Estudos e Debates: Estrutura Social e Descolonização em Angola

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estudos

e debates
Franz-Wilhelm Heimer

Estrutura social
e descolonização em Angola
Na primeira parte deste artigo, traça-se um quadro
global da estrutura social angolana tal como hoje se apre-
senta, e examina-se o processo histórico —em que se distin-
guem diversas fases fundamentais— através do qual essa
estrutura se constituiu. Analisa-se, seguidamente o papel de-
sempenhado, na formação e consolidação dessa estrutura, por
um dos mecanismos sociais mais importantes: o sistema de
ensino. A partir das análises anteriores, estudam-se depois,
em termos genéricos, as condições necessárias à concretização
de um novo «projecto societal» angolano, regido por um certo
número de principias essenciais, geralmente aceites pelas for-
mações políticas que exprimem, em Angola, as aspirações dos
diversos segmentos da população. Esboça-se, deste modo, um
«modelo societal» para a Angola do futuro, modelo fundado
na convivência racial e étnica, na «justiça social», no desen-
volvimento económico integrado e na independência efectiva.
A concluir, apontam-se algumas funções que parecem caber
ao sistema de ensino, na reconversão da sociedade angolana.

INTRODUÇÃO
Angola constitui uma ilustração particularmente nítida de
que a independência política não é, só por si, sinónimo de descolo-
nização. Sendo embora fundamental, o actual processo de trans-
ferência da soberania sobre o território dos representantes da
legitimidade portuguesa para representantes de uma legitimidade
angolana em vias de definir-se, não representa senão uma con-
dição prévia para a obra de «construção nacional» que se impõe \

1
O termo «construção nacional» é utilizado aqui no sentido de «nation-
-building». Cf. Karl W. DEUTSCH & William J. FOLTZ, eds., Nation-Building,
Nova Iorque, 1963. A achega que apresentamos adiante evidenciará que não
aderimos à corrente que se serve desse conceito numa perspectiva teórico-
-ideológica tendente a «escamotear» realidades sociais conflituais. 621
Tratar-se-á, fundamentalmente, de possibilitar e de promover a
elaboração de uma sociedade angolana plenamente aceitável e
aceite por todas as partes que a compõem.
Não faltam, por certo, os esforços de reflexão e de imaginação
com o intuito de reunir elementos para um «projecto societal» para
Angola2, e em vários sectores —tal como o da educação— dis-
cutem-se políticas concretas concebidas para ajudar a preparar
uma sociedade capaz de superar os vícios da época colonial. A di-
ficuldade com que esbarram estes esforços consiste, porém, em
que, ao esboçar um «projecto societal» para Angola, e certamente
ao propor modalidades concretas destinadas à realização de tal
projecto, é imprescindível partir do conhecimento das virtuali-
dades que a actual realidade social comporta.
Ora, uma das características do regime político português
anterior ao 25 de Abril de 1974 foi a de não ter permitido um
conhecimento seguro da realidade social nos territórios sob a sua
dominação colonial. Em Angola, foi possível, na última década,
produzir um certo número de informações e de análises parciais 3 ;
no entanto, estas não se encontravam geralmente disponíveis, e
por conseguinte não puderam ser aproveitadas para a compreen-
são estrutural de uma situação de que a ideologia colonial apre-
sentou, desde sempre, uma imagem distorcida. Deste modo, o que
em Angola aparece como dissentimento em relação a opções polí-
ticas gerais ou específicas, muitas vezes nada mais é que o reflexo
de imagens fragmentadas, difusas e/ou ideologicamente viciadas
da realidade societal do país.
A finalidade do ensaio que se segue é a de contribuir para o
esforço de superar esta situação. Mais especificamente, proporá
uma achega interpretativa que se baseia, por um lado, na tentativa
das ciências sociais para compreender o fenómeno do desenvolvi-
mento/subdesenvolvimento em termos globais/estruturais e como
função da interacção entre sociedades, e por outro, nos resultados
de pesquisas, próprias e alheias, sobre Angola. Apresentada sob
a forma de um quadro extremamente esquemático, tal achega
necessita, evidentemente, de elaboração ulterior e de controlo pelo
material empírico que as ciências sociais irão produzindo; desde
já, aparece, no entanto, como um instrumento útil e adequado para
preparar uma visão simultaneamente global e diferenciada da
realidade angolana.
Tentar-se-á ainda demonstrar que essa achega não tem, apenas,
utilidade analítica, pois que permite, para além disso, traduzir em
termos mais concretos as ideias normativas existentes em relação
ao que deverá ser a futura sociedade angolana.
2
Usa-se o adjectiva «societal» para nos referirmos a uma sociedade
considerada como um todo. «Projecto» designa o «modelo» que se propõe
seja adoptado por uma dada sociedade. Cf. o uso deste conceito em Celso
FURTADO,
3
Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1968.
Esta situação é ilustrada pela colectânea editada por Franz-Wilhelm
HEIMER, Social Change in Angola, Munique, 1973. Convém assinalar que o
estudo de Mário de ANDRADE & Marc OLLIVIER, La Guerre en Angola: Etude
socio-economique, Paris, 1971 (publicado em português sob o título A Guerra
em Angola, Lisboa, Seara Nova, 1974), utilizando parte do material empírico
622 então disponível, constituiu um primeiro ensaio de análise global.
Finalmente, a utilidade analítica e projectiva da achega que
exporemos, será ilustrada por uma aplicação a um sector preciso,
o do ensino. Esta aplicação será feita em termos altamente sumá-
rios: não pretenderá, de maneira alguma, equacionar na sua tota-
lidade a problemática educacional, mas apenas recorrer a essa
problemática para demonstrar, por meio de um exemplo, as possí-
veis incidências da achega global.
Propomo-nos esboçar, inicialmente, um quadro global da
sociedade angolana, tal como se apresenta hoje, em resultado de
um processo histórico. Este esboço não terá a pretensão de ser
mais do que um quadro de referência, de carácter extremamente
esquemático, já que serão necessários estudos e pesquisas de vulto,
para se poder tratar o tema focado em toda a sua complexidade.
Num segundo passo, destacaremos, de maneira igualmente re-
sumida, o papel que desempenhou, na formação da sociedade ango-
lana, um dos mecanismos sociais mais importantes: o ensino.
Num terceiro passo, examinaremos algumas das implicações
destas análises para o processo de elaboração de uma futura so-
ciedade angolana, regida por alguns princípios fundamentais geral-
mente aceites.
Num quarto e último passo, focaremos de novo os mecanis-
mos educacionais, desta vez para formular algumas considerações
sobre a sua função no quadro de um «projecto societal» angolano.

FORMAÇÃO E ESTRUTURA
DA SOCIEDADE ANGOLANA

1. Perspectivas analíticas
;r
" 77 "
Na sua forma presente, a sociedade angolana é o resultado
de um processo concreto de colonização: esta constatação, que
mais não expressa que a própria evidência, é no entanto o ponto de
partida necessário para qualquer análise, seja em termos de génese
histórica, seja em termos de situação actual.
Não se pode, todavia, atingir uma compreensão adequada
do processo de colonização em Angola e dos seus resultados socie-
tais, enquanto não se colocar esse processo no contexto em que se
produziu, relativizando-o duplamente.
Por um lado, o processo verificado em Angola insere-se no
processo mais amplo da colonização europeia, fenómeno de consi-
derável extensão, que obedeceu a um pequeno número de padrões
básicos em todas as latitudes onde incidiu. Houve, naturalmente,
particularidades, segundo a metrópole colonizadora, o território
colonizado e a época histórica; mas fundamentalmente, trata-se
de um mesmo fenómeno. Por conseguinte, o que se verificou e
verifica em Angola não se pode validamente analisar a título de
caso singular, nem mesmo apenas a título de um dos territórios
sobre os quais incidiu o processo da colonização portuguesa. Ê im- 623
prescindível examinar o «caso de Angola» a partir do parâmetro
mais amplo que é o processo global 'da colonização europeia.
Por outro lado, mesmo o processo global da colonização euro-
peia não constitui, só por si, um quadro de referência inteiramente
adequado. Oom efeito, a colonização europeia —ou seja, o estabele-
cimento e a manutenção da soberania política de países europeus
sobre sociedades não-europeias e os mecanismos económicos e
culturais concomitantes— não representa senão uma dimensão,
entre outras, de um processo histórico bem mais complexo. Trata-se
do «desenvolvimento privilegiado» dos países europeus — graças à
evolução nos seus modos de produção, à adopção de novas tecno-
logias, à acumulação acentuada de capital, à criação de formas
«eficientes» de organização social, etc.—, desenvolvimento que,
em medida considerável, foi possibilitado por um «intercâmbio
desigual» 4, no plano económico, entre os países europeus e grande
parte das sociedades não-europeias. Esta dicotomia exige, porém,
uma dupla diferenciação. Por um lado, nem todos os países euro-
peus participaram nos mesmos termos no «desenvolvimento privi-
legiado», havendo inclusive «intercâmbio desigual» entre países
europeus; por outro lado, o grupo dos países privilegiados passou,
em dado momento histórico, a abranger países não-europeus, como
os Estados-Unidos, o Canadá e o Japão. Ê, portanto, preferível
adoptar a distinção entre metrópoles económicas e países depen-
dentes. Neste contexto, a colonização europeia, no sentido acima
definido, foi apenas um áos mecanismos pelos quais países tornados
metrópoles mantinham —e mantêm— em dependência outros
países, garantindo a si mesmos, desse modo, as «razões de troca»
favoráveis ao seu próprio desenvolvimento. Inevitavelmente, a
contrapartida do conjunto destes mecanismos foi a estagnação e
a regressão, em grau maior ou menor, das sociedades dependentes
— isto é, tanto das sociedades sob dominação colonial, quanto dos
países dotados de independência política (oriundos ou não de uma
fase de colonização) mas que, devido ao impacto das metrópoles,
não dispuseram de condições que lhe® permitissem determinar, eles
próprios, o seu desenvolvimento económico e a sua formação
social5.
A consequência foi, e continua a ser, uma divisão cada vez
mais acentuada do mundo em «países desenvolvidos» e «países
subdesenvolvidos» 6, sendo todavia de anotar que, entre estes últi-
mos, alguns passaram a uma forma ou outra de «desenvolvimento
periférico», permitida pelas metrópoles na medida em que favo-
recia o desenvolvimento destas 7 .
*6 Cf. Arghiri EMMANUEL, Uéchange inégal, Paris, 1969.
O exemplo mais em evidência de países com independência política
e dependência económica é, provavelmente, o da América Latina. Celso
FURTADO, Desenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro,
1968, 6é apenas um entre muitos estudos a este respeito.
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) chegou à conclusão de que, globalmente, a distância entre estes
dois grupos aumentou, nos últimos decénios. Cf. Michael BOHNET, Das Nord-
-Sued-Problem. Konflikte zvoischen Industrie und Entwicklungslaender, Mu-
nique,7 1971.
Uma das formas mais recentes e mais «adiantadas» é a do «desen-
Não há dúvida de que é altamente insatisfatória uma evocação
tão sumária de um processo extremamente complexo e diferen-
ciado. Parece-nos, porém, lícita na medida em que se verificam
neste domínio —além de um volume considerável de pesquisas
empíricas, dedicadas a casos ou aspectos parciais— esforços bas-
tante adiantados no sentido de elaborar um instrumental analítico
capaz de apreender, na sua totalidade, o processo em questão e de
detectar a sua8 estrutura fundamental, através de uma abordagem
multifacetada . Sem dúvida que deverão prosseguir tanto as inves-
tigações empíricas quanto o aperfeiçoamento do instrumental ana-
lítico. Mas o labor científico realizado fornece-nos, desde já, ura
quadro de referência que nos permite apontar para as dimensões
constitutivas do «caso de Angola». Fundamentalmente, Angola
aparecer-nos-á como um território habitado por diferentes socie-
dades africanas, com as quais uma metrópole europeia — ela pró-
pria economicamente dependente de outras metrópoles europeias —
organizou um «intercâmbio desigual» cujas formas variaram ao
longo do tempo e que levou à criação no território angolano, para
além das sociedades africanas originais, de uma sociedade colonial
com crescente dinâmica própria.
Ao desenvolver a nossa análise segundo estas linhas, utiliza-
remos, complementarmente e de maneira heurística, um instru-
mento analítico de elaboração mais recente, baseado em trabalhos
empíricos e teóricos da ecologia. Trata-s:e da teoria dos ecossiste-
mas, em vias de se transformar numa teoria dos sistemas eco-
-culturais e que foca certos aspectos estruturais das sociedades
humanas, assim como das interacções destas sociedades entre si
e com o seu ambiente natural respectivo. Concebendo uma socie-
dade humana mais o seu «ambiente natural» como um sistema eco-
-cultural, descobre-se que um desenvolvimento autêntico de tal
sistema não pode ster entendido em termos de um mero crescimento
global, quantitativo, mas em termos de um aumento equilibrado de
complexidade (diversificação), e que o subdesenvolvimento con-
siste numa perda de complexidade (regressão estrutural). Para
que um desenvolvimento/diversificação possa produzir-se, é neces-
sário que a sociedade humana em questão disponha da capacidade

