Espiritualidade Cristã Completo

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ESCOLA CONVERGÊNCIA

de teologia & vida cristã

ESPIRITUALIDADE
CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida
Profunda em Deus

Monte Mor/SP
2018
Esta apostila foi redigida a partir das videoaulas ministradas na Escola
Convergência de Teologia & Vida Cristã EAD (Ensino a Distância) e
outros materiais didáticos relacionados, cujas referências constam no
corpo da mesma.

Copyright© 2018 por Escola Convergência
Todos os direitos reservados

Autor:
Harlindo de Souza

Compilação e Elaboração de Texto:


Larissa Ramos Theodosio

Revisão Teológica:
Harlindo de Souza

Revisão Final:
Maria de Fátima Barboza

Diagramação:
Fabi Vieira

Esta apostila ou qualquer parte dela não pode ser reproduzida
ou usada de forma alguma sem autorização expressa da Escola
Convergência, exceto pelo uso de citações breves desde que
mencionada a fonte, com endereço postal e eletrônico.

ESCOLA CONVERGÊNCIA
www.escolaconvergencia.com.br
[email protected]
(19) 98340-8088
Sumário
Aula 1
A Disciplina da Meditação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Aula 2
A Disciplina de Oração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Aula 3
A Disciplina do Jejum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

Aula 4
A Disciplina do Estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

Aula 5
A Disciplina da Simplicidade e da Solitude . . . . . . . . . . . . . . . 57

Aula 6
A Disciplina da Submissão e do Serviço . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Aula 7
A Disciplina da Confissão e da Adoração . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

Aula 8
A Disciplina da Orientação e da Celebração . . . . . . . . . . . . . . . 103
Aula 1
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DA MEDITAÇÃO
INTRODUÇÃO

A palavra “discípulo” aparece duzentas e sessenta e nove vezes no Novo Testamen-


to enquanto “cristão” apenas três vezes, sendo esta usada pela primeira vez justa-
mente para se referir aos discípulos. O Novo Testamento é um livro escrito sobre
discípulos, por discípulos e destinado aos discípulos de Cristo.
Por várias décadas as igrejas no Ocidente não fizeram do discípulo um requisito
para ser cristão, ou seja, não se exigiu ser ou querer ser um discípulo para tornar-se
cristão. No que diz respeito às instituições cristãs de nosso tempo, o discipulado é
claramente opcional.
Porém, a Grande Comissão de Jesus para a Igreja instituiu um modelo diferente.
O primeiro objetivo apresentado à igreja primitiva foi utilizar-se do seu poder e
autoridade abrangentes para fazer discípulos. Depois de se tornarem discípulos

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

deveriam ser batizados no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Com essa du-
pla preparação seriam, então, instruídos a guardar e observar tudo o que Jesus havia
ordenado (Mt 28.20). Sem transformar os convertidos em discípulos é impossível
ensiná-los a viver conforme Cristo viveu e ensinou.
No tempo em que Jesus viveu na terra havia certa simplicidade em ser discípulo.
Isso significava, principalmente, segui-lo em atitude de estudo, obediência e imi-
tação. Não havia curso por correspondência, como nos dias de hoje. As pessoas
sabiam o que fazer e qual o custo disso. Simão Pedro exclamou: “Nós deixamos tudo
para seguir-te!” (Mc 10.28 – NVI). Apesar do alto preço, o discipulado tinha um
significado bastante claro e direto. Hoje o mecanismo é diferente, pois não pode-
mos estar com Jesus literalmente como estiveram os primeiros discípulos. Contu-
do, as prioridades e intenções – o coração e as atitudes interiores – do discípulo
são sempre as mesmas. No coração de um discípulo há sempre desejo, decisão e
intenção clara. O discípulo de Cristo deseja, acima de tudo, ser semelhante a ele.

O discípulo é aquele que reorganiza


sistemática e progressivamente a sua
vida, visando tornar-se como Cristo
e permanecer em sua fé e prática.

DISCIPLINAS ESPIRITUAIS

Encontramos nas disciplinas espirituais um meio de alcançar o objetivo destacado


acima, pois elas abrem as portas para nos afastar da superficialidade que predomina
no tempo em que vivemos. A falta de profundidade intelectual, espiritual, e nos
relacionamentos permeia todas as camadas da sociedade, e cada vez mais nos deixa
afastados de Deus, das pessoas ao nosso redor, e até de nós mesmos. Isso faz com
que, atualmente, a necessidade de profundidade se torne uma urgência social.

Espiritualidade é a expressão prática


da fé que professamos.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

O caminho para uma vida espiritual e da prática das disciplinas espirituais, podem
nos livrar da maldição da superficialidade ao nos fazer encontrar, na profundidade
do nosso coração, o Deus que habita em nós. A partir desse encontro, começamos
a ter uma conexão muito mais forte com o próximo e com a nossa própria alma, ou
seja, lidando com os nossos anseios e permitindo, inclusive, interpretar da maneira
correta e até filtrar coisas que se passam dentro de nós. Se não fosse através das prá-
ticas e tradições da espiritualidade, provavelmente, estaríamos perdidos em meio à
confusão mental e relacional que a maioria das pessoas hoje em dia experimentam.
Não devemos pensar que a espiritualidade é apenas para quem julgamos ser "mui-
to espiritual", nem somente para aqueles que devotam todo seu tempo à oração e
meditação. Ao contrário disso, o desejo de Deus é que as disciplinas sejam pratica-
das por seres humanos comuns, envolvidos em suas rotinas ordinárias de trabalho,
criação de filhos, cuidados com a casa, e em seus relacionamentos diários.¹
Na vida de oração e meditação é preciso ter humildade e saber aceitar conselhos sá-
bios. A orientação espiritual é uma necessidade para quem pretende aprofundar-se
na vida das disciplinas espirituais. Ninguém pode enfrentar as dificuldades da vida
de meditação e oração sem estar plenamente satisfeito em ser um iniciante e ver a
si próprio como alguém que sabe pouco ou nada, por isso, está desesperado para
aprender seus simples rudimentos. Os que acham que “sabem” desde o início, na
verdade, nunca conheceram nada.

Temos de ter em mente que somos


sempre iniciantes em relação às
disciplinas espirituais. Mesmo depois
de as praticar por diversos anos,
estaremos sempre aprendendo.

As disciplinas não devem ser consideradas como uma prática penosa e cansativa.
O tom mais básico da espiritualidade cristã é o contentamento, e o propósito é li-
bertar o homem da escravidão do seu próprio ego. Lembre-se do contexto em que
Paulo declarou saber estar satisfeito em todas as circunstâncias.

"Sei passar necessidade e sei também ter muito; tenho experiência diante
de qualquer circunstância e em todas as coisas, tanto na fartura como na

1. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Paulo:
Editora Vida, 2007, p. 30.

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fome; tendo muito ou enfrentando escassez. Posso todas as coisas naquele


que me fortalece." (Fp 4.12,13)

Paulo se refere a "poder todas as coisas naquele que o fortalece" como quem pode
suportar qualquer coisa por causa da graça de Deus que operava nele. Existem rea-
lidades que experimentamos que são impossíveis de serem contornadas, sofrimen-
tos impossíveis de serem evitados, e a única coisa que nos resta como escape é o
encorajamento provido pela graça de Deus. É a graça que nos permite suportar to-
das as coisas, experimentando alegria e contentamento, apesar da tribulação, para
a glória de Deus.
Então, não precisamos ter uma teologia avançada para praticar as disciplinas. Os re-
cém-convertidos – pessoas que ainda precisam se entregar completamente a Jesus
Cristo – podem e devem praticar essas disciplinas. Todos nós, na verdade, preci-
samos nos encarar como um iniciante nas práticas espirituais; por toda nossa vida
precisamos conservar uma postura humilde de iniciante na vida do espírito, caso
contrário, veremos nosso progresso se tornando cada vez mais lento por pensar-
mos ter alcançado algo.²
O apóstolo Paulo é um exemplo bíblico de alguém que, apesar de todo conheci-
mento que possuía, não considerou ter atingido um status de aprovação diante de
Deus, como se já não houvesse nada mais do que poderia aprender sobre o Senhor
e com o Senhor.

"Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado; mas faço o se-
guinte: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando
para as que estão adiante, prossigo para o alvo, pelo prêmio do chamado
celestial de Deus em Cristo Jesus." (Fp 3.13,14)

Davi, conhecido por ser "o homem segundo o coração de Deus" ou "o homem se-
gundo as emoções de Deus", escreveu salmos que descreviam sua alma derramada
de anseio por mais do próprio Deus.

“Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti,
ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando poderei
entrar para apresentar-me a Deus?” (Sl 42.1,2 – NVI)

2. Id. Ibid.

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Da mesma forma, ao longo da história da igreja, os homens e as mulheres mais


relevantes ao corpo de Cristo foram aqueles que conservaram uma postura de de-
pendência e humildade. Todo cristão precisa ter em vista que todo conhecimento
a respeito do Senhor é pequeno diante da majestade divina, e muito pouco compa-
rado à eternidade.

"Quem não deixa de caminhar, mesmo que tarde, afinal chega. Para
mim, perder o caminho é abandonar a oração." (Santa Teresa de Ávilla)³

"Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei!
Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora! (...) Tu me
chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste
e tua luz afugentou minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respi-
rando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de
ti. Tu me tocaste, e agora ardo no desejo de tua paz." (Santo Agostinho)4

OBSTÁCULOS À VIDA ESPIRITUAL

Nessa jornada, aqueles que estão frustrados com as experiências fúteis e ensinos
rasos, mas que ouvem o chamado para um viver mais profundo e pleno, imediata-
mente se deparam com algumas dificuldades.
O fato de vivermos em uma época fundamentada no materialismo incita dúvidas na
busca por algo que esteja além do mundo físico. A espiritualidade é vista com des-
confiança pela sociedade que não considera a necessidade de um encontro entre o
homem e Deus. É preciso coragem para assumir e crer nas coisas eternas para uma
sociedade que supervaloriza o material. 5
Há também uma dificuldade prática: não sabemos como partir para a exploração da
vida interior. Porém, isso nem sempre foi assim. O contexto do qual as disciplinas
espirituais nasceram destoa do nosso estilo de vida contemporâneo, o qual busca
a satisfação instantânea, o desejo de fazer com que as coisas sejam cada vez mais

3. Santa Teresa de Ávilla. Opúsculos. 1990. Disponível em: https://formacao.cancaonova.com/diversos/


citacoes-utilizadas-por-santa-teresa-davila/. Acesso em: 31 mar. 2022.
4. Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Principis, 2019, p. 197.
5. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 31.

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rápidas e acessíveis a um toque das nossas mãos. As disciplinas derivam de um con-


texto cultural onde se entendia a natureza do mundo e que nada que vale a pena,
nada que é duradouro, pode ser conquistado simplesmente num piscar de olhos ou
de uma noite para o dia; não é assim que coisas profundas são conquistadas.
A própria Bíblia nos convida a praticar uma série de disciplinas, ainda que não
forneça orientações detalhadas de como praticá-las. Mas é fácil entender o motivo:
as disciplinas eram praticadas com tanta frequência, e estavam tão incorporadas à
cultura em geral, que o “como fazer” era do conhecimento de todos. Por isso, esse
contraste estabelecido entre o tempo bíblico e os dias de hoje faz com que o ensino
de como praticar e exercitar as disciplinas espirituais se torne uma necessidade ur-
gente. Podemos, então, nos voltar para a tradição e os homens que registraram suas
experiências ao longo da história, os quais podem transmitir sabedoria para nós.6

A TRANSFORMAÇÃO INTERIOR

Quando falamos de espiritualidade é importante destacar que o conhecimento da


prática das disciplinas não significa que elas estão sendo realmente praticadas. Se o
nosso interior não estiver sendo verdadeiramente exposto à luz da palavra de Deus
e à sua presença, a mera atitude mecânica da prática da disciplina não o fará entrar
na realidade de uma vida espiritual e piedosa.
A condição pecaminosa é o estado em que a humanidade se encontra e é afligida
por ela. A escritura relata que "todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus"
(Rm 3.23), e, por isso, tudo que produzimos tem resquício de pecado. Nesse sen-
tido, o homem está sempre lidando com o seu pecado que permeia cada parte da
sua constituição moral, e, por isso, faz parte da sua natureza inclinar-se para o erro,
de tal modo que o espírito milita contra a carne. No entanto, no combate contra os
desejos da carne, corremos o risco de guerrear da forma errada.
Geralmente, o método habitual que utilizamos para lidar com o pecado é atacan-
do-o de frente. Confiamos na força de vontade e na determinação que possuímos.
Qualquer que seja o nosso problema, nos determinamos a nunca cometer mais o
erro, aplicamos nossa vontade e lutamos contra ele. A luta, porém, é inteiramente
vã se ao pensarmos que por nossos próprios meios colheremos vitória na guerra
contra o pecado, quando na verdade podemos estar alimentando o nosso orgulho
pessoal e autodependência.7

6. Id. Ibid., p. 32.


7. Id. Ibid., p. 33.

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A força de vontade jamais será bem-sucedida na luta contra os hábitos pecamino-


sos que estão profundamente arraigados em nós. Paulo pontua isto na carta aos
colossenses, quando o esforço humano implica em devoção externa e não bíblica
para produzir santidade; ele os descreve como falsa devoção e falsa humildade, sem
valor algum para a santificação:

"Visto que morrestes com Cristo para os espíritos elementares do mundo,


por que vos sujeitais ainda a mandamentos como se vivêsseis no mundo,
tais como não toques, não proves, não manuseies? Todas essas coisas
desaparecerão com o uso, pois são preceitos e doutrinas dos homens. Na
verdade, esses mandamentos têm aparência de sabedoria em falsa
devoção, falsa humildade e severidade para com o corpo, mas não
têm valor algum no combate aos desejos da carne." (Cl 2.20-23)

Heinrich Arnold diz: “Enquanto acharmos que podemos salvar a nós mesmos com a
força de vontade, só faremos a maldade dentro de nós ficar ainda mais forte”. 8
É um equívoco pensar que a mera boa vontade e esforço próprio, por si só, seja a garan-
tia de obtermos bons resultados. Graves erros podem ser cometidos mesmo se tendo
boas intenções. O esforço pode produzir uma demonstração exterior de sucesso du-
rante certo tempo, mas em algum momento nossa condição íntima será revelada.
Por meio da vontade as pessoas conseguem resultados externos satisfatórios, mas
cedo ou tarde chegará aquele momento irrefletido em que a “palavra inútil” esca-
pará, revelando a condição real do coração. Se estivermos cheios de compaixão,
isso será revelado; se estivermos cheios de amargura, isso também será revelado.
Não que planejemos ser assim, mas quando estamos diante das pessoas aquilo que
somos acaba se manifestando.9

“A força de vontade por si só tem a mesma


deficiência que a Lei – só consegue lidar
com a aparência. Ela é incapaz de gerar a
transformação que o espírito necessita.”10

8. ARNOLD, Heinrich. Freedom from Sinful Thoughts. Rifton: Plough Publishing House, 1973 apud FOS-
TER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Paulo: Edi-
tora Vida, 2007, p. 34.
9. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Paulo:
Editora Vida, 2007, p. 35.
10. Id. Ibid.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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Quando encaramos a verdade de que somente nossa força de vontade e determi-


nação são vãs para produzir qualquer tipo de transformação interna, perceberemos
que nossa miséria, fraqueza e pobreza de espírito precisam nos levar humildemen-
te à condição de homens e mulheres que dependem profundamente do Senhor. A
contrição de espírito e coração é a primeira bem-aventurança ensinada por Jesus
em seu Sermão no Monte.

"Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino do céu." (Mt 5.3)

A primeira bem-aventurança é muito significativa para determinar todas as virtudes


dos que foram alcançados pela nova vida em Cristo. Os participantes do reino de
Deus têm como característica a pobreza de espírito, que nada tem a ver com uma
personalidade tímida, acovardada ou fraca. O significado de pobre de espírito pode
ser visto na vida de Jesus que embora sendo Deus, não considerou que isto era algo
do qual deveria se apegar (Fp 2.6), e, além disso, em toda sua vida o Deus-Homem
declarava total dependência de seu Pai:

"Não posso fazer coisa alguma por mim mesmo (...)" (Jo 5.30a)

Se torna fácil compreender o que é ser humilde de espírito ao observar a vida do


nosso Senhor Jesus e quantas horas ele passava em oração, e o quanto dependia de
Deus Pai.
Segundo Lloyd-Jones, ser humilde de espírito consiste em depender profundamente
do Senhor, perceber que diante da sua presença nada temos a oferecê-lo, e isto nos
encaminha para uma sagrada submissão à sua vontade e seus mandamentos, depen-
dendo inteiramente da sua misericórdia e graça para tudo que viermos a fazer.11
Logo, a verdadeira santificação não consiste em formalismo externo ou devoção
exterior, é uma obra que só Deus pode realizar no homem. A mudança interior não
é algo que podemos confiar em nós mesmos para alcançar, mas confiar e depender
da obra e da graça de Jesus para sermos santificados. Por isso é um dom recebido, e
não uma justiça da qual podemos alcançar. 12

11. LLOYD-JONES, David Martyn. Estudos no Sermão do Monte. São Paulo: Editora Fiel, 2009, p. 45
12. Owen, John. O Espírito Santo. 2013. E-book (p. 106-107). Disponível em: https://ler.amazon.com.br/
reader?asin=B00CQBRQI0&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 4 mar. 2022.

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As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Assim como o corpo recebe força e capacidade da cabeça, os membros recebem supri-
mentos para a sua santificação providos por Jesus, por meio do Espírito Santo
Fomos enxertados em Cristo e só podemos frutificar se estivermos unidos com ele.13

"Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que
está em mim e não dá fruto, ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o
limpa, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra que vos
tenho falado. Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. O ramo
não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira; assim
também vós, se não permanecerdes em mim." (Jo 15.1-4)

Entretanto, ao fazer essa fascinante descoberta, corremos o risco de cometer um


engano: acreditar que não há nada que possamos fazer. Se é Deus quem, por ele
mesmo, realiza em nós a santificação, porque devemos, então, empenhar obediên-
cia, ao invés de esperar até que Deus venha e nos transforme?

As disciplinas espirituais permitem


que nos apresentemos diante de Deus,
a fim de que ele possa nos transformar.

John Owen, o príncipe puritano, afirmou que a graça de Deus opera em nós para
a santificação, e por isso devemos deixar com que ela nos motive e encoraje à dili-
gência de nos santificarmos. Ele continua dizendo:

"Duas coisas, portanto, são exigidas. Primeira, que esperemos em


Deus pelos suprimentos do seu Espírito e graça, sem os quais nada
podemos fazer; e segunda, ao chegarem esses suprimentos sejamos
diligentes em usá-los."14

E a maneira pela qual podemos ser diligentes em usar os suprimentos do Espírito


que chegam até nós é por meio das disciplinas espirituais. Em si mesmas, elas nada
podem fazer, no entanto, nos levam ao ponto em que algo pode ser feito. Sendo

13. RYLE, J. C. Santidade sem a qual ninguém verá o Senhor. São Paulo: Editora Fiel, 2009. E-book (p.
63). Disponível em: https://ler.amazon.com.br/reader?asin=B08VF8SCST&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em:
4 mar. 2022.
14. Owen, John. O Espírito Santo. 2013. E-book (p. 105). Disponível em: https://ler.amazon.com.br/rea-
der?asin=B00CQBRQI0&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 4 mar. 2022.

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assim, a verdade é que Deus estabeleceu meios de graça que nos conduzem para
receber aquilo que não merecemos; para receber o que nós não trabalhamos para
conquistar, mas que nos é dado mediante ao que Cristo conquistou na cruz.
Em seu livro, Discipulado, Dietrich Bonhoeffer diz que a graça barata é graca sem
discipulado, é a graça sem cruz, é a graça sem Jesus Cristo vivo e encarnado15. Por
isso, ainda que nossa santificação e crescimento em santidade sejam obras do
Espírito Santo, também é de nossa responsabilidade o empenho e compromisso
no exercício das ordenanças e meios que Deus determinou para sermos santos,
através da obediência fiel aos seus mandamentos. Além disso, nossa diligência com
as disciplinas espirituais em cada tempo oportuno é o meio de Deus para que cres-
çamos na sua graça e conhecimento.

"Seu divino poder nos tem dado tudo que diz respeito à vida e à pie-
dade, pelo pleno conhecimento daquele que nos chamou por sua própria
glória e virtude, pelas quais ele nos deu suas preciosas e mais sublimes
promessas para que, por meio delas, vos torneis participantes da natu-
reza divina, tendo escapado da corrupção que há no mundo por causa
da cobiça. Por isso mesmo, empregando todo o vosso esforço, acres-
centai a virtude à vossa fé, e o conhecimento à virtude, e o domínio
próprio ao conhecimento, e a perseverança ao domínio próprio, e a
piedade à perseverança, e a fraternidade à piedade, e o amor à fra-
ternidade." (2 Pe 1.3-7)

Precisamos sempre lembrar que as disciplinas em si não produzem mudança. Não


podemos fazer delas leis que só nos levarão ao pecado da arrogância por justiça
própria e independência de Deus. Não fomos criados para sermos autoconfiantes,
mas para sermos dependentes da fidelidade do Senhor. Em resposta a isso, as dis-
ciplinas são meios de graça de nos aproximar da sua presença, contritos de coração,
em humilde devoção e à luz da Palavra o nosso entendimento será iluminado, e no
calor da sua presença nosso apático e frio coração será quebrantado e aquecido para
experimentarmos o verdadeiro conhecimento de Deus.
Sendo assim, é importante a compreensão de que a disciplina espiritual é diferente
do legalismo. Ao fazer da disciplina uma lei, corremos o risco de estabelecermos
o julgamento de quem está atingindo ou não o padrão. Porém, a verdade de que a
transformação interna é ação de Deus, deixará de lado a compulsão de endireitar as

15. BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2016, p. 20.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

pessoas. Podemos cair nesta tentação, mas graças a Deus por Jesus Cristo que está
sempre nos reconduzindo para o caminho certo.
É de graça tudo o que Deus nos deu. As bênçãos e o favor de Deus não nos são
dados por merecimento, e nada do que fizermos poderá nos tornar dignos ou mere-
cedores de alguma coisa – até mesmo a nossa fé é puro favor e dádiva de Deus. Não
podemos ser justificados perante Deus por nenhuma de nossas obras.
Somos justificados pela graça por meio da redenção que há em Cristo. Ainda que as
boas obras não possam expiar os nossos pecados, elas são agradáveis e aceitáveis a
Deus, pois é resultado da fé verdadeira que seguiu à justificação. Assim como uma
árvore é julgada pelo seu fruto, nós somos julgados pelas nossas obras. Através de-
las evidencia-se em nós uma fé viva, verdadeira e autêntica que é fruto da graça de
Deus sobre nossas vidas.

"Assim também a fé por si mesma é morta, se não tiver obras. Mas al-
guém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me tua fé sem obras, e eu
te mostrarei minha fé por meio de minhas obras." (Tg 2.17,18)

A graça é preciosa porque teve um preço – a vida do Filho de Deus. Por isso, não
pode ser barato para nós o que custou tão caro para Deus:

“Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus


com o seu próprio corpo.” (1 Co 6.20 – NVI)

O chamado de Jesus é que deixemos nossas redes para trás e o sigamos com tudo o
que somos e temos (Mt 4.20). Não devemos nos disciplinar para ganhar o favor de
Deus, mas para dar tudo o que temos a ele, dedicando-lhe toda a nossa vida.

Nem todo esforço é legalismo. Graça


não é o oposto de esforço, graça é o
oposto de merecimento.

A DISCIPLINA DA MEDITAÇÃO

Dentro da espiritualidade cristã, a meditação talvez seja a mais importante das dis-
ciplinas, e a mais difícil de ser praticada nos dias tumultuados em que vivemos. Os
maiores inimigos da meditação - o ruído, a pressa e as multidões - têm sido parte
integrante das nossas vidas, e isto tem nos tornado pessoas ocupadas, debaixo de
um amontoado de coisas, sempre com a impressão de que algo deixou de ser feito.

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As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

"Bem-aventurado aquele que não anda no conselho dos ímpios, não se


detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos zomba-
dores;" pelo contrário, seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei
medita dia e noite. Ele será como a árvore plantada junto às correntes
de águas, que dá seu fruto no tempo certo e cuja folhagem não murcha.
Tudo que ele fizer prosperará. Não é assim com os ímpios. Eles são como
a palha que o vento dispersa. Por isso, os ímpios não prevalecerão no
julgamento, nem os pecadores, na assembleia dos justos, porque o SE-
NHOR recompensa* o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios
traz destruição." (Sl 1.1-6 – ACF)

O Salmo 1 traz a importância e os frutos daqueles que meditam na lei do Senhor.


Quando focamos nossos olhos na Palavra de Deus, fugimos da agitação do dia a dia,
gastamos tempo meditando, e a nossa vida florescerá. Deixaremos de ser como a
palha que é espalhada pelo vento e experimentaremos a firmeza e a vida, como a
árvore plantada junto às águas da Palavra de Deus.
O hábito da meditação era algo recorrente na vida dos homens do tempo bíblico.
Por toda a Escritura veremos o testemunho de que a meditação compunha o estilo
de vida naquele tempo; não porque as pessoas possuíam capacidades especiais, mas
porque possuíam a disposição de parar tudo e ouvir a Deus.

"Ó SENHOR, de manhã ouves minha voz; de manhã te apresento mi-


nha oração e fico aguardando." (Sl 5.3)

Jesus é o maior exemplo disto. Com um ministério muito atarefado, com multidões
a segui-lo, vez após vez Jesus se retirava para lugares em que podia ficar sozinho.

"A sua fama, porém, se espalhava cada vez mais, e grandes multidões
se ajuntavam para ouvi-lo e serem curadas de suas doenças. Mas ele se
retirava para lugares desertos, e ali orava." (Lc 5.15,16)

Sendo assim, como padrão da imagem que Deus deseja nos conformar, o próprio
Jesus abriu o caminho para revelar como o anseio do coração de Deus é ter comu-
nhão com o homem, e a meditação é o lugar em que abriremos espaço para que isto
aconteça!
De forma simples e resumida, a meditação cristã é a capacidade de ouvir a voz
de Deus e obedecê-la. Sabemos que Jesus Cristo ressuscitou, está vivo e conti-
nua falando e agindo em nosso meio através do Espírito Santo. Por isso, é nossa

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

responsabilidade aprender a continuar vivendo orientado pela voz de Deus e pela


obediência à sua palavra. E a disciplina da meditação é que nos vai fornecer con-
dições para viver desta maneira.16
Há o pensamento errôneo de que a meditação cristã é sinônimo da meditação
oriental. Na realidade, trata-se de conceitos bem distintos. A meditação oriental
tenta esvaziar a mente, e a meditação cristã tenta enchê-la com a Verdade. As duas
ideias são radicalmente diferentes. Todas as formas orientais de meditação acentu-
am a necessidade de afastamento do mundo. Há ênfase sobre perder a personalida-
de e a individualidade, anseio por libertar-se dos fardos e sofrimentos desta vida, e
ver-se colhido na felicidade suspensa, que não requer esforço, do Nirvana.17
A meditação cristã, por sua vez, vai muito além da noção de separação. Ela leva "à
inteireza interior necessária para que nos entreguemos livremente a Deus"18. Seu obje-
tivo é nos inserir muito mais na realidade em que vivemos, pois como já dito, Deus,
o Criador de todas as coisas, deseja ter comunhão conosco.
Em seu livro, Celebração da Disciplina, Foster diz algo poderoso a respeito do sen-
tido da meditação cristã:

"Na meditação criamos um espaço emocional e espiritual que permite


a Cristo edificar um santuário interno em nosso coração. O maravilho-
so versículo “Eis que estou à porta e bato [...]” foi escrito originalmente
para os cristãos, não para os descrentes (Ap 3.20). Nós, que entrega-
mos a vida a Cristo, precisamos saber que ele anseia intensamente cear
e ter comunhão conosco. A meditação abre a porta, e seu alvo é trazer
essa realidade viva para dentro de nossa vida. Esse tipo de comunhão
transforma a personalidade. Não há como deixar acesa a chama eterna
do santuário interior e permanecer igual, pois o fogo divino consome
tudo o que é impuro. (...) Cada vez mais, tudo que há em nós irá girar
como um ponteiro, indicando o polo norte do Espírito."19

Por vezes, a meditação é bastante difícil, mas se conseguirmos superar as dificulda-


des da oração e aguardarmos com paciência o tempo da graça, nós descobriremos
que ambas são experiências muito prazerosas. Não devemos, porém, julgar o valor
da nossa meditação pelo que “sentimos” ou “deixamos de sentir”. Uma meditação

16. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São
Paulo: Editora Vida, 2007, p. 47.
17. Id. Ibid., p. 51.
18. Id. Ibid., p. 52.
19. Id. Ibid., p. 50-51.

