(PEDROSA; BORGES, 2017). Nessa perspectiva, o CC/2002 também tratou da usucapião
pro labore em seu art. 1.239, cujo texto é praticamente idêntico ao dispositivo constitucional

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 143


que reinseriu essa modalidade.
Ao analisar os pressupostos delimitadores da usucapião especial rural ou pro
labore, percebe-se que são necessários: a posse mansa e pacífica; não ser o possuidor
proprietário de outro imóvel, seja ele rural ou urbano; estar no exercício da posse ao menos
por 5 anos; ter a posse com animus domini, ou seja, com o intuito de ser dono; área em
terra rural não superior a cinquenta hectares, não podendo a terra rural se tratar de imóvel
público e utilização da área em questão para trabalho e moradia do possuidor ou de sua
família (ARAÚJO, 2005).
A usucapião especial rural, como se verifica, não se contenta com a simples
posse. Seu objetivo é a fixação do homem no campo, exigindo que o imóvel ocupado seja
produtivo, devendo o usucapiente nesse morar e trabalhar. Esta modalidade de usucapião
consagra o princípio ruralista de que deve ser proprietário da terra rural quem, com seu
suor, a tiver feito dar frutos, tendo nela a moradia onde vive junto à sua família (FARIAS;
ROSENVALD, 2021).
Ressalta-se que, para aferir a questão de ser ou não o imóvel uma propriedade
rural, há que se verificar não a atividade exercida pelo possuidor, mas a localização do
imóvel, que deve ser considerado em área rural. Assim, se um imóvel está construído em
perímetro urbano e o possuidor exerce uma atividade de pecuária, não poderá ingressar
com a usucapião pela modalidade rural (SALLES, 2006).
Por fim, os referidos requisitos demonstram o empecilho à pessoa jurídica de adquirir
a propriedade via usucapião especial rural, posto que não há possibilidade de que a pessoa
jurídica se utilize do bem como trabalho de sua família, nem tampouco como sua moradia.

3.6 Usucapião especial urbana


A usucapião especial urbana individual é também conhecida como usucapião pro-
moradia, e encontra-se disposta na CRFB/1988 em seu art. 183, no CC brasileiro de 2002
em seu art. 1.240, bem como no art. 9º da Lei nº 10.251/2001 – Estatuto da Cidade. Sobre
esta modalidade de usucapião, objeto deste artigo, será dedicada a próxima seção.
Referente à usucapião urbana individual, o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/2001
–, no dispositivo que trata da usucapião especial urbana, trouxe a expressão “área ou
edificação urbana de até 250 metros quadrados” (BRASIL, 2001, s.p.), colocando fim à
grande divergência até então existente, em saber se área urbana construída poderia ser
usucapida.
Com a entrada em vigor da Lei nº 10.257/01, tal desconforto foi solucionado,
esclarecendo-se que áreas urbanas construídas ou terrenos com um máximo de 250 m2
podem ser usucapidos (CORDEIRO, 2011).
A usucapião especial urbana individual, regulamentada pelo Estatuto da Cidade,
encontra-se, sem dúvida, dentre os instrumentos de efetivação da política constitucional de
desenvolvimento urbano, especialmente direcionada a favorecer a parcela da população

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 144


sem moradia e com baixa renda (RIBEIRO, 2012).
São requisitos da usucapião especial urbana: a posse, desde que com animus
domini, mansa e pacífica, por quem não detenha a propriedade de outro imóvel urbano ou
rural, nem que não tenha se beneficiado anteriormente do instituto, lapso temporal de no
mínimo 5 anos sem interrupção, moradia efetiva do usucapiente, área ou edificação urbana
não superior a 250 m2, não podendo recair sobre imóvel público (FARIAS; ROSENVALD,
2021).
Dessa maneira, o possuidor deve exercer a posse de modo direto e pessoal,
não podendo haver a interferência de prepostos, visto que a pessoalidade da posse é
fundamental.
Cumpre salientar que a pessoa natural legitimada para a usucapião especial urbana
individual será tanto o brasileiro como o estrangeiro residente no Brasil, pois não há
nenhuma distinção imposta pela lei quanto à essa possibilidade.
Em 2001 a usucapião especial urbana passou a ter como sujeitos de direito as
coletividades surgindo a denominada “usucapião especial urbana coletiva” que visa,
para além de atender ao direito de moradia no âmbito do planejamento municipal, a ser
instrumento de implemento de políticas públicas de urbanização das cidades, reorganização
e recuperação das áreas ou núcleos habitacionais degradados e irregularmente ocupados
por coletividades de baixa renda.
Sobre esta modalidade de usucapião é que será dedicada a próxima seção.

4 | A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA COLETIVA


A usucapião especial urbana coletiva foi uma das inovações instituídas pelo Estatuto
da Cidade – Lei nº 10.257/01 –, que veio regular de modo ampliativo os arts. 182 e 183
da CRFB/1988 estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana e gerando ao grupo
de possuidores de baixa renda que habita irregularmente imóveis em áreas urbanas pelo
prazo mínimo de 5 anos, a real possibilidade de aquisição do direito de propriedade, desde
que esses possuidores não detenham a propriedade de outro imóvel urbano ou rural, e
desde que utilizem o imóvel a ser usucapido como moradia (PEDROSA, 2018).
Com essa modalidade de usucapião, reforça-se a efetivação da função social da
propriedade enquanto um dos escopos constitucionais do Estado Democrático de Direito
(THIBAU; PORTILHO, 2019).
Também, nessa modalidade de usucapião identifica-se claramente que a função
social da propriedade se sujeita ao modo de usar a propriedade e pertence à ética,
sendo, portanto, improdutiva, toda e qualquer discussão sobre se o dever ético social do
proprietário foi ou não formulado pelo legislador (RADBRUCH, 1997).
Nesse sentido, a fim de proporcionar o acesso ao direito à moradia e à propriedade
à população carente (em princípio), bem como de buscar regularizar uma situação de fato

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 145


pré-existente na sociedade brasileira, o legislador brasileiro criou essa nova espécie de
usucapião especial, voltada especificamente para o benefício da coletividade carente.
A usucapião coletiva urbana visa, pois, à implementação das normas que tratam da
política urbana, tendo por finalidade assegurar o bem-estar da população residente nas
cidades, além de fazer com que a propriedade urbana cumpra sua função social (THIBAU;
PORTILHO, 2019).
Conforme preceitua Ribeiro (2012), a referida espécie de usucapião buscou garantir
a regularização de áreas de aglomerados residenciais que não reúnem condições de
legalização do seu domínio. Isto porque uma das exigências ou requisito disposto no art.
10 do Estatuto da Cidade para tal finalidade é que se trate de área em que não é possível
a individualização dos terrenos ocupados por cada possuidor.
Nesta seção, cumpre esclarecer que a questão da constitucionalidade da usucapião
especial urbana coletiva, instituída no art. 10 do Estatuto da Cidade ou Lei nº 10.257/01
merece destaque, uma vez que há divergência doutrinária nesse sentido. Impende ainda
informar que o citado art. 10 do Estatuto da Cidade sofreu alteração recente por meio da
Lei 13.465/17, refletindo na interpretação que se deve dar ao tema. Assim, inicialmente se
analisará a anterior redação bem como as críticas tecidas pela doutrina e na sequência se
abordará as alterações advindas da nova redação.
Nos termos da redação anterior, Ribeiro (2012) menciona acerca da dúvida gerada
pelos doutrinadores quanto à constitucionalidade da norma disposta no art. 10 do Estatuto
da Cidade. Sugere que há opiniões no sentido de que o Estatuto da Cidade não poderia
criar exceção ao texto constitucional (SALLES, 2010), já que no art. 183, que se refere à
usucapião especial urbana individual, não há possibilidade de usucapir individualmente
área urbana superior a 250m². Por outro lado, a usucapião especial urbana coletiva traz
essa possibilidade desde que a posse seja exercida por uma coletividade. Dessa forma,
adotando-se o parâmetro constitucional, parece ser viável que cada possuidor, na usucapião
especial urbana coletiva, não adquira área superior a 250 m². Segundo o mencionado autor:
Assim, visando à política urbana do constituinte que a pessoa sem lugar para
morar possa adquirir por usucapião área de até 250 m², como está no art. 183
da CF, cabe assinalar que no art. 10 no Estatuto está dito que áreas urbanas
com mais de 250 m² são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente.

[...] Impende consignar que não há estipulação do quantum da área que será
no final atribuída a cada possuidor, que à evidência, atendendo à política
urbana traçada pelo legislador constitucional, não poderá ser superior a
250 m². Isso, contudo, não está na lei, podendo dar margem a discussões
intermináveis (RIBEIRO, 2012, p. 1034-1035).

Conclui esse mesmo autor pela constitucionalidade do instituto, ao afirmar:


Não parece delinear inconstitucionalidade do preceito ordinário, tendo em
vista que se busca regularizar situação fundiária, de posse e de propriedade,
para depois reurbanizar, para o fim de que possam os ocupantes se tornarem
proprietários individuais dos seus terrenos (RIBEIRO, 2012, p. 1037).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 146


Márcio Kammer de Lima tem o mesmo entendimento, preceituando que:
Restariam malferidos, a seu turno, os caros princípios da isonomia e da
igualdade, uma vez que a política do constituinte foi a de facilitar que pessoas
pobres, sem moradia, tivessem reconhecido o direito de propriedade sobre
imóvel de até duzentos e cinquenta metros quadrados, limite do qual o
legislador ordinário não poderia validamente desbordar (LIMA, 2009, p. 52).

Salles (2010) também defende a constitucionalidade da usucapião especial urbana


coletiva na medida em que compreende que:
Nem mesmo o fato de constar na emenda dessa lei tratar-se de regulamento
dos arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 autorizaria a conclusão
de que o referido diploma não poderia ultrapassar, nessa regulamentação, os
limites do citado art. 183, para chegar-se ao entendimento de que, criando
no art. 10 uma nova espécie de usucapião (a usucapião coletiva de imóveis
urbanos com mais de 250 m²), teria infringido a Carta Magna, sendo, portanto,
inconstitucional nesse capítulo (SALLES, 2010, p. 307).

Dessa forma, percebe-se que a intenção do legislador em proteger a população


carente é acertada e está em conformidade com a proteção dos valores consagrados na
Constituição, tanto no preâmbulo quanto nos princípios fundamentais da CRFB/1988, tais
como o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, a cidadania e a dignidade
da pessoa humana.
O legislador infraconstitucional, ao regulamentar as diretrizes traçadas no capítulo
da Política Urbana disposto na CRFB/1988 – arts. 182 e 183 –, veio promover verdadeira
democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia, já que nas cidades são
visíveis os problemas dos assentamentos informais.
Destaca-se, por fim, que a usucapião especial urbana coletiva encontra-se em estrita
consonância com a exigência do cumprimento da função social da propriedade, já que se
destina especialmente à solução dos problemas das “favelas” urbanas, servindo ainda,
após as últimas alterações legais, para solucionar também as questões de irregularidade
de loteamento, valorizando o exercício da posse, bem como servindo de instrumento para
a distribuição mais justa de riqueza e, finalmente, concedendo vida digna e minimamente
segura aos cidadãos mais necessitados (THIBAU; PORTILHO, 2019).
Conforme se verifica, o art. 10 do Estatuto da Cidade sofreu alteração recente por
meio da Lei 13.465/2017 visando exatamente a esclarecer a controvérsia supraexposta,
afastando-se quaisquer dúvidas quanto a futuras interpretações restritivas ou eivadas de
suspeita de inconstitucionalidade. Nos termos da referida lei, na redação do seu art. 10,
caput alterou-se a anterior expressão “áreas urbanas” nomeando-se atualmente como
“núcleos informais” e ainda indica uma fórmula aplicável a cada caso concreto, segundo
a qual a área total do terreno urbano usucapiendo deverá ser dividida pelo número de
possuidores, e a mesma metragem de área de 250 m2 indicada na anterior redação poderá
ser usucapida, porém esclarecendo-se que tal mensuração irá limitar-se a área usucapível

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 147


via usucapião especial urbana coletiva “por possuidor”. Ou seja, divide-se a metragem total
do núcleo urbano ocupado por coletividade, pelo número de possuidores, devendo ser o
resultado dessa conta, igual ou menor a 250 m2 por possuidor. Na redação expressa da
referida lei:
Artigo 10: Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de
5 anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a
250 metros quadrados por possuidor são susceptíveis de serem usucapidos
coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro
imóvel urbano ou rural (BRASIL, 2017, s.p.).

Ainda no capítulo II da Lei 10.257/2001: “Dos Instrumentos da Política Urbana” na


seção I: “Dos instrumentos em geral”, o art. 4º dispõe:
Para fins desta lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: [...] V-
institutos jurídicos e políticos: alínea j) usucapião especial de imóvel urbano
[...] q) regularização fundiária [...] t) demarcação urbanística para fins de
regularização fundiária; u) legitimação da posse (BRASIL, 2001, s.p.).

Também nessa seção importa mencionar o § 3º, que determina que:


[...] os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de
recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle
social, garantia a participação de comunidades, movimentos e entidades da
sociedade civil (BRASIL, 2001, s.p.).

Analisando-se em conjunto os dispositivos citados parece clara a intenção do


legislador em dar a devida atenção ao instituto da usucapião especial urbana coletiva,
potencializando o seu caráter de instrumento de interesse social e, por conseguinte, de
interesse público já que faz parte do plano diretor estratégico, o qual possui normas de
ordem pública e de interesse social em benefício do bem da coletividade, segurança e
bem-estar dos cidadãos.

5 | CONCLUSÃO
O presente estudo objetivou discutir a prescrição aquisitiva na usucapião especial
urbana coletiva com o intuito de demonstrar se esta modalidade de licitação serve como
instrumento para de fato efetivar a função social da propriedade.
A partir do momento em que o direito de propriedade deixou de servir tão somente
à satisfação das necessidades isoladas do proprietário, a usucapião especial urbana,
notadamente a coletiva, inovadora modalidade de usucapião prevista no Estatuto da
Cidade (Lei nº 10.257/01, com a redação dada pela Lei 13.465/2017), tornou-se mais um
instrumento de fundamental importância para a viabilização dos ideais de justiça social.
Nesta pesquisa abordou-se a evolução do conceito e da estrutura do direito de
propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, de modo a demonstrar a nítida mudança
em seu eixo de proteção, que passa a ter foco na pessoa humana e no contexto social em
que vive. Como consequência desse novo enfoque do direito de propriedade, evidencia-se

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 148


a maior proteção à posse e ao direito constitucionalmente protegido à moradia, aliados à
proteção dos interesses sociais da coletividade. A função social da posse e da propriedade
correlaciona-se à busca pela realização de uma sociedade fraterna, justa e igualitária.
Por todo o exposto, conclui-se que a usucapião possui importante papel na
modificação do espaço urbano, mas que tal instituo vem de fato sendo subutilizado. A
modalidade de usucapião destacada (usucapião especial coletiva) são modalidades a
serem destacadas.
É inegável o lugar ocupado pela usucapião no que diz respeito à preservação
da função social da propriedade, garantindo que aquele que exerce posse com animus
domini e, conforme o caso, utilize-se do espaço para fins de moradia ou a fim de que seja
trabalhado, tenha declarado sobre ele o domínio para todos os fins legais. Por esse viés,
valoriza-se, respalda-se, de uma só vez, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da
CRFB/1988); o valor social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV, da CRFB/1988),
o direito à propriedade (art. 5º, inciso XXII, da CRFB/1988), a função social da propriedade
(art. 5º, inc. XXIII, e art. 182 da CRFB/1988), o direito à moradia (art. 6º da CRFB/1988),
entre diversos outros direitos garantidos ao longo da Constituição e de todos os diplomas
normativos a ela sujeitos.
Embora se considere que essa temática não tenha sido suficientemente abordada ao
longo dos anos, o entendimento da usucapião como instrumento transformador do espaço
urbano não é novo e tem sido destacado na jurisprudência, demonstrando que se trata de
um instrumento de regularização fundiária e de implementação de Políticas Públicas, cujo
objetivo é minorar os problemas relacionados ao crescimento desordenado das cidades,
o que por sua vez, motiva as ocupações habitacionais irregulares. Não se nega, pois, que
a usucapião especial urbana coletiva desempenha papel fundamental no atingimento da
função social da propriedade e da cidade, sendo necessária a apresentação de provas e
que o caso concreto seja adequado à modalidade pleiteada a fim de que a ação possa ser
considerada procedente.
Além dessa capacidade já inerente à usucapião, a modalidades de usucapião
especial urbana coletiva possui requisitos e aplicação adicionais que se encontram
diretamente pautados pela função social da propriedade. Tais requisitos guardam grande
relação com a produção social no espaço urbano e a sua adoção como mecanismos
capazes de diminuir o lapso temporal necessário para a declaração de domínio pode ser
entendida como uma maneira de espelhamento do efetivo domínio do espaço urbano nos
entes responsáveis pela sua construção, com a consequente diminuição da desigualdade
decorrente das contradições nele vivenciadas.
Essas especificidades ampliam a possibilidade desse instituto de operar como
instrumento de regularização fundiária no espaço urbano, o que se demonstra por meio
da análise da história desse instituto no país, bem como da análise dos diplomas que
constituem o seu regime jurídico no Brasil atual, dentre os quais se destacam a CRFB/1988,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 149


o CC/2002, a Lei nº 10.257/2001, o CPC/2015 e a Lei nº 13.465/2017, e o regime jurídico
trazido por cada um deles.
Apesar disso, é possível encontrar diversos obstáculos no modelo atualmente
utilizado para o tratamento desse instituto, como a inespecificidades das normas e incertezas
quanto à sua aplicação, e as suas limitações, especialmente no caso da usucapião coletiva,
de proporcionar o gozo pleno dos beneficiários da propriedade cuja propriedade tenha sido
declarada pela via judicial.
Como possíveis formas de reparação, seguem incertas, entende-se pela necessidade
de melhor regramento na legislação, especialmente nas locais, a fim de que seja possível
conferir a esse instituto o alcance social que lhe é devido e esperado.

REFERÊNCIAS
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coletiva: aspectos relevantes de direitos material e processual. Curitiba: Appris, 2019.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 12 152


CAPÍTULO 13

ANÁLISE DO TERMO DE COMPROMISSO COMO


INSTRUMENTO DE GESTÃO DE CONFLITOS EM
UNIDADE DE CONSERVAÇÃO: O CASO DA ESTAÇÃO
ECOLÓGICA SERRA GERAL DO TOCANTINS
Data de aceite: 01/03/2023

Juliana Almeida Calmon Vasconcelos de gestão e mediação de conflitos, de


Bióloga e Bacharel em Direito, servidora caráter transitório, previsto no Sistema
do Instituto Natureza do Tocantins Nacional de Unidades de Conservação
(Naturatins)
(SNUC), visando garantir a proteção
Ítalo Schelive Correia da biodiversidade e as características
Professor/Pesquisador UNITINS socioeconômicas e culturais dos grupos
Ana Carolina Sena Barradas sociais envolvidos (INSTITUTO CHICO
Analista Ambiental do Instituto MENDES DE CONSERVAÇÃO E
Chico Mendes de Conservação da BIODIVERSIDADE - ICMBio, 2012).
Biodiversidade (ICMBio)
A Estação Ecológica (ESEC) Serra
Rogers Ribeiro Vasconcelos Geral do Tocantins, localizada nos estados
Bacharel em Direito Tocantins e Bahia, foi criada em 2001
sem consulta prévia, o que gerou conflitos
territoriais com os povos residentes na
área, os quais não foram indenizados e
1 | INTRODUÇÃO tiveram direitos de uso limitados devido às
O uso de Termos de Compromisso divergências com os objetivos de criação
(TC) no âmbito extrajudicial é visto como da UC (LINDOSO, 2014). Contudo, desde
uma metodologia positiva de resolução de 2012 a Estação Ecológica Serra Geral do
controvérsias, que além de comprometer Tocantins (ESEC Serra Geral do Tocantins
as partes ao procedimento pactuado, celebra) TCs com as comunidades
possui mais flexibilidade na sua formatação quilombolas residentes.
(LIMA; LEITE, 2017). Nestes casos de sobreposição
Na esfera da gestão de conflitos de territórios, o art. 39 do Decreto
ambientais em Unidades de Conservação Federal 4.340/2002 que regula o artigo
(UC), o TC é definido como um instrumento 42 do Sistema Nacional de Unidades de

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 153


Conservação da Natureza (SNUC), prevê que sejam firmados Termo de Compromisso (TC)
entre as partes. Em 2012 o ICMBio editou a Instrução Normativa n° 26, estabelecendo
diretrizes e regulamentação dos procedimentos para a elaboração, implementação e
monitoramento de TC.
Assim sendo, esta pesquisa pretende colaborar com a análise do Termo de
Compromisso como instrumento de gestão de conflitos decorrentes da sobreposição
da área da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins com o território tradicional da
Comunidade Quilombola do Rio Novo, Riachão e Preto, residentes no seu interior.
Além disso, tem como objetivos específicos: 1 - Levantar o histórico do processo
de implementação do Termo de Compromisso na ESEC Serra Geral do Tocantins; 2 -
Relacionar as cláusulas do Termo de Compromisso com o histórico de conflitos na ESEC
Serra Geral do Tocantins; 3 - Identificar as cláusulas do Termo de Compromisso assinado
com a ASCOLOMBOLAS-RIOS que contribuíram para a gestão dos conflitos oriundos da
criação da ESEC Serra Geral do Tocantins.

2 | MATERIAL E MÉTODOS
A presente pesquisa trata-se de um estudo de caso sobre o uso do Termo de
Compromisso como um instrumento de gestão de conflitos pela ESEC Serra Geral do
Tocantins. A metodologia relacionada ao estudo de caso foi baseada no protocolo de
Yin (2001) e o conjunto de etapas baseadas em Gil (2002), que inclui a formulação do
problema, a definição da unidade-caso, a determinação do número de casos, a elaboração
do protocolo, coleta de dados, avaliação e análise dos dados, e a preparação do relatório.
Além da Revisão Bibliográfica, onde foram levantados um total de 60 trabalhos
científicos selecionados aqueles indexados em revista, artigos publicados em anais de
congresso e por fim teses e dissertações que não possuíam artigo publicado em revista,
e que tivessem relação com o tema proposto. Foram escolhidos um total de 15 trabalhos
científicos.
A coleta de dados documentais foi realizada no ICMBio e Ministério Público Federal
(MPF). Para isso, foram solicitados o acesso ao Processo Administrativo ICMBio n°
02123.010472/2016-85 através do Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade
(SISBio) do ICMBio e ao Processo Administrativo MPF/TO n° 1.36.000.000947/2018-40 foi
realizada a solicitação pela Sala de Atendimento ao Cidadão do MPF direcionada a unidade
de Palmas/TO, Núcleo de Tutela Coletiva.
Também foram aplicados questionários com servidores do ICMBio que participaram
da implementação dos Termos de Compromisso na ESEC Serra Geral do Tocantins. Como
se trata de uma pesquisa que envolve a participação de seres humanos, para realização
da pesquisa, foi necessário o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da universidade, assim, a solicitação foi protocolada através da Plataforma Brasil com o

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 154


projeto detalhado e demais documentos necessários

3 | RESULTADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa foi trabalhada em quatro tópicos: “Gestão de Conflitos em Unidade
De Conservação”, “O Termo de Compromisso em Unidades de Conservação”, “Estação
Ecológica Serra Geral Do Tocantins”, e “A Implementação do Termo de Compromisso na
ESEC Serra Geral Do Tocantins”.

