Estudos e Debates: Estrutura Social e Descolonização em Angola
Estudos e Debates: Estrutura Social e Descolonização em Angola
Estudos e Debates: Estrutura Social e Descolonização em Angola
e debates
Franz-Wilhelm Heimer
Estrutura social
e descolonização em Angola
Na primeira parte deste artigo, traça-se um quadro
global da estrutura social angolana tal como hoje se apre-
senta, e examina-se o processo histórico —em que se distin-
guem diversas fases fundamentais— através do qual essa
estrutura se constituiu. Analisa-se, seguidamente o papel de-
sempenhado, na formação e consolidação dessa estrutura, por
um dos mecanismos sociais mais importantes: o sistema de
ensino. A partir das análises anteriores, estudam-se depois,
em termos genéricos, as condições necessárias à concretização
de um novo «projecto societal» angolano, regido por um certo
número de principias essenciais, geralmente aceites pelas for-
mações políticas que exprimem, em Angola, as aspirações dos
diversos segmentos da população. Esboça-se, deste modo, um
«modelo societal» para a Angola do futuro, modelo fundado
na convivência racial e étnica, na «justiça social», no desen-
volvimento económico integrado e na independência efectiva.
A concluir, apontam-se algumas funções que parecem caber
ao sistema de ensino, na reconversão da sociedade angolana.
INTRODUÇÃO
Angola constitui uma ilustração particularmente nítida de
que a independência política não é, só por si, sinónimo de descolo-
nização. Sendo embora fundamental, o actual processo de trans-
ferência da soberania sobre o território dos representantes da
legitimidade portuguesa para representantes de uma legitimidade
angolana em vias de definir-se, não representa senão uma con-
dição prévia para a obra de «construção nacional» que se impõe \
1
O termo «construção nacional» é utilizado aqui no sentido de «nation-
-building». Cf. Karl W. DEUTSCH & William J. FOLTZ, eds., Nation-Building,
Nova Iorque, 1963. A achega que apresentamos adiante evidenciará que não
aderimos à corrente que se serve desse conceito numa perspectiva teórico-
-ideológica tendente a «escamotear» realidades sociais conflituais. 621
Tratar-se-á, fundamentalmente, de possibilitar e de promover a
elaboração de uma sociedade angolana plenamente aceitável e
aceite por todas as partes que a compõem.
Não faltam, por certo, os esforços de reflexão e de imaginação
com o intuito de reunir elementos para um «projecto societal» para
Angola2, e em vários sectores —tal como o da educação— dis-
cutem-se políticas concretas concebidas para ajudar a preparar
uma sociedade capaz de superar os vícios da época colonial. A di-
ficuldade com que esbarram estes esforços consiste, porém, em
que, ao esboçar um «projecto societal» para Angola, e certamente
ao propor modalidades concretas destinadas à realização de tal
projecto, é imprescindível partir do conhecimento das virtuali-
dades que a actual realidade social comporta.
Ora, uma das características do regime político português
anterior ao 25 de Abril de 1974 foi a de não ter permitido um
conhecimento seguro da realidade social nos territórios sob a sua
dominação colonial. Em Angola, foi possível, na última década,
produzir um certo número de informações e de análises parciais 3 ;
no entanto, estas não se encontravam geralmente disponíveis, e
por conseguinte não puderam ser aproveitadas para a compreen-
são estrutural de uma situação de que a ideologia colonial apre-
sentou, desde sempre, uma imagem distorcida. Deste modo, o que
em Angola aparece como dissentimento em relação a opções polí-
ticas gerais ou específicas, muitas vezes nada mais é que o reflexo
de imagens fragmentadas, difusas e/ou ideologicamente viciadas
da realidade societal do país.
A finalidade do ensaio que se segue é a de contribuir para o
esforço de superar esta situação. Mais especificamente, proporá
uma achega interpretativa que se baseia, por um lado, na tentativa
das ciências sociais para compreender o fenómeno do desenvolvi-
mento/subdesenvolvimento em termos globais/estruturais e como
função da interacção entre sociedades, e por outro, nos resultados
de pesquisas, próprias e alheias, sobre Angola. Apresentada sob
a forma de um quadro extremamente esquemático, tal achega
necessita, evidentemente, de elaboração ulterior e de controlo pelo
material empírico que as ciências sociais irão produzindo; desde
já, aparece, no entanto, como um instrumento útil e adequado para
preparar uma visão simultaneamente global e diferenciada da
realidade angolana.
Tentar-se-á ainda demonstrar que essa achega não tem, apenas,
utilidade analítica, pois que permite, para além disso, traduzir em
termos mais concretos as ideias normativas existentes em relação
ao que deverá ser a futura sociedade angolana.
2
Usa-se o adjectiva «societal» para nos referirmos a uma sociedade
considerada como um todo. «Projecto» designa o «modelo» que se propõe
seja adoptado por uma dada sociedade. Cf. o uso deste conceito em Celso
FURTADO,
3
Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1968.
Esta situação é ilustrada pela colectânea editada por Franz-Wilhelm
HEIMER, Social Change in Angola, Munique, 1973. Convém assinalar que o
estudo de Mário de ANDRADE & Marc OLLIVIER, La Guerre en Angola: Etude
socio-economique, Paris, 1971 (publicado em português sob o título A Guerra
em Angola, Lisboa, Seara Nova, 1974), utilizando parte do material empírico
622 então disponível, constituiu um primeiro ensaio de análise global.
Finalmente, a utilidade analítica e projectiva da achega que
exporemos, será ilustrada por uma aplicação a um sector preciso,
o do ensino. Esta aplicação será feita em termos altamente sumá-
rios: não pretenderá, de maneira alguma, equacionar na sua tota-
lidade a problemática educacional, mas apenas recorrer a essa
problemática para demonstrar, por meio de um exemplo, as possí-
veis incidências da achega global.
Propomo-nos esboçar, inicialmente, um quadro global da
sociedade angolana, tal como se apresenta hoje, em resultado de
um processo histórico. Este esboço não terá a pretensão de ser
mais do que um quadro de referência, de carácter extremamente
esquemático, já que serão necessários estudos e pesquisas de vulto,
para se poder tratar o tema focado em toda a sua complexidade.
Num segundo passo, destacaremos, de maneira igualmente re-
sumida, o papel que desempenhou, na formação da sociedade ango-
lana, um dos mecanismos sociais mais importantes: o ensino.
Num terceiro passo, examinaremos algumas das implicações
destas análises para o processo de elaboração de uma futura so-
ciedade angolana, regida por alguns princípios fundamentais geral-
mente aceites.
Num quarto e último passo, focaremos de novo os mecanis-
mos educacionais, desta vez para formular algumas considerações
sobre a sua função no quadro de um «projecto societal» angolano.
FORMAÇÃO E ESTRUTURA
DA SOCIEDADE ANGOLANA
1. Perspectivas analíticas
;r
" 77 "
Na sua forma presente, a sociedade angolana é o resultado
de um processo concreto de colonização: esta constatação, que
mais não expressa que a própria evidência, é no entanto o ponto de
partida necessário para qualquer análise, seja em termos de génese
histórica, seja em termos de situação actual.
Não se pode, todavia, atingir uma compreensão adequada
do processo de colonização em Angola e dos seus resultados socie-
tais, enquanto não se colocar esse processo no contexto em que se
produziu, relativizando-o duplamente.
Por um lado, o processo verificado em Angola insere-se no
processo mais amplo da colonização europeia, fenómeno de consi-
derável extensão, que obedeceu a um pequeno número de padrões
básicos em todas as latitudes onde incidiu. Houve, naturalmente,
particularidades, segundo a metrópole colonizadora, o território
colonizado e a época histórica; mas fundamentalmente, trata-se
de um mesmo fenómeno. Por conseguinte, o que se verificou e
verifica em Angola não se pode validamente analisar a título de
caso singular, nem mesmo apenas a título de um dos territórios
sobre os quais incidiu o processo da colonização portuguesa. Ê im- 623
prescindível examinar o «caso de Angola» a partir do parâmetro
mais amplo que é o processo global 'da colonização europeia.
Por outro lado, mesmo o processo global da colonização euro-
peia não constitui, só por si, um quadro de referência inteiramente
adequado. Oom efeito, a colonização europeia —ou seja, o estabele-
cimento e a manutenção da soberania política de países europeus
sobre sociedades não-europeias e os mecanismos económicos e
culturais concomitantes— não representa senão uma dimensão,
entre outras, de um processo histórico bem mais complexo. Trata-se
do «desenvolvimento privilegiado» dos países europeus — graças à
evolução nos seus modos de produção, à adopção de novas tecno-
logias, à acumulação acentuada de capital, à criação de formas
«eficientes» de organização social, etc.—, desenvolvimento que,
em medida considerável, foi possibilitado por um «intercâmbio
desigual» 4, no plano económico, entre os países europeus e grande
parte das sociedades não-europeias. Esta dicotomia exige, porém,
uma dupla diferenciação. Por um lado, nem todos os países euro-
peus participaram nos mesmos termos no «desenvolvimento privi-
legiado», havendo inclusive «intercâmbio desigual» entre países
europeus; por outro lado, o grupo dos países privilegiados passou,
em dado momento histórico, a abranger países não-europeus, como
os Estados-Unidos, o Canadá e o Japão. Ê, portanto, preferível
adoptar a distinção entre metrópoles económicas e países depen-
dentes. Neste contexto, a colonização europeia, no sentido acima
definido, foi apenas um áos mecanismos pelos quais países tornados
metrópoles mantinham —e mantêm— em dependência outros
países, garantindo a si mesmos, desse modo, as «razões de troca»
favoráveis ao seu próprio desenvolvimento. Inevitavelmente, a
contrapartida do conjunto destes mecanismos foi a estagnação e
a regressão, em grau maior ou menor, das sociedades dependentes
— isto é, tanto das sociedades sob dominação colonial, quanto dos
países dotados de independência política (oriundos ou não de uma
fase de colonização) mas que, devido ao impacto das metrópoles,
não dispuseram de condições que lhe® permitissem determinar, eles
próprios, o seu desenvolvimento económico e a sua formação
social5.
A consequência foi, e continua a ser, uma divisão cada vez
mais acentuada do mundo em «países desenvolvidos» e «países
subdesenvolvidos» 6, sendo todavia de anotar que, entre estes últi-
mos, alguns passaram a uma forma ou outra de «desenvolvimento
periférico», permitida pelas metrópoles na medida em que favo-
recia o desenvolvimento destas 7 .
*6 Cf. Arghiri EMMANUEL, Uéchange inégal, Paris, 1969.
O exemplo mais em evidência de países com independência política
e dependência económica é, provavelmente, o da América Latina. Celso
FURTADO, Desenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro,
1968, 6é apenas um entre muitos estudos a este respeito.
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) chegou à conclusão de que, globalmente, a distância entre estes
dois grupos aumentou, nos últimos decénios. Cf. Michael BOHNET, Das Nord-
-Sued-Problem. Konflikte zvoischen Industrie und Entwicklungslaender, Mu-
nique,7 1971.
Uma das formas mais recentes e mais «adiantadas» é a do «desen-
Não há dúvida de que é altamente insatisfatória uma evocação
tão sumária de um processo extremamente complexo e diferen-
ciado. Parece-nos, porém, lícita na medida em que se verificam
neste domínio —além de um volume considerável de pesquisas
empíricas, dedicadas a casos ou aspectos parciais— esforços bas-
tante adiantados no sentido de elaborar um instrumental analítico
capaz de apreender, na sua totalidade, o processo em questão e de
detectar a sua8 estrutura fundamental, através de uma abordagem
multifacetada . Sem dúvida que deverão prosseguir tanto as inves-
tigações empíricas quanto o aperfeiçoamento do instrumental ana-
lítico. Mas o labor científico realizado fornece-nos, desde já, ura
quadro de referência que nos permite apontar para as dimensões
constitutivas do «caso de Angola». Fundamentalmente, Angola
aparecer-nos-á como um território habitado por diferentes socie-
dades africanas, com as quais uma metrópole europeia — ela pró-
pria economicamente dependente de outras metrópoles europeias —
organizou um «intercâmbio desigual» cujas formas variaram ao
longo do tempo e que levou à criação no território angolano, para
além das sociedades africanas originais, de uma sociedade colonial
com crescente dinâmica própria.