17
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

difícil e aparentemente infrutífera poderá, na verdade, ser muito mais valiosa que a
meditação tranquila, alegre, iluminadora e, a nosso ver, bem-sucedida.
Um dos maiores erros dos israelitas foi a sua insistência em ter um rei humano,
rejeitando o próprio Deus como rei deles. Por vezes, isto implica a nós quando ao
invés de buscarmos ouvir o Senhor e obedecê-lo, preferimos eleger homens que
assim o façam por nós. Isto revela a preguiça e idolatria do nosso coração, visto que
estar na presença do Senhor, sem intermediários, nos implica mudanças, mas pre-
ferimos o conforto de permanecer da maneira em que estamos. Por isso a medita-
ção pode soar desafiadora, pois nos leva a verdade de que Deus fala continuamente,
e isto requer nosso tempo para ouvir, e prontidão para obedecer.

AS FORMAS DE MEDITAÇÃO

Um dos meios que auxiliará na meditação é o uso da imaginação. Foster a apresenta


como a ferramenta que mais facilmente nos fará descer da mente ao coração, como
"uma âncora no pensamento, atraindo nossa atenção."20
Alguns podem levantar objeções quanto ao uso da imaginação, como não sendo
digna de confiança. Mas a verdade é que assim como a razão e tantas outras facul-
dades humanas que foram corrompidas pelo pecado e podem ser redimidas por
Deus, assim também é com a imaginação. Ela pode ser santificada e usada para
finalidades virtuosas. Particularmente, dentro do que estamos estudando, a nossa
imaginação pode ser usada para receber e projetar em nossa mente tudo aquilo que
está registrado na Palavra, lançando nossa mente ao cenário histórico de maneira
que nos sintamos parte desta narrativa.
A seguir, nesta disciplina, aprenderemos 4 tipos de meditação:
• Meditação nas Escrituras: É a principal meditação de maneira a manter todas
as outras formas de meditação na perspectiva correta. Esta disciplina não tem a
ver com fazer uma exegese profunda do texto, mas com internalizar a passagem e
torná-la algo pessoal. É importante resistir à tentação de percorrer vários versículos
superficialmente. Bonhoeffer recomenda passar uma semana inteira em uma única
passagem!21 Escolha um único texto, uma única palavra, e permita que ela crie raí-
zes em você. A imaginação é muito importante. Se imagine dentro do texto, viven-
do aquela situação. Esse tipo de meditação não nos faz observadores passivos, mas

20. Id. Ibid., p. 57.


21. BONHOEFFER, Dietrich. The Way to Freedom. New York: Harper & Row, 1966 apud FOSTER, Richard
J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Paulo: Editora Vida, 2007,
p. 61.

18
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

ativos; aprofundando nosso coração na Palavra, abertos para perceber a realidade


de Deus, conscientes de que a graça de Jesus é operante enquanto meditamos para
nos ensinar, curar e perdoar.
• Recompilação ou Convergência: É o momento de aquietar-se, entrar no silên-
cio, e permitir que sua mente, em meio a um turbilhão de pensamentos, encontre
um foco. Esse tipo de meditação é muito usada na tradição dos Quakers, e envolve
um exercício chamado “palmas para baixo, palmas para cima”.
Com as palmas viradas para baixo, comunique a Deus o seu desejo de entregar
quaisquer preocupações que esteja afligindo sua alma naquele momento. Em silên-
cio, ore: "Senhor, entrego-te a raiva que sinto de Fulano; libero o medo que tenho
do vestibular na próxima semana; e, rendo minha ansiedade por não ter dinheiro
suficiente para pagar as contas este mês”. Em relação a tudo que represente um
peso em sua mente ou seja motivo de preocupação, diga apenas: “Palmas para bai-
xo”. Pode ser que você sinta até mesmo alguma sensação de alívio nas mãos.
Após este momento de entrega, levante as palmas para cima como sinal do desejo
de receber algo do Senhor. Você pode orar silenciosamente: “Senhor, gostaria de
receber teu divino amor por Fulano, tua paz para o vestibular, tua paciência, tua
alegria”. Tendo feito a convergência, gaste os momentos restantes em silêncio. Per-
mita que o Senhor entre em comunhão com você, e o ame. Anote as orientações ou
impressões que tiver durante esse tempo.
• Meditar sobre a criação: Trata-se de um momento grandioso no qual o Criador
do Universo nos mostra um pouco de sua glória por intermédio da criação:

“Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das


suas mãos” (Sl 19.1 – ACF)
Esta meditação não tem a ver com adoração da criatura ao invés do Criador, do con-
trário, podemos contemplar a verdade de perceber Deus em suas criaturas prestan-
do atenção à ordem criada. Observe as árvores, as flores, os pássaros e poderemos
pensar como Deus sustenta cada um deles, como Deus guia os ventos e limita a
posição do mar. No silêncio desta meditação nosso coração pode ser cada vez mais
cheio a respeito da soberania de Deus.
• Meditar sobre os fatos de nosso tempo: Procure perceber a importância dos
acontecimentos que estão se desenvolvendo nos seus dias. Experimente penetrar
fundo no significado dos acontecimentos, não para adquirir poder, mas para obter
uma perspectiva profética.

19
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Essa forma de meditação será melhor executada com a Bíblia em uma das mãos
e o jornal na outra. Apesar de serem tendenciosos e muitas vezes superficiais, o
objetivo é apresentarmos os fatos do nosso tempo diante de Deus e buscar discer-
nimento dos tempos. Sobretudo, pensar como podemos ser sal e luz neste mundo
corrompido.
Concluímos, então, que cada um desses tipos tem o seu valor dentro da jornada na
meditação, e cada um deles vai fazer com que o nosso coração seja mais conforma-
do à presença de Cristo, mais cheio da presença de Deus e mais sensível à voz do
Espírito Santo.
Somos salvos pela graça, e não só isso, vivemos por ela também. O anseio de Deus
é estar conosco, a despeito das nossas falhas e pecados, Ele está interessado em nos
transformar e lançar luz em nosso interior à medida que nos aproximamos.
Não se sinta desencorajado se no começo suas meditações não parecerem significa-
tivas. Tenha paciência consigo mesmo. Você está aprendendo uma disciplina para a
qual não recebeu nenhum treinamento, e nem vive em uma cultura que o encoraja
a desenvolver tais habilidades. Você está nadando contra a correnteza, mas seja
perseverante, essas disciplinas possuem um imenso valor. E é perseverando que
construímos os hábitos que moldam o nosso coração.

20
Aula 2
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DA ORAÇÃO
A oração é a disciplina espiritual mais elementar da vida de um cristão. Alguém não
pode dizer ser um cristão e não orar. R. C. Sproul diz que assim como a respiração
está para a vida, a oração está para um cristão.¹ A oração é o derramar de coração
sincero diante de Deus, por meio de Cristo com a ajuda do Espírito Santo. Ela
busca as promessas de Deus, a conformidade com a sua Palavra, e a sua vontade.
Todo cristão verdadeiro anseia por uma vida de oração constante, uma prática que o
leve a experimentar a presença de Deus de forma mais plena e rica. A oração é uma
realidade gloriosa, mas também simples e fácil de praticar. É justamente a oração

1. SPROUL, R. C. A oração muda as coisas? São Paulo: Editora Fiel, 2013. E-book (p. 12) Disponível em:
https://ler.amazon.com.br/reader?asin=B08TSYWZBC&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 30 mar. 2022.

21
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

que nos leva à prática da espiritualidade. A principal das disciplinas espirituais que
nos leva à comunhão com o Pai, ao nos aproximar dele. E esta aproximação nos fará
reconhecer melhor a nossa necessidade de estarmos conformados a Cristo e mais
desejaremos por isso.²
Todos os que já caminharam com Deus tinham a oração como uma prática que per-
meava as suas vidas. O maior exemplo seria o estilo de vida de Jesus, que frequen-
temente se retirava para períodos de oração e comunhão com o Pai.

"De madrugada, ainda bem escuro, Jesus levantou-se, saiu e foi a um


lugar deserto; e ali começou a orar." (Mc 1.35)

Frequentemente, Davi expressava seu anseio em se apresentar diante de Deus:

"Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. Minha alma tem


sede de ti; meu ser anseia por ti em uma terra seca e exaurida, onde não
há água." (Sl 63. 1)

Os apóstolos, quando surgiram muitas demandas pelo crescimento da igreja,


decidiram entregar-se continuamente à oração e à ministração da Palavra:

“Mas nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra.”


(Atos 6.4 – ACF)

Homens que marcaram a história da igreja com sua vida de devoção tinham a
oração como algo do qual a vida deles dependia:

“Se eu deixar de gastar duas horas


em oração a cada manhã, o diabo con-
segue a vitória no decorrer do dia.
Tenho tanto trabalho que não posso
realizá-lo sem empregar três horas
por dia de oração.” (Martinho Lutero)

2. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 67.

22
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A experiência desses gigantes na fé e o testemunho da vida de oração que possuíam


pode nos desencorajar e nos tentar ao desespero e condenação. Mas não devemos
entrar em autoflagelação por isso, devemos lembrar que assim como outras discipli-
nas, a vida de oração também passa por um processo de progressão e perseverança.
A oração molda a nossa vida cristã, e pode ser comparada a uma maratona, que no
início não temos capacidade de percorrer longos trajetos, mas os anos aumentam o
nosso rendimento para assim participarmos delas. Devemos nos preparar e treinar
durante algum tempo para, enfim, termos uma vida de oração intensa. Seguindo
essa progressão, será muito razoável a expectativa de, daqui a um ano, orarmos
com mais autoridade e êxito espiritual do que no presente. O mais importante é
saber que Deus nos encontra onde estamos, e é ele quem está nos formando e nos
esticando em fé, amor, confiança e sede por ele mesmo.
A maior importância que precisamos compreender a respeito da oração é que ela
foi colocada em nossa vida porque Deus ama a interação, a comunicação e o relacio-
namento conosco. Ele deseja essa conexão de coração com coração, e esta parceria.
Deus escolheu e decidiu que vai dar algumas bênçãos para nós somente na medida
em que pedirmos. Esse é o mistério do universo: "o Deus que sabe de tudo o que
você precisa decidiu que vai lhe dar somente na hora que você falar". Isso não é
simples de entender, mas é simples de fazer!

"Cobiçais e nada conseguis. Matais e invejais, e não podeis obter; brigais


e fazeis guerras. Nada tendes porque não pedis. Pedis e não recebeis,
porque pedis de modo errado, só para gastardes em vossos prazeres."
(Tg 4.2,3)

O princípio fundamental no reino de Deus é que recorremos a ele por tudo. Tanto
para que aumente as coisas boas quanto para diminuir as coisas ruins. A oração não
faz com que nós mereçamos o favor de Deus, mas posiciona o nosso coração para
que por meio do relacionamento e da intimidade com Deus, em parceria com ele,
a atividade de Deus na nossa vida e nas circunstâncias aumente.

"Não andeis ansiosos por coisa alguma; pelo contrário, sejam os vos-
sos pedidos plenamente conhecidos diante de Deus por meio de oração e
súplica com ações de graças" (Fp 4.6)

Deus pode nos privar de algumas coisas por causa da falta de oração, pelo tanto que
ele ama interagir conosco.

23
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

"Por isso o SENHOR esperará para ter misericórdia de vós; ele se le-
vantará para se compadecer de vós; porque o SENHOR é um Deus de
justiça; felizes são todos os que nele esperam. Na verdade, o povo habi-
tará em Sião, em Jerusalém; não chorarás mais; certamente ele se com-
padecerá de ti quando ouvir o teu clamor; e, ao ouvi-lo, te responderá."
(Is 30.18,19)

Deus decidiu fazer algumas coisas à medida em que ouve o nosso clamor. Deus nos
quer como posse exclusiva dele. Calvino diz algo interessante a respeito de que a
fé desperta a nossa mente da preguiça de acharmos que não precisamos recorrer
a Deus em todas as nossas necessidades, ele afirma que Deus deseja que tudo que
recebemos seja reconhecido como concedido por causa das nossas orações.³
Nosso entendimento a respeito da soberania de Deus não nos deveria levar a consi-
derar desnecessário o trabalho da oração, mas deveria provocar em nós uma intensa
vida de oração de ação de graças; se ele nos conhece tanto, isto não deveria limitar
nossa oração, ao contrário, deveria aumentar a nossa contemplação da beleza da
sua santidade diante de nós. Por isso, vamos até Deus em oração para conhecê-lo e
sermos conhecidos por ele.4
Nas Escrituras, temos tantos exemplos de homens e mulheres que oravam como
se as orações pudessem mudar as coisas de maneira objetiva, e isso demonstrava a
grande dependência que possuíam do Senhor. O apóstolo Paulo, com alegria, pro-
clama que somos “cooperadores de Deus” (1 Co 3.9). Foster diz que é o estoicismo
– movimento filosófico que preza a fidelidade ao conhecimento e despreza os sen-
timentos e emoções externos – que prega a ideia de um Universo fechado sem pos-
sibilidades de mudança, e não a Bíblia5. Moisés orava com ousadia por acreditar que
suas orações podiam mudar o curso das coisas, como exemplifica o texto abaixo:

“Moisés disse ao povo: Cometestes um grande pecado. Agora, porém,


subirei ao SENHOR; talvez eu possa fazer expiação pelo vosso peca-
do. Assim, Moisés voltou ao SENHOR e disse: Esse povo cometeu um
grande pecado, fazendo para si um deus de ouro. Mas, agora, perdoa-
-lhe o pecado; ou, caso contrário, risca-me do teu livro que escreveste.”
(Êx 32.30-32)

3. CALVINO, João. Oração: O exercício contínuo da fé. 1ª edição. São Paulo: Editora Vida, 2016, p. 13.
4. SPROUL, R. C. A oração muda as coisas? São Paulo: Editora Fiel, 2013. E-book (p. 88) Disponível em:
https://ler.amazon.com.br/reader?asin=B08TSYWZBC&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 30 mar. 2022.
5. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 70.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Além disso, temos o exemplo da intercessão de Abraão por Ló:

"Longe de ti fazer tal coisa, matar o justo com o ímpio, igualando o justo
ao ímpio; longe de ti fazer isso! Não fará justiça o juiz de toda a terra?
Então disse o SENHOR: Se eu achar em Sodoma cinquenta justos dentro
da cidade, pouparei o lugar todo por causa deles." (Gn 18.25,26)

Estes exemplos nos fazem perceber que podemos orar com base no que conhece-
mos a respeito do caráter de Deus. Moisés, porque conhecia a bondade e longani-
midade de Deus, intercedeu com confiança. Da mesma maneira, Abraão, porque
conhecia o caráter de Deus como justo juiz, intercedeu com base nisto. Conhecer
a quem oramos é fundamental para crescermos na disciplina da oração!

APRENDENDO A ORAR

A verdadeira oração é algo que se aprende:

“Certo dia Jesus estava orando em determinado lugar. Tendo termina-


do, um dos seus discípulos lhe disse: 'Senhor, ensina-nos a orar, como
João ensinou aos discípulos dele’.” (Lc 11.1 - NVI)

É surpreendente perceber que os discípulos pediram a Jesus que os ensinasse a


orar. Perceber que a oração parte de um processo de aprendizado nos traz a liber-
dade para compreender que é importante questionar, experimentar e que nessa
jornada iremos errar. Assim, somos libertos da arrogância e da performance, pois
estamos em uma caminhada de aperfeiçoamento.6
Importante perceber que Jesus não estava dando apenas uma oração a ser recitada,
mas um padrão a ser seguido, nos mostrando as prioridades que deveriam circun-
dar a nossa vida.
As duas primeiras palavras da oração são profundas e radicais. Jesus revela que o
Deus a quem recorremos é o nosso pai, e isto significa que a oração é uma verda-
deira conversa pessoal com Deus. Por esse motivo, jamais devemos complicar a
oração. Ainda que a compreendamos como algo que é aprendido, tornar a oração
uma ação complexa vai contra ao que Jesus ensina de que devemos nos aproximar
de Deus como uma criança que procura pelo seu pai.

6. Id. Ibid., p. 71.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Deus atende nossas orações pelo simples fato de sermos seus filhos, e estarmos
pedindo-lhe que nos atenda. Somente pelo privilégio de estarmos em Cristo é que
podemos nos dirigir a Deus como nosso pai, e por isso não nos achegamos como
indivíduos desconhecidos e isolados, mas como membro de uma família e uma
comunidade de santos.7
Além disso, a relação pai e filho pressupõe intimidade. O tipo de intimidade que
encontra liberdade para falar a respeito das suas necessidades sem nenhum tipo de
constrangimento ou sem se sentir inadequado. É este tipo de liberdade que pode-
mos encontrar na oração, sem oscilar na confiança de que Deus ouve cada pequena
necessidade, ansiedade e dificuldade que levamos até ele.

“Sinceridade, honestidade e con-


fiança são as marcas da comunicação
entre pai e filho.”8

Vejamos a recomendação de Paulo (Fp 4.6) de que nossos pedidos devem ser feitos
plenamente conhecidos diante de Deus!
Precisamos ter em mente que orar é mudar. A oração é a principal via usada por
Deus para nos transformar. Se não estivermos dispostos a mudar deixemos a ora-
ção de lado, porque ela não será mais uma característica perceptível em nossa vida.
Quanto mais perto chegarmos de Deus, mais veremos a necessidade de sermos
conformados a Cristo e desejaremos de todo o coração que isso se torne realidade
em nossas vidas.
No decorrer da vida de oração começaremos a orar segundo os pensamentos de
Deus, isto é, passaremos a desejar o que ele deseja, amar o que ele ama, e querer
o que ele quer. Aprenderemos progressivamente a enxergar as coisas do ponto de
vista dele e não do nosso.

CRESCENDO EM ORAÇÃO

Para desenvolvermos uma vida de oração não basta amarmos a Deus e cultivarmos
esse amor, mas também utilizar os seguintes passos práticos para avançar e crescer

7. SPROUL, R. C. A oração muda as coisas? São Paulo: Editora Fiel, 2013. E-book (p. 256) Disponível em:
https://ler.amazon.com.br/reader?asin=B08TSYWZBC&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 30 mar. 2022.
8. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 76.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

nesta disciplina. A verdade é que uma vida de oração não planejada é uma vida de
oração que não acontece e que não é constante, isto deve nos levar a alguns passos
práticos que nos auxiliarão a amadurecer na prática da oração.

• Agendar um horário para oração


Precisamos separar tempo para oração, pois ter apenas a sincera vontade de orar
não é suficiente. É importante ser totalmente fiel ao tempo que agendamos e tê-lo
como um compromisso. Com certeza, imprevistos surgirão e, às vezes, mudanças
serão necessárias. Não se frustre diante disso, mas dê prioridade ao horário estabe-
lecido previamente por você.

Se não agendarmos e administrarmos


o nosso tempo, outras pessoas ou a
tividades farão isso por nós.

• Fazer uma lista de oração (ou várias)


A lista nos ajuda a lembrar pelo que devemos orar. Não é preciso ficar necessaria-
mente “preso” a ela, pois, talvez, ao começarmos a orar o Espírito Santo nos leve
a orar por outras coisas. Porém, a lista é algo viável que facilita o nosso tempo de
oração, caso não tenhamos nenhuma outra direção.
Alguns exemplos de listas de oração:
Lista de objetivos pessoais: Mais intimidade com Deus, mais dos frutos e dos dons
do Espírito, amadurecimento em amor.
Lista por provisão: Nas finanças, nas emoções, no ministério e na família.
Lista de pessoas e lugares: Família, líderes, alguém que você queira ver salvo, pela
sua cidade, por Israel e Jerusalém, pelo nosso país (autoridades e governo), e pela
nossa igreja. (Leia 1 Timóteo 2.1-4).
Lista por justiça: Pelo fim do aborto, por leis mais justas, fim da prostituição, fim
do tráfego humano, pelos órfãos e viúvas, e por situações pontuais que estão em
destaque na mídia.

• Cultivando uma visão correta a respeito de Deus


Deus não nos obriga a gastar tempo na sua presença, e também não está distante nem
indiferente à nossa oração. Ele se importa com a nossa vida, pois é o nosso Pai. Cres-
cer em oração é crescer em saber quem ele é – Pai, Filho e Espírito Santo. O próprio
Jesus foi um homem de oração e nós somos chamados para fazer o que ele fez e seguir

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

os seus passos, não só em poder, mas em humildade, paciência e, principalmente,


em devoção. O próprio Deus se revestiu de barro, se fazendo um de nós para vir e
viver como um homem perfeito. O Espírito Santo quer nos revelar mais do Filho.
Um dos pontos principais a respeito de cultivar a visão correta de Deus, a fim de crescer
em intimidade com ele, é entender que ele se agrada de nós. Só cresceremos na vida de
oração e intimidade com Deus, quando entendermos essa realidade.

"Nunca mais te chamarão Desamparada, nem a tua terra se denomina-


rá Desolada; mas te chamarão Hefzibá, e à tua terra, Beulá; porque o
SENHOR se agrada de ti; e a tua terra se casará." (Is 62.4)

• Ocupados demais para orar


Por vezes, nos sentimos ocupados demais para orar porque nossos dias exigem
muitas demandas e ocupações. A verdade é que não estamos ocupados demais para
orar, mas, sim, ocupados demais para não orar. Oração é prioridade. Gastamos
tempo com aquilo que valorizamos, logo, se Deus e a oração têm valor para nós,
certamente gastaremos tempo para ambos.
Cristãos que desejam viver um cristianismo autêntico sabem que isto irá custar o
seu tempo. Não o tempo que sobra, o tempo jogado fora, mas o tempo com qualida-
de; tempo para contemplar, meditar e refletir sem pressa e sem interrupções. Um
dos maiores inimigos da espiritualidade cristã genuína são as atividades diárias, as
exigências e objetivos pessoais em detrimento de um tempo para estar somente
com Deus e nenhuma preocupação além.
Gastar tempo em oração nos leva a ser mais “produtivos”, tanto no trabalho quan-
to no amar as pessoas. O tráfego de emoções no nosso interior será mais pacífico
e harmônico. Quanto a isso, vemos um equilíbrio bem claro na vida de Jesus. Ele
possuía uma vida de oração intensa, mesmo sempre tão ocupado em seu ministério
(curando, fazendo milagres e arrastando multidões). Ele é o melhor exemplo de
conciliação entre trabalho (ministério) e vida de oração.
É necessário o compromisso de diminuir o ritmo, e assumir a urgência de passos
práticos em direção a uma vida de oração. Bob Sorge diz que não ora para que a
sua vida dê certo, mas faz a sua vida dar certo para que possa orar. Isto significa
organizar o dia a dia e a agenda de forma que exista espaço para a comunhão com
Deus. Precisamos nos voltar para o lugar de oração com a consciência de que a
nossa vida depende disso.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

• Pessoas com vida de oração forte valorizam mais os seus relacionamentos


Não há nenhum outro meio em que o coração humano é mais calibrado e alinhado
com os interesses de Deus do que através da oração. É por meio dela que se pode
crescer na fé e no conhecimento de Deus. A oração é o momento em que os afetos
são reorientados e a teologia experimentada. O meio para o autoconhecimento e,
enfim, o reconhecimento de Deus como Deus.
A vida de oração torna o homem alerta para as verdades bíblicas e o reconhecimen-
to de sua fraqueza o leva a suplicar pela intervenção do Espírito em sua vida.
Por esse prisma, uma vida de oração intensa não nos conduz a uma vida individu-
alista ou antissocial. Uma vida de oração, na verdade, nos torna sensível ao outro.
À medida que se aproxima da fonte primária do amor, o coração restitui-se cheio
para amar ao passo que tem se percebido tão amado.

"Nisto conhecemos o amor: Cristo deu sua vida por nós, e devemos dar
nossa vida pelos irmãos." (1 Jo 3.16)

TIPOS DE ORAÇÃO

1. Oração de ação de graças

Na oração, propriamente dita, não há uma ordem determinada, mas tanto o impul-
so preliminar quanto a própria experiência da oração, nos mostram que o primeiro
passo dela é a ação de graças. Precisamos despertar a mente para as alegrias de
nossa caminhada. Podemos até mesmo registrar por escrito as bênçãos recebidas.
Portanto, a oração de ação de graças deve ser bem específica: “Eu te agradeço por
essa amizade, por essa vitória, por esse sinal da graça". A frase “por todas as suas
misericórdias” é correta para uma lembrança coletiva, mas não para a gratidão
individual. Se estivermos “agradecidos por todas as coisas”, talvez acabemos gratos
por nada.

2. Oração de confissão

A confissão não é autocensura – o excesso de consciência pode nos deixar mórbi-


dos, mas a sua falta conduz à indiferença e ruína. A confissão, assim como a ação de
graças, deve ser específica; não deve ser insensível e nem em tom de justificativa.
A contrição e o verdadeiro arrependimento não são fáceis, mas assim como uma
cirurgia, eles não são um fim em si mesmo.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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A oração sábia de confissão sempre leva a uma aceitação do perdão de Deus. Ele
não quer que fiquemos presos às lembranças do pecado, pois ele mesmo já o esque-
ceu, mas deseja muito que sejamos totalmente dependentes dele.
Pode parecer algo simples, mas se está orando de joelhos experimente se levantar
no momento da sua confissão, como sinal da aceitação do perdão de Deus e da
certeza da nova liberdade em sua graça. Nossa vontade, por mais frágil e fraca que
seja, precisa aproximar-se do lado novo da nova vida, pois a confissão é incompleta
sem essa decisão.

3. Oração devocional

A oração devocional tem como objetivo expressar o nosso coração para Deus, e
expressar o nosso louvor, a nossa admiração e o nosso amor por ele; a oração de-
vocional é o momento onde nós podemos chegar diante de Deus e falar de como a
nossa alma o anseia e como nós queremos ser cada vez mais apaixonados por ele.

"Minha alma se consome no anseio constante por tuas ordenanças."


(Sl 119. 20)

4. Oração de Intercessão

Quase toda a oração do “Pai nosso” mantém sua ênfase no próximo: “Pai nosso”,
“nosso pão de cada dia”, “nossas dívidas”. O amor genuíno visualiza pessoas, não a
multidão. O bom pastor chama suas ovelhas pelo nome. A intercessão é mais es-
pecífica e ponderada, pois exige que suportemos no coração o peso daqueles por
quem oramos.

Deus escolheu a intercessão como a


fonte primária de onde ele libera o
seu poder na terra.

Devemos interceder até mesmo por nossos inimigos, talvez eles devam ser os
primeiros a quem dirigimos nossa atenção na oração de intercessão.
Intercessão é concordar com o que Deus quer fazer, ela traz justiça para a terra.

"Ó SENHOR, Deus vingador, ó Deus vingador, resplandece! Levanta-


-te, ó juiz da terra! Dá aos soberbos o que merecem." (Sl 94.1,2)

30
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

5. Oração de Petição

A oração de petição é o momento em que colocamos nossas necessidades diárias


diante de Deus. Para isso é muito válido o uso de uma lista de oração.
Não precisamos ter medo ou receio de trazer nossas necessidades terrenas diante
do Pai, pois somos sustentados por seu amor eterno. Contudo, devemos nos aten-
tar com os pensamentos egoístas. Estaremos seguros dessa ameaça se antes tiver-
mos dado graças, confessado nossos pecados e intercedido pelo próximo. Tentar
impedir a petição significa negar a natureza humana. O Novo Testamento é bem
claro a este respeito:

“Não andem ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração
e súplicas, e com ação de graças, apresentem seus pedidos a Deus”
(Fp 4.6 – NVI)

Devemos reconhecer que nossa visão é turva e ofuscada, e que nossos propósitos
podem possuir motivos suspeitos. Por isso, o término da nossa petição deve ser
sempre: “não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22.42).
Observações importantes:
• A oração envolve ouvir e falar, receber e pedir. É a amizade sustentada pela
reverência. A oração diária deve sempre terminar onde começou – na adoração.
Quando estamos na presença de Deus, onde podemos contemplá-lo, seremos
sempre levados a adorá-lo.
• Após a ação de graças devemos contemplar a abundante bondade de Deus e
aguardar a palavra dele sobre suas dádivas.
• Após a confissão devemos louvar a Deus pelo amor perdoador manifesto em
Cristo, e estar atentos à sua orientação.
•Após a intercessão devemos parar e ver as necessidades do mundo, como Cris-
to as viu na cruz.
•Após a petição precisamos esperar outra vez, para meditar sobre a vontade de
Deus.