volvimento associado», que começa a verificar-se em países como o Brasil


e o Irão. Cf. Fernando Henrique CARDOSO, «AS contradições do desenvolvi-
mento associado», comunicação à Conferência sobre Dependência e Estru-
turas de Poder, organizada pela Deutsche Stiftung fur Internationale Entwick-
lung, Berlim, 1973 (publicada em inglês sob o título «Associated-Dependent
Development: Theoretical and Praticai Implications» in Alfred STEPAN, ed.,
Authoritarian
8
Brasil, New Haven, 1973.
São de importância central, neste contexto, as obras de Samir AMIN,
especialmente Uaccumulation à Véchélle mondiale: Critique de Ia théorie du
sous-développement, Paris, 1971 e Le développement inégál: essai sur les
formes sociales du capitálisme périphérique, Paris, 1973. Estes livros ofere-
cem, ao mesmo tempo, extensas bibliografias sobre estudos empíricos e obras
de construção de teorias analíticas, relevantes no contexto. Compilações bi-
bliográficas complementares podem ser encontradas em duas colectâneas
editadas por Dieter Senghaas, Imperialismus und strukturelle Gewatt: Ana-
lysen ueber abhaengige Reproduktion e Peripherer Kapitalismus: Analysen
ueber Abhaengigkeit und Unterentwicklung, Frankfurt, 1972 e 1974. 625
e da possibilidade de autoregular-se; inversamente, o subdesenvol-
vimento/regressãq vai sempre >de par com uma diminuição da
capacidade/possibilidade de autoregulação.
Dado que uma das causas mais frequentes do subdesenvolvi-
mento é a «drenagem» da produtividade líquida de um sistema
eco-cultural, em benefício de um outro sistema que se encontra num
nível superior de desenvolvimento, estabelecesse assim a «junção»
entre esta abordagem e a acima referilda. Usando uma «linguagem»
diferente, ambas chamam a atenção para o facto de que um «inter-
câmbio desigual» («drenagem») significa subdesenvolvimento para
a sociedade «dependente», e que um desenvolvimento autêntico
das sociedades «dependentes» é, necessariamente, «autocentrado»,
ou seja: produto de uma «autoregulação» recuperada por essas
sociedades9.
Utilizando estas «ferramentas analíticas» para apresentar um
esboço, ainda que resumido, do 10que foi o processo da formação
estrutural da sociedade angolana , temos a garantia de podermos
evitar ao menos os mais fundamentais equívocos correntes, que
existem a este respeito.
Apoiar-nos-emos, na formulação do nosso esboço, num corpo
de documentação e estudos, que com certeza é ainda incompleto,
mas que oferece desde já dados primários e análises parciais em
número e qualidade suficientes para fundamentar uma análise nos
moldes acima expostos u .

9
A apresentação mais actualizada da teoria dos sistemas eco-culturais
é: Jorge Vieira da SILVA,, Ecologie et ãéveloppement, documento policopiado,
Paris, Université Paris VII, 1974. A achega já foi utilizada em diferentes
estudos regionais sobre Angola. Cf. Jorge Vieira da SILVA e Júlio Artur de
MORAIS, «Ecological Conditions of Social Change in the Central Highlands of
Angola», in Franz-Wilhelm HEIMER (ed.), Social Change in Angola,
Munique, 1973, pp. 93-109; Eduardo Cruz de CARVALHO & Jorge Vieira da
SILVA, «The Cunene Region: Ecological Analysis of an African Agropastoral
System», ibidem, pp. 145-192; Júlio Artur de MORAIS, Contribution à Vétude
des écosystèmes pastoraux: Les Vakuváls ãu Chingo, tese de doutoramento,
Paris, Université Paris vn, 1974
10
Repetimos que, por ser resumido e esquemático, o esboço se limita a
apontar para as dimensões mais importantes, não representando, portanto,
uma análise exaustiva e matizada. Repetimos, ainda, que consideramos urgente
uma análise profunda, com este mesmo enfoque.
11
Infelizmente, falta, até hoje, um levantamento sistemático da do-
cumentação existente sobre Angola, como também ainda não existe uma com-
pilação bibliográfica (nem muito menos, uma bibliografia comentada) dos
estudos sobre Angola, produzidos pelas ciências sociais (em sentido lato),
especialmente nos últimos vinte anos. A este último respeito, o anexo biblio-
gráfico em Douglas L. WHEELER & René PELISSIER, Angola, Londres, 1969, e
as referências bibliográficas nos estudos contidos em David M. ABSHIRE &
Michael A. SAMUELS (editores), Portuguese Africa: A Handbook, Londres,
1969 e Franz-Wilhelm HEIMER (ed.), op. cit., sem cobrirem o terreno de
maneira exaustiva, constituem ilustrações úteis da base relativamente ampla
de que se dispõe, hoje em dia, para a elaboração de esquemas compreensivos
de análise e interpretação. Remetemos, portanto, o leitor interessado para
essas indicações, limitando-nos a algumas poucas referências específicas,
durante a nossa análise esquemática.

626
2. A época pré-colonial
Não é por perfeccionismo científico que inserimos este ponto,
mas porque, não apenas a história de Angola, mas também a sua
realidade presente, somente se entendem desde que se possua uma
certa ideia acerca das sociedades africanas existentes no território
antes da chegada dos europeus.
Para os nossos fins, basta salientar os seguintes factos:
Não se possuem conhecimentos totalmente seguros sobre a
população pré-banta, presumivelmente constituída por
proto-bosquímanos. Os indicadores disponíveis apontam
para uma cobertura demográfica escassa e intermitente,
por sociedades pequenas, pouco diferenciadas e em baixo
nível tecnológico.
Num momento seguramente vários séculos anterior à chegada
dos europeus, mas que é ainda impossível determinar com
a exactidão desejável, os antepassados das actuais popu-
lações bantas estabeleceram-se no território angolano de
hoje, no decurso de uma penetração lenta. Como resultado
de um processo de diferenciação e consolidação, formou-
-se no Norte a sociedade Kongo, chegando a constituir
uma unidade política e um «sástema eco-cultural» de
apreciável extensão, complexidade e maturidade (capaci-
dade de autoregulação) —sem, no entanto, alcançar o
nível de certas sociedades políticas que, naquela época
(século xv), já existiam noutras partes da Africa.
Ao sul do «Reino do Congo», encontravam-se sociedades
mais pequenas e menos desenvolvidas, mas já em vias de
se articularem em unidades maiores e mais diversifica-
das— as formadas pela etnia dos Mbundu.
Enquanto, assim, os povos bantos do Norte já tinham formado
sociedades geograficamente estáveis, embora em graus
distintos de consolidação, a penetração do Leste não le-
vou, até o século xv, à formação de unidades sociais maio-
res no solo da presente Angola.
Durante toda esta época, continua fraca e intermitente a co-
bertura demográfica ao Sul (e Oeste) do Cuanza e no
espaço que, presentemente, corresponde ao «universo
agro-pastoril».

3. Quatro séculos de presença portuguesa no litoral angolano

Contrariamente a uma ideia muito divulgada, a chegada dos


portugueses, no fim do século XV, às terras que viriam a constituir
Angola, não significou o início de uma fase de ocupação colonial.
Com efeito, durante aproximadamente quatrocentos anos, ou
seja, até meados do século xix, a presença portuguesa, relevante
para o actual território de Angola, liniitou-se, praticamente, a São
Tomé e Príncipe, Luanda com uma faixa exígua de território anexo 627
(o conjunto chamado de «Angola») e Benguela com as suas adja-
cências 12 .
O impacto desta presença sobre as sociedades africanas variou
bastante, de acordo com a sua localização geográfica, com o seu
nível de desenvolvimento ao tomar contacto com os portugueses,
com o tipo exacto de interacção que se estabeleceu com estes e
com uma série de outros conidicionalismos, que aliás variaram ao
longo dos séculos.
As relações «de igual para igual» que, de início, se estabelece-
ram entre Portugal e o «Reino do Congo» e que nessa fase ocasio-
naram poucas interacções não meramente simbólicas, transforma-
ram-se desde a primeira metaide do século xvi. Na verdade, um
escasso século de hegemoriia colonial na Ãsia tinha habituado Por-
tugal a utilizar os lucros da sua expansão colonial para, em medida
crescente, adquirir produtos manufacturados, e mesmo bens de
primeira necessidade (p. ex.: trigo), noutros países europeus, mor-
mente na Inglaterra, negligenciando deste modo o seu desenvolvi-
mento/diversificação industrial e até agrário.
Assim, depois do declínio do «comércio asiático», Portugal
viu-se na contingência de recorrer a outros mecanismos para con-
seguir, no «Ultramar», os meios indispensáveis para poder manter
as suas «trocas» com outros países europeus (trocas que, de resto,
tiveram um carácter nitidamente «desigual» e contribuíram para o
desenvolvimento destes últimos países). O mecanismo principal
passou a ser a procura de mão-de-obra escrava africana, destinada,
em parte, à venda a terceiros (p. ex., aos Fante e Ashanti na Costa
do Ouro, às possessões espanholas das Antilhas), mas sobretudo
a produzir, em São Tomé e depois no Brasil, «bens coloniais»
(açúcar, etc.), para os quais existia uma procura da parte de outros
países europeus 18.
Das sociedades africanas situadas no actual território de An-
gola, o «Reino do Congo» foi o primeiro atingido pela procura por-
12
Durante certas fases, não faltaram tentativas no sentido de estender
a ocupação colonial para além destas «testas de ponte». Essas tentativas
falharam, porque a superioridade portuguesa, em termos de tecnologia mili-
tar, ainda era extremamente limitada e neutralizada pelo facto de o europeu,
ainda não apoiado por uma medicina tropical, oferecer pouca resistência ao
clima africano e às doenças endémicas típicas do continente. A razão última
do abandono destas tentativas foi, no entanto, a fixação do «sistema de troca»
exposto adiante e que tornou a ocupação colonial desnecessária. Cf. David
BIRMINGHAM, The Portuguese conquest of Angola, Londres, 1955 e ID., «The
African response to Early Portuguese Activities in Angola», in Ronald H.
CHILCOTE, ed., Protest and Resistance in Angola and Brasil, Berkeley, 1972,
pp. 11-18.
13
A respeito deste complexo mecanismo de «trocas desiguais» e da estag-
nação e até regressão que daí resultou para Portugal, encontram-se elementos
de informação nas obras de J. P. Oliveira MARTINS, especialmente: O Brasil
e as Colónias Portuguesas e Portugal em África, e em estudos como os de
Narama COISSACÓ, Politica Ultramarina, vol. I, Da Revolução Americana à
Conferência de Berlim, Lisboa, 1968. Charles R. BOXER, The Portuguese Sea-
borne Empire. 1415-1825, Londres, 1969 e Marvin HARRIS, «PortugaTs Con-
tribution to the Underdevelopment of Africa and Brasil», in Ronald H. CHIL-
COTE, ed., op. cit., pp. 209-223. Cfr. também Walter RODNEY, HOW Europe
underdeveloped Africa, Londres e Dar-es-Salem, 1972, e E. A. BRETL, Colo-
628 nialism and Underdevelopment in East Africa, Londres, 1974.
tuguesa de escravos. Desde que este tráfico assumiu amplas
proporções, evidenoiou-se o seu impacto corrosivo, em termos
económicos, políticos e culturais. Começou uma estagnação, uma
regressão e, por fim, uma decomposição do sistema eco-cultural
Kongo, às quais este não conseguiu opor-se: a batalha de Mbwila,
no século xvii, pôs termo à última tentativa séria de resistência.
O «Reino do Congo», cuja independência política não foi contestada
por Portugal durante toda esta época, 14entrou numa decadência da
qual não conseguiu jamais levantasse .
Quanto aos Mbundu, somente uma parte muito reduzida deles
ficou sob o domínio português, depois da fundação de Luanda e da
ocupação do interior adjacente, não se registando, praticamente,
extensão da área sob domínio colonial directo, a partir da segunda
metade do século XVII.
De resto, a resistência contra as tentativas portuguesas de
estenderem o seu domínio fez com que se acelerasse o processo de
constituição de unidades políticas maiores, tais como a do Ngola-
-a-Kílvanje e a da Matamba. Um caso particular é o do «reino»
de Kasanje, com «substrato» Mbundu, mas organizado e dominado
pelos Imbangala, oriundos do Leste. Todas estas sociedades soube-
ram evitar a ocupação pelos portugueses, mas foram levadas— por
«persuação comercial», pressão militar e manobras políticas— a
aceitar o tráfico de escravos que —a curto, médio ou longo
prazo— originou processos de regressão análogos ao verificado
na sociedade Kongo15.
Enquanto isto, a história dos povos no Leste de Angola — os
Lunda, os Tshokwe e o conjunto dos povos comummente chamados
Ngangela— processa-se com um grau muito menor de influência
europeia. É certo que os situados mais ao Norte entravam, em
certa medida, no circuito do tráfico atlântico de escravos; mas este
envolvimento (em geral indirecto, já que os Imbangala vedavam
o contacto directo com os portugueses) não chegou ao ponto de
ter efeitos disruptivos sobre os sistemas eco-culturais que se arti-
culavam. Assim, verifica-se, durante esta época, uma continuada
penetração africana do Leste da actual Angola, sendo o fenómeno
ultimamente mais saliente a migração dos Tshokwe (constituídos
em unidades maiores ou menores), migração que prosseguiu até
meados do século presente.
De importância fulcral, não somente para a fase histórica
aqui considerada, mas também —possivelmente mais— para a
14
O estudo mais completo sobre este «caso» é, provavelmente, o de
W. G. D. RANDLES.
15
Apesar de fontes relativamente bem fornecidas, ainda falta uma aná-
lise completa e diferenciada da história das sociedades Mbundu. Um subsídio
importante é o estudo de David BIRMINGHAM, Trade and Conflict in Angola:
The Ubunder and their Neighbours under the Influence of the Portuguese.
1483-1790, Oxford, 1966. Em contrapartida a história dos Imbangala foi am-
plamente estudada por Joseph C. MILLER, especialmente em Kings and Kins-
men: Early Mbundu States in Angola, Oxford (no prelo). A respeito do pro-
blema específico do impacto do tráfico atlântico de escravos sobre a sociedade
Imbangala, cf. o artigo do mesmo autor, «Slaves, Slavers and Social Change
in Nineteenth Century Kasanje», in Franz-Wilhelm HEIMER (ed.), op. cit.,
pp. 9-29. 629
fase subsequente e contemporânea, foi a formação das sociedades
Ovimbundu, no Planalto Central. Estas novas soci&kdfe, cujo
«substrato» é fornecido tanto por populações bantas anteriormente
implantadas na região, quanto por elementos Mbundu deslocados
do Norte para o Sul do Cuanza, são geralmente «enquadradas»
por uma «aristocracia» de descendência Imbangala. Graças à sua
posição geográfica, puderam desenvolver-se sem uma interferência
incisiva da parte dos europeus, tirando partido dos seus recursos
naturais, tecnológicos e sociais e beneficiando de uma interacção
comercial cada vez mais intensa com outras sociedades africanas 16.
No Sul, observa-se uma ocupação por povos (agro)-pastores,
que levou à constituição de alguns sistemas eco-eulturais (e polí-
ticos) de maior envergadura, a partir do século xvn («reino» de
Matama), sendo a última que ocorreu, na época em estudo, a dos
Ovambo — e, mais particularmente, a dos Okwanyama —, já nos
séculos xvin e xix, incidindo tanto no território da actual Namíbia
quanto no da Angola de hoje. A articulação, o desenvolvimento e
a ocasional decomposição destas sociedades (pressionadas por ou-
tras, emigradas de uma Africa do Sul com crescente penetração
bóer) processaram-se, até ao séc. xix, praticamente, sem contacto
algum com os portugueses.
No fim desta fase, o actual território de Angola encontrava-se,
portanto, povoado por sociedades africanas politicamente indepen-
dentes, 17algumas de envergadura média, outras de pequena enver-
gadura . Estas sociedades situavam-se em diferentes níveis de
desenvolvimento/diferenciação e de capacidade de autoregulação,
havendo uma espécie de «correlação negativa» entre a sua tendên-
cia para uma diferenciação/maturidade maior e a intensidade dos
seus contactos com os portugueses.
Estes últimos continuavam a formar duas «micro-sociedades»
(Luanda e seu território anexo; Benguela e suas adjacências), de
um tipo decididamente colonial, no sentido de a sua existência
depender, por um lado, do interesse da metrópole — e, em última
análise, da Inglaterra, o maior beneficiário— em manter o «cir-
cuito de trocas» acima descrito18, e por outro, da sua capacidade/
/possibilidade de organizar o «intercâmbio desigual» com as socie-
dades africanas, quase exclusivamente em termos de tráfico de
escravos. Apesar das suas dimensões reduzidas, estas sociedades
constituíam sistemas eco-culturais claramente estratificados, sendo
o seu «centro» formado por um núcleo pequeno de europeus e

16
Cf. Joseph C. MiLLER, Kings and Kinsmen, op. cit., e Gladwyn M.
CHILDS, Um bundu Kinship and Character, Londres, 1949, pp. 164 e segs. Para
uma sinopse, cf. Hermann POESSINGER, «Interrelations Between Economic
and Social Change in Rural Africa: The Case of The Ovimbundu of Angola»,
in Franz-Wilhem HEIMER (ed.), op. cit., pp. 31-52.
17
Os termos de comparação são as grandes sociedades existentes noutras
partes da Africa. Cf., por ex., Robert e Marianne CORNEVIN, Histoire de VAfri-
que, des
18
Origines à nos Jours, Paris, 1964.
Entravam também em jogo, maciçamente, os interesses do Brasil que,
em certa altura, chegou a ter um controlo maior do que a metrópole sobre as
630 «testas de ponte» em Angola.
«assimilados» 19, e a sua «periferia», por africanos «não-assimi-
lados».

4. A fase da ocupação colonial


Desde o começo do século XIX, verificou-se a abolição progres-
siva do tráfico atlântico de escravos. O motivo último do abandono
deste mecanismo foi o facto de os países europeus mais desenvol-
vidos terem alcançado um estágio em que o recurso à economia es-
clavagista — por eles próprios ou por outros países europeus — se
tornara prejudicial ao modo de produção que tinham adoptado e,
portanto, à continuação do seu desenvolvimento.
Portugal teve de ceder à pressão desses países —novamente
encabeçados pela Inglaterra—, numa fase em que a sua sobrevi-
vência como Estado politicamente independente esteve tempora-
riamente ameaçada, o que aliás facilitou o acto da independência
por parte do Brasil. É oportuno destacar que a razão última deste
acto residiu na conjugação dos interesses da Inglaterra e do
«centro» do sistema eco-cultural colonial brasileiro, no sentido de
o intercâmbio (obrigatoriamente desigual) entre eles se passar a
organizar de maneira directa, isto é, eliminando a função interme-
diária de Portugal. E lembre-se que esta dependência económica
directa do Brasil, em relação à Inglaterra e a outras metrópoles
europeias, levou, primeiro, à blocagem das importações de escravos
para o Brasil, em seguida, à abolição da escravatura interna20.
Dado o desmantelamento do mecanismo que tinha justificado
a manutenção das «micro-sociedades coloniais» em Angola, por
parte de Portugal e do Brasil, surgiram, desde a primeira metade
do século xix, as duais hipóteses: ou abandonar o território, acei-
tando a desagregação daquelas sociedades21, ou pôr em prática
outros mecanismos de «intercâmbio desigual».
O exemplo dos outros países europeus que, nessa altura, já ti-
nham optado por uma extensão do mecanismo da ocupação colonial
à Ásia e à Africa inteiras, apontava, em princípio, para um caminho
que Portugal também podia seguir. Levantou-se, porém, com acui-
dade, o problema do subdesenvolvimento estrutural relativo a que
Portugal tinha sido levado pelo seu «intercâmbio desigual» com
outros países europeus. Em consequência desta fraqueza econó-
mica, acompanhada por uma situação precária do sistema político,
falharam, durante várias décadas do século xix, os esforços portu-
gueses — na verdade pouco intensivos e consequentes — no sentido
de ocupar territórios mais amplos, a partir das «feitorias» de
Luanda e de Benguela22. Houve, ao mesmo tempo, uma certa di-

19
Neste contexto, o termo é usado num sentido amplo, sem a conotação
legal que assumirá, temporariamente, numa época ulterior.
20
Cf. Celso FURTADO, Formação económica do Brasil, Rio de Janeiro,
1959.
21
Lembra-se que, embora geralmente em menor escala, processos deste
tipo tinham ocorrido em vários pontos da Ásia e da África.
22
Cf. Douglas L. WHEELER & René PÉLISSIER, op. cit., pp. 51 e segs. 631
versificação na economia dessas «micro-sociedades coloniais», bem
como nos intercâmbios entre estas e as sociedades africanas de
Angola. 0 volume global das interacções deste último tipo baixou,
no entanto, durante algum tempo, o que — passado um período de
desorientação— proporcionou a alguns dos sistemas eco-culturais
africanos uma oportunidade (que seria, porém, temporária) de
começarem a recuperar uma maior capacidade de autoregulação.
Presisionado pela crescente concorrência por parte dos outros
países europeus empenhados na «corrida para a África» 23, e impul-
sionado por sectores económicos e políticos nacionais que conside-
ravam a «fórmula nova» dJa ocupação colonial como a única hipó-
tese de salvação, Portugal retomou, no entanto, e com redobrado
vigor, o seu esforço de conquista do «interior de Angola», nas
últimas décadas do século XIX.
Apesar de se encontrar, comparado com outros países, num
estágio de subdesenvolvimento, Portugal dispunha evidentemente,
naquela época, de uma base muito diferente e claramente mais
favorável para tal conquista do que quatrocentos anos antes. Com
efeito, constituía um sistema eco-cultural bastante mais diferen-
ciado que nos séculos xv e xvi, e encontrava-se portanto numa
posição de vantagem muito mais marcada, em relação às socieda-
des africanas. Importa destacar, neste contexto, a evolução tecno-
lógica entretanto verificada na Europa e da qual beneficiou Por-
tugal (ainda que ao preço do «intercâmbio desigual»), sendo de
relevância imediata, para a ocupação colonial (por parte de todas
as metrópoles europeias), sobretudo dois campos: o da tecnologia
militar e o da tecnologia médica, simbolizados pela metralhadora
e pela quinina, respectivamente. Quanto a Angola, importa ainda
salientar que a ocupação colonial incidiu sobre sistemas eco-
-culturais africanos enfraquecidos pela interacção prévia com os
europeus e, portanto, em nível de maturidade inferior ao que
poderiam ter atingido, e, no caso de algumas sociedades impor-
tantes, inferior ao que já tinham alcançado em anterior momento
histórico.
Apesar disso, verificou-se acentuada resistência dos povos
africanos contra a pretensão dos europeus de lhes tolher, por meio
da ocupação, a margem de autoregulação de que dispunham. Essa
resistência obrigou os portugueses a campanhas militares pratica-
mente ininterruptas até 1926, havendo ainda a registar «rebeliões»
ulteriores— a dos Ngangela em 1933/34 e a dos Kubal em 1940/41.
Foram necessários, por conseguinte, vários decénios para chegar
ao controlo mais ou menos efectivo do território «demarcado no
mapa» durante a conferência colonial de Berlim (1884) e cujos li-
mites exactos foram fixados por negociações bilaterais, até 1926 24.
Na primeira fase da ocupação colonial de Angola — como aliás
de Moçambique—, houve incertezas consideráveis quanto ao mo-
delo exacto a adoptar. Registaram-se tendências e medidas econó-
23
A expressão consagrada, em inglês, é «scramble for Africa». Cf. Eric
AXELSON, Portugal and the scramble for Africa. 1875-1891, Joanesburgo, 1967.
24
Cf., sobre esta fase, René PÉLISSIER, Histoire militaire de V'Angola
(em preparação).
micas e políticas divergentes e até contraditórias, em geral reflexos
da «heterogeneidade estrutural» em Portugal25. Ã dlistância, pa-
rece no entanto lícito afirmar que, desde o início da nova era,
Angola enveredou em direcção a um esquema que foi definitiva-
mente adoptado em 1930.
Desenvolvesse, a partir do® «embriões» previamente exis-
tentes, um sistema eco-cultural colonial integrado, cada vez mais
vasto e complexo, baseado nas cidades, nas concessões agrícolas e
pecuárias, nas empresas de extracção de minérios, etc. O «centro»
deste sistema foi constituído por uma imigração portuguesa cada
vez mais importante. Registou-se uma integração, muitas vezes
precária, nesse «núcleo», de um número extremamente limitado de
africanos «assimilados» e de um número algo maior de mestiços.
Na «periferia» do sistema colonial, portanto numa posição «agre-
gada» e marginal, encontrou-se um número crescente de africanos,
que constituíram a «mão-de-obra não-qualificada» (ou «pouco qua-
lificada») de que o sistema precisava para o seu funcionamento.
Este sistema colonial dominou, sem as absorver, as sociedades
africanas de Angola que, deste modo, se tornaram sistemas eco-
-culturais tributários em relação ao sistema colonial (ou «sistema
central»). Não perderam a sua identidaide própria, inclusive porque
tanto a legislação (Estatuto do Indigenato) como o comportamento
social do «núcleo» europeu do «sistema central» concorreram para
manter uma distinção nítida. Mas incidiram sobre os «sistemas
tributários» vários mecanismos de interacção com o «sistema cen-
tral», mecanismos que foram impostos pelo «sistema central» com
o intuito de garantir o seu próprio desenvolvimento. Os mais im-
portantes destes mecanismos foram os seguintes26:
Apropriação progressiva, pelo «sistema central», de partes
significativas da terra anterioonente pertencentes às so-
ciedades africanas.
Mobilização de mão-de-obra dos «sistemas tributários», por
meio de esquemas que iam do trabalho forçado e do anga-
riamento para contratos até à «drenagem» para uma fi-
xação permanente no «sistema central».
Imposição do cultivo de produtos agrícolas de que o «sistema
central» precisava (para consumo ou para exportação),
mediante esquemas que iam da cultura obrigatória (al-
godão) até ao «encaminhamento», por falta de alternativa,
para certas culturas «voluntárias» (milho) 27.
Desmantelamento das redes africanas de intercâmbio comer-