Ao desenvolver a nossa análise segundo estas linhas, utiliza-
remos, complementarmente e de maneira heurística, um instru-
mento analítico de elaboração mais recente, baseado em trabalhos
empíricos e teóricos da ecologia. Trata-s:e da teoria dos ecossiste-
mas, em vias de se transformar numa teoria dos sistemas eco-
-culturais e que foca certos aspectos estruturais das sociedades
humanas, assim como das interacções destas sociedades entre si
e com o seu ambiente natural respectivo. Concebendo uma socie-
dade humana mais o seu «ambiente natural» como um sistema eco-
-cultural, descobre-se que um desenvolvimento autêntico de tal
sistema não pode ster entendido em termos de um mero crescimento
global, quantitativo, mas em termos de um aumento equilibrado de
complexidade (diversificação), e que o subdesenvolvimento con-
siste numa perda de complexidade (regressão estrutural). Para
que um desenvolvimento/diversificação possa produzir-se, é neces-
sário que a sociedade humana em questão disponha da capacidade
9
A apresentação mais actualizada da teoria dos sistemas eco-culturais
é: Jorge Vieira da SILVA,, Ecologie et ãéveloppement, documento policopiado,
Paris, Université Paris VII, 1974. A achega já foi utilizada em diferentes
estudos regionais sobre Angola. Cf. Jorge Vieira da SILVA e Júlio Artur de
MORAIS, «Ecological Conditions of Social Change in the Central Highlands of
Angola», in Franz-Wilhelm HEIMER (ed.), Social Change in Angola,
Munique, 1973, pp. 93-109; Eduardo Cruz de CARVALHO & Jorge Vieira da
SILVA, «The Cunene Region: Ecological Analysis of an African Agropastoral
System», ibidem, pp. 145-192; Júlio Artur de MORAIS, Contribution à Vétude
des écosystèmes pastoraux: Les Vakuváls ãu Chingo, tese de doutoramento,
Paris, Université Paris vn, 1974
10
Repetimos que, por ser resumido e esquemático, o esboço se limita a
apontar para as dimensões mais importantes, não representando, portanto,
uma análise exaustiva e matizada. Repetimos, ainda, que consideramos urgente
uma análise profunda, com este mesmo enfoque.
11
Infelizmente, falta, até hoje, um levantamento sistemático da do-
cumentação existente sobre Angola, como também ainda não existe uma com-
pilação bibliográfica (nem muito menos, uma bibliografia comentada) dos
estudos sobre Angola, produzidos pelas ciências sociais (em sentido lato),
especialmente nos últimos vinte anos. A este último respeito, o anexo biblio-
gráfico em Douglas L. WHEELER & René PELISSIER, Angola, Londres, 1969, e
as referências bibliográficas nos estudos contidos em David M. ABSHIRE &
Michael A. SAMUELS (editores), Portuguese Africa: A Handbook, Londres,
1969 e Franz-Wilhelm HEIMER (ed.), op. cit., sem cobrirem o terreno de
maneira exaustiva, constituem ilustrações úteis da base relativamente ampla
de que se dispõe, hoje em dia, para a elaboração de esquemas compreensivos
de análise e interpretação. Remetemos, portanto, o leitor interessado para
essas indicações, limitando-nos a algumas poucas referências específicas,
durante a nossa análise esquemática.
626
2. A época pré-colonial
Não é por perfeccionismo científico que inserimos este ponto,
mas porque, não apenas a história de Angola, mas também a sua
realidade presente, somente se entendem desde que se possua uma
certa ideia acerca das sociedades africanas existentes no território
antes da chegada dos europeus.
Para os nossos fins, basta salientar os seguintes factos:
Não se possuem conhecimentos totalmente seguros sobre a
população pré-banta, presumivelmente constituída por
proto-bosquímanos. Os indicadores disponíveis apontam
para uma cobertura demográfica escassa e intermitente,
por sociedades pequenas, pouco diferenciadas e em baixo
nível tecnológico.
Num momento seguramente vários séculos anterior à chegada
dos europeus, mas que é ainda impossível determinar com
a exactidão desejável, os antepassados das actuais popu-
lações bantas estabeleceram-se no território angolano de
hoje, no decurso de uma penetração lenta. Como resultado
de um processo de diferenciação e consolidação, formou-
-se no Norte a sociedade Kongo, chegando a constituir
uma unidade política e um «sástema eco-cultural» de
apreciável extensão, complexidade e maturidade (capaci-
dade de autoregulação) —sem, no entanto, alcançar o
nível de certas sociedades políticas que, naquela época
(século xv), já existiam noutras partes da Africa.
Ao sul do «Reino do Congo», encontravam-se sociedades
mais pequenas e menos desenvolvidas, mas já em vias de
se articularem em unidades maiores e mais diversifica-
das— as formadas pela etnia dos Mbundu.
Enquanto, assim, os povos bantos do Norte já tinham formado
sociedades geograficamente estáveis, embora em graus
distintos de consolidação, a penetração do Leste não le-
vou, até o século xv, à formação de unidades sociais maio-
res no solo da presente Angola.
Durante toda esta época, continua fraca e intermitente a co-
bertura demográfica ao Sul (e Oeste) do Cuanza e no
espaço que, presentemente, corresponde ao «universo
agro-pastoril».
16
Cf. Joseph C. MiLLER, Kings and Kinsmen, op. cit., e Gladwyn M.
CHILDS, Um bundu Kinship and Character, Londres, 1949, pp. 164 e segs. Para
uma sinopse, cf. Hermann POESSINGER, «Interrelations Between Economic
and Social Change in Rural Africa: The Case of The Ovimbundu of Angola»,
in Franz-Wilhem HEIMER (ed.), op. cit., pp. 31-52.
17
Os termos de comparação são as grandes sociedades existentes noutras
partes da Africa. Cf., por ex., Robert e Marianne CORNEVIN, Histoire de VAfri-
que, des
18
Origines à nos Jours, Paris, 1964.
Entravam também em jogo, maciçamente, os interesses do Brasil que,
em certa altura, chegou a ter um controlo maior do que a metrópole sobre as
630 «testas de ponte» em Angola.
«assimilados» 19, e a sua «periferia», por africanos «não-assimi-
lados».
19
Neste contexto, o termo é usado num sentido amplo, sem a conotação
legal que assumirá, temporariamente, numa época ulterior.
20
Cf. Celso FURTADO, Formação económica do Brasil, Rio de Janeiro,
1959.
21
Lembra-se que, embora geralmente em menor escala, processos deste
tipo tinham ocorrido em vários pontos da Ásia e da África.
22
Cf. Douglas L. WHEELER & René PÉLISSIER, op. cit., pp. 51 e segs. 631
versificação na economia dessas «micro-sociedades coloniais», bem
como nos intercâmbios entre estas e as sociedades africanas de
Angola. 0 volume global das interacções deste último tipo baixou,
no entanto, durante algum tempo, o que — passado um período de
desorientação— proporcionou a alguns dos sistemas eco-culturais
africanos uma oportunidade (que seria, porém, temporária) de
começarem a recuperar uma maior capacidade de autoregulação.
