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INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
TESE DE DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA SOCIAL

RICARDO AUGUSTO DOS SANTOS

Pau que nasce torto, nunca se endireita!


E quem
quem é bom, já nasce feito?
Esterilização,
Esterilização, Saneamento e Educação: uma leitura do Eugenismo em Renato
Kehl (1917-
(1917-37).

NITERÓI – RJ
2008
2

RICARDO AUGUSTO DOS SANTOS

Pau que nasce torto, nunca se endireita!


E quem é bom, já nasce feito?
Esterilização, Saneamento e Educação: uma leitura do
Eugenismo em Renato Kehl (1917-37).

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor em
História.
Área de concentração: História Social.

ORIENTADORA: Prof.a. Dr.a. Magali Gouveia Engel

Niterói
2008
3

S237 Santos, Ricardo Augusto dos.


Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem é bom, já nasce feito?
Esterilização, saneamento e educação: uma leitura do eugenismo em Renato
Kehl (1917-37) / Ricardo Augusto dos Santos. – 2008.
257 f. ; il.
Orientador: Magali Gouveia Engel.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Departamento de História, 2008.
Bibliografia: f. 250-257.
1. Eugenia – Brasil – História. 2. Saúde pública – Brasil. 3. Brasil –
Relações raciais. 4. Educação. I. Engel, Magali Gouveia. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia III. Título.

CDD 363.920981
4

RICARDO AUGUSTO DOS SANTOS

Pau que nasce torto, nunca se endireita!


E quem é bom, já nasce feito?
Esterilização, Saneamento e Educação.
Uma Leitura do Eugenismo em Renato Kehl (1917-37)

BANCA EXAMINADORA

Orientadora: Professora Doutora Magali Gouveia Engel


Departamento de História – Universidade Federal Fluminense

Professora Doutora Sonia Regina de Mendonça


Departamento de História – Universidade Federal Fluminense

Professor Doutor Marcelo Badaró Mattos


Departamento de História – Universidade Federal Fluminense

Professor Doutor Luiz Antonio Teixeira


Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz

Professor Doutor Nilson Alves de Moraes


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Professor Doutor André Luiz Vieira de Campos (Suplente)


Departamento de História – Universidade Federal Fluminense

Professor Doutor José Roberto Franco Reis – (Suplente)


Fundação Oswaldo Cruz

Niterói
2008
5

Aos meus pais, Celestino e Lourdes.

À minha esposa, Ana.

Ao Danilo, meu querido filho.


6

AGRADECIMENTOS

Muitos são os que me ajudaram nesse trabalho,


que não sei se é um ponto final ou se é um
caminho novo que se inicia. Em especial
agradeço:

À orientadora Magali Engel. Sem você este


projeto não seria possível.

Aos amigos Pedro Marinho e Théo Lobarinhas.

Aos professores Sonia Mendonça, André Campos


e Marcelo Badaró.

A todos da Casa de Oswaldo Cruz, em especial,


as colegas Ana Luce, Laurinda Rosa e Renata
Borges.
7

“... país que nasce torto não endireita nem a pau. A receita (...) para
consertar o Brasil é a única que me parece eficaz. Um terremoto de
15 dias, para afofar a terra; e uma chuva de... adubo humano de
outros 15 dias, para adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita,
não?”.
Monteiro Lobato em carta a Renato Kehl em 1936

“Apesar da rotina e dos fetichistas, a esterilização se tornará,


futuramente, uma realidade, também no Brasil.”
Renato Kehl em janeiro de 1934
8

“Você é negro puro, eu sou branco puro, por isso somos capazes e
inteligentes. A maioria dos brasileiros, infelizmente, porém, é
mestiça, sangue fraco, Maria-vai-com-as-outras, pouco
inteligente. Resultado: de vez em quando o país sai dos trilhos.
Compete ao Exército repô-lo no caminho certo. Feito isso,
voltamos aos quartéis”.

Major do Exército, durante um “interrogatório” ao historiador Joel


Rufino dos Santos, preso em 1967.
9

RESUMO

Este é um estudo sobre a Eugenia no Brasil. O movimento eugenista foi

exuberante em nomes, títulos, instituições e publicações. Renato Kehl é a

figura central para a nossa análise. Mas, não o deixaremos sozinho. Um

intelectual carrega idéias, argumentos, dialoga e relaciona-se com outros

atores. Sendo assim, para marcar a existência de um campo eugênico no

Brasil visitaremos as idéias de outros intelectuais como o sanitarista Belisário

Penna, o escritor Monteiro Lobato, o antropólogo Roquette-Pinto, o zoólogo

Octavio Domingues, entre outros.

Kehl foi um dos principais agentes sociais do campo eugênico

brasileiro. Desde as primeiras décadas do século XX até a data de sua morte,

em 1974, ele esteve envolvido com o debate sobre a pertinência da eugenia

como o remédio para os vários males da sociedade. Participou da fundação

de associações, organizou congressos e criou periódicos que promoviam a

divulgação das idéias sobre a regeneração racial e social do país. Uma das

principais marcas do discurso de Kehl era o seu pessimismo quanto ao futuro da

nação brasileira. Para ele, a miscigenação racial conduziria o Brasil para uma

catástrofe. Assim, somente com procedimentos eugênicos, como a educação

higiênica e a esterilização, o país poderia tornar-se uma nação moderna e

próspera.
10

ABSTRACT

This is study about Eugenics (improvement of human hereditary) in

Brazil. This particular movement was exuberant in terms of associated

names, titles, institutions and publications. Renato Kehl is the central

element for our analysis. But we will not let him alone. A intellectual person

carries ideas, arguments, and put them in dialogue with other elements.

Therefore, to highlight the existence of an eugenic field in Brazil, we will

explore ideas of other intellectuals such as the specialist in public sanitation

Belisário Penna, the writer Monteiro Lobato, the anthropologist Roquette-

Pinto and the zoologist Octavio Domingues, among others.

Kehl was one of the main social agents in the field of Brazilian

eugenics. Since the first decades of the XXth Century to the day of his death,

in 1974, he was involved with the debate of eugenics , wondering if it was

relevant as a remedy to many problems of the society. He created many

associations, organized various conferences and also created magazines that

promoted ideas such as racial and social regeneration of the country. One of

the main characteristics of Kehl´s speech was exactly his negative thoughts

about the future of Brazil. For him, racial miscegenation would lead Brazil to

a huge catastrophe. Then, only with eugenic procedures, such as hygienic

education, discrimination and forced sterilization, the country could became

a modern and prosperous society.


11

SUMÁRIO

1. Introdução 12
2. Capítulo I. Pensamento Social no Brasil 26
2.1. Estado e Raça 36
2.2. Belisário Penna 46
2.3. A Viagem Científica Neiva-Penna 52
2.4. A Regeneração do Jeca 65
2.5. O Presidente Negro 72

3. Capítulo II. A Eugenia no Brasil 89


3.1. Racismo Científico 100
3.2. O Manifesto Eugenista 110
3.3. Instituições, Intelectuais e Periódicos 118
3.4. Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia de 1929 131
3.5. O Branqueamento 156

4. Capítulo III. Um Eugenista nos Trópicos 168


4.1. O Médico Renato Kehl 175
4.2. Eugenia e Imigração 190
4.3. Reversibilidade da Degeneração Racial 197

5. Considerações Finais 220


6. Anexos 233
6.1. Lista de Periódicos
6.2. Artigos de Renato Kehl
6.3. Artigos de Octavio Domingues
6.4. Livros de Renato Kehl, Octavio Domingues e Roquette-Pinto
6.5. Lista dos trabalhos apresentados no Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia
6.6. Caderno de Imagens

7. Referências Bibliográficas 248


12

1.

INTRODUÇÃO

Esta tese tem como objetivo o estudo da Eugenia no Brasil. Pesquisas sobre a eugenia
ainda permanecem restritas a determinadas regiões. Freqüentemente, ela é associada ao
nazismo, ignorando-se a existência das idéias e práticas eugenistas, que ultrapassaram
fronteiras ideológicas e geográficas.1 O exemplo norte-americano2 ainda é desconhecido,
assim como o eugenismo na América Latina é pouco estudado. Portanto, esse texto é
concentrado na análise das idéias e estratégias eugênicas em torno das quais se organizou a
sociedade brasileira, durante o século XX. Consideramos que, na atual conjuntura histórica, é
oportuno um projeto que contemple a diversidade de interpretações sobre o tema. Em países
como Brasil e Argentina, existe uma produção recente que trata de maneira superficial as
influências que o eugenismo provocou. Essa literatura aborda os textos de alguns intelectuais
eugenistas, porém não se demonstra a particularidade desses agentes sociais. No Brasil,
recentemente, foram realizados alguns trabalhos acadêmicos sobre o eugenismo nacional.
Com alguma freqüência, analisam as obras de diversos intelectuais e, especialmente, os livros,

1
Durante o simpósio The History of Eugenics: Work in Progress realizado nos Estados Unidos, discutiu-se o
caráter mundial das idéias e práticas eugenistas. Desse evento resultou artigos que foram apresentados no livro
The Wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Russia. Stepan publicou, nesse volume, seu
primeiro texto sobre a eugenia brasileira, que foi fruto de estudos realizados durante os anos 80, quando também
saiu o trabalho, “Eugenesia, genética y salud pública: el movimiento eugenésico brasileño y mundial”, na
Revista Quipu, em 1985.
2
Há evidentes exceções. BLACK (2003) e STERN (2005) realizam investigações instigantes a respeito da
Eugenia nos Estados Unidos. O primeiro reconstitui a trajetória da “caçada aos fracos” nos EUA. O segundo é
um livro fundamental que desmistifica a idéia de que o eugenismo norte-americano tido como “pesado”,
desapareceu ou ficou “leve” depois da Segunda Grande Guerra.
13

artigos e panfletos do médico Renato Kehl (1889-1974), tido como o expoente máximo do
movimento eugênico no Brasil, mas não ampliam a análise, não destacam as nuances do
pensamento social desse intelectual e, tampouco, dos outros autores brasileiros que
compartilharam das idéias eugenistas. Erroneamente, consideram um ator social como
paradigma ou modelo explicativo. Kehl, assim como os demais agentes sociais, não produzia
suas idéias como um Robinson Crusoé numa ilha.

Cumpre indagar: o pensamento eugênico brasileiro foi diferente do anglo-saxão?


Conforme alguns textos demonstraram, a recepção da Eugenia no Brasil e nas demais nações
da América Latina teve características distintas de países como EUA, Suécia, Inglaterra e
Alemanha. Todavia, alguns críticos, equivocadamente, concluem, por exemplo, que a eugenia
germânica ou a norte-americana foi a verdadeira, a que teve laços com a ciência da genética,
enquanto a nossa (latina) foi branda, falsa ou mesmo não existiu. Koifman (2007) analisou
essas leituras apressadas, chamando atenção para os equívocos cometidos: “Além dos
problemas relativos à falta de cuidados com o anacronismo, os críticos não levam em conta,
justamente, as particularidades que o eugenismo tomou em diferentes países” (KOIFMAN,
2007:37). Portanto, não cabe negar totalmente a validade das investigações realizadas, mas é
necessário fazer algumas perguntas: a eugenia latina foi menos eugenista ou mais leve do que
as outras? Foi um conjunto equivocado de idéias? Remando contra essas interpretações,
constatamos que, no Brasil, entre o início do século XX e as décadas de 20 e 40 existiu um
movimento eugênico que permitia a associação entre esterilização, saneamento e educação. E
quase todos os intelectuais eugenistas não escaparam dessa hibridização de estratégias.

O presente trabalho tem como título Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem
é bom, já nasce feito?Esterilização, Saneamento e Educação. Uma Leitura do Eugenismo em
Renato Kehl (1917-37). Portanto, resta evidente que este médico é a figura central para a
nossa análise. Mas, não o deixaremos sozinho. E ele não falava isoladamente. Um intelectual
carrega idéias, argumentos, dialoga e relaciona-se com outros atores. Kehl foi um dos
principais agentes sociais do campo eugênico brasileiro. Desde as primeiras décadas do século
XX até a data de sua morte (1974) ele esteve envolvido com o debate sobre a pertinência da
eugenia como o remédio para os vários males da sociedade brasileira. Participou da fundação
de associações, organizou congressos e criou periódicos que promoviam a divulgação das
idéias sobre a regeneração racial e social do país. Mas, muitos intelectuais acompanhavam-no.
Kehl não esteve solitário. O movimento eugenista foi exuberante em nomes, títulos,
instituições e publicações. Ao longo do texto, vamos marcar os posicionamentos dos
14

intelectuais, em especial do sanitarista Belisário Penna e do escritor Monteiro Lobato, sem


esquecer do antropólogo Roquette-Pinto, do zoólogo Octavio Domingues (1897-1972), do
sociólogo Oliveira Vianna e do político Alberto Torres.

Quem foi Renato Ferraz Kehl?

O médico Renato Ferraz Kehl nasceu em Limeira, interior do Estado de São Paulo, a
22 de agosto de 1889, filho de Joaquim Maynert Kehl e Rita de Cássia Ferraz Kehl. Exerceu a
clínica médica em pequeno consultório na capital paulista durante alguns anos. Dedicando-se
aos princípios da Eugenia fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira dedicada ao
estudo e veiculação dos ideais eugenistas aparecida da América do Sul com 140 membros
(quase todos médicos). Lutando pela difusão das suas idéias, Renato Kehl realizou
conferências no Brasil, publicou mais de 30 livros, além de inúmeros artigos em jornais.
Durante os anos em que exerceu cargos na administração pública (1919-1927), dentro do
Serviço de Profilaxia Rural e no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), ajudou a
organizar o serviço de educação sanitária da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas,
subordinado ao DNSP, tendo sido também o responsável pelo Museu de Higiene que esse
setor apresentou na exposição comemorativa do Centenário da Independência (1922). No
Departamento de Saneamento e Profilaxia Rural (DNSP) trabalhou durante três anos (1919-
1922) como inspetor sanitário rural e também como chefe do posto médico-sanitário em
Merity, passando depois para o serviço de Educação e Propaganda Sanitária (1923-1924).
Tendo-se exonerado do DNSP em 1927, ingressou na companhia Bayer.

Como dissemos, não discordamos totalmente das contribuições e interpretações


realizadas nos últimos anos por pesquisadores e professores sobre a eugenia brasileira.
Chamamos atenção, inclusive, para o bom nível dos trabalhos. Mas, proporemos alguns
questionamentos e teceremos considerações. Em primeiro lugar, afirmamos que a formação
do campo eugênico relaciona-se com a estrutura de classes de cada país. A maioria das
pesquisas não aponta esse fato. Quando o editor britânico da Eugenics Review3, Mister
Trounson, citado por Nancy Stepan, declarou que “a abordagem brasileira é mais sociológica

3
Esse editor dizia que a eugenia brasileira tinha múltiplas interpretações. Depois de ler vários textos de
eugenistas brasileiros, o britânico concluía: “Aparentemente os brasileiros interpretam a palavra eugenia de
forma menos restrita que nós e a fazem-na cobrir muitas coisas que chamaríamos de higiene e sexologia
elementar; e não se traça uma distinção muito clara entre condições congênitas devidas a acidentes pré-natais e
doenças estritamente genéticas (...) Conflitos familiares, educação sexual e exames e atestados pré-nupciais
parecem ser os assuntos que mais interessam aos eugenistas brasileiros, enquanto a genética e a seleção natural e
social são bastante negligenciadas. A abordagem é mais sociológica que biológica”. (STEPAN, 2005:76).
15

que biológica”, ele estava afirmando que a eugenia nacional era menos cientifica. Mas, será
que a abordagem britânica era totalmente ausente de intenções sociais? Ou, por que não dizer,
será que ele estava atribuindo uma inocência ideológica à eugenia inglesa, justamente por
considerá-la mais científica? Para olhos britânicos, as idéias eugênicas brasileiras podiam ser
um conjunto equivocado. Desprovida de uma sistematicidade e envolvida com problemas de
ordem moral. Segundo esse ponto de vista, a eugenia no Brasil estava preocupada com
questões menores como a puericultura, a beleza física e a higiene íntima.

No entanto, contrariamente a essas afirmações, existiu efetivamente uma articulação


social e política que permitia a associação entre Esterilização, Saneamento e Educação. Nancy
Stepan, a primeira e principal pesquisadora a oferecer uma interpretação geral sobre a
Eugenia na América Latina, não ignorou a especificidade da Eugenia em terras latinas.
Contudo, para esta autora, explicando o caso brasileiro, a justificativa para a originalidade das
idéias e práticas eugenistas abaixo da linha do equador era que “em virtude de seu clima
tropical e de sua população mestiça o Brasil representava tudo que os europeus consideravam
disgênico”4. Assim, estava explicado porque não foram adotadas medidas radicais eugênicas
ou “verdadeiramente” eugenistas no Brasil: devido ao fato de o país ser uma nação de
mestiços. Afinal, quem seria excluído? Condenado? Por este viés, não tivemos a
preponderância da chamada “eugenia negativa”. Trata-se de opinião muito próxima daquela
que condenava totalmente a “raça nacional”. A forte mestiçagem inviabilizaria o Brasil como
nação. Mas, esta não era a expressão daqueles que consideravam como superior uma ínfima
parte da humanidade? Uma suposta e quase mítica superior raça ariana? Veremos, pois,
porque estas argumentações se confundem.5

A principal obra da historiadora Nancy Stepan publicada no Brasil é A Hora de


Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. O livro foi editado pela primeira vez em
1991, mas a edição brasileira, iniciativa da Editora da Fiocruz, data de 2005. Nele, a autora
recupera o desenvolvimento das idéias eugênicas na América Latina e, em particular, as
experiências do México, Argentina e Brasil. Neste e em outros trabalhos dessa historiadora
citados pela literatura historiográfica brasileira que trabalha o tema da eugenia, Stepan situa
suas hipóteses. Embora não ignore a especificidade e originalidade da Eugenia Latina, sem

4
STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto & ARMUS, Diego(orgs.)
Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2004, pp 335. Esse trabalho é tradução do artigo publicado na Revista Quipu.
5
Haveríamos que formar um povo a partir do que tínhamos. Não havia, entre nós, uma mítica raça ariana a
representar o ideal racial.
16

incorrer em menosprezo à contribuição das idéias eugênicas desses países, uma parte
significativa dos argumentos de Stepan é inconsistente. Um ponto especial deve ser
destacado, com o propósito de rebatê-lo.

Para Stepan, mas também para Souza (2006) e Diwan (2007), teria havido uma
suposta exacerbação radical das propostas de Renato Kehl no decorrer dos anos 20. Esses
autores identificam uma alteração no pensamento de Kehl em direção a uma eugenia negativa.
Por esta interpretação, Kehl, a partir de um determinado instante, teria radicalizado suas
impressões, desejando um modelo de eugenia mais identificado com ações como a
esterilização compulsória. Também a partir dessa ruptura, ele teria modificado sua opinião
sobre a miscigenação. Com a radicalização, teria se tornando mais intransigente e pessimista a
respeito da mistura de raças. Apesar do bom texto de Stepan, o argumento principal para a
apontada mudança radical é fraco. Poder-se-ia dizer, não sem um pouco de ironia, que se trata
de uma explicação geneticista. A professora da Universidade de Columbia em Nova Iorque
tenta assim explicar a suposta ruptura do pensamento de Kehl: “(...) as origens alemãs de
Renato Kehl, líder dos eugenistas brasileiros, podem ter sido, em parte, responsáveis pela
exacerbação de seu racismo” (STEPAN, 2005: 168). Souza (2006), por seu turno, embora
critique, em alguns pontos, acertadamente a obra de Stepan, também recorre a argumentos
com os quais não concordamos. Por exemplo, menciona-se, por várias vezes, ao longo de seu
texto, que Kehl teria sofrido uma virada em sua trajetória. Ao longo do texto, detalharei esta
minha discordância. Houve, sem dúvida, alterações no seu discurso. Mas, isto não representou
uma modificação do seu pensamento, tampouco uma revolução dentro do campo eugênico.

A Eugenia chegou ao Brasil por intermédio dos livros e artigos produzidos em


numerosa quantidade nos EUA e na Europa. Por aqui, encontrou solo fértil. Casou-se muito
bem com um conjunto variado de idéias. Algumas delas existiam, pelo menos desde a metade
do século XIX e tentavam explicar a experiência histórica em torno das populações escravas.
Outras, espetacularmente desenvolvidas após 1870, almejavam construir um mundo moderno
e científico, colocando o Brasil nos trilhos do progresso. Certamente, um dos motivos mais
importantes para o desenvolvimento do eugenismo nas três primeiras décadas do século XX
estava na preocupação com o controle da população de ex-escravos que estavam em processo
de proletarização. É bastante evidente a inquietação de Khel e de seus interlocutores com os
fatores identificados pelo eugenismo nacional como disgênicos, ou seja, contrários à formação
do povo bonito, forte e saudável.
17

Que condições adversas e disgênicas eram essas que impediam a formação de um


Brasil novo? Entre várias outras, o crescimento desordenado das cidades; a proclamação da
República, que também não havia resolvido os problemas que os intelectuais apontavam
como cruciais, pois, segundo os reformadores críticos, eles impediam a formação de uma
grande nação; a abolição da escravidão e conseqüente processo imigratório para as cidades,
compondo um contingente de pessoas procurando moradia e trabalho em cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo.

Assim, de uma maneira ampla, os intelectuais se perguntavam: como produzir boas


colheitas quando as sementes e o solo não são bons? Idéias que já estavam embutidas em
autores norte-americanos e europeus, representantes do pensamento social e político que no
século XIX, afirmavam a degeneração do Brasil devido à promiscuidade e sua liberdade
sexual nos cruzamentos raciais, produzindo seres inúteis e híbridos. É certo que considerações
completamente pessimistas quanto ao futuro da nação miscigenada seriam rebatidas pelos
intelectuais identificados com o movimento sanitarista e, inclusive, com o eugenismo. Aliás,
os autores do campo eugênico, os intelectuais que produziram suas obras nos marcos
fronteiriços da Primeira República e do Estado Novo (1889-1945), notadamente os
sanitaristas, ao contrário dos adeptos do chamado racismo científico, consideravam e
trabalhavam para tornar o Brasil viável e os brasileiros capazes. Por exemplo, Roquette-Pinto
escreveu em 1927:

Tudo quanto se tem apurado, no laboratório de antropologia do Museu


Nacional, confirma [que] (...) a nossa população mestiça, quando sã, não
apresenta nenhum caráter de degeneração física ou psíquica. (...) não
denunciam absolutamente nenhuma inferioridade biológica. Quanto ao que
raça pode dar como energia moral (...) são o melhor instrumento de que ela
não fica a dever nada aos povos fortes (ROQUETTE-PINTO, 1927: 202).

Esse é um ponto interessante e importante para compreendermos as tramas desse


emaranhado de idéias: a ambigüidade e a complexidade das propostas eugenistas. Por
exemplo, sem dúvida, Roquette-Pinto refutava a negatividade oriunda unicamente da
mestiçagem, mas desde que não houvesse “nenhum caráter de degeneração física ou psíquica”
nos indivíduos. Ao longo do trabalho, serão consideradas as características principais dos
intelectuais eugenistas. À exceção pioneira de Stepan, a historiografia da eugenia tende a
considerar como autênticos somente os discursos eugênicos advindos de intelectuais
brasileiros fortemente alinhados com os modelos estrangeiros. Assim, na maioria dos
trabalhos acadêmicos sobre eugenia, Kehl é identificado como eugenista brando, em sua
18

primeira fase, depois, paulatinamente tornar-se-ia mais radical. Octavio Domingues é


considerado um eugenista mendelista. Roquette-Pinto é apresentado como adepto do
mendelismo, mas com face anti-racista, principalmente a partir dos anos 30. Rótulos à parte, o
cenário é bem mais matizado e complexo. Freqüentemente, vários autores representantes do
pensamento eugenista ou fortemente influenciados pelas idéias eugenistas são ignorados
como bons exemplos para estudar a repercussão dessas idéias. Há duas boas razões
explicativas. Em primeiro lugar, os pesquisadores contemporâneos ainda trabalham com os
conceitos formulados pelos autores estudados. Em segundo, o paradigma eugênico anglo-
saxão influencia as análises operadas pela historiografia sobre eugenia. Por meio de uma
leitura tradicional, qualquer proposta fora do modelo paradigmático não será considerada
eugênica ou mesmo compreendida enquanto negação das idéias eugenistas. Daí a
identificação quase direta entre nazismo e eugenia, o que constitui flagrante equívoco. Como
explicar as experiências eugenistas acontecidas na Suécia social-democrata, que até os anos
70 do século XX praticou a esterilização compulsória? Ou nos EUA, que em 1906 já realizava
a esterilização em homens e mulheres e consagrava a eugenia nas suas políticas públicas?

A primeira crítica a fazer é que tal visão reproduz os padrões estrangeiros clássicos.
Recentemente, foram publicados textos que desmistificam um pouco esse olhar monolítico,
quase sempre fruto de pouco trabalho de pesquisa documental ou amparado em teoria
inadequada. As análises que vão sendo superadas afirmam que devido ao fato de os eugenistas
dos EUA pregarem a esterilização, não defendiam práticas como a educação física, o
saneamento e a higiene como fatores de eugenização da raça. Talvez a ênfase fosse muito
menor do que no Brasil, mas, por outro lado, na sociedade americana era grande a
preocupação com o matrimônio entre as pessoas. Então, havia sim uma mínima preocupação
com esses fatores “sociais”. Talvez, a grande diferença seja que no Brasil, acreditou-se que
era necessário e possível salvar (regenerar) a raça e melhorar o país por meio dessas práticas
educativas e sanitaristas. Também é comum supor que após a Segunda Guerra, a eugenia
norte-americana desapareceu. Contudo, esta é mais uma visão equivocada sobre a questão.
(SOUZA, 2007)6.

Esta tese está dividida em três capítulos. No primeiro, reconstruirei o panorama que
norteava os intelectuais eugenistas do período. Procurarei analisar o contexto dos atores no

6
Nesta resenha escrita por Souza (2007), podemos ver como as idéias eugênicas sofreram modificações, mas
não desapareceram nos EUA após 1945. O livro comentado é STERN, Alexandra Minna. Eugenic nation: faults
and frontier of better breeding in modern America. California: University of California Press, 2005.
19

início do século XX, sobretudo em relação ao que eles pensavam a respeito dos conceitos de
nação, estado, raça e progresso. Como argumentamos, as idéias eugenistas foram formuladas
e apropriadas como símbolos capazes de auxiliar tanto no processo de regeneração da raça
nacional como da modernização da sociedade. Nesse contexto, o Estado deveria influir e
conduzir o acasalamento e a reprodução humana. Nesta parte, falarei do relatório da
expedição ao interior do Brasil empreendida por Belisário Penna e Arthur Neiva como um
documento revelador dos problemas do país. Tratarei da metamorfose que o personagem Jeca
Tatu sofreu como um elemento crucial para perceber a influência que as idéias racistas
deterministas, sanitaristas e, por fim, eugenistas, exerceram sobre a sociedade da época.

No segundo e terceiro capítulos, faço um mapeamento dos pontos mais importantes da


trajetória das idéias eugenistas no Brasil. Não constitui objeto desta tese a análise dos
meandros da aludida oposição científica entre mendelistas e neolamarckistas, por sua
irrelevância para a compreensão da história social e mesmo da sociedade da época.
Reconhecemos as divisões e divergências envolvendo o debate teórico dentro do campo
eugenista, mas será tarefa da história, pelo menos da história social, investigar em minúcias os
modelos teóricos e científicos? Creio que não. Deixaremos esta parte aos colegas da história
da ciência. Consideramos ser mais instigante indagar que acordos tornaram possível uma
conciliação de interesses entre os agentes. Achamos, antes, de fundamental importância
pesquisar as repercussões da suposta divisão entre os eugenistas adeptos das várias teorias.

Afinal, que projetos políticos permitiram a não-radicalização e não-adoção de


experiências mais “duras”, tendo em vista as ações realizadas, por exemplo, nos EUA, Suécia
e na Alemanha? Trataremos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia realizado no Rio de
Janeiro como um acontecimento especial, onde as disputas por espaço político dentro do
campo intelectual eugênico redundaram em tomadas de posição por parte dos membros do
campo eugenista. Existia uma divisão entre os intelectuais e uma definição um pouco distinta
sobre a influência, ou não, do meio sobre a hereditariedade.

Os adeptos do eugenismo formavam um grupo fortemente organizado,


institucionalizado e estruturado o bastante para dominar várias áreas da política, educação e
cultura. Convém não esquecer o número expressivo de periódicos, associações profissionais e
culturais que esses intelectuais criaram. Tampouco deve-se negligenciar a importância política
que tiveram. Afinal, era por intermédio de agências como a Sociedade Eugênica de São Paulo,
a Liga Brasileira de Higiene Mental, a Liga Pró-Saneamento do Brasil e periódicos como o
20

Boletim de Eugenia que esses intelectuais, principalmente médicos, formulavam, veiculavam


suas idéias e formavam um grupo que pressionava politicamente o Congresso Nacional.
Inúmeras tentativas, algumas bem sucedidas, de transformar a legislação, marcando o controle
do Estado sobre as vidas dos indivíduos e, em especial, sobre a reprodução. No Folheto
Certificado medico pré-nupcial. Regulamentação eugênica do casamento, uma separata do
periódico Brazil-Médico7, publicado em 1930, Kehl realizou um pequeno inventário das
movimentações políticas no Congresso para regulamentar as leis sobre o casamento civil
durante as primeiras décadas do século.

Nas conjunturas das décadas de 1930, 40 e 50, vários desses intelectuais eugenistas
ocuparam posições importantes nas administrações governamentais. Koifman (2007) observa
que, embora as políticas públicas ou as orientações dos governos mudem ao longo do tempo,
os funcionários permanecem durante várias gestões à frente das “repartições”, onde
efetivamente são cumpridas as determinações contidas nas políticas públicas. Este autor
demonstra que o eugenismo influenciou e regulamentou fortemente o controle sobre a entrada
de estrangeiros no país durante muitos anos8. Vários intelectuais que exerceram cargos nos
chamados escalões inferiores da administração pública não são considerados dignos de
estudos e análises. Em sua tese de doutorado, Koifman demonstra a importância de Ernani
Reis (1905-1954). Aparentemente um funcionário público de escalão inferior, ele era,
contudo, um intelectual com forte presença no governo e que, freqüentemente, publicava em
jornais e participava de inúmeros programas radiofônicos nas emissoras de rádio da época.

Destacarei em especial, a trajetória biográfica e intelectual de Kehl, sobretudo entre os


anos de 1917 e 1937. Analisarei a rede de relações dos intelectuais eugenistas, suas
instituições, livros e periódicos, por meio dos quais eles se empenharam na organização e
divulgação do movimento eugenista. Se Lobato e Penna ocupam espaços relevantes, Octavio
Domingues e Roquette-Pinto são também interlocutores fundamentais para Kehl. Octávio
Domingues (1897-1972) estudou na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz de 1915
a 1917, trabalhou no Ministério da Agricultura e foi professor da Escola de Agronomia da
Amazônia. Entre 1919 e 1924, lecionou na Escola de Agronomia e Veterinária do Pará, e, na
ESALQ, de 1925 a 1936. Foi ainda professor da Faculdade de Farmácia e Odontologia de
7
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
8
Comumente atribui-se uma característica a-histórica ao Estado e aos homens. Por exemplo, diz-se que o Estado
Novo realizou ou que após o seu término, uma determinada época totalmente diferente começou. Assim,
considera-se, por um lado, que o Estado tem um comportamento quase humano. Num momento, ele é bom,
depois, ele é mau. Assim, criou-se uma ilusão de que ao final do Estado Novo, após 1945, tivemos o início de
uma era justa, pacífica e democrática, o que é, no mínimo, um equívoco.
21

Piracicaba e da Escola Nacional de Agronomia (ENA) no Rio de Janeiro. Foi diretor de


ensino agrícola da ENA, trabalhou no Instituto de Zootecnia do Rio de Janeiro e no
Departamento Nacional de Produção Animal. Octávio Domingues foi sócio fundador da
Sociedade Brasileira da Zootecnia e presidente da mesma de 1951 a 1968. Roquette-Pinto,
médico e antropólogo, figura de destaque na intelectualidade brasileira. Mas, é preciso
ressaltar, em inúmeras ocasiões, os três personagens atuaram em conjunto. Discordando ou
não, trabalharam em comissões governamentais e nos periódicos. Estiveram juntos no grupo
de trabalho criado após a Constituição de 1934, para estudar a questão da imigração, sob a
coordenação do sociólogo Oliveira Vianna, participaram do Boletim de Eugenia que circulou
entre 1929 e 1933 e da Comissão Central Brasileira de Eugenia, que seria um órgão
centralizador das políticas e ações públicas para a seleção eugênica dos indivíduos.
Analisando as correspondências do Fundo Renato Kehl, vê-se que as divergências científicas
e políticas eram maiores com Roquette-Pinto do que com Domingues. Entretanto, não
consideramos que a diferença de opinião fosse capaz de alterar o ideal da criação de um Brasil
novo.

Julgamos que nossa contribuição ao debate historiográfico sobre a Eugenia Brasileira


será demonstrar a articulação da educação higiênica, das ações de esterilização e do combate
às doenças para a formação de uma nação e um povo educado, higiênico e forte. Mesmo Kehl,
reconhecido como um eugenista radical, favorável às técnicas de esterilização involuntária de
“incapazes mentais” e criminosos desde antes da criação, em 1920, do DNSP (Departamento
Nacional de Saúde Pública), foi também defensor do saneamento e da educação higiênica
como fatores que propiciariam a cura dos males dos brasileiros, quase sempre pobres,
doentes, feios e desprovidos de cultura científica. No início da década de 1920, ele já
declarava a importância e o valor dos ensinamentos da educação higiênica e demonstrava que
estava a par das ações desenvolvidas na Alemanha:

E, devo frisar, quase nada se obtém em campanha sanitária, quando se não


conta com a colaboração popular. Em todos os países cultos a campanha de
propaganda de higiene e educação sanitária é tida em alta conta, não se
medindo esforços nem despesas para torná-la o mais eficiente possível.
Quem ignora os esforços e os grandes resultados colhidos com a organização
americana, nesse sentido? E na Alemanha? Neste país até as folhinhas de
arrancar são empregadas com a divulgação de conselhos higiênicos. Como
se sabe, lá como aqui, são muito apreciados os pensamentos, máximas,
22

versinhos, impressos no verso das folhinhas (...) a propaganda é uma grande


auxiliar de todo empreendimento.9

Ao longo da tese, exploraremos a ação intervencionista da educação no projeto


eugênico de Kehl. Isto nos ajuda a entender um pouco mais sobre a especificidade da eugenia
nacional. Kehl tinha, a esse respeito, uma visão bastante particular das funções que a
educação higiênica e a educação sexual desempenhariam na construção nacional do povo
brasileiro. A investigação das idéias eugenistas em Kehl, e também, na trajetória de outros
intelectuais, deve ser apurada com critério rigoroso. A concepção de educação preconizada
por Kehl apresentava-se integrada ao modelo de transformação da sociedade. De maneira
simplificada, podemos resumir que ele manteve durante a sua vida (com pequenas variações)
propostas de intervenção eugênica do seguinte tipo: para as classes cacogênicas e disgênicas
da sociedade10, ele receitava ações eugenistas, defendendo a esterilização para conter a
“selvagem” proliferação dos seres degenerados, mestiços, doentes; para todos que pretendiam
casar-se, o exame pré-nupcial, terminando na proibição do casamento ou geração de filhos
entre os que demonstrassem ser degenerados ou perigosos para a sociedade; e, para os
membros da classe aristogênica, educação higiênica e sexual para garantir uma descendência
sadia.

De maneira bem ampla, podemos definir que os planos de eugenistas e sanitaristas


consistiam em eugenia preventiva (controle dos fatores disgênicos pelo saneamento
ambiental), em eugenia positiva (educação, incentivo e regulação da procriação dos capazes)
e na eugenia negativa (evitar a procriação dos considerados incapazes). O objetivo era
modernizar o país e apagar os símbolos da degeneração. Dos sanitaristas, que negavam as
teses da inata indolência tropical, vieram os remédios para um futuro promissor: a educação
higiênica e as ações públicas sanitárias. As condições sanitárias teriam de modificar-se para
que, transformando os indivíduos, os seus descendentes fossem beneficiados. Eugenistas e
sanitaristas entendiam que as reformas das políticas públicas de saúde aprimorariam a
capacidade hereditária. Práticas associadas com a eugenia exemplificam a filiação
neolamarckista: campanhas contra o alcoolismo e as doenças sexualmente transmissíveis. Em
suma, coexistiam teorias que adotavam uma seleção racial capaz de embranquecer a

9
Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que nos
vai mostrar a Diretoria de Saneamento. Entrevista com Renato Kehl. Jornal A Noite, 30 out. 1922. Fundo
Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
10
Para Kehl, a aristogenia representava os seres eugenicamente superiores; enquanto, os tipos inferiores
constituíam a classe cacogênica. Esses, por ventura, poderiam assumir uma forma bastante degradada, ou seja, a
disgênica.
23

população, produzindo um “tipo nacional”, com teses de que o futuro eugênico seria resultado
do saneamento das áreas rurais e urbanas, além da educação higiênica que propiciaria a
criação e manutenção da nova ordem. Essa amplitude de técnicas eugênicas não consistia em
interpretação errônea de teorias científicas originais, nem mesmo numa cópia importada sem
critério, mas sim na construção de um pensamento eugênico brasileiro.

Eugenistas e sanitaristas, como tantos outros grupos do campo intelectual da época,


não formavam conjuntos homogêneos. Por exemplo, uma significativa parcela de eugenistas
negava a influência do meio. Ou, pelo menos, alinhava-se em torno de uma leitura que
afirmava a impossibilidade de transmissão hereditária de características adquiridas. Contudo,
simplificadamente, talvez seja mais relevante para a nossa análise, dividi-los em dois
conjuntos. Um, que aceitava a transformação das gerações futuras por meio da alteração do
meio – via combate dos fatores disgênicos, isto é, degenerativos, como as doenças venéreas e
o alcoolismo – outro, negando, ou, ao menos, argumentando que essas causas ocupavam um
espaço secundário. No entanto, tal divisão, se em algum momento ficava evidente, em outros,
no seio da disputa por espaços políticos e culturais, transformava-se numa fronteira bastante
maleável.

Ao longo dos capítulos, discutiremos a arquitetura das idéias eugenistas. Trata-se de


tarefa complexa, mas é certo que, ao final, serão encontradas algumas respostas. Fugiremos da
narrativa linear que explica a eugenia através de uma suposta radicalização de suas propostas.
Assim, as origens européias de Kehl e suas viagens ao velho continente, além da ascensão11
das idéias nazistas e totalitárias, justificariam que o eugenista de Limeira (SP) tivesse
teoricamente assumido a esterilização como alavanca para a superação da história. Sem
dúvida, mudanças aconteceram na trajetória de Kehl. Encontramos sensíveis alterações. E não
estamos negando que elas existiram. Mas, também encontramos em Belisário, em Lobato, em
Roquette-Pinto (1884-1954). Porém, as modificações não estremeceram o campo intelectual
brasileiro. E muito menos o eugenista ou sanitarista. As diferenças percebidas estiveram
contidas dentro das fronteiras do pensamento social e político12. A trajetória de Kehl sustenta
esta argumentação. Encontramos referências seguras com respeito ao controle do Estado na

11
Não se trata de negar a simpatia que Kehl nutria pelas idéias autoritárias e totalitárias. Em carta destinada a
Oliveira Vianna, em 25/06/1937, ele deixou registrado esse sentimento: “Percorri uma parte da Suíça e agora
depois de viajar pelo sul da Alemanha, instalei-me em Berlim, onde estou observando os magníficos progressos
do III Reich”. Fundo Pessoal Oliveira Vianna, Casa de Oliveira Vianna.
12
Em sua grande maioria, as pesquisas sobre o tema – Eugenia – consideram, equivocadamente, que as
transformações se processaram sem tensões, sem conflitos e ausente de articulações políticas entre os agentes
envolvidos.
24

procriação humana entre 1918 e 1921. Também há citaçoes dele a respeito da esterilização e
da necessidade de exames médicos prévios ao casamento. Portanto, não está nas viagens de
Kehl à Europa a explicação da radicalização. E, por outro lado, mesmo com a acentuação em
torno da “eugenia negativa”, que não negamos, pois efetivamente houve uma alteração, ele
não abandonou a crença na tarefa regeneradora da Eugenia, que seria executada pela tríade
Saneamento-Educação-Eugenia. Afinal se, sob um aspecto, Kehl, teria sofrido uma “virada”
em suas proposições, não seria mais plausível dizer que foi o conjunto de suas propostas que
se radicalizou? Achamos que esta explicação corresponde aos movimentos de Kehl e de seus
interlocutores. Em instigante dissertação de mestrado, Reis (1994) demonstra como a Liga
Brasileira de Higiene Mental (LBHM) abraçou uma eugenia mais radical. Todos os membros
do campo ansiavam por mais eugenia. E ansiavam por mais educação, mais saneamento, mais
esterilização, mais controle do Estado sobre a massa de indivíduos que crescia. Era o medo da
multidão.

É necessário não ceder a tentações simplistas de enfeixar em poucas palavras a


totalidade do pensamento de um autor. Não é razoável supor que quatro décadas de trabalho
de Renato Kehl podem ser resumidas em poucas linhas. Na verdade, mesmo durante as
décadas de 1950 e 1960, quando as questões por ele defendidas não tinham o mesmo impacto,
ainda era rotineira a sua contribuição intelectual em jornais. No decorrer do trabalho,
selecionaremos período e textos, buscando apreender sua trajetória. Sobre este ponto de vista,
encontramos apoio em Luiz de Castro Faria (2002), Jair de Souza Ramos (2003) e Michel
Foulcault (2002).

Como principal nome do eugenismo nacional, Kehl dedicou-se à divulgação e,


principalmente, à organização do movimento eugenista. Ao longo de sua vida, ele construiu e
manteve uma rede de interlocutores, onde encontramos personalidades do meio intelectual
brasileiro, instituições nacionais e internacionais e nomes do movimento eugênico dos EUA e
Europa13. Sempre debatendo o futuro racial do brasileiro e a identidade nacional. Mesmo após
a década de 1940, com o fim da II Grande Guerra, momento em que, sem dúvida, a Eugenia
sofreu um duro golpe, Kehl continuou escrevendo e publicando seus artigos na imprensa até
os anos 60.

13
No Fundo Pessoal Renato Kehl, encontramos cartas com Charles Davenport, considerado o principal
intelectual da Eugenia nos EUA.
25

Esta tese é resultado de uma investigação de fontes realizada em arquivos e


bibliotecas. Vale-se muito, no entanto, de dois fundos14 documentais que estão sob a guarda
da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. São os fundos pessoais de Renato Kehl e Belisário Penna.
Reúnem desde correspondências pessoais até recortes de jornais, além de documentos oficiais
oriundos das funções administrativas e políticas que os dois médicos exerceram. Os
documentos analisados são livros, artigos, folhetos e cartas. Vários textos de Kehl e de outros
autores foram utilizados como fontes. Destacamos os trabalhos “Lições de Eugenia” do
próprio Kehl, editado em 1929, “O Problema Vital” de Lobato e o “Saneamento do Brasil” de
Penna, esses últimos publicados em 1918. Merecem lembrança ainda, os “Annaes de
Eugenia”, e o volume I das “Atas e Trabalhos”, que são as conferências e textos apresentados
no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia realizado em 1929.

O recorte temporal da pesquisa marca o período de propaganda e tentativa da


institucionalização, por parte dos intelectuais situados nas agências que veiculavam a eugenia,
que tentavam tornar o eugenismo uma política de Estado. Em 1917, Kehl realizou uma
conferência sobre Eugenia, o que teria estimulado sua vontade de lutar pela implantação da
agenda eugênica em terras brasileiras. E, em 1937, Kehl lançaria vários textos comemorando
os 20 anos de campanha eugênica. Enfim, estudo o pensamento social e político e as idéias
com os quais os intelectuais se envolveram no período analisado. Procuro investigar o
cenário, sobretudo em relação ao que os pensadores denominavam como questões ou
problemas nacionais. Desenvolverei o argumento de que a Eugenia era assumida,
veladamente ou não, como um instrumento para auxiliar o processo de construção de uma
nova nação. Apresento a história do movimento eugenista no Brasil. Explicito a trajetória
intelectual e política do agente principal. Enfatizo suas relações com outros autores, sua rede
nacional e internacional de interlocutores. Após a fundação da Sociedade Eugênica de São
Paulo, seu nome passou a ser identificado com o campo eugênico.

14
Recentemente, tive acesso ao fundo documental do Congresso de Eugenia de 1929/Museu Nacional. Deste
importante evento, somente foi publicado um volume de suas atas. Do conjunto de documentos, sob a poeira do
tempo, aparecem autores desconhecidos. Ver no Anexo D, a lista de todos os trabalhos apresentados no evento.
26

2.

CAPÍTULO I

PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL

Só um fator; uma força, um instrumento, um órgão, uma vontade, uma


inteligência com a função de promover a ação nacional, de manter a vida do
país, no que o interessa em conjunto e permanentemente: é o aparelho
político administrativo, com seus vários órgãos. (TORRES, 1982: 117).

(...) porque também é lei antropológica que os mestiços herdem com mais
freqüência os vícios que as qualidades dos seus ancestrais. Os mestiços desta
espécie são espantosos na sua desordem moral, na impulsividade de seus
instintos, na instabilidade de seu caráter. O sangue disgênico, que lhes corre
nas veias, atua neles como a força da gravidade sobre os corpos soltos no
espaço: os atrai para baixo com velocidade crescente. À medida que se
sucedem as gerações. Os vadios congênitos e incorrigíveis das nossas
aldeias, os grandes empreiteiros de arruaças e motins das nossas cidades são
os espécimes desse grupo. (VIANNA, 1987a: 104).

Muitas das críticas dos intelectuais eugenistas ao Estado, à sociedade brasileira e à


administração pública nacional ainda permanecem em nosso tempo. E começaram a serem
realizadas antes deles. A burocracia administrativa era vista ineficaz ou corrupta, onde
predominavam interesses políticos, partidários ou pessoais em detrimento de interesses
27

nacionais e mesmo a ausência da idéia de nação15. Por exemplo, durante 40 anos, um dos
membros do campo eugênico, o médico mineiro de Barbacena Belisário Penna apontou tais
fatos como resultados do corpo social doente. No entanto, ele não foi o único a estabelecer as
caraterísticas prejudiciais à nacionalidade. A partir do início do século passado, um número
imenso de reformadores sociais apareceu. O próprio genro de Penna, Renato Kehl, também
estaria entre eles e colocaria esses fatos como efeitos nefastos de um governo de políticos
ladrões e incompetentes:

A nossa mocidade de brasileiro patriota não conheceu o dia bem aventurado


do Brasil sem crise política ou econômica e reintegrado na moralidade
administrativa e governamental. Fazemos parte da geração revoltada deste
começo de século. Como disse Alcântara Machado, ‘a rapaziada da minha
idade, que abriu os olhos neste século, cresceu e se formou num ambiente
feito de desânimo, de tragédia e de negação. Principiou encontrando a
república desmoralizada.’(...) aprendi a xingar os administradores e odiar os
políticos. Tudo podre, tudo péssimo, o país governado por ladrões e ineptos
(...) Diante do Brasil assim só se justifica por parte da geração nova uma
atitude de indignação e revolta. (KEHL, 1933:19).

A construção da idéia de nacionalidade no Brasil tem merecido atenção das ciências


sociais tanto nas perspectivas que acentuam determinações de caráter político ou econômico,
como nas que enfatizam o imaginário social. Os estudos sobre o tema destacam a importância
das primeiras décadas de experiência republicana na organização dos projetos nacionais.
Apesar do debate em torno da nação brasileira anteceder a independência política realizada
em 1822 e se aprofundar no fim do século XIX, é entre 1900 e 1940 que projetos de nação se
intensificam delineando matrizes de pensamento que influenciariam as ações e o ideário
político por um longo período. Uma dessas correntes, talvez a mais importante, diz respeito ao
papel tutelar do Estado em sua relação com a sociedade. Uma característica a ser ressaltada é
que a literatura produzida em torno da temática se detém nas obras de representantes do
pensamento social que exerceram maior influência nas políticas de construção do Estado
centralizador. Ênfase especial tem sido atribuída à produção intelectual de autores que
preconizaram um modelo de organização política alternativo ao liberalismo formalmente
consagrado na Carta Constitucional de 1891. Alberto Torres e Oliveira Viana, entre outros,

15
Conforme demonstra Carvalho (2002:44) analisando a obra do Visconde do Uruguai: “Muitos dos males
apontados por Uruguai relativos à política nacional, como a distância entre governo e povo, a burocracia
absolutista e ineficaz, a mania de esperar tudo do Estado, o sufocamento dos municípios, a inadequada
distribuição de responsabilidade entre municípios, províncias e governo central, o empreguismo, o empenho, o
clientelismo, o patronato, o predomínio dos interesses pessoais e de facções, a falta de espírito público, a falta de
garantia dos direitos individuais, continuam na ordem do dia, posto que atenuados.”
28

destacam-se entre as referências do que se convencionou denominar pensamento autoritário


no Brasil.

Como características gerais desta fração do pensamento social e político brasileiro


durante o período chamado de Primeira República, apontamos a defesa de uma ordem
autoritária, a repulsa ao individualismo e do papel primordial que o Estado deveria assumir na
organização da sociedade. No entanto, o processo de afirmação das concepções autoritárias
que explicava os males da sociedade brasileira e propunha remédios amargos contou com a
participação ativa de intelectuais de origens e trajetórias diferentes. Refiro-me a diversos
intelectuais que, sem serem reconhecidos como expressões mais significativas desse
pensamento social crítico do liberalismo do período (1889-1930), atuaram como divulgadores
das teses sobre o papel do Estado. Este é o caso do grupo de médicos que lideraram a
campanha para o “Saneamento do Brasil”. Uma obra que deveria constituir-se na redenção
econômica e moral do país e de sua população. Basicamente, as transformações do
pensamento nacional no período podem ser compreendidas como a formação de um sistema
ideológico orientado no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como
princípio administrativo e político da sociedade.

Partidários da função diretiva que o Estado16 deveria assumir na organização e


administração racional da sociedade, os intelectuais do campo eugênico formularam as idéias
das funções que o aparelho estatal deveria exercer no país e, principalmente, acrescentaram os
argumentos científicos ao debate. Os participantes da campanha nacionalista do saneamento
do país, alguns também integrantes dos movimentos pela reforma educacional, afirmavam a
possibilidade de progresso e superação dos problemas sociais pela intervenção do Estado no
planejamento e, principalmente, na condução das políticas de saúde e educação. Elegendo as
precárias condições de vida da população, notadamente nas áreas rurais, como o mais grave
problema nacional, os defensores do “Saneamento do Brasil” e, por extensão, da sua
eugenização, propunham a reforma dos serviços públicos e uma reorganização do país de
acordo com princípios racionais, científicos e centralizados nacionalmente. No trecho
seguinte, Kehl, inclusive, distingue dentre os médicos e homens de ciência àqueles que seriam
homens de Estado. Esses indivíduos resolveriam o importante problema da “doença”:

A saúde assentar-se-á, então sobre duas bases: a higiene, que afastará as


causas dos males e a eugenia, que selecionará os indivíduos, tornando-os

16
As transformações ocorridas no pensamento social do período devem ser consideradas como, basicamente, a
formação de um sistema ideológico onde a legitimação da autoridade estatal era princípio da própria sociedade.
29

mais sólidas unidades da raça. O problema da doença será, pois, resolvido,


em um futuro não remoto, não pelos médicos e homens de ciência, mas pelos
de Estado. (KEHL, 1919: 76).

Ruralismo e cientificismo são conceitos importantes para compreendermos o conteúdo


da proposta nacionalista veiculada pelos sanitaristas e eugenistas. No que se refere à primeira,
baseava-se na defesa da vocação de um país caracterizado pela riqueza de recursos naturais,
vastidão do território e abandono a que eram relegadas as populações rurais. No âmbito deste
texto, não iremos aprofundar as várias características dos diversos pensadores. Por exemplo,
encontramos em Alberto Torres a afirmação de que a terra era base da riqueza nacional.
Segundo indicam seus escritos, ele acreditava numa divisão internacional das riquezas mais
equilibrada e justa, ainda que isto implicasse numa posição subalterna: “Nosso país tem de
ser, em primeiro lugar, um país agrícola. Fora ridículo contestar-lhe esse destino, diante de
seu vasto território”.(TORRES, 1978: 207).

A partir de meados do século XIX, várias linhas filosóficas do pensamento europeu –


positivismo, darwinismo e evolucionismo – incrementavam o pensamento social e político
nacional, sustentados pela divulgação de um conhecimento científico. Conceitos erigidos por
intelectuais europeus alcançavam grande repercussão, fornecendo justificativas baseadas no
critério pretensamente universal, isto é, científico. Assim, se explicavam as diferenças sociais
das nações “inferiores” frente às sociedades européias e dos Estados Unidos da América. A
raça passou a ser uma noção discutida em obras que celebravam o racismo científico,
prevendo para o Brasil um futuro nebuloso.

Portanto, diante da realidade tropical, nada ou pouco havia que fazer. A


responsabilidade pela condição nacional cabia ao aviltante cruzamento dos portugueses com
as duas outras raças que entraram em nossa formação: a indígena e a negra. Tudo explicado,
tudo perfeitamente resolvido. Como só a raça branca criava progresso, havia pouca esperança
para as raças inferiores. Talvez continuar o cruzamento com os brancos superiores. De fato,
essas verdades eram plenamente aceitas e, definitivamente, também nunca foram totalmente
refutadas. Em 1897, o Ministro Joaquim Murtinho em relatório enviado ao Presidente,
testemunhava:

“Não podemos, como muitos aspiram, tomar os Estados Unidos da América


do Norte como tipo para nosso desenvolvimento industrial, porque não
temos as aptidões superiores de sua raça, força que representa o papel
principal no progresso industrial desse grande povo”.(MOOG, 1978:04).
30

Consideramos que a tese da desqualificação das populações miscigenadas está ligada


às interpretações sobre o desenvolvimento do capitalismo nos EUA. Haveria uma
predisposição genética dos povos. Assim, os Estados Unidos da América do Norte evoluíam
natural e diferentemente das demais nações. Portanto, nessa perspectiva, os habitantes que
viviam na Península Ibérica, América do Sul e África, não conheciam a noção nobre do
trabalho. Estava explicada a diferença entre os países, principalmente em relação aos da
América Latina. Os elementos formadores do sub-continente (português, indígena e africano)
eram exploradores e aventureiros, e as virtudes burguesas não eram caraterísticas desses
povos. O personagem Jeca Tatu, indolente e preguiçoso, está retratado nessa imagem. O Jeca
extraía da natureza a mandioca, pois esta não exigia maiores trabalhos com cultivo e colheita.
Era necessário apenas enfiar a mão na terra. Por outro lado, os demais povos eram vistos
como trabalhadores previdentes e com idéias empresariais.

Esses princípios foram retomados e rediscutidos nas décadas de 1920 e 1930. Um


arsenal de argumentos racistas exaltando uma raça supostamente eugênica ganhava um clima
propício para a divulgação da produção dos mais importantes nomes do pensamento social
brasileiro. Identificamos como componentes de uma grande linha ou corrente, as figuras de
Silvio Romero (1851-1914), Euclides da Cunha (1866-1909), Alberto Torres (1865-1917),
Oliveira Vianna (1883-1951) e Nina Rodrigues (1862-1906). Esses intelectuais forneceram as
categorias que alimentaram as obras de um grande número de autores. Um elemento unia a
todos: vários dos elementos conceituais constitutivos de seus textos são originários dos
trabalhos anteriores de intelectuais como Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), Lapouge e
Gustave Le Bon. Dentre eles, sem dúvida, o mais famoso, foi o primeiro. Embora Hannah
Arendt afirme que ele não teria tido tanta influência, sendo somente recuperado na primeira
metade do século passado (SCWARCZ, 2000:257). No entanto, o pensamento do Conde
constituiu uma referência para uma infinidade de intelectuais e sua inserção no debate sobre o
valor das etnias é inegável: “(...) de induciones em induciones, tuve que penetrarme de esta
evidencia: que la cuestión etnica domina todo los demais problemas de la historia”.
(GOBINEAU, 1937: 15). Sua principal obra, o Essai sur l'inégalité des races humaines, foi
escrita com o claro objetivo de provar a superioridade da raça branca, elevando a raça ariana à
origem e realização da civilização. Oliveira Vianna e Alberto Torres, guardadas as diferenças,
beberam nessas águas, crentes em uma hierarquia humana baseada em critérios biológicos.
Nada que surpreenda, pois, afinal, até Manoel Bomfim (1868-1932), que negava e refutava
peremptoriamente o gobinismo, fazia menção às metáforas organicistas. O médico sergipano
31

dividia nações e classes sociais em parasitas e parasitadas. Acreditava nos efeitos desastrosos
do parasitismo. Ele destruía o organismo atingido e decretava a decadência moral do parasita.
Oliveira Vianna pagaria um alto preço pela influência que sofreu do chamado arianismo,
enquanto Alberto Torres criticaria a chamada ciência antropológica européia e os teóricos do
racismo científico.

Os intelectuais eugenistas justificavam a necessidade de haver um Estado


centralizador devido à ausência de laços de solidariedade e de uma autêntica idéia de
nacionalidade no país. Como não tínhamos organização e cultura moderna, ao contrário dos
países ocidentais, seria preciso adotar um Estado forte. As formas políticas liberais
transplantadas eram uma aberração. Além de vários problemas de adaptação, idéias e
instituições alienígenas produziam, na verdade, um poder excessivo em autoridades locais. A
proposta política que unificava os pensadores Alberto Torres, Oliveira Vianna, Belisário
Penna entre outros, resumia-se, em grandes linhas, a uma crescente centralização política e ao
aumento da autoridade do Estado. No âmbito desse trabalho, não pretendemos estudar todos
os autores da época, tampouco esgotar a análise num escritor específico. Também não iremos
discutir os possíveis erros e acertos desse ou daquele intelectual. Oliveira Vianna, por
exemplo, foi interpretado como um arauto do Estado Novo e até do golpe militar de 1964 e é
visto também como um sociólogo que entendeu o Brasil. A complexidade desses autores é
imensa. Apesar de inúmeras coincidências, cada um deles é possuidor de uma obra única e
vasta. Este capítulo é uma tentativa de construir uma plataforma para análise.

Entre os participantes que mais se destacaram na defesa do saneamento como etapa


para o desenvolvimento social e econômico e da participação do Estado e dos intelectuais e
cientistas neste processo estão os médicos Belisário Penna e Renato Kehl. Presentes na
direção de agências estatais, na organização de associações profissionais e científicas, além de
participantes em movimentos políticos durante as décadas de 1910 a 1940, eles foram agentes
sociais extremamente importantes. Penna, por exemplo, atuou em departamentos
governamentais e círculos intelectuais dedicados a políticas de saúde e de educação durante as
décadas de 1910 e 1920, aderiu à Revolução de 1930, teve uma curta passagem pelo
Ministério da Educação e Saúde e filiou-se ao Integralismo.

Miceli (1979) aponta que os intelectuais desse período eram representantes das
famílias abastadas, algumas em decadência econômica. Muitos eram filhos de proprietários de
terras, mas sem capital financeiro. Graças aos conhecimentos adquiridos nos cursos superiores
32

(Medicina, Direito e Engenharia) e relações pessoais, gradativamente passaram a ocupar


postos relevantes na administração pública. Principalmente, foram os responsáveis pela
condução das políticas de saúde e educação. Segundo Miceli (1977), a capacidade de manejar
capitais simbólicos, acumulados pelo conhecimento científico, em articulação com a rede de
relações pessoais (amizades, casamentos), permitia operar com desenvoltura entre os cargos
de poder e prestígio. Para Miceli, esses intelectuais eram parentes pobres das oligarquias, mas
estas famílias haviam acumulado vastas experiências nos departamentos públicos de grande
importância. Os fatos comprovam que exercer funções em alguns postos da administração
estatal poderia representar um aumento estupendo dos rendimentos pessoais financeiros para
seus ocupantes. No acervo do Fundo Pessoal Oswaldo Cruz/COC, vários documentos
demonstram que os membros das cinco expedições científicas executadas pelo Instituto
Oswaldo Cruz ao interior do país entre 1911 e 1913 receberam altas quantias para realizarem
essas viagens17.

Intelectuais cujas trajetórias são paralelas a de Renato Kehl, Monteiro Lobato, Penna e
Arthur Neiva são, de certa forma, facilmente identificados com o eugenismo. Curiosamente,
do próprio campo eugênico nacional surgem dois nomes que demonstram o caráter singular
da história cultural brasileira. São citados por uma ampla bibliografia como membros de um
movimento de teor anti-racista. Trata-se do zoólogo Octavio Domingues e do antropólogo
Roquette-Pinto. Nos anos 30, Roquette-Pinto realmente integrou iniciativas nacionalistas e
anti-racistas no contexto do crescimento de um movimento antinazista. No entanto, ao longo
da tese, procuraremos discordar e dialogar com a literatura historiográfica e sociológica que
consagra miticamente alguns intelectuais. Por exemplo, textos recentes, tratam o intelectual
Roquette-Pinto como um opositor do eugenismo. No entanto, mesmo durante o Congresso de
Eugenia, no qual se manifestou de certa maneira, contrário às afirmativas racistas de Renato
Kehl, ele não abandonou totalmente a concepção vigente sobre os problemas de raça: “do
ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os mestiços manifestam acentuada
fraqueza: a emotividade exagerada, ótima condição para o surto dos estados passionais”.18

Um outro intelectual foi mitificado e quase endeusado pela sociedade brasileira:


Monteiro Lobato. Sua representação foi construída a partir da trajetória do indivíduo. Homem
de múltiplas faces, Lobato foi escritor e empresário. Nacionalista e autoritário, deixou
17
Esses dois importantes textos de Sergio Miceli estão republicados em Intelectuais à Brasileira. São Paulo,
Companhia das Letras, 2001.
18
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
138.
33

impressões sobre a vida brasileira carregadas de uma visão preconceituosa. Não devemos,
pelo menos, por enquanto, examinar a veracidade de suas opiniões. Existe uma distância entre
o mito e o homem real. Se podemos caracterizá-lo como um eugenista de boa cepa, também é
correto, assinalar que atirou com certeira pontaria nos intelectuais e políticos da “República
Velha”, que possuíam sobre o “povo” outras leituras igualmente carregadas de preconceitos.
Vários livros com críticas dessa comunidade de intelectuais engajados ao governo republicano
foram publicados entre 1910 e 1930. Estes textos dão o balanço dos anos de política
republicana levado a cabo por escritores da geração nascida no final do século XIX. Um bom
exemplo destes trabalhos é a coletânea “À Margem da História da República” organizada por
Vicente Licínio Cardoso. A primeira edição desta obra apareceu em 1924. São pequenos
artigos de autores bastante representativos dessa crítica autoritária à República instalada em
1889. Os seus autores são Carneiro Leão, Celso Vieira, Gilberto Amado, Jonathas Serrano,
Jose Antonio Nogueira, Nuno Pinheiro, Oliveira Vianna, Pontes de Miranda, Ronaldo de
Carvalho, Tasso da Silveira, Tristão de Athayde e Vicente Licínio Cardoso.

Nessa pequena passagem de Alberto Torres, retirada do livro A Organização


Nacional, podemos analisar uma síntese das idéias desse grupo:

A política de uma nação é uma política orgânica, o que vale dizer: uma
política de conjunto, de harmonia, de equilíbrio. No quadro incongruente de
nossas instituições-sistema forasteiro-inadequado à nossa índole e ao nosso
caráter, e que por isso não se executa (...). (TORRES, 1978:158)

O projeto de uma nação civilizada e moderna se desvanecia diante desses olhos


críticos19. Para tais autores, o desconhecimento das condições reais do Brasil pela maioria dos
seus habitantes, incluindo-se os políticos, empresários e os demais intelectuais, e a adoção de
modelos institucionais estrangeiros, foram apontados como entraves para a construção da
verdadeira nacionalidade brasileira e o conseqüente progresso social. A presença do
pensamento de Alberto Torres, marcado pela denúncia do artificialismo20 das nossas
instituições, foi fundamental para a configuração intelectual desses grupos. Como podemos
averiguar no trecho retirado de “Preliminares para a Revisão Constitucional” de Pontes de

19
“Evidentemente, deve haver uma causa mais profunda, que explique tamanha incapacidade e tão longo e
continuado insucesso. Esta causa existe e é, como já assinalamos, o desacordo entre o idealismo da Constituição
e a realidade nacional”, VIANNA, Oliveira, “O idealismo da Constituição” In: À Margem da História da
República, Brasília, UNB, 1981, p. 109.
20
“Temos sido um país ao qual tem faltado organização e educação econômica, capital, crédito, organização do
trabalho, política adaptada ao meio, a índole da gente; um país desgovernado em suma”. (TORRES, apud
LEMOS, 1995).
34

Miranda, incluído neste volume já citado e importantíssimo para entendermos a conjuntura, À


Margem da História da República:

Não queremos eliminar o Estado, mas regenerá-lo. Em vez de política


especulativa, como a dos utopistas de 1889 a 1891, a política científica e
experimental, eficaz e prática, que evitará as formidáveis calamidades que
nos esperam, quando, dentro de dez anos, esmagados pela casca artificial e
despótica dos dirigentes, sem organização do trabalho e da indústria, a
população brasileira, acrescida da imigração incessante, começar a inquietar-
se e apresentar os problemas políticos nas suas soluções radicais e utópicas:
o socialismo puro ou anarquismo. (CARDOSO, 1981:13).

Para Alberto Torres, advogado e político fluminense, nascido em Porto das Caixas
(RJ), a realidade nacional poderia ser desvendada (e organizada) desde que se abandonassem
os modelos importados e fosse adotada uma análise científica dessa realidade. Os nossos
males seriam resultado da maléfica combinação do desconhecimento dos dados reais e a cópia
de modelos políticos estrangeiros. Tais idéias, de certa forma, colocavam em dúvida a onda
civilizatória européia, orgulhosamente denominada de belle époque. O modelo liberal estava
sob o fogo cruzado dos que advogavam a reforma da estrutura política. Para essa corrente
interpretativa dos problemas nacionais, era preciso dar um basta àquela mentalidade artificial
que dirigia o país com os olhos voltados para o mundo estrangeiro. Uma parte dos
representantes dessa parcela de pensamento social nacionalista se perguntava: mas por que a
importação de idéias estrangeiras? O que impede de serem criadas instituições políticas a
partir da nossa realidade? A indicação de Alberto Torres é esclarecedora:

O Brasil é um país que nunca foi organizado e está cada vez menos
organizado. Sua ordem aparente e sua legalidade superficial correspondem,
na realidade, a uma perda constante de forças vivas: o povo – longe de se
haver constituído, social e economicamente (...). (TORRES, 1978:160).

Um país a que faltam tais requisitos não é uma nação, e não é mesmo uma
soberania, senão no rótulo jurídico. Nos carecemos de organização, e
precisamos nos organizar, não como instituição jurídica, segundo os modelos
de outros, mas como nacionalidade, como corpo social e econômico, não
devendo copiar nem criar instituições, mas fazê-las surgir dos próprios
materiais do seu país: traduzir em leis suas tendências, dando corretivos a
seus defeitos e desvios de evolução. (TORRES, 1978: 168.)

Criar o povo e a nação brasileira deveriam ser as tarefas desses grupos intelectuais.
Este era o sentimento que animava os diferentes autores. Para eles, a necessidade de uma elite
ilustrada crescia na medida em que o povo não era organizado politicamente. Afinal, não
possuíamos instituições, afirmava enfaticamente Oliveira Vianna. Daí a inviabilidade da
nação: “(...) todo o fracasso do idealismo contido na constituição de 24 de fevereiro tem, em
35

síntese, esta causa geral: somos um povo em que a opinião pública, na sua forma prática, na
sua forma democrática, na sua forma política, não existe”. (VIANNA, 1981:110-111). Em O
Idealismo da Constituição, o mais famoso artigo dessa obra coletiva de críticos da experiência
republicana, Vianna anunciava:

Não há nenhuma classe entre nós realmente organizada, exceto a classe


armada. Essas grandes classes populares-que são os órgãos principais da
elaboração da opinião britânica – não tem aqui organização alguma, ou tem
uma organização rudimentar, sem eficiência apreciável sobre os órgãos do
poder(...). Quando(...) algumas frações delas se organizam (...) Centros
Industriais, Sociedades Agrícolas, Associações Operárias(...) ainda assim
esses pequenos núcleos de solidariedade profissional não têm espírito
militante, nem poder eleitoral próprio, nem influência direta sobre os órgãos
do poder. (VIANNA apud CARDOSO, 1981: 112).

As interpretações de Oliveira Vianna e Alberto Torres privilegiavam a organização e a


ação do Estado, conferindo-lhe um caráter baseado no pressuposto de uma sociedade de
organização frágil, um povo culturalmente e politicamente despreparado para exercer papel
ativo. Ao expressarem um anseio de fortalecimento do poder estatal, diversos intelectuais
como Vianna e Torres ajudaram a consolidar uma determinada idéia de Estado. Afinal, esses
homens desejavam um Estado capaz de erradicar os males do passado e controlar os
processos sociais de mudança21. Para Oliveira Vianna, o aparelho estatal seria responsável
pela formação do povo. E, de acordo com as idéias do campo eugênico, isto era possível,
desde que fosse realizado um diagnóstico correto. Para os eugenistas, de maneira geral, o
objetivo e o desejo era que o Estado controlasse toda a política de reprodução humana. Renato
Kehl elogiava, com freqüência, os avanços europeus no campo da seleção eugênica. Em
viagem pela Europa, em 1937, manifestou sua concordância com a política nazista de
extermínio, em carta para Oliveira Vianna. E, no mesmo período, encontramos mais um
retrato desse fascínio de Renato Kehl pelas conquistas européias sobre o controle humano:

Eu próprio, embora firme da realidade prática dos objetivos eugênicos,


nunca poderia imaginar que, vinte anos após, iria encontrar a eugenia no pé
em que está na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, países escandinavos
(...) nos EUA, onde a eugenia era quase generalizada nas escolas e onde se
estabeleceram leis de caráter nitidamente eugênico. Eis, porém que a
Alemanha, com o atual reich, toma a dianteira. A Alemanha, com os seus
institutos e tribunais eugênicos é o país que, com mais energia e decisão,
cuida atualmente do melhoramento eugênico do povo.22

21
Intelectuais próximos a Oliveira Vianna e Alberto Torres duvidavam que a República pudesse ser origem de
uma nação moderna, pois existiria um abismo entre o país real e o país legal.
22
KEHL, Renato. Correio da Manhã, 4 mar. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
36

Veremos a seguir, como os intelectuais conciliaram seus desejos de formação de um


novo povo sob os desígnios do Estado.

2.1 Estado e Raça

Estreitamente ligado a Kehl, Oliveira Vianna diante das pesquisas antropológicas e


biométricas efetuadas por Edgard Roquette-Pinto, João Batista de Lacerda e Fróes da Fonseca
durante as décadas de 1920 e 1930, no Museu Nacional, o filho de Bacaxá (RJ) declarou
sobre a importância das análises sociológicas: “Há uma anammnese das nações como há uma
anammnese dos indivíduos – e tão necessário, no governo dos povos, o conhecimento daquela
para a determinação de qualquer política reformulada, como desta para a exata diagnose de
qualquer caso clínico”. (VIANNA, 1959:126). Dessa forma, Vianna demonstrava sua crença no
poder analítico da ciência para a compreensão dos problemas sociais, econômicos e políticos.
E, para a resolução das questões. Mas, quando teria se iniciado o relacionamento entre Vianna
e Kehl? Em correspondência datada de 01/09/1931, encontramos algumas respostas. Nesta
carta, Oliveira Vianna respondia a Kehl sobre uma consulta feita em nome da Comissão
Central Brasileira de Eugenia. Na missiva, o sociólogo fluminense afirmava que não podia
atender a solicitação requerida pelo médico eugenista. Renato Kehl enviara a Vianna um
questionário indagando sobre a situação eugênica dos grupos étnicos nacionais. Era uma
pequena lista com perguntas sobre a quantidade e qualidade dos povos e raças no Brasil. Esse
interrogatório havia sido enviado a vários intelectuais. Tratava-se de um exercício de
mapeamento eugênico da população brasileira a partir de um inventário das raças. Respondia
Vianna a Kehl: “Não lhe digo meu pensamento sobre o questionário porque estou com um
livro quase pronto, onde o seu questionário se acha respondido com detalhes completos (...) e
terá então a resposta ao questionário que teve a gentileza de me mandar”23. O livro a que se
refere Oliveira Vianna na carta é Raça e Assimilação. Foi lançado em 1932. Num trecho dessa
obra, Vianna afirmava sua crença no poder dos saberes eugênicos:

Em relação ao negro puro, minha opinião-a que falta ainda a base de estudos
psicométricos definitivos (porque os já feitos, e são numerosos, não me
parecem ainda bastantes) – é de que, para certos tipos de inteligência
superiores, ele revela, na sua generalidade uma menor fecundidade do que as
raças arianas ou semitas, com que ele tem estado em contato.(1959:195).

23
Carta de Oliveira Vianna a Renato Kehl, 01/09/1931. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
37

E, em relação ao Estado, como deveria ser portar, diante dessas populações? Podemos
definir que, em linhas gerais, os autores do pensamento social autoritário e nacionalista
desejavam que o Estado fosse administrado por técnicos e cientistas. Afinal, a sociedade
brasileira era “comprovadamente”24 formada por indivíduos pobres e doentes. Portanto,
totalmente incapazes de construir os laços de solidariedade comunal formados durante séculos
pelas sociedades das outras nações. Além disso, para esses autores, os setores importantes da
sociedade, que deveriam ser os alicerces, estavam iludidos e dominados, de um lado, pelos
mecanismos da politicalha e, por outro, por vícios cosmopolitas. Se esses intelectuais não
chegavam a constituir um grupo homogêneo, no entanto possuíam vários pontos de
identificação. Por exemplo, pode-se afirmar que os membros desse grupo eram intelectuais
que criticavam o modelo constitucional de 1891. Porém, existia uma variedade de projetos
políticos em disputa naquele momento histórico. Em suma, freqüentemente, os analistas que
estudam o período reconhecem somente uma crítica autoritária. Achamos que isto é um
equívoco. Vários projetos políticos de organização da sociedade estavam em pauta.

Por exemplo, Oliveira Vianna25 considerava que o sufrágio universal, o liberalismo e o


federalismo (pontos importantes e presentes na Constituição de 1891) eram princípios
transplantados de países como a França, Inglaterra e EUA. Acusava que tais artificialismos
institucionais, por não serem orgânicos, causavam prejuízos ao Brasil. Esses princípios
abstratos, implantados em sociedades de características diferentes dos países originários das
idéias, manifestavam seu caráter artificial com resultados desastrosos26. Em A Organização
Nacional e O Problema Nacional Brasileiro, ambos publicados em 1914, Alberto Torres
apresentava um estudo e um plano para a superação da contradição entre o país legal e o país
real. Para ele a inadequação entre a Carta Constitucional Republicana de 1891(fundada em
princípios abstratos e importados) e a realidade nacional (que julgava ser necessário
investigar) era responsável pela desorganização do país.

Portanto, é possível encontrar características semelhantes nos textos dos autores


amplamente citados como nacionalistas e autoritários: a construção do Estado como “órgão”
central e administrativo da sociedade; o nacionalismo das propostas; o estudo da história
colonial e imperial; as críticas à República Velha; as propostas alternativas para o futuro; a
24
Daí a importância das investigações empíricas sobre o “povo” brasileiro. Qual era a nossa verdadeira
identidade? Éramos indolentes e incapazes? Ou doentes e pobres.
25
Cumpre reiterar que Alberto Torres e Oliveira Vianna possuem várias diferenças.
26
“Esta ideologia era uma mistura um tanto internacional e, por isto mesmo, heterogênea do democracismo
francês, do liberalismo inglês e do federalismo americano. Tinha seus crentes e também tinha os seus fanáticos:
o que não parecia ter eram os seus céticos e os seus negadores”. (VIANNA, 1981:105)
38

utilização de instrumentos sociológicos; além das críticas ao formalismo constitucional. Para


esses teóricos sociais, algumas conclusões eram evidentes. No Brasil, não foram criadas
organizações e instituições sólidas e o pouco que tínhamos conseguido havia sido destruído
após a Proclamação da República. E, como conseqüência final, os habitantes do país
continuavam improdutivos e inúteis.

Mas, como era esta realidade que os intelectuais afirmavam conhecer? Como esses
intelectuais, que quase nunca saíam das cidades aonde habitavam, Rio de Janeiro e São Paulo,
podiam falar dos problemas brasileiros? Em que eles se baseavam para as suas afirmações
sobre o lastimável estado de doença e pobreza do país? Uma resposta pode ser encontrada na
repercussão de um relatório. Na segunda década do século XX, o relato de uma viagem ao
interior do Brasil realizada por um sanitarista e um cientista27, Belisário Penna e Arthur Neiva
(1880-1943), traçou um inventário das condições de saúde dos habitantes do imenso país. O
documento ganhou imensa28 publicidade por meio da campanha do escritor Monteiro Lobato
em prol da reformulação da saúde pública. A ressurreição29 vivida por Jeca Tatu que, de
caboclo indolente se transformou em ativo empresário, graças a um eficaz tratamento médico,
deveria servir de exemplo. Questões como saúde pública, educação e condições sanitárias
foram incorporadas à temática política, inserindo-se no amplo debate sobre a reconstrução
nacional.

Um certo sentimento de desencanto com a República30, que não resolvera os


problemas essenciais, estimulava a elaboração de um diagnóstico científico garantindo a
salvação do país. O relatório Neiva-Penna expunha as feridas. Onde está o progresso? Por que
ele não veio? Por que permanecemos na pobreza enquanto outros povos utilizam as novas
técnicas do mundo industrial? Era dessa maneira que os intelectuais interrogavam-se perante a
realidade. Perturbados diante de uma realidade que identificavam como caótica, os
reformadores sociais projetavam uma sociedade ideal, onde os médicos fossem os

27
Além do sanitarista e do cientista, viajaram na expedição Neiva-Penna, alguns auxiliares e um fotógrafo, José
Teixeira.
28
O relatório teve uma grande repercussão, provocando comentários de políticos e intelectuais. Gilberto Freyre,
Lobato, Oliveira Vianna e Lima Barreto deixaram – em suas obras imortais – opiniões marcantes sobre a
expedição Neiva-Penna.
29
Vários personagens surgiram em torno da figura do Jeca Tatu de Lobato: o Cearense Ildefonso Albano criou o
“Mané Chique-Chique”. O Paraense Rocha Pombo, o “Jeca Leão”. Um, era herói no Sul do país, o outro, no
Nordeste. Eram, ambos, homens fortes e inteligentes. O próprio Kehl criou o “Jeca Bravo” ou “Jeca Valente”.
Caso dessem comida ao Jeca e ele se livrasse dos parasitas de seu corpo, o jeca de Kehl ficaria regenerado. O
personagem “Jeca Bravo” é citado por Kehl em alguns textos e no livro “A Cura da Fealdade”.
30
Devemos refletir sobre essa afirmação, pois é possível interpretar que a desilusão e o desencanto com “A
República” fossem manifestações de específicos grupos de intelectuais frente a determinados projetos políticos.
39

administradores e assessores do Estado. Os intelectuais eugenistas ansiavam por uma ordem


social em perfeito funcionamento, isto é, projetavam seus desejos em direção à construção de
uma nação sem conflitos sociais. Mas a República brasileira não obedecia totalmente aos
diagnósticos. A sociedade utópica orientada por uma ordem racional, desprovida de interesses
e paixões, insistia em esfacelar-se em crescentes e múltiplas particularidades.

Mesmo diante do quadro negativo, a construção da nação permanecia como um ideal a


ser alcançado. E os intelectuais guiados por uma crença na força das novas disciplinas que
explicavam o mundo, ansiavam por uma maior participação política. Para seguir em frente,
era preciso conhecer o país e interpretá-lo. Esses intelectuais almejavam a reforma da
República e trabalhavam para executá-la. Para eles, diante do quadro caótico, não se poderia
criar uma nação moderna. Existia um abismo entre o país legal e o país verdadeiro. Deveria
imperar a racionalidade imbuída dos princípios da organização e produção capitalista,
concebida sob o comando da eficiência, atingindo a esperada modernidade. Eliminar-se-ia,
assim, a doença e a miséria. Porém, esse ideal perdia-se na imensidão do território.
Permanecíamos presos ao passado da humanidade. Não pertencíamos à civilização ocidental,
berço da sociedade industrial. Precisávamos urgentemente de uma salvação nacional. Kehl e
os demais eugenistas e sanitaristas31 não escaparam dessas fronteiras do pensamento. E assim,
pretenderam salvar o país das doenças físicas e mentais, através de reformas que seriam
controladas por administradores da política eugênica. Para Kehl, a única salvação para este
Brasil triste e deserdado era a política eugênica e sanitária conduzida pelos administradores da
vida:

Cada dia que passa, mais se nos firma a convicção de que só uma política
eugênica, dirigida por administradores de escol, poderá melhorar a situação
econômica, política e social do Brasil. Enquanto este grande país se mantiver
em mãos de estadistas de compadrios, de estadistas improvisados,
amalgamados em conluios e em solidariedades inconfessáveis – enquanto o
Brasil for governado por um núcleo de parceiros coniventes em atos que
concorreram para chegarmos a este estado da falência quase geral (...)
seremos um povo de tristes e deserdados. (KEHL, 1933: 20).

Em suma, esse era o retrato do Brasil fotografado pelo pensamento eugenista: triste,
pobre, doente e sem organização política. Um trágico retrato, onde a razão científica não
podia se reconhecer. Em tal cenário, a República viu surgir inúmeros reformadores de

31
Renato Khel tinha uma visão mais pessimista sobre a mestiçagem do que os demais intelectuais sanitaristas ou
eugenistas. Para ele, somente a ação sanitária ou educativa não transformaria a realidade. Além disso, acusava o
catolicismo de não permitir atos de natureza eugênica mais radical, como a esterilização realizada de forma
compulsória e ampla.
40

políticas. Médicos, advogados, engenheiros e educadores refugiaram-se na idéia de que o


Estado poderia e deveria organizar a sociedade. E esses atores ofereciam as idéias e seus
serviços. Entre a comunidade de letrados imbuídos de crença nas novas técnicas científicas,
consolidou-se o tema da reforma. Durante os anos 1910 e 20 essa mensagem representou um
esforço de colocar nas mãos do Estado a tarefa de recompor a unidade do país e torná-lo
viável32. É evidente que os intelectuais possuíam um modelo de Estado e buscavam aumentar
a representação dos seus grupos na condução das políticas impetradas, ainda que elas fossem
parcialmente aplicadas. Afinal, toda a discussão provocada pelo relatório, alçou o tema das
condições sociais das populações ao debate político. Contudo, muito pouco foi realmente
modificado para que a vida dessas pessoas melhorasse.

Portanto, não concordamos com as investigações que naturalizam o Estado. E muito


menos com as análises que apontam as ações estatais como uma extensão administrativa do
bem público. Foram as lutas pela ampliação dos direitos sociais e trabalhistas que forçaram
a(s) república(s) democrática(s) a incorporarem palavras como Questão Social e Democracia
em seus discursos e práticas. Desta maneira, torna-se evidente que Liberalismo e Democracia
não são sinônimos, nem por si só representam realidades tão complexas. O Estado no Brasil
não chegou com as caravelas de Pedro Álvares Cabral e tampouco com os cavalos de Getúlio
Vargas. Por exemplo, existe uma historiografia consolidada e tendenciosa que identifica as
origens da Previdência Social no país com a criação dos Institutos de Previdência Social (os
IAPs) ou com a Lei Eloy Chaves que foi criada através do Decreto-Lei 4.682 de 24 de janeiro
de 1923. Este Decreto era voltado, inicialmente, para os trabalhadores das empresas de
estrada de ferro existentes à época.

As referidas interpretações tendem a ignorar ações estatais e, principalmente, as


iniciativas das associações classistas dos trabalhadores anteriores à política assistencial
Varguista. Igualmente, por mais precário que fosse o alcance das ações governistas na área
dos serviços básicos de saneamento, elas existiam. É verdade, que se limitava quase sempre a
“jogar um pouco de terra” nos lagos de água suja pela Cidade Maravilhosa. Essas iniciativas
dependiam, em grande parte, da vontade de particulares. Mas, temos de reconhecer que tais
ações ocuparam um tempo e um espaço e representavam desejos de algum grupo social. Nos

32
Inclusive, em parte das obras desses autores transparece um tom saudosista do período monárquico. Muitos
lamentavam o esvanecimento da “unidade nacional” e de uma “paz social” perdida, segundo eles, com as
agitações abolicionistas e republicanas. Vale lembrar que, nesse período, cidades como São Paulo e Rio de
Janeiro tiveram um número razoável de manifestações populares e operárias almejando melhorar as condições de
vida ou mesmo alterar o caráter das relações sociais.
41

últimos anos, padecemos, dentro das ciências sociais, de um ponto de vista a priori para
definir o Estado, quase sempre apresentado como um bloco de vários órgãos administrativos,
vazios de atores sociais portadores de interesses e do qual emanariam de uma forma natural as
políticas públicas.33

Para os homens da República das Letras, a saúde e a educação tornaram-se a via


adequada para a inscrição do Brasil na sociedade dos países ricos. Mas, para isto, seria muito
necessário o auxílio dos médicos e cientistas, demonstrando que, para atingirmos a
modernidade, seria era preciso educar o povo. O discurso sobre a saúde do povo apontava as
precariedades do regime. Naquele contexto fértil de idéias, estruturaram-se correntes
interpretativas que passaram a conferir à educação o papel de força propulsora da sociedade.
Segundo a análise realizada por esses autores, um dos nossos maiores problemas era a
ausência de educação formal em grandes parcelas da população; daí, a conclusão de que
promover uma reforma nos serviços educacionais era altamente necessário para o progresso
do Brasil. O tema adquiriu destaque em torno de projetos de reestruturação nacional e de
afirmação das bases da nacionalidade. Assistiu-se ao surgimento de um amplo movimento34
de “entusiasmo pela educação”. Ao lado, a saúde figurava como elemento fundamental para a
regeneração nacional. Desde o início do século, a questão sanitária vinha ocupando um espaço
nas políticas públicas, com destaque para a reforma urbana que o prefeito Pereira Passos
implantara na cidade do Rio de Janeiro.

Mas, se a crítica autoritária ao liberalismo político e administrativo e ao governo


republicano se dirigia pelos símbolos da pobreza e da doença, essas palavras eram também
dirigidas aos fazendeiros, políticos e industriais, porque para os representantes do pensamento
social nacionalista e autoritário, esses homens eram dominados pela corrupção (segundo as
palavras de Kehl, Penna e Lobato, essa era uma doença que grassava em solo pátrio) e
incapazes de seguir princípios racionais para a reorganização dos serviços públicos de
educação e saúde da sociedade brasileira. Para frações do pensamento social marcadamente
antiliberal, os dirigentes e administradores precisavam, urgentemente, reformar a sociedade.
A política dos políticos nacionais não conseguiria estabelecer diretrizes para a sociedade.
Apenas a política isenta de interesses, expressaria integralmente os ideais nacionais.

33
Ver os livros MENDONÇA (2005) e MENDONÇA (2006), onde encontramos trabalhos consistentes
criticando esse ponto de vista dominante nas denominadas ciências humanas.
34
Ver “A Educação na Primeira República” de Jorge Nagle, In: FAUSTO, Boris (Org.). O Brasil Republicano.
São Paulo, DIFEL, 1985.
42

Esse projeto político pode ser assim resumido: a politicalha republicana era
desorganizada e a Nação deveria ser orientada por uma política livre de paixão ou interesse,
ou seja, científica. Teríamos uma administração pública seguindo critérios objetivos e
centralizados. Nessa perspectiva, os problemas de educação e saúde pública não foram
simples questões técnicas. Elas possuíram uma dimensão política: a construção da Nação. A
educação passou a ser o caminho adequado para a reforma do Brasil e pressupunha a
cooperação entre as classes, uma consciência nacional para a formação da Nação. As novas
ciências e técnicas contribuiriam de maneira decisiva para melhorar as condições de vida dos
habitantes que viviam de forma irracional, sem princípios corretos, de maneira confusa e,
quando em conflito com os órgãos de direção da sociedade, ameaçadoramente perigosos para
a unidade da sociedade35. Além disso, eram presas fáceis para as outras idéias igualmente
perigosas e alienígenas: anarquismo e comunismo.

Para esses intelectuais, a modernização do Brasil e a reforma do Estado deveriam


sofrer influência da ciência, cuja vulgarização era notável naquele período. Eis o modelo que
seria necessário para encaminhar uma solução aos destinos da República. Na década de 20, a
mensagem da regeneração da República construiu um discurso que, apresentando-se como
neutro, pretendeu arrancar a República de suas indefinições através de uma transição pacífica.
A adesão ao projeto da nação, seria resultado da conquista das consciências. Abra-se qualquer
estudo dedicado à história das idéias no Brasil e, invariavelmente, quando mencionada a
geração de intelectuais da Primeira República, a ênfase recairá sobre as obras de Alberto
Torres e Oliveira Vianna. Não se quer negar a importância desses autores, pelo contrário,
julgamos que seus textos apontam as fronteiras das importantes parcelas do pensamento social
brasileiro nacionalista e autoritário. São, no entanto, parte significativa de um universo. O que
se deseja demonstrar é que estes pensadores são parte desta interpretação, mas não o todo.

Para estes grupos, naquele contexto social, a dicotomia país real versus país legal
retratava o momento político. As instituições republicanas eram analisadas como efeitos do
modo equivocado de percepção da realidade. Assim como o modelo de conhecimento era
criticado, a política governista também o era. A maneira de conduzir a república respondia
pelas mazelas sociais que assolavam o país: a politicalha, o despreparo, a irresponsabilidade

35
Os conservadores de plantão negam a existência da rede específica e institucionalizada de relações sociais: as
classes sociais. No presente texto, adotamos o conceito gramsciano de Estado Ampliado. O Estado como uma
condensação de relações sociais. O Estado não é um ente supra-histórico pairando acima das classes, assim como
não é apenas coerção, mas também consenso. Aliás, adotamos o conceito de classes sociais enquanto um
conjunto de redes relativamente estáveis e hierarquizadas de relações institucionalizadas.
43

das elites e a corrupção. O modo de conhecimento da realidade era combatido porque sendo
incapaz de apreender objetivamente o Brasil, propunha ordená-lo através de estruturas
políticas oriundas de realidades que não diziam respeito ao país real. Daí a percepção de que o
autoritarismo poderia traduzir-se em pensamento próprio para o país. Mas o que distinguiria a
política orientada pela ciência daquela dominada por interesses espúrios? Kehl diria sobre a
necessidade de novos nomes para dirigir o governo, a seguinte frase, demonstrando mais uma
vez a intrínseca articulação dos intelectuais eugenistas a esse pensamento social:

Dizem que os governos são formados pelos elementos de elite do país.


Oliveira Vianna assim o afirma. Engana-se, porém, em relação ao nosso.
Queremos crer, ou melhor, devemos proclamar não ser de elite o elemento
que vem se perpetuando nos postos de comando (...) Há gente melhor do que
essa que nos governa. (KEHL, 1933:19).

Para vários dos autores eugenistas, entre eles Renato Kehl, Belisário Penna e Monteiro
Lobato, a política deveria significar a resolução dos graves problemas sociais. Esta política
seria resultado de um estudo correto da realidade e indicador seguro de uma solução, guiada
por uma análise objetiva. A política deveria ignorar a dinâmica das forças sociais. Sua ação
decorreria da visão do verdadeiro Brasil. Portanto, uma questão técnica. A política deveria
deslocar-se dos políticos – que manifestavam interesses individuais e classistas – para os
técnicos, profissionais que orientados pelas idéias científicas expressariam necessidades
nacionais. As instituições políticas adequadas teriam que ser as indicadas pela própria
realidade. Portanto, os problemas nacionais seriam resolvidos após a descoberta da realidade
nacional. O conhecimento objetivo da realidade levaria ao modelo político apropriado. E
adotado o modelo político correto, não existiria o conflito social, resultado da inadequação
das instituições políticas republicanas em solo brasileiro. Em resumo, para Kehl, era
explicitamente imperioso e necessário, fazer o “saneamento político”:

Instruir o povo é desvendar-lhes o palco róseo da vida, é mostrar-lhes o valor


da saúde, o caminho da honra e do trabalho. As idéias pregadas pelos
evangelistas da harmonia social, só encontrarão terreno semeável onde reinar
a saúde, em terras de indivíduos eugênicos. Cumpre, pois sanear fisicamente
para em seguida fazer o saneamento político [Grifo nosso]. (KEHL,
1920:19).

Esse discurso, no setor da saúde pública, definiria um modelo que, com o objetivo de
promover a elevação da capacidade produtiva dos trabalhadores levou a uma nova atribuição
social do médico36. O Brasil, identificado por esses médicos como uma terra de curandeiros e

36
No campo médico é inegável que o profissional recebia uma melhor remuneração ao buscar suas novas
atribuições, especialmente, em alguns casos, na administração pública. Por exemplo, a renda recebida pelos
44

aproveitadores, sofreria uma mudança, condição da industrialização e modernização da


sociedade, um processo que garantiria a paz social e elevaria as condições de vida da
população a cargo do Estado.

A visão do trabalhador rural nacional presente na maior parte dos discursos era aquela
que foi adotada por Monteiro Lobato nos artigos do livro O Problema Vital. O Jeca Tatu era
um indolente, mas não totalmente incapaz. Ainda haveria, sem dúvida, quem afirmasse que o
trabalhador nacional era deficiente por influência do clima e da raça. Mas, o novo projeto era
otimista. Ele dizia: o homem pobre e doente é, sobretudo, uma vítima indefesa da doença, da
ignorância e da deficiência ou do vício de alimentação. Preserve-se das doenças, alimente-se
convenientemente, dê-lhe instrução e a produção do seu trabalho igualará à dos mais robustos
lavradores europeus. Os caipiras, caboclos e mestiços que escapam das doenças nada deixam
a desejar quanto ao vigor físico e à resistência aos mais árduos dos estrangeiros. Para Kehl, a
eugenização do Brasil seria uma redenção bíblica do país:

Não há, pois, obra mais benemérita e altamente valiosa, que a propaganda
sanitária de ensinar aos indivíduos a se protegerem contra as doenças
contagiosas, a obedecer sãos princípios de higiene individual, a manter as
habitações e suas redondezas limpas, incutindo-lhes no espírito a razão da
prosperidade de certos colonos, como os alemães e polacos, no Paraná e
Santa Catarina, em contraste com a pobreza e doença dos nossos patrícios
que, entretanto, vivem nas mesmas regiões, e portanto sob um mesmo clima.
(...) No dia em que a propaganda de higiene conseguir que o povo brasileiro
compreenda a significação da campanha de saneamento, iniciada
promissoramente entre nós, colaborando para esse patriótico “desideratum”,
de reabilitação sanitária, poder-se-á dizer que o Brasil é realmente o seio de
Abrahão dos tempos presentes.37

Porque somos doentes e miseráveis, enquanto outras nações gozam dos benefícios do
mundo moderno e civilizado? Perante a República, Penna, Kehl e Lobato interrogaram-se
dessa maneira. O retrato do Brasil doente era a resposta. Um retrato cruel. Uma imagem que a
percepção culta não podia reconhecer. A consciência de um Brasil rural e desconhecido era
um guia para a produção intelectual do período. Somente o conhecimento do país verdadeiro
forneceria dados para a análise e posterior organização da nação. Assim, as teses sanitaristas
esperavam superar os entraves para a superação da miséria e erradicação das doenças. Mas,

membros das expedições científicas superava, em muito, qualquer salário recebido pelos clínicos nas cidades
brasileiras. Sobre a remuneração desses profissionais, ver Coelho, 1999.
37
Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que
nos vai mostrar a Diretoria de Saneamento. Entrevista com Renato Kehl. Jornal A Noite, 30 out. 1922. Fundo
Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
45

para conhecermos o pensamento social da época, é necessário analisar melhor os intelectuais


Penna, Kehl e Lobato. Examinaremos as concepções que os orientaram. Elegemos seus textos
como fonte privilegiada para a análise dos temas abordados pelo movimento sanitarista. Eles
dão um testemunho fundamental. Por meio deles popularizou-se a idéia – particularmente nos
meios urbanos – de que o Brasil, por intermédio de uma reforma das políticas públicas de
saúde e educação impulsionada pela ciência da higiene, transformar-se-ia num exemplo de
grande nação.

No contexto da época, a opinião dos sanitaristas sobre a realidade nacional, opunha-se


às teorias que atribuíam uma herança climática e/ou racial negativas para a construção da
nacionalidade. O discurso em torno das qualidades potenciais e positivas das populações
rurais provocou uma mudança a respeito do que se pensava sobre o país. A idéia de uma
integração nacional via ação saneadora nos corpos dos indivíduos e no corpo social
impregnou o ambiente intelectual daqueles que pensavam a formação de uma nação. É
importante lembrar que esses homens viveram e produziram em período conturbado, de
reorganização política do país e implantação de uma nova ordem social. Por exemplo, a
participação dos intelectuais da Liga Pró-Saneamento do Brasil, nesse momento de profundas
transformações políticas, trazendo a idéia do saneamento e principalmente da educação
higiênica como etapa necessária para a construção da nação, assumiu uma importância
inquestionável. Do início do século até o final da década de 1930, a presença do médico-
sanitarista foi fundamental para a definição e implementação das políticas públicas de saúde e
educação. Ao acompanhar a sua atuação desse profissional constatamos a possibilidade de
recuperar a construção das políticas sociais públicas, bem como a crescente participação dos
atores eugenistas e sanitaristas.

Identificados com o campo eugenista, os intelectuais ganharão no período após a


Revolução de 30, e especialmente com o Estado Novo, algo que estava ensaiado durante os
anos 20: o manto protetor do Estado ou das suas instituições. Em 1931, Renato Kehl
participou da criação da Comissão Central Brasileira de Eugenia, cujo principal objetivo era
lutar para implantar a Eugenia nas políticas públicas. Seus membros eram Renato Kehl,
Ernani Lopes, Gustavo Lopes, Porto-Carreiro, Cunha Lopes, Salvador de Toledo Piza Junior,
Octavio Domingues, Achiles Lisboa e Caeta Coutinho. Após 1930, com o governo provisório,
Belisário Penna foi nomeado Diretor do DNSP e depois, em duas oportunidades, tornar-se-ia
Ministro da Educação e Saúde Pública. Em 1934, no âmbito do Ministério do Trabalho seria
criada uma comissão para estudar e definir uma política oficial que regulamentasse a
46

imigração para o país com base na eugenia. Presidido por Oliveira Vianna, desse grupo
fizeram parte Renato Kehl e Roquette-Pinto.38

Vejamos a trajetória de um dos atores mais importantes do período. Além de sua


importância inquestionável para a análise dos movimentos, Penna é um dos autores do
relatório Neiva-Penna, que constitui um documento chave para entendermos a formação do
campo eugênico.

2.2 Belisário Penna

Belisário Augusto de Oliveira Penna nasceu em Barbacena (MG), em 29 de novembro


de 1868, filho do Barão e Visconde de Carandaí e de Lina Lage Penna. Ingressou, em 1886,
na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, transferindo-se no último ano para a de
Salvador, na Bahia, onde colou grau em novembro de 1890. Retornando a Minas Gerais,
clinicou em Barbacena e Juiz de Fora. Nessa última, em 1903, foi eleito vereador,
participando do Congresso Industrial, Comercial e Agrícola reunido em Belo Horizonte,
sendo escolhido relator da Comissão de Comércio. No ano seguinte, transferiu-se para o Rio
de Janeiro e prestou concurso para inspetor sanitário da Diretoria Geral de Saúde Pública.
Aprovado, foi nomeado e designado para exercer as suas funções na 6ª Delegacia de Saúde.
Alguns anos depois, designado por Oswaldo Cruz, juntamente com Arthur Neiva do Instituto
Oswaldo Cruz, percorreu o norte da Bahia, sudeste de Pernambuco, sul do Piauí e nordeste de
Goiás, com o fim de estudar as condições sanitárias. As experiências dessa viagem pelos
sertões foram decisivas para a sua visão do país. O contato de Penna com as condições
miseráveis da população marcaram-no fortemente. Transformou-se num incansável pregador
do saneamento rural e da educação higiênica como a única possibilidade de superação dos
problemas sociais. Em 1913, Belisário Penna solicitou uma licença de seis meses e, por conta
própria, percorreu os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para estudá-los,
como fizera em relação aos estados do Norte. Depois, reassumiu o cargo de Inspetor Sanitário
do Rio de Janeiro, passando a trabalhar nos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro. Em
Vigário Geral, instalou, em março de 1916, o primeiro posto de profilaxia rural do Brasil, que
mais tarde seria transferido para as localidades de Parada de Lucas e Penha. A partir de
novembro de 1916 iniciou, pelo jornal O Correio da Manhã, uma campanha pelo Saneamento

38
Consultar KOIFMAN (2007).
47

do Brasil, escrevendo os artigos que mais tarde constituiriam o livro publicado com este
nome. Em maio de 1918, durante a presidência de Wenceslau Brás, com a criação do Serviço
de Profilaxia Rural, Penna seria nomeado para a sua direção. Nesse cargo, ele instalou e
dirigiu dez postos sanitários nos subúrbios e zonas rurais do Distrito Federal. Na mesma
época, fundaria a Liga Pró-Saneamento do Brasil, realizando conferências em São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Em virtude da autonomia concedida pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores


ao Serviço de Profilaxia Rural, este teve seus recursos aumentados e pôde estender sua
assistência médica às áreas do Estado do Rio de Janeiro limítrofes com o Distrito Federal. Em
1920, com a criação de uma antiga demanda dos sanitaristas, um órgão (centralizado e
nacional) que fosse responsável pelas ações públicas para a área da saúde, Penna foi nomeado
Diretor do Departamento de Saneamento e Profilaxia Rural, subordinado ao recém-criado
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), onde foram instalados serviços de
profilaxia em 15 estados durante a sua gestão. Trabalhando em São Paulo, em carta aberta aos
filhos, apoiou a revolta tenentista de 5 de julho de 1924. Preso, foi enviado para o Rio de
Janeiro, ficando detido por seis meses no quartel do Corpo de Bombeiros. Foi suspenso de
suas funções como Delegado de Saúde, sendo reintegrado ao serviço público apenas em 1927.
Como Chefe do Serviço de Propaganda e Educação Sanitária, percorreu os estados de Minas
Gerais, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte até ser requisitado em 1928
pelo governo do Rio Grande do Sul para ali organizar um centro de educação sanitária.
Transferindo-se para o Sul, iniciou um período de intenso trabalho. Merece destaque nesse
momento seu engajamento na Revolução de 30. Após a vitória do movimento, foi nomeado
Diretor do Departamento Nacional de Saúde e em setembro de 1931, Penna assumiu
interinamente o Ministério da Educação e Saúde, criado depois da Revolução de 1930. Filiou-
se, em 1932, à Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada por Plínio Salgado, tornando-se
membro da Câmara dos 40. Belisário Penna faleceu em 4 de novembro de 1939, isolado e
solitário em sua fazenda, no interior do Estado do Rio de Janeiro, para onde havia se retirado
após sua aposentadoria, nas imediações da cidade de Vassouras.

Os registros históricos assinalam que Penna, a partir de 1904, quando se envolveu com
as intervenções governamentais nas ações sanitárias públicas, teve um papel decisivo para
marcar a importância dessas atividades, desde a sua emergência como responsabilidade
estatal. Daquele ano até meados da década de 30, Penna esteve sempre ligado à direção dos
órgãos governamentais, intervindo na sociedade com a criação de entidades científicas e
48

políticas. Participou da formação não só de um setor público voltado para controlar as ações
coletivas da saúde e educativas, mas também na formação de um grupo profissional e técnico
com práticas próprias, ou seja, os educadores e sanitaristas, que deram capacidade intelectual
e executiva aos projetos.

Mas, Penna tem sua importância realçada devido à autoria do relatório da expedição.
O relato da viagem Neiva-Penna forneceu os símbolos que ajudaram a formular um país
moderno, saudável e culto. O diário da empreitada contribuiria para o diagnóstico definitivo
do Brasil – o país é pobre, doente e analfabeto – e para a solução: somente com o esforço dos
cientistas e intelectuais no trabalho de construção da nação, empreendidos na reforma dos
serviços de saúde pública e educação, seríamos, enfim, uma grande nação39.

Percorrendo o interior do país, as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz


desempenharam um papel fundamental no debate sobre os problemas nacionais, influenciando
as análises e propostas do movimento sanitarista em relação ao saneamento. Essas viagens
forneceriam muitas das representações sociais que ainda hoje impregnam o imaginário social.
O diagnóstico da realidade fez com Belisário qualificasse de forma especial sua pregação pela
idéia do saneamento. Não se via como mais um intelectual a falar e a escrever, mas como
alguém que conhecera de perto a doença e a realidade nacional40.

O tema do combate às doenças não serviu apenas de justificativa para expedições


científicas e campanhas de saneamento, mas como ideologias de construção nacional. Falar
dos sertões abandonados, habitados por um povo analfabeto, pobre e doente, mas capaz de
produzir, depois de saneado e curado, tornava-se necessário para convencer os políticos,
intelectuais, escritores, fazendeiros e industriais de que, acima das diferenças que marcavam o
país, havia os interesses nacionais. As expedições científicas exerceram, portanto, um ato
simbólico extremamente relevante: um projeto de construção da nacionalidade. A ciência
orientaria os peregrinos da modernização. Em nome desse projeto justificavam-se as
iniciativas higienizadoras e educadoras: saneamento dos corpos, cidades e instituições. Esse
era o projeto do “edifício da nacionalidade brasileira”. Um ideal a ser perseguido. A

39
Extremamente relevante foi a contribuição das imagens fotográficas nesse processo. Não se tratava mais de
operar as representações sociais somente com discursos textuais, mas com imagens fotográficas, “traços da
realidade” que os próprios viajantes retiraram. Sobre este assunto, consultar o Álbum A Ciência a Caminho da
Roça (1991) e o artigo Monteiro lobato e a fotografia como Diagnóstico, de Thielen & Santos (1989).
40
Freqüentemente Penna retornaria a esse ponto. Sempre enfatizando a comprovação empírica dos seus
discursos. “Fazendo tal afirmativa não me guio por informações escritas ou faladas, mas por verificação pessoal
no norte, no centro e no sul do país”. (PENNA, 1918:07).
49

construção da nação brasileira nascia sob o signo da doença. Doença da miséria e da


ignorância.

Ao atribuir uma condição inferior do país em relação às outras nações devido à


ausência de saúde e educação, Penna e os demais sanitaristas e eugenistas apresentavam uma
solução original para a tragédia41 nacional, recusando os determinismos biológico, climático e
geográfico ainda predominante no pensamento social brasileiro. Como sintetizou Lobato,
optando entre o racismo biológico que declarava a inelutável condição inferior e as idéias
eugenistas/sanitaristas que pregavam a possibilidade de mudança, assumindo a via reformista:
“... porque o nosso dilema é este: ou doença ou incapacidade racial. É preferível optarmos
pela doença” (LOBATO, 1957a: 297). O projeto de construção nacional propugnado pelos
intelectuais reservava um lugar de destaque aos médicos. Destes, dependeria, em grande
parte, a recuperação dos sertões e dos homens. Dessa maneira, Penna narrava sua militância
em prol dessa “missão patriótica e messiânica”:

Estou prosseguindo na tarefa que me impus de percorrer este imenso


hospital, de estado em estado, de cidade em cidade, de vila em vila, de
fazenda em fazenda, levando o facho da higiene, a fim de ensinar a nossa
gente a se libertar da preguição verminótica e da degradação sifilítica e
alcoólica (...).42

O contato da suposta e verdadeira realidade nacional propiciado pela viagem científica


e sua repercussão através da publicação do relatório na imprensa, cujos símbolos mais
relevantes foram o Jeca Tatu regenerado e a frase “... o Brasil é ainda um imenso hospital”, de
Miguel Pereira, forneceriam os elementos fundamentais da plataforma que Penna utilizaria
para transformar-se num “caixeiro-viajante” da ciência e da educação higiênica. Entre 1923 e
1924, a convite do Estado de São Paulo, ele escreveria dois livros sobre “higiene brasileira” e,
em 1927, foi convidado pelo laboratório privado de produtos médicos Dault, Oliveira &
Companhia para criar e dirigir uma seção de educação sanitária com o intuito de divulgar os
produtos médicos dessa empresa. Boa parte desses remédios era direcionada ao tratamento
das endemias rurais.

No entanto, em 1928, Penna seguiu para o Rio Grande do Sul para organizar o serviço
de higiene e propaganda daquele estado, vindo ainda a participar das articulações da
Revolução de 30. Depois de vitorioso o movimento, foi empossado como diretor do

41
Porque somos miseráveis se o país é tão rico? Porque conhecemos tantos problemas, se nossas florestas são
plenas de riquezas. Porque somos um povo doente e pobre?
42
Carta de Penna a Lobato, em 1928. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
50

Departamento Nacional de Saúde Pública e ainda ocuparia interinamente, por duas ocasiões, a
pasta do Ministério da Educação e Saúde Pública. No período subseqüente ao triunfo do
movimento político que conduziu Vargas à Presidência, criaria vários projetos afins ao seu
plano de educação sanitária. Dentre eles um selo (taxa) para financiar os gastos com educação
e saúde e os lactários infantis. A Inauguração do primeiro lactário de higiene infantil deu-se
em 15/4/32, quando Penna era Diretor do DNSP e Ministro Interino da Educação e Saúde
Pública.

Um dos principais momentos do “caixeiro-viajante da higiene43”, foi quando ele


ofertou a 2ª edição do livro Saneamento do Brasil a Washington Luís, então presidente do
Estado de São Paulo, pois, segundo Penna, “este livro foi escrito para ser lido pelos homens
de responsabilidade na direção do país”. Em correspondência datada de 21/07/1923,
Washington Luís respondia e propunha a Penna que nas dez escolas formadoras de
professores do estado, justamente na cadeira de higiene, o ensino fosse fundamentado sob a
ótica de Belisário Penna. São Paulo contava então, segundo W. Luís, com 240.000 crianças
estudando no ensino básico, instruído por professores formados nessas escolas. Penna aceitou
e, até ser preso em 1924, concluiria dois livros: Higiene para o povo. Amarelão e maleita,
pela editora de Monteiro Lobato, publicado e destinado aos alunos e ao público em geral; e
um livro de educação higiênica escolar, destinado aos professores. Este nunca foi publicado.

Seria um curso de higiene brasileira, sem pretensões a fazer sábios, mas no


qual seriam propagados conhecimentos rudimentares para preservação da
saúde e conseqüente fortalecimento dos brasileiros. Essas crianças de agora
são os dirigentes de amanhã.44

Mais me agrada ainda o querer V. Excia. ‘Um curso de Higiene Brasileira,


sem pretensões a fazer sábios’, mas capaz de propagar conhecimentos

43
“Não se sabia onde acabava o apóstolo e onde começava o charlatão; onde terminava o higienista e principiava
o caixeiro-viajante do vermífugo, naquela bolinha humana de largura igual à altura que percorreu o Brasil como
uma espécie de pregador, de mestre, de camelô, de messias, de orador popular, de empresário e redentor –
gozado e sublime! – falando a crianças, a adultos, a velhos; discursando nos grupos escolares, nos ginásios, nas
faculdades, nas ruas, nos cinemas (como assisti em Belo Horizonte, aí pelos anos 20, no Odeon, onde ele urrava:
‘Dizem que sou caixeiro-viajante! Sou! Sou o caixeiro-viajante da Higiene! Sou e Sou!)’ orando a analfabetos e
a governantes; nas fazendas, nas cidades; ao norte e no sul – ensinando seu evangelho: ‘Botina, Necatorina e
Latrina! Nada de pés descalços por cujas solas penetra a larva filariforme depois da terceira muda... Botina, meus
senhores! Abaixo os remédios caseiros, as receitas de comadre, as garrafadas... Necatorina, meus amigos!
Necatorina e só Necatorina... Necatorina Merck, Cápsulas gelatinosas de tetracloreto de carbono puríssimo,
fabricadas por Merck, nos laboratórios na Alemanha, representados no Brasil exclusivamente por Daudt,
Oliveira e Cia. E, sobretudo nada das cagadas ao vento dos campos, à margem dos rios, em touceira de banana...
Buraco no chão, fossa sanitária, latrina, sempre latrina, só latrina, minhas excelentíssimas senhoras!”. (NAVA,
1983:283). Pedro Nava, em um dos seus livros memorialísticos, rememorou a figura do sanitarista Penna, um
orador inflamado em sua missão messiânica e patriótica em prol do saneamento do Brasil.
44
Carta de W. Luís a B. Penna, em 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
51

rudimentares para preservação da saúde e conseqüente fortalecimento dos


brasileiros.45

Porém, a confecção de um Plano de Educação Higiênica formulado por Penna não


começara nessa passagem por São Paulo. Desde as campanhas sanitárias do início do século
XX ele demonstrara a necessidade de incutir nos indivíduos a propaganda dos valores da
higiene. Sintomaticamente, em longa e analítica carta a Monteiro Lobato, podemos
acompanhar a lógica de sua argumentação. Nessa carta, Penna recorria e valorizava a
memória dos feitos do movimento sanitarista e da expedição científica, aos estados do
nordeste e centro-oeste do país:

Foi depois dessa viagem [da expedição] que me capacitei de ser completa a
ignorância de nossa gente, letrada e iletrada, de comezinhos preceitos de
higiene, a causa primordial da doença endêmica multiforme e generalizada
com predominância das verminoses, do impaludismo e da sífilis, que
deprimem e degenera, física, mental e moralmente a nossa gente,
macabramente agravada pela cachaça, trapaça e desgraça (...) Desde então
aguardei que uma voz autorizada bradasse a verdade, para sair a campo com
os dados colhidos em todas as regiões do país. Essa foi a de Miguel Pereira,
em outubro de 1916, dizendo ser o Brasil ‘um imenso hospital’ (...) Desde
então, saí a campo pelo Correio da Manhã, escrevendo uma série de 13
artigos sobre saneamento rural, reunidos em 1918 – Saneamento do Brasil –
cuja imensa repercussão devo sobretudo a sua pena vigorosa na série de
artigos no Estado de São Paulo comentando-o, e enfeixados depois no
Problema Vital.46

Muito antes dessas viagens patrocinadas pelo estado republicano ao interior do país,
inúmeras expedições percorreram o Brasil em busca de informações e fatos que pudessem
explicar a diversidade e a complexidade natural e social do imenso país. Cientistas e
aventureiros viajaram por várias regiões realizando pesquisas, colhendo amostras,
catalogando ou simplesmente anotando observações. No entanto, uma marca dos que se
embrenharam pelas cidades e localidades mais distantes sempre foi a constatação e a surpresa
diante da miscigenação racial. Quase todos os relatos dos viajantes tocaram nesse ponto,
reprovando-o: “Isto não é uma nação. E nem será!”. Segundo esse pensamento, uma das
causas para a nossa condição, paralisados para sempre na barbárie, era a miscigenação.
Assim, descriam da caminhada brasileira para o topo da civilização. Como esse quadro era
visto por parte dos intelectuais, o que pensavam sobre o assunto? Vejamos, a seguir, um relato
e um comentário acerca dessa constatação:

45
Carta de B. Penna a W. Luís, em 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
46
Carta de Belisário Penna a Monteiro Lobato em 1928. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
52

Agassiz, por exemplo, um viajante suíço que esteve no Brasil em 1865,


concluía em seu livro Viagem ao Brasil: ‘Quem quiser ter um exemplo do
que é a degeneração e a mistura racial extremada, venha ao Brasil e terá a
prova da degeneração local’. Como ele, Ingenieros e outros cientistas
estiveram no país a fim de comprovar esse estranho ‘espetáculos das raças’.
Mas se é fácil entender a posição dos viajantes estrangeiros, é muito mais
difícil explicar por que os teóricos nacionais vão assumir esse tipo de
interpretação. Afinal, significava reconhecer que a miscigenação, extremada
entre nós, levaria ao nosso próprio fracasso futuro, como nação.
(SCHWARCZ, 1996:172).

No passado havia-se formado a base da intensa miscigenação étnica que seria o tema
central dos intelectuais. A miscigenação explicaria ou ao menos tornaria possível a
compreensão dos diferentes olhares e tensões que buscavam encontrar soluções para o país e
seu povo. Novas interpretações sobre a mestiçagem racial e suas condições sociais enchiam
de expectativas o cenário que se afirmava no cotidiano. É este cenário que cientistas,
bacharéis, engenheiros, enfim, intelectuais tentariam entender e modificar. Nas últimas
décadas do século XIX e início do XX, várias missões científicas rasgaram o país.
Entusiasmados pelas conquistas técnicas, especialistas em ciências excursionaram pela
imensidão do território brasileiro. Porém, vamos falar das expedições científicas do Instituto
Oswaldo Cruz. É o relatório de uma delas que nos interessa: a expedição Neiva-Penna.

2.3 A Viagem Científica Neiva-Penna

Oswaldo Cruz havia ocupado o cargo de Diretor Geral da Saúde Pública de 1903 até
1909 e, nesse período, realizou-se uma exaustiva inspeção sanitária por vários portos
brasileiros. Em 1910, o médico Antônio Cardoso Fontes foi enviado à cidade de São Luís, no
Maranhão, para combater um surto de peste bubônica. Na mesma época, Carlos Chagas
dirigiu uma campanha contra a malária em Itatinga, São Paulo, onde a Companhia Docas de
Santos construía uma usina hidrelétrica. Logo depois, auxiliado por Arthur Neiva e Rocha
Faria, Carlos Chagas realizaria o mesmo serviço em Xerém, na Baixada Fluminense (RJ),
onde a Inspetoria Geral das Obras captava mananciais de água para o abastecimento do Rio de
Janeiro. No ano de 1907, Carlos Chagas tinha sido chamado para desempenhar missão de
identificação e profilaxia, ao lado do próprio Belisário Penna, em Minas Gerais, onde a
malária dificultava os trabalhos de prolongamento da linha da Estrada de Ferro Central do
Brasil até Pirapora. Na ocasião, teve sua atenção despertada para o barbeiro, um inseto muito
comum nas habitações rurais daquele estado. Após algumas investigações, verificou que o
53

inseto era o vetor de uma tripanossomíase desconhecida, batizada mais tarde, em sua
homenagem, com o nome de Doença de Chagas. Em 1910, Oswaldo Cruz inspecionou as
obras da Usina Hidrelétrica que uma companhia estrangeira estava construindo em Ribeirão
das Lages, no estado do Rio de Janeiro, uma vez que sobre ela pesavam as acusações de
responsabilidade pelo surto de malária naquela região. Nesse mesmo ano, Oswaldo Cruz
viajou em companhia de Belisário Penna à Amazônia, convidado pela empresa norte-
americana que construía a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em seu retorno, Oswaldo Cruz
parou em Belém onde foi convidado pelo Presidente do estado do Pará a dirigir uma
campanha contra a Febre Amarela naquela capital.

Diferentemente dessas missões sanitárias que visavam resultados mais imediatos, em


áreas reduzidas, as cinco expedições científicas realizadas entre 1911 e 1913 pelo Instituto
Oswaldo Cruz foram longas e percorreram grandes áreas. Essas expedições médico-científicas
produziram, através dos diários de viagem, um sólido inventário das condições e dos modos
de vida das regiões visitadas. É possível recuperar, no relatório da expedição Neiva-Penna, o
impacto que a ciência provocava naqueles sertões abandonados:

É um povo atrasado ainda de alguns séculos. É possível que tenhamos


deixado uma lenda de homens que tinham comércio com o capeta. Causava
assombro a nossa iluminação a acetileno. Não compreendiam os infelizes
como o contato da chama dum fósforo pudesse provocar a luz, sem a
presença dum pavio. Os nossos utensílios de cozinha, as camas, as malas,
eram objetos de admiração. O microscópio infundia receio. (NEIVA &
PENNA, 1999:201).

Entre setembro de 1911 e fevereiro de 1912, Astrogildo Machado e Antônio Martins,


respectivamente pesquisador e farmacêutico do Instituto Oswaldo Cruz, percorreram os vales
do São Francisco e do Tocantins com os técnicos da Estrada de Ferro Central do Brasil, os
responsáveis por estudos para um prolongamento que, a partir de Pirapora, deveria alcançar a
cidade de Belém, no Pará. Nos meses de março a outubro de 1912, a serviço da Inspetoria das
Obras contra a Seca, três expedições exploraram o Nordeste e o Centro-Oeste do Brasil. Para
o Ceará e o norte do Piauí, dirigiram-se João Pedro de Albuquerque e José Gomes de Faria.
Adolfo Lutz e Astrogildo Machado desceram o Rio São Francisco de Pirapora até Juazeiro,
visitando também alguns de seus afluentes. A serviço da Superintendência da Defesa da
Borracha, Carlos Chagas, Pacheco Leão e João Pedro de Albuquerque inspecionaram boa
parte da bacia amazônica, no período de outubro de 1912 a março de 1913.
54

Das cinco expedições científicas realizadas pelo IOC durante esse período, a viagem
de Arthur Neiva e Belisário Penna foi a mais longa e a que percorreu a área mais extensa. Eles
e seus companheiros de viagem percorreram em cavalos, burros e a bordo de trens, quatro mil
quilômetros entre os meses de março a outubro de 1912. Essas viagens deixaram marcas
profundas no pensamento dos membros das expedições e, posteriormente, influenciaram os
demais intelectuais que tiveram acesso aos relatórios e contato com as fotografias. Monteiro
Lobato, comentando as imagens fotográficas – instantâneos cruéis, segundo sua expressão –
realizadas durante a expedição pelo fotógrafo José Teixeira, escreveria a respeito: “(...) bastou
isso para que o problema brasileiro se visse, pela primeira vez, enfocado sob um feixe de luz
rutilante. E instantaneamente vimo-lo evoluir para o terreno da aplicação prática”. (LOBATO,
1957a:297). No relatório, encontramos uma visão crítica e impiedosa da interpretação ufanista
do trabalhador rural. Segundo a narrativa desse documento, essa visão do interior do país
realizada pelos intelectuais alheios da verdadeira realidade seria um conjunto de “(...) falsas
informações dos que viajam por essas regiões, pintando em linguagem florida e imaginosa,
quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta”. (NEIVA & PENNA, 1999:222).

Segundo Penna e Neiva, a realidade diagnosticada e retratada pela expedição era um


pouco mais realista e dolorosa: “Povo indolente, como, aliás, em todo o Brasil. Não se vê um
quintal plantado, nem legumes, nem verduras. Raríssimas as árvores frutíferas”. (NEIVA &
PENNA, 1999:198). Após a prolongada viagem de vastas experiências e observações de
cunho sociológico, eles formularam um duro diagnóstico a respeito da verdadeira identidade
cultural e social do país. É de se supor o impacto que as descrições causaram nas pessoas que,
gradativamente, foram tomando contato com o texto e com as fotos do interior do país:

(...) Almas é um arraial maior que o Duro e muito mais antigo com as casas,
porém em ruínas, e em ruína a sua pequena e miserável população, assolada
pela moléstia de Chagas, que aí tem todas as modalidades graves. É um
pandemônio, e se DANTE houvesse visto coisa semelhante, antes de
descrever seu imortal Inferno, teria nele descrito mais um quadro dos mais
impressionantes e sugestivos. (NEIVA & PENNA, 1999:209).

A análise do texto e imagens das expedições permite verificar o choque de um suposto


observador urbano e moderno, em contato com uma realidade desconhecida e rural,
registrando os indivíduos e seus hábitos, suas casas, suas doenças e seus instrumentos de
trabalho. Sob a perspectiva social do grupo de cientistas poder-se-ia dizer que se tratava do
Brasil “legal” a olhar para o Brasil “real”: “População paupérrima, de vida quase puramente
vegetativa. Casas de taipa, cobertas de telha, sem o mínimo conforto, sem mobiliário, dormem
55

em redes...” (NEIVA & PENNA, 1999:188). Nesse sentido, o que se apregoava era a
necessidade de um saber pronto a instrumentalizar a ação política, ou seja, conhecer o
território nacional, mapear as doenças, a miséria e suas riquezas, tendo em vista sua
exploração e utilização de acordo com os interesses da nação. Como declarou Oliveira
Vianna, justificando a razão para a pesquisa e a formação de dados sobre o país:

Só os inquéritos diretos de diversas regiões do país fornecerão os elementos


para a coordenação necessária: inquéritos sobre a parte física e sobre a parte
dinâmica; inquéritos com alto critério técnico e com preocupações
sociológicas... (VIANNA apud LUCA, 1999:117).

Para os intelectuais, as expedições do Instituto Oswaldo Cruz haviam revelado a face


desconhecida e forneciam uma prova irrefutável das reais condições do Brasil. Dentre todas
as expedições, a realizada por Penna e Neiva seria a mais famosa, talvez por possuir uma
documentação (textos e fotos) repleta de observações sobre as comunidades visitadas. Depois
dessa viagem, eles tornaram-se defensores incansáveis do saneamento das áreas rurais do
Brasil, buscando apoio para a construção da futura nação, que aconteceria com a mudança das
condições de saúde da população rural:

Não agradará certamente a franqueza com que expomos nossa impressão,


mas julgamos ser isso um dever de consciência e de patriotismo. É
indispensável dizer a verdade embora dolorosa e cruciante e não iludir de
forma alguma a nação para que não sofram os jovens de hoje a triste
desilusão por que nós passamos quando através dos livros e romances
havíamos imaginado um país privilegiado, de terras ubérrimas, matas
infindáveis, jazidas auríferas e diamantíferas, inesgotáveis pedras preciosas
rolando pelos leitos dos seus rios, povoados seus sertões por uma raça forte e
destemida, um paraíso enfim (...) Os sertões que conhecemos, quer os do
extremo norte quer os centrais, quer os do norte de Minas são pedaços do
purgatório. (NEIVA & PENNA, 1999:222).

Vários políticos, escritores e profissionais de educação e saúde foram influenciados


por essas palavras. Em particular, o escritor Monteiro Lobato, que aderiu à campanha pelo
saneamento rural e “criação da consciência sanitária nacional”. A partir da regeneração do
Jeca Tatu, o habitante do interior do país não seria representado como um homem
improdutivo, fruto de uma indolência natural, mas um trabalhador doente, dominado por
agentes infecciosos, parasitas e, por isso, incapaz. Ou melhor, estava incapacitado. E sua
condição não era (apenas) herdada naturalmente. A preguiça era considerada uma herança
genética, um resultado do cruzamento com raças inferiores. Porém, através da higiene, da
eugenia e de um projeto pedagógico o homem improdutivo para o trabalho do mundo
moderno poderia superar as deficiências.
56

O relatório expôs as condições de pobreza, doenças e analfabetismo de toda a região


percorrida. Não existia nenhuma forma de assistência médica naquelas regiões. São
abundantes os registros sobre as práticas curativas primitivas a que os habitantes recorriam
diante das doenças. O que havia, entre os moradores das áreas percorridas, era uma confiança
generalizada na medicina rústica: “Como tratamento dão ao paciente uma mistura de alho, sal
e urina, e introduzem-lhe na boca a chave do sacrário da igreja mais próxima.”(NEIVA &
PENNA, 1999:187). Os médicos da expedição surpreenderam-se com os medicamentos que
as pessoas utilizavam para curar-se das conjuntivites: “O tratamento aqui é o seguinte: moem
entre duas pedras um grão de chumbo de caça, misturam o pó com suco de limão e sarro de
cachimbo, e aplicam nos olhos essa mistura infernal”. (NEIVA & PENNA, 1999:195). Diante
do isolamento, não faltavam os que se aproveitavam da situação. No trajeto percorrido, os
sanitaristas encontraram inúmeras vítimas dos charlatães vendedores de poções mágicas. As
análises dos médicos surgem carregadas de preconceitos em relação, por exemplo, às
concepções e práticas de cura disseminadas entre os habitantes das zonas rurais:

O pobre homem mostrou-nos uma garrafa com o seguinte rótulo: ‘Possão


anti-periódica para cura de todas as febres’ (Assinada Dr. BARROSO). Que
lhe venderam por um bom dinheiro como infalível. Beberam ele e a filha
quatro colheradas, cada um, da tal droga e quase morreram vitimados por
vômitos e diarréia abundante. (NEIVA & PENNA, 1999:196).

O relatório apresentava aspectos da organização social encontrada nas regiões:


instabilidades familiares, faltas de registro de nascimentos e óbitos, ausência de qualquer
exigência legal para a realização de enterros. Sob a perspectiva cultural dos autores, as
comunidades visitadas eram “povos primitivos”. A leitura do texto transmitia uma denúncia
das condições de vida. O tom indignado foi eficaz, pois o efeito produzido foi considerável do
ponto de vista simbólico e político. Políticos e intelectuais passaram a discutir sobre a miséria
das populações camponesas e suas conseqüências negativas para a construção da nação. Mas,
é certo que pouco se fez para efetivamente mudar aquela situação. Teriam estes cientistas
realizados diagnósticos equivocados? “Pelo que temos observado em nossas viagens através
de muitos estados do Brasil, parece-nos haver grande exagero na enumeração das riquezas
minerais do Brasil (...).” (NEIVA & PENNA, 1999:221).

Fizeram recomendações erradas?

A exploração inteligente da terra, seu povoamento por homens aptos e


conscientes, dando-lhes meios de comunicação rápida com os centros
consumidores, instrução e noções exatas e práticas de profilaxia das
moléstias regionais, todas elas evitáveis, por meio duma assistência racional
57

e contínua, e por leis sábias de acautelamento e aperfeiçoamento das raças.


(NEIVA & PENNA, 1999:221).

O movimento político pelo saneamento das áreas rurais concentrava suas atenções na
rejeição do determinismo negativo (influência degenerativa de clima, raça e geografia) e na
melhoria das condições de vida e, no caso, voltando-se para a erradicação das graves
endemias que assolavam os sertões47. No relatório, as deficiências do trabalhador rural foram
atribuídas à ausência de um saneamento que o protegesse das trágicas doenças tropicais:

Descoberto, Amaro Leite e Pilar, extremamente decadentes, com suas


populações na totalidade constituídas de negros e mestiços, inutilizada pelo
terrível flagelo que é a moléstia de Chagas, não atingindo nenhuma delas a
400 habitantes. Além desses arraiais, pequenos lugarejos de meia dúzia de
habitações, algumas fazendas e pobres casebres esparsos à margem da
estrada e à beira dos riachos, cujos habitantes são também, na sua maioria,
pobres vítimas da tiroidite, da ancilostomíase e do impaludismo. Enfim, a
solidão, a miséria, o analfabetismo universal, o abandono completo dessa
pobre gente, devastada moralmente pelo obscurantismo, pelas abusões e
feitiçarias, e física e intelectualmente por terríveis moléstias endêmicas.
(NEIVA & PENNA, 1999: 220).

Depois da veiculação dessas notas do diário de viagem, a construção da Nação seria


possível por meio do diagnóstico dos “Sertões”. Se o país estava doente, improdutivo para os
padrões de modernidade, eficiência e racionalidade econômica e social capitalista do século
XX, o aumento da produtividade aconteceria a partir da modificação das condições de
habitação e saúde das populações rurais. Com a mudança de percepção, passou a ser
determinante encontrar o verdadeiro Brasil, pois para a construção da nação era necessário
conhecer para integrar nacionalmente. Percorrer o território brasileiro foi considerado um ato
absolutamente fundamental para compreender a identidade nacional. Era preciso conhecer o
país; conhecer suas doenças para o diagnóstico e a cura. Com essas preocupações, a ciência
tomava literalmente o caminho da roça. Há um depoimento interessante de Lobato sobre a
necessidade de conhecer in loco para uma verdadeira análise dos problemas. Ele fala do
contato direto com a realidade que o homem de responsabilidade pública deveria possuir.
Com entusiasmo, Lobato acompanhou o cientista Arthur Neiva em uma excursão que este
realizou quando era Diretor do Serviço Sanitário Paulista (1917-1920) à Iguape (SP), onde se
desenvolvia uma campanha contra a malária e a ancilostomíase:

Penetramos na mata, alguns quilômetros fora da cidade. Vi-o apear-se e


acender a lanterna elétrica e correr a luz pelo couro do cavalo em procura das

47
Depois, os médicos responsáveis pela administração da saúde pública, elegeriam três endemias como as
principais que atacavam o “povo brasileiro”: a malária, a ancilostomíase e a doença de Chagas.
58

anofelinas que incontinenti acudiram àquele inesperado banquete. Encontrou


as anofelinas da espécie perigosa. Tinham o ninho na água depositada pelas
chuvas nas bromélias parasitas. Estava liquidado o caso. Regressamos e no
outro dia ordens precisas eram dadas para matar de vez a malária de Iguape
em seu derradeiro reduto. (LOBATO apud RIBEIRO, 1993:208).

Para Lobato isto significava:

Pela primeira vez em São Paulo um Diretor do Serviço Sanitário esquecia as


suas funções burocráticas e fazia ciência pessoalmente à moda de Oswaldo.
Este fato ilustra a ‘maneira’ de Artur Neiva. Não se limita a organizar um
serviço; vai ver, cheirar, apalpar; identifica-se com ele, apaixona-se, e com o
exemplo transmite aos seus auxiliares aquele fervoroso interesse sem o qual
todo serviço encrua em caquetismo burocrático. (1993:208).

Alguns registros da expedição destacam o total desconhecimento das populações sobre


a noção de nacionalidade. Os membros da comissão imaginavam encontrar entre os
indivíduos das localidades visitadas, uma idéia ou sentimento de nação, assim como
percebiam os homens cultos, porém, este conceito – nacionalidade – inexistia naquelas
regiões distantes:

Raro o indivíduo que sabe o que é o Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra
terra, Pernambuco outra e assim os demais estados (...) Perguntados se essas
terras (Piauí, Ceará, Pernambuco, etc.) não estão ligados entre si,
constituindo uma nação, um país, dizem que não entendem isso. (NEIVA &
PENNA, 1999:191).

Os membros da expedição científica Penna-Neiva demonstraram uma preocupação


com as condições de educação e cultura nas localidades visitadas. Condições que, segundo os
expedicionários, não existiam. O analfabetismo era endêmico. Podemos recuperar no texto a
paisagem social e cultural encontrada:

Procuramos em Cachoeira do Roberto algum jornal da Bahia ou


Pernambuco, não encontramos. Nessas paragens não se lê; vive-se
absolutamente fora do convívio do resto do mundo. (NEIVA & PENNA,
1999:188).

Uma igreja de arquitetura banal, pequeno mercado muito pobre, algumas


casas comerciais. Duas escolas públicas, mal acomodadas e pouco
frequentadas (...) (1999:191).

O arraial tem uma capela regular, mas muito pobre. Uma ou outra vez, nunca
mais de duas vezes ao ano, há missa. Há uma escola particular pouco
freqüentada. (1999:189).

Os membros da missão preocupavam-se em observar os instrumentos de trabalho,


inclusive, fotografando-os. É expressivo o número de fotografias que registram os
instrumentos de trabalho. É também considerável a quantidade de imagens em que as pessoas
59

foram documentadas em seus próprios locais de trabalho. Porém, o diário apenas assinalou em
pequenas passagens, comentários sobre as relações de trabalho encontradas:

(...) rapazes pobres de 12 a 16 anos são atraídos por fazendeiros, barraquistas


ou tropeiros, com promessas falazes e contratados com consentimento dos
pais. Decorrido algum tempo é apresentada a nota da dívida do infeliz, que
não pode ser saldada. Aparece, então, um abnegado que se prontifica a pagar
a dívida do rapaz, mediante a sua escravização ao generoso pagador.
(NEIVA-PENNA, 1999:199).

Em alguns momentos do texto, os autores do diário da viagem concluíam que os


indivíduos eram vítimas da miséria. Mas, no entanto, o relato fazia uma ressalva, afirmando a
potencialidade positiva da raça encontrada: “... E, apesar de tudo isso, uma raça resistente,
aproveitável, vigorosa e digna de melhor sorte. O tipo do vaqueiro das caatingas é um símbolo
de destreza, de agilidade de força e de resistência”. (1999:200). Anotavam suas observações
como se realizassem, em laboratório, algumas análises:

Toda a região percorrida é muito atrasada. Não há noção de conforto


relativo, nem de asseio: analfabetismo em mais de 80% da população,
pobreza e quase miséria gerais. Foi bem dolorosa nossa impressão da região
percorrida e muito penosa e desconfortável nossa excursão, pela escassez ou
ausência mesmo de recursos, pelo atraso e ignorância de seus habitantes,
embora hospitaleiros e de índole pacífica e prestimosa. É uma região que,
embora há séculos habitada, ainda se encontra impermeável ao progresso,
vivendo os seus habitantes como povos primitivos. Vivem abandonados de
toda e qualquer assistência, sem estradas, sem polícia, sem escolas, sem
cuidados médicos nem higiênicos. (1999:199).

As páginas do diário de viagem trazem comentários sobre a opinião que as populações


tinham das suas próprias condições e modos de vida. Um sertanejo, interrogado sobre o
isolamento em que vivia, demonstrando uma possível consciência respondeu enfaticamente:
“isso aqui é uma sepultura aberta!”. Os códigos lingüísticos das populações foram descritos,
demonstrando preocupação com os símbolos culturais diferentes dos expedicionários. A certa
altura do diário de viagem, os autores traduzem o discurso de um homem, quando este fala
sobre o estado de saúde de sua mulher:

Foi a seguinte a informação prestada: ‘A muíe tá zangada da mãe do corpo


(útero) pr’o via de ter lavado corpo (tomado banho) quando tava de boi
(menstruada). A coisa supitou pr’a riba (suspensão) e o mês não voltou.
Toda volta de lua a barriga fica empaixada (timpânica) e ela não deseste
(defeca). Já tomou duas purgas, uma de azeite e outra de pinhão e uma
porção de mezinhas – tá na mesma. Já me aconseiaram benzedura, porque
até parece coisa mandada (feitiço)’. (NEIVA & PENNA, 1999:211).
60

As fotografias veiculadas no relatório causariam um grande impacto e repercussão, ao


revelarem um Brasil doente e pobre que vivia à margem da civilização que as cidades do
litoral, em particular a capital da República, supunham personificar. A partir da publicação
desse documento, Penna, Kehl e os demais atores seriam os principais agentes e formuladores
das políticas públicas de saúde, principalmente depois da criação do Departamento Nacional
de Saúde Pública, no início de 1920. Portanto, são personagens fundamentais para
entendermos a época. Neste contexto político, Penna percorreu todos os tons do pensamento
autoritário. Médico, autodenominado sociólogo, ele era, fundamentalmente, um importante
ator político do período. Além de sua militância em prol do saneamento do país, foi vereador
em Juiz de Fora e militante de vários partidos, participante ativo das articulações para a
eclosão da “Revolução de 30”, Penna foi membro do governo de Vargas e chegou a participar
do Integralismo. Ficou célebre a sua carta aberta a Prestes, quando esse líder rompeu com a
Aliança Liberal. No seu Manifesto de Maio (1930), o comandante da Coluna Prestes
condenava a “revolução das oligarquias”, propondo um programa de reforma agrária e
antiimperialista. Em sua carta, publicada em vários jornais, Penna demonstrava a sua
concepção política através de uma visão organicista da sociedade: “Entregar o governo do
País a soldados, marinheiros e proletários ignorantes, doentes, sem personalidade e sem rumo
na vida é querer transformar o ventre em cérebro, os órgãos vegetativos em psíquicos”.48
Nesse momento crítico, um conjunto de intelectuais engajou-se na atividade política,
buscando a construção de uma identidade nacional distante da “politicalha” e da
“politicagem”.49 A participação desses intelectuais inseriu-se no período compreendido entre
os anos 20 e a instauração do Estado Novo, em 1937. Esse quadro favoreceu o surgimento de
projetos políticos radicais e a polarização se revelou por intermédio da configuração de
movimentos como a Ação Integralista Brasileira (AIB).

48
PENNA, Belisário. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 05 jun. 1930. Carta aberta de Penna a Luiz Carlos
Prestes. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
49
Penna utilizava em seus textos as palavras “Politicalha” e “Politicagem” para criticar os “desmandos” da
República Velha. Embora sua produção intelectual concentre-se entre 1916 e 1932, o relatório de 1903, como
representante do comércio de Juiz de Fora (ele foi vereador nesta cidade), no Congresso Industrial, Comercial e
Agrícola de Belo Horizonte, do qual foi o relator da Comissão de Comércio, já enunciava a crítica que repetiria
por toda a vida: “... esse povo, curvado e abatido sob o peso das múltiplas contribuições lançadas pela União,
pelo Estado e pelas municipalidades, estas em sua grande maioria inteiramente alheias aos interesses gerais,
inscientes de sua missão econômico-administrativa, e entregues à mais desbragada politicagem, que mais que
todas as crises econômicas, tem prejudicado nosso país, depreciando e aviltando o caráter do seu povo.”
PENNA, Belisário. Relatório apresentado ao Congresso Agrícola, Industrial e Comercial. Belo Horizonte, 1903.
Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
61

Penna, Khel e Lobato foram colaboradores intensos dos jornais. Publicaram centenas
de textos. Cabe destacar que a produção de Lobato foi menor, mas, no entanto, foi muito
original. E, embora a quantidade de artigos e livros de Penna e Khel seja alta, em muitas
oportunidades os trabalhos desses dois constituem-se de variações sobre os mesmos temas.
Como desenvolvimento da campanha pelo “Saneamento do Brasil”, Penna escreveria no
jornal Correio da Manhã uma série de 13 artigos que, em 1918, seriam publicados em livro.
Ele tornara-se um crítico das idéias ufanistas que exacerbavam as supostas qualidades
positivas do sertanejo, da riqueza do solo e do próprio país, uma visão que se opunha ao
Brasil real que ele conhecera. Ao perceber o relatório da missão científica como o documento
que comprovava a verdadeira identidade nacional, Penna pensava, assim, corroborar a frase
de Miguel Pereira sobre o país: “(...) o Brasil é ainda um imenso hospital”.

Não esmoreça o eminente professor na patriótica campanha iniciada e conte


com a colaboração de todos aqueles que não se deixam mais iludir pelas
fantasias e devaneios mentirosos de romancistas e poetas, descrevendo os
nossos sertões como pedaços de terra da promissão, onde reinam a fartura, a
saúde e a alegria, quando ao contrário são eles em geral, a sede da miséria,
da doença, da tristeza e do aniquilamento físico e moral do homem (...)
vegeta o sertanejo na miséria, idiotado pela moléstia de Chagas, ou
cachetizado pela malária ou pela ancilostomíase, inteiramente abandonado à
sua trágica sorte, sem assistência de espécie alguma. (PENNA, 1918:08).

O determinismo biológico e o racismo científico que fundamentavam as teorias raciais


sobre a miscigenação consideravam que a incapacidade social dos brasileiros explicava-se por
fatores hereditários de natureza biológica, pela influência do clima e da geografia50. De
maneira diferente, os intelectuais influenciados pelo movimento sanitarista, definiriam o
caboclo como incapaz e inferior, porém “vítima indefesa da doença, da ignorância, da
deficiência ou vício de alimentação”. Se educado, alimentado e curado das doenças, a
produção de seu trabalho seria como a de qualquer trabalhador europeu. Segundo esse ponto
de vista, era um equívoco atribuir exclusividade negativa às razões da degenerescência racial.
E os intelectuais desse grupo, sempre enalteceriam a observação empírica, fonte da verdade
irrefutável porque possível de ser documentada. Nesse trecho, Penna demonstra estreita
ligação com as idéias de Alberto Torres:

(...) foi depois da verificação pessoal, demorada e conscienciosa dessas


calamidades universais no nosso território, que no meu espírito, sucumbido
ao peso desse cataclisma nacional, arraigou-se a convicção, a certeza de que

50
Como reconhecia e afirmava Gobineau: “Es imposible no tener algo en cuenta la influencia reconocida por
muchos sabios a los climas, a la natureza del suelo, a la disposición topográfica, sobre el desarrollo de los
pueblos...” (GOBINEAU, 1937: 57).
62

é à miséria e à doença, multíplice, generalizada e incontida, mais do que à


ignorância, que devemos todos os defeitos que se nos apontam, de
indolência, de desânimo, de indiferença e de fatalismo, arrastando-nos todos
eles, à ausência de organização social. (...) (PENNA, 1918:31).

Diagnosticando a degeneração racial do povo brasileiro, intelectuais sanitaristas e


alguns eugenistas não a associavam a uma herança genética e hereditária, mas a um produto
de causas que prejudicavam as potencialidades do povo brasileiro. Nesse sentido, a nação
poderia salvar-se por meio de um plano de saúde, eugenia e educação.

Além do otimismo exagerado e inconsciente, a doença e o analfabetismo são


as calamidades que vão destruindo as forças vivas da nação e arrastando-a
para a insolvência, e quiçá para a queda da sua soberania. A prova está feita,
o alarma está dado (...) (PENNA, 1918:24).

Não só o habitat influi, poderosamente, no tocante à vitalidade humana,


como também as condições de higiene e de alimentação. Protegida a saúde,
implicitamente tem os indivíduos a possibilidade de viver muito mais do que
outros, em situação contrária. (KEHL, 1929: 27).

(...) aos que dizem: a mestiçagem é um mal (...) costumo responder: a


mestiçagem só é um mal quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem
eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família.
(ROQUETTE-PINTO, 1982: 23).

Para este grupo, especialmente, Lobato, Penna e Kehl, os políticos brasileiros viviam
do suborno, da fraude e das negociatas. Segundo eles, os dirigentes políticos não tinham olhos
para ver o perigo de uma catástrofe social. A anarquia política e social vigente após a
Proclamação da República era o prenúncio de grandes tragédias sociais que podiam levar ao
“bolchevismo”. A preocupação era que o estado de irracionalidade social poderia constituir-se
em ameaça à integração física da nação. O país poderia sofrer uma revolta, um perigo que não
era percebido pelos intelectuais iludidos. Em carta a Afonso Penna Junior, após lamentar as
interferências políticas em sua gestão à frente do Departamento de Saneamento e Profilaxia
Rural, Penna manifestaria essa opinião, atribuindo parte da responsabilidade sobre a ausência
de qualquer ato concreto contra o precário estado de saúde da população à inadequação das
idéias liberais à República brasileira. Nesta correspondência ele comunicava suas intenções e
motivos para pedir demissão do cargo de diretor do departamento. Penna afirmava que o
Departamento Nacional de Saúde Pública e o próprio Instituto Oswaldo Cruz eram “duas
repartições de confusões, de desordem; dois ninhos de intrigas, de picuinhas, de competições
pessoais, onde não há trabalho regular, nem disciplina, nem respeito, nem justiça”. Ele diz que
havia feito tudo para impedir “que essa anarquia atingisse os serviços de minha diretoria”, e
concluía:
63

Nem por isso mudarei o meu feitio moral. Nem arrefecerá o meu amor a esta
terra. Continuarei na luta, sem dar quartel aos hipócritas e velhacos que
teimam em desagregar o bloco brasileiro e transformá-lo em várias
patriazinhas insignificantes. Para lá caminhamos a passos largos numa
carreira vertiginosa de estreito e mesquinho regionalismo, de colossais
negociatas. E completa cegueira dos grandes problemas nacionais – o de
saúde e da educação. Estou até estimando o que vai passando contra a minha
pessoa, porque, liberto das peias de um cargo público de confiança, terei
outro desembaraço para intensificar a campanha pelo saneamento moral,
complemento indispensável da já feita em prol do saneamento físico. O
Brasil está urgentemente necessitado de um Mussolini. Vou tentar a
empresa. [grifo nosso].51

No momento, nosso intuito não é construir biografias desses intelectuais, mas seria
interessante, em estudo futuro, examinar as críticas que, assim como os demais atores (Carlos
Chagas e Kehl), Penna sofreu quando estava à frente de cargos políticos e administrativos.
Um dos mais severos críticos dos sanitaristas, o escritor Lima Barreto, em crônicas publicadas
nos jornais e revistas cariocas, disparava comentários corrosivos contra Penna e o cientista
Carlos Chagas. Em texto intitulado “A superstição do Doutor” ele falou que “Sob o pretexto
de saneamento do interior, um jovem sábio, o senhor Belisário Penna, anda fazendo
propaganda da criação de um Ministério da Saúde Publica. Este moço é um caso típico de
presunção doutoral...”. (BARRETO, 2004:350). No fundo documental de Penna, na série
“Recortes de Jornais”, encontram-se inúmeras menções às nomeações políticas para
correligionários e parentes que Penna fazia. Vários médicos do movimento sanitarista, durante
a década de 1920 e após 1930, ocuparam postos importantes na administração pública.
Belisário Penna, por exemplo, desempenhava funções nos serviços de saúde pública desde as
campanhas sanitárias do início do século passado e, após a Revolução de 30, seria nomeado
diretor do Departamento Nacional de Saúde e ministro interino, em duas ocasiões, da pasta da
Educação e Saúde Pública. As possibilidades de acesso aos cargos públicos importantes
continuavam a depender das estratégias dos grupos políticos e/ou familiares conforme o grau
de proximidade aos grupos dominantes. No mesmo período, na passagem dos anos 20 para os
anos 30, Lobato era adido comercial nos EUA. Em algumas cartas trocadas nesta época, Kehl
e Penna “sugerem” a Lobato a possibilidade de uma oportunidade de trabalho naquele país,
graças às boas relações que o escritor estava fazendo em Nova York. Curiosamente, Kehl na
metade da década de 1920, abandonou o DNSP para ingressar na companhia BAYER de
remédios. Inclusive, foi por meio de um convite feito pela empresa de produtos farmacêuticos
que Renato Khel viajou a Europa por seis meses em 1928. Portanto, os três personagens,
Lobato, Penna e Kehl, mantiveram relações pessoais e profissionais com empresas de
51
Carta de Penna a Afonso Penna Junior, 16/11/1922. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
64

produtos médicos e farmacêuticos: a companhia produtora do Bio-tônico Fontoura, a Bayer, a


Merck e a Dault, Oliveira & Companhia. Podemos supor, que era vantajoso financeiramente
tentar salvar o país.

O projeto de sociedade ideal estava baseado em princípios racionais e científicos. À


crença no poder transformador da ciência, somava-se a visão do Estado como órgão capaz de
realizar as reformas e, além disso, esse trabalho deveria ser conduzido por uma elite técnica.
Afinal, eram os cientistas, os técnicos que se empenham no estudo das causas perturbadoras
da harmonia dos homens, aconselhando as ações que lhes parecessem aplicáveis para o
aperfeiçoamento do indivíduo e da sociedade. Assim, o projeto médico e educativo baseava-
se numa reorganização realista da sociedade, semelhante ao que outros intelectuais
propugnavam52.

O problema do saneamento geral do Brasil e da sua população é mais do que


higiênico e médico, mais do que regional, mais do que social e humanitário;
ele é o magno problema nacional, e só começará a ter execução no dia em
que a nação compreender a necessidade inadiável de sair da desorganização
e da desmoralização política, em que se deixou afundar, e estabelecer as
bases de uma verdadeira Organização Nacional, dentro ou fora do sistema
republicano, baseado nas suas tradições, nas suas tendências e nas suas
principais e por enquanto únicas e seguras fontes econômicas – a terra e o
homem do país. (...) (PENNA, 1918:65).

O projeto político e médico visava uma integração nacional e o fortalecimento do


Estado, que geraria uma nova identidade nacional. A construção da identidade representava a
realização da nação pelo reconhecimento das características distintas e próprias da sociedade
brasileira53. A idéia da participação nacional na civilização moderna pressupunha o
desenvolvimento da identidade. Para tanto, tornava-se imprescindível integrar a nação, a fim
de harmonizar os conflitos sociais. A análise política que os intelectuais autoritários faziam da

52
“Para estes intelectuais havia uma única palavra de ordem: dar um fim ao hiato que a República criara entre o
‘país político’ e o ‘país real’ e assim propor, instituições que correspondessem à ‘realidade nacional”.
(PÉCAULT, 1990:42).
53
Com a entrada de Penna no integralismo, o reconhecimento de características próprias da sociedade brasileira
seria ressaltado: “Do exposto posso responder que sou integralista, porque já o era desde mais de vinte anos;
porque creio em Deus e pratico a moral cristã; porque não sou um instintivo e quero o primado do espírito sobre
a matéria; porque não sou regionalista e amo com igual afeto os patrícios de todas as regiões do nosso Brasil, que
quero unido, integrados numa só aspiração, num só sentimento; porque amo a família, célula mater da sociedade,
que, sem ela, não passa de um rebanho de animais, como ora acontece na Rússia; porque, finalmente, tenho
plena e absoluta confiança em Plínio Salgado, o criador e o Chefe Nacional do Integralismo, predestinado por
Deus para libertar o Brasil do regionalismo destruidor da Pátria, da sua escravização ao capitalismo internacional
e da calamidade da peste bolchevista”. PENNA, B. Porque sou integralista. 29/06/1937. Fundo Pessoal Belisário
Penna, COC/Fiocruz. Não há referência sobre uma possível participação de Kehl no Integralismo, embora em
várias entrevistas aos jornais ele houvesse declarado que estava à espera da ajuda dos integralistas na tarefa de
salvar a nação através da Eugenia.
65

República apontava, dentre outros aspectos, para a inadequação do regime republicano à


realidade brasileira. Diziam que era uma planta exótica, importada por pessoas que só tinham
olhos para o que vinha do estrangeiro. Para eles, o regime republicano estaria, entre nós,
fadado ao fracasso:

(...) tudo isto cópia do estrangeiro, do que nada tem conosco: a eletividade
dos juízes, o júri, o municipalismo, o federalismo, os princípios abstratos de
liberdade (...) Tínhamos o milagre da unidade e quisemos dividir-nos como
estavam os norte-americanos que batalhavam pela união, que não a tinham
como a tivemos e por imitação sacrificamos. (TORRES apud LEMOS,
1995:16).

Consideramos que uma das contribuições deste trabalho consiste na análise da


participação do movimento sanitarista54 na adoção de idéias e práticas de educação higiênica
e, ao mesmo tempo, nas interpretações sobre o Estado e a sociedade. Em outras palavras,
julgamos relevante relacionar as imagens simbólicas às políticas de saúde pública e de
educação. Assim, dedicaremos algumas linhas sobre esse personagem das letras nacionais: o
Jeca55. Realizaremos uma investigação das representações sociais e literárias sobre o país,
destacando um aspecto pouco presente na literatura acadêmica, que examina a difusão dos
textos, sem uma pesquisa rigorosa56 das condições históricas de produção do pensamento
social e político. Portanto, sem a devida articulação da identidade cultural com a criação dos
tipos sociológicos, que em vários momentos, foram retratos dessa identidade: Jeca-Tatu,
Macunaíma, Policarpo Quaresma e outros. Como outros autores já observaram, a imagem
negativa do camponês transformar-se-ia após o contato de Lobato com os membros do
movimento pela criação da consciência sanitária nacional, como Belisário Penna, Arthur
Neiva e Renato Kehl (SKIDMORE, 1976 e THIELEN & SANTOS, 1989).

2.4 A Regeneração do Jeca

Da eugenização dos mentores depende a eugenização nacional.


Impregnemos, saturemos o espírito do nosso povo de um ideal. Sacudamos
os jecas moles e apáticos. (KEHL, 1920: 107).

54
Sobre movimento sanitarista consultar LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro:
Revam, 1999; HOCHMAN, Gilberto. A Era do Saneamento. São Paulo: Hucitec, 1998.
55
Alguns trabalhos foram realizados no intuito de analisar a importante contribuição de Lobato para a nossa
história cultural. Enio Passiani (2001) apresentou dissertação de mestrado em Sociologia na qual descreve a
influência de Lobato no campo literário brasileiro.
56
Sobre a construção do personagem Jeca, ver CAMPOS (1986) e ALVES FILHO (2003).
66

Nascido como um símbolo do trabalhador rural, em artigo escrito por Monteiro Lobato
para O Estado de São Paulo, Jeca tornou-se sinônimo de homem do interior. Inclusive, por
meio de sua narrativa, uma empresa de produtos farmacêuticos, difundiu um tônico,
propagando os seus valores terapêuticos, chegando a circular em milhões de exemplares nas
páginas do folheto “Jecatatuzinho”. A presença do homem da roça em campanhas de
educação higiênica, especialmente as direcionadas ao controle das endemias rurais, ajudou a
popularizar os cuidados com a higiene individual e a saúde pública nas primeiras décadas do
século XX. Caricatura do homem do interior, o Jeca é um dos mais conhecidos personagens
de nossa cultura. De caboclo preguiçoso, parasita e indolente à vítima da doença, a trajetória
do matuto desenvolvido por Lobato está relacionada ao papel conferido às políticas públicas
de saúde e de educação no desenvolvimento econômico e social do país. Trata-se de uma forte
representação social da identidade nacional, em que se articula o retrato pobre, ignorante e
doente da sociedade, especialmente dos trabalhadores rurais, à regeneração e salvação do
povo por meio da ação do Estado. Lobato foi uma personalidade central do campo intelectual,
sendo possível perceber em sua trajetória duas atividades, escritor e empresário editorial, que
visavam a um objetivo: a ampliação do número de leitores, por meio da renovação da
linguagem literária, pela modificação na distribuição e comercialização, causando um impacto
no incipiente mercado, ao produzir livros com o farto uso de desenhos e cores (PASSIANI,
2001).

Monteiro Lobato, em 1918, publicou O Problema Vital, reunindo em livro uma série
de 14 artigos veiculados pelo jornal O Estado de S. Paulo. Os artigos evidenciam uma
mudança de perspectiva quanto à análise do “homem rural” brasileiro. Ao criar o Jeca Tatu,
um modelo do homem do interior, Lobato estava alinhado com o pensamento social
dominante na passagem do século XIX para o século XX. Esse pensamento político adotava
as teorias científicas surgidas na Europa para pensar a nacionalidade brasileira. Para tais
idéias, a raça, o clima e a localização geográfica determinavam a evolução e a hierarquia das
sociedades humanas. Nesse momento, Lobato prosseguia denunciando uma determinada
corrente de interpretação dos elementos nacionais, denominada por ele de “caboclismo”, e
atribuindo ao mestiço, espécie degenerada em sua origem e totalmente adaptada ao meio, a
responsabilidade por todos os problemas do universo rural. O Jeca era indolente, incapaz de
participação na política e na produção fabril do mundo moderno. Não possuía qualquer noção
de pátria ou de nação. Era, portanto, incapaz de evolução e de progresso.
67

Contudo, o enfoque mudaria. E o diagnóstico seria outro. Se o determinismo biológico


representava um problema grave, uma herança genética, o saneamento poderia transformar a
realidade. Assim, não é casual o fato de que o Jeca Tatu só passasse a acreditar no médico
depois de olhar, através de uma lente, os vermes penetrando no seu pé57. Monteiro Lobato,
seu criador, mostrava-se um entusiasta do discurso científico de sua época, especialmente da
microbiologia e da parasitologia. É por meio da ciência médica que o personagem literário,
adquiria sua cidadania58. A primeira aparição do Jeca data de 12/11/1914, num texto enviado
por Lobato a O Estado de S. Paulo com o título de “Velha Praga”, no qual Lobato se insurgia
contra as queimadas e descrevia o modo de vida dos caboclos de sua propriedade.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio,


semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na
penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem
chegando(...) vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão
(...) de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado
numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se. (...) O caboclo é uma
quantidade negativa. (LOBATO, 1957:271).

Neste artigo, aparecem os nomes de Manoel Peroba, Chico Marimbondo e Jeca Tatu.
Porém, segue-se um novo texto, novamente publicado no mesmo jornal, com o título de
“Urupês”, onde Lobato dá um panorama mais completo do Jeca e do seu modo de vida, em
oposição a uma literatura que exaltava o camponês brasileiro. Para Lobato, então fazendeiro
no interior paulista, a explicação para a apatia, a indolência e a incapacidade produtiva do
Jeca encontrava-se nas facilidades de sobrevivência proporcionadas pela mandioca, milho e
cana, e concluía:

Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Da terra só


quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado
pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe
colheita, nem exige celeiro. O vigor das raças humanas está na razão direta
da hostilidade ambiente. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas
lúgubres. Não dança senão o cateretê aladainhado. No meio da natureza
brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços

57
“Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era ‘positivo’ e dos tais
que ‘só vendo’. O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido atrás da casa e disse: — Tire a
botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu. ― Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho.
Assim. Agora examine a pele com esta lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que
já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado. — E não
é que é mesmo? quem ‘havera’ de dizer!... — Pois é isso sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a
Ciência disser. — Nunca mais! Daqui por diante nha Ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima!
T’esconjuro! E pinga, então nem prá remédio...”. (LOBATO, 1957:333).
58
“A Concepção de progresso de Lobato ligava-se ao espírito científico, ao emprego do microscópio e ao uso do
remédio de laboratório, prescrito pelo doutor. O Jeca emergiria de sua miséria, por meio da ciência, do remédio
científico, da casa higiênica e da botina, todos resultantes do moderno, do progresso e do espírito científico”.
(RIBEIRO, 1993:210).
68

no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro,


abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas,
cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente,
o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso
das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de
tanta vida, não vive. (LOBATO, 1957:289-292).

Em uma correspondência enviada ao seu amigo Godofredo Rangel em 20 de outubro


de 1914, portanto, poucas semanas antes da primeira carta enviada ao jornal, há mais uma
descrição indignada de Lobato sobre o caboclo. Nela, ele realiza uma síntese de suas idéias.
Apesar de longa, é esclarecedora, porque descreve o processo de criação do sombrio e apático
Jeca Tatu:

Atualmente estou em luta contra quatro piolhos desta ordem – ‘agregados’


aqui das terras. Persigo-os, quero ver se os estalo nas unhas. Meu grande
incêndio de matas deste ano a eles devo. Estudo-os. Começo a acompanhar o
piolho desde o estado de lêndea, no útero duma cabocla suja por fora e
inçada de superstições por dentro (...) Contar a obra de pilhagem e
depredação do caboclo. A caça nativa que ele destrói, as velhas árvores que
ele derruba, as extensões de matas lindas que ele reduz a carvão. Havia uma
gameleira colossal perto da choça, árvore centenária – uma pura catedral.
Pois ele derrubou-a com três dias de machado – atorou-a e dela extraiu (...)
uma gamelinha de dois palmos (...) Como aproveitou a gameleira, assim
aproveita a terra. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de
milho (...) o piolho, afugentado, vai parasitar um chão virgem mais adiante.
A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos
campos de medo dos carrapatos. E se por acaso um deles se atreve e faz uma
‘entrada’, a novidade do cenário embota-lhe a visão, e ele, por comodidade,
entra a ver o velho caboclo romântico já cristalizado – e até caipirinhas cor
de jambo (...) O meio de curar esses homens de letras é retificar-lhes a visão.
Como? Dando a cada um, uma fazenda na serra para que a administrem. Se
eu não houvesse virado fazendeiro e visto como é realmente a coisa, o mais
certo era eu estar lá na cidade a perpetuar a visão erradíssima do nosso
homem rural. O romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e
morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi mudar a ostra.
Conservaram a casca (...) Em vez de índio, caboclo. (LOBATO apud
LANDERS, 1988:43).

Alguns anos depois, Lobato lançaria uma publicação com o mesmo nome do segundo
artigo publicado no jornal paulista: o livro Urupês, reunindo contos seus anteriormente
editados, e incluindo os textos Velha Praga e Urupês, páginas militantes contra o homem
indolente e preguiçoso. No entanto, naquela conjuntura Lobato estava progressivamente
participando da campanha pelo saneamento das áreas rurais. Ele tomara contato com os
médicos Arthur Neiva, Belisário Penna e Renato Kehl, membros participantes do movimento
sanitarista. Assim, surgia um novo Jeca Tatu, o Jeca dos artigos de O Problema Vital. O
“Jecatatuzinho da Ressurreição” padecia dos mesmos males, mas após entrar em contato com
a ciência médica, sanitarista e eugênica, curava-se das moléstias que o levavam a ser
69

indolente; este Jeca tornava-se trabalhador, enriquecia e transformou-se em exemplo para os


vizinhos. Essa narrativa foi publicada com o título de “Jeca Tatu - a ressurreição”, e ficaria
conhecida como Jecatatuzinho, chegando a circular em milhões de exemplares através dos
produtos farmacêuticos Fontoura. Era um pequeno folheto que o laboratório produtor do
“vinho reconstituinte” bio-tônico Fontoura distribuía junto com o remédio. Totalmente
inspirada no Jeca, essa peça publicitária foi considerada pelas empresas de propaganda e
markerting brasileiros, o maior produto já veiculado pelo mercado, sendo impossível dizer
quantos números foram lançados. Jeca, por ter tomado muito remédio, acabou ficando forte,
empreendedor e sadio. Pronto para o mundo do trabalho. Recentemente, o produto foi alvo de
críticas, por possuir álcool em sua fórmula.

Mas, se Jeca mudava, o seu criador também mudaria. Marisa Lajolo afirmou que
“Monteiro Lobato parece ter percorrido quase todas as posições ideológicas disponíveis para
um intelectual do seu tempo”. (LAJOLO, 1983) A autora menciona uma personagem que
seria uma continuidade do Jeca Tatu: o Zé Brasil – publicado pela Editorial Vitória, em final
dos anos 40, o texto foi apreendido na época. Este Jeca era compreendido não como
preguiçoso nem como um mero doente, mas como um trabalhador explorado. “Coitado deste
Jeca. Tal qual eu. Tudo o que ele tinha eu também tenho. A mesma opilação, a mesma
maleita, a mesma miséria e até o mesmo cachorrinho” (LOBATO, apud LAJOLO, 1983). A
figura do caipira nacional aparecia pela terceira e última vez na obra de Lobato. Neste
momento, superando a intolerância patronal presente no primeiro (Velha Praga e Urupês) e a
ótica paternalista no segundo Jeca (Jecatatuzinho). Marisa Lajolo conclui:

Se o itinerário é plausível, o autor de Urupês parece ter corrigido


progressivamente os desvios de uma má consciência. Se suas primeiras
baterias se assentam com intolerância patronal frente ao camponês, se esta
intolerância é substituída pela solução paternalista para um problema de
saúde pública, o texto final – o de zé-brasil – aponta para uma análise da
infra-estrutura, isto é das condições de produção e das relações sociais por
ela instauradas no Brasil de Lobato. (LAJOLO, 1983).

Como entendermos a mudança do primeiro para o segundo Jeca? Algumas respostas


podem ser buscadas nos artigos escritos para O Estado de S. Paulo durante 1918, que foram
reunidos no volume O Problema Vital, por decisão conjunta da Sociedade Eugênica de São
Paulo e da Liga Pró-Saneamento do Brasil, graças às relações pessoais e intelectuais que o
autor mantinha com Renato Kehl e Belisário Penna – Kehl, inclusive foi o autor do prefácio.
Thielen & Santos (1989) sugerem que o ponto de inflexão dessa transformação foi o contato
de Lobato com o diário de viagem de Neiva e Penna. No artigo “Início de Ação”, publicado
70

em O Problema Vital, Lobato refere-se a essas imagens fotográficas ao falar de idéias capazes
de mudar a realidade:

A idéia do saneamento é uma. Bastou que a ciência experimental, após a


série de instantâneos cruéis que o diário de viagem de Artur Neiva e
Belisário Penna lhe pôs diante dos olhos, propalasse a opinião do
microscópio, e esta fornecesse à parasitologia elementos para definitivas
conclusões, bastou isso para que o problema brasileiro se visse, pela primeira
vez, enfocado sob um feixe de luz rutilante. E instantaneamente vimo-la
evoluir para o terreno da aplicação prática. E a idéia-força caminha
avassaladoramente.(LOBATO, 1957a:297).

Se, em Urupês e Velha Praga, Lobato atribuía preponderância às teses raciais e


climáticas para a pobreza, chegando a culpar o trabalhador por sua condição, nos artigos de
1918 refletia sobre a questão nacional do saneamento. É através de uma explicação científica
que Lobato, preocupado com a força de trabalho improdutiva, mudaria a sua concepção do
caboclo. A ineficiência do Jeca Tatu não era mais uma questão de inferioridade racial, mas
sim um problema médico e sanitário. O homem do campo é doente. Ele é pobre porque é
doente e, assim, não produz. A epígrafe do livro O Problema Vital é elucidativa: “O Jeca não
é assim, está assim”. Esta mudança de concepção passava pela crença positiva de Lobato na
ciência:

O nosso problema, verificado que foi o mau estado da população nativa, é


simples e uno: sanear. Para sanear é forçoso, preliminarmente,
convencermos o país da sua doença; e em seguida fazer dessa idéia o
programa de todos os governos, a idéia fixa de todos os particulares. Tudo
mais rola para plano secundário. Sanear é a grande questão. Não há
problema nacional que não se entrose nesse. (LOBATO, 1957a:272).

Lobato acreditava, sobretudo, no poder da ciência experimental biomédica perante as


doenças, vistas estas como o grande obstáculo ao progresso. Tratava-se de superar e modificar
a realidade com o auxílio da ciência.

Depois dos estudos de Carlos Chagas, Artur Neiva, Oswaldo Cruz, e depois
das veementíssimas palavras de Belisário Penna, governo nenhum, nenhuma
associação, nenhuma liga pode alegar ignorância. O véu foi levantado. O
microscópio falou. A fauna mentirosa dos apologistas que vêem ouro no que
é amarelo e luz na simples fosforescência pútrida, que recolha os safados
adjetivões que velaram durante tanto tempo os olhos da nação. (LOBATO,
1957a:257).

Em outro artigo, Lobato reafirmaria e consolidaria esta visão. Nesse momento, para
Lobato, o caboclo não era um homem decaído por força de uma preguiça e/ou indolência, mas
71

um indivíduo doente e, por isso, improdutivo. Clamando contra a existência de milhões de


vítimas da ancilostomíase, Lobato se compadeceu daqueles Jecas.

A inteligência do amarelado atrofia-se, e a triste criatura vira um soturno


urupê humano, incapaz de ação, incapaz de vontade, incapaz de progresso.
Retrato do nosso caboclo quem o dá perfeito, com fidelidade fotográfica, é o
médico ao desenhar o quadro clínico do ancilostomado. Tudo mais é
mentira, retórica, verso. Esses heróicos sertanejos, fortes e generosos,
evolução literária dos índios plutárquicos de Alencar; essa caipirinha arisca,
faces cor de jambo, pés lépidos de veada, carne dura de pêssego; licenças
poéticas de poetas jamais saídos das cidades grandes. (LOBATO,
1957a:234).

Ressaltando o caráter revelador da ciência, Lobato asseverava que a imagem


fotográfica é fiel à realidade por ela representada. Essa concepção acompanhou todo o
desenvolvimento da fotografia e contribuiria para o seu constante uso como documentação.
No caso analisado, em oposição à subjetividade dos discursos ufanistas, estaria a objetividade
e a neutralidade da fotografia, capaz de retratar e diagnosticar a verdadeira realidade nacional,
assim como o médico sanitarista. Ao participar da campanha pelo saneamento, é provável que
Lobato tenha progressivamente desenvolvido suas idéias a respeito de alguns temas, entre
eles, a identidade nacional e a composição física, étnica e moral do povo brasileiro. Portanto,
no presente trabalho, consideramos apenas o que os intelectuais pensaram a respeito de como
formar uma nação moderna e próspera a partir dos brasileiros pobres, doentes e analfabetos.
Estimamos que os agentes sociais pensaram as propostas de progresso do país inseridas em
um contexto social e histórico específico. Por isso, em nossa análise, recortarmos um
determinado discurso teórico e político desses autores. Como nesta polêmica carta, citada por
Skidmore (1976) e atribuída59 a Lobato:

Num desfile, à tarde (...) perspassam todas as degenerescências, todas as


formas e má-formas humanas – todas menos a normal (...) Como consertar
essa gente? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui,
na sua inconsciente vingança! Talvez a salvação venha de São Paulo e outras
zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos
salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos
também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio,
não existe. (LOBATO, apud SKIDMORE, 1976:199).

59
Segundo Skidmore “(...) essas passagens racistas da carta de Lobato de 3/2/1908 foram suprimidas na versão
da correspondência de Monteiro Lobato publicada nas Obras Completas (...)”. (SKIDMORE, 1976:307)
72

Porém, em nenhum outro texto conhecido de outro autor encontraremos uma louvação
tão explicitamente ufanista sobre a eugenia e sua capacidade de transformar a sociedade como
no romance O Presidente Negro de Monteiro Lobato.

2.5 O Presidente Negro

Em 1926, um ano antes de embarcar para os EUA, onde ficaria até 1931, como adido
comercial do Brasil, Lobato lançou o texto “O Choque das Raças” ou “O Presidente Negro”.
Um romance futurista. Uma ficção científica. A história que saiu inicialmente em folhetim,
publicada no jornal A Manhã, narra uma disputa presidencial nos EUA de 2228, culminando
com a eleição de um presidente negro. O trabalho sairia em livro no natal de 1926. É uma
obra impregnada de eugenia. Eugenia em estado puro e cristalino. Uma nota publicada no
jornal A Manhã do dia 3 de setembro de 1926, anunciava a chegada nas páginas impressas do
periódico: “É um hino à Eugenia, às leis espartanas, e é um brado d’armas em prol do
princípio mágico que está fazendo da América do Norte um mundo dentro do mundo – A
Eficiência”.

Alguns dos trechos desse romance apresentam uma síntese das idéias eugenistas. Nele,
vamos encontrar críticas à filantropia e à previdência social, comentários sobre a idéia de
regular a união sexual, a presença da educação higiênica e eugênica como maneira de
uniformizar os comportamentos humanos e o elogio da eficiência industrial capitalista norte-
americana. Narrando as maravilhas da nação americana no futuro totalmente eugenizada o
romance descreve:
(...) não parava aí a intervenção seletiva. Se um ‘pai autorizado’ pretendia
casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenométrico,
onde lhes avaliavam o índice eugênico e lhes estudavam os problemas
relativos à harmonização somática e psíquica. (LOBATO, 1961: 282).

O Choque das raças ou O Presidente Negro60 é o único romance de Monteiro Lobato.


Escrito em três semanas, inicialmente foi publicado em partes pelo jornal carioca. No ano
seguinte, Lobato seguiria para os EUA como adido comercial. Nesse texto, Lobato realiza um
romance, onde no futuro distante, os EUA enfrentariam o seu mais grave problema racial: a

60
A primeira edição em livro do romance trazia a seguinte dedicatória: “A Arthur Neiva e Coelho Netto, dois
grandes mestres no trabalho, na ciência e nas letras”.
73

eleição de um presidente negro61. O livro foi esquecido62. Talvez devido ao seu conteúdo
extremamente real e cruel. Trechos inteiros descrevem atos violentos praticados contra os
negros pelos brancos, como prova da evolução eugênica dos Estados Unidos da América no
futuro. Porém, passados 80 anos, o que permanece atual é a crítica eugênica aos pesos mortos.
Segundo a ficção lobatiana a eficiência resolveria todos os problemas do povo americano. O
que a eficiência americana não resolvesse, a eugenia solucionaria. Para o famoso escritor
nacional de livros infantis, esses dois princípios salvariam a humanidade. Mas, quem eram os
pesos mortos? O vadio, o doente e o pobre. A eficiência e o ideal de produtividade
organizariam o trabalho e a eugenia criaria o trabalhador e cidadão produtivo. Em vez de
castigar os parasitas improdutivos e combatê-los com punição, remédio e esmola, vigoraria na
cidade eugenista, eficiente e futurista de Lobato aquela mesma crença alardeada por Kehl e
Penna numa sociedade governada por médicos. Assim, a solução estaria na eugenia, higiene e
eficiência, com vistas a eliminar as cargas inúteis que sobrecarregavam a sociedade científica
e capitalista.
Uma outra menção importante: em O Presidente Negro, há todo o receituário
eugenista. A preocupação não estava somente na raça ou na cor da pele. Era necessário
controlar o casamento dos mais aptos e evitar a procriação dos inaptos. Nos casos necessários,
utilizar a esterilização. Durante o período em que Lobato permaneceu nos EUA como adido
comercial, ele enviou inúmeras cartas aos seus amigos. Nessas missivas, ele manifestava todo
o seu poder crítico com comentários ácidos sobre o Brasil. Ao que parece, autorizado pela
intimidade da correspondência e distância física dos países, ele disparava contra tudo e não
poupava ninguém. Tanto ou mais que em seu romance O Presidente Negro, ele demonstrou,
íntima e privadamente, sua admiração pela eugenia. Encontramos na correspondência enviada
por Lobato para Renato Kehl e Arthur Neiva toda a sua carga de preconceitos. Trata-se de
uma concepção de construção de nação/sociedade civilizada, saudável, bastante autoritária
sob todos os pontos de vista:

Não creio, meu caro Renato, que possas editar teu livro aqui. Não pode
haver país onde a eugenia esteja mais proclamada, estudada, praticada,
‘livrada’ do que este. O número de estudos especializados que sobre tal
assunto aparecem é enorme e manuais como o teu circulam, aos centos e
estão em todas as escolas. A idéia está tão adiantada que já começam a
aparecer ‘filhos eugênicos’. Uma senhora de alta sociedade meses atrás
ocupou durante vários dias a front page dos jornais mexeriqueiros graças à
audácia com que, rompendo contra todos os preconceitos, resolveu ter um

61
Sobre este romance na obra de Lobato, ver HABIB (2003).
62
Recentemente, o romance foi reeditado.
74

filho eugênico segundo todos os preceitos da ciência e sem se ligar


legalmente a nenhum homem. Escolheu um admirável tipo de macho, fê-lo
estudar sob todos os aspectos e achando fit para o fim que tinha em vista fez-
se fecundar por ele. Disso resultou uma menina que está sendo criada numa
farm especialmente adaptada para nursery eugênica e lá vai ela conduzindo a
sua experiência de ouvidos fechados a todas as censuras (...) Seu exemplo já
foi imitado e dentro de alguns anos a ciência terá alguns fatos novos a
estudar.63

É possível supor que essas páginas preconceituosas demonstram que Lobato, Penna e
Kehl estavam produzindo e veiculando idéias que, naquele momento, eram a expressão de um
certo racismo à brasileira, que reproduzia a hierarquia social. Inegavelmente, Lobato realizou
um mea culpa em sua opinião sobre o indolente e apático homem tatu e sua incapacidade. No
texto “Uma Explicação Desnecessária”, publicada na quarta edição do livro Urupês, em 1919,
Lobato assumia uma cristalina revisão ao implorar perdão ao pobre e doente Jeca64. Mas, para
sempre, publicamente ou no âmbito privado, manteria um olhar desconfiado para aqueles, que
ele, como os demais intelectuais eugenistas, chamaria de “brasileiros ineficientes”.

Cumpre-me, todavia, implorar perdão ao pobre Jeca. Eu ignorava que era


assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Estás provado que
tem no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa
bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso?
Claro que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão
que outrora só via em ti mamparra e ruindade. Perdoa-me, pois, pobre
opilado (...). (LOBATO, apud LEITE, 1996:82).

As idéias sanitaristas que pretendiam organizar a sociedade eram um conjunto


desconexo de abordagens. Boa parte delas originadas numa espetacular veiculação das
conquistas científicas. As interpretações doutrinárias do darwinismo social65 tiveram no
Brasil, de forma bastante ampla, uma aplicação relacionada ao contexto histórico, dando-lhes
novos significados. Assim, o cientificismo ordenava as diferenças e explicava a inferioridade
inata ou não das populações mestiça e negra (REIS, 2000). Indubitavelmente, Kehl, Penna e
Lobato procuravam subsídios nas correntes científicas dominantes para fundamentar suas

63
A Eugenia na América. Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl, Nova Iorque, 8/7/1929. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
64
Em carta de Lobato para Vianna em 15/04/1928, quando o escritor estava nos EUA como adido comercial do
Brasil, ele demonstra a ligação recorrente e explicativa que os intelectuais teriam com a noção de raça, ainda que
em alguns momentos este conceito seja trabalhado e modificado: “O que vim buscar neste país, sabes o que foi?
Um desânimo infinito-a certeza do que eu suspeitava, que a raça é tudo e que não temos raça...”. Lobato
terminou a correspondência num tom de lamento: “(...) Gobineau, Gobineau (...)”. Fundo Pessoal Oliveira
Vianna, Casa de Oliveira Vianna.
65
Sobre a aplicação das idéias de Darwin nas sociedades humanas e, especialmente, sua difusão no Brasil,
consultar REIS, 1994, op. cit.
75

conclusões sobre os problemas nacionais66. O cientificismo (ou divulgação e vulgarização da


ciência) se traduzia na priorização e hipertrofia da ciência, supervalorização do pensamento
científico e a supremacia da pesquisa empírica sobre a especulação filosófica. Esse conjunto
de idéias a respeito de ciência no Brasil não constituía um corpo homogêneo.

A doutrina do darwinismo social era uma corrente de pensamento que esteve em voga
entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. Seus adeptos pregavam ser
possível transplantar a regra da sobrevivência dos mais aptos, com que Darwin explicou a
competição pela vida entre os animais, para analisar a sociedade humana. Entre os pensadores
europeus do século XIX que terão larga penetração no Brasil na virada do século –
influenciados pelos darwinistas sociais e também adeptos de um determinismo biológico
fortemente condenatório da miscigenação racial – podem-se destacar Agassiz e Gobineau,
autores que inclusive estiveram no Brasil. Segundo Reis (2000), a doutrina do darwinismo
social teve no Brasil, de forma geral, um uso inusitado, relacionado ao contexto nacional que
lhe sugeria novos significados, servindo para justificar as hierarquias e diferenças sociais
existentes, apontando para a inferioridade natural de largos setores da população, sem
impedir, entretanto, que se pusesse em pauta o tema da viabilidade dessa nação mestiça.67

Portanto, a principal preocupação dos intelectuais era com a questão racial e com a
intensa miscigenação. Por quê? Segundo as idéias cientificistas e naturalistas na Europa e no
Brasil, a forte miscigenação étnica acontecida no país conduzia para uma degeneração racial
que inviabilizaria uma “caminhada para o topo da civilização”. Assim, a miscigenação
representava um obstáculo para a construção da nação e desenvolvimento do país. Embora a
vertente pessimista da hibridação racial seja expressiva no Brasil, sua recepção no país,
segundo Reis (1994), caracterizou-se por uma apropriação em muitos casos original e
seletiva. Introduzida de forma a justificar um certo modelo de identidade nacional e de
hierarquia social, era freqüentemente adaptada.

Esta interpretação vinha colocando os intelectuais nacionais num impasse:


como dar conta da possibilidade de se estabelecer uma autêntica
nacionalidade no Brasil, se continuava se adotando teorias cuja ‘aceitação’
levavam ao próprio descrédito e à confirmação da inviabilidade futura dessa
nação? (REIS, 2000:137).

66
“Em vez de absorção passiva ou mera repetição, o que implicaria negar ao Brasil chances de futuro, ocorreu
um esforço de apropriação, um trabalho de interpretação, reelaboração e mesmo de luta com princípios que nos
eram francamente desfavoráveis”.(LUCA, 1999:157).
67
Reis (2000) trabalhou a presença e o uso social das idéias cientificistas no Brasil. Trata-se de um trabalho
sobre o discurso eugênico na Educação.
76

Como os intelectuais do campo eugênico nacional resolveram estas questões? Como


solucionaram o impasse? Adotando perspectivas que modificaram os modelos deterministas
do racismo científico, que condenavam o futuro da nação brasileira, sob o argumento de
possuir um cruzamento biologicamente incapaz do negro, branco e índio. A partir daí, um
conjunto de discursos apontaria o abandono da saúde e da educação como o fator principal
dessa degenerescência racial e social. Haveria uma chance para o impasse, para a tragédia
nacional, pois solucionados os problemas advindos da ausência de uma educação higiênica
estaríamos a um passo da consolidação do projeto de uma nação moderna e industrial.
Monteiro Lobato e seu Jeca recuperado pela ciência são as referências mais visíveis dessa
mudança de concepção. Influenciado pelo contato com os membros do movimento sanitarista
e pela leitura do relatório, Lobato transformou seu personagem indolente. Este, depois de
tratado pelo médico, tornar-se-ia trabalhador produtivo, feliz e saudável. A raça estava doente.
Para Kehl, a Eugenia era o remédio (completo e total) da raça.

A Eugenia é, como dizem, os alemães, a Higiene da Raça. Enquanto a


Higiene e a Medicina Social cuidam do Individuo isolado ou conjuntamente,
isto é, no propósito de melhorar suas condições próprias e coletivas, a
Eugenia, agindo por antecipação, poder-se-á, talvez, dizer se esforça para
que ele venha fazer parte da família humana como elemento equilibrado e
útil. (KEHL, 1929: 51).

Desse modo, para afastar qualquer risco de incertezas no processo de branqueamento


da nação, foi necessário que os intelectuais se apropriassem do conhecimento científico em
voga no mercado das idéias, que era a eugenia. A adoção das regras e conceitos do eugenismo
assumia uma confortável razão universal e científica para o inevitável branqueamento dos
corpos e mentes. Depois da ação, em conjunto, efetuada pelo trio Saneamento, Educação e
Eugenia (esterilização) seria impossível não haver as mudanças necessárias. Seduzidos pela
idéia de um conhecimento científico que anunciava medidas decisivas para resolver o
problema da mestiçagem racial no Brasil, condição de possibilidade de construção da nação,
os intelectuais brasileiros, sobretudo os médicos vão aderir à causa eugênica. Dessa forma,
para o pensamento eugenista caberia aos homens ilustrados transformar os processos de
seleção e aperfeiçoamento racial, que funcionavam naturalmente, em um instrumento
racional, biológico e social de construção da raça saudável e de uma nação hígida fisica e
mentalmente. Como definiu Renato Kehl, citando Francis Galton: “O que a natureza realiza às
77

cegas e impiedosamente, deve o homem fazer precavida, rápida e suavemente”.68 Mas, então,
o que fazer com os nossos pobres caipiras?

A nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. É


boa por índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positivamente um homem
como o italiano, o português, o espanhol. Mas é um homem em estado
latente. Possue dentro de si grande riqueza de forças. Mas força em estado de
possibilidade. E é assim porque está amarrado pela ignorância e falta de
assistência às terríveis endemias que lhe depauperam o sangue, catequizam o
corpo e atrofiam o espírito. O caipira não “é” assim. “Está” assim. Curado,
recuperará o lugar a que faz jus no concerto etnológico. (LOBATO, 1957:
285).

Mas, era necessário, primeiro, convencer as elites, depois, o povo. Uma das críticas de
Lobato em O Problema Vital dirigia-se às classes dirigentes da sociedade que, segundo ele,
parasitavam o organismo social, assim como as doenças tropicais prejudicavam os corpos dos
habitantes dos “sertões”. Um desses parasitas seriam os proprietários rurais, incapazes de
cuidar da saúde dos trabalhadores69.

Quem ausculta o sentir íntimo dum brasileiro, seja um puritano ou um


velhaco, ouve sempre os mesmos conceitos: não há salvação – estamos
condenados ao desaparecimento – apodrecemos antes de amadurecer – o
caráter está em crise – governar é roubar, e fazem eles muito bem – tolo é
quem não aproveita – honestidade é sinônimo de ingenuidade – se vamos à
garra mais dia menos dia, viva o presente! – grande tolice pensar no futuro –
depois de mim venha o dilúvio – gozemo-nos do que há enquanto isto é
nosso – o desmembramento está aí, toca a aproveitar, etc. A súmula desses
conceitos converge nesta idéia sintética: falimos como povo, como raça – e
falimos moral, intelectual e fisicamente. (LOBATO, 1957:259).

Mas, segundo Lobato, eram também responsáveis pela miséria e doenças no Brasil, os
bacharéis, intelectuais e políticos distantes da análise realista e da necessária ação política
para superar o estado social e econômico deficitário. Lobato deixava bastante evidentes as
razões para a sua mudança de ênfase, realizando a análise crítica que para sempre faria da
sociedade brasileira:

Disto se conclui que a República dos Estados Unidos do Brasil é um


gigantesco hospital que em vez de lidado por enfermeiros é dirigido por
bacharéis. E conclui-se ainda que é tempo dos sofistas de profissão cederem

68
GALTON apud KEHL, In: Boletim de Eugenia, Ano III, n.30, junho de 1931. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
69
Esta visão organicista das sociedades humanas era muito comum naquela conjuntura. Penna a utilizava
costumeiramente para explicitar seu pensamento e seus projetos: “A sociedade é um organismo, como o do
homem, que exige energia de trabalho dos seus aparelhos e constante vigilância dos seus órgãos para funcionar
com regularidade e proveito”. Trecho da Conferência realizada na Associação Brasileira de Educação, “A
Educação Rural. O Problema Brasileiro e sua enorme importância social e econômica”. Junho de 1931. Fundo
Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
78

o passo aos cientistas de verdade.[grifo nosso] É ridículo, e mais que


ridículo, fatal permanecer uma enfermaria desta ordem coalhada de legistas
discutindo chicanas à beira de milhões de entrevados. O bacharel do Brasil
faliu. (LOBATO, 1957:243).

Lobato, em O Problema Vital, comentaria os artigos escritos por Belisário Penna para
o jornal O Correio da Manhã, entre os meses de novembro de 1916 e janeiro de 1917,
reunidos no livro “O Saneamento do Brasil”. Depois desta obra, Penna produziria centenas de
textos. Entre 1916 e 1939, Penna escreveu livros, conferências e artigos de jornal. Nessa
publicação, Penna afirmava que os grandes males do Brasil eram a ignorância e a falta de
saúde do povo. Para o seu autor, a miséria nacional devia-se à mais completa ausência de
educação higiênica entre as populações urbanas e rurais carentes de ensinamentos e hábitos
higiênicos. O livro divide-se em duas partes. Na primeira, encontramos os artigos publicados
na imprensa; na segunda parte, Penna expunha a etiologia, o tratamento e os métodos de
profilaxia das principais endemias rurais (malária, doença de Chagas e ancilostomíase),
propondo o esboço de um plano de saneamento rural. Sua publicação tornou-se possível,
graças à inclusão nas páginas finais do volume de anúncios de publicidade das poucas e
iniciantes empresas de produtos médico-farmacêuticos. A renda advinda da comercialização
destinava-se a fornecer fundos à Liga Pró-Saneamento do Brasil, da qual Penna fora fundador.

No livro, Penna analisou a insalubridade rural e urbana, os problemas de alimentação e


higiene, bem como as endemias que assolavam a população brasileira. Concluía que somente
a implantação de uma consciência sanitária nacional levaria ao saneamento e ao bem-estar
social. Sempre afirmando que não eram o clima e nem a raça os fatores principais e
determinantes das doenças e miséria.

O nosso atraso e desorganização são atribuídos à indolência e à malandrice


do povo brasileiro, por motivo do clima e da raça. É falso, falsíssimo esse
conceito, desmentido pelo nosso passado de labor profícuo, de atividade
constante, de feitos brilhantes, de organização regular, e de administração
honesta, quando entregue a mãos capazes. (PENNA, 1918:97).

Mas, Belisário Penna não deixava claro qual seria o modelo do progresso. Em alguns
momentos, defendia reformas nas estruturas de produção agrícola. Mas, não definiu quais
seriam estas mudanças. Tampouco explicitou um planejamento para a indústria. Suas críticas
direcionavam-se a uma generalizante política nacional. O certo é sua atenção com a
constituição do novo trabalhador, que pressupunha o aprendizado de habilidades e
comportamentos adequados ao novo mundo do trabalho. A inclusão do trabalhador no mundo
da produção industrial exigia sua transformação em cidadão produtivo, e que as razões da
79

apatia, indolência e incapacidade para o trabalho deixassem de ser atribuídas a ele próprio.
Em vez de fator determinante e invariável, a constituição física e moral do homem passou a
ser entendida como algo a ser moldado. Tudo era adaptável, passível de organização, a partir
de critérios e pressupostos ancorados na dominação técnico-científica70. Concepções bem
próximas daquelas defendidas por Renato Kehl, ao afirmar, por exemplo, que:

No nosso país, onde campeiam, quase sem peias, doenças endêmicas e


epidêmicas, o índice mórbido é, infelizmente, formidável. Nestas más
condições não é de esperar o seu progresso de acordo com as possibilidades
e riquezas desta prendada terra da promissão. A política salvadora será, pois,
aquela que conduzir o povo à regeneração física, intelectual e moral, isto é,
será a política sanitária, e o combate ao analfabetismo, completado pela
política eugênica”. (KEHL, 1929:12)71.

Os intelectuais sanitaristas e eugenistas clamavam por uma política72 salvadora,


resultado da observação da realidade, indicadora de uma solução, totalmente imune às
determinações da política comprometida com interesses privados: a politicalha ou
politicagem, como eles a definiam. A ciência deveria significar o estudo da realidade; e a
política, por sua vez, tornava-se a aplicação deste conhecimento à resolução dos graves
problemas sociais. Para esses agentes sociais, o conhecimento da realidade nacional levaria
diretamente à construção do modelo político apropriado. Desde que adotado o modelo
adequado, eliminar-se-iam os conflitos sociais, resultado da inadequação das instituições
políticas republicanas. O modelo político realista proposto deveria ser apresentado como
resposta à dicotomia entre país real e país legal. Como os intelectuais pensavam a realidade
através de uma visão organicista e, sobretudo, colocavam a organização da nação (o corpo
nacional) a cargo do Estado, esse órgão central seria necessário para realizar as urgentes
tarefas nacionais, cuja concretização não estaria ao alcance de nenhum outro. Ganhavam

70
Sobre a articulação entre saber científico, mundo do trabalho e educação, ver o texto de Antonieta Antonacci,
onde ela desvenda o surgimento das organizações que pretendiam redefinir o mundo do trabalho sob um
planejamento científico (ANTONACCI, 1993). Ver também, da mesma autora, “Institucionalizar Ciências e
Tecnologia em Torno da Fundação do IDORT” (São Paulo, 1918/1931) In: Revista Brasileira de História, no 14,
São Paulo: Marco Zero, 1987.
71
Trecho igual foi encontrado em artigo intitulado “O HOMEM PURO-SANGUE. A possibilidade da sua
criação” com data de 13/04/1923: “No nosso país, onde campeiam livremente doenças endêmicas e epidêmicas,
o índice mórbido é, infelizmente, formidável; nestas condições, não é de esperar o seu progresso de acordo com
as possibilidades e riquezas desta prendada terra de Promissão. A política salvadora será aquela que conduzir o
seu povo à regeneração física, intelectual, moral, isto é, será a política sanitária, nela compreendida a do combate
ao analfabetismo, seguida aos depois da política eugênica”. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
72
“Está exuberantemente demonstrado que a nossa Constituição é uma lei teórica. Não é verdadeira
nacionalidade um país que não tem a sua política, e não há verdadeira política que não resulte do estudo racional
dos dados concretos da terra e da sociedade, observados e verificados pela experiência”. (TORRES, 1978: 151).
Vários dos textos dos intelectuais médicos demonstram proximidade com as idéias de Alberto Torres. Vianna e
Penna, inclusive, participaram da “Sociedade dos Amigos de Alberto Torres”, uma importante organização
política fundada após a morte do escritor fluminense.
80

força, naquele momento, as ideologias de tendência antiliberal, postulantes de sistemas de


governo próprios para o fortalecimento do poder do Estado. Naquela conjuntura, tais idéias
propunham o crescimento do poder estatal.

Vivemos fora da realidade, no mundo dos sonhos e da utopia, o que levou o


eminente sociólogo patrício O. Viana a dizer profunda verdade seguinte: ‘Há
duas espécies de idealismo: o idealismo ‘utópico’ que não leva em conta os
dados da experiência, e o idealismo ‘orgânico’, que se forma da realidade,
que só se apoia na experiência, que só se orienta pela observação do povo e
do meio.’ Este nunca o praticamos, aquele tem sido o nosso grande pecado
de 100 anos e a razão única de não termos conseguido ainda, no longo
espaço de um século de independência, realizar a definitiva organização
social e política do nosso povo. (PENNA, 1922).

Nesse contexto político-ideológico, as instituições políticas da Primeira República


foram analisadas pelos intelectuais sanitaristas e eugenistas como efeitos de um modo
equivocado da percepção da realidade. Assim como o modelo de conhecimento deveria ser
criticado, também a política era alvo de intensa polêmica. O governo republicano era
responsabilizado pelas mazelas que assolavam o país: a politicalha e politicagem. “(...) é
essencialmente orgânico o nosso idealismo de saúde e de educação higiênica, formado da
realidade, apoiado na experiência e orientado pela observação do povo e do ambiente do
nosso imenso território”.73 O modelo de conhecimento equivocado e incapaz de apreender
objetivamente a realidade nacional propunha-se a ordená-lo através de estruturas políticas
oriundas de realidades que não diziam respeito ao país real. Daí o caminho do autoritarismo
como modelo adequado e próprio do país real:

(...) que corrijam por leis, não de empréstimo, mas naturais, resultantes de
observação inteligente do meio físico, moral e social dos governados, os
defeitos e as deficiências do trabalho; que cuidem da eficiência desses
valores, ampliando sua capacidade pela cultura, pela educação e pela
preservação da saúde. (PENNA, 1918:37).

Esta é a função da política. A terra, a sociedade e a política formam a pátria.


A sociedade organizada, a produção dos valores, equilibrada ou excedente
de todas as necessidades de vida, de expansão e de progresso do
agrupamento; a boa direção da sociedade por uma política sábia e honesta e
a posse plena da terra, tudo isto é que é a nacionalidade, a soberania, a
Nação Soberana.(PENNA, 1918:37).

Segundo tais discursos, a política deveria ignorar as discussões parlamentares. A ação


decorreria naturalmente da visão do Brasil real. Tratava-se, portanto, de uma questão técnica.
A política pública deveria deslocar-se dos políticos – que manifestam planos e interesses

73
PENNA, Belisário. A Escola e a Educação Higiênica. 23/11/1926. Fundo Pessoal Belisário Penna,
COC/Fiocruz.
81

individuais e grupais – para os cientistas e técnicos, profissionais que expressavam


necessidades racionais e nacionais74. Por este ponto de vista, as instituições adequadas ao país
teriam que ser as indicadas pela própria realidade. É nessa questão central para os agentes do
campo que se uniam intelectuais (Alberto Torres, Kehl, Lobato, Vianna, Penna) e suas
propostas sanitaristas e eugenistas confluíam. Portanto, todo o problema vital poderia ser
resolvido após a descoberta da realidade nacional, da visão do Brasil real:

A nascente organização política e social que possuíamos até a Abolição foi


por esta abalada em seus alicerces e completamente destruída pela República
federativa Presidencial, ótima, talvez, para países de elevada cultura como a
Suíça, a Holanda ou a Bélgica, mas inadaptável, inaplicável e inexeqüível,
como está provado, num país vasto de povo inculto e doente, em fase de
evolução, ou melhor, de formação. (PENNA, 1918:32).

Por que somos pobres e doentes, enquanto as outras nações gozam dos benefícios do
mundo civilizado? Perante àquele diagnostico, os intelectuais interrogaram-se. O retrato
obtido foi um Brasil pobre, doente e sem educação. A visão médico-organicista75 pensava a
sociedade como um organismo. O corpo social estava doente e contaminado por uma grave
doença: a politicalha. Os elementos “funestos” parasitavam a sociedade brasileira tal como as
doenças tropicais. As representações sociais76 ancoradas nessa visão organicista possuíam
uma eficácia simbólica, pois, devido a esse conjunto de interpretações, erigia-se um projeto de
nação e de sua história. As metáforas das doenças reproduziam representações que remetiam
para a vida social, política e cultural.

74
Penna, em vários momentos, mantém a sua crítica à “política republicana”. Quando ministro interino da Pasta
de Educação e Saúde Pública, manifestaria rotineiramente sua posição ao Presidente Getúlio Vargas. Em carta ao
presidente, reafirmava sua postura em relação à administração pública: “Peço propositalmente a simples
autonomia do DNSP, em vez de um ministério, para que seja ele dirigido sempre por um técnico, nunca por um
político. Ouso sugerir igual providência para o ensino e para a assistência pública, serviços técnicos de capital
importância, que devem estar inteiramente a coberto das mutações da política”. Carta de Penna a Vargas em
1932. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
75
A obra de Belisário possui inúmeras metáforas correspondentes à visão orgânica da sociedade. “Está o nosso
infeliz País infeccionado desse vírus temeroso, que contaminou todas as camadas da sociedade, infiltrou-se nos
velhos, nos moços, nas famílias, nos governantes e governados, rebaixando o caráter, obliterando a consciência,
corrompendo os costumes, destruindo as tradições, arruinando os sentimentos religiosos, dissolvendo a família e
profanando a sociedade.”(...) “de inocular na mocidade, que surge, um soro antitóxico, constituído de verdades
cruéis, com o fito de neutralizar os perniciosos efeitos das toxinas da politicalha, que desde muito vêm
corrompendo ou arruinando todos os elementos vitais da nação”. (PENNA, 1918:85-87).
76
As representações expressam a forma simbólica das imagens que auxiliam na construção de uma dada
realidade. A importância e relevância da pesquisa impõem-se a partir da constatação que as idéias eugenistas,
ainda que derrotadas num plano geral, persistiram e foram veiculadas nos mais variados meios. Por esse motivo
selecionamos de uma extensa produção intelectual algumas categorias por meio de referenciais teóricos das
ciências sociais, como representações sociais, e de alguns de seus principais teóricos como Gramsci e Bourdieu.
Incorporarmos a matriz Gramsciana por uma opção política e teórica, mas também devido a uma adequação
metodológica. Investigando as idéias, relações, atores e agências do campo eugênico nacional (Kehl, Sociedade
Eugênica de São Paulo, Lobato, DNSP, Liga Pró-Saneamento, Boletim de Eugenia), averiguamos que era
necessária esta escolha.
82

(...) As metáforas médicas não se constituem em simples recurso retórico.


Subjacente a esse discurso, ter-se-á um modelo de sociedade calcado no
princípio da coesão absoluta, em que os membros do corpo articulam-se
intrinsecamente, e os males que afetam qualquer órgão comprometem a
totalidade. Ou seja, a metáfora da doença desdobra-se num sistema de
representações que envolve a totalidade da vida sóciopolítica. (ROCHA,
1995:92).

Dito de outra maneira, as metáforas médico-orgânicistas utilizadas pelos intelectuais


desse campo afirmavam a unidade, buscavam preservar o conjunto da sociedade e a harmonia
entre as partes. Está marcada, dessa forma, a importância simbólica e política das
representações sociais sobre o Brasil, reconstruindo memórias e forjando uma identidade
cultural e nacional. Era um projeto de nova nação, uma ordem social fundada na coesão – tal
qual um corpo saudável – que tornava possível compreender o organicismo, no qual a
sociedade era um corpo e os conflitos sociais eram doenças que podiam comprometer o
corpo-sociedade. Foi um recurso estratégico no esforço de reconstituição do tecido social,
forjando uma coesão que para esses intelectuais não existia mais, perdida que estava desde o
final do Império, solapada pela Proclamação da República e pela Abolição da Escravatura.
Para os intelectuais eugenistas e sanitaristas, a politicalha era uma doença mais grave do que
todas as endemias tropicais, porque arruinava o caráter dos homens, anarquizava o Estado e
destruía a sociedade. Por meio dessas metáforas, era proposto o saneamento do país, em
paralelo ao “saneamento” da política e o exercício objetivo da administração do Estado.

Desgraçadamente tais elementos funestos têm proliferado entre nós,


sobretudo desde há quase dois lustros, como larvas de moscas em estrume
verde, como micróbios em cultura apropriada, como o ancilóstomos e outros
parasitas nos intestinos dos nossos campônios opilados, ou como
tripanossomos e hematozoários no sangue dos nossos miseráveis sertanejos
cretinizados e impaludados. (PENNA, 1918:42).

A unir fortemente os vários personagens estava a visão da educação como força


transformadora da sociedade. Por exemplo, Renato Kehl assinou durante dois anos (1923 e
1924), uma coluna sobre higiene pública e individual que saía às quintas-feiras e domingos,
no jornal Gazeta de Notícias. Embora, o título fosse “Hygiene Popular”, englobava todos os
assuntos referentes à saúde física e psíquica dos indivíduos. Em 14/07/1923, Kehl publicou
um artigo intitulado “O Ensino da Higiene nas Escolas Primárias”, demonstrando a
necessidade de conciliar a coerção e a educação para alcançar os objetivos de melhorar o
povo. No trecho seguinte, Kehl declarou sobre as funções que a educação e o saneamento
desempenhariam na tarefa regenerativa da sociedade:
83

O dia que for compreendida pela generalidade dos professores patrícios, a


importância capital do Ensino desta matéria, e for considerada, como deve,
teremos dado um grande passo para a reabilitação sanitária do país,
atualmente flagelado por inúmeras epidemias. É que não bastam para
exterminá-las os trabalhos oficiais de saneamento; faz-se mister que o povo
se eduque nos preceitos elementares de higiene que auxilie esses serviços
prestigiando-os e obedecendo, “conscientemente”, os regulamentos
estabelecidos. Essa educação deve, com vantagem, iniciar-se desde tenra
idade, pelas mães, no lar, e pelos mestres nos jardins de infância e nas
escolas primárias. Ao lado, porém, do ensino de higiene far-se-á a educação
higiênica, incutindo no dócil e receptível espírito das crianças a necessidade
e as vantagens da prática dos bons hábitos de saúde. Aos professores e
professoras faço, destas colunas, o apelo para não descurarem o ensino desta
matéria nas suas classes. Vós representais a principal alavanca para o
progresso do Brasil. De vós depende a desanalfabetização nacional e a
implantação, entre nós da ‘consciência sanitária’; único meio para a
regeneração da massa doentia e decadente que constituem a grande parte dos
nossos trabalhadores rurais77.

Para os intelectuais eugenistas a função regeneradora da educação tinha tanta


importância que, em vários momentos de sua vida, Belisário Penna tentaria implementar um
Plano de Educação Higiênica em todo o país. Apresentado na Primeira Conferência Nacional
de Educação da ABE78 (Associação Brasileira de Educação), realizada em Curitiba, em 1927,
seu texto intitulado “Impõe-se a Primazia da Educação Hygienica Escolar” propunha uma
intervenção na sociedade, capaz de normatizar hábitos e atitudes:

Impõe-se, portanto a primazia da educação higiênica e eugênica na escola e


no lar, como medida fundamental para a formação de uma mentalidade
coletiva equilibrada, e de uma consciência sanitária, isto é, de um espírito
nacional absolutamente compenetrado do valor inestimável da prática dos
preceitos da higiene e da eugenia, como indispensáveis a prosperidade
individual, da família, da sociedade e da espécie79.

Os intelectuais apresentavam a idéia da integração nacional e propunham como sua


condição a educação higiênica e eugênica. Para eles, a consciência sanitária só teria condições
de se firmar nos povos nos quais predominasse a saúde bio-psíquica, de que resultava o
trabalho produtivo. Segundo o corpo de idéias eugenistas, esse não era o caso do Brasil, onde
a falência física, psíquica, financeira e moral eram conseqüências da doença, ignorância e
vícios do povo. Por isto, tornava-se indispensável criar a consciência sanitária coletiva pela
educação higiênica na escola, como meio de “imprimir no espírito de toda a gente” o valor
econômico e social da normalidade resultante da saúde.

77
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
78
Khel compareceu à reunião promovida pela Associação Brasileira de Educação. Sua palestra repetiu os
mesmos argumentos de Penna: educação como meio de convencimento da importância da higiene e eugenia.
79
Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
84

Estamos absolutamente convencidos de que é perfeitamente viável a


educação eugênica para a defesa da prole. Estamos, mesmo, convencidos, de
que a propaganda contra os males venéreos, contra o alcoolismo, bem assim
a propaganda desenvolvida pelos eugenistas em prol do exame pré-nupcial,
bastarão para despertar grande número de consciências, para formar
numeroso contingente de propagandistas da paternidade digna e de
propagandistas contra a paternidade indigna. (KEHL, 1929:146).

Saneamento quer dizer “Educação Higiênica” e criação da “Consciência


Sanitária Nacional” isto é, implantar em todos os espíritos a necessidade de
pautar todos os atos de vida no sentido da defesa da saúde, quer individual,
quer coletiva, como condição fundamental da prosperidade de cada um, da
família, da sociedade e do estado80.

Por meio dessa argumentação, caberia à educação higiênica gerar uma nova sociedade,
adequada aos ideais de racionalidade e produtividade. Com base nela, formularam-se normas
sobre o lazer, trabalho, educação e família. As idéias assumidas por esses intelectuais visavam
construir um Brasil moderno. Tratava-se da expressão de um ideário que buscava “civilizar” o
cidadão: a disciplina sobre os problemas da saúde do homem e da sociedade era
absolutamente necessária, entre os quais incluíam-se os hábitos dos indivíduos. Desse grupo
eugenista, quase todos entendiam que era vital a reforma e a implementação de novos valores
educacionais. Curiosamente, um deles, Octavio Domingues, zoólogo de formação,
apresentado pela historiografia sobre Eugenia no Brasil como mendelista, apresentaria em
suas obras, vários pontos, ressaltando a alta função regeneradora da educação.

Difundir a educação é, portanto, promover a utilização maior de todos os


cidadãos. Mas educar não é só alfabetizar. É despertar a máquina humana
para a produção, de acordo com as suas tendências inatas. É fazer o homem
adquirir hábitos sociais proveitosos, em detrimento dos maus hábitos, que
fatalmente adquiriria, dadas as possíveis tendências hereditárias.
(DOMINGUES, 1929:132).

Se a educação, não tem o privilegio de mudar as más heranças em boas, tem


essa tríplice função de controlar as tendências inatas do individuo, de tornar
mais eficazes todos os humanos, bons ou maus hereditariamente, salvo os
tipos geneticamente patológicos. (DOMINGUES, 1929: 133).

Assim, para levar adiante o projeto higiênico, seria vital a cooperação da ciência, da
educação e das leis. Kehl e outros inseriam o projeto eugênico nessa visão, que seria
compartilhada pelos demais membros do campo eugênico:

Para a realização de seus fins, repetimos (...) a necessidade da educação


popular nas questões de higiene, de hereditariedade, tornando geral o
interesse público pelas medidas de defesa e de proteção da sociedade dentro
do programa eugênico, do fomento da paternidade digna, do impedimento à

80
PENNA, B. Brasil-Futuro Paraíso. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
85

procriação dos defeituosos e tarados, da luta contra os fatores de


abastardamento de todo o gênero. (KEHL, 1929:39).

Todavia, esse discurso apresentava um desafio que o projeto sanitarista e educativo


eugênico enfrentava. Constatava-se que a relação entre os médicos e a população não era a
que eles desejavam e que a procura e reconhecimento das pessoas – e possivelmente de outros
profissionais da saúde – às unidades médico-assistenciais era restrita. Penna, Lobato, Kehl e
quase todos os demais intelectuais, em várias passagens, não poupariam críticas e
expressariam uma explícita indignação com tais fatos. E os culpados dessa inoperância,
segundo esses intelectuais, eram os Jecas, por sua ignorância; e os dirigentes, fazendeiros e
políticos, por não perceberem que além da criação de leis, era necessário o auxílio da
propaganda e da educação como meio de convencimento e persuasão:

Fartei-me de ver, nas minhas excursões, instalações sanitárias construídas


pelo Jeca, para satisfazer a exigência da saúde pública, mas sem utilização.
De que valem os serviços dos postos sanitários – tantos foram construídos –
se não são utilizados? É o que não querem compreender os nossos dirigentes
e os sanitaristas brasileiros, que nos congressos nacionais e internacionais de
Higiene expõem leis e regulamentos sanitários que não passam de fachadas
de serviços de execução falha, ou ineficiente (...)81.

Perdidos por este imenso Brasil, esparsos, longe dos centros civilizados,
analfabetos e pobres, tendo por teto choças de sapê, qual outro caminho
seguem os caipiras senão o da decadência? Que remédio dar a esses párias?
O que se não conhece – e o leitor certamente concorda conosco –, são os
desleixos de fazendeiros ricos ou arranjados, no que concerne às habitações
dadas aos seus auxiliares. Que o caipira construa suas casas de “pau-a-
pique”, nada há a estranhar. Mas em fazendas onde se levantam ótimas casas
para máquina, tulhas e estribarias, não se compreendem cabanas anti-
higiênicas para os empregados. A melhor lei, para que se melhorem as casas
dos operários rurais, é a educação do fazendeiro. Quando este não é rotineiro
atrasado; quando ele não tem consciência do valor que lhe representa a saúde
dos seus auxiliadores ou, pelo menos, tem o sentimento bastante para avaliar
o sofrimento humano, não precisa de leis que o obrigam a construir casas
saudáveis e a não permitir que os operários vivam amontoados em palhoças
insalubres. É por demais sabida a importância que tem para a saúde dum
indivíduo o seu habitat, o seu modo de vida, o trabalho e o descanso. A
moradia representa um ponto principal, tanto assim que, melhores sendo as
condições domiciliares, melhores serão naturalmente as do trabalhador.Pode-
se aferir da civilização dum povo pelas condições materiais e morais dos
seus operários. Entretanto, para nossa infelicidade, a situação ótima de um
proprietário não condiz com a dos operários. Aquele floresce enquanto estes
deperecem82.

81
PENNA, Saúde, Trabalho e Educação. 14/12/1926. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
82
KEHL, Renato. Como devem ser as casas dos trabalhadores rurais/O médico e o campo. In: Revista Chácaras
e Quintais. Jun. 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
86

Desse quadro emergia a convicção de que o país somente entraria na rota da


civilização, identificada esta com a própria educação higiênica, a partir do momento em que
certos princípios profiláticos básicos passassem a serem seguidos. Se Penna foi o grande
defensor do saneamento preventivo para a área rural, quase todos os demais eugenistas,
inclusive Octavio Domingues e Roquette-Pinto viram na educação higiênica o meio para a
integração nacional e o desenvolvimento social83. Esse foi o grande símbolo da reforma
sanitária postulada pelos sanitaristas e por alguns eugenistas: “A classe médica brasileira já
vai se compenetrando de que o principal papel do médico não é o de cuidar de indivíduos,
mas o de curar a sociedade”84.

A Educação Higiênica, que será a sua incorporação real à civilização, só se


fará, não apenas quando ele souber ler e escrever, mas quando se convencer
de que deve construir a sua habitação de acordo com os preceitos da higiene,
quando aprender a alimentar-se, a beber água limpa, a defender-se de insetos
e parasitas transmissores e causadores de doenças, quando se dispuser à
prática das virtudes higiênicas do asseio, da sobriedade (...).85

A educação é indubitavelmente a alavanca mestra do progresso social, sendo


necessário, porem, ter em conta também à alavanca mestra do progresso
biológico, que é a aplicação das leis da hereditariedade segundo os preceitos
da eugenia. (KEHL, 1933:15).

À educação peçamos mais esse valioso auxilio, em favor do bom êxito das
medidas eugênicas. Pela educação, podemos ensinar a todos os humanos a
beleza das uniões eugênicas, e pregar o horror à reprodução entre os tipos
cuja herança biológica claudicante for uma ameaça fatal à descendência.
(DOMINGUES, 1929: 143).

Observamos que, aliado à estratégia de criação dos postos sanitários permanentes, os


médicos elaborariam novos projetos para a intervenção governamental no campo das ações de
saúde pública. Consideravam que o profissional médico (uma mistura de sanitarista, sociólogo
e político) poderia e deveria atuar de diversas formas, isto é, colaborando na educação
higiênica, inserido no planejamento de saúde pública, porém sem abandonar as ações
campanhistas de combate às epidemias de várias doenças86.

83
Belisário Penna elaborou, através de seu plano de educação higiênica, uma estratégia de integração nacional:
“Pela educação higiênica na escola, no colégio, no lar, na fábrica, na fazenda e na caserna é que se conseguirá
formar a consciência sanitária nacional, que, alcançada, constituirá a base sólida do Brasil”. PENNA, Belisário.
Higiene e Civilização. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 06 out. 1925. Fundo Pessoal Belisário Penna,
COC/Fiocruz.
84
PENNA, B. “Escola Prática de Higiene”, 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
85
PENNA, B. “Propaganda Sanitária”. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
86
“Já disse e repito: o médico higienista precisa ser um sociólogo.” PENNA, Belisário. “Consciência Sanitária e
educação higiênica”. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
87

A propaganda, feita inteligentemente nas escolas, colégios, fábricas, quartéis


e fazendas, em linguagem simples, clara e convincente, acompanhada de
projeções elucidativas de fatos e coisas reais; seguida de folhetos e cartazes
ilustrados; o ensino individual e familiar nos postos sanitários e nos
domicílios, pelos médicos, guardas sanitários, educadores de saúde, têm
capital importância e facilitam sobremaneira a tarefa dos higienistas na
aplicação das medidas regulamentares, que passam a ser cumpridas pelo
povo, com boa vontade, por convicção da sua utilidade, e não apenas pelo
temor das penalidades legais87.

Os militantes dos movimentos pela reforma dos serviços de educação e saúde pública
afirmavam a possibilidade de superar os graves problemas nacionais mediante a intervenção
do Estado na organização da vida social. Afinal, as insustentáveis e precárias condições de
saúde e educação haviam sido eleitas os problemas vitais do país. Eram obstáculos á
realização da verdadeira nacionalidade do Brasil. Os defensores da educação higiênica
propunham a centralização desses serviços a cargo do governo da União.

As políticas de saúde pública e de educação passaram a sofrer influência das visões


realistas do país. Onde está o progresso? Por que ele não advém? Por que permanecemos na
miséria, enquanto os outros povos utilizam as técnicas modernas e industriais? Talvez fosse
assim que alguns dos intelectuais indagassem a si próprios no contexto das décadas iniciais do
século XX. Uma sonhada república, orientada pela ciência e por médicos, como desejava
Renato Kehl, desprovida de interesses, insistia em esfacelar-se em múltiplos desejos privados,
econômicos, políticos e culturais. Esses intelectuais planejavam uma ordem social perfeita,
isto é, projetavam seus símbolos e representações em busca de uma nação sem conflitos
sociais. Lembremo-nos das crescentes discussões entre os estados e a federação nos idos da
Primeira República. Naquele período, os interesses divergentes das representações estaduais
chocavam-se com a centralização de poder da União.88

Nada poderia escapar sob os olhos autorizados do médico, representante do Estado: o


lar, a família, o corpo e o trabalho. As estratégias higiênicas e eugênicas pretendiam realizar o
sonho utópico da sociedade perfeita, segundo os conceitos dos médicos, educadores e
higienistas. Veja-se a este respeito a opinião e os argumentos de Pontes de Miranda, sobre a
crescente participação da técnica e da ciência nas sociedades modernas. Ressaltamos que
trata-se do discurso de uma das categorias profissionais que poderiam postular a condução das

87
PENNA, Belisário. Propaganda Sanitária. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
88
Sobre este assunto, consultar HOCHMAN (1998). O autor analisa a articulação entre o fortalecimento do
poder central da União frente às políticas públicas de saúde e as representações estaduais no poder legislativo.
88

políticas públicas do período e a supremacia política: os bacharéis, especificamente, no caso,


os juristas – o que ainda mais confere densidade à afirmativa.89

Já estiveram na direção das sociedades o pescador, o caçador, o guerreiro, o


mágico e o sacerdote, o esteta, o moralista, o jurista (...) faltam os cientistas,
os técnicos da vida social, da política especializada, bebida na ciência. É isto
que queremos. (MIRANDA apud ROCHA, 1995:22).

As grandes transformações urbanísticas foram justificadas como imprescindíveis à boa


saúde dos habitantes das cidades. Da mesma maneira, as transformações institucionais,
políticas e sociais eram apresentadas como necessárias para o pleno funcionamento do corpo
da nação. O discurso médico-pedagógico procurava responder ao problema de como controlar
uma população hostil às novas normas sanitárias, cuja racionalidade representava uma
necessidade vital. A oposição popular às iniciativas saneadoras da cidade do Rio de Janeiro
foi interpretada como uma manifestação de desordeiros e ignorantes, sobre a qual era dever do
Estado impor a ordem e o controle. Desenvolveu-se, assim, o argumento de que era
absolutamente imperioso, para o bom funcionamento da sociedade, a disciplina e o controle
dos hábitos irracionais, dos conflitos que ocorriam por mau funcionamento de alguns órgãos
da sociedade.

89
Sobre os equívocos cometidos pelos autores dos textos publicados no final dos anos 70, que estudaram a
história da saúde e da medicina sob uma orientação foucaultiana, ver REIS (1994). Transparece nestes trabalhos,
uma equivocada idéia de que o poder da medicina e dos médicos era total. Depois de duas décadas, fica claro o
alto grau de generalização presente nestas pesquisas, além da heterogeneidade teórica e metodológica. Mas,
contudo, estes pontos não invalidam a pioneira contribuição de alguns desses livros. Por exemplo, os trabalhos
“Danação da Norma” e “Ordem Médica” abriram um campo de análise. Sobre a influência, chamada por
Coelho de nefasta, que Foucault teria causado nos estudos sobre saúde e medicina no Brasil, ver COELHO
(1999). Entretanto, queremos deixar evidente que os médicos eugenistas ansiaram por definir e controlar
totalmente vários aspectos da vida, mesmo a privada, como Kehl transpareceu neste trecho: “Um indivíduo para
casar-se terá de sujeitar-se a uma minuciosa análise do seu registro e da sua própria pessoa; só depois da folha
corrida, fornecida pela repartição genealógica e do atestado de sanidade, terá o honroso direito ao casamento
prolífico. Sim, prolífico, porque os indivíduos considerados inaptos à procriação terão apenas direito aos
prazeres do hymeneu, quando previamente submetidos à esterilização”.(KEHL, 1929:21)
89

3.

CAPÍTULO II

A EUGENIA NO BRASIL

(...) a esterilização dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que nada


fazem, que vegetam nas prisões, hospitais, asilos; dos que perambulam pelas
ruas, vivendo da caridade pública; dos amorais, loucos que enchem os
hospitais; da gente inútil que vive do jogo, do vício, da libertinagem, do
roubo e das trapaças.(KEHL, 1929: 179).

É indiscutível o antagonismo e mesmo a repulsa sexual existente entre


indivíduos de raças diversas. Só motivos acidentais fazem unir-se (...) um
homem branco com uma negra ou vice-versa. E produto deste conúbio
cresce estigmatizado não só pela sociedade, como, sobretudo pela natureza;
está hoje provado, não obstante a grita de alguns cientistas suspeitos, que o
mestiço é um produto não consolidado, fraco, um elemento perturbador da
evolução natural. Os casamentos devem, portanto, se processar dentro da
mesma raça e, de preferência, da mesma classe. (KEHL, 1933: 232).

A Eugenia surgiu com Francis Galton90 (1822-1911) na Inglaterra e disseminou-se em


variações por diversos países do mundo. Embora o ideário eugenista tenha ficado como uma
marca característica e atingido sua face mais violenta na Alemanha Hitlerista dos anos 30, foi
nos Estados Unidos que ela esteve muito em voga, chegando mesmo a existir várias
associações eugenistas que realizavam competições públicas com juízes analisando o
pedigree das famílias concorrentes e distribuindo medalhas e prêmios. Assim, embora a
emergência dos princípios eugenistas tenha se dado em solo europeu, foi na América do

90
A melhor biografia de Galton ainda não tem tradução em língua portuguesa. Ver PELÀEZ (1985).
90

Norte, durante a primeira metade do século XX, que a eugenia assumiu uma das formas mais
agressivas, com seus conceitos modificando drasticamente a vida das pessoas. As idéias e
práticas eugênicas atuaram de maneira tão destrutiva que, entre 1906 e 1940, em vinte e sete
estados americanos da união, mais de 60.000 esterilizações compulsórias foram executadas de
formas extremamente polêmicas. Somente na Califórnia, mais de 15.000 mulheres e homens
teriam sofrido cirurgias desse tipo. Diversas leis e medidas legais foram tomadas para
esterilizar e excluir da sociedade americana indivíduos classificados como inadequados para
gerar filhos ou mesmo continuar vivendo.

No início do século XX, era fundado em Long Island, Estado de Nova York, um
conjunto de laboratórios para aprimoramento racial.91 Tornaram-se os principais e mais
influentes centros de pesquisas sobre raças do mundo. Contavam com auxílio financeiro de
empresários e instituições como a Fundação Rockefeller. Recentemente, nos primeiros anos
do século XXI, finalmente, foi reconhecido que os eugenistas que trabalharam nesses
laboratórios e escritórios pesquisaram e, principalmente, lutaram para que a legislação social
mantivesse grupos sociais, raciais e étnicos portadores de anomalias ou simplesmente gente
“estranha” separada dos supostamente possuidores de genes bons. Para tanto, organizaram
lobbies políticos para implantar políticas públicas segregacionistas, até mesmo buscando
restringir a imigração de grupos não anglo-saxões, do oriente ou mesmo da Europa
Mediterrânica. Também, nos últimos tempos, foi admitido que a Eugenia norte-americana
serviu de exemplo para as experiências nazistas.92 Como comprova o tom lamentoso do
eugenista Joseph Dejarnette, superintendente do Western State Hospital, da Virginia, quando
em 1934, reclamando das dificuldades em efetivar algumas ações esterilizadoras, declarou
que “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”. (BLACK, 2003:48).

E no Brasil, quando surgiu e como foi o desenvolvimento da Eugenia? Como um país


intensamente miscigenado foi palco de um movimento eugênico forte? Um conjunto de idéias
que, em princípio, seria paradoxalmente, contrário a sua formação étnica? Como num país tão
mestiço, um conjunto de idéias e práticas que estaria em oposição com a formação racial do

91
Há muito pouco tempo, um destes centros de estudos esteve envolvido na polêmica afirmativa sobre a
supremacia biológica humana. O ganhador do Prêmio Nobel, James Watson, diretor de um laboratório de
pesquisas genéticas por mais de 50 anos, declarou que os “negros são menos inteligentes”. Diz o co-descobridor
da estrutura do DNA: ”Não há razão sólida a sustentar que as capacidades intelectuais de pessoas
geograficamente separadas durante sua evolução tenham se desenvolvido de forma idêntica”. In:Jornal O
GLOBO. Rio de Janeiro, 18 out. 2007.
92
Não que a Alemanha precisasse de exemplos. Como demonstram inúmeras publicações e o filme Arquitetura
da Destruição de Peter Cohen. Nesta película, o diretor narra a exterminação contra os doentes mentais e
membros de etnias diferentes da suposta “raça ariana”.
91

Brasil, a eugenia prosperou e proporcionou que políticas públicas fossem influenciadas? No


Brasil, o eugenismo desenvolveu-se durante o início do século XX. Contudo, encontramos
indícios anteriores nas teses defendidas pelos higienistas e alienistas nas faculdades de
medicina do Rio de Janeiro e da Bahia ainda no século XIX. Marcadas pelas teorias
naturalistas da degenerescência sobre a mestiçagem racial, mas, sobretudo, pelas idéias,
normas e práticas da medicina social do século XIX que esquadrinhava as cidades.

A partir do terço final do século XIX, naturalistas, intelectuais e aventureiros, cercados


de conceitos desfavoráveis sobre as raças e apoiados em pretensas visões científicas,
pronunciaram diagnósticos completamente negativos sobre o futuro do Brasil. Exemplos
como o Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), que afirmou que o país era “feio e
degenerado”, descreviam um país inviável93. Para essas considerações, o estado letárgico do
povo e da nação, paralisados na escala progressiva das sociedades era devido à soma dos
fatores climáticos e raciais. A mestiçagem era uma das causas da inferioridade dos brasileiros
e decretava a impossibilidade do Brasil em ascender ao mundo moderno que se anunciava. As
informações disponíveis sobre essa época no Brasil apontam que, para os atores do campo
intelectual e científico identificados com o determinismo biológico, a mestiçagem
representava um empecilho à incorporação do Brasil à civilização. Gobineau e Louis Agassiz
(1807-1873) foram alguns desses intelectuais que descreveram o Brasil e seus habitantes
como membros improváveis de uma futura nação. Para esses homens, armados de idéias
cientificistas, o país havia produzido elementos inúteis e incapazes de acompanhar o
desenvolvimento progressivo da humanidade. Assim, a miscigenação étnica seria um fator
contrário à evolução e a mistura racial provocaria a permanência de características inferiores
nos híbridos, porque os elementos mais fracos permaneceriam nos descendentes. Assim,
teríamos a potencialização dos defeitos, criando gerações e gerações de degenerados.

Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Belisário Penna, Lima Barreto, Manoel Bomfim,
entre outros, fizeram parte do campo intelectual e político brasileiro do início do século XX.
Operaram suas idéias sob fronteiras delimitadas. Alguns fortemente influenciados pela
eugenia. Outros, nem tanto. Lima Barreto e Manoel Bomfim sofreram, cada um deles,

93
“He observado ya que, de todos los grupos humanos, los que pertenecem a las naciones europeas y a sus
descendencia son los más bellos”.(GOBINEAU, 1937: 117). Controvertido e polêmico, Gobineau era suspeito de
sua nobreza duvidosa. Embora seja autor de um marco racista, o Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas, e sua passagem pelo Brasil tenha lhe causado dor, em artigo para a revista francesa Le Correspondant,
nos números de julho e setembro de 1874, sob o título de ‘L’Emigration au Bresil’, surpreendentemente,
descreve o Brasil como um paraíso. Ao que parece, foi um pequeno agrado ao seu amigo, o Imperador Pedro II.
Sobre esse “nobre” Conde, ver GAHYVA, 2006.
92

diferentemente, resistências e oposições porque se opuseram ao modo de hierarquizar os


indivíduos em pressupostos genéticos e racistas. Em outra posição, Roquette-Pinto e, até,
Gilberto Freyre ofertaram uma interpretação que fugia do pessimismo racial, que condenava a
mestiçagem no Brasil como produtora de seres inúteis. Mas, quase todos, de alguma maneira,
estiveram frente à frente com essas questões. Porém, não se pode, sob a pena de criar mitos,
isolá-los da sociedade em que viviam. No caso, Roquette-Pinto e Freyre, muitas vezes, são
destituídos de seu caráter humano e elevados à condição de heróicos defensores da
mestiçagem: uma mistura de raças e cores que seria um dos componentes positivos da
identidade nacional. Existe uma tendência, resultado de pouca leitura dos livros desses
intgelectuais, em rotulá-los. Outra explicação, talvez menos nobre, sobre essa mitificação de
alguns desses intelectuais, consistiria no uso de seus nomes como armas políticas, tentando
sustentar alguma posição controvertida ou polêmica no momento atual. Assim, Roquette-
Pinto é prontamente reconhecido como legítimo representante da corrente anti-arianista e
Oliveira Vianna é considerado, por seu lado, um arianista de boa cepa. Considerações feitas,
quase sempre, sem análise das obras e destituída de uma teoria que dê conta da complexidade
do campo intelectual brasileiro. Todavia, não queremos e não estamos negando frontalmente
esses rótulos. Contudo, eles não esclarecem e, por vezes, até criam sombras nebulosas sobre
as quais é difícil distinguir as contribuições.

Se a miscigenação degenerava a raça, o povo e o Brasil, uma solução teria que ser
buscada para transformar o país numa grande nação, impedindo, favorecendo ou
potencializando o branqueamento da população brasileira. E como era o Brasil? Que porção
do mundo era essa que intelectuais estrangeiros e, também, nacionais julgavam que, dentro
dos padrões burgueses de civilização e progresso, não era um país viável? Quem vivia aqui?
Uma massa de população de negros, brancos e miscigenados, pobres e sob péssimas
condições sanitárias. O crescimento dos centros urbanos com o desenvolvimento do
capitalismo, a expansão da imigração estrangeira, o receio das epidemias, Febre Amarela e
Varíola, e das endemias rurais (ancilostomíase, malária e doença de Chagas) causavam um
permanente estado de medo. Devido a tal cenário, o Brasil era visto por uma determinada
fração do pensamento social como um país que não chegaria ao estágio civilizado, pois sua
população estava degenerada. Em meio a essas impressões, inúmeros reformadores surgiram,
pretendendo oferecer diagnósticos e remédios que evitariam a tragédia: a impossibilidade do
Brasil tornar-se uma nação. Se o país é tão rico - com suas florestas e seu ouro-, por quê
somos pobres e doentes? Os intelectuais médicos e a eugenia ajudariam a encontrar soluções
93

para essa tragédia/dilema. Pelo ponto de vista defendido pelos eugenistas e infelizmente
incorporado, muitas vezes, por pesquisadores contemporâneos, o Eugenismo estava fazendo
um bem à humanidade. Dizia Kehl que:

A eugenia é uma doutrina biológica que tem por escopo a regeneração


integral da humanidade. Seus propósitos nada têm de cruéis ou draconianos.
Não visa perseguir fracos, doentes, nem degenerados. Ao contrário, ela quer
evitar o aparecimento desses infelizes, que nascem para morrer, para sofrer e
para sobrecarregar a parte reprodutiva da coletividade. Constitui a verdadeira
ciência da felicidade porque se esforça pela elevação moral e física do
homem, afim de dotá-lo de qualidades ótimas (...). (KEHL, 1933: 51).

Diante dessa tarefa benfazeja e reformadora do Brasil, muitos agentes intelectuais


surgiram, armados de novas idéias, pretendendo transformar o Brasil num exemplo de uma
grande nação. Foi uma geração de intelectuais, nascida com a Proclamação da República, que
empenhou ao futuro a construção da Nação. Belisário Penna nasceu em 1868. Monteiro
Lobato em 1882. Roquette-Pinto em 1884. Octavio Domingues em 1897. E o eugenista
Renato Ferraz Kehl em 22 de agosto de 1889. Portanto, eles viveram e produziram suas idéias
no centro do processo de transição social, econômico e político pelo qual passava o Brasil.

Kehl viveu a infância e a adolescência no interior de São Paulo. Influenciado por seu
pai, ingressou no curso de Farmácia na capital paulista. Mas, depois seguiria para o Rio de
Janeiro, com seu irmão Wladimir Ferraz Kehl, para a prestigiada e tradicional Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, então na Praia de Santa Luzia. Após a apresentação de sua tese
na cadeira de Dermatologia, formado médico, vamos encontrá-lo, no ano seguinte, clinicando
na capital paulista. Mas, o espaço de um pequeno consultório era insuficiente para Kehl.
Segundo declarações do próprio eugenista, seu interesse pelos estudos da hereditariedade
humana deveu-se à repercussão do Primeiro Congresso Internacional de Eugenia realizado
pela Eugenics Society, na cidade de Londres em 1912. Por essa época, ele teria escrito seu
primeiro trabalho sobre o tema, um estudo sobre as teorias de August Weissmann. Esse autor,
por certo, o marcou imensamente. Por toda a vida, ele o citaria em meio as suas
interpretações.

Em 1933, durante uma palestra realizada em sua cidade natal, constata-se indícios de
seu interesse pelo tema da transmissão das características hereditárias aos descendentes. Kehl,
ao narrar suas realizações dentro do campo eugênico, declarava que as observações dos tipos
humanos, a surpresa e o horror provocados diante das deformações físicas teriam despertado
sua curiosidade sobre hereditariedade e eugenia:
94

(...) Assim, pois, foi o espetáculo das deformidades e (...) também a estranha
diversidade de tipos humanos que me levaram a estudar os problemas
biológicos da hereditariedade e os da influência do meio sobre a espécie
humana94.

Na mesma época desse congresso mundial de eugenia, João Batista de Lacerda (1846-
1915), diretor do Museu Nacional por longo período (1895-1915), compareceu como o
delegado oficial do Brasil em outro evento importante para o campo eugênico, o Primeiro
Congresso Internacional das Raças, realizado na Universidade de Londres em junho de 1911.
Nessa importante reunião, também esteve presente o antropólogo Roquette-Pinto. A tese do
branqueamento progressivo da população brasileira adquiria seu status científico, no
momento da publicação dos trabalhos do então líder da prestigiada instituição de ciência
antropológica (SKIDMORE, 1976: 81). Em seu texto apresentado ao Congresso, após uma
breve introdução sobre as conseqüências da escravidão no país, o autor explicava a origem da
mestiçagem entre brancos e negros no Brasil por meio dos contatos sexuais dos senhores de
escravos com as escravas:

Ce qui surprend, dans cet état de choses, c’est que les maitres, sans aucune
délicatesse, aient fait des concubines de ces femmes esclaves. Naturellement
ces unions entre blancs et noirs devinrent rapidement três fréquentes. Il ne
fallut que trés peu d’années pour voir les alentours des domaines ruraux se
peupler de métis. (LACERDA, 1911: 10).

A sua opinião a respeito dos mestiços era clara:

Sous I’influence de facteurs, dont la nature nous échappe, lês qualités


intellectuelles atteignent souvent, chez les produits du croisement entre blanc
et noir, un degré de supériorité dont l’explication ne se trouve dans
l1herédité ni lointaine, ni immédiate. Une force obscure, inconnue, fait
fleurir em eux une intelligence capable d’aucun de leurs parents.
(LACERDA, 1911:14).

Estas citações são demonstrativas da posição defendida por Lacerda sobre a


controvertida desigualdade das raças. No entanto, a questão transparecia em tons matizados.
Lacerda afirmava que, para ele, diferentemente dos arianistas mais ortodoxos, o cruzamento
da raça negra com a raça branca não resultaria, em geral, produtos de uma capacidade
inferior. Para ele, mesmo se os mestiços não rivalizassem com as raças fortes do tronco
ariano, se, como esses últimos, eles não tinham um instinto de civilização tão realizado, não

94
KEHL, Renato. In: O Médico da Coletividade, Conferência realizada em Limeira (SP). Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
95

se podia classificar os mestiços no nível das raças realmente “inferiores”. No original,


Lacerda afirmava:

D’apres ce que nous venons d’affirmer, on voit que bien contrairement à


l’opinion de divers écrivains, le croisement de la race noire avec la race
blanche ne donne pas, en général, des produits d’une intellectualité
inférieure; et, si ces mêmes produits ne peuvent rivaliser par d’autres
qualités avec les races plus fortes du tronc aryen, si comme ces dernières
elles n’ont pas un instinct de civilisation aussi achevé, il n’en reste pas moin
certain que l’on ne peut non plus palcer ces métis au niveau des races
reéllement inférieures, qu’ils sont phsiquement et intellectellement bien au-
dessus des noirs, qui entrèrent comme élément ethnique de leur formation.
(LACERDA, 1911: 16).

Os anos 1910, 20 e 30 no Brasil viram a consolidação da “ideologia do


branqueamento” e sua freqüente aceitação. As opiniões quanto ao valor das raças, expressas
em anos anteriores haviam perdido muitas das certezas e um pouco da convicção. O novo
discurso dizia que o Brasil branqueava (melhorava) a olhos vistos, e que, em conseqüência, o
problema caminhava para uma solução. Em verdade, se observado atentamente, o ideal de
branqueamento da sociedade era uma esperança para boa parte dos intelectuais hegemônicos,
podendo-se dizer que estava presente desde meados do seculo XIX, onde se pensava a
imigração européia como um alívio da forte presença dos negros no país (SKDIMORE,
1976). Entretanto, foi no texto de João Batista de Lacerda, apresentado no Primeiro
Congresso Internacional das Raças, que cientificamente se anunciou a previsão de que no
prazo de um século o país seria branco e a raça negra seria extinta.95 Em relação à essa
evolução tão esperada da miscigenação (desde que esta resultasse num branqueamento),
Lacerda estimava que graças à mestiçagem sexual seria lógico supor que no espaço de 100
anos, os mestiços e negros desapareceriam do Brasil, fato que coincidiria com a extinção dos
negros. Isto é, com a seleção sexual, ou seja, o freqüente casamento de negros e mestiços com
os brancos, nacionais ou imigrantes, segundo Lacerda, haveria a purgação nos descendentes
dos traços negativos e ruins dos negros. Assim, para ele, seria lógico a extinção -no período
de um século- dos negros e mestiços no Brasil.

La sélection sexualle se poursuivant, achève toutefois de subjuguer


l’atavisme et purgue lês descendants dês métis de tours lês traits
caractéristiques du noir. Grace à ce procede de réduction ethnique, il est
logique de supposer que dans l’espace d’um nouveau siècle, lês métis auront
du Brésil, fait qui coincidera avec l’extiction parallèle de la race noire entre
nous. (LACERDA, 1991:19).

95
Ver REIS (2000).
96

Este prognóstico foi criticado: ele aparecia demasiadamente longo e demorado aos
espíritos impacientes com o ritmo demonstrado pelo aludido processo de branqueamento do
país. Com os dados fornecidos por Roquette-Pinto, professor de antropologia do Museu
Nacional, Lacerda se esforçava para demonstrar, entretanto, que era inevitável o
desaparecimento dos negros brasileiros, mas sempre dentro do período anunciado. No ano
seguinte, em 1912, a partir das críticas recebidas, Lacerda escreveu um outro texto onde, em
linhas tênues, procurava melhorar sua tese aos apressados críticos que viam uma certa
lentidão naquele prognóstico. Era como se dissessem: teremos que esperar cem anos para
ficarmos mais brancos?96

Passou como opinião geral do congresso que não há raças superiores e


inferiores, sim há raças adiantadas e atrasadas. As diferenças entre as raças
do ponto de vista físico e intelectual pensa a maioria do congresso que são
devidas às influências do meio físico, ás condições sociais sob as quais tem
vivido as raças atrasadas do outro continente. O contato do ocidente tende a
levantá-las a um nível superior, a mostra-lhes o caminho da civilização e o
modo pelo qual elas chegarão a realizar o ideal de progresso humano nas
suas multíplices e variadas manifestações. (LACERDA, 1912: 7).

Entretanto não se pode negar que o demorado contato entre as duas raças,
uma atrasada, outra adiantada, venha com o tempo fazer adquirir a raça
adiantada muitos dos vícios e defeitos da raça atrasada. Existe uma certa
ordem de hábitos, costumes e impressões que facilmente se comunicam de
uns a outros indivíduos, quando se dá entre um diuturno contato, e, mais
fácil se torna esta comunicabilidade, quando o contato se dá desde a tenra
idade. (LACERDA, 1912: 91).

Inegavelmente, Edgard Roquette-Pinto combateu a idéia da inferioridade racial do


mestiço brasileiro e isso numa conjuntura histórica em que essa condição parecia indiscutível.
Seguidamente ele expressava sua convicção acerca do desaparecimento dos negros no Brasil e
apresentava dados sobre a evolução desse processo por características físicas. Baseando-se
nos recenseamentos realizados desde o final do século XIX, mostrava como os descendentes
negros haviam diminuído de 16% para 12% na população e que os brancos, entretanto,
aumentaram seu percentual de 38% para 44%. A sua conclusão era de que mesmo sem a
entrada de imigrantes europeus brancos, o cruzamento de mestiços nacionais fornecia um
indivíduo branco que a antropologia era incapaz de distinguir dos tipos europeus.
(ROQUETTE-PINTO, 1927). Todavia, acrescentava, “(...) não o esqueçamos, por amor ao
preconceito disfarçado ou manifesto, que o problema nacional não é transformar os mestiços

96
“Provavelmente antes de um século a população será representada, na maior parte, por indivíduos da raça
branca, latina, e para a mesma época, o negro e o índio terão certamente desaparecido desta parte da América”.
(LACERDA, 1912: 95).
97

do Brasil em gente branca. O nosso problema é a educação dos que aí se acham, claros ou
escuros (...).” (ROQUETTE-PINTO, 1927: 62).

Uma circunstância importante não deve ser esquecida na apreciação


antropológica dos mestiços. É que sua condição social, muitas vezes
precária, apresenta aos observadores homens doentes que são tidos por
degenerados. Inúmeros casos de gente enferma são contados como
denunciadores de inferioridade. O Homem são nunca é preguiçoso; pode ser
vadio (...) O vadio conserva a apatia enquanto não lhe chega o momento de
realizar o que lhe agrada. Um é doente; o outro, mal educado (...).
(ROQUETTE-PINTO, 1927: 201).

Por outro lado, os relatórios dos viajantes estrangeiros reforçavam, de uma maneira
geral, as idéias racistas e deterministas, na medida em que estavam impregnados das doutrinas
raciais européias. Pierre Denis, por exemplo, resumiu assim seu ponto de vista: “(...) a
inferioridade econômica e moral da população negra no Brasil não pode ser contestada (...)
São imprevidentes e não conhecem nenhuma das formas da ambição, único estímulo do
progresso. São modestos em seus desejos, com pouco se satisfazem.” (DENIS, 1909: 346).
Ele afirmava que os negros nunca teriam influência decisiva sobre os destinos do Brasil. Sua
análise acompanhava as idéias de um outro intelectual: Vacher de Lapouge. Esse empregava
para designar os indivíduos tidos como hereditariamente e eugenicamente bem dotados e seus
opostos, os degenerados, os conceitos tão caros à eugenia, eugênicos e disgênicos,
respectivamente. Para Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), o cruzamento de raças, a
mestiçagem, não era, sob nenhuma hipótese, aceitável, porém seu efeito pernicioso e negativo
não era definitivo. (LAPOUGE, 1896: 155). A partir de suas observações sobre animais e
procurando explicar a queda da taxa de natalidade francesa do século XIX, ele acusava o
mestiço como culpado, porque

o mestiço não sente a responsabilidade de perpetuar uma raça: ele sente que
nele se enfrentam as heranças de várias delas. Não é uma raça que ele
deveria perpetuar, são duas, são muitas, ou seja, o impossível em si mesmo.
(LAPOUGE, 1896: 192).

Para Lapouge, os mestiços não tinham futuro possível. Mas, se o pensamento social
brasileiro do final do século XIX até meados da segunda década do XX estava influenciado
por intelectuais como Gobineau e Louis Couty (1854-1884), pelo determinismo climático de
Henry Thomas Buckle (1821-1862)97, além do diagnóstico pessimista do zoólogo suíço

97
Um dos intelectuais das idéias deterministas foi Henry Thomas Buckle (1821-1862), cuja História da
Civilização na Inglaterra, é um verdadeiro manual do determinismo. Buckle analisou topografia, sistema
hidrográfico e ventos do Brasil, sem nunca ter estado no país. Porém, ele falava da luxuriante vegetação
ostentando sua força. Em meio a natureza, nenhuma função era deixada para o mestiço brasileiro. Buckle
98

radicado nos Estados Unidos, Agassiz, um novo ponto de vista começou a se afirmar. Os
exageros racistas de Gobineau, Vacher de Lapouge e de Houston Stewart Chamberlain (1855-
1927), seriam alterados. Ao qualificar os mestiços do Brasil como inferiores e desprovidos de
qualquer qualidade positiva, os autores citados negavam qualquer tipo de viabilidade ao país e
aos brasileiros98. Mas, isto mudaria99. E a chave para entendermos a especificidade da eugenia
nacional e as vicissitudes do campo eugênico brasileiro está nessa modificação. Afinal, como
compreender o eugenismo numa terra tão miscigenada e que, em alguns momentos
afirmativos de sua identidade nacional, exalta e até glorifica a capacidade de misturar raças,
culturas e etnias? Pois é precisamente nesse complexo e intrincado tecido de idéias e posições
que reside uma das explicações. Entre os pólos opostos da condenação do país como inviável
e a mitificação do Brasil como sendo o paraíso e os brasileiros como soldados morenos
imbatíveis, se superpõem os discursos.

Contudo, o racismo característico de intelectuais como Lapouge e Gobineau


permaneceu influenciando. Porém, surgiram vozes que permitiam explicar, ainda que um
pouco diferentemente, a situação dos povos miscigenados pobres, doentes e feios. As
dificuldades passaram a ser vistas, não só pelo ângulo da raça, mas, também pelas agruras do
povo e abandono da população pelo governo e elites (políticos, fazendeiros, indústriais e
intelectuais ufanistas). Durante os anos 20, portanto, novas conceituações críticas sobre as
desigualdades entre os homens surgiram. Porém, certamente, essas posições ainda pagavam
um alto preço pelas considerações raciológicas marcadamente deterministas e que
influenciariam durante um longo período as opiniões negativas sobre os habitantes que viviam
em países abaixo da linha do equador. Mas, sem dúvida, as novas avaliações sofriam uma
sensível modificação. O juízo extremamente negativo havia se invertido. Por meio de uma
mudança, seria possível transformar a terra Brasil em algo viável. As explicações também se
transformariam. Às vezes, de maneira muito sutil. Oliveira Vianna, por exemplo, atribuiria à
miscigenação o caráter da organização da sociedade colonial e a hierarquia social estaria

descreveu que em nenhum outro lugar do mundo haveria tanto contraste entre a força do ambiente e a
mediocridade dos homens.
98
Na América Latina, o desejo de regeneração racial estava ligado diretamente à questão da identidade nacional.
Os intelectuais europeus avaliaram negativamente o país enquanto uma nação consolidada e uma identidade
definida. Dessa forma, vários países da América, abraçaram a eugenia como uma forma de encontrar respostas
satisfatórias e possíveis de melhoramento racial.
99
Mudaria, mas não transformaria. A influência desses diagnósticos cruéis a respeito do Brasil, dos negros e
mestiços, impregnaria durante um bom tempo. Todas as análises sociais fariam diagnósticos que ainda
conteriam, por mais residual que fosse, um desejo inconfessado de que seria melhor para o país, se tivéssemos
um outro “povo”. Tenho sérias desconfianças que, até hoje, em 2008, continuam habitando em corações e
mentes, o desejo de “matar o povo” ou trocá-lo.
99

ligada ao meio geográfico. Isto proporcionava, segundo ele, as bases para a formação de uma
aristocracia rural no país, à qual pertenciam alguns mestiços proprietários de terras. Esses
mestiços possuíam algum valor. Vianna os designava de eugênicos.

Esses mestiços, eugênicos ou superiores, cuja existência é impossível negar,


têm uma antropogênese ainda mal conhecida – porque seu estudo tem sido
feito com um ponto de partida falso. Parte-se da suposição de que o tipo
negro é um só; quando a verdade é que o tipo negro apresenta uma
considerável variedade, tanto somática, como psíquica. (VIANNA, 1987a:
100).

Segundo esse autor, a variedade de tipos humanos teria possibilitado à existência de


mestiços superiores susceptíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos na
organização e civilização do país. Para Vianna, eram aqueles mestiços que, em virtude de
caldeamentos sexuais felizes, mais se aproximavam, pela moralidade e pela cor, do tipo da
raça branca100 e se identificavam com a classe dos grandes proprietários de terras por
similitude de características pessoais e comportamentos. Assim,

Os preconceitos de cor e de sangue, que reinam tão soberanamente na


sociedade do I, II e III séculos, têm, destarte, uma função verdadeiramente
providencial. São admiráveis aparelhos seletivos, que impedem a ascensão
até às classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formigam nas
subcamadas da população dos latifúndios e formam a base numérica das
bandeiras colonizadoras. (VIANNA, 1987a: 103).

Muitas vezes, sob a chancela de leituras equivocadas ou realizadas com pressa e sem
critérios, o racismo científico é totalmente atribuído aos autores nacionais predominantes na
chamada Primeira República. No entanto, muitos desses agentes sociais, com pouquíssimas
exceções, estavam procurando um caminho para o povo ou raça que representasse a sociedade
brasileira, afirmando que éramos um país viável. Enquanto que os autores identificados com o
determinismo biológico negavam qualquer chance para o homem e a terra no Brasil. Os
autores sanitaristas e eugenistas sofriam, de alguma forma, influências do racismo cientfico
do século XIX. Aconteceu a Reversibilidade da Degeneração Racial. Em lugar de negar a
nação, passou-se a tentativa de salvá-la. O que estamos demonstrando, são as tensões
existentes entre as diferentes propostas. Porém, é certo e, temos alertado, ao longo da tese,
que as teses deterministas e racistas nunca foram completamente abandonadas.

100
“Em regra, o que chamamos mulato é o mulato inferior, incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais
baixas da sociedade e provido do cruzamento do branco com o negro de tipo inferior. Há, porém, mulatos
superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos suscetíveis da arianização, capazes de
colaborar com os brancos na organização e civilização do país.” (VIANNA, 1987: 101).
100

Acreditamos que dessa maneira, estaremos empenhados em desvendar os meandros do


pensamento social do país. Quase todos os intelectuais do período entre 1870 e 1930, pelo
menos em algum momento de suas vidas, pensaram a miscigenação101 racial como um
problema a ser solucionado. Em maior ou menor grau, a questão racial era a grande questão
nacional. Para alguns, a mistura racial era um obstáculo ao desenvolvimento econômico e
social. Viam como a prova da evolução do Brasil um suposto e crescente branqueamento. Aos
olhos desses homens, essa expressão não se referia apenas à cor da pele. Naquela conjuntura,
com o país recém-saído do escravismo colonial e da abolição da escravidão, as idéias e as
atitudes estavam, e ficariam por muito tempo, impregnadas por símbolos que marcaram as
relações sociais escravistas.

Nosso objetivo não é apresentar uma análise conclusiva acerca do racismo científico102
ou do movimento sanitarista, ou ainda, sobre o campo eugênico nacional. O que pretendemos
é esclarecer alguns pontos que permanecem nebulosos.

3.1 Racismo Científico

Comumente, mesmo em círculos acadêmicos e profissionais, confunde-se eugenia


com racismo científico e determinismo biológico. Não excludentes, são conceitos diferentes
que nasceram em reação aos movimentos (sociais e políticos) que almejavam condições de
vida mais igualitárias para os trabalhadores. Sem dúvida, foram idéias que tiveram sua origem
no descontentamento com um mundo que se transformava, abolindo privilégios estamentais.
Assim, diante da ameaça de uma igualdade jurídica, a resposta foi a comprovação científica
de uma desigualdade biológica e natural entre os indivíduos. O racismo científico foi uma
doutrina que apresentando-se universal e racional, afirmava que existiam hierarquias dentre as
raças humanas. A idéia subjacente era a de promover a raça ariana como a mais desenvolvida,
inteligente e, portanto, mais apta para governar as outras raças. A Eugenia, por seu lado,

101
Kehl declarava no Correio da Manhã: “Não tenho em mira, tratando do cruzamento de raça, deprimir uma,
rebaixar outra, para elevar a branca. Interessa-me apenas, a questão do cruzamento para a melhoria progressiva
da nossa nacionalidade”. KEHL, Renato. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 16 mai. 1924. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz. Convém alertar que não estamos preocupados com as possíveis manifestações
racistas dos autores. Evidentemente, esses homens demonstram-se profundamente racistas. Queremos analisar as
implicações sociais e políticas das considerações realizadas. Indagamos como era imaginado o progresso do país.
Como os intelectuais pensavam transformar o Brasil identificado como uma terra de feios, pobres e doentes em
um lugar promissor?
102
Sobre racismo científico, consultar MAIO & SANTOS (1998). Ver também MOOG (1978).
101

procurava o aperfeiçoamento da espécie humana através da seleção artificial. Havia que


selecionar os melhores espécimes humanos, aqueles que demonstrassem possuir as
características mais adequadas para transmiti-las às gerações e incentivá-las a reproduzir-se,
de maneira a melhorar os descendentes. De todo modo, era absolutamente necessário manter
as multidões afastadas. Afinal, eram novos atores políticos que surgiam na cena política. E, no
Brasil, além das diferenças conceituais, o pensamento eugênico nacional demonstrou ser
muito sofisticado e o eugenismo brasileiro mais complexo.

O maior representante da Eugenia no Brasil foi, sem dúvida, o médico Renato Kehl.
Mas, ele não estava sozinho. Produziu a maior parte de sua obra intelectual em uma época
onde a preocupação com a identidade nacional e a formação da nacionalidade imperava. Para
entender os conceitos presentes na obra de Kehl é necessário compreender o percurso
realizado pelo autor. Ele se apoiava nos saberes das ciências biomédicas emergentes para
responder como era o Brasil e como deveria ser construída a nacionalidade brasileira. Ao
formular as representações sobre o país, Kehl tentava explicar a sociedade. Um período onde
os intelectuais que pensavam hegemonicamente103 o Brasil, além de considerar a raça branca
superior às demais, condenavam a composição racial heterogênea, porque essa gerava seres
degenerados. De um modo geral, era assim que pensavam o grupo de intelectuais que
estimavam a miscigenação como um mal insanável104 e o Brasil completamente inviável. No
entanto, os discursos eugênicos brasileiros e, principalmente, o pensamento de Kehl,
apresentaram-se de maneira muito singular. Para além da simples consideração da
inviabilidade do Brasil, devido ao seu povo mestiço, o eugenismo brasileiro reconhecia e
lamentava essas inferioridades, mas trataria da construção e reforma desse povo e do país. E,
também diferentemente dos outros representantes intelectuais do movimento sanitarista, que
congregava cientistas, médicos, educadores e demais intelectuais, membros importantes do
pensamento social brasileiro, Kehl adicionaria ao conjunto de ações preconizadoras para a
salvação do Brasil a coerção, ou, ao menos, a total planificação estatal para a vida humana.
No Brasil, a hegemonia do racismo científico e do determinismo biológico metamorfosear-se-
ia num eugenismo peculiar, próprio do campo eugênico brasileiro.

O movimento sanitarista refutara a explicação dominante do pensamento social e


político que atribuía aos tipos mestiços, decorrentes da mestiçagem racial, o insucesso
103
Os intelectuais sanitaristas e eugenistas estavam em disputa no campo para construir uma nova hegemonia.
104
Sobre as teses negativistas da história do Brasil, consultar MOOG (1978). O livro, escrito nos anos 50 do
século passado, ainda é uma boa fonte para estudar as leituras que identificavam a colonização brasileira como
explicação para a triste realidade nacional.
102

econômico e cultural do país. Para os membros do movimento, os homens eram improdutivos


porque estavam doentes. Portanto, diferentemente das análises influenciadas pelos conceitos
do racismo científico e do determinismo biológico, os intelectuais sanitaristas opinavam que
era possível resgatar o Brasil e sua gente. Muitos dos eugenistas nacionais tendiam a
concordar com essas teses. No entanto, os mais radicais, e entre eles, especialmente, Renato
Kehl dizia que, apesar de doentes, os habitantes dessa parte do planeta não abandonavam o
estado de imperfeição sob o ponto de vista das leis da hereditariedade. Assim, para Kehl era
necessário um conjunto105 de ações para tornar os brasileiros doentes e feios em fortes e belos.
Esse resultado seria obtido com uma série de estratégias educativas, sanitaristas e eugenistas,
essas últimas identificadas com a vertente negativa que apregoava a esterilização arbitrária
como absolutamente necessária ao progresso e que deveria ser controlada pelo Estado. Enfim,
a Eugenia como Kehl pensava.

No seio do campo eugênico o tema da esterilização vai ganhar força no final dos anos
20. No entanto, Khel já defendia esse procedimento nos anos anteriores. Queremos destacar
que, embora seu conceito de eugenia seja amplo e um pouco flexível, Kehl era um dos poucos
autores que, mesmo antes de 1920, já pensava em intervir energicamente na sociedade por
meio de exames pré-nupciais, autorização estatal para o casamento, esterilização e isolamento
compulsório. Mas, também, desde o início da campanha eugenista (1917) ele não descartava
as outras ações. Vamos lembrar que, em 1922, Renato Khel participou da construção de um
Museu da Higiene apresentado nas comemorações do Centenário da Independência. Esse
tríplice aspecto que a Eugenia assumiu no Brasil é relevante destacar. Nesse sentido, Renato
Khel foi o mais legítimo representante de um campo eugênico nacional, articulado com a
construção da ordem e de uma cidadania excludentes. Para tanto, as ações educativas e
sanitaristas foram analisadas como imprescindíveis para salvar o povo, mas atos como a
esterilização compulsória, eliminando os criminosos e “grandes degenerados”, eram
necessários, para que o Brasil fosse transformado numa nação moderna. Em suma, essa era a
visão do eugenista de Limeira:

105
Sobre esta hibridização de estratégias, largamente aceita por intelectuais eugenistas, que, ao que parece, não
se contentavam ou até mesmo duvidavam da eficácia de uma ou de outra teoria científica, encontramos
afirmações que indicam a certeza de que utilizando tais várias ações, haveria a chance de o Brasil tornar-se uma
grande nação. Vejam a esse respeito, as palavras de Miguel Couto: “Não podemos deixar nossa pátria em
atraso: cada geração plasma a seguinte, por meios suaves e suasórios se possíveis; coercitivos se necessários”.
In: COUTO, Miguel. Medicina e Cultura, Rio de Janeiro, 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
103

Em resumo: somos de opinião que a esterilização é indicada em casos


especiais de doença e miséria: que ela deve ser aplicada, compulsoriamente,
a certos criminosos e em certos casos de degeneração somatofisica; que ela
poderia, uma vez aplicada, eliminar caracteres Blastoforicos ou, pelo menos,
reduzi-los, consideravelmente; isoladamente, porém, não levantaria o grau
da perfeição humana. A Esterilização deve, pois ser considerada como um
processo de valor eugênico, mas não um recurso capaz de, por si só,
resolver o problema da constituição da elite eugênica. [Grifo nosso].
(KEHL, 1929:175).

Os intelectuais nacionais identificados, de alguma maneira, com o racismo cientifico


destacavam, de maneira ampla, a inferioridade e a degeneração dos mulatos. Para eles, os
cruzamentos sexuais entre indivíduos de etnias diferentes, além de promíscuos, seriam
produtores de elementos incapazes para o progresso da nação. Segundo as teorias mais
ortodoxas, os mestiços traziam os defeitos das raças inferiores. Portanto, os brasileiros, frutos
da mestiçagem, eram preguiçosos e parasitas por defeitos de origem. Os intelectuais
sanitaristas discordariam dessa inclemente inviabilidade e destacar-se-iam neste cenário, pois
consideravam que o problema não era absolutamente derivado do suposto determinismo
biológico. Porém, o racismo científico não era de todo ausente. Ele ainda influenciava a
análise sanitarista. De certo modo, o que ficaria sepultado era a determinação climática. A
racista nunca desapareceria.

Para os membros do grupo intelectual sanitarista/eugenista, a explicação era outra. O


diagnóstico estava errado. O homem e o meio estavam doentes. A regeneração era possível
por meio de ações sanitaristas e eugenistas. As propostas de sanitaristas e eugenistas
complementavam-se. Em conjunto, diriam que, além de sanear as áreas urbanas e rurais,
controlar as epidemias, instalar postos médicos e sanitários, era necessário cuidar do povo de
maneira eugênica e educativa. Tratava-se, portanto, de aprimorar a raça nacional por meio da
higienização das células reprodutoras. Torná-las mais aptas para a consciente reprodução.
Como? Através da Educação e do Saneamento. Para os casos mais graves - e sem dúvida,
para os eugenistas, esses eram muitos, seria aplicada a esterilização compulsória e outras
ações radicais, evitando o nascimento e a reprodução dos Jecas tristes e infelizes e assim,
solucionando o problema das raças no Brasil:

Quanto ao verdadeiro fim da esterilização, que é a melhoria eugênica da


raça, temos a dizer que esse processo oferece certas dificuldades para se
tornar eficiente, além das que referimos. Para se chegar a um resultado
completo seria necessário que a esterilização fosse aplicada
compulsoriamente, de um modo permanente, e em vasta escala, não
poupando mesmo os indivíduos que aparentem superficialmente
normalidade e que, no entanto, intrinsecamente, são defeituosos(...) a
104

esterilização é de efeitos indubitáveis e claros. Mas a sua prática encontra


sérios embaraços. O nosso entusiasmo por essa operação regeneradora não
vai ao encontro de desconhecermos as dificuldades que ela encontra na sua
execução (...) A esterilização, pois, deve ser considerada um processo
eugênico importantíssimo, mas não um meio único de elevação somática e
física da espécie humana, que só será alcançada pelos processos combinados
de eugenização106.

Sanitaristas e determinados eugenistas (não todos) entendiam que as reformas


sanitárias aprimorariam a capacidade hereditária dos brasileiros. As condições ambientais do
país dever-se-iam modificar-se para que, transformando os indivíduos, os seus descendentes
fossem beneficiados. Práticas políticas e sociais identificadas com a eugenia exemplificam
essa filiação neolamarckista: campanhas contra o alcoolismo e doenças venéreas. Assim,
coexistiam teorias que adotavam uma seleção racial capaz de embranquecer a população,
produzindo um tipo nacional pelas sucessivas miscigenações, com teses de que o futuro
eugênico seria resultado também de um aperfeiçoamento no progresso social. Tal
complementação de teorias é amplamente considerada pelos poucos exemplos historiográficos
que tratam da eugenia brasileira como sendo um erro, uma cópia mal feita da verdadeira
eugenia (importada) ou, ainda, resultado da ausência de uma formação específica (científica)
por parte dos eugenistas nacionais. Discordamos dessa perspectiva, pois, afinal essa amplitude
de técnicas eugênicas não representava uma má interpretação de teorias alienígenas e sim a
construção de um pensamento brasileiro original. É possível observar que, na citação anterior,
retirada de um texto de 1921, Kehl tecendo comentários sobre a esterilização, refere-se a
processos múltiplos de eugenização: “(...) a esterilização, pois, deve ser considerada um
processo eugênico importantíssimo, mas não um meio único de elevação somática e física da
espécie humana, que só será alcançada pelos processos combinados de eugenização”. Para
ele, a esterilização deveria estar acompanhada de outras técnicas eugenistas.

Como pano de fundo da tentativa de implantar políticas públicas infuenciadas pelo


eugenismo, estava a crença que o Estado deveria cuidar das mazelas da sociedade. Nesse
campo, eugenistas mendelistas ou seguidores do neolamarckismo, defendiam abertamente
propostas que, aliás, não diferiam das ações reivindicadas pelos componentes do universo de
sanitaristas e educadores que alertavam para a importância das reformas na saúde e na
educação para a evolução do País. Itens importantíssimos, como a autoridade do Estado em
controlar políticas que orientariam o nascimento e a vida das pessoas, eram questões que

106
KEHL. A Esterilização sob o ponto de vista eugênico. In: Brazil-Medico. 26/03/1921. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
105

estavam presentes em quase todos os discursos dos agentes do campo eugênico. Várias das
leituras efetuadas pela historiografia sobre a eugenia no Brasil, insistem em ler na trajetória da
eugenia latina, a oposição entre os adeptos do neolamarckismo e do mendelismo como um
elemento crucial e determinante do campo, apesar da história política do movimento eugênico
da América Latina ainda está por ser investigada e certamente tem nexos que ultrapassam
querelas científicas. Por exemplo, a articulação das idéias e práticas eugenistas com os
sucessivos governos autoritários e repressivos das repúblicas latino-americanas durante o
seculo XX.

Em linhas gerais, a teoria lamarckista explicava a evolução por uma crescente


adaptação ao meio, ao contrário da seleção darwinista. Para um lamarckista, a herança das
características adquiridas seria responsável pela origem dos bem dotados. As noções
lamarckistas justificavam a crença otimista de que o esforço humano adquiria sentido. Afinal,
os “melhoramentos” adquiridos ao longo da vida poderiam ser transmitidos geneticamente,
tornando o progresso possível. Assim, o lamarckismo transformou-se num neolamarckismo,
passando a significar uma teoria específica sobre os mecanismos da hereditariedade. Ampla e
simplificadamente, os mendelistas tendiam a não aceitar que mudanças no meio
transformassem as gerações descendentes.

O neolamarckismo, por seu lado, defendia a idéia de que fatores ambientais


provocariam o surgimento de modificações que poderiam ser transmitidas aos descendentes.
Para os mendelistas, o equívoco da teoria lamarckista era o de afirmar a herança de mudanças
adquiridas. Porém, entre os intelectuais eugenistas, membros do campo eugênico nacional,
não havia uma distinção tão rígida quanto foi (é) apregoada. Além disso, os eugenistas
neolamarckistas brasileiros aceitavam as leis da hereditariedade de Mendel, mas, todavia,
abriam espaço para a noção de que, de alguma maneira, a influência do meio poderia alterar o
plasma germinativo107.

Em suma, o neolamarckismo admitia serem fatores de evolução das espécies a seleção


e a herança por parte dos descendentes de determinadas características adquiridas durante a
vida pelos ascendentes. Tratava-se da convicção da transmissão dos caracteres adquiridos.

107
August Friedrich Leopold Weismann (1834-1914) é reconhecido por duas contribuições com relação à teoria
da hereditariedade. A primeira foi sua crítica ao princípio da herança das características adquiridas. A segunda se
refere à distinção entre o plasma germinativo (responsável pela hereditariedade, presente nas células
reprodutivas) e o plasma somático (células do corpo). Weismann admitia que o plasma germinativo era
transmitido de uma geração a outra.
106

Desse modo, inspirados nas orientações neolamarckistas, os eugenistas acreditavam que as


doenças venéreas, a tuberculose, o alcoolismo – os chamados venenos raciais – poderiam
degenerar a prole de pais portadores desses males. O alcoolismo, por exemplo, o grande
inimigo da humanidade, era visto como uma das principais causas da degeneração da raça e
do futuro da nacionalidade.

Como podemos averiguar nos relevantes trechos retirados das obras dos intelectuais
eugenistas, as distinções sobre a função da educação e da capacidade de transmitir
características eram tênues. Por meio da literatuta historiográfica especializada, apenas Kehl é
nomeado como neolamarckista. No entanto, mesmo considerando que o discurso de Roquette-
Pinto se originava das concepções mendelistas, é preciso destacar que esse antropólogo
compartilhava das idéias sanitaristas para reformar a sociedade. Será (ia) uma falsa oposição
entre as teorias mendelistas e neolamarckistas?

A hereditariedade é para cada individuo um fator constante, mas o meio e a


educação são fatores variáveis. Quer dizer, a hereditariedade é uma cousa
fatal, inalterável após a fecundação do óvulo. Mas, a educação e o meio
podem ser tais, que influam mais ou menos desta ou daquela forma.
(DOMINGUES, 1929:41).

A herança psicológica é uma realidade. Os indivíduos nascem


diferentemente providos de atributos psíquicos. Pela educação, poder-se-á
aproveitar as qualidades boas, e desenvolvê-las suficientemente, e fazer
adormecer as inferiores. (DOMINGUES, 1929:80).

A influência da hereditariedade com relação à estrutura do corpo é decisiva,


sendo restrita e quase sempre oscilante a da alimentação e dos hábitos de
vida. Cada indivíduo apresenta a estrutura somática segundo a constituição
celular e glandular que lhe é própria, de acordo, portanto, com as
particularidades inatas. Todos os esforços para modificar, de modo estável,
esta estrutura, são nulos ou prejudiciais. Consegue-se quando muito, aliás,
com vantagem, corrigir a excessiva corpulência ou a excessiva magreza por
meio de regimes e tratamentos especiais. Nada mais. Cada indivíduo
apresenta, em definitivo, o prêmio mendeliano que lhe coube por sorte,
legado pelos pais e transmissível aos descendentes. (KEHL, 1942:112).

Ambos os grupos – mendelistas e neolamarckistas – possuíam argumentos sobre o


poder e a eficiência de suas escolhas teóricas. Membros do segundo grupo defendiam as
campanhas contra o consumo de álcool, doenças venéreas e ações sanitaristas como atividades
imprescindíveis e necessárias para a caminhada eugênica da raça nacional. Os partidários do
107

grupo108 mendelista tendiam a afirmar que práticas privilegiando a permanência de caracteres


hereditários considerados favoráveis eram de conseqüências mais eficazes e duradouras. E
ainda havia os que defendiam a esterilização como um ato fundamental para erradicar os
degenerados, criminosos e doentes mentais. Mas, um elemento era preponderante, ou seja, a
identificação do problema: os brasileiros eram analfabetos, feios, pobres e doentes. Diriam os
mais radicais que eles carregavam em sua constituição hereditária os fatores degenerativos,
que seriam a causa determinante de tantos problemas. Além dessas condições, havia o perigo
das doenças mentais, do alcoolismo e das enfermidades venéreas, que ajudavam a corroer o
corpo e o espírito. Para eliminar quaisquer resquícios dessas cargas genéticas negativas,
Renato Kehl, por exemplo, pregava abertamente a esterilização compulsória e contínua. Aliás,
desde o início da sua militância em prol da eugenização da raça nacional, considerava a
prática como inestimável para o bom funcionamento da sociedade. Porém, elementos
importantíssimos, eram proclamados como exigências para a eficácia e garantia do projeto
eugenista: a centralização dos serviços eugenistas nas mãos do Estado; O Estado com
autoridade para planejar e intervir na sociedade e, por último, a devida assessoria de
intelectuais, notadamente os cientistas, legitimando as escolhas sob o manto protetor e
legitimador da ciência.

Apesar das relevantes contribuições realizadas pelos cientistas sociais para o


conhecimento histórico, estudando a presença, difusão e institucionalização das idéias
eugenistas no Brasil, EUA e Europa, essas análises apresentam uma tendência à naturalizar as
diferenças, como se as diversas características dos eugenismos desses países fosse uma
atribuição inata. Parece-nos uma negligência para com as estruturas de classe das Formações
Sociais. Entendemos que a história das sociedades ajuda a compreender o eugenismo e suas
diferenças espaciais e temporais. Idéias de perfeição e beleza109 estão presentes desde os
primórdios dos tempos. Sociedades da Antigüidade perseguiam um modelo de corpo belo,
mas isto ainda não era Eugenia. Portanto, não se deve identificar na busca do aperfeiçoamento
estético grego a mesma procura de aprimoramento físico e mental pretendido pelo movimento
político intelectual eugênico surgido no final do século XIX. O Eugenismo caracterizou-se

108
Consideramos que, embora existissem divergências, estas diferenciações provêm muito mais das afirmações
realizadas pelos pesquisadores contemporâneos do que de uma real distinção entre os intelectuais eugenistas ou
sanitaristas.
109
Em artigo publicado na Revista do Brasil o próprio Kehl afirmou que: “Eugenia é a ciência da boa geração.
Ela não visa, como parecerá a muitos, unicamente proteger a humanidade do cogumelar de gentes feias. Seus
objetivos não se restringem à calipedia, isto é ter filhos bonitos. A beleza é um ideal eugênico. Mas a ciência de
Galton não tem horizontes limitados; ao contrário, seus intuitos além de complexos são de uma maior
elevação...” (KEHL apud LUCA, 1999:224).
108

por um conjunto articulado de idéias, práticas sociais, atores coletivos e conjuntura histórica.
Assim, como a eugenia manifestou-se nos países de maneiras diferentes – e isto é
naturalizado, quase identificado como se a eugenia devesse estar irremediavelmente e
organicamente ligado às nações, ignorando-se as diferentes formações sociais, a história e as
classes –, igualmente as políticas públicas vêem sendo analisadas como uma extensão natural
do Estado neutro. E o aparelho estatal sempre identificado como um corpo homogêneo e
orientado por um planejamento científico e, portanto, correto e imparcial.

Mas, não havia imparcialidade nas ações eugênicas propostas. Eugenistas e sanitaristas
procuraram influenciar politicamente as políticas governamentais. Comumente, encontramos
na visão naturalista das políticas públicas, a mesma ótica desprovida de historicidade que
nega ou menospreza a existência de classes sociais110 nas sociedades humanas. Seguindo essa
linha de raciocínio teórico, a historiografia111 que vêem pesquisando a Eugenia tende a
reproduzir os conceitos que os próprios intelectuais do campo utilizavam. Dessa forma, a
hibridização de estratégias eugênicas torna-se um equívoco cometido pelos agentes sociais ou
pelas correntes de pensamento. No entanto, consideramos que, diante de nossa opção teórica-
metodológica, a conjugação de propostas aparentememte inconciliáveis representou
efetivamente uma estratégia política produzida por homens vivendo em sociedades
historicamente situadas no tempo e no espaço. Preventiva, negativa e positiva são conceitos
que os atores sociais utilizavam em seus argumentos e que devemos criticar em nossas
investigações. Não podem constituir-se em armas analíticas dos pesquisadores localizados no
tempo presente em instituições de pesquisa e ensino.

Na década de 1920, encontramos uma sofisticada rede de controle social. A construção


da sociedade brasileira, sob moldes capitalistas após a Primeira Guerra (1914-1918), requeria
uma intervenção nos movimentos de sua população dividida em múltiplos grupos sociais.
Costumes sociais foram objetos de preocupação por parte dos reformadores que pretendiam
110
Inclusive, consideramos que grande parte das diferenças sociais e históricas encontradas entre as idéias e
praticas eugênicas dos diversos países deve-se às redes e relações institucionalizadas que os indivíduos têm entre
si: as Classes Sociais. Uma característica que define a identidade da eugenia brasileira é que esta política de
seleção humana foi difundida por cientistas, juristas, professores e demais intelectuais da época dentro das
agências de Estado.
111
Ao longo do texto, tenho feito comentários à historiografia que trata da Eugenia no Brasil. Na verdade, são
poucos títulos. Porém, faço menções aos trabalhos de Nancy Stepan (2005) e Souza (2006) e, embora, as minhas
referências sejam críticas a estes textos, é certo que eles constituem marcos fundamentais para pensarmos a
trajetória das idéias eugenistas no Brasil. Quero registrar os bons trabalhos de KOIFMAN (2007) e REIS (1994).
Mas, se a produção ainda é incipiente, o numero de artigos, livros e tese sobre o tema (Eugenia) está crescendo.
Já existe mesmo uma literatura que - por falta de um nome mais adequado chamarei de divulgação -invadiu as
livrarias. Até mesmo textos que na sua origem nasceram dentro da academia transformaram-se num processo de
simplificação em produções bastante veiculadas na chamada “mídia”. Cito, neste caso, DIWAN (2007).
109

construir uma nova e almejada sociedade. Foi considerado absolutamente necessário para a
regeneração dos indivíduos que as atitudes sociais fossem adaptadas aos símbolos
emergentes. Em reveladora entrevista, no ano de 1937, um exaltado Renato Kehl demonstrava
preocupação com o comportamento dos Jecas, pois, segundo o eugenista, os hábitos dos
brasileiros eram impróprios para um povo civilizado: “Endireite o corpo! Levante a cabeça!
Brasileiro: firme! Não me posso conformar com a atitude mole, indolente, inexpressiva –
muitas vezes grosseira ou cafajéstica que assumem certos indivíduos em público”. E, mais
adiante, condenava “as atitudes habituais do nosso Jeca, cujas posturas se acham
suficientemente fixadas em charges humorísticas dos nossos caricaturistas”.112

Um relevante ponto da trajetória do movimento eugênico foi o final do século XIX.


Naquela época, o médico Agostinho José de Souza Lima em plena e tradicionalíssima
Academia Nacional de Medicina, chamava a atenção para os perigos que representava para a
nacionalidade, a ignorância dos assuntos eugênicos. Mas, somente em abril de 1917, a pedra
fundamental da Eugenia no Brasil foi efetivamente lançada. Uma conferência realizada por
Kehl na cidade de São Paulo, a convite de dois empresários norte-americanos que dirigiam a
Associação Cristã de Moços, foi considerada o marco fundador da eugenia nacional. Sem
dúvida, ela representou um momento especial do campo eugênico. Com o nome de Eugenia,
essa palestra foi publicada nas páginas do Jornal do Commércio (edição paulista), em 19 de
abril, ganhando uma repercussão no meio intelectual. Na década anterior, os primeiros
trabalhos sobre eugenia haviam sido escritos por Erasmo Braga, Horácio de Carvalho e João
Ribeiro.

Também há notícias de que, por volta de 1912, na cidade de Salvador (BA), Alfredo
Ferreira de Magalhães realizou uma conferência sobre Puericultura e Eugenia. Magalhães,
professor da Faculdade de Medicina, que também participou do Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia, demonstrava a educação como meio de evitar a propagação dos vícios
sociais, vistos como responsáveis pela degeneração física e moral da raça: o alcoolismo e as
doenças venéreas. Porém, somente em 1914, o médico Alexandre Tepedino, ao colar grau em
medicina, apresentou a primeira tese médica totalmente dedicada ao tema. Com o título de
Eugenia, o trabalho foi orientado por Miguel Couto, que seria um dos principais participantes
do Congresso Nacional, tendo integrado por várias legislaturas, movimentos políticos dentro
do campo eugênico. Como prova da força política desse grupo, dezenas de médicos

112
Entrevista com Renato Kehl, Jornal A Offensiva, 10 dez. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
110

eugenistas foram membros da constituinte que prepararia a nova Carta após a Revolução de
1930. Ressaltaremos a atuação de Couto na formulação e implementação de políticas para o
controle eugênico da imigração.

Portanto, ainda demoraria alguns anos para que a temática da eugenia se impusesse.
Foi somente em 1917, que ela ganhou definitivamente, as páginas dos jornais e as discussões
políticas e intelectuais sobre os rumos da raça e do Brasil tornaram-se corriqueiras. No texto
que é considerado pelos atores sociais e pesquisadores do eugenismo como o marco fundador
da Eugenia no Brasil, Khel afirmava que eram humanitários os desígnios do eugenismo:

Os eugenistas não visam a despopulação sem discernimento, o seu fito é


alevantado, é impedir a prolificação sempre crescente dos inúteis, dos
incapazes, que constituem os parasitas inocentes, cooperadores das
dificuldades da vida. Estes nada produzem, aumentam, entretanto, a miséria
e tributam a parte sã que trabalha.113

3.2 O Manifesto Eugenista

O próprio Kehl, “Pai” da Eugenia entre nós, reconhecia as várias iniciativas anteriores
em prol da nascente ciência, inclusive, o pedido que o Professor Agostinho Jose de Souza
Lima apresentou em 1897 solicitando apoio à Academia Nacional de Medicina para o
estabelecimento de leis tornando obrigatório o exame pré-nupcial para a realização de
casamentos e o confinamento legal de doentes tuberculosos e sifilíticos, mas, somente em
abril de 1917, a Eugenia teve a sua “inauguração” no Brasil. Na mencionada palestra no
Congresso de 1929, Kehl inventariou os trabalhos pioneiros sobre eugenia. No texto, o
eugenista detalhava os trabalhos anteriores a palestra de 1917. Foram poucos. Erasmo Braga,
Horácio de Carvalho e João Ribeiro escreveram pequenos artigos na imprensa paulista e
carioca. Kehl também não esqueceu de citar que, em 1914, apareceria a tese inteiramente
dedicada à Eugenia. Apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por Alexandre
Tepedino.114 É curioso observar que o trabalho escrito por Tepedino como requisito para a
graduação em Medicina foi apresentada quando Kehl era ainda um estudante em formação.

113
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, p.75. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
114
Tepedino foi orientado por Miguel Couto.
111

No discurso fundador115 da Eugenia do Brasil, Kehl destacava os princípios da nova


ciência: o estudo da hereditariedade, a educação higiênica e a seleção dos cônjuges. Nesse dia,
segundo o próprio Kehl declararia anos depois, ele ficaria convencido da possibilidade de
formar uma associação, como tantas outras que estavam sendo criadas como a Liga de Defesa
Nacional, a Liga Nacionalista e a Liga Pró-Saneamento do Brasil. Fundada em fevereiro de
1918 na sede da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), portanto, nascida com poucos
dias de diferença da criação da liga eugenista( Sociedade Eugênica de São Paulo), a sociedade
pró-sanitarismo deu repercussão ao movimento, cujo objetivo declarado era a implantação em
todo o território nacional das práticas sanitárias pelo Estado nacional.

A criação dessas ligas médicas nacionalistas foi um desdobramento da campanha


provocada pelos artigos publicados por Belisário Penna, entre novembro de 1916 e janeiro de
1917, no jornal Correio da Manhã. A Liga Pró-Saneamento seria presidida pelo próprio
Penna, tendo entre suas principais propostas a institucionalização do combate às endemias
rurais por meio de uma política sanitária nacional exercida de maneira centralizada pelo
governo da União. As endemias rurais haviam sido consideradas por médicos,
administradores da saúde pública e intelectuais como Carlos Chagas e Monteiro Lobato, os
principais obstáculos ao progresso social das populações sertanejas do Brasil. Durante seus
dois anos de atividade, a Liga publicou a revista Saúde, um periódico, que, apesar de não
haver ultrapassado oito números, é uma excelente fonte para estudar as idéias do saneamento
rural. Ao lado de textos sobre os mais variados assuntos, Saúde veiculava artigos sobre as
endemias rurais e os temas caros ao saneamento. A Liga estabeleceu delegações em alguns
estados da federação, visando estimular os governos estaduais a implementarem a construção
de habitações higiênicas, a profilaxia de doenças, programas de educação higiênica, postos
médicos rurais e obras de saneamento básico como a dragagem dos rios e lagoas. Em seu
período de vigência congregou diversos intelectuais, médicos, advogados, engenheiros,
militares e políticos, entre eles o próprio Presidente da República, Wenceslau Brás.

O estatuto da Liga reservava atenção especial à propaganda e educação dos


ensinamentos higiênicos. A Liga deveria propagar pelos livros, jornais, revistas, folhetos e
conferências os ensinamentos da higiene, considerada a alavanca poderosa de todo o
progresso. Além disso, caberia promover o ensino da higiene em todas as escolas primárias,

115
Kehl, em vários momentos da sua vida, deixou claro que considerava a conferência realizada na ACM no dia
13/04/1917, como sendo o marco fundador da Eugenia no Brasil.
112

profissionais, públicas e particulares, superiores, civis e militares, religiosas, nas fábricas,


fazendas e quartéis. Deveria, ainda, apoiar os poderes públicos nas medidas de caráter
higiênico, auxiliando-os pela propaganda no lar e na escola. Além de estabelecer cursos de
higiene, profilaxia e tratamento das moléstias endêmicas do Brasil, para difundir o
saneamento.

As propostas da Liga Pró-Saneamento do Brasil conquistaram, também, uma parcela


dos políticos do Congresso Nacional que não eram médicos, mas que defendiam a intervenção
do Estado no campo da saúde pública116, talvez seduzidos pelos discursos ou mesmo
convencidos da necessidade de ajudar o país. Contando com a adesão de setores da sociedade,
a atuação das ligas conferiu grande visibilidade ao tema da saúde pública, que ganhava as
páginas dos grandes jornais e se tornava uma questão central no debate político nacional. A
Liga Pró-Saneamento obteve como resultado imediato de sua atividade a criação do Serviço
de Profilaxia Rural em 1918, cuja direção foi entregue ao próprio Belisário Penna.
Subordinado, a princípio, à Diretoria Geral de Saúde Pública e, a partir de maio de 1919,
vinculado diretamente ao Ministério da Justiça, o órgão tinha entre suas finalidades combater
as três endemias consideradas mais importantes: a Malária, a Ancilostomíase e a Doença de
Chagas.

A Liga Sanitarista seria extinta após o Congresso Nacional aprovar a criação do


Departamento Nacional de Saúde Pública, em janeiro de 1920, atendendo às reivindicações
dos intelectuais. Esse órgão administrativo da saúde reorganizaria os serviços sanitários do
país e ampliaria para todo o território nacional a responsabilidade da União na promoção
desses serviços. Na palestra proferida em 1917, Kehl já destacava a articulação entre a
divulgação dos princípios eugênicos e sanitaristas e a vigilância das normas. Trabalho que
seria executado pelas associações políticas, como as ligas e pelos departamentos
governamentais como o DNSP:

Prossigamos, pois, na cruzada encetada, divulguemos os princípios


eugênicos e velho-e-mos triunfar, impondo-se pela convicção, pela

116
A repercussão da Liga foi ampla. Da ata de fundação constam nomes influentes da política e da cultura e
ciência. Meses após a criação da associação, intelectuais requeriam sua inscrição junto a ela. Em carta datada de
24 de abril de 1918, dirigida a Roquette-Pinto, Plínio Cavalcante comunicava em nome da Liga que estava aceita
sua entrada no conselho do grupo: “Venho com a maior satisfação comunicar-vos ter sido a vosso ilustre nome
incluído e unanimemente aceito entre os membros do conselho supremo da Liga Pró Saneamento do Brasil”.
Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
113

instrução, e não por medidas ditadas pela força da lei. Assim, serão
eliminados os indivíduos despidos de senso, os de vida parasitaria.117

E a associação dos eugenistas? Paralelo à criação da liga sanitarista, após uma


campanha liderada por Renato Kehl, depois de sua comunicação realizada na ACM, centenas
de médicos se encontraram, aos 15 dias de janeiro de 1918, para a sessão inaugural da
Sociedade Eugênica de São Paulo. Contando com 140 membros, teve como fundador e
presidente o médico Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho (1867-1920), diretor da Faculdade
de Medicina de São Paulo. Certamente seu nome contribuiu para angariar o interesse dos
intelectuais do estado. Carvalho mantinha relações familiares e pessoais com políticos
influentes.118 Afinal, além de sua participação nas ligas ostensivamente nacionalistas, ele era
sogro de Júlio de Mesquita, diretor e proprietário do importante e poderoso jornal O Estado
de São Paulo.

Aliás, poucos grupos souberam usar tão bem as relações pessoais para consolidarem
suas posições sociais como as famílias Mesquita e Carvalho, que estavam unidas por vários
laços. Júlio de Mesquita (1862-1927) e Arnaldo Vieira de Carvalho casaram seus filhos: Júlio
de Mesquita Filho (1892-1963) e Marina Vieira de Carvalho; Francisco Ferreira de Mesquita
(1897-1963) e Alice Vieira de Carvalho (1901-1992) e, finalmente, Judith de Mesquita (1897-
1963) e Carlos Vieira de Carvalho (1898-1954). (GUIMARAES, 1967). Carvalho, um
legítimo representante das auto declaradas “classes produtoras”, nascido em Campinas no dia
5 de janeiro de 1867, interior do estado de São Paulo, formou-se em Medicina no Rio de
Janeiro em 1889. Sua tese de conclusão do curso, apresentada na Cadeira de Medicina e
Cirurgia de Crianças, foi o Tratamento das Coxalgias. Trabalhou na clínica da Santa Casa de
Misericórdia e no serviço de imigração como médico da Hospedaria de Imigrantes. Foi diretor
do Instituto Vacinogênico de São Paulo de 1893 a 1913 e sócio fundador da Sociedade de
Medicina e Cirurgia de São Paulo em 1895, sendo seu presidente entre 1901 e 1906. Sua
figura está de tal forma associada à Faculdade de Medicina de São Paulo, instituição que

117
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, 13 abr. 1917, p.79.
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
118
Sobre a relação da Liga Nacionalista e o jornal paulista, ver o texto de MEDEIROS, Valéria Antonia. O
Jornal O Estado de São Paulo como principal divulgador das propostas educacionais da Liga Nacionalista de
São Paulo (1916-1924). Disponível em <http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/282ValeriaAntoniaMedeiros.pdf>.
Acesso em: 16 ago. 2008. Aliás, está para ser escrito um trabalho que investigue as relações dos intelectuais
sanitaristas e eugenistas com a grande imprensa da época. Vale lembrar que além da intensa produção
jornalística de Kehl, os livros O Problema Vital, de Lobato, e o Saneamento do Brasil, de Penna, foram
originalmente artigos veiculados nos jornais O Estado de São Paulo e Correio da Manhã. Ver também
MORAES (1983).
114

ajudou a criar, sendo seu diretor de 1913 a 1920, que ela foi chamada de “a Casa de
Arnaldo”.119 Faleceu em 1920.

Carvalho era membro do grupo dirigente da Liga Nacionalista (1916-1924). Eram


bastante evidentes as ligações dos grandes jornais com a Liga Nacionalista de São Paulo.
Fundada em 1916, esta agremiação tinha entre seus objetivos principais a erradicação do
analfabetismo, a instituição do voto secreto e a obrigatoriedade do serviço militar. Contudo,
grande parte das suas atividades estava marcada por ações educativas para formar um
brasileiro novo para a pátria brasileira. O jornal O Estado de S. Paulo publicou os estatutos e
a relação dos diretores e conselheiros, bem como nas suas páginas encontramos as atas das
sessões das assembléias e do conselho deliberativo da Liga Nacionalista. Nesse sentido, o
periódico tornou-se um verdadeiro porta-voz e arquivo da Liga Nacionalista.

Mas, que interesses teriam movido os dois empresários americanos quando


procuraram Kehl, convidando-o para proferir uma palestra? Segundo as fontes, foi Kehl quem
escolheu o tema da eugenia. Os homens concordaram. Realizada na Associação Cristã de
Moços, em abril de 1917, a conferência Eugenia foi publicada na íntegra nas páginas do
Jornal do Commercio (edição paulista). O tema teve mesmo uma boa aceitação e repercussão.
Sendo esse texto apontado pelos membros do campo e por pesquisadores como o “Manifesto
Eugenista” no Brasil. Em correspondência de Lobato para Kehl, ele manifestou-se dizendo
que “sentia-se envergonhado por só agora travar conhecimento com um espírito tão brilhante
como o teu untado para tão nobres ideais e servido, na expressão do pensamento, para um
estilo verdadeiramente eugênico pela clareza, equilíbrio e rigor vernacular.”120 Kehl declarou
em suas memórias, que por essa ocasião, ele teria ficado convencido da necessidade de
divulgar o ideário eugênico para o público brasileiro. Certamente o clima nacionalista e o
movimento sanitarista teriam motivado o médico a implementar a propaganda eugênica. A
partir desse momento, ele trabalharia incessantemente pela implantação da Eugenia: “Cremos
na vitória da eugenia. Quando as reformas eugênicas forem uma realidade, o que talvez se
dará daqui a algumas gerações, então os homens serão formados de um físico e de uma moral
perfeitos.”121

119
Sobre instituições e médicos paulistas, ver TEIXEIRA (2007).
120
Carta de Lobato a Kehl. São Paulo, 06 abr. 1918. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
121
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, 13 abr. 1917, p.79.
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz. No volume ANNAES DE EUGENIA editado por Monteiro Lobato,
estão enfeixados textos da Sociedade Eugênica de São Paulo, além da palestra de Kehl na ACM. Sob o título de
115

Em dezembro de 1917, como desenvolvimento da repercussão da palestra e com o


objetivo de discutir a possibilidade de alteração do código matrimonial civil brasileiro, um
grupo de médicos reuniu-se na Santa Casa de Misericórdia. Existia uma proposta de mudança
legal do casamento, antes proibido, de pessoas com laços sanguíneos. Por exemplo, entre tios
e sobrinhas. Devido aos debates e à intensa polêmica, o eugenista Kehl, presente à ocasião,
pediu a palavra e propôs a criação de uma associação voltada para as discussões de saúde,
hereditariedade e eugenia.122 Assim, no primeiro dia de dezembro de 1917, foi lido um oficio
durante a sessão ordinária da Sociedade de Medicina e Cirurgia comunicando a iniciativa de
reunir em torno de uma agência política os interessados em discutir a Eugenia. Segundo
consta, tanto a participação como o discurso de Renato Kehl foi muito bem recebido e
aplaudido. Poucas semanas após, no início de 1918, Kehl enviava uma carta aos médicos
paulistanos e também do interior do Estado de São Paulo, convidando-os a comparecerem aos
salões da Santa Casa, onde uma outra sociedade muito importante para o campo também se
reunia - a Sociedade de Medicina e Cirurgia-, para tratar da fundação de uma nova liga
nacionalista e médica. A primeira sessão da associação de eugenistas aconteceu às 20:30h do
dia 15 de janeiro de 1918. Ao salão nobre da Santa Casa, futura sede da sociedade,
comparecerem médicos e membros da intelectualidade paulistana. Na tradicional instituição,
Kehl convocou a todos para auxiliarem na tarefa de moldar as gerações futuras.

Dessa maneira, após a publicação da palestra realizada na ACM, Renato Kehl passou a
congregar intelectuais de diversas origens, quase todos médicos, para o debate em torno da
construção da nacionalidade brasileira. Desse empenho nasceu a Sociedade Eugênica de São
Paulo, cujos objetivos eram: os estudos sobre hereditariedade, educação higiênica e sexual,
casamentos, leis de imigração, tratamento dos doentes e encarceramento dos indivíduos
portadores de patologia graves. Participaram dessa sociedade como diretores e fundadores:
Presidentes Honorários, Belisário Penna, Amâncio de Carvalho e Agostinho José de Souza
Lima. Também Arnaldo Vieira de Carvalho (primeiro presidente); Olegário Moura e Luiz
Pereira Barreto (vices-presidentes); Renato Kehl (secretário geral); Fernando de Azevedo
(primeiro secretário); T.H. Alvarenga e Xavier da Silva (segundos secretários); Argemiro

“Conferência de Propaganda Eugênica” está publicada o discurso que é considerado o marco fundador da
Eugenia no Brasil.
122
Em diversas passagens, Kehl manifestou desagrado pela atuação contrária da Igreja Católica à eugenia. A
resistência ficaria registrada na Casti Connubii, uma encíclica promulgada pelo Papa Pio XI em 1930. Ela
reiterava a santidade do matrimônio e proibia o uso de qualquer forma artificial de controle da natalidade e
afirmava a proibição do aborto. Explanava sobre a autoridade da Igreja em questões morais e advogava a
cooperação entre o poder civil e a Igreja. Essa posição oficial refletir-se-ia na trajetória da eugenia nos países
católicos.
116

Siqueira (tesoureiro-arquivista); Arthur Neiva, Franco da Rocha e Rubião Meira (comissão


consultiva). Pertenciam ao quadro de associados nomes como Oscar Freire, João Carlos de
Macedo Soares e Bernardo de Magalhães, dentre outros.

A Sociedade Eugênica de São Paulo encerrou suas atividades em 1919, ocasião em


que Renato Kehl passou a residir no Rio de Janeiro. Kehl, depois integraria a Liga Brasileira
de Higiene Mental.123 Embora de curta duração, a sociedade de eugenistas realizou intensa
propaganda, publicou seus anais e assessorou a criação de outras sociedades eugênicas na
América Latina, bem como, em conjunto com a Liga Pró-Saneamento do Brasil, publicou o
livro O Problema Vital, de Monteiro Lobato, em 1918, cujo prefácio é de autoria de Renato
Kehl. As duas instituições (A Liga Pró-Saneamento do Brasil e a Sociedade Eugênica de São
Paulo) foram criadas no intervalo de poucas semanas. Era um momento do país em que a
questão racial aparecia como central. Mais tarde, em 1931, mais uma vez sob a coordenação
política e administrativa de Kehl, seria fundada outra agência extremamente importante, a
Comissão Central Brasileira de Eugenia. Através dela, os intelectuais desse grupo,
procuraram influir mais fortemente nas políticas públicas, que deveriam ser orientadas pelo
ideário eugênico.

Intelectuais do Rio e São Paulo atuaram na Sociedade Eugênica de São Paulo.


Belisário Penna, Agostinho Jose de Souza Lima, Arthur Neiva, Franco da Rocha, Afrânio
Peixoto, Juliano Moreira, Vital Brazil, Fernando de Azevedo e outros importantes nomes da
medicina e educação eram os principais nomes, mas completavam a lista de membros, atores
sociais como o Senador da República Alfredo Ellis, além de intelectuais estrangeiros, o
eugenista peruano Henrique de Paz Soldan e o argentino Victor Delfino. A sociedade de
eugenistas afirmava ser uma organização científica de estudos sobre a eugenia, tendo por
finalidade a análise das questões de hereditariedade para a melhor reprodução da espécie
humana. Associando-se aos ideais nacionalistas, crescentes no período após a Primeira
Guerra, os eugenistas da Sociedade Eugênica de São Paulo proclamavam-se como os
portadores das respostas que levariam o Brasil, sob o auxílio da eugenia, ao rumo do
progresso e da civilização. Muitas reuniões foram realizadas nos salões da Santa Casa de
Misericórdia de São Paulo e dezenas de artigos publicados na imprensa diária e nos
periódicos.

123
Em REIS (1994), podemos ver que a participação dos médicos psiquiatras foi tão ou mais intensa que dos
demais profissionais. A bibliografia acadêmica sobre eugenia tem valorizado a participação dos sanitaristas e
negligenciado a presença dos outros profissionais.
117

No final do ano de 1919, apesar do entusiasmo criado com o debate provocado pelas
inúmeras associações médicas e nacionalistas, proporcionando a publicação de obras, onde
intelectuais como Olavo Bilac, Belisário Penna, Monteiro Lobato, Lima Barreto124 e demais
debatiam as causas e os remédios para curar o Brasil, a sociedade de eugenistas foi extinta. A
bibliografia existente aponta duas causas: a ida de Renato Kehl para o Rio de Janeiro e a
morte de Arnaldo Vieira de Carvalho. Fatos, que sem dúvida, provocaram um vazio,
especialmente devido à capacidade política de Kehl. Com a extinção da Sociedade, os textos,
artigos e conferências foram reunidos num volume editado com o título de “Annaes de
Eugenia”. Organizados por Renato Kehl e publicados por Monteiro Lobato, eles representam
o primeiro conjunto documental importante onde é possível avaliar o rumo das idéias
eugenistas. Reuniram-se mais de uma dezena de textos, inclusive a palestra inicial de Kehl,
onde a nova ciência foi saudada como o novo e milagroso remédio para os males do Brasil.

Não seria a transferência de Kehl para o Rio de Janeiro que causaria um resfriamento
do ardor eugênico. O campo eugênico já estava suficientemente organizado. Além de
encontrar na cidade maravilhosa, abrigo profissional junto ao Serviço de Profilaxia Rural,
Kehl participaria, em 1923, da fundação de uma outra associação, reunindo intelectuais de
variadas origens e categorias profissionais, embora estivesse muita bem representada pelos
médicos psiquiatras: a Liga Brasileira de Higiene Mental. A LBHM foi criada pelo psiquiatra
Gustavo Riedel, após uma viagem como representante brasileiro a um congresso Médico
Latino-Americano em Havana, em 1922. Aliás, a área médica psiquiátrica também estava
suficientemente organizada. Prova disto, são as dezenas125 de agências políticas promovendo
a eugenia e a psiquiatria. Quase todas editaram periódicos importantes e alguns continuam
correntes, dando testemunho da relevância desse setor dentro do campo. Vários intelectuais,
ligados a área psiquiátrica, participaram das ligas nacionalistas ou das congêneres ligas
sanitaristas e eugenistas. Entre os nomes da Liga Brasileira de Higiene Mental, criada no Rio
de Janeiro, em 1923, destacamos o próprio Juliano Moreira (diretor do Hospital Nacional dos
Alienados), Gustavo Riedel, Renato Kehl, Carlos Chagas (diretor do Instituto Oswaldo Cruz),
Afrânio Peixoto, Miguel Couto (Presidente da Academia Nacional de Medicina) e Roquette-
Pinto (antropólogo, médico e Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro).
124
No livro A Vida de Lima Barreto, do literato Francisco de Assis Barbosa, consta uma curiosa e reveladora
informação. Após sua morte, realizou-se um inventário de sua biblioteca de 800 volumes. Lima Barreto havia
listado seus livros e revistas. Em meio a periódicos franceses, obras de Balzac, Descartes, Machado de Assis e
outros, surgem os trabalhos de Lobato e Penna, respectivamente os livros Urupês e Saneamento do Brasil.
125
No anexo A, listamos alguns exemplos. E no anexo B, inserimos os artigos mais importantes escritos por
Renato Kehl nos periódicos dessas associações. Incluímos, também, os textos de Octavio Domingues no Boletim
de Eugenia.
118

As condições precárias de saúde e pobreza; a entrada perigosa de idéias alienígenas


(liberais, anarquistas, comunistas) no Brasil, os vícios e costumes corrompendo os jovens e as
mulheres; enfim, de uma forma ampla, o mundo que se anunciava, moderno e industrial, era
esperado e cobiçado, no entanto, alguns de seus produtos, resultados da tensão entre as forças
do capital e do trabalho ou advindos de um modo de vida mais cosmopolita, causavam
preocupação, temor e eram indesejados. Kehl e os outros eugenistas mostravam-se
visceralmente críticos dos novos hábitos, identificados como fatores disgênicos:

As cidades populosas representam os piores focos disgênicos, ao contrário


das pequenas cidades onde a vida corre sem tantos riscos e misérias (...) Daí
a hiperexcitação de nossa época de cinemas, tangos, de bolinas, de vestidos
transparentes, da exacerbação neuropática da maioria dos habitantes das
capitais. Daí o crescente das doenças sociais, dos vícios, que abreviam a
vida, degeneram a raça, infelicitam a humanidade. (KEHL, 1920:24).

É nesse cenário de um projeto para a nação, no qual o ideal de povo servia como
parâmetro e ocupava um lugar de destaque na condução dos debates, que os novos
conhecimentos psiquiátricos começavam a difundir-se no Brasil por um segmento expressivo
da intelectualidade nacional. Esses saberes entusiasmavam os profissionais médicos na
medida em que lhes oferecia uma interpretação sobre o homem que abrangia, a um só tempo,
uma teoria dos distúrbios psíquicos, um método de investigação e uma modalidade de terapia.

3.3 Instituições, Intelectuais e Periódicos

Após a Primeira Guerra Mundial, no contexto nacional, deu-se o surgimento de


movimentos que, problematizando o conceito de nacionalidade, enfatizavam a questão racial
(principalmente em respeito ao progresso do Brasil e às perspectivas de branqueamento),
atribuindo às condições de saúde das populações papel relevante. Esses grupos se
organizaram em ligas, reunindo políticos, médicos, cientistas, educadores e empresários.126
Nesse processo de construção de uma nova ordem nacional em que a concepção que via nas
doenças um problema crucial para a construção da nação vai-se tornando hegemônica, a

126
Além do surgimento de especialistas da arte de cuidar da vida, os pediatras, ginecologistas e obstretas, era
crescente o mercado de laticínios e produtos farmacêuticos dirigidos às mães e as crianças. Ver a tese de
mestrado de Cynthia Fevereiro Turack. Com o título de Mulher-Mãe: representações femininas no periódico A
Mãe de Família (1879-1888), a autora demonstra as articulações dos médicos com a pequena e embrionária
indústria médica e farmacêutica. O mesmo profissional que no jornal publicava um artigo recomendando
determinado produto, também o recomendava aos pacientes nos poucos consultórios existentes. Além, é claro,
de publicar, no mesmo veículo, um anúncio do seu serviço para a possível clientela. (TURACK, 2008).
119

ciência e, mais especificamente, as ciências biológicas desempenhariam um papel


fundamental.

Muito mais do que um fenômeno isolado, a criação da Liga Brasileira de Higiene


Mental (LBHM) representou o surgimento de um espaço político, onde diversos intelectuais
nacionalistas responsáveis pela criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em
1920, reuniram-se e formaram um grupo influente com ênfase na eugenia. Esse movimento
explica o elevado número de organizações, autores e publicações eugenistas no período. A
LBHM foi fundada no Rio de Janeiro, em 1923, tendo à frente o médico Gustavo Riedel. A
Câmara dos Deputados, pelo Decreto no 4.778 de 27 de dezembro de 1923, a reconheceu
como de utilidade pública. Em 1924, foram concedidas as primeiras verbas. No ano seguinte,
esse auxílio viabilizaria o programa de prevenção das doenças mentais. Recebendo auxílio
financeiro dos sócios e verbas públicas do município e do governo federal, a Liga Brasileira
de Higiene Mental se consolidaria como uma das mais importantes associações dos
intelectuais médicos. Figuravam entre seus integrantes nomes como Carlos Chagas, Miguel
Couto, Roquette-Pinto, Henrique Roxo e Afrânio Peixoto. Em 1925, a LBHM lançou o
periódico Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (ABHM). Em seu primeiro número,
encontram-se publicados os estatutos da associação. A publicação do periódico dava
cumprimento aos estatutos, que previa, para a realização dos seus objetivos, a edição regular
de uma revista pela instituição. De acordo com diversos autores (COSTA, 1980; ENGEL,
2001; REIS, 1994) a LBHM representou o papel de instituição mais expressiva do campo
psiquiátrico e eugenista nos anos 20 e 30. Dirigida por psiquiatras e integrada por médicos,
juristas e educadores, tornou-se o grande veículo de propaganda a favor da higiene mental,
participando ativamente da construção de um projeto preventivo da sociedade que, pela via
eugênica, visava atender às exigências daquela conjuntura.

É importante notar que o quadro de membros da LBHM possuía políticos e


empresários. Dessa agência, participavam, além do Presidente da República, Arthur
Bernardes; três Ministros de Estado, Félix Pacheco, João Luiz Alves e Pires e Albuquerque;
dois Senadores, Conde de Frontin e José Euzébio; dois Deputados, Carlos Maximiliano e
Clementino Fraga; o Prefeito do Distrito Federal, Alaor Prata; dois Conselheiros Municipais,
Cesário de Mello e Mário Piragibe e membros representantes dos industriais, Guilherme
Guinle, Affonso Vizeu e Antônio Gomes Pereira. Seus líderes mais influentes foram Juliano
Moreira, Ernani Lopes e Gustavo Riedel, sendo este último fundador da LBHM e seu
primeiro presidente. Além desses, Henrique Roxo, Plínio Olinto, Mauricio de Medeiros,
120

Afrânio Peixoto e Faustino Esposel são apontados como dirigentes das primeiras campanhas
em favor da profilaxia das doenças mentais. Afrânio Peixoto e Carlos Penafiel são
especialmente citados por suas atuações na Câmara Federal dos Deputados.

Para Reis (1997:07), a LBHM constituiu-se como a associação central da psiquiatria


na formulação de um projeto ampliado de intervenção social. Um ponto merece destaque.
Com sede no Rio de Janeiro, a LBHM erigiu-se como centro irradiador, uma espécie de
matriz a partir da qual emergiram ligas regionais, como, por exemplo, a de São Paulo (Liga
Paulista de HM), a do Rio Grande do Sul (Liga Rio-grandense de HM) e a de Pernambuco
(Liga Pernambucana de HM). O seu periódico (ABHM) era o órgão oficial de propaganda dos
princípios da Higiene Mental, além de ser o instrumento de intercâmbio político e intelectual,
não só em âmbito regional, mas também em escala nacional e internacional. Nesse sentido, o
periódico circulava em todos os estados, levando as opiniões dos intelectuais da área médica e
psiquiátrica, além de exercerem uma função irradiadora internacional estabelecendo relações
com as principais sociedades científicas do mundo. Entidade de cunho civil e reconhecida
como de utilidade pública, a sociedade funcionou, inicialmente, com uma subvenção federal e
ajuda de filantropos; posteriormente, contava também com a venda de anúncios publicados
nos Archivos Brasileiros de Higiene Mental.

Reunindo o pensamento dos nomes da Liga e da psiquiatria brasileira da época, esse


periódico consistiu em instrumento fundamental para “consecução dos seus objetivos (...),
destinado, sobretudo a orientar os que desejem colaborar na campanha pela higiene mental”,
constituindo-se “não só como um repositório do que se publique em nosso meio, ou alhures,
mas também, se possível, um núcleo de atração de prosélitos, no amplo domínio dessa
Higiene Mental, que com justo direito aspira tornar-se a moral universal de amanhã.”
(ABHM, 1925: Editorial). O editorial de outubro de 1929 é ainda mais incisivo:

Os Arquivos, como órgão oficial da Liga Brasileira de Higiene Mental, têm


uma grande e nobre missão a realizar: órgão de doutrina e de combate, eles
se propõem a abrir, em nosso meio, a senda por onde possam enveredar,
crescer e frutificar os ideais de higiene mental e eugenia, que
consubstanciam o programa daquela Instituição. (LBHM, 1929)

Os ABHM constituem uma importante fonte documental, incluindo artigos, resenhas,


relatórios, atas de reuniões e congressos, para conhecimento e análise dos discursos e práticas
produzidos pela LBHM. Luta antialcoólica, combate à sífilis, controle da imigração, educação
higiênica, profilaxia mental e assistência aos alienados eram alguns dos temas recorrentes,
sendo que a forma de abordagem podia variar de acordo com a conjuntura e os interesses
121

políticos em jogo. Os Arquivos começaram a serem publicados em março de 1925, havendo


nesse ano a edição de dois números. Devido ao corte da subvenção federal, ficaram três anos
fora de circulação, retornando em 1929. Houve uma relativa regularidade até 1935, quando
então ocorreu nova interrupção (1936-37), restabelecendo-se a edição de 1938 a 1947, com os
anos de 1945-46 condensados em um único número. Não havia uma periodicidade definida.
Em bom trabalho sobre a LBHM, o historiador REIS (1994) destaca a perfeita adequação dos
objetivos da Liga com os desejos dos eugenistas de transformar a sociedade brasileira por
meio da ação política dos intelectuais e da aplicação de suas idéias sobre o uso da coerção e
educação pelo Estado. Reis explica dizendo que desde o início do século XX os médicos
psiquiatras desejavam a criação de um “instituto” destinado ao estudo e profilaxia das doenças
mentais. Assim, a LBHM representou para os psiquiatras e demais eugenistas, a chance para
divulgar a eugenia e sua missão regeneradora e salvadora, inserindo-a em seus discursos e
projetos institucionais nacionalistas.

Mas, à eugenia nunca faltou espaço. Ela encontraria vários abrigos políticos,
institucionais e culturais. Durante os anos 20, 30 e 40, os profissionais ligados às mais
diversas áreas ficariam seduzidos pela nova ciência que prometia a “cura da raça”. Ou, ao
menos, o seu branqueamento. Intelectuais médicos como Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto,
Belisário Penna e outros entusiasmaram-se com a possibilidade da criação de áreas interativas
da Eugenia com a Antropologia, a Medicina e a Educação. No caso da medicina legal, foi
grande o interesse com os métodos de identificação, estudo dos comportamentos e a
prevenção dos crimes. Todavia, há que se concordar com o alerta dado por COELHO (1999).
Esse autor registra que não devemos nos impressionar com a idéia (para ele, equivocada) de
uma história despojada de sua temporalidade, forjando um esquema evolutivo no qual a
medicina ou o sanitarismo ou mesmo o eugenismo estariam evoluindo de um estágio a outro.
As narrativas dos intelectuais muitas vezes nos fazem crer em autênticas revoluções. Não que
os movimentos nos quais os atores sociais atuaram tenham sido obras de ficção, invenções de
memorialistas ou de pesquisadores. Trata-se de suspeitar que, muitas vezes, avaliamos como
total o poder dos médicos e de suas idéias de dominação da sociedade. Os próprios heróis
dessas jornadas descreveram com bastante romantismo os seus feitos127. Coelho indaga aos

127
“(...) não deixando por menos ao descrever os eventos com expressões tais como a ‘operação de guerra’
contra os cortiços, a ‘guerra de picaretas’ do Doutor Barata Ribeiro que teria acabado com os casarões infectos, a
enorme repercussão da conferência de tal ou qual higienista mais ou menos proeminente e assim por diante”.
(COELHO: 1999, 142).
122

que crêem nesse poder total dos médicos, chamando atenção para a relatividade e diferenças
entre os discursos e a prática:

Alteraria seus modelos de análise dizer-lhes que em 1934 registraram-se no


Distrito Federal, escassas 20 matrículas no Curso de Higiene e Saúde
Pública, não mais do que 71 em todo o Brasil? Que por essa mesma época, e
não obstante a mitologia construída em torno do Dr. Nina Rodrigues, a
medicina legal era uma mera seção e os médicos legistas, obscuros
burocratas das delegacias policiais? É razoável supor que no prazo de um
século digamos de (1822 a 1922) a intrincada trama da história tenha sido
enriquecida com inúmeros episódios surpreendentes e que seu
desenvolvimento tenha sido truncado em uma ou outra cena por
descontinuidades (...) (COELHO, 1999:144).

No Brasil, em meados do século XIX, o tratamento da loucura sofreu uma mudança


compatível com as exigências “modernizadoras” das principais cidades brasileiras. Durante as
primeiras décadas do século, segundo o relatório de 1830 da Comissão de Médicos da
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, os doentes mentais faziam parte da paisagem
urbana da cidade e conviviam, entre sentimentos de aceitação e rejeição com a população
(Machado, 1978; Engel, 2001). Articulado com a expansão do saber psiquiátrico, que desde o
final do século XVIII possuía no hospício um espaço destinado à reclusão dos loucos, o
alienismo brasileiro ampliou-se, na segunda metade do século XIX, num contexto de
crescimento urbano e num quadro de mudanças políticas e econômicas que afetavam todos os
segmentos sociais. A preocupação com a loucura instalou-se sob um ideal de “higienização”
que permitia aos médicos intervir nas várias esferas da sociedade, buscando eliminar os
perigos associados ao desenvolvimento dos centros urbanos.

A teoria da degenerescência teve como um dos seus formuladores o alienista francês


Auguste Morel que, em 1857, publicou o seu Traité de dégénerescences, resultado da
observação que havia feito dos pobres da França. Apoiando-se nas ciências biológicas, a
análise da degeneração supõe uma progressiva debilitação dos homens a partir de um
ascentral, cuja transmissão de elementos nefastos aconteceria hereditariamente. Entretanto,
essa deficiência também poderia ser adquirida durante a vida por influências nocivas:
tuberculose, sífilis e alcoolismo. Uma vez instalada, a degeneração seria transmitida às
gerações seguintes.

O “tratamento moral” e o “isolamento terapêutico” eram princípios básicos da


psiquiatria da primeira metade do século XIX. O primeiro supunha uma pedagogia
normalizadora, com normas e rotinas, de maneira que o interno estivesse envolto numa ordem
123

que controlasse sua existência, condição para a eliminação do delírio e, assim, de sua cura. O
asilo tornava-se imprescindível, dadas suas condições favoráveis à implantação de uma
tecnologia da ordem. No caso brasileiro, a aplicação desses princípios obedeceu a uma razão
peculiar. Em São Paulo, por exemplo, segundo Cunha (1986), foi somente com a ascensão de
Franco da Rocha à direção do Hospício de Alienados desse Estado no período republicano,
que a idéia do hospício como espaço clínico dedicado ao tratamento ganhou fôlego. Isso num
contexto em que o hospício na Europa estava sendo questionado, pelo menos enquanto uma
maneira privilegiada de intervenção psiquiátrica e novas concepções impunham outras formas
de tratamento da doença mental.

O enfoque teórico assumido pelos alienistas brasileiros caracterizava-se pelo


ecletismo. Recebeu influências do alienismo clássico do século XVIII, centrado no tratamento
e no modelo asilar propostos por Pinel, da teoria da degenerescência de Morel e da discussão
sobre hereditariedade que desenvolveu-se a partir dessa teoria. Os trabalhos de Reis (1994) e
Engel (2001) identificam essa tendência. Inicialmente, atribuía-se pouca atenção às
experiências da psiquiatria brasileira. Foi somente no início do século XX, que passou-se a
considerar caraterísticas específicas da formação social brasileira e os problemas observados
nos asilos brasileiros foram mais explorados. Aumentava a intervenção dos intelectuais
alienistas em vários campos da vida social nacional, sendo freqüente a participação nas áreas
do direito, da educação e da saúde.

Esses textos apareceram, primeiramente, em periódicos médicos gerais como, por


exemplo, o Brazil-Médico. Mas, logo surgiriam inúmeras publicações, quase todas oriundas
de associações políticas, culturais e profissionais. Em 1905, surgiria o primeiro periódico
especializado da área: os Arquivos Brasileiros de Neuriatria, Psiquiatria e Ciências Afins. Em
relação à população, propunham intervenção nos indivíduos que, por sua condição
econômica, física, racial ou social eram suspeitos de serem portadores de perigosas
degenerescências: alcoólatras, vadios e anarquistas. Essa perspectiva higienista, que expandia
a vigilância do indivíduo para a sociedade, apesar de sua amplitude, ainda tinha no espaço
restrito do hospício seu suporte fundamental.

Na Europa, do final do século XIX, o modelo asilar que considerava os hospícios


como espaços destinados à regeneração dos ausentes de razão era alvo de críticas. No Brasil,
todavia, esse modelo ainda estava bastante consolidado. No Rio de Janeiro, pela metade do
século, havia sido criado o Hospício Pedro II, que se manteve, até 1890, nas mãos da Santa
124

Casa de Misericórdia. Esse fato provocava descontentamento entre os alienistas, ansiosos pela
centralização estatal de sua administração. Em São Paulo, surgiria, também na mesma época,
o Asilo Provisório de Alienados, que se sustentaria com inúmeras dificuldades até a
inauguração do tristemente famoso Hospício de Juquery em 1898 (Cunha, 1986). O hospício
de Juquery foi fundado em 1898 por Franco da Rocha. Intelectual alienista e discípulo de
Teixeira Brandão no Hospício Pedro II, ele assumiu a direção do estabelecimento paulista,
escolhendo um modelo que congregava o hospício e uma colônia agrícola, uma “mistura”
terapêutica considerada mais cientifíca que o tratamento do asilo clássico. As características
principais dessa instituição eram o trabalho (encarado como terapêutico), o interesse científico
(como possibilidade de estudar vários tipos de doenças mentais) e o corporativismo (a
constituição de um grupo de especialistas) agregados a um novo tipo de arquitetura
manicomial e a novas práticas médicas, como a terapia dos banhos, a malarioterapia e o
eletrochoque.128

Vencidas as primeiras dificuldades, construído o asilo, obedecendo aos preceitos da


psiquiatria, faltava-lhe a fundação de um periódico: Memórias do Hospital de Juquery foi
publicado, pela primeira vez, em 1924. Em 1928, reapareceu com o título de Memórias do
Hospício de Juquery, sendo regularmente publicado até 1933. Em 1936, passou a chamar-se
Arquivos de Assistência Geral a Psicopatas do Estado de São Paulo. O objetivo da
publicação era fazer com que os textos contribuíssem para a resolução dos problemas no
campo da neuropsiquiatria. O periódico nascia como um veículo para ressaltar as conquistas
da instituição.

A publicação das Memórias visa, ao lado dos problemas gerais, o estudo dos
problemas que se relacionam particularmente com o nosso meio. A higiene
mental muito tem preocupado a atenção dos psiquiatras, mas antes de
colocar em prática medidas profiláticas, devemos conhecer as causas
determinantes das psicoses.129

Desafortunadamente, o mais relevante periódico do campo eugênico, criado em


janeiro de 1929, o Boletim de Eugenia, sob a direção e propriedade do Dr. Renato Kehl, não
mereceu ainda, um estudo à altura de sua importância. Embora, seja um periódico
importantíssimo para analisarmos o período e tenha sido editado com regularidade,
lamentavelmente, ainda é pouco investigado. Em seu primeiro número, apontava como seu
objetivo explícito “auxiliar a campanha em prol da eugenia entre os elementos cultos e entre
128
A malarioterapia consistia em provocar um choque no “paciente” mediante o aumento brutal de febre
ocasionado pela provocação compulsória de Malária.
129
PACHECO e SILVA. In: Memórias do Hospício de Juquery. São Paulo, 15 abr. 1924.
125

os elementos que, embora de mediana cultura, desejam também, orientar-se sobre o


momentoso assunto”.130 Com a proposta de disseminar informações e os ideais eugênicos para
o maior número de pessoas, seu formato consistia em pequenos artigos científicos ao lado de
outros de simples vulgarização, atendendo assim, por meio de uma linguagem simples e clara,
a todos os que se interessassem pela eugenia. O Boletim de Eugenia foi a primeira publicação
especializada com caráter periódico. Na publicação, a eugenia foi definida como uma ciência
de melhoramento da espécie pela proteção das boas sementes e de seus portadores. Tratava-
se, pois, de uma seleção dos seres humanos pela manutenção e melhoramento das boas
linhagens. Era a ciência do aperfeiçoamento físico, psíquico e mental levando em conta as
caraterísticas hereditárias e as melhores formas de transmiti-las através das gerações.

Publicado entre 1929 e 1933, o Boletim de Eugenia circulou mensalmente nos


primeiros anos e passou a ter circulação trimestral em 1932, quando tornou-se um suplemento
da revista médica Medicamenta na edição de Junho/Julho de 1929, após o convite de
Theophilo de Almeida, amigo dos tempos de faculdade de Renato Kehl e diretor da
publicação médica. A tiragem do Boletim de Eugenia começou com 1.000 exemplares
distribuídos gratuitamente mediante solicitação enviada para a caixa postal anunciada no
periódico em nome de Renato Kehl. Ao se tornar suplemento da revista, sua tiragem
aumentou porque o periódico passou a ser enviado também aos leitores da outra publicação
que circulava por todo o Brasil. Para Kehl, isto representou uma ampliação da propaganda em
prol da eugenia em função dos leitores da revista Medicamenta. A novidade foi veiculada
através de um editorial de Renato Kehl. Nessa oportunidade, ele comunicava o oferecimento
do colega Theophilo de Almeida, companheiro desde os tempos acadêmicos. Em relação a
composição do periódico, suas edições iniciais (antes de se tornar parte da revista médica),
continham 4 páginas; após a mudança, passou a circular com 8 páginas, duplicando seu
espaço.

O grande objetivo de Renato Kehl e dos outros membros do eugenismo nacional era
despertar mais interesses e preocupações com o estudo e a aplicação das questões da
hereditariedade, descendência, influências do meio, o papel representado pela educação,
comportamentos, controle da imigração, mestiçagem e demais fatores sobre a evolução dos
seres humanos. Os temas dos artigos veiculados pelo Boletim de Eugenia versavam sobre os
mais diversos assuntos como casamento, alcoolismo, exames pré-nupciais, catolicismo,

130
KEHL, Renato. Boletim de Eugenia, Jan. 1929. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
126

maternidade, criminalidade e raça. Sem dúvida, para uma parte dos eugenistas e, em especial,
Renato Kehl considerava que a nacionalidade brasileira dependia dos fatores educacionais e
hereditários; esses elementos, juntos, representavam o que haveria de necessário para a
construção de uma sociedade saudável e próspera.

Kehl formaria uma outra organização eugênica por volta do final dos anos 20. Porém,
esta não prosperou, embora tenha sido um empreendimento dos eugenistas realizado no
mesmo contexto temporal de duas iniciativas muito relevantes: a criação da Comissão Central
Brasileira de Eugenia e a edição do próprio Boletim de Eugenia, o qual precedeu em alguns
meses a fundação do Instituto Brasileiro de Eugenia que, fundado por iniciativa de Renato
Kehl, não vingou. Desse instituto eugênico natimorto, participaram Ernani Lopes, Júlio Porto-
Carrero, Murilo de Campos e Heitor Carrilho. Mas, o momento era pródigo em fatos em torno
da eugenia. Um ano após a Revolução de 1930, Kehl foi criador e presidente da Comissão
Central Brasileira de Eugenia. Formada no Rio de Janeiro tinha como objetivo intensificar a
propaganda eugenista e convertê-la em doutrina orientadora dos projetos governamentais
ligados à imigração, povoamento, educação e saneamento. A comissão possuía os seguintes
membros efetivos: Eunice Penna Kehl (secretária, esposa de Kehl e filha de Penna), Belisário
Penna, Gustavo Lessa, Ernani Lopes, Porto-Carrero, Cunha Lopes, Salvador de Toledo Piza
Junior, Octavio Domingues, Achiles Lisboa e Pacheco Caetano Coutinho.131

Os artigos que compunham o Boletim de Eugenia eram ligados aos temas e aos
objetos de estudo dos intelectuais que debruçavam-se sobre a psiquiatria, a medicina e
eugenia. Do ponto de vista político tratava-se de alçar ao Estado a influência requerida. Tanto
o Boletim de Eugenia quanto a Comissão Central veiculavam as idéias do movimento que
unia médicos, sanitaristas, professores, juízes e comerciantes, além de outros personagens da
sociedade brasileira. Naquela conjuntura, o objetivo mais imediato era propor diretrizes
específicas ao governo. Dentro do espírito nacionalista predominante, todas as associações
criadas, seja a Liga Pró-Saneamento do Brasil, a Liga Brasileira de Higiene Mental, a
Sociedade Eugênica de São Paulo ou a Comissão Central Brasileira de Eugenia, lutavam para
a suplantação dos modelos deterministas que, desde o século XIX, consideravam inviável o
ingresso do Brasil no rol das nações civilizadas. A Liga Pró-Saneamento, especialmente,
rejeitava a explicação que apontava a composição étnica e a miscigenação racial como fatores
que contribuíam para a miséria e para as endemias que assolavam o país. Mas, para a maioria

131
Alguns desses nomes eram representantes da chamada vertente mendelista.
127

dos eugenistas e sanitaristas nacionais, a conjugação saneamento-eugenia-educação seria


imbatível para a criação de uma nação moderna e saudável. Mas, era necessário ir além dessas
considerações. Havia chegado a hora de propor e exigir do governo que as leis eugenistas
fossem criadas e obedecidas.

Vale destacar que o prestígio da eugenia nas faculdades de medicina era crescente.
Inúmeros textos surgiam. Kehl, em sua conferência, no Congresso de 1929, listou mais de 40
trabalhos, entre livros, teses e artigos sobre a nova ciência132. Um fato, extremamente
importante, é negligenciado: inúmeras instituições políticas foram criadas em prol das
mudanças requeridas. A historiografia sobre eugenia no Brasil e a literatura especializada
sobre saúde pública e medicina social, não observam que essas agências, onde os cientistas,
professores, políticos e funcionários públicos reuniam-se, expressavam os desejos dos grupos
sociais. Comumente, os atores, instituições e periódicos dos sanitaristas e eugenistas não são
vistos como expressões de vontades coletivas organizadas em disputa pela imposição de um
projeto hegemônico. Situação e conceitos muito bem definidos pela historiadora Sonia
Mendonça, quando ela destacou a interação entre intelectuais, aparelhos privados e a noção de
Estado Ampliado:

Mas, para tanto, é indispensável que o sujeito coletivo organizado junto a


este ou aquele aparelho privado de Hegemonia -donde a importância
fundamental dos intelectuais - busque inserir seus representantes junto à
sociedade política, deixando entrever o quando a noção de Estado Ampliado,
além de altamente dinâmica, é coerente ao espectro das lutas de classes que,
ininterruptamente, constituem tanto a ‘Sociedade’ quanto o estado restrito.
(MENDONÇA, 2005: 11).

Contudo, outros e importantes periódicos foram criados. Dentre esses, os Arquivos


Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Esse veículo das idéias eugenistas
adotaria outros nomes: Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal e
Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria. Fundado em abril de 1905 por iniciativa dos
médicos Juliano Moreira e Afrânio Peixoto, foi publicado pelo Hospício Nacional de
Alienados. Sua periodicidade era trimestral. Seu quadro de intelectuais colaboradores contava
com os nomes de Teixeira Brandão, Miguel Couto, Henrique Roxo, Carlos Penafiel e Franco
da Rocha, para citar alguns dos mais expressivos.

Em 17 de Novembro de 1907 era fundada na Academia Nacional de Medicina, na


cidade do Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal.

132
Neste inventário, Kehl ignorou os trabalhos mais identificados com a “eugenia mendeliana”.
128

Por proposta de Juliano Moreira, foram designados os membros Afrânio Peixoto, Henrique
Roxo e Carlos Eiras para elaborarem os respectivos estatutos da Sociedade, ficando
deliberado que os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins seria o
periódico de representação daquela associação. O periódico estabeleceria as relações
científicas entre os psiquiatras, neurologistas e médico-legistas do Brasil. Da apresentação
escrita por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto:

Os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins,


destinam-se a registrar as contribuições nacionais a estes estudos e noticiar o
movimento destas especialidades médicas no mundo culto. Em geral, as
publicações brasileiras desaparecem precocemente, mais por falta de quem
as escreva, que de quem as leia. Para rebater essa ameaça, contamos com a
colaboração de mestres e estudiosos nesses departamentos científicos e, mais
ainda, cuidamos que uma publicação deste gênero dará estímulo aos que dele
necessitarem e encaminhará para ela os estudos esparsos pelas revistas
médicas do país.133

A partir de 1919, a diminuição da ajuda oficial imposta por política governamental,


comprometeu a impressão nas oficinas tipográficas do Hospício Nacional de Alienados,
abalando, assim, sua periodicidade trimestral. Em virtude disso, seus diretores optaram por
alterar o título para Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, mas sem, contudo,
manter sua periodicidade, visto que as determinações governamentais impediam manter
aquele ritmo. No primeiro volume editado com o título de Arquivos Brasileiros de Neuriatria
e Psiquiatria, referente ao segundo trimestre de 1919, encontram-se as Atas da Sessão da
Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal realizada em 27 de março
daquele mesmo ano e a determinação de que diante das dificuldades, o grupo de médicos
constituído por Juliano Moreira, Ulisses Vianna, Faustino Esposel, Heitor Carrilho e
Waldemar de Almeida publicasse sob responsabilidade própria, os Arquivos Brasileiros de
Neuriatria e Psiquiatria. Sua composição era de artigos, notícias, boletins da Sociedade
Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e resenhas, deixando transparecer um
desenvolvimento crescente de estudos nas áreas de psiquiatria e medicina legal. Até o ano de
1955 continuou com a mesma designação – Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria –
mantendo periodicidade regular, quando no mês de junho para comemorar os cinqüenta anos
da primeira edição, iniciou uma nova numeração. Na atualidade, continua a ser o órgão oficial
de divulgação da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal.

133
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, Abril de 1905.
129

Esta intensa propaganda eugênica que possibilitou a criação de inúmeras associações e


periódicos durante um largo período, veiculando a produção dos intelectuais, também
propiciaria no ano de 1929, a realização do evento mais importante para o eugenismo
nacional: o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Esse evento tratou de quase todos as
questões pertinentes ao problema eugênico brasileiro: a esterilização compulsória e
permanente; a regulamentação eugênica do casamento; o exame pré-nupcial; controle de
nascimentos; problemas da imigração; luta contra os venenos da raça; o problema dos
degenerados: alcoólatras, doentes e vagabundos. Enfim, foram estudados os temas mais
variados. Porém, percebe-se que uma linha norteou as discussões no referido encontro
eugenista, ultrapassando até mesmo as discussões sobre hereditariedade e educação: o
nacionalismo. E, por conseguinte, que ações de política imigratória o Brasil deveria adotar?
Deveria o país aceitar a entrada livre de estrangeiros ou criar uma série de restrições? E que
impedimentos seriam esses? As questões raciais, supostamente prejudiciais à nacionalidade,
prejudicariam a imigração de estrangeiros no país? Ou apenas as características individuais?
Físicas ou mentais?

Eis aí, senhores, o que poderia dizer sobre a Eugenia no Brasil. Numa terra
grandiosa, bela e rica como a nossa, tudo nos impõe o dever de sermos
otimista, otimistas no bom sentido devemos frisar. Precisamos, portanto, nos
congregar sob a bandeira de um ideal comum, para torná-la cada vez mais
próspera e feliz. O ideal máximo seria o da regeneração eugênica do nosso
povo – regeneração esta que pressupõe saúde, paz, justiça e educação.
Precisamos vê-lo sob uma administração moralizadora e sinceramente
patriótica. Só então poderemos ter maior orgulho de sermos brasileiros. Por
enquanto nos envaidecemos do céu, da terra, das nossas riquezas
inexploradas; precisamos nos ufanar de alguma cousa mais que não tenha
sido dádiva da natureza – dos nossos empreendimentos, das nossas ações, do
nosso valor como habitantes deste maravilhoso recanto da terra.
Trabalhemos, pois, para pôr moldura digna no grande quadro da natureza.
(KEHL, 1929: 58).

A citação acima é parte das palavras ditas por Renato Kehl no Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia de 1929 no Rio de Janeiro. Foi um momento importante para o
movimento eugênico, pois as comemorações do centenário da fundação da Academia
Nacional de Medicina trouxeram a Miguel Couto, Presidente da instituição, a oportunidade
para que se convocasse a reunião. Sob o comando de Roquette-Pinto e secretariado134 por

134
Em sua correspondência, o eugenista deixa bastante evidente, que foi tomado de surpresa com a convocação
do evento. Estava em viagem pela Europa, quando leu em jornais brasileiros que Miguel Couto havia anunciado,
durante as comemorações do 99ª aniversário da Academia Nacional de Medicina, que durante a passagem do
centenário da instituição, se promoveria o Congresso de Eugenia. Ainda que em posição secundária, Kehl
ocupou um espaço importante no Congresso. Correndo contra o tempo, terminou o livro Lições de Eugenia, para
ser distribuído durante o evento. Recebeu fortes críticas e acusações por sua defesa intransigente da Eugenia e
130

Kehl, reuniram-se na primeira semana de julho, nos salões da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, na Praia Vermelha, cerca de 200 pessoas, entre médicos, cientistas, jornalistas e
políticos. Alguns temas dos trabalhos apresentados indicam o que era considerado objeto da
eugenia: regulamentação dos casamentos, educação eugênica, proteção da nacionalidade,
controle da imigração, campanhas antivenéreas, tratamento da doença mental, esterilização,
além de vários temas ligados à infância, nutrição e maternidade. Na sessão inaugural, o
antropólogo Roquette-Pinto expôs que até aquele momento a medicina135 era responsável por
resolver problemas de saúde. Mas, após a reunião de especialistas em eugenia, poder-se-ia
exigir um melhor aproveitamento do patrimônio biológico e promover o aperfeiçoamento do
homem.

3.4 Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia de 1929

Em sua conferência realizada no evento, Renato Kehl (1929:45) deixava claro que as
características hereditárias herdadas geneticamente não deveriam ser desconsideradas em
detrimento das condições que poderiam gerar caracteres a serem adquiridos. Analisando os
documentos do congresso, observa-se que as teorias científicas adotadas, aparentemente
opostas, se relacionavam. Não eram totalmente incompatíveis. É certo que havia mesmo
discussões acaloradas do ponto de vista da validade da corrente escolhida, não sendo
infrequentes as acusações mútuas de ausência de cientificidade da proposta do opositor.

No Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Kehl realizou uma descrição da


trajetória da eugenia no Brasil até a realização do evento, visto por ele como um
acontecimento de grande importância para os caminhos da eugenia no Brasil dali em diante.
Na sessão inaugural, Roquette-Pinto, presidente do congresso, destacava a preocupação da
sociedade brasileira com as questões eugênicas salientando a presença no congresso não
apenas de médicos, mas de outros profissionais interessados na eugenia. Declarando que as
condições de saúde de um indivíduo recebidas de um antepassado constituía-se num processo
importante e admitido pela medicina; contudo, apesar de anos de crença do domínio do meio
sobre os homens, a medicina sozinha não podia resolver o problema da saúde da população
porque um elemento era independente: a hereditariedade cuja responsabilidade deveria caber

pela posição totalmente contrária à miscigenação. Ainda, nesse período, começou a editar, no início do ano de
1929, o Boletim de Eugenia.
135
Roquete-Pinto era médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
131

à eugenia. Para registrar a importância que conferia à nova ciência, Roquette-Pinto citava a
discussão referente à falta de braços fortes e produtivos no Brasil para afirmar que era preciso
aproveitá-los melhor aprimorando os homens existentes e promovendo condições de
aperfeiçoamento da raça pela melhoria do patrimônio biológico da população brasileira.

Fróes da Fonseca proferiu a conferência “Os Grandes Problemas da Antropologia”


destacando a importância da Eugenia para o futuro. Esse conferencista registrou os avanços
da antropologia e descreveu estudos das descobertas biológicas sobre o desenvolvimento
humano, enfatizando que as leis de Mendel eram necessárias para a compreensão da herança
humana. Ele afirmou que a mestiçagem não era causa da degeneração do povo brasileiro
assim como a raça não era condição de inferioridade. Encerrando, registrou com veemência a
sua discordância com as conclusões racistas do livro de Renato Kehl, Lições de Eugenia, que
estava sendo distribuído aos membros do Congresso.

Em sua conferência, Levi Carneiro136 procurou colocar a eugenia e a educação no


mesmo plano. Falou da hereditariedade como um mecanismo importante para compreender o
desenvolvimento humano e citou autores que admitiam a possibilidade da hereditariedade das
características adquiridas lentamente e após longa repetição. Assim, para Levi Carneiro,
aumentava a relevância social da educação que teria o papel de manter a continuidade de
caraterísticas positivas através das gerações. A todo instante, mesmo quando referia-se às
discussões empreendidas no Congresso em defesa da hereditariedade segundo os preceitos
mendelianos (ou pelo menos minimizando o papel das ações educativas no aprimoramento
dos indivíduos), Levi Carneiro entendia que parte dos fatores que comprometiam a raça
(alcoolismo e doenças venéreas) resultava da ausência de educação. O conferencista afirmava
que a educação possibilitava a compreensão do aperfeiçoamento da saúde da população. O
que favoreceria a transmissão de aspectos saudáveis.

Lamarckistas e Mendelistas apresentavam suas idéias e afirmavam a eficácia das


políticas defendidas. Mas, como era a coexistência das diferentes explicações e como os
intelectuais se relacionavam? Considerando a importância conferida aos membros presentes,
pode-se inferir que não havia desconhecimento ou má interpretação das teorias biológicas
pela comunidade científica brasileira, mas debates, onde declarações, muitas vezes
divergentes, foram discutidas e absorvidas. Também, pelas atas do Congresso, observa-se que
136
Presidente da terceira seção do I Congresso Brasileiro de Eugenia: Educação e Legislação. CARNEIRO,
Levi. “Educação e eugenia” In: Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v.
01, 1929, pp. 107-116.
132

não havia desinformação sobre as diferentes propostas de aprimoramento científico das raças.
Acreditamos, que, muito mais que divergências sobre o conhecimento teórico, o qual é
sempre possível de ser ou não corroborado, havia uma disputa política muito menos orientada
por discordâncias científicas, como talvez possam supor alguns historiadores da ciência137.
Mas, certamente, a busca por espaços científicos, políticos e culturais afetava o campo
eugênico. Esse fenômeno foi muito bem definido por Bourdieu através da afirmação da
ocorrência do Consenso no Dissenso. Adotamos esse conceito por entendermos que ele nos
ajuda a compreender as relações e redes tecidas pelos intelectuais do eugenismo nacional.

Embora os homens (...) de uma determinada época possam discordar a


respeito das questões que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir
certas questões. É, sobretudo através das problemáticas obrigatórias nas
quais e pelas quais um pensador reflete que ele passa a pertencer a sua época
podendo situá-lo e datá-lo (...) O desacordo supõe um acordo nos terrenos de
desacordo, e os conflitos manifestados entre as tendências e as doutrinas
dissimulam, aos olhos dos que deles participam, a cumplicidade em que
implicam e que choca o observador estranho ao sistema. É preciso não
confundir o consenso na dissensão (...) que constitui a unidade objetiva do
campo intelectual de uma dada época – ou seja, a participação na atualidade
intelectual – com uma submissão á moda. (BOURDIEU, 1999: 207).

Em junho de 1928, a Academia Nacional de Medicina, anunciava que passados doze


meses seria realizado o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Quem lançava o evento? O
prestigiado médico e presidente da Academia, Miguel de Oliveira Couto. Nascido no Rio de
Janeiro no primeiro dia de maio de 1864, formou-se em medicina em 1885 com a tese
intitulada Da Etiologia Parasitária em Relação às Doenças Infeciososas. Em 1891, sucedeu
na Faculdade de Medicina ao Professor Francisco de Castro, na cadeira de Clínica
Propedêutica. No ano seguinte, ingressaria também na Santa Casa de Misericórdia e em 1896,
entraria como membro titular na Academia Nacional de Medicina. Nessa instituição, em julho
de 1914, seria eleito presidente e depois sucessivamente reeleito até sua morte, em 1934.
Membro da Academia Brasileira de Letras, ele elegeu-se para a Assembléia Constituinte em
1933. Dentro da Comissão de Saúde da Câmara Federal, sempre trabalharia por dois temas: a

137
As pesquisas orientadas no intuito de desvendar as divergências científicas e teóricas têm se preocupado
talvez demasiadamente com estes fatos. Tem sido sublinhado por esses estudos o desenvolvimento da eugenia no
Brasil como uma resposta às preocupações intelectuais dos agentes sociais (escritores, governantes, jornalistas,
cientistas) com o péssimo estado de saúde da população, com as condições sanitárias e a composição racial do
país, além da atenção com a posição inferior do país no cenário internacional. Mas, talvez esteja ausente, a
análise do receio, medo até, do povo, do populacho, do Zé-Povinho que andava pela rua, sem eira, nem beira. O
processo de transformação intenso e originário da Abolição da Escravidão, da Proclamação da República, do
desenvolvimento das relações sociais capitalistas modificou as maneiras de viver e pensar da sociedade.
133

educação e o controle da imigração. Em relação à primeira, defenderia que era a solução para
os problemas do Brasil. Quanto à segunda, liderava a corrente que se opunha à entrada de
imigrantes não europeus (do Norte), chegando a desenvolver uma grande campanha de
oposição contra a vinda de japoneses para o Brasil. Sua posição estaria baseada não pela
qualidade dos imigrantes, mas pelo temor do expansionismo japonês. Criticava o
enquistamento étnico que os japoneses formavam, o que impediria sua assimilação ao país.

O Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia é mais que um divisor de águas. É um


momento extremamente relevante para percebermos os contornos do campo eugênico. Dentre
todas as palestras, duas provocariam variados comentários e muita polêmica: as participações
de Renato Kehl e de Antonio José de Azevedo Amaral (1881-1942). Amaral foi marcado,
entre outros fatos, por seu apoio ao Estado Novo (1937-1945). Apesar de muito identificado
com o grupo de intelectuais, denominados nacionalistas e autoritários, dos quais se
sobressaem, Oliveira Vianna e Alberto Torres, ele se difere, embora os componentes de seu
pensamento sejam claramente percebidos nos demais. Enfim, como já destacamos, quase
todos analisavam a crise republicana e apontavam a falência do Estado Liberal. O
autoritarismo era defendido porque, segundo Amaral, tratava-se do regime que melhor
adequava-se às sociedades industriais de massas. Para ele, o conflito entre corporações
capitalistas, resultante da concentração de capital, adquirira uma natureza ameaçadora ao
próprio sistema capitalista. Tais organizações haviam perdido a capacidade de gerenciar o
conflito através de seus agentes sociais e, portanto, era absolutamente necessário um Estado
centralizador e autoritário capaz de imprimir racionalidade ao mercado, além de regular o
conflito social. O fortalecimento do Poder Executivo seria imperioso para agilizar e
implementar as decisões de caráter político e econômico.

O autoritarismo implementaria a modernização econômica na direção da


industrialização, assegurando assim, a unidade e a soberania nacionais. Para Azevedo Amaral,
o Estado autoritário com função para intervir na ordem social e econômica diferia, contudo,
do Estado totalitário. Isto porque aquele “objetiva promover o bem público, sem, no entanto
comprimir ou reduzir as iniciativas e liberdades individuais além do ponto que elas entrem em
conflito com os interesses coletivos” (AMARAL, 1981: 97). Na tentativa de conferir ao poder
político algum grau de legitimidade fundada no consentimento dos governados, Amaral
afirmava: “sem representação não há democracia”. Porém, os mecanismos próprios da
democracia representativa, tais como, o sufrágio universal e os partidos políticos deveriam ser
reavaliados. Na sua análise destacavam-se três formas de conceber a representação política:
134

primeiro, no nível mais abstrato, o Estado como representante da nação; segundo, no nível
mais concreto, a seleção dos representantes por intermédio das corporações profissionais, por
fim, o processo indireto de escolha, por cidadãos qualificados, para os poderes Executivo e
Legislativo. Em todos os modos de representação prevaleceria o princípio de uma cidadania
restrita e controlada.

Antonio José de Azevedo Amaral (1881-1942) nasceu de uma família tradicional do


Estado do Rio de Janeiro. Formado em Medicina, defendeu, em 1903, tese de doutoramento
na Alemanha intitulada “Patogenia do edema”. No ano seguinte foi para a Inglaterra,
mantendo no jornal Correio da Manhã a coluna “Cartas de Londres”, mais tarde denominada
simplesmente “De Londres”. Após 12 anos, regressou ao Brasil e continuou colaborando com
os seguintes jornais: O Paíz, Correio da Manhã, O Jornal, Jornal do Brasil, entre outros. No
ano de 1929, participou do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. A importância de sua
presença no evento está nas concepções adotadas por Azevedo Amaral em sua análise sobre o
homem, fator de formação da sociedade. Nesse texto e em outros trabalhos, o que mais chama
a atenção de seus críticos e que o faz ser conhecido são suas observações sobre o Brasil dos
anos 30. Amaral ficou marcado pelas suas premissas eugênicas, além, é evidente, do seu
apoio ao Estado Novo. Participante do Congresso de Eugenia, falou sobre “O Problema
Eugênico da Imigração”, delimitando itens que influenciariam as políticas de imigração nas
décadas seguintes. A sua participação, decerto, provocou inúmeros comentários e intensa
polêmica, devido ao caráter draconiano das suas propostas. No entanto, a dureza de suas
afirmativas não impediu que boa parte das teses sustentadas por Amaral na palestra, não só
fossem as bases políticas e administrativas das leis de imigração, mas também constituíssem
os procedimentos burocráticos pelos quais os candidatos a imigraram para o Brasil teriam que
se submeter. Um deles, que permaneceria sendo um ponto importante, era o estabelecimento
das cotas por nacionalidades. Segundo o texto, publicado nas Atas do Congresso, esta norma
teria inspirado-se na experiência norte-americana. Mas, o que fica ressaltado é a preocupação
explícita com a brancura do povo que seria formado. Diz Amaral:

Na aplicação do sistema estipulado pelo Quota act Americano de 1921 não


devemos, é claro, esquecer que os elementos imigratórios, cuja entrada no
país pode ser tolerada, devem pertencer exclusivamente a raça branca.
Embora a nossa formação nacional tenha sido em grande parte conseguida
pela contribuição de um vasto elemento africano – o Índio representou papel
relativamente secundado na composição étnica – seria inadmissível que
consentíssemos na entrada de imigrantes de raça negra. A nossa finalidade
nacional orienta-se no sentido da elaboração de uma nova civilização do tipo
europeu e para atingir esse objetivo temos a necessidade de não agravar, com
135

o acréscimo de elementos étnicos alheios a raça branca, a desvantajosa


posição em que nos encontramos no continente em relação a outros povos
mais imunes do que nós da mistura de raças coloridas.138

O importante evento do movimento eugênico foi noticiado através da imprensa. A ele


compareceram intelectuais de várias correntes. Alguns fazendo comunicações, outros apenas
assistindo aos debates sobre os rumos que o Brasil e sua raça deveriam seguir. Temas como
imigração, educação, leis e esterilização predominaram. Vale ressaltar a presença de alguns
intelectuais. Levi Carneiro, por exemplo, nascido em Niterói, no dia 8 de agosto de 1882,
filho de Francisco Fernandes Carneiro e de Maria Josefina de Souza Carneiro, formou-se em
Direito em 1903. Atuou em agências como o Instituto de Advogados do Brasil, a Ordem dos
Advogados do Brasil e a Academia Brasileira de Letras. Trabalhou no Governo Provisório de
Vargas, foi membro da Constituinte de 1934 e teve uma passagem pelo Congresso de
Eugenia, quando destacou a função que a educação desempenharia sobre a eugenização do
novo brasileiro. Além do texto “Educação e Eugenia”, apresentado no evento, Carneiro
enviou também um outro intitulado “A Esterilização Eugênica dos Degenerados”.

O ensinamento da eugenia é, afinal, o mesmo da educação; a defesa da raça


depende, como a do indivíduo-da educação. Só a educação completa a obra
estrita da eugenia. Dá a semente o corpo. O ambiente em que se desenvolva,
floresça e frutifique. A eugenia é uma colaboradora da educação, não uma
adversária. (1929: 116).

Todavia, a menção ao Congresso Brasileiro de Eugenia e que ficou muito conhecida,


tendo sido reproduzida em vários livros sobre pensamento social e político brasileiro, está no
livro Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. O autor nordestino faz referência ao
Congresso de Eugenia e à polêmica sobre o valor dos mestiços e por extensão de todos os
brasileiros. Seriam eles pobres, doentes, feios e sem noção de civilização por defeitos de
origem ou eram frutos do meio, portanto, sem educação e sem saúde? Freyre, a certa altura do
livro teceu comentários a respeito da mestiçagem, posicionando-se contra qualquer atribuição
inferior dos produtos da mistura de raças: “Faltou-me quem me dissesse então, como em
1929, Roquete-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram
simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas
cafuzos e mulatos doentes.” (FREYRE, 1989:XLVII ) Freyre fazia essa afirmação no contexto
de uma reminiscência, lembrando de uma ocasião em que ele havia avistado um grupo de
marinheiros nacionais, segundo sua expressão, “mulatos e cafuzos”, nas ruas cobertas de neve

138
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
336.
136

nos EUA139. O que fica evidente, é que, naquela ocasião, Freyre teria ficado chocado com as
atitudes irracionais dos Jecas brincando na neve. Ao que parece, naquele momento, próximo
aos anos 1920, Freyre incorporava as teses deterministas e racistas, enxergando naqueles
mestiços, um retrato desalentador sobre o Brasil. Palhares-Burke (2005) em livro primordial,
reconsituiu a trajetória de Freyre e de sua relação com as idéias racistas, eugenistas e
demonstra, por fim, como ele formulou a sua (dele) visão positiva da mestiçagem no Brasil.
Inclusive, após a publicação da sua obra mais importante, Freyre ergueria uma interpretação
do país fundada na mescla de culturas. Fato este saudado por uma infinidade de intelectuais
ao longo da nossa história como prova da democracia racial existente no país. Palhares-Burke
(2005) insere Freyre nas discussões sobre a questão racial que eram, à época, de magnitude
ímpar. Escritor e obra são analisados passo a passo, desde o início de sua graduação nos EUA,
onde “cheiro de carne queimando” dos negros nas ruas não era um fato raro.

O escritor pernambucano deixava clara sua inquietação com a miscigenação. Para ele
e, como chamamos atenção, para outros intelectuais da época, esta era uma questão de cuja
solução dependia os destinos da nação. E sua proposta declarada era apresentar uma
interpretação fundada na diferença entre raça e cultura, discriminando os efeitos das relações
genéticas e as influências sociais, de herança cultural e de meio.140 Mas, antes de Gilberto
Freyre tentar deslocar o centro da questão nacional de raça para cultura, deixando evidente,
que para ele a miscigenação não seria um impedimento e sim uma qualidade para a produção
de uma grande e nova nação. Antes de Roquette-Pinto e Franz Boas influenciarem141 Freyre,
modificando a visão do autor de Casa-Grande e Senzala, que, sem dúvida, durante os anos de
graduação universitária, flertou com alguns dos maiores intelectuais eugenistas (os mais
radicais) dos EUA, para a interpretação amplamente positiva da mestiçagem no Brasil, os
intelectuais sanitaristas e eugenistas haviam alterado substancialmente a visão determinista e
biológica sobre o Brasil e seus habitantes.

No entanto, os intelectuais do campo eugênico, sobretudo os que falavam em nome


das várias ciências emergentes, diziam que o processo de branqueamento seria realmente mais

139
“E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois
de quase três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais-mulatos e cafuzos-
descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklin. Deram-me a impressão de
caricaturas de homens... A miscigenação resultava naquilo.” (FREYRE, 1989:XLVII).
140
“Razoável em nome da Eugenia seria exigir o Pedigree dos noivos para descobrir as falhas da sua linhagem
biológica... A Antropologia perguntará ao homem: quem és? A Eugenia: donde vens? A Higiene: como vives?”
(ROQUETTE-PINTO,1929:37).
141
Sobre Gilberto Freyre, consultar PALHARES-BURKE (2005).
137

eficaz se fosse controlado e assumido pelo Estado, devidamente assessorado por esses
agentes. Afinal, se branquear era necessário e positivo e, não obstante, tal fato acontecia
independentemente da vontade dos administradores públicos, políticos, cientistas e literatos,
nada mais coerente se isso fosse controlado e assumido como responsabilidade do Estado.

O Sr Presidente, reportando-se a uma conclusão da tese do Dr. Rigo. Poe em


discussão, si se admite ou não a raça negra.
Tem a palavra o Dr Fontenelle: — Chama a atenção para a seriíssima
questão que acabaram de votar, dizendo que não nós devemos deixar arrastar
por sentimentalismos. O País já tem sofrido bastante por essa questão de
raça. O cruzamento com raças diversas é mau.
Diz Roquette-Pinto: — Todo progresso do país foi feito por essa gente
proveniente de cruzamentos, ora taxados de inferiores.
Dr Fontenelle: — É com essa raça que o Brasil chega a produzir 50$000 por
pessoa anualmente, enquanto que a Argentina tem uma produção
notavelmente superior. Basta para ter-se uma impressão da verdade do que
acaba de afirmar, que se tome um trem e se contemple a raça brasileira.

O Prof. Roquette-Pinto: — A raça não. Dr. Belisário Penna chamaria isso de


ancilostomíase, maleita. É UMA QUESTÃO DE HIGIENE. Apela para o
testemunho do Dr Renato Kehl.142

Essa é uma das participações registradas nas atas do Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia. Através delas e do estudo das relações entre os propagandistas é possível entender
muito do que se falou sobre raça e nação no período analisado. Os pressupostos e discursos
enquadravam-se num processo de reconhecimento das novas populações que estavam se
constituindo nas cidades. Uma das principais propostas dos eugenistas – mendelistas ou
lamarkistas – era a criação de arquivos (banco de dados) com informações detalhadas sobre os
indivíduos. As descrições deveriam conter os fatos relativos ao corpo e a mente. Um histórico
das doenças que haviam acometido os membros familiares. Esse era um dos braços da
institucionalização das idéias formuladas pelos intelectuais do eugenismo. Nessa frente de
batalha, os viscerais defensores143 foram Kehl, Vianna e Roquette-Pinto. Como podemos
investigar, eles se preocupavam, principalmente, em promover condutas preventivas entre os
habitantes. A disseminação das idéias através de ligas, das práticas pelas instituições estatais
deveria envolver a coleta de informações, inclusive com fotos, visando à construção de
arquivos genealógicos. Nesse assunto, os antropólogos do Museu Nacional chegaram a
realizar essas intenções. No livro “Lições de Eugenia”, Kehl apresentava suas preocupações
em relação a esse importante item, que por diversas vezes, ele e outros eugenistas

142
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929,
p.20.
143
Não podemos esquecer que Oliveira Vianna também esteve ocupado em identificar os tipos brasileiros.
138

lamentariam que o Brasil, com sua pobreza financeira, em contraste com os EUA e a
Alemanha, ainda não produzia e nem eram organizados fichas contendo dados sobre a vida
dos seus habitantes:

Ainda não se estabeleceu entre nós o hábito de organizar ou mandar


organizar, por pessoa competente, o registro individual ou ‘livro de saúde’, e
o registro genealógico de família, segundo as normas eugênicas (...) Os
registros referidos são, pois, de incontestável utilidade para fins de proteção
individual e da descendência. Tornam possível prever e evitar muitos
enganos e males. (KEHL, 1929:200).

Em outro livro, lançado em 1939, Kehl falava da mesma idéia. Porém de forma mais
objetiva:

Não possuímos um arquivo com documentações fotográficas com tipos


raciais e seus cruzamentos, para o estudo caracteriológico e a diferenciação
fisionômica entre pais e filhos com bases para análises objetivas, de real
interesse não só do ponto de vista eugênico, como iconográfico(...) E
ninguém pode ignorar a importância que representa a colheita de retratos e a
organização de biografias para o estudo dos tipos de famílias, a fim de
favorecer as elites, quer no sentido genotípico como fenotípico(...) são
soluções que não podem ser proteladas, principalmente num país de
caldeamento como o nosso. (KEHL, 1939:98).

Kehl mostrou-se um crítico implacável da miscigenação devido ao alegado potencial


degenerativo. Mas, nesse ponto, encontramos ao longo de sua vasta produção144 intelectual,
trechos onde ele conduz sua argumentação de forma errática. Porém, isto não significa uma
contradição em suas opiniões que, em determinados momentos apresentam diferenças.
Certamente, Kehl via no mestiçamento um problema. Todavia, para sua interpretação
eugênica, a fusão étnica poderia ser um processo depurativo. As sucessivas misturas poderiam
minar as características inferiores. Desde que, é claro, elementos aristogênicos fossem
adicionados ao “caldeirão de raças”. Porém, acreditamos, que para ele, como para muitos
outros membros do campo eugênico, a mestiçagem não era bem vinda. Embora, fosse uma
realidade. A historiografia que estuda a eugenia nacional interpreta a opinião negativa da
miscigenação como um momento distintivo da trajetória de Kehl. Que teria também
acentuado-se, com a chegada dos anos 30. Ou até mesmo ela é analisada como um exemplo
da pouca consistência científica das propostas desses atores. É um equívoco. Trata-se,
fundamentalmente, da mesma idéia de controlar e administrar o processo, que segundo esses
próprios intelectuais, estava acontecendo: o Branqueamento do Brasil. E, se depois de algum

144
Apesar do fato de que Kehl reescreveu seus textos durante sua vida, é inegável a quantidade de trabalhos. São
incontáveis artigos e cerca de 30 livros produzidos por mais de 50 anos.
139

tempo, esse “embranquecimento” formasse uma nova raça, os eugenistas gostariam que ela
fosse um pouco mais branca, educada e saudável. E, se alguns intelectuais eugenistas viam a
existência concreta desse episódio, e além disto, o avaliavam como algo benéfico, ou pelo
menos, não produzindo, necessariamente, seres inúteis, isto não significava uma contradição,
um erro ou ainda, uma mudança.

Acredito que, para os atores sociais, independentemente do processo de branqueamento


ser positivo ou negativo para a construção da nacionalidade, independente também da opinião
desse ou daquele intelectual, seja Roquette-Pinto ou Khel, o relevante era que isto fosse da
alçada do campo eugênico. Afinal, o que fazer com o Brasil? A proposta jocosa (e absurda) de
Lobato para solucionar o problema das raças no Brasil era um dilúvio e um terremoto. Ao que
parece, ninguém pensou seriamente nesses processos. O pensamento dominante declarava a
necessidade de controlar o que acontecia à revelia: o branqueamento e a miscigenação. E para
melhorar o futuro eugênico, saneamento, educação e, se fosse necessário, a esterilização.

Considero todas as raças suscetíveis de um desenvolvimento progressista,


em maior ou menor grau, guardando, porém, certa restrição, em relação à
raça negra, que, parece-me, é de grau intelectual um tanto inferior a todas as
outras. O fato de se contarem, entre indivíduos de raça negra, exemplos de
inteligência brilhante, não julgo capaz de abalar essa crença, ou melhor, essa
verdade. São exceções, e raríssimas, que não servem para invalidar a regra.
(KEHL, 1923:198).

Dentre os elementos em desassimilação, como dissemos, contam-se os da


raça negra e silvícola. Há uma verdadeira depuração desses sangues.
Ninguém poderá negar, que no correr dos anos desaparecerão os negros e os
índios das nossas plagas e do mesmo modo os produtos provenientes desta
mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá a custa de muito sabão de coco
ariano!(...) Não temos preconceito de raça; a nosso ver tanto são dignos os
brancos como os pretos ou amarelos, quando eles são dignos. (KEHL,
1929:188).

Mas, insisto na observação, o “pai da eugenia” brasileira trabalhava num projeto de


seleção biológica aonde programas de higiene e educação, ainda que de forma paliativa,
deveriam e poderiam participar, desde que as medidas radicais como a esterilização e a
exigência de exames médicos pré-nupciais, absolutamente necessárias e compulsórias ao
cidadão também estivessem na ordem do dia. Portanto, não haveria, na programação eugênica
de Kehl, uma total incompatibilidade entre as propostas eugenistas e sanitaristas. Mas, isto,
não quer dizer, que esse processo estivesse ausente de conflitos. Para Kehl, por mais
degenerativa que a mestiçagem das raças fosse, com o fortalecimento eugênico, as raças boas
superariam aquelas de propriedade orgânica e moral fracas. Kehl enumeraria várias razões
140

que, segundo ele, evidenciavam os critérios contrários ao cruzamento de raças: a necessidade


delas manterem a sua pureza, a fealdade encontrada nos tipos mestiços, entre outras.

O homem são é todo aquele que tem os órgãos normais e um bom


funcionamento, sem doenças e perturbação de qualquer natureza. O homem
robusto é aquele que se acha em pleno gozo de sua potencialidade física,
capaz de resistir as fadigas e as doenças, ao trabalho e as intempéries.
Finalmente, o homem belo é o homem que apresenta relativa proporção das
partes constitutivas do corpo, harmonia das formas, traços fisicamente
delicados, boas cores, delicadezas nos gostos e graça nos movimentos.
(KEHL, 1923:198).

Preocupado com o alcance dos ideais eugênicos, Kehl falava aos pais, médicos e
professores. Grande parte dos livros, artigos e folhetos produzidos por Kehl são manuais
dirigidos ao grande público. Mas, a eficácia do projeto eugenista dependia em grande parte da
autoridade do Estado. Ao poder estatal caberia a vigilância sobre a conduta das pessoas e,
também, sobre o controle da reprodução dos indesejáveis. Em seu livro “A Cura da
Fealdade”, Kehl deixou claro que em seu projeto de regeneração da espécie, o Estado deveria
interferir até na concepção estética e fisiológica dos indivíduos. No entanto, ele argumentava
e assegurava que sua noção de beleza tinha mais a ver com a harmonia dos dados antropo-
métricos (índice cefálico, tipos e formatos dos olhos, dentes, cabelos) do que com uma
representação artística do belo. A esse respeito, a antropologia física desenvolvida no Brasil
produzia métodos de aferição do forte, bom e belo. No Museu Nacional, João Batista de
Lacerda, Fróes da Fonseca e Roquette-Pinto aplicavam testes em busca de índices estatísticos
e biométricos dos brasileiros. Vários inquéritos para a determinação dos tipos antropológicos
brasileiros aconteceram nos laboratórios de Antropologia do Museu Nacional (FARIA,
1998:160). Em meio ao projeto eugênico do qual partilhava, alguns interesses levaram
Roquette-Pinto a tomar escolhas e decisões frente aos intelectuais alinhados com a
perspectiva eugenista que previa um futuro eugênico para a nação brasileira. Num campo
intelectual de disputas políticas, seu projeto nacionalista procurava realçar as categorias povo
e nação. Roquette-Pinto e seus aliados cumpririam um importante papel na configuração do
campo. No Congresso de 1929, ele expôs a importância da produção intelectual e científica e
o espaço político que a Antropologia deveria ocupar. E para a devida adequação do país ao
futuro que se anunciava, um elemento unia os agentes e deveria ordenar a todos os cidadãos: o
Estado.

(...) Aos responsáveis pelos destinos deste país presta, assim, a Antropologia,
um enorme serviço, apresentando-lhes documentos que não devem ser
desprezados em beneficio de fantasias retóricas desanimadoras. A
141

Antropologia prova que o homem, no Brasil, precisa ser educado e não


substituído. O processo geral de adaptação das raças aos diferentes meios
brasilianos segue de acordo com que a ciência pode desejar. A Antropologia
do Brasil desmente e desmoraliza os pessimistas. (ROQUETTE-PINTO,
1929:147).

Roquette-Pinto caracterizaria as afirmações dos outros intelectuais, separados da


antropologia, como não científicas. A autoridade e o domínio do conhecimento deveriam ser
exercidos por profissionais ligados ao Museu Nacional. Afinal, naquele momento, vários
discursos sobre raça e nação circulavam para os diversos fins. Roquette-Pinto, como tantos
intelectuais eugenistas, tentava estabelecer limites para sua veiculação através das ligas e
periódicos. Suas críticas direcionavam-se, primordialmente, às análises que identificavam os
brasileiros como resultado negativo da mistura de raças. Também era adversário daqueles que
buscavam na seleção de correntes imigratórias uma solução para remover os alegados
obstáculos que impediam o Brasil de chegar à civilização. Para o antropólogo e médico, o país
necessitava curar e educar os braços brasileiros e não substituí-los. Por isto, para ele, seria
muito importante, observar e catalogar os tipos brasilianos:

Do ponto de vista intelectual, os mestiços não se mostram, em coisa alguma,


inferiores aos brancos. É verdade que eles não são tão profundos, embora
sejam, às vezes, mais brilhantes (...) Os mestiços que recebem instrução
técnica (...) são tão bons quanto os europeus. Os que não conhecem senão os
mestiços degradados das grandes cidades, onde o meio cosmopolita
corrompe facilmente aqueles que a educação não fortifica, e os que só
conhecem os mestiços opilados ou impaludados do interior, não podem fazer
idéia da perseverança, da firmeza, da dedicação de que dá prova o do
hinterland, cuja sobriedade é proverbial.145

No entanto, veremos que, inegavelmente, ele apoiou, ainda que num terreno
extremamente movediço e polêmico, as teses totalmente contrárias à liberdade de imigração
defendidas por Azevedo Amaral durante o Congresso de Eugenia. Dentre as afirmações mais
incisivas de Amaral durante o evento, uma delas é, seca e definitivamente, excludente de
possibilidades de ocorrer imigração de indivíduos de etnias, cores e raças não autorizadas: “O
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia aconselha a exclusão de todas as correntes
imigratórias que não sejam de raça branca”.146

Edgard Roquette-Pinto nasceu no Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1884. Filho de


Manuel Menelio Pinto e Josefina Roquette-Pinto Carneiro de Mendonça, graduou-se em

145
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
137.
146
Ibid., p. 340.
142

medicina em 1905 pela Faculdade Nacional de Medicina, com especialização em medicina


legal e foi nomeado, no ano seguinte por concurso, assistente da Seção de Antropologia e
Etnografia do Museu Nacional. Em abril de 1911, Roquette-Pinto viajou para a Europa, para
tomar parte no Primeiro Congresso Internacional das Raças. Após essa viagem pelo velho
continente, retornaria ao Brasil, quando colaborou com a missão de Cândido Rondon. Ocupou
o cargo de diretor do Museu Nacional entre 1926 e 1936. Em sua obra escrita destacam-se
Rondônia (1917), Seixos Rolados (1927), Ensaios de Antropologia Brasiliana (1933), Ensaios
Brasilianos (1941). Portanto, seus principais textos são posteriores a viagem que realizou, em
1912, junto com Rondon ao Mato Grosso. Essa excursão que tinha como propósito identificar
a região e os habitantes, gerou o livro “Rondônia”. Nesse relato da expedição, publicado em
1917, o antropólogo apresentava dados obtidos em exames que mais tarde seriam utilizados
em pesquisas do Museu Nacional. Cunha (2002) observa que a familiaridade dele com a
construção de dados biométricos, tendo em vista a identificação física devia-se a experiência
que ele viveu, em 1907, então médico recém formado, como membro do serviço de medicina
legal, onde teria conhecido os métodos de identificação antropométricos e fisiológicos147.

O projeto eugênico de Roquette-Pinto criticava todas as demais considerações e


classificações racialistas. Ele formulava e definia critérios de reconhecimento do que chamou
de tipos antropológicos brasileiros oriundos do padrão que, segundo ele, caracterizava o
mestiçamento branqueador do país. Apresentado no Congresso de Eugenia, em 1929, o texto
“Notas Sobre os Tipos Antropológicos do Brasil” transformou-se num documento de forte
sentimento nacionalista e anti-racista, ainda que tenha estabelecido marcas tipológicas (sem
dúvida, baseadas em raças) do que ele estabelecia como brasilianos. Contudo, como já vimos,
pela narrativa de Freyre, a passagem contestatória do racismo biológico de Kehl, realizada por
Roquette-Pinto, durante o evento eugênico em 1929, marcou de forma indelével a trajetória
do antropólogo. Foi nessa ocasião que ele afirmou enfaticamente que os brasileiros mestiços
não eram degenerados.

De certa forma, Roquette-Pinto preconizava que a educação e o saneamento poderiam


manter os habitantes livres da degeneração. No entanto, por mais eloqüente que tenha sido sua
retórica, suas propostas apresentadas no Congresso não destoaram totalmente das defendidas
pelos demais eugenistas e ficavam bastante próximas das opiniões manifestadas amplamente

147
Aliás, devemos a Francis Galton a descoberta e aplicação da impressão digital para a identificação pessoal
dos indivíduos.
143

pelos intelectuais sanitaristas anos antes, como Penna148. Encontramos no volume publicado
das Atas do Congresso de Eugenia, as intervenções que Roquete fazia, defendendo suas
considerações como na seguinte frase: “Vossa excelência, mediu mulatos doentes! (...) Todo
progresso do Brasil foi feito por essa gente proveniente de cruzamentos, ora taxados de
inferiores!”149

Ou esta:

Pede a palavra o Dr. Geraldo de Andrade: -Como representante de um estado


nordestino ao Congresso, diz sentir-se na necessidade de apoiar o Dr. Xavier
de Oliveira. Não deve o nordeste receber elementos que o diminuam no
sentido racial. Chefiando uma sessão do Departamento de Saúde do Recife,
teve ocasião de medir 10.000 pessoas, achando desoladores as cifras; a
inferioridade dos mulatos é apavorante, diz.

O prof. Roquete aparta: — Vossa excelência mediu mulatos doentes!

O Orador retruca:- Se o exame clínico vale, posso afirmar que são indivíduos
relativamente válidos, pois que hígidos perfeitamente não os há.

O Prof Roquete retoma a palavra indagando se fizeram serviço militar e


acrescenta: — Vossa excelência afirma a deficiência dos mulatos, eu porém
cheguei a conclusões opostas.150

Reconhecemos que as diferenças de Roquette-Pinto para com os outros intelectuais


eugenistas, mitificadas e, mesmo recentemente, comemoradas por pesquisadores atuais são
verdadeiras151. Porém, essas diferentes opiniões não significam que Roquette-Pinto repudiasse
a Eugenia. Em sintonia com o campo eugênico, ele acatava a linguagem eugênica,
reformulando a perspectiva que rejeitava a negatividade dos cruzamentos raciais sexuais.
Pensando mesmo a miscigenação como um processo positivo, no horizonte da epistemologia
de Roquette-Pinto estava a melhoria da raça. Assim como os demais membros do campo

148
Esclarecemos que as nossas considerações estão circunscritas ao período analisado. Portanto, não levamos em
conta, as transformações ocorridas após as descobertas das atrocidades cometidas em nome da higiene racial
alemã, durante a Segunda Grande Guerra, quando as alterações eugenistas propostas passaram a serem
identificadas plenamente com o nazismo. E, no Brasil, foi considerável o movimento anti-racista, a partir das
décadas de 30 e 40. Além da visão, fortemente alimentada pelo Estado, de congraçamento das raças para a
formação do Brasil.
149
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
17.
150
Ibid., p. 23.
151
Um grupo de intelectuais instalados hoje em universidades e centros de pesquisa, contrários às políticas
afirmativas (leia-se a criação de cotas étnicas nas universidades) vem recuperando alguns intelectuais. Roquette-
Pinto e Gilberto Freyre, principalmente, surgem embalados em velhas canções exaltando a mistura de raças e
cores. Em (FRY, 2007), encontramos vários textos, onde um bom número de autores reafirma as teses sobre a
sociedade brasileira como uma saudável mistura de raças, etnias e cores. Nessa obra, um artigo recupera a face
anti-racista de Roquette-Pinto, que como vemos não pode ser mitificado. Sobre os argumentos apresentados
pelos partidários contrários as políticas afirmativas, ver o artigo de Marcelo Badaró Mattos, onde esse autor
apresenta as implicações ideológicas dos críticos das políticas afirmativas. (MATTOS, 2007).
144

eugênico nacional, ele demonstrava as características e tensões do campo sobre os fatos do


seu período histórico. Em uma carta pessoal a Oliveira Vianna o antropólogo demonstrou suas
impressões sobre o anteprojeto de imigração escrito pela comissão encarregada da qual ele
também fazia parte, e fora escolhido, certamente por influência e opção de Oliveira Vianna.
Fazia ressalvas, mas não abandonava a convicção da tarefa melhorista que a eugenia
executaria na raça nacional e, por extensão, também no país. Trabalho que deveria ser
executado por respeitados técnicos autorizados pelo Estado. Esse projeto de controle e
planificação da imigração, formulado em 1935, propunha ordenar as leis que desde as
discussões anteriores a Constituinte de 1934, previam a regulamentação das políticas de
imigração152. Nessa carta anexa a um rascunho do projeto de imigração, Roquette-Pinto
afirmou:

Meu ilustre amigo, acabo de ler com atenção o anteprojeto de lei de


imigração e o relatório correspondente. O relatório é magistral. O projeto de
lei parece-me muito bom. De acordo com o meu voto que o senhor já
conhece, desejaria que os ciganos não fossem mencionados ao lado dos
vagabundos e mendigos conforme o numero 8 do artigo segundo.153

Algumas observações de Roquette-Pinto sobre miscigenação e imigração servem de


exemplo para as (in)definições e ambigüidades154 do pensamento eugênico. De resto,
encontraremos os mesmos argumentos eugenistas nas obras de Kehl e Domingues. Dos textos
de Roquette-Pinto, o mais significativo para exemplificarmos nossa opinião é o comentário
escrito por ele a respeito da palestra de Azevedo Amaral sobre o problema eugênico da
imigração, apresentada no congresso de eugenia. Apesar de Roquette-Pinto considerar a
miscigenação um processo eugênico positivo e do relativismo próprio ao campo eugênico,
nesse texto, trazendo considerações sobre o evento eugenista, Roquette-Pinto assume as
conclusões da maior parte dos critérios de total exclusão dos imigrantes que estavam contidas
nas propostas de Amaral. Ressalte-se que Roquette-Pinto ainda sublinha o valor eugênico
individual do imigrante. Ambíguo, mas nem por isto menos eficiente. Essa aparente
indefinição do campo eugênico permitia recaídas mesmo num autor que expressava suas
crenças nas virtudes e vantagens do mestiçamento e não reconhecia razões eugênicas

152
Em muitas questões, prevaleceu um certo pragmatismo político. Quando se discutia a entrada de imigrantes
negros de outros países não africanos, Kehl se manifestou contra, assim como a vinda de imigrantes japoneses:
“Para que atrasar a nossa química racial, no seu trabalho lento de depuração? Para que, pois, complicar a
situação, incorporando outros elementos étnica e socialmente tão diversos?” KEHL, Renato. Correio da
Manhã. 9 fev. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
153
Carta de Roquette-Pinto para Oliveira Vianna em 1935. Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
154
Sobre esta ambigüidade de Roquette-Pinto, ver SEYFERTH (1997). Sobre política indigenista, formação do
Estado e a participação dos antropólogos, ver LIMA (1995).
145

(coletivas) que impedissem a entrada no país de imigrantes japoneses, o que Kehl e Miguel
Couto não aceitavam. Na comunicação realizada no Congresso de Eugenia, Amaral foi
taxativo. Estabeleceu as bases para a implementação das políticas de imigração que seriam
adotadas nos anos seguintes:

O problema eugênico da imigração encarado no ponto de vista em que já o


colocamos pode ser definido como a determinação dos meios de assegurar os
processos mais eficazes de escolha dos elementos alienígenas, cuja entrada
no país concorrerá para levantar o nível dos caracteres superiores da raça e,
ao mesmo tempo, vedar o acesso do nosso território de todos aqueles cuja
influencia disgênica seja reconhecida.155

E, em relação ao pronunciamento de Azevedo Amaral no Congresso, também foi se


construindo ao longo dos anos a imagem de que durante o evento as discussões em torno do
seu pronunciamento foram, no mínimo, motivo de acirrados e tempestuosos debates. Muito
menos. Realmente a leitura do trabalho de Amaral sobre imigração e eugenia foi amplamente
discutida. Observa-se pela leitura das Atas que houve tensão e discordância. Mas, sobre esse
dado, vale a pena, um pequeno relato. Após as primeiras incursões aos documentos do
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, sob a guarda do Museu Nacional, cuja organização
está sendo feita pelo Museu de Astronomia (MAST), deparei-me com um pequeno trabalho
de Roquette-Pinto comentado nos parágrafos anteriores. Trata-se de um texto de autoria do
antropólogo. Pude averiguar que se tratava de um pequeno relato ao fim do segundo dia de
trabalhos no referido encontro de eugenistas. Como podemos ver nas pesquisas sobre
eugenismo no Brasil156, a autorização de imigrantes entrarem no país foi considerada uma
atitude de importância vital para os destinos do Brasil e de sua raça. Mas, nas páginas desse
rascunho datilografado de Roquette-Pinto, fica bastante evidente que as polêmicas sobre as
considerações de Azevedo Amaral foram absorvidas e, o que mais impressionou-me, foram as
palavras elogiosas de Roquette-Pinto para a visão de Azevedo Amaral. Mas, então o que
aconteceu? Acreditava estar diante de uma descoberta inédita. Afinal, tratava-se do primeiro
pesquisador a embrenhar-me nos documentos do Evento de Eugenia. Já havia pesquisado o
fundo documental e pessoal do antropólogo, este sob a guarda da Academia Brasileira de
Letras e nele não há cópia deste texto-relatório das apresentações da reunião de eugenistas.
Acreditava estar diante de uma espetacular descoberta. Um texto inédito do intelectual
Roquette-Pinto.

155
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
331.
156
KOIFMAN (2007), SOUZA (2006), REIS (1994), STEFANO (2001), NALLI (1999), DIWAN (2007).
146

Doce ilusão. Após algumas semanas dessa visita ao fundo documental, lendo a
bibliografia necessária para falar de Kehl, sem deixar de falar dos demais, Roquette-Pinto e
Domingues157, pude constatar que esse relato não só não é inédito como está publicado no
livro do antropólogo intitulado “Ensaios de Antropologia Brasiliana”. Portanto, nem é um
rascunho. Aliás, é um texto editado ainda em vida do próprio Roquette-Pinto. Sim, porque
poderia ser um texto, que publicado após a morte do autor, não tivesse a autorização e
reconhecimento do mesmo. Mas, não é o caso. São as considerações e impressões após um
dia estafante de trabalho. Mereceram a imortalidade em livro. Desse fato, duas conclusões
podem ser tiradas. A primeira está ligada diretamente a minha principal argumentação.
Roquette-Pinto era membro influente do campo eugênico e, embora, muitas de suas
afirmações marcantes em sua trajetória refletissem uma opinião favorável à mestiçagem no
Brasil, elas não destoaram profundamente das demais. A segunda, os livros de Roquette-Pinto
merecem uma leitura mais atenta.

(...) Deste congresso, até agora, a mais importante memória foi, sem dúvida,
a que sobre ‘imigração e eugenia’ apresentou Azevedo Amaral, trabalho,
sem favor, muito brilhante, que o seu autor sustentou de maneira sóbria e
eloqüente e que eu tive o prazer de discutir(...) Azevedo soube ver, com
espírito de rara penetração e amplo descortino - o que de fato, há para a
eugenia, no problema do imigrante atraído pelo Brasil(...) Finalmente, as
conclusões da memória, tal como foram aprovadas pelo congresso de
Eugenia -oferecem aos legisladores um corpo de doutrina seguro, fiel,
perfeitamente demonstrável e, por isso, científico. (ROQUETTE-PINTO,
1982: 44).

Como afirmamos anteriormente, para alguns intelectuais, a causa da miséria no Brasil


encontrava-se na miscigenação com raças inferiores. Tínhamos um território potencialmente
rico, mas ainda não éramos uma nação. Uma primeira explicação - hegemônica, que negava
qualquer chance ao país e ao povo, atribuía grande parte dessa negatividade ao clima, à terra e
ao povo inferior. No entanto, essa visão sofreria mudança. A viagem de Penna e Neiva aos
rincões desconhecidos e a publicação do relatório narrando a vida dos habitantes de
localidades longínquas, ajudaram a transformar a explicação dominante. Constatamos que a
repercussão dessa epopéia foi de extrema relevância para a revelação dos problemas do
Brasil. Dos médicos sanitaristas, que negavam as teses da indolência inata, vinha o remédio
para o futuro promissor: a educação higiênica e as ações públicas sanitárias. Afinal, os
homens encontrados por Penna e Neiva nos locais mais indômitos do país, se não eram uma
plêiade de valorosos guerreiros, tampouco constituíam uma massa humana desprezível e não

157
Os principais livros desses autores estão listados no Anexo C.
147

aproveitável. Reorganizando as idéias que associavam a herança negra à degeneração,


médicos, educadores e formuladores de políticas públicas passaram a considerar que com
reformas na saúde e na educação, poder-se-ia fugir da determinação biológica, que afirmava
peremptoriamente a inferioridade nacional, e assim, poderíamos constituir uma raça saudável
e um Brasil alinhado com o progresso. Substituía-se, assim, a noção de degeneração herdada
por adquirida e, portanto, remediável ou ao menos mitigada.

No Brasil, indubitavelmente, coexistiriam teorias que adotavam uma seleção racial


capaz de embranquecer a população, produzindo um tipo nacional pelas sucessivas
miscigenações, com teses de que o futuro eugênico seria resultado também do
aperfeiçoamento das políticas públicas de saúde e educação. Para os médicos e educadores,
seguidores da perspectiva neolamarckista, que aceitavam a influência do meio na transmissão
hereditária das características humanas, as reformas educativas e sanitárias aprimorariam a
capacidade eugênica. Por exemplo, eles acreditavam que campanhas contra o alcoolismo e as
doenças venéreas melhorariam a raça nacional. As condições do ambiente dever-se-iam
modificar-se para que, transformando os indivíduos, os seus descendentes fossem
beneficiados. A Eugenia brasileira, além de produzir indivíduos saudáveis, pretendia também
recuperar os Jecas degenerados e, conseqüentemente, salvar a nação. Como Kehl declarava:

Os desígnios da política eugênica são muito diversos: não consistem na


seleção de homens de alta mentalidade para formar a elite de gênios, nem a
seleção de gigantes para organizar (...) indivíduos de mais de dois metros de
estatura. A Eugenia não propõe, em suma, a criação de novos tipos, mas a
purgação de gênero humano de seus maus humores, a eliminação gradual
dos seus elementos nocivos. Indica, para isto, remédios legais que, direta ou
indiretamente, atuam como profiláticos e curativos na defesa e constituição
de famílias sadias. (KEHL, 1929: 184)

No entanto, curiosamente, os médicos eugenistas favoráveis à regulamentação


eugênica dos casamentos através da exigência dos exames pré-nupciais não percebiam o
baixo alcance de algumas das propostas. Ora, se o grande objetivo era controlar a reprodução
inadequada, para eles, das uniões indesejáveis, sob o ponto de vista eugênico, como supor que
essas pessoas estavam dispostas a contrair união civil estável? Afinal, para o eugenismo, as
pessoas identificadas com esses cruzamentos sexuais “promíscuos”, vistos como perigosos
para a formação de uma raça boa, não utilizariam o casamento civil ou mesmo uma união
formal para seus acasalamentos sexuais.
O Neolamarckismo, teoria científica que ganhou força nos anos 1920, 30 e 40, pregava
que os caracteres sadios podiam ser adquiridos. Portanto, através de saneamento e educação
148

podereríamos formar uma nova raça e um grande país. Todavia, acho que está suficientemente
comprovado que, para os membros do campo, as controversas questões científicas tiveram
muito menos importância do que podemos supor. As polêmicas sobre os fatos interpretativos
das diversas teorias científicas, sem dúvida, existiram, mas foram repletos de significados
culturais e políticos. É complexo e pouco eficiente, distinguir entre os grupos, as propostas
sobre a influência do meio sobre a hereditariedade158. Mas, isto não quer dizer que seja uma
tarefa impossível. Ao longo do texto, estamos procurando demarcar as opiniões de Kehl,
Roquette-Pinto e Domingues sobre Educação e Hereditariedade. Em suma, as diferenças eram
reais, mas conciliáveis. Podendo causar uma confusão entre o que era aceito ou não. Afinal, o
que foi desejado, como um grande pano de fundo do cenário de pobreza e miséria,
identificado pelos eugenistas, era transformar o Brasil em uma nação promissora. E, para isso,
os intelectuais armaram-se de todas as armas disponíveis. Também, essa amplitude de opções,
não acarretou numa inércia. Pelo contrário, o campo eugênico foi palco de disputas pessoais e
políticas intensas. Segundo cartas existentes nos documentos do Fundo Pessoal Renato Kehl,
as relações privadas entre Kehl e Roquette-Pinto eram bastante conflituosas. A opinião
divergente sobre o valor da mestiçagem era, sem dúvida, um motivo de afastamento. O
primeiro, sempre considerou a prática perniciosa, enquanto Roquette-Pinto avaliaria a
positividade da mistura de raças. Não obstante, isto não isenta o antropólogo de perspectivas
ambíguas em relação a essa questão.

Os cruzamentos heterogêneos (entre raças diferentes, por exemplo, entre


indivíduos brancos e pretos, entre pretos e amarelos ou bronze) são
responsáveis pelo aparecimento de excessivas variações que representam
desvios de norma genética. A vida numa sociedade é tanto mais intensa,
desordenada, prenhe de vicissitudes, de crimes, de degenerações, quanto
mais heterozigotos os elementos que a compõem, como procuraremos
demonstrar em outra parte do livro. (KEHL, 1933:44).

Podemos ver no trecho anterior, retirado do livro “Sexo e Civilização” de Kehl, que
sua postura sobre o valor da miscigenação ou “cruzamentos heterogêneos” constitui-se um
ponto altamente polêmico. Durante o evento eugênico realizado no Rio de Janeiro, Kehl foi
bastante criticado. Segundo Souza (2006), Renato Kehl, após o Primeiro Congresso Brasileiro
de Eugenia, teria ficado bastante perturbado com as críticas a ele dirigidas, principalmente em
relação aos ataques e críticas anti-racistas lançados por Roquette-Pinto e Fróes da Fonseca.

158
O simples fato de dizer que uma característica, condição ou comportamento era de origem “hereditária”, e não
social/cultural, implicava uma série de conclusões, sendo a principal, que a condição era inerente ao indivíduo ou
a raça, ou ainda ao povo, que era uma coisa fixa.
149

Dez dias após o encerramento do congresso, Kehl recebeu uma correspondência de seu irmão
Wladimir Kehl. Souza (2006) atribui os comentários ácidos de Kehl como sendo dirigidos ao
Roquette-Pinto. Nesta correspondência, Wladimir Kehl declarava:

Você faz muito bem não dando importância à atitude injusta e inamistosa
dos tais ‘negróides’. Penso que nesse particular (Eugenia) você pode e deve
estar perfeitamente tranqüilo: todo mundo (...) reconhece que você é o
campeão desse jogo no Brasil. Disso eu tenho prova – e quem não tem? –
por maior referências elogiosas de pessoas de classes sociais mais diversas,
não falando dos meios mais cultos. O único prêmio, portanto, que você pode
esperar dos seus trabalhos – o reconhecimento pela sociedade dos serviços
prestados com a divulgação e pregação dos princípios da Eugenia – esse
tem-no você garantido por todo este Brasil. E basta-te isso. Li há poucos
dias, não sei se na ‘Ordem’ ou no ‘Diário Nacional’ um artigo do Rq. No
qual esse doutor de tal modo se desmancha em elogios e gratidões ao C., que
me senti envergonhado! Aliás, não escapa a ninguém que lê os artigos desse
autor sobre questão racial no Brasil, e coisas afins, que ele, como ‘negróide’,
está sempre a batalhar ‘pro domo sua’. Explica-se, pois o caso; e como
explicar é perdoar.159

Realmente, Wladimir Kehl remete-se a Roquette-Pinto (de origem mestiça), que era
um dos principais críticos do racismo biológico de Renato Kehl. De qualquer modo, essa carta
ajuda-nos a compreender a dimensão pessoal e política que as considerações críticas dirigidas
aos membros do campo eugênico ganharam neste período. Na verdade, essa luta travada em
torno da autoridade científica, intelectual e política deixaria cicatrizes e acirraria ainda mais o
confronto entre Renato Kehl e seus opositores. As divergências e as disputas em torno das
questões mais candentes (miscigenação, imigração, esterilização) representavam, ainda, a
posição que esses eugenistas procuravam ocupar no interior do campo. Roquette-Pinto e
Belisário Penna, entre outros intelectuais que compartilhavam de um nacionalismo otimista,
almejavam consolidar suas concepções políticas sobre a realidade social brasileira. Além de
tentar manter as posições políticas dentro do campo e seus cargos públicos. Por outro lado,
juntamente com Renato Kehl, um outro grupo de intelectuais (Miguel Couto à frente)
esforçava-se no sentido de endossar um modelo de eugenia mais radical que, não obstante,
representava posições ideológicas que ainda habitariam por muito tempo o imaginário político
brasileiro. Mas, em vários momentos Kehl, parece dialogar com Roquette-Pinto a respeito do
valor atribuído aos mestiços e a mistura de raças:

Os eugenistas não podem, pois, ser favoráveis aos cruzamentos de raças


diferenciadas como seja entre a branca e preta, a branca e a amarela, a
indígena e a preta. Razões biológicas saltam a evidência e razões sociais aí
estão a vista. A vox popoli, na sua máxima sabedoria, sempre a condenou. Só

159
Carta de Wladimir Kehl a Renato Kehl. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz. Ver Souza (2006).
150

aberrações individuais ou traições de momento, fazem com que um branco


procure uma preta ou uma branca aceite um preto. No nosso país, entretanto,
levantam-se algumas vozes suspeitas, advogando tais cruzamentos ou os
admitindo inócuas para o futuro da nacionalidade. Argumentam com
exemplos que se contam aos dedos. Quando pedimos notícias de mestiços
capazes de se emparelharem no valor físico, psíquico, mental, com brancos
sem mescla de sangue heterológos, citam sempre a meia dúzia de homens
que todos conhecem, e que mais? (KEHL, 1933:201).

Como deixamos suficientemente claro, para o eugenismo nacional, os produtos da


degeneração racial, deveriam ser objetos da eugenia preventiva, positiva e negativa. A
primeira e a segunda, responsáveis por promover a higiene individual, a educação e o
saneamento. Mas, essa divisão distintiva era apresentada e sustentada pelos próprios atores
sociais do campo. De um lado, julgando que a modificação das condições ambientais levaria a
uma capacidade genética superior e que essa seria transmitida aos descendentes, essa visão
influenciou o campo intelectual e político, a ponto de atividades esportivas terem recebido
influências eugenistas. Durante o Estado Novo (1937-1945), foi muito difundida a prática da
Educação Física nas escolas. Por seu lado, a eugenia negativa visava eliminar os seres
imperfeitos, principalmente através da esterilização compulsória. Determinados indivíduos
seriam, assim, condenados a não gerarem descendentes.

Outra medida proposta pela eugenia negativa é a esterilização dos grandes


degenerados e criminosos. A simples interdição legal ao casamento destes
indivíduos constituiria um ‘meio atenuado’, passível de ser burlado,
enquanto que a esterilização representa um ‘meio radical’, muitas vezes
necessário. (KEHL, 1929:152).

Dessa maneira, para evitar o nascimento de indivíduos indesejáveis, devia-se adotar a


esterilização compulsória. E, para que não houvesse uniões disgênicas, noções de eugenia e
higiene, impediriam a proliferação de seres inúteis. O objetivo de branquear a sociedade teria
êxito, a partir da promoção de condições favoráveis à procriação eugênica através da
educação, da higiene e do combate à reprodução dos degenerados e criminosos, porque esses
poderiam transmitir os defeitos morais, físicos e mentais aos descendentes e, ainda seria
necessário, para a reforma da sociedade, que o Estado adotasse medidas profiláticas para o
controle das enfermidades que beneficiavam os fatores disgênicos (degenerativos) das
pessoas: a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo. Em relação a esse aspecto, existe uma
distinção – muito presente nas pesquisas sobre a eugenia – entre os eugenistas “leves” que
aceitavam a melhoria racial por meio da atenção à saúde pública, influências ambientais,
valores culturais e os “pesados” que concentravam-se na eliminação de características
negativas por meio do controle estrito da reprodução. Porém, estamos alertando que essa
151

caracterização leva em conta, as opiniões dos intelectuais eugenistas. Essa diferenciação


nascia dos conceitos operados por eles.

Há algum tempo, venho analisando aspectos da formação histórica da nacionalidade e


do pensamento social e político brasileiro. Estou empenhado em analisar algumas das
representações sociais presentes nos discursos dos higienistas, sanitaristas e intelectuais
influenciados pela eugenismo. Esses autores, em suas obras formularam um país ideal
mediante símbolos que ainda hoje permanecem como fantasmas no imaginário e na política
nacional160. Porém, em linhas gerais, é importante destacar que a ação intervencionista da
educação no projeto eugênico de Kehl não era preconizada de forma aleatória e ampla. Ele
tinha a esse respeito, uma visão bastante específica das funções que a educação higiênica e a
educação sexual desempenhariam na construção nacional do brasileiro. No entanto, podemos
resumir que ele sustentava propostas de ação eugênica do seguinte tipo: para as classes
cacogênicas e disgênicas da sociedade, ações eugenistas para conter a multiplicação de seres
inúteis, isto é, a defesa da esterilização; para todos que pretendiam casar, o exame pré-
nupcial, terminando na proibição do casamento e/ou geração de filhos dentre os que
demonstrassem ser degenerados ou perigosos para a sociedade; e para os membros de classe
aristogênica, educação higiênica e sexual para garantir uma descendência sadia, desde que
fossem observados e seguidos os procedimentos. A primeira recomendação a ser obedecida
para gerar uma prole sadia, claramente explicitada, era não haver a mistura de raças e cores, a
outra, antes do casamento, consultar um médico e buscar uma orientação eugênica.

Para Kehl, a aristogênia representava os seres geneticamente e eugenicamente


superiores; enquanto, os tipos inferiores constituíam a classe cacogênica, os cacoplastas.
Esses, por ventura, poderiam assumir uma forma bastante degradante, ou seja, a disgênica.
Mas, de uma maneira geral, eugenizar a sociedade significava, sem dúvida, educá-la. Embora,
ao nível do seu discurso político, Kehl mantivesse uma opinião generalista sobre a educação, o
saneamento e a esterilização, ele possuía uma visão bastante particular desses processos. Podemos
supor, por exemplo, que os eugenistas decidiriam quem seria esterilizado ou não. Assim, como
foram os eugenistas quem definiram aqueles que poderiam imigrar para o Brasil.

160
Freqüentemente, políticos fazem menção, geralmente benéfica, a função que o Estado tem ou deveria ter
sobre a reprodução humana. Em abril de 2007, o Vereador Wilson Leite Passos apresentou à câmara municipal
do Rio de Janeiro o projeto de lei número 1.044, que ‘estabelece estímulos e proteção a boa geração e
constituição de famílias sadias’. Curiosamente, o projeto propõe um prêmio Renato Kehl para as crianças
selecionadas pelas Secretarias de Saúde e Educação como representativas de uma boa saúde.
152

Para a realização de seus fins, repetimos (...) a necessidade da educação


popular nas questões de higiene, de hereditariedade, tornando geral o
interesse público pelas medidas de defesa e de proteção da sociedade dentro
do programa eugênico, do fomento da paternidade digna, do impedimento à
procriação dos defeituosos e tarados, da luta contra os fatores de
abastardamento de todo o gênero. (KEHL, 1929:39).

Assim, tratamos de construções simbólicas que organizavam e proporcionavam


sentidos a uma sociedade em intensa transformação. Visões do Brasil, interpretações que
simbolizavam razões às ações dos homens. Algumas das leituras sobre a verdadeira
identidade nacional identificaram o clima e a natureza do país como privilegiados pela beleza
e riquezas do solo: “Nosso verde é mais verde!; Não temos terremotos!; Nesta terra, em se
plantando, tudo dá!” Outras explicitavam o desacordo. Para essas, o clima tropical era
inumano e a geografia hostil gerara um arremedo fracassado de nação. Outras atribuíam
fatores hereditários que brecavam o desenvolvimento que as nações do velho mundo haviam
trilhado. Eram interpretações que condenavam a miscigenação racial “imoral”. As teses
sanitaristas, eugenistas e até, as “culturalistas” influenciadas por Freyre e Roquette-Pinto
buscavam reverter o quadro pessimista. Essas últimas, afirmavam mesmo, fundando uma
interpretação do Brasil, que éramos uma nova civilização, miscigenada e venturosa.
Acreditamos, no entanto, que muitas dessas diversas visões, embora diferentes e conflituosas,
não eram antagônicas. Como venho assinalando, as interpretações do Brasil e do homem
brasileiro seguiam uma lógica própria. Embora a fonte dos diferentes retratos do Brasil fosse
as correntes de pensamento oriundas de autores estrangeiros, eles assumiam um modo
brasileiro, ou antes, um pragmatismo social.

Mas surgia uma esperança para a solução do dilema/tragédia: por que o Brasil é
miserável e doente se o seu território é tão rico? Seria possível formar uma nação brasileira
saudável, culta e rica? Encontramos em Lobato indicações para a resposta de tantas
encruzilhadas. No volume intitulado Problema Vital, ele falava das ilusões, “licenças
poéticas” dos que teimavam em não ver o verdadeiro Brasil. E alertava: essas mentiras
ilusórias começam nas escolas!

O que nos campos a gente vê, deambulando pelas estradas com ar abobado, é
um lamentável náufrago da fisiologia, a que chamamos homem por escassez
de sinonímia. Feíssimo, torto, amarelo, cansado, faminto. (LOBATO,
1957:234).

Há os que negam o nosso estado caquético e vogam ainda, felizes, em pleno


mar de ilusões(...)Retardatários, amigos da fachada, trazem cem anos de
retórica nos miolos, estão convencidos de que Peri arrancou a palmeira e de
153

que os cablocos são outros tantos Peris de camisa aberta ao peito. Salva-os a
boa fé. (1957:298).

Porque é na escola que a mentira pia começa (...) A criança, no período em


que a cera mole do cérebro recebe sem reservas e guarda indeléveis todas as
impressões recebidas, aprende que somos o povo por excelência, o mais rico,
o mais belo, o mais florido, o mais todos os bons adjetivos do léxico (...)E
vai se perpetuando a ilusão funesta. O primeiro passo, pois, para o
saneamento do Brasil, consiste em matar essa ilusão, desprezar a opinião do
suborno externo e a mentira pia interna, não mais soprar gaitinhas
patrióticas, não ser otimista nem pessimista – pólos do mesmo erro – e sim,
pura e exclusivamente, verdadeiros. (1957:313)

Ora, se a escola ajudava a propagar imagens ilusórias e falsas do país, a transformação


dos “cérebros moles de cera infantis” em pólos irradiadores da verdadeira realidade brasileira
deveria acontecer, então, nos lares e escolas. Penna, em vários textos publicados na passagem
dos anos 20 para a década de 30, afirmava que cabia à escola e aos pais o dever dominante de
entreter nas crianças “o sentimento vivo das responsabilidades da família e do lar no concerto
social”, e destacava a decisiva influência da mulher para a sua eficiência. A escola deveria ser
um prolongamento ou uma expressão da vida familiar, pelas atividades comuns a uma e a
outra, com formas de cooperação, autoridade, obediência, disciplina e trabalho, princípios
indispensáveis à paz e à prosperidade coletiva. Em artigo onde Penna uniu a função educativa
da escola, do lar e da mulher, ele assim proclamou:

Esses princípios devem ser implantados não só para a eficiência da escola,


como por sua benéfica influência presente e futura sobre as famílias dos
educandos, em cujos cérebros receptíveis deles se gravam para despertar em
todo tempo e serem praticados nos respectivos lares. E indispensável
habituar as crianças à prática das virtudes higiênicas; asseio do corpo, as
vestes e do espírito, sobriedade, laboriosidade, recreio e exercícios físicos
adequados.161

Para efetivar o plano de educação higiênica e eugênica da nação, seriam usados


múltiplos recursos educativos, palestras, cartazes, folhetos e novas tecnologias como o
rádio162 e o cinema. Nesse aspecto, procurando divulgar suas idéias, Roquette-Pinto, Penna e
Kehl utilizavam recursos fílmicos, radiofônicos e gráficos. Muitos esforços eram dedicados à
assistência e educação de gestantes, crianças e mães, com a finalidade de combater as doenças
e construir padrões de comportamento sob a ótica da consciência sanitária. Não foi esquecido
o importante papel a ser desempenhando pelas enfermeiras de saúde pública. As guardas

161
PENNA, Belisário. “A Mulher, A Escola e o Lar”. São Paulo, Diário de Notícias, 3 set. 1930. Fundo Pessoal
Belisário Penna, COC/Fiocruz.
162
Sobre os intelectuais e o uso do rádio na tarefa de educar “as massas”, ver a importantíssima tese de mestrado
de Dângelo (1994).
154

sanitárias e as visitadoras sanitárias foram também destacadas como importantes agentes


educativos, pois tinham contato direto com as famílias no seu cotidiano, podendo atuar na
formação de novos hábitos. As campanhas eugênicas associavam estratégias coercitivas e
persuasivas. Os agentes envolvidos na tarefa de higienizar a sociedade, tendo em vista sua
reformulação, compreendiam dessa maneira a importância da educação da mulher, em virtude
do papel atribuído ao sexo feminino na família: administrar o lar, preparar a alimentação e
suprir as demais necessidades do marido e dos filhos.

Penna ressaltava a importância das profissionais de saúde para a higiene da sociedade:

Não fica, porém, na formação das bandeirantes o nosso plano. Além da


educação higiênica escolar, cogita ele, igualmente, da educação higiênica
popular, por intermédio das ‘Guardiãs de Saúde’. Que vem a ser isso? A
mais nobre e dignificante profissão destinada à mulher, a de maiores e
melhores benefícios à nacionalidade.163

Afirmar a especificidade da eugenia no Brasil e demais países (como a Argentina) não


significa negar ou atribuir características positivas e/ou negativas para o eugenismo
nacional.164 A eugenia brasileira foi tão rigorosa quanto em qualquer país. Suas estratégias
disciplinares talvez tenham sido mais sofisticadas. Se nos EUA, entre 1906 e 1940, as leis
eugenistas esterilizaram mais de 60.000 mil pessoas, estando presente em vinte e sete estados,
no Brasil, por exemplo, mulheres não brancas e pobres, internas em manicômios, também
foram esterilizadas. Há a esse respeito, inclusive, uma posição muito criticável em análises
efetuadas por profissionais ligados à psicologia. Eles consideram, por exemplo, que não
houve ações de esterilização compulsória no Brasil. Não negam as experiências
esterilizadoras efetivamente realizadas nas mulheres internadas em locais como a Colônia
Juliano Moreira. No entanto, em grande parte, essas intervenções são vistas por esses
profissionais psiquiátricos, ainda hoje em dia, exatamente como a ciência alienista da época
encarava: eram absolutamente terapêuticas. A esterilização estava “receitada” sob uma
orientação terapêutica. Compulsórias, mas autorizadas pela ciência psiquiátrica, as propostas
de esterilização misturavam-se às políticas educacionais e sanitaristas. Portanto, a Eugenia
nacional não representou, certamente, uma prática impiedosa de eliminação dos indesejáveis.
Mas, nem por isso, podemos ignorar seus aspectos disciplinares e de implicações também

163
PENNA, Belisário. “Plano de Educação de Higiene na Escola e no Lar.” In: Hygia. Revista Popular de
Medicina e Educação Sanitária. Número 2. Julho de 1928. Fundo Belisário Pessoal Penna, COC/Fiocruz.
164
Sobre a Eugenia na América Latina, consultar MIRANDA, Marisa e VALLEJO, Gustavo (orgs.) (2005) e
(2007).
155

trágicas165. Nesse texto, não trataremos das diversas aplicações que as idéias eugenistas
tiveram na sociedade brasileira. Por enquanto, nossa atenção está delimitada.

E o que consistiria o branqueamento? Considerava-se que, com o passar do tempo e


evolutivamente, teríamos uma igualdade racial pela suspensão gradual das raças. Assim, esta
concepção resgatava a mestiçagem que degenerava as raças puras e impedia a superação da
miséria e da doença. Onde entrava a Eugenia? Autorizada pela ciência e dignificada pelo
progresso da nação, seria possível selecionar melhor os cidadãos. Como? O Estado deveria
adotar políticas higiênicas e eugênicas.

3.5 O Branqueamento

Uma questão um pouco esquecida, mas que gerou polêmicas nas ciências sociais diz
respeito à presença de “idéias estrangeiras” no Brasil. Essa discussão geralmente partia da
suposição de que o Brasil importava “idéias fora de lugar.”166 Assim, por exemplo, explicava-
se a presença das idéias liberais na sociedade escravista do século XIX como inadequada. Esta
tese já foi suficientemente debatida e refutada, sendo devidamente esquecida. E também não
me parece que devemos perder tempo supondo que o eugenismo estivesse de modo
equivocado sendo transplantado.167 Durante o texto, estamos demonstrando que as idéias
eugenistas não obedeceram fronteiras e muito menos respeitaram ideologias.

Mas, afinal, como proceder a eliminação de grandes parcelas da população brasileira,


se esta era mestiça? Certamente os intelectuais nacionais estavam lendo e discutindo obras e
autores da Europa e demais países que, naquele momento, viviam a certeza de que a eugenia
era o caminho certo para o progresso da humanidade. Mas, a apropriação era orgânica à

165
A identificação do aparato estatal, única e exclusivamente, com a repressão leva-nos a alguns equívocos.
Quando não reconhecermos a amplitude do Estado e a estrutura das classes, somos levados a pensar na
derrocada total das idéias eugenistas, na medida que o Estado não implantou efetivamente políticas eugenistas
restritivas e punitivas aos indivíduos. Mas, alertamos que mulheres pobres e negras foram esterilizadas sob o
argumento terapêutico. E que símbolos derivados das idéias eugenistas atuaram na sociedade, além da
comprovada eficácia na política de imigração. As instituições reorganizam constantemente idéias e práticas
coercitivas e ideológicas. Sobre a história dessas mulheres que, somente muito recentemente, começa a ser
contada ver FACCHINETTI, Cristiana; RIBEIRO, Andréa; MUÑOZ, Pedro F. de. As insanas do Hospício
Nacional de Alienados. História, Ciências, Saúde –Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, supl., p.231-242, jun.
2008.
166
As idéias estavam no lugar, não havendo incompatibilidade entre liberalismo e escravidão. Ver BOSI (2003).
167
Poderíamos indagar: Mas, as idéias têm lugar?
156

sociedade. Não era, como se pode supor, efeito de uma leitura errônea, equivocada ou
imprópria.

Nada mais polêmico para os grupos eugenistas do que o valor da mestiçagem. A não
ser os autores que, indiscutivelmente, mantiveram uma distância considerável das teses
influenciadas pelo racismo científico, como Lima Barreto, Manoel Bomfim e demais agentes
sociais que ainda permanecem desconhecidos, ou por que suas obras não mereceram registros
ou porque estão à espera de pesquisadores168 que investiguem esses intelectuais que
opuseram-se a esses esquemas explicativos baseados em hierarquias racistas de todos os tipos.
Porém, observando jornais, peças teatrais, músicas e textos difusos, vamos encontrar,
certamente, outros “retratos” do Brasil. Veremos, que a apreensão e interpretação das
condições de existência das populações urbanas e rurais não estavam restritas apenas aos
intelectuais que tinham suas obras publicadas em grandes editoras ou artigos em jornais
poderosos como O Estado de São Paulo. Enquanto para esses intelectuais as condições de
saúde, valor dos mestiços e imigração eram questões nacionais, as formas de reprodução das
condições sociais não eram questionadas. A produção e a manutenção da força de trabalho e
da posição periférica que o Brasil ocupava no mundo da produção capitalista, também eram
esquecidas. No entanto, de uma forma bastante difusa, mas nem por isso, irrisória, militantes
políticos, anarquistas, socialistas, libertários e jornalistas representantes das classes sociais
operárias, questionavam aquele modo de vida que estava sendo desenvolvido.169 Como
podemos averiguar, nos textos dos eugenistas, os trabalhadores somente aparecem quando
sofrem críticas por seu atribuído comportamento destituído de razão. No fundo, a noção de
raça continuava imperando como conceito de análise. Muito distante, mas muito distante
mesmo, permanecia oculta, a maneira como a força de trabalho era reproduzida. A discussão
não ultrapassava as fronteiras do campo. Roquette-Pinto, por exemplo, ao que parece, sempre,
procuraria, inclusive, restringir a polêmica, para o seu setor, a Antropologia desenvolvida no
Museu Nacional.

168
Não é absolutamente o caso do Lima Barreto, que vem sendo estudado; e mesmo Bomfim que já mereceu
estudos interessantes. Sobre esse sergipano que refutava as teses racistas e deterministas, recentemente foi
editado um livro que demonstra o quanto Bomfim combateu o racismo. Ver ALVES FILHO (2008).
169
Lima Barreto, talvez seja um bom exemplo de integrante desse grupo. Na crônica “Problema Vital” do dia
22/02/19, ele indagava a Monteiro Lobato, “Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e
modos de fazer desaparecer a ‘fazenda’(...) há câmaras municipais paulistas que obrigam os fazendeiros a
construir casas de telhas, para seus colonos e agregados. Será bom? Examinemos. Os proprietários de
latifúndios, tendo mais despesas com seus miseráveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes
ainda mais dos seus míseros salários ...”. (BARRETO, 2004: 458).
157

Do ponto de vista fisiológico, as pesquisas provaram que os cruzamentos


entre branco e negro, e branco e índio dão sempre tipos normais, a menos
que os progenitores sejam portadores de herança mórbida. Em geral, tem-se
o hábito de considerar degenerados, mestiços que são apenas doentes ou
disgênicos. Não é o cruzamento; é a doença a causa do aspecto débil de
muitos deles (...) é uma questão bastante difícil, à primeira vista; pois que o
resultado dos cruzamentos é condicionado não somente por fatores
biológicos, mas também por fatores sociais. (ROQUETTE-PINTO, 1982:
94).

Quando tratamos do campo médico e intelectual brasileiro, as disputas políticas


expressaram representações sociais diversas. De fato, não houve um processo consensual ou
mesmo homogêneo. As diferentes opiniões e interpretações sucediam-se e estabeleciam
relações conflituosas. Em nossa análise, o que distingue os pensadores que se propunham a
pensar as questões de raça e identidade nacional são ínfimas particularidades. Alguns
fundamentavam aversão pela sociedade miscigenada numa ideologia do branqueamento.
Outros identificavam valores positivos nos elementos mestiços e no negro. Mas quase todos
os exemplos do pensamento social brasileiro desejavam e pensavam numa maneira de
branquear a cor da pele, as atitudes e os comportamentos. No entanto, isto não significava, em
boa parte das situações, interpretações totalmente opostas. Diversas, ocasionalmente
contrárias, mas não necessariamente antagônicas.

Talvez a minha opção teórica e metodológica esteja subestimando demasiadamente as


diferenças existentes entre os autores analisados e, assim, radicalizando para o lado oposto as
concepções que critico. Claro que essas diferenças não são totalmente antagônicas, afinal
todas as posições que marcaram o campo eugênico estavam referidas a expectativas de
construção da nação e de leituras da realidade brasileira compatíveis com os interesses e
crenças das frações das classes dominantes e de seus representantes. Contudo, sem dúvida, é
também muito importante marcar os diferentes projetos gestados pelos intelectuais que
representavam essas diversas frações da classe dominante que defendiam diferentes projetos
de Brasil. Mas, o que venho ressaltando, ao longo do texto, é que essas diferentes propostas
dos intelectuais são vistas, com freqüência, pela maior parte das análises efetuadas, de forma
descontextualizada e despolitizada.

Tentamos demonstrar que, após a identificação da inferioridade cultural, racial e moral


realizada pelo pensamento cientificista haveria somente uma resposta: a educação. O ensino
de novas maneiras de agir, viver e pensar orientadas pela educação, higiene e eugenia. Tarefas
158

que seriam gerenciadas pelo Estado e conduzidas por cientistas e técnicos170. Ronaldo Conde
Aguiar realizou um pequeno balanço de alguns desses autores e correntes de interpretação,
quando analisou Manoel Bomfim. Transcrevo um trecho, um pouco longo, mas elucidativo,
para percebermos que as margens que circunscreveram esse campo existiram e foram
maleáveis:

O racismo científico dominou, a partir de 1880, o debate político e cultural


brasileiro, sendo adotado, com variantes, pela intelectualidade da época.
Bem verdade que as discussões sobre a desigualdade das raças estiveram
sempre ligadas à questão nacional, ou seja, à possibilidade de se constituir
uma nação a partir de gente predominantemente inferior-negros, índios e
mestiços (...). Tal indagação, presente nos principais livros escritos na
época, foi respondida em parte segundo determinados modelos de
pensamento, como a ideologia do branqueamento ou da miscigenação, os
quais, no fundo, procuravam dar conta do impasse histórico de Gobineau e
Agassiz que condenava o Brasil à Barbárie e ao atraso. Silvio Romero (no
início, pelo menos) e Joaquim Nabuco, por exemplo, que aceitavam os
postulados racistas, viram na mestiçagem um mecanismo possível de
integração dos africanos e dos indígenas ao universo da raça branca. A
mestiçagem, segundo Nabuco e Romero, produziria em dois ou três séculos
o branqueamento do povo brasileiro, servindo de filtro purificador das raças
inferiores. Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, ao contrário, não só
aceitaram a premissa básica do racismo – a superioridade da raça branca –
como pensavam miscigenação como um mecanismo de degeneração,
inclusive da raça branca. Nina Rodrigues assumiu definitivamente a
etnologia afro-brasileira como objeto de estudo, apontando no mestiço (em
geral) evidências de nulidade étnica devido precisamente ao cruzamento de
raças díspares. Em os “sertões”, Euclides da Cunha valorizou o Brasil
sertanejo em detrimento do litoral, antevendo nos sertões a rocha sobre a
qual se poderia edificar a nacionalidade futura(...) Euclides, ao contrário de
Nina Rodrigues, acentuou as vantagens étnico-culturais do mestiço do sertão
sobre o mulato litorâneo.(AGUIAR, 2000:322).

Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Belisário Penna,
Monteiro Lobato, Silvio Romero, Renato Khel, Roquette-Pinto e outros, quase todos, em
maior ou menor grau, pelo menos em algum momento de suas vidas pensaram a miscigenação
racial como sinônimo de degeneração étnica, moral e física. Certamente, influenciados pelo
conjunto de materiais ideológicos vindos da Europa, como o Positivismo de Comte, o
Evolucionismo de Spencer, o Naturalismo de Taine e Buckler, a Etnologia de Gobineau, além
das idéias de Darwin. Todos pensaram a questão da miscigenação como a grande questão
nacional fundamental, mas o fizeram de modos diversos, alguns dos quais conflituosos entre

170
Sobre a articulação entre os ideais eugênicos e o racismo científico presente no pensamento social brasileiro
ver o livro de Vera Regina Marques. Neste livro a autora disseca o discurso médico acerca da eugenia e explica
sua lógica, afinal a eugenia no Brasil “... teria sua razão de ser, na medida em que reforçava a tese de não tomar
as teorias eugênicas ao 'pé da letra', mas adaptá-las ao contexto político-cultural daqueles tempos.” (MARQUES,
1994:63).
159

si. Penso que qualquer tempo histórico é plural e, portanto complexo, permeado por múltiplas
tensões, onde se destaca como fundamental a de classes. Evidentemente, não há um tempo
que produz pensamentos e ações homogêneas.

Muitos dos pensadores nacionais repensaram e modificaram suas visões sobre o país e
sua gente. Aliás, esta é uma marca da trajetória dos autores que “redescobriam o país”.
Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, Penna e Bomfim construíram, abandonaram ou
simplesmente modificaram suas impressões sobre o país depois que por algum período
abandonaram o “cosmopolitismo” das cidades e embrenharam-se pelos “sertões”. Mas, afinal,
quais as razões da “decantada indolência” dos Jecas?

Consideramos que a existência conjunta das fórmulas sanitaristas, educativas e


esterilizadoras estava, de certa maneira, associada à solução adotada pelo pensamento social
brasileiro, ou seja, o branqueamento da nação, para a solução pacífica dos males do Brasil.
Para esse pensamento, se a miscigenação étnica não produzisse seres totalmente degenerados
e os produtos da mistura de raças fossem uma população mestiça e doente, mas capaz de
aprimorar-se, tanto cultural quanto organicamente e se, ainda, os mestiços não nascessem
inaptos, ações educacionais e sanitárias poderiam salvá-los. Mas, para evitar o nascimento de
indivíduos totalmente indesejáveis, descendentes dos “grandes degenerados e criminosos”
recomendava-se a adoção de técnicas da eugenia negativa. E assim, não haveria contratempos
nesse processo: esterilização e noções de eugenia e higiene evitariam, por completo, as uniões
disgênicas. Um dos meios para evitar o casamento disgênico era o chamado exame pré-
nupcial.

No final dos anos 20, recebendo fortes críticas daqueles que viam com bons olhos a
miscigenação racial branqueadora, pois ela não produziria, segundo esses críticos, seres
necessariamente degenerados, Kehl realizava malabarismos verbais para elucidar a verdadeira
face da eugenia nacional. Nesse trecho de “Eugenia e Eugenismo”, publicado no Boletim de
Eugenia em agosto de 1929, ele declarava:

Tem-se registrado grande confusão em torno da Eugenia que para muitas


pessoas, mesmo cultas, é considerada uma doutrina sem fronteiras,
envolvendo tudo quanto se refere ao melhoramento do gênero humano. Nós
mesmos, no início da campanha de propaganda em prol dessa ciência, não
fomos muito claros na delimitação das suas bases e de seus propósitos(...) A
Eugenia é uma ciência de fronteiras perfeitamente delimitadas. Ela tem por
fim melhorar e proteger a espécie, pelo melhoramento e pela proteção das
boas sementes e de seus portadores.
160

Em paralelo às propostas de transformação social por meio de políticas educacionais,


deveriam ocorrer outras ações. Estamos falando, por exemplo, do exame pré-nupcial e da
esterilização. Durante as décadas de 20 e 30, as idéias de uma nova ordem social tiveram uma
sofisticada articulação de tendências. Educação higiênica e esterilização eram os emblemas
mais visíveis dessas formulações. Ainda que correndo o risco da fácil simplificação, podemos
definir que os arautos do futuro homem brasileiro desejavam normas de educação para
melhorar as faces do povo doente, feio e pobre e de regras biológicas para garantir a produção
de um estoque potencialmente capaz de formar uma raça nacional ideal. Nada ficaria ausente
da planificação eugênica. Nem mesmo, a avaliação física dos nubentes.

Por todos esses motivos devem ser terminantemente evitados os casamentos


entre indivíduos com caracteres patológicos, quando são dominantes ou
recessivos e, sobretudo, entre indivíduos consangüíneos ou entre os que não
sendo consangüíneos apresentam, entretanto, caracteres patológicos
homólogos. (KEHL, 1929: 95).

E qual era a função da educação higiênica? Ela buscava a normatização da vida


cotidiana. Ao enquadrar as atitudes infantis, planejava educar para toda a vida. Assim, os
pressupostos da higiene e da eugenia seriam obedecidos atingindo o efeito moralizador dos
costumes. As práticas educativas teriam por objetivo construir para a sociedade indivíduos
produtivos e saudáveis. A partir daí, a educação seria o melhor instrumento para adaptar o
indivíduo ao meio social. Preparação do corpo pela educação física; da mente pela educação
moral; do intelecto pela educação formal e para o trabalho produtivo pela educação
profissional. As relações entre higiene e educação vinham de algumas décadas, consolidando
um pensamento que articulava saúde às condições de higiene e comportamentos, que
poderiam ser adquiridos através da educação. Para solucionar os problemas relativos à saúde
pública seria necessário, portanto, educar a população, ensinando conhecimentos higiênicos e
eugênicos para que adquirissem hábitos mais sadios.

Essa associação contribuiu para reforçar as atividades de educação higiênica


destinadas à formação de hábitos, acabando por destacar a criança e a mãe como alvos das
políticas públicas. A criança, por exemplo, passou a ser um indivíduo capaz de absorver
conhecimentos, portanto, poderia ser moldado de acordo com as normas propostas. A
preocupação em educar a criança levou, por extensão, à família, ressaltando-se a importância
do ensino da puericultura às moças que seriam as futuras mamães. Com essas estratégias, a
educação higiênica estendia-se aos lares. A preocupação com a saúde invadiria a educação,
sendo parte integrante do ensino recebido nas escolas. As normas educacionais estabeleciam,
161

assim, além de regras profiláticas contra doenças infecto-contagiosas, padrões morais, isto é,
de atitudes e comportamentos que definiriam o ser humano educado, saudável e trabalhador.
As informações médicas misturaram-se à educação formal, criando a integração entre as
questões relativas à educação e à saúde, procurando consolidar uma visão sobre o homem
produtivo. O eugenista Octavio Domingues dedicou boa parte de sua obra a estabelecer as
relações e hierarquia entre educação e hereditariedade em função da eugenia.

Chegamos, então, a conclusão necessária, de que, para exaltar a eficiência da


educação, mister se faz melhorar as heranças humanas, biologicamente(...)
Para mudar biologicamente o homem, para fazer dele uma sorte diferente do
animal, será necessário agir pela hereditariedade, isto é, pela seleção dos
pais. (DOMINGUES, 1929: 134).

A educação pode muito. Pode quase tudo, em matéria de melhorar


tendências e desenvolver inteligências medíocres. Mas, o que ela não pode é
mudar, modificar a constituição hereditária do individuo (...) Não será com a
educação dos delinqüentes, dos imbecis, dos tarados mentais, enfim, que
faremos com que desapareçam, da Terra, todas essas tendências más e
maléficas (...) os efeitos da educação são grandes, mas inócuos para a vida
da espécie, efêmeros em relação a ela. (DOMINGUES, 1929: 124).

Identificada a ausência de educação como uma das causas da pobreza e,


principalmente, das doenças, uma das propostas para superar os obstáculos que dificultavam a
chegada do Brasil à civilização, estágio evolutivo que os outros países já experimentavam,
seria a difusão da educação higiênica. Os conhecimentos médicos repassados às famílias lhes
permitiriam cuidar adequadamente dos filhos, de modo a lhes garantir uma boa saúde. A
educação higiênica consistia, sobretudo, na aquisição dos hábitos de higiene. Essa visão de
escola e de educação, que não só aperfeiçoava o espírito como também formava o corpo,
tornava indispensável a presença de novos conhecimentos e práticas a compor o universo
pedagógico. O controle sobre os indivíduos deveria ocorrer em todas as esferas da vida e a
educação planejou branquear os corpos e as mentes. Pretendia-se fazer da escola, portanto, o
centro irradiador da moderna nação e de um novo homem. E regenerar a raça nacional pela
educação da higiene passou a ser o fundamento do discurso eugênico, que entendia ser
necessário instruir o povo, pois somente a educação conduziria o país à condição de uma
nação civilizada e moderna.

Mas, se à escola caberia a propagação das práticas higiênicas para a sociedade,


cabendo aos professores papel destacado, como foi articulada a rede que entrelaçava, por
exemplo, os transmissores desses saberes, os médicos e educadores? Esses profissionais
encontravam-se nos serviços públicos, ocupando cargos nas diversas instituições, cuja área de
162

atuação fosse a saúde ou a educação. Segundo os agentes, a higiene deveria atuar até na
localização da escola, abrangendo, por exemplo, a localização do prédio, dimensões das salas,
iluminação e ventilação. A instituição escolar tornava-se higiênica na própria concepção
arquitetônica. Edifícios amplos e iluminados. Várias teses defendidas nas Faculdades de
Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia por jovens médicos ocuparam-se do tema Higiene
Escolar171. Nesses textos é comum haver instruções detalhadas acerca do terreno, instalações
sanitárias, tipo de mobiliário, estabelecendo, até mesmo, a altura da carteira e a distância da
cadeira.

De resto, considerava-se a higiene um conjunto de conhecimentos que


proporcionariam uma vida saudável e que cultivariam o cidadão apto para construir a nação.
As práticas higiênicas deveriam regular atos comuns desde a escovação de dentes até as
condutas sociais públicas. A organização da saúde pública, estruturada na educação sanitária
da população, ampliou a atuação dos profissionais de saúde. Devido a essas atribuições
tornara-se indispensável controlar a população para formar um povo perfeito do ponto de vista
eugênico. Para esse pensamento, os problemas sanitários e higiênicos, entre os quais estavam
incluídos até o matrimônio, eram políticos e sociais, isto é, da alçada do poder público. E,
evidentemente, isto aumentaria tanto o poder de influenciar as políticas sociais por parte dos
profissionais médicos quanto às possibilidades econômicas desses setores. Afinal, também
estava em jogo, a formação e aumento de um mercado produtor e consumidor de serviços e
produtos médicos.

No período entre as guerras, buscou-se formar indivíduos saudáveis, pois acreditava-se


que a população brasileira, em sua maioria, era constituída por homens degenerados,
indolentes, analfabetos e doentes. As décadas iniciais foram marcadas pelo esforço dos
intelectuais em divulgar a Eugenia, que seria um antídoto para os males do país, com a
publicação de livros, panfletos e a organização de associações e congressos. Ela foi uma
tentativa de aprimoramento dos indivíduos por meio do controle dos traços genéticos.
Segundo teorias racistas que associavam degeneração à miscigenação, a união de indivíduos
de etnias diferentes produzia seres inaptos para a sociedade. Segundo essas idéias os mestiços
recebiam os defeitos das raças inferiores. O pessimismo em relação ao perfil racial nacional
poderia ser superado quando as práticas do eugenismo fossem adotadas. Percebida como uma
arma capaz de melhorar a raça e o futuro do Brasil, a eugenia encontrou entre os médicos e

171
O livro de Afrânio Peixoto trazia várias recomendações médicas sobre a higiene escolar. PEIXOTO, Afrânio.
Noções de Higiene. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1914.
163

educadores os mais importantes divulgadores. Um dos melhores textos que estudam a


eugenia, Marques (1994) oferece sua interpretação sobre essa visão que a eugenia brasileira
fazia da sociedade:

Tornara-se bastante claro aos eugenistas que o controle sobre a população


deveria ocorrer em todas as esferas da vida social e o 'saneamento pela
educação' estendia-se sobremaneira, a se considerar que o país vivia tempos
de ‘entusiasmo pela educação’ e ‘otimismo pedagógico’ – expressões
cunhadas por Nagle – em relação ao clima que se instaurava com o advento
do escolanovismo. Poder-se-ia fazer da escola, portanto, centro irradiador do
disciplinamento eugênico. (...)

E regenerar pela educação passara a ser a tônica do discurso educativo dos


anos 20, que colocava a escola com seus rituais como espaço aberto para as
reformas morais e intelectuais(...) era necessário instruir o povo para que
conquistasse a cidadania, pois somente o conhecer proporciona vencer e
progredir, fazendo do país uma nação civilizada (...). (MARQUES,
1994:101).

Notamos que além de prescrever a necessidade da organização da nação, os


intelectuais da geração nascida com a Proclamação da República, requisitavam, num terreno
de disputas políticas, a primazia, ou ao menos, a devida importância para as suas
especialidades profissionais, seus cargos e locais de trabalho, no tocante ao assessoramento e
formulação das políticas públicas. Roquette-Pinto, no Congresso de Eugenia, recomendava a
antropologia eminentemente científica e o Museu Nacional como o espaço adequado para
exercer essa influência junto ao Estado. Ressaltamos que os autores estudados contribuíram, e
muito, para a construção da noção de Estado que paira acima das classes, do Estado que
forma a sociedade. Curiosamente, determinados trabalhos acadêmicos da historiografia
brasileira reproduzem essa visão. Muitas vezes, se não fosse pelo uso de aspas, não
saberíamos dizer se algumas das frases contidas em exemplos historiográficos, reiterando essa
visão de Estado, são de autoria dos pesquisadores ou se é um Oliveira Vianna falando. Porém,
o Estado não pode ser definido nem analisado isoladamente do seu contexto histórico social.
A especificidade conjuntural de sua história deve ser destacada em função dos diversos
grupos, interesses e estratégias em luta. Essa visão pressupõe resistências ao Estado que, com
sua aparente neutralidade, não é um todo coeso.

Valho-me da obra de Antonio Gramsci (1891-1937) para definir poder político.


Gramsci considerava que o exercício da hegemonia é obtido não só por força e
consentimento, mas também por um contínuo processo de negociação, fruto de alianças
políticas e ideológicas. Hegemonia implica aceitação em parte das regras; mas essa aceitação
164

não é tácita nem automática. É repleta de ambivalências e contradições. Esta aceitação ou esse
consenso tem a participação do Estado e dos intelectuais (Gramsci, 1977:147). E esta
hegemonia é tecida pelos intelectuais. Para Pierre Bourdieu (1930-2002), o poder simbólico
consegue impor significações que são naturalizadas como legítimas. Assim, os símbolos
intelectuais afirmam-se como instrumentos de integração social, tornando possível a
reprodução da ordem estabelecida.

Anteriormente, comentamos que é espantosa a ausência de trabalhos que investiguem


a complexidade das agências e agentes sociais no período estudado (1917-1937). Inúmeros
atores sociais, associações e periódicos eugenistas que participaram de um intenso processo
político conflituoso e que não se movia linearmente. Lobato, Kehl, Penna, Liga Pró-
Saneamento e Boletim de Eugênia são apenas alguns exemplos dentre as centenas de casos de
publicações, intelectuais e instituições que atuaram no período. A partir da matriz gramsciana,
consideramos que o Estado não comporta apenas aparelhos de coerção que, sem dúvida,
possibilitam uma dominação, mas também produz uma direção intelectual. Tal perspectiva
ajuda-nos a pensar como os intelectuais do campo eugênico construíram suas práticas e
representações frente aos demais grupos organizados na sociedade, a que estavam vinculados
e, ainda como disputavam e como consolidavam sua presença nas diversas agências do
Estado.

Uma outra contribuição importante ao estudo das agências é a noção de intelectuais


trabalhada por Gramsci. Esse conceito é fundamental, pois refere-se à importância da cultura
e da consciência de que a construção da hegemonia é inviável sem os intelectuais. Daí, que os
debates científicos tem laços com as classes sociais e não podem ser compreendidos,
exclusivamente, enquanto embates profissional e técnico entre os especialistas. É
precisamente nesse ponto que reside a minha proposta de análise da Eugenia no Brasil. Os
textos, artigos e teses produzidos recentemente sobre Eugenia enfatizam, segundo minha
análise, demasiadamente, as possíveis diferenças científicas entre os agentes. Todavia, fazem
pouca menção ao papel político que esses agentes exerceram. Os agentes (intelectuais) desse
processo podem ser definidos como aqueles que ocuparam um importante espaço na
formulação, direção e organização em qualquer área da sociedade, não ficando restrito ao
mundo das idéias eugenistas, científicas ou não.

Ao longo da primeira metade do século XX, periódicos, intelectuais e publicações que


veiculavam o ideário eugênico desempenhavam uma função de destaque no processo
165

dinâmico da formação social brasileira. As agências de promoção da Eugenia devem e podem


ser analisadas como espaços de trocas entre os agentes, constituindo-se em círculos de
negociação e representação. Uma formação social não consiste apenas num modo de
produção de bens materiais garantido coercitivamente pelas mãos do Estado, mas também em
hábitos e comportamentos, numa visão de mundo difundida pelos intelectuais na qual se
inserem os costumes e os modos de pensar, agir e sentir dos homens que constituem suportes
das normas da ordem social.

Alguns cientistas sociais afirmam que, devido às características “gelatinosas” da


sociedade brasileira, os conceitos oriundos da matriz gramsciana não teriam aplicação nos
estudos sobre Estado e Poder no Brasil. A isso deve-se, creio eu, à uma leitura míope da
política em Gramsci. No entanto, a concepção de Estado da matriz gramsciana é ampla. Não
está restrita a conquista e controle do governo e nem somente nas maneiras repressivas de
conservar o poder. O sentido é muito mais amplo. Desvinculado de seu sentido restrito, o
conceito de Estado é ampliado. Torna-se um complexo de atividades práticas e ideológicas
com as quais as classes e frações tentam justificar e manter o seu domínio, mas também obter
o contínuo consentimento.

Portanto, as ligas médicas tinham a tarefa de organização e representação dos


interesses dos intelectuais eugenistas, médicos ou ligados ás áreas das ciências biológicas,
embora profissionais de outros setores também estavam representados, exercendo influência
significativa junto às instâncias da sociedade política, afinal, seus membros pertenciam as
diferentes áreas da política e da economia. Não foi raro que os membros de uma liga fossem
os mesmos de outra associação médica ou política. Seus diretores poderiam ser os mesmos. O
médico Arnaldo Vieira de Carvalho, por exemplo, era Presidente da Sociedade Eugênica de
São Paulo e um dos vice-diretores da Liga Nacionalista de São Paulo (1916-1924).

As estratégias higiênicas e eugênicas pretendiam realizar o sonho utópico da sociedade


perfeita. Para educadores e médicos envolvidos nesse projeto político, as condições de vida da
população trabalhadora eram, em grande parte, o resultado do modo de vida irracional, doente
e ignorante. Cabia não somente ofertar-lhes atendimento médico, mas também normas e
noções de uma educação moral e cívica. O discurso da educação higiênica tornou-se um dos
pontos básicos da questão nacional. Abriu-se o campo para a proliferação das políticas que
investissem sobre o corpo e as maneiras de viver. As grandes transformações urbanísticas
foram justificadas como imprescindíveis à boa saúde dos habitantes das cidades. Da mesma
166

maneira, as transformações políticas e sociais eram apresentadas como necessárias para o


pleno funcionamento do corpo da nação. Foi-se legitimando um projeto político. O discurso
médico-pedagógico procurava responder ao problema de controlar a população, que reagia de
forma hostil às normas sanitárias, cuja racionalidade representava uma necessidade vital. A
oposição popular às iniciativas saneadoras da cidade do Rio de Janeiro era interpretada como
manifestações de indisciplinados e ignorantes, sobre a qual era necessário impor a ordem
pública. Os conflitos ocorriam por mau funcionamento de alguns órgãos da sociedade. Dessa
forma, nada poderia escapar ao diagnóstico autorizado do médico: o lar, a família, o corpo, a
política e o trabalho.

Até os anos 20 não existia um serviço estruturado de postos de atendimento médico


permanentes e os objetivos da saúde pública estavam associados ao controle das epidemias.
Este modelo “campanhista”172 baseava sua intervenção médica na polícia sanitária. Contudo,
não houve ruptura e nem mesmo uma transição entre o modelo campanhista-policial para um
modelo de atenção médico-pedagógico.173 Portanto, concordamos com Benchimol e Teixeira,
quando esses autores analisam como equivocados os estudos teleológicos com relação às
teorias e práticas sanitárias. Quando a Fundação Rockefeller contemplava em seu programa
da saúde pública no Brasil a disseminação de postos médicos e de ações em educação
sanitária, isto não implicou no abandono da tradição campanhista no Brasil, levada a cabo
pelos médicos nacionais.174

172
Campanhismo. As ações públicas de controle das doenças se deveram em parte a necessidade de garantir a
produção e a circulação de mercadorias. Historicamente, elas assumiram modelos e práticas diversas.
173
Sobre os modelos de atenção á Saúde Pública, consultar MERHY (1992).
174
BENCHIMOL, Jaime Larry e TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, Lagartos e outros Bichos: Uma História
comparada dos Institutos Oswaldo Cruz e Butantan. Rio de Janeiro, UFRJ, 1993. Sobre a atuação da Fundação
Rockefeller no Brasil consultar FARIA, Lina Rodrigues de. “Os primeiros anos da reforma sanitária no Brasil e a
atuação da Fundação Rockefeller (1915-1920)”. Phisis. Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.5, n.1, p.
109-127,1995.
167

4.

CAPÍTULO III

UM EUGENISTA NOS TRÓPICOS

País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan
é país perdido para altos destinos. André Siegfied resume numa frase as duas
atitudes. ‘Nos defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a
nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil.’ Um dia se
fará justiça ao Klux Klan; tivessemos aí uma defesa desta ordem, que
mantem o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa
carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a
mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva. (LOBATO em
1928).175

Temos literatura; ciência quase nenhuma. O esforço disciplinado que a


ciência pede não condiz com o nosso temperamento de povo tropical, tão
mais amigo da rua que dos interiores. A rua é literária e a ciência só germina
no recesso silencioso dos gabinetes e laboratórios – instituições nitidamente
peculiares aos climas frios. Como pode medrar a meditação, o estudo longo,
numa terra em que o calor constantemente nos toca para a rua – para o ar
livre? Falta na obra de R. Kehl uma página sobre a função do frio no
desenvolvimento da ciência e da atitude científica(...) (LOBATO, 1957:81).

Renato Ferraz Kehl (1889-1974) foi um importante representante do campo eugênico


brasileiro e latino-americano entre o final dos anos 10 e 40 do século passado. Como um dos
seus principais integrantes, Kehl esteve no centro das discussões que a eugenia provocou
naquele período. Sua trajetória intelectual situada entre 1917 e 1937 foi dedicada à divulgação
das idéias, organização e tentativa de implementação das políticas públicas embasadas pelo
175
Lobato em carta a Arhtur Neiva. 10/04/1928. Fundo Pessoal Arthur Neiva, CPDOC.
168

ideário eugênico. Ao longo de sua existência, Kehl procurou manter contato permanente com
intelectuais eugenistas nacionais, estrangeiros e também com as agências intelectuais e
políticas mundiais, procurando formar uma rede de apoio às idéias eugenistas. Durante a tese,
venho criticando o que nomeei de historiografia da eugenia. Grande parte desta literatura
sustenta que o pensamento de Kehl sofreu uma ruptura. E que, com o passar dos anos, ele
distanciou-se do movimento sanitarista e dos pressupostos de uma eugenia preventiva mais
“suave”. Ou seja, para esse conjunto de trabalhos, alguns bem recentes, não houve uma
interação intelectual e prática entre as idéias eugenistas e sanitaristas. Haveria uma divisão e
oposição. Notamos também, que boa parte desses textos tendem a reproduzir os conceitos e
argumentos que os intelectuais do campo eugênico utilizavam. Se formos seguir linearmente
as declarações textuais dos intelectuais eugenistas, corremos o risco, até mesmo de
considerarmos como benéficas as formulações efetuadas por esses homens. Afinal, poder-se-
ia argumentar que eles estavam preocupados com o futuro da nação. E, além disso, a chamada
via negativa não prosperou no Brasil. Porém, ao longo do texto, já esclarecemos que não
devemos desprezar, por um lado, o aspecto coercitivo do eugenismo nacional e, por outro,
aconteceram, sem dúvida, ações inscritas dentro do que os membros do campo definiram
como específicas da eugenia negativa.

Eugenia preventiva constitui o que se poderá denominar propriamente a


‘higiene da raça’. Preocupa-se de preveni-la das doenças, dos males
econômicos e sociais e dos venenos degeneradores. Tem em mira as
questões da higiene pré-natal, de puericultura, de higiene e educação sexual.
(KEHL, 1929:154).

Nosso interesse é o estudo do campo eugênico. Para nós, a hibridização de estratégias


não representou um ato isolado de intelectuais em meio caótico, nem desempenhou um papel
equivocado cometido por intelectuais eugenistas nacionais ou pelas correntes de pensamento.
Foi efetivamente uma ação produzida por homens vivendo em sociedade historicamente
situada no tempo e no espaço. Portanto, o objetivo central dessa tese de doutorado consiste na
análise das concepções que propiciaram a combinação das estratégias. Por meio das premissas
que venho criticando, somente no final dos anos 20, Kehl teria se aproximado de medidas
“mais duras”, características da eugenia negativa, muito em voga em alguns países da Europa
e nos EUA. Tais afirmativas argumentam que a viagem de cinco meses a Alemanha, entre
abril e setembro de 1928, teria colocado o eugenista em contato com as idéias e soluções
nazistas e despertado sua simpatia por um programa eugênico mais agressivo. A relação com
169

eugenistas alemães, suecos, noruegueses e norte-americanos teria ficado mais intensa


também.

Um dos argumentos para desacreditar a produção nacional eugenista é a tentativa de


caracterizá-la como cópia mal feita de uma teoria original. Alguns analistas até negam a
existência da eugenia no Brasil. A explicação para tal fato estaria na ausência de uma tradição
científica no país. Daí explicar-se-iam, segundo essas observações, as fundamentações
teóricas frouxas, confusas e maleáveis próprias do eugenismo nacional. Não vou dizer que
nossos agentes sociais estavam totalmente atualizados com o que se produzia nos laboratórios
dos demais países176. Até a década de 1920, a possibilidade de adquirir cultura científica
estava restrita a quase somente as poucas escolas de medicina. No entanto, não é raro
encontrarmos citações que demonstram um conhecimento, mesmo que um pouco superficial,
do que era produzido pelo mundo. Vários trabalhos já demonstraram que esse conhecimento
não era “rasteiro”. Mas, é importante salientarmos que, em alguns lugares, a produção e o
conhecimento científico era totalmente compatível com os maiores centros de pesquisa do
mundo. Como exemplo dessa prática científica competitiva, o Instituto Oswaldo Cruz. Os
cientistas brasileiros desse período estavam em constante diálogo com a produção científica
européia, americana e latino-americana. Kehl, na palestra realizada na ACM, em 1917, cita
em um determinado trecho o alemão Alfred Ploetz. Este, como outros médicos europeus
imigraram para os EUA. Ploetz foi para a América em meados de 1880. Retornaria à
Alemanha somente em 1904, plenamente convencido que a melhor compreensão do
fenômeno da hereditariedade poderia ajudar o Estado a selecionar os melhores e mais válidos
espécimes da raça alemã. Nos anos seguintes, ele emergiria como um dos principais teóricos
da eugenia como ciência na Alemanha. Certamente, a experiência eugênica brasileira está
muito distante da vida destes médicos, cientistas alemães e norte-americanos que desde os
fins do século XIX até o ocaso da Segunda Guerra estiveram na frente da batalha para
eliminar os fracos e fazerem sobreviver somente os escolhidos como superiores.177 Se as
universidades e centros de pesquisas eram raros. Se as bibliotecas eram escassas e dependia-
se da importação de livros e revistas, não obstante, a cultura científica no Brasil não era algo
tão incomum assim. Por exemplo, Kehl demonstra que tinha conhecimento do que estava
sendo discutido naqueles dois países (EUA e Alemanha) e que neles havia a preocupação em

176
Sobre a ciência nacional do período, consultar CUKIERMAN (2007).
177
Sobre estes médicos e cientistas alemães e norte-americanos ver BLACK (2003).
170

escolher quem deveria viver. E o que é importante: para Kehl, estes exemplos serviriam para
que o Brasil selecionasse quem deveria ser “melhorado”.

Saneiem-se os focos epidêmicos, debelem-se as endemias que assolam a


nossa pátria de norte a sul, façamos repercutir as idéias eugênicas de Galton,
multipliquem-se os cultores da ciência do bem geral, dessa grandiosa
edificação protetora das raças do futuro. Sirva-nos de incentivo a propaganda
eugênica dos Estados Unidos, façamos conhecido os trabalhos dos ilustres
cientistas alemães, Ploetz e Gruber, elevemos os méritos da Eugenia,
pratiquemos as suas regras para o revigoramento da população brasileira.
(KEHL, 1919:78-79).

O médico Renato Ferraz Khel é um personagem conhecido apenas dos pesquisadores


que estudam a eugenia. Não é nome de hospital, rua ou creche. O arcaico vereador da cidade
do Rio de Janeiro, Wilson Leite Passos, recentemente instituiu um prêmio com o nome do
eugenista.178 Mas, quase nada nos jornais é noticiado a respeito dele. E, no entanto, a sua
trajetória não pode ser menosprezada, sendo parte importante do pensamento social e político
brasileiro. Sua presença está associada ao grupo de intelectuais, médicos, políticos,
educadores e cientistas que pretendiam provar a viabilidade do país e da “raça” brasileira.179
Kehl foi rotulado como o legítimo representante da Eugenia. E, na verdade, sem dúvida, ele
pode ser chamado de o “pai da eugenia” no Brasil. Atualmente sua obra têm sido vasculhada
por diversos pesquisadores pelo país, todos interessados na complexidade de suas idéias.
Contudo, a aparente contradição de Kehl constantemente se explica sob os argumentos mais
variados. Diwan (2007) embora defina que “a campanha eugênica de Kehl passou por dois
momentos teóricos distintos”, faz a ressalva, que considero correta: distintos, “mas não
opostos”. No primeiro momento, Kehl estaria identificado diretamente com o movimento
sanitarista. E, no segundo, com a eugenia mais agressiva. Segundo Diwan, o primeiro período
estaria situado entre 1917 e 1928, marcado pela primeira palestra sobre Eugenia realizada na

178
Projeto de Lei número 1044/2007. “Estabelece estímulos e proteção à boa geração e constituição de famílias
sadias”. “Artigo primeiro. Todo casal que - visando a geração de prole sadia subordinar-se as disposições da
presente Lei, terá assegurados- igualmente aos filhos assim resultantes de sua união – a proteção e os benefícios
da Municipalidade, na forma a seguir estabelecida.(...)Artigo quinto. Anualmente, a prefeitura realizará, por
intermédio da Secretaria de Saúde- que estabelecerá normas a respeito- concurso denominado Renato Kehl,
destinado a premiar as crianças de diversas faixas etárias, até 07(sete) anos de idade(...) que sejam selecionadas
como mais representativas, em termos de saúde geral...”.
179
O racismo de Kehl, Vianna e dos membros do campo eugênico nacional foi diferente do racismo dos
Gobineau de “carteirinha”. Para esses, a raça e o Brasil eram totalmente inviáveis. Porém, é certo, que alguns
membros do campo eugênico representavam a tendência mais autoritária sobre a inferior contribuição dos
negros, índios e mestiços. E, além disto, já alertei que muitos poucos intelectuais não sofreram influência das
teses racialistas oriundas do determinismo biológico do século XIX.
171

ACM180 e o retorno de Kehl da Alemanha.181 Após 1928, essa historiadora identifica como o
tempo da radicalização, esterilização, condenação dos mestiços e da restrição à imigração.

Kehl nunca atuou sozinho na luta pela implantação de políticas públicas influenciadas
pela eugenia. Contando com aliados e opositores, sua atuação confunde-se com a história do
movimento eugenista. Entre seus interlocutores estavam os principais intelectuais do período.
Nomes como Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, Lobato e Belisário Penna estão lado a lado
com os líderes de peso do campo eugênico internacional, como o zoólogo Charles Davenport,
o principal propagandista e articulador do eugenismo norte-americano182. De maneira geral,
para Kehl, a regeneração da raça, seria alcançada após a eliminação de todos os fatores
disgênicos. Um dos pontos mais relevantes seria o controle da entrada dos imigrantes no país.
Para a elevação do grau de aristogênia da população, a restrição da imigração evitaria que
elementos externos prejudicassem a eugenização. Kehl, que sempre foi contrário à
mestiçagem e a livre imigração, dizia que se tivessem que aceitar imigrantes dos outros
países, que fossem dos nórdicos, jamais das nações asiáticas ou africanas. Para os eugenistas
que condenavam a livre imigração, esses países estavam expulsando rebutalhos. Afirmavam
mesmo uma supresa com os que defendiam a imigração. Eram favoráveis apenas se os
imigrantes fossem suecos, noruegueses, ingleses e alemães.

Observamos que muitas das afirmações raciológicas contra os indivíduos vistos como
inferiores, destacam que o imigrante português era, no máximo, tolerado. Lobato, nas cartas
enviadas de Nova Iorque para Kehl e Arthur Neiva, demonstrava essa animosidade. E, em
vários pronunciamentos dos demais intelectuais sobre a política de imigração vê-se que,
aceitava-se, de modo geral, que os habitantes desse pequeno país viessem para cá, mas,
claramente, esperava-se que os povos situados mais ao norte da Europa imigrassem com mais
vigor. Vários intelectuais atribuíam aos portugueses e aos negros a situação em que o Brasil
vivia. Permanecia o desejo de impor a mudança da população: embranquecendo-a, porém, não
com brancos ibéricos. Para uma grande parcela dos intelectuais eugenistas, o Brasil devia ser

180
Na Conferência de Propaganda Eugênica realizada pelo Renato Kehl na ACM em 13/4/17 ele identificava
como principais fatores disgênicos: a guerra, a tuberculose, o álcool e a sífilis.
181
Kehl viajaria três vezes a Europa. Em 1928, 1932 e 1937.
182
De certa forma, isto demonstra como o conhecimento de Kehl sobre as concepções estrangeiras neste campo
do conhecimento científico não era “rasteiro”. No Fundo pessoal Renato Kehl estão depositadas várias cartas
trocadas entre Kehl e este importante eugenista. No Boletim de Eugenia em 1929 encontramos uma notícia sob o
título “Cruzamento de Raças” informando que a Comissão de Estudos do Cruzamento de Raças da International
Federation e Eugenic Organizations, com sede em Nova York, dirigida pelo Davenport, convidava Renato Kehl,
para colaborar nessa comissão, apresentando um estudo sobre o problema dos cruzamentos inter-raciais segundo
o ponto de vista brasileiro.
172

outro, ter outra população. Eles não queriam assumir um povo de portugueses, negros, índios
e miscigenados, que ainda é ampla maioria brasileira.183

Se, em princípio, contraditoriamente, Kehl era favorável ao branqueamento pela


miscigenação devido ao poder de elevação e supremacia da raça branca, ele também,
condenava a mestiçagem por acreditar que a mistura184 prejudicava a melhor herança de cada
raça. Achamos que essa postura se explica devido as diferentes classes eugênicas que, para
Kehl, era um fator de identificação e classificação dos indivíduos. As classes aristogênicas,
superiores, deveriam cuidar do seu elevado grau eugênico. Para essas, a melhor educação
higiênica e eugênica garantiria a pureza de seus descendentes. Porém, grupos humanos
anteriormente contaminados, poderiam ser melhorados185, mas proibidos de se misturar aos
superiores. Membros das camadas mais subalternas (cacogênicas) poderiam ser impedidos de
procriar e, em casos extremos, de circular pelas cidades. Por esta razão, podemos explicar sua
defesa intransigente da restrição à imigração. Afinal, se já era difícil controlar a população do
país, para que a vinda de elementos externos? Renato Kehl divergia da opinião dos que eram
favoráveis a Imigração Japonesa. Em várias oportunidades, ele manifestou esta opinião. No
jornal O Correio da Manhã do dia dezesseis de maio de 1924, Renato Kehl expressou-se
longamente sobre o tema:

Não tenho em mira, tratando do cruzamento de raça, deprimir uma, rebaixar


outra, para elevar a branca. Interessa-me apenas, a questão do cruzamento
para a melhoria progressiva da nossa nacionalidade(...) Os produtos desses
caldeamentos heterogêneos são indubitavelmente inferiorizados. O mulato,
por exemplo, é produto da fusão de 2 energias hereditárias diversas, um
produto da fusão de cromossomos irreconciliáveis e que só a benevolência
da natureza permite se associarem(...) O fato de se atrair para o nosso paiz
povos de raça amarela não vem, portanto, criar um problema econômico,
mas, sobretudo de ordem antropológica(...) Para que atrasar a nossa química
racial, no seu trabalho lento de depuração?(...) Para que aventurarmo-nos a
ver surgir no nosso paiz mestiços de brancos, de mulato, de índio com
japonez, num imprevisto multiplicar de novos tipos, aproximados talvez de
um hibridismo degenerante.

183
Todavia, os imigrantes portugueses foram, de certa forma, aceitos. Durante todo o período compreendido
entre 1930 e 1960, os indivíduos oriundos desta nacionalidade imigraram com vigor. Segundo boa parte da
literatura, aos olhos dos administradores da política de imigração, esses elementos eram bem absorvido pelo
“plasma nacional”. Eram brancos, católicos e possuíam uma intensa identificação com o Brasil. Porém, é certo
que essa absorção não foi ausente de conflitos. Ver Koifman, 2007.
184
Marcos Nalli chama de racismo acromático e racismo cromático essas linhas do pensamento de Kehl.
185
Melhoradas, mas não transformadas. Seguindo a argumentação do próprio Kehl: o sabão de coco ariano
ajudaria a “melhorar” mas, evidentemente, não modificaria os indivíduos.
173

Podemos presumir que os eugenistas realizavam a seguinte leitura: devido a tantos


problemas, diante de tantas dificuldades, tentando construir soluções para os nossos pobres,
doentes e feios, porque teremos que ainda receber pessoas desse mesmo tipo, porém de outros
lugares distantes? Neste ponto, mais uma vez, apesar das evidentes diferenças, as opiniões
dos intelectuais confluem para a defesa da nacionalidade. Roquette-Pinto declarava no
documento que encontramos no acervo do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia e que
está reproduzido em livro, afirmativas onde fica evidente que, para os participantes do
Congresso de Eugenia, aos membros do campo intelectual eugênico deveria estar reservado, e
assim, eles se consideravam, no mínimo, o papel de formuladores das diretrizes básicas que
orientaria a sociedade brasileira.

O Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, considerando que as


influências mesológicas não podem alterar no indivíduo, os caracteres
hereditários transmitidos de geração em geração, julga que a seleção rigorosa
dos elementos imigratórios é essencial e insubstituível como meio de defesa
de nossa raça. (ROQUETTE-PINTO, 1982: 45).

Se o Brasil não tiver mais tarde uma boa lei de imigração-redigida a luz de
ótimos preceitos antropológicos e eugênicos-não será culpa do Congresso de
Eugenia. (1982: 47).186

Tenho enfatizado ao longo dos capítulos, a ocorrência do Consenso no Dissenso.


Devemos esclarecer que, em nenhum momento, estamos negando as diferenças existentes,
nem entre as propostas, e muito menos ignorando os diversos perfis dos agentes sociais. A
forte presença das teorias racistas e eugenistas, nessa época em que ninguém, a rigor,
escapava do determinismo biológico, no Brasil, na Europa ou nos EUA, imprimiu
características ao campo. No entanto, ocorre que, de modo geral, as análises sobre os usos
simbólicos do conceito de raça no Brasil acabam por jogar fora a água suja junto com a
criança. Não é verdade que, naquela época, todo intelectual, sanitarista ou eugenista,
comungava das mesmas posições políticas e dos mesmos critérios racistas. Poucos nomes
sustentavam as medidas eugênicas mais radicais. Se excetuarmos essa minoria, para os
demais era possível a superação das “deficiências” raciais. Mesmo entre os membros da
Sociedade Eugênica de São Paulo ou entre os militantes mais aguerridos da Liga Brasileira de

186
Octávio Domingues, um dos menos conhecido desses intelectuais, até pelos especialistas, em passagem curta,
demonstra que em hipótese nenhuma os problemas da imigração seriam risco para a nossa nacionalidade. A todo
custo, mesmo os indivíduos mais inferiores, haveriam de ser eugenizados. “Não temamos que a imigração nos
traga o abastardamento da nacionalidade, ou a inferioridade do nosso povo. Certos mestiços são de fato
inferiores, mas nem sempre, ou talvez nunca o sejam mais do que os tipos inferiores das pseudo-raças puras
européias. E contra aqueles, assim como contra estes, oporemos as medidas eugênicas”. (DOMINGUES,
1929:137).
174

Higiene Mental, havia dissensões. Por exemplo, entre Renato Kehl, que via com extremo
pessimismo o Brasil, para ele, uma mistura de raças incompatíveis e Roquette-Pinto que,
apesar de todas as suas ambigüidades, concordava que o Brasil não era degenerado
biologicamente. Ou ainda, aqueles que estavam fora do campo, com propostas que
contemplavam idéias de mudança social, como Manoel Bomfim e Lima Barreto. O que não
devemos fazer, apressadamente, é concluir que a partir das nuances abria-se grandes clarões
no campo.

Mas, vejamos com mais atenção, quem foi Renato Ferraz Kehl.

4.1 O Médico Renato Kehl

Renato Ferraz Kehl nasceu em Limeira, pequeno município do Estado de São Paulo, a
22 de agosto de 1889, filho de Joaquim Maynert Kehl e Rita de Cássia Ferraz Kehl. Portanto,
no centro do processo histórico que significou o fim da escravidão e implantação da
República no Brasil. Viveu a sua infância e adolescência em sua cidade natal, concluindo seus
estudos em Jacareí, também no interior do Estado. Formou-se aos vinte anos em Farmácia e,
posteriormente, em 1915, doutorou-se em Medicina na Universidade do Brasil (Rio de
Janeiro). Exerceu a clínica na capital paulista durante alguns anos. No entanto, logo viria a se
interessar pelos princípios da eugenia, fundando a Sociedade Eugênica de São Paulo com
cerca de 140 médicos. Sua família era católica e com raízes européias. Seu pai (1860-1931),
filho de alemães que chegaram ao país na primeira metade do século XIX, era formado pela
faculdade de Medicina de São Paulo (1883). No entanto, Joaquim enveredou pela carreira de
farmacêutico. Tendo, inclusive, na década de 20 do século passado, sido eleito presidente de
uma associação de farmacêuticos de São Paulo. Em 1905, seguindo a trajetória do pai, Renato
Kehl ingressava no curso de Farmácia, formando-se em 1909. Apesar de, durante um curto
período, ter dirigido uma farmácia em Limeira, ele viajaria para o Rio de Janeiro, juntamente
com seu irmão, Wladimir Ferraz Kehl, para iniciar a tradicional Faculdade de Medicina (RJ).
Na cidade de São Sebastião, ele logo faria parte do grupo de intelectuais que nas instituições
de medicina discutiam a vida cultural e política brasileira. Nomes como Miguel Pereira,
Miguel Couto, Belisário Penna, Afrânio Peixoto, Eduardo Rabello e Agostinho de Souza
Lima faziam parte do círculo de amizades que o ajudariam em sua carreira profissional e
intelectual. Durante os seis anos em que passou na faculdade, Khel travou contato com as
175

idéias de Lamarck, Darwin, Spencer, Agassiz, Galton e Weismann187. O seu interesse pela
discussão de raça, degeneração, hereditariedade e miscigenação teria sido despertado pelo
conhecimento desses autores. Mas, também, segundo declarações do próprio Kehl, pela
observação das populações urbanas e rurais. E com o assombro e horror que as visões dos
“defeitos” das pessoas lhe proporcionavam.

Lutando pela difusão e implantação das idéias eugênicas, Renato Kehl realizou
conferências no Brasil e em vários países, publicando mais de 30 livros e inúmeros artigos em
jornais. Durante alguns anos exerceu o cargo de inspetor sanitário rural do Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP), no qual organizou o Serviço de Educação Sanitária
ligado à Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas, tendo sido também o criador do Museu
de Higiene, apresentado por esse serviço nas Comemorações do Centenário da Independência
(1922)188. Neste Museu realizou-se uma exposição da campanha educativa e sanitária que
deveria ser instalada no país. Foram expostos objetos e fotos que mostravam as habitações
típicas das áreas rurais, infestadas de insetos transmissores de doenças. No Departamento de
Saneamento e Profilaxia Rural do DNSP trabalhou durante três anos (1919-1922) como
inspetor sanitário rural e chefe do posto de Merity (RJ), passando depois para o Serviço de
Educação e Propaganda Sanitária (1923-1924). Tendo se exonerado do cargo de inspetor
sanitário do DNSP, ingressou na empresa de produtos Bayer, a princípio como farmacêutico
responsável e depois como diretor. Nessa firma, dirigiu durante muitos anos os periódicos Os
Farmacêuticos Brasileiros e a Revista Terapêutica que circulavam largamente entre os
médicos de todo o país. Entre os seus principais livros destacam-se: Eugenia e Medicina
Social (1920), O Médico no Lar (1919), Aparas Eugênicas (1933), A Cura da Fealdade
(1922), Lições de Eugenia (1929) e Pais, Médicos e Mestres (1939). Realizou conferências na

187
Segundo a Teoria do Plasma Germinativo de Weismann, os efeitos da educação e de um melhor ambiente não
seriam geneticamente assimilados ao longo das sucessivas gerações.
188
A instalação desta exposição realizada pelo DNSP obteve repercussão, sendo saudada pela imprensa como
uma obra de educação para a salvação do país: “Estaremos em plena fase de higienização nacional? Parece que
não, quando se tem em vista a extensão de um sem número de males que continuam a grassar em proporções
assustadoras de norte a sul do país, quando se verifica como os números da estatística se arredondam em todos
os quadros da saúde pública. Parece que sim, quando se recorda a insistência com que inúmeros médicos e
sociedades fazem propaganda de princípios favoráveis à robustez e beleza da raça de amanha, à defesa da saúde
de hoje, e quando se considera a multiplicação de serviços e funcionários do Departamento da Saúde Pública. O
Dr. Renato Kehl, porém, médico daquela organização e com exercício na Profilaxia Rural, entusiasta
propagandista entre nós da eugenia e de tudo o que se relaciona à formosura de nossa raça, com entusiasmos
para discorrer até, como discorreu, nesta folha, e em tempo, sobre a mulher mais bela à luz da ciência médica,
não tem a menor dúvida, acreditando que nos encontramos em plena fase de higienização nacional. Diz-nos ao
menos isto, e com muita oportunidade e autoridade, já que se prepara para a tarde de hoje, a inauguração da
Exposição de Higiene, no Palácio das Festas...”. Entrevista com Renato Kehl. Pelo Maior Bem! Elevando a
significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que nos vai mostrar a Diretoria de
Saneamento. In: Jornal A Noite. Rio de Janeiro, 30 out. 1922. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
176

Sociedade de Medicina e Cirurgia e na Academia Nacional de Medicina, sempre labutando


para formar a consciência eugênica, que considerava fundamental para o desenvolvimento de
toda a sociedade. Depois de trabalhar na Bayer durante 23 anos, retornou a São Paulo em
1945, vindo a falecer em 14 de agosto de 1974.

Após entregar sua tese sobre medicina dermatológica, intitulada “Blastomicose”, Khel
e seu irmão retornaram a capital paulista. Exerceria a clínica médica em um pequeno
consultório. Mas, Khel estava contaminado pela eugenia. Teria inclusive escrito um pequeno
trabalho que não publicou sobre o tema. Naquela conjuntura, havia acontecido o Primeiro
Congresso Internacional de Eugenia, em Londres, em 1912, e o Primeiro Congresso
Internacional das Raças, em 1911, realizado na mesma cidade. Assim, o encontro de Kehl
com a ciência do aprimoramento humano estava marcado. Quando da conferência realizada
em abril de 1917, na ACM, existia um contexto favorável para a veiculação das idéias
eugenistas. E, a partir daquele momento, ele passou a desempenhar um importante papel na
propaganda dos ideais eugênicos.

Em dezembro de 1917, sob seu comando e com o objetivo de discutir o matrimônio


civil, Kehl reuniu médicos e demais intelectuais da capital paulista, para se encontrarem na
Santa Casa de Misericórdia paulista189. Segundo os relatos, ao final da reunião, todos
comentavam da possibilidade de formar um grupo para discutir as idéias eugenistas e
defender a implantação de políticas públicas orientadas por esse ideário. Um mês depois, em
janeiro de 1918, o eugenista Kehl enviava correspondência para dezenas de pessoas,
convocando todos a comparecerem a Santa Casa com o objetivo explícito de fundar uma
associação como tantas outras que naquele momento representavam o esforço dos intelectuais
em definir, segundo, os próprios discursos nacionalistas, os verdadeiros destinos do Brasil. A
sessão que inaugurou a nova liga aconteceu aos quinze dias de janeiro de 1918. Os trabalhos
foram abertos pelo secretário geral da sociedade, o próprio Renato Kehl, chamando todos a
aderirem em prol da campanha de eugenização da pátria. Belisário Penna, futuro sogro de
Kehl e diretor do recém-criado Serviço de Profilaxia Rural e fundador da Liga Pró-
Saneamento do Brasil, associação da qual Kehl também fazia parte, foi convidado pelo
médico eugenista para representar os interesses da associação na capital federal. Ao ser

189
A pretendida reforma faria desaparecer o impedimento matrimonial criado pelo artigo 183-IV(casamento entre
tios e sobrinhas). Posteriormente, houve até mesmo a convocação exclusiva de uma reunião da Sociedade
Eugênica para debater este tema no dia 13 de junho de 1919. Na palestra proferida no Congresso de Eugenia em
1929, Kehl esclareceu que várias reuniões da Sociedade Eugênica foram palco de intensa discussão sobre a
alteração do código civil brasileiro.
177

nomeado presidente honorário da sociedade de eugenia, Penna enviou uma carta agradecendo
e dizendo que a formação da sociedade de eugenistas lhe serviria para “não esmorecer nessa
cruzada árdua em prol do levantamento da nossa raça, mas de cuja vitória depende a solução
de todos os problemas nacionais, para que o nosso querido Brasil tenha o direito de aspirar a
um lugar distinto no convívio das nações cultas”.190 Para Kehl, eternamente convicto de que a
eugenia influenciaria as políticas públicas e com a simpatia dos demais membros do campo
eugênico, seu caminho messiânico seria o de conduzir esse sonho.

A rede de intelectuais eugenistas era constituída por integrantes de diferentes áreas do


pensamento social e político. Nomes ligados á medicina, psiquiatria, literatura e política que
formavam o eugenismo nacional.191 Souza (2006) realça a proximidade tática que, entre 1917
e 1927, Kehl teria tido com o movimento sanitarista. Segundo esse autor, neste período,
devido às relações mantidas pelos intelectuais eugenistas com os ideais sanitaristas, as idéias
eugênicas tiveram um tom “leve”. Para esse historiador, naquele momento, o caráter flexível
do movimento eugênico foi fundamental e estratégico para arregimentar os intelectuais e,
assim, houve uma adaptação aos diferentes projetos e interesses, científicos, institucionais,
políticos e sociais.

No entanto, baseado em Pierre Bourdieu, Souza utiliza o conceito de campo científico


“heterônomo”. Para Souza, o campo científico da eugenia seria pouco autônomo. É certo e o
próprio Bourdieu explica, que a autonomia de um campo não representa uma maior
cientificidade, mas sim uma capacidade de impor uma definição de ciência e um conjunto de
problemas científicos. Sua análise está correta, devido ao fato de que trata o campo científico
de igual forma que o intelectual ou político. Não obstante, consideramos que esta
“heteroronomia” do campo eugênico não explica o movimento executado pelos diversos
intelectuais eugenistas. E, especificamente, diante da minha opção teórica e metodológica, tal
uso seria inapropriado. Souza citando Bourdieu, afirma que quanto mais heterônomo for um

190
Correspondência de Belisário Penna a Renato Kehl em 15/4/1918. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
191
Sob a repercussão da fundação da Liga Pró-Saneamento do Brasil por Belisário Penna, Fernando de Azevedo
demonstrou que as propostas das agências não eram inconciliáveis: “a campanha do saneamento não é
eugenicamente falando, uma tarefa única, mas sim a primeira face de um cyclopeo trabalho de regeneração, de
que o segundo aspecto, não menos importante, é o revigoramento, por meio da educação física contínua e
metodizada, desta raça que o saneamento libertou de causas anemiantes e reintegrou no estado hígido, mas que
ainda continuaria a sofrer do mal inquietante da depressão física... Não basta, pois curar os doentes, é preciso
melhorar os sãos; não basta que a higiene social saneie o povo, é mister o revigor e a educação física por uma
ação enérgica e sistematizada, capaz de imprimir elastério à nacionalidade então ilibada da mácula endêmica, e
de fazer jorrar harmonia de todos estes elementos étnicos diversos concentrados por força comum numa raça
única e pujante, em que a independência das idéias seja assegurada pelo vigor físico e o amor assíduo da
atividade útil e produtiva” (MARQUES, 1994:62).
178

campo científico mais a concorrência é imperfeita e é mais lícito para os agentes intervirem
forças não-científicas nas lutas científicas. É uma visão que, dependendo das opções teóricas e
metodológicas, causará distorções.

Consideramos que os intelectuais do campo eugênico compreendiam que, no seio das


lutas concorrenciais, a posição dos agentes sociais dependia do apoio dos aliados dentro e fora
do campo. O crédito vinha de cientistas, políticos, das ligas nacionalistas e da opinião pública.
E do crescente, embora incipiente, mercado produtor e consumidor de médicos e empresas
privadas também. Achamos que acentuar a dependência da Eugenia, enquanto um movimento
político às discussões do campo científico não é a proposta mais adequada. Já declaramos
anteriormente, que os debates científicos não podem ser compreendidos, exclusivamente,
enquanto embates técnicos entre os especialistas. No âmbito desse trabalho, as diferenças
conceituais e científicas atribuídas pelos próprios agentes, não constituem fonte central para a
nossa análise. A preocupação é o campo eugênico. A forma política que esse campo assumiu.
Não estou tratando das implicações científicas.

Apesar de ter participado do movimento sanitarista e defendido por vários


anos um programa eugênico mais ‘suave’, ao estilo da ‘eugenia preventiva’,
no final dos anos 20, suas idéias foram profundamente reconfiguradas, o que
o aproximou dos pressupostos mais radicais oriundos da ‘eugenia negativa’
alemã, norte-americana e inglesa. Neste sentido, o interesse central desta
pesquisa consiste em analisar as questões sociais, políticas e científicas
relacionadas ao processo de ruptura no pensamento de Renato Kehl e,
mesmo, em compreender o modo pelo qual suas mudanças de concepções
foram recebidas por outros intelectuais e cientistas, tornando-o um
personagem controvertido da história intelectual brasileira. (SOUZA, 2006:
8).

Nesse pequeno trecho, encontramos algumas considerações acerca do eugenismo de


Khel formuladas por Souza (2006). Vamos discutir alguns dos seus pressupostos. Souza
afirma sobre a carreira de Kehl: ‘apesar de ter participado do movimento sanitarista’.
Achamos que não houve uma oposição entre a trajetória de Kehl e o movimento sanitarista,
ou mesmo uma contradição em sua passagem por esse importante grupo político. Uma das
distinções específicas do eugenismo nacional é a relação intrínseca e orgânica ao movimento
sanitarista. Onde começa um e termina outro? Uma falsa polêmica. Adjetivos como suave,
leve ou pesado qualificam pouco qualquer movimento político. O eugenismo nacional foi
suave? Koifman (2007) demonstra como o eugenismo impregnou nos subterrâneos a política
diplomática e imigratória. Havendo claramente uma planificação da seleção racial sobre a
população que seria recebida ou não. E Koifman em sua tese não utilizou os documentos
179

produzidos pelo grupo coordenado por Oliveira Vianna, do qual Kehl e Roquette-Pinto
também fizeram parte. Nesses importantes documentos, quase nunca pesquisados,
observamos que, para os membros do campo eugênico, a imigração era concebida como um
fator de transformação e melhoramento eugênico, até mais importante do que a educação ou a
esterilização involuntária. Afinal, representava a defesa do potencial eugênico da raça
nacional. Ao lado da esterilização dos anormais, confinamento dos criminosos, educação,
saneamento, para completar o programa de melhoramento do brasileiro, era necessário evitar
a entrada de estrangeiros de determinados países, raças e cores.

Em 1919, após os primeiros movimentos em torno da discussão das idéias eugenistas,


o prestígio intelectual e político angariado por Kehl lhe renderam a nomeação pelo Ministério
da Justiça e Negócios Interiores, para o posto de médico do Serviço de Profilaxia Rural192 no
Distrito Federal. Certamente, as boas relações com o grupo de pessoas que então debatiam o
futuro do Brasil como conseqüência do saneamento das áreas rurais começava a lhe
proporcionar bons frutos. Àquela época, Khel era interlocutor de Belisário Penna, diretor do
Serviço de Profilaxia, e também do escritor Monteiro Lobato. Neste período, este trio
estreitaria as relações.

Após o encerramento das atividades das duas associações que praticamente fundaram
e dirigiram, a Sociedade Eugênica de São Paulo e a Liga Pró-Saneamento do Brasil, Penna e
Khel compartilhavam projetos e idéias. A Sociedade Eugênica foi extinta depois que Kehl
partiu para o Rio de Janeiro e a Liga Pró-Saneamento teve igual destino. Segundo seus
comandantes e membros, ela havia sido criada justamente para propor um modelo de atenção
aos problemas do Brasil, que julgavam ser de ordem sanitária, médica e administrativa. Com a
criação do DNSP, que atenderia aos desejos de centralização nacional e concentração de
poder da união sobre as políticas públicas de saúde, a Liga Sanitarista não teria mais razão
para existir. Afinal, para os seus integrantes, o principal objetivo da associação de sanitaristas
tinha sido obtido: a criação de um órgão nacional de saúde pública e com poderes para atuar
em todo o território nacional.

A formação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) extinguiu a


necessidade da existência da Liga Pró-Saneamento, devido ao fato de que o departamento era

192
O Serviço de Profilaxia Rural foi criado em 1918 e sua direção foi entregue à Belisário Penna. Subordinado, a
princípio, à Diretoria Geral de Saúde Pública e, a partir de maio de 1919, vinculado diretamente ao Ministério da
Justiça, esse Serviço tinha por finalidade combater as endemias: a malária, a ancilostomíase e a doença de
Chagas.
180

a realização dos esforços empreendidos pela Liga. Com a criação de um órgão governamental
central e com força política para cuidar de assuntos relacionados às condições de vida da
população e a promoção de seu bem-estar, a conclamação da participação efetiva do Estado se
concretizava, ao menos em tese. Será que, a introdução de Kehl no serviço público e a
concentração de poder administrativo nas mãos de Penna, ajudaram a causar o fechamento
das duas entidades? Afinal, com a criação do DNSP, Penna foi alçado à condição de Diretor
do Departamento de Profilaxia e Saneamento Rural. Acima de Penna, na hierarquia
administrativa e política da saúde pública restava somente o cientista Carlos Chagas, recém-
nomeado Diretor do DNSP, também membro ativo das várias associações médicas e assim
como Penna, oriundo da tradição sanitarista nacional que desde os anos 10, influenciava boa
parte das atividades desenvolvidas no interior da Diretoria Geral de Saúde Pública e no
Instituto Oswaldo Cruz.

Contudo, essa crescente institucionalização, em nenhum momento, significou perda do


poder de propaganda dos ideais sanitaristas e eugenistas. Khel, por exemplo, a partir de sua
entrada no serviço público, passou a publicar constantemente nos jornais diários, revistas e
periódicos médicos. Na revista Chácaras e Quintais, em uma coluna intitulada “Higiene
Rural”, ele recomendava noções higiênicas e sanitárias para o homem do campo, explicando
os males causados pelas doenças endêmicas e epidêmicas, como a ancilostomíase, malária e
demais enfermidades que freqüentemente assolavam os moradores das áreas rurais. Nessa
mesma publicação, Kehl escrevia uma outra seção com o sugestivo título de “O Médico
Grátis”, onde ele respondia as dúvidas dos leitores sobre os variados problemas médicos
enfrentados pelas famílias rurais e urbanas. Vamos lembrar que Kehl, nessa mesma época
(1921-1922), juntamente com o médico Eduardo Monteiro escreveu um livro, que até hoje é
usado como um poderoso auxílio às dificuldades de atendimento emergencial e clínico das
famílias. Trata-se do dicionário médico O Médico no Lar193, semelhante a tantos outros
almanaques médicos muito populares. Para Kehl, os artigos serviam para despertar as
consciências dos Jecas, para o papel que eles poderiam e deveriam exercer na tarefa de sanear
o país, além de manterem a sua própria saúde. Para o eugenista, os camponeses eram
ignorantes por ausência de educação e estavam habituados à miséria. Como não conheciam
princípios básicos de higiene tornavam-se presas fracas das doenças.

193
KEHL e MONTEIRO. O Médico no Lar. Dicionário popular de medicina de urgência.
181

Em agosto de 1919, pouco mais de 30 dias após sua entrada no serviço público, Khel
foi designado por Penna para exercer o cargo de Chefe do Posto Sanitário Rural numa
localidade situada na Baixada Fluminense. Neste lugar, com o auxílio de quatro médicos,
foram executados durante dez meses, serviços de atendimento clínico, combate a doenças,
dragagens de rios e campanhas de educação higiênica. Devido a sua preocupação eugênica,
com a ajuda de seus colaboradores, Kehl coletou dados e escreveu um relatório que foi
encaminhado às autoridades. O texto demonstra que as informações comprovavam a fraqueza
das pessoas, tendo como conseqüências a debilidade física e a indolência: “Os dados colhidos
demonstram claramente a fraqueza orgânica dessa gente, cuja indolência não tem outra
explicação senão a anemia, a intoxicação e a miséria como conseqüência final.”194 Para
Kehl, de acordo com as idéias sanitaristas e eugenistas, a higiene, a eugenia e o saneamento
eram instrumentos para subverter o triste destino do país. As doenças, endêmicas e
epidêmicas, estavam transformando a população brasileira em seres doentes e incapazes. Em
artigo para o jornal A Noite, alguns meses depois dessa passagem pelo posto médico, Kehl
opinava sobre as condições eugênicas, sanitárias e higiênicas do povo com o qual ele havia
tomado contato no distante subúrbio carioca195:

(...) Está perfeitamente informado o nosso governo, que em boa hora, vai
iniciar a campanha intensa de saneamento, pois, sanear corresponde praticar
a eugenia denominada preventiva, cujos fins são as defesas da raça contra
todos os fatores de degeneração, sejam eles mórbidos (tuberculose, sífilis,
impaludismo, verminoses, etc), sejam eles os venenos sociais. É por isso que
a eugenia preventiva corresponde a medicina social e se esforça pelo
saneamento rural e urbano, pela regulamentação do trabalho, pela proteção
da infância; consiste, enfim, na organização ativa de uma higiene profilática
acauteladora da saúde dos indivíduos e da coletividade.196

O trecho acima citado revela as orientações contidas no pensamento eugênico dos anos
20. Para a maioria dos membros do campo eugênico brasileiro, educar, sanear, eugenizar e
higienizar eram tarefas necessárias para a reforma do país. Tratava-se de um projeto político
voltado para organizar a sociedade brasileira e normatizar os comportamentos dos

194
KEHL, Renato. Relatório de 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
195
São constantes as referências críticas realizadas pelos intelectuais eugenistas/sanitaristas sobre o
desconhecimento do Brasil pelos intelectuais ufanistas. Corroborando a frase de Afrânio Peixoto, “os sertões
começam no fim da Avenida Central”, Penna comentou sobre os agentes que pensavam o país a partir das
avenidas recém-construídas à beira-mar: “(...) desse grupinho, sem documentação e sem base, fizeram o
monopólio do saber, da realidade dos fatos, embora na sua quase totalidade não conhecem do Brasil senão o
trecho que vai da praia de Ipanema à cidade de Petrópolis.” PENNA, B. Ensino da Higiene. Conferência no
Colégio Jacobina. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
196
KEHL, Renato. Os problemas da Regeneração das Raças. 3 set. 1920. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
182

indivíduos.197 No entanto, devemos questionar criticamente alguns aspectos da normatização


de corpos e mentes. Essa visão influenciada por Michel Foucault, embora uma contribuição
valiosa, não explica totalmente a situação em que vivia a população brasileira (rural e urbana)
na Primeira República, sem acesso à serviços de educação e saúde. Assim, se é correto,
afirmar que havia, digamos, preocupações controladoras, também devemos ter atenção com a
história. Por outro lado, distante de constituírem atos disciplinares contra o povo, algumas
(poucas) ações dos serviços de profilaxia rural, eram para os fazendeiros, chefes políticos
locais, constrangidos devidos à inspeção sanitária das suas propriedades por um agente que
representava um poder nacional, uma intervenção, para eles, descabida e absurda.

Fechando um importante ciclo de publicações, depois dos livros Saneamento do Brasil


e O Problema Vital, respectivamente, de autoria de Penna e Lobato, editados no mesmo ano,
1918, Renato Kehl lançaria em 1920, um livro com o título de Eugenia e Medicina Social.
Essa obra trazia em seu prefácio, palavras de Penna comemorando198 a luta do jovem
eugenista. Reafirmando seus laços políticos, pessoais e intelectuais, em finais desse mesmo
ano, Kehl contrairia núpcias com Eunice Penna, uma das filhas de Belisário. E, em dezembro,
um mês depois do matrimônio, o eugenista receberia convite do diretor da Inspetoria da Lepra
e das Doenças Venéreas, o médico Eduardo Rabello, para dirigir o Serviço de Propaganda e
Educação Higiênica daquele orgão. Segundo Rabello, o trabalho seria de importância
fundamental. Mas, qual seria essa função? O de divulgar a importância dos hábitos higiênicos,
sanitários e eugênicos. E onde seria realizado? No âmbito do DNSP. Com o departamento de
atenção à saúde pública, criado no governo de Epitácio Pessoa, determinados intelectuais
médicos, sanitaristas e educadores que participaram da campanha pelo saneamento moral e
sanitário do país foram nomeados para ocupar cargos e desempenhar funções no importante
órgão. O médico Eduardo Rabello (1876-1940) dedicava-se aos estudos relacionados à
Dermatologia e a Sífilis. Sergio Carrara (1996), em um dos poucos estudos sérios sobre esse
personagem, afirma que ele teria em sua carreira a preocupação de promover a vigilância
sanitária.199

197
Os autores da historiografia sobre Eugenia analisam esta hibridização de estratégias como ações caóticas.
Sem sentido científico ou um estágio, onde a vertente negativa estava momentaneamente impossibilitada de
conseguir êxito e de expressar seus desejos. Costumeiramente também essa versão interpretativa investiga uma
mudança, conceituada como “virada”, dos membros do Eugenismo, em especial, de Kehl, para uma
radicalização dos propósitos eugenistas.
198
Em novembro de 1920, os laços pessoais se consolidaram. Kehl casou-se com Eunice Penna, filha de
Belisário Penna.
199
Sobre este importante personagem do campo médico no Brasil, Eduardo Rabello e o trabalho desenvolvido a
frente da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas, ver CARRARA (1996).
183

Depois de pensar os problemas da nação e difundir suas idéias, os intelectuais desse


grupo, naquele momento, começaram a aplicar efetivamente, suas aspirações e desejos,
mediante políticas governamentais. Na passagem pelo serviço de propaganda sanitária, Kehl
destacou-se na organização e divulgação de palestras, filmes, folhetos e cartazes educativos
que orientariam o povo quanto à importância dos hábitos saudáveis. Kehl foi incumbido de
criar o Museu de Higiene, apresentado pelo DNSP durante a Exposição realizada em
comemoração da passagem do centenário da Independência (1922). Em entrevista ao jornal A
Noite, o eugenista faz relevantes declarações a respeito da educação higiênica e do Museu de
Higiene:

Jornal A Noite – Há justo motivo para se acreditar, diz o Dr. Renato Kehl,
que estamos em plena fase de higienização nacional, completando a
memorável obra de reabilitação sanitária iniciada no nosso país pelo grande
patrício Oswaldo Cruz. Dia a dia multiplicam-se as providências de ataque
às epidemias e endemias que assolam o território pátrio e são freqüentes as
manifestações de aplausos a essa auspiciosa campanha de saneamento que se
vai disseminando por quase todos os estados da União. O magno problema
está, pois, em foco. Congressos médicos, mensagens, plataformas, discursos
e conferências, tratam das medidas profiláticas em execução ou em projeto,
mantendo-se unânime a opinião pública de que a política sanitária é a
verdadeira política de salvação nacional. O povo, apercebido dos benefícios
que estão surgindo com as medidas de saneamento e dos que advