Entre Noites e Livros - João Pedro Boesing

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Entre noites e Livro.


Todos os direitos reservados.
A reprodução total ou em partes deste livro é expressamente
proibida, cabendo ações legais para assegurar todos os direitos do autor.
Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, acontecimentos e
lugares são fruto da imaginação do autor, sendo qualquer coincidência com
a realidade mero acaso.
Capa: Ana Bizuti | @bizzzu.art
Para todos que estão sempre procurando: Olhe para dentro, aí está
você. Isso é o suficiente.
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas
tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o
escuro da noite.
— Clarice Lispector.
ANTES
Gregório gosta de estudar.
Não sabe exatamente como isso começou. Se lembra de ficar
fascinado pelas borboletas que flutuavam no jardim da sua antiga casa.
Depois, pelas joaninhas que andavam pelas folhas. Pelos pássaros que
voavam próximos ao sol. Pelas formigas que conseguiam escalar árvores. E
assim se sucedeu com quase todos os seres vivos e fenômenos naturais que
ele avistava.
O mundo era um lugar novo e bonito, e ele queria entender cada
pedacinho dele. Enchia o pai de perguntas intermináveis e o seguia por
todos os cômodos fazendo anotações e rabiscos em um caderno de folhas
quadriculadas.
Desenhava, escrevia teorias e, principalmente, descrevia
minuciosamente tudo o que via.
E caso você esteja se perguntando. Sim, ele era muito irritante.
Quase insuportável.
— Tem certeza? — O pai passou os dedos pelo título em alto relevo
do livro. Uma versão ilustrada de “A origem das espécies”, de Charles
Darwin. Não parecia algo muito apropriado para uma criança. Era muito
grande, cheio de pó e tinha uma linguagem confusa. Sem falar nas centenas
de notas de rodapé. Não sabia nem se ele mesmo ia entender, quem diria
Gregório? Na idade dele o pai estava o quê? Batendo carrinhos uns nos
outros? Incendiando coisas?
Gregório assentiu.
O pai olhou de relance para a pilha de livros infantis que havia
comprado e suspirou.
— Se é o que você quer — ele concordou, relutante.
E assim Gregório deixou de ouvir histórias sobre príncipes e
princesas na hora de dormir, e começou a acompanhar as aventuras de um
homem que partilhava da mesma curiosidade que a sua.
Um dia, ele também desvendaria o mundo. Era só questão de tempo.
CAPÍTULO 1
— Eu só estou dizendo que se você usa óculos, o mínimo que se
espera é que enxergue. — A voz irritante de Nicolas ecoa em meio às
prateleiras. Eles estão agarrados ao mesmo livro, cada um puxando-o para
mais perto de si.
Gregório quer ler “O que é a vida?”, de Erwin Schrödinger, para a
sua pesquisa sobre a filosofia da biologia, muito mais importante do que o
motivo de Nicolas: completar a sua lista de leitura inútil dos físicos mais
influentes do século XX.
— Que original, me zoar por causa dos meus óculos — ele fala,
dando um sorriso afetado. — Me avise quando for fazer o show de stand
up, não quero que seus pais tenham que passar por esse trauma sozinhos.
— Rá! Eu não vejo meus pais há dois meses, você vai ter que passar
por esse trauma sozinho. — Gregório junta as sobrancelhas, intrigado com
o tom vitorioso de Nicolas. Isso é meio triste. — E eu não estou te zoando
por causa dos óculos, mas por ainda ser cego usando eles.
— Ah, agora você está zoando cegos? Sinceramente, Nicolas. —
Nicolas balbucia e pisca repetidamente. O cabelo loiro despenteado, o
blazer desleixado e o relógio mais caro que ele já viu na vida estão
acompanhados de olhos arregalados e bochechas coradas. Gregório quer rir,
adora quando consegue fazer o garoto perder as palavras.
— Você sabe que não foi isso que eu quis dizer. — Uma veia da
mão dele salta quando puxa o livro com mais força.
— Não sei, não.
— Só solta isso logo. — As palavras saem altas entre sopros de ar.
— Fala baixo, você vai fazer a gente ser expulso da biblioteca —
Gregório sussurra agressivamente —, de novo!
— Foi você que derrubou tudo aquele dia — Nicolas também
sussurra, mas com tanta raiva que as palavras saem praticamente em um
som normal.
— Porque você me empurrou.
— Eu já disse que foi sem querer!
— Muito conveniente para você.
Nicolas vira a cabeça para o lado, inconformado, e revira os olhos
como se não soubesse exatamente do que Gregório está falando. Ele puxa
com mais força e o livro escapa da mão de Gregório.
Nicolas volta o rosto para ele e sorri, se afastando.
— Ei! — Gregório parte para cima.
Nicolas o segura com um braço e mantém o livro o mais alto
possível com o outro. Gregório faz investidas, mas aparentemente Nicolas é
mais forte. Eles ficam indo para frente e para trás conforme disputam o
objeto.
Quem vê de fora pode achar que é uma dança muito esquisita, ou se
já os conhece, só mais um dia normal.
— Para fora. — O bibliotecário está de braços cruzados na ponta do
corredor. Tem o cenho franzido e encara eles com cansaço. É uma cena
peculiar. Gregório com uma mão afastando o rosto de Nicolas e a outra
esticada. Nicolas segurando o tronco de Gregório e o livro na outra
extremidade.
Ao notarem a presença do homem, eles naturalmente se afastam,
como quando crianças são pegas fazendo algo errado e fingem que nada
aconteceu. Gregório limpa as roupas com batidinhas e diz:
— De novo. — Nenhum deles tenta argumentar.
Nicolas deixa o livro no lugar e, trocando olhares recriminatórios,
eles seguem o bibliotecário até a saída.
— Vocês tardam, mas não falham — Maya diz quando está levando
os dois para a coordenação. Ela tem o cabelo ondulado caindo pelos ombros
e parece nova demais para trabalhar ali. Gregório não entende exatamente
qual o cargo dela no colégio. Sabe que ela faz um pouco de tudo e sempre
está de mau humor. Além de sempre estar presente quando eles se metem
em enrascadas, é óbvio. — Eu sei que é pedir muito, mas se na próxima vez
vocês puderem brigar de manhã, eu ficaria muito grata. Nesse horário eu
tomo café com o porteiro. Ele se sente meio sozinho.
— Nós não vamos brigar amanhã — Gregório diz.
— Vocês disseram isso ontem.
— É, mas foi só porque ele… — Maya levanta a mão para que
Nicolas pare de falar.
— Eu tenho um café para tomar. — Ela dá um passo para trás. —
Eu sei que vocês não precisam de sorte, por algum motivo o diretor adora
vocês, mas não surtem quando ele der a notícia.
— O quê? — Gregório pergunta.
— Nada.
— Que notícia? — Eles falam ao mesmo tempo.
— Que bonitinho, vocês estão sincronizados. — Ela começa a andar
na direção oposta. — Até amanhã. De manhã, hein? Por favor.
Eles passam pela sala da secretária, sem nem se darem ao trabalho
de parar, e abrem a porta. Um homem alto, já um pouco grisalho, vestindo
uma camisa social azul está sentado do outro lado da mesa. Quando os vê,
ele sorri e tira os óculos.
— Vieram mais tarde hoje. — Os dois não esperam sequer o homem
terminar de falar para se sentarem nas cadeiras lado a lado. Já é um lugar
familiar. A janela semiaberta do outro lado da sala mostrando as árvores
que ladeiam a entrada. Os livros de empreendedorismo e meditação nas
prateleiras. As canetas clássicas e caríssimas dispostas na mesa. Gregório
reconhece tudo isso como se estivesse em casa.
— Isso é tudo culpa dele, eu… — O diretor interrompe Gregório do
mesmo jeito que Maya fez com Nicolas, como se já soubesse o que vem a
seguir e calculasse que não vale a pena.
— Não precisa. Eu sei. Ele sabotou seu projeto de química; vocês
fizeram outro professor chorar; alguém tirou uma nota maior injustamente;
mais um laboratório incendiado. Eu, sinceramente, não me importo. Na
verdade, evitem destruir os laboratórios, eles são bem caros. E os
professores também, eles já não ganham muito. Mas vamos aproveitar que
já estamos aqui e tratar de outra coisa.
Os dois se inclinam para frente com expectativa.
(Droga, eles estão mesmo sincronizados).
— A DAIB está chegando. — O coração de Gregório acelera ao
ouvir o nome da disputa. Ao seu lado, Nicolas se arruma na cadeira. Todo
ano o colégio promove uma competição acadêmica para mostrar à alta
sociedade (meia dúzia de velhos brancos e mulheres entediadas) como seus
alunos são inteligentes e cheios de cultura. A coisa toda não passa de um
esquema de Marketing disfarçado de tradição para aumentar o número de
ricaços dispostos a gastarem uma fortuna na escola, mas todos os alunos
levam isso muito a sério. O evento sempre está lotado de jornalistas,
políticos e empresários que, em alguns anos, chegaram até a apostar
montantes de dinheiro no resultado. — E esse ano queremos fazer algo
maior. Mais investimento, mais câmeras e o dobro do prêmio.
Gregório arregala os olhos. Seriam vinte mil reais em jogo. Com
esse dinheiro ele poderia ajudar o pai com as contas, ir para a faculdade sem
o menor problema e sobreviver até arranjar outro emprego. Era bom demais
para ser verdade.
Ele se vira para Nicolas. O garoto está olhando para qualquer coisa
na sala, batendo os dedos na perna. Expressão neutra no rosto. É óbvio que
ele não está nem aí para o prêmio. Não precisa de um centavo a mais. A
única intenção de Nicolas na DAIB é vencer essa rixa infantil que os dois
alimentam há anos. Ele provavelmente gasta esse valor em um final de
semana sem nem perceber, e isso enfurece Gregório ainda mais, sabe que
ele está nessa coisa toda por puro ego.
— E a gente…?
— Vocês são a cara da escola. Precisam, pelo menos, dar algumas
palavrinhas no grande anúncio de quinta-feira.
— Juntos? — Nicolas desperta para a realidade.
— É, vocês já estão sempre juntos. — Não era mentira.
Desde que entrou na escola, Gregório tem estampado todas as ações
publicitárias da rede. Não que ele goste de aparecer, odeia. Se pudesse seria
só uma consciência vagando por aí. Mas a terceira cláusula do seu contrato
de bolsista é muito específica em falar sobre o livre uso da sua imagem para
propagandas, posts e o que mais eles quiserem. Se parar para pensar, um
ensaio de fotos e algumas aparições por mês é um preço pequeno em troca
do direito de estudar na mais cara instituição de ensino da américa latina.
Acontece que, apesar de não pagar com dinheiro, ele paga com a
alma. Ao seu lado, em todos os outdoors e anúncios de televisão, está o ser
mais arrogante e inconveniente do mundo: Nicolas Basine. O símbolo de
tudo o que Gregório mais despreza. Ele é filho do maior investidor e
bisneto do fundador do Instituto Igor Basine de Educação, conhecido
também como o lugar em que Gregório está sentado nesse exato momento.
Nicolas tem um dinheiro tão hereditário que remete a gerações e
mais gerações de homens que não tiveram que se esforçar para nada na
vida. Sempre estiveram nas melhores escolas, sempre tiveram os melhores
contatos e os empregos mais renomados. Ele tem um sobrenome que
garante portas abertas para onde ele queira entrar. Basta oferecer aquele
maldito sorriso branco, estender a mão com seu relógio caro naturalmente
encaixado no pulso, e todas as pessoas se movem para abrir lugar.
Nicolas estava acostumado a sempre estar no topo. O mais rico. O
mais inteligente. O melhor.
Isso, até Gregório chegar.
Eles se desentenderam logo no primeiro dia de aula quando Nicolas
espalhou um boato, que pode ou não ser verdade, sobre Gregório ter ficado
pelado no banheiro do segundo andar (sem perguntas, por favor), e como
vingança, Gregório pode, ou não, ter dado uma rasteira nele na aula de
educação física.
Apesar disso, nas primeiras semanas de aula, Gregório ainda possuía
um certo respeito pelo garoto. Gostava das respostas dele nas aulas, talvez
só um pouco prolixas demais, e sempre o via por aí com um livro sobre
mecânica quântica embaixo do braço. Achava curioso que alguém tivesse
um interesse tão específico. Se reconhecia um pouco nele. Mas as coisas
mudaram quando os resultados das primeiras provas chegaram.
Gregório, naturalmente, tinha ficado em primeiro no ranking geral
das médias. Nicolas não lidou bem. Questionou os professores acerca de
cada nota, cada trabalho e atividade que não só ele, mas que também
Gregório havia feito, como se o garoto não merecesse a posição que estava.
Aquilo o irritou. Quem ele era para se achar melhor do que Gregório? Para
duvidar da capacidade dele? Começou a criar um desagrado pelo garoto. Os
comentários nas aulas agora eram irritantes e tendenciosos. Cada
movimento o deixava irritado, ao ponto em que começou a rebate-lo nas
discussões, provar que ele estava errado e mostrar que não era tão bom
quanto pensava. Mas o jogo virou novamente no segundo semestre, quando
Nicolas voltou ao primeiro lugar. Gregório quis socar o sorriso presunçoso
que ele estampava no rosto. Então, escreveu uma crítica tão arrebatadora e
humilhante sobre a releitura de Romeu e Julieta que Nicolas fez para a aula
de produção textual que equilibrou as coisas novamente. Duas pessoas
curtiram o texto no Twitter, e ele tem certeza que Nicolas viu porque
quarenta e cinco minutos depois recebeu uma mensagem de duas páginas de
Nicolas criticando a releitura de O rei Arthur de Gregório para essa mesma
aula.
Esses eram os primeiros lances de uma guerra duradoura.
— Isso não vai dar certo — Gregório diz.
— Sem a mínima chance — Nicolas concorda.
Nico @nicolas_Basine2 para <@Thebiologyguy673>
Seu pequeno miserável! Retire imediatamente essas palavras infiéis. Calúnias, calúnias e
calúnias. Não tens o que é necessário para compreender a profundidade de uma obra tão
avassaladora. Como ousas profanar o texto de Shakespeare? Padeça, covarde! Desejo a ti todo mal e
toda a ira que te cabe, pobre rapaz! Tu és o que há de mau no mundo. O tolo que se faz de sábio és
duas vezes mais tolo!

Greg @Thebiologyguy673 para <@nicolas_Basine2>


Existem coisas que devem morrer junto ao tempo, esses versos são uma delas! Vais chamar o
padre de tolo por rezar a missa? Ou o político por politicar? Cada um faz o que te és natural, e para
mim é óbvio apontar a ignorância deste teu textinho. Perdão se a verdade és dura demais para o teu
pobre coração. Ó, frágil são aqueles que colocam os pés na frente da verdade. Melhore, Nicolas,
melhore! Estás a me entristecer ver-te assim, desesperado e triste. Sei que te és comum a
mediocridade, mas não exijas dos outros o mesmo. Aquele que reconhece seus pontos fracos, já
dispõe de um ponto forte (se és que tens um)!

Luca @lucas_587star para <@nicolas_Basine2> <@Thebiologyguy673>


meu deus pq voces estão falando desse jeito???????????????????
CAPÍTULO 2
Gregório deixa o ambiente calmo e reconfortante da biblioteca com
apenas um copo de café nas mãos, dois livros de bioquímica na mochila,
porque eles parecem legais demais para serem esquecidos rapidamente, e os
fones de ouvido preparados para o barulho ensurdecedor do auditório.
Realmente… o lugar está mais lotado do que nunca. As primeiras
fileiras estão ocupadas por homens de rosto quadrado que cochicham entre
si e usam ternos bem ajustados, os investidores da Instituição. Logo após,
alguns estagiários ansiosos e sorridentes mandados pelos jornais locais e
mais ao fundo os outros alunos.
Como de costume, Gregório vai para trás das longas cortinas
vermelhas que separam o palco dos bastidores. Ele passa por um corredor
apertado e chega ao que ele pode chamar de “camarim”, uma sala
improvisada com um espelho grande, araras de roupas e cabides.
Maya já está lá, a cara fechada, as botas batendo no chão, o pacote
completo.
— Cadê o outro pateta? — ela pergunta como se fosse
responsabilidade de Gregório vigiá-lo.
Ele dá de ombros e se atrapalha para sentar na cadeira de frente para
o espelho. Como ele saberia? Porque todo mundo acha que eles têm esse
tipo de informação um do outro? Eles são rivais, não irmãos gêmeos com
uma conexão inexplicável. Se fossem, aí sim ela poderia perguntar coisas
como “você sente quando ele se machuca?”.
Gregório sente o olhar de Maya queimando a sua nuca.
— É o seguinte, se um dos dois estragar tudo eu vou queimar todos
os livros de vocês. E isso inclui os técnicos e os de poesia também. Todos.
— Ela parece preocupada.
— Você sabe que a gente lê quase tudo pelo kindle, né?
— Isso aqui é importante, Gregório. Eu posso perder meu emprego
se algo der errado, e eu não sou rica como seu amiguinho pra sustentar
meus gatos sem salário.
— Nós não somos amigos. — Ele fica na defensiva mais rápido do
que imaginava.
— Vocês conversam praticamente só um com o outro. O que muda?
Gregório se prepara para responder que passa a maior parte do
tempo evitando Nicolas, quando percebe que, na verdade, eles passam
quase o dia inteiro juntos.
Além de todas as aulas de base comum que compartilham, ambos
fazem vôlei às sextas e produção musical às quintas, porque, obviamente,
estudar teoria musical é o mais perto que eles poderiam chegar de ver
matemática em uma aula de Artes. Eles também gostam da mesma mesa na
biblioteca, a do canto esquerdo, perto da sessão de mitologia greco-romana,
então sempre acabam se encontrando por lá e tendo um pequeno momento
para discutirem. Eles também já participaram de um grupo de pesquisa, mas
o orientador desistiu porque eles aparentemente eram muito perigosos
juntos e deveriam buscar “ajuda profissional”, seja lá o que isso signifique.
Fora isso, só algumas mensagens ocasionais para implicar um com
outro e os dias em que ficam até mais tarde brigando no meio das
prateleiras. Nada demais.
— Nossa, esse lugar está lotado. — Nicolas entra carregando sua
mochila virada para frente. Ele está totalmente descabelado, ou seja, um
pouco mais que o normal.
— Anda logo, garoto.
— Seu secador de mil reais pifou? — Gregório sussurra.
— Quem me dera, foi o bom que queimou. — Por um segundo,
Nicolas parece sorrir enquanto se arruma no espelho. No entanto, como se
percebesse que está dando uma abertura, fecha a cara. — Não te interessa.
— Me escutem. Tem gente muito importante lá fora, então, se não
for muito difícil, e não vai ser porque vocês são meninos inteligentes, peço
que sigam o roteiro que demos. Vocês já sabem disso, mas eu preciso
repetir. Nada de palavrões, palavras negativas ou confiança exacerbada.
Sejam modestos e entusiasmados, façam jus ao rostinho bonito de vocês. —
Ela respira fundo. — E como é óbvio que vocês já decoraram o texto que
passamos, existe alguma dúvida?
— Na verdade... — Gregório começa.
— Algumas observações — Nicolas completa a frase.
— Jesus — ela balança a cabeça negativamente —, eu esqueci como
vocês eram irritantes juntos.
— No terceiro parágrafo, ao invés de dizer “seu futuro só depende
de você”, posso falar “seu futuro está esperando por você”? Eu não acredito
muito em meritocracia e acho que a segunda versão dá um tom mais
animado. — Gregório sorri e o rosto de Maya se fecha aos poucos.
— E eu queria saber, preciso mesmo falar toda essa coisa de legado
e tradição? Soa um pouco... — Nicolas hesita. — Neofacista.
— Puta merda — Maya diz.
Um garoto alto e de olhos pretos quase cai ao entrar na sala. Ele se
recompõe e volta a mexer no amontoado de fios misturados aos microfones
em suas mãos.
— Desculpa, mas nós precisamos instalar essas belezuras agora para
termos tempo de testarmos o som. — Lucas tem a roupa impecável, muito
diferente da de Nicolas, e o cabelo cuidadosamente arrumado.
Ele acena para Gregório, que o cumprimenta com a cabeça.
Maya fecha os olhos e suspira.
— Olha, eu... eu não tenho tempo para isso. Façam o que acharem
melhor, tudo bem? — Nicolas e Gregório comemoram silenciosamente. —
Estou confiando em vocês aqui. Não fodam com tudo.
Ela sai da sala e o garoto avança para o interior do ambiente.
Gregório conhece Lucas desde o segundo ano. Naquela época, ele
ainda tinha a alma um pouco mais pura e tentava ajudar as pessoas.
— Você se acha melhor do que eu? — Foi a primeira coisa que
Lucas disse para ele.
O garoto permanecia em pé o encarando, ansioso. Gregório pensou
por um instante.
— Não? — Mais tarde ele percebeu que, não importa o contexto,
Lucas sempre dá um jeito de se sentir inferior.
— Então por que corrigiu o que falei na aula de estequiometria?
Você queria me humilhar, é isso? Quem você acha que é para…
— Você interrompeu o professor para falar exatamente o que ele
estava explicando, e ainda confundiu o conceito de massa molar com
número de Mol. Eu só quis te parar antes que falassem alguma coisa.
Lucas juntou as sobrancelhas escuras e analisou Gregório por um
instante. Depois de alguns segundos, ele se virou e foi embora sem dizer
mais nada.
Gregório não entendeu o que aconteceu, mas no outro dia, quando
sentou na primeira carteira da terceira fileira, Lucas se sentou ao lado dele.
Ele começou a ser amigável, prestativo e até mesmo a bajular Gregório
durante as aulas. Pouco a pouco os dois se aproximaram e logo passaram a
fazer os trabalhos e atividades juntos. Lucas não era a dupla ideal, mas
Gregório precisava de um parceiro para competir na DAIB e o garoto se
provava competente o suficiente. Normalmente tirava notas acima de nove,
estava na terceira posição do ranking daquele ano, entregava os trabalhos
no prazo e, apesar de se demonstrar irritadiço e inseguro intelectualmente,
era uma pessoa de bom convívio.
Lucas vai para as costas de Nicolas e fixa uma caixa preta na cintura
da calça dele.
— O que aconteceu com os antigos?
— Você gostou? Graças a mim o diretor liberou verba para novos
equipamentos. — Lucas entrou em uma aula de audiovisual no meio do
segundo ano e desde então nutre uma paixão irritante por equipamentos
eletrônicos. — Esses sofrem bem menos interferência, porque, você sabe,
os microfones sem fio mais baratos geram intermodulação, que abre outras
portadoras quando se ligam vários equipamentos ao mesmo tempo, mas
como esses usam o sistema linear…
— Eu sei como as ondas funcionam — Nicolas fala para acabar o
exibicionismo de Lucas.
Ele ajusta o aparelho em Gregório e começa a passagem de som.
— Nós vamos controlar o volume, entoação e liberação do áudio
remotamente, então não precisam mais ficar se preocupando em verificar
esse tipo de coisa, certo? É só fazer a coisa de vocês. — Lucas sorri, sem
graça.
Os garotos assentem e, quando Lucas se certifica de que realmente
não há mais nenhuma dúvida, ele se retira.
Agora eles estão atrás da cortina do palco. A voz do diretor se
expande pelo lugar promovendo as iniciativas fantásticas da escola.
Gregório anda pelo lugar. Isso já está levando mais tempo do que ele
poderia oferecer. Ele ainda precisa concluir uma lista de física três, estudar
um pouco de geometria e terminar de ler Admirável Mundo Novo para a
aula de sociologia de amanhã. Tudo isso antes de ir para o trabalho, é claro.
Ele está cansado de não ter tempo.
Tenta ler partes do livro no celular, mas não consegue se concentrar.
Ele sente cada parte do seu corpo clamando por algo produtivo para
preencher essa lacuna de horário.
— Dá para você sossegar o facho? Está me deixando tonto.
— Isso não vai começar nunca? Eu não posso ficar aqui para
sempre. — Bufando, Gregório se aproxima da cortina e espia a multidão
por uma fresta. Há ainda mais pessoas. A plateia parece ter dobrado desde a
hora que ele chegou. Todos os assentos estão ocupados e alguns alunos
estão sentados nas escadas ou em pé, escorados na parede.
— Eu ainda preciso estudar, não é possível.
— Estude mais tarde. — Ele leva os olhos ao relógio de pulso. —
Ainda são dez e meia.
Gregório o olha com espanto e indignação.
— Já são dez e meia? — ele fala, mais alto do que deveria. — Puta
merda.
— É, não é como se eu também quisesse estar aqui.
— Sério mesmo? E você estaria fazendo o quê? — Nicolas não faz
ideia da disparidade de realidade entre eles. No final do dia Gregório vai
estar se matando em um parque temático para receber um salário mínimo
enquanto Nicolas estará descansando, ou pior ainda, estudando mais do que
ele.
— Eu sei lá, estudando, cuidando da minha própria vida, que tal?
Gregório ri.
— É claro.
— Para de falar como se minha vida fosse uma moleza, você não
sabe de nada sobre mim. — Isso enfurece ainda mais Gregório. Coitadinho,
deve ser muito difícil literalmente ser herdeiro de uma fortuna.
Um som estranho vem da escada, como alguém falando de muito
longe. O diretor e a plateia do outro lado estão em silêncio.
— Eu sei o suficiente pra saber que você tem todo o tempo do
mundo pra fazer o que quiser, enquanto eu preciso me matar para não
conseguir nem metade do que você já tem naturalmente. Eu sou a porra de
um gênio só por estar aqui!
— Você se acha tão melhor do que todo mundo. Deixa eu te contar
uma novidade, garoto. Ninguém se importa com a sua historinha triste.
Todo mundo está muito ocupado para suprir essa sua necessidade de
aprovação. — Ele sorri. — E no final do dia, eu ainda tenho notas
melhores.
Gregório queria poder pular no pescoço dele e destruir aquele rosto
simétrico soco por soco.
— Todo mundo sabe que você só tem notas boas por causa do seu
pai. — Gregório não acredita no que está falando, sabe que não é verdade,
mas quer vencer a qualquer custo. — Você faz isso com tudo, joga dinheiro
até que o problema se resolva.
— Cala a boca. Eu sou inteligente pra caralho, seu merdinha. Eu já
participava de congressos com quinze anos!
— Eu participei de um artigo científico com treze, sou praticamente
um prodígio!
— Nossa, grande coisa, deixaram você pôr os pontos finais.
Parabéns por levar o crédito por outras pessoas. É isso que você vai fazer na
DAIB, não é? Fez dupla com o Lucas pra poder ser carregado.
— Ah, por favor. Eu sou basicamente o time inteiro. Se pudesse
competiria sozinho. Quem está sendo carregado é você com o Samuel, o
garoto é mil vezes melhor do que você.
— Só se for nos sonhos dele. Eu vou fazer todo o trabalho sozinho e
vou ter prazer de te vencer mesmo assim.
Pela primeira vez, eles veem Maya correr. Ela parece furiosa. Grita
algo que eles não entendem e faz um gesto de silêncio com as mãos.
— O quê? — os dois gritam.
É quando Gregório vê a luz verde piscando na cintura de Nicolas.
Agora as coisas se encaixam. O silêncio do outro lado da cortina. O
desespero de Maya.
Os microfones estavam ligados.
Sem pensar, Gregório avança em direção a Nicolas e tenta desligar o
aparelho.
— Não encosta em mim seu esquisito.
— O microfone...
— Saí de perto de mim, agora!
Ele empurra Gregório, que tropeça nos próprios pés, se desequilibra
e por reflexo puxa a camisa de Nicolas junto de si. O outro garoto é pego
desprevenido e também vai para frente. Eles quase caem, mas no último
segundo Gregório consegue se segurar na cortina vermelha. O corpo de
Nicolas está pressionando o seu. Ele levanta a cabeça com os olhos
arregalados. O braço de Gregório treme fazendo força.
Então, escutam um som peculiar. Peças metálicas se rompendo. Um
por um os feches que seguram a cortina se partem e eles caem no palco,
cobertos pelo pano vermelho e o grito da multidão.
Relatório preliminar (e aparentemente final)
Encerramento antecipado.
Carlos Martins<[email protected]> 17:35 (há 0 minutos) para
centro_de_pesquisa_edesenvolvimento.

