Entre Noites e Livros - João Pedro Boesing
Entre Noites e Livros - João Pedro Boesing
Entre Noites e Livros - João Pedro Boesing
É com muito pesar que solicito o encerramento do meu novo projeto de pesquisa “Do
átomo a estrutura: análise dos agentes químicos na formação da vida”, por motivos de segurança
pessoal… e pública.
No dia 23/03, aproximadamente às oito e trinta e dois, meus orientandos Nicolas Basine e
Gregório de Oliveira, ambos atualmente matriculados no segundo ano do ensino médio regular,
foram designados a separarem os agentes necessários para o estudo da presente data. É necessário
destacar que os compostos químicos trabalhados não eram tóxicos e muito menos inflamáveis, por
isso acreditei que os dois poderiam realizar a tarefa sem a minha supervisão direta.
Diante disso, assumo a total responsabilidade pelos danos materiais causados pelo incêndio
e a subsequente explosão, além de me comprometer a entender como eles conseguiram fazer as
substâncias reagirem dessa forma, uma vez que, de acordo com os conhecimentos dos meus mais de
trinta anos de carreira, seria quimicamente impossível.
Segue em anexo as duas vias assinadas e carimbadas do formulário de desistência, junto a
renúncia ao financiamento do projeto. Assim que possível encaminharei o reconhecimento de
responsabilidade e a minha solicitação de afastamento por saúde mental para a coordenação.
e se?
CAPÍTULO 18
Eles estão sentados no chão da biblioteca, em um canto afastado e
mais escuro entre as prateleiras. Tomam o mesmo café que tomaram outro
dia no Vênus, porque se é para quebrar uma regra, que quebrem todas logo.
Gregório está um pouco aflito, com medo de ser pego a qualquer
momento, já Nicolas apresenta sua postura relaxada de sempre.
— Meus pais voltam de viagem semana que vem. — Ele assopra a
bebida.
— Você vai conversar com eles sobre aquilo de ficarem muito
tempo longe?
— Eu não queria, mas é por causa da Manu. Não quero que ela
cresça do mesmo jeito que eu.
Gregório assente e parte um pedaço de um cookie, oferecendo outro
para Nicolas.
— Não estou sendo egoísta, né?
— Querer que seus pais estejam presentes não é egoísmo.
— É que eles trabalham tanto justamente para nos dar uma vida
decente, tenho medo de parecer ingrato, sei lá. Não me parece muito justo.
— Ei — Gregório cutuca o joelho dele —, não se trata de justiça. A
gente precisa de dinheiro para viver, é óbvio, mas também precisa se sentir
amado. E eu tenho certeza que eles te amam. Você e a Manu precisam deles
por perto. Não é pedir demais, eles vão entender.
Nicolas está com a cabeça baixa. Ele olha para Gregório.
— Obrigado. — Então começa a sorrir e encosta a cabeça em uma
das prateleiras. — Quem diria que eu estaria sendo confortado logo por
você.
— Depois eu mando o recibo da sessão de terapia.
— Vou te pagar em cookies e café.
Gregório dá de ombros e morde o cookie.
— Por mim, tudo… — O celular de Gregório começa a vibrar no
bolso. Ele tira o aparelho e mostra a tela para Nicolas. — É a segunda vez
que esse número me liga essa semana.
— Que estranho — ele fala mastigando. — Por que não atende?
— Não sei. Eu… não sei. — Ele sabe sim, e tem medo de ser quem
ele pensa.
— O DDD é de São Paulo. Deve ser golpe, ou da cadeia.
— É. — Ele guarda o celular. — Vamos voltar ao assunto dos seus
pais.
CAPÍTULO 19
Conforme a data da disputa se aproxima, os garotos passam a se ver
cada vez mais. Todas as sextas Nicolas leva cookies e café para comerem
escondidos na biblioteca e, em retribuição, Gregório separa os trechos mais
memoráveis de Romeu e Julieta para debaterem enquanto comem.
— As frases soam um pouco como legendas do Facebook. —
Gregório ergue o livro com a boca ainda suja de migalhas. — Se é que
alguém ainda usa isso.
— Shakespeare não tem culpa de as pessoas serem pretensiosas.