Presisionado pela crescente concorrência por parte dos outros
países europeus empenhados na «corrida para a África» 23, e impul-
sionado por sectores económicos e políticos nacionais que conside-
ravam a «fórmula nova» dJa ocupação colonial como a única hipó-
tese de salvação, Portugal retomou, no entanto, e com redobrado
vigor, o seu esforço de conquista do «interior de Angola», nas
últimas décadas do século XIX.
Apesar de se encontrar, comparado com outros países, num
estágio de subdesenvolvimento, Portugal dispunha evidentemente,
naquela época, de uma base muito diferente e claramente mais
favorável para tal conquista do que quatrocentos anos antes. Com
efeito, constituía um sistema eco-cultural bastante mais diferen-
ciado que nos séculos xv e xvi, e encontrava-se portanto numa
posição de vantagem muito mais marcada, em relação às socieda-
des africanas. Importa destacar, neste contexto, a evolução tecno-
lógica entretanto verificada na Europa e da qual beneficiou Por-
tugal (ainda que ao preço do «intercâmbio desigual»), sendo de
relevância imediata, para a ocupação colonial (por parte de todas
as metrópoles europeias), sobretudo dois campos: o da tecnologia
militar e o da tecnologia médica, simbolizados pela metralhadora
e pela quinina, respectivamente. Quanto a Angola, importa ainda
salientar que a ocupação colonial incidiu sobre sistemas eco-
-culturais africanos enfraquecidos pela interacção prévia com os
europeus e, portanto, em nível de maturidade inferior ao que
poderiam ter atingido, e, no caso de algumas sociedades impor-
tantes, inferior ao que já tinham alcançado em anterior momento
histórico.
Apesar disso, verificou-se acentuada resistência dos povos
africanos contra a pretensão dos europeus de lhes tolher, por meio
da ocupação, a margem de autoregulação de que dispunham. Essa
resistência obrigou os portugueses a campanhas militares pratica-
mente ininterruptas até 1926, havendo ainda a registar «rebeliões»
ulteriores— a dos Ngangela em 1933/34 e a dos Kubal em 1940/41.
Foram necessários, por conseguinte, vários decénios para chegar
ao controlo mais ou menos efectivo do território «demarcado no
mapa» durante a conferência colonial de Berlim (1884) e cujos li-
mites exactos foram fixados por negociações bilaterais, até 1926 24.
Na primeira fase da ocupação colonial de Angola — como aliás
de Moçambique—, houve incertezas consideráveis quanto ao mo-
delo exacto a adoptar. Registaram-se tendências e medidas econó-
23
A expressão consagrada, em inglês, é «scramble for Africa». Cf. Eric
AXELSON, Portugal and the scramble for Africa. 1875-1891, Joanesburgo, 1967.
24
Cf., sobre esta fase, René PÉLISSIER, Histoire militaire de V'Angola
(em preparação).
micas e políticas divergentes e até contraditórias, em geral reflexos
da «heterogeneidade estrutural» em Portugal25. Ã dlistância, pa-
rece no entanto lícito afirmar que, desde o início da nova era,
Angola enveredou em direcção a um esquema que foi definitiva-
mente adoptado em 1930.
Desenvolvesse, a partir do® «embriões» previamente exis-
tentes, um sistema eco-cultural colonial integrado, cada vez mais
vasto e complexo, baseado nas cidades, nas concessões agrícolas e
pecuárias, nas empresas de extracção de minérios, etc. O «centro»
deste sistema foi constituído por uma imigração portuguesa cada
vez mais importante. Registou-se uma integração, muitas vezes
precária, nesse «núcleo», de um número extremamente limitado de
africanos «assimilados» e de um número algo maior de mestiços.
Na «periferia» do sistema colonial, portanto numa posição «agre-
gada» e marginal, encontrou-se um número crescente de africanos,
que constituíram a «mão-de-obra não-qualificada» (ou «pouco qua-
lificada») de que o sistema precisava para o seu funcionamento.
Este sistema colonial dominou, sem as absorver, as sociedades
africanas de Angola que, deste modo, se tornaram sistemas eco-
-culturais tributários em relação ao sistema colonial (ou «sistema
central»). Não perderam a sua identidaide própria, inclusive porque
tanto a legislação (Estatuto do Indigenato) como o comportamento
social do «núcleo» europeu do «sistema central» concorreram para
manter uma distinção nítida. Mas incidiram sobre os «sistemas
tributários» vários mecanismos de interacção com o «sistema cen-
tral», mecanismos que foram impostos pelo «sistema central» com
o intuito de garantir o seu próprio desenvolvimento. Os mais im-
portantes destes mecanismos foram os seguintes26:
Apropriação progressiva, pelo «sistema central», de partes
significativas da terra anterioonente pertencentes às so-
ciedades africanas.
Mobilização de mão-de-obra dos «sistemas tributários», por
meio de esquemas que iam do trabalho forçado e do anga-
riamento para contratos até à «drenagem» para uma fi-
xação permanente no «sistema central».
Imposição do cultivo de produtos agrícolas de que o «sistema
central» precisava (para consumo ou para exportação),
mediante esquemas que iam da cultura obrigatória (al-
godão) até ao «encaminhamento», por falta de alternativa,
para certas culturas «voluntárias» (milho) 27.
Desmantelamento das redes africanas de intercâmbio comer-
25
Cf. R. J. HAMMOUND, Portugal and Africa. 1815-1910: A study in
Uneconomic Imperialism, Stanford, 1966.
26
A ordem de enumeração não tem a pretensão de reflectir a sequência
cronológica na incidência destes mecanismos.
27
As interrelações entre a desapropriação da terra, a impossibilidade de
subsistir por outros meios que não do cultivo de produtos agrícolas aceites
pelo «sistema central», e a «disposição» para um trabalho a contrato e/ou o
êxodo rural, é analisada, para o caso dos Ovimbundu, no artigo de Hermann
POESSINGER, Op. cit. 633
ciai e sua substituição por uma rede europeia (do «comer-
ciante do mato» até às grandes firmas e entidades impor-
tadoras/exportadoras), garantindo-se assim ao «sistema
central» o (quase) monopólio das transacções comerciais
com os «sistemas tributários» e os lucro® decorrentes des-
tas transacções 28.
Lançamento e cobrança de impostos, taxas e multas de vária
ordem.