Prezados, boa tarde!

É com muito pesar que solicito o encerramento do meu novo projeto de pesquisa “Do
átomo a estrutura: análise dos agentes químicos na formação da vida”, por motivos de segurança
pessoal… e pública.
No dia 23/03, aproximadamente às oito e trinta e dois, meus orientandos Nicolas Basine e
Gregório de Oliveira, ambos atualmente matriculados no segundo ano do ensino médio regular,
foram designados a separarem os agentes necessários para o estudo da presente data. É necessário
destacar que os compostos químicos trabalhados não eram tóxicos e muito menos inflamáveis, por
isso acreditei que os dois poderiam realizar a tarefa sem a minha supervisão direta.
Diante disso, assumo a total responsabilidade pelos danos materiais causados pelo incêndio
e a subsequente explosão, além de me comprometer a entender como eles conseguiram fazer as
substâncias reagirem dessa forma, uma vez que, de acordo com os conhecimentos dos meus mais de
trinta anos de carreira, seria quimicamente impossível.
Segue em anexo as duas vias assinadas e carimbadas do formulário de desistência, junto a
renúncia ao financiamento do projeto. Assim que possível encaminharei o reconhecimento de
responsabilidade e a minha solicitação de afastamento por saúde mental para a coordenação.

Att, Carlos Martins.


CAPÍTULO 3
Gregório tem vontade de jogar os óculos no chão e estilhaçar o
vidro com a sola do tênis. Ele já está no banheiro há quinze minutos
tentando consertar a ponte das lentes com fita adesiva. Não tem dinheiro
para comprar um novo, não agora. E não quer que Nicolas o veja assim.
Com certeza vai ser zoado. Ele olha no espelho e vê o cabelo preto, os olhos
um pouco fundos e o óculos frouxo no rosto. Uma vez, em uma discussão,
Nicolas disse que ele parecia o Harry Potter cansado e sem magia. Foi
engraçado, mas ele não quis admitir, então só respondeu que se fosse para
compará-lo a um personagem, que pelo menos fosse de uma escritora que
não é transfóbica. Ele se comprometeu em pensar algo igualmente
engraçado e Gregório mandou ele pentear o cabelo.
No caminho para a diretoria, Gregório nota todos os olhares se
voltando para ele. Se sente um pouco culpado pelo desenrolar das coisas.
Não quer que acreditem que ele se acha melhor do que os outros. Ele não se
acha. Talvez só um pouquinho, em relação a algumas pessoas,
principalmente Nicolas. Só que, no geral, não. Ele é um ótimo estudante,
ama biologia com toda a sua alma e quer dedicar a vida à pesquisa
científica, reconhece que é bom, mas sabe que existem vários tipos de
inteligência e que a escola não é nem de longe um bom parâmetro para
medir isso.
— É, não foi o melhor dos cenários — Nicolas fala quando
Gregório se senta ao seu lado na sala do diretor. Ele levanta o dedo e volta a
argumentar. — Mas poderia ter sido pior, poderíamos ter quebrado algo
caro. Ou um osso. Imagina, teria sido terrível.
— Você me fez quebrar os óculos. — Gregório mexe na armação
frágil. — Eu acho isso uma coisa bem cara.
— E porque você não conserta isso com um feitiço? — Ele junta as
sobrancelhas loiras, se fingindo de desentendido. — Eu lamento, mas foi
você que veio para cima de mim. Talvez seja só karma.
— Eu estava tentando te impedir de ferrar a gente mais ainda. Que
tal?
— Chega — o diretor os interrompe. As linhas de expressão da testa
dele estão ainda mais fundas e Gregório poderia jurar que ele andou
socando alguma coisa. — Eu não preciso nem comentar o quão catastrófico
isso foi, não é? Vocês não só foram completamente infantis naquela
briguinha tola, como também fizeram questão de humilharem vocês e a
instituição em uma tacada só.
— A parte da queda não foi muito bem intencional, e nós não
sabíamos que os microfones estavam…
— Desculpas não fazem a mínima diferença agora, Nicolas. — Ele
suspira. — Seu pai está furioso.
Nesse momento, Nicolas para. Literalmente falando, ele não move
um músculo. Gregório nunca viu o diretor falar dessa forma com ele,
normalmente Nicolas faz piadas e o homem aguenta tudo calado, afinal, ele
é o filho do chefe. No entanto, não foi a mudança de comportamento que
pegou Nicolas de surpresa, existe algo mais.
— Você conseguiu falar com ele?
— Sim, nós estamos em contato desde… o incidente. — Nicolas
balança a cabeça, concordando.
— Entendi.
Ele está chateado?
— Haviam pessoas muito importantes na plateia, sem falar da
mídia. Maya vai entrar em contato para vocês formalizarem o pedido de
desculpas publicamente.
— Só isso? — Gregório pergunta, aliviado por não ser suspenso.
— Vou deixar a punição por conta da Maya também. Vocês estão
merecendo sofrer um pouco.
CAPÍTULO 4
É disso que Gregório precisava. Correr.
Ele corre o mais rápido que consegue, o mais longe que pode. Passa
por arvoredos, desvia de pessoas e pula obstáculos na rua sem parar.
Ele quer dar tudo de si. Quer correr até que a visão fique turva e as
pernas cedam a dor. Quer ficar tão exausto que caia no chão e não consiga
mais andar. Quer que o coração acelere até que não consiga mais respirar.
Quer estar pingando suor no sol quente. Quer sentir a pele pulsar. Quer se
entregar ao máximo. Ele precisa provar que consegue. Ele não é um
fracasso. Não é. Não é. Ele está no controle. Se consegue fazer isso, se
consegue continuar correndo mesmo com a dor na coxa e a falta de fôlego,
ele consegue resolver a situação. Ele pode fazer qualquer coisa. Ele vai
fazer o que for preciso e ninguém vai ficar no caminho. Basta ter disciplina,
autocontrole e foco. Ele não pode relaxar. Não pode parar de correr. Se
parar não vai conseguir voltar. Se parar vão passar por cima dele. Se parar
irá ser um qualquer e isso ele não admite. Ele é muito inteligente, muito
bom para não ser ninguém. Ele não pode ter se esforçado tanto a vida toda
para nada. Ele vai ter sucesso. Ele vai provar que pode. E nada mais
importa.
Quando chega em casa, o sol já está se pondo. Ele anda devagar,
sem conseguir pensar em muita coisa. A panturrilha esquerda dói mais do
que o resto do corpo. Ele enche a garrafa de água e toma em goles grandes,
incessantes. O líquido derrama para fora da boca e encharca o queixo e
camiseta dele. Ele não se importa. Está muito cansado para isso.
O pai de Gregório diz algo, mas ele não consegue entender.
Concorda e segue direto para o quarto.
No celular, há uma mensagem:
(18:31) Lucas
Sinta-se livre para achar alguém melhor.
Estúpido.
Ele digita um número conhecido há muito tempo. Escuta chamando
e suspira quando a ligação cai. Ela nunca vai atender, sabe disso, mas faz
mesmo assim.
Gregório larga o celular e desaba na cama. Não vai descansar. É
uma noite sem sonhos.
CAPÍTULO 5
No dia seguinte, Gregório acorda destruído. As pernas doem, a
coluna dói, a cabeça dói. O mundo parece hostil.
Mas, ainda que seja domingo, precisa estudar.
Ele arruma os matérias, coloca o celular para carregar e começa.
Precisa recuperar tudo o que não leu ontem para não ficar atrasado no
cronograma. Ele sublinha trechos sobre a perseguição da família real russa,
resolve alguns exercícios de aritmética e quando seus olhos já estão
ardendo, é interrompido.
— Você está ocupado? — o pai pergunta, colocando apenas a
cabeça para dentro do quarto. Ele tem o cabelo totalmente preto como o de
Gregório. Também usa óculos e tem o mesmo nariz avantajado. Eles seriam
praticamente idênticos, não fossem pelos olhos e pela altura, que Gregório
puxou da mãe.
— Um pouco — o garoto mente. — Mas pode falar.
— Não, tudo bem. Pode estudar. — Ele faz menção de se retirar.
— Fala — Gregório pede com a voz baixa. Ele sempre se sente
culpado por passar as únicas horas que está em casa trancado no quarto
estudando. Deveria ficar mais com o pai, ele deve se sentir sozinho.
— Você não comeu ontem à noite, fiquei preocupado. — Ele parece
incerto. — E a escola ligou.
Gregório esfrega os olhos e respira profundamente. Ele não tem
tempo nem condições para lidar com isso.
— Você quer me contar o que aconteceu?
— Foi um acidente com o microfone. Não precisa se preocupar,
estou resolvendo tudo.
— Eu sei que está. Mas se você, por acaso, não se sentir bem com o
que aconteceu, ou com qualquer outra coisa, estou aqui para conversar, tudo
bem?
— Obrigado. — Gregório sorri, cansado.
O pai do garoto continua na porta. Ele parece estar ponderando suas
próximas palavras.
— Você tem ligado para ela?
— Não. Não mais — ele mente.
— Entendi. — Ele está surpreso, mas feliz. — É melhor assim.
— Eu sei que é.
Eles fitam um ao outro por longos minutos.
— Vou deixar você estudar. Lembre-se de comer, tudo bem? Boa
noite, te amo.
— Eu também te amo.
Depois disso, Gregório não consegue mais estudar. Ele tem muita
coisa na cabeça. O incidente com Nicolas, o fato de terem ferrado Maya,
Lucas, a mãe...
Ele pega o telefone, abre o contato e liga.
Não mentiu totalmente. Diminuiu a frequência das chamadas e
agora só liga em momentos conturbados, quando precisa voltar para um
lugar conhecido.
A linha toca por poucos segundos antes de cair na caixa postal,
deixando claro que a ligação foi recusada. Não é nenhuma novidade. Em
todo esse tempo, ela só o atendeu uma vez.
Gregório levanta e volta para a escrivaninha.
Ele não seria tomado por esses pensamentos agora. Precisa se
concentrar, tem que estudar para conseguir ser alguém, para conquistar tudo
o que quer. Não pode se deixar levar pelas emoções. Precisa fazer o que tem
que ser feito.
Não pode desistir.
CAPÍTULO 6
Depois que a mãe foi embora, Gregório se sentiu completamente
sozinho. Continuou morando com o pai, continuou indo para a escola e
tendo praticamente a mesma vida, mas lá no fundo, por trás de todos os
paredões e barreiras levantadas para se proteger, ele se sentia abandonado.
Foi isso que aconteceu, ela os abandonou.
Quando perguntavam sobre ela, dava respostas vagas o suficiente
para não levantarem muitos questionamentos, justificava a ausência com
uma viagem a trabalho ou uma indisposição de última hora. Não sabia o
motivo de mentir. Talvez sentisse culpa, ou talvez fosse apenas vergonha.
Medo de admitir que ela realmente foi embora ou de que sentissem pena
dele.
Ele ficou mais próximo do pai. Os dois tinham que se unir para lidar
com a situação e entender o que precisavam fazer daquele momento em
diante. Apesar das muitas conversas que tiveram, o homem nunca chegou a
explicar porque a mãe fez o que fez, e Gregório também nunca teve
coragem de perguntar. Um dia, acordou e ela não estava mais lá. Nenhum
vestígio dela, na verdade. As roupas haviam sumido, os lembretes na porta
da geladeira foram retirados e Gregório não conseguiu achar mais nenhuma
foto em que ela aparecesse com ele. Ainda havia as de quando ela era
jovem. No ensino médio, em festas, na natureza. Ela tinha as bochechas
cheias e sempre sorria.
Toda vez que ela entrava em um lugar era como se o tempo
desacelerasse e nada mais no fundo fosse interessante. Todos paravam o que
estavam fazendo e se concentravam em permanecer sob a atenção dela,
deixá-la alegre e satisfeita. Ela sempre foi o centro, a alma da noite. Era
impossível não notá-la.
Ela era uma estrela.
Mas… por um tempo, era como se ela tivesse morrido. Teria sido
mais fácil assim. Uma história mais fácil de contar. Era algo que ele poderia
entender. Poderia seguir em frente e superar. Não tem como negociar com a
morte. Não haveria nada que ele poderia ter feito para impedir, para ser o
suficiente e fazer com que ela ficasse. Tudo o que sobrou foi uma
inquietação, um espaço vazio no seu peito que precisava ser preenchido a
qualquer custo.
Certo dia, conseguiu o número de telefone da mãe. Passou dias
esperando uma brecha para conseguir roubar a agenda do pai e ainda mais
dias para que ele saísse de casa. Quando ligou, quase não reconheceu a voz
que ouviu. Não fazia tanto tempo, mas estava diferente. Mais raivosa, triste,
fraca.
— Você não deveria ter ligado. — Foi tudo o que ela disse antes de
desligar.
Desde então, quase como em um ritual, Gregório tem ligado para
ela, na esperança de escutar aquela voz novamente, na esperança que ela
queira falar com ele e talvez possa explicar porque foi embora.
Na esperança de, talvez, preencher esse vazio no seu peito.
CAPÍTULO 7
Gregório não consegue dormir há dias. Ele lê alguns trechos de uns
dos livros que pegou na biblioteca, como faz toda noite, coloca os óculos na
mesa de cabeceira, apaga as luzes e se deita. No entanto, ao invés de
descansar, fica lá de olhos bem abertos, encarando a escuridão até desistir
de dormir e levantar para estudar.
Não ter mais uma dupla para a DAIB tão perto do fim das inscrições
está deixando ele louco. O ocorrido com Nicolas, que Gregório descobriu
também estar sem sua dupla, se espalhou pela escola e, bem, digamos que
as pessoas não gostam de quem se autoproclama um prodígio e rebaixa a
inteligência dos outros.
— Escuta, eu até entraria na sua dupla, mas todo mundo vai pensar
que a gente é amigo e não vai pegar muito bem — disse a quinta pessoa que
Gregório conversou. Sinceramente, ele já havia descido tanto o nível que
estava apelando para pessoas que nem considera inteligentes. Estava
praticamente fazendo um favor para elas oferecendo a parceria.
Conforme Gregório passa por páginas e mais páginas de livros, as
do calendário também se modificam. O último dia de junho chega e com ele
o compromisso que Gregório desviava o olhar em sua agenda. A gravação
do pedido de desculpa para a página da escola. O diretor comete o erro
primordial de não aprender com os próprios erros. É uma equação bem
simples, Gregório + Nicolas = Desastre iminente.
Ele tem certeza de que hoje não será diferente.
A filmagem foi agendada para o primeiro período da manhã, de
forma que nenhum dos dois perderia mais do que uma aula. Dessa vez,
foram passadas instruções ainda mais rigorosas de imagem. Eles deveriam
usar branco, olharem diretamente para a lente da câmera e parecerem
“emocionados e arrependidos pelo mal entendido”, como bons garotos que
foram pegos com a boca na botija.
Ao chegar na sala preparada, Gregório percebe pelos gritos de Maya
que está atrasado.
— Desculpa, eu não tinha nenhuma camiseta passada e meu ferro
demora uma eternidade para esquentar. — O olhar de Maya não amolece.
— O quê? Acha que estou muito arrumado? Se você quiser eu posso
amassar de novo para entrar no personagem “garotinho pobre e cem por
cento humilde que fez bobagem”.
Afinal, era esse o papel que estava desempenhando ali. Ia contra
alguns valores morais, mas o que ele poderia fazer?
— Não começa. — Ela esfrega os olhos. — Eu estou fodida. Anda,
senta do lado dele para passarmos os takes de teste logo.
— Eu acho que você parece pobre o suficiente — Nicolas diz.
— Obrigado. — Gregório se dá conta do que acabou de ouvir. —
Você não pode falar esse tipo de coisa.
Lucas entra na sala segurando uma enorme lâmpada redonda.
Gregório e ele se encaram. Ele olha para Nicolas, que olha de volta.
Ninguém fala nada.
O clima acabou de ficar cinco vezes mais pesado.
Ele ajusta a lâmpada em uma das softbox e passa a mexer na
câmera.
— Certo, podem começar.
Nicolas é o primeiro a falar.
— Oi, vocês provavelmente ficaram sabendo dos garotos que
caíram no palco na abertura da DAIB. Bem, somos nós. — Ele gesticula um
“oi” e Gregório sorri sem jeito. — E por mais que aquilo tenha sido cômico,
foi, sem sombra de dúvidas, um acidente lastimável.
— É, na verdade, é uma história engraçada. Nós não estávamos
realmente discutindo e nem falando de pessoas reais. Claro, o Lucas e o
Samuel existem, mas nada do que falamos sobre eles era verdadeiro. Tudo
não passava de uma brincadeira de muito mal gosto que costumamos ter.
— E nos arrependemos profundamente — Nicolas acrescenta.
Eles continuam a se desculpar pelo “mal entendido” e a usam os
jargões preparados pela equipe de relações públicas da escola. Nicolas
conta como as últimas três gerações dos seus antepassados também
estudaram lá e que ele sempre se comprometeu em ser o melhor aluno da
sala. Nesse momento, ele é interrompido por Gregório que afirma que, na
verdade, ele é o melhor aluno da sala. O garoto teve que novamente contar
a sua triste e fascinante história de como, mesmo estudando em uma escola
com poucas condições, conseguiu ser aprovado no processo seletivo da
instituição e “agora conta com o melhor time de professores e as salas mais
equipadas do estado!”.
— Eu acho que isso deve ser o suficiente para cobrir parte do
estrago — Maya diz, enquanto encara Nicolas se espreguiçando.
— Finalmente, estou morrendo de fome — ele diz.
— E eu preciso estudar, já são nove e meia — Gregório reclama.
— Você não consegue passar um minuto sem falar que precisa
estudar? É seu único traço de personalidade ou o quê?
— Pelo menos o meu único traço de personalidade vem de mim, o
seu é basicamente herança da sua família.
Nicolas revira os olhos.
— E caso não tenha entendido, não estou falando só de dinheiro, é a
calvície também.
— Meu deus, fiquem quietos. Ainda não acabou. Isso foi o que o
diretor mandou vocês fazerem para apagar o incêndio, agora vem a punição
de verdade. — Maya se vira para Lucas. — Você trouxe?
Lucas segue até um armário branco encostado na parede mais
distante e volta com uma caixa transparente cheia de fios embolados. Ele
entrega a caixa para Gregório que se desequilibra com o peso
extraordinariamente grande.
— É só desembolar esses fios velhos? — Gregório acredita que se
os astecas usassem telefone a cabo, o fio provavelmente estaria ali.
— Molezinha. — Nicolas se balança nas pontas do pé.
— Não se precipitem. Venham. — Maya sai da sala.
Eles seguem pelos corredores iluminados da escola, cruzando com
poucos alunos no caminho. O lugar sempre fica praticamente vazio nessa
parte da manhã.
Gregório aperta o passo e alcança Lucas.
— Oi. — Ele procura as melhores palavras — Desculpa pelo o que
eu disse. Você sabe que não é verdade. Eu só estava tentando ganhar a
discussão.
Ele não olha para Gregório.
— Pelo visto você ganhou.
—Eu não quis dizer aquilo.
— Mas disse, e agora não tem mais volta. Não perca seu tempo, já
tenho outra dupla para a DAIB.
— Quem?
— Não te interessa, Gregório.
Maya para em frente a uma antiga porta. Gregório já ouviu
comentários sobre o que ela abrigava em seu interior. Um escritório de
lavagem de dinheiro abandonado, uma sala de reuniões de uma sociedade
secreta ou o pior de todos, um quarto onde o diretor trazia seus encontros
misteriosos.
— Mas como aquilo aconteceu? — Gregório finalmente se
pergunta.
— O quê? — diz Lucas.
— Como os microfones ligaram sozinhos?
— Não é óbvio? Vocês devem ter apertado o botão sem querer.
— Não, eu tenho certeza que não apertamos nada.
— Você deve estar enganado.
Ele não estava enganado. Tinha certeza absoluta, nenhum dos dois
passou perto de mexer nos aparelhos. Uma semente de dúvida surge na
cabeça de Gregório. A única possibilidade seria alguém tê-los acionado...
remotamente.
— Você — ele finalmente disse. — Você não teria feito isso, não é?
— Seja mais específico.
— Aquele dia disse que iriam controlar a liberação de áudio e
algumas outras coisas remotamente, e que não precisaríamos nos preocupar.
E aí, de repente, o nosso áudio é transmitido.
— Gregório, eu não sei do que você está falando. — Ele está
sorrindo.
As engrenagens na cabeça de Gregório começam a rodar. Ele estaria
animado se a situação não fosse terrível.
— Você, por acaso, conseguia ouvir o que nós falávamos?
— Não — ele diz, seco.
Gregório o encara bem. Não acredita nele.
— Estava ouvindo nossa conversa, se sentiu ofendido e decidiu nos
expor? Mas o que você ganha com isso? Nós não fomos suspensos nem
nada. A única diferença é que todos nos acham babacas prepotentes.
— Talvez vocês sejam babacas prepotentes.
— E agora nós estamos sem dupla e ninguém vai querer se envolver
nessa história. Deixando o caminho totalmente livre para quem quiser...
Lucas continua em silêncio.
— Por que não competir comigo? Suas chances seriam
exorbitantemente maiores.
— Você sabia que eu também sou muito inteligente, Gregório? Não
preciso de você.
— É claro que é inteligente, sempre esteve em terceiro no ranking
de notas, só atrás de Nicolas e eu.
— E eu não pretendo ficar na sombra de vocês por muito tempo.
— Espera, é isso? — Ele não pode acreditar. — Está tentando nos
tirar da jogada por causa do seu ego ferido?
— Eu não tenho um ego ferido — ele diz, com ressentimento na
voz.
Gregório ri.
— Você é patético.
— Você pode me achar patético, mas pelo menos eu tenho uma
dupla e vou vencer a DAIB. O que você tem? Uma mãe alcoólatra?
Gregório quer muito jogá-lo no chão, chutá-lo até que ele cuspa
sangue e depois dizer que sim, ele é muito mais inteligente do que Lucas e
todos sabem disso, sempre souberam. Mas ao invés disso ele apenas engole
o ódio e aperta o polegar na mão.
Maya testa chave por chave na maçaneta e se irrita a cada tentativa
frustrada. Ela enfia os pequenos pedaços de metal com força na fechadura e
balança, como se isso fosse adiantar alguma coisa.
— Isso. — Ela consegue abrir, somente na quinta vez.
Uma densa nuvem de pó sai da sala. Todos passam pela porta
tomando cuidado onde pisam.
Nicolas tosse com a mão na boca.
Maya segue adiante em busca do interruptor enquanto os outros
tentam identificar do que se trata aquilo. Quando as luzes se acendem, eles
percebem.
— Talvez vocês não se lembrem, mas esse é o antigo laboratório de
informática. E ninguém entra aqui há muito, muito tempo — Maya explica,
passando o dedo por uma grossa camada de sujeira em uma mesa.
— O que aconteceu? A equipe de limpeza tem medo de entrar aqui à
noite? — Uma lâmpada pisca sobre a cabeça de Nicolas. — Eu teria.
— Ah sim, limpeza. — Maya esfrega as mãos animada. — Que bom
que você me lembrou. Depois que terminarem com os cabos, o diretor
solicitou que vocês revitalizem esse lugar.
— O quê? — Nicolas e Gregório dizem, ao mesmo tempo. Eles têm
que parar de fazer isso toda hora.
— Ele acha que pode ser uma boa medida disciplinar e eu concordei
porque vocês me foderam aquele dia, então é justo. É isso ou uma
suspensão.
Nicolas ri, desacreditado.
— E como vocês esperam que a gente limpe isso? — Nicolas diz.
Quase no mesmo momento, duas senhoras de meia idade colocam baldes
com água, panos, vassouras e luvas na entrada da porta.
— Bem a tempo. Se vocês se apressarem terminam antes da
primeira aula do período da tarde.
Assim que os dois saem, Gregório chuta uma das vassouras com
toda a força que tem. Ele não costuma ter esse tipo de reação explosiva,
mas nos últimos dias as coisas têm estado difíceis e ele já não se importa
mais em parecer uma pessoa centrada. Queria estar chutando a cabeça de
Lucas por ter falado daquele jeito da mãe dele.
— Uau. — Nicolas ri, espantado. — O que aquela vassoura te fez
que eu não consegui fazer todos esses anos?
— Não é a vassoura. — Gregório está tentando controlar a
respiração — Foi o Lucas. Ele ligou os microfones.
Nicolas fica estático. Seus olhos andam de um lado para o outro.
— Me passa a outra vassoura, por favor — Nicolas pede.
Ele pega a vassoura das mãos dele, a coloca cuidadosamente no
chão e inspira profundamente. Logo depois, também a chuta com toda a
força.
— Filho da puta — ele grita. — Por quê?
— Pra nos tirar no caminho. Agora todo mundo nos odeia por
aparentemente somos pessoas terríveis — ele fala as últimas fazendo aspas
com as mãos. — E ninguém quer ser nossa dupla.
— É um plano meio medíocre.
— Não é à toa que ele nunca conseguiu nos alcançar no ranking.
Os dois dão uma risadinha de satisfação.
— Eu me recuso a deixá-lo vencer. Ele não merece.
— Sem nenhum de nós na competição o máximo que podemos
esperar é que o Samuel seja um empecilho, mas você sabe, ele não é tão...
esperto.
Nicolas concorda com a cabeça.
Os dois ficam em silêncio, fitando um ao outro. Parecem considerar
uma hipótese maluca.
— E se...
— Não.
— Você nem me deixou falar o que era.
— Você ia sugerir que competíssemos juntos.
— Eu ia falar para irmos almoçar e deixarmos isso para depois da
aula.
— Maya iria nos matar — Gregório diz. — E depois da aula tenho
que trabalhar.
Nicolas assente.
— Tá, eu ia sugerir que a gente se juntasse pra vencer isso — ele
confessa. — Eu sei que você quer ganhar, mais do que tudo na vida, porque
eu também quero.
— Isso não daria certo, olha para você, olha para mim. A gente não
se suporta.
— E vamos deixar o Lucas vencer?
Gregório não responde.
— Essa ideia me agrada tanto quando agrada você, mas é a única
saída que vejo. Não sei com você, mas não tem mais ninguém em um raio
de 5km que queira estar na minha dupla.
Gregório pensa por mais um minuto, sua cabeça calculando todas as
possibilidades.
— Mas e o prêmio? Nós dividiríamos?
— Você pode ficar com o prêmio. Eu só quero vencer.
— Como você diz isso com tanta naturalidade? São vinte mil reais.
— Você aceita ou não?
Gregório sente que está a um passo de tomar uma decisão que vai
ferrá-lo pelas próximas semanas.
INFORMATIVO
A disputa acadêmica Igor Basine (DAIB) é uma competição anual
realizada desde o surgimento da Instituição, em 1930. As duplas se
enfrentam em rodadas eliminatórias de cinco perguntas interdisciplinares.
Se responder corretamente, a equipe ganha 10 pontos, se errar, os
adversários podem ganhar 5, caso acertem.
As duas últimas equipes participam do turno final, que possui dez
perguntas. O objetivo da competição é apresentar para a comunidade
aqueles que são verdadeiramente os alunos mais excepcionais e brilhantes
do colégio. Os vencedores, além de toda a honra do reconhecimento
público, são presenteados com o troféu de honra ao mérito feito
inteiramente de bronze e uma quantia simbólica, a ser determinada no ano
da disputa.
A seguir, algumas das principais regras:
1. Serão aceitas apenas inscrições de alunos do terceiro (último)
ano do ensino médio.
2. Os participantes precisam estar pelo menos, ou acima, na
posição 50 do ranking geral de médias do ano.
3. Faltas ou atrasos implicam imediata eliminação.
4. Os participantes cedem seus direitos de imagem à Instituição
pelo prazo de 5 (cinco) anos, mesmo depois de formados.
5. Condutas consideradas antidesportivas também implicam
eliminação.
CAPÍTULO 8
Gregório aprendeu a gostar da solidão.
Está acostumado a estudar sozinho, comer sozinho, ir para casa
sozinho. Ele gosta de passar dias sem falar com ninguém. Dar voltas por aí,
passar o dedo pela lombada dos livros e tomar café. Ele nunca precisou de
ninguém e gosta disso. Pode fazer o que quiser, quando quiser. Pode
observar os pássaros, pode rir de coisas bobas e falar em voz alta para
lembrar o som da própria voz. É importante para ele.
Dividir os estudos, um momento tão especial, é como deixar um
estranho entrar em um lugar particular que só Gregório tinha acesso até
então. Um lugar que ele podia se desligar e focar nas palavras e números
sem se preocupar com nada, algo quase religioso.
Ele não acredita em nenhum deus, mas acredita em preservar
pequenas partes de si, e acredita que deve manter coisas tão íntimas,
intocadas, inexploradas, e que as mostrar para alguém só leva a ruína.
Eles estão na biblioteca da escola. As pernas lado a lado no canto
mais esquerdo, longe do ar condicionado. Lá fora, a chuva dá ritmo à
cidade. Tudo parece ameno, calmo.
— Certo, nós temos uma hora para estudarmos probabilidade e
análise combinatória, trinta minutos para exercícios, é óbvio, uma hora e
meia para química orgânica e mais quarenta e cinco minutos para a revisão.
— Gregório destampa um marcador e sublinha as palavras em sua agenda.
— Está acompanhando?
— Infelizmente. — Nicolas massageia o espaço entre as
sobrancelhas. — A gente não pode escolher uma coisa e focar só nela?
Gregório levanta a cabeça e olha diretamente para Nicolas.
— Não. — Se eles vão fazer isso, vai ser de acordo com as regras
dele.
Nicolas levanta as mãos em um gesto de trégua.
— E tira os pés da cadeira. É contra as regras da biblioteca.
— Ninguém está vendo.
— Eu estou.
Nicolas deixa todo o ar dos pulmões sair de uma vez.
— Deve ser difícil morar com você. — Ele tira os pés da cadeira e
os larga no chão com mais força do que o necessário. Um pequeno ato de
rebeldia para irritar o outro garoto.
— Obrigado.
Gregório respira fundo e tenta se concentrar. É difícil sem os fones
de ouvido. Ele continua ouvindo as pessoas andando pelo lugar,
conversando baixo, e vê Nicolas focado no livro de matemática. O cabelo
loiro bagunçado caindo por sobre os olhos e os lábios se mexendo
levemente. Ele lê trechos em uma voz baixa, mas muito persistente, como
um zumbido, uma mosca chata que se recusa a ir embora.
Gregório decide ignorar, ele também tem que fazer sua parte para
que se deem minimamente bem e consigam vencer a disputa. Ele levanta o
livro e começa a passar os olhos pelas linhas.
A teoria da probabilidade determina a chance de um evento ocorrer
em detrimento ao número de eventos possíveis. Logo, se você quiser saber
a chance de um dado cair virado para um determinado lado, é só dividir o
número de casos favoráveis pelo número de casos possíveis, ou seja, um
sexto para um dado de seis...
O som de uma embalagem plástica sendo retorcida interrompe
Gregório. Nicolas está mascando um chiclete da mesma forma que um
personagem de desenho infantil faria: De boca aberta e com toda a
intensidade e barulho do mundo.
—Você não pode fazer isso aqui. — Gregório adverte.
— Ler?
— Mascar chiclete, tonto.
— Ah — ele levanta as sobrancelhas —, esse lugar é cheio de
regras, não é?
— É assim que as coisas são. — Gregório dá de ombros. Não é
culpa dele. São as regras.
— É. São sim.
Nicolas joga a goma de mascar fora e o silêncio recai sob a mesa. A
chuva lá fora para e alguns minutos se passam. O estudo flui até Gregório
ser interrompido por um murmúrio de Nicolas. Ele olha para o garoto que
sorri.
— O que foi?
— Nada, é que eu gosto muito de probabilidade.
Gregório assente e volta para a leitura.
— Ok, você não acha que algum dia a gente vai conseguir prever o
futuro? — Ele escorregou pela cadeira e agora deixa o livro apoiado no
peito enquanto gesticula. — Tipo, não é tão difícil. Basta saber as variáveis
e calcular a probabilidade. Ainda que seja uma aproximação, eu acho que
dá para chegar perto.
— Isso é mesmo importante agora? — Eles têm apenas mais vinte
minutos para estudar análise combinatória e esse tipo de distração é
exatamente o que eles não precisam.
— Se bem que o princípio da incerteza diz que é impossível calcular
a velocidade e a posição de uma partícula ao mesmo tempo, mas...
— Tudo bem. Entendi — Gregório o corta e levanta o livro. —
Podemos?
— É verdade. OK. Você está certo.
Nicolas volta para a própria leitura e logo em seguida Gregório faz o
mesmo.
— Mas não precisamos tratar de grandezas tão variáveis quanto
partículas, se a gente puder, por exemplo, medir com precisão a pressão,
temperatura, correntes de ar e umidade, já dá para prever parcialmente o
clima.
Nicolas, com toda certeza, é a pessoa mais insuportável do mundo.
Gregório abaixa o livro e desiste.
— Isso é li-te-ral-men-te o que os meteorologistas fazem. Você
alguma vez na vida já viu um jornal? — Gregório está de saco cheio. — E
como você consegue tirar notas tão boas tendo a concentração de uma
criança de cinco anos? É impossível. De verdade, eu não consigo entender.
— Você está implicando com tudo o que eu faço. Qual o seu plano?
Passar a tarde toda simplesmente lendo? Sem discutir nada do conteúdo?
Ótimo método, as crianças do século XIX devem adorar.
— Se chama autocontrole, Nicolas. A capacidade de se conter e
focar em um objetivo maior, de seguir regras. Mas eu realmente nunca
esperei que você entendesse isso.
— Meu Deus, qual o seu problema? Isso não são regras. Você está
pegando no meu pé. Você sempre pegou, na verdade. O que foi que eu te
fiz?
— Ah, tenha dó. Foi você que começou tudo isso.
— Se eu bem me lembro não fui eu que te dei uma rasteira na aula
de educação física.
Gregório se lembra perfeitamente. Foi a primeira vez que
verdadeiramente sentiu ódio de alguém. A primeira vez que se sentiu feliz
por prejudicar Nicolas. A primeira vez que brigaram e a primeira que ele o
irritou.
— Foi um acidente.
— Eu acredito.
— Eu tive meus motivos — Gregório retruca baixinho.
— Quais exatamente?
CAPÍTULO 9
Talvez a chuva fosse um mal presságio, mas Gregório não
acreditava nesse tipo de coisa.
A camisa fora perfeitamente passada meia hora atrás, a calça social
cuidadosamente dobrada sobre a cama e os sapatos limpos com exímio
cuidado. Ele faria esse dia ser um sucesso.
Estava apenas de cueca, o corpo franzino na frente do espelho, se
questionando o que mais poderia mudar para causar uma boa impressão.
Sabia que apenas os filhos das pessoas mais importantes do estado, talvez
do país, estudam nesse colégio. Esperava que se suas roupas estivessem
bem ajustadas, a postura ereta e a voz firme e confiante, achassem que ele
naturalmente fazia parte daquele ciclo.
No entanto, enquanto fechava os últimos botões da camisa, uma
preocupação perpassou seus olhos. Uma semente que mudaria as coisas dali
para frente, que determinaria o restante do seu ensino médio e todas as
coisas em volta dele.
E se realmente não fosse bom o suficiente para estar ali?
Não no sentido social, pessoas ricas só estão em uma posição mais
privilegiada por desigualdade histórica, mas e se ele não fosse tão
inteligente quanto os outros alunos? Estava prestes a entrar em um campo
dominado por pessoas que estudaram a vida inteira nas melhores escolas,
com todo o tempo do mundo dedicado exclusivamente para isso, com os
melhores materiais e professores particulares.
Não. Iria se sair bem. Sempre saia.
Terminou de arrumar a camisa e pegou a edição ilustrada de A
origem das espécies na mesa de cabeceira. Na noite anterior recebera um e-
mail do professor de literatura solicitando que levassem um livro
importante para a sua história enquanto indivíduo. Aquela era a escolha
mais óbvia. O início do interesse de Gregório por biologia, a primeira
fagulha de curiosidade que o jogou de cabeça no mundo acadêmico e o fez
se apaixonar pelo conhecimento.
Ele guardou o livro na mochila, verificou se pegou todos os
materiais e se despediu do pai. A chuva já havia diminuído o suficiente e
agora não passava de uma garoa. Sim, daria tudo certo. Girou a chave na
maçaneta e deu os primeiros passos pela calçada de concreto. Gregório
adorava observar como a chuva mexe os micros ecossistemas do seu
bairro. As gotas brilhando nas teias de aranha. Os pequenos insetos se
escondendo embaixo de folhas. Tudo era lindo, se visto de perto o
suficiente. Gregório deu mais um passo confiante antes de se desequilibrar.
Um choque gelado correu da perna até sua espinha, deixando-o subitamente
mais desperto. Ao perceber que afundou até o joelho em uma poça de água
suja, estremeceu pensando em todas as doenças e infecções que poderia
pegar com isso. Não tinha tempo para voltar para casa. Levantou a perna
pingando e continuou andando, inabalável. Teria que ser rápido em se
limpar na escola, mas ele daria um jeito. Tudo correria bem.
Ele entrou no ônibus, passou a roleta e se sentou no fundo. Esperou
longos quarenta minutos até descer no ponto mais próximo ao centro.
Normalmente passaria esse tempo lendo, mas não conseguiu se concentrar
com toda essa ansiedade correndo nas veias.
Quando chegou nos clássicos portões de ferro da instituição, logo
percebeu que precisava se esconder. Árvores verdes e grandes ladeavam a
entrada principal. As densas nuvens escuras se abriram para um sol
glorioso, iluminando centenas de estudantes completamente impecáveis.
Alguns descendo de BMWs e carros blindados, outros em pequenos grupos
rindo de histórias sobre as férias na Europa e falando sobre a programação
do fim de semana. Gregório não poderia ser visto assim. Não queria ser
associado à sujeira logo no primeiro dia. Isso não o deixaria em paz.
Ele é pobre, é óbvio que também é sujo. O que? Não é preconceito,
estou só falando. Cadê seu senso de humor?
Aghr. Não, sem chance.
Ele se esgueirou pela rua lateral e andou alguns metros até encontrar
uma cerca viva que parecia consideravelmente fácil de passar. Se espremeu
o melhor que pôde e depois de algumas cócegas no braço e arranhões no
rosto, estava dentro.
Respirou aliviado depois de olhar para os lados e constatar que não
havia ninguém por perto. Limpou a camisa do jeito que pôde e abriu a
primeira porta que encontrou. Passou por um corredor escuro e empoeirado.
Subiu um lance de escadas usando a lanterna do celular e viu uma aranha
muito legal no canto do teto. Tirou uma foto para vê-la melhor mais tarde e
voltou para a missão: encontrar um banheiro. Abriu outra porta no topo do
patamar e quase foi visto por duas garotas de mãos dadas. Esperou elas se
afastarem e saiu para o corredor. Se sentia um invasor, apesar de,
tecnicamente, estudar ali.
Entrou no banheiro e de repente se assustou com a imagem que viu
no espelho. Não, não, não. Ele se apressou para lavar os arranhões do rosto.
Na melhor das hipóteses nada infeccionaria e ele só precisaria inventar
alguma história sobre como se machucou escalando uma árvore ou coisa do
tipo. Se bem que Gregório nunca escalaria uma árvore. Ele adora árvores,
mas no conforto do chão firme sob seus pés.
Ele tirou os sapatos e desabotoou as calças. Deixou o tecido
escorregar pelas suas pernas e colocou a parte molhada embaixo do vento
quente do secador de mãos.
Anda logo, anda logo.
Era uma cena engraçada. Gregório, no auge dos seus sessenta
quilos, apenas de óculos, cueca e meias, implorando para que uma máquina
trabalhasse mais rápido. Estava tão imerso no barulho do aparelho e tão
determinado a sair logo dessa situação que quase deu um grito quando viu
um garoto alto e loiro no reflexo do espelho.
Ele olhou Gregório de cima a baixo. Estático. Um sorriso já se
formando nos cantos dos lábios.
— Eu posso explicar.
— Não precisa. Acho que já vi demais. — Ele balançou a cabeça
negativamente e saiu rindo.
Gregório sentiu raiva dele. Não tinha motivo, mas estava tão
humilhado que precisava personificar todos esses sentimentos ruins. Talvez
aquela fosse sua origem de vilão. Ele poderia muito bem sair por aí e fazer
jovens ricos sofrerem…
Mas isso daria muito trabalho e ele estava atrasado.
Gregório implorou ao universo que sua calça não estivesse fedendo,
respirou fundo, e foi para a aula. Ao entrar na sala, a maioria das pessoas
estava em pé, colocando os livros que trouxeram na mesa no centro. Ele
abriu a mochila, colocou o seu e deu uma volta para ver os outros títulos. O
ladrão de raios (muito bom); O grande Gatsby (Um pouco superestimado,
mas bem escrito); O morro dos ventos uivantes (lento e vagaroso) e um
pequeno livro verde que acabara de ser colocado. As tragédias de
Shakespeare. No instante que se esticou para pegar o livro, sua mão
encontrou a de alguém. Dedos longos, um relógio de alça marrom no braço.
Gregório levantou os olhos, seguindo do pulso ao rosto do garoto. Cabelos
loiros por cortar, nariz longo e um sorriso fácil no rosto. Gregório se
lembrava dessa figura. Era tudo tão familiar… Ele apertou os olhos e então
percebeu. Estava óbvio esse tempo todo.
— Desculpa, pode olhar. Fui eu quem trouxe — o garoto do
banheiro disse, afastando a própria mão.
Gregório assentiu com a cabeça baixa e começou a folhear o livro
com uma pressa infinita. Nada suspeito.
— Eu não te conheço de algum lugar? — o garoto perguntou.
— Não, é meu primeiro dia aqui. — Gregório devolveu o livro a
pilha em que ele estava. — Você deve ter se confundido.
— Você gostou? — Quando Gregório fez cara de confuso, ele
continuou — Do livro.
— Ah, sim. Parece interessante, mas não é exatamente meu gênero
favorito.
— Pelo menos não é “A origem das espécies”, que tipo de maluco
traz um livro desses? — O garoto estava sendo simpático, apesar de isso
não melhorar as coisas.
— É… — Gregório ri, sem graça.
O garoto pegou o livro e começou a passar as páginas.
— Meu nome é Nicolas, a propósito. Qual o… — Ele parou e olhou
com reconhecimento para Gregório. — Você não estava…
— Não. — Gregório se afastou, já vendo o sorriso se formando no
rosto dele.
— Você é o maluco do banheiro! — Todos ao redor pararam o que
estavam fazendo e passaram a prestar atenção em Nicolas. — É você.
Estava todo sujo, só de meia e cueca no segundo andar.
— Por que você estava sem roupa? — Uma garota de cabelo preto e
longo perguntou, se aproximando.
— Eu… eu estava me limpando.
— Ai meu Deus. Você não conseguiu se segurar?
— Não! — Ela riu e Nicolas se conteve para não fazer o mesmo,
então acabou transformando tudo em uma tosse. — Quero dizer, não foi
isso que aconteceu.
— Por que você estava pelado? — Outro garoto perguntou.
— Eu não estava.
— Às vezes, ele pode ter algum “problema”. Meu primo já fez isso
uma vez. — A garota respondeu ao garoto. — A gente teve que internar ele,
estava ficando violento.
— Eu não tenho nenhum “problema”. Eu sou bem inteligente, tá
bom? — Os alunos olharam estranho para ele. — Não que quem tenha não
seja inteligente. É você quem está sendo ofensiva! Não pode falar esse tipo
de coisa. É desumanizante.
— Ei, calma cara — Nicolas falou.
— Ele também está ficando violento… — Alguém cochicha por trás
de Gregório.
— Ele não é o bolsista? Eu falei no que deixar essa gente entrar ia
dar… — Outra voz.
— Eu mereço estar aqui. — Gregório se vira para eles com todo seu
sistema de autodefesa colapsando. — Nenhum de vocês é melhor do que
eu. — Todos erguem a sobrancelha quando ele levanta o tom e se afasta até
a porta — NENHUM!
Ele sai da sala e, de repente, por ter surtado um pouquinho, mas
principalmente por culpa de Nicolas, Gregório tinha a fama de maluco,
peladão e egocêntrico.
Só um deles era verdade (não era peladão).

Não era do feitio de Gregório agir por impulso.


Ele sempre acreditou que sentimentos eram algo a ser domado, a
razão sob a emoção, a lógica acima de tudo. No entanto, também não era
comum ter pessoas olhando de soslaio e fazendo comentários quando ele
passava pelo longo corredor branco da instituição. Era desconfortável,
inquietante. Ele sabia que estavam falando sobre como ele gritou com uma
pobre garota na aula de literatura após descobrirem que ele estava pelado no
banheiro do segundo andar. E provavelmente estavam inventando coisas
muito piores do que realmente aconteceu. Sério, qual o problema de se
trocar em um banheiro? Ele não era um tarado nem nada do tipo por fazer
isso.
Essa era uma situação atípica, portanto, pela lógica, exigia uma
resposta igualmente atípica e nada racional. Era nisso que ele preferia
acreditar.
Quando o relógio atingiu as dez e quarenta e cinco, Gregório
colocou o short, calçou o tênis vermelho e subiu os degraus até a quadra
poliesportiva.
Os alunos que estavam se alongando se viraram quando o viram. Ele
não diminuiu o passo, seguiu reto, guardou a mochila e tentou não pensar
em nada enquanto esticava os dedos para alcançar os próprios pés.
Gregório virou o rosto quando viu Nicolas subindo as escadas e
acenando para ele. O que ele queria? Piorar as coisas ainda mais?
Quando o professor disse que eles deveriam dar cinco voltas na
pista, ele fez questão de manter o ritmo um pouco atrás dos outros. Poderia
facilmente ultrapassá-los e terminar a coisa toda na metade do tempo, mas
assim ficaria muito óbvio.
Ele esperou Nicolas se afastar dos outros e acelerou o passo, ficando
a alguns metros dele. Então, quando eles viraram na segunda curva e a
visão do professor foi obstruída por uma das árvores que ambientavam o
lugar, Gregório colocou o pé por entre as pernas em movimento do garoto.
O corpo de Nicolas se projetou no ar em uma parábola. Ele esticou
os braços para se proteger e caiu rolando no gramado lateral. Gregório se
desequilibrou um pouco, tropeçou nos próprios pés, mas conseguiu
continuar no mesmo ritmo sem nenhuma dificuldade. Ele olhou para trás e
viu Nicolas grunhindo de dor. De repente, se sentiu culpado. Pensou em
voltar para ajudá-lo, mas sabia que os outros já estavam se aproximando.
Nicolas se ergueu em um dos braços e olhou nos olhos de Gregório.
Ele sabia.
Então Gregório correu.
CAPÍTULO 10
— E eles ficaram me chamando de tarado por seis meses! —
Gregório dá um tapa no ombro de Nicolas. — Para de rir.
— Eu estou me lembrando da cena. — Ele continua rindo enquanto
fala. — Tenho que dizer, você tinha belas pernas.
— Cala a boca — Gregório fala, apesar dos cantos dos seus lábios
começarem a se curvarem em um sorriso. Olhando assim as coisas não
parecem tão ruins quanto realmente foram. — Mas sério, foi horrível por
um tempo. Eu estava em uma escola nova, sem nenhum amigo e com um
monte de gente muito mais importante do que eu implicando comigo o dia
inteiro. Era muito frustrante não ser levado a sério, não importando o que eu
fizesse. Eu só… sei lá, queria que me vissem como um igual.
Nicolas parou de rir. Ele abaixou os olhos parecendo culpado e
voltou a fitar Gregório, mas agora com as sobrancelhas um pouco mais
próximas.
— Desculpa por ter começado isso. Deve ter sido uma barra virar o
alvo logo no primeiro dia. Eu não… não foi minha intenção. Eu estava
nervoso e acabei falando mais alto do que deveria.
— Por quê?
— O quê?
— Por que estava nervoso? A gente nem se conhecia.
— Não era nada. Estava só tentando quebrar o gelo.
— Se você não quiser resolver as coisas, por mim tudo bem. Ainda
dá tempo de arranjar outra dupla para a DAIB.
— Você está blefando.
Gregório afasta a cadeira e se levanta.
— Eu pareço estar blefando? — Eles sustentam o olhar um do outro
pelo o que parecem horas. Gregório observa as orelhas de Nicolas ficarem
vermelhas e o maxilar se tensionar quando ele desiste:
— Eu te achava bonitinho. — Ele fala todas as palavras de uma vez,
como se juntas tivessem um efeito menor.
Gregório rapidamente puxa a cadeira e volta a se sentar, inclinando
o corpo para frente e ficando mais próximo dele.
— O quê? — Ele fala mais alto do que deveria. Não se importa, isso
é hilário.
— Eu não vou repetir.
— Me achava bonitinho? — Gregório coloca as mãos atrás da nuca
e degusta as palavras com um sorriso de orelha a orelha. — O que foi que te
fez gostar de mim? Uma coisa de cada vez, por favor.
— Pensando melhor, realmente, ainda dá tempo de arranjar outra
dupla para a DAIB. — Nicolas o ameaça.
— Tá, parei. — Gregório vê como Nicolas está envergonhado por
ter admitido isso. Talvez ele não seja uma pessoa totalmente terrível, afinal.
— Desculpa por ter te feito tropeçar na aula de educação física. Não foi
nada legal.
— Não mesmo. — Nicolas concorda com a cabeça. — Eu ainda
manco quando tenho que subir ladeiras.
Gregório revira os olhos com exagero. Depois daquele dia ele tinha
coletado todo tipo de informação sobre Nicolas até descobrir que ele tinha
apenas ralado o joelho.
— Então podemos ter uma trégua? — Gregório propõe. — Pelo
menos até vencermos a DAIB?
— É justo.
Eles assentem e, depois que passa a ser desconfortável estarem
olhando um para o outro, voltam aos seus respectivos livros.
Gregório levanta os olhos e vê o cabelo loiro de Nicolas caindo sob
a testa. Repara no pescoço longo do garoto e no pequeno arco em cima dos
lábios. Também achava ele bonitinho.
E provavelmente vai se arrepender de dar esse passo.
— Tá, me fala sobre esse princípio da incerteza.
— Isso! — Nicolas abaixa o livro alegremente.
CAPÍTULO 11
Assim que Gregório atravessa a porta, ele sabe. Pode ser a forma
como os outros o olham, as risadinhas baixas e constrangidas, ou a roda de
colegas que escutam Lucas falar. Ele sabe que é o tema da conversa e que
definitivamente não estão tecendo elogios.
Ele ignora e senta no lugar habitual, a segunda carteira da fileira do
meio, ao lado de Nicolas, é óbvio. Estão nessa posição desde o primeiro
ano, quando perceberam que é muito mais fácil brigar sem incomodar os
professores se estiverem próximos. Parece contraditório ficar tão perto do
seu arqui-inimigo durante todas as aulas, mas eles não são mais tão
inimigos assim, pelo menos temporariamente, e as coisas sempre
funcionaram dessa forma, então tudo bem.
Durante a manhã, Gregório percebe que Lucas está mais agitado do
que de costume. Normalmente, ele tem a mania irritante de tentar responder
às perguntas dos professores, não conseguir formular a frase direito e ficar
estalando os dedos e falando "haammm" até Gregório ou Nicolas
responderem de vez e ele dizer “Isso! Era exatamente isso que eu ia dizer”,
mesmo que todo mundo saiba que ele não ia conseguir falar coisa nenhuma.
No entanto, hoje ele não está sendo tão patético e está se ocupando
em cochichar coisas aparentemente muito engraçadas para outros colegas,
porque eles não param de rir.
— Posso saber qual a piada? — o professor de literatura pergunta ao
ser interrompido pela milésima vez.
Lucas se vira para ele com o rosto iluminado. Ele pigarreia antes de
falar:
— A gente estava lembrando uma história engraçada.
— Compartilhe com a turma.
Lucas sorri, como se essa fosse a oportunidade que ele estava
esperando o tempo todo.
— É… — ele fala entre pequenas pausas para rir. — No primeiro
ano o Gregório achou que seria uma boa ideia ficar pelado no banheiro do
segundo andar, e era tipo, o primeiro dia de aula. Depois ele simplesmente
surtou e deu um showzinho quando perguntaram se ele era pervertido.
— E não é? — Alguém no fundo grita. Gregório não consegue
identificar quem é, mas todos riem.
O professor aperta os olhos e se vira para ele em busca de alguma
explicação. Os comentários na sala se multiplicam e, de repente, todos estão
muito ocupados zoando Gregório.
De novo.
Ele desliza e se afunda na cadeira, querendo sumir dali. Todo aquele
incômodo do primeiro ano volta de uma vez, como uma pancada na nuca.
Ele pensa em sair correndo, em se jogar pela janela ou assumir o papel de
maníaco e agredir Lucas, mas todas as possibilidades implicam
consequências que só piorariam as coisas.
Ele quer ligar para mãe. Ouvir o som reconfortante da chamada em
espera até cair na caixa postal. Precisa resolver a situação.
— Tudo bem, chega. Vamos continuar a aula.
— Se ele não quer ser chamado de pervertido, que tal não sair
pelado por aí? — A voz de Lucas se sobressai e todos se olham, trocando
risadinhas novamente.
O rosto de Gregório está queimando em vermelho vivo.
— Chega — o professor reitera.
— Será que é algum tipo de fetiche esquisito? — Lucas instiga e
reacende os comentários.
Gregório vê Nicolas respirar fundo antes de se levantar da cadeira.
Ele arruma o uniforme por puro simbolismo, já que a roupa sempre está
larga demais ou amassada, e se volta para Lucas.
— Eu inventei tudo.
— O quê? — Lucas pergunta.
— O quê? — Gregório repete com ainda mais ênfase.
— Isso não aconteceu. Ele não estava pelado no banheiro. Eu queria
perturbar o Gregório e inventei tudo. Deu certo, mas já passou, então parem
de encher a porra do saco. — Nicolas olha de relance para Gregório e
possivelmente sorri. — E Lucas, que tal passar mais tempo estudando ao
invés de tentar diminuir os outros? Todo mundo sabe que você sempre teve
inveja do Gregório por ele estar empatado comigo em primeiro no Ranking
geral. Para de ser patético, você não é ninguém para falar dos outros.
A sala toda fica paralisada por um momento, até irromper em gritos
e aplausos.
— Se vocês não pararem, os dois vão para fora. E o resto vai perder
nota, pode ser? Eu não estou brincando. Chega!
Nicolas volta ao seu lugar e Gregório tenta recobrar os sentidos. O
que foi que acabou de acontecer? Ele estava defendendo Gregório? Por que
faria isso? Sim, eles estão em trégua, mas isso é um passo muito grande. Ele
está mentindo. Está se prejudicando para que o deixem em paz. Qual o
objetivo?
Gregório passa o restante da aula olhando discretamente para
Nicolas. Não consegue entender e não consegue pensar em outra coisa.
Toda vez que Nicolas mexe milimetricamente a cabeça, Gregório se volta
para a frente e disfarça. Por que está tão nervoso?
Depois, quando restam poucas pessoas na sala, ele se aproxima de
Nicolas.
— Obrigado, aquilo foi bem… — Gregório olha para os lados
procurando por alguma palavra positiva, mas não tão positiva, porque eles
ainda são rivais. — Decente da sua parte.
— Eu prezo pelo cavalheirismo. — Nicolas assente, tirando sarro.
Ele obviamente está no controle da situação e vai usar isso para deixar
Gregório o mais desconfortável possível.
Gregório comprime os lábios.
— Obrigado.
— De nada — Nicolas recita as palavras de um jeito irritante.
— Nos vemos na biblioteca, até. — Gregório sai inquieto.
Qual é a desse cara?
CAPÍTULO 12
No dia seguinte, Nicolas não aparece.
Nenhum aviso, nenhuma mensagem, nada.
CAPÍTULO 13
Como é possível o mundo parecer tão diferente depois de só alguns
passos?
Gregório sempre sente um aperto no peito ao ver o abismo entre a
riqueza dos alunos da Instituição e a miséria das pessoas fora dela. Como
pode alguém ter o suficiente para comprar um jato e ir para a Europa duas
vezes por ano enquanto outros estão lutando pelo o que deveria ser direito
de todos? Quando passa os portões de ferro da Instituição é como se
entrasse em outro Brasil, um lugar fácil, brilhante e leve. Mas assim que o
Sol se põe e ele coloca os pés do lado de fora, se lembra de que ele não é, e
nunca será, um deles.