— Será que não? — Gregório ergue a sobrancelha, fingindo que
realmente considera a questão.
Em algumas noites, quando Gregório não trabalha e eles podem se
dar ao luxo de ficarem até mais tarde, os estudos fluem tão bem que eles
juntam os materiais e se abrigam na cafeteria próxima ao shopping, onde
Nicolas sempre compra o café.
Eles se acomodam nos bancos estofados, abrem os livros sob a luz
amarelada e passam horas e horas traçando estratégias para a DAIB.
Nicolas quer ter uma postura mais agressiva e tentar responder todas as
perguntas mesmo sem ter certeza da resposta. Já Gregório preza a cautela,
para ele, ainda que ganhem mais pontos por se arriscarem, os perderão nas
respostas erradas. Nunca chegam exatamente a um consenso, mas saber as
opiniões do outro é o suficiente por enquanto.
Muita coisa mudou desde que começaram a estudar juntos. Gregório
não sente mais raiva de Nicolas. Acha ele um pouco irritante, sim, e em
alguns momentos até imaturo, mas está começando a ver outros lados dele.
São pequenos momentos em que encontra fragmentos da personalidade de
Nicolas. Por exemplo, ele sempre sorri ao atender uma ligação da Manu, e
se despede dizendo “se cuida, te amo de montão”, além de, sempre que
pode, mostrar uma nova foto dela em uma peça da escola, tomando café da
manhã ou dormindo em uma posição engraçada. Gregório também
percebeu que ele é péssimo para estudar assuntos que não o interessam.
Nem de longe tem o controle e disciplina de Gregório. Ele não faz questão.
Estuda o suficiente para se sair bem nas avaliações e depois parte
vorazmente para os campos que domina. Normalmente, alguma teoria
muito específica da mecânica quântica ou um artigo sobre as origens da
matemática. Depois ele enche Gregório com todas as informações até
deixá-lo com dor de cabeça, o que é uma grande conquista, já que Gregório
está no top 3 pessoas que gostam de estudar absolutamente qualquer coisa.
Em alguns finais de semana, quando não podem estudar na escola,
eles fazem chamada de vídeo para se concentrarem juntos. Não que algum
dos dois tenha algum problema de concentração, mas assim é mais fácil.
Tudo é mais fácil quando estão perto um do outro.
De vez em quando, Gregório tira os olhos do livro e observa Nicolas
pela tela do celular.
Gosta de vê-lo concentrado. O modo que ele semicerra os olhos para
entender um trecho difícil, o pomo de adão marcado em seu pescoço e o
cabelo caindo no rosto inclinado.
Certa vez, eles são interrompidos por uma voz ao fundo do quarto
de Nicolas:
— Você não vem jantar? — Uma garotinha com o mesmo cabelo
loiro tenta subir na cadeira com ele.
— Manu — ele é silenciado quando ela se apoia no rosto dele para
se equilibrar —, eu estou estudando, depois a gente pode ver desenho
juntos, tudo bem?
A garota olha para a tela do celular e ri.
— É ele? — Nicolas coloca a mão na cintura dela para equilibrá-la.
— Vem, você vai cair. — Ele começa a levantá-la como se estivesse
tirando um gato do colo.
— Seu amigo é bonito mesmo.
— Sai daqui bobona. — Nicolas levanta sorrindo e logo depois há o
som de uma porta sendo trancada. — Desculpa por isso.
Gregório ri e levanta a sobrancelha.
— Então nós somos amigos agora?
— É, eu acho que a gente é sim. Mais ou menos.
— E eu sou bonito?
Nicolas ri e Gregório tenta capturar a imagem na memória
Ele está tão fodido.
CAPÍTULO 20
(20:01) Nicolas
eles chegaram
(20:03) Gregório
Vai dar certo.
(20:03) Nicolas
nao acha melhor eu falar com eles amanha?
devem estar cansados da viagem
(20:03) Gregório
Amanhã você não vai ter coragem.
Anda logo!!!!!!
(20:04) Nicolas
você viu aquele artigo da ScienceDirect que eu te mandei
sobre os tetranêutron?
(20:04) Gregório
Não.
Física é coisa de nerd!