Trata-se de mecanismos que se encontram, em grau maior ou
menor, em todos os processos de ocupação colonial. Em Angola
— como nos outros territórios africanos sob domínio português —
pesaram, no entanto, de modo particular. Com efeito, a escassez
de capital e de «know-how» em Portugal levou esta metrópole a
exigir dos «indígenas» contribuições mais fortes para a formação
e o desenvolvimento de uma economia colonial, do que as que foram
exigidas em territórios sob domínio colonial inglês, francês, etc.29
Uma vez mais o grau de incidência destes mecanismos variou
muito, de uma região para outra, atingindo muito fortemente algu-
mas das sociedades africanas, e menos certas outras.
Uma vez mais também, resultaram destes mecanismos proces-
sos mais ou menos adiantados de regressão, particularmente nas
sociedades mais importantes do «universo agrícola», ou seja, os
Ovimbundu, os Akwambundu («Quimbundos») e os Bakongo. Gra-
dualmente, estas sociedades foram perdendo a capacidade de se
articularem em eco-sistemas maiores. Tentaram no entanto salva-
guardar, para unidades mais pequenas, as possibilidades de auto-
regulação que lhes consentia o «sistema central»; por outras
palavras, estas sociedades passaram a funcionar, em nível baixo
de desenvolvimento/diversificação e maturidade, sob a forma de
sistemas eco-culturais de envergadura mais ou menos reduzida,
resultantes da decomposição de sistemas maiores. Ê claro que a
manutenção dos mecanismos de interacção verificados entre o
«sistema central» e os «sistemas tributários», tendia a reduzir estes
últimos, a longo prazo, a um estado de amorfia estrutural —ou
seja, a uma «de-diver^ificação»/imaturidade extrema—; mas im-
porta sublinhar que este ponto não foi atingido no período que es-
tamos a focar, ou seja: até 1961.
Quanto ao sistema eco-cultural «central», deve-se assinalar
que a sua expansão foi acompanhada por uma crescente diferen-
ciação. Esta última reflectiu-se, não só numa diversificação das
actividades económicas e concomitantes, como também numa es-
tratificação social «horizontal» — em parte «herdada» da sociedade
metropolitana, em parte função dos condicionamentos locais—,
28
Um dos poucos tipos de transacções comerciais ainda existentes entre
«sistemas tributários», e organizados por elementos neles radicados, é o da
compra e venda de gado.
29
A existência de paralelismos é ressaltada pelo recente estudo de
Herbert WEILAND, «Abhaengigkeit und peripherer Kapitalismus am Beispiel
eines schwarzsfrikanischen Kleinstaates Gabum», Civitas-Jahrbuch fuer 8o-
63If zialwissenscliaften (no prelo).
estratificação que começou a tomar, pouco a pouco, feição seme-
lhante à de uma estrutura de classes30.
Crescimento e diversificação levaram o «sistema central», no
final da época que temo» vindo a considerar, a contestar a depen-
dência em que se encontrava relativamente a Portugal. Com efeito,
se os integrantes do «núcleo» do «sistema central» beneficiavam,
em grau maior ou menor, do «intercâmbio desigual» com os «siste-
mas tributários» e do aproveitamento, a baixo custo, da mão-de-
-obra «periférica», não se pode perder de vista que todo o esquema
estava concebido para servir, em primeiro lugar, Portugal — e mais
concretamente, nos decénios anteriores a 1961, para servir um
esforço (actualmente objecto de análises críticas) destinado a fazer
sair Portugal do estado de subdesenvolvimento relativo a que tinha
chegado. As aspirações do «núcleo» do «sistema central» em An-
gola, geralmente articuladas por elementos detentores de poder
económico, não iam, portanto, nem no sentido de alterar as suas
relações com os «sistemas tributários», nem no de uma modifica-
ção da estrutura interna do «sistema central», mas no de diminuir
e, em última análise, abolir a dependência do «sistema central» em
relação a Portugal. Dado o modo de produção do «sistema central»,
este não poderia, evidentemente, ter-se mantido sem alguma forma
de intercâmbio com uma ou mais metrópoles; mas existia a expec-
tativa de que um «afrouxamento» do controlo português sobre
Angola, acompanhado por uma «diversificação da dependência»
(desenvolvimento dos intercâmbios com várias metrópoles), criaria
possibilidades para que as «razões de troca» se tornassem mais
favoráveis para o «sistema central» angolano.
39
Para uma análise da fase de «arranque», cf. Michael A. SAMUELS,
Education in Angola, 1878-1914: A History of Culture Transfer and Admi-
nistration, Nova Iorque, 1970.
40
Cf. Manuel Fernandes COSTA, AS missões católicas portuguesas e o
ensino41 no Ultramar, Lisboa, 1965.
Não se pretende que estes efeitos tenham correspondido à intenção
6^0 das Igrejas e dos missionários, nem que tenham sido os únicos efeitos verifi-
Pouca preocupação efectiva houve, no conjunto, com a utilidade
da escola em relação a um desenvolvimento socio-económico e
cultural dos «sistemas tributários». Além disso, são notoriamente
conhecidas as deficiências flagrantes da maior parte destas escolas,
quando medidas pelos parâmetros fixados para elas. Levando aindia
em conta que se verificou, no ensino estatal, uma crescente diver-
sificação — com a introdução de liceus, escolas técnicas, escolas
de magistério, etc. —, chega-se a conclusão nítida de que a situação
do ensino, na fase que estamos considerando, estava perfeitamente
«adaptada» às estruturas do «modelo societal» então vigente e
constituía um mecanismo importante para a sua manutenção, in-
clusive no que diz respeito ao desenvolvimento do «sistema central»
e ao subdesenvolvimento dos «sistemas tributários».
Desde antes de 1961, na década dos anos cinquenta, notaram-
-se, todavia, na área do ensino, certos indícios de uma veleidade de
abandonar — ou, pelo menos, modificar — o «modelo societal» em
vigor. Quando o «ensino rudimentar» passou a ser chamado «ensino
de adaptação», houve a intenção de facilitar, embora em medida
restrita, a passagem de alunos deste ensino para o ensino eistatal.
Além disso, começou a praticasse, ia partir de 1954/55, em certas
áreas urbanas e até rurais, uma admissão «tácita», em escolas
estatais, de crianças africanas oriundas de famílias que não tinham
o estatuto de «assimiladas» (ou equivalente) e que, legalmente,
por serem consideradas «indígenas», só deveriam ter frequentado
«escolas de (adaptação». Pré-figuravam-se, deste modo, certas
tendências do processo de transformação que caracterizaria a
década posterior.