Nuvens se contorcem no céu enquanto Gregório dá largas passadas


no concreto frio. Já é um caminho familiar, passa por ele todo dia, sempre
atrasado.
O vento faz com que seu cabelo deslize até os olhos. Ele tira os
óculos e o mundo se torna um borrão irreconhecível. O azul e roxo do céu
parece ainda mais intenso quando um relâmpago os corta ao meio. Um,
dois, três segundos até o som do trovão arrepiar os pelos da sua nuca. Em
um instante, Gregório está correndo, com os óculos balançando livremente
no bolso do casaco. Gotas cheias de vida despencam por onde ele passa. A
chuva toma conta da avenida e as pessoas buscam refúgios em quitandas e
cafés que agora estão recolhendo as cadeiras.
O cheiro de terra molhada é interrompido pelo ar gelado quando as
portas automáticas do shopping finalmente se abrem. Gregório limpa os
óculos na parte interna da camisa, que por sorte ainda está seca, e sacode os
fios negros entrelaçados em sua testa. Ele bate os dedos no corrimão da
escada rolante até avistar a característica luz violeta do Vênus Park. Sente o
cheiro das castanhas doces que vendem ali perto e ouve máquinas de jogos
anunciando vencedores.
O lugar é repleto de brinquedos com temática espacial. Estrelas de
papel. Exércitos de crianças. Nave alienígenas. Esse tipo de coisa.
Gregório segue para a sala dos funcionários. O lugar é apertado e
abafado, como se fosse projetado para expulsá-lo e incentivar que passe o
menor tempo possível lá dentro. Ele guarda a mochila no armário e coloca a
camiseta cheia de foguetes, constelações e homenzinhos verdes.
Gregório vai direto para a bilheteria, uma sala não muito espaçosa,
repleta de prêmios, brinquedos, chicletes e balas que as crianças trocam
pelos pontos conquistados nos jogos.
Ele troca os bilhetes de uma garota por um pacote cheio de balinhas
interestelares. Atrás dela, garotos se divertem nas camas elásticas.
— Como eu sei que elas são realmente do espaço? — Ela usa marias
chuquinhas rosa, tem um dos dentes da frente faltando e várias sardas
embaixo dos olhos e no nariz.
— Que ótima pergunta — ele diz, se lembrando do treinamento de
quando foi contratado, nove meses atrás. Indica com o dedo um adesivo
azul escuro com letras brancas quase descolado da embalagem. — Esse
aqui é o selo de autenticação da NASA. Eles garantem que esses doces são
realmente do espaço.
A garota não parece convencida.
— Parece mais um adesivo bobo que você colou. — Gregório se
segura para não rir. Ele adora crianças que não têm medo de falar o que
pensam.
Ele olha para os lados e verifica se não há ninguém por perto.
— Eu não recebo o suficiente — sussurra.
— Ei, eu achei esses adesivos na impressora, posso pegar alguns
para mim? Eles são bem legais — Nicolas diz, entrando na sala e colando
os adesivos no uniforme do Vênus que está usando.
Espera…
Nicolas…
Como?
— O que você... esconde isso! — Gregório toma a cartela da mão
dele e os joga para debaixo da bancada.
A garotinha cruza os braços e ergue as sobrancelhas.
Gregório suspira fundo e desiste.
— Esse vai ser nosso segredo — ele passa um saco de balinhas extra
para ela —, tudo bem?
— Esses aqui também são do espaço? — Ela faz aspas com os
dedos.
— Se você não for embora vou dizer que roubou esses doces e você
nunca mais vai ver seus pais.
A menina levanta as duas mãos em gesto de paz, como quem diz
“Calma aí”, e se retira.
— Não sabia que se dava bem com crianças.
Quando Gregório vira, vê cabelos loiros molhados, um relógio caro
e os olhos rápidos de Nicolas. Ele está pálido, os lábios muito roxos,
provavelmente por ter tomado chuva. Está usando o uniforme da empresa e
tem adesivos azuis colados no peito.
— Como você chegou aqui? — Ele está começando a ficar com dor
de cabeça. — E como arranjou um uniforme?
— Você gostou? Ele brilha. — Ele dá uma voltinha rindo. — Achei
maneiro.
Gregório desfere um olhar impaciente.
— Ah, sim, a história. — Ele se recosta na parede e junta as mãos
em um triângulo. — Minha irmã discutiu com uma colega na escola e meus
pais não estão na cidade, então caiu tudo nas minhas costas, como sempre.
Mas quando estava voltando para casa, eu pensei: “Droga, ele
provavelmente acha que eu fui totalmente irresponsável por simplesmente
não aparecer”.
— Você foi.
— Deixa eu terminar de falar.
Ele insiste.
— Então eu comecei a pensar em formas de compensar isso. Eu
poderia ir até a sua casa para estudarmos, mas você não estaria lá. Onde
você estaria? Isso, no seu trabalho. Então eu passei em uma cafeteria e
comprei biscoitos e café com achocolatado. — Ele aponta para a sacola de
papel na mesa. — Pelo menos eu acho que é o tipo de coisa que você bebe.
Depois eu vim para cá. Tcharam.
Ele sacode as mãos como um mágico patético depois de um truque e
dá aquele sorriso bobo e inocente de sempre.
Gregório suspira tão fundo, mas tão fundo que não sabia que era
possível ir tão longe.
— Primeiro, sim, é o tipo de coisa que eu bebo, e segundo, você ao
menos sabe como funciona um emprego?
— É óbvio que eu sei como funciona um emprego — Nicola diz,
com o orgulho ofendido. — A gente pode fazer um apanhado geral do
conteúdo quando as coisas estiverem menos movimentadas e o grosso da
coisa no seu intervalo.
— Eu só tenho quinze minutos de intervalo, não dá tempo para
revisar nada. E essa historinha ainda não explica como você está aqui e
porque está de uniforme.
— Calma aí, você só tem quinze minutos de intervalo por 6 horas de
trabalho? Isso é desumano. — Gregório dá de ombros com a surpresa dele.
— E sobre o uniforme, eu estava molhado, então o seu Marcos disse que eu
poderia usar se eu quisesse.
— O senhor Marcos, o coordenador?
— É, ele é amigo do meu pai. E eu acho que por hoje eu meio que
sou seu chefe, então pega leve. — Ele gesticula exageradamente, tentando
compensar o embaralhamento com as palavras. — Não que eu vá te demitir
ou coisa do tipo, não sei se posso fazer isso. Provavelmente sim, mas isso
não vem ao caso.
— Você o quê? Como conseguiu falar com ele? Ele só disse, “Vá e
faça o que quiser?”. — Bem, isso explicaria como Nicolas entrou no espaço
restrito a funcionários.
— Não. — Ele reflete por um segundo. — É foi tipo isso. Ele me
conhece há bastante tempo e, quando eu disse que precisava falar com você,
ele não se incomodou.
Como a vida de gente rica pode ser tão simples?
— Você não poderia só ter pedido pra ele me liberar?
Nicolas levanta as sobrancelhas.
— É. — Ele concorda com a cabeça. — Realmente... Eu
definitivamente pensei nisso. É só que... Bem, agora já estamos aqui.
Depois de alguns minutos simplesmente estático, Gregório deixa os
ombros caírem e aceita o absurdo da situação. O que ele poderia fazer,
afinal? Por mais que odeie admitir, existem coisas que nem ele consegue
mudar.
Essa é a forma totalmente desajustada e fora da realidade de Nicolas
compensar ter o deixado na mão. Ele está tentando.
Nas horas seguintes Gregório continua em pé no balcão de
atendimento, tamborilando os dedos na superfície lisa e bocejando sempre
que sente vontade. Enquanto isso, Nicolas explora os prêmios e brinquedos
da sala. Ele ativa tudo o que é possível. Faz luzes piscarem, bonecas
falarem e, quando Gregório parece distraído atendendo outra criança, cheira
os chicletes de fruta.
As horas passam lentamente pela noite. O movimento está fraco.
Poucas pessoas saem de casa em dia de chuva. O único som no Vênus é o
de máquinas elétricas em período de espera e o ruído ameno de conversas
distantes que sempre está presente em lugares como o shopping.
Os garotos aproveitam o tempo vago para estudarem o conteúdo
perdido. Na verdade, apenas Nicolas. Gregório já havia estudado isso na
hora correta, como fez questão de ressaltar, e agora estava lendo A origem
das espécies pela décima primeira vez. Ele apoia o livro embaixo do balcão
e vira as páginas com tranquilidade. Chega quase a estar entediado, já leu os
mesmos trechos tantas vezes que já sabe quase de cor. Em contrapartida,
Nicolas aperta os olhos e volta várias páginas do livro de física.
— Vai, me fala — Gregório deixa o livro se fechar e se vira para
Nicolas —, em que parte você está?
Nicolas desliza o livro de física para baixo e revela a pequena capa
verde que Gregório rapidamente reconhece: As tragédias de Shakespeare.
Inesperado, mas não surpreendente.
— Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro
nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável; e assim, Romeu, se não se
chamasse Romeu, conservaria essa cara perfeição que conserva sem o
título.
— Você só pode estar brincando. — Qual o objetivo de ele ir até o
trabalho de Gregório para estudarem, e não estudar?
— Eu já sei esse conteúdo. — Nicolas faz corpo mole, exalando
preguiça. — E é Romeu e Julieta, você não pode ser contra isso.
Nicolas passa o livro para Gregório.
— Chama-me somente amor e serei de novo batizado. Daqui para
diante, jamais serei Romeu — Gregório recita o trecho seguinte.
Nicolas olha nos olhos dele por mais tempo do que o normal antes
de sorrir.
— Quem não te conhece te acharia adorável falando assim.
O sangue de Gregório sobe todo para a cabeça, deixando-o com uma
sensação estranha no estômago.
Ele faz a sensação se dispersar provocando Nicolas.
— Você me acha adorável?
Nicolas revira os olhos.
— Por que está lendo algo que já decorou? — Gregório pergunta,
mesmo entendendo a coisa toda. Ele mesmo adora reler seus livros
favoritos. — Sei que você já sabe as falas de cór.
— Eu não sei. Gosto de ler coisas que já li. É seguro, não tem
nenhuma grande surpresa que vá me deixar triste. E eu sempre consigo
pegar alguma coisa nova em Romeu e Julieta.
— Por exemplo?
— Eu tenho pensado sobre esse trecho que você leu. — Nicolas
pega o livro de volta. — Quando Julieta pede para que ele abandone o
próprio nome, ela está pedindo para que ele deixe para trás tudo que sempre
atribuíram a ele. É quase como pedir para que ele seja outra pessoa.
— Continue. — Ele entende o conceito, mas quer ver até onde
Nicolas pode chegar.
— Quando damos nome a algo, o reconhecemos de fato como algo,
atribuímos substância. Antes disso, não passa de uma forma, algo não
identificado, borrado, vago. Temos nomes porque sem eles não sabemos
delimitar quem somos. Eles nos separam do resto das coisas.
Gregório considera o que acabou de ouvir.
— Tudo bem, eu vou ler Romeu e Julieta. — Nicolas sorri. Ele está
há anos, indiretamente, tentando convencer Gregório.
— É meio injusto, né? Outras pessoas escolherem nossos nomes.
— Por que acha isso? — Gregório não sabe por que quer tanto ouvi-
lo falar.
— Às vezes eu sinto que algumas pessoas não me enxergam direito.
— Ele comprime os lábios e fita Gregório. Não sabe até onde pode ir. — E
quem é esse Nicolas que eles veem? Não fui eu que escolhi esse nome, e
muito menos tudo o que vem junto com ele.
— Dinheiro, oportunidades e respeito? Deve ser muito difícil
mesmo. — Gregório não deveria dizer esse tipo de coisa quando Nicolas
está se abrindo, mas não consegue suportar ver alguém reclamando por ter
tudo o que ele mataria para ter.
— Esquece. Eu não… deixa pra lá. — Ele abaixa os olhos. Gregório
esperava que ele fosse contra atacar como sempre, mas parece chateado.
Isso desarma Gregório.
— Desculpa. Eu não deveria… é que sua vida parece ser tão boa.
Nicolas o olha com um pouco de mágoa. Depois, suspira e volta a
falar.
— E é mesmo. Eu sou muito grato por tudo o que tenho, mas não é
tão simples. Eu… mal vejo meus pais. — A voz dele some gradualmente.
— Eu não sabia disso. — Gregório entende bem o que é enfrentar a
ausência de alguém que supostamente deveria estar ali por você.
— Eu não ligo mais. O problema é a Manu, ela é muito nova pra
lidar com tudo isso.
Gregório se arruma no banco e se inclina para mostrar que está
escutando.
— Ela sente falta da comida da mamãe, quando ela está aqui sempre
faz o macarrão que ela gosta.
— Deve ser bom. — Gregório se arrepende do tom melancólico e
quase invejoso que proferiu a frase, mas não consegue parar de pensar há
quanto tempo não come algo feito pela mãe.
— Sua mãe não é muito chegada na cozinha?
— Ela... Não mora mais comigo e com meu pai.
Nicolas é pego de surpresa e Gregório torce para que ele não faça
nenhuma pergunta intrusiva. Ainda é um tópico sensível.
— Desculpa, eu não sabia.
— Tudo bem, da escola só o Lucas sabe e ele descobriu meio que
sem querer, então. — Gregório dá de ombros.
Nicolas não sabe o que falar, ele arrisca iniciar uma frase, se detém,
e começa novamente até ser interrompido por Gregório.
— Mas meu pai faz um yakisoba bem gostoso. — Gregório quebra
o clima. — Com bastante gergelim.
Nicolas sorri.
— Vocês se dão bem?
Gregório pensa nas memórias que tem com o pai. Ele lembra de
todas as noites quando ele o chama para assistir filmes no sofá e faz a
mesma piada sobre comer toda a pipoca. Ele lembra do pai se
desequilibrando na pista de patinação no gelo e quando insistiu que
Gregório fosse tirar uma foto com o Papai Noel, mesmo que o garoto
fingisse que não queria.
— Ele é legal. Às vezes erra aqui e ali, como quando compra aquela
maionese light horrível, mas fora isso ele é bem atencioso, quando não está
trabalhando.
— Ele trabalha com o que?
— Ele é da área de T.I. Está sempre mexendo em alguma coisa,
normalmente até elas queimarem e eu precisar controlar um pequeno
incêndio. — Ambos sorriem. — E seus pais, o que fazem?
— É meio complicado.
— Nós temos a noite toda. — Gregório coloca os braços atrás da
cabeça. — Literalmente, não tem nada para fazer aqui e não podemos ir
embora.
Nicolas conta que não entende exatamente o trabalho dos pais. Ele
parece acanhado, quase tímido, mas Nicolas não é tímido. Ele está se
segurando, decidindo se pode confiar em Gregório, se vale a pena expor
partes da sua vida que podem ser usadas contra ele em argumentações
futuras.
Sabe que o pai atua na área de investimentos e a mãe é juíza há
trinta e dois anos. Nada mais que isso. Eles sempre estão com os olhos em
papéis, tentando entender algo ou falando ao telefone, inclusive enquanto
conversam com os filhos. Isso ainda é complicado, mas ele não se importa
mais. Não mesmo. Quando era menor pensava que se fosse o melhor aluno
da sala e estudasse mais do que todo mundo eles perceberiam, mas nunca
aconteceu.
Com o tempo, Nicolas passou a estudar por si mesmo, porque, de
fato, gosta de aprender e testar os limites do próprio conhecimento.
Gregório ouve pacientemente. É estranho descobrir esse tipo de
coisa de alguém que já conhece a tanto tempo. Parece errado. Parece algo
que ele já deveria saber há eras. Ele sempre supôs que sabia tudo o tinha
para saber do rival.
Talvez tenha se enganado.
Nicolas começa a liberar as palavras em um fluxo constante. Ele
está com os pés na cadeira e parece mais relaxado.
— Depois disso eu passei a me colocar em confusão para chamar
atenção. — Ele ri, mas não parece feliz. — Eu era meio babaca nessa
época.
— Mais?
— Fica quieto. — Ele empurra o ombro de Gregório de brincadeira.
— Mas era diferente, eu me esforçava para desobedecer ao máximo
de regras que conseguia, discutia com todo mundo e sempre dava um jeito
de ser pego quebrando coisas caras em casa.
— Você queria ser pego?
Nicolas fica em silêncio.
— No final eu só conseguia irritá-los e fazer com que chamassem a
babá.
— Eu sinto muito.
— Não, tudo bem. Ela me dava doces e elogiava meus desenhos, era
divertido.
— Você sempre adorou ser paparicado, né.
— O que eu posso fazer? Gosto que reconheçam meus talentos.
Gregório revira os olhos e ri.
CAPÍTULO 14
Quando o relógio chega às 21 horas, Gregório chama outro
funcionário para substituí-los na cabine dos Tickets e vai para a sala dos
fundos pegar seu caderno e o restante dos materiais para estudarem.
Quando retorna, Nicolas o espera segurando um café gelado em cada mão e
uma sacola de papel entre os dedos.
Ele parece diferente. Continua tendo a mesma postura descontraída,
os mesmos fios loiros se perdendo em ondas e os mesmos olhos espertos.
Mas agora Gregório não sente mais uma profunda antipatia ao encará-lo.
Ele não sabe exatamente o que sente, mas está feliz por ele estar lá.
Talvez feliz seja uma palavra muito intensa. Gregório pode se
satisfazer em pensar que a companhia dele não o desagrada.
É, é isso. Deve ser isso.
Gregório se aninha na poltrona de couro, deixando os sapatos de
lado e cruzando as pernas próximas ao corpo. Ao seu lado, Nicolas coloca
as bebidas em uma minúscula mesa e se recosta no assento.
— Isso é bom — ele exclama, suspirando.
Eles estão na parte menos movimentada do segundo andar, nos
assentos de frente para a enorme janela de vidro.
O som da chuva é abafado pela barreira até que pareça nada mais
que um leve chiado. Lá fora, a água limpa cadeiras de madeira, escorre por
guarda chuvas e encharca estudantes que estão correndo e gargalhando da
situação. Eles parecem dançar. Os pés espirram água por todo lugar e suas
mãos se movem livremente sobre a cabeça.
Gregório imagina que tipo de vida eles devem levar. Se têm amores
escondidos dentro do coração, se gostam de onde moram, se estão bem
resolvidos com a família. Ele pensa no que fazem no tempo livre, se pintam
ou se se exercitam, se saem para beber em festas e fazem coisas que se
arrependerão.
Gregório sente que está perdendo algo, uma parte da juventude que
nunca se permitiu acessar. Ele quer se sentir vivo, quer ser aquele que anda
do lado ensolarado, aquele que dança no escuro e dá beijos em festas. Quer
sentir algo além de culpa por não estar estudando o suficiente.
Pela primeira vez, Gregório quer fazer qualquer coisa, menos
estudar.
— Você não tem a impressão de que, às vezes, estuda demais?
Nicolas é surpreendido pela pergunta.
— Depende. Eu gosto de estudar.
— É. Eu também, mas sei lá, tem tanta coisa que não faço por
passar o dia com a cara enfiada em um livro.
— Tipo o quê?
Ele fica em silêncio por um minuto. Há tanta coisa que gostaria de
fazer. Nadar na piscina da escola quando estivesse chovendo, comer uma
fruta direto do pé, pular um portão, dar um soco em alguém desagradável.
Coisas simples e belas da vida.
— Você vai me julgar.
Nicolas revira os olhos.
— Não vou.
— Prometa.
— Eu não vou te julgar, nem rir de você, eu prometo.
— Tudo bem. — Gregório toma um gole de café e respira fundo. —
Eu sempre quis entrar nas camas elásticas do Vênus.
Nicolas disfarça o sorriso.
— Você disse que não iria rir.
— Não estou. É que você literalmente trabalha lá, como nunca
entrou?
— Os funcionários não tem permissão. — Ele dá de ombros. — E
eu não iria no Park fora do expediente, eles me zoariam.
— Realmente, eu te zoaria se trabalhasse lá.
Agora é Gregório quem dá um soco no braço de Nicolas e o manda
se calar.
— Mas se é isso que você quer, nós podemos conseguir. Eu ainda
preciso te compensar pelo meu vacilo.
— Como?
— Confie em mim, Greg. — Nicolas sorri e dá mais um gole em sua
bebida.
— Você vai ligar para o senhor Marcos?
— Quando você diz assim, não parece tão legal.
— É porque não é.
CAPÍTULO 15
Quando o último funcionário sai do Park, Gregório está na ponta
dos pés e se esforça para esconder o sorriso estampado no rosto. Ele se
sente como uma criança no Natal e, definitivamente, não quer dar essa
satisfação para Nicolas.
Eles vão direto para o complexo de camas Elásticas. Os tecidos
elásticos parecem estar por toda parte, espalhados pelas paredes e pelo
chão, sendo apenas interrompidos por acolchoados verdes e roxos. Eles
tiram os tênis e guardam os celulares nos armários antes de passarem pela
grade da entrada. Nicolas vai primeiro. Segue correndo sem hesitar,
flexiona os joelhos e dá um salto mortal perfeito.
Ele grita animado.
— Vem logo. — Parece tão feliz que, automaticamente, deixa
Gregório ainda mais radiante. — Isso aqui é demais!
Ele avança e o primeiro pé afunda no tecido preto. Depois de alguns
segundos ele se impulsiona para cima e para baixo e começa a pular.
É incrível.
Ele sente o cabelo batendo na testa e seus braços parecem demorar
um pouco mais para acompanhar os movimentos. Gregório corre dando
largos saltos e se joga de encontro com um dos elásticos da parede. Ele é
automaticamente arremessado na direção oposta, cai no chão e é novamente
impulsionado para cima, antes de cair mais uma vez.
Ele está com o rosto colado na cama elástica.
— Ei, está tudo bem aí? — A voz de Nicolas ressoa distante.
Gregório vira para o lado e uma gargalhada explode do seu peito e
se espalha por todo lugar. Ele olha para Nicolas e vê a expressão de espanto
do garoto se tornar um sorriso.
— Você é maluco — ele diz incrédulo. — Mas isso parece bom
demais para não tentar.
Ele fecha os olhos e de pulo em pulo também se arremessa na
parede.
Dessa vez, o impacto é tão forte que, quando cai no chão, Nicolas dá
outra cambalhota e pousa próximo a Gregório.
— Você está bem?
Nicolas assente com um grunhido que faz Gregório questionar a
veracidade da resposta.
Ele ri da situação. Os mais empenhados estudantes da Instituição
Igor Basine deitados em camas elásticas ao invés de estudar. O que está
acontecendo?
— Minha mãe sempre prometia me trazer aqui. — Ele não sabe
porque está falando. A lembrança surgiu assim que as coisas se acalmaram.
Eles haviam planejado ir para o Vênus depois de comer pizza, muito tempo
atrás, no aniversário de Gregório.
— Ela também não tinha tempo?
— É... eu acho que sim.
Ele senta de pernas cruzadas e Nicolas imita o movimento. Os dois
estão frente a frente, mas Gregório tem o olhar fixo no tornozelo.
— Eu não me lembro direito. Ela trabalhava muito.
— E o que aconteceu?
— Não sei. Não nos falamos mais. — Gregório agora arranha o
tornozelo — Às vezes eu queria saber se ela está bem, o que anda fazendo.
Nunca entendi exatamente o que houve. Se ela cansou daquela vida ou se
surtou. Ela só... foi embora. Não quero pensar nisso.
— Tudo bem. Quer continuar aqui?
Gregório assente, apoiando a mão no joelho para se levantar.
— Eu vi uma galera no Youtube pulando muito alto. Queria tentar
— Gregório diz, dando pequenos saltos na frente de Nicolas.
— Eu não acredito que você fica vendo vídeo de pessoas pulando
em camas elásticas no seu tempo livre.
— É mais legal do que parece. Vem, me ajuda a ter impulso. — Um
olha para o outro e ri, desacreditado.
Isso é tão infantil.
Eles ficam o mais próximo que podem e começam a pular no
mesmo ritmo, tomando cuidado para não caírem um em cima do outro. Eles
fazem isso uma, duas, três, quatro vezes. Até que na quinta vez Nicolas
segura nas mãos de Gregório e eles são arremessados com força total para o
alto.
Gregório pode ver por cima da grade verde. O Park está escuro com
os brinquedos desligados, mas ainda mantém sua peculiar beleza arroxeada.
Ele balança os pés livremente. A gravidade parece diferente quando
se movimenta nessa velocidade em direção oposta a ela. É como sentir todo
seu corpo pela primeira vez. Mais jovem e mais leve, sem o fardo da física.
É como voar.
Ele olha para Nicolas. Os fios loiros suspendidos no ar. Os olhos
idealistas em meio a um sorriso avassalador.
Eles estão voando.
Isso é mágico.
CAPÍTULO 16
A gravidade faz seu trabalho e os dois despencam de volta ao chão.
Com o impacto, voam em direções diferentes e continuam rolando até
conseguirem parar, distantes.
Eles se levantam, rindo, e caminham em direção ao outro.
— Isso foi...
— Fantástico! — Gregório interrompe. Ele está eufórico. — Nós
precisamos fazer isso mais vezes. Tipo, todo dia, para sempre.
— Sim, para sempre. — Nicolas ri.
Os dois se deixam despencar na cama elástica.
Seus corpos estão em direções opostas, mas seus rostos estão um ao
lado do outro.
Eles se encaram por um momento e algo estranho acontece.
Gregório não consegue desviar do rosto dele. Ele vê as sardas quase
invisíveis no rosto do garoto. Tem vontade de tocá-las. Tem vontade de
passar os dedos por todo o rosto dele, sentir sua pele quente sobre a dele.
Gregório repara em como o contorno dos lábios de Nicolas são bem
definidos e vermelhos e úmidos e bonitos e em como estão próximos.
Ele sente o corpo pulsar.
No meio desse turbilhão, fita os olhos de Nicolas e é surpreendido
por já estar sendo encarado.
Ele deveria dizer algo. Deveria fazer algo. Qualquer coisa.
— É melhor a gente ir, antes que fechem o shopping — Nicolas
quebra o silêncio, mas mantém o contato visual.
Droga, droga, droga.
Gregório não sabe exatamente o que queria ou esperava, mas, com
certeza, não era isso.
— É verdade.
Quando estão colocando os tênis, decide se arriscar.
— Você quer comer alguma coisa depois daqui? Tem um carrinho
de cachorro quente aqui perto que é muito bom.
—Desculpa, eu...
— Pode ser outra coisa também, você quem sabe. Eu como qualquer
coisa, adoro tudo, tudo mesmo, o que tiver eu estou comendo. — Ele
disfarça a empolgação desmedida com uma risada falsa e nada acreditável.
— Desculpa, eu não posso mesmo, preciso ir para casa ver se está
tudo bem com a Manu.
Gregório deixa uma exclamação de desapontamento escapar. O que
ele estava esperando, que de repente eles fossem se tornar amigos de
verdade e sair juntos?
— Greg...
— Não, eu entendi. — Ele se força a sorrir. — Vamos sair daqui.
CAPÍTULO 17
Gregório não conseguia parar de pensar em Nicolas.
Ele se esforça, mas não consegue parar de lembrar daquele
momento em que estavam a metros do chão e tudo parecia tão certo. Não
consegue parar de lembrar de quando foi tomado por algum instinto bobo e
se sentiu atraído por ele.
Não sabe exatamente o que foi aquilo. Possivelmente culpa da
puberdade e dos hormônios à flor da pele. Nicolas é uma pessoa
tradicionalmente bonita, então é normal que, depois de um momento de
adrenalina, Gregório tenha se sentido um pouco elétrico. Ele é feito de
carne e osso, afinal. Apenas uma reação biológica, nada mais do que isso.
Nada para se preocupar.
Versos nunca lidos de uma mulher com muita, muita coisa na
cabeça.
(Escondidos embaixo de suéteres antigos, luzes de natal queimadas e discos da Rita
Lee em uma caixa para doação)

Eu quero ser gentil


parar de pensar em tudo que poderia ter sido se não fosse do jeito
que é
e só… sorrir para estranhos na rua
quero abraçar quem eu amo e me sentir bem
quero rir de mim mesma e poder respirar fundo porque tudo está no
lugar e tudo está certo
porque assim é e é assim que tem que ser
eu quero ser gentil e me deixar esquecer de tudo o que não foi
eu escolhi isso, não é?
fui eu
eu
por que ainda me sinto outra?