(20:04) Nicolas
eu esqueço que você é descolado
(20:05) Gregório
Descolado e bonito.
E para de me enrolar.
Vai lá.
(20:07) Nicolas
aaaaaaaaaaaaaaa tá bom.
CAPÍTULO 21
Gregório é todo desculpas e perdões.
Não está acostumado a frequentar a casa de amigos, se é que pode
chamar Nicolas disso, então não sabe exatamente como se comportar.
Passa pelo jardim da frente pedindo licença, sobe os degraus até a
porta de mais de dois metros e fica boquiaberto ao ver o interior da casa. A
maior parte da mobília, de uma madeira escura e sólida, parece ser de um
século passado, as paredes são decoradas com quadros pós-modernos e todo
o lugar é iluminado pelo sol que atravessa as longas janelas. É mais do que
ele consegue processar. Há uma piscina interna para os dias frios, uma
externa para o verão, uma quadra de tênis, uma de vôlei de praia, uma trilha
que, de acordo com Nicolas, leva até uma nascente, um galpão de
ferramentas, um estábulo e um campo que Gregório não consegue ver o
fim. Sem falar, é claro, da coleção de carros importados na garagem, os
mais de dez funcionários que andam de um lado para o outro com tesouras
de poda, bandejas, toalhas quentes, e uma releitura da Fontana di Trevi na
ala mais ao norte.
Sério, como é possível alguém morar em um lugar tão grande que
precisa ser dividido por latitude e longitude?
— Sinceramente, eu achei que se algum dia eu entrasse aqui, seria
como empregado — Gregório confessa, depois de finalmente entrar no
quarto de Nicolas. O garoto lança um olhar de “eu não acredito que você
está falando isso”, o que Gregório logo responde com um sorriso que diz “é
mais forte do que eu”.
Nicolas coloca as mochilas deles em um canto, perto de uma
escrivaninha abarrotada de livros, folhas espalhadas, cadernos abertos e
uma centena de canetas, todas pretas. O cômodo em si é maior do que o
apartamento que Gregório divide com o pai, mas é surpreendentemente
vazio. Ao contrário do restante da casa, o estilo é minimalista, como se não
fizesse questão de todo o luxo e conforto que o dinheiro pode proporcionar.
Gregório passa os dedos pelos exemplares e se depara com uma
edição de colecionador de Orgulho e Preconceito. Ele folheia as páginas e
se volta para Nicolas.
— Depois de Romeu e Julieta, você pode ficar obcecado por esse
aqui.
— Não acho que combine muito comigo.
— Como não? Você e o senhor Darcy tem muito em comum. —
Nicolas não parece acreditar. — Estou falando sério. Vai, arruma a postura e
me humilha por ser pobre.
Apesar de querer muito, Nicolas não consegue segurar a risada.
— Então, nessa comparação, você seria Elizabeth Bennet?
— Eu, particularmente, me considero tão inteligente quanto.
— Tão inteligente que não considerou que, se eu for o senhor Darcy,
e você for a Elizabeth, nós estamos perdidamente apaixonados um pelo
outro.
— Mas não vamos admitir até o final do livro — Gregório pontua.
— Exato.
Um silêncio desconfortável se estende pelo quarto.
— Por que você sempre faz isso?
— O quê?
— Essas piadas sobre ser pobre. Tipo, aquela vez eu te chamei de
Harry Potter pobre porque eu sabia que você iria rir, mas você leva as coisas
para outro nível.
— Sei lá. Talvez, meu humor seja esse.
— Se autodepreciar?
— Ser pobre não é ofensa. É uma posição socioeconômica.
— Você me entendeu.
— É que… — Ele olha para Nicolas enquanto tenta formular as
palavras seguintes. — Eu sempre precisei me defender naquele lugar. No
começo, mesmo antes do desastre na aula de literatura, as pessoas já me
tratavam de um jeito diferente. Não o suficiente para ser escancarado, mas
dá para perceber esse tipo de coisa. Um olhar de pena, uma
condescendência na voz. — Ele para um pouco, olha para o chão e coça o
cotovelo, meio tímido. — Então, quando eu mesmo me chamo de pobre e
deixo as pessoas desconfortáveis com isso, é como se eu tomasse um pouco
do poder para mim. Se eu me zoar antes, ninguém vai ter a oportunidade.