CONSISTÊNCIA NA ORAÇÃO

Sendo assim, a oração é este lugar em que encontramos o Senhor, onde nós esta-
belecemos com ele uma comunhão. No entanto, é comum experimentarmos em

31
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

alguns momentos da jornada um período de sequidão espiritual, em que na oração


experimentaremos mais frustração e tédio do que o desfrute da presença de Deus.
É importante entender que esses períodos que Deus, às vezes, retém a sua presen-
ça é para que o nosso coração possa crescer e se alargar diante da presença dele. O
fato de não experimentarmos a presença de Deus, não significa que ele não esteja
presente conosco; o fato de não ouvirmos uma resposta clara das nossas orações,
não significa que as nossas orações não estão sendo ouvidas por Deus.
A perseverança na oração é uma recomendação bíblica, e faz parte do processo de
santificação.

"Alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na


oração." (Rm 12.12)

"E não somente isso, mas também nos gloriamos nas tribulações; saben-
do que a tribulação produz perseverança, e a perseverança, a aprova-
ção, e a aprovação, a esperança; e a esperança não causa decepção, visto
que o amor de Deus foi derramado em nosso coração pelo Espírito Santo
que nos foi dado." (Rm 5.3-5)

O profeta Daniel foi levado para a Babilônia quando tinha entre 15 e 20 anos de
idade, e durante décadas cultivou uma história com Deus. Cada um de nós também
está escrevendo uma história e Deus não é injusto de se esquecer de cada uma das
atitudes que tomamos por ele:

“Deus não é injusto; ele não se esquecerá do trabalho de vocês e do amor


que demonstraram por ele (...)” (Hb 6.10a – NVI)

Daniel era irrepreensível e tinha o compromisso com Deus de orar três vezes ao
dia. Mesmo ameaçado de morte não deixou de ser fiel a este compromisso (Dn 6.5-
11). Mas levou 21 dias para que a resposta de sua oração chegasse até ele.
Jesus fez uma analogia à perseverança na oração com a perseverança de uma viúva
diante de um juiz. A viúva não desanimou mesmo tendo que recorrer a um homem
que não temia a Deus. No entanto, nós como cristãos estamos perseverando diante
de um bom Pai, e por isso nossas orações não serão em vão.

"Jesus também lhes contou uma parábola sobre o dever de orar sempre e
nunca desanimar. (....) E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que
dia e noite clamam a ele, mesmo que pareça demorado em responder-lhes?

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Digo-vos que depressa lhes fará justiça. Contudo, quando vier o Filho do
homem, achará fé na terra?" (Lc 18.1,7,8)

É a perseverança que nos levará a uma vida de oração eficaz. Mike Bickle diz que
"a nossa vida de oração não é medida em horas, nem dias, nem anos, mas ela é medida
em décadas". Os benefícios da vida de oração podem não ser evidentes quando nós
olhamos um ano para trás e como nós estamos hoje. Mas à medida que os anos vão
passando, as orações vão se acumulando e o nosso tempo na presença de Deus vai
aumentando e isso nos transforma.
É por isso que Paulo diz que a perseverança nas tribulações gera aprovação, pois a
perseverança nutre a confiança e a esperança de que Deus sempre nos socorre em
nossas necessidades; a capacidade de continuar confiando em Deus quando tudo
vai mal. Perseverar gera em nós um caráter aprovado diante de Deus, pois amadu-
recemos em continuar confiando, e isto gera a esperança: o firme aguardo do cum-
primento final das promessas de Deus. Por isso, perseverar faz parte do processo de
santificação e a constância na vida de oração é muito mais importante do que uma
intensidade sem perseverança.9

9. CALVINO, João. Romanos: Série de comentários Bíblicos. São Paulo: Editora Fiel, 2013. E-book (p.209).
Disponível em: https://ler.amazon.com.br/reader?asin=B08VF92GDL&ref_=dbs_t_r_kcr. Acesso em: 30
mar. 2022.

33
Aula 3
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DO JEJUM
A disciplina do jejum é, talvez, uma das questões mais mal compreendidas na Bíblia.
Com o passar do tempo ela caiu em descrédito de forma generalizada, tanto dentro
como fora da Igreja. Na Idade Média, o jejum se viu submetido a rígidas regras, não
se atentando para a realidade interna da fé cristã, mas para a sua forma externa. Os
excessos e a mortificação, relacionados ao jejum, fizeram com que a cultura moder-
na rejeitasse totalmente essa prática.
O jejum tornou-se algo obsoleto, uma vez que satisfazer cada um dos apetites hu-
manos é considerado como uma virtude. Contudo, sabemos que a verdadeira sa-
tisfação só é alcançada quando nos distanciamos da escravidão dos nossos próprios
desejos e os direcionamos a Deus. Para quem deseja se voltar à prática do jejum
deve saber que a princípio será difícil mantê-la, pois os hábitos arraigados em nós
tenderão a resisti-la. A boa notícia, contudo, é que tais hábitos, com o passar do

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

tempo, serão vencidos pela perseverança em destroná-los. A natureza carnal pro-


testará, mas será contida pelo Espírito Santo de Deus que atua em nós.¹
O objetivo desta aula, portanto, é desmistificar o jejum e dar dicas práticas para
ajudar você a desenvolver essa disciplina tão importante na sua caminhada cristã,
tal como nos ensinam as Escrituras:

"Quando jejuardes, não vos mostreis entristecidos como os hipócritas;


pois eles mudam a aparência do rosto, a fim de que os homens vejam que
estão jejuando. Em verdade vos digo que eles já receberam sua recompen-
sa. Tu, porém, quando jejuares, põe óleo na cabeça e lava o rosto, para
não mostrar aos homens que estás jejuando, mas a teu Pai, que está em
secreto; e teu Pai, que vê o que é secreto, te recompensará." (Mt 6.16-18)

Jesus espera que você jejue. Ele não disse: “Se algum dia você decidir tentar jejuar...”.
Não! Ele disse: “Quando você jejuar...”. Jesus não nos deu a opção de não jejuar, ao con-
trário, considerou o jejum uma prática natural da vida cristã. Nada mudou desde que
ele pronunciou tais palavras, por isso, se você é cristão apegue-se à prática do jejum.
Talvez você seja levado, pelo Espírito, a jejuar uma vez por semana, ou um dia a
cada dois meses. Isso será uma questão entre você e Deus, ninguém mais precisa
saber, pois o Pai vê o que ninguém mais vê, e o recompensará. Seja qual for sua
periodicidade em jejuar, seja fiel a este compromisso e confie que o Senhor lhe
dará graça para exercê-lo. Sua resposta obediente a Deus é uma das mais temidas e
perigosas catástrofes para o reino das trevas.
O jejum não é uma prática exclusivamente cristã. Durante toda a história da hu-
manidade ela foi exercida pelas várias tradições espirituais e religiões “mais impor-
tantes”, e até mesmo a medicina comprovou seus benefícios para o corpo humano.
Grandes filósofos (como Platão e Aristóteles) e personalidades, que se destacaram
no decorrer da história, praticaram o jejum por reconhecerem seus benefícios es-
pirituais e físicos.
Geralmente, ao passarmos algumas horas sem nos alimentar sentiremos certo des-
conforto, o que não indica necessariamente estar com fome. O que acontece é que
nosso organismo se acostumou a receber alimento o tempo todo. Muitas vezes,
relacionamo-nos com o nosso estômago como se ele fosse um deus exigente, que
dá sinais constantes de que precisa ser alimentado. Porém, não devemos nos deixar
escravizar por nós mesmos.

1. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Paulo:
Editora Vida, 2007, p. 84.

35
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

É difícil abandonar velhos hábitos, e muito mais difícil contrariar nossa própria
vontade. Contudo, se não conseguimos dominá-la em coisas tão pequenas e tri-
viais, como dominaremos nas mais difíceis? Combata a sua vontade e dê fim aos
maus hábitos, para evitar que seja conduzido a problemas mais difíceis e sérios.
Creia! A disciplina do jejum o levará ao crescimento espiritual. Por isso, não deixe
que as pequenas barreiras impeçam você de viver o que a Bíblia o chama para viver.

O JEJUM NAS ESCRITURAS

No decorrer da Escritura, o jejum é relatado como uma prática constante da vida


judaica. O povo de Deus utilizava-se do jejum em diversos contextos e situações
como uma disciplina espiritual que expressava de forma prática a fé que possuíam.
Mateus 6 narra a instrução de Jesus a seus discípulos quanto ao jejum. Esta prática
não é colocada por Jesus como um mandamento, mas como um pressuposto de que
todo discípulo jejuaria, ao passo de que ele declara "...quando jejuares…" (Mt 6.17).
Além disso, este não é o único relato de Jesus a respeito do assunto. John Piper
considera a narrativa de Mateus 9 a mais importante acerca do jejum na Bíblia.²

"Então os discípulos de João chegaram a ele, perguntando: Por que nós e os


fariseus jejuamos, mas os teus discípulos não jejuam? Jesus lhes respondeu:
Por acaso os convidados para o casamento podem ficar tristes, enquanto o
noivo está com eles? Mas chegarão os dias em que o noivo lhes será tirado, e
então jejuarão. Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, pois o
remendo rasgará parte da roupa, e o rasgo ficará maior. Nem se põe vinho
novo em recipiente de couro velho; do contrário se rompem, derrama-se o
vinho, e os recipientes se perdem; mas põe-se vinho novo em recipiente de
couro novo, e assim ambos se conservam." (Mt 9.14-17)

Não há como escapar do poder das palavras de Jesus nesta passagem. Ele deixou
claro que sua expectativa era de que os discípulos jejuassem, após a sua partida.
Embora suas palavras não expressem uma ordem, fica claro que sustentava como
certa a disciplina do jejum e esperava que seus seguidores a praticassem. Para os que an-
seiam andar em intimidade com Deus, as afirmações de Jesus são palavras convidativas.

2. PIPER, John. Fome por Deus: Buscando Deus por meio do Jejum e da Oração. São Paulo: Cultura Cristã,
2013, p. 26.

36
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Em primeiro lugar, a resposta de Jesus aos discípulos de João ensina que o jejum
naquela época era associado a períodos de desespero e tristeza; uma prática para
tempos de crise e dificuldades: "Por acaso os convidados para o casamento podem
ficar tristes, enquanto o noivo está com eles?"
Em segundo lugar, esta pergunta retórica de Jesus afirma muito a seu respeito. Ele
se apresenta como o noivo, identificando-se à maneira como Deus se apresentou
em tantos momentos ao longo do Antigo Testamento, como o marido de Israel.

"E me casarei contigo para sempre; sim, eu me casarei contigo em justiça,


juízo, misericórdia e compaixão; eu me casarei contigo em fidelidade, e tu
reconhecerás o SENHOR." (Os 2.19,20)

O próprio João Batista o reconheceu desta maneira:

"Vós mesmos sois testemunhas de que eu disse: Não sou o Cristo, mas sou
enviado adiante dele. A noiva pertence ao noivo; mas o amigo do noivo,
que está presente e o ouve, alegra-se muito com a voz do noivo. Assim se
completa esta minha alegria." (Jo 3.28,29)

Em resumo, o que estava em jogo era que o Deus de Israel, que se comprometeu
com seu povo em uma aliança de amor, estava bem ali entre eles, e este era um
motivo de grande alegria que não caberia um jejum agora. Jejum é para tempos de
anseio, anelo e desejo ardente. Mas aquele o qual Israel esperou e ansiou por tantos
anos estava bem no meio deles!³
Continuando a narrativa de Mateus 9, Jesus faz uma advertência de quando seus
discípulos jejuarão: "Mas chegarão os dias em que o noivo lhes será tirado, e então
jejuarão." Com isso, ele estava predizendo o tempo em que ele retornaria para o
Pai, e durante esse tempo os seus discípulos haveriam de jejuar. Mas uma indaga-
ção pode ser levantada: "Jesus não nos prometeu que não ficaríamos órfãos, nos
deixando o Espírito Santo como consolador?" É verdade que em certa medida ele
ainda está conosco, no entanto, sabemos que a dimensão da presença e intimidade
que poderá ser desfrutada quando Jesus voltar é muito maior.
Jesus fala a respeito deste tempo, até que finalmente ele volte, todo discípulo expe-
rimentará de um vazio e de uma saudade em seu interior porque ele não está aqui
fisicamente, inteiramente e intimamente. Intrinsecamente, nossa alma anseia por
mais, e é por esse motivo que jejuamos.4

3. Id. Ibid., p. 28
4. Id. Ibid., p. 29.

37
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Por fim, Jesus conclui seu discurso com uma analogia muito famosa: "Ninguém põe
remendo de pano novo em roupa velha, pois o remendo rasgará parte da roupa, e o
rasgo ficará maior. Nem se põe vinho novo em recipiente de couro velho; do contrário
se rompem, derrama-se o vinho, e os recipientes se perdem; mas põe-se vinho novo em
recipiente de couro novo, e assim ambos se conservam." Por que ao falar de jejum, a
conclusão é feita justo com esta analogia? O fato é que Jesus está comparando o je-
jum como um velho costume judaico ao remendo de pano velho e ao odre de couro
velho. Mas o pano novo e o vinho novo referem-se à nova realidade inaugurada com
Jesus - o Reino de Deus está entre nós!
Sendo assim, o jejum como um vinho novo diz respeito que os discípulos jejuem
com vista à nova realidade do triunfo do Filho de Deus, da entrada do Messias na
História, sua morte e ressurreição, reinando para a salvação do seu povo e a glória
de Deus. Este é o vinho novo: a esperança em Cristo repousada sobre sua encarna-
ção no passado, a realidade do presente de que ele está assentado à destra do Pai,
e a expectativa do futuro de que ele voltará para consumar a sua obra e manifestar
em plenitude a glória do Pai.
Por isso, a prática do jejum que Jesus estava ensinando tem a ver com um deleite
sobre a sua obra consumada como Noivo. O anseio, o anelo e o desejo ardente pelo
Noivo que nos move a jejuar, são expressões de fome e necessidade daquilo que se
pode experimentar da era vindoura no agora, mas que aguarda ansiosamente até
que se experimente em plenitude.
Piper diz que o jejum cristão é uma fome por toda a plenitude de Deus, provocada pelo
aroma do amor de Jesus e pelo gosto da vontade de Deus no evangelho de Cristo. Ele
continua dizendo:

"A novidade do nosso jejum é esta: sua intensidade vem, não do fato
de que nunca tenhamos provado do vinho da presença de Cristo, mas
porque o provamos de modo tão maravilhoso pelo seu Espírito que
não podemos nos satisfazer até a chegada da consumação."5

O jejum é, para nós cristãos, uma espécie de lamento e declaração de que as coisas
não estão satisfatórias. Por mais que nossa vida esteja bem, por mais que sejamos
prósperos, tenhamos boa saúde, família e riquezas, sabemos que nenhum dos pra-
zeres dessa vida nos é suficiente, enquanto Jesus não estiver presente conosco.

5. Id. Ibid., p. 32.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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É importante saber que na Bíblia o jejum diz respeito à abstenção ou restrição


alimentar por motivos espirituais (Dn 10.3). Isso significa, então, que fazer jejum
de outras coisas não é válido diante de Deus? Biblicamente, o jejum está sempre
relacionado a abstenção alimentar, pois tem a ver não com abrir mão do que é su-
pérfluo ou de preferência pessoal, mas sim se abster daquilo que é essencial para
o seu corpo. No entanto, abster-se de qualquer coisa lícita para se dedicar à oração
com a intenção de aprofundar-se na experiência e conhecimento de Deus sempre
será proveitoso para o cristão. Paulo mesmo se referiu às suas perdas como nada
comparado ao seu anseio de "conquistar a Cristo".

"Sim, de fato também considero todas as coisas como perda, comparadas


com a superioridade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, pelo
qual perdi todas essas coisas. Eu as considero como esterco, para que
possa ganhar Cristo…" (Fp 3.8)

TIPOS DE JEJUM

1. Jejum total de alimento, mas com ingestão de


água.

No seu jejum de quarenta dias Jesus, quando tentado pelo Diabo, não comeu nada
e no final teve fome (Lc 4.2). O versículo em questão dá a entender que Jesus não
se absteve de água, pois é dito apenas que ele não comeu.

"tendo sido tentado pelo Diabo durante quarenta dias. Sem ter comido
nada nesses dias, teve fome ao fim deles." (Lc 4.2)

2. Jejum parcial.

É o jejum no qual se abstém de algum tipo específico de alimento ou a uma ali-


mentação restrita a certos grupos alimentares, como foi o caso do jejum feito por
Daniel.

"Não comi nada agradável, nem carne nem vinho entraram na minha
boca, nem me ungi com óleo, até que se cumpriram as três semanas com-
pletas." (Dn 10.3)

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Esse período pode ser mais prolongado, uma vez que não se abstém completamente
de alimento. Entenda! Jejum não é dieta para emagrecer, mas para aproximar mais
o nosso coração do Senhor, ser mais sensíveis espiritualmente, e para demonstrar a
Deus que a sua Palavra nos sustenta mais que qualquer alimento. É importante ter
esses limites estabelecidos.

3. Jejum absoluto

Nesse jejum não há ingestão de nada, nem mesmo água. Nele é preciso maior cau-
tela e não é recomendado para os iniciantes dessa disciplina. Vale alertar que o cor-
po humano sobrevive apenas três dias sem a ingestão de água. Esse tipo de jejum
é sempre visto na Bíblia em situações de extrema necessidade ou perigo iminente,
como destacado nas seguintes passagens:

“E Ester mandou a seguinte resposta a Mardoqueu: Vai e reúne todos


os judeus que estão em Susã, e jejuai por mim. Não comais nem bebais
por três dias, nem de noite nem de dia; e eu e as minhas criadas também
jejuaremos como vós. Depois irei à presença do rei, ainda que isso seja
contra a lei. Se for preciso morrer, morrerei.” (Et 4.15,16)

“Saulo levantou-se do chão e, abrindo os olhos, não enxergava coisa


alguma; então, guiado pela mão, foi conduzido a Damasco. E ficou três
dias sem enxergar, sem comer nem beber.” (At 9.8,9)

4. Jejum sobrenatural

É o jejum feito em condições sobrenaturais, como foi o caso de Moisés. Ele mesmo
disse: "Fiquei no monte quarenta dias e quarenta noites; não comi pão, nem bebi água”
(Dt 9.9b). O corpo humano não consegue suportar tais condições, mas Deus sus-
tentou o corpo de Moisés para fazer algo que para nós é impossível.

5. Jejum coletivo

Na maioria das vezes, o jejum é uma questão particular entre o indivíduo e Deus.
Há, no entanto, ocasiões de jejuns comunitários, coletivos ou públicos.
Há exemplos disso nas Escrituras, quando se convocava para um jejum em tempos
de emergência nacional ou de algum grupo:

“Tocai a trombeta em Sião, decretai um jejum, convocai uma assembleia


solene. Reuni o povo (...)” (Jl 2.15,16a)

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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“Jonas começou a percorrer a cidade por um dia, clamando: Nínive será


destruída daqui a quarenta dias. Os habitantes de Nínive creram em Deus
e decretaram um jejum (...). A notícia também chegou ao rei de Nínive; ele
se levantou do trono (...) fez uma proclamação e a publicou em Nínive, por
decreto do rei e dos seus nobres: Que nem homens, nem animais, nem bois,
nem ovelhas provem coisa alguma; não comam, nem bebam água (...) e
clamem com fervor a Deus; e cada um se converta do seu mau caminho e
da violência de suas mãos. Talvez Deus se volte, arrependa-se e afaste o
furor da sua ira, de modo que não morramos.” (Jn 3.4-9)

O jejum em grupo pode ser uma experiência maravilhosa e poderosa, desde que
todos estejam preparados e tenham um mesmo pensamento.
Em qualquer discussão em relação às disciplinas espirituais devemos ter em mente
as seguintes advertências de Paulo:

“Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa


religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm
valor algum para refrear os impulsos da carne” (Cl 2.23 – NVI)

Temos sempre que ter cuidado com o ascetismo religioso em relação ao corpo que
pode apenas alimentar o ego com mais autoconfiança. O jejum atinge sua finalidade
como meio de abnegação apenas quando nos ajuda a oferecermo-nos inteiros em
submissão a Deus.

“A verdadeira mortificação da nossa


natureza carnal não é uma simples ques-
tão de abnegação e disciplina. É uma ques-
tão interior de encontrar mais conten-
tamento em Cristo que no alimento.”6

O verdadeiro jejum não incita o orgulho da força de vontade, mas a pobreza de


espírito e quebrantamento que nos leva para o descanso e contentamento na justi-
ficação que recebemos de Deus em Cristo; é o efeito do que Cristo fez por nós e em
nós. Não é mérito nosso, é obra do Espírito Santo, o domínio próprio.

6. Id. Ibid., p. 25.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

PROPÓSITO DO JEJUM

A principal intenção e propósito do jejum é glorificar a Deus. Essa é a única ma-


neira de nos poupar de amar mais as bênçãos que o abençoador. Às vezes, a ênfase
nas bênçãos e nos benefícios do jejum é tanta, que ficamos tentados a acreditar
que ligeiramente estamos de alguma maneira conquistando a vontade de Deus ou
ganhando crédito diante dele7. Este é um grande equívoco, pois como já vimos, o
jejum é a expressão da nossa fome por Deus, é abrir mão do pão como símbolo (ali-
mento) para experimentar o verdadeiro pão da vida, a palavra de Deus.
Depois de ter o propósito principal do jejum bem estabelecido em nosso coração,
é preciso compreender os seus propósitos secundários. Mais do que qualquer dis-
ciplina, o jejum revela as coisas que nos controlam, e ajuda a trazermos para fora a
nossa realidade interior. Isso é maravilhoso para os que buscam ser transformados
à imagem de Jesus Cristo, pois intensifica o processo de santificação.
O jejum também serve para lembrar-nos e declararmos diante de Deus, que não
somos sustentados somente pela comida, mas por toda a Palavra que procede da
sua boca.

"Disse-lhes Jesus: A minha comida é fazer a vontade daquele que me


enviou e completar a sua obra." (Jo 4.34)

Foster lembra que:

"Não somos instruídos a agir no jejum como se tivéssemos em grande pe-


núria, porque, na realidade, a situação é outra. Estamos sendo sustentados
por Deus e, assim como os israelitas foram sustentados pelo maná miracu-
loso que descia do céu, somos sustentados agora pela Palavra de Deus."8

Existem outras formas de encontrar satisfação em nosso interior, sem ser preci-
so nos alimentar. Podemos, sim, ser libertos do vício pela comida como forma de
abafar nossa ansiedade. No início, sentiremos incômodo, ansiedade e dificuldade
em permanecer, mas com o tempo persistiremos na prática desta disciplina, e,
cada vez mais, nosso coração será suprido no Senhor. Então, um dos propósitos do
jejum é nos conectar com a fome que há em nosso coração por sua presença, a qual
só será saciada com o retorno do Noivo, para habitar em nosso meio.

7. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 92
8. Id. Ibid., p. 93.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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NOVE MOTIVOS BÍBLICOS PARA O JEJUM:

1. Obediência à Palavra de Deus.

Jejuar é um mergulho profundo em direção à obediência da Palavra, é uma expe-


riência prática de obediência; e é uma das ferramentas dos líderes vitoriosos, tanto
do Antigo quanto do Novo Testamento.

“Mas agora, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o coração,


com jejuns, com choro e com pranto.” (Jl 2.12)

2. Para nos humilhar.

Todos nós precisamos do poder de Deus para ter uma vida cristã vitoriosa diária.
Jejuar nos mantém honestos em saber que somos necessitados, continuamente, da
graça de Deus em nossas vidas.

“Humilhai-vos diante do Senhor, e ele vos exaltará.” (Tg 4.10)

3. Para vencer tentações em áreas que nos impedem de


usufruir o poder de Deus.

Jesus saiu do deserto da tentação no poder do Espírito. Se quisermos o mesmo,


devemos fazer o que ele fez – jejuar.

“Tendo o Diabo acabado todo tipo de tentação, afastou-se dele até oca-
sião oportuna. No poder do Espírito, Jesus voltou para a Galiléia; e sua
fama se espalhou por toda a região.” (Lc 4.13,14)

4. Para ser purificado do pecado (e ajudar outros a


serem também).

Deus não quer apenas que derrotemos nossos pecados, mas também que possamos
ir além das nossas necessidades para, assim, cobrir a brecha como intercessores por
outros. Se existe um vício ou pecado que continua brotando em sua vida, humilhe
sua alma em jejum e Deus o purificará.

“Então voltei o rosto ao Senhor Deus, para buscá-lo com oração e súpli-
cas, com jejum, com pano de saco e cinzas. Orei ao SENHOR, meu Deus,
e, confessando, disse: Ó SENHOR, Deus grande e temível, que guardas

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

a aliança e a misericórdia para com os que te amam e guardam os teus


mandamentos; pecamos e praticamos o mal, agindo com impiedade e re-
beldia, apartando-nos dos teus preceitos e das tuas normas.” (Dn 9.3-5)

5. Para tornar-nos fracos diante de Deus, a fim de que


o seu poder seja forte em nós.

Jejuar é uma escolha por Deus e contra a carne. Quando jejuamos estamos fazen-
do uma escolha interior consciente, demonstrada por um ato exterior. Desejamos
que o poder de Deus, e não o nosso, flua através de nós; ansiamos pela resposta de
Deus, e não pela nossa.

“Mas ele me disse: A minha graça te é suficiente, pois o meu poder se


aperfeiçoa na fraqueza. Por isso, de muito boa vontade me gloriarei nas
minhas fraquezas, a fim de que o poder de Cristo repouse sobre mim. Por
isso, eu me contento nas fraquezas, nas ofensas, nas dificuldades, nas
perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco,
então é que sou forte.” (2 Co 12.9,10)

6. Para liberar unção para realizarmos a vontade de Deus.

Os líderes da igreja em Antioquia jejuaram antes de enviar Barnabé e Saulo. Isso


foi feito para que pudessem fazer a escolha certa, e garantir o sucesso da missão
evangelística.

“Enquanto cultuavam o Senhor e jejuavam, o Espírito Santo disse: Se-


parai-me Barnabé e Saulo para a obra para a qual os tenho chamado.
Então, depois de jejuar, oraram e lhes impuseram as mãos; e deixaram
que partissem. Assim, enviados pelo Espírito Santo, desceram a Selêucia
e dali navegaram para Chipre.” (At 13.2-4)

"E, nomeando-lhes presbíteros em cada igreja e orando com jejuns, con-


sagraram-nos ao Senhor em quem haviam crido." (At 14.23)

7. Para os tempos de crise.

Os homens se voltam para Deus em tempos de crise. Ester ordenou que os judeus
fizessem um jejum, antes de arriscar sua própria vida entrando na presença do rei,
para obter misericórdia e perdão para o povo. No final, Deus mudou aquela crise
trazendo libertação a todos os judeus, como podemos ver na passagem abaixo:

44
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Mardoqueu escreveu essas coisas e enviou cartas a todos os judeus de


todas as províncias (...) ordenando-lhes que todos os anos guardassem
o décimo quarto e o décimo quinto dias do mês de adar como os dias em
que os judeus se livraram dos seus inimigos, e o mês em que a tristeza
foi transformada em alegria, e o pranto em dia de festa...” (Et 9.20-22a)

8. Para buscarmos a direção de Deus.

Quando precisamos de direção divina, por estarmos confusos quanto ao caminho a


tomar, o melhor que temos a fazer é jejuar.

“Então proclamei um jejum ali junto ao rio Aava, para nos humilhar-
mos diante do nosso Deus, a fim de lhe pedirmos uma viagem segura
para nós, nossos filhos e todos os nossos bens. Pois tive vergonha de pedir
ao rei uma escolta de soldados e cavaleiros para nos defenderem dos ini-
migos no caminho, pois havíamos dito ao rei: A mão do nosso Deus age
para o bem e está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua
ira são contra todos os que o abandonam. Assim, jejuamos e pedimos isso
ao nosso Deus; e ele atendeu às nossas orações.” (Ed 8.21-23)

9. Para entendimento e revelação divina.

Como cristãos, precisamos mais do que direção; precisamos revelação e entendi-


mento quanto a determinadas questões, situações ou verdades bíblicas.