Existem ideias perigosas


coisas que ficam ali, no canto do olho, esperando para aparecer
quando você menos quer
são bobas, impossíveis, nunca se sustentariam no mundo real
mas quando aparecem, não vão embora
tomam cada vez mais espaço e se tornam parte de você
invadem seus sonhos e se enfiam em cada pedaço possível
até ser tudo que você consegue pensar

e se?
CAPÍTULO 18
Eles estão sentados no chão da biblioteca, em um canto afastado e
mais escuro entre as prateleiras. Tomam o mesmo café que tomaram outro
dia no Vênus, porque se é para quebrar uma regra, que quebrem todas logo.
Gregório está um pouco aflito, com medo de ser pego a qualquer
momento, já Nicolas apresenta sua postura relaxada de sempre.
— Meus pais voltam de viagem semana que vem. — Ele assopra a
bebida.
— Você vai conversar com eles sobre aquilo de ficarem muito
tempo longe?
— Eu não queria, mas é por causa da Manu. Não quero que ela
cresça do mesmo jeito que eu.
Gregório assente e parte um pedaço de um cookie, oferecendo outro
para Nicolas.
— Não estou sendo egoísta, né?
— Querer que seus pais estejam presentes não é egoísmo.
— É que eles trabalham tanto justamente para nos dar uma vida
decente, tenho medo de parecer ingrato, sei lá. Não me parece muito justo.
— Ei — Gregório cutuca o joelho dele —, não se trata de justiça. A
gente precisa de dinheiro para viver, é óbvio, mas também precisa se sentir
amado. E eu tenho certeza que eles te amam. Você e a Manu precisam deles
por perto. Não é pedir demais, eles vão entender.
Nicolas está com a cabeça baixa. Ele olha para Gregório.
— Obrigado. — Então começa a sorrir e encosta a cabeça em uma
das prateleiras. — Quem diria que eu estaria sendo confortado logo por
você.
— Depois eu mando o recibo da sessão de terapia.
— Vou te pagar em cookies e café.
Gregório dá de ombros e morde o cookie.
— Por mim, tudo… — O celular de Gregório começa a vibrar no
bolso. Ele tira o aparelho e mostra a tela para Nicolas. — É a segunda vez
que esse número me liga essa semana.
— Que estranho — ele fala mastigando. — Por que não atende?
— Não sei. Eu… não sei. — Ele sabe sim, e tem medo de ser quem
ele pensa.
— O DDD é de São Paulo. Deve ser golpe, ou da cadeia.
— É. — Ele guarda o celular. — Vamos voltar ao assunto dos seus
pais.
CAPÍTULO 19
Conforme a data da disputa se aproxima, os garotos passam a se ver
cada vez mais. Todas as sextas Nicolas leva cookies e café para comerem
escondidos na biblioteca e, em retribuição, Gregório separa os trechos mais
memoráveis de Romeu e Julieta para debaterem enquanto comem.
— As frases soam um pouco como legendas do Facebook. —
Gregório ergue o livro com a boca ainda suja de migalhas. — Se é que
alguém ainda usa isso.
— Shakespeare não tem culpa de as pessoas serem pretensiosas.
— Será que não? — Gregório ergue a sobrancelha, fingindo que
realmente considera a questão.
Em algumas noites, quando Gregório não trabalha e eles podem se
dar ao luxo de ficarem até mais tarde, os estudos fluem tão bem que eles
juntam os materiais e se abrigam na cafeteria próxima ao shopping, onde
Nicolas sempre compra o café.
Eles se acomodam nos bancos estofados, abrem os livros sob a luz
amarelada e passam horas e horas traçando estratégias para a DAIB.
Nicolas quer ter uma postura mais agressiva e tentar responder todas as
perguntas mesmo sem ter certeza da resposta. Já Gregório preza a cautela,
para ele, ainda que ganhem mais pontos por se arriscarem, os perderão nas
respostas erradas. Nunca chegam exatamente a um consenso, mas saber as
opiniões do outro é o suficiente por enquanto.
Muita coisa mudou desde que começaram a estudar juntos. Gregório
não sente mais raiva de Nicolas. Acha ele um pouco irritante, sim, e em
alguns momentos até imaturo, mas está começando a ver outros lados dele.
São pequenos momentos em que encontra fragmentos da personalidade de
Nicolas. Por exemplo, ele sempre sorri ao atender uma ligação da Manu, e
se despede dizendo “se cuida, te amo de montão”, além de, sempre que
pode, mostrar uma nova foto dela em uma peça da escola, tomando café da
manhã ou dormindo em uma posição engraçada. Gregório também
percebeu que ele é péssimo para estudar assuntos que não o interessam.
Nem de longe tem o controle e disciplina de Gregório. Ele não faz questão.
Estuda o suficiente para se sair bem nas avaliações e depois parte
vorazmente para os campos que domina. Normalmente, alguma teoria
muito específica da mecânica quântica ou um artigo sobre as origens da
matemática. Depois ele enche Gregório com todas as informações até
deixá-lo com dor de cabeça, o que é uma grande conquista, já que Gregório
está no top 3 pessoas que gostam de estudar absolutamente qualquer coisa.
Em alguns finais de semana, quando não podem estudar na escola,
eles fazem chamada de vídeo para se concentrarem juntos. Não que algum
dos dois tenha algum problema de concentração, mas assim é mais fácil.
Tudo é mais fácil quando estão perto um do outro.
De vez em quando, Gregório tira os olhos do livro e observa Nicolas
pela tela do celular.
Gosta de vê-lo concentrado. O modo que ele semicerra os olhos para
entender um trecho difícil, o pomo de adão marcado em seu pescoço e o
cabelo caindo no rosto inclinado.
Certa vez, eles são interrompidos por uma voz ao fundo do quarto
de Nicolas:
— Você não vem jantar? — Uma garotinha com o mesmo cabelo
loiro tenta subir na cadeira com ele.
— Manu — ele é silenciado quando ela se apoia no rosto dele para
se equilibrar —, eu estou estudando, depois a gente pode ver desenho
juntos, tudo bem?
A garota olha para a tela do celular e ri.
— É ele? — Nicolas coloca a mão na cintura dela para equilibrá-la.
— Vem, você vai cair. — Ele começa a levantá-la como se estivesse
tirando um gato do colo.
— Seu amigo é bonito mesmo.
— Sai daqui bobona. — Nicolas levanta sorrindo e logo depois há o
som de uma porta sendo trancada. — Desculpa por isso.
Gregório ri e levanta a sobrancelha.
— Então nós somos amigos agora?
— É, eu acho que a gente é sim. Mais ou menos.
— E eu sou bonito?
Nicolas ri e Gregório tenta capturar a imagem na memória
Ele está tão fodido.
CAPÍTULO 20
(20:01) Nicolas
eles chegaram

(20:03) Gregório
Vai dar certo.

(20:03) Nicolas
nao acha melhor eu falar com eles amanha?
devem estar cansados da viagem

(20:03) Gregório
Amanhã você não vai ter coragem.
Anda logo!!!!!!

(20:04) Nicolas
você viu aquele artigo da ScienceDirect que eu te mandei
sobre os tetranêutron?

(20:04) Gregório
Não.
Física é coisa de nerd!

(20:04) Nicolas
eu esqueço que você é descolado

(20:05) Gregório
Descolado e bonito.
E para de me enrolar.
Vai lá.

(20:07) Nicolas
aaaaaaaaaaaaaaa tá bom.
CAPÍTULO 21
Gregório é todo desculpas e perdões.
Não está acostumado a frequentar a casa de amigos, se é que pode
chamar Nicolas disso, então não sabe exatamente como se comportar.
Passa pelo jardim da frente pedindo licença, sobe os degraus até a
porta de mais de dois metros e fica boquiaberto ao ver o interior da casa. A
maior parte da mobília, de uma madeira escura e sólida, parece ser de um
século passado, as paredes são decoradas com quadros pós-modernos e todo
o lugar é iluminado pelo sol que atravessa as longas janelas. É mais do que
ele consegue processar. Há uma piscina interna para os dias frios, uma
externa para o verão, uma quadra de tênis, uma de vôlei de praia, uma trilha
que, de acordo com Nicolas, leva até uma nascente, um galpão de
ferramentas, um estábulo e um campo que Gregório não consegue ver o
fim. Sem falar, é claro, da coleção de carros importados na garagem, os
mais de dez funcionários que andam de um lado para o outro com tesouras
de poda, bandejas, toalhas quentes, e uma releitura da Fontana di Trevi na
ala mais ao norte.
Sério, como é possível alguém morar em um lugar tão grande que
precisa ser dividido por latitude e longitude?
— Sinceramente, eu achei que se algum dia eu entrasse aqui, seria
como empregado — Gregório confessa, depois de finalmente entrar no
quarto de Nicolas. O garoto lança um olhar de “eu não acredito que você
está falando isso”, o que Gregório logo responde com um sorriso que diz “é
mais forte do que eu”.
Nicolas coloca as mochilas deles em um canto, perto de uma
escrivaninha abarrotada de livros, folhas espalhadas, cadernos abertos e
uma centena de canetas, todas pretas. O cômodo em si é maior do que o
apartamento que Gregório divide com o pai, mas é surpreendentemente
vazio. Ao contrário do restante da casa, o estilo é minimalista, como se não
fizesse questão de todo o luxo e conforto que o dinheiro pode proporcionar.
Gregório passa os dedos pelos exemplares e se depara com uma
edição de colecionador de Orgulho e Preconceito. Ele folheia as páginas e
se volta para Nicolas.
— Depois de Romeu e Julieta, você pode ficar obcecado por esse
aqui.
— Não acho que combine muito comigo.
— Como não? Você e o senhor Darcy tem muito em comum. —
Nicolas não parece acreditar. — Estou falando sério. Vai, arruma a postura e
me humilha por ser pobre.
Apesar de querer muito, Nicolas não consegue segurar a risada.
— Então, nessa comparação, você seria Elizabeth Bennet?
— Eu, particularmente, me considero tão inteligente quanto.
— Tão inteligente que não considerou que, se eu for o senhor Darcy,
e você for a Elizabeth, nós estamos perdidamente apaixonados um pelo
outro.
— Mas não vamos admitir até o final do livro — Gregório pontua.
— Exato.
Um silêncio desconfortável se estende pelo quarto.
— Por que você sempre faz isso?
— O quê?
— Essas piadas sobre ser pobre. Tipo, aquela vez eu te chamei de
Harry Potter pobre porque eu sabia que você iria rir, mas você leva as coisas
para outro nível.
— Sei lá. Talvez, meu humor seja esse.
— Se autodepreciar?
— Ser pobre não é ofensa. É uma posição socioeconômica.
— Você me entendeu.
— É que… — Ele olha para Nicolas enquanto tenta formular as
palavras seguintes. — Eu sempre precisei me defender naquele lugar. No
começo, mesmo antes do desastre na aula de literatura, as pessoas já me
tratavam de um jeito diferente. Não o suficiente para ser escancarado, mas
dá para perceber esse tipo de coisa. Um olhar de pena, uma
condescendência na voz. — Ele para um pouco, olha para o chão e coça o
cotovelo, meio tímido. — Então, quando eu mesmo me chamo de pobre e
deixo as pessoas desconfortáveis com isso, é como se eu tomasse um pouco
do poder para mim. Se eu me zoar antes, ninguém vai ter a oportunidade.
— Isso é bem esperto.
— Obrigado.
— E eu lamento. Desculpa por dizer para você ir pro programa do
Luciano Hulk. Não foi legal da minha parte.
— Mas foi engraçado.
— É, foi sim.

Eles não se lembram de quem foi a ideia de estudar na casa de


Nicolas. Não que isso importe agora, a ansiedade para a competição na
manhã seguinte já tomou conta da conversa e os livros foram esquecidos
depois de poucos minutos. É incrível a capacidade dos dois de se juntarem
para estudar e, simplesmente, esquecerem de estudar. Talvez eles devessem
só admitir que gostam da companhia um do outro, mas é mais provável que
os cavalos no estábulo comecem a falar inglês antes disso acontecer.
Agora, eles estão deitados no chão com as pernas esticadas na cama.
Gregório pode sentir o braço de Nicolas quente ao lado do seu. Ele olha
para as estrelas fluorescentes coladas no teto e se pergunta que tipo de
criança Nicolas foi. Ou melhor, como ele teria sido se os pais estivessem
mais presentes.
— Então, conseguiu falar com eles? — Gregório aponta para a
porta, de onde vem o som da família de Nicolas conversando.
— Mais ou menos.
— Como assim mais ou menos?
Nicolas balbucia algumas sílabas e recomeça as frases várias vezes
até se sentar e começar a gesticular mais do que uma pessoa normal, como
sempre faz.
— Tá, você me conhece. Eu não podia só conversar com eles,
porque, primeiro, a gente teria que ter um momento a sós, e isso não
acontece desde 2009 quando minha avó morreu no natal e o pneu do carro
furou no meio do nada.
— Nicolas, o que você fez?
— Aprendi alemão em 48 horas. Na verdade, só o básico, mas foi o
suficiente. Peguei um táxi até o distrito comercial e invadi a reunião do meu
pai com um investidor estrangeiro.
— Você o quê? — Gregório se sobressalta, sentando-se de frente
para Nicolas.
— É. — Nicolas comprime os lábios admitindo que a situação
parece absurda. — Na real, foi bem simples. Todo mundo lá já me conhecia
e eu ameacei gritar se alguém tentasse me impedir. Ninguém quer ser o
responsável por fazer um garoto branco muito rico e filho do dono da
empresa gritar, então eles me deixaram em paz. Eu subi até a sala em que
eles estavam, estufei o peito, porque confiança é metade da coisa toda, e
entrei.
— E seu pai te ouviu?
— Não — Nicolas aponta o dedo para Gregório —, mas foi por isso
que eu aprendi alemão. Eu falei que se ele não me ouvisse eu ia dizer para o
investidor que era tudo um esquema de lavagem de dinheiro e meu pai era
só mais um golpista brasileiro.
— Meio xenofóbico.
— Ele era europeu, eu tinha que usar o preconceito a meu favor. —
Nicolas rebateu. Ética nunca foi seu ponto forte. — E, bem, meu pai não
acreditou, então eu tive que improvisar e acho que acabei falando que
queria muito experimentar as cadeiras do país dele.
— Uma clássica iguaria alemã — Gregório caçoa.
— Sim, mas foi o suficiente para meu pai me puxar para fora e me
escutar por cinco minutos. Ele falou que não sabia que a gente se sentia
assim. Uma desculpa bem furada, mas pareceu sincero, então acordamos
que ele e minha mãe não podem passar mais de dois meses fora de casa ao
mesmo tempo e que eles precisam começar a ir nas peças da Manu ou eu
iria fazer um escândalo no Twitter.
— Pros seus onze seguidores?
— Eles não sabem que eu…
A porta do quarto se abre e uma mulher de meia idade aparece
secando as mãos com um pano. Ela tem o cabelo loiro caindo pelos ombros
e usa um vestido verde leve.
— Oi, meninos. — Ela tem o mesmo sorriso que Nicolas. — Estou
colocando o jantar na mesa, então não demorem muito, tudo bem?
— Tudo bem — Nicolas diz.
— Me disseram que a senhora cozinha muito bem — Gregório
acrescenta.
Ela se alegra com o elogio.
— Não é para tanto, você está sendo gentil. — Logo depois pisca
para Nicolas e sussurra. — Eu gosto dele.
— A gente já vai — Nicolas tenta disfarçar.
— Vou esperar por vocês.
Ela faz menção de fechar a porta, mas no último segundo muda de
ideia. Parece incerta. Ela olha para eles tão próximos, os joelhos quase se
encostando e a mão de Nicolas casualmente pousada perto da de Gregório.
— E se vocês forem... vocês sabem... vocês são jovens e tudo... se
forem, alguma hora... se protejam, OK. — Dessa vez, fecha a porta com
uma rapidez própria de quem tem vergonha de entrar em detalhes.
Nicolas afunda a cara nas mãos e Gregório solta uma gargalhada do
fundo do peito.
— Se protejam? O que ela acha que nós estamos fazendo?
Agora Nicolas também ri.
— Desculpa por isso. Até essa semana ela nem sabia que eu era gay
e agora está tentando “participar mais da minha vida", presumindo que
qualquer amigo é meu namorado.
— Eu devo ficar lisonjeado?
— Ah, sim, com certeza. Ela te adorou.
Gregório sorri satisfeito e concorda.
— Eu sou um bom partido.
— Você é.
— Sou?
— É, até que você é bonitinho. — Nicolas cutuca Gregório com o
cotovelo.
— E o que mais eu sou? Além de muito bonito. — Gregório
devolve o ato empurrando o ombro dele.
— Também é espertinho, quando quer. — Ele fecha um dos olhos
como se estivesse pensando no caso.
— Assim nem parece que você era apaixonado por mim.
— Eu não era apaixonado por você!
— Tem certeza? Porque agora você parece perdidinho por mim.
— Cala boca. Se fosse para alguém se apaixonar, seria você, por
mim. Já viu esses bíceps? — Nicolas sobe a manga da camisa e flexiona o
músculo.
Gregório fica sem palavras.
Por baixo de toda aquela roupa larga Nicolas esconde braços firmes.
Gregório passa os olhos pelas curvas criadas pela força até chegar na axila
do garoto, de onde alguns pelos aparecem.
Ele é um homem.
Isso mexe com alguma coisa dentro de Gregório.
Quando se conheceram, os dois não passavam de garotos com mais
arrogância do que tamanho. Nicolas nunca pareceu um ser sexual. Ele era
só… o Nicolas, mas uau, as coisas mudaram nesse meio tempo. Gregório
repara em como o pescoço de Nicolas fica bonito quando ele inclina a
cabeça para rir, em como as veias nas mãos dele se desenham
sobressaltadas e em como a cintura dele parece convidativa.
E tem o volume na calça…
NÃO.
Nem pensar.
— Você gostou! — A voz e o riso de Nicolas deixam Gregório
ainda mais desconcertado. — Rá. Eu sabia que você me acha bonito.
— Eu não acho coisa nenhuma. — Com a necessidade latente de
provar que não sente absolutamente nada por Nicolas, Gregório empurra
novamente o ombro do garoto. Mas dessa vez, por culpa do nervosismo ou
do descuido, coloca mais força do que antes, fazendo com que Nicolas se
desequilibre para trás e, ao invés de apoiar os braços no chão, ele segura a
gola de Gregório, que é puxado para frente e para cima de Nicolas.
O peitoral de Gregório está colado no de Nicolas. A perna entre as
dele. O rosto a centímetros de distância.
Eles olham um para o outro sem se moverem um centímetro sequer.
Gregório está fixado nos lábios vermelhos e chamativos do garoto embaixo
dele. Pode, ao mesmo tempo, sentir o hálito doce e refrescante de Nicolas
invadindo seu corpo, e o coração dele pulsando próximo ao seu.
Nicolas dá um sorriso bobo e diz:
— Acha sim.
Gregório apoia uma das mãos ao lado da cabeça de Nicolas. O corpo
quente pulsando por algo mais, a mente se perdendo cada vez mais nos
olhos na sua frente.
— Não… — As palavras parecem engraçadas ao deslizarem para
fora. — Eu acho que você está projetando. Me acha muito bonito e não
consegue admitir, então sua consciência te faz pensar que é o contrário.
Nicolas nitidamente o analisa. Ele desliza a mão pelo pescoço de
Gregório e a pousa no maxilar dele. Lentamente o puxa mais para perto e
sussurra bem próximo ao ouvido do garoto.
— É, talvez eu te ache bonito mesmo. Bem bonito, para falar a
verdade. — A voz rouca faz uma onda percorrer o corpo de Gregório. Os
pelos na nuca se arrepiam, o frio no estômago aparece e ele sente a região
entre as pernas mais conscientemente.
Então, a porta se abre.
— O que vocês estão fazendo? — Uma voz aguda pergunta.
Gregório se afasta de Nicolas como um gato ao cair em uma poça de
água e toda a magia é interrompida. A confusão e desordem voltam para a
cabeça dele. O que foi que ele fez? No que estava pensando?
— Nós... — Ele ainda está recuperando o fôlego depois do susto.
Manu está parada na porta com a cabeça para dentro. — Eu estava tentando
tirar algo do olho dele.
— Por que vocês estavam de olhos fechados?
— Por que você está aqui? — Nicolas soa grosseiro.
— O papai pediu para chamar vocês para jantar.
— Nós já vamos, obrigado.
— Mas por que...
— Nós já vamos, Manu — ele insiste.
— Tudo bem, mas não demorem. Eu estou com fome — ela reclama
antes de fechar a porta.
— É melhor eu ir. — Gregório está confuso e morrendo de
vergonha.
— Não. Fica para o jantar. Minha mãe cozinhou.
— Eu... Eu acho melhor eu ir.
— Tudo bem — Nicolas procura as palavras. — Eu... vou chamar o
motorista.
— Não, pelo amor. Não precisa.
— Precisa, sim. Eu acho que vai chover.
— Não. Só, não. Nós nos vemos amanhã.
Então ele pega a mochila e sai apressado.
Nicolas fica parado, estático.
CAPÍTULO 22
Nicolas nunca foi muito bom com planos. Ele é mais o tipo de
pessoa que coloca os pés na mesa, as mãos atrás da nuca e relaxa contando
com a sorte. Sempre deu certo, porque agora não daria?
A verdade é que ele é demasiado imprudente e ignora as milhares de
vezes que simplesmente improvisar não deu certo. Isso, é óbvio, falta deixar
Gregório maluco, mas ele gosta de irritar o garoto.
Ele sempre vai seguir a intuição, mesmo que isso vá contra a razão,
o bom senso, a segurança, ou a porra do plano. Só se vive uma vez, ele não
quer ficar velho e se arrepender do que não fez por medo ou porque era o
que parecia o mais correto. Ele queria por todas as fichas na mesa e apostar
tudo de uma vez. Poderia perder tudo, mas também poderia ganhar. Gosta
de se concentrar nisso.
Então, quando viu Gregório olhando nos seus olhos, com aqueles
lábios tão próximos e o calor emanando perto do seu corpo, não hesitou em
provocá-lo. Poderia lidar com as consequências depois. Poderia entender o
que isso significava. Poderia se arrepender.
Depois. Depois. Depois.
Ele resolveria depois. Só aquele momento importava.
Passou tanto tempo tentando não pensar em Gregório dessa forma
que quando finalmente teve coragem para roçar os dedos pelo maxilar que
tanto desejou nos últimos meses, não pareceu real. Foi como entrar em uma
banheira cheia de gelo, mas não do jeito ruim que você morre de hipotermia
e tem a pele queimada pelo frio, mas porque cada nervo, músculo e receptor
de sinais elétricos do seu corpo estavam ativados ao mesmo tempo. Sentir o
corpo de Gregório contra o seu foi como um curto circuito no seu sistema.
Não estava nos planos, apenas… aconteceu.
Nicolas senta na cama, coloca o travesseiro no colo e começa a
esperar. Precisa “acalmar” partes do seu corpo antes de ir para o jantar.
Partes que Gregório parece ter feito questão de deixar inconvenientemente
agitadas.
Eretas.
Ele odeia esse garoto.
Depois que come, bate na porta do quarto da irmã, do mesmo modo
que ela deveria ter feito no dele, e entra. O lugar é quase inteiramente rosa e
repleto de bichinhos de pelúcia. A maioria são sapos verdes de algum
programa famoso que Nicolas não se lembra. Por algum motivo ela é
obcecada por eles.
— Seu namorado já foi embora?
— Ele não é meu namorado — Nicolas corrige, apesar de gostar de
como soa. Namorado, ele poderia se acostumar com isso. — Ele precisou ir
para casa.
— A mamãe estava ansiosa para encher ele de perguntas.
Nicolas se deita na cama, fazendo com que ela tenha que se ajeitar
para não ficar embaixo dele. Ele sabia que iria incomodá-la, mas fez mesmo
assim porque é o irmão mais velho e é seu papel perturbar a garota de vez
em quando.
— Nem me fale. — Nicolas pega um dos sapos de pelúcia. — Você
não pode falar nada sobre nós dois pra ninguém, tudo bem?
Ela sorri da forma como uma criança sorri ao falar de um assunto
proibido.
— Você está gostando dele?
— Não.
— Ai meu Deus, você gosta dele. — Ela ri mais ainda.
— Não. A gente é amigo. — Eles são só amigos? É, eles
definitivamente são só amigos. Foi algo momentâneo. Algo
surpreendentemente bom e que deixou Nicolas bobo, mas nada demais. —
Cala a boca. Tchau.
Ele volta para o próprio quarto, deita na cama e manda uma
mensagem para Gregório.
(21:35) Nicolas
oiiiiiiiiiii
ja chegou em casa?
me avisa quando chegar