3.1 Gestão de conflitos em unidade de conservação


Por volta das décadas de 1970 e 1980 as políticas de gestão ambiental brasileiras
pautavam-se na visão de que a natureza deveria ser protegida da espécie humana, através
do modelo biogeográfico de “ilhas de diversidade” inspirado em iniciativas internacionais
como a criação do Parque Nacional de Yellowstone, sendo criadas UC de Proteção Integral,
onde não se admite a presença humana de nenhuma natureza (MARTINS, 2012).
O processo de criação do Parque Nacional de Yellowstone criou uma ideia de que
a única forma de salvar pedaços da natureza de grande beleza contra os efeitos deletérios
do desenvolvimento urbano-industrial seria o total isolamento de qualquer intervenção
humana, desconsiderando, inclusive, que os índios americanos tinham vivido em harmonia
com a natureza por milhares de anos (VALLEJO, 2002).
Após encontros mundiais sobre conservação da natureza, ocorreram mudanças
conceituais e das perspectivas na criação e gestão das UC pelo mundo, que passaram do
exclusivo interesse em proteção e isolamento de áreas como santuários ecológicos, para
o uso racional dos recursos e manejo de espécies com a visão da conservação (VALLEJO,
2002).
Em 1982, no III Congresso Mundial de Parques Nacionais, foi editado o documento
The Bali Action Plan, o qual alterava a relação das populações com as áreas naturais
protegidas, onde as populações deixariam de ser tradicionais e passariam a ser
consideradas manejadoras tradicionais dos recursos naturais, causando uma evolução no
conceito de parque nacional, principalmente no que se refere à sua integração e interação
com o desenvolvimento socioeconômico e na conservação da natureza (BRITO, 2008).
A partir da Conferência Rio-92 novas estratégias de gestão da biodiversidade
surgiram, e o modelo de UC de Uso Sustentável, que permitem interações entre esses
espaços e a sociedade começa a ser difundido, mas a consolidação da política nacional
de gestão territorial de espaços naturais ocorreu somente com a implantação do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000 (MARTINS, 2012).
Embora a criação de UC constitua uma das principais formas de intervenção
governamental de modo a reduzir perdas de biodiversidade face à degradação
ambiental, tal processo tem sido acompanhado por conflitos e impactos decorrentes da

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 155


desterritorialização de grupos sociais, incluindo os tradicionais (VALLEJO, 2002). Para
Diegues (1998) este fato tem gerado conflitos intermináveis com as populações locais que
têm dificuldades em aceitar porque turistas ou pesquisadores podem entrar livremente na
área natural protegida enquanto eles sofrem limitações em seu modo de vida tradicional
(pesca, agricultura e outros).
O tema dos conflitos ambientais iniciou de modo expressivo nas principais
conferências e reuniões sobre o meio ambiente1. Sendo a Conferência de Estocolmo, em
1960, onde se tratou dos problemas políticos, sociais e econômicos na questão das áreas
protegidas, sendo este evento marcante para a teorização dos conflitos (BRITO, 2008).
Segundo Brito (2008), tais conflitos necessitam de entendimento teórico, pois,
através deste conhecimento é possível delinear ações e intervenções capazes de minimizar
a degradação ambiental e social destas áreas, sendo importantes para a formulação das
políticas e diretrizes que envolvem a construção da gestão e do manejo das UCs.
De acordo com Martins (2012), a eficácia das políticas de criação e gestão territorial
de áreas protegidas são debatidas em duas perspectivas: a de contenção da perda da
biodiversidade e a defesa da presença de populações tradicionais dentro das unidades
de conservação. Esta, a partir do argumento que sua remoção prejudicaria a dinâmica
dos ecossistemas onde estão inseridas, bem como, a defesa da retirada de populações
tradicionais, porque suas práticas de extração e uso dos recursos naturais impactam
negativamente os ecossistemas.
Vallejo (2002) considera que a consolidação das funções sociais e ambientais
das unidades de conservação é complexa e passível de conflitos, pois, necessitam
da implementação de estratégias políticas e gerenciais pelo poder público com foco
no ordenamento territorial, envolvendo os múltiplos atores deste processo, como:
comunidades biológicas, comunidades humanas locais, organizações governamentais e
não governamentais, usuários e a iniciativa privada.
A criação e gestão das UCs, áreas naturais protegidas pelo poder público e/ou pela
iniciativa privada, destinadas à conservação da biodiversidade e outros fins é pauta do
ordenamento territorial e ambiental. Desta forma o autor Vallejo (2002, p. 57) pontua:
O conceito de território abrange desde as questões ligadas à sobrevivência,
e que envolvem as relações com o substrato material, até os processos de
manutenção, consolidação e expansão dos espaços dominados, ou seja, as
relações de poder [...], e o “estudo das unidades de conservação contempla
a discussão conceitual do território sob várias abordagens (biológica, cultural
e econômica), além da possibilidade de se tratar também do problema da
desterritorialização.

Contudo, existem dificuldades que devam ser elencadas a este assunto, conforme
abordam os autores Vivacqua e Vieira (2005, p. 159) abaixo:

1 Clube Roma, em 1968, e I Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em
1972.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 156


As dificuldades de equacionamento de conflitos socioambientais em áreas
protegidas têm indicado a necessidade de se rever o modelo de gestão
dos recursos naturais adotado pelas agências governamentais em nosso
país. Para tanto, impõe-se o desenvolvimento de pesquisas que tenham
como foco a gestão de conflitos” [...], pois, “As pesquisas sobre conflitos
socioambientais em áreas protegidas têm revelado que os custos sociais
e ecológicos da criação de Unidades de Conservação de uso indireto
levam muitas comunidades locais a burlar as leis e desrespeitar as regras
estabelecidas pelos sistemas de gestão.

Pádua (2002) apud Vallejo (2002), ao criticar a implantação de UCs em categorias


inadequadas, menciona sobre as reservas e estações ecológicas criadas em locais onde seria
melhor implantar parques. Pois, tal implantação gera conflitos com as comunidades locais,
fato que pode ser atribuído à falta de estudos prévios e, também, por desconhecimento do
significado das categorias e possibilidades de uso e manejo das unidades de conservação.

3.2 O termo de compromisso em unidades de conservação


O Poder Judiciário se destaca como o sistema primordial de gestão dos mais
diversos conflitos e, na medida do possível, sua pacificação. Contudo, além do contexto
judicial, o extrajudicial se destaca como plano de fundo nas soluções de dilemas das mais
diversas naturezas. Dentre as várias alternativas, está a mediação extrajudicial, a qual se
trata de mecanismo de conscientização e incentivo às partes envolvidas para haver uma
valoração de seus interesses (LIMA; LEITE, 2017).
Por acontecerem fora do âmbito judicial, e só deve acontecer neste contexto,
beneficiam-se por definirem os próprios regramentos, objetivos e parâmetros gerais, os
quais devem ser estabelecidos antes da iniciação do procedimento, tais convenções
estabelecidas entre os envolvidos compõem o que conhecemos como Termo de
Compromisso, ou seja, uma espécie contratual que estabelece parâmetros para uma
relação futura específica (LIMA; LEITE, 2017).
De acordo com Lima e Leite (2017, p. 135), o TC trata-se de uma manifestação
positiva quanto à participação num método autocompositivo de resolução de controvérsias,
enquanto compromete as partes ao procedimento ali exposto. Conforme pode ser
verificado na legislação, o instrumento pode ser utilizado na área de gestão de unidades
de conservação de diferentes maneiras, contudo, focaremos na aplicação do TC como
instrumento na gestão de conflitos socioambientais entre UC e comunidades tradicionais
residentes, objeto do art. 39 do Decreto Federal 4.340/2002. Com base nisso, a IN 26/2012
do ICMBio, órgão gestor das UCs federais, assim define o Termo de Compromisso:
Instrumento de gestão e mediação de conflitos, de caráter transitório, a ser
firmado entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais residentes
em unidades de conservação onde a sua presença não seja admitida ou
esteja em desacordo com os instrumentos de gestão, visando garantir a
conservação da biodiversidade e as características socioeconômicas e
culturais dos grupos sociais envolvidos (ICMBio, 2012, p. 84).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 157


A IN/ICMBio n° 26/2012 foi editada pelo ICMBio de modo a estabelecer diretrizes e
regulamentação dos procedimentos para a elaboração, implementação e monitoramento
de TCs para casos de sobreposição de territórios, previsto no art. 39 do Decreto Federal
4.340/2002 que regula o art. 42 da Lei Federal n° 9.985/2000 (Lei do SNUC - Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), o qual prevê que sejam firmados TCs
entre as partes.
Ribeiro e Drumond (2014) ao identificar e avaliar TCs já implementados em UCs
federais, verificaram que os mesmos vêm sendo utilizados como um instrumento de
gestão de áreas protegidas, contudo, são uma alternativa legal pouco explorada, não só
por gestores, pesquisadores e equipes técnicas, mas também por comunidades, servindo
como subsídio para a ampliação desta discussão em outros territórios, onde outrossim são
verificados conflitos de mesma natureza.
O referido documento se configura como peça-chave no processo de mediação e
indispensável ao prosseguimento do processo autocompositivo, dentre suas peculiaridades
estão a sua formulação flexível e sem padrões, além disso, ressalta-se que a possibilidade
de revisões e modificações de alguma cláusula ou mais de uma do TC deve ser sempre
considerada, de modo que a situação inicialmente apresentada se modifique de tal forma
que, por exemplo, conjunturas anteriormente previstas como proibidas passem a ser, em
verdade, genuinamente desejadas pelas partes mediadas (LIMA; LEITE, 2017).
Para Ribeiro e Drumond (2014) o TC pode ser definido como um documento que
reúne medidas e acordos temporários, vigentes enquanto a regularização fundiária, ou
a execução de uma alternativa considerada mais pertinente para aquele espaço não é
efetivada. Contudo, o estudo constatou que embora haja uma relação de confiança sendo
construída gradualmente, o cenário de regularização fundiária ainda é muito complexo,
visto que, as comunidades quilombolas reivindicam pela desafetação de seus territórios e
se recusam negociar sobre reassentamento.
Alguns autores consultados discutem sobre a escolha da categoria de manejo
da UC como intensificadora dos conflitos, pois, a depender desta, existem restrições de
uso e alteram os modos de apropriação e/ou usos tradicionais dos recursos naturais da
área pelas comunidades residentes, como é o caso dos Parques (SOUZA; LIMA, 2017) e
Estações Ecológicas (FERREIRA; MELLO, 2016).
Os conflitos gerados em decorrência da implantação de UC de categoria diversa
aos costumes tradicionais das populações locais são bem comuns sendo identificados no
Parque Nacional (PARNA) de Cabo Orange, no Amapá, onde a comunidade ribeirinha vive
da pesca artesanal (SOUZA; LIMA, 2017).
Diante deste panorama, regulamentou-se TCs de modo a “possibilitar o acesso das
comunidades locais marginalizadas aos recursos naturais disponíveis na região do PARNA
do Cabo Orange, que apenas representam paliativos sem a segurança jurídica necessária”
(SOUZA; LIMA, 2017, p. 418).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 158


Neste caso, o autor discute que a elaboração de TC não é suficiente para resolver
os conflitos existentes, visto que em UC de proteção integral tal acordo é apenas uma
estratégia de minimização de potenciais ou conflitos existentes, sem a possibilidade de
efetiva subsistência das populações envolvidas (SOUZA; LIMA, 2017).
Ferreira e Mello (2016) abordam sobre a construção e assinatura dos TC na Estação
Ecológica Serra do Meio, o qual foi construído coletivamente, de modo a garantir suas
formas de reprodução cultural, apesar disso os mesmos não foram assinados, o que
poderia ser uma forma temporária de territorialização da comunidade ao acesso às políticas
públicas, tão reivindicadas pelos residentes.
Diversas outras iniciativas já foram feitas em UCs desde a IN/ICMBio n° 26/2012,
estudados por diversos autores sobre sua eficácia e modo de implementação, como é o
caso do estudo de Ribeiro e Drumond (2014) e Talbot (2016). De acordo com Talbot (2016),
a ESEC Serra Geral do Tocantins foi a primeira UC no país a abrir um processo para tratar
da proposta de elaboração de um TC com populações tradicionais depois da publicação do
SNUC, que prevê este instrumento.
Lindoso e Parente (2015), em estudo realizado na ESEC Serra Geral do Tocantins,
abordam sobre a inovação do TC na política de conservação da biodiversidade e como
estratégia para a conservação, constatando a necessidade de um aprofundamento da
experiência de implementação do instrumento para uma verdadeira transformação na
forma atual de conservação, além de considerar o TC uma tentativa de minimizar o conflito,
embora o mesmo não mude a previsão do reassentamento destas populações, como fica
claro no artigo 42 do SNUC.

3.3 Estação ecológica Serra Geral do Tocantins


A Estação Ecológica Serra Geral Do Tocantins (ESEC Serra Geral do Tocantins)
é uma UC de Proteção Integral de gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) sendo criada através de Decreto Federal s/nº de 27 de setembro de
2001 (BRASIL, 2001), sem consulta pública, e instituída sobreposta a territórios ocupados
há centenas de anos por povos e comunidades tradicionais, sem o reconhecimento prévio
destas ocupações e eventuais medidas de redução de danos e conflito, o que gerou um
significativo impacto político-territorial na área (LINDOSO, 2014).
A referida ESEC, está localizada nos municípios de Rio da Conceição, Almas, Porto
Alegre do Tocantins, Ponte Alta do Tocantins e Mateiros, no Tocantins, e Formosa do Rio
Preto, na Bahia (Figura 01). Possui uma área de 707.400ha (7.074km²), de acordo com
seu decreto de criação, um dos principais objetivos, a conservação e a preservação dos
ecossistemas do bioma Cerrado presente na região (BRASIL, 2014).
De acordo como o Plano de Manejo da UC, dentre as atividades conflitantes, a
regularização fundiária é um dos principais conflitos para a gestão da ESEC Serra Geral do
Tocantins, já que apenas poucas áreas foram desapropriadas, estando em sobreposição a

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 159


territórios com a presença humana no seu interior. Outras atividades de uso conflitante que
podem ser citados também são: coleta de capim-dourado, exploração turística, incêndios
em veredas, erosão, grandes projetos de agricultura no entorno e projeção de Pequena
Central Hidrelétrica (PCH) no entorno (BRASIL, 2014).

Figura 01. Localização da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, contendo o limite estadual e os
municípios que abrangem a sua Região (entorno).
Fonte: Plano de Manejo (2014).

Nestes casos de sobreposição de territórios, o art. 39 do Decreto Federal 4.340/2002


que regula o artigo 42 do SNUC, prevê que sejam firmados TCs entre as partes. Em 2012 o
ICMBio editou a Instrução Normativa n° 26, estabelecendo diretrizes e regulamentação dos
procedimentos para a elaboração, implementação e monitoramento de TC.
Com base nos objetivos de estabelecer normas de convivência, a ESEC Serra
Geral do Tocantins, a primeira UC no país a abrir um processo para tratar da proposta
de elaboração de um TC com populações tradicionais depois da publicação do SNUC,
celebra, desde 2012, TCs com a Associação das Comunidades Quilombolas do Rio Novo,
Rio Preto e Riachão (ASCOLOMBOLAS-Rios).
Em 2015 foi enviada Nota Técnica 02/2016 (SEI-ICMBio 0257572) tratando da
revisão do TC n° 14/2012, a mesma descreve a tentativa de implementação do TC desde

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 160


2003, quando o objetivo ainda era evitar o uso do fogo e inibir a abertura de roças. Contudo,
pelo receio de abrir precedentes, tal processo foi suspenso na época; seis anos após,
foi realizado o Primeiro Fórum Quilombola promovido pelo Ministério Público Federal no
Tocantins, retomando o compromisso de construção de TC com a comunidade residente
da ESEC Serra Geral do Tocantins.
Conforme a mesma Nota Técnica, mesmo após a construção do primeiro TC, foram
registrados diversos altos e baixos relacionados as permissões do uso do fogo e abertura
de roça de toco, de esgoto e de pasto que o instrumento contemplava, as quais foram
previstas, mas com limitações difíceis de compatibilizar com a realidade. Desta forma, a
cada ano de implementação, havia mais a necessidade de revisão de modo a contemplar
legitimamente as condições necessárias para as práticas tradicionais da comunidade.
Contudo, segundo Barradas (2017), desde a abertura do processo para tratar
da proposta de elaboração do TC, a implementação do instrumento proporcionou a
aproximação dos gestores e quilombolas, principalmente após 2015, quando a comunidade
se mobilizou e requereu a revisão do termo, realizadas discussões visando a repactuação
do acordo de uso dos recursos naturais na área sobreposta pela ESEC Serra Geral do
Tocantins e território tradicional.
As comunidades residentes na área passaram a reconhecer o TC como um acordo
de ordem legal que lhes garantem seus direitos e saída da condição de ilegalidade. Além
disso, o reconhecem como instrumento de gestão de conflitos, que harmoniza as relações
com as equipes gestoras das UC, permitindo o manejo dos recursos, desta forma, o TC
ajuda a conquistar o apoio popular à UC, mostra à sociedade a capacidade de diálogo e
o reconhece como uma conquista social, possibilitando a integração entre as dimensões
social e ambiental (LINDOSO, 2014).
Dentre suas particularidades, o TC possui características flexíveis na sua
elaboração, com a possibilidade de revisões e modificações de alguma cláusula, de
modo que, situações anteriormente previstas como proibidas passam a ser, em verdade,
genuinamente desejadas pelas partes mediadas (LIMA; LEITE, 2017). No caso da ESEC
Serra Geral do Tocantins foi exatamente o que aconteceu. De acordo com Barradas (2017),
foram imprescindíveis revisões e aprimoramentos entre o período de 2012 a 2017 quando
várias intervenções foram necessárias devido ao descumprimento do primeiro TC firmado.
Com a realização da I Oficina de Revisão do TC2, a comunidade teve a oportunidade
de apresentar todas suas demandas de alterações, as quais foram discutidas e pactuadas
nas oficinas posteriores. Dentre as demandas, destacava-se o uso do fogo para manejo
do cru, com aumento do período e área. Além disso, a possibilidade de inclusão dos
descendentes no Termos de Adesão. Outra demanda foi a presença da Associação de
Pequenos Agricultores do Tocantins (APATO) e da Coordenação Estadual das Comunidades
Quilombolas do Tocantins (COEQTO) no processo de revisão do TC.
2 Nota Técnica 02/2016 (SEI-ICMBio 0257572).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 161


Os conflitos, que permeavam em torno do uso restrito do fogo, área de uso da
comunidade para práticas de cultivo, criação de animais, bem como utilização de
mecanização foram discutidos na revisão do TC, a revisão buscou tratar tais quesitos
profundamente de modo a ampliar as permissões no documento. Assim, cada oficina
realizada avançava mais nas discussões, finalizando com a edição da Minuta de Termo de
Compromisso, a qual considerou no documento a prática de atividades que demandam o
uso do fogo, a criação extensiva de gado, roças de toco e de esgoto, e práticas extrativistas
complementares.