25
Cf. R. J. HAMMOUND, Portugal and Africa. 1815-1910: A study in
Uneconomic Imperialism, Stanford, 1966.
26
A ordem de enumeração não tem a pretensão de reflectir a sequência
cronológica na incidência destes mecanismos.
27
As interrelações entre a desapropriação da terra, a impossibilidade de
subsistir por outros meios que não do cultivo de produtos agrícolas aceites
pelo «sistema central», e a «disposição» para um trabalho a contrato e/ou o
êxodo rural, é analisada, para o caso dos Ovimbundu, no artigo de Hermann
POESSINGER, Op. cit. 633
ciai e sua substituição por uma rede europeia (do «comer-
ciante do mato» até às grandes firmas e entidades impor-
tadoras/exportadoras), garantindo-se assim ao «sistema
central» o (quase) monopólio das transacções comerciais
com os «sistemas tributários» e os lucro® decorrentes des-
tas transacções 28.
Lançamento e cobrança de impostos, taxas e multas de vária
ordem.
Trata-se de mecanismos que se encontram, em grau maior ou
menor, em todos os processos de ocupação colonial. Em Angola
— como nos outros territórios africanos sob domínio português —
pesaram, no entanto, de modo particular. Com efeito, a escassez
de capital e de «know-how» em Portugal levou esta metrópole a
exigir dos «indígenas» contribuições mais fortes para a formação
e o desenvolvimento de uma economia colonial, do que as que foram
exigidas em territórios sob domínio colonial inglês, francês, etc.29
Uma vez mais o grau de incidência destes mecanismos variou
muito, de uma região para outra, atingindo muito fortemente algu-
mas das sociedades africanas, e menos certas outras.
Uma vez mais também, resultaram destes mecanismos proces-
sos mais ou menos adiantados de regressão, particularmente nas
sociedades mais importantes do «universo agrícola», ou seja, os
Ovimbundu, os Akwambundu («Quimbundos») e os Bakongo. Gra-
dualmente, estas sociedades foram perdendo a capacidade de se
articularem em eco-sistemas maiores. Tentaram no entanto salva-
guardar, para unidades mais pequenas, as possibilidades de auto-
regulação que lhes consentia o «sistema central»; por outras
palavras, estas sociedades passaram a funcionar, em nível baixo
de desenvolvimento/diversificação e maturidade, sob a forma de
sistemas eco-culturais de envergadura mais ou menos reduzida,
resultantes da decomposição de sistemas maiores. Ê claro que a
manutenção dos mecanismos de interacção verificados entre o
«sistema central» e os «sistemas tributários», tendia a reduzir estes
últimos, a longo prazo, a um estado de amorfia estrutural —ou
seja, a uma «de-diver^ificação»/imaturidade extrema—; mas im-
porta sublinhar que este ponto não foi atingido no período que es-
tamos a focar, ou seja: até 1961.
Quanto ao sistema eco-cultural «central», deve-se assinalar
que a sua expansão foi acompanhada por uma crescente diferen-
ciação. Esta última reflectiu-se, não só numa diversificação das
actividades económicas e concomitantes, como também numa es-
tratificação social «horizontal» — em parte «herdada» da sociedade
metropolitana, em parte função dos condicionamentos locais—,

28
Um dos poucos tipos de transacções comerciais ainda existentes entre
«sistemas tributários», e organizados por elementos neles radicados, é o da
compra e venda de gado.
29
A existência de paralelismos é ressaltada pelo recente estudo de
Herbert WEILAND, «Abhaengigkeit und peripherer Kapitalismus am Beispiel
eines schwarzsfrikanischen Kleinstaates Gabum», Civitas-Jahrbuch fuer 8o-
63If zialwissenscliaften (no prelo).
estratificação que começou a tomar, pouco a pouco, feição seme-
lhante à de uma estrutura de classes30.
Crescimento e diversificação levaram o «sistema central», no
final da época que temo» vindo a considerar, a contestar a depen-
dência em que se encontrava relativamente a Portugal. Com efeito,
se os integrantes do «núcleo» do «sistema central» beneficiavam,
em grau maior ou menor, do «intercâmbio desigual» com os «siste-
mas tributários» e do aproveitamento, a baixo custo, da mão-de-
-obra «periférica», não se pode perder de vista que todo o esquema
estava concebido para servir, em primeiro lugar, Portugal — e mais
concretamente, nos decénios anteriores a 1961, para servir um
esforço (actualmente objecto de análises críticas) destinado a fazer
sair Portugal do estado de subdesenvolvimento relativo a que tinha
chegado. As aspirações do «núcleo» do «sistema central» em An-
gola, geralmente articuladas por elementos detentores de poder
económico, não iam, portanto, nem no sentido de alterar as suas
relações com os «sistemas tributários», nem no de uma modifica-
ção da estrutura interna do «sistema central», mas no de diminuir
e, em última análise, abolir a dependência do «sistema central» em
relação a Portugal. Dado o modo de produção do «sistema central»,
este não poderia, evidentemente, ter-se mantido sem alguma forma
de intercâmbio com uma ou mais metrópoles; mas existia a expec-
tativa de que um «afrouxamento» do controlo português sobre
Angola, acompanhado por uma «diversificação da dependência»
(desenvolvimento dos intercâmbios com várias metrópoles), criaria
possibilidades para que as «razões de troca» se tornassem mais
favoráveis para o «sistema central» angolano.

5. As transformações posteriores a 1961


Futuros historiadores porão, possivelmente, em dúvida o bem
fundado de uma distinção entre a situação estrutural da sociedade
angolana antes e depois de 1961. Parece-nos, porém, de interesse
destacar as tendências de transformação que se manifestaram no
último decénio, na medida em que condicionaram, além da reali-
dade presente, as percepções correntes desta realidade e das possi-
bilidades nela contidas.
Nos termos da nossa análise, foram de dois tipos as bases
sociais iniciais da contestação africana, pela força, da situação
criada pela fase da ocupação colonial: de facto, essa contestação
proveio, por um lado, de alguns dos «sistemas tributários» que,
na década dos anos cinquenta, sofreram diminuições particular-
mente sensíveis do nível de desenvolvimento/autoregulação em
que vinham funcionando31, e, por outro lado, de alguns segmentos
30
Ê evidente que, por se tratar de uma sociedade dependente, essa
estrutura não podia ser idêntica à verificada nas sociedades metropolitanas.
A respeito desta problemática, cf. Florestan FERNANDES.
31
No Norte, a diminuição foi o resultado de uma maciça apropriação de
terras, na zona cafeícola, por parte de europeus; na Baixa do Cassanje, a
cultura obrigatória do algodão diminuiu, drasticamente, o nível de subsistên-
cia material e a margem de autoregulação. 635
dos sectores «periféricos» do «sistema central». Virtualmente, es-
tava em causa uma revolta contra o «núcleo» do «sistema central»,
por parte de todas as populações que não pertenciam a este
«núcleo», mas que se encontravam em situações bastante diversas
e tinham pouca comunicação efectiva entre si. A linha divisória
racial veio agravar a oposição fundamental, mas também contri-
buiu para esconder a realidade estrutural subjacente.
^ Para Portugal —melhor dito: para o «centro» económico e
político da metrópole portuguesa —, a revolta significou a ameaça
de perder o controlo político sobre o território angolano e, com
isso, os benefícios económicos extraídos do «sistema central» e
— através dele— dos «sistemas tributários». Em princípio, teria
havido a possibilidade de optar pela concessão da independência
política a uma Angola governada por africanos, na esperança de
poder manter a dependência económica em relação a Portugal e
as suas vantagens, com a ajuda de um «sistema central» mantido
nas suas «funções constitutivas» — à imagem do que aconteceu
numa série de antigas colónias inglesas e francesas. Uma tal opção
poderia até, em tese, ter sido facilitada pela permanência, no
«núcleo» do «sistema central», de um forte contigente de europeus
de origem portuguesa. Esta hipótese não pareceu, no entanto,
viável. Consciente do seu próprio subdesenvolvimento relativo, Por-
tugal — ou antes: o seu «centro» económico e político— receava
não estar em condições de assegurar a continuidade da depen-
dência económica dos territórios ultramarinos por outros meios
que não o controlo político, administrativo e militar. Temia ficar,
concedendo a independência política às suas colónias, em posição
de desvantagem para competir com outras metrópoles pelo con-
trolo económico desses novos países. Por outras palavras: foi a
fraqueza relativa do sistema eco-cultural português que o impediu
de encarar, desde 1961, a passagem de Angola de um esquema de
dominação directa para um esquema de dependência indirecta.
É evidente que uma autêntica descolonização de Angola — impli-
cando a superação da «heterogeneidade estrutural» vigente e o
encaminhamento para um desenvolvimento autocentrado— nem
sequer chegou a ser cogitada.
Nesta situação, foi «lógica» a opção da metrópole portuguesa
pela manutenção, manu militari, do seu domínio colonial sobre
Angola, e, simultaneamente, pela introdução de algumas modifi-
cações no status quo, destinadas a tornarem viável aquela opção.
Inicialmente, aboliram-se as disposições legais destinadas a
consolidar a distinção entre «núcleo» e «periferia» no «sistema
central», e entre «sistema central» e «sistemas tributários». Estas
medidas foram reforçadas por outras, tendentes a produzir uma
identificação cultural, social e política da «periferia» com o «nú-
cleo» do «sistema central», e dos «sistemas tributários» com o
«sistema central».
Concomitantemente, suprimiram-se, em medida considerável,
alguns dos mecanismos mais em evidência de aproveitamento dos
636 «sistemas tributários» pelo «sistema central»: trabalho obriga-
tório, coacção para aceitar contratos de trabalho, culturas obri-
gatórias.
Consentiu-se, ainda, em «razões de troca» ligeiramente me-
lhores para a mão-de-obra assalariada não-qualificada ou pouco
qualificada, concedendo remunerações algo menos baixas. Esta
medida teve certa importância para a «periferia» do «sistema
central», mas uma incidência bastante limitada na situação dos
«sistemas tributários». Instalaram-se também «mercados rurais»,
destinados a tornar algo menos desfavorável, para os «sistemas
tributários», a troca comercial dos seus produtos agrícolas por
bens de consumo oferecidos pelos agentes do «sistema central».
Ao mesmo tempo, promoveu-se um significativo desenvolvi-
mento do «sistema central», através de medidas infra-estruturais
e de incentivos para uma expansão e diversificação das actividades
económicas e subsidiárias.
Permitiu-se ainda a continuação do influxo maciço de euro-
peus provenientes da metrópole portuguesa, condição e resultado
do desenvolvimento do «sistema central» 32.
Continuaram, porém, em vigor —alguns apenas de forma
«abrandada»— a maior parte dos mecanismos de dominação do
«sistema central» sobre os «sistemas tributários». Ao mesmo tempo,
a metrópole manteve a relação básica de «intercâmbio desigual»
com o «sistema central» angolano, e até consolidou essa relação
mediante novos mecanismos, como por exemplo a integração de
Angola no «espaço económico português», medida que, abrindo
o leque das importações para Angola, entravou o processo de
industrialização deste território.
Importa destacar que, desde meados dos anos sessenta, a fra-
queza estrutural (económica e política) de Portugal não permitiu
que esta metrópole mantivesse, segundo os moldes da sua prefe-
rência, o controlo do processo desencadeado. Para garantir a con-
tinuação do desenvolvimento do «sistema central» angolano foi
necessário peonitir que se fizesse apelo, em medida crescente, a
capital e «know-how» provenientes de outras metrópoles. A partir
de fins de 1971, foi inadiável conceder a Angola uma política adua-
neira que diminuiu os benefícios globais da metrópole e abriu
possibilidades para uma industrialização por «substituição de im-
portações». Por essa mesma altura, tornaram-se visíveis e nume-
rosos os indicadores de uma transferência efectiva (não necessa-
riamente formal-legal) de uma parte crescente do controlo
político-administrativo do processo angolano, das instâncias metro-
politanas para as instâncias da «Província» («Estado») de Angola.
32
Alcançando, nos anos sessenta, um volume pouco inferior ao da dé-
cada anterior, esta imigração, comportando números elevados de mulheres
e crianças, foi de natureza a consolidar a «autarquia demográfica» da popu-
lação europeia de Angola. Cf. José Manuel Zenha RELLÂ, Angola: o «factor
população» e o processo de desenvolvimento, tese de licenciatura, Universi-
dade Técnica de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ul-
tramarina, 1969. Teve um peso ínfimo, no contexto deste movimento mi-
gratório, a emigração planeada e dirigida pelo Estado. Cf. Gerald J. BBNDER,
«Planned Rural Settlements in Angola», in Franz-Wilhelm HEIMER,
ed., op. cit., pp. 255-279. 637
Deste modo, e apesar da manutenção da soberania política
portuguesa sobre Angola, registou-se um claro «avanço» no pro-
cesso de «autonomização» do «sistema central» angolano, a qual
deve ser entendida como passagem de uma dependência unilateral
para uma dependência múltipla33.
Este processo não levou, evidentemente, a uma recuperação
e um desenvolvimento dos «sistemas tributários». Muito pelo con-
trário, aos mecanismos não-abolidos de «intercâmbio desigual»
acrescentou-se uma «sucção» cada vez mais forte do «sistema
central», levando à drenagem crescente de elementos dos «siste-
mas tributários» para o «sistema central» empenhado em multi-
plicar e expandir a sua base urbana. Estes condicionamentos econó-
micos e sociais, conjuntamente com um aumento significativo da
«alienação cultural» nas áreas rurais, perpetuaram e, em muitos
casos, aceleraram o processo de regressão dos «sistemas tributá-
rios», chegando alguns a aproximar-se bastante do estado de
amorfia.
Em face deste quadro, parece lícito enunciar a hipótese de
que a tendência dominante, nesta fase, no que toca à estrutura
da sociedade angolana, fai a de uma expansão da sociedade «cen-
tral», com vista a uma absorção, no seu seio, das sociedades «tri-
butárias». Dados os moldes em que este processo foi encaminhado,
é claro que a «sociedade global» que teria produzido seria uma
sociedade caracterizada pior desigualdades extremas, acusando
profundas clivagens regionais e «horizontais». Os actuais «sistemas
tributários», perdendo a sua identidade colectiva própria, teriam
passado ao status de mera «periferia».
Por outras palavras: o tipo de «desenvolvimento periférico»
(em relação às metrópoles) encetado pelo «sistema central» ango-
lano, por se basear cada vez mais em tecnologias avançadas e ter
um carácter cada vez mais «capital-intensive» e não «labour-inten-
sive» 34, teria deixado à margem, não apenas a maior parte da
população rural, mas também segmentos importantes da popu-
lação radicada nas regiões constituídas em «poios de desenvolvi-
mento» — criando-se assim uma situação de «heterogeneidade es-
trutural» perfeitamente análoga à alcançada em 35 numerosos países
«periféricos», nomeadamente da América Latina .
33
Esta constatação deve ser relativizada por meio de duas outras, com-
plementares: a) houve uma certa «presença» de capital não-português em
Angola, desde fins do século xix; b) como já foi assinalado, a própria me-
trópole portuguesa encontra-se, desde há séculos, numa situação de depen-
dência económica (mais ou menos marcada, conforme a época histórica), em
relação a outras metrópoles e, mais recentemente, às empresas «trans-
nacionais».
34
Nos últimos anos, já se observou, em certos sectores em Angola, uma
diminuição (relativa ao capital investido) do volume da mão-de-obra assala-
riada em Angola. Cf. Estado Português de Angola, Projecto do IV Plano de
Fomento, 1974-1979, s.l. s.d., (Luanda, 1973), p. IX.
35
Lembre-se a situação de «desequilíbrios» cada vez mais acentuados
e mais exactamente, a do Brasil. Cf. Paulo SINGER, O «Milagre Brasileiro».
Causas e Consequências, São Paulo, 1972; Fernando Henrique CARDOSO,
«As contradições...», op. cit., Maria da Conceição TAVARES, Da Substituição
638 de Importações ao Capitalismo Financeiro, Rio de Janeiro, 1972.
n
A FUNÇÃO DO ENSINO
NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ANGOLANA
Nas últimas décadas, as diferentes ciências sociais deram
especial atenção à análise do papel societal da «educação formal»,
ou seja, do ensino escolar. Para além de muitos resultados de por-
menor, as pesquisas realizadas levaram a uma conclusão global:
o impacto da educação vai praticamente sempre no sentido de
reforçar a dinâmica societal prevalecente. No caso de sociedades
relativamente estáticas e tendentes a «reproduzir-se» em moldes
mais ou menos idênticos, o ensino concorre para manter a estrutura
societal o mais possível inalterada36. Em contrapartida, sociedades
que se encontram num acentuado processo de transformação
criam mecanismos educacionais capazes de acelerar esse processo.
E no caso frequente das sociedades onde se verificam ambas as
tendências é corrente verificarJse uma «heterogeneidade estru-
tural» do ensino, implicando impactos sociais contraditórios37.
O caso de Angola acusa uma inequívoca conformidade com
aquela conclusão. Em cada uma das grandes configurações histó-
ricas acima esboçadas, o ensino serviu —por acção e por omis-
são— como mecanismo de consolidação do modelo societal em
vigor; por outro lado, contribuiu igualmente para a passagem de
um modelo a outro e para produzir modificações parciais em cada
um dos modelos.
Durante os primeiros quatro séculos da presença portuguesa,
as sociedades africanas mantiveram, e muitas vezes desenvolveram,
os seus mecanismos próprios de educação integral das novas gera-
ções. O mesmo aconteceu com as «micro-sociedades coloniais»,
onde um pequeno número de instituições escolares vieram, a partir
de dado momento histórico, completar a educação «informal»,
ainda que de maneira limitada e precária. Algumas serviram os
«núcleos» da população urbana, outras a parcela da população
africana, na faixa de território anexa a Luanda que se encontrava
sob o domínio português. As primeiras contribuíram para a conso-
lidação do «centro» das «micro-sociedades coloniais», as últimas
para a consolidação, mediante imposição de uma «superestrutura»
ideológico-cultural, do domínio do «centro» sobre a sua (ainda
muito limitada) «periferia». Nesta fase, uma penetração da escola
europeia nas sociedades africanas independentes teria sido «dis-
funoional» em relação ao modelo de interacção adoptado que vi-
sava, essencialmente, como vimos, a «extracção» de escravos; por
conseguinte, tal penetração não foi além de algumas iniciativas
abortadas 38.
36
Cf. Pierre BOURDIEU & Jean-Paul PASSERON, La réproduction, Paris,
1969.
37
Cf. Franz-Wilhelm HEIMER, «Education and Politics in Brazil», Compa-
rative Education Review (no prelo).
38
Cf. Ávila dê AZEVEDO, «A história do ensino português em Africa»,
in ID, Política de Ensino em Africa, Lisboa, 1958; Martins dos SANTOS,
História do Ensino em Angola, Luanda, 1970. 639
Na fase «crítica» do século xix, quando se colocou a hipótese
de uma passagem do modelo anterior para o d'a ocupação colonial,
e antes de essa passagem estar definitivamente aceite, verificou-se
uma certa (embora ainda muito reduzida) consolidação e diversi-
ficação do ensino nas «micro-sociedades coloniais». Acrescentando-
-se aos elementos anteriormente assinalados —como a diversifi-
cação do intercâmbio comercial com as sociedades africanas e a
introdução de novas culturas agrícolas (por exemplo: o café) na
economia das «micro-sociedades coloniais» — esse (ligeiro) desen-
volvimento escolar concorreu para criar uma situação de facto em
que deixaram de existir dúvidas quanto à viabilidade do novo
modelo.
Instaurado este, o crescimento do sector urbano levou ao esta-
belecimento de uma rede escolar estatal destinada, essencialmente,
a contribuir para a consolidação do «centro» do sistema colonial em
vias de constituir-se, «centro» cuja composição acusou um predo-
mínio cada vez mais acentuado dos europeus (tanto em termos nu-
méricos, como em termos de influência). Ao mesmo tempo, a
penetração missionária nas sociedades africanas em vias de se
transformarem de independentes em «tributárias», penetração que
começou de forma sistemática na segunda metade do século xix,
levou ao progressivo estabelecimento de uma rede escolar paralela,
que, com o decorrer das décadas, viria a «cobrir» o conjunto do
território, embora com graus de densidade extremamente diver-
sos 39.
Este dualismo de redes escolares paralelas —aliás em har-
monia perfeita com a distinção entre, por um lado, o «núcleo» do
«sistema central», e por outro, os estratos «periféricos» do mesmo
sistema e os «sistemas tributários» — foi consolidado pela legisla-
ção posta em vigor a partir de 1926: o Estado, ao mesmo tempo
que assumiu a responsabilidade directa quanto ao ensino no «nú-
cleo», delegou nas missões, em especial nas missões católicas40,
essa responsabilidade quanto às restantes componentes do «con-
glomerado societal» angolano. Importa sublinhar que o ensino
missíionário (denominado «ensino rudimentar») só alcançou uma
ínfima parte das sociedades africanas rurais. Serviu como instru-
mento de evangelização e de uma reduzida aculturação, cumprindo,
deste modo, uma dupla função: a) a de ajudar a consolidar, em
termos de «superestrutura» ideológico-cultural, o domínio do «nú-
cleo» sobre a «periferia» do «sistema central» e o do «sistema
central» sobre os «sistemas tributários»; 6) a de contribuir para
«mobilizar» um certo número de africanos de que o «sistema cen-
tral» necessitava para o seu próprio funcionamento, em termos
diferentes dos de uma simples mão-de-obra não qualificada41.

39
Para uma análise da fase de «arranque», cf. Michael A. SAMUELS,
Education in Angola, 1878-1914: A History of Culture Transfer and Admi-
nistration, Nova Iorque, 1970.
40
Cf. Manuel Fernandes COSTA, AS missões católicas portuguesas e o
ensino41 no Ultramar, Lisboa, 1965.
Não se pretende que estes efeitos tenham correspondido à intenção
6^0 das Igrejas e dos missionários, nem que tenham sido os únicos efeitos verifi-
Pouca preocupação efectiva houve, no conjunto, com a utilidade
da escola em relação a um desenvolvimento socio-económico e
cultural dos «sistemas tributários». Além disso, são notoriamente
conhecidas as deficiências flagrantes da maior parte destas escolas,
quando medidas pelos parâmetros fixados para elas. Levando aindia
em conta que se verificou, no ensino estatal, uma crescente diver-
sificação — com a introdução de liceus, escolas técnicas, escolas
de magistério, etc. —, chega-se a conclusão nítida de que a situação
do ensino, na fase que estamos considerando, estava perfeitamente
«adaptada» às estruturas do «modelo societal» então vigente e
constituía um mecanismo importante para a sua manutenção, in-
clusive no que diz respeito ao desenvolvimento do «sistema central»
e ao subdesenvolvimento dos «sistemas tributários».
Desde antes de 1961, na década dos anos cinquenta, notaram-
-se, todavia, na área do ensino, certos indícios de uma veleidade de
abandonar — ou, pelo menos, modificar — o «modelo societal» em
vigor. Quando o «ensino rudimentar» passou a ser chamado «ensino
de adaptação», houve a intenção de facilitar, embora em medida
restrita, a passagem de alunos deste ensino para o ensino eistatal.
Além disso, começou a praticasse, ia partir de 1954/55, em certas
áreas urbanas e até rurais, uma admissão «tácita», em escolas
estatais, de crianças africanas oriundas de famílias que não tinham
o estatuto de «assimiladas» (ou equivalente) e que, legalmente,
por serem consideradas «indígenas», só deveriam ter frequentado
«escolas de (adaptação». Pré-figuravam-se, deste modo, certas
tendências do processo de transformação que caracterizaria a
década posterior.
Com efeito, em 1961, e concomlitantemente com a abolição do
«Estatuto do Indigenato», o ensino passou a ser considerado como
um dos mecanismos mais importantes para o processo de transfor-
mação societal que se visava42. Em termos estruturais, foi de im-
portância primordial a reforma do ensino43 primário, encaminhada
desde 1961, sancionada por lei em 1964 e continuada por uma
série de medidas complementares nos anos subsequentes44. Para os
aspectos focados no presente estudo —o da «integração interna»
do «sistema central» e o da (virtual) absorção dos «sistemas tri-
butários» pelo «sistema central»—, as componentes mais impor-
tantes desta mudança foram as seguintes:
A abolição da distinção de princípio entre duas redes de en-
sino primário, com «status» diferentes.

cados. Afirma-se, isso sim, que os efeitos assinalados se produziram objecti-


vamente
42
e que foram os mais importantes em termos de estrutura societal.
O lema «Levemos a escola à sanzala» foi proclamado pelo então Go-
vernador Venâncio DESIANDES, desde 1961. Simultaneamente houve uma ten-
tativa (frustrada) de criar em Angola um ensino superior concebido para
«dinamizar» a situação vigente até então. Cf. Martins dos SANTOS, op. cit,
43
Cf. Ministério do Ultramar, A reforma do ensino primário no Ultra-
mar, Lisboa, 1964.
44
Cf. os Anuários do Ensino relativos a 1964-1972, 8 vols., Luanda,
1968-1974.
A abolição do «monopólio missionário» quanto ao ensino nas
«áreas suburbanas» («periferia swistl» da parte urbana
do «sistema central») e nas «áreas rurais» («sistemas tri-
butários»), implicando o estabelecimento de postos esco-
lares rurais e «suburbanos» do Estado, a «oficialização»
do ensino missionário católico (cujos professores passa-
ram a depender, financeira e pedagogicamente, do Es-
tado) e a manutenção (= não-abolição) das escolas das
missões protestantes, sem subsídios estatais, mas confor-
madas segundo os moldes das escolas estatais.
A generalização de um tipo de escola inspirado, na sua quase
totalidade, nos parâmetros culturais vigentes em Portu-
gal, com apenas certas modificações destinadas a facili-
tar a transição da criança africana «não-assimilada» para
esse tipo de ensino (classe pré-primária, método indutivo
de ensino, manuais escolares com algumas referências ao
contexto local).
A introdução de dois novos tipos de agentes de ensino, o mo-
nitor, elemento africano com «habilitações literárias» ele-
mentares e precária formação profissional, e o professor
de posto, não diplomado, dispondo apenas de uma «habili-
tação literária» de nível equivalente ao actual ensino
preparatório.
Paralelamente, acelerou-se uma expansão escolar já inic&afla
em fins dos anos cinquenta. De facto, na década subsequente a
1961, tal expansão levou a um aumento dos efectivos discentes
do ensino primário da ordem dos 420 %, incidindo a maior parte
nas áreas rurais 45 .
Em termos de objectivos políticos, esta reestruturação e ex-
pansão deviam, por um lado, contribuir para satisfazer reais ou
supostas exigências imediatas da população africana («sistemas
tributários» e «periferia» do «sistema central») e, deste modo,
«pacificá-las»; por outro lado, eram concebidas como o instrumento
capaz de46 maciçamente promover uma aculturação da população
africana .
Esperava-se, de maneira difusa, que de uma expansão do
ensino resultasse algum benefício em termos de promoção social
e de desenvolvimento económico, sem no entanto se analisar a
funcionalidade ou disfuncionalidade que podia ter — especialmente
nas áreas rurais— o ensino concretamente dispensado. O que
cresceu e se exprimiu com crescente insistência no começo da
década dos anos setenta, foi a consciência de que a «eficiência»
do ensino primário, avaliada segundo os critérios imanentes ao
sistema escolar, acusava deficiências extremas47.