Talvez ele esteja se importando muito para alguém que não quer
nada demais.
CAPÍTULO 23
Nicolas está deitado entre lençóis macios e pensamentos agitados.
Não consegue tirar Gregório da cabeça.
Ele provavelmente diria que o tecido do travesseiro custa mais do
que o aluguel do prédio em que ele mora, e provavelmente custa mesmo.
Um feixe de luz escapa pelas cortinas e ilumina o quarto. Ele se
sente confuso. Deveria estar mais animado, esse é o grande dia, finalmente
irá participar da DAIB, finalmente poderá testar seu conhecimento
acadêmico ao máximo e ver os limites da sua capacidade. Isso tudo com
Gregório ao seu lado. Sempre pensou que o derrotaria. Que eles travariam
um duelo acirrado e seriam inimigos para sempre. Mas agora... Só consegue
pensar na boca de Gregório. Em como queria os lábios dele se moldando
aos seus. Em como devem ser quentes e macios.
Talvez queira algo mais, quem sabe. Ainda há muito para se
explorar nessa dinâmica, muito a se descobrir.
E por sorte, Nicolas é muito curioso.
Ele pega o celular na mesa de cabeceira e a luz forte faz seus olhos
doerem. Gregório ainda não o respondeu. Alguma coisa pode ter acontecido
no caminho? Ele pode ter sido assaltado? Pode ter perdido o celular? Não,
provavelmente algo menos dramático. Pode ter esquecido de colocá-lo para
carregar? Possível.
(06:35) Nicolas
oi
tá tudo bem???

Ou pode estar ignorando Nicolas? Pode não ter gostado da


iniciativa? Pode estar evitando falar com Nicolas porque não sabe como
dizer que quer apenas uma amizade convencional? Ou na verdade, que não
quer amizade nenhuma?
(06:38) Nicolas
é...
sobre aquilo no meu quarto
(quando a gente, você sabe, caiu)
tá tudo bem sobre isso?
desculpa
se você não quer nada
e ficou parecendo que…
sei lá
eu não quis fazer nada
na verdade, eu quis
mas estava com sono, muito sono
e não estava pensando direito
eu diria até bêbado de sono
isso existe mesmo, não estou inventando.

Os efeitos do sono no córtex pré frontal.pdf

desculpa
no colégio eu explico

Queria sentir raiva de Gregório, queria voltar a odiá-lo, mas tudo o


que consegue fazer é se preocupar. Será que ele está bem? Se sentiu
ofendido? Nicolas cruzou alguma linha que não deveria e Gregório desistiu
da competição?
Não, ele nunca desistiria. Não Gregório. Nicolas gostava disso nele.
Todas as cartas podiam estar dadas, a guerra perdida, sem nenhuma chance
de sucesso, mas Gregório nunca desistia. Ele não é só determinado, é
teimoso.
Quando chega na escola, todas as duplas, inclusive Lucas e Samuel,
que cochicham entre si quando o veem, estão se preparando para o início da
disputa. O auditório está transformado. As paredes laterais estão decoradas
por serpentinas, balões e bandeirolas azul e dourado. Na frente, uma faixa
exibe o nome da disputa em cores vibrantes.
Nicolas vê Gregório conversando com Maya. Ele está com o cabelo
ainda úmido, os fios pretos bagunçados sob a testa em cima dos óculos. Ele
está rindo de alguma coisa. Está lindo.
Nicolas fica parado, observando cada detalhe dele. O nariz reto, o
maxilar marcado, tudo se encaixa perfeitamente. Quando Gregório
finalmente nota que ele está ali parado como um bobo, dá o golpe baixo de
sorrir. Um sorriso verdadeiro, carinhoso.
Porra. Nicolas poderia morrer vendo-o sorrir.
— Você está atrasado, senhor Nicolas — ele diz se afastando de
Maya e se aproximando dele.
— Não estou, não. — Ele tira o celular do bolso. — São exatamente
oito e meia.
— É, mas todo mundo sabe que precisa chegar pelo menos quinze
minutos antes.
— Eu não sou como todo mundo. — Gregório revira os olhos.
— Tem razão, você é pior. — Nicolas sorri.
Está tudo bem, as coisas estão fluindo normalmente. Gosta disso.
— Você recebeu alguma das minhas mensagens?
— Não, meu celular morreu totalmente. — Ele tira o aparelho do
bolso e aperta o botão lateral para desbloqueá-lo. A tela de bloqueio
aparece, fica toda verde e em seguida desaparece. — Você acredita que
realmente choveu ontem à noite?
— Isso que dá ser teimoso. O motorista poderia muito bem ter te
levado até em casa.
— É, mas... A gente tinha... E eu estava... — Ele é interrompido
quando Maya se aproxima.
— A cerimônia já vai começar. Não estraguem tudo.
— Nós não vamos estragar nada.
— Eu estou falando sério, não ferrem isso, de novo.
Depois da devida apresentação dos competidores, a coisa realmente
começa. Nicolas e Gregório estão atrás da cortina vermelha trocando
comentários baixinhos enquanto assistem Lucas e Samuel serem
presunçosos até para responder simples perguntas.
Infelizmente, eles estão vencendo uma dupla de garotas que
parecem simpáticas.
— O átomo apresenta 7 camadas eletrônicas: K, L, M, N, O, P e Q,
constituindo o 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º nível de energia, respectivamente —
Lucas diz no microfone.
— Precisamente — o diretor exclama, animado. — E com isso a
equipe número dois vence a rodada. Muito bem, garotos.
Lucas ri, satisfeito. Ele olha com uma falsa pena para a outra equipe.
— Mais sorte na próxima. — O sorriso dele vai de orelha a orelha.
No entanto, quando vê os dois atrás do tecido, ele arregala os olhos e
arruma a postura, ficando ereto, em posição defensiva. Os três trocam um
olhar e Gregório sorri. Sabe que ele está com medo e que teme ser
derrotado na frente de todos. E é exatamente isso que planeja fazer.
Nicolas e Gregório são chamados para a rodada seguinte. Eles se
olham, contendo o riso, e saem de trás da cortina vermelha. A outra dupla já
está se posicionando. Nicolas os reconhece das aulas. O primeiro tem um
par de óculos quadrado emoldurando o rosto, cabelo preto liso e um nariz
longo. O outro usa tranças verde escuro, tem um porte atlético e bate os pés
no chão com um All Star também verde.
— Boa sorte — Nicolas diz, quando já estão frente a frente nos
palanques.
— Nós não precisamos de sorte — eles desdenham. — Nós
sabemos que vocês se acham os bonzões, mas não são nenhum um pouco
melhores do que nós.
Gregório levanta as sobrancelhas e olha para Nicolas, que ri
despretensiosamente.
— Nós vamos destruí-los, não vamos? — ele sussurra.
— Com certeza.
Nicolas bate os dedos no palanque de madeira enquanto ouve os
rivais errarem a primeira pergunta.
— Pelo amor, eles nunca ouviram falar de Montesquieu? —
Gregório cochicha.
— Devem ter pensado que os três poderes era um filme novo da
Marvel. — Eles riem.
Em seguida, Gregório aperta a campainha mais rápido do que os
adversários e responde:
— Foi com o fim da União Soviética, em 1991.
— São mais dez pontos para a equipe seis.
Nicolas faz uma expressão de surpresa para os oponentes, que agora
o encaram com ainda mais ódio.
As rodadas se alternam entre respostas dos dois times, e os garotos
se divertem vendo que, apesar da arrogância, os concorrentes não estão nem
um pouco preparados para essa competição. Eles erram duas perguntas
sobre o Império bizantino e uma questão muito fácil sobre os tipos de
rocha, ao passo em que Nicolas acerta duas perguntas sobre circuitos
elétricos e Gregório uma sobre a Guerra Fria.
A última pergunta é respondida por Gregório.
— O problema fiscal enfrentado pela monarquia francesa no século
XVIII pode ser explicado de forma bem simples: Eles gastavam mais do
que arrecadavam. Não conseguiam enxergar além do próprio umbigo e se
recusavam a lidar com as consequências dos seus atos. Eu não preciso nem
falar como essa história terminou. Revolta, revolução e cabeças rolando. —
Ele olha diretamente para o garoto de óculos quadrado. — Em síntese, eles
se achavam invencíveis. Melhores do que todos os outros. E não me
entendam mal, vocês sabem do meu histórico, não tem problema em ter
autoconfiança, desde que você saiba o que está fazendo.
Eles vencem a rodada.
CAPÍTULO 24
Enquanto Nicolas comemora ao seu lado, Gregório olha para a
plateia. Não sabe o que está procurando. Pessoas e mais pessoas, uma do
lado da outra. Cada rosto diferente do outro. Nenhum é o que ele procura.
Olha para os fundos do lugar, a porta está entreaberta, mantida assim
por uma mulher de cabelo preto como a noite. Ela sorri e Gregório tem uma
vaga lembrança de uma vez já ter visto essa mesma expressão.
Tem a impressão de conhecê-la.
Mas isso é impossível.
Não deve ser ninguém.
CAPÍTULO 25
— Eu não acredito.
— Pega logo — Nicolas diz, estendendo uma sacola de papel cheia
dos cookies que Gregório gosta. — Eu achei que você pudesse ficar
nervoso antes da DAIB, então sai um pouco mais cedo de casa e comprei.
— Esse é o melhor dia da minha vida. — Ele fecha os olhos
enquanto come. — Porra, eu te amo.
— Obrigado, eu sei.
— Eu estava falando sobre os cookies, convencido.
— Eu acho que não.
Depois de vencerem mais uma partida, eles estão na final. Eram oito
duplas no total. Após a primeira rodada o número caiu para quatro, e agora,
dois. Gregório e Nicolas, Lucas e Samuel.
Gregório tem a sensação de que foi fácil demais. Está tudo muito
bom para ser verdade. Eles estão indo bem na DAIB, está cheio desses
cookies maravilhosos e Nicolas... Ele se lembra dos lábios dele perto dos
seus, da mão no seu maxilar e de ter o corpo do garoto contra o seu. Ele
quer sentir isso de novo, quer explorar cada centímetro dessa sensação.
Quer ouvir a respiração dele entrecortada, bem próxima ao seu ouvido,
pedindo, implorando por mais.
Eles ainda não conversaram sobre o que aconteceu. Gregório
planeja tocar no assunto depois que vencerem a competição. É melhor
assim. Ele pode explicar que ficou surpreso, mas feliz com seja lá o que era
para ter sido aquele momento, e que só saiu correndo porque estava
morrendo de vergonha da irmãzinha de Nicolas sequer tocar no assunto
durante o jantar.
Além disso, ele estava um tanto confuso.
Foi... uau.
— Eu vou ao banheiro — ele diz, tentando se reconectar à realidade.
— Não some. — Ao ver Gregório revirando os olhos, ele continua:
— É sério, temos quinze minutos antes da rodada começar.
— É só o banheiro. Literalmente no fim do corredor. Não precisa
sentir saudades.
— Vai logo.
Gregório passa pela lateral do palco e sai dos bastidores, se
misturando com as dezenas, talvez centenas de pessoas que perambulam
pelo auditório. A maioria são estudantes mais novos do que ele, do primeiro
ou segundo ano do ensino médio. Ele se lembra de quando também se
empolgava para assistir a competição. Todo ano, sem falta, passava horas
no auditório vendo os alunos mais inteligentes do último ano se
enfrentarem. Algumas vezes era até divertido, mas com o passar do tempo
Gregório percebeu que não é porque eles eram os mais inteligentes, que eles
eram muito inteligentes.
Em alguns anos a régua estava bem baixa.
Ele costura por meio das fileiras, esbarrando no ombro e pedindo
licença para pessoas que cochicham quando o veem. Ele se sente
importante. Tem vontade de rir e gritar para todos que ele não é tão bom
quanto parece. Ainda que, sim, se ache muito bom e, sim, ache que vai
vencer. Ele continua a se enfiar pelos espaços livres até chegar ao corredor.
Pega o celular para mandar uma foto para Nicolas ver como o lugar
está ainda mais lotado, mas lembra que o aparelho não funciona. Se vira e
segue pelo corredor apertando o botão lateral do dispositivo na esperança de
que milagrosamente ele volte a funcionar. Vai ter que gastar em um novo.
Mas tudo bem, com o dinheiro da DAIB...
— Merda — ele exclama ao esbarrar em uma mulher e derrubar o
aparelho. — Desculpe, você está bem?
Ele abaixa e pega o celular. Levanta avaliando os possíveis estragos
e arranhões devido a queda. Nada demais, conclui ao limpá-lo na camiseta.
— Estou, sim — ela responde roucamente. Gregório tem a sensação
de conhecê-la de algum lugar. A pele pálida, cheia de marcas de expressão e
pequenas pintas, contrasta com o cabelo preto que vai até um pouco além
dos ombros e está opaco e ralo. Seus olhos são caídos e acompanham
olheiras profundas. Ela não parece só cansada, parece muito, muito doente.
Gregório assente com um sorriso cordial e vira o corpo para seguir
ao banheiro. Ele dá dois passos antes de uma mão gelada encobrir seu
pulso.
— Espera... — Gregório a encara, ainda sentindo os dedos magros
na sua pele. A mulher não continua.
— Você realmente está bem?
— Você... você não lembra de mim? Mesmo?
Um lampejo de dúvida perpassa os olhos de Gregório. Uma ideia
boba, improvável. Automaticamente descartada.
— Desculpa — ele desprende o braço e começa a se afastar —, eu
acho que você me confundiu com alguém. Realmente preciso ir.
Ele fala quase com medo. Quer sair dali o mais rápido possível.
Algo nessa situação não parece certo. Ele novamente se afasta, mas uma
palavra, quatro sílabas que determinaram toda a sua vida o interrompem.
— Gregório. — Ele tem a realização no momento em que escuta o
próprio nome. Fica estático, o choque percorrendo toda a sua espinha, se
espalhando e criando uma onda de pânico dentro dele. — Não lembra de
mim, filho?
CAPÍTULO 26
— O que você está fazendo aqui? — As palavras saem com uma
raiva evidente, mas não proposital. Gregório não entende porque está sendo
tão hostil. Achava que quando a encontrasse, a abraçaria imediatamente e
começaria a chorar. Mas essa mulher não parece sua mãe. Claro, ela ainda é
ela, mas parece outra pessoa. Não é a figura de pele lisa e macia que vive
nas suas lembranças. Ela não cheira a canela, mas a cigarro.
Ele quer voltar para Nicolas, para os livros, para os cookies, para a
vida que construiu. Quer se afastar desse peso que o suga como um buraco
negro, que o atrai a todos momentos em que está distraído. Tem medo do
que pode acontecer se chegar muito perto.
— Você não atendeu minhas ligações. — Gregório sente um aperto
no peito. Realmente era ela. Todas essas vezes, era ela. — Então, há uma
semana, eu vim aqui e um garoto me falou que você estaria nessa
competição. Achei que poderíamos conversar.
— Por que agora? — Ele quer se fechar em si mesmo. Segura os
próprios braços cruzados junto ao copo.
— As coisas mudaram — ela diz. Gregório vê tristeza naqueles
olhos. Arrependimento? Não tem certeza. Para ele nada mudou. Continuou
a viver sua vida sem ela todo esse tempo.
— Você não parece bem.
— Eu sei.
Eles estão sentados em um dos bancos do terceiro andar, no fim do
corredor, perto das janelas. Foi o lugar mais vazio que Gregório conseguiu
pensar.
O silêncio se estende pelo corredor vazio. O que ele deveria falar em
um momento como esse?
— Por que você foi embora? — Gregório deixa as palavras
escaparem quase como um sussurro. Já tinha essa pergunta nos lábios há
tanto tempo que nem se lembrava que ela estava ali, sempre presente.
— Quer mesmo falar disso?
— É, eu quero — ele assente.
— Naquela época eu tentava me convencer de muitas coisas. No
fim, nenhuma delas foi o suficiente pra me prender aqui.
“Não era minha vida dos sonhos, mas era definitivamente uma vida
que valia a pena. Minha mãe sempre sonhou com uma casa assim. Um
jardim bonito, dias calmos, contas pagas, marido amoroso, um filho para
continuar o nome da família. Chegava a ser entediante de tão tranquilo.
Trabalhava cinco vezes por semana em um escritório no centro, de vez em
quando almoçava em restaurantes caros e falava de problemas que eu não
me importava com pessoas que eu ligava menos ainda, e saia com o seu pai
quando sentia que ele estava se afastando. Eu sabia que ele nunca iria me
trair. Não, ele não é esse tipo de homem, só estava insatisfeito. Podia ver ele
me observando de soslaio. Eu me culpava por isso. Negligenciava as
necessidades dele, dava desculpas, me esquivava. No fundo sabia que ele
conseguia ver através de mim.
Toda vez que nos sentávamos para jantar eu via vocês dois ali, lado
a lado, brincando e rindo enquanto comiam, sentia vontade de rir e chorar
ao mesmo tempo. Não parecia real. Era como se eu não estivesse ali, e sim
do lado de fora da casa observando vocês pela janela, nunca perto o
suficiente para também rir. Aquele nunca foi o meu lugar. Era como viver
uma vida que eu não reconhecia.
Foi então que Deus me enviou um sinal.
Eu estava voltando para casa, nada mais do que os faróis iluminando
a escuridão enquanto eu acelerava. Não tinha pensamentos, era como estar
fora do meu corpo. Continuei assim por metros e mais metros, até que uma
sombra se moveu e de repente havia uma figura no meio da pista. Tentei
frear, desviar do que quer que fosse aquilo, mas meu esforço foi em vão.
Minhas mãos estavam duras, minha pulsação aumentando gradualmente, os
olhos arregalados, quando, em um instante, tudo se transformou em nada.
Acordei sendo sufocada pelo cinto de segurança. Minha cabeça
doía, meu braço ardia com cacos de vidro perfurando minha pele. Ao meu
lado, um galho de árvore havia atravessado o para-brisa e furado o banco.
Alguns centímetros mais para a esquerda, ele teria me matado.
Me soltei e desci do carro ainda cambaleando. Caminhei pela pista
sentindo meus pelos se arrepiarem com o frio. Alguns metros dali estava
um cachorro. O peito dele subia e descia buscando ar. Estava envolto por
sangue, com parte da barriga aberta. Podia ver uma gosma vermelho vivo
quase saindo de dentro dele. Me abaixei e observei a cena. Era grotesco.
Era real. Aquilo desprendeu alguma coisa de mim. Afaguei a cabeça dele e
a segurei com a minha mão. Encarei aqueles olhos pretos e húmidos até que
eles perdessem completamente a vida. Fiquei ali porque não sabia para
onde ir depois disso. Sentia uma urgência pulsante, precisava mudar, sentir,
correr, gritar. Naquele momento eu fiquei consciente da morte.
Fui para casa ainda sem conseguir me concentrar direito nas coisas
na minha frente. Deitei ao lado do seu pai, ainda com sangue nas mãos, e
chorei por horas. Tentava expurgar esse sentimento do meu corpo, mas não
adiantava. No meio da madrugada levantei, fui ao seu quarto e te vi lá.
Pequeno, frágil, com toda a vida pela frente. Algum tempo atrás eu também
tinha toda a vida pela frente, mas agora estava presa. Responsabilidades,
carreira, futuro, família. Eu não queria mais nada disso. Não podia
continuar ali. Sacrificar a minha vida por vocês. Não mais. Eu te amava
Gregório, sempre vou amar. Mas eu precisava me amar também. Tudo
aquilo. A pressão de criar um ser humano, atender as expectativas do seu
pai e dos outros, viver a vida perfeita. Era sufocante. Então fechei a porta e
fui embora descobrir o que eu queria.
— Você conseguiu? — Ele queria saber se valeu a pena. Todos os
momentos que ela perdeu, tudo que ela o fez passar, a saudade, a dúvida e a
culpa, em troca do desconhecido. Descobrir que ela foi embora por um
motivo tão bobo quanto uma crise de identidade o deixa ainda mais bravo.
Gregório passou todos esses anos tentando compensar uma culpa dentro de
si com estudo, exercícios extenuantes e controle. Era a única forma de
compensar não ter sido o suficiente para fazê-la ficar, mas agora que sabe a
verdade, que vê o completo absurdo da situação, tem vontade de descontar
tudo que sente.
— De certa forma.
— E por que voltou, então? — Está sendo ríspido.
— Eu queria resolver as coisas antes de... — Ela se conteve antes de
terminar a frase, mas a palavra ficou pairando no ar. Morrer. Era óbvio que
ela estava doente, cada aspecto dela afirmava isso. Desde o cabelo, até a
forma de andar, o gemido de dor ao se sentar, a voz rouca e fraca.
— O que é?
— Câncer.
— Em que estágio?
— O suficiente.
Gregório não soube o que responder. Assentiu com a cabeça, ainda
processando a informação. Ela iria morrer em breve. Sua mãe iria morrer.
Ele sempre pensou que teria alguma chance de tê-la na sua vida. Que ela
inesperadamente voltaria e eles recuperariam o tempo perdido. Tudo isso
desapareceu.
Ele não está triste. Não sente nada além de raiva.
— Se é um perdão final que você quer, não vai conseguir.
— Eu só queria que você soubesse de tudo.
Gregório abaixa a cabeça e cobre o rosto com as mãos. Quando
volta a olhar para a mãe, está chorando.
— Como você teve coragem de simplesmente ir embora e me
deixar? Eu precisava de você. Eu precisava que você estivesse aqui pra me
ajudar quando eu caísse de bicicleta, pra me dar parabéns quando eu
ganhasse uma competição, pra me proteger. — A voz dele vai se
misturando com as lágrimas e ficando cada vez mais fraca. — Eu te odeio,
eu te odeio tanto.
— Eu sei.
— Sai daqui! Vai embora! — A voz dele explode. — Eu tenho
certeza que você consegue fazer isso de novo.
— Gregório...
— VAI. — Ela se levanta assustada. Pega a bolsa apressadamente e
se afasta. Está com medo.
— Eu vou esperar lá fora, se quiser resolver as coisas me encontre,
senão, vou embora e não vou mais te incomodar.
Gregório fica sentado, sozinho, tentando recobrar a respiração.
Versos de uma mulher completamente perdida.
(Encontrados no chão do quarto do pai de Gregório, próximo a um copo quebrado e
gotas de sangue vivo)