"Então Jeremias ordenou a Baruque: Estou proibido de ir à casa do SE-


NHOR. Portanto, entra e lê perante o povo, na casa do SENHOR, no
dia de jejum, as palavras do SENHOR que escreveste no livro quando
eu ditava. Tu as lerás também perante todo o povo de Judá que vem das
suas cidades. Talvez a súplica deles chegue diante do SENHOR, e cada
um se converta do seu mau caminho; pois a ira e o furor com que o SE-
NHOR ameaça este povo são grandes.” (Jr 36.5-7)

A PRÁTICA DO JEJUM

Como todas as disciplinas, há uma progressão no jejum. Devemos aprender a cami-
nhar, antes de tentar correr. Escolha um dia e comece jejuando uma refeição. Muitos
pensam ser apropriado aos iniciantes jejuar o intervalo entre dois almoços. Experimen-
te fazer isso uma vez por semana, durante algumas semanas. Acompanhe a atitude do
seu coração. Você continuará cumprindo suas obrigações comuns de cada dia, mas in-

45
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

ternamente estará mais atento ao Espírito Santo. Interrompa o jejum com uma refeição
leve, nunca com algo gorduroso ou muito pesado.
Após algum tempo você poderá tentar o jejum normal de 24 horas. Beba muita água,
pausadamente, e em pequenas quantidades. Se sentir muita fraqueza, experimente
adicionar um pouco de mel em um copo com água.
Você irá sentir pontadas de fome e desconforto, mas lembre-se que isso não é fome
de verdade – seu estômago está mal-acostumado. Precisamos ser mestres do nosso
estômago e não escravos dele. Se possível, gaste o tempo que iria fazer as refeições,
orando e meditando.
Não chame a atenção para você mesmo, lembre-se das instruções de Jesus: “O Pai
que vê em secreto, o recompensará”. Assim como os fariseus chamavam atenção para si
quando davam esmolas, aqueles que jejuam para serem vistos pelos homens já recebe-
ram sua recompensa. Mas você está jejuando por recompensas muito maiores e mais
profundas.
Após algumas experiências com jejuns, ore ao Senhor para saber se ele deseja que você
prossiga com jejuns mais longos. Um bom período de tempo será de três a sete dias,
o que causará um grande impacto em sua vida. Os primeiros três dias podem ser mais
difíceis, por causa das dores provocadas pela fome e o desconforto físico. É óbvio que
nem todos podem jejuar, por razões físicas, como os diabéticos, as gestantes e outros.
Se você tiver dúvidas em relação às suas condições físicas para o jejum, procure orien-
tação médica.
Antes de jejuar por um longo período faça refeições mais leves um ou dois dias antes
de iniciar o jejum. Não tente “estocar” energia se alimentando mais do que o normal,
isso resultará em prisão de ventre e, provavelmente, sentirá fome mais rapidamente.
Sempre priorize saladas frescas, vegetais cozidos, frutas e sucos.
O objetivo principal do jejum é dedicar tempo para buscar e se concentrar em Deus. Se
abafarmos a ansiedade gerada pelo jejum com outras atividades (redes sociais, televisão
etc.) perderemos o nosso tempo, e apenas passaremos fome. Isso não trará nenhum
benefício espiritual para nós. Embora os aspectos físicos do jejum nos intriguem, o
principal efeito do jejum bíblico acontece no âmbito espiritual. O jejum é um meio da
graça e da benção de Deus para nos alcançar, por isso, não devemos negligenciá-lo se
queremos verdadeiramente crescer em santidade e conhecimento de Deus.

“A fé é um banquete espiritual em
Cristo com vistas a estar tão
satisfeito nele que o poder de todos
os encantamentos é quebrado.”

9. PIPER, John. Fome por Deus: Buscando Deus por meio do Jejum e da Oração. São Paulo: Cultura Cristã,
2013, p. 32

46
Aula 4
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DO ESTUDO
A disciplina do estudo é importante tanto quanto as disciplinas estudadas anterior-
mente (meditação, oração e jejum), e a nossa dedicação a ela também deve ser a
mesma. Não faz sentido, por exemplo, tornar Deus a regra e a medida da nossa
vida de oração e não torná-lo a regra e medida das demais ações de nossa vida. O
propósito de todas as disciplinas, inclusive a do estudo, é transformar nossas vidas,
substituindo velhos hábitos de pensamentos p or hábitos vivificadores.
A Bíblia diz sobre amarmos o Senhor Deus de todo o coração, de toda a alma, de
todas as nossas forças, e com todo nosso entendimento. Ou seja, a nossa men-
te precisa estar envolvida no processo da comunhão com Deus, e a disciplina do
estudo é o meio através do qual o Senhor estabelece para o amarmos também com
a nossa mente.

47
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Jesus lhe respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de


toda a alma e de todo o entendimento.” (Mt 22.37)

Paulo endossa o nosso entendimento dizendo que essa transformação acontece por
meio da renovação da nossa mente. Ele diz:

“E não vos amoldeis ao esquema deste mundo, mas sede transformados


pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus.” (Rm 12.2)

A marca distintiva de todo cristão é uma mente renovada pelo Espírito Santo. No
momento em que fazemos concessões com o espírito deste século, conformando a
mente segundo seus moldes, provaremos que deixamos de adorar a Deus com todo
o nosso entendimento.
Pedro Dulci comenta sobre como o anti-intelectualismo dentro da igreja tem en-
tregado de bandeja ao “inimigo” o espaço do pensamento, e com isso cristãos vêm
sendo privados de experimentar a renovação promovida pelo Espírito de Deus na
mente, através da Escritura, provando a boa, perfeita e agradável vontade de Deus.1
Somos constantemente bombardeados em nossa mente por mentiras que nos le-
vam a um modo errôneo de enxergar o mundo, e a viver de forma completamente
fora do padrão estabelecido por Deus. Mas nossa mente será renovada à medida
que nos aplicamos e dedicamos às coisas que realmente importam.

FINALIDADE DO ESTUDO

Foster diz que a disciplina do estudo é a mente assumindo uma ordem conforme a
ordem daquilo que nos concentramos.2 Ou seja, ao passo que é estabelecido foco
e atenção sobre determinado assunto, gradualmente a mente adquire as catego-
rias contidas a respeito do que está concentrada. A partir disso, hábitos sólidos de
pensamento são formados. Por isso, estudar a palavra de Deus é tão importante e
crucial para experimentarmos a conformação da mente de Cristo na nossa mente.
Estudar é uma experiência que leva nosso pensamento a se mover em determinada
direção. Ao pegarmos um livro qualquer, imediatamente tiramos algumas conclu-
sões sobre ele, como seu tamanho, grossura, apresentação da capa etc. Mas quando

1. DULCI, Pedro. Inteligência pra quê? Como usar o cérebro para a glória de Deus. 1ª edição. São Paulo:
Mundo Cristão, 2019, p. 15.
2. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edição. São Pau-
lo: Editora Vida, 2007, p. 103.

48
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

o abrimos com o intuito de estudá-lo, nossos pensamentos vão sendo moldados de


acordo com o seu conteúdo. No entanto, é importante entender que os pensamen-
tos são também influenciados e conformados aos padrões a que somos expostos;
como, por exemplo, a compulsão consumista adquirida através do volume de publi-
cidades incitando o consumo como uma necessidade. Como evitar isso?
No tempo de Moisés, Deus orientou os israelitas a manterem o foco em sua Pala-
vra, para não se contaminarem nem se conformarem aos padrões que lhes seriam
expostos pelas outras nações; também os instruiu a que escrevessem sua lei nos
umbrais das portas de suas casas para que ela estivesse sempre à vista deles.

“Colocai estas minhas palavras no coração e na alma; prendei-as como


um sinal na mão, como faixas na vossa testa; e as ensinareis a vossos
filhos, falando delas, sentados em casa e andando pelo caminho, ao vos
deitardes e ao vos levantardes; e as escrevereis nos batentes de casa e nas
portas” (Dt 11.18-20)

Os pais, por sua vez, eram orientados a inculcar (imprimir) na mente de seus filhos
a lei de Deus, por meio da repetição, do foco e do retornar aos padrões descritos
nela. A finalidade dessa instrução era dirigir a mente de seus filhos para um modo
correto de pensar e viver.
Para uma sociedade cada vez mais consumista e permeada de pretensões que se
levantam contra o conhecimento de Deus, a igreja precisa recuperar a noção do que
significa querer, sentir e pensar como um discípulo de Cristo!3 É justamente a disci-
plina do estudo que nos levará a pensar e refletir sobre essas coisas. A capacidade
de refletir nos é dada através da graça de Deus, com o fim de transformar o nosso
espírito. Adorar e obedecer a Jesus Cristo como Senhor e Mestre, requer alterações
no teor (na maneira de ser) da nossa vida. O estudo é a ferramenta apropriada nesse
sentido e precisamos abraçá-lo como um dos meios que Deus usa para nos aperfei-
çoar. Jesus disse que o conhecimento da verdade é o que nos liberta:

“E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.” (Jo 8.32 – NVI)

À vista disso, o estudo é basicamente conformar a mente a um determinado padrão,


o qual será responsável pela formação dos nossos hábitos. Por isso, Paulo insiste em
que nos ocupemos das coisas que são verdadeiras, respeitáveis, justas, amáveis e
de boa fama. Sendo assim, os hábitos adquiridos serão marcados pela excelência.

3. DULCI, Pedro. Inteligência pra quê? Como usar o cérebro para a glória de Deus. 1ª edição. São Paulo:
Mundo Cristão, 2019, p. 15.

49
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre,
tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo
o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor,
pensem nessas coisas” (Fp 4.8 – NVI)

DIFERENÇA ENTRE MEDITAÇÃO E ESTUDO

É importante entendermos a diferença entre meditação e estudo, porque, frequen-


temente, estas duas disciplinas são confundidas.
• Meditação
A meditação tem um foco devocional. Seu objetivo é nos levar a entender o que o
texto ou mensagem significa para nós; ou o que determinado atributo de Deus ou
revelação das Escrituras significa para as nossas vidas. Na meditação saboreamos a
Palavra e extraímos dela coisas que vão nos fazer crescer espiritualmente.
• Estudo
O objetivo do estudo é explicar e analisar com profundidade o texto, isto é, enten-
der o que ele significa ou significou para o autor que o escreveu. Em outras pala-
vras, nos submetemos às intenções do autor determinados a ouvir o que ele tem
a dizer e não o que desejamos que ele diga. Queremos a verdade que nos transfor-
ma, e não apenas uma sensação agradável.
O estudo não se limita à Bíblia, mas abrange também outros livros e literaturas
diversas. Obviamente, a Bíblia é o nosso objeto de maior interesse, uma vez que
ela é o principal determinante dos nossos padrões de vida. Porém, não devemos
negligenciar o estudo preciso de alguns clássicos da literatura cristã.
No estudo, diferentemente da meditação, você faz perguntas ao texto para obter
dele respostas objetivas. A principal tarefa do estudo é perceber a realidade interna
de determinada situação. Nossas experiências podem influenciar muito nesse pro-
cesso. Por exemplo: Você será capaz de perceber a natureza do sofrimento, se pas-
sou por algum sofrimento em sua vida pessoal. Caso contrário, poderá percebê-la
quando refletir atentamente num texto que fala sobre o assunto.4

4. Id. Ibid, p.104.

50
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

OS DOIS TIPOS DE OBJETOS DE ESTUDO

1. Livros verbais

Esse tipo de objeto de estudo abrange tanto literaturas em geral, como palestras,
aulas, apostilas etc. Esse tipo requer de você: atenção (parar), tempo, e outros ma-
teriais de auxílio.

2. Livros não verbais

Os livros não verbais são a maior parte daquilo a que devemos nos aplicar. Tudo o
que você precisa para estudá-los é manter seu foco nas coisas que estão acontecen-
do ao seu redor – a natureza, os eventos, as pessoas (inclusive nós mesmos), etc.
Para tanto, seria precioso que cultivássemos em nós a característica que despertava
a atenção de John Piper na vida de C.S. Lewis, que ele chamava de atentividade oní-
vora. Atentividade é a qualidade de se ter foco e atenção em algo, e onívora remete a
animais que comem de tudo, sem nenhuma restrição. Trazendo esse conceito para
a disciplina do estudo: é a característica da pessoa que consegue focar a sua atenção
e ter interesse nos mais diversos aspectos da vida, desde observar um pequeno in-
seto até observar o complexo comportamento do ser humano.
Porém, o que mais precisa ser resgatado em nós para o estudo dos livros não ver-
bais é o senso de assombro diante de todas as coisas que denotam a engenhosidade e
criatividade de Deus, características estas que ele também depositou nos seres hu-
manos. Se tivermos esse assombro ao nos relacionarmos com as pessoas, seremos
capazes de ver-lhes o coração e suas motivações. Mas o objeto mais complexo de
estudo talvez seja o nosso próprio coração. Quantas vezes gastamos tempo refle-
tindo sobre nossas próprias ações, motivações, pensamentos, e até mesmo sobre
nossos preconceitos?

PASSOS PARA SE DESENVOLVER O ESTUDO

1. Repetição
A repetição, mesmo sem ser acompanhada pela compreensão, é importante, pois
fará com que o conteúdo comece a fazer parte de nós, ainda que muita coisa não
faça sentido. A repetição leva à expansão da compreensão. Foi por isso que Deus
orientou o povo para que repetisse constantemente a lei; ela começaria a fazer par-
te da mente, do imaginário e da forma do seu povo ver o mundo. Através da repe-
tição nossos hábitos se aprofundam e criam raízes, além de resultar em mudança

51
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

de comportamento. Infelizmente, essa estratégia também é usada para destruir. A


repetição das incontáveis tragédias, assassinatos e traições, exibidos pela TV em
horários nobres, a alta exposição às redes sociais, dependendo do conteúdo do qual
se expõe, estão treinando a mente das pessoas para um padrão destrutivo de pensa-
mento, o qual, com o passar do tempo, resultará em comportamentos conformados
a tais afirmações negativas.

“A repetição por si só treina o pensamento


em padrões que podem ser edificantes ou
destrutivos para o pensamento.”5

2. Concentração

A aprendizagem aumenta grandemente quando, além da prática da repetição, nos


concentramos no tema do estudo. A atenção é uma forma de ajustar e dirigir a
mente para aquilo que está sendo estudado. Dificilmente ganharemos compreen-
são, acerca de algum assunto, usando apenas a técnica da repetição. É no estágio
da concentração que acontece a iluminação ou “insight” a respeito daquilo que
estamos estudando. Vivemos em uma cultura que desvaloriza a concentração; a
distração é a ordem do dia. Realizamos várias tarefas ao mesmo tempo, e a maioria
de nós pensa ser impossível passar algumas horas concentrado numa única coisa.
A verdade é que desperdiçamos tempo e gastamos nossas energias quando não nos
concentramos no que estamos estudando.

3. Compreensão

O terceiro passo na disciplina do estudo é a compreensão. Através dos dois pri-


meiros estágios (repetição e concentração), passaremos para a compreensão do
assunto e atingiremos um nível mais elevado em nosso estudo. Jesus diz que não é
a verdade, mas o conhecimento da verdade, que nos liberta (Jo 8.32). Nesse terceiro
passo começaremos a fazer conexões entre pontos diferentes dentro do que o autor
escreveu. Isso pode acontecer com a Bíblia, com livros de devoção e até com livros
teológicos mais densos. A compreensão irá nos conduzir à iluminação e ao discer-
nimento, proporcionando-nos, assim, um fundamento sólido para uma percepção
verdadeira da realidade.

5. Id. Ibid., p.105.

52
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“A COMPREENSÃO CONCENTRA-SE NO
CONHECIMENTO DA VERDADE”6

4. Reflexão

O último passo é a reflexão. Quando já decoramos o assunto, absorvemos as cate-


gorias que o autor empreende, nos concentramos naquele conteúdo e recebemos a
compreensão acerca do assunto estudado, devemos, então, passar tempo refletin-
do a respeito do que foi estudado. A reflexão nos permite enxergar as coisas pela
perspectiva de Deus e passamos a entender não somente o assunto em pauta, mas
a nós mesmos. Esse é o momento de ponderarmos e concluirmos o conteúdo que
estamos estudando, e de que maneira ele pode ser aplicado.

“Refletir nos leva a ruminar o assunto


que estamos estudando, e isso nos leva
à realidade interior ao invés de ficar-
mos na superficialidade do tema.”7

REGRAS INTRÍNSECAS E EXTRÍNSECAS

Podemos pensar no estudo como uma tarefa simples, mas este tipo de pensamento
pode nos conduzir a uma atitude leviana diante desta tarefa e, como consequência,
o aprendizado se tornar estéril ao invés de frutífero.
Isto não precisa chegar aos ouvidos do aluno como um desencorajamento, mas com
uma conscientização de que a disciplina do estudo envolve um custo do qual vale a
pena se esforçar. Para iniciantes, assim como em qualquer atividade da qual se de-
dique, o estudo no início pode representar um desafio muito operoso, no entanto,
se consciente da necessidade de aprender, a prática o levará ao aperfeiçoamento.
Mortimer Adler, em seu livro Como Ler Livros, cita seis regras necessárias para o
estudo de livros, subdivididas em dois grupos: regras intrínsecas (internas – seu
contato com o livro) e regras extrínsecas (seu auxílio externo para o estudo).

6. Id. Ibid., p. 105.


7. Id. Ibid., p. 106.

53
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Regras Intrínsecas
As regras intrínsecas são divididas em três estágios da leitura: Entender, Interpre-
tar e Avaliar. Dificilmente uma pessoa que está iniciando na caminhada do estudo
conseguirá assimilar esses três aspectos em uma única leitura do livro. Por isso, são
recomendadas três leituras, uma para cada um dos três estágios. Mas com o tempo
pode ser que isso seja feito simultaneamente.

1. Entender
Esse primeiro estágio tem como objetivo entender o que o autor está dizendo. Isso re-
quererá certo esforço e atenção para se apropriar do conhecimento do livro em questão.

2. Interpretar
É preciso interpretar o que o autor quer dizer. Antes, porém, é necessário reconhe-
cer as suas limitações no modo, por exemplo, como coloca as palavras. Nesse está-
gio podemos detectar, às vezes, que o livro não é completo na sua estrutura ou que
determinadas categorias ficaram em aberto. Nesse caso, é preciso entender o que
de fato o autor queria dizer com todo o conhecimento que ele aplicou ou inseriu na
literatura em pauta.

3. Avaliar
Muitas vezes somos tentados a vir direto para esse estágio, isto é, costumamos fa-
zer a análise crítica do livro, antes mesmo de entender as suas afirmações. Porém,
é preciso compreender e interpretar cuidadosamente o livro, antes de julgar se ele
está certo ou errado em suas afirmações.

Regras Extrínsecas
As regras intrínsecas, por si só, são insuficientes para o sucesso na leitura e estudo
de livros. Por isso, precisamos do auxílio secundário das três regras extrínsecas:

1. Experiência

Muitos livros só são compreendidos de forma plena, quando passamos por uma
experiência que abra nosso entendimento. Quando lemos sobre sofrimento, por
exemplo, mas nunca tivermos enfrentado momentos de verdadeira angústia, não
compreenderemos o livro da mesma forma que uma pessoa que tenha passado pela
experiência do sofrimento compreende. No entanto, ler sobre determinado tema,
mesmo que não tenha tido nenhuma experiência a respeito, nos trará sabedoria
para as circunstâncias futuras em que seja necessário enfrentá-lo. Fato é que as ex-
periências farão com que nossa compreensão do assunto seja expandida.

54
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“A experiência que passa pela com-


preensão e a reflexão, influencia e
ilumina o estudo.”8

2. Ler outros livros

Ler outros livros faz-nos ter uma visão mais ampla, mais tridimensional do assun-
to que está sendo tratado no livro em questão. Podemos listar aqui dicionários,
comentários e leituras críticas, sempre dando preferência a livros que ampliem
o tema que estamos estudando. Fique atento para a bibliografia usada pelo autor,
registrada no final do livro, pois ela diz muito sobre a qualidade do livro. Que fon-
tes o autor usou para escrever seu livro? Certamente se as fontes são ruins, o livro
também será ruim; mas o contrário também é verdadeiro. Ler outros livros sempre
irá nos ajudar a aumentar nossa compreensão a respeito de determinado assunto.

3. Discussão ou diálogo

Muitas vezes, descobrimos que não entendemos determinado assunto, quando não
o conseguimos explicar a outra pessoa, através de uma discussão ou diálogo. Po-
rém, pode acontecer que ambos tenham uma ótica diferente a respeito, mas isso
não é ruim; a opinião do outro certamente enriquecerá a compreensão do assunto
abordado pelo autor do livro.

CONCLUSÃO

Depois de tudo o que vimos nesta aula, fica claro que o estudo depende da humildade.
Ele não acontece enquanto não estivermos dispostos a nos submeter ao assunto em
pauta. Precisamos agir como alunos sedentos pelo conhecimento, e não como profes-
sores. Não podemos ser arrogantes e confundir acúmulo de informação com conheci-
mento. Nos submeter ao que estudamos com a humildade e o espírito dócil de quem
deseja aprender favorece o processo de aprendizado.

João define a vida eterna como sendo o conhecimento de Deus:

“Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus


Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3 – NVI)

8. Id. Ibid., p. 108

55
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

O apóstolo João considera que a vida eterna é conhecer a Deus e o seu Filho, Jesus.
Como cristãos temos esta perspectiva do verdadeiro conhecimento, e conscientes de
que estamos diante de um Deus magnífico, não pode existir espaço para a presunção
em nosso coração. Nada do que podemos conhecer nesta vida é grande ou bom o sufi-
ciente diante da supremacia da sabedoria de Deus.

Apenas um pequeno vislumbre desse conhecimento será suficiente para gerar em nós
profundo senso de humildade. Um dos objetivos principais do estudo somos nós mes-
mos. Devemos tomar conhecimento das coisas que nos controlam e observar nossos sen-
timentos e oscilações de humor. O que controla nosso estado de ânimo? O que estas
coisas nos ensinam a respeito de nós mesmos? É preciso humildade para estudar essas
questões, e dependência da graça e liderança do Espírito Santo. Para o novato nessa
disciplina o trabalho parecerá difícil no começo, mas com o passar do tempo o estudo
produzirá alegria, e quanto maior a proficiência (aptidão), maior será a alegria. O estudo
vale todo o nosso esforço!

O estudo vai fornecer a substância e o conteúdo para as demais disciplinas espirituais. Quando
oramos, a palavra que oramos é a palavra que estudamos. Quando meditamos, a palavra
que meditamos também é a que estudamos. Quando jejuamos, nos abstemos porque o
nosso alimento é essa palavra que estudamos. Precisamos entender que o estudo é essen-
cial nessa formação de uma mentalidade renovada e uma base para as demais disciplinas.

O estudo exige da nossa razão, ele é exigente com a nossa racionalidade. Nós não somos
apenas coração e vontade, emoções e decisão, somos também mente e razão. Lembre-
-se, Jesus foi chamado de mestre, então nesse aspecto Jesus é aquele que ensina, ele é o
mestre; e o estudo então, como uma disciplina espiritual é aquela disciplina que o coloca
em contato com os aspectos de Jesus como seu mestre. O estudo também é aquilo que
nos permite entender o plano de Deus e sua ação na história; nos engajar com a maneira
de Deus trabalhar.

Além disso, quando amamos a Deus com todo o nosso entendimento, testemunhamos
ao mundo que o evangelho é uma fonte plausível para todo aquele que se empenha no
empreendimento intelectual. A Escritura possui recursos suficientes e necessários para
orientar toda vida humana na realidade do mundo. Sendo assim, nossa fé é um empreen-
dimento intelectual não de ordem privada, mas de ordem pública. Toda a palavra de Deus
é útil para nos orientar com sabedoria!9

“Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar,


para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o
homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa
obra.” (2 Tm 3.16,17)

9. DULCI, Pedro. Inteligência pra quê? Como usar o cérebro para a glória de Deus. 1ª edição. São Paulo:
Mundo Cristão, 2019, p. 29.

56
Aula 5
v.1.0.1

A DISCIPLINA DA
SIMPLICIDADE E DA
SOLITUDE
A SIMPLICIDADE CRISTÃ

Ao contrário do que muitos imaginam, a disciplina da simplicidade nada tem a ver


com algum tipo de voto de pobreza. Não! A disciplina da simplicidade não se opõe
às riquezas, mas à complexidade crescente da vida moderna que, frequentemente,
fragmenta nossa perspectiva e mentalidade, tirando de nós a paz interior.
Na era da globalização somos assediados pela velocidade de informação que facilitou as
propagandas que apelam para o consumo, suscitando necessidades, muitas vezes, ine-
xistentes. Esse padrão social tem disciplinado pessoas para andarem sempre ansiosas e
com um estilo de vida de alto consumo, porém, estão sempre insatisfeitas. Tornam-se
consumistas não só de bens materiais, mas até mesmo de relacionamentos.

57
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A simplicidade cristã como disciplina espiritual nos ajuda a nos livrar de toda ob-
sessão e compulsão alimentadas pelo espírito deste século. Nos ajuda a encarar os
bens como facilitadores e não para nos sobrecarregar.1
Dietrich Bonhoeffer, antes de morrer pelas mãos dos nazistas, afirmou: “Ser sim-
ples é fixar os olhos unicamente na simples verdade de Deus quando todos os conceitos
se mostrarem confusos, distorcidos, de pernas para o ar.” 2
A disciplina da simplicidade tem, portanto, a tarefa de agir em nosso coração, na
desfragmentação do nosso ser, promovida pela complexidade crescente na vida
moderna, que faz com que, infelizmente, tenhamos um coração dividido e uma
mentalidade fragmentada. Ou seja, a confusão da complexidade desse tempo faz
com que a paz interior seja uma realidade cada vez mais distante ao passo que ela é
tão característica do evangelho.
Uma pessoa fragmentada é aquela que perdeu a sua identidade, assim como perde
um bloco único que se quebra. Seguir o fluxo sem ao menos saber o motivo por que
o segue é se comportar semelhante às máquinas que realizam várias funções sem
reconhecer a própria identidade: sem consciência, sem reflexão, sem integração.
Isso é viver um estilo de vida fragmentado.
Os seres pós-modernos vivem como se fossem compostos por um conglomerado
de “eus” - o “eu financeiro”, “eu espiritual”, “eu material”, “eu profissional” etc. E
esta forma fragmentada de viver gera uma disputa no interior do homem e perde-
-se de vista a simplicidade da qual este foi criado para experimentar. Esses “eus”
alimentam a individualidade e a dureza de coração. Cada um deles “bradam e cla-
mam” a fim de garantir seus próprios interesses, e fazem cada vez mais com que
a mente e atenção sejam divididas. Não é de se admirar que atualmente o homem
experimente tanta inquietação.

“Tudo o que aprendi se resume nisto: Deus nos fez simples e direitos, mas
nós complicamos tudo.” (Ec 7.29 - NTLH)

Sendo assim, a simplicidade é a singularidade e integralidade que implica no fato


de não possuir um coração dividido; uma vida livre das amarras do mundo material,
fazendo com que o coração se torne integral e focado para amar a Deus e o próximo
sem medida.

1. FOSTER, Richard J. A liberdade da simplicidade: encontrando harmonia num mundo com-


plexo. São Paulo: Editora VIda, 2008, p. 19.
2. Eberhard Bethge (Org.) New York: Harper & Row, 1941, p. 124 apud FOSTER, Richard J. A
liberdade da simplicidade: encontrando harmonia num mundo complexo. São Paulo: Editora
VIda, 2008, p. 28.

58
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A disciplina da simplicidade vai gerar a alegria e o equilíbrio de que tanto precisa-


mos, pois nos levará a uma vida centrada em Deus, o sustentador de toda a realida-
de. Ele está em tudo, através de tudo e acima de tudo.