45
Cf. Direcção Provincial dos Serviços de Estatística, Estatísticas da
Educação: Ano lectivo 1970/71, Luanda, 1973. A percentagem refere-se à
diferença
46
entre os anos lectivos de 1960/61 e de 1970/71.
Entre os muitos pronunciamentos neste sentido, cf. José Pinheiro da
SILVA,47 Toda a educação aponta para a integração, Luanda, 1969.
Cf. o capítulo «Educação», in Serviços de Planeamento e Integração
Um elemento novo foi a introdução, em 1968, da escola prepa-
ratória do ensino secundário e o subsequente incremento dado a
este grau do ensino. Este incremento veio na sequência da expan-
são do ensino primário e serviu, principalmente, para possibilitar
o acesso a um nível algo mais elevado de «habilitações literárias»
a crianças (e a adolescentes e adultos inscritos nos «cursos noc-
turnos») oriundas de segmentos sociais que, tradicionalmente, não
alcançavam mais que os primeiros escalões da pirâmide escolar.
Sem ligação predominante com este fenómeno, processou-se
ainda uma certa expansão do ensino liceal e técnico e criou-se um
ensino universitário.
Estabelecendo um balanço em 1974, constata-se que, em todos
os níveis, as prioridades relativas (ensino primário) ou absolutas
(ensino pós-primário) foram dadas ao «sistema central», para o
qual o ensino constituiu um poderoso mecanismo de «integração
interna» e de diversificação. A esta constatação deve-se, porém,
acrescentar que, tratando-se de um mecanismo «inventado» e
«exportado» por uma metrópole com traços muito marcados de
estratificação social «horizontal», o ensino contribuiu, por isso
mesmo, para acentuar, no seio do «sistema eco-cultural central»
de Angola, o tipo de estratificação existente em Portugal.
Quanto aos «sistemas tributários», somos levados à hipótese
de que a expansão do ensino, nos termos em que se processou, em
nada contribuiu para o seu desenvolvimento: pelo contrário, con-
tinuou a constituir, embora em moldes novos, um mecanismo de
«domesticação» ideológico-cultural dos «sistemas tributários» pelo
«sistema central» e, ao mesmo tempo, um mecanismo de drenagem
de elementos dos «sistemas tributários» para o «sistema central»
— concorrendo^, deste modo, para a regressão estrutural dos «sis-
temas tributários» e, simultaneamente, para o seu «esvaziamento»
em termos de identidade cultural. Por outras palavras, ajudou a
«alisar» o caminho para a absorção dos «sistemas tributários» pelo
«sistema central», nos termos acima expostos.

m
ELEMENTOS
PARA UM «PROJECTO SOCIETAL» ANGOLANO
Um escrutínio das declarações feitas pelas formações políticas
que procuram expressar as aspirações das diferentes componentes
do «conglomerado societal» angolano leva a conclusão de que existe
um amplo consenso em torno de alguns princípios considerados
fundamentais para a elaboração de uma futura sociedade ango-
lana. Todas concordam em afirmar que esta futura sociedade deve
caracterizar-se pela convivência de diferentes raças e etnias, pela
justiça social e por um acentuado desenvolvimento económico.

Económica, Trabalhos Preparatórios do IV Plano de Fomento (1974-1979).


Relatório Sectorial Promoção Social, Luanda, 1971. 6IfS
E todas sublinham que a independência da futura Angola deve
ser efectiva e não apenas formal.
A análise que expusemos nas partes anteriores deste estudo
peonite-nos apontar para alguns dos condicionamentos básicos
existentes, que importa levar em conta para uma concretização
desses princípios genéricos. Deste modo, poder-se-á contribuir para
visualizar os primeiros passos a dar no sentido de uma operacionali-
zação do «projecto societal» implícito em tais princípios. Essa
concretização/operacionalização fornecerá, ao mesmo tempo, uma
base de aproximação ao problema da natureza dos mecanismos
educacionais que se possam considerar capazes de contribuir para
a realização do «projecto societal».

1. A convivência racial e étnica


Em relação ao princípio da convivência racial e étnica, a
análise do «modelo societal» em vigor permite afirmar, sem hesi-
tação, que os problemas existentes, neste plano, são geraJdos por
outros mais fundamentais. Somente se compreendem desde que se
parta da constatação de que as distinções étno-culturais prevale-
centes em Angola coincidem, grosso modo, com clivagens sócio-
-económicas e ecológicas. Esta constatação diz respeito à distinção
tanto entre europeus e africanos como entre as várias etnias afri-
canas.
a) Quanto à primeira —que presentemente sobressai como
a que tem mais peso—, a sua equação em termos de estrutura
social é bastante simples: os «sistemas tributários» são exclusiva-
mente constituídos por africanos; com excepções insignificantes,
a mesma constatação é válida no atinente à «periferia» do «sis-
tema central»; o «núcleo» do «sistema central» é quase exclusiva-
mente formado por europeus, com uma ínfima proporção de afri-
canos e euro-africanos. Este quadro é ligeiramente diluído pelo
facto de na «faixa intermediária» entre o «núcleo» e a «periferia»
do «sistema central», também predominantemente composta por
europeus, se encontrar no entanto uma proporção mais elevada de
africanos e euro-africanos.
Dado o tipo de interacção que historicamente ocorreu, as rela-
ções de dominação e «intercâmbio desigual» — quer entre o «sis-
tema central» e os «sistemas tributários», quer entre o «núcleo»
e a «periferia» do «sistema central»— são geralmente identifi-
cadas como relações de dominação de uma determinada «etnia
europeia» sobre diferentes etnias africanas. A análise estrutural
permite-nos, todavia, afirmar que esta maneira de ver capta a
realidade de maneira superficial. Oom efeito, o paJdrão básico da
realidade em causa é o de interacções entre sistemas em diferentes
níveis de desenvolvimento, mas cuja composição étnica (e, mais
ainda, a sua composição racial) é de importância secundária.
Simplesmente, foi o próprio processo da colonização europeia
— qualquer que tenha sido a metrópole — que criou uma «infra-
-estrutura ideológica» tendente a confundir os dois aspectos (o
económico/ecológico e o étnico/racial) e, às vezes, a inverter a
sua ordem de prioridade». Com efeito, o europeu para justificar a
sua expansão colonial perante si próprio e perante o colonizado,
teve de criar o mito da sua superioridade civilizatória e às vezes
racial. Este mecanismo psicológico permitiu-lhe não tomar conhe-
cimento dos valores culturais criados pelas sociedades colonizadas,
ou desprezar esses valores48, e atribuir aos povos colonizados uma
espécie de inferioridade intrínseca (baseando-se para o efeito, oca-
sionalmente, em teorias biologicistas, durante algum tempo aceites
como científicas). Deste modo, a dominação económica e política
foi geralmente acompanhada por um menosprezo altamente aten-
tatório da dignidade colectiva e individual dos colonizados. E um
impacto particularmente nefasto de tal mecanismo consistiu em
inculcar, em parte dos colonizados, a convicção de que eles, ou ao
menos a sua cultura, eram de facto intrinsecamente inferiores49.
Todos estes mecanismos se encontram também, em dosagens
diferentes, no processo da colonização portuguesa e, por conse-
guinte, em Angola. É, no entanto, necessário assinalar duas carac-
terísticas que, sem constituirem particularidades totalmente exclu-
sivas da colonização portuguesa, imprimiram um cunho especial à
situação criada nos territórios africanos colonizados por Portugal.
Por um lado, verificou-se uma certa permeabilidade à cul-
tura africana, numa fase em que o «intercâmbio desigual» não era
ainda acompanhado por uma dominação político-administrativa
e em que eram menos acentuados a regressão das sociedades afri-
canas e o desnível (em termos de desenvolvimento/diversificação)
entre estas sociedades e a portuguesa. Em ambas as «micro-socie-
dades coloniais» (Luanda, Benguela), registou-se de facto o início
da formação de uma sociedade e cultura «crioula». Esta tendência
foi, porém, gradualmente travada, a partir do momento em que
começou a ocupação colonial, mecanismo de «intercâmbio desigual»
mais «duro» que o anterior e que «exigiu», a par de uma maior
homogeneidade do «núcleo» do «sistema central», uma distinção
mais nítida entre este «núcleo» e as «restantes componentes» do
«conglomerado societal» angolano. Oomo consequência, os padrões
culturais da metrópole portuguesa passaram a ser considerados
como os parâmetros obrigatórios para o «núcleo» do «sistema cen-
tral», eliminando-se progressivamente os «vestígios crioulos» 50.
A experiência histórica de uma interpenetração cultural continua,
porém, até certo ponto, a marcar a(s) sociedade(s) angolana(s).
Ao recusar, assim, a elaboração de uma cultura que harmoni-
zasse contribuições europeias e africanas, o «núcleo» do «sistema
48
Uma das maneiras mais «sofisticadas» de menosprezar as culturas
africanas, asiáticas e ameríndias consistiu em as declarar «exóticas», fa-
zendo delas o objecto de uma etnografia/etnologia divorciada das ciências
sociais elaboradas para as metrópoles.
49
Cf. Frantz FANON, Les Damnés ãe Ia Terre, Paris, 1961 e a sua dis-
cussão em: Irene L. GENDZIER, Frantz Fanon: A criticai study, Nova Iorque,
1974.
50
Esta eliminação implicou, inclusive, a exclusão do «núcleo» (ou a sua
marginalização) de elementos africanos e até euro-africanos que, anterior-
mente, estavam nele perfeitamente «integrados». 61/.5
central» nem por isso suprimiu uma outra característica que lhe
confere uma certa especificidade: a sua disposição para aceitar no
seu seio, a título muito próximo do dos europeus, indivíduos afri-
canos (e, evidentemente, mestiços) que se conformassem plena-
mente com os padrões culturais vigentes no «sistema central». Sim-
plesmente: enquanto antes da ocupação colonial e até à década dos
anos vinte, esses indivíduos dispunham de uma certa possibilidade
de co-determinar os padrões vigentes, a partir dessa altura passou
a ser-lhes exigido um acto de aculturação totalmente unilateral51.
Tinham de tornar-se «europeus de pele negra».
Até ao momento actual, registaram-se relativamente poucas
reacções articuladas contra este «mecanismo de alienação cultural»,
mas a experiência de outros países africanos deixa prever que um
processo de descompressão política em Angola levará a uma ou
outra 52forma de revalorização dos padrões e valores culturais afri-
canos .
A iiidagação acerca das possibilidades de concretizar o postu-
lado societal de uma convivência entre africanos e europeus numa
Angola futura, conduz, portanto, à constatação liminar de que qual-
quer modalidade mutuamente aceitável dessa convivência pressu-
põe uma alteração incisiva não apenas dos aspectos políticos, mas
também e sobretudo dos aspectos económicos/ecológicos do mo-
delo societal em vigor53. Esta conclusão será retomada, mais
adiante, na análise das implicações contidas nos outros postulados
societais.
Ainda em relação à convivência entre africanos e europeus,
uma segunda conclusão a reter é a de que a remodelação das es-
truturas económicas/ecológicas terá de ser acompanhada por
uma mudança igualmente incisiva no plano psicossooial/ideológico/
/cultural. Europeus e africanos terãio de passar por um processo
de «libertação no imaginário» 54, corrigindo as percepções de si
próprios e da outra colectividade inculcadas pela época colonial e
81
Na linguagem de Remi CLIGNBT, trata-se de um acto de «acomodação»,
implicando o abandono da anterior identidade cultural. Cf. o estudo daquele
autor, «Inadequacies of the Notion of Assimilation in African Education»,
Journal of Modern African Studies, 8 (3), 1970, pp. 424-444.
62
Manifestações tão diversas como a «negritude», preconizada por
Léopold Sedar SENGHOR, a «authenticité», promovida por MOBUTU Sese Seku,
e a substituição sistemática do inglês pelo Kiswahili, na Tanzânia de Julius
NYERERE, apontam todas nesta mesma direcção.
63
Esta conclusão está, de resto, em harmonia com as pesquisas compa-
rativas sobre problemas étnicos, das quais se depreende que as clivagens
etno-culturais entre diferentes colectividades, frequentemente expressam mais
do que determinam a existência de clivagens noutros planos. Cf. Pierre van
den BERGHE, Race and Ethnicity: Essays in Comparative Sociology, Nova
Iorque, 1970, p. 150. Veja também Leo KUPER e M. C. SMITH (eds.), Pluralism
in Africa, Berkeley e Los Angeles, 1969. Estes estudos ressaltam, ao mesmo
tempo, que a importância do factor étnico não deve ser substimado, ponto
igualmente sublinhado por Martin R. D00RNB0R, «Some conceptual problems
concerning ethnicity in integration analysis», Civilisations, 22 (2), 1972,
pp. 263-284.
54
Conceito formulado em Georges ALTHABE, Oppression et libération
dans Vimaginaire, Paris, 1970, onde esta problemática é estudada a respeito
61f6 do caso de Madagáscar.
capacitando ambos os grupos para um esforço conjunto de elabo-
ração de uma cultura comum, com a qual todos os componentes da
fiutura sociedade angolana possam identificar-se plenamente55.
Um processo, aitàda que inicial, neste sentido, aparece inclusive
como indispensável para possibilitar a reformulação da estrutura
básica do modelo societal actual.
b) O problema da convivência entre as várias etnias africanas
de Angola é de análise mais difícil.
Importa começar por salientar que a percepção «ideológica»,
própria de muitos europeus, seguindo a qual os africanos formam
uma espécie de massa amorfa, sem diferenciação estrutural, en-
ferma de uma desinformação flagrante. Igualmente descabido seria,
aliás, adoptar a perspectiva com que se depara nas lideranças
políticas e intelectuais de certos países africanos e que tende a
negar ou a minimizar a existência de distinções étnicas56. Por
outro lado, porém, tão-pouco tem fundamento a afirmação daque-
les europeus que apresentam as divisões entre as etnias africanas
como de tal modo profundas que só com a ajuda dos europeus são
transponíveis.
Ressalta da nossa análise anterior que, na sua grande maioria,
os africanos de Angola radicados nas áreas extra-urbanas e fora do
«sistema central», estão presentemente integrados em sistemas
eco-culturais que são, geralmente, de envergadura (espacial e de-
mográfica) bastante limitada57. A maior parte destes sistemas,
cujo nível de maturidade/diferenciação varia, apresenta uma com-
posição étnica homogénea, no sentido de não compreender ele-
mentos que não pertençam ao mesmo gnanJde grupo etno-linguís-
tico58. Diferentes mecanismos de comunicação entre os sistemas