Eu quero que você saiba que não é sobre você


não é sobre ele também
por favor, não deixe que ele pense isso
eu sei que o que eu estou fazendo é terrível e provavelmente vocês nunca vão me perdoar
mas eu preciso
é a única saída
eu não consigo mais
tentei, tentei de verdade
com todas as minhas forças
mas essa não sou eu e eu preciso de mim
eu preciso desesperadamente de mim mesma
cada parte do meu corpo pulsa por isso
eu quero me reconhecer no espelho
quero voltar a dançar
ser a criança que nunca deixei de ser

não posso fazer isso aqui

me desculpe
mil vezes, me desculpe, querido
CAPÍTULO 27
— Eu não acredito que vocês encontraram um jeito de estragar tudo,
de novo. — Maya está com o maxilar tão tensionado que poderia quebrar
um dente.
— Vinte minutos. É tudo o que eu preciso — Nicolas implora para
que Maya enrole o diretor mais alguns minutos. — Eu encontro ele, a gente
volta, vence a competição e eu te dou um presente muito caro.
— Nicolas, um de vocês já sumiu. Se você também for eu vou ter
dois problemas, é literalmente o dobro.
— Eu não vou sumir. É rápido. E sem ele a gente vai ser
desclassificado.
— Você tem dez minutos. É só o que posso fazer.
— Eu vou te fazer uma mulher rica, Maya. — Nicolas manda um
beijo para ela antes de sair correndo.
Ele passa pelos corredores abrindo todas as portas que encontra,
olhando atrás de cada mureta e em todo lugar escuro. Gregório não pode ter
desaparecido assim, tem que ter acontecido alguma coisa. Ele pergunta para
os alunos nos corredores, mas todos dão respostas vagas que o levam para
direções opostas. Ele vai para o jardim, vasculha todos os bancos, volta para
dentro, olha nos banheiros do primeiro andar, e está perto dos do segundo
quando encontra alguém.
Lucas levanta as sobrancelhas quando o vê se aproximando em
passos rápidos.
— Onde ele está, hein? — Nicolas o puxa pela gola. — Se eu
descobrir que você fez alguma coisa com ele eu acabo com você. Está me
entendendo?
— Ei, calma aí. Me solta. — Ele se desvencilha das mãos de
Nicolas. — Você não pode sair por aí segurando as pessoas assim...
— Fala logo — Nicolas o interrompe.
— Eu não sei onde seu namoradinho está. Ele deve, sei lá, ter
encontrado alguém importante? Não fiz nada.
Nicolas não acredita nele, mas não pode fazer nada para obrigá-lo a
falar. Ele o encara com nojo uma última vez e sai bufando. Tenta controlar o
desespero que cresce dentro de si enquanto passa pelos corredores
iluminados, mas é difícil. Está confuso sobre o que sente sobre Gregório, e
agora que ele sumiu... É demais para ele.
Ele procura nos banheiros do segundo andar, olha nos laboratórios
de informática, nos de química, na quadra de vôlei e dá uma olhadinha até
na piscina. Não se lembrava desse lugar ser tão grande.
Quando chega no terceiro andar, já está suado, desesperado. Bate
todas as portas com força, não se importa, só precisa encontrar Gregório.
Ouvir a voz dele, garantir que ele está bem. Chega no fim do corredor e
olha pela janela. O celular está vibrando com mensagens de Maya dizendo
que eles não têm mais tempo, mas ele não se importa mais com a
competição. Percebe que não tem se importado há um bom tempo. Estava
nessa porque era algo importante para Gregório. Porque podia ficar perto
dele, olhar para ele enquanto ele lia, ver a cara dele quando resolvia um
exercício difícil, ouvir as piadas sarcásticas, as provocações.
Porra, ele realmente estava gostando de Gregório.
Uma porta range ao lado de Nicolas. Ele entra e quase tropeça ao
ver Gregório sentado no chão, a cabeça entre as pernas, as mãos cobrindo o
rosto.
— Greg? — Ele se agacha e apoia a mão na perna do garoto. — O
que aconteceu? Você está bem?
Gregório levanta o rosto e Nicolas vê que os olhos dele não estão só
inchados, mas sem o brilho que costumam ter. Algo de muito ruim deve ter
acontecido.
Nicolas se senta no chão ao lado dele e Gregório segura a sua mão.
— Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. — Ele sente uma necessidade
fisiológica de resolver a situação. De descobrir quem fez isso com ele e
destruir a pessoa.
Gregório respira fundo e então conta o que aconteceu. Nicolas
escuta cada palavra atento, sem em nenhum momento soltar da mão dele.
Ele mal consegue acreditar. Se sente mal só de ouvir, não faz ideia
do que Gregório deve estar passando.
— Eu não sei. Quando ela foi embora eu só sentia que precisava
fazer algo para compensar. Precisava tirar as melhores notas, estudar mais,
ler mais, correr mais, vencer mais. Eu acho que não queria aceitar que ela
não ia mais voltar. — Ele fica em silêncio e Nicolas não sabe o que dizer.
— Bem, ela voltou, mas não durou muito.
— E nada disso é culpa sua. Você sabe.
— É...
— Ei — Nicolas chama a atenção para que ele olhe para ele. —
Você é a pessoa mais incrível que eu conheço. Você é bonito, inteligente,
engraçado. Eu não sou capaz de dizer um defeito sequer.
— Você costumava ser bom nisso — Gregório sussurra em um
sorriso discreto. Está funcionando.
— Eu sou bom em muitas coisas, eu admito — o sorriso de
Gregório aumenta um pouco mais —, mas agora eu te conheço de verdade e
posso dizer que você é muito melhor do que eu na maioria. E se ela não
quis ter a oportunidade de te conhecer, ela quem está perdendo.
— Obrigado, isso foi... — De repente, ele se desencosta da parede,
como se tivesse tomado um choque. — A competição! Meu Deus, nós
estamos perdendo a competição.
— Nós não precisamos ir.
— O que? Precisamos, sim.
— Você está bem o suficiente para isso? Se não estiver não se
preocupa, eu te ajudo com o dinheiro para a faculdade.
— Nossa, você... Só vem logo.
CAPÍTULO 28
Quando abrem as portas do auditório, tudo parece diferente. Dois
círculos de luz iluminam os palanques um na frente do outro, pequenas
lâmpadas entre as cadeiras da plateia marcam o caminho até o palco, e a
tensão flutua no ar, sustentada pelo silêncio incomum. Mesmo no escuro,
Gregório consegue ver que Maya os lança um olhar fulminante quando
chegam nos bastidores.
— Andem logo, eu tive que implorar para vocês não serem
desclassificados — ela sussurra e gesticula para que eles se apressem. — E
é bom que esse presente seja muito caro, senhor Nicolas. Não recebo o
suficiente para passar por isso.
— Depois de hoje eu te dou sua própria ilha, se quiser. — A voz de
Nicolas se extingue quando eles passam a cortina e dão de cara com Lucas
e Samuel já posicionados. O diretor os encara com as sobrancelhas juntas e
a testa franzida enquanto ajusta a gravata com uma mão e segura o
microfone com a outra. Eles se apressam e vão para os seus lugares.
— Apesar de alguns imprevistos técnicos — o diretor olha de
relance para eles —, finalmente podemos dar início a mais emocionante e
aguardada rodada da DAIB. A dupla que vencer, terá a honra de levar a
estatueta da competição, que simboliza a nossa estima pelo conhecimento e
pela cultura. — Os rostos mal iluminados na plateia parecem indiferentes
com o anunciado. — E vinte mil reais. De cortesia da instituição, é claro. —
Agora, sim. Palmas e gritos preenchem o ambiente.
Nicolas sorri, deslumbrado pelo momento, mas Gregório tem o
olhar fixo em um ponto no chão, está com a cabeça muito longe dali. Pensa
na conversa com a mãe. No que ela disse sobre não se sentir pertencente à
própria vida, como se estivesse longe enquanto ele e o pai estavam juntos.
A raiva começa a ser substituída por remorso, arrependimento, mágoa. O
que Gregório poderia ter feito para trazê-la para perto? Para mantê-la aqui?
Ele era só uma criança, mas poderia ter demonstrado mais carinho, ter
levado chá todas as noites como fazia com o pai e se despedir com um beijo
de boa noite. Ele poderia ter feito mais.
— Síndrome de Klinefelter. — A voz de Lucas traz Gregório de
volta para a realidade.
— Correto — o diretor diz, em meio a mais palmas. — Dez pontos
para a equipe dois.
— Nós temos que ser mais rápidos — Nicolas sussurra. Gregório
assente, tentando se concentrar no jogo.
— O que estipulou Dmitri Mendeleiev em sua... — Gregório aperta
a companhia e interrompe o homem. É uma pergunta simples, se lembra de
ter lido sobre isso na biblioteca.
Mendeleiev... A resposta estava na ponta da língua de Gregório um
segundo atrás. Ele era um químico, não era? Pelo nome, provavelmente
russo.
— Sim? — o diretor insinua para que ele responda. As luzes
parecem estar ficando mais fortes ou é impressão dele? Gregório afrouxa a
gravata no pescoço. Ele tem certeza de saber a resposta. Só tem que
expressar em palavras.
Ele abre a boca, profere algumas sílabas e gaguejos, mas trava.
— Ele criou a primeira tabela periódica, estipulando que as
propriedades dos elementos são função periódica do número de ordem ou
da carga do núcleo atômico. — Nicolas o salva.
— Correto. Dez pontos para a equipe seis.
— Você está bem? — Nicolas pega na mão dele e abaixa a cabeça,
esperando a resposta.
— Sim. É só que... estou com muita coisa na cabeça. Não é nada. —
Definitivamente é alguma coisa. Ele está com vontade de chorar, bem ali,
na frente de todo mundo, e a porra daquelas luzes estão cada vez mais
fortes.
— Qual foi e em que ano ocorreu o evento que marcou a derrota
definitiva de Napoleão Bonaparte? — Gregório vê Lucas se movimentando,
mas é mais rápido e aperta a campainha novamente.
— Foi a batalha de Waterloo, em mil oitocentos e... — Catorze ou
quinze? Droga, droga, droga. Por que a cabeça dele não está funcionando
direito? — Mil oitocentos e catorze.
— Incorreto. — A palavra desestabiliza Gregório ainda mais. Ele
errou? Faz anos que ele simplesmente não erra nada. Como isso é possível?
— Equipe dois?
— Batalha de Waterloo, mil oitocentos e quinze.
— Correto. Mais cinco pontos para a equipe dois.
E assim a disputa continua. Gregório se prepara para responder,
aperta a campainha, e na hora falha. Nicolas equilibra o jogo acertando
algumas questões em que Gregório se perde, mas a maioria delas são sobre
história, literatura, artes e ciências humanas no geral, o que não é a maior
habilidade de Nicolas. Ele garante pontos suficientes com perguntas de
física e química para deixar a competição par a par, mas ainda assim,
Gregório está afundando o time. Ele não consegue se concentrar. As
palavras da mãe estão gravadas na sua mente:

Se quiser resolver as coisas, me encontre, se não, vou embora e não


vou mais te incomodar.

Será que quando acabasse a competição ela ainda estaria lá?


Ele queria que ela estivesse?
Tem medo do que pode acontecer se deixá-la ir. Tem medo de não
conseguir se desprender desse laço tão forte que o liga a ela.
— O que é e como é formado um buraco negro? — A pergunta o
tira do transe e ele mecanicamente aperta a campainha. Esta é a última
pergunta. Lucas e Samuel estão cinco pontos à frente. Se ele errar, eles
perdem mesmo que o outro time não responda. Se acertar, ganham dez
pontos e vencem a competição.
Nicolas olha para ele, espantado.
Eu respondo, preciso disso.
Ele organiza as palavras antes de falar. Pensa na mãe, na vida que
ela sempre sonhou em ter e em como ela se afundou com o passar dos anos.
— Um buraco negro é o estágio final da vida de uma estrela
supermassiva. — Gregório se lembra das fotos da mãe na juventude. De
como ela sorria antes dele nascer. De como ela parecia resplandecente, uma
estrela. — Um corpo celeste que depois de tanto brilhar, se esgota e começa
a se expandir. Até que, em um dado momento, não caiba mais em si mesmo
e sofra um colapso gravitacional. Então a estrela se volta para dentro, e
diminui infinitamente de tamanho.
Ela não parecia mais uma pessoa real. Aquela mulher na sua frente
lembrava mais uma fotografia antiga e distorcida, o que sobrou depois que
tudo ruiu.
— Um buraco negro… — O celular de Gregório vibra. Ele para de
falar e olha para a tela. Já sabe de quem é.
Última chance. Estou indo…

Ele olha para as próprias mãos no palanque. Olha para Maya no


canto do palco, tentando disfarçar a empolgação e o favoritismo por eles.
Olha para os dedos mindinhos de Nicolas encostando nos seus. Olha para o
rosto dele. Lembra do trabalho. Lembra das noites em que vê filmes com o
pai. Lembra das tardes que passou na biblioteca com Nicolas.
Ele tem uma vida boa.
Ele tem uma vida completa.
E por mais que doa, talvez seja melhor deixar o passado no passado.
Ele fez tudo isso sem ela. Essa relação só o puxou para baixo, só o
preocupou e atrapalhou sua vida.
Está na hora de se libertar.
— Um buraco negro — ele retoma a resposta — atrai tudo a sua
volta com tanta intensidade que distorce o espaço e o tempo. É difícil
escapar, quase impossível. — Ele sorri para Nicolas. — Mas diferente do
que muitos pensam, não é algo totalmente determinado. Só não há volta
quando se chega perto demais e se cruza o horizonte de eventos. As estrelas
que passam desse ponto nunca mais retornam e se fundem ao buraco negro,
para sempre. Mas… é importante a gente lembrar que, antes disso, sempre é
possível escapar, por mais forte que a gravidade seja.
Sempre é possível se libertar.
CAPÍTULO 29
Gregório se sente leve. Poderia flutuar por aí se não fossem as mãos
de Nicolas segurando as suas. O mundo está tomado de confetes azul e
dourado. Eles caem como chuva e se espalham cada vez mais. A multidão
na plateia grita e aplaude os mais novos vencedores da competição.
Seria lindo. Mas ele só tem olhos para o sorriso de Nicolas na frente
dele. O cabelo loiro com algumas fitas azul caindo pelos olhos. Os lábios
vermelhos e convidativos.
O coração de Gregório parece pegar fogo. É como se um milhão de
borboletas estivessem voando dentro dele, implorando para sair. Ele sente
que pode explodir a qualquer momento.
— Nós vencemos — Nicolas diz, olhando nos olhos dele, ainda com
aquele maldito sorriso bobo no rosto.
— É, vencemos. — Gregório acaricia a mão dele com o polegar. A
pele é macia e quente. Muito quente.
Nicolas morde o lábio inferior e Gregório sente o ar fugindo dos
seus pulmões. Eles continuam se olhando nessa suspensão, analisando cada
detalhe do outro. O desejo parece emanar entre eles. É algo palpável, mais
forte do que qualquer distração.
— Pelo amor de Deus, se beijem logo! — Eles se viram e veem
Maya na plateia. Pela primeira vez, ela está sorrindo para os dois, as mãos
juntas ao peito em expectativa.
Eles se viram um para o outro novamente e riem. Isso é… muito
fofo.
— Que se foda.
Gregório segura o rosto de Nicolas com as duas mãos e leva os
lábios de encontro aos dele.
É um beijo intenso, apaixonado.
Não há nada no universo que possa separá-los nesse momento.
A plateia explode em aplausos.
CAPÍTULO 30
O mundo em volta deles se dissolve lentamente e todos os sons se
perdem em meio a euforia que palpita no peito de Gregório. Nada além dos
lábios de Nicolas existe.
Não há passado, não há futuro. Apenas aquele momento, dentre
todos os outros da história, é real.
A mão de Nicolas desliza pela cintura dele e o puxa mais para perto.
As bocas se encontram em movimentos lentos, mas intensos. Toda a raiva,
o ódio acumulado durante anos de rivalidade se extravasa ali. Talvez eles
nunca tenham se odiado. Talvez nunca souberam expressar o que sentiam e
acabaram arranjando uma forma alternativa de permanecerem juntos
durante os dias.
Beijar Nicolas é como estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
Uma vez ele encheu a paciência de Gregório falando sobre um gato teórico
que poderia estar em dois estados da matéria simultaneamente. Mas agora
Gregório entende.
É assim que é se sentir infinito.
EPÍLOGO
Beijar Nicolas é o melhor passatempo do mundo. Gregório adora ler
e tudo, mas sentir a língua de Nicolas deslizando pelos lábios e a mão
acariciando sua nuca é bem mais interessante. Ele poderia se perder
eternamente em cada detalhe do corpo desse garoto e nunca estaria
satisfeito.
Eles estão se agarrando em um divã antigo na sala da casa de
Nicolas, fazendo o quadro na parede acima deles balançar no mesmo ritmo.
Nicolas se concentra em praticamente devorar o pescoço de Gregório com
uma vontade tão intensa que o faz dar pequenos arquejos e gemidos.
Gregório passa a mão pela parte interna da coxa de Nicolas e contorna o
perímetro com os dedos. Consegue ver Nicolas sorrindo quando faz isso.
Puta merda… esse sorriso bobo é tão sexy.
— Ei, pombinhos. Está todo mundo esperando vocês. — Maya
balança a cabeça negativamente enquanto morde um bolinho de milho. —
Eu sempre falei, mas nunca acreditam em mim.
Ela volta para a cozinha se gabando com a mãe de Nicolas por ter
visto a paixão por trás de todas as brigas deles antes de todo mundo.
Gregório protesta quando Nicolas aos poucos se desgruda e sai de
cima dele. É como se seu corpo sentisse o espaço vazio que antes era
preenchido pelo calor e aconchego da pele de Nicolas.
— Vem. — Nicolas puxa as mãos de Gregório que ainda está
deitado preguiçosamente.
— A gente não pode ficar aqui mais um pouco?
Nicolas empurra ele para trás e encaixa o quadril no dele. Ele passa
a mão pelos fios negros na testa de Gregório e o beija.
— Não. — Ele se levanta de estopim e puxa Gregório antes que o
garoto possa reagir.
Depois do resultado dos vestibulares, os pais de Nicolas insistiram
em dar uma festa para comemorar a aprovação dos garotos. Gregório em
biologia, Nicolas em física.
Eles viram os resultados juntos em uma noite de terça feira. As
mãos entrelaçadas na frente do computador. Os pés batendo nervosamente
no chão até a confirmação das notas. Depois, jantaram pizza com o pai de
Gregório e dormiram juntos pela primeira vez. Seus corpos se encaixaram
naturalmente, a cabeça de Gregório aninhada no peito de Nicolas, os pés se
acariciando e as respirações sincronizadas. Um relaxamento que só é
possível quando se tem total intimidade e confiança com a outra pessoa.
Eles se viram todos os dias depois disso.
A festa é uma forma de marcar o fim de uma era, o ensino médio, as
disputas, as palavras não ditas e todo e qualquer ressentimento.
Para Gregório é o início de uma nova fase. Não sente mais o nó no
peito ao pensar na mãe. Não está mais preso no embolado desse laço.
Começou a fazer terapia online e está lidando com a autocobrança e a falta
que, mesmo que não admita, sente dela. Não sabe se ela ainda está viva ou
por onde anda. Acha que é melhor assim. O passado no passado. Olhos no
futuro.
A casa de Nicolas está cheia de pessoas das quais eles gostam. Os
colegas de trabalho e o pai de Gregório, a família e amigos da escola de
Nicolas, Maya e o porteiro, que aparentemente estão namorando, e até o
diretor prometeu passar para parabenizar os meninos.
O sol está brilhante no céu azul. A brisa fresca passa rodopiando
pelo jardim onde todos comem e riem das histórias absurdas que Maya
conta sobre os dois.
O futuro se estende diante de Gregório. Ele não sente mais que
precisa agarrá-lo com todas as forças. Não precisa provar nada, não precisa
preencher nada. Ele está feliz.
E, por enquanto, isso é o suficiente.
É maravilhoso.
AGRADECIMENTOS
Essa história surgiu de um momento complicado da minha vida.
Não tenho nada em comum com Gregório, mas compartilhamos a mesma
urgência no peito. O mesmo medo do tempo, a mesma falta de propósito
sem um plano milimetricamente traçado. Escrever todas essas palavras me
ajudou a entender que não preciso me agarrar ao passado, não preciso
provar nada para quem sequer está aqui. Eu posso ser feliz e amar as
pessoas à minha volta.
Existem muitas pessoas a quem eu preciso agradecer:
Para Karol, que acompanhou todo o processo e toda a minha
empolgação de perto, apesar de só ler a história nos últimos momentos
antes da publicação, eu te amo.
Para os meus leitores betas, Gabriel, Ryan e Ruth, vocês foram
muito mais do que eu poderia pedir nesse momento. Obrigado pelas
opiniões, ajuda e por surtar comigo no processo.
E por último, obrigado a todos que me acompanham nas redes
sociais e que estão lendo essa história. Se você for novo por aqui, pode me
conhecer mais nos links abaixo, ou em @joaoboesing em todos os lugares:
Instagram
Tiktok
E até a próxima.
Obrigado, de verdade, isso não existiria sem vocês.

Com carinho, joaoboesing.


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