Com efeito, em 1961, e concomlitantemente com a abolição do
«Estatuto do Indigenato», o ensino passou a ser considerado como
um dos mecanismos mais importantes para o processo de transfor-
mação societal que se visava42. Em termos estruturais, foi de im-
portância primordial a reforma do ensino43 primário, encaminhada
desde 1961, sancionada por lei em 1964 e continuada por uma
série de medidas complementares nos anos subsequentes44. Para os
aspectos focados no presente estudo —o da «integração interna»
do «sistema central» e o da (virtual) absorção dos «sistemas tri-
butários» pelo «sistema central»—, as componentes mais impor-
tantes desta mudança foram as seguintes:
A abolição da distinção de princípio entre duas redes de en-
sino primário, com «status» diferentes.
45
Cf. Direcção Provincial dos Serviços de Estatística, Estatísticas da
Educação: Ano lectivo 1970/71, Luanda, 1973. A percentagem refere-se à
diferença
46
entre os anos lectivos de 1960/61 e de 1970/71.
Entre os muitos pronunciamentos neste sentido, cf. José Pinheiro da
SILVA,47 Toda a educação aponta para a integração, Luanda, 1969.
Cf. o capítulo «Educação», in Serviços de Planeamento e Integração
Um elemento novo foi a introdução, em 1968, da escola prepa-
ratória do ensino secundário e o subsequente incremento dado a
este grau do ensino. Este incremento veio na sequência da expan-
são do ensino primário e serviu, principalmente, para possibilitar
o acesso a um nível algo mais elevado de «habilitações literárias»
a crianças (e a adolescentes e adultos inscritos nos «cursos noc-
turnos») oriundas de segmentos sociais que, tradicionalmente, não
alcançavam mais que os primeiros escalões da pirâmide escolar.
Sem ligação predominante com este fenómeno, processou-se
ainda uma certa expansão do ensino liceal e técnico e criou-se um
ensino universitário.
Estabelecendo um balanço em 1974, constata-se que, em todos
os níveis, as prioridades relativas (ensino primário) ou absolutas
(ensino pós-primário) foram dadas ao «sistema central», para o
qual o ensino constituiu um poderoso mecanismo de «integração
interna» e de diversificação. A esta constatação deve-se, porém,
acrescentar que, tratando-se de um mecanismo «inventado» e
«exportado» por uma metrópole com traços muito marcados de
estratificação social «horizontal», o ensino contribuiu, por isso
mesmo, para acentuar, no seio do «sistema eco-cultural central»
de Angola, o tipo de estratificação existente em Portugal.
Quanto aos «sistemas tributários», somos levados à hipótese
de que a expansão do ensino, nos termos em que se processou, em
nada contribuiu para o seu desenvolvimento: pelo contrário, con-
tinuou a constituir, embora em moldes novos, um mecanismo de
«domesticação» ideológico-cultural dos «sistemas tributários» pelo
«sistema central» e, ao mesmo tempo, um mecanismo de drenagem
de elementos dos «sistemas tributários» para o «sistema central»
— concorrendo^, deste modo, para a regressão estrutural dos «sis-
temas tributários» e, simultaneamente, para o seu «esvaziamento»
em termos de identidade cultural. Por outras palavras, ajudou a
«alisar» o caminho para a absorção dos «sistemas tributários» pelo
«sistema central», nos termos acima expostos.
m
ELEMENTOS
PARA UM «PROJECTO SOCIETAL» ANGOLANO
Um escrutínio das declarações feitas pelas formações políticas
que procuram expressar as aspirações das diferentes componentes
do «conglomerado societal» angolano leva a conclusão de que existe
um amplo consenso em torno de alguns princípios considerados
fundamentais para a elaboração de uma futura sociedade ango-
lana. Todas concordam em afirmar que esta futura sociedade deve
caracterizar-se pela convivência de diferentes raças e etnias, pela
justiça social e por um acentuado desenvolvimento económico.
55
O exemplo do Brasil pode, neste contexto, servir, não de modelo, mas
de encorajamento. É claro que, no caso de Angola, a contribuição africana
para a cultura comum será muito mais forte do que no caso do Brasil.
66
Podem apontar-se quatro razões principais para esta tendência. Uma
primeira é a que o colonizador conferiu muitas vezes uma conotação depre-
ciativa a estas distinções entre «tribos» e «dialectos»; tendo assimilado a
maneira de ver do colonizador, alguns intelectuais africanos procuram negar
a existência de algo que passaram a considerar como sendo de menor valor.
Uma segunda consiste na dificuldade resultante, para a «construção nacional»
de muitos países africanos, da existência de diferentes etnias; certos políticos
chegaram à conclusão que esta dificuldade se resolveria -mais facilmente
desde que se ignorassem as distinções étnicas. Uma terceira razão é a expe-
riência de uma série de países africanos onde uma ou outra metrópole fomentou
as tensões inter-étnicas, antes e depois da independência política, com o
intuito de facilitar a manutenção ou instalação de mecanismos de «intercâm-
bio desigual». Uma quarta encontra-se naqueles países onde as clivagens
étnicas assinalam relações de dominação interna, e onde a existência de
distinções étnicas é negada ou minimizada com o intuito de impedir a trans-
parência das relações de dominação.
" Dadas as deficiências dos números censitários, é impossível dizer
qual é o seu número. Para o efeito da presente análise, é porém sem relevância
se este número é de 4,5 milhões, de 5 milhões ou de 6 milhões: importa apenas
reter que se trata da grande maioria dos angolanos.
M
Em Certas regiões, é comum a coexistência, dentro de um sistema ou
até de uma aldeia, de subgrupos etno-linguísticos diferentes. Um estudo de
uma aldeia a este título heterogénea, na região de Malanje, é dado em Luís
existentes operam no âmbito de cada grande grupo etno-linguístico,
tendo por efeito manter pouco diminuída a consciência de uma
identidade cultural colectiva ao nível desses grandes grupos59.
Quanto à população africana urbana, a sua quase totalidade
continua também a identificar-se culturalmente com um daqueles
grandes grupos etno-linguísticos e, em geral, até com um subgrupo.
Todavia, nos segmentos mais aculturados ao padrão português, e
especialmente nas camadas mais jovens, parece haver um início
de tendência para considerar mais importante a identificação como
africano que a identificação como elemento pertencente a determi-
nado grupo étnico.