55
O exemplo do Brasil pode, neste contexto, servir, não de modelo, mas
de encorajamento. É claro que, no caso de Angola, a contribuição africana
para a cultura comum será muito mais forte do que no caso do Brasil.
66
Podem apontar-se quatro razões principais para esta tendência. Uma
primeira é a que o colonizador conferiu muitas vezes uma conotação depre-
ciativa a estas distinções entre «tribos» e «dialectos»; tendo assimilado a
maneira de ver do colonizador, alguns intelectuais africanos procuram negar
a existência de algo que passaram a considerar como sendo de menor valor.
Uma segunda consiste na dificuldade resultante, para a «construção nacional»
de muitos países africanos, da existência de diferentes etnias; certos políticos
chegaram à conclusão que esta dificuldade se resolveria -mais facilmente
desde que se ignorassem as distinções étnicas. Uma terceira razão é a expe-
riência de uma série de países africanos onde uma ou outra metrópole fomentou
as tensões inter-étnicas, antes e depois da independência política, com o
intuito de facilitar a manutenção ou instalação de mecanismos de «intercâm-
bio desigual». Uma quarta encontra-se naqueles países onde as clivagens
étnicas assinalam relações de dominação interna, e onde a existência de
distinções étnicas é negada ou minimizada com o intuito de impedir a trans-
parência das relações de dominação.
" Dadas as deficiências dos números censitários, é impossível dizer
qual é o seu número. Para o efeito da presente análise, é porém sem relevância
se este número é de 4,5 milhões, de 5 milhões ou de 6 milhões: importa apenas
reter que se trata da grande maioria dos angolanos.
M
Em Certas regiões, é comum a coexistência, dentro de um sistema ou
até de uma aldeia, de subgrupos etno-linguísticos diferentes. Um estudo de
uma aldeia a este título heterogénea, na região de Malanje, é dado em Luís
existentes operam no âmbito de cada grande grupo etno-linguístico,
tendo por efeito manter pouco diminuída a consciência de uma
identidade cultural colectiva ao nível desses grandes grupos59.
Quanto à população africana urbana, a sua quase totalidade
continua também a identificar-se culturalmente com um daqueles
grandes grupos etno-linguísticos e, em geral, até com um subgrupo.
Todavia, nos segmentos mais aculturados ao padrão português, e
especialmente nas camadas mais jovens, parece haver um início
de tendência para considerar mais importante a identificação como
africano que a identificação como elemento pertencente a determi-
nado grupo étnico.
Face a esta situação, o que importa anotar, antes do mais,
é que presentemente, em Angola, pouca ou nenhuma dominação se
verifica de uma etnia africana sobre outra —resultado de uma
época em que o monopólio da dominação foi assumido pelo «sis-
tema central». Além disso, e igualmente em consequência do con-
trolo exercido pelo «sistema central», não há, praticamente, com-
petição pelos recursos naturais (terras, água, caça) entre etnias
africanas. Finalmente, como o intercâmbio comercial entre os «sis-
temas tributários» foi praticamente extinto, também ficou elimi-
nado este factor potencial de conflito. Deste modo, dos conflitos
tradicionais entre as etnias africanas de Angola não resta senão a
recordação colectiva, passível de traduzir-se em atitudes de distan-
ciamento ou, pelo contrário, de simpatia60.
Em contrapartida, porém, algumas tensões inter-étnicas foram
provocadas pela situação colonial. Estas envolvem geralmente os
Ovimbundu, povo que viu lenta mas inexoravelmente tolhida a sua
base de subsistência e que, por este motivo, teve de aceitar a sua
utilização pelo «sistema central» em situações donde resultou con-
flito com outras etnias: com o® Bakongo, no Uíge, onde os traba-
lhadores Ovimbundu colaboraram objectivamente na expansão
do «sistema central» (possibilitando, inclusive, aos empresários
europeus a fixação de um nível de remuneração mais baixo para
a mão-de-obra assalariada); em Luanda, onde entraram em com-
petição com os Akwambundu, na corrida aos empregos oferecidos
pelo «sistema central». Resultaram daí ressentimentos que é neces-
sário tomar em consideração, mas que não parecem constituir um
problema de primeiro plano.
Assim, é lícito concluir que em Angola se verifica presente-
mente uma situação que não dá margem a «conflitos estruturais»
entre etnias africanas tão graves como os registados em vários
outros países da Africa. Merece particular destaque o facto de não
ter havido em Angola, como noutros países, identificação de uma

POLONAH, «Family and Kinship in a Changing Village in Angola» (manus-


crito não publicado).
59
O mesmo aplica-se a muitos sub-grupos, mas não a todos, especial-
mente numa comunidade cultural tão homogénea quanto a dos Ovimbundu.
60
Entre 1961 e 1974, tais recordações colectivas, assim como atitudes
de hostilidade/superioridade étnica, foram algumas vezes fomentadas pelo
«sistema central», sem que os seus efeitos tenham assumido proporções de
grande vulto.
determinada etnia com o «sistema central», situação que teria
inevitavelmente acarretado graves conflitos com as etnias consti-
tuídas em «sistemas tributários».
Dito isto, importa, porém, assinalar os riscos de futuros con-
flitos que estão implícitos no «modelo societal» vigente. Com efeito,
este modelo tende a acentuar calda vez mais a «heterogeneidade
estrutural» produzida pela época colonial. O modelo apenas per-
mite mudanças nos termos da heterogeneidade. Ora, o exemplo de
outros países africanos onde foram impostos modelos semelhantes,
mostra que, na luta por condições relativamente melhores (ou
apenas menos más), pode muito facilmente dar-se o caso de deter-
minadas etnias tentarem ou garantir para si mesmas uma posição
melhor na estrutura vigente (p. ex., maior participação no «sistema
central»), ou obter a seu favor uma mudança nos termos da hete-
rogeneidade (p. ex., melhores «razões de troca» com o «sistema
central», em detrimento de outros «sistemas tributários»), ou con-
seguir combinações de ambas as modalidades.
Chega-se, deste modo, a uma conclusão fundamental, análoga
àquela a que levou o ponto anterior: uma reconversão do modelo
societal em vigor constitui uma condição indispensável para garan-
tir, no futuro, uma convivência harmoniosa entre os etnias afri-
canas. E uma mudança da estrutura fundamental terá que ir de
par com um maior desenvolvimento', porque uma situação em que
o nível médio de desenvolvimento permanecesse tão extremamente
baixo quanto o actualmente verificado nos «sistemas tributários»
e na «periferia» do «sistema central» em Angola, estaria fadada
a gerar competições individuais e colectivas — podendo estas últi-
mas tomar, muito facilmente, uma Mção de concorrência inter-
-étnica.
Uma tal transformação, um tal processo de reconversão do
modelo societal vigente e de elaboração de um novo modelo societal,
exige evidentemente uma tomada de consciência da sua situação
estrutural por parte não apenas das lideranças africanas, mas da
população africana em geral. Descobrindo que os seus problemas
fundamentais não se equacionam em termos de etnias (como não
se equacionam em termos raciais), a população africana estaria em
condições para formular soluções que evitassem a repetição de ex-
periências infelizes feitas noutros lugares.
Essas soluções não implicariam, a nosso ver, o menosprezo e
abandono das identidades etno-culturais. Afigura-se-nos, pelo con-
trário, que uma recuperação, por parte dos actuais «sistemas tri-
butários», da sua capacidade de autoregular-se e de promover o
seu desenvolvimento, pressupõe a revalorização e activação dos res-
pectivos patrimónios culturais. De resto, ter-se-ia assim uma base
que permitiria que — concomitantemente com uma integração eco-
nómica/ecológica em termos válidos e com a correspondente reali-
zação de um novo modelo societal — fosse elaborada a cultura co^
mum de que falámos acima e que, nessas condições, poderia contar
com contribuições efectivas de todos os componentes étnicos de
Angola.
2. Justiça social

À analise precedente e o esforço para dar um sentido concreto


ao postulado da convivência racial e étnica fazem com que o termo
«justiça social» apareça, de certo modo, como pálido, exigindo
— para poder adquirir significado— uma «tradução» imediata
em conceitos que teoaham uma incontestável relevância perante a
realidade estrutural exposta.
A dificuldade de uma «tradução» deste tipo consiste em que
uma definição concreta de «justiça social» implica uma ideia ope-
racional acerca de um novo modelo societal. Ora, toda a análise a
que procedemos leva à conclusão de que não teria qualquer sentido
imaginar que existam «soluções prontas». O que se pode e deve fa-
zer, é destacar aqueles aspectos da situação actual que são estrutu-
ralmente incompatíveis com o® princípios destinados a reger a
futura sociedade angolana, e apontar para possibilidades de enca-
minhar um processo pelo qual as populações angolanas definiriam,
em passos sucessivo®, o modelo societal que corresponda às suas
aspirações.
Ê, por conseguinte, ex-negativo — isto é, salientando defeitos
do presente modelo societal — que devemos começar a concretizar
o que pode significar, na prática, o postulado da «justiça social».
Nesta perspectiva, há, essencialmente, duas dimensões constitu-
tivas da estrutura actual que aparecem incompatíveis com esse
postulado: a extrema estratificação, ligada a formas pronunciadas
de dominação.
Não será necessário insistir muito sobre a primeira dimensão.
Qualquer que seja o conceito usado para as medir, são abissais as
diferenças entre o nível económico do «sistema central» e o dos
«sistemas tributários»; além disso, o «núcleo», a «faixa interme-
diária» e a «periferia» do «sistema central» encontram-se em pata-
mares muito distintos da escala dos ingressos monetários. Ademais,
estas diferenças económicas correspondem, geralmente, a profun-
das diferenças quanto às possibilidades de as pessoas se realizarem,
individual e colectivamente. Já tivemos, de resto, ocasião de salien-
tar que a maior parte dos mecanismos sociais existentes (incluindo
o ensino, na medida em que procede selectivamente para conferir
oportunidades ocupacionais e diferentes «níveis culturais») tende
a reproduzir as clivagens fundamentais do modelo. Ora, desde que
não se parta do princípio de que os homens são («ontologicamente»)
desiguais, é evidente que esta estratificação não é «justa». Evi-
dente é também que uma simples diminuição gradativa das desi-
gualdades e/ou a criação de mecanismos que facilitassem uma
maior «mobilidade social vertical» dos indivíduos, apenas contri-
buiria para tornar a situação algo menos injusta, e não significaria
a criação de uma sociedade cujo princípio constitutivo fosse o da
«justiça social».
A análise relativa à dominação pode seguir um caminho se-
melhante. É certamente escusado repetir ou desenvolver a descrição
dos mecanismos de dominação concebidos e postos em prática para
650 garantir o «intercâmbio desigual». Tão-pouco será necessário ilus-
trar com o exemplo angolano que é incompatível com a dignidade
humana (tanto de quem é dominado como de quem domina) a redu-
ção da autodeterminação individual e colectiva de uma comunidade
por outra. Ora, a antítese de uma sociedade caracterizada por rela-
ções de dominação é uma sociedade participativa. Novamente, trata-
-se de um conceito que não pode ser entendido como gradativo,
mas como constitutivo. Uma sociedade participativa não é aquela
onde à maioria apenas é concedida uma limitada margem de in-
fluência sobre as decisões tomadas, em relação à sociedade inteira,
por segmentos minoritários. Uma sociedade participativa é aquela
onde as diferentes componentes desenvolvem, em comum, meca-
nismos capazes de estabelecer consenso sobre o rumo da sociedade
global, sem que prevaleçam, «institucionalmente», os interesses de
uma(s) sobre a(s) outra(s).
Transportando estes critérios para a situação estrutural ango-
lana, chega-se à conclusão fundamental de que o postulado da «jus-
tiça social» exige um processo, co-ãeterminado pelos actuais sis-
temas «tributários» e «central», que conduza a uma situação onde
os primeiros atinjam o mesmo nível de desenvolvimento/autore-
guíação que o último. E isto, como condição prévia para a consti-
tuição de um sistema integrado, em moldes estruturais que não
enfermem, desde o início, dos mesmos defeitos do modelo presente.
Concomitantemente, o mesmo postulado requer que se caminhe
para uma superação da estratificação existente no próprio «sis-
tema central», o que também pressupõe um processo em que este-
jam activamente presentes os diferentes estratos hoje existentes61.
É claro que tais processos somente poderão ter lugar desde
que os sistemas eco-culturais (e os estratos do «sistema central»)
que, na estrutura presente, se encontram em situações em que so-
frem uma dominação mais ou menos marcada e patente, recuperem
a sua capacidade de autodeterminação/autoregulação (ou, no caso
dos estratos «periféricos» e «intermediários» do «sistema central»,
adquiram uma capacidade que nunca tiveram).
A elaboração de um modelo societal que corresponda ao pos-
tulado da «justiça social» exige portanto, prioritariamente, uma
tomada de consciência e uma activação social dos actuais «sistemas
tributários».