— Isso é bem esperto.
— Obrigado.
— E eu lamento. Desculpa por dizer para você ir pro programa do
Luciano Hulk. Não foi legal da minha parte.
— Mas foi engraçado.
— É, foi sim.
Talvez ele esteja se importando muito para alguém que não quer
nada demais.
CAPÍTULO 23
Nicolas está deitado entre lençóis macios e pensamentos agitados.
Não consegue tirar Gregório da cabeça.
Ele provavelmente diria que o tecido do travesseiro custa mais do
que o aluguel do prédio em que ele mora, e provavelmente custa mesmo.
Um feixe de luz escapa pelas cortinas e ilumina o quarto. Ele se
sente confuso. Deveria estar mais animado, esse é o grande dia, finalmente
irá participar da DAIB, finalmente poderá testar seu conhecimento
acadêmico ao máximo e ver os limites da sua capacidade. Isso tudo com
Gregório ao seu lado. Sempre pensou que o derrotaria. Que eles travariam
um duelo acirrado e seriam inimigos para sempre. Mas agora... Só consegue
pensar na boca de Gregório. Em como queria os lábios dele se moldando
aos seus. Em como devem ser quentes e macios.
Talvez queira algo mais, quem sabe. Ainda há muito para se
explorar nessa dinâmica, muito a se descobrir.
E por sorte, Nicolas é muito curioso.
Ele pega o celular na mesa de cabeceira e a luz forte faz seus olhos
doerem. Gregório ainda não o respondeu. Alguma coisa pode ter acontecido
no caminho? Ele pode ter sido assaltado? Pode ter perdido o celular? Não,
provavelmente algo menos dramático. Pode ter esquecido de colocá-lo para
carregar? Possível.
(06:35) Nicolas
oi
tá tudo bem???
desculpa
no colégio eu explico
me desculpe
mil vezes, me desculpe, querido
CAPÍTULO 27
— Eu não acredito que vocês encontraram um jeito de estragar tudo,
de novo. — Maya está com o maxilar tão tensionado que poderia quebrar
um dente.
— Vinte minutos. É tudo o que eu preciso — Nicolas implora para
que Maya enrole o diretor mais alguns minutos. — Eu encontro ele, a gente
volta, vence a competição e eu te dou um presente muito caro.
— Nicolas, um de vocês já sumiu. Se você também for eu vou ter
dois problemas, é literalmente o dobro.
— Eu não vou sumir. É rápido. E sem ele a gente vai ser
desclassificado.
— Você tem dez minutos. É só o que posso fazer.
— Eu vou te fazer uma mulher rica, Maya. — Nicolas manda um
beijo para ela antes de sair correndo.
Ele passa pelos corredores abrindo todas as portas que encontra,
olhando atrás de cada mureta e em todo lugar escuro. Gregório não pode ter
desaparecido assim, tem que ter acontecido alguma coisa. Ele pergunta para
os alunos nos corredores, mas todos dão respostas vagas que o levam para
direções opostas. Ele vai para o jardim, vasculha todos os bancos, volta para
dentro, olha nos banheiros do primeiro andar, e está perto dos do segundo
quando encontra alguém.
Lucas levanta as sobrancelhas quando o vê se aproximando em
passos rápidos.
— Onde ele está, hein? — Nicolas o puxa pela gola. — Se eu
descobrir que você fez alguma coisa com ele eu acabo com você. Está me
entendendo?
— Ei, calma aí. Me solta. — Ele se desvencilha das mãos de
Nicolas. — Você não pode sair por aí segurando as pessoas assim...
— Fala logo — Nicolas o interrompe.
— Eu não sei onde seu namoradinho está. Ele deve, sei lá, ter
encontrado alguém importante? Não fiz nada.
Nicolas não acredita nele, mas não pode fazer nada para obrigá-lo a
falar. Ele o encara com nojo uma última vez e sai bufando. Tenta controlar o
desespero que cresce dentro de si enquanto passa pelos corredores
iluminados, mas é difícil. Está confuso sobre o que sente sobre Gregório, e
agora que ele sumiu... É demais para ele.
