A República e A Educação
A República e A Educação
A República e A Educação
Joaquim Pintassilgo
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Centro de Investigação em Educação
O presente texto tem por finalidade reflectir sobre alguns dos grandes princípios
em que assentava o discurso pedagógico do republicanismo e sua relação com
experiências educativas concretas desenvolvidas durante o período republicano. Ainda
que produzido no âmbito das comemorações do centenário da República, não se
pretende de apologia desse efémero momento histórico, sublinhando os elevados ideais
pedagógicos então propostos, nem sequer de crítica aos supostos limites da sua
concretização. A República foi, apesar de curto, um período de enorme riqueza e
diversidade, tanto no que se refere à reflexão pedagógica produzida como no que diz
respeito às muitas iniciativas desenvolvidas, em particular no campo da educação
popular, iniciativas essas resultantes do esforço de sectores muito diversificados (lojas
maçónicas, associações operárias, etc.), muitas delas originárias, não do governo
republicano, mas do que poderíamos considerar a sociedade civil desse tempo. Ao
inserirmo-nos na comemoração deste centenário pretendemos, acima de tudo, interpelar
a República naquilo que ela tem de presente para nós e que nos permite estabelecer um
diálogo com os seus actores, os seus projectos, as suas experiências.
português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem escrever. O discurso
então difundido, em particular pelos republicanos, dramatiza ao limite esse problema e
pressupõe um olhar acentuadamente desvalorizador sobre a figura do analfabeto,
colocado na antecâmara da “civilização” e a quem é atribuída uma espécie de
menoridade cívica. O analfabeto, pela sua incapacidade de aceder à cultura escrita, não
estaria em condições de ser o cidadão-eleitor, consciente e participativo, almejado pela
República. Assim se explica o investimento simbólico nesse combate e o
desenvolvimento de múltiplas iniciativas no campo da alfabetização, tanto de crianças
como de adultos, cujo exemplo mais emblemático é constituído pelas Escolas Móveis
pelo Método de João de Deus (Pereira, 1998). Assim se explica, também, a estreita
articulação então fomentada entre alfabetização e educação cívica, no âmbito de um
projecto global de formação do cidadão. A aprendizagem de competências ao nível do
ler, escrever e contar surge em paralelo com as preocupações relativas à interiorização,
por parte dos futuros cidadãos, dos novos valores laicos e patrióticos associados ao
republicanismo.
Vão conhecer, igualmente, a luz do dia várias outras experiências nos terrenos
da educação popular, dinamizadas por sectores políticos e sociais muito diversificados -
do Estado à iniciativa particular, do republicanismo e da maçonaria ao anarquismo, das
associações operárias à intelectualidade - e assumindo formas muito diversas, como
creches e asilos, escolas operárias, escolas de centros republicanos, etc. (Candeias,
1981; 1985; 1987a). Refiramos, introdutoriamente, a título de exemplo, duas dessas
instituições, começando por uma das mais prestigiadas e bem sucedidas, a Voz do
Operário, criada em 1883, já depois do início da publicação da revista com o mesmo
nome, por iniciativa dos manipuladores de tabaco, que abriu a primeira escola em 1891
e, na década de 20, já tinha mais de 70.000 sócios e sustentava ou apoiava mais de sete
dezenas de escolas de primeiras letras (Lopes, 1995; Mesquita, 1987; Tavares &
Pimenta, 1987).
No que diz respeito ao carácter inovador das suas opções pedagógicas, a mais
emblemática das experiências então desenvolvidas foi a da Escola Oficina n.º 1, situada
no bairro da Graça em Lisboa e criada em 1905 por uma associação maçónica. A partir
do momento em que se passou a fazer sentir a influência de um grupo de professores
libertários (em particular de Adolfo Lima) a escola tornou-se um ex libris da chamada
Educação Nova em Portugal e lugar de experiências várias, designadamente no que diz
respeito à autonomia dos alunos - através da criação de uma associação designada por
4
1
Relatorio. 1910-1911. Revista de Educação Geral e Técnica, Vol. I, Nº 1, Janeiro 1911, p.151.
2
Actas das sessões. Sessão de 20 de Novembro de 1912. Revista de Educação Geral e Técnica, Série II,
Nº 2, Julho 1913, p.150.
3
Sociedade de Estudos Pedagógicos. Fins da Sociedade. Revista de Educação Geral e Técnica, Vol. I,
No. 1, Janeiro 1911, p.89.
5
procura marcar o contraste com o “espírito antigo”5. Essa afirmação radical do novo
convive, no entanto, com alguma ambiguidade que decorre da procura da sua
legitimação histórica. Para além do enraizamento numa certa tradição (inovadora), há
que chamar a atenção para a consciência que se forma relativamente às implicações
decorrentes da penetração do discurso pedagógico por uma retórica científica
decorrente, em grande medida, da influência da psicologia. Igualmente muito usados
são outros dos “slogans” mobilizadores associados à Educação Nova, como sejam os
referentes aos “métodos activos”, ao “método intuitivo” ou às “lições de coisas”,
apresentados geralmente como novidades, sem ter em conta a sua historicidade, e sem
grande reflexão sobre os sentidos diversos que essas expressões podiam então assumir,
com os inerentes riscos de alguma ambiguidade. Estas noções acabam por circular no
seio desta comunidade como uma espécie de lugares-comuns do discurso pedagógico
(Hameline, 2001; Kahn, 2002). Outro dos temas centrais que podemos identificar é o
que se prende com o ideal de educação integral do indivíduo, um tema com presença
constante na história do pensamento pedagógico, e que é então reactualizado, com
importantes consequências no desenvolvimento de áreas como a Educação Física, os
Trabalhos Manuais ou a Educação pela Arte.
Nas sessões da Sociedade emerge também, com alguma regularidade, o velho
debate sobre a relação entre os dois termos do binómio instrução e educação. A posição
dominante é a que sublinha a falsidade da antinomia. Na conjugação operada surgem,
mesmo assim, com mais destaque os temas educativos, em contraponto à retórica do
republicanismo oficial, muito centrada na luta contra o analfabetismo. É por isso que
vamos encontrar, entre as preocupações mais presentes nos artigos e nos debates, a
relativa à importância da Educação Moral e Cívica. As estratégias para a sua
concretização não são, no entanto consensuais, conduzindo a acalorados debates sobre
temas como o self-government escolar, as festas cívicas ou educativas, a preparação
militar ou o escutismo.
5
Cardoso Gonçalves. O Método de Maria Montessori. Revista de Educação Geral e Técnica, Série IV, Nº
4, Abril 1914, pp.305-321.
9
para essa área, conhecidas por universidades livres ou universidades populares, de entre
as quais podemos destacar as universidades populares fundadas, a partir de 1912, pela
Renascença Portuguesa (Porto, Coimbra, Vila Real e Póvoa do Varzim), a Universidade
Popular Portuguesa, criada em Lisboa em 1919 (Bandeira, 1994; Fernandes, 1993;
2001; Marques, 1999; Neves, 1997), a Universidade Livre para Educação Popular,
fundada em 1912 em Lisboa, e a Academia de Estudos Livres – Universidade Popular,
que iremos apresentar a seguir.
A Academia de Estudos Livres foi fundada em 1889. A iniciativa pertenceu à
Maçonaria, através da loja «Simpatia e União» de Lisboa. Os seus Estatutos originais
foram aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. São aí assumidos como
objectivos “desenvolver o gosto pelo estudo e pela ciência” e “proporcionar aos sócios o
conhecimento das ciências”. Tendo em vista a sua consecução, são previstas as
seguintes actividades:
6
Estatutos da Academia de Estudos Livres. Aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. Lisboa,
Tipografia Castro Irmão, 1889, p.5.
7
Academia de Estudos Livres - Universidade Popular. Novos Estatutos. Aprovados por Alvará de 24 de
Março de 1904. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904.
8
Regulamento Geral da Escola Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo (Aulas
gratuitas para crianças pobres). Secção no Alto do Pina da Academia de Estudos Livres – Universidade
Popular. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904.
10
Não deixa de ser curioso o facto de ambas as entidades serem de iniciativa maçónica.
Os propósitos enunciados – e, em particular, “o derramamento da instrução popular” -
são, de resto, coerentes com o contexto doutrinário em que a escola se insere, sendo
igualmente significativo o nome da loja maçónica de onde ela emana – “razão
triunfante”. A assunção do Marquês de Pombal como seu patrono é bem sintomática da
incorporação desse vulto do absolutismo reformista – por via da sua política anti-
jesuítica - na memória da nação, tal como é reconstruída pelo republicanismo, que se vai
tornando a ideologia dominante nas lojas.
A escola começa a funcionar na Portela de Sacavém (arredores de Lisboa) com
40 crianças pobres de ambos os sexos e uma professora, sendo transferida em 1899 para
o já referido Alto do Pina. Em 1904, “quando se dissolveu o Grande Oriente de
Portugal, em que estava filiada a loja maçónica Razão Triunfante, que ainda tinha a
escola sob a sua protecção”10, desenvolveram-se, então, negociações entre os dirigentes
de ambas as instituições que concluíram com a integração da escola na Academia,
aprovada nas respectivas assembleias gerais (8 e 9 de Setembro). O Regulamento Geral,
então aprovado, anexa igualmente ao título a expressão «Aulas gratuitas para crianças
pobres», especificando que se pretende “ministrar nesta Secção o ensino primário (1º e
2º grau), gratuito para crianças pobres de ambos os sexos, dos 6 aos 12 anos de idade”,
para além de promover “conferências e outros trabalhos educativos”. A instituição
compromete-se, ainda, a distribuir “livros e outros auxílios a alunos órfãos e de pobreza
manifestamente reconhecida”11. As preocupações com a educação popular e o
filantropismo típico da maçonaria são uma presença visível.