Face a esta situação, o que importa anotar, antes do mais,
é que presentemente, em Angola, pouca ou nenhuma dominação se
verifica de uma etnia africana sobre outra —resultado de uma
época em que o monopólio da dominação foi assumido pelo «sis-
tema central». Além disso, e igualmente em consequência do con-
trolo exercido pelo «sistema central», não há, praticamente, com-
petição pelos recursos naturais (terras, água, caça) entre etnias
africanas. Finalmente, como o intercâmbio comercial entre os «sis-
temas tributários» foi praticamente extinto, também ficou elimi-
nado este factor potencial de conflito. Deste modo, dos conflitos
tradicionais entre as etnias africanas de Angola não resta senão a
recordação colectiva, passível de traduzir-se em atitudes de distan-
ciamento ou, pelo contrário, de simpatia60.
Em contrapartida, porém, algumas tensões inter-étnicas foram
provocadas pela situação colonial. Estas envolvem geralmente os
Ovimbundu, povo que viu lenta mas inexoravelmente tolhida a sua
base de subsistência e que, por este motivo, teve de aceitar a sua
utilização pelo «sistema central» em situações donde resultou con-
flito com outras etnias: com o® Bakongo, no Uíge, onde os traba-
lhadores Ovimbundu colaboraram objectivamente na expansão
do «sistema central» (possibilitando, inclusive, aos empresários
europeus a fixação de um nível de remuneração mais baixo para
a mão-de-obra assalariada); em Luanda, onde entraram em com-
petição com os Akwambundu, na corrida aos empregos oferecidos
pelo «sistema central». Resultaram daí ressentimentos que é neces-
sário tomar em consideração, mas que não parecem constituir um
problema de primeiro plano.
Assim, é lícito concluir que em Angola se verifica presente-
mente uma situação que não dá margem a «conflitos estruturais»
entre etnias africanas tão graves como os registados em vários
outros países da Africa. Merece particular destaque o facto de não
ter havido em Angola, como noutros países, identificação de uma
3. Desenvolvimento económico
Uma tentativa de operacionalizar este postulado, para o caso
de Angola, leva-tfios a resultados análogos aos das precedentes aná-
lises, em termos «etno-culturais» e «sociais».
O desenvolvimento económico foi, até ao momento, concebido
e praticado em termos de desenvolvimento do «sistema central».
Dados os moldes em que se tem processado, produziu o subdesen-
61
Convém assinalar que este problema não se coloca para os «sistemas
tributários». Estes ou nunca tiveram uma acentuada estratificação social
«horizontal», ou perderam esta estratificação em consequência do processo
global de regressão a que foram submetidos. 651
volvimento dos «sistemas tributários», e não poderia, em qualquer
hipótese, deixar de perpetuar e acentuar desigualdades $ dispari-
dades. Por conseguinte, o «sistema central», tal como existe, é
estruturalmente incapaz de «promover» uma situação de desenvol-
vimento económico/ecológico equilibrado, para o conjunto societal
angolano. Tal situação somente poderá ser alcançada desde que se
proceda à reconversão do «sistema central».
Ora, parece difícil imaginar que o «sistema central» — ele pró-
prio constitutivamente «dependente» — tenha a capacidade de se
regenerar a si próprio, adoptando um modo de produção compatível
com o desenvolvimento dos actuais «sistemas tributários» e de uma
futura sociedade integrada. Nesta situação, o único processo que
se afigura viável consiste em proporcionar aos «sistemas tributá-
rios» condições para, recuperada a sua capacidade de autoregula-
ção, promoverem o seu desenvolvimento autocentrado. A condição
fundamental de tal processo é uma certa «retracção» do «sistema
central», mais concretamente: das suas interferências limitativas
nos «sistemas tributários». Condições suplementares consistirão em
oferecer estímulos para um desenvolvimento autocentrado, tecno-
logias utilizáveis para este fim e infra-estruturas concebidas na
mesma perspectiva.
Em suma: é com base num desenvolvimento autocentrado dos
actuais «sistemas tributários», e a partir destes, que parece possí-
vel encontrar um caminho para reconverter o actual «sistema cen-
tral» e para abrir a possibilidade de um desenvolvimento integrado.
4. Independência efectiva
O modelo societal vigente em Angola é o produto de uma de-
pendência externa do tipo colonial. Nestas condições, a obtenção da
independência política aparece, não como um fim que se baste, mas
como a condição prévia para a realização de um «projecto societal»
que supere as deficiências do presente modelo.
Ora, a experiência de muitos outros países mostra que exis-
tem, além da colonial, outras formas de dependência, igualmente li»
mitativais quanto à possibilidade de uma autodeterminação' efectiva.
Para Angola, trata-se portanto de evitar que a «descolonização»
nada mais signifique do que a passagem de um mecanismo de de-
pendência para outro. E isto, não apenas para obter uma simples
melhoria gradativa nas «razões de troca» com outros países, mas
também e sobretudo para que em Angola não seja impossibilitada
a construção de uma sociedade que corresponda aos anseios das
suas populações.
Importa salientar que se verifica, neste plano, uma determi-
nação causal nos dois sentidos. Não é apenas a existência e a
forma de uma dependência externa que condiciona a viabilidade
de um «projecto societal»; inversamente, o tipo do «modelo so-
cietal» posto em prática determina a possibilidade ou impossibi-
lidade de se evitar uma dependência externa.
No que toca a Angola, pode-se constatar que o «modelo so-
652 cietal» actualmente em vigor não oferece possibilidade alguma
de se vir a alcançar uma independência efectiva. Com efeito, dada
a sua natureza estrutural, o actual «sistema central» somente pode
garantir a sua existência e o seu desenvolvimento desde que aceite
uma ou outra forma de dependência externa e desde que, simulta-
neamente, mantenha os actuais «sistemas tributários» numa posi-
ção de dependência em relação a si próprio. Por outras palavras:
se não for alterada a estrutura básica do actual «modelo societal»,
Angola terá de aceitar uma ou outra forma de dependência externa,
a qual, por sua vez, obrigará à manutenção de um modelo enfer-
mando de uma ou outra modalidade de «heterogeneidade estru-
tural».
Trata-se de uma «fatalidade» a que levaria a continuação
«normal» da presente situação estrutural, e que não se evitaria
mediante modificações apenas parciais. E é claro que, a manter-se
essa situação, um «aperfeiçoamento» do «sistema central» torna-
ria tal «fatalidade» cada vez menos «evitável».