3. Desenvolvimento económico
Uma tentativa de operacionalizar este postulado, para o caso
de Angola, leva-tfios a resultados análogos aos das precedentes aná-
lises, em termos «etno-culturais» e «sociais».
O desenvolvimento económico foi, até ao momento, concebido
e praticado em termos de desenvolvimento do «sistema central».
Dados os moldes em que se tem processado, produziu o subdesen-
61
Convém assinalar que este problema não se coloca para os «sistemas
tributários». Estes ou nunca tiveram uma acentuada estratificação social
«horizontal», ou perderam esta estratificação em consequência do processo
global de regressão a que foram submetidos. 651
volvimento dos «sistemas tributários», e não poderia, em qualquer
hipótese, deixar de perpetuar e acentuar desigualdades $ dispari-
dades. Por conseguinte, o «sistema central», tal como existe, é
estruturalmente incapaz de «promover» uma situação de desenvol-
vimento económico/ecológico equilibrado, para o conjunto societal
angolano. Tal situação somente poderá ser alcançada desde que se
proceda à reconversão do «sistema central».
Ora, parece difícil imaginar que o «sistema central» — ele pró-
prio constitutivamente «dependente» — tenha a capacidade de se
regenerar a si próprio, adoptando um modo de produção compatível
com o desenvolvimento dos actuais «sistemas tributários» e de uma
futura sociedade integrada. Nesta situação, o único processo que
se afigura viável consiste em proporcionar aos «sistemas tributá-
rios» condições para, recuperada a sua capacidade de autoregula-
ção, promoverem o seu desenvolvimento autocentrado. A condição
fundamental de tal processo é uma certa «retracção» do «sistema
central», mais concretamente: das suas interferências limitativas
nos «sistemas tributários». Condições suplementares consistirão em
oferecer estímulos para um desenvolvimento autocentrado, tecno-
logias utilizáveis para este fim e infra-estruturas concebidas na
mesma perspectiva.
Em suma: é com base num desenvolvimento autocentrado dos
actuais «sistemas tributários», e a partir destes, que parece possí-
vel encontrar um caminho para reconverter o actual «sistema cen-
tral» e para abrir a possibilidade de um desenvolvimento integrado.

4. Independência efectiva
O modelo societal vigente em Angola é o produto de uma de-
pendência externa do tipo colonial. Nestas condições, a obtenção da
independência política aparece, não como um fim que se baste, mas
como a condição prévia para a realização de um «projecto societal»
que supere as deficiências do presente modelo.
Ora, a experiência de muitos outros países mostra que exis-
tem, além da colonial, outras formas de dependência, igualmente li»
mitativais quanto à possibilidade de uma autodeterminação' efectiva.
Para Angola, trata-se portanto de evitar que a «descolonização»
nada mais signifique do que a passagem de um mecanismo de de-
pendência para outro. E isto, não apenas para obter uma simples
melhoria gradativa nas «razões de troca» com outros países, mas
também e sobretudo para que em Angola não seja impossibilitada
a construção de uma sociedade que corresponda aos anseios das
suas populações.
Importa salientar que se verifica, neste plano, uma determi-
nação causal nos dois sentidos. Não é apenas a existência e a
forma de uma dependência externa que condiciona a viabilidade
de um «projecto societal»; inversamente, o tipo do «modelo so-
cietal» posto em prática determina a possibilidade ou impossibi-
lidade de se evitar uma dependência externa.
No que toca a Angola, pode-se constatar que o «modelo so-
652 cietal» actualmente em vigor não oferece possibilidade alguma
de se vir a alcançar uma independência efectiva. Com efeito, dada
a sua natureza estrutural, o actual «sistema central» somente pode
garantir a sua existência e o seu desenvolvimento desde que aceite
uma ou outra forma de dependência externa e desde que, simulta-
neamente, mantenha os actuais «sistemas tributários» numa posi-
ção de dependência em relação a si próprio. Por outras palavras:
se não for alterada a estrutura básica do actual «modelo societal»,
Angola terá de aceitar uma ou outra forma de dependência externa,
a qual, por sua vez, obrigará à manutenção de um modelo enfer-
mando de uma ou outra modalidade de «heterogeneidade estru-
tural».
Trata-se de uma «fatalidade» a que levaria a continuação
«normal» da presente situação estrutural, e que não se evitaria
mediante modificações apenas parciais. E é claro que, a manter-se
essa situação, um «aperfeiçoamento» do «sistema central» torna-
ria tal «fatalidade» cada vez menos «evitável».
Para não deixar margem a equívocos, queremos no entanto
mencionar que não vemos que esta problemática esteja necessa-
riamente ligada à presença predominante de europeus no «sistema
central». O exemplo de outro® países do hemisfério sul mostra
que podem existir «modelos societais» — e, particularmente, «sis-
temas centrais»— muito semelhantes aos que presentemente se
encontram em Angola, sem que no entanto se verifique uma signifi-
cativa presença demográfica de elementos oriundos de uma ou mais
metrópoles e sem que tal ausência de uma «etnia alígena» dimi-
nua a dependência externa.
Assim, a transformação do actual «modelo siocietal» apre-
senta-se como uma condição necessária para uma independência
efectiva. Mais concretamente, uma independência efectiva pres-
supõe uma sociedade integrada, estruturalmente homogénea e
capaz de promover o seu desenvolvimento autocentrado. Somente
uma sociedade deste tipo possui condições para evitar dependên-
cias externas, determinando ela própria os termos do seu «inter-
câmbio» com outro® sistemas eco-culturais.
Ora, a operacionalização dos três primeiros postulado® socie-
tais já nos levou à constatação de que a formação de uma sociedade
deste tipo é possível, em Angola, desde que se estabeleçam alguns
pré-requisitos básicos — sendo o mais importante uma activação
sócio-cultural e um desenvolvimento económico/ecológico do® ac-
tuais «sistemas tributários», e o segundo em importância e urgên-
cia, uma «libertação no imaginário» do «núcleo» do sistema
central.

IV
A FUNÇÃO DO ENSINO
NA RECONVERSÃO DO «MODELO SOCIETAL» ANGOLANO
O ensino, tal como presentemente existe em Angola, já se nos
evidenciou como um dos mecanismos que contribuíram para a
consolidação do «modelo societal» em vigor. 658
Referindo-nos às quatro dimensões do «projecto societal»
acima consideradas, podemos afirmar que o ensino concorre, con-
cretamente, para os seguintes pontos de estrangulamento:
Constitui uma hipoteca para a convivência racial e étnica, na
medida em que não contribui nem para uma compreensão
crítica da realidade social (económica, cultural) ango-
lana, nem para umia «libertação» na percepção mútua
entre os grupos raciais e étnicos, nem para a elaboração
de uma cultura comum e com a qual poderiam identificar-
-se todos os grupos raciais e étnicos existentes em
Angola. Pelo contrário, representa um mecanismo de
regressão/alienação cultural da maioria não-europeia e,
por esta razão, uma fonte virtual de conflitos.
Acentua e consolida a estratificação existente —tanto em ter-
mos de «sistema central»/«sistemas tributários», como
em termos de «núcleo»/«periferia» do «sistema cen-
tral» —, assim como as relações de dominação que obe-
decem a essas mesmas clivagens.
Fornece uma «infra-estrutura ideológica» cuja função é a de
fazer aceitar o modo de produção característico do «sis-
tema central», inclusive as dependências externas que o
condicionam e ias consequências societais que dele decor-
rem62.
Estas Íncompatibilidades entre o ensino presente e o «projecto
societal» a que nos reportámos, são de identificação relativamente
fácil, tanto mais que nada ostentam de original, tendo-se verifi-
cado situações comparáveis numa série de países.
Em contrapartida, é bem mais difícil definir qual seria o tipo
de mecanismos educacionais capaz de contribuir para encami-
nhar o processo de elaboração de um «modelo societal» novo,
segundo os princípios que anteriormente expusemos.
É evidente que, no momento actual, ainda nem sequer se
coloca a questão de saber qual seria o sistema educacional que
estaria de acordo com um «modelo societal» caracterizado pelos
quatro postulados acima enumerados. Tal sistema terá de ser
definido progressivamente, à medida que avançar o próprio pro-
cesso de elaboração do novo «modelo societal». Ao mesmo tempo,
uma redefinição gradual do sistema educacional angolano terá de
levar em conta o re-exame crítico do mecanismo «clássico» do
ensino escolar, tema central das discussões internacionais rela-
cionadas com a educação, que indicam a necessidade de substituir
esse mecanismo, inteira ou parcialmente, por outros em vias de
elaboração.
Por ora, trata-se apenas de apontar para algumas possibili-
dades de contribuir para a fase inicial de um esforço de recon-
versão do «modelo societal» vigente, através de novos mecanismos

62
A este respeito, o ensino em Angola é cópia fiel do ensino na metró-
65-4 pole europeia.
educacionais ou de modificações nos mecanismos existentes. Neste
sentido, parece-nos oportuno concluir enunciando um certo nú-
mero de indicações fundamentais63.
De acordo com a conclusão principal a que chegámos no que
respeita à concretização dos novos postulados societais, exige
prioridade a activação e o desenvolvimento dos actuais sistemas
eco-culturais «tributários». Ora, essa activação pressupõe meca-
nismos educacionais novos, concebidos para adultos e totalmente
diferentes das escolas (ou dos cursos de tipo escolar). Numa fase
inicial, tais mecanismos deverão ser formulados para os «sistemas
tributários», a partir de experiências relevantes feitas em Angola
e noutros países64. Numa segunda fase, e na medida em que tive-
rem recuperado a sua capacidade de autoregulação (e deixado de
serem «tributários»), estes sistemas terão de redefinir esses meca-
nismos e, eventualmente, de os substituir por outros.
Ainda de acordo com a mesma conclusão, torna-se urgente a
reconversão imediata daqueles sectores do ensino actual que po-
dem ser aproveitados para a formação de técnicos destinados à
activação dos «sistemas tributários»—o que sublinha a relevância
de iniciativas como a da ruralização do ensino médio e de certos
aspectos da reforma da universidade.
No que toca ao ensino escolar, parece da maior premência
uma mudança incisiva do seu conteúdo ideológico-cultural, trans-
formando-o em instrumento ao serviço de uma compreensão crítica
da realidade social angolana e, ao mesmo tempo, de uma liber-
tação de padrões de percepção social e de discriminação cultural,
herdados da época colonial.
Todavia, uma modificação profunda da estrutura do ensino
pressupõe, provavelmente, que já esteja terminada a fase inicial
do processo geral de «elaboração societal». Até esse momento,
será indispensável uma vigilância destinada a impedir que o fun-
cionamento e o crescimento «normais» do actual ensino contri-
buam para consolidar o «sistema central» nos moldes presentes
e para perpetuar as clivagens características do actual «modelo
societal».

63
Estas indicações não pretendem ser propostas operacionais, mas
apenas enunciar postulados de natureza geral.
04
Cf. a síntese destas experiências apresentada no estudo da UNESCO,
Education and Development in a Rural Environment, texto policopiado, Paris,
1971. 655

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