A SIMPLICIDADE CRISTÃ NA ESCRITURA

A simplicidade cristã é uma realidade interna cujas consequências são externas,


refletidas no estilo de vida3. A simplicidade cristã é a disciplina que mais pode ser
vista com facilidade, pois é uma realidade interior que se manifesta exteriormente.
Sendo assim, temos o perigo de achar que ela pode ser praticada em detrimento de
todas as outras disciplinas. Este é um equívoco, pois a simplicidade é uma discipli-
na que se comunica com todas as outras. Um exemplo é que a oração e a simplici-
dade estão interligadas. Nossa confiança e dependência em Deus é manifestada e
aperfeiçoada no fato de orarmos e apresentarmos a ele todas as nossas ansiedades.
A simplicidade corresponde ao lugar em que se encontra o nosso coração e qual é o
ponto central do qual a nossa vida está girando em torno. O título do livro do filósofo
Kierkegaard define bem a simplicidade cristã: “Pureza de coração é desejar uma coisa”.
Isto não nos lembra o conselho de Jesus aos seus discípulos no sermão do monte?

“Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos
serão acrescentadas.” (Mt 6.33)

E o que dizer quanto ao anseio de Davi?

“Pedi uma coisa ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na casa


do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar o esplendor
do SENHOR e meditar no seu templo.” (Sl 27.4)

Jesus nos deixa essa orientação sobre a qual disciplina da simplicidade repousa:
buscar o reino de Deus e a sua justiça em primeiro lugar, de modo que tudo que
for necessário virá no tempo apropriado. Isso é ter os olhos bons, singelos, e ter
um só alvo. Tudo gira em torno de manter as “primeiras coisas” em primeiro lu-
gar. Estar livre de ansiedades é uma das evidências internas de quem vive dessa
maneira. A realidade interior da simplicidade envolve uma alegre despreocupação
em relação aos bens materiais, consequência de saber que tudo em sua vida tem

3. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 122.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

origem na graça, no amor e no favor de Deus. Nem o ganancioso nem o avarento


conhecem essa liberdade.4

Muitas coisas que prometem facilitar a nossa vida, na verdade,


fazem com que nosso interior se torne cada vez mais vazio.

No entanto, não se deve confundir que este discurso de Jesus possui o intuito de
dizer que o dinheiro, conforto e outras coisas que podem nos gerar prazer nessa vida
precisam ser desprezadas pelos seus discípulos. O cristianismo não tem como obje-
tivo gerar uma vida ascética - nos colocar em circunstâncias de extremo desconforto
como se isso fosse uma espécie de distintivo para uma espiritualidade mais avançada.
As Escrituras declaram, de forma coerente e vigorosa, que a criação é boa e deve ser
desfrutada. O ascetismo faz uma divisão estranha à Bíblia, considerando o mundo es-
piritual bom e o mundo físico ruim, renunciando, assim, os bens materiais. Contudo,
a simplicidade encara os bens materiais pela perspectiva correta.5
É necessário entendermos que possuir riqueza e confiar na riqueza são ações com-
pletamente distintas. Possuir riqueza é ter o direito de decidir como ela será ou não
usada, como será consumida ou transferida a outros. Confiar na riqueza, por sua
vez, é depender dela para obter ou assegurar aquilo que mais desejamos. É pensar
que ela trará alegria e bem-estar, e supor que estamos seguros por possuí-la.

“Não confieis na opressão, nem vos orgulheis do roubo; se vossas rique-


zas aumentarem, não coloqueis nelas o coração.” (Sl 62.10)

“Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e por causa dessa co-
biça alguns se desviaram da fé e se torturam com muitas dores.” (1 Tm 6.10)

As fortes recomendações bíblicas acerca de não amar ou confiar no dinheiro refe-


rem-se ao fato de que o homem pode fazer das riquezas o seu deus quando deposita
nele toda sua confiança, segurança e alegria. Nesse sentido, a dedicação ao dinheiro
se torna maior em detrimento da busca pelo Senhor. Logo, o problema não está
com o quanto possuímos, mas sim em quem possui o nosso coração. Se caso for o
dinheiro, Deus está sendo destronado do seu lugar que é de direito em nosso cora-
ção em troca de um ídolo.

4. Id. Ibid., p. 130-131.


5. Id. Ibid., 126.

60
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará a um e amará


o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e às riquezas.” (Mt 6.24)

À luz dessa distinção, fica claro que podemos possuir bens sem confiar neles. Po-
demos ter posses com o coração livre de qualquer idolatria, quando elas estão a
serviço do Senhor e das pessoas, e nunca como fonte do nosso contentamento.
A simplicidade nos proporciona uma reorientação para que os bens materiais se-
jam genuinamente desfrutados, sem que nos destruam. Quando Deus deixa de
ser o centro no qual toda a nossa vida gira em torno, depositamos nossa confiança
em alguma outra fonte. Na nossa sociedade moderna, o ímpeto pelo acúmulo é
visto como sinônimo de empoderamento e facilmente pode conduzir o homem ao
engano de que muito dinheiro trará paz. Esta ordem é a lógica de uma sociedade
doente, e se conformar a ela é adoecer junto. Enquanto não percebermos o quão
desequilibrada está a nossa cultura, não desejaremos a simplicidade cristã. Precisa-
mos, corajosamente, buscar um estilo de vida simples e bíblico.
O tipo de narrativa que costuma nos despertar a admiração é sempre da pessoa que
era pobre e se tornou rica. Normalmente essas pessoas são aclamadas e conside-
radas heróicas em nossa sociedade. Mas no evangelho, a perspectiva é contrária,
aquele que verdadeiramente é o herói, Jesus Cristo, nosso salvador, era rico e se
fez pobre em favor de muitos. E o grande cenário é que Jesus não é aquele que não
tinha nada e trabalhou muito para ter tudo. Jesus é aquele que tinha tudo e deixou
tudo. O movimento de Jesus é descendente e não ascendente. Logo, ele não se
encaixa na narrativa do herói reconhecido pela nossa cultura. Jesus não seria o per-
sonagem principal da maioria das nossas narrativas.
Por esse motivo, precisamos nos voltar para a recomendação do apóstolo Paulo:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, que,


existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser igual a Deus
algo a que devesse se apegar…” (Fp 2.5,6)

Jesus é o nosso maior exemplo de uma vida simples. Ele era dono de tudo, mas seu
foco estava em obedecer até à morte. A vontade do Pai era o objetivo de sua vida;
tudo que não cooperasse para essa vontade, era descartado. Por isso, somos chama-
dos para sermos conformados à imagem do Filho de Deus.
Esse é o sentido de viver uma vida simples. Não existe pecado em ser rico, mas
precisamos viver com a consciência de que somente Deus é a nossa única fonte de
provisão. O alerta é sempre de que não podemos colocar nosso coração e confiança

61
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

em tesouros terrenos. Pois, no momento em que fazemos isto, buscamos as rique-


zas em detrimento do reino de Deus.
Veja abaixo a análise realista de Jesus sobre as riquezas:

“Não ajunteis tesouros na terra, onde traça e ferrugem os consomem, e os


ladrões invadem e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem traça
nem ferrugem os consomem, e os ladrões não invadem nem roubam. Por-
que onde estiver teu tesouro, aí estará também teu coração.” (Mt 6.19-21)

Quando nosso coração repousa nas riquezas, nos tornamos ansiosos e inquietos, nos
esquecemos que somente nossa vida e bens estão sob os cuidados de Deus. Se acre-
ditarmos que a preocupação é o que protege a nós mesmos e aos nossos bens, tam-
bém seremos dominados pela ansiedade. Quando passarmos a enxergar Deus como
o Criador todo-poderoso e como Pai amoroso, seremos capazes de confiar nele em
relação aos nossos bens e de como reparti-los com outros, porque ele cuidará de nós
como sempre cuidou – seremos livres da desconfiança voltada para o futuro.
Se tudo o que possuímos é uma dádiva e deve ficar aos cuidados de Deus e à dis-
posição dos outros, então, somos livres da ansiedade. Essa é a realidade interna
da simplicidade. Mas, se pensamos que o que temos foi por mérito nosso, a nós
pertence e não está à disposição de outros, então, a ansiedade nos alcança, pois nos
apegamos ao que é perecível.

“Seja a vossa vida isenta de ganância e contentai-vos com o que ten-


des; porque ele mesmo disse: Nunca te deixarei, jamais te desampararei.”
(Hb 13.5)

Uma das figuras mais usadas na Bíblia para falar a respeito de prosperidade é Abraão.
Ele possuía muitas riquezas e experimentou prosperidade da parte de Deus. Mas,
como argumenta Dan Juster, Abraão possuía a prosperidade de um peregrino, a
qual tinha um limite para que ele pudesse se locomover de acordo com a vontade
de Deus. Essa mobilidade é fundamental. A identidade de peregrino na vida de
Abraão apontava para alguém que não estava preso àquilo que é passageiro.
Quando olhamos para a vida de Jesus e de Abraão percebemos uma vida focada, um
coração não dividido entre as riquezas deste mundo e as riquezas do reino de Deus.
Nosso chamado e identidade é nos mover nesta vida como peregrinos que somos.
Devemos eliminar todas as coisas que nos prendem a esta era, que nos impedem de
caminhar na direção em que Jesus está nos chamando para caminhar. Aqueles que
são nascidos de Deus são como vento; não sabem de onde vem, nem para onde vão.

62
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Simplicidade significa liberdade para confiar


em Deus em relação a todas as coisas.

A simplicidade é uma disciplina que libertará o nosso coração das amarras da incre-
dulidade que não são exclusivas da vida moderna, mas totalmente comuns ao cora-
ção humano. A simplicidade vem como um meio da graça de Deus para nos libertar
da escravidão, do cativeiro cultural que prende nosso coração, e que nos impede de
experimentar a liberdade que existe em sermos filhos de Deus.
A. W. Tozer descreve sobre a benção de nada possuir. Segundo ele, ter tudo e nada
possuir é o segredo que somente pode ser aprendido na escola da renúncia da qual
Jesus condiciona seus discípulos:

“(...) parece que há no interior de cada um de nós um inimigo que


toleramos, e que nos faz correr perigo. Jesus o denominou de “vida”
e de “ego”, ou, conforme o designaríamos modernamente, de “ego-
centrismo”. Sua principal característica é o sentimento e o desejo
de posse: as palavras “ganho” e “lucro” sugerem essa ideia. Permitir
que esse inimigo viva em nós, leva-nos a perder tudo. Mas, repudiá-
-lo e desistir das coisas por amor de Cristo, não é perda, mas antes,
uma preservação de tudo para a vida eterna. É bem possível que o
Senhor, nesse trecho, também nos esteja dando uma indicação sobre
a única maneira eficaz de destruir esse adversário: por meio da cruz.
‘Tome a sua cruz e siga-me.’ (...) Se queremos de fato conhecer a
Deus em crescente intimidade, precisamos palmilhar o caminho da
renúncia. E, se estamos resolvidos a andar à procura de Deus, mais
cedo ou mais tarde ele nos submeterá a um teste (...) Neste teste não
encontraremos dezenas de opções para nossa escolha, mas somente
uma, e sua alternativa. E todo o nosso futuro dependerá da escolha
que fizermos.”6

6. TOZER, A. W. À procura de Deus. Paraná: Editora Betânia, 1985, p. 12, 15.

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As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A DISCIPLINA DA SOLITUDE

Solidão x Solitude
A solidão geralmente se refere à falta de algo ou
alguém. É uma experiência involuntária que está pre-
sente na história de todos os seres humanos, em um
momento ou outro de suas vidas. Etimologicamente,
a solidão é "a experiência de se sentir sozinho, sentin-
do a ausência de outras pessoas e desejando a presença
compartilhada delas". A solidão nos faz sentir sozinhos
mesmo quando há uma multidão ao nosso redor. Ela
nos tira o prazer de estarmos sozinhos conosco e,
consequentemente, com Deus.
Solitude não é sinônimo de solidão. Em vez disso,
é uma experiência voluntária, desejável e desfrutada
pelo indivíduo. Ela nos leva a aproveitar nosso tempo
a sós, a ler, a meditar na Bíblia ou a aprender algo
novo. A solidão nos convida a querer ficar sozinhos
e ainda assim nos sentirmos completos e plenos por
dentro. Busco a solidão não para me sentir sozinho,
mas para desfrutar do prazer de olhar para dentro de
mim sem me sentir vazio.
Há obras de teólogos que falam sobre espiritualidade
cristã (especialmente nas traduções em português
e espanhol) que os termos são intercambiáveis, ou
seja, tem o mesmo significado. Porém, seguindo a
linha de Richard Foster, nessa disciplina faremos a
diferença citada acima.

Dentro da tradição da espiritualidade, a solidão e a solitude são diferentes. Na dis-


ciplina da solitude, ainda que estejamos sozinhos, não nos sentimos solitários. Na
solidão, ainda que estejamos acompanhados, nos sentimos sós. Jesus nos convida
a sair do estado de isolamento e solidão, para experimentarmos a solitude. Mas o
medo de encarar nossa realidade nos leva em direção ao barulho, aglomerações e
distrações. Costumamos buscar qualquer coisa que possa manter nossa mente ocu-
pada, e deixamos de experimentar a verdadeira solitude e profundidade do nosso
relacionamento com Deus.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

De fato, a solitude é uma prova terrível, pois abre o abismo desconhecido que nós
carregamos; e, nos leva a encarar o quão frágeis são nossas seguranças, aquilo em
que depositamos nossa fé. Só sobrevivemos na solitude porque Jesus gentilmente
nos encontra lá, com sua doce presença que nos acalma a alma.

A solidão é o vazio do lado de dentro;


a SOLITUDE é o interior preenchido.7

A disciplina da solitude anda de mãos dadas com a disciplina do silêncio. Sem silên-
cio é impossível experimentar uma verdadeira solitude (ausência de pessoas) e esta
é necessária para que a disciplina do silêncio realmente aconteça, já que se torna
mais difícil estar em silêncio na companhia de outras pessoas.
No entanto, o objetivo do silêncio nesta disciplina não é simplesmente deixar de
falar, mas calar as vozes internas e externas para ouvir. A disciplina da solitude
unida com a disciplina do silêncio é o esforço que fazemos em nos isolar das outras
pessoas para assim encontrarmos o silêncio exterior como um meio de gerar gra-
dualmente o silêncio interior.
O silêncio é importante nesse processo, pois é a forma de tornar a solitude uma re-
alidade. Abster-se de falar, sem ouvir Deus com o coração, não é verdadeiramente
silêncio. A chave para o verdadeiro silêncio não é a ausência de ruído, mas o con-
trole da língua. Nele vamos aprender quando falar e quando não falar; e, com isso,
ganharemos a capacidade de ver e ouvir através das grades da superficialidade.8
Tiago compara a língua a um leme e rédeas, sugerindo que ela guia e controla todo
o corpo:

“Todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça no falar,


esse homem é perfeito e capaz de refrear também seu corpo inteiro.”
(Tg 3.2)

A pessoa disciplinada é aquela que consegue fazer o que precisa ser feito na hora
quando precisa ser feito. De igual modo, a pessoa que está submetida à disciplina
da solitude e ao silêncio, pode dizer o que precisa ser dito quando é necessário –
não desperdiça suas palavras, mas também não as deixa em falta.9

7. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 144.
8. Id. Ibid., p. 145-146.
9. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-
ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 144.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“A palavra proferida no tempo certo é como frutas de ouro incrustadas


numa escultura de prata” (Pv 25.11 – NVI)

Somente depois de aprendermos a ficar verdadeiramente


em silêncio é que seremos capazes de falar ao mundo o que
é necessário, no momento em que for necessário.

A língua é a arma de manipulação mais poderosa que possuímos. Tê-la rendida ao


domínio próprio é obra exclusiva do Espírito Santo, através da graça concebida pela
disciplina do silêncio.

O LUGAR DA SOLITUDE NA VIDA CRISTÃ

O objetivo da disciplina da solitude é nos conectar com o santuário interior (onde


habita o silêncio do nosso ser) e preservar nele a chama divina queimando continua-
mente. Mais que um lugar, a solitude é um estado interior. Quer seja sozinho ou no
meio da multidão, estaremos sempre carregando em nosso coração esse santuário
móvel. As aglomerações ou a ausência delas, pouco influencia essa condição interna.
Os relatos da jornada de Jesus mostram que era uma prática da sua vida a busca por
lugares desertos, nos quais ele pudesse estar sozinho com Deus. Jesus era alguém
que vivia em solitude no seu coração; suas sábias palavras pronunciadas no tempo
certo e na circunstância oportuna deve ser um exemplo para nós de alguém que
carregava esse santuário em seu interior graças à prática diária e perseverante de se
retirar da multidão para ouvir a Deus.

“Naqueles dias, Jesus se retirou para um monte a fim de orar; e passou


a noite toda orando a Deus.” (Lc 6.12)

O Senhor Jesus orientando sobre a vida de intimidade com Deus disse que esta
vida se dá no secreto, e este secreto é a solitude da qual estamos nos referindo.
Quando vamos buscar a Deus, devemos nos separar e ir até um lugar especial, no
sentido de ser um lugar reservado para se separar das demais pessoas, e se dedicar
exclusivamente para o encontro com Deus. A solitude é essa postura de coragem de
ter tempo com Deus sozinho. Uma ação externa visando uma experiência interna.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a
teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê o que é secreto, te recompen-
sará.” (Mt 6.6)

Precisamos aprender a ficar sozinhos com Deus para crescermos em intimidade. Se


não ficamos sozinhos com Deus é como se existisse um ateísmo prático em nossa
vida. A solitude é uma prova de que cremos que Deus existe e de alguma forma a
nossa fé é testada à medida que estamos sozinhos.
A nossa fé é testada porque a liturgia de se retirar é um exercício ao nosso coração
para nos moldar na verdade de que estar aos pés de Jesus é a boa parte que não nos
será tirada. É um teste à nossa fé porque ela vem pelo ouvir a palavra de Deus, e
sem aquietar nossa alma, jamais iremos ouvi-la. Testa a nossa fé porque calibra o
nosso coração para temer mais a Deus que aos homens. Também é um teste à nossa
fé quando pensamos no quanto as palavras significam para nós como um meio para
controlar as pessoas, servem como meio de nos defender. O fruto do silêncio pode
ser a fé aperfeiçoada na confiança de que Deus nos justifica.
Por isso, Brennan Manning diz que deixar de reconhecer o valor de simplesmente se
deixar ficar com Deus, na qualidade de nosso Amado, sem nada mais fazer, é extirpar
o âmago do cristianismo.10
Mas devemos entender que o aspecto interno da solitude também possui sua ex-
pressão exterior. Precisamos entrar no nosso quarto (ou em qualquer outro lugar
possível) em secreto, esta é a ação externa que gera uma realidade interna: por
causa da ação externa de ter tempo sozinho com Deus, ele criará um santuário no
nosso interior, e ainda que sejamos expostos a lugares agitados, com muita gente,
no nosso interior estaremos conscientes da presença de Deus dentro de nós. Esse
lugar nos coloca frente a frente com a eternidade. Esse ambiente sozinho na pre-
sença de Deus, e em silêncio, cria raízes profundas da comunhão com Deus, onde
toda a superficialidade pode ser rompida.
A constante interação com o mundo ao nosso redor está promovendo um tipo de
conformação com um mundo que declara inimizade contra Deus. Com isso, não
estamos negando a presença da graça comum manifestada na nossa cultura ao redor.
No entanto, estamos admitindo que, se não nos atentarmos para a necessidade de
termos tempo sozinhos diante de Deus, o curso normal desta vida nos leva para o
lugar em que esses padrões de comportamento e lógica de pensamento fincam suas
garras em nossos corações. Mas a solitude é um meio de Deus criar em nosso interior
estruturas para suportar a loucura que está imperando no mundo ao nosso redor.

10. MANNING, Brennan. Convite à solitude. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 13.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Thomas Merton escreveu:

“Esta é a única razão porque eu desejo a solitude: para estar perdido


para todas as coisas criadas, para morrer para elas e para o conheci-
mento delas, pois me lembram de minha distância de Ti. Tu estás
longe delas, apesar de estares nelas. Tu as criaste e Tua presença as
sustenta. Mas elas Te escondem de mim.”11

Na SOLITUDE, à luz da eternidade, passamos a enxergar as


coisas criadas que nos prendem, preocupam e oprimem.

Através desse afastamento premeditado, nos encontraremos com a presença de


Deus em nosso interior. Esse santuário interior que carregamos para todos os la-
dos, não é algo que inventamos ou que passará a existir a partir do momento em
que praticarmos a solitude, mas é algo que já existe em nós. Talvez por causa das
muitas distrações nós não conseguimos acessá-lo. Por isso, a disciplina da solitude
é um passo tão importante no nosso desenvolvimento espiritual. Isso vai começar
com coisas simples como, por exemplo, aproveitar os momentos em que se está
sozinho durante o dia. Não preencha esse vazio com distrações, mas deixe que o
silêncio e a solitude crie algo no seu interior.
Estamos o tempo todo olhando para o celular, conversando com alguém, na frente
de um computador ou de uma televisão. Não é pecado usufruir desses avanços
tecnológicos, o problema é quanto isso nos induz à superficialidade em detrimento
da reflexão. É muito difícil encontrar pessoas que desfrutem de tempo a sós com
Deus. A disciplina da solitude irá gerar esse espaço interior, essa reflexão sobre a
vida, essa espécie de afastamento de tudo o que está acontecendo ao redor, para
que se possa receber uma perspectiva nova sobre todas as coisas. Isso muda tudo,
mesmo que nada mude ao redor. Na solitude Deus faz novas todas as coisas, pois
estamos sendo renovados nas profundezas do nosso homem interior.
Gradativamente seremos aperfeiçoados segundo a imagem de Jesus, firmados na
identidade que temos nele, descansando e usufruindo do relacionamento com ele,
o qual traz sentido a todo nosso ser.

11. Thomas Merton apud WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas: Entendendo como
Deus transforma vidas. E-book (260 p.) Disponível em: https://bityli.com/AXydRb. Acessa-
do em: 11 maio 2022.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A SOLITUDE NOS APERFEIÇOA NA OBEDIÊNCIA

Jesus diz que aqueles que o amam obedecem aos seus mandamentos. A palavra
obediente vem do latim ‘audire’ que significa ouvir. A nossa obediência é inviável
caso não sejamos ouvintes. Henri Nouwen fala sobre vivermos uma vida absurda
por estarmos surdos para Deus.12
Na história do povo de Israel podemos ver que a aliança de Deus estava vinculada
ao fato deles ouvirem a sua voz.

“Agora, portanto, se ouvirdes atentamente a minha voz e guardardes a


minha aliança, sereis minha propriedade exclusiva dentre todos os po-
vos, porque toda a terra é minha; mas vós sereis para mim reino de sa-
cerdotes e nação santa. Essas são as palavras que falarás aos israelitas.”
(Ex 19.5,6)

Ao longo da narrativa desta nação como povo de Deus, seu fracasso foi marcado
pelo fato de rejeitarem ouvir a voz de Deus. Isto nos ensina como muitos de nos-
sos problemas e frustrações são fruto da nossa falta de relacionamento com Deus.
Desejamos obedecer às regras impessoais das quais podemos nos apegar, mas o
anseio de Deus em nos fazer seu povo é distintivo do relacionamento profundo
resultante de uma comunhão com ele.

“Ah, se o meu povo me escutasse! Ah, se Israel andasse nos meus cami-
nhos! Logo eu derrotaria seus inimigos e voltaria minha mão contra seus
adversários.” (Sl 81.13,14)

Sem ouvidos para Deus, tudo que podemos colher é a falta de paz do coração que
se rejeita a descansar no Senhor.

“Ah! Se tivesses obedecido aos meus mandamentos! Então a tua paz seria
como um rio, e a tua justiça, como as ondas do mar.” (Is 48.18)

O lugar secreto da reclusão é para onde Deus nos atrai, interessado em falar conos-
co. Oséias registra esse anseio de Deus em nos atrair ao deserto para falar ao nosso
coração. Essa é a solução de Deus para a nossa surdez.

12. . Henri Nouwen. Renovando todas as coisas. Retirado do livro: Clássicos Devocionais
(org. Richard Foster). São Paulo: Editora Vida, 2009 apud Vanessa Belmont. Série Disci-
plinas Espirituais: #2 Silêncio. Disponível em: https://vanessa-belmonte.medium.com/série-
-disciplinas-espirituais-2-silêncio-b659faa48e1d. Acessado em: 6 abr. 2022.

69
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Todavia, eu a atrairei, levarei para o deserto e lhe falarei ao coração.”


(Os 2.14)

Precisamos trazer a experiência do deserto para dentro da nossa rotina onde pode-
mos ficar em silêncio e termos nosso coração preenchido pela voz de Deus. Na me-
dida que vamos abrindo espaço para ele, teremos nossos corações transformados.
Todos aqueles que marcaram a história por terem intimidade profunda com Deus,
tomaram passos práticos e organizaram suas vidas para que, de alguma forma, pu-
dessem receber a paz que excede todo o entendimento.
Nesta disciplina, queremos te encorajar a procurar um lugar isolado para gastar
tempo em silêncio e solitude. Na quietude desse tempo ouça o estrondoso silêncio
de Deus. Faça desse tempo um momento de orientação para o seu caminho e vida
cristã, através da comunhão com Deus.
É na solitude, silêncio e quietude, que a alma devota aprende os segredos das Es-
crituras, deixa de lado as vaidades e entenda, com verdadeira intensidade, que o
Senhor é Deus. Teremos nossa sensibilidade ampliada, nossa liberdade e atenção
renovadas. A solitude fará com que nos tornemos pessoas diferentes. Nossa socie-
dade e igreja carecem de pessoas que tenham verdadeira profundidade. Deus nos
chama para um viver mais profundo nele, aquietando todas as outras vozes para ou-
vir somente a sua. É a disciplina da solitude que abrirá a porta para uma exposição
mais profunda e completa diante da presença divina.

“Acomode-se na solitude e você se defrontará


com Ele mesmo dentro de si mesmo.”13

13. Teresa de Ávila apud FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do cresci-
mento espiritual. 2ª edição. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 143.

70
Aula 6
v.1.0.0

A DISCIPLINA DA
SUBMISSÃO E DO
SERVIÇO
A prática da disciplina da submissão, tanto no contexto governamental quanto no
congregacional, provavelmente, seja a que mais sofreu abuso em toda a história.
Este é um assunto muito delicado que devemos estudar com cuidado e discerni-
mento, mas sem ignorar que pode nos trazer muitos benefícios.
Cada disciplina tem como objetivo trazer liberdade e sua prática nunca é um fim
em si mesmo. Como temos visto, as disciplinas são sempre meios de nos levar até
Deus, o único que pode realmente nos transformar. Nada é mais eficaz do que a
religião para aprisionar pessoas, e nada na religião contribui mais para manipular
e destruir pessoas do que o ensino equivocado sobre a submissão. No entanto, ela
tem como objetivo moldar o nosso coração e nos expor à presença de Deus para
que, assim, possamos receber sua graça.

71
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

LIBERDADE NA SUBMISSÃO

Qual é a liberdade que a disciplina da submissão traz para nós? Liberdade da ne-
cessidade de que todas as coisas sejam feitas para o nosso bel-prazer. Queremos
controlar tudo ao nosso redor, desde os relacionamentos até os acontecimentos
mais simples do dia a dia. Nosso desejo é que tudo aconteça de acordo com a nossa
própria vontade. Porém, a verdade é que isso nunca irá acontecer.
A partir do momento em que tentamos controlar todos os elementos que nos ro-
deiam, ficaremos totalmente frustrados, aflitos e envoltos em preocupação e an-
siedade. Alguns agem como se a própria vida dependesse do seu controle e, por
causa disso, desenvolvem até mesmo doenças físicas. O desejo por controle é algo
que não nos traz nenhum benefício, pois tal desejo jamais será satisfeito, uma vez
que é impossível controlar tudo o que nos cerca. Na disciplina da submissão somos
livres para desprender-nos da questão e para esquecê-la. A maioria das coisas com
as quais nos preocupamos, no fim, não são tão importantes quanto pensávamos.1

Nossa vontade não é uma vontade soberana que


governa sobre a realidade ao nosso redor.

O primeiro passo, para abraçar essa disciplina, é abandonar o fardo da insubmis-


são – o sempre querer e lutar para que a nossa vontade prevaleça. É necessário que
entendamos os seus malefícios. Quando olhamos para a realidade da igreja hoje,
percebemos que o fardo da insubmissão tem sido traduzido no que conhecemos
atualmente como divisão. Várias divisões que observamos no corpo de Cristo, têm
sua origem na obstinação pela vontade própria.
Praticar a disciplina da submissão não significa ter alguém nos cobrando submis-
são. Na verdade, ela é um pedido de socorro àqueles que são reconhecidos como
capazes de ajudar, por sua profunda experiência e semelhança com Cristo. Tais
pessoas acrescentarão o peso de sua sábia autoridade para nos ajudar a fazer o que
gostaríamos de fazer, e nos guardar daquilo que não deveríamos fazer.

A submissão é uma decisão tomada a partir do coração,


não uma imposição que vem de forma externa a nós.

1. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 162..

72
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Em 1 Pedro os mais antigos no Caminho são instruídos à pastorear o rebanho de


Deus, não como obrigação nem como domínio abusivo, mas como exemplos para
o rebanho. Os mais novos são instruídos a se submeterem a essa gentil liderança, e
todos são mantidos unidos como uma comunidade em submissão mútua:

“Do mesmo modo, vós, os mais jovens, sujeitai-vos aos presbíteros. Ten-
de todos uma disposição humilde uns para com os outros, porque Deus se
opõe aos arrogantes, mas dá graça aos humildes.” (1 Pe 5.5)

O VERDADEIRO SILÊNCIO NA SUBMISSÃO

A principal atitude de submissão deve ser o silêncio. Esse tipo de silêncio é de-
monstrado quando carregamos um santuário em nosso coração, um silêncio in-
terior. No dia a dia enfrentamos situações, nas quais somos tentados a encontrar
justificativas, ou seja, sempre explicando nossas ações a fim de demonstrar a razão
das nossas ações, pois resistimos ao erro e zelamos pela nossa imagem. O silêncio
é algo que acompanha a submissão, pois ele é a atitude livre de abrir mão da neces-
sidade de controlar situações e opiniões através de justificativas; nos submeter de
tal forma que as pessoas possam nos julgar somente pelas nossas ações, isto é, sem
nenhum tipo de comentário ou explicação de nossa parte.

O silêncio faz com que percamos a possibilidade de controle, o


qual tentamos exercer por meio do que falamos.

Dessa forma, nos veremos diante das pessoas sem a necessidade de controlá-las por
meio de nossas palavras. Quando ouvirmos uma repreensão ou uma ordem que não
nos agrada, pratiquemos o silêncio da submissão. Diante da desconfiança de que
alguma acusação possa estar sendo levantada contra nós, precisamos entender que
é possível renunciar o direito de contestar. Praticar a submissão é trilhar o caminho
oferecido por Jesus aos seus discípulos:

“Então Jesus disse aos seus discípulos: Se alguém quiser acompanhar-


-me, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16.24 - NVI)

Quando decidimos pelo caminho da submissão, negamos a nós mesmos e carre-


gamos a nossa cruz, da mesma forma que Jesus fez em sua vida. Ele não buscou
se justificar diante dos religiosos, e se submeteu à pena proferida contra ele pelas
autoridades romanas:

73
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Ele foi oprimido e afligido, contudo, não abriu a sua boca; como um
cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de
seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca” (Is 53.7 – NVI)

Devemos praticar a submissão como algo que nos leva a encarnar essa realidade
de Cristo, para também nos tornar semelhantes a ele. A autonegação é um meio
de chegarmos à compreensão de que não precisamos trilhar um caminho próprio.
Nossa felicidade não depende de conseguir aquilo que queremos.
O ensino bíblico a respeito da submissão repousa no fato de como vemos o seme-
lhante. A Escritura não intenta estabelecer relacionamentos de maneira hierárqui-
ca, mas comunica uma atitude no coração de subordinação mútua e voluntária2.
A submissão perpassa um sentimento de apreço e respeito pelo outro. Esta foi
a recomendação paulina aos filipenses; sempre devemos ter em mente o mesmo
sentimento que houve em Jesus:

Não façais nada por rivalidade nem por orgulho, mas com humildade,
e assim cada um considere os outros superiores a si mesmo. Cada um
não se preocupe somente com o que é seu, mas também com o que é dos
outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus”
(Fp 2.3-5)

Só vamos conseguir praticar a submissão se reconhecermos a superioridade dos


outros ao nosso redor. Isso consiste em identificar a habitação de Deus naqueles
que também fazem parte da família da fé, e reconhecer a imagem de Deus, mesmo
naqueles que ainda não conhecem ao Senhor, mas foram feitos a sua imagem e
semelhança e por isso podem refletir a sua glória. Devemos olhar para as pessoas e
considerar suas qualidades e seu histórico de vida que influencia na sua forma de
ver o mundo.
Este conselho do apóstolo Paulo é o maior atalho para usufruir de liberdade nos
relacionamentos. A liberdade de não exigir reciprocidade ao nosso amor e serviço;
exultamos com o sucesso alheio e experimentamos de sincero pesar quando fra-
cassam. Descobriremos que é libertador abrir mão dos nossos direitos para servir
ao próximo e não ter de fazer as coisas sempre à nossa maneira. Assim, estaremos
livres da amargura que sentimos quando alguém não age conosco como achamos
que deveria agir. O caminho para a autorrealização passa pela autonegação. Salvar
a vida significa perdê-la, e perdê-la por causa de Cristo significa salvá-la3 :

2. Id. Ibid., p. 163


3. Id. Ibid., p. 164, 166

74
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Pois quem quiser preservar sua vida, irá perdê-la; mas quem perder a
vida por causa de mim e do evangelho, irá preservá-la.” (Mc 8.35)

Esse paradoxo é frequentemente apresentado nos ensinos de Jesus. O caminho da


verdadeira alegria não é a nossa autossatisfação, mas a renúncia dos nossos valores
puramente humanos e carnais, que nos distanciam da verdadeira vida que Deus
nos criou para desfrutar. O aparente paradoxo de que perder a vida é na verdade
ganhar está arraigado na verdade de que não podemos salvar a nossa alma, apenas
Jesus pode. O convite é morrermos com Cristo e ressuscitamos para a verdadeira
vida que está escondida nele mesmo.

“Já que fostes ressuscitados com Cristo, buscai as coisas de cima, onde
Cristo está assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas de cima e não
nas que são da terra; pois morrestes, e a vossa vida está escondida com
Cristo em Deus.” (Cl 3.1-3)

Precisamos aprender que apenas entregando nossa vida a Cristo teremos verda-
deira satisfação. E assim, podemos nos unir à oração puritana, clamando para que
o Senhor nos ensine com os paradoxos da sua palavra, que subvertem os valores
deste século e nos levam aos caminhos de vida em abundância.
Permite-me aprender pelo paradoxo
Que o caminho para baixo é o caminho para cima,
Que ser humilde é ser elevado,
Que o coração quebrado é o coração sarado,
Que o espírito contrito é o espírito alegre,
Que a alma arrependida é a alma vitoriosa,
Que não ter nada é possuir tudo,
Que suportar a cruz é usar a coroa,4

4. BENNET, Arthur G. O Vale da Visão: uma coletânea de orações puritanas. Brasília: Moner-
gismo, 2020, p. 15.

75
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

UMA SUBORDINAÇÃO RADICAL

Os ensinos de Jesus carregavam consigo uma inversão completa do conceito de no-


breza que predominava em sua época. Sua vida de morte até a cruz é didática para
nos ensinar a respeito de uma liderança que não reivindica poder e relevância para
si, mas voluntariamente se torna um servo.5
“Então, sentando-se, chamou os Doze e lhes disse: Se alguém quiser ser o primeiro, será
o último e o servo de todos.” (Mc 9.35)

A verdadeira liderança consiste em tornar-se servo de todos.


O poder revela-se na submissão. A vida de cruz é de quem
livremente aceitou ser servo.6

Essa subordinação é o imperativo que perpassará o Novo Testamento para todo


cristão. A vida de submissão de Jesus aniquila a ideia social que definia uns como
superiores e outros como inferiores, e agora todos devem “considerar os outros su-
periores a si mesmos” (Fp 2.3), essa é a normativa basilar do evangelho.
Por esse motivo, muitas vezes, veremos na vida dos apóstolos uma submissão vo-
luntária ao sofrer em silêncio injustiças. Eles foram presos por pregar o evangelho,
proibidos de anunciar a mensagem e perseguidos por falar a verdade. Eles não po-
deriam, de forma alguma, obedecer o que lhes estava sendo ordenado:

“Mas, respondendo, Pedro e João lhes disseram: Julgai se é justo diante


de Deus dar ouvidos a vós e não a Deus, pois não podemos deixar de
falar das coisas que vimos e ouvimos.” (At 4.19,20)

Por outro lado, os apóstolos se submeteram às consequências daquilo que deter-


minaram fazer, isto é, não se revoltaram contra as punições que um governo ímpio
infligia sobre eles, por serem cidadãos do reino celestial. Não se incomodaram com
nada disso, antes tiveram todas essas coisas como algo honroso para eles:

“E eles retiraram-se de diante do Sinédrio, alegres por terem sido julga-


dos dignos de sofrer afronta por causa do nome de Jesus.” (At 5.41)

5. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª


edição. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 168.
6. Id. Ibid., p. 167, 169.

76
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Ainda que não pudessem obedecer a determinadas ordens, eles precisavam ter uma
atitude de submissão e mansidão diante das punições que vinham sobre eles. A sub-
missão jamais deve se estender até ao ponto de entrar em contradição com a palavra
de Deus e, assim, desobedecê-la. Não é lícito obedecer àquilo que contradiz à vontade
revelada de Deus nas Escrituras. Mas, ainda assim, devemos ter uma atitude interior
de submissão.
A submissão transforma situações de nossa vida. Paulo, na sua carta aos colossen-
ses, exorta os escravos e as mulheres a terem uma atitude de submissão para com
seus senhores e maridos. Ao falar a respeito dessa obediência, ele não está se re-
ferindo a algo externo, mas a uma realidade interior. É possível fazermos exter-
namente o que nos pedem e internamente estarmos em total rebelião. A respeito
da obediência externa daquela época, a mulher não possuía qualquer direito de
opinião ou de mudar sua circunstância, assim como o escravo não possuía meios
para mudar sua relação com seu senhor. Porém, podiam mudar sua disposição inte-
rior para que, assim, suas atitudes refletissem o caráter de Cristo e glorificassem a
Deus. Se vivermos uma vida de cruz diante de nossos líderes, logo constataremos
que isso trará crescimento espiritual tanto para eles como para nós.
Por isso, não existe nada mais torturante do que tentar viver na base da nossa pró-
pria vontade, ser o centro do mundo e ficar constantemente na busca de garantir
os nossos interesses. Não existe paz nesta maneira de viver. Procurar sempre ter a
própria vontade satisfeita é ter o mesmo espírito de Satanás, que queria ser o centro
de tudo. Submissão é ser livre da própria vontade, e deriva da confiança na sobera-
nia de Deus de que ele escolheu pessoas ao nosso redor que podem nos contrariar
e nos livrar de nós mesmos.

A DISCIPLINA DO SERVIÇO

A disciplina da submissão é conectada à disciplina do serviço. A submissão gera


uma realidade interior que pode ser expressa exteriormente por meio do serviço.
Sem dúvida essas são as disciplinas mais temidas, pois pensamos que servir às pes-
soas é sinônimo de sermos abusados e explorados. A verdade é que, assim como
na submissão, o serviço começa com uma disposição interior que independe dos
acontecimentos exteriores e que nos liberta da escravidão das pessoas. Ou seja,
através da disciplina do serviço, somos livres para voluntariamente nos colocar em
uma posição de fragilidade. O medo de ser dominado ou prejudicado por outras
pessoas de ‘tirarem proveito da boa vontade’ revela nosso impulso em sempre es-
tar no controle, selecionando de acordo com nossas preferências a quem servir.

7. Id. Ibid., p. 189.

77
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Na disciplina do serviço não somos apenas servos dos homens,


mas entendemos que, mesmo em nossas obras mais inferiores,
estamos nos submetendo a Deus.

No entanto, a proposta da disciplina do serviço é justamente nos colocar disponí-


veis e vulneráveis, de maneira voluntária nos colocar a serviço de todos, pois quem
pode ferir alguém que escolheu livremente ser pisado?” 7

“Escravos, obedecei em tudo a vossos senhores deste mundo, não ser-


vindo só quando observados, como quem quer agradar os homens, mas
de coração íntegro, temendo o Senhor. E tudo quanto fizerdes, fazei de
coração, como se fizésseis ao Senhor e não aos homens” (Cl 3.22,23)

A liberdade pela qual essa disciplina encaminha o discípulo de Cristo é a maneira


como o serviço treina o nosso coração para ser livre das competições e ambições
pelo poder que este mundo disputa. Jesus trouxe uma nova concepção a respeito da
alternativa liderança x autoridade. Ao longo desta disciplina veremos que enquanto,
equivocadamente, alguns podem pensar que autoridade está ligada à posição ou títu-
lo, a autoridade espiritual ensinada por Jesus tem seu ápice na figura de uma toalha.8

O Verdadeiro Serviço
Na Bíblia, o maior exemplo a respeito da disciplina do serviço é o próprio Senhor
Jesus se dispondo a lavar os pés de seus discípulos. Estes discutiam, em determina-
do momento, a respeito de qual deles seria o maior. A partir do momento em que
definimos quem é o maior, consequentemente também seremos levados a definir
quem é o menor. A tarefa de lavar os pés sempre deveria ser delegada àquele que
fosse o menor dentre todos, geralmente algum escravo. E ainda que os discípulos
estivessem dispostos a não ser o maior de todos e ter um status “mediano” entre
os seguidores de Cristo, nenhum deles tinha disposição interior para ser o menor;
para se deixar de alguma forma ser abusado por seus companheiros, e se colocar
em uma posição de maior fragilidade por meio do serviço. Então, Jesus pegou uma
toalha e uma bacia com água e redefiniu o sentido de grandeza através da sua ati-
tude servil.

8. Id. Ibid., p. 183.

78
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Tendo-lhes lavado os pés, tomou o manto, voltou a sentar-se à mesa e


perguntou-lhes: Entendeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor;
e fazeis bem, pois eu o sou. Se eu, Senhor e Mestre, lavei os vossos pés, tam-
bém deveis lavar os pés uns dos outros. Pois eu vos dei exemplo, para que
façais também o mesmo. Em verdade, em verdade vos digo: O escravo não
é maior que seu senhor, nem o mensageiro é maior que aquele que o enviou.
Se, de fato, sabeis essas coisas, sereis bem-aventurados se as praticardes.”
(Jo 13.12-17)

A passagem de João 13 nos mostra o princípio do qual o serviço e a submissão estão


interligados. O amor e o serviço operam em sintonia com a sujeição voluntária ao
outro, e é isto que Jesus está ensinando nesta passagem. Ademais, Jesus nos deixa
um argumento do maior para o menor. Ele afirma que sendo Senhor e Mestre fez
o serviço desprezado, e isto é digno da nossa atenção, pois nos foi deixado como
exemplo!9
Nestas palavras, embebidas de amor, Jesus constrange as nossas justificativas para
não sofrer o prejuízo do serviço. Aquele que é exaltado sobremaneira se rebaixou
com o fim de abater o orgulho dos homens, que por muitas vezes esquecem seu
real estado diante de Deus; ignoram o fato que foram chamados para servir e honrar
sua aliança com Deus e seus irmãos.10
Reivindicamos mais do que temos direito quando recusamos sujeição, de forma
gentil e voluntária, a irmãos que consideramos fracos, seja qual for nossa justifi-
cativa, a raiz do problema é o orgulho de pensarmos a nosso respeito mais do que
realmente somos.
Jesus nos convoca a sermos servos de todos (Mc 9.35) e este é o distintivo do ver-
dadeiro serviço. Não escolhemos a quem servir, não calculamos se haverá lucro ou
prejuízos, se o serviço é modesto ou grandioso, se estamos motivados ou não. O
verdadeiro serviço se transforma em um estilo de vida, brota espontaneamente,
visa a edificação da comunidade e não a glória própria.
Estes são os valores do reino de Deus que subvertem os valores desta era, e ao nos
colocarmos à disposição do serviço precisamos estar conectados com o mesmo
sentimento que houve em Jesus. Sendo assim, podemos nos colocar em uma po-
sição de fraqueza aos olhos do mundo, sabendo quem somos em Deus. Aos olhos
daqueles que viram o reino de Deus, essa é uma posição de força, glória e prestígio.
Por isso, Jesus se dirige a eles e diz que o maior entre eles seria o que serve:

9. CALVINO, João. Série de Comentários Bíblicos: Evangelho segundo João. Volume 2. São
Paulo: Editora Fiel, 2013. Ebook (328 p.) Disponível em: https://amzn.to/3KNj1RE. Acesso
em: 14 abr. 2022.
10. Id. Ibid.

79
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Jesus os chamou e disse: Vocês sabem que aqueles que são considerados
governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem
poder sobre elas. Não será assim entre vocês. P contrário, quem quiser
tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o
primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos.” (Mc 10.42-45 - NVI)

Jesus nos mostra que a submissão e o serviço não são sinais de


fraqueza no reino de Deus - mas sinais de força.

Se desejarmos ser grandes no reino de Deus, precisamos nos submeter à disciplina


do serviço para, assim, receber a liberdade da glória dos filhos de Deus. Encontra-
remos liberdade quando nos submetemos a Cristo, e não nos deixamos dominar
pela perspectiva alheia a respeito de quem somos.
Podemos ser considerados tolos por servir o próximo e abrir mão de nossos direitos
e prioridades, contudo, à medida que servimos, com o coração voluntário, expe-
rimentamos de pequenas e diárias doses de mortificação em nossa carne que nos
aperfeiçoam ao caráter de Cristo. E esta é a maior e melhor recompensa para todo
verdadeiro crente!

Serviço e Humildade
O serviço, no espírito de Jesus, nos leva a uma humildade sincera que não carrega
fardo de “aparência”, pois nos permite viver uma humildade autêntica. Nunca al-
cançaremos humildade se a buscamos diretamente, ou seja, quanto mais a busca-
mos, mais distante ela fica de nós. Pensar que a possuímos é evidência clara de que
não a possuímos. Por isso, muitos acreditam que não existe nada que se possa fazer
para adquirir tal virtude.11

Cada vez que crucificamos a carne pelo serviço, crucificamos


juntamente o orgulho e a arrogância.13

11.FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 186
12. Id. Ibid.
13. Id. Ibid.

80
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Mas existe algo que podemos fazer para alcançá-la: o serviço. Ele é a disciplina es-
piritual que mais possibilita o desenvolvimento da humildade em nós. Nada como
servir longe dos holofotes, para transformar os desejos da carne; o serviço discipli-
na os desejos desordenados da carne.12
A disciplina do serviço treina o coração do discípulo na graça da humildade. Virtu-
de tão importante e apreciada pela Escritura. Nela encontramos afirmações impor-
tantes a respeito da humildade, como: “Deus se opõe aos arrogantes, mas dá graça
aos humildes.” (1 Pe 5.5); e: “Pois todo o que a si mesmo se exaltar será humilhado, e
aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado” (Lc 14.11). A humildade, portanto,
é um imperativo que permeia as Escrituras, e um dos motivos é que humildade
é um atributo de Deus, e estaremos longe de sermos como Jesus se andarmos na
contramão da humildade.
Outro aspecto interessante é a natureza de Deus como Trindade. O fato de Deus
ser um só e existir em três pessoas eternamente, implica na verdade de que o pró-
prio Deus vive em comunhão e em um relacionamento. Jesus orou: “Eu te glorifi-
quei na terra, completando a obra da qual me encarregaste. Agora, pois, glorifica-me, ó
Pai, junto de ti mesmo, com a glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse”
(Jo 17.4-5), indicando como desde a eternidade cada pessoa da Trindade vive em
um relacionamento de amor e serviço umas às outras.
Tim Keller cita a obra de Plantinga em que ele diz que:

“As pessoas dentro de Deus exaltam umas às outras, têm comunhão


umas com as outras, submetem-se umas às outras. (...) A vida interior de
Deus, portanto, transborda em consideração pelos outros.”14

Isso significa que por toda a eternidade, a realidade última é uma comunhão de
pessoas que amam e servem incondicionalmente. O Pai, o Filho e o Espírito Santo
estão centrados uns nos outros, adorando e servindo uns aos outros, conclui Keller.
Por isso, este padrão de serviço e submissão deve estar impresso em nossa vida.
Carregamos em nosso corpo as digitais do Deus trino que nos criou para dar, servir
e amar assim como ele tem vivido desde a fundação do mundo.15

Desenvolvendo a disciplina do serviço na prática


Richard Foster enfatiza que existe uma grande diferença entre agir como servo e
ser um servo. É possível externamente atuar em serviço, mas o coração estar longe
das motivações genuínas de um verdadeiro servo como aprendemos até aqui.

14. KELLER, Timothy. A cruz do Rei: a história do mundo na vida de Jesus. 1ª edição. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 26 apud Cornelius Plantinga, Engaging God’s Word: a Christian
vision of faith, learning and living. Grand Rapids: Eerdmans, 2022, p. 20-23.
15. KELLER, Timothy. A cruz do Rei: a história do mundo na vida de Jesus. 1ª edição. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 27-32

81
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

No entanto, isso não exclui o fato de que o serviço assume formas específicas e
para concluir, abaixo alguns exemplos dados com o intuito de reflexão e até mesmo
iluminação a respeito de como colocar em prática a disciplina do serviço.16

TIPOS DE SERVIÇO APLICAÇÃO

Afastar-se dos holofotes. Nos disciplina de maneira a crucificar


o nosso orgulho.

O nosso anseio por realizar “gran-


Assumir os serviços considerados
des coisas” nos cegou para a efetivi-
de menos valor.
dade que os pequenos serviços di-
ários afetam generosamente quem
está ao nosso redor.

A honra da aliança é proteger a imagem


Proteger a reputação
do outro, é obedecer a recomendação
bíblica de “não caluniar ninguém”
(Tito 3.2). Podemos servir as pessoas
desta forma.

Permitir que o outro nos sirva é um ato


Ser servido.
de submissão e serviço ao receber com
gratidão o serviço desta pessoa sem
sentir a necessidade de fazer compen-
sações por isso.

O serviço da gentileza é um meio de


Gentileza comum. reconhecer as pessoas e afirmar o valor
que elas possuem. Na nossa sociedade
é que a impessoalidade cresce cada vez
mais, o serviço da gentileza se torna
cada vez mais necessário.

Esta é uma recomendação bíblica in-


Hospitalidade. sistente feita por Pedro: “Sede hospita-
leiros uns para com os outros, sem vos
queixar” (1 Pe 4.9).

16. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª


edição. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 190-198.

82
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Escutar. Ouvir as pessoas é um meio de servi-


-las com o nosso tempo e nosso amor
com uma escuta interessada. Mais do
que mero resolvedores de problemas,
precisamos aprender a sermos bons
ouvintes, carregados de misericórdia e
compaixão.

Este serviço envolve aprendermos a


Carregar a carga uns dos outros
chorar com os que choram. Podemos
tornar a jornada do nosso irmão mais
leve e alegre simplesmente porque de-
cidimos caminhar ao seu lado e lembrá-
-lo das palavras consoladoras de Jesus.

Este é um serviço que pode parecer


Compartilhar a Escritura.
temeroso, pois sabemos que somos
falhos e limitados daquilo que enten-
demos e ouvimos do Senhor. Mas isto
não significa que este serviço deva ser
contido. Pelo contrário, precisamos
encorajar uns aos outros com aquilo
que temos recebido do Senhor, este é
um meio maravilhoso da igreja de Jesus
ser edificada!

A humildade começa com um senso de submissão a Deus, em Cristo. “O discípulo


não está acima do seu mestre, nem o servo, acima do seu senhor” (Mt 10.24). “Humi-
lhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus” (1 Pe 5.6).17 Portanto, o serviço é
consequência de todo aquele cuja vida está sendo afetada pelo servo sofredor que é
o nosso Jesus. Devemos nos esforçar para ministrar a todas as pessoas que cruzam
o nosso caminho, e estarmos sempre abertos para servi-las, com a confiança de que
nossa vida está nas mãos de Deus, e de que cada atitude é para sua honra e glória.

17. Piper, John. Penetrado pela Palavra. O que é humildade? Editora Fiel, 2009. Disponível
em: https://bityli.com/HCPevo. Acesso em: 18 abr. 2022.

83
Aula 7
v.1.0.0

A DISCIPLINA DA
CONFISSÃO E DA
ADORAÇÃO
Sabemos que Jesus está vivo agora e para todo o sempre. A sua obra redentora na
cruz absorveu toda a violência, todo o medo, todo o pecado do passado, do presente
e do futuro. É esta obra que possibilita a confissão e o perdão. Sem a cruz a confissão
seria apenas terapêutica, algo no contexto psicológico. Porém, ela é uma disciplina
espiritual que envolve uma mudança objetiva em nosso relacionamento com Deus.1

“Se dissermos que não temos pecado algum, enganamos a nós mesmos, e a
verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo
para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” (1 Jo 1.8,9)

1. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 205.

84
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Uma grande discussão ocorreu a partir da reforma protestante, por causa das prá-
ticas abusivas e exageradas relacionadas à confissão de pecados. Discutia-se, por
exemplo, se deveríamos confessar nossos pecados a Deus ou diretamente para um
líder espiritual ou a um irmão. A prática da confissão naquele período, muitas ve-
zes, estava ligada a indulgências e penitências, feitas com a intenção de se obter o
perdão dos pecados. Os reformadores nunca se colocaram contra a disciplina da
confissão em si, mas foram contrários aos exageros cometidos nela.
O objetivo desta aula – disciplina da confissão – não é tentar restaurar a noção
antiga a respeito da confissão (fazer algo para conquistar o perdão de Deus), mas é
nos levar a entender como podemos alcançar a liberdade da certeza de que Deus
liberou seu perdão sobre a nossa vida.

A disciplina da confissão é um veículo de cura e


transformação do espírito.2

A redenção em Jesus testifica o coração perdoador de Deus. A realidade de amar


muito foi o motivo de ter entregado seu Filho (Jo 3.16). Isso demonstra que não há
resistência no coração de Deus para perdoar, ao contrário, a obra da redenção con-
sumada na cruz revela o caráter de Deus - “compassivo e misericordioso, lento para
irar-se e generoso em amor” (Sl 103.8 - BKJ). E isto é maravilhoso, pois esclarece um
grande equívoco envolvido no assunto desta aula: a disciplina da confissão não é
uma ação em direção a se tornar apto do perdão de Deus, porque de maneira livre e
gratuita ele já nos forneceu o perdão em Cristo. No entanto, a pergunta que iremos
responder é: se somos perdoados ao confessar nossos pecados para Deus, por que
devemos confessar nossos pecados uns aos outros?

“Portanto, confessai vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos ou-
tros para serdes curados. A súplica de um justo é muito eficaz.” (Tg 5.16)

CONFISSÃO: UMA DISCIPLINA COMUNITÁRIA

Alguns dizem que devemos confessar nossos pecados exclusivamente para Deus, em
nossos momentos de devoção, sem a necessidade de intervenção humana. É verda-
de, há um só mediador entre Deus e os homens (1Tm 2.5), e Deus é fiel para perdoar

2. Id. Ibid.

85
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

nossos pecados. No entanto, a recomendação bíblica de Tiago demonstra que um


aspecto não exclui o outro. Apesar de confessarmos nossos pecados a Deus, haverá
momentos em que não experimentaremos libertação da prática nem da culpa do pe-
cado. A culpa continuará nos corroendo, enquanto a prática pecaminosa continuará
nos perseguindo.3
É exatamente para isso que a disciplina da confissão existe. Confissão é uma dis-
ciplina que funciona dentro da comunhão, quando permitimos que pessoas confi-
áveis conheçam nossas fraquezas e falhas mais profundas. Isso nutrirá nossa fé na
provisão de Deus por meio dos irmãos, nosso senso de ser amado e nossa humil-
dade diante daqueles que caminham conosco. Não confessamos nossos pecados
para qualquer pessoa, mas para alguém que tenha condições de nos ouvir e pro-
clamar o perdão de Deus sobre a nossa vida, além de auxiliar-nos no processo de
libertação. Não devemos reter nada pecaminoso em nós, antes devemos manter a
máxima transparência diante daquele a quem confessamos, para que sejamos ver-
dadeiramente libertos. A confissão nos permite abandonar o fardo da performance
e do fingimento que despende tanta energia4. A confissão nos leva a viver uma vida
debaixo da luz, assim como Deus nos chama para viver.

“Então Jesus voltou a falar-lhes: Eu sou a luz do mundo; quem me se-


guir jamais andará em trevas, mas terá a luz da vida.” (Jo 8.12)

“mas, se andarmos na luz, assim como ele está na luz, temos comunhão
uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo
pecado.” (1Jo 1.7)

Quando andamos na luz, temos comunhão com os outros porque escolhemos a


palavra de Deus acima dos nossos próprios desejos e concupiscências. Amar a luz
significa buscar que ela brilhe em todas as áreas da nossa vida, e confessar é a ma-
neira pela qual o mal é exposto. Nos tornamos filhos da luz, nascidos para uma nova
vida; o ambiente em que os frutos do Espírito crescem à medida que a luz em nossa
vida também aumenta.5
A princípio, esta pode ser uma disciplina difícil de colocar em prática, pois uma das gran-
des fraquezas humanas é a sua preocupação com a autoimagem. A preocupação com A

3. Id. Ibid., p. 206.


4. WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas: entendendo como Deus transforma vidas.
Rio de Janeiro: Editora Danprewan, p. 189. E-book (261p.) Disponível em: https://bityli.com/
vzRCpc Acessado em: 22 abr. 2022
5. Steiner, Ann. O que significa andar na luz? Disponível em: https://bityli.com/HemtQ. Aces-
sado em: 22 abr. 2022.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

própria reputação nos faz escondidos e isolados, o receio de comprometer a reputação


são entulhos entre os relacionamentos, pois faz manutenção da superficialidade no meio
dos irmãos. Richard Foster diz que temos medo de confessar nossos pecados, pois temos
mais em estima o fato da comunidade cristã como uma comunhão de santos, e esquece-
mo-nos que, na verdade, somos, antes de tudo, uma comunhão de pecadores. Se tiver-
mos isso em mente, estaremos livres para amar e confessar abertamente nossas necessi-
dades, pois não estamos sozinhos no pecado.6

Somente a confissão torna possível a comunhão profunda, e a fal-


ta dela explica a superficialidade encontrada nas igrejas.7

As comunidades se tornam verdadeiras quando seus membros se abrem uns para


os outros; se tornando vulneráveis enquanto crescem no amor, na compaixão e na
humildade. Viver em comunidade é destruir as barreiras para receber as diferenças.
Precisamos retirar nossas máscaras e nos tornar vulneráveis, pois é dessa maneira
que serão revelados os nossos limites, medos e egoísmos. Como as fraquezas e
trevas em nossas vidas são reveladas, naturalmente será difícil para nós assumir-
mos essas descobertas. Porém, isso se torna mais fácil quando reconhecemos que
somos todos filhos do mesmo Pai. Caso contrário, continuaremos a construir bar-
reiras ao nosso redor.
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro Vida em Comunhão, diz preciosidades a respeito
do poder da confissão na vida do cristão:

“Na confissão acontece o irrompimento da comunhão. O pecado


quer ficar a sós com a pessoa e afastá-la da comunhão. Quanto mais
solitária a pessoa, mais destruidor será o poder do pecado em sua
vida, e quanto mais profundo o envolvimento com o pecado, mais
desesperadora a solidão. (...) Na confissão, a luz do Evangelho irrom-
pe nas trevas e na impenetrabilidade do coração. O pecado deve ser
trazido à luz. (...) É dura a luta até que os lábios consigam pronunciar
a confissão do pecado, mas Deus “quebrou as portas de bronze, des-
pedaçou as trancas de ferro” (Salmo 107.16). A confissão dos pecados
na presença do irmão cristão derruba os últimos redutos da autojusti-
ficação. O pecador rende-se, abandona todo o mal que há nele, entre-
ga o coração a Deus e encontra o perdão de todos os seus pecados na

6. FOSTER, op. cit., p. 206.


7. WILLARD, op. cit..

87
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

comunhão de Jesus Cristo e dos irmãos. Uma vez expresso e con-


fesso, o pecado já não tem poder, pois foi manifesto como pecado
e julgado como tal. Já não tem o poder de dilacerar a comunhão. A
partir desse momento, a comunidade carrega o pecado do irmão, que
já não está sozinho com seu mal, pois na confissão desfez-se dele, en-
tregou-o a Deus. O mal foi tirado dele. Agora encontra-se na comu-
nhão dos pecadores que vivem da graça de Deus revelada na cruz de
Jesus Cristo. Agora pode ser pecador e, assim mesmo, alegrar-se na
graça de Deus. Pode confessar os pecados e encontrar comunhão jus-
tamente nessa confissão. O pecado oculto separava-o da comunhão,
desmentia toda a comunhão aparente; o pecado professo ajudou-o a
encontrar a verdadeira comunhão com os irmãos em Jesus Cristo.”8

SAINDO DA SUBJETIVIDADE

A disciplina da confissão é importante para sairmos da subjetividade. Ainda que


falemos para Deus em nossos momentos de oração a respeito dos nossos pecados,
isso pode acabar ficando em um campo subjetivo; quando não nos sentimos perdo-
ados por Deus ou quando evitamos a confissão por orgulho, com a intenção de não
lidar com as nossas misérias, buscando fugir do confronto.
É por esse motivo que Deus nos deu irmãs e irmãos que podem se tornar presenças
reais em nossas vidas, nos lembrando do perdão em Cristo. No entanto, é impor-
tante pensar a respeito de quem vai ouvir sua confissão, é preciso encontrar uma
pessoa confiável, madura, e comprometida com a verdade. A sobriedade no falar
sobre seu pecado é muito importante, pois a leviandade, entre amigos, a respeito
de um comportamento pecaminoso pode gerar conformidade e cumplicidade em
relação a ele. O objetivo é ser ouvido de forma séria, receber no coração o perdão
de seus pecados e a libertação deles por meio da graça de Deus, que certamente
fluirá nesses momentos.
Em 1 João podemos ver que o sangue de Jesus nos purifica de todos os pecados, mas
precisamos abrir nosso coração para que a luz de Cristo entre em nossas vidas e ex-
ponha as obras que estão em trevas. Temos de aceitar o fato de que um pecado incon-
fesso é um tipo especial de jugo ou obstrução na vida cristã. A disciplina da confissão
remove esse jugo e, então, deixamos de carregar o peso de esconder e fingir.

8. BONHOEFFER, Dietrich. Vida em Comunhão. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1997. E-book
(95p.) Disponível em: https://docero.com.br/doc/xs5nee5. Acessado em: 25 abr. 2022.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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A VULNERABILIDADE DA CONFISSÃO

Precisamos entender que confessar nossos pecados é nos colocar em uma posição
de fragilidade, pois a partir do momento que os confessamos a alguém estamos lhe
dando ferramentas para nos fazer mal ou nos difamar, caso seja esta a sua vontade.
Porém, não confessamos pecados como quem está simplesmente se sujeitando a
homens. Antes de nos sujeitarmos aos irmãos, nos sujeitamos a Deus em confiança
de que ele nos deu a confissão como um meio de graça para nos purificar e santifi-
car. Se o obedecemos, podemos ter a certeza de que ele nos guarda e nos protege.
Ao confiarmos no amor de Deus, o medo da traição e frustração não são maiores
que a confiança de que é Deus quem nos justifica.

Mais importante do que encontrar pessoas que tenham maturidade para


ouvir nossa CONFISSÃO, é termos uma postura de confiança em Deus.

PRATICANDO A CONFISSÃO

O recomendado, para você que é um iniciante nessa disciplina, é gastar um período


em solitude com papel e caneta, para anotar as coisas que fizeram ou fazem parte
do seu estilo de vida e que afligem a sua consciência. Depois disso, encontre al-
guém maduro para confessar essas coisas. Tal pessoa precisa ter condições de ouvi-
-lo, orar de forma séria sobre o que ouviu e também conversar com você a respeito.
Marque um momento específico para isso, quando vocês não serão interrompidos
nem incomodados.

Assumir a responsabilidade por nossos pecados, pela dureza em


nosso coração, e saber que fomos perdoados, nos realiza de verdade,
uma vez que não temos mais razão para esconder a nossa culpa.

Um amigo cristão maduro ou ministro qualificado é capacitado para orar por pro-
blemas específicos e fazer coisas que podem colaborar com a redenção daquele que
está confessando.
A confissão de nossos pecados a Deus deve ser diária. Precisamos ter um estilo de
vida de arrependimento, para que o Espírito Santo possa nos purificar dos pecados.
Como vimos antes, mesmo com a prática de confissão a Deus, perceberemos que al-
guns pecados continuarão a nos afligir. Esse, então, será o momento de procurarmos

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

alguém para que possamos nos abrir. Essa decisão nos colocará em posição para ser-
mos libertos e continuarmos a andar em pureza. Precisamos ser práticos, objetivos e
anotar o que queremos confessar.
Talvez a maior necessidade de confissão não seja acerca dos “grandes” pecados
que cometemos, cujas consequências são extremamente visíveis. Há, por exemplo,
padrões de pensamentos pecaminosos em nossas vidas, que se não forem expostos
continuarão ocultos e nunca serão tocados.
Lembre-se sempre, o coração de Deus é como de um pastor que está disposto a ir
atrás da sua única ovelha perdida; é o mesmo coração do pai do filho pródigo que
está de braços abertos para receber o filho de volta em sua casa. Não precisamos
convencer Deus a nos perdoar, ele é quem trabalha para que tenhamos vontade de
buscar o seu perdão.9

OUVINDO UMA CONFISSÃO

É muito importante saber como ouvir a confissão de alguém. Se eu admito e reco-


nheço em mim fraquezas, defeitos ou pecados contra Deus e os irmãos, e que fui
perdoado, então, posso caminhar em liberdade e amor, aceitando os defeitos e fra-
quezas dos outros. Entenderei que eles também são perdoados por Deus e podem,
como eu, caminhar em direção à liberdade e ao amor.
A respeito sobre ser um bom ouvinte, Bonhoeffer escreveu:

“Quem vive sob a cruz de Cristo, quem nela reconheceu a impiedade


mais profunda de toda a humanidade e do próprio coração, para esse já
não há pecado que lhe seja desconhecido. Quem, alguma vez, se apavo-
rou diante da hediondez de seu pecado que pregou Jesus na cruz, não
se apavora mais nem mesmo com o pior pecado do irmão. Conhece o
coração humano por meio da cruz de Cristo. Sabe o quanto está inteira-
mente perdido em pecado e fraqueza, como se perde nos caminhos do
pecado, mas sabe também que é aceito em graça e misericórdia. Apenas
o irmão que se encontra sob a cruz poderá ser meu confessor.”10

Ao ouvir uma confissão não precisamos ficar debaixo da compulsão de dizer algo,
nosso papel primordial naquele momento é simplesmente ouvir. Após a confissão

9. FOSTER, op. cit., p. 215.


10.BONHOEFFER, op. cit.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

devemos colocar nossas mãos sobre a pessoa e orar, liberando sobre ela o perdão
de Deus. Você, como representante de Cristo naquele momento, declara o fato de
que o sangue dele purificou aquela pessoa de qualquer pecado que tenha cometido.
Porém, é importante entender que não basta apenas ouvir, há momentos em que é
necessário falar e orientar a pessoa; falar a respeito do seu pecado e conduzi-la ao
ensino das Escrituras.
Na disciplina da confissão é importante dizer que não devemos procurar pessoas
do sexo oposto para confessar nossos pecados, especialmente se forem pecados na
área sexual. Homens devem confessar a homens, e mulheres devem confessar a
mulheres. Esta é uma ética que protege e guarda tanto quem confessa quanto quem
ouve a confissão. Há algumas raras exceções em relação a pecados cometidos con-
tra a pessoa em si, mas em todos os outros casos, esta é uma norma na disciplina da
confissão que deve ser seguida.
Ao se dispor a ouvir os pecados de alguém é preciso atentar aos seguintes passos:
1. Ouvir com total disponibilidade de coração e atenção;
2. Liberar o perdão de Deus de uma maneira clara, objetiva, séria e espiritual;
3. Liberar uma palavra que mostre a necessidade de arrependimento, algum
ensino bíblico ao qual a pessoa possa se apegar;
4. Dar-lhe um conselho prático de como viver uma vida longe daquele pecado.

A honestidade leva à confissão e, esta, nos conduz à mudança.

Comece a praticar a disciplina da confissão na certeza de que ela é, sem sombra de


dúvidas, uma das disciplinas mais poderosas para a vida espiritual – você verá que
a liberdade, a leveza em sua devoção e relacionamentos, a confiança de que Deus
está caminhando ao seu lado, serão muito maiores.

A DISCIPLINA DA ADORAÇÃO

O estudo sobre Deus, em sua Palavra e outros livros, abre o caminho para a discipli-
na da adoração. Na adoração reconhecemos e expressamos a grandeza, a beleza e a
bondade de Deus. Sempre que a palavra “adoração” aparece na Bíblia, ela está ligada
a algo que fazemos para honrar quem Deus é. Geralmente, quando pensamos em
adoração logo nos referimos à música na igreja, mas, ainda que a música tenha um
papel importante na adoração, adoração não é música.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Adoração na Bíblia é representada como o ato de se prostrar diante de Deus, erguer


um altar e oferecer um sacrifício a Deus. Está sempre ligada a uma atitude de reve-
rência ou a uma expressão de louvor a Deus por meio de palavras, canções e danças.
Desde Gênesis, no relato da criação do homem, notamos que fomos feitos à ima-
gem e semelhança do Criador. Por natureza somos religiosos/adoradores, com ca-
rências e necessidades espirituais que só podem ser supridas em Deus. Esta ten-
dência natural de estabelecer relações de confiança, amor e obediência com algo
ou alguém, deriva desta necessidade espiritual que temos. No entanto, esse anseio
intrínseco do homem, só pode ser plenamente satisfeito em Deus.11
O catecismo maior de Westminster afirma que “O fim supremo e principal do ho-
mem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.12 Em Isaías, Deus revela que: “todo
que é chamado pelo meu nome, que criei para minha glória e que formei e fiz.” (Is
43.7); no Novo Testamento, o apóstolo Paulo, semelhantemente, diz que “a fim de
sermos para o louvor da sua glória, nós, os que antes havíamos esperado em Cristo”
(Ef 1.12), portanto, adorar é algo intrínseco ao nosso coração. Deus nos criou para
viver com a finalidade de glorificá-lo13. Tendo sido criados à imagem e semelhança
de Deus, só podemos encontrar significado para a nossa existência ao adorar e re-
fletir corretamente o Criador.

ADORAÇÃO COMO RESPOSTA

Segundo Wayne Grudem, adorar é uma expressão direta do nosso principal pro-
pósito na vida de “glorificar a Deus e gozá-lo eternamente”. Ao refletirmos sobre o
propósito da adoração, devemos nos lembrar da dignidade e honra de Deus em re-
ceber adoração14. Apocalipse demonstra um cenário de total adoração a Deus entre
os seres celestiais; eles estão contemplando a beleza da santidade diante do trono
de Deus, a sua dignidade como Criador e sustentador de todas as coisas.

“Nosso Senhor e nosso Deus, tu és digno de receber a glória, a honra e o


poder, porque tu criaste todas as coisas e, por tua vontade, elas existiram
e foram criadas.” (Ap 4.11)

11. FONTE, Filipe. Idolatria: um inimigo ignorado. Editora 371, 2020. 1ª edição. E-book (51p.)
Disponível em: https://amzn.to/3s1CZ3x. Acesso em: 28 abr. 2022.
12.Catecismo Maior de Westminster (resposta à pergunta 01). Disponível em: https://bit.ly/
3vR1uBv. Acesso em: 28 abr. 2022.
13. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática: atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova, 1999, p.
848.
14. d. Ibid., p. 848-849.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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O que faz os vinte e quatro anciãos no céu sentirem tamanha reverência e alegria é
porque tinham a revelação de quem Deus é e da grandiosidade das suas obras. Por isso,
adoração é uma correspondência dos homens mediante a revelação divina. As Escri-
turas estão repletas de exemplos do esforço de Deus para iniciar, restaurar e manter a
comunhão com seus filhos. A adoração é a nossa reação a esta oferta de amor originada
no coração do Pai. Adorar, portanto, é corresponder à revelação de quem Deus é.
Adoração não diz respeito a uma experiência sensorial, mas a um serviço que pres-
tamos diante de Deus. Nosso chamado para adorar não é para nos sentirmos “bem”,
mas viver esta vida como expressão do quanto nós valorizamos a Deus. Por isso,
no momento de culto público, caso a música ou estilo de adoração não o agrade, a
menos que a letra transgrida a Escritura, o mais importante é adorar a Deus junta-
mente com o seu povo – simplesmente porque ele é digno.

ADORAÇÃO é a reação humana à iniciativa divina.

Adoração é uma resposta que damos à iniciativa de Deus em se revelar a nós. Quan-
do nós adoramos, ou seja, correspondemos à iniciativa de Deus, começa a ser for-
mado em nós a percepção da realidade última do mundo, ou seja, o próprio Deus.
Adoração não tem a ver conosco, com nossos sentimentos e sensações. Ainda que
iremos ter experiências com a presença de Deus, com seu Espírito, com sua glória,
este não deve ser o nosso foco. A partir do momento em que nos tornamos o foco
da adoração, ela perde o seu sentido. Quando tudo o que queremos é sentir algo
ou passar por uma experiência, estamos entrando na adoração com a perspectiva
errada.

Devemos, sim, ter fome e sede por Deus, mas nossos desejos não de-
vem determinar como correspondemos à revelação sobre quem ele é.

O MAIOR INIMIGO DA ADORAÇÃO

Um princípio básico da antropologia bíblica é o de que funcionamos de dentro para


fora. Nós fomos criados de maneira que aquilo que acontece em nossa dimensão
interior (no coração), determina o que acontece em nossa dimensão exterior.

“Pois não existe árvore boa que dê fruto mau, nem árvore má que dê fru-
to bom. Toda árvore é conhecida pelo fruto; pois não se colhem figos dos

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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espinheiros nem uvas dos espinhos. O homem bom tira o bem do bom te-
souro do seu coração; e o homem mau tira o mal do seu mau tesouro; pois
a boca fala do que o coração tem em grande quantidade.” (Lc 6.43-45)

“Não compreendeis que tudo o que entra pela boca e desce para o estô-
mago é depois expelido? Mas o que sai da boca procede do coração; e é
isso que torna o homem impuro. Porque do coração é que saem os maus
pensamentos, homicídios, adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos
testemunhos e calúnias. São essas coisas que tornam o homem impuro;
mas o comer sem lavar as mãos não o torna impuro.” (Mt 15.17-20)

Embora como cristãos, não sejamos mais escravos do pecado, e tendo recebido
liberdade e poder da parte do Redentor para lutar contra o mal e obter vitória so-
bre ele, o risco de cairmos em idolatria é real, por isso existem imperativos na
Bíblia, direcionado aos cristãos, contra a idolatria. E não é somente um risco, mas
frequentemente a idolatria se torna uma realidade na vida do povo de Deus, um
exemplo disso é a história de Israel.

“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da
escravidão. Não terás outros deuses além de mim.” (Êx 20.2,3)

“Portanto, meus amados, fugi da idolatria.” (1 Co 10.14)

“Filhinhos, guardai-vos dos ídolos.” (1 Jo 5.21)

A idolatria acontece quando confiamos, amamos, obedecemos a algo ou alguém


como deveríamos a Deus. Nossa confiança de que algo pode ser fonte de nossa
satisfação, nos leva a desejar esse alvo acima de tudo, inclusive de Deus, e isso nos
leva a atender suas exigências. Por isso, nossas ações pecaminosas podem ser fruto
de atender as exigências de um ídolo que passamos a amar e desejar, por termos
colocado nele a nossa confiança.15
A queda não alterou a configuração original do homem como adorador, mas redi-
recionou as afeições do homem a um objeto que é insuficiente para satisfazer suas
necessidades como criatura de Deus. E por isso o homem colhe graves danos ao
conhecer a Deus e não o glorificar como Deus.

15. FONTE, op. cit.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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“Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e substituíram a glória do Deus


incorruptível por imagens semelhantes ao homem corruptível, às aves,
aos quadrúpedes e aos répteis. É por isso que Deus os entregou à impu-
reza sexual, ao desejo ardente de seus corações, para desonrarem seus
corpos entre si; pois substituíram a verdade de Deus pela mentira e ado-
raram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito eterna-
mente. Amém.” (Rm 1.22-25)

Nessa circunstância, perdemos o alvo do qual fomos criados, perdemos o Senhor


de vista das nossas vidas. Ele deixa de ser adorado, pois já não é mais o motivo das
nossas afeições. Nesse aspecto, a idolatria é o maior inimigo da verdadeira adoração.
Enquanto nosso total contentamento não estiver no Senhor, nossa adoração e lou-
vor ao seu nome será tão fraco que mal poderá ser visto, a ponto de desaparecer. E
quando atingimos esse nível, alcançamos a apostasia da fé e total desconfiguração da
nossa humanidade. Pois fato é que, só poderemos ser plenamente felizes fazendo o
que fomos criados para fazer, quando estamos completamente satisfeitos no Senhor.

“Os que escolhem outros deuses terão as dores multiplicadas; não ofere-
cerei seus sacrifícios de sangue, nem meus lábios pronunciarão seu nome.
(...) Tu me farás conhecer o caminho da vida; na tua presença há plenitu-
de de alegria; à tua direita há eterno prazer.” (Sl 16.4,11)

Ou seja, a idolatria é o maior inimigo da adoração, sendo ela uma violação contra a
glória de Deus. Quando substituímos Deus, diminuímos sua glória e nos tornamos
expressão da imagem falsa do deus substituto ao qual elegemos. Além disso, se
Deus nos criou para a sua glória e para que desfrutemos eternamente da sua pre-
sença, a idolatria é um atentado contra nossa própria satisfação.
Por esse motivo, John Piper diz que:

“A ordem implacável de Deus de O vermos como glorioso e louvá-


-Lo, é uma ordem de que nós não nos contentemos com nada menos
que a realização da nossa alegria nEle. Louvar não é só a expressão,
mas a consumação, da nossa alegria que é supremamente agradável, a
saber, Deus. ‘Na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra,
delícias perpetuamente’ (Salmos 16:11). Exigindo nosso louvor, Ele

15. FONTE, op. cit.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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está exigindo a realização do nosso prazer. Deus é mais glorificado


em nós quando estamos mais satisfeitos nEle.” 16

“Cristo é glorificado em você, quando ele é mais precioso para


você do que tudo que a vida pode dar ou a morte pode tomar.”17

ADORAÇÃO COMO UMA EXPRESSÃO FÍSICA

Segundo Foster, adoração é uma palavra que está sempre relacionada a algo físi-
co na Bíblia, algo que fazemos com nosso corpo. O significado da raiz da palavra
hebraica que traduzimos por ‘adoração’ é ‘prostrar’. O verbo ‘abençoar’ significa
literalmente ‘ajoelhar’. ‘Ação de graças’ refere-se a ‘estender as mãos’. Por toda a
Escritura, encontramos uma variedade de posturas físicas vinculadas à adoração:
prostrar-se, ficar em pé, ajoelhar-se, levantar as mãos, bater palmas, levantar a ca-
beça, abaixar a cabeça, dançar, vestir-se com pano de saco e cobrir-se de cinzas.
Portanto, devemos oferecer nosso corpo a Deus, bem como todo o resto de nosso
ser. A adoração é essencialmente corporal. 18
Louvar é outro caminho para a adoração. As linguagens do louvor são muitas: dan-
çar, cantar, gritar, tocar, pular. O sacrifício de louvor é um princípio bíblico, po-
demos vê-lo, por exemplo, quando Pedro e João saem do Sinédrio sangrando com
as chibatadas, mas louvando (Atos 5); e quando Paulo e Silas estão presos, mas na
prisão eles seguem louvando (Atos 16).

ADORAÇÃO é como expressamos para


Deus o valor que enxergamos nele.

O louvor favorece o desenvolvimento das emoções para a adoração, porque a adora-


ção puramente racional é insuficiente. Os afetos fazem parte da personalidade hu-
mana e assim deve ser nosso relacionamento com o Senhor: racional e consciente,
mas regado de alegria e amor.

16. PIPER, John. Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos nEle. Dis-
ponível em:
https://bit.ly/3Ffx7ZS. Acessado em: 4 mai. 2022.
17. Id. Ibid.
18.FOSTER, op. cit., p. 234.

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
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C. S. Lewis diz, em seu livro Reflexões sobre Salmos, que o louvor não é só a ex-
pressão daquilo que possui valor, mas é a própria consumação do prazer àquilo que
detém sua afeição.

“O fato mais óbvio sobre louvor — seja a Deus ou a qualquer coisa —,


estranhamente me escapou. Eu pensei nisso em termos de elogio,
aprovação, ou de prestação de honra. Eu nunca tinha percebido que
todo prazer espontaneamente transborda em louvor (...). Eu não tinha
notado também que, assim como homens espontaneamente louvam
qualquer coisa que eles valorizam, eles também nos encorajam a se
juntar a eles em louvor a isso: “Ela não é adorável? Não foi glorioso?
Você não acha aquilo magnífico?” Os Salmistas quando dizem para
todos louvarem a Deus, estão fazendo o que todos os homens fazem
quando eles falam do que se importam. Toda a minha, mais geral, di-
ficuldade sobre o louvor a Deus dependia da minha negação absurda
a nós, no que diz respeito ao supremamente Valioso, daquilo que nos
deleitamos em fazer, do que de fato não podemos deixar de fazer, do
que nós valorizamos acima de tudo. Eu acho que nós nos deleitamos
em louvar o que apreciamos, porque o louvor não meramente ex-
pressa, mas completa o gozo; é a sua consumação. Não é por elogio
que casais continuam dizendo um ao outro quão bonitos eles são; o
deleite está incompleto até ser expressado.”19

Sendo assim, nosso louvor pode ser expressado de maneira física e verbal, com nossos
lábios e com o nosso corpo, manifestando a alegria e o prazer que temos em Deus.
Porque o valorizamos acima de tudo, temos nossa alegria completa em viver para elo-
giá-lo com louvores em nossos lábios. É exatamente esta alegria que vemos relatadas
em salmos; a alegria de quem encontrou em Deus o seu tesouro, e por isso transborda
em louvor!

“Celebrai com júbilo ao Senhor, todos os habitantes da terra. Cultuai


o Senhor com alegria e apresentai-vos a ele com cântico. Sabei que o
Senhor é Deus! Foi ele quem nos fez, e dele somos; somos seu povo e reba-
nho que ele pastoreia. Entrai pelas suas portas com ação de graças, e em
seus átrios, com louvor! Rendei-lhe graças e bendizei seu nome! Porque o

19. LEWIS, C. S. Reflections on the Psalms. New York: Harcourt, Brace and World, 1958, p.
93–95 apud John Piper. Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos
nEle. Disponível em: https://bit.ly/3Ffx7ZS. Acessado em: 4 mai. 2022.18

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ADORAÇÃO: UMA DISCIPLINA COMUNITÁRIA

Outro aspecto importante, distintivo da fé cristã, é o ajuntamento dos santos para


adorarem juntos. A maioria das religiões, até mesmo algumas linhas do cristianis-
mo, enfatizam a adoração e a devoção como uma atividade individual. Porém, ao
olharmos para a Bíblia, veremos que o ato de congregar era uma prioridade para a
igreja primitiva, buscando a unidade do espírito de maneira a ultrapassar o indi-
vidualismo. Mesmo em condições adversas, o autor de hebreus recomenda que o
povo não deixe de congregar.

“não abandonemos a prática de nos reunir, como é costume de alguns,


mas, pelo contrário, animemo-nos uns aos outros, quanto mais vedes que
o Dia se aproxima.” (Hb 10.25)

Não existe a possibilidade de viver uma vida cristã de verdadeira


adoração, se nossa experiência de adoração for individualista.

Por meio da expressão coletiva de adoração nós alcançamos âmbitos de relaciona-


mento e experiência com Deus que jamais alcançaríamos sozinhos. Deus nos deu
a uma comunidade, e sua vida flui no meio do corpo de Cristo, de maneira que
sozinhos não podemos experimentar desta medida.
Foster menciona o testemunho que Martinho Lutero relata de sua experiência ao
se reunir com o corpo de Cristo: “em casa, em minha própria casa, não há calor ou
vigor em mim; mas na igreja, quando a multidão se congrega, em meu coração acende
um fogo que se espalha”.20

OS FRUTOS DA ADORAÇÃO

Há diversas consequências de adorarmos a Deus genuinamente, rendendo-lhe gló-


ria e louvor com toda a nossa vida.21

1. Alegramo-nos em Deus

Deus nos criou não apenas para glorificá-lo, mas também para nos alegrarmos nele.
Experimentamos mais plenamente da alegria em Deus na nossa adoração. Veja
Davi que dizia buscar “uma só coisa” durante toda a sua vida:

20. FOSTER, op. cit., p. 228.


21. GRUDEM, op. cit., p. 849-853.

98
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

"Pedi uma coisa ao Senhor, e a buscarei: que eu possa morar na casa do


Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar o esplendor do
Senhor e meditar no seu templo." (Sl 27.4)

Além disso, como já visto, Davi também diz:

“Tu me farás conhecer o caminho da vida; na tua presença há plenitude


de alegria; à tua direita há eterno prazer.” (Sl 16.11)

E a alegria experimentada pela igreja primitiva na comunhão e na adoração:

“E perseverando de comum acordo todos os dias no templo, e partindo


o pão em casa, comiam com alegria e simplicidade de coração, lou-
vando a Deus e contando com o favor de todo o povo. E o Senhor lhes
acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos.” (At 2.46-47)

O povo que conhece o Senhor exulta de alegria por tamanha salvação que os alcan-
ça. À medida que prosseguimos em conhecê-lo nossa alegria é completa e transbor-
da em uma vida de adoração.

2. Deus alegra-se em nós


Deus tem deleite e alegria na sua criação (Gn 1.31). Logo, nossa adoração traz ale-
gria e prazer ao seu coração. Isto deve nos servir de motivação, pois Deus tem
prazer e alegria ao ver seus filhos o amando e o adorando. Para isso fomos criados!

“Pois, como um jovem se casa com uma moça, assim teus filhos se ca-
sarão contigo; e, como o noivo se alegra da noiva, assim o teu Deus se
alegrará de ti.” (Is 62.5)

“O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para te salvar; ele se
agradará de ti com alegria; ele se renovará no seu amor e se alegrará em
ti com júbilo.” (Sf 3.17)

Deus tem mais alegria em seu povo, quando mais seu povo se alegra nele. Ele se
alegra como um noivo que se alegra de sua noiva. Ele nos ama, e porque nos ama,
nos atraiu com fidelidade. Quanto maior nossa consciência acerca do seu amor,
maior alegria teremos em agradar o seu coração.

99
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

3. Aproximamo-nos de Deus

A realidade da nova aliança, inaugurada pelo sangue de Jesus, é que podemos nos
achegar com confiança até o trono da graça (Hb 4.16).
Embora não possamos ver, a Escritura nos garante que nossa adoração é diante da
presença de Deus, e que nos unimos aos seres celestiais enquanto o adoramos.
Essa é a garantia de que “tendes chegado ao monte Sião, à cidade do Deus vivo, à
Jerusalém celestial, ao incontável número de anjos em reunião festiva; à igreja dos
primogênitos registrados nos céus, a Deus, o juiz de todos, aos espíritos dos justos aper-
feiçoados; a Jesus, o mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala
melhor do que o sangue de Abel.” (Hb 12.22-24) e “por isso, recebendo um reino inaba-
lável, sejamos gratos e, dessa forma, adoremos a Deus de forma que lhe seja agradável,
com reverência e temor; pois o nosso Deus é fogo que consome” (Hb 12.28,29).

4. Deus aproxima-se de nós

No meio dos louvores, Deus é entronizado. Ele habita no meio do seu povo, mas
quando nos achegamos a Deus, ele se achega a nós.

“Achegai-vos a Deus, e ele se achegará a vós.” (Tg 4.8a)

5. Deus ministra a nós

Quando adoramos a Deus, ele se encontra conosco e ministra diretamente a nós,


fortalecendo a nossa fé, aumentando a consciência da sua presença e concedendo
refrigério ao nosso espírito.

“Portanto, aproximemo-nos com confiança do trono da graça, para que


recebamos misericórdia e encontremos graça, a fim de sermos socorridos
no momento oportuno.” (Hb 4.16)

O apóstolo Pedro relata em sua carta, que enquanto nos achegamos a Deus, vamos
sendo edificados como uma casa espiritual para Deus:

“Chegando-vos a ele, a pedra viva, rejeitada pelos homens, mas eleita e


preciosa para Deus, vós também, como pedras vivas, sois edificados como
casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios
espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo.” (1 Pe 2.4,5)

100
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

6. Os inimigos do Senhor fogem


Quando o povo de Israel começava a adorar, Deus, em muitas situações, lutava por
eles contra seus inimigos (veja 2 Cr 20.21,22). Logo, podemos experimentar esta
realidade; enquanto adoramos a Deus, podemos esperar que o Senhor está lutando
as nossas guerras, e contra todo inimigo que se levanta em oposição ao conheci-
mento de Deus para que o caminho do evangelho se abra.

“Ele tem a força humana, mas nós temos o Senhor, nosso Deus, para nos
ajudar e lutar por nós.” (2 Cr 32.8a)

7. Os descrentes sabem que estão na presença de Deus


Embora uma única reunião semanal de cristãos não tenha o objetivo de evange-
lização, Paulo em sua carta aos coríntios, deixa clara a sua preocupação com uma
liturgia de culto em que um descrente possa compreender as instruções ali proferi-
das. Logo, podemos concluir que em um ambiente de adoração, em que é possível
experimentar da presença de Deus, descrentes podem reconhecer essa presença e
se arrepender de seus pecados.

“Mas, se todos profetizarem, e alguma pessoa incrédula ou não instruída


entrar, será por todos convencida de seu pecado e julgada. Os segredos
do seu coração se tornarão manifestos. E assim, prostrando-se, com o
rosto em terra, adorará a Deus, afirmando que, de fato, Deus está entre
vós.” (1 Co 14.24,25)

CONCLUSÃO

Na adoração o próprio Deus vem ao nosso encontro, e nossos pensamentos e pa-


lavras se voltam totalmente para a percepção de quem ele é. Deus está realmente
presente em nós em grandeza, beleza e bondade. Isso causa uma mudança drástica
e imediata em nossa vida.

“Se a adoração não nos impelir a uma obediência mais intensa a Deus e
a uma transformação interior profunda, então não houve adoração.”.22

Estar diante do Santo eterno significa mudança. Contemplá-lo, estar em sua pre-
sença e não ser transformado é impossível:

22. FOSTER, op. cit., p. 238.

101
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

“Mas todos nós, com o rosto descoberto, refletindo como um espelho a


glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma
imagem, que vem do Espírito do Senhor” (2 Co 3.18)

Enquanto gastamos tempo em verdadeira adoração, Deus nos transforma, por isso,
é, sem dúvida, uma disciplina muito profunda e importante. Mesmo não perceben-
do, em meio à sua prática, Deus está mudando nosso coração e alinhando nossos
valores, para que todo nosso ser seja atraído para ele, como uma bússola.
Deus nos criou para ser um povo sacerdotal, um povo onde a adoração não é uma
mera atividade, mas o elemento central da nossa identidade. Adorar e existir devem
ser a mesma coisa para nós. Somos seres essencialmente adoradores, a idolatria é
uma prova disso.
Existimos para adorar, fomos criados para isso. Se não estamos adorando a Deus
estamos automaticamente adorando outras coisas. Quanto mais tempo gastamos
em comunhão e adoração a Deus, maior será a nossa experiência de transformação
em nossa vida.
Precisamos adorar com a consciência de que ele é digno – é digno de nossas expres-
sões de louvor, de nossas canções, do nosso silêncio, de tudo o que somos e temos.

102
Aula 8
v.1.0.0

A DISCIPLINA
DA ORIENTAÇÃO E
DA CELEBRAÇÃO
A DISCIPLINA DA ORIENTAÇÃO

A disciplina da orientação espiritual tem uma relação direta com ouvir a direção do
Espírito Santo na comunhão. É nos esforçar para conseguir perceber e entender o
que Deus quer de nós enquanto seguimos a Ele como seus discípulos.
Deus nos orienta de várias formas: pelas Escrituras, pelo Espírito Santo e seus
dons, e pelo Corpo de Cristo. Nós, que seguimos a Jesus, precisamos aprender a
ouvir a orientação de Deus nestes três aspectos.

“Quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá a toda


a verdade. E não falará de si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido e vos
anunciará as coisas que hão de vir.” (Jo 16.13)

103
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

Todos nós devemos ser guiados pelo Espírito Santo e a disciplina da orientação nos aju-
da a entrar nessa dimensão. A disciplina da orientação visa encontrar a mente do Espíri-
to. Isso não significa tentar “descobrir a vontade de Deus” para nossas vidas a fim de
que todos os nossos planos deem certo e não tenhamos qualquer tipo de dificuldade.

A disciplina da orientação nos posi-


ciona dentro da obra de Deus e nos
dá clareza de como devemos agir.

A nossa busca é pela sabedoria que vem do Espírito Santo de Deus. Precisamos
ter a consciência de que, no poder do Espírito, o próprio Cristo guia seu povo. Na
Bíblia não vemos os apóstolos preocupados e questionando a respeito de suas de-
cisões pessoais. Eles buscavam entender a mente do Espírito para que pudessem
cooperar com o que Deus estava realizando em seus dias, colaborando assim com a
realização de sua obra e pregando o Evangelho:

“Na igreja em Antioquia havia profetas e mestres: Barnabé, Simeão,


chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, que havia crescido com o
governante Herodes, e Saulo. Enquanto cultuavam o Senhor e jejuavam,
o Espírito Santo disse: Separai-me Barnabé e Saulo para a obra para a
qual os tenho chamado” (At 13.1-2)

É importante dizer que se nos limitarmos a buscar a Deus sozinhos, somente no


secreto, não iremos ouvir a totalidade do que Ele quer dizer. Precisamos, além dos
momentos a sós com Deus em meditação na sua Palavra, dos momentos de busca
coletiva que nos enriquece da sabedoria de Deus revelada a nossos irmãos.

Orientação por meio do Corpo


Conhecer a orientação direta, ativa e imediata do Espírito não é o suficiente. O
direcionamento individual é extremamente crucial, mas precisa ser submetida à
orientação comunitária. Precisamos de uma verdadeira comunhão no Corpo de
Cristo, para tomar decisões influenciadas pela mente do Espírito, ou seja, através
da sabedoria divina que flui por meio do corpo. Temos ouvido muito pouco acerca
da orientação de Deus por meio de seu povo, o corpo de Cristo.
É fato que Deus nos orienta individualmente, de maneira proveitosa e profunda,
mas também orienta grupos de pessoas e pode nos instruir através da experiência

104
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

coletiva. Isso pode ser exemplificado no livro de Atos, através da unanimidade na


decisão de um grupo, em conformidade com o Espírito:

“Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais também vos anunciarão as


mesmas coisas de viva voz. Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós
não vos impor maior encargo além destas coisas necessárias” (At 15.27-28)

“A multidão dos que criam estava unida de coração e de propósito; nin-


guém afirmava ser sua alguma coisa que possuísse, mas tudo era com-
partilhado por todos. E com grande poder os apóstolos davam testemu-
nho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos havia imensa graça”
(At 4.32-33)

Em Atos vemos um grupo de pessoas que decidiu viver sob o senhorio do Espírito.
Eles rejeitaram o totalitarismo humano e até mesmo a democracia, ou seja, a de-
cisão da maioria. Ousaram ser fundamentados na direção do Espírito. Assim, até
mesmo o irmão mais maduro deve reconhecer que precisa da ajuda dos irmãos.
Somos membros de um corpo e Cristo é o nosso cabeça.

Isoladamente ninguém
consegue ouvir a totalidade
do conselho de Deus.¹

Precisamos encontrar a paz do Espírito Santo através da comunhão do corpo de


Cristo, para que possamos caminhar mais além.

O Orientador Espiritual
Existiu, na tradição da espiritualidade cristã, algo chamado de orientador espiri-
tual. Na Idade Média nem mesmo os maiores santos arriscavam se aprofundar na
jornada interior sem a ajuda de um orientador espiritual. Hoje se fala muito a res-
peito de mentoriamento ministerial, mas muito pouco a respeito da orientação
espiritual, tão presente na história da espiritualidade.

1. FOSTER, Richard J. Celebração da disciplina: o caminho do crescimento espiritual. 2ª edi-


ção. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 246.

105
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

A orientação espiritual não diz respeito a alguém que irá orientar, por exemplo,
como ter um ministério bem sucedido. Mas é receber orientações – de uma pessoa
que consideramos ter uma vida profunda de comunhão com Deus – de como de-
senvolver uma vida semelhante à dela, isto é, de como crescer em comunhão com
Deus e em experiências espirituais.
Essa orientação serve para nos conduzir com simplicidade e clareza ao nosso ver-
dadeiro orientador.
O orientador espiritual era alguém que não possuía nenhum tipo de autoridade
hierárquica ou organizacional, mas reconhecido por sua profundidade, santidade e
vida com Deus. Precisamos recuperar isso! Sentar aos pés desses irmãos e ouvir o
que eles têm a dizer a respeito da vida no Espírito.
O orientador espiritual precisa ser alguém que já aceitou a si mesmo e que tenha
maturidade genuína que permeie toda a sua vida. Quem é assim não é levado pelas
variações dos tempos, porque possui um leme e consegue navegar através do egoís-
mo, da apatia e da mediocridade que existe ao seu redor.²
A orientação espiritual é o abrir total do coração, o compartilhar das experiên-
cias, lutas e incertezas. É entender que tanto o orientado como o orientador estão
aprendendo com Jesus – o Mestre sempre presente. Sem isso ficaremos presos na
superficialidade de nossa vida espiritual. O que buscamos não é uma carreira bem
sucedida, não é aparecer, não é ter o reconhecimento das pessoas, mas é nos en-
contrar verdadeiramente com Deus e sermos transformados à sua imagem.

Os Limites da Orientação
Existem perigos tanto na orientação individual quanto na comunitária, e precisa-
mos entender os seus limites. A manipulação e o controle são coisas que ameaçam
constantemente esta disciplina. Se a orientação não for conduzida no contexto da
graça, ela irá se tornar algo degenerativo e, por meio disso, os líderes irão impor
sua vontade aos indivíduos. Será um meio de forçar o alinhamento de opiniões
contrárias resultando em sufocamento da vida espiritual.³
O contrário também pode acontecer. Apesar de os líderes definitivamente preci-
sarem do conselho e do discernimento do corpo, também precisam de liberdade
para liderar. Eles não são obrigados a justificar todos os detalhes de suas ações para
a comunidade, pois foi Deus que os colocou nesta posição. Ele designa líderes com

2. Id. Ibid., p. 254.


3. Id. Ibid., p. 256.

106
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

autoridade em sua Igreja. Nem todo membro precisa ter uma opinião de peso equi-
valente sobre qualquer banalidade da vida comunitária.
Devemos estar sempre submetidos à Palavra, entendendo que o Espírito nunca nos
conduzirá por um caminho que se oponha a ela. Devemos reconhecer que somos
seres humanos falíveis e que, às vezes, nossos conceitos e medos nos impedirão de
alcançar a unidade para a qual o Espírito nos conduz. Caso isso aconteça, devemos
ser humildes, gentis uns com os outros e nos submeter ao Espírito Santo.

A DISCIPLINA DA CELEBRAÇÃO

A disciplina da celebração pode ser considerada uma complementação da adoração,


pois se baseia na grandeza de Deus revelada em sua bondade para conosco. Nós nos
engajamos em celebração quando nos alegramos em nós mesmos, em nossa vida,
no mundo que nos cerca, em conjunto com nossa fé e confiança em quem Deus é.
Segundo Foster, a base da celebração é formada pela liberdade em relação à ansie-
dade e à preocupação. Pelo fato de sabermos que Deus se importa conosco, pode-
mos lançar sobre ele todas as nossas preocupações. Além disso, também experi-
mentamos sua bondade através de tudo o que ele nos dá todos os dias.4
A Escritura nos diz que a alegria do Senhor é a nossa força (Neemias 8.10) e sem ela
nada do que fazemos realmente se desenvolve. Por isso, a disciplina da celebração
é a essência de todas as outras disciplinas espirituais, pois se não tivermos a alegria
permeando todas as nossas práticas espirituais, estas estarão fadadas à apatidão, e
se assemelharão às práticas farisaicas que com a boca professa realidades das quais
o coração está longe.5
Da mesma forma que nos dedicamos à meditação, ao jejum e às outras disciplinas
espirituais, também devemos nos dedicar em nos alegrar em Deus, e sem essa ale-
gria que nos fortalece e nos leva a um profundo senso de ação de graças, mais cedo
ou mais tarde, teremos abandonado a prática das outras disciplinas.

A celebração é o ato de regozijo


da comunidade, no qual as pessoas
rendem graças ao Pai por tê-las
unido, por velar por elas e amá-las; e

4. Id. Ibid., p 259.


5. Id. Ibid., p. 260.

107
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

por não estarem mais sozinhas volta-


das para o seu isolamento e indepen-
dência, mas serem um só corpo, no
qual cada um tem o seu lugar.

Celebrar não é apenas lembrar o passado e de como Deus foi bom para conosco,
mas viver com a certeza e expectativa futura de que ele será sempre bom!

O Espírito da Celebração Despreocupada


A celebração está no âmago da fé cristã, visto que o nascimento do nosso Redentor
foi anunciado em grande tom de alegria: "Mas o anjo lhes disse: Não temais, por-
que vos trago novas de grande alegria para todo o povo;" (Lc 2.10). Agora o Reden-
tor está em nosso meio, sua obra foi consumada, e obedecer aos seus mandamentos
é a fonte da verdadeira celebração:

"Se obedecerdes aos meus mandamentos, permanecereis no meu amor;


do mesmo modo que eu tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e
permaneço no seu amor. Eu vos tenho dito essas coisas para que a minha
alegria permaneça em vós, e a vossa alegria seja plena." (Jo 15.10-11)

"Antes, bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a praticam."


(Lc 11.28)

Com isso podemos aprender que existe uma alegria que só é encontrada na obedi-
ência. E isto acontece porque nas palavras do Verbo encarnado encontramos vida
em abundância (Jo 6.63, 68). Não há nada que possa encher o homem com maior
alegria ao perceber Deus invadindo a sua realidade e transformando suas misérias,
trazendo redenção e santificação para os contextos mais ordinários da sua vida.
A Bíblia dispõe de muitas exortações ao povo de Deus para que se alegrem no Se-
nhor, mas especificamente, vejamos a recomendação do apóstolo Paulo:

"Alegrai-vos sempre no Senhor; e digo outra vez: Alegrai-vos! Seja a


vossa bondade conhecida por todos os homens. O Senhor está perto. Não
andeis ansiosos por coisa alguma; pelo contrário, sejam os vossos pedi-
dos plenamente conhecidos diante de Deus por meio de oração e súplica
com ações de graças; e a paz de Deus, que ultrapassa todo entendimen-

108
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

to, guardará o vosso coração e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.


Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto,
tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é
de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai."
(Fp 4.4-8)

Nesse trecho das Escrituras, Paulo aponta um caminho para a alegria, que exige um
ato de vontade e iniciativa nossa, sempre debaixo da graça de Deus, para enxergar
que a vida é sustentada pelo amor de Deus, e que Ele está perto. Essa realidade
envolve dois aspectos.
Primeiro, o Apóstolo deixa claro, que não devemos andar ansiosos. A ansiedade
desvenda nosso coração incrédulo quanto a confiabilidade de Deus. Igualmente,
revela nossa desconfiança na própria liderança do Senhor. No entanto, quando esti-
vermos livres para depender e confiar inteiramente nele, só neste caso, poderemos
experimentar alegria.
A recomendação é que por meio de oração e súplicas, façamos a Deus conhecida
todas as nossas ansiedades e preocupações, e o resultado, garantido pela Escritura,
é recebermos a paz que excede o entendimento dos homens, a mente e o coração
livre de tudo que tenta nos impedir de descansar em Deus.
Segundo, somos instruídos a concentrarmos nossos pensamentos em tudo que
seja verdadeiro, honesto, justo, puro e de boa fama. Essa decisão de voltar a mente
para coisas mais elevadas, ao invés de alimentarmos os problemas e as frustrações
da vida, moldará nossa forma de viver e pensar.
É por isso que a celebração é uma disciplina. Não é algo despejado sobre nós. O
fruto de repousar a mente nas coisas excelentes, emergidos pela gratidão, faz com
que Cristo penetre nos processos mais íntimos de nossas vidas e de nossos relacio-
namentos, e a consequência disso, inevitavelmente, será a alegria.6

Celebração é o resultado de se optar


conscientemente por uma forma de
viver e pensar.

Os cristãos são chamados para serem libertos da ansiedade. Não vamos alcançar o
espírito da celebração enquanto não aprendermos a deixar de lado a “preocupação

6. Id. Ibid., 265.

109
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

com as coisas”, a qual é fruto da desconfiança em Deus. Quando confiamos em Deus


ficamos livres para depender inteiramente dele, em todos os aspectos de nossa vida.

"Uma fé sadia é construída e mantida


com a celebração da grandeza e bon-
dade de Deus para conosco, mesmo em
meio a sofrimentos. Pois confiamos
nossas preocupações a ele e recebe-
mos suas dádivas constantes, com
ações de graças. Nos concentramos
no bem que sustenta a realidade e se
revela a nós, ao invés de nos concen-
trarmos no mal que sofremos e pra-
ticamos. Praticamos a confiança em
Deus e a concentração em sua bon-
dade através da disciplina da cele-
bração." 7

Praticando a disciplina da celebração


A Bíblia possui várias expressões de como uma celebração pode acontecer; através
da música e dança, da risada e do testemunho do que o Senhor tem feito em nossa
vida, de um momento à mesa com os amigos, de festas e datas especiais. Mas, ba-
sicamente, celebração é a expressão da alegria que sentimos por pertencer a Deus.
Este é um dos aspectos mais importantes para entender a disciplina da celebração.
Muitos se sentem desconfortáveis e inseguros, em ambientes de dança, alegria e
louvor a Deus, mas, de acordo com as Escrituras, uma das maiores expressões de
celebração é o dançar na presença de Deus. Podemos ter vergonha e nos sentir pre-
ocupados com a opinião dos outros, mas veja o exemplo de Davi:

“E Davi dançava com todas as suas forças diante do SENHOR vestin-


do um colete de linho. Assim Davi e toda a casa de Israel subiam, trazen-
do a arca do SENHOR com júbilo e ao som de trombetas. Quando a arca

7. BELMONTE, Vanessa. Série Disciplinas Espirituais: #1 Celebração. Disponível em: https://


bityli.com/IFsXl. Acessado em: 11 de mai. 2022.

110
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

do SENHOR entrou na Cidade de Davi, Mical, filha de Saul, estava


olhando pela janela; quando viu o rei Davi saltando e dançando diante
do SENHOR, ela o desprezou no seu coração. (...) Então Davi voltou
para abençoar a sua casa; e Mical, filha de Saul, saiu para encontrar-se
com Davi e disse: Que maravilha fez o rei de Israel hoje, descobrindo-
-se na frente das servas de seus servos, como um indivíduo qualquer.
Davi, porém, disse a Mical: Foi perante o SENHOR que me alegrei,
perante aquele que me escolheu no lugar de teu pai e de toda a casa dele,
estabelecendo-me por chefe sobre Israel, o povo do SENHOR. Ainda me
alegrarei perante ele. Também me rebaixarei ainda mais e me humilharei
aos meus olhos, mas serei honrado pelas servas de quem falaste.” (2 Sm
6.14-16; 20-22)

Devemos oferecer a nossa vergonha e a nossa dança diante de Deus, pois ele é
digno de nossa celebração.
Dallas Willard diz que:

"Na celebração, a fé às vezes se transforma numa alegria esfuziante que
atravessa todo o nosso ser físico, quando começamos a ver realmente
quão grande e amoroso é Deus e quão bondoso tem sido para conosco.
A celebração feita de coração torna nossas privações e tristezas peque-
nas; e nós encontramos nela grande força para fazer a vontade de nosso
Deus, porque sua bondade se torna real para nós."8

Um outro bom exemplo para aprendermos a praticar a celebração são as crianças.


Elas fazem muito barulho e não há nada errado nisso, desde que seja feito no mo-
mento correto; assim como o silêncio também não é errado no momento oportu-
no. Jesus disse que o Reino pertencia às crianças e aos que fossem semelhantes
a elas. Precisamos deixar nossa postura de pessoas “super espirituais” de lado, e
começar a entender que nosso Deus é um Deus que se alegra. Precisamos celebrar
com nossos familiares, nos alegrar com nossos amigos, proporcionar momentos de
nos alegrar juntos em Deus.
Comemorar, rir e celebrar nos faz bem, pois até mesmo a medicina confirma isso.
Aproveite as datas comemorativas de sua cultura para celebrar de verdade! Pode-
mos transformar o Natal ou Páscoa, por exemplo, em celebrações tremendas. Você

8. WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas: Entendendo como Deus transforma vidas.
E-book (260 p.) Disponível em: https://bityli.com/AXydRb. Acessado em: 11 mai. 2022.

111
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

também pode criar suas celebrações, não fique limitado às já existentes. Use sua
criatividade e promova sinfonias, cantatas, almoços, etc.

A celebração nos dá força para viven-


ciar todas as outras disciplinas.

As disciplinas espirituais nos libertam de coisas que transformaram nossas vidas


em tragédias durante anos. O resultado disso é celebração e se tornará um ciclo de
vida e poder do Espírito Santo em nós!

CONCLUSÃO

Portanto, as disciplinas clássicas da vida espiritual nos conduzem em direção à ri-


queza das profundidades do Espírito. A disciplina nos insere em uma estrutura
com o objetivo de nos trazer liberdade ao aproximar nosso coração do calor e do
fogo da presença de Deus.
Por isso, meditemos nas palavras de Dallas Willard ao lhe perguntarem sobre o
papel das disciplinas na formação espiritual:
Ao falar de "disciplinas" estamos nos referindo a atividades realizadas ou escolhi-
das de maneira consciente, com o propósito de nos capacitar para aquilo que não
conseguimos fazer por esforço direto. As disciplinas espirituais são atividades des-
se tipo, mas especificamente relevantes para o crescimento e a realização na vida
espiritual. São, portanto, fatores importantes na formação espiritual. Constituem
uma parte substancial daquilo com que podemos contribuir para nossa própria for-
mação espiritual.
Se, por exemplo, como acontece com a maioria das pessoas, descubro que não
sou capaz, por meio de esforço direto, de "abençoar os que me amaldiçoam", de
"orar sem cessar", de abandonar a ira ou de não olhar com cobiça ou lascívia, então
é minha responsabilidade encontrar uma forma de me treinar (sempre sob a graça
e orientação divina, como não devemos jamais esquecer) de modo a ser capaz de
fazer aquilo que não consigo simplesmente tentando no momento de necessidade.
"Vigiem e orem para que não caiam em tentação" foi o excelente conselho de Jesus
a seus amigos exaustos, a fim de ajudar seu espírito verdadeiramente disposto na
luta contra a fraqueza de suas capacidades naturais (a "carne") (Mt 26:41). "Não dei-
xe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de noite, para
que você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só então os seus caminhos

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ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
As Disciplinas Espirituais - Ferramentas para uma Vida Profunda em Deus

prosperarão e você será bem-sucedido" (Js 1:8). Esses versículos incorporam a sa-
bedoria das Escrituras de que precisamos tomar certas medidas para receber a assis-
tência espiritual necessária e de que, em geral, essa assistência não será imposta ou
infundida em nós enquanto permanecermos passivos.
A solitude e o silêncio, o jejum e a frugalidade, o estudo e a adoração, o serviço e a
submissão — e outras práticas que cumprem os mesmos propósitos (não existe uma
lista completa) — são, portanto, partes essenciais de qualquer programa confiável de
formação espiritual. Devem constituir uma parcela considerável de nossa vida pri-
vada e de nossas relações com outros do corpo de Cristo. Essas atividades não nos
proporcionam mérito, mas nos permitem receber de Deus aquilo que não seria con-
cedido se permanecêssemos passivos. Não são retidão, mas sim, sabedoria.9

9. WILLARD, Dallas. A Grande Omissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. E-book (99 p.)
Disponível em: https://bit.ly/3LmGHfb. Acessado em: 11 mai. 2022.

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