3.4 A implementação do termo de compromisso na ESEC Serra Geral do


Tocantins
O estabelecimento de termos de compromisso em UCs, além de buscar atender uma
normativa prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, atende ao cenário
onde a maioria das UCs enfrentam desafios com a presença de populações humanas em
desacordo com o previsto na legislação (TALBOLT, 2016).
Os processos de construção e implementação de TC na ESEC Serra Geral do
Tocantins fornecem subsídio para um estudo de caso voltado a reflexão sobre o uso desse
instrumento na gestão de conflitos, visando identificar e fortalecer caminhos que levaram
ao seu aperfeiçoamento (BARRADAS; BORGES; COSTA, 2019).
Segundo as informações obtidas a partir dos questionários aplicados com os
agentes das instituições relacionadas a implementação do TC, sendo: ICMBio, MPF/TO e
ASCOLOMBOLAS-RIOS, relativas ao histórico de implantação do TC, bem como os relatos
de conflitos registrados na Unidade de Conservação, os embates que necessitavam de
maior interferência da gestão desde a criação da UC era o uso de recursos naturais, uso do
fogo e a permanência das comunidades no interior da UC.
Inicialmente, as tentativas de resolução dos conflitos baseavam-se na aplicação de
multas e proibição das atividades, bem como realização de oficinas, palestras, relatos dos
moradores de dentro da área da Unidade de Conservação e o Ministério Público Federal
e Estadual, o qual participou como interveniente do TC com a ASCOLOMBOLAS-RIOS.
Segundo relato de um participante, extraído do questionário:
A fiscalização dos órgãos gestores da ESEC (IBAMA e depois ICMBio)
sempre buscou coibir o uso do fogo. Até que as comunidades se organizaram
no âmbito do Fórum Quilombola do Tocantins, com mediação do MPF-TO.
A intervenção do MPF foi fundamental para que o conflito fosse gerido
não através da fiscalização, mas de outros instrumentos de gestão que
respeitassem os direitos das comunidades. O TC é a parte mais visível desse
processo, e através dele foi possível incorporar os saberes tradicionais no
próprio planejamento do manejo do fogo na UC. O início do Projeto Cerrado
Jalapão, trazendo toda essa bagagem do manejo integrado do fogo foi
fundamental para vencer resistências técnicas, vez que o ICMBio ainda
operava na lógica do combate aos incêndios, enxergando o fogo como um
inimigo a ser vencido e suprimido.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 162


Com base neste depoimento é possível verificar como as instituições e a organização
da comunidade foram fundamentais para a gestão do conflito e a implementação do
instrumento na UC.
Na ESEC Serra Geral do Tocantins, o processo de implementação do TC com
residentes e populações do entorno da ESEC se deu, principalmente, com o objetivo de
ordenar a queima controlada, pois, segundo documentos do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os residentes nos “gerais” utilizam
fogo sem controle, para queima e rebrota do capim onde colocam o gado para engorda no
período de estiagem (TALBOT, 2016, p. 87, grifo nosso). Contudo, para compreender tais
palavras são importantes para se analisar o tratamento do uso do fogo na área da UC.
No estudo desenvolvido por Barradas (2017) foi analisada a evolução da gestão do
fogo na ESEC Serra Geral do Tocantins, bem como a transição de posturas institucionais
pirofóbicas3 para pirofílicas4 na UC. Segundo a referida pesquisa, as ações de exclusão do
fogo levaram ao acirramento de conflitos socioambientais, sendo assim, a UC enfrentou o
desafio de mudar formalmente paradigmas de gestão ao assumir que o manejo adaptativo
do fogo pode garantir a efetiva proteção da sua sociobiodiversidade.
Nos depoimentos acerca dos meios de gestão de conflitos anteriores ao TC, os
agentes realizam discussões e conversas pontuais através de reuniões, contudo, prevalecia
o comando controle por parte do órgão ambiental, verificando que não havia um processo
de gestão do conflito, mas de acirramento, visto que apenas a fiscalização atuava para
coibir o fogo na área e a demanda do TC não avançava.
Contudo, após a assinatura do TC, os conflitos começaram a ser discutidos
coletivamente, com uma aproximação de diálogo e divisão de responsabilidades, construída
gradualmente, com maior protagonismo das pessoas que habitam a região e as instituições
envolvidas, criando uma linha de base do que é permitido ou não ser realizado.
Importante ressaltar que mesmo com o primeiro TC assinado, ainda havia uma
resistência do órgão ambiental quanto ao instrumento, o qual sozinho não teria resolvido
os conflitos, se não tivesse acontecido, concomitantemente, o projeto Cerrado Jalapão,
com foco manejo integrado do fogo, que dava suporte teórico e técnico a uma nova forma
de olhar para o fogo, incluindo os saberes tradicionais.
O manejo integrado do fogo foi previsto e institucionalizado inicialmente na cláusula
Terceira, do TC n° 14/2012, o primeiro assinado entre a ESEC Serra Geral do Tocantins e a
comunidade através da ASCOLOMBOLAS-RIOS, o qual permite a queima controlada para
atividades tradicionais de roça, previamente autorizada pelo ICMBio, conforme calendário
de queima anual aprovado e sob orientação e monitoramento do ICMBio. Ao longo do
documento são apresentados também restrições e condicionantes.
Em 2014, o uso do fogo foi integralizado ao Plano de Manejo da UC, fazendo parte

3 Ações de proibição do fogo, “fogo zero”.


4 Ações de uso do fogo, ou manejo do fogo.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 163


dos seus programas de manejo institucionais.
A ESEC Serra Geral do Tocantins se destaca como uma das primeiras UC
a transitar formalmente de um modelo de gestão pautado na exclusão do
fogo para um modelo de gestão pautado no manejo do fogo ao assumir em
seu Plano de Manejo a flexibilização do zoneamento ecológico para Estações
Ecológicas como forma de garantir a possiblidade de uso do fogo em toda a
extensão da UC para ações de proteção e de conservação da biodiversidade,
o que abre novas perspectivas para outras UC (BARRADAS, 2017, p. 122).

Desta forma, conforme mencionado anteriormente, o fogo foi um dos quesitos


mais importantes de discussão dentro do TC da ESEC Serra Geral do Tocantins. Talbot
(2016) ao realizar um histórico de implementação do termo na UC, faz um apanhado
desde os primeiros processos, iniciado em 2003, nos quais, identificaram-se algumas
das razões pelas quais a instituição não estimulava o estabelecimento de TC com essas
populações, dentre os mesmos, a institucionalização do uso do manejo do fogo, bem como
o reconhecimento da tradicionalidade das comunidades residentes, pois, não havia até
então nenhum documento ou conceituação para tal.
Diversos foram os entraves dentro do Ibama na discussão de elaboração do TC
da ESEC Serra Geral do Tocantins, inclusive a suspensão do processo e retorno nas
tratativas já no âmbito do ICMBio, quando se devolveu a demanda à ESEC solicitando
análise e adoção de providências no bojo da ação de regularização fundiária com recursos
da compensação ambiental (TALBOT, 2016).
Ao passar do tempo, algumas iniciativas foram sendo feitas em âmbito federal que
levaram ao cenário da primeira assinatura do TC. Dentre estas, foi feito um levantamento
prévio da situação de sobreposição de UC a territórios de ocupação tradicional, a criação
de uma Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais no ICMBio. Esta Coordenação
garantiu significativo avanço através da construção de entendimentos jurídicos que
respaldassem os gestores para a tomada de decisão em situações que, no entender de
muitos, feriam a legislação ambiental, onde a articulação promovida internamente pela
referida Coordenação culminasse na edição da Instrução Normativa (IN) do ICMBio
26/2012 (LINDOSO, 2014).
Outro fato importante de reconhecimento legal do uso do fogo em UCs foi a previsão
no art. 38, II e §2° do Código Florestal5, que apesar de ainda empregar o emprego da
expressão “queima controlada”, permite a utilização do fogo em conformidade com o
respectivo plano de manejo e mediante prévia aprovação do órgão gestor da Unidade de
Conservação, bem como, permite seu uso através das práticas de prevenção e combate
aos incêndios e as de agricultura de subsistências exercidas pelas populações tradicionais
e indígenas.
Segundo os participantes da pesquisa, os conflitos sempre existirão, mas é
perceptível que houve avanços para uma convivência harmônica entre as partes, com

5 Lei 12.651 de 25 de maio de 2012.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 164


melhor diálogo, com reuniões mais participativas, com pautas mais acolhedoras, com maior
liberdade para exposição de temas “sensíveis”.
Além disso, apontam permissões trazidas pelo atual TC, como a construção de novas
casas, roças, manutenção de estradas, máquina de até 80 cavalos, assim como o manejo
do fogo, roça, criação de animais. Entretanto, foi pontuado que embora tenha resolvido um
problema de relacionamento da equipe do ICMBio com as comunidades locais, o TC não
regula a questão fundiária, sendo a base do problema.
Dentre as cláusulas da Minuta de Termo de Compromisso que mais foram objeto
de discussão em relação à avaliação dos desdobramentos ambientais das alterações
pretendidas, destacaram-se a sexta, com relação à assinatura do termo de adesão, além
das permissões de uso de maquinário, criação de gado e área de queima6. Além destas,
também se tratou sobre a introdução de espécies exóticas, bem como da visitação turística.
Tais clausulas foram discutidas e novo texto aprovado, sendo a cláusula sexta
permitindo a assinatura do Termo de Adesão por quilombola representante de grupo
familiar previamente identificado no levantamento genealógico elaborado pela comunidade
e validado pela Comissão de Acompanhamento do TC e pelo Conselho Consultivo da
ESEC Serra Geral do Tocantins, conforme texto:
Cláusula Sexta – Termos de Adesão (Anexo II – SEI 1775865) serão
individualmente assinados por representante da EESGT e quilombola
representante de grupo familiar que faz uso e/ou ocupação de área no interior
da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins previamente identificado
no levantamento genealógico elaborado pela comunidade e validado pela
Comissão de Acompanhamento do TC e pelo Conselho Consultivo da EESGT,
conforme lista constante no Anexo III (SEI 1773751) deste instrumento;

Parágrafo primeiro. Os Termos de Adesão terão a mesma vigência temporal


do TC.

Além desta, a cláusula sétima, que trata “das permissões”, trouxe em seu novo
texto, nos incisos II e III sobre o uso de maquinários e criação extensiva de gado:
II - Uso de máquinas de pequeno e médio porte, até 180 CV, para preparo do
solo (aração e gradagem) no estabelecimento de pequenas roças – até dois
hectares – em áreas de Cerrado já antropizadas, vedado seu uso em veredas,
incluindo brejos, pantames, terras de esgoto e vargens;

III - Criação extensiva de gado, segundo o uso e manejo tradicionais,


admitindo-se a evolução natural do rebanho atual, sendo que para rebanhos
acima de 30 cabeças de gado, o crescimento máximo permitido será de 30%
ao ano, respeitando-se o limite máximo de 150 cabeças de gado por grupo
familiar assinante de termo de adesão;

O uso do fogo foi tratado nos incisos XII, XIII, XIV e XV, contemplando desde a
utilização para as atividades tradicionais de roça e manutenção de pastos nativos para
a atividades de criação de gado, bem como para manejo do capim dourado, segundo

6 Processo Administrativo ICMBio n° 02123.010472/2016-85, acesso SEI.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 165


conhecimento tradicional associado à atividade, conforme o texto do inciso XV:
XV – Uso do fogo para manejo da paisagem e/ou em atividades que não
são de ordem estritamente produtiva como: abertura de acessos; controle
de combustível (manejo do cru); proteção de infraestruturas; proteção de
ambientes sensíveis ao fogo; confecção de aceiros; ações de combate ao
fogo (como contrafogo e linhas de controle); dentre outros usos culturalmente
praticados, conforme calendário de queima anual pactuado entre os
quilombolas compromissários e o ICMBio.

A visitação turística com fins educacionais foi tratada no inciso XVII, contudo, carece
ainda da elaboração de projeto específico que seja compatível com o Plano de Manejo
da ESEC Serra Geral do Tocantins, a ser apresentado e pactuado com a Comissão de
Acompanhamento do TC e aprovado pela Coordenação Geral de Uso Público e Negócios
do ICMBio.
Além disso, a cláusula oitava aborda sobre as restrições, como a introdução de
espécies e variedades de plantas exóticas ao Cerrado, salvo aquelas costumeiramente
usadas pela comunidade para pastagem e que não têm apresentado capacidade de
expandir suas áreas de ocorrência na região do Jalapão, inserção de animais exóticos ao
Cerrado, exceto aqueles necessários à subsistência das famílias conforme previsto no TC,
arrendamento de pastos plantados ou de refrigério para gado de não-compromissários,
e repasse a terceiros de qualquer direito de uso antevido apenas para os quilombolas
compromissários.
Posteriormente, a Minuta do Termo de Compromisso passou pela análise técnica,
emitido o Parecer 00023/2018/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU (SEI 2657640), o qual
analisou a sua regularidade. Assim, de modo a apresentar justificativas técnicas, a
NOTA n° 00026/2018/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU (SEI 3325458), tratou sobre os
questionamentos levantados pelo Parecer anteriormente citado, o qual analisou a minuta
de Termo de Compromisso.
De modo a identificar a localização exata da incidência dos efeitos do termo de
compromisso, objeto de recomendação do Parecer 00023/2018/COMAF/PFE-ICMBIO/
PGF/AGU (SEI 2657640), foi editado o Mapa da Área de Incidência do TC no interior
da ESEC Serra Geral do Tocantins (Figura 02), evidenciando que não houve supressão
de áreas de terceiros, assim como, há áreas sob posse mansa e pacífica de alguns dos
compromissários há mais de trinta anos.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 166


Figura 02. Mapa da Área de Incidência do TC no interior da ESEC Serra Geral do Tocantins.
Fonte: SEI-ICMBio (2018).

Outro questionamento levantado no referido Parecer foi sobre a “fixação de prazo


para que indique ou promova uma solução definitiva da ocupação na EESGT, conforme
determina o parágrafo 8º do art. 9º da Instrução Normativa nº 26/2012”. Contudo, a Nota
explica que:
A área em questão encontra-se em processo de reconhecimento como
Território Quilombola. O ICMBio não tem competência para interferir no
prazo que possa vir a ser necessário para que o órgão competente (INCRA)
defina-se pelo atendimento ou não do pleito em questão. É fato que enquanto
vigorar esta situação inconclusa não temos como estipular prazo para uma
decisão do ICMBio a respeito desta porção da EESGT. Por outro lado, há
a necessidade de se fixar um prazo de vigência para o TC, de modo a se
deixar clara a transitoriedade do instrumento, o qual sugerimos, em função da
experiência pregressa, que seja de cinco anos. Se no decorrer desta vigência
o rito processual do reconhecimento do Território Quilombola for concluído,
pode ser necessária uma revisão do teor do TC, já que provavelmente haverá
fatos novos relevantes a modificar a situação jurídica do território, conforme
definido na Cláusula Décima Quarta. (SEI-ICMBio 3325458).

A questão fundiária foi citada pelos participantes da pesquisa, abordando que o


documento não se propõe a resolver essa dimensão do problema, contudo, enquanto não
houver a demarcação do território quilombola, em sobreposição ou não com a ESEC, o
desacordo não terá sido de fato “resolvido”, assim, o termo gestão do conflito se enquadre

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 167


melhor, já que não há clareza se mesmo com o território demarcado, as comunidades terão
pleno gozo de seus direitos em razão da justaposição com uma UC de proteção integral.
Em 2019 a Comissão de acompanhamento teve sua primeira Reunião (SEI-ICMBio
6756484), com objetivo de avaliação e monitoramento do TC, discutidas as permissões
descritas no documento. Dentre estas, foi observado que nenhum comunitário recorreu
máquinas, assim como não realiza visitação de base comunitária, embora o MPF-TO tenha
se colocado à disposição para colaborar na iniciativa de construção do projeto específico
exigido pelo termo.
Sobre o uso do fogo, cujo tema era o mais polêmico do monitoramento, foi
comentado que, devido o respeito às pactuações de queimas controladas e prescritas,
não houveram grandes incêndios oriundos do território quilombola. Dentre outros temas
abordados na reunião, foi citado estarem sendo assediados por proprietários que têm o
título da terra e que estavam sendo estimulados a assinar papéis que lhes dariam o direito
de uso de alguns hectares. O Dr. Álvaro alertou quanto a possibilidade de estar se tratando
de contratos no formato de comodatos e que era preciso ter cautela para ninguém assinar
nada que não se saiba a real finalidade.
Desta forma, foi consultado o Processo MPF/PR-TO n° 1.36.000.000947/2018-40,
instaurado com objetivo de acompanhar a execução das ações e obrigações assumidas no
Termo de Compromisso firmado entre o ICMBio e a ASCOLOMBOLAS RIOS. Sendo assim,
foi observado uma minuta de contrato de comodato que a associação ASCOLOMBOLAS
RIOS encaminhou ao MPF, cuja assinatura desse contrato supostamente daria o direito ao
suposto proprietário a promover a retirada dos membros da comunidade quilombola de seu
território depois de um ano, então referido despacho desta análise recomenda a todos os
membros da Comunidade Quilombola que não assinem o referido documento.
Embora o TC n° 14/2012 tenha apresentado uma essência de estado autoritário, o
instrumento propiciou maior aproximação entre o órgão ambiental gestor e a comunidade
quilombola, e as críticas expostas durante os processos de monitoramento do TC
contribuíram na revisão de normas que eram incompatíveis com o modo de vida das
comunidades, o que culminou na celebração do TC nº 04/2018, que se apresentou como
um instrumento internalizado de modo orgânico, sem contestação ou descumprimento de
cláusulas e sem conflitos entre as partes (BARRADAS; BORGES; COSTA, 2019).
Após este crescimento institucional possibilitado pelas trocas entre as partes
envolvidas no processo, TC n° 04/2018 apresentou como finalidade a tolerância do uso
do fogo para fins produtivos e de manejo de combustível/ecológico, diferentemente do
TC assinado em 2012, o qual disciplinava normas de uso do fogo somente para fins de
produção, além disso, dá ao cidadão o poder de controle de utilização do fogo, estimulando-o
ao manejo de base comunitária (BARRADAS; BORGES; COSTA, 2019).
Dentre as cláusulas expostas nos termos formados, uma delas é a instauração
de uma Comissão de Acompanhamento, a foi prevista desde a institucionalização do

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 168


TC n° 14/2012, expressa em sua quinta cláusula, à qual tem o “propósito de discutir e
acompanhar as ações necessárias ao cumprimento deste Termo, bem como propor
medidas para aprimoramento do TC” sob Coordenação do Ministério Público Federal –
MPF, Procuradoria da República no Estado do Tocantins. A IN ICMBio 26/2012, que versa
sobre o instrumento, posterior à pactuação em torno do TC no Jalapão, determina que esta
comissão seja instituída no âmbito do Conselho Consultivo da UC.
Segundo orientação do Conselho, e com o aval das partes envolvidas, a
comissão criada através do TC n° 14/2012 não contou com a participação do ICMBio e
da ASCOLOMBOLAS-RIOS, para garantir isenção nas decisões (LINDOSO; PARENTE,
2015). Contudo, houveram alterações importantes e significativas no TC n° 04/2018, o qual
manteve a constituição da Comissão de Acompanhamento, porém, sob Coordenação do
ICMBio, tendo como representantes o MPF/TO e ASCOLOMBOLAS-RIOS, desta forma, as
partes do TC passaram a integrar a comissão.
Verifica-se neste processo de institucionalização, o MPF sai do papel de interveniente
na celebração do TC e Coordenador da Comissão de Acompanhamento, conforme descrito
no TC n° 14/2012, para um acompanhante e representante na mesma comissão no TC n°
04/2018.
Segundo Lindoso e Parente (2015) a Comissão de Acompanhamento se apresenta,
conforme arranjo institucional definido pelo TC e pela IN ICMBio 26/2012, como um
mecanismo para resolução de conflitos, embora não explicitamente, porém, pode ser
visto na Cláusula décima do TC n° 04/2018 de modo mais transparente, quando atribui a
mesma a função de discussão de eventuais divergências sobre o pactuado, com vista a
um entendimento consensual, o que se caracteriza como uma medição extrajudicial, onde
há o incentivo às partes envolvidas para que encontrem o caminho de saída do labirinto
do conflito.

4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no exposto nesta pesquisa foi possível verificar o histórico de
implementação dos Termos de Compromisso (TC) firmados na Estação Ecológica Serra
Geral do Tocantins (ESEC Serra Geral do Tocantins), considerando-o como instrumento
na gestão dos conflitos existentes oriundos da sua criação sobre os territórios tradicionais
existentes.
Conforme demostrado, os principais conflitos descritos na literatura relacionam-se
ao uso do fogo, seja para fins produtivos ou de manejo do capim dourado e da paisagem,
além do conflito gerado a partir da sobreposição da área da Unidade de Conservação (UC)
com o território quilombola, reconhecido posteriormente a criação da UC pela Fundação
Palmares.
Contudo, verificou-se que apesar dos conflitos existentes entre as comunidades e

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 169


o órgão ambiental, foram levantadas diversas tentativas de resolução dos mesmos, porém
as tratativas culminavam na falta de experiência institucional e normativa sobre o assunto,
apesar da previsão no art. 39 do Decreto Federal 4.340/2002, que regula o art. 42 do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), que sejam firmados
TC.
Alguns marcos legais foram fundamentais para o avanço da implementação dos
TCs, como a publicação da Instrução Normativa/ICMBio n° 26/2012, que regulamentou o
art. 42 da Lei do SNUC, bem como o art. 38, II e §2° da Lei 12.651/2012 (Código Florestal),
que trouxe em seu texto a permissão do uso do fogo em conformidade com o respectivo
plano de manejo e mediante prévia aprovação do órgão gestor da UC, bem como, através
das práticas de prevenção e combate aos incêndios e da agricultura de subsistência
exercidas pelas populações tradicionais e indígenas.
Apesar da implementação do primeiro TC ter sido do modo participativo e contemplar
anseios das comunidades, como a permissão do uso do fogo para fins produtivos, embora
em área limitada, os conflitos não cessaram, e diversas cláusulas do primeiro TC foram
alteradas com objetivo de tolerância do uso do fogo para fins produtivos e de manejo de
combustível/ecológico, bem como o reconhecimento do protagonismo dos quilombolas no
manejo e fiscalização das ações, estimulando-se o manejo de base comunitária.
As principais cláusulas do TC n° 04/2012 identificadas nesta pesquisa, que foram
fundamentais para a gestão dos conflitos estão em torno do uso do fogo, da área de cultivo,
de produção e residência dos povos tradicionais, as quais garantem direitos fundamentais
em conformidade com a conservação ambiental. Além dessas, foram discutidas no
segundo termo sobre a assinatura do termo de adesão por descendentes, reconhecidos
em documento de genealogia elaborado para este fim, além das permissões de uso de
maquinário e sobre a introdução de espécies exóticas, bem como da visitação turística.
Verifica-se, com base no que foi exposto, que apesar da necessidade de normativas
que reconheçam direitos e deveres dos povos tradicionais residentes em UCs, é fundamental
o diálogo e o respeito aos modos de vida tradicionais de modo a estabelecer “contratos de
convivência” que considerem a história e cultura de um povo que vive em conformidade
com a natureza há centenas de anos.
O estabelecimento de Termos de Compromisso, que visa tal acordo, necessita ser
construído e implementado juntamente com as comunidades residentes, considerando a
legislação, mas também o modo de vida, a fim de garantir direitos fundamentais que todo
ser humano possui.
O atual TC da ESEC Serra Geral do Tocantins passou por um longo processo na sua
constituição de modo a obter o êxito que possui, com a confiança entre a equipe gestora,
comunidade e a cessação dos conflitos em torno do uso do fogo.
O amadurecimento de ambas as partes fora decisivo e primordial para tal avanço,
e hoje contam com um mecanismo para resolução de conflitos, a chamada Comissão de

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 170


Acompanhamento, instituída pelo próprio TC e que está sob Coordenação do ICMBio,
tendo como representantes o MPF/TO e ASCOLOMBOLAS-RIOS.
Tal comissão possui a função de discussão de eventuais divergências e se
caracteriza como uma medição extrajudicial, em que há o incentivo às partes envolvidas na
resolução de controvérsias de modo consensual.
Cabe ressaltar que cada UC possui suas características, objetivos e por
consequência conflitos específicos, e que embora para algumas o TC ainda não seja o
melhor meio de resolução dos conflitos socioambientais, o caso analisado nesta pesquisa
possui resultados positivos. Sendo assim, verificou-se que o TC implementado entre o
ICMBio e ASCOLOMBOLAS-RIOS possui hoje o papel de instrumento gestor dos conflitos
originados pela criação da ESEC Serra Geral do Tocantins, a qual vem tendo grande apoio
da comunidade nas ações de preservação e manejo da área através do conhecimento
tradicional.
Por fim, ressalta-se a necessidade de continuidade da pesquisa em torno do TC da
ESEC Serra Geral do Tocantins, em diversas frentes, seja como instrumento extrajudicial
de resolução de conflitos no modo de diálogo entre as partes, aprofundamento no
funcionamento da Comissão de Acompanhamento e suas demandas, contribuição do TC
para o reconhecimento de direitos fundamentais, dentre outros temas relevantes para as
instituições, bem como para a comunidade.

AGRADECIMENTOS
À Unitins, ICMBio/ESEC Serra Geral do Tocantins, MPF/TO e a ASCOLOMBOLAS-
Rios.

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Tocantins, Brasil. Trabalho de conclusão de Mestrado Profissional em Biodiversidade em Unidades de
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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 13 173


CAPÍTULO 14

CONCEITO DE FILIAÇÃO: ORIGENS E


EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILIEIRO

Data de aceite: 01/03/2023

Marília de Lourdes Lima dos Santos protection bias of family law was gradually
replaced by criteria of mutual affection. In this
sense, the Federal Constitution of 1988 was
decisive for, even before the edition of the
RESUMO: O presente trabalho visa analisar Civil Code of 2002, prohibiting the distinction
o conceito de filiação, que, conjuntamente ao between children due to origin. Still on the
conceito de família, passou por alterações subject of affiliation, new techniques of
relevantes. O viés da proteção patrimonial assisted reproduction constitute a source
do direito de família, paulatinamente foi of bonds that need regulation by law. In all
substituído por critérios de afeto mútuo. the context currently observed, the family
Neste sentido, a Constituição Federal de appears as an instrument, the environment
1988 foi determinante para, antes mesmo for the person to develop his existential
da edição do Código Civil de 2002, proibir a condition, in accordance with the prevalence
distinção entre filhos decorrente da origem. of the dignity of the human person.
Ainda sobre o tema filiação, novas técnicas KEYWORDS: Filiation; Family; Affection;
de reprodução assistida, constituem fonte and Dignity.
de vínculos que necessitam de regulação
pelo direito. Em todo o contexto observado
na atualidade, a família mostra-se como 1 | CONSIDERAÇÕES INICIAIS
instrumento, o ambiente para que a pessoa
desenvolva sua condição existencial, A noção tradicional de filiação
em conformidade com a prevalência da assenta-se na ideia de união entre uma
dignidade da pessoa humana. pessoa e aqueles que a geraram. Neste
PALAVRAS-CHAVE: Filiação; Família; sentido, Miranda conceitua a filiação
Afetividade; e Dignidade. como “a relação que o fato da procriação
estabelece entre duas pessoas, uma
ABSTRACT: The present work aims to
das quais nascidas da outra, chama-se
analyze the concept of affiliation, which,
together with the concept of family, has paternidade, ou maternidade, quando
undergone relevant changes. The heritage considerada com respeito ao pai, ou à

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 174


mãe, e filiação, quando do filho para qualquer dos genitores” (MIRANDA, 2000, p. 45).
A evolução das técnicas de reprodução, somada às modificações na estruturação
da família moderna, nada obstante, alteraram o instituto ora discutido, promovendo o
desenvolvimento de novos conceitos relacionados à paternidade e maternidade. Desse
modelo, ressalta-se a transformação observada na legislação brasileira e na jurisprudência
dos Tribunais Superiores, a fim de responder às demandas da sociedade.
É de grande importância a análise dos institutos do Direito Civil a partir das suas
origens na antiga Roma. O modelo clássico da família romana centrava-se na autoridade
do pater familias, o ascendente do sexo masculino mais velho. Esse era o chefe do
culto doméstico, fator determinante da união familiar. Incumbia ao chefe do culto familiar
reconhecer os filhos, de forma que nem o critério biológico prevalecia à autoridade do pater
famílias, porque ele tinha o poder para excluir do culto familiar os próprios filhos e incluir
estranhos sob seu o julgo.
Boscaro (2002) assevera que a vontade do chefe era a principal fonte dos direitos
assegurados a seus integrantes, uma vez que dispunha ele mesmo do poder de vida e de
morte sobre tais membros. A esposa também tinha seu destino subjugado ao do chefe da
família, não exercendo poder sobre os filhos.
Importante esclarecer que a supremacia do pater familias não se deve à simples
supremacia do poder masculino; decorre, na verdade, da prevalência dos interesses
econômicos da relacionados à proteção da propriedade privada e dos interesses da família
como instituição. Assim, os laços matrimoniais não se fundavam na afeição, mas por
interesses econômicos, ao passo que o reconhecimento dos filhos visava à sucessão da
fortuna materna. A subserviência ao pater centrava-se no esforço comum de construção e
conservação de um patrimônio.
No Império de Justiniano, no entanto, prevaleceu a idéia de que se o filho era
concebido na constância de um matrimônio, não necessitaria do reconhecimento
paterno para ingressar na família. Haveria presunção de ser a esposa mãe e o marido
pai. A importância dos laços consanguíneos sobressaiu em relação aos demais, os quais
acabaram por prevalecer no Direito moderno.
Ademais, a expansão do Império Romano possibilitou maior independência dos filhos
em relação ao poder paterno. Havia necessidade de soldados dispostos a empreender a
conquista de novos territórios e pessoas interessadas em realizar colonização das terras
conquistadas. O crescimento da importância do Estado Romano também propiciou essa
independência, tendo em vista a formação de uma justiça estatal que limitava o pátrio
poder. “Os filhos pertencem à República, antes de pertencerem aos seus pais.” (DANTAS,
1991, p. 373).
No que tange ao Direito moderno, conforme o exposto, o critério da consanguinidade
predominou sobre os demais. Prevalecia o entendimento de que a maternidade era sempre
certa, enquanto a paternidade sempre incerta. Contudo, a evolução da ciência tornou

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 175


possível a prova da paternidade pelo critério da consanguinidade.
Desta maneira, na família tradicional os laços sanguíneos embasam as relações,
que prevaleciam em detrimento aos laços afetivos. A prova obtida por exames genéticos,
que determinam com precisão a ligação biológica, no entanto, podem não corresponder
à verdade fática. Diante desse contexto, a filiação já tem sido encarada com diferentes
enfoques, quais sejam, o biológico, o jurídico e o socioafetivo.
Por fim, importante destacar a carga social relacionada às questões decorrentes da
filiação. Neste sentido, cita-se a legitimação de filhos havidos fora do casamento, frutos de
incesto e de quaisquer situações reprovadas socialmente.

2 | EVOLUÇÃO DA FILIAÇÃO NO ORDEMANENTO JURÍDICO NACIONAL


A Constituição Federal de 1988 representa um marco para a situação jurídica do
filho no Direito brasileiro. Suas disposições modificaram os antigos paradigmas da questão
da filiação, ao igualar todos os filhos. Nesse contexto, é necessário destacar a evolução
legislativa da filiação, enfatizando os pontos mais importantes desta trajetória.
Em 1847, a filiação começou a ser tratada pelo ordenamento jurídico nacional, visto
que até então vigorava o sistema português, disposto nas Ordenações Filipinas. Nesse ano
foi elaborada a Lei n.º 463, para extinguir a diferenciação antes existente entre filhos de
nobres de plebeus, chamados peões, estabelecendo regras idênticas para essas classes
no que tange aos direitos hereditários.
A primeira disposição acerca da prova da filiação, por sua vez data de 1890, no
Decreto n.º 181, o qual regulamentou o casamento civil, previa que a filiação ilegítima só
poderia ser provada através da confissão espontânea do suposto pai, ao passo que os
filhos naturais seriam provados por confissão ou pelo reconhecimento feito em escritura
pública ou outro documento emanado pelo pai.
A filiação natural decorria da procriação, podendo ser legítima ou ilegítima, tendo
em vista a constância ou não de casamento. A filiação ilegítima, por sua vez, poderia ser
natural, não havendo impedimento para um casamento, ou espúria, quando decorresse de
adultério ou incesto. Havia, ademais, a filiação civil decorrente da adoção.
Outro marco na evolução da legislação concernente à filiação foi a publicação do
Código Civil de 1916, que estabelecia regras rígidas para a determinação da filiação,
negando a possibilidade investigação da paternidade, tanto voluntária quanto judicial, em
relação aos filhos incestuosos e adulterinos. Apenas para fins de alimento tal investigação
seria possível.
A Constituição Federal de 1937 igualou os filhos naturais aos legítimos, referente aos
direitos e deveres dos pais. Ressalta-se que não constava nesse rol de filhos reconhecíveis
os chamados espúrios. Já pelo Decreto-Lei n.º 3.200, ficava proibida a qualificação do filho
na certidão de nascimento, salvo por pedido do interessado ou por determinação judicial.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 176


A Lei n.º 883 de 1949, possibilitou aos filhos naturais a investigação da paternidade,
negando-a, no entanto, para os adulterinos, o que só poderia ser feito depois de dissolvida
a sociedade conjugal ou a separação de fato por mais de cinco anos consecutivos. Em
1977, foi permitido o reconhecimento de filho na constância do casamento, por meio de
testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, sendo essa parte
irrevogável. A referida lei dispunha, sobre a questão da sucessão, in verbis: “Art. 2º O filho
reconhecido na forma desta Lei, para efeitos econômicos, terá o direito, a título de amparo
social, à metade da herança que vier a receber o filho legítimo ou legitimado.”
Já a Lei n.º 6.515, de 1977, extinguiu a diferenciação entre os filhos, garantindo
os mesmos direitos a todos: “Art. 51º Qualquer que seja a natureza da filiação, o direito à
herança será reconhecido em igualdade de condições.”
Delineou-se a situação jurídica dos filhos antes da promulgação da Constituição
Federal de 1988. A família passa a ser considerada a base da sociedade, merecendo grande
atenção do Estado. Foi assegurada a proteção aos filhos, sem haver diferenciações. Assim,
importante destacar o artigo 227, abaixo transcrito:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,


terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação.”

Neste contexto, ressalta-se a importância da Lei n.º 7.841, de 1989, a qual tornou
possível o reconhecimento de filhos ilegítimos mesmo na constância do matrimonio, assim
como a realização da investigação de paternidade ou maternidade. Da mesma forma, o
Estatuto da Criança e do Adolescente destaca a importância da tutela da formação da
personalidade do menor, prevalecendo, até mesmo sobre a vontade dos pais, com o
controle direto sobre a educação do menor.

3 | A FILIAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002


A Lei Nº 10.406/2002, Código Civil Brasileiro, em harmonia com Constituição
Federal, consagrou a igualdade de direitos e qualificações entre os filhos, assim como
proibiu qualquer designação discriminatória em relação à filiação. No entanto, manteve
a distinção entre filhos havidos ou não na constância do casamento, determinando a
presunção de paternidade dos filhos concebidos sob a égide matrimonial.
Desta feita, cabe transcrever as disposições do Código Civil sobre a presunção da
filiação:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 177


“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a


convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade


conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,


decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia


autorização do marido.

Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto
no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum
filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos
dias a contar da data do falecimento deste e, do segundo, se o nascimento
ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do
art. 1597.”

Observa-se que o novo Código civil acrescentou as hipóteses de fecundação artificial


homóloga, mesmo que falecido o marido ou a esposa, a qualquer tempo, desde que se
trate de embriões excedentes. A fecundação artificial heteróloga, por sua vez, depende do
prévio consentimento do marido. Essa inovação decorre da concepção de novas técnicas
de reprodução inseridas na sociedade, a respeito das quais se observa uma lacuna no
ordenamento jurídico.
O artigo 1.598 do Código Civil introduz uma nova situação em que se verifica a
presunção de paternidade concernente à situação em que a viúva está grávida a época
do falecimento do marido, considerando para tanto um lapso temporal de trezentos dias,
a partir do falecimento. Trata, ademais, da hipótese em que o casamento vem a ser
considerado nulo ou anulado, ainda que ambos os cônjuges tenham contraído sem boa-
fé, e tendo a mulher contraído novas núpcias, o filho será considerado do primeiro marido
desde que nasça até trezentos dias após o fim da sociedade conjugal.
O dispositivo supracitado, contudo, vai de encontro ao disposto no artigo 1.523,
também do Código Civil, que proíbe o casamento nos casos indicados acima. Nesses
casos, devem ser aceitas contestações de paternidade, sendo imprescritível tal ação.
A presunção exposta nas linhas acima pode ser ilidida, caso seja provada a
impotência do cônjuge para gerar a época da concepção. Não ilide tal presunção, nada
obstante, o adultério da mulher, ainda que confesso, nem mesmo a negação materna da
paternidade.
Apesar da dicção legal, a jurisprudência tem entendido que a presunção de
paternidade deve sofrer em alguns casos restrições. Estendeu-se ao filho o direito
de requerer a retificação da filiação, através da ação negatória, direito este previsto
privativamente para o pai presumido. Ademais, considerou-se personalíssimo o direito ao

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 178


reconhecimento do estado de filiação, não havendo mais prazo decadencial para propor a
ação negatória de paternidade.
A prova da filiação se dá pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro
Civil. Apenas em casos de erro e falsidade do registro é permitido questionar o que nele
está prescrito. Na ausência do termo de nascimento ou de erro, é permitido provar a filiação
por todos os meios permitidos pelo direito. Neste sentido, até mesmo o fornecimento de
alimentos estabelece a presunção de paternidade.

4 | FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO


A evolução da ciência e das relações sociais impôs ao Direito a necessidade de
rever antigos paradigmas. O desenvolvimento da reprodução artificial e as inúmeras
possibilidades dela decorrentes, somadas as novas formas de família forjadas na
sociedade, que alteram o padrão da família tradicional trazem conseqüências jurídicas,
afinal, o Direito deve corresponder aos valores e necessidades sociais antecedentes. Desta
feita, necessário se faz tratar mais detidamente dos temas supra relacionados.

4.1 Reprodução assistida


A reprodução assistida é uma realidade que deve ser observada pelo Direito. O
desejo de transmitir um legado está ínsito na natureza humana. Desta feita, métodos
de fertilização assistida passam a ser a única solução para os casos em que haja
impossibilidade de reprodução pelos meios naturais. Exemplos não faltam para demonstrar
a precariedade do Direito pátrio para fazer jus a tais inovações. Desse modo, por meio da
reprodução medicamente assistida é possível conceber um filho com duas mães, através
da inserção em um espermatozóide da carga genética de uma mulher, ou mesmo com
dois pais. Também é uma realidade a possibilidade de a avó dar à luz um neto, além do
congelamento do sêmen. As hipóteses, na realidade, são inúmeras.
Sabe-se que o Direto tem o objetivo de buscar soluções para as demandas sociais.
Urge a necessidade de aproximar o Direito da bioética a fim de encontrar soluções
adequadas para questões de tamanha complexidade. Cabe destacar as hipóteses mais
relevantes de reprodução assistida e as consequências no direito à filiação, isto sob o
enfoque da bioética.
A inseminação artificial homóloga caracteriza-se pela coleta de material genético
dos cônjuges, já na inseminação artificial heteróloga, utiliza-se material genético de,
pelo menos, um terceiro, distinto da relação conjugal. Na inseminação artificial heteróloga,
não há presunção de paternidade, porque se utiliza material genético de pessoa distinta da
sociedade conjugal.
Na inseminação artificial homóloga, por sua vez, tendo em vista que o material
genético é do casal, uma vez realizado o procedimento, não há possibilidade de negar a

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 179


filiação. A inseminação deve ocorrer durante o casamento, mas caso ocorra após o término,
haverá presunção de paternidade.
O Código Civil, artigo 1.597, inciso IV, trata da presunção de paternidade no que
tange aos embriões excedentes, ou seja, para configurar tal presunção é necessário que
tenha ocorrido uma inseminação anterior, da qual restou o embrião, caso contrário, não
haverá presunção. Tal raciocínio, contudo, não é unânime na doutrina, pois há quem
considere o termo excedentário, empregado pelo legislador, mero equívoco terminológico
(WALTER, 2003).
Outra questão de destaque relacionada à inseminação homóloga tange à possibilidade
de a mulher decidir a qualquer tempo gerar um filho decorrente de relacionamento anterior,
mesmo que o cônjuge tenha falecido ou ocorra a separação. Desta feita, o Código Civil
estaria admitindo a família monoparental, formada pela mãe ou pelo o pai e o filho.
Discute-se, ainda, o direito de a pessoa conhecer suas origens genéticas,
notadamente à luz das técnicas de reprodução artificial. Na Alemanha, por exemplo,
prevalece a posição que concerne esse, como um direito da personalidade. No Brasil, Caio
Mário Pereira (2006) considera que o direto ao nome civil, com destaque para o nome de
família, é um direito de natureza pessoal e integraria a personalidade.
Tantas outras questões poderiam ser expostas, assim como extensos argumentos,
contudo, este trabalho não tem o objetivo de exaurir o assunto, mas apenas alertar para a
emergência do tema.

4.2 Filiação socioafetiva


Questão de suma importância diz respeito à dicotomia entre filiação biológica e
afetiva. Ascende a importância dos vínculos afetivos o afeto que deve unir pais e filhos. A
família deixa de ser um conjunto de pessoas unidas por laços sanguíneos e passa a ser a
família sociológica, totalmente voltada para a realização da felicidade de seus membros.
Não é o individuo que existe para a família, mas, sim, esta que existe para suprir seus
anseios e alcançar a felicidade.
Os exames de investigação de paternidade apontam com precisão os pais biológicos,
ao passo que o ordenamento jurídico oferece o arcabouço necessário para cobrar deles a
responsabilidade patrimonial. No entanto, o afeto, imprescindível para a formação de uma
criança, a lei não pode impor. Surge, assim, a questão: quem deve ser considerado pai ou
mãe?
Fala-se em posse do estado de filho, “aquela relação afetiva íntima e duradoura,
que decorre de circunstâncias de fato, situações em que uma criança usa o patronímico
do pai, por este é tratado como filho, exercitando os direitos e deveres inerentes à
filiação” (NOGUEIRA, 2001, p. 85). Pugna-se pela elevação do afeto à categoria de valor
juridicamente relevante.
A essa postura, contrapõem-se aqueles que consideram o afeto como elemento

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 180


fático, que é destacando a possibilidade de diluição de tais laços com o passar do tempo,
carecendo de dados objetivos para sua consideração na construção dos laços filiais, visto
que a desconstituição de tais laços não é possível.
Os Tribunais Superiores têm se posicionado pela possibilidade de concomitância de
vínculos afetivos e biológicios, conforme se infere do tema de Repercussão Geral nº 622
do STF:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede
o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem
biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”

Da breve análise realizada acerca do tema, conclui-se que ele é de suma importância
e merece maior atenção da doutrina, e principalmente do legislador, a fim de suprir a lacuna
existente no ordenamento jurídico pátrio.

REFERÊNCIAS
BATISTA, Silvio Neves. Ensaios de direito civil. São Paulo: Método, 2006.

BOSCARO, Márcio Antonio. Direito de Filiação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

DANTAS, San Tiago. Direitos de família e das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

DIAS, Maria Berenice. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. 3. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000.

NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor
jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 16. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

WALTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológicas e socioafetivas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 14 181


CAPÍTULO 15

VÍNCULO NAS RELAÇÕES AFETIVAS NÃO


REGULAMENTADAS POR LEI: ANÁLISE COM
ÊNFASE NA RELAÇÃO SUGAR

Data de aceite: 01/03/2023

Gabriela Orlando Marin direitos como se fossem companheiros um


Graduanda do 9º semestre do curso de do outro, da mesma forma que na união
Direito na Universidade Católica Dom estável. Para compor o trabalho foi utilizada
Bosco (UCDB) também uma pesquisa populacional com
o intuito de melhor conhecer a opinião dos
participantes, para buscar uma solução que
Este artigo é resultado de trabalho de conclusão siga o ordenamento jurídico brasileiro e que
de curso apresentado à Universidade Católica seja justa para aqueles que contraem esse
Dom Bosco, sob a orientação metodológica do tipo de relacionamento.
Prof. Dr. José Manfroi e orientação temática
PALAVRAS-CHAVE: 1. Relações afetivas;
da Profª. Me Carla Mombrum de Carvalho
Magalhães, como requisito parcial para obtenção 2. Relacionamento sugar; 3. União estável;
de grau de bacharel em Direito da Universidade 4. Direito de família brasileiro; 5. Evolução
Católica Dom Bosco.
do direito de família.

ABSTRACT: This work about affective


RESUMO: Este trabalho sobre as relações relationships not regulated by law, with
afetivas não regulamentadas por lei, com emphasis mainly on the sugar relationship,
ênfase principalmente na relação sugar, aims to analyze how relationships have
tem como finalidade analisar a forma been formed and also the developments
como os relacionamentos foram sendo that have suffered until the present time, in
formados e também as evoluções que which the sugar relationship is gaining more
sofreram até o presente momento, no qual, and more space and knowledge in the day
o relacionamento sugar vem ganhando to day of society, In this way it has become,
cada vez mais espaço e conhecimento for many, a new type of family, which has
no dia a dia da sociedade, de forma que generated some disputes in the Judiciary,
o mesmo fosse se tornando, por muitos, where the parties to this relationship seek to
uma nova modalidade de família, o que enforce and prove their rights as if they were
vem gerando alguns embates no âmbito each other’s partners, just as in the stable
do Poder Judiciário, onde as partes dessa union. To compose the work, a population
relação buscam efetivar e comprovar seus survey was also used to better understand

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 182


the opinion of the participants, in order to seek a solution that follows the Brazilian legal
system and that is fair to those who contract this type of relationship.
KEYWORDS: 1. Affective relationships; 2. Sugar relationships; 3. stable union; 4. brazilian
family law; 5. evolution of family law.

1 | INTRODUÇÃO
O presente artigo cientifico aborda a relação sugar em especial quanto a
possibilidade da configuração da união estável a partir desse relacionamento. A relação
sugar já existe há vários anos, entretanto, passou a ser mais conhecida a partir do ano
de 2015, principalmente em razão da sociedade viver agora em um mundo extremamente
imediatista e solitário, motivo pelo qual esse relacionamento se tornou tão popular, uma
vez que os desejos, esses não necessariamente sexuais, são satisfeitos em pouquíssimo
tempo.
É sabido que desde os primórdios da humanidade, os homens passaram a
estabelecer relações afetivas, sendo essa uma das principais razões pela qual a espécie
se desenvolveu tão esplendorosamente, ocorre que, nesse tempo, as relações eram em
sua maioria, senão em sua totalidade, apenas para reprodução, porém, com o desenvolver
humano, as pessoas começaram a possuir interesse romântico umas às outras,
transformando as relações puramente estratégicas em relações de afeto mais profundo.
Durante muitos anos, foram vistas sociedades que enxergavam as relações,
especialmente o casamento, como uma forma de negócio, onde o matrimonio era arranjado
com o intuito financeiro e até mesmo tático, nos casos das antigas monarquias, que uniam
seus sucessores com a finalidade de firmarem uma aliança.
Conforme o avanço da raça humana foi ficando mais promissor e futuroso, os
indivíduos foram cada vez mais se impondo e não mais aceitando uniões ajeitadas, agora
unindo-se aos seus parceiros por vontade própria e em decorrência do afeto e da vontade
de permanecerem juntos com a finalidade de constituírem família, sendo que com esse
avanço e com a evolução do corpo social, diversos institutos familiares foram surgindo.
Uma vez que o Direito de Família passou a aceitar diversas modalidades de família,
a presente pesquisa visa desvendar se esse novo modelo de relacionamento será aceito
como uma nova entidade e quais os efeitos que dela decorrerão, dado que tal prática vem
sendo cada vez mais adotada, podendo vir a ser uma nova alternativa, assim como a união
estável foi para o casamento.

2 | FAMÍLIA
A família, no entendimento mais primitivo, é aquele grupo de indivíduos que são
ligados pelo sangue e que normalmente residem na mesma casa. De imediato, ao ser
mencionada a palavra família, essa é a imagem visualizada, entretanto, após o decorrer de

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 183


um certo tempo e talvez após um estudo mais aprofundado, a imagem da família passa a
se desenvolver, deixando de ser apenas essas pessoas que moram em uma mesma casa.
Essa primeira ideia de família é assim tão consolidada porque ao realizar buscas
nos dicionários, em sua grande maioria, a definição apresentada é “grupo de pessoas que
vivem sob o mesmo teto”, ou ainda “grupo de pessoas que possuem ancestralidade em
comum”, o que não quer dizer que estejam erradas, porém o instituto familiar vai muito além
de morar na mesma casa ou possuir os mesmos ancestrais.
Para o professor Pedro Menezes (MENEZES), “a família representa a união entre
pessoas que possuem laços sanguíneos, de convivência e baseados no afeto”, entretanto,
ele afirma não se tratar de um conceito engessado e que pode sofrer alterações, da mesma
maneira que já foi alterado com o passar do tempo.
Para Francisco Porfírio (PORFIRIO), o conceito de família pode ser abordado da
seguinte maneira “A família, além de uma antiga instituição social, é um agrupamento de
seres humanos, que se unem pelo laço consanguíneo e pela afinidade, ou seja, a família
é composta por pessoas que têm o sangue em comum ou que se unem porque gostam
umas das outras”.
Ainda, Maria Alice Zaratin Lotufo (2002, p. 22) faz a seguinte alusão sobre a família
Entre nós, entende-se a família, de forma genérica, o grupo formado por todas
aquelas pessoas ligadas pelo parentesco seja consanguíneo, civil ou por
afinidade. Em uma outra acepção, um pouco mais limitada, entende-se que
a família é composta somente por pessoas ligadas por vínculo de sangue.
Restritamente, contudo, significa o núcleo formado pelo pai, mãe e sua prole,
derivada do casamento, da união estável, da formação monoparental ou da
adoção. Por outro lado, no que tange ao direito sucessório, a família abrange
o parentesco em linha reta até o infinito e a colateral até o quarto grau, ou seja,
não ultrapassa os primos-irmãos. No entanto, o direito de família é mais amplo,
não se refere somente às relações entre pessoas ligadas pelo parentesco,
mas também a outras figuras que fazem parte do direito assistencial, como
forma de assegurar proteção àqueles indivíduos.5 (LOTUFO, 2002, p. 22).

A Constituição Federal de 1988 traz em seu artigo 226, §4º a sua própria definição
de família “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 4º
Entende- se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais
e seus descendentes” (BRASIL, 1988).
Conforme Carlos Alberto Maluf e Adriana Caldas Maluf (2018) mencionam em sua
obra, o conceito de família possui um viés mais abrangente, sendo que para esses autores,
para uma definição mais próxima do que é família é necessário analisar
[...] o momento histórico e cultural que as relações se encontram inseridas,
pois a face da família mudou, no decorrer do tempo histórico, “avançando e
retrocedendo, conservando-se e alterando-se, reinventando-se, enfim, para
buscar, na atualidade, a recepção incondicional do ser humano, tendo em vista
suas necessidades, possibilidades e preferencias valorativas, contemplando
como objetivo maior o pleno desenvolvimento de sua personalidade,
potencialidades, em face de sua intrínseca dignidade, visando o alcance da

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 184


felicidade e do bem-estar social. (MALUF, 2018, P. 27).

Portanto, a maior parte das definições de família desenvolvidas pelos mais diversos
autores serão baseadas, em primeira instância, no artigo da Carta Magna, que desenvolveu
tal conceito com base na realidade vivida até o momento de sua promulgação, há trinta
anos atrás, ficando, por óbvio, defasada, tendo em vista que esse instituto acompanha
as frequentes transformações sofridas pela sociedade, porém, alguns outros autores já
demonstram um olhar mais límpido para a influência social, cultural e histórica dentro do
instituto da família.

2.1 Evolução histórica da família


A entidade familiar surgiu de maneira inesperada, por assim dizer, sendo que os
primeiros homens sequer pensavam em seus parceiros de forma amorosa, buscando
apenas a procriação e o aumento de pessoas na terra e também a defesa de seus territórios,
não havendo nenhum tipo de afeto entre os participantes da relação. Ocorre que a cultura
humana sofreu diversas mudança e, em determinado momento, surgiu o carinho como
integrante desse acordo que era firmado entre as pessoas, o que foi sendo aprimorado até
o que é conhecido hoje como família.
A estrutura familiar como é conhecida atualmente tem origem principalmente no
direito romano e no direito canônico, e essa estrutura é perpetuada até hoje como a mais
prestigiada e respeitável forma de família.
No direito romano a família era regida através do poder pátrio, isto é, todos os
integrantes da unidade familiar eram submissos ao chefe da casa, que era sempre o
homem, não se admitindo mulheres no comando. Aurea Pimentel Pereira (1991) trata
dessa estrutura familiar da seguinte forma:
Sob a auctoritas do pater familias, que, como anota Rui Barbosa, era o
sacerdote, o senhor e o magistrado, estavam, portanto, os membros
da primitiva família romana (esposa, filhos, escravos) sobre os quais
o pater exercia os poderes espiritual e temporal, à época unificados. No
exercício do poder temporal, o pater julgava os próprios membros da
família, sobre os quais tinha poder de vida e de morte (jus vitae et necis),
agindo, em tais ocasiões, como verdadeiro magistrado. Como sacerdote,
submetia o pater os membros dafamília à religião que elegia. (PEREIRA,
1991, p. 23).

A família romana, portanto, era entendida basicamente como um todo unitário, onde
nela se bem satisfaziam todas as necessidades, como por exemplo a economia, religião, e
política. Tudo o que os integrantes um dia precisariam, poderiam encontrar em sua própria
família, que era sempre regida pelo homem provedor, por assim dizer.
Após os gloriosos tempos romanos, foi a época de o direito canônico entrar em
ascensão, direito esse que tem como premissa os regulamentos consumidos pela Igreja,
ou seja, passou a legislar sobre a vida dos cristãos, tendo em vista que o cristianismo

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 185


passou a ser a religião mais praticada no mundo.
No direito canônico, a família assumiu a feição de ser o grupo formado pelo casal,
esse heterossexual, e os filhos advindos dessa união, sendo fundada no matrimônio. Ou
seja, a partir do momento em que a Igreja deteve certo tipo de poder sobre o Estado,
as relações para a questão familiar deveriam seguir o rito do casamento, para que a
consumação não fosse contrária ao que pregava as leis básicas.
Jacqueline Filgueiras Nogueira (2001) define a família canônica como sendo a
seguinte:
[...] na Idade Média, embora houvesse a presença de muitos institutos do
direito romano antigo, as famílias regeram-se exclusivamente pelo direito
canônico, de modo que, entre os séculos X e XV o casamento religioso foi o
único reconhecido, sendo o vínculo indissolúvel entre o homem e a mulher,
do qual resultavam os filhos legítimos. A igreja transformou a família numa
verdadeira instituição religiosa, isto é, “ela própria é igreja em miniatura”, com
um local de culto, hierarquizada, dominada pela figura paterna, onde homens,
mulheres e crianças tinham lugares e funções determinadas; baseava-se
na mútua assistência de seus integrantes, na qual a função procriativa era
exclusiva da família fundada no casamento.

Na família canônica o homem ainda é visto como o chefe, entretanto, a mulher


já adquire mais autonomia, liberdade e influência na relação, sendo, agora, vista como
parte da união, porém ainda é mantida em segundo plano no que concerne a tomada de
decisões, visto que o homem era o provedor financeiro, e então possuía força diante das
vontades da casa.
Durante o período canônico ocorreram inúmeras revoluções, principalmente a
Revolução Francesa, onde as pessoas buscavam quase que totalitariamente a igualdade e
liberdade, sendo esse anseio trazido para dentro das famílias, onde as mulheres buscavam
força para se valerem das suas vontades e também para que suas opiniões fossem ouvidas.
Diante disso, o casamento de uma forma geral deixou de ser obrigatoriamente de
acordo com os tramites da Igreja, a partir desse momento as pessoas buscavam serem
livres de forma geral, e o compromisso do matrimônio já não era mais tão importante,
bastaria que ambas as partes demonstrassem a vontade de estarem juntas para que de fato
estivessem, sem se prender em amarras documentais e burocráticas, vivendo, portanto, a
vontade que lhes surgia no momento, formando famílias de acordo com suas preferências
e com o que imaginavam ser o amor.
Ainda hoje, após um longo aperfeiçoamento das ideias, a maioria das pessoas não
demonstram grande conforto ao se verem diante de uma situação em que possa minguar
sua liberdade, talvez seja o que as pessoas mais prezam neste momento, então, acabam
por se afastarem de compromissos eternos que requeiram documentos como forma de
prova, elas apenas se sentem confortáveis e se instalam naquele lugar aconchegante que
agora é chamado de família.
O instituto familiar deixou de ser aquele em que o homem exerce o poderio ou

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 186


até mesmo o formado apenas pelo casamento, passou a ser a união de pessoas que
se sentem felizes umas com as outras, que buscam satisfazer a necessidade básica do
ser humano em dividir sua vida com outra pessoa, mas de forma simples e sem regras
extremamente delineadas. Isso nada quer dizer que o casamento tenha se encerrado de
forma definitiva, pelo contrário, ainda sim é imenso o número de famílias que são formadas
pela forma tradicional, seja porque sentem que esse seja o correto, seja porque apenas
estão seguindo um costume.
Dessa forma, fica claro que a família, desde o momento em que passou a ser
entendida dessa maneira, sofreu incontáveis mudanças e aperfeiçoamentos, para que
se enquadrasse da melhor guisa diante da necessidade humana, permanecendo apenas,
durante todas as transformações, como a vontade de permanecer na companhia de outra
pessoa.
Foi então instituída a união estável, onde os indivíduos seguem perfeitamente
a atual ideia de casal. Na união estável, de forma simplificada, os entes da relação se
juntam pelo amor, afeto ou carinho uns pelos outros, entretanto, diferente do casamento,
nessa relação não há a mesma burocracia, as pessoas só decidem que querem passar
a vida juntas, como um casal, e então se unem sem que nada os impeça e sem nenhum
documento físico que comprove.

3 | DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO


Sabe-se que antigamente a família somente era formada através do casamento
sacramentado, à vista disso, o antigo Código Civil vigente, o de 1916, originado ainda no
século passado, considerava também a família, de acordo com os costumes da época,
aquela estabelecida exclusivamente pelo casamento, não fugindo do que era considerado
correto.
Nesse tipo de esposório era inadmissível a dissolução conjugal, assim, uma vez
contraído o matrimonio com uma pessoa, a vida seria eternamente com ela, pois de
acordo com a Igreja, os nubentes eram feitos um para o outro, sendo também impossível
vínculos extramatrimoniais, bem como os filhos advindos dessa relação eram considerados
ilegítimos.
De acordo com a obra de Maria Berenice Dias (2011, p. 30), o instituto familiar
sofreu profundas e frequentes transformações ao longo da história. Primordialmente, como
já aludido, a mulher não possuía autonomia dentre do casamento, porém, no ano de 1962
foi outorgado o Estatuto da Mulher Casada que, conforme Maria da Graça Gonçalves Paz
Miranda (2013)
[...] garantia entre muitas coisas que a mulher não precisaria mais pedir
autorização ao marido para poder trabalhar, receber herança e no caso de
separação poderia solicitar a guarda dos filhos. (MIRANDA, 2013, p. 06).

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 187


Com a citação de Maria da Graça passa a ser possível identificar que o casamento
deixa de ser indissolúvel, pois a mulher “no caso de separação poderia solicitar a guarda
dos filhos”, demonstrando mais uma modificação da família. Surge então, de forma
regulamentada, conforme a Emenda Constitucional nº 9/77 (1977), a possibilidade do
divórcio, sendo o texto legal o seguinte
Art. 1º O § 1º do artigo 175 da Constituição Federal passa a vigorar com a
seguinte redação:

“Art. 175 - ..........................................................................

§ 1º - O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em


lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.

Art. 2º A separação, de que trata o § 1º do artigo 175 da Constituição, poderá


ser de fato, devidamente comprovada em Juízo, e pelo prazo de cinco anos,
se for anterior à data desta emenda. (BRASIL, 1977).

Então, em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, após novas


reformas familiares, bem como o advento do feminismo, homens e mulheres passaram
a serem iguais perante a lei em qualquer repartição, inclusive dentro da família. Ficou
também estatuído a união estável, agora de modo indiscutível, além das famílias formadas
por um dos pais e seus filhos, adquirindo o nome de família monoparental.
Após a Constituição Federal, surgiu ainda o mais novo Código Civil (2002), que
foi implementado, no tocante ao direito de família, para terminar de refinar as novas
concepções de família. Ainda, para Pollyana Ferreira Lisboa Paim Costa (2021)
O Código Civil de 2002 veio trazendo diversos avanços pro conceito de direito
de família, celebrando os diversos arranjos familiares, introduzindo normas
e princípios constitucionais antes nem mencionados. A mudança do código
civil foi resultante das transformações que a constituição de 88 trouxe, porém
de forma complementar e abrangente, buscava-se então abarcar os direitos
fundamentais. (PAIM, 2021, p. 80).

Portanto, a família agora passa a ter essa modernidade fomentada pelos códigos
atualmente vigentes.

4 | UNIÃO ESTÁVEL
Os vínculos afetivos, como já aludido, eram formados, preliminarmente, apenas com
o instituto do casamento, porém, com as sucessivas e ininterruptas transfigurações pelas
quais a sociedade passou, esse entendimento também sofreu atualizações.
Surgiu então o conceito de união estável, que como bem expressa seu nome, é a união
de duas pessoas como se casal fossem, mas sem o nexo contratual do casamento. Essas
duas pessoas possuem a vontade de permanecerem juntas, mas não necessariamente
com o regimento do matrimônio.
Esse tipo de união surgiu para regulamentar o chamado concubinato, que era a

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 188


denominação para as pessoas que mantinham uma relação que não era formada pelo
casamento, ou seja, era considerada uma união ilegal.
O concubinato muitas vezes ocorria porque, como não havia a possibilidade de
separação das pessoas que contraiam o casamento, essas se uniam a outra pessoa,
depois de demonstrado que não possuíam mais interesse em permanecerem juntas,
mesmo estando casadas no papel com aquela primeira. Então, de maneira mais popular,
o concubinato ficou conhecido como amante, justamente pelo fato de que duas pessoas
iniciavam um relacionamento sem que o anterior pudesse ser encerrado.
Com a implantação da união estável, a abordagem da relação como concubinato
não é mais utilizada, ficando apenas no conhecimento comum. Portanto, o papel primordial
da união estável é regulamentar os relacionamentos contraídos sem o casamento, mas
diferentemente do concubinato, a união estável não ocorre durante a vigência de um
outro matrimônio, hoje em dia, após o surgimento regulamentado do divórcio, não existe a
possibilidade de uma relação ter início concomitantemente a um casamento.
No direito brasileiro, a união estável passou a ser regulamentada, inicialmente, na
atual Constituição Federal, no artigo 226, §3, o qual indica que: “§ 3º Para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. (BRASIL, 1988)
Esse artigo, desde a sua publicação até agora, já passou por uma renovação
mastodôntica, mesmo que sua redação permaneça a mesma. Em 11 de maio de 2011,
o STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, momento em
que passou a aceitar a união estável também para casais homoafetivos, demonstrando
minimamente que a sociedade está aberta para múltiplos tipos de entidades familiares.
O Ministro Luís Roberto Barroso (2017) fez, em seu Voto no Recurso Extraordinário
nº 878.694 MINAS GERAIS, o seguinte pronunciamento acerca da união estável
Logo, se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna
a todos os indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na
formação de seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de
proteger não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer
entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus
integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto. Não por
outro motivo, a Carta de 1988 expandiu a concepção jurídica de família,
reconhecendo expressamente a união estável e a família monoparental como
entidades familiares que merecem igual proteção. (BARROSO, 2017, p.08).

Posteriormente, o Direito de Família ganhou mais uma fundamentação para a


união estável, agora no Código Civil de 2002, nos artigos 1.723 ao 1.727, sendo que o
1.723 especifica, sem deixar qualquer dúvida, o que é a união estável e quais são os
requisitos a serem cumpridos para a sua configuração, sendo o seguinte: “Art. 1.723. É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 189


de família”. (BRASIL, 2002).
No entendimento de Larissa Paciello Velloso e Marcia Cristina Xavier de Souza, a
união estável pode ser caracterizada da seguinte maneira:
Conceitualmente, união estável é a convivência marcada pela informalidade,
não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem
e de uma mulher, sem vínculo matrimonial convivendo como se casados
fossem, sob o mesmo teto ou não, constituindo, assim, sua família de fato –
com a intenção imprescindível de constituir família. (VELLOSO; SOUZA, 2018,
p. 16).

Carlos Roberto Gonçalves (2021) também apresenta uma forma de conceituar a


união estável, qual seja:
Uma das características da união estável é a ausência de formalismo para
a sua constituição. Enquanto o casamento é precedido de um processo de
habilitação, com publicação dos proclamas e de inúmeras outras formalidades,
a união estável, ao contrário, independe de qualquer solenidade, bastando o
fato da vida em comum. (GONÇALVES, 2021, p. 243).

Ainda, para Francisco José Cahali (1996) a definição pode ser a seguinte “o vínculo
afetivo entre homem e a mulher, como se casados fossem, com as características inerentes
ao casamento, e com a intenção de permanência da vida em comum” (CAHALI, 1996, p.
49-50).
Dessa forma, fica consubstanciado que a união estável é nada mais do que uma
relação não burocrática onde as pessoas buscam a segurança de viver como se casadas
fossem, sendo também reconhecidos seus direitos perante essa escolha.

4.1 Requisitos para a configuração da União Estável


O instituto da união estável já vem sendo admitido há mais de trinta anos, passando
a ser uma prática comum em todo o país, não havendo qualquer discriminação entre o
casal que opta pelo casamento e o casal que apenas passa a viver como se casados
fossem, ambas as formas passam a ser aceitas pela sociedade atual, ocorre que muitas
pessoas ainda não possuem o conhecimento de que para a configuração da união estável
não basta juntar, é necessário que alguns requisitos sejam preenchidos.
As condições para que uma união estável exista estão apontadas no já mencionado
artigo 1.723 da do Código Civil, quais são: convivência pública, continua, duradoura e
estabelecida com a pretensão de constituir uma família.

4.1.1 Convivência pública

O pressuposto da convivência pública acaba por ser altamente compreensível, pois


o próprio nome já faz alusão ao conteúdo. Para tanto, sua configuração se dá por meio da
relação que é divulgada, mostrada e exibida para todos, normalmente, com a ascensão da
internet, essa divulgação é feita através da publicação de fotos nas redes sociais, esse é

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 190


o maior nível de divulgação, uma vez que está disponível para que qualquer pessoa possa
ter acesso.
Entretanto, mesmo que inúmeras publicações sejam feitas, apenas isso não basta,
dado que as fotos podem ser apenas uma farsa. A convivência pública então, se dá
principalmente com a apresentação do (a) companheiro (a) no círculo de amizade e no
local de maior convívio da pessoa, visto que ali é o lugar onde a pessoa se sente mais
confortável, portanto, é nesse ambiente que será visível a real situação do relacionamento.

4.1.2 Convivência contínua e duradoura

De forma simplificada, a convivência continua e duradoura pode ser percebida


naquele relacionamento onde as partes não rompem e reatam várias vezes, a partir do
momento em que decidem ter uma relação amorosa ela perdura para sempre, por assim
dizer, ou até que os interesses passem a divergir e a convivência não seja mais harmoniosa.
Essa convivência, com a lei nº 8.971, de 29 de novembro de 1994, tinha um prazo
estabelecido para ser configurada, o artigo 1º da lei indicava o período de cinco anos,
todavia, a lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que também versa sobre união estável, já não
menciona qualquer lapso temporal para a qualificação dessa relação, tendo o legislador
desprendido maior esforço quanto a demonstração da vida como se casados fossem,
ficando a definição trazida por essa última norma mais próxima da presente.

4.1.3 Objetivo de constituir família

Este pressuposto talvez seja o mais importante na hora de analisar um relacionamento


para averiguar se ele se enquadra como união estável ou como um simples namoro. É um
pressuposto abstrato, que não basta apenas as partes anunciarem que agora são uma
família, o importante aqui é a percepção do casal perante a sociedade, ou seja, se eles se
apresentam como casados sem a necessidade de informarem verbalmente esse cenário.
Dimas Davi Vargas (2020) possui o seguinte entendimento acerca do objetivo de
constituir família como pressuposto da união estável, sendo o seguinte
O último requisito, e o mais subjetivo, refere-se ao objetivo de constituir
família. Embora o casal tenha planos de construir futuramente uma família, a
simples intenção não é suficiente para configurar uma união estável, pois é
preciso que o casal tenha posto em prática tal objetivo, ou seja, já viva como
se casados fossem. (VARGAS, 2020).

Afinal, pode vir a surgir o questionamento de como far-se-á a relação de como se


casados fossem, uma vez que não basta a intenção futura de constituir uma família e
também a exteriorização do sentimento.
Muitos autores informam que esse requisito, por ser subjetivo, pode ser vislumbrado
no dia a dia do casal, a forma como organizam sua rotina, se essa rotina é de um casamento,
como o casal se apresenta ao público, dentre inúmeras outras atitudes que podem revelar

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 191


essa intenção, entretanto, não há um roteiro a ser seguido para essa demonstração, esse
rol não é taxativo.
Segundo o entendimento de Rolf Madaleno (2022), o pressuposto da constituição de
família é representado da seguinte maneira
O propósito de formar família se evidencia por uma série de comportamentos
exteriorizando a intenção de constituir família, a começar pela maneira
como o casal se apresenta socialmente, identificando um ao outro perante
terceiros como se casados fossem, sendo indícios adicionais e veementes a
mantença de um lar comum e os sinais notórios de existência de uma efetiva
rotina familiar, que não pode se resumir a fotografias ou encontros familiares
em datas festivas, a frequência conjunta a eventos familiares e sociais, a
existência de filhos comuns, o casamento religioso, e dependência alimentar,
ou indicações como dependentes em clubes sociais, cartões de créditos,
previdência social ou particular, como beneficiário de seguros ou planos de
saúde, mantendo também contas bancárias conjuntas. (MADALENO, 2022,
p. 1.287).

Assim, fica resolvido que a união estável é sim uma nova forma de relacionamento,
mas não basta os nubentes decidirem por isso que magicamente sua relação será
convertida, como visto, é inescusável a superação de alguns requisitos, sendo o mais
importante de todos os mencionados aquele que visa demonstrar que o casal realmente se
porta como casados e que possuem o objetivo de constituir uma família, vivendo já como
uma.
A satisfação desses requisitos ocorre, entre outras palavras, para a comprovação
de que aquelas pessoas não estão apenas valendo-se da facilidade da constituição dessa
união para obter os direitos advindos dela, esses direitos são única e exclusivamente para
os que contraem esse tipo de relacionamento na boa-fé

5 | RELAÇÃO SUGAR
O relacionamento sugar vem adquirindo cada vez mais popularidade no âmbito
amoroso, por assim dizer, isso porque esse tipo de relacionamento não tem início com
base no afeto, carinho e amor, mas sim no interesse mútuo das partes em satisfazer suas
necessidades e interesses, que não necessariamente são sexuais, mas não há impedimento
para que, se ambas as partes quiserem, possa vir a ocorrer.
Conceituando de forma mais pragmática, o relacionamento sugar é o relacionamento
no qual uma pessoa de idade mais avançada, podendo ser um homem ou uma mulher
(sugar daddy ou sugar mommy), e de grande aporte financeiro, busca pessoas mais
novas, também podendo ser um homem ou uma mulher (sugar baby), para iniciar um
relacionamento e em troca oferece vantagem financeira, como o pagamento em dinheiro,
viagens ou presentes.
Essa contraprestação não precisa ser apenas o pagamento de coisas consideradas

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 192


por muitos como fúteis, existem diversos casos em que o sugar daddy, que é o mais
comum, porém nada impede que seja a sugar mommy que patrocine, paga os estudos da
(o) sugar baby, ou até mesmo financia a abertura de um empreendimento, enfim, os casos
são inúmeros, uma vez que, como não há nenhuma regulamentação legal sobre o assunto,
o acordo é particular, podem as partes requererem o que imaginarem, dependendo apenas
da anuência da remanescente.
Essa relação vem sido mencionada com mais frequência neste século, entretanto,
o primeiro caso registrado ocorreu no ano de 1908, com Alma de Bretteville e Adolph
Spreckles. Adolph era um homem bem mais velho que Alma, os relatos informam que a
diferença de idade entre os dois era de vinte e quatro anos, e herdou a Spreckles Sugar
Company, uma refinaria de açúcar, e então, após o casamento dos dois, Alma passou a
chamar Adolph pelo apelido sugar daddy, sendo essa a origem do relacionamento bastante
conhecido hoje.
Tal tema vem sendo cada vez mais debatido, além dos interessados em entrar
nessa relação, juristas tentam entender como é o funcionamento e quais são os efeitos que
podem surgir disso. Muito se questiona se esse tipo de relacionamento poderá oferecer às
partes algum tipo de direito e até mesmo deveres umas com as outras.
Com toda essa popularidade, o assunto chegou até a TV Justiça, que no ano de
2019 abordou o assunto em um de seus programas, e sintetizou o relacionamento como
sendo o aqui replicado
Uma relação sugar envolve pessoas endinheiradas, bem sucedidas e
generosas que bancam integralmente as despesas do outro, e tudo é
acertado de forma transparente e consensual no início da relação. Mas, como
isso funciona juridicamente? É preciso fazer um contrato de namoro? Estas,
e muitas outras questões a respeito são debatidas no programa Fórum desta
semana.

Mesmo que o relacionamento sugar seja muito falado, muitas pessoas ainda
o enxergam com uma má reputação e de forma pejorativa, pois acreditam se tratar de
prostituição, o que não é bem verdade, uma vez que o próprio dicionário caracteriza a
prostituição como a prestação de serviços sexuais com a intenção de obter lucro.
Urge salientar, que, embora na relação sugar haja o propósito de se obter vantagem
econômica de uma das partes e que também possa haver relação sexual, uma coisa não se
mistura com a outra, uma vez que o ganho monetário pode ser apenas por uma companhia,
se assim ficar acordado.
Entre as pessoas mais jovens esse tipo de relacionamento vem sendo bem comum
e não causa estranheza aos ouvidos, inclusive, a prática vem sendo tão comum que em
redes sociais como o Tik tok, que a passou a ser utilizada com fervor durante a pandemia
do Corona vírus –19, sugar babies mostram sua rotina e também os presentes que recebem
do sugar daddy, porém, aos mais velhos, tal desempenho acaba sendo um absurdo, pois

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 193


para eles as relações são apenas as tradicionais.

5.1 Abordagem populacional acerca da relação sugar


Tendo em vista que a expressão relacionamento sugar é ainda extremamente
desconhecida, principalmente para as gerações mais velhas, surgiu a ideia de ser realizada
uma pesquisa populacional através do Google Forms, com a intenção de averiguar quantas
pessoas realmente conhecem o tema e suas opiniões sobre o assunto.
Diante disso, a pesquisa foi realizada com 130 (cento e trinta pessoas) de idade,
gênero e regiões diferentes, tendo sido mantido o sigilo dos participantes. Foram então
obtidas as seguintes respostas:

Gráfico 01. Qual a sua idade?

A idade dos participantes da pesquisa variou entre menores de 18 anos e maiores do


que 45 anos, abordando praticamente todas as gerações.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 194


Gráfico 02. Em qual região brasileira você reside?

A maior parte dos participantes residem na região centro-oeste, sendo também


grande parte da região sudeste.

Gráfico 03. Possui acesso frequente às redes sociais?

Quase que a totalidade dos participantes possui acesso frequente às redes sociais,
sendo que os que não possuem não chega nem a 1% dos que responderam.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 195


Gráfico 04. Já ouviu falar da relação sugar, ou até mesmo de sugar daddy/mommy e sugar baby?

A grande maioria dos participantes já ouviu algo relacionado a esse tipo de


relacionamento, sendo que a predominância sabe o que significa.

Gráfico 05. Se sim, por qual meio de informação?

De todos os participantes, grande parte já ouvir falar desse tipo de relacionamento,


seja pela internet, em maioria, ou pela televisão, ou ainda por outras pessoas, dentre outros
meios.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 196


Gráfico 06. Você acredita que a relação sugar se caracteriza como um tipo de relacionamento
amoroso?

A maioria dos participantes não entendem que o relacionamento sugar é uma


forma amorosa, se baseando puramente no interesse financeiro.

Gráfico 07. Sendo caracterizada como um relacionamento, acredita que ocupará um novo espaço
como entidade familiar?

Desses, mais da metade não acha que o relacionamento se enquadrará, algum dia,
como uma forma de família.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 197


Gráfico 08. Você acredita que essa relação deve ser regulamentada por lei?

Por fim, a maior parte dos participantes não acredita que esse tipo de relação deva
ocupar um espaço no ordenamento jurídico.
Tal tema tem ficado tão popular que no ano de 2019, a emissora de televisão Globo,
uma das maiores do país, exibiu em horário nobre a novela chamada “A dona do pedaço”
retratou de forma clara o relacionamento sugar com os personagens Otávio Guedes,
interpretado por José de Abreu, que foi o sugar daddy, e Sabrina, interpretada por Carol
Garcia, atuando no papel de sugar baby.
Fica evidente que as pessoas vêm buscando cada vez mais formas de inserirem
essa relação na sociedade, tentando explicar de forma lúdica, na medida do possível, o
que significa esse relacionamento. No caso da novela, muitas pessoas continuaram vendo
a relação como uma prostituição ou algum outro tipo de relação ilegal, isso porque o sugar
daddy possuía um matrimonio e encontrava a sugar baby de forma extraconjugal, não
passando nenhum tipo de credibilidade.

5.2 Relação sugar confrontada com a união estável


Como foi visto, para a configuração da união estável é necessário a superação dos
requisitos de convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família.
Em uma relação amorosa acaba sendo fácil reconhecer cada um desses pressuposto,
entretanto, no relacionamento sugar alguns desses pontos podem ficar controvertidos.
Durante uma relação sugar o principal requisito passível de ser vislumbrado é a
convivência pública, isso porque, conforme já tratado neste trabalho, a relação sugar é
normalmente buscada pelo (a) sugar daddy/mommy para a companhia em eventos público,
justamente para não ficar desacompanhado durante aquele tempo de sociabilidade. Assim,

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 198


nesses casos, a convivência é pública.
Ocorre que para a configuração dos outros requisitos a situação fica mais nebulosa,
uma vez que nem sempre essa convivência é continua e duradoura e, quase nunca, com o
objetivo de constituir uma família.
O relacionamento sugar pode ser contínuo e duradouro no caso de a (o) sugar baby
manter contato frequente com o (a) sugar daddy/mommy, isso pode ocorrer quando surge
um acordo entre as partes para que sempre se encontrem e troquem benefícios, ou ainda
quando essas mesmas partes desenvolvem afinidade entre elas, entretanto, na maioria das
vezes, ainda que essa relação seja pública, contínua e duradoura, remanesce um requisito,
considerado talvez o mais importante.
Quanto ao objetivo de constituir família, o relacionamento sugar dificilmente irá
chegar nesse patamar, visto que é uma relação consolidada em interesses de ambas as
partes e dificilmente esses interesses evoluirão para algo além, como o interesse amoroso.
Sendo assim, as partes desse relacionamento não buscam constituir uma família, essa
possibilidade passa longe de seus pensamentos, sendo, talvez, a última coisa que queiram
ao firmarem o acordo.
Diante disso, ao realizar uma análise crítica entre a união estável e o relacionamento
sugar, é concebível dizer que em nada se assemelham, pois embora possa existir alguns
dos pressupostos necessários, o relacionamento sugar não é uma relação amorosa, os
contraentes não buscam ali um companheiro de vida, suas rotinas nada se assemelham
com a de um casal, sequer possuem qualquer dedicação amorosa entre eles, sendo a
relação estruturada na afinidade e respeito.

6 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das alegações e fundamentos sobre o tema, fica depurado que a relação
sugar é um tipo de relacionamento baseado em trocas mútuas para melhor beneficiação de
ambos os contraentes, sendo que uma ponta da relação é a patrocinadora financeira e a
outra é a companhia e também os tipos de serviços a serem combinados.
Diante disso, tendo em vista que o alicerce desse relacionamento é econômico e não
romântico, não há a possibilidade dele se enquadrar nos moldes da união estável descritos
no artigo 1.723 do Código Civil de 2002, pois poderia ser visto como uma desvalorização
dos relacionamentos amorosos, uma vez que as pessoas passariam a se unir, em grande
maioria, apenas pela nova facilidade e não mais como uma família.
Além disso, a chance de uniões serem firmadas apenas com o interesse de
adquirirem direitos, sejam esses sucessórios, partilha de bens, alimentos, entre outros
possíveis entre cônjuges e companheiros aumentariam exorbitantemente, abarrotando o
Poder Judiciário de ações infundadas e com resquícios de má-fé, podendo vir a ocorrer
diversas trapaças, principalmente com relação aos reais detentores dos direitos.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 199


Isso não significa que tal relação não deva ganhar espaço no ordenamento jurídico,
muito pelo contrário, tendo surgido cada vez mais casos retratando o tipo de relacionamento
mencionado nesse trabalho, não haver uma normatização deixa os julgadores a mercê de
opiniões subjetivas e pessoais, não garantindo o acesso eficiente à justiça. Dessa forma,
não existe a possibilidade do relacionamento sugar vir a ser comparado com a união
estável.

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Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 15 201


CAPÍTULO 16

ESSÊNCIA OU APARÊNCIA DE DEMOCRACIA À


LUZ DA CÁTEDRA ARISTOTÉLICA

Data de aceite: 01/03/2023

Mário Luiz Silva específica. Como procedimento, adota-


Bacharel em Direito se o monográfico e a técnica de pesquisa
Bacharel em Segurança Pública usada é a bibliográfica, já que se estuda
Especialista em Direito Constitucional
detalhadamente o tema através da doutrina
Mestre em Direito
Professor Universitário (Direito) (LAKATOS e MARCONI, 2003).
Tenente-Coronel da Polícia Militar da Aristóteles, em sua milenar
Santa Catarina obra intitulada Política, ao tratar das
http://lattes.cnpq.br/4378386697661462
diversas formas de governo, afirma
peremptoriamente que o governo é o
exercício do poder supremo do Estado,
PALAVRAS-CHAVE: Aristóteles;
contudo destaca que esse poder pode estar
democracia; essência; aparência.
nas mãos de apenas uma pessoa, de uma
minoria ou da maioria. Essa titularidade
ESSENCE OR APPEARANCE OF
DEMOCRACY IN THE LIGHT OF THE e exercício do poder é que irá definir a
ARISTOTÉLIC CATHEDRA forma de governo. Estar-se-á frente a uma
KEYWORDS: Aristóteles; democracy; monarquia quando o poder é concentrado
essence; appearance. em uma única pessoa. Na oligarquia o
poder é atribuído a uma minoria, em regras
O presente texto tem por desiderato os mais ricos. Já na democracia o poder
analisar a democracia hodierna em cotejo é distribuído garantido à maioria, via de
com a teoria proposta por pelo filósofo regras, os mais pobres (ARISTÓTELES,
grego Aristóteles. Busca-se responder se 2007, p. 62).
a sociedade contemporânea aperfeiçoou-a Convém ressaltar que o referido
ou deturpou-a. Para tanto, utiliza-se o filósofo aponta que a justeza do governo
método dedutivo, partindo de premissas não está ligada a sua forma, mas sim a sua
gerais para se chegar a uma conclusão finalidade:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 16 202


Quando o monarca, a minoria ou a maioria não buscam, uns ou outros,
senão a felicidade geral, o governo é necessariamente justo. Mas, se ele visa
ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio. O
interesse deve ser comum a todos ou, se não o for, não são mais cidadãos.
(ARISTÓTELES, 2007, p. 63).

O lendário filósofo grego propõe as características de uma democracia, partindo


do pressuposto da igualdade do povo para deliberar sobre as questões de seu interesse.
“Quando todos são admitidos na deliberação sobre qualquer matéria, há democracia; o
povo ostenta a igualdade em tudo [...] delibera-se melhor quando todos deliberam em
comum, o povo com os nobres e os nobres com a multidão”. (ARISTÓTELES, 2007, p.
76-77).
Salienta-se que a concepção de democracia proposta por Aristóteles parte da
premissa que o povo é o protagonista na tomada de decisões do Estado, contudo não
necessariamente para todas as deliberações políticas toda população deveria ser
convocada.
Estas deliberações são necessariamente da alçada de todos os cidadãos,
ou então são todas confiadas a alguns funcionários, quer a um só, quer
a vários, quer ainda umas a alguns, ou algumas a todos, ou algumas a
alguns. Mas todos podem participar das deliberações de várias maneiras.
A primeira, quando, ao invés de virem todos juntos, comparecem por seção
e sucessivamente, como no sistema de Teceloas de Dileto. Além disso,
quem delibera é a Assembléia dos magistrados, mas todos chegam por
seu turno a magistraturas, venham da tribo que vierem e tenham a condição
que tiverem, sem excetuar os últimos, até que todos as tenham ocupado. A
Assembléia geral do povo só ocorre quando da feitura das leis, para retocar
a Constituição ou para ouvir as proclamações dos magistrados. A segunda
maneira consiste em deliberar todos em conjunto e em Assembléia geral, mas
só reunir esta para as escolhas ou eleições de magistrados, para a legislação,
para a paz ou para a guerra, para a auditoria das contas ou para a censura
dos contadores. Tudo o mais permanece em poder e sob a decisão, cada
um segundo a sua competência, dos magistrados escolhidos dentre o povo,
ou por meio de sorteio ou por eleição. A terceira maneira é que a Assembléia
geral dos cidadãos só aconteça para a nomeação e para a censura dos
magistrados, para a guerra e para as alianças, sendo o resto administrado
pelos magistrados eletivos e nomeados pelo povo, como todos cujo cargo
exige saber. A quarta é reunirem-se todos para deliberação, sem que os
magistrados possam decidir coisa alguma, mas apenas opinar em primeiro
lugar, maneira usual na última espécie de democracia, que corresponde,
como dissemos, à oligarquia despótica e à monarquia tirânica. Todas estas
maneiras de deliberar são democráticas. (ARISTÓTELES, 2007, p. 76).

Ainda, o filósofo grego estabelece uma relação íntima entre democracia e a


qualificação como “cidadão”, asseverando que grau de cidadania está em uma razão
diretamente proporcional ao nível de participação popular em um Estado.
Alguém que é cidadão numa democracia não o é numa oligarquia. [...], o
cidadão não pode ser o mesmo em todas as formas de governo. É sobretudo
na democracia que é preciso procurar aquele de que falamos; não que ele

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 16 203


não possa ser encontrado também nos outros Estados, mas neles não se
acha necessariamente. [...] A definição do cidadão, portanto, é suscetível
de maior ou menor extensão, conforme o gênero do governo. [...] É cidadão
aquele que, no país em que reside, é admitido na jurisdição e na deliberação.
É a universalidade deste tipo de gente, com riqueza suficiente para viver de
modo independente, que constitui a Cidade ou o Estado. (ARISTÓTELES,
2007, p. 29).

Como apresentado, vê-se em Aristóteles a preponderância da democracia direta,


porém consentindo com a democracia indireta para determinadas deliberações.
Convém aqui abrir um parêntese para definir democracia direita e indireta:
Democracia direta é aquela em que o povo exerce, por si, os poderes
governamentais, fazendo leis, administrando e julgando; consiste
reminiscência histórica. Democracia indireta, chamada de democracia
representativa, é aquela na qual o povo, fonte primária do poder, não podendo
dirigir os negócios do Estado diretamente, em face da extensão territorial, da
densidade demográfica e da complexidade dos problemas socias, outorga
as funções de governo aos seus representantes, que elege periodicamente
(SILVA, 2014, p. 138).

Nesse sentido, a concepção de democracia direta, como desenvolvida mas Cidades-


Estados da Grécia – em especial Atenas – onde o povo reunido na praça pública tomavas
as decisões do Estado, se torna inexequível nos estados modernos. Exsurgindo, então as
democracias indiretas, caracterizada pelo sistema representativo.
Da concepção de democracia direta da Grécia, na qual a liberdade política
expirava para o homem grego desde o momento em que ele, cidadão livre da
sociedade, criava a lei, com a intervenção de sua vontade, e à maneira quase
de um escravo se sujeitava à regra jurídica assim estabelecida, passamos à
concepção de democracia indireta, a dos tempos modernos, caracterizada
pela presença do sistema representativo. (BONAVIDES, 2017, p. 293).

A democracia é a expressão do poder do povo por excelência. Na definição


lincolniana é o “governo do povo, para o povo, pelo povo”1. Seu efeito principal é de que as
ações do governo retratem as vontades, as decisões tomadas pelo povo. As lei elaboradas
pelos governantes são a positivação da vontade do povo.
Contudo, nos estados modernos, de larga base territorial e populacional, é infactível
que todas as decisões políticas sejam tomadas aos moldes de como se dava na Ágora2 da
Grécia antiga, tomando a vontade de todos os cidadãos para editar leis e para administrar
o estado. “Evidentemente, só há uma saída possível, solução única para o poder
consentido, dentro do Estado moderno: um governo democrático de bases representativas”
(BONAVIDES, 2017, p. 294).
Assim, o regime democrático se apresenta como o governo do povo exercido pelo
povo, sendo, em uma concepção realística, de modo indireto, através de representantes

1 Expressão proferida pelo presidente norte-americano Abraham Lincoln no Discurso de Gettysburg em 19 de novem-
bro de 1863.
2 Ágora era a praça pública onde ocorriam as reuniões dos cidadãos das cidades-estados da Grécia Antiga.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 16 204


escolhidos.
Há de se destacar que a característica imanente da democracia é a soberania
popular guiando o governo (como o próprio nome sugere), qualquer regime que refuta tal
característica não é digno de ser chamado de democracia.
Atílio Boron discorre sobre democracia em seu texto intitulado Aristóteles em
Macondo: notas sobre el fetichismo democrático em América Latina, no qual cria a fábula
de trazer o filósofo grego Aristóteles para os dias de hoje e o questionar sobre como ele
avalia as democracias da América Latina. Atílio afirma que Aristóteles responderia que
tais regimes podem ser qualquer coisa, menos democracia. Assim sugere que Aristóteles
responderia:
No olviden que, tal comolo escribí en mi Política, la democracia –nos diría ya
con un ligero tonode reproche– es el gobierno de los más, de las grandes
mayorías, enbeneficio de los pobres, que en todas las sociedades conocidas,
no porcasualidad sino por razones estructurales, siempre son mayoría. Así
eraen mi tiempo, y aunque abrigaba la esperanza de que tal cosa pudieraser
superada con el paso de los siglos, veo con mucha desilusión que loque
parecía ser una desgracia del mundo griego reaparece, con rasgosaún más
acusados y escandalosos, en la sociedad actual, llegando a extremos jamás
vistos en mi época (BORON, 2007, p. 50).

Seguindo na alegoria, Boron (2007, p. 50) ilustra que um dos presentes iria ficar
intrigado com a resposta de Aristóteles e iria confrontá-lo questionando se as eleições
periódicas e o sufrágio universal não são símbolos inequívocos de que se está em
uma democracia. Aristóteles, então responderia que há uma distinção entre essência e
aparência de democracia. A essência da democracia é o governo da maioria em prol dos
mais necessitados, os quais, em todas as sociedades, são sempre a maioria. A aparência
de democracia se mostra quando há eleições diretas, sufrágio universal, estado de direito,
entre outros, porém não correspondem à essência democrática.
Pela dicção de Boron, só há democracia verdadeiramente (essência da democracia)
quando há efetiva representação da vontade popular. Os instrumentos constitucionais
que materializam a soberania popular, a saber, eleições diretas e periódicas e sufrágio
universal, por si só, não dão azo a verdadeira democracia.
Assim, por essa perspectiva proposta, vê-se que a democracia aristotélica, firmada
no princípio da igualdade e da representatividade popular efetiva, desnaturou-se com a
evolução da sociedade perdendo a sua principal característica, qual seja, de ser o governo
que retrata os anseios do povo (leia-se: da maioria) e não de uma minoria privilegiada. Em
larga medida, a essência da democracia quedou-se subsistindo a aparência de democracia.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política. São Paulo, SP: Martin Claret, 2007.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 16 205


BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

BORON, Atilio. Aristóteles en Macondo: notas sobre el fetichismo democrático en América Latina. In:
Filosofía y teorías políticas entre la crítica y la utopía.

Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales: Buenos Aires. 2007, p. 49 – 67.. Disponível em: http://
biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101012123413/04Boron.pdf. Acesso em: 07 set 2021.

LAKATOS, Eva Maria, MARCONI Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica.. 5°


Ed. São Paulo: Atlas, 2003.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 16 206


CAPÍTULO 17

DUELO DE OLHARES: O ESTRANHAMENTO AOS


OLHOS DE MADEIRA SOB AS LENTES DE TOLSTÓI
E DE DOSTOIÉVSKI

Data de submissão: 07/02/2023 Data de aceite: 01/03/2023

Roberta Puccini Gontijo casa morta, de Dostoiévski, e Ressurreição,


Graduanda em Direito pela Universidade de Tolstói. Sob esse ângulo, este trabalho
Federal de Minas Gerais busca compreender a maneira pela qual
Belo Horizonte – Minas Gerais a tessitura do estranhamento ao aparato
http://lattes.cnpq.br/4961263249535393 jurídico se dá em ambas as narrativas. Ante
esta investigação, observa-se o germe de
um duelo de olhares capaz de aguçar a
catarse do direito – o renascimento de seus
RESUMO: Viktor Chklóvski, crítico literário
olhos de madeira.
russo, atribui à experiência artística a
PALAVRAS-CHAVE: Estranhamento;
capacidade de afastar as percepções
Execução penal; Fiódor Dostoiévski; Liev
automatizantes reproduzidas pelo hábito e
Tolstói; Olhos de madeira.
pela linguagem cotidiana. Na medida em
que a arte restitui ao objeto sua unicidade, na
medida em que capta suas singularidades, A DUEL OF VISIONS: THE
ocultadas pelo véu do automatismo, provoca STRANGENESS OF WOODEN
o estranhamento entre o que é observado EYES THROUGH THE LENSES OF
e a ideia dele introjetada como familiar. À TOLSTOY AND DOSTOYEVSKY
luz de Chklóvski, Carlo Ginzburg focaliza o ABSTRACT: Viktor Chklovsky, a Russian
estranhamento como procedimento literário literary critic, attributes to the artistic
usufruído por Tolstói: ante o reconhecido, experience the ability to drive away the
seu olhar distante e circunspecto torna-o automatizing perceptions reproduced
opaco e adventício, transpondo-o para a by habit and everyday language. In the
esfera da recriação. Assim, a literatura pode measure in which art restores to the object
decodificar a lógica que enlaça o aparato its uniqueness, in the measure in which it
jurídico ao imaginário social mediante captures its singularities, hidden by the veil
a familiaridade de suas práticas. Essa of automatism, it provokes strangeness
potência manifesta-se quando a execução between what is observed and the idea
penal russa oitocentista é revisitada – e of it introjected as familiar. In the light of
contestada – nos romances Escritos da Chklovsky, Carlo Ginzburg focuses on

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 207


strangeness as a literary procedure used by Tolstoy: faced with the recognized, his circumspect
gaze turns it opaque and adventitious, transposing it to the sphere of recreation. Thus,
literature can decode the logic that binds the legal apparatus to the social imaginary through
the familiarity of its practices. This power manifests itself when the 19th century Russian
criminal prosecution is revisited in the novels Notes from the Dead House, by Dostoyevsky,
and Resurrection, by Tolstoy. This article seeks to understand the way in which the weaving
of estrangement takes place in both narratives. From this investigation, it is observated a
duel of visions capable of sharpening the catharsis of the juridical practice – the rebirth of its
wooden eyes.
KEYWORDS: Criminal prosecution; Fiodor Dostoyevsky; Lev Tolstoy; Strangeness; Wooden
eyes.

O hábito nos priva de ver o verdadeiro rosto das coisas.

Montaigne e a liberdade espiritual, Stefan Zweig

1 | INTRODUÇÃO
Ao se deparar com o título deste trabalho, é bastante provável que, no leitor, haja
um despertar de curiosidade seguido pelo questionamento: “olhos de madeira” refere-se
a quê?
A expressão primeira aparece em As aventuras de Pinocchio, quando Geppetto, ao
observar o boneco, questiona-lhe: “Grandes olhos de madeira, por que olham para mim?”
Viajando no tempo, mas não no espaço, os olhos de madeira bordados por Carlo
Collodi dão nome à obra do historiador italiano Carlo Ginzburg Olhos de madeira: nove
reflexões sobre a distância, cujo primeiro ensaio evoca o estranhamento como pré-história
de um procedimento literário capaz de operar uma ressurreição; nele, Ginzburg rememora
um apontamento tecido por Viktor Chklóvski (apud GINZBURG, 2001, p. 16) acerca da
psicologia humana: “todos os nossos hábitos provém da esfera do inconsciente e do
automatismo”. Sob essa ótica, para o crítico literário russo, o peso dos hábitos inconscientes
seria tamanho que, diante dele, a vida se anula, pois a automatização a tudo contempla
com sua aura mórbida.
Todavia, a percepção já automatizada é passível de renascimento: o retorno da
sensibilidade das coisas adviria daquilo que se denomina arte.
O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que
deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte
se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação
da forma, com a qual tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua
duração. (CHKLÓVSKI apud GINZBURG, 2001, p. 16)

Para se constituir como um instrumento capaz de reavivar as percepções tornadas


inertes pelo hábito, explica Chklóvski, a arte – enquanto meio de se experimentar o devir

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 208


de uma coisa – pode valer-se do estranhamento diante do conhecido. Dele germinaria um
combate de olhares – caracterizado pelo enfrentamento entre a morbidez do costumeiro e
a vivacidade do inédito. Assim, a lente artística aguça o pode ser latente na realidade do
agora para o possível aperfeiçoamento futuro; inquire o que é a partir do novo ainda não
germinado, mas decifrável no próprio existente.
Assim, a exposição pela arte do duplo pode ser-é estabelece uma engrenagem
dialética voltada a uma transformação possível do plano concreto – não utópica –, uma
vez que essa mutação já está assente em si, mas é diluída por obstáculos intrínsecos ao
instante presente, dentre os quais se destaca o próprio automatismo.
O olhar arguto da arte, ao mesmo tempo em que desnuda ineficácias estatais e indica
a necessidade de se reinventar o paradigma político vigente, oferece ao presente caminhos
para reformá-lo, para lapidá-lo. O estranhamento enquanto procedimento artístico, então,
traz consigo uma hipótese de polimento do presente, de maneira a impelir as engrenagens
político-burocráticas rumo aos ventos da mudança.
Sob esse ângulo, acrescentando-lhe um novo sentido, este trabalho toma a
liberdade de usufruir a expressão “olhos de madeira”: aqui, ela refere-se à engrenagem
jurídica e aos hábitos imiscuídos nas vivências da sanção-pena, os quais tornam inertes
percepções da vida observadas por olhos argutos, de sorte a reduzi-las a um olhar unilateral
– corporificado na diluição da subjetividade humana ante o relevo da figura do réu. Assim,
emerge um duelo de olhares entre esses olhos míopes e olhos vívidos, inquisidores da
redução humana operada no interior da execução penal. Aqui, esse outro olhar, situado
para além do olhar burocrático, é representado pelas lentes penetrantes de Liev Tolstói e
de Fiódor Dostoiévski.
O estranhamento se ergue quando os olhos há muito distanciados da vivacidade
– isto é, os olhos da execução penal – estreitam-se à investigação burocrático-penal
realizada pelos autores russos. Daí, eis que o duelo de olhares nascente aguça a catarse
do direito, o renascimento de seus olhos de madeira, e escancara a consciência acerca da
morbidez que permeia o sistema prisional.
A Casa Morta então torna-se passível de ressurreição – ou, ao menos, passível de
submeter-se a freios – quando envereda por espaços outrora delineados pela arte como
objetos de investigação. Eis o potencial catártico do estranhamento enquanto procedimento
literário presente nos romances Ressurreição e Escritos da casa morta.
À luz de ambos os romances, busca-se compreender a maneira pela qual o
estranhamento aos olhos de madeira do cárcere se dá em ambas as narrativas.
A um tempo simultâneo, este trabalho procura realçar a automatização na qual
a execução penal se situa, inibidora do acesso à vastidão humana na medida em que
restringe a complexa subjetividade às engrenagens que integram a masmorra.
Michel Foucault (2014, p. 88-89) expressa-se nesse tom ao discorrer sobre a
concepção do crime e sobre a concepção do criminoso sob o viés da teoria contratualista:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 209


Supõe-se que o cidadão tenha aceitado de uma vez por todas, com as leis da
sociedade, também aquela que poderá puni-lo. O criminoso aparece então
como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto, é portanto inimigo
da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce sobre ele. O
castigo penal é então uma função generalizada, coextensiva ao corpo social
e a cada um de seus elementos. [...] Efetivamente a infração lança o indivíduo
contra todo o corpo social; a sociedade tem o direito de se levantar em peso
contra ele, para puni-lo. Luta desigual: de um só lado todas as forças, todo o
poder, todos os direitos. E tem mesmo de ser assim, pois aí está representada
a defesa de cada um. Constitui-se assim um formidável poder de punir, pois
o infrator se torna o inimigo comum. Até mesmo pior que um inimigo, é um
traidor, pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade.

Ao isentar-se do pacto reciprocamente forjado pelos membros da comunidade, o


transgressor desqualifica-se como cidadão e traz em si um fragmento selvagem; “aparece
como o celerado, o monstro, o louco talvez, o doente e logo o ‘anormal.” (FOUCAULT,
2014, p. 100)
Atento ao objetivo geral supracitado, este trabalho primeiro se debruça sobre o enredo
de Ressurreição e sobre o modo com que o olhar tolstoiano delineia o estranhamento aos
olhos de madeira no romance; depois, sobre Escritos da casa morta, relato autobiográfico
de Dostoiévski assinalado pela constante insígnia do duelo.
A despeito da distância histórica que separa as narrativas do presente, é certo que o
automatismo, longevo, ainda ronda o aparato jurídico. Daí a sede de desnudá-lo.

2 | NEKHLIÚDOV DIANTE DOS OLHOS DE MADEIRA


No ensaio Estranhamento: Pré-história de um procedimento literário, Carlo Ginzburg
(2001, p. 22) declara que Tolstói
Via as convenções e as instituições humanas com olhos de um cavalo ou de
uma criança: como fenômenos estranhos e opacos, vazios dos significados
que lhes são geralmente atribuídos. Ante seu olhar, ao mesmo tempo
apaixonado e distante, as coisas se revelavam [...] “como realmente são”.

O olhar perscrutador de Tolstói, em Ressurreição, ratifica a dicção de Ginzburg


quando, penetrando nos mais recônditos meandros da burocracia judiciária, encontra as
descobertas do nobre Nekhliúdov acerca da naturalização do iníquo pela ótica carcerária
mecanicista – promotora da despersonalização do encarcerado.
No romance, Nekhliúdov escamoteia seus olhos de madeira de outrora – olhos que,
há muito, perderam a capacidade de penetrar na raiz daquilo que os assombram para
questioná-lo; olhos que saltaram da observação arguta ao automatismo, do entusiasmo
à percepção inerte. Esses olhos despediram-se da sensibilidade das coisas e se
apresentaram diante da resignação. No rápido compasso dos acontecimentos iníquos
que lhe são direcionados, não há espaço para a reflexão, para o questionamento, pois a
visão contínua de um mesmo objeto traz comodidade; assim a revolta de outrora se torna

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 210


morbidez; a reivindicação, ante o indigno que atravessa a vida, silêncio.
Contudo, ao longo do romance, esse olhar truncado da personagem cede espaço a
uma observação diligente, ao questionamento e à inquietude.
Ao participar do Tribunal do Júri, o príncipe Nekhliúdov percebe-se responsável
pelo destino de Ekatierina Máslova, apelidada de Katiucha. Espécie de pupila das tias
afortunadas de Nekhlíúdov, Katiucha é escorraçada da propriedade em que residia ao se
descobrir grávida – gravidez essa fruto de um relacionamento fugidio com Nekhliúdov. Só,
Katiucha se aventura em uma miríade de atividades mal-sucedidas até, enfim, enredar-se
nas teias da prostituição, caminho que a conduz ao seu grande infortúnio.
Em uma noite de trabalho, deparando-se com um homem agressivo e induzida a
erro, misturou ópio à sua bebida, o que o levou à morte por envenenamento. Diante do
tribunal, Máslova se defende das acusações:
Queria que ele largasse do meu pé. Simon Mikháilovitch respondeu-me: “Nós
também estamos cheios dele. A gente podia lhe dar um pó para dormir,
ele dormia e você ia embora” [...] Falei: “Está bem”. Pensei que era um pó
inofensivo. Eu entrei, ele estava deitado e na mesma hora pediu para lhe dar
um conhaque. Peguei na mesa uma garrafa de fine champagne, enchi duas
taças, a minha e a dele, e na taça dele entornei o pó. Nunca teria dado, se eu
soubesse. (TOLSTÓI, 2020, p. 55. Grifos meus.)

Na sala de deliberações, entretanto, ante a indagação


A pequeno-burguesa Ekatierina Mikháilova Máslova, de vinte e quatro anos,
é culpada de ter premeditadamente tomado a vida do comerciante Smelkov
quando, a fim de roubá-lo, deu a ele veneno misturado no conhaque e roubou-
lhe cerca de dois mil e quinhentos rublos em dinheiro e um anel brilhante?
(TOLSTÓI, 2020, p. 91),

declararam-na culpada, sem a intenção de roubar, e também afirmaram que não


havia se apropriado de nenhum bem alheio; pois, há pouco, a ré havia afirmado que Smelkov
lhe dera o anel como presente e que pegara o dinheiro a mando do próprio comerciante. E
acrescentaram à decisão: “mas merece indulgência.”
O presidente manifestou surpresa ao lê-la: os jurados, se ressalvaram a condição
“sem a intenção de roubar”, não ressalvaram a condição “sem a intenção de tirar a vida”.
Logo, a inverossímil sentença asseverava que Máslova não havia roubado ou furtado, mas
que envenenara o comerciante sem nenhum propósito aparente.
Para o destino de Máslova não havia meio-termo: aguardava-o ou uma quase
absolvição, com uma pena de prisão que poderia ser reduzida em virtude de detração, ou
os trabalhos forçados. Se os jurados acrescentassem à decisão as palavras “mas sem a
intenção de causar morte”, Katiucha receberia o primeiro paradeiro.
Diante da ausência de lógica da sentença, o presidente então propôs aos dois juízes
que o acompanhavam a aplicação do art. 818 do Código de Processo Criminal vigente, o
qual afirmava que, caso o tribunal considerasse a sentença injusta, haveria a possibilidade

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 211


de revogar a decisão dos jurados. Ante a proposta, porém, um dos juízes respondeu
em tom resoluto: “em nenhuma hipótese. Os jornais dizem que os jurados absolvem os
criminosos, o que não vão dizer quando os juízes absolverem?” (TOLSTÓI, 2020, p. 94). À
Katiucha, então, coube a privação de todos os direitos civis e o degredo para cumprimento
de trabalhos forçados durante quatro anos.
Conforme esclarece Rubens Figueiredo, tradutor do romance para o português,
Tolstói o idealizou em junho de 1887, após travar uma conversa com Anatóli Fiódorovitch
Kóni, jurista russo, quando de sua visita à Iásnaia Poliana, a propriedade rural do escritor.
Kóni, à época, comentou com Tolstói que um jovem da nobreza russa lhe solicitara a
prestação de seus serviços advocatícios. Convocado para integrar o júri, o jovem teria
reconhecido na ré uma criada que ele próprio engravidara na propriedade de uma tia.
Dali expulsa, teria se enveredado pelos trilhos da prostituição até sua prisão, fruto de uma
acusação de roubo. Não é necessário comentar a similaridade entre essas personagens
reais e a criação ficcional tolstoiana de Katiucha e de Nekhliúdov; a descrição acima já a
revela por si mesma.
Para a composição da narrativa, com o objetivo de reunir informações precisas,
Tolstói frequentou tribunais, visitou prisões distantes, leu tratados jurídicos, estudou o
sistema penitenciário russo, adquiriu conhecimento acerca da condição circundante dos
degredados à Sibéria e entrevistou condenados a trabalhos forçados. Assim, ainda que
situado na esfera literária, o romance transcende o mero plano imaginativo, de sorte a
alcançar a realidade do cárcere russo oitocentista.
Eis a tessitura do primeiro estranhamento: Tolstói revela a proeminência da
burocracia, dos ritos formais e do egoísmo mais grosseiro e mais absurdo em detrimento
do valor atribuído ao aproveitamento da vida humana. Sob essa lente, a voz do escritor se
imiscui no romance e declara:
Rabelais escreveu que um jurista a quem procuravam para fazer um
julgamento, depois de citar todas as leis possíveis e após a leitura de vinte
páginas num latim jurídico absurdo, propôs aos litigantes tirar a sorte nos
dados: par ou ímpar. Se fosse par, a razão estaria com o autor, se fosse
ímpar, a razão estaria com o réu. O mesmo ocorria agora. Aquela decisão foi
tomada não porque todos estivessem de acordo, mas sim, acima de tudo,
porque todos estavam cansados, com vontade de se livrar o mais depressa
possível e, por isso mesmo, dispostos a concordar com a decisão que mais
rapidamente pusesse um fim a tudo aquilo. (TOLSTÓI, 2020, p. 93)

Ao penetrar, cada vez mais, nessa engrenagem, Nehliúdov deduz que ali
Não observavam a regra de perdoar dez culpados para não culpar um
inocente, ao contrário, pois, para extirpar a planta podre terminavam por
cortar a viçosa – por meio do castigo, eliminavam-se dez pessoas inofensivas,
a fim de eliminar uma verdadeiramente perigosa. (TOLSTÓI, 2020, p. 301)

Mais uma vez, o estranhamento insurge contra os olhos de madeira. Tolstói procura
desmistificar o condenado enquanto figura quimérica; procura elucidar a ausência de uma

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 212


eleição ao mal: o criminoso não carrega consigo, já ao nascer, a chaga do pecado que viria
a cometer, pois todo homem é passível de cometê-lo em algum momento da vida.
Ante o julgamento de um rapaz pobre e pródigo em relação à bebida que arrombara
a fechadura de uma taberna, julgado como uma criatura perigosa, diante da qual é
necessário proteger a sociedade, proteger os demais partícipes do pacto supradescrito, o
protagonista é tomado pelo seguinte pensamento:
Para que não existam meninos assim, é preciso esforçar-se para eliminar as
condições em que se formam essas criaturas infelizes. E o que fazemos?
Agarramos um menino desses que, por acaso, caiu nas nossas mãos,
sabendo muito bem que milhares iguais a ele continuam à solta, e o metemos
na prisão, em condições de completa ociosidade, ou então o mandamos para
o trabalho mais insalubre e absurdo, em companhia de outros que, como ele,
perderam as forças e emaranharam-se na vida. (TOLSTÓI, 2020, p. 131-132)

E o arremate final dessa epifania – o questionamento acerca de como os homens


mantêm suas traves, acerca de como mantêm seus olhos de madeira intactos:
“Que horror! Não se sabe o que é maior, aqui: a crueldade ou o absurdo.
Mas parece que tanto uma coisa como a outra alcançaram o último grau.”
Admirou-se de como pôde ficar sem perceber tudo isso antes, como outros
podiam não perceber. (TOLSTÓI, 2020, p. 132-133. Grifos meus)

A certa altura do romance, é preciso que os condenados percorram a travessia


estendida da prisão à estação de trem que os levará ao campo de trabalho forçados.
Realizada sob um sol escaldante, a travessia produz mortes de condenados em virtude de
insolação.
Nekhliúdov, ao observar um cadáver morto de exaustão, percebe que “o único
sentimento que sua morte despertou em todos foi o aborrecimento com as preocupações
causadas pela necessidade de remover aquele corpo ameaçado pela decomposição”.
(TOLSTÓI, 2020, p. 337-338)
No caminho da prisão para a estação, outros homens haviam morrido de insolação.
O narrador, a voz de Tolstói que se imiscui no romance e que delineia mais outro
estranhamento aos olhos de madeira, então assinala a feição perversa do automatismo:
Os soldados da escolta estavam preocupados não por terem morrido, sob sua
escolta, cinco pessoas que poderiam estar vivas. Interessava-lhes executar
tudo aquilo que, pela lei, se exigia naqueles casos: remover os mortos para o
lugar devido, assim como seus documentos e os seus pertences, subtraí-los
da contagem dos que era preciso levar para Níjni. (TOLSTÓI, 2020, p. 339)

Em um dos vagões, uma mulher estava a dar à luz. À intervenção de Nekhliúdov,


em uma tentativa de amenizar o parto, entretanto, seguiu-se um “ora, deixe que dê à luz.
Depois veremos”. (TOLSTÓI, 2020, p. 339)
Ao recordar a face do cadáver que vira por último, o protagonista vê-se entremeado
por assassinatos cuja culpa talvez fosse indecifrável:

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 213


O médico da prisão que examinava os prisioneiros cumpriu com rigor a sua
obrigação, separou os debilitados e ninguém poderia prever nem aquele
calor terrível nem que os prisioneiros seriam levados à rua já tão tarde e tão
aglomerados. O diretor?... Mas o diretor apenas cumpriu a determinação
de, em tal dia, encaminhar tantos condenados aos trabalhos forçados,
tantos deportados, homens e mulheres. Também não se pode ser culpada
a escolta, cuja obrigação consistia em receber, segundo uma contagem,
tantos prisioneiros em tal lugar e entregar o mesmo número em outro lugar
[...] Ninguém é culpado, mas pessoas foram assassinadas, e assassinadas,
apesar de tudo, por aquelas mesmas pessoas que não são culpadas de tais
mortes. (TOLSTÓI, 2020, p. 347)

Nekhliúdov chega à conclusão de que aquelas mortes seriam frutos do julgamento


de que há circunstâncias em que a atitude humana ante outros homens não figura uma
obrigação. Se um homem vê, à sua frente, não outro homem, igual a si, e sua obrigação
perante ele, mas um cargo oficial e suas exigências, posiciona-as acima das exigências
das relações humanas. Logo, segundo o alter ego de Tolstói,
Se for possível reconhecer que alguma coisa, seja o que for, é mais importante
do que o sentimento de amor ao ser humano, ainda que seja por uma hora,
ainda que seja só num caso excepcional, então não haverá crime que não
possa ser cometido contra as pessoas, e ninguém vai se considerar culpado.
(TOLSTÓI, 2020, p. 347)

A partir do convívio com os degredados, questionava a si mesmo: “será que estou


louco e vejo coisas que os outros não veem, ou loucos são aqueles que fazem o que estou
vendo?”
Mas as pessoas (e como eram numerosas) faziam aquilo, que tanto o
espantava e horrorizava, com uma convicção tão tranquila de que era não
apenas necessário, mas também muito útil e importante, que era difícil admitir
que toda aquela gente estivesse louca; também não podia admitir que ele
mesmo estivesse louco, porque tinha consciência da clareza dos seus
pensamentos. (TOLSTÓI, 2020, p. 405)

Os olhos de madeira principiam-se como uma cegueira voluntária – preferível à


visão do abominável, porque quem entende desorganiza a casa em que habita, porque
os gemidos dos famintos por efetiva justiça perturbam o sono dos sonsos essenciais
(LISPECTOR, 2016, p. 388).
O incômodo causado pelas reflexões de Nekhliúdov impulsiona o (dolorido)
renascimento dos olhos de madeira e ilustra o estranhamento enquanto procedimento
literário usufruído por Tolstói, cuja lente circunspecta, ante o já reconhecido, torna-o
opaco e adventício, transpondo-o ao plano da recriação. Assim, mediante Ressurreição,
o escritor recria o sistema penitenciário russo, desnuda o automatismo no qual ele está
imerso e aponta direções para que se inicie a necessária remodelação dessa engrenagem
burocrática.
Isaiah Berlin, em The Hedgehog and The Fox, declara que o gênio de Tolstói

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 214


Encontra-se na percepção de propriedades específicas, a qualidade individual
quase inexpressiva em que dado objeto é unicamente diferente de todos os
outros. Mesmo assim ele almejou um princípio universal explicativo; que é a
percepção das semelhanças ou origens comuns, ou meta única, ou unidade
na aparente variedade dos fragmentos e pedaços mutuamente exclusivos
que compõem a mobília do mundo. (BERLIN apud STEINER, 2006, p. 180),

Na concepção de George Steiner (2006, p. 180),


A percepção do específico e integral é marca característica da artesania
de Tolstói, de sua concretude sem rival. Em seus romances, cada peça da
mobília do mundo é distinta e permanece com solidez individual. Mas, ao
mesmo tempo, Tolstói foi possuído pela fome da compreensão última, pelo
desfecho totalmente inclusivo e justificado dos caminhos de Deus. Foi essa
fome que o impeliu para seus trabalhos polêmicos e exegéticos.

Essa unidade pretendida pode ser captada a partir da construção (ou da repetição)
do personagem Nekhliúdov na obra tolstoiana:
Quando Tolstói chegou a escrever Ressurreição [último romance de sua
produção], o professor e o profeta violentaram o artista. O sentido de
arquitetura e equilíbrio que até então controlara sua invenção foi sacrificado
pelas urgências da retórica. Nesse romance, a justaposição de dois modos
de vida e o tema da peregrinação da falsidade à salvação são expostos
com o despojamento de um panfleto. E, ainda assim, Ressurreição marca
a concepção definitiva dos temas que Tolstói já havia anunciado em suas
histórias iniciais. Nekhliúdov é o Príncipe Nekhliúdov do romance inacabado
de juventude A Manhã de um Proprietário de Terras. Há, entre as duas obras,
trinta e sete anos de reflexão e criação; mas o fragmento já contém, em
contornos reconhecíveis, muitos dos elementos do último romance [...] De
fato, esse personagem parece ter servido ao romancista como uma espécie
de autorretrato, cujos traços ele podia alterar na medida em que sua própria
experiência se aprofundava. (STEINER, 2006, p. 67)

Espécie de panfleto do tolstoísmo – movimento advindo sobretudo das concepções


religiosas do Tolstói senil acerca da necessidade de se alcançar a Recompensa não em
uma vida futura, mas na vida presente, acerca da rejeição a formalismos e à burocracia das
instituições estatais e eclesiásticas, acerca do desapego à matéria e acerca da descoberta
da vivência num ambiente rural como meio de salvação espiritual –, Ressurreição assinala
o retorno ao campo como correlato físico do renascimento da alma.
Antes de seguir Máslova rumo à Sibéria, Nekhliúdov resolve visitar suas
propriedades e vendê-las aos camponeses. Seus sentidos exauridos
desabrocham para a vida, ele se vê mais uma vez como era antes da “queda”
[...] A cena pastoril reforça a total compreensão de Nekhliúdov de que a
moralidade da vida urbana é fundada na injustiça. Pois na dialética tolstoiana,
a vida rural cura o espírito do homem não apenas por sua beleza tranquila,
mas também porque abre seus olhos para a frivolidade e exploração inerentes
a uma sociedade e classes [...] A terra é, ao mesmo tempo, o despertar e a
recompensa do herói tolstoiano. (STEINER, 2006, p. 68)

O romance, porém, não se reduz à apologia às ideias tolstoístas; evidencia, em

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 215


outra medida, todo o automatismo do qual o homem deve se libertar para tornar-se capaz
de penetrar as mazelas que o circundam, para tornar-se capaz de oferecer-lhes soluções.
Rememorando-se Chklóvski, o olhar tolstoiano reacende a sensibilidade do cárcere, reaviva
percepções que o hábito tornou inertes.
Ao remover o automatismo, ao afastar a observação míope, as coisas se revelam,
ante o olhar de Tolstói, como realmente são. Daí a Casa Morta ser passível de ressurreição,
de submeter-se a freios, no instante em que envereda pelo espaço delineado pela arte
tolstoiana como objeto de investigação: quando os olhos de madeira estreitam-se à
narrativa literária, cujo olhar profundo e penetrante esmiúça a completude – o todo humano,
não somente certa parte –, germina-se o estranhamento, do qual a verve russa constitui
cara fiandeira.

3 | A RUPTURA COM O AUTOMATISMO A PARTIR DE DOSTOIÉVSKI


Se Tolstói visitou prisões distantes, leu tratados de Direito Penal e entrevistou
condenados a trabalhos forçados para compor Ressurreição, Dostoiévski, também mestre
na arte de estranhar o conhecido, duela com o olhar distante de Tolstói – testemunha
ocular, não testemunha viva dos campos – quando transpõe sua profunda escavação da
memória para Escritos da casa morta, reflexão aguda acerca dos limites do humano em
face de experiência tão grosseira.
Em 1849, o autor, já em frente ao pelotão de fuzilamento, teve sua pena de morte
comutada para quatro anos de trabalhos forçados no presídio de Omsk, seguidos de mais
quatro anos de serviços como soldado raso em virtude de sua participação no Círculo de
Pietrachévski, grupo formado por membros da chamada intelligentsia russa contrários ao
regime czarista.
Guiorgui Friedlénder (apud DOSTOIÉVSKI, 2020, p. 24), grande estudioso soviético
do escritor, declara que
Em Escritos da Casa Morta, Dostoiévski aplicou um golpe demolidor na
concepção romântica do criminoso e do crime como grandezas psicológicas
sempre equivalentes. Destruiu com destreza o chavão melodramático da
representação do homem como um facínora nato ou vítima amorfa do desarranjo
social. O mundo da fortaleza de Omsk aparece em sua representação para
o leitor como um mundo que reflete de alto a baixo a Rússia inteira daquela
época, na infinita diversidade e singularidade das individualidades humanas
que o compõem.

Ainda que haja vislumbrado a facilidade com que o homem renuncia à tênue película
da civilização – a facilidade, em condições tão brutais quanto à dos galés, com que o
homem esquece-se de que é homem –, Dostoiévski revela a essência humana posta à
prova, escamoteando qualquer tentativa de reduzi-la. Empreende uma escalada rumo à
espoliação da alma, mergulha no fundo da dimensão humana. Retira do indivíduo todo o

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 216


conforto; retira-lhe seu esconderijo para tecer o ser desnudo ante a própria existência. A
literatura dostoievskiana, em Escritos da casa morta, adentra a capacidade de resistência do
homem, a sua tentativa de permanecer humano. Procura, em si e nos outros condenados,
a humanidade sombreada pelo véu da condenação.
Quase ao término da narrativa, os prisioneiros veem o voo de uma águia que,
machucada, teve de ficar algum tempo sob a companhia dos prisioneiros – a grande
metáfora dostoievskiana, no romance, para a incerteza quanto à recuperação da liberdade
perdida:
– Olha como voa! – proferiu um com ar meditativo.

– E nem olha para trás! – acrescentou outro. – Não olhou nenhuma vez,
maninhos, está indo embora [...]

– Conheço isso, é a independência. Farejou a independência.

– Quer dizer, a liberdade.

– Já a perdemos de vista, maninhos... (DOSTOIÉVSKI, 2020, p. 304)

Dostoiévski esmiúça o homem como poucos o fazem e o esmiúça em sua inteira


complexidade quando descreve a oportunidade concedida aos condenados de montarem
um espetáculo e de nele atuarem. Comenta o narrador, alter ego do escritor:
Ao término da peça a alegria geral chega ao auge. Imagine-se os grilhões,
o cativeiro, os longos anos tristes ainda pela frente, a vida monótona [...]
– e de repente todos esses oprimidos e encarcerados ganham permissão
de uma horinha para expandir-se, divertir-se, esquecer o pesadelo, montar
um verdadeiro espetáculo, e como montaram: para orgulho e admiração da
cidade inteira! “Vejam só”, diriam, “que tipo de presos são os nossos!” [...]
Bastou que deixassem aqueles pobres homens viver um pouco a seu modo,
divertir-se como gente, viver ao menos por uma hora fora das normas do
presídio – e o homem experimenta uma mudança moral, ainda que seja por
apenas alguns minutos... (DOSTOIÉVSKI, 2020, p. 202; 209)

De fato, a experiência “ensinou-lhe a saber ver não apenas um irmão até no homem
mais desprovido de importância, como no filantropismo socializante, mas sobretudo um
infeliz no criminoso; a experiência da condenação ensinou-lhe o caráter revelador da morte,
da dor, do crime”. (PAREYSON, 2012, p. 24)
A restituição da marca humana ao condenado constitui a tônica de todo o romance.
Dostoiévski escancara a desumanização à qual o prisioneiro é submetido, desvela o
automatismo circundante da redução do eu múltiplo ao eu prisioneiro. Tenta ressurgir a
madeira, a resignação para a consciência de que, ainda que criminoso, ainda que facínora,
não se lhe pode negar ser rebento humano. A reafirmação de si e dos outros prisioneiros
como gente assume essa tonalidade quando exprime:
Os presidiários [...] todo dia levavam à igreja seu mísero copeque para
comprarem uma vela ou depositarem no cofrinho. “Ora, eu também sou
gente”, talvez pensasse ou sentisse na hora de fazer o depósito, “perante
Deus somos todos iguais” [...] Quando o sacerdote [...] dizia as palavras

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 217


“mas mesmo eu sendo um bandido, aceita-me”, quase todos desabavam no
chão, fazendo retinirem seus grilhões, como se tomassem essas palavras
literalmente, para si. (DOSTOIÉVSKI, 2020, p. 278)

A tentativa de Dostoiévski quanto à ruptura do automatismo ressoa nestas palavras


de Clarice Lispector (2016, p. 387-390):
Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem
[...] Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro
para não corrermos o risco de nos entendermos [...]; essa coisa, que em
Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água
a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o
que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição [...] Se
adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a
bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime.

O estranhamento se dá, de modo alucinante, no capítulo O banho: quando Aleksandr


Pietróvitch, alter ego de Dostoiévski, adentra uma espécie de inferno dantesco, desnuda-
se o ambiente insalubre destinado aos condenados e o não reconhecimento do criminoso
enquanto homem, mas como estrangeiro em relação à própria natureza humana:
Quando abrimos a porta que dava para os banhos, pensei que tínhamos
entrado no inferno [...] No chão inteiro não havia um espacinho de um palmo
em que os presidiários não se sentassem curvados para se lavar. Outros
ensaboavam-se em pé: a água suja escorria de seus corpos diretamente para
as cabeças raspadas dos que estavam embaixo [...] O vapor aumentava a
cada minuto. Aquilo já não era calor; era uma fornalha [...] A sujeira escorria
de todos os lados. Nas costas vaporizadas, cicatrizes provenientes dos
açoites ou das vergastadas outrora recebidas costumam sobressair com uma
nitidez peculiar, de modo que agora pareciam feridas reabertas [...] Passou
pela minha cabeça que, se algum dia estivermos todos juntos no inferno, será
muito parecido com este lugar aqui. (DOSTOIÉVSKI, 2020, p. 165-166; 168)

O estranhamento à naturalização da redução do humano pela engrenagem


carcerária mecanicista também se manifesta quando se exprime que muitos condenados
sem nenhuma enfermidade fingiam-se de doentes porque, em comparação ao hospital, a
estadia nos presídios fazia com que o repouso nas enfermarias fosse vislumbrado como
um deleite; porque os médicos não os diferiam enquanto lhe direcionavam os tratamentos
adequados: o doente – sendo ou não prisioneiro – é doente em todo lugar. Assim, viam na
doença uma maneira de lhes restituírem a humanidade negada.
À luz do contato com descrições semelhantes, pensa-se ser possível o ressurgimento
dos olhos de madeira.

4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
George Steiner (2006, p. 255) enumera diferenças entre ambos os autores:
Tolstói, a mente intoxicada de razão e fato; Dostoiévski, o que desprezou
o racionalismo, o grande amante do paradoxo; Tolstói, o poeta da terra, do

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 218


ambiente rural e do espírito pastoral; Dostoiévski, o arquicidadão, o mestre
construtor da metrópole moderna na província da linguagem; Tolstói, sedento
da verdade, destruindo a si e aos que o rodeavam em sua procura excessiva;
Dostoiévski, antes contra a verdade do que contra Cristo, desconfiado do
entendimento total e partidário do mistério.

À parte as distinções de estilo e de vivência, é certo que ambos são mestres na arte
de estranhar o conhecido, o já familiarizado. A seu modo, ambos (re)constroem um terreno
adventício no lugar comum tornado familiar pelo hábito. A lente penetrante de ambos
restitui ao objeto investigado sua unicidade, capta suas singularidades, ocultadas pelo véu
do automatismo. Assim são capazes de decodificar a lógica que enlaça o aparato jurídico
ao imaginário social mediante a familiaridade de suas práticas.
Se a prisão, enquanto aparelho administrativo, constitui-se como uma “máquina
para modificar os espíritos” (FOUCAULT, 2014, p. 124), se se torna uma “espécie de
observatório permanente que permite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza”
(FOUCAULT, 2014, p. 125), “organiza-se todo um saber individualizante que toma como
campo de referência não tanto o crime cometido, mas a virtualidade de perigos contida num
indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente”. (FOUCAULT,
2014, p. 125)
O transgressor do pacto, já então metamorfoseado em inimigo do povo, adquire
uma feição quimérica, monstruosa, que beira o demoníaco. Daí a perda, ante os olhos de
madeira do coletivo, de sua condição humana.
Ressurreição e Escritos da casa morta intervêm nesse entendimento automático,
isento de deliberação, e apontam para a multiplicidade do homem e para a impossibilidade
de se lhe negar a condição que lhe é inata:
Uma das superstições mais costumeiras e difundidas é a de que cada pessoa
tem determinadas qualidades só suas [...] As pessoas são como rios: a água
é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora
rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno. Assim
também são as pessoas. Cada um traz em si o germe de todas as qualidades.
(TOLSTÓI, 2020, p. 199)

Negar a complexidade humana, reduzir o homem a uma só face, é cair no


maniqueísmo mais ingênuo.
Pico della Mirandola (2021) concebe o homem como o ser mais admirável que
repousa sobre o palco deste grande teatro que é o mundo; pois, distinto dos outros seres,
não tem nenhuma imagem que lhe seja inata: animal de natureza multiforme, ele mesmo se
fabrica. Se as demais criaturas estão encerradas no interior das leis da natureza prescritas
pelo Supremo Artífice, o homem, por sua vez, não é constrangido por quaisquer limites: é
ele quem definirá, para si, a sua lei. Na concepção do filósofo, “o Pai inseriu no homem, em
seu nascimento, as sementes de todas as possibilidades e de todas as espécies de vida;
e elas hão de crescer em cada um que as tiver cultivado, e nele produzirão seus frutos.”

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 219


(MIRANDOLA, 2021, p. 37)
Tolstói e Dostoiévski seguem, nos romances estudados, cada um à sua maneira,
a direção apontada por Mirandola. A partir do confronto entre a vastidão humana e a sua
redução ao arquétipo do prisioneiro, tornam-se capazes de frear o automatismo, de operar
a catarse do direito.
Eis a potência do estranhamento enquanto procedimento literário.

REFERÊNCIAS
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Escritos da casa morta. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis:
Vozes, 2014.

GINZBURG, Carlo. Estranhamento: Pré-história de um procedimento literário. In: GINZBURG, Carlo.


Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 15-41.

LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser.
Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 386-390.

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Elaine Cristine Sartorelli.
Belo Horizonte, Veneza: Âniyé, 2021.

PAREYSON, Luigi. Dostoiévski: Filosofia, Romance e Experiência Religiosa. Trad. Maria Helena Nery
Garcez e Sylvia Mendes Carneiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski: um ensaio sobre o Velho Criticismo. Trad. Isa Kopelman.
São Paulo: Perspectiva, 2006.

TOLSTÓI, Liev. Ressurreição. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

ZWEIG, Stefan. Montaigne e a liberdade espiritual. In: ZWEIG, Stefan. O mundo insone e outros
ensaios. Trad. Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 54-57.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Capítulo 17 220


ADAYLSON WAGNER SOUSA DE VASCONCELOS - Doutor em Letras, área de
concentração Literatura, Teoria e Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB, 2019). Mestre em Letras, área de concentração Literatura e Cultura, pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB, 2015). Especialista em Prática Judicante
pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB, 2017), em Ciências da Linguagem
com Ênfase no Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB, 2016), em Direito Civil-Constitucional pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB, 2016) e em Direitos Humanos pela Universidade Federal
de Campina Grande (UFCG, 2015). Aperfeiçoamento no Curso de Preparação
à Magistratura pela Escola Superior da Magistratura da Paraíba (ESMAPB,
2016). Licenciado em Letras - Habilitação Português pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB, 2013). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João
Pessoa (UNjPÊ, 2012). Foi Professor Substituto na Universidade Federal da
Paraíba, Campus IV – Mamanguape (2016-2017). Atuou no ensino a distância na
SOBRE O ORGANIZADOR

Universidade Federal da Paraíba (2013-2015), na Universidade Federal do Rio


Grande do Norte (2017) e na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (2018-
2019). Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraíba
(OAB/PB). Desenvolve suas pesquisas acadêmicas nas áreas de Direito (direito
canônico, direito constitucional, direito civil, direitos humanos e políticas públicas,
direito e cultura), Literatura (religião, cultura, direito e literatura, literatura e direitos
humanos, literatura e minorias, meio ambiente, ecocrítica, ecofeminismo, identidade
nacional, escritura feminina, leitura feminista, literaturas de língua portuguesa,
ensino de literatura), Linguística (gêneros textuais e ensino de língua portuguesa)
e Educação (formação de professores). Parecerista ad hoc de revistas científicas
nas áreas de Direito e Letras. Organizador de obras coletivas pela Atena Editora.
Vinculado a grupos de pesquisa devidamente cadastrados no Diretório de Grupos
de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Orcid: orcid.org/0000-0002-5472-8879.

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Sobre o o organizador 221


A
Agentes jurídicos 1, 2
C
Consumo pessoal 2, 90, 92, 93, 95, 97
Crime de estupro de vulnerável 2, 31, 32, 33, 36, 37, 39

D
Democracia 2, 5, 77, 202, 203, 204, 205
Direito 1, 2, 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 22, 25, 26,
27, 31, 32, 34, 36, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 49, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
59, 62, 63, 65, 67, 68, 69, 72, 73, 74, 76, 79, 81, 83, 85, 87, 89, 94, 96, 99, 100,
101, 102, 103, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 114, 115, 116, 117, 118, 120, 121,
122, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 134, 137, 138, 139, 140, 142, 145,
147, 148, 149, 151, 152, 153, 166, 168, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181,
ÍNDICE REMISSIVO

182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 193, 200, 201, 202, 205, 207, 209,
210, 216, 220, 221
Direito de ir e vir 2, 1, 3, 6, 7, 8, 9, 102
Direitos reprodutivos 2, 15, 17, 19, 20, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30
Drogas ilícitas 2, 88

E
Enfermagem 2, 117, 118, 119, 122, 124, 125, 128
F
Filiação 2, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 201
Função social da propriedade 2, 129, 130, 143, 145, 147, 148, 149, 151

H
Homotransfobia 2, 41, 42, 43, 44, 45, 49, 50, 52, 53, 54
I
Ideias 1, 2, 68, 78, 109, 113, 187, 215
Instituições 1, 2, 21, 23, 26, 29, 64, 76, 109, 113, 151, 162, 163, 171, 181, 210,
215

J
Justiça 2, 15, 16, 20, 25, 26, 27, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 69,
70, 76, 91, 135, 147, 148, 151, 175, 193, 200, 201, 214

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Índice Remissivo 222


L
Literatura 2, 60, 68, 77, 169, 207, 217, 221
M
Maioridade penal 2, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106
P
Piso salarial 2, 117, 118, 119, 124, 128
Práticas 1, 2, 18, 22, 27, 29, 77, 87, 112, 113, 115, 156, 161, 162, 164, 170, 207,
219

R
Racismo 2, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 41, 42, 48, 49, 50, 52,
53, 54, 55, 114
Relação sugar 2, 182, 183, 192, 193, 194, 196, 197, 198, 199
ÍNDICE REMISSIVO

Relações afetivas 182


S
Saúde 2, 2, 4, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30,
81, 82, 83, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 96, 97, 100, 102, 103, 114, 117, 118, 119,
120, 121, 122, 128, 177, 192
Segurança pública 2, 107, 108, 115, 202

U
Unidade de conservação 2, 153, 155, 162, 164, 169
Usucapião urbana coletiva 2, 129

V
Vingança privada 2, 56, 59, 60, 61, 64, 65, 66
Violência contra a mulher 2, 82

Direito: Ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos Índice Remissivo 223

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