Para não deixar margem a equívocos, queremos no entanto
mencionar que não vemos que esta problemática esteja necessa-
riamente ligada à presença predominante de europeus no «sistema
central». O exemplo de outro® países do hemisfério sul mostra
que podem existir «modelos societais» — e, particularmente, «sis-
temas centrais»— muito semelhantes aos que presentemente se
encontram em Angola, sem que no entanto se verifique uma signifi-
cativa presença demográfica de elementos oriundos de uma ou mais
metrópoles e sem que tal ausência de uma «etnia alígena» dimi-
nua a dependência externa.
Assim, a transformação do actual «modelo siocietal» apre-
senta-se como uma condição necessária para uma independência
efectiva. Mais concretamente, uma independência efectiva pres-
supõe uma sociedade integrada, estruturalmente homogénea e
capaz de promover o seu desenvolvimento autocentrado. Somente
uma sociedade deste tipo possui condições para evitar dependên-
cias externas, determinando ela própria os termos do seu «inter-
câmbio» com outro® sistemas eco-culturais.
Ora, a operacionalização dos três primeiros postulado® socie-
tais já nos levou à constatação de que a formação de uma sociedade
deste tipo é possível, em Angola, desde que se estabeleçam alguns
pré-requisitos básicos — sendo o mais importante uma activação
sócio-cultural e um desenvolvimento económico/ecológico do® ac-
tuais «sistemas tributários», e o segundo em importância e urgên-
cia, uma «libertação no imaginário» do «núcleo» do sistema
central.
IV
A FUNÇÃO DO ENSINO
NA RECONVERSÃO DO «MODELO SOCIETAL» ANGOLANO
O ensino, tal como presentemente existe em Angola, já se nos
evidenciou como um dos mecanismos que contribuíram para a
consolidação do «modelo societal» em vigor. 658
Referindo-nos às quatro dimensões do «projecto societal»
acima consideradas, podemos afirmar que o ensino concorre, con-
cretamente, para os seguintes pontos de estrangulamento:
Constitui uma hipoteca para a convivência racial e étnica, na
medida em que não contribui nem para uma compreensão
crítica da realidade social (económica, cultural) ango-
lana, nem para umia «libertação» na percepção mútua
entre os grupos raciais e étnicos, nem para a elaboração
de uma cultura comum e com a qual poderiam identificar-
-se todos os grupos raciais e étnicos existentes em
Angola. Pelo contrário, representa um mecanismo de
regressão/alienação cultural da maioria não-europeia e,
por esta razão, uma fonte virtual de conflitos.
Acentua e consolida a estratificação existente —tanto em ter-
mos de «sistema central»/«sistemas tributários», como
em termos de «núcleo»/«periferia» do «sistema cen-
tral» —, assim como as relações de dominação que obe-
decem a essas mesmas clivagens.
Fornece uma «infra-estrutura ideológica» cuja função é a de
fazer aceitar o modo de produção característico do «sis-
tema central», inclusive as dependências externas que o
condicionam e ias consequências societais que dele decor-
rem62.
Estas Íncompatibilidades entre o ensino presente e o «projecto
societal» a que nos reportámos, são de identificação relativamente
fácil, tanto mais que nada ostentam de original, tendo-se verifi-
cado situações comparáveis numa série de países.
Em contrapartida, é bem mais difícil definir qual seria o tipo
de mecanismos educacionais capaz de contribuir para encami-
nhar o processo de elaboração de um «modelo societal» novo,
segundo os princípios que anteriormente expusemos.
É evidente que, no momento actual, ainda nem sequer se
coloca a questão de saber qual seria o sistema educacional que
estaria de acordo com um «modelo societal» caracterizado pelos
quatro postulados acima enumerados. Tal sistema terá de ser
definido progressivamente, à medida que avançar o próprio pro-
cesso de elaboração do novo «modelo societal». Ao mesmo tempo,
uma redefinição gradual do sistema educacional angolano terá de
levar em conta o re-exame crítico do mecanismo «clássico» do
ensino escolar, tema central das discussões internacionais rela-
cionadas com a educação, que indicam a necessidade de substituir
esse mecanismo, inteira ou parcialmente, por outros em vias de
elaboração.
Por ora, trata-se apenas de apontar para algumas possibili-
dades de contribuir para a fase inicial de um esforço de recon-
versão do «modelo societal» vigente, através de novos mecanismos
62
A este respeito, o ensino em Angola é cópia fiel do ensino na metró-
65-4 pole europeia.
educacionais ou de modificações nos mecanismos existentes. Neste
sentido, parece-nos oportuno concluir enunciando um certo nú-
mero de indicações fundamentais63.
De acordo com a conclusão principal a que chegámos no que
respeita à concretização dos novos postulados societais, exige
prioridade a activação e o desenvolvimento dos actuais sistemas
eco-culturais «tributários». Ora, essa activação pressupõe meca-
nismos educacionais novos, concebidos para adultos e totalmente
diferentes das escolas (ou dos cursos de tipo escolar). Numa fase
inicial, tais mecanismos deverão ser formulados para os «sistemas
tributários», a partir de experiências relevantes feitas em Angola
e noutros países64. Numa segunda fase, e na medida em que tive-
rem recuperado a sua capacidade de autoregulação (e deixado de
serem «tributários»), estes sistemas terão de redefinir esses meca-
nismos e, eventualmente, de os substituir por outros.
Ainda de acordo com a mesma conclusão, torna-se urgente a
reconversão imediata daqueles sectores do ensino actual que po-
dem ser aproveitados para a formação de técnicos destinados à
activação dos «sistemas tributários»—o que sublinha a relevância
de iniciativas como a da ruralização do ensino médio e de certos
aspectos da reforma da universidade.
No que toca ao ensino escolar, parece da maior premência
uma mudança incisiva do seu conteúdo ideológico-cultural, trans-
formando-o em instrumento ao serviço de uma compreensão crítica
da realidade social angolana e, ao mesmo tempo, de uma liber-
tação de padrões de percepção social e de discriminação cultural,
herdados da época colonial.
Todavia, uma modificação profunda da estrutura do ensino
pressupõe, provavelmente, que já esteja terminada a fase inicial
do processo geral de «elaboração societal». Até esse momento,
será indispensável uma vigilância destinada a impedir que o fun-
cionamento e o crescimento «normais» do actual ensino contri-
buam para consolidar o «sistema central» nos moldes presentes
e para perpetuar as clivagens características do actual «modelo
societal».
63
Estas indicações não pretendem ser propostas operacionais, mas
apenas enunciar postulados de natureza geral.
04
Cf. a síntese destas experiências apresentada no estudo da UNESCO,
Education and Development in a Rural Environment, texto policopiado, Paris,
1971. 655