Ele procura nos banheiros do segundo andar, olha nos laboratórios
de informática, nos de química, na quadra de vôlei e dá uma olhadinha até
na piscina. Não se lembrava desse lugar ser tão grande.
Quando chega no terceiro andar, já está suado, desesperado. Bate
todas as portas com força, não se importa, só precisa encontrar Gregório.
Ouvir a voz dele, garantir que ele está bem. Chega no fim do corredor e
olha pela janela. O celular está vibrando com mensagens de Maya dizendo
que eles não têm mais tempo, mas ele não se importa mais com a
competição. Percebe que não tem se importado há um bom tempo. Estava
nessa porque era algo importante para Gregório. Porque podia ficar perto
dele, olhar para ele enquanto ele lia, ver a cara dele quando resolvia um
exercício difícil, ouvir as piadas sarcásticas, as provocações.
Porra, ele realmente estava gostando de Gregório.
Uma porta range ao lado de Nicolas. Ele entra e quase tropeça ao
ver Gregório sentado no chão, a cabeça entre as pernas, as mãos cobrindo o
rosto.
— Greg? — Ele se agacha e apoia a mão na perna do garoto. — O
que aconteceu? Você está bem?
Gregório levanta o rosto e Nicolas vê que os olhos dele não estão só
inchados, mas sem o brilho que costumam ter. Algo de muito ruim deve ter
acontecido.
Nicolas se senta no chão ao lado dele e Gregório segura a sua mão.
— Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. — Ele sente uma necessidade
fisiológica de resolver a situação. De descobrir quem fez isso com ele e
destruir a pessoa.
Gregório respira fundo e então conta o que aconteceu. Nicolas
escuta cada palavra atento, sem em nenhum momento soltar da mão dele.
Ele mal consegue acreditar. Se sente mal só de ouvir, não faz ideia
do que Gregório deve estar passando.
— Eu não sei. Quando ela foi embora eu só sentia que precisava
fazer algo para compensar. Precisava tirar as melhores notas, estudar mais,
ler mais, correr mais, vencer mais. Eu acho que não queria aceitar que ela
não ia mais voltar. — Ele fica em silêncio e Nicolas não sabe o que dizer.
— Bem, ela voltou, mas não durou muito.
— E nada disso é culpa sua. Você sabe.
— É...
— Ei — Nicolas chama a atenção para que ele olhe para ele. —
Você é a pessoa mais incrível que eu conheço. Você é bonito, inteligente,
engraçado. Eu não sou capaz de dizer um defeito sequer.
— Você costumava ser bom nisso — Gregório sussurra em um
sorriso discreto. Está funcionando.
— Eu sou bom em muitas coisas, eu admito — o sorriso de
Gregório aumenta um pouco mais —, mas agora eu te conheço de verdade e
posso dizer que você é muito melhor do que eu na maioria. E se ela não
quis ter a oportunidade de te conhecer, ela quem está perdendo.
— Obrigado, isso foi... — De repente, ele se desencosta da parede,
como se tivesse tomado um choque. — A competição! Meu Deus, nós
estamos perdendo a competição.
— Nós não precisamos ir.
— O que? Precisamos, sim.
— Você está bem o suficiente para isso? Se não estiver não se
preocupa, eu te ajudo com o dinheiro para a faculdade.
— Nossa, você... Só vem logo.
CAPÍTULO 28
Quando abrem as portas do auditório, tudo parece diferente. Dois
círculos de luz iluminam os palanques um na frente do outro, pequenas
lâmpadas entre as cadeiras da plateia marcam o caminho até o palco, e a
tensão flutua no ar, sustentada pelo silêncio incomum. Mesmo no escuro,
Gregório consegue ver que Maya os lança um olhar fulminante quando
chegam nos bastidores.
— Andem logo, eu tive que implorar para vocês não serem
desclassificados — ela sussurra e gesticula para que eles se apressem. — E
é bom que esse presente seja muito caro, senhor Nicolas. Não recebo o
suficiente para passar por isso.
— Depois de hoje eu te dou sua própria ilha, se quiser. — A voz de
Nicolas se extingue quando eles passam a cortina e dão de cara com Lucas
e Samuel já posicionados. O diretor os encara com as sobrancelhas juntas e
a testa franzida enquanto ajusta a gravata com uma mão e segura o
microfone com a outra. Eles se apressam e vão para os seus lugares.
— Apesar de alguns imprevistos técnicos — o diretor olha de
relance para eles —, finalmente podemos dar início a mais emocionante e
aguardada rodada da DAIB. A dupla que vencer, terá a honra de levar a
estatueta da competição, que simboliza a nossa estima pelo conhecimento e
pela cultura. — Os rostos mal iluminados na plateia parecem indiferentes
com o anunciado. — E vinte mil reais. De cortesia da instituição, é claro. —
Agora, sim. Palmas e gritos preenchem o ambiente.
Nicolas sorri, deslumbrado pelo momento, mas Gregório tem o
olhar fixo em um ponto no chão, está com a cabeça muito longe dali. Pensa
na conversa com a mãe. No que ela disse sobre não se sentir pertencente à
própria vida, como se estivesse longe enquanto ele e o pai estavam juntos.
A raiva começa a ser substituída por remorso, arrependimento, mágoa. O
que Gregório poderia ter feito para trazê-la para perto? Para mantê-la aqui?
Ele era só uma criança, mas poderia ter demonstrado mais carinho, ter
levado chá todas as noites como fazia com o pai e se despedir com um beijo
de boa noite. Ele poderia ter feito mais.
— Síndrome de Klinefelter. — A voz de Lucas traz Gregório de
volta para a realidade.
— Correto — o diretor diz, em meio a mais palmas. — Dez pontos
para a equipe dois.
— Nós temos que ser mais rápidos — Nicolas sussurra. Gregório
assente, tentando se concentrar no jogo.
— O que estipulou Dmitri Mendeleiev em sua... — Gregório aperta
a companhia e interrompe o homem. É uma pergunta simples, se lembra de
ter lido sobre isso na biblioteca.
Mendeleiev... A resposta estava na ponta da língua de Gregório um
segundo atrás. Ele era um químico, não era? Pelo nome, provavelmente
russo.
— Sim? — o diretor insinua para que ele responda. As luzes
parecem estar ficando mais fortes ou é impressão dele? Gregório afrouxa a
gravata no pescoço. Ele tem certeza de saber a resposta. Só tem que
expressar em palavras.
Ele abre a boca, profere algumas sílabas e gaguejos, mas trava.
— Ele criou a primeira tabela periódica, estipulando que as
propriedades dos elementos são função periódica do número de ordem ou
da carga do núcleo atômico. — Nicolas o salva.
— Correto. Dez pontos para a equipe seis.
— Você está bem? — Nicolas pega na mão dele e abaixa a cabeça,
esperando a resposta.
— Sim. É só que... estou com muita coisa na cabeça. Não é nada. —
Definitivamente é alguma coisa. Ele está com vontade de chorar, bem ali,
na frente de todo mundo, e a porra daquelas luzes estão cada vez mais
fortes.
— Qual foi e em que ano ocorreu o evento que marcou a derrota
definitiva de Napoleão Bonaparte? — Gregório vê Lucas se movimentando,
mas é mais rápido e aperta a campainha novamente.
— Foi a batalha de Waterloo, em mil oitocentos e... — Catorze ou
quinze? Droga, droga, droga. Por que a cabeça dele não está funcionando
direito? — Mil oitocentos e catorze.
— Incorreto. — A palavra desestabiliza Gregório ainda mais. Ele
errou? Faz anos que ele simplesmente não erra nada. Como isso é possível?
— Equipe dois?
— Batalha de Waterloo, mil oitocentos e quinze.
— Correto. Mais cinco pontos para a equipe dois.
E assim a disputa continua. Gregório se prepara para responder,
aperta a campainha, e na hora falha. Nicolas equilibra o jogo acertando
algumas questões em que Gregório se perde, mas a maioria delas são sobre
história, literatura, artes e ciências humanas no geral, o que não é a maior
habilidade de Nicolas. Ele garante pontos suficientes com perguntas de
física e química para deixar a competição par a par, mas ainda assim,
Gregório está afundando o time. Ele não consegue se concentrar. As
palavras da mãe estão gravadas na sua mente:
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