O Regulamento Geral em apreciação define as aulas como “diurnas” e
manifesta, ainda, a preocupação com a necessidade de uma definição clara do tempo
9
Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história. A Mocidade. Folha quinzenal,
Ano 1, N.º 19, 20 Junho 1911, p.7.
10
Idem., p.8.
11
Regulamento Geral da Escola Marquês de Pombal..., p.3.
11
escolar, tanto no que se refere ao calendário – fixado entre Outubro e Agosto – como ao
horário quotidiano, entre as 9h e as 16h, entrecortado por intervalos de 10m ao fim de
cada hora, “para descanso dos alunos”, e de uma paragem de 30m para uma refeição. As
aulas funcionariam “em todos os dias não declarados feriados”, sendo “as disciplinas a
ministrar... as dos programas primários oficiais”12. Fica claro que a educação popular a
fomentar pelo movimento associativo de inspiração maçónica tem como referência o
modelo escolar de educação então em fase de implementação, designadamente no que
se refere às coordenadas espaciais e temporais do mesmo, já impregnadas de
pressupostos de natureza pedagógica. Não é, por isso, de estranhar que se pretenda
submeter os alunos a mecanismos de vigilância e de controlo disciplinar típicos do
modelo escolar:
12
Idem., p.6.
13
Idem., p.5.
14
Idem., pp.8-9.
12
15
Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história. A Mocidade..., Ano 1, N.º 19, 20
Junho 1911, p.8.
16
Academia de Estudos Livres – Ano Lectivo de 1910-1911. A Mocidade..., Ano 1, N.º 16, 1 Maio 1911,
p.2.
13
«Unificação de Itália» (Agostinho Fortes). Para além da relevância dos temas ligados à
História e à Literatura portuguesas, por razões que se prendem com formação cultural
de cariz patriótico pretendida pelos sectores republicanos, sublinhe-se a presença dos
temas científicos, em conformidade com a ideia, muito presente nos meios ligados à
educação popular, de que é possível levar esses conhecimentos até ao povo.
As visitas de estudo e excursões constituíam uma das actividades mais
acarinhadas pela Academia. Nesse ano foram visitados, entre outros, os locais a seguir
indicados: a cidade de Tomar, o Mosteiro dos Jerónimos, o Museu Nacional de Belas
Artes, o Museu Nacional dos Coches, o Aqueduto das Águas Livres, uma Fábrica de
Chocolate, a Vila de Sintra (numa visita guiada por um arquitecto muito ligado às
construções escolares - Adães Bermudes), a Torre de Belém, A Figueira da Foz e o
Buçaco (neste caso uma excursão no Verão) e a Estação Elevatória de Água dos
Barbadinhos. A Academia – como, de resto, todos as escolas da época que afirmam
fazer “educação moderna” – é fortemente marcada pelo seu carácter excursionista. As
saídas são muito frequentes e tanto têm como objectivo a visita a monumentos e museus
– tendo em vista o aproveitamento das potencialidades educativos que lhe estão
subjacentes -, a fábricas, para um contacto in loco com a realidade social, ao campo ou à
praia, na procura dos benefícios decorrentes de uma relação mais próxima com a
natureza e dos exercícios físicos a ela inerentes.
Foram, igualmente, realizados vários concertos de música clássica, para além de
concertos com o Quarteto Silveira Pais, o professor de música na Academia.
Encontramos aqui espelhada, de novo, a crença na possibilidade de popularizar uma arte
e uma cultura consideradas, à partida, como de carácter erudito e dirigidas a um público
mais elitista. O quotidiano da Academia e da sua escola era, ainda, pontuado pela
realização de festividades diversas, de que são exemplo a festa de aniversário da escola,
a festa evocativa do aniversário da morte de Camões (10 de Junho) ou a Festa da
Árvore, para além de outros eventos comemorativos, como o relativo à unificação
italiana ou o cortejo aos Jerónimos em homenagem a Alexandre Herculano.
5. Considerações finais
Referências
Candeias, A. (1993). A Escola Oficina n.º 1 de Lisboa. 1905-1930: mudar a escola para
mudar o mundo. Análise Psicológica, XI (4), 447-463.
Hameline, D. (2001). Nouvelle? Vous avez dit «nouvelle»? Les Cahiers Pedagogiques,
395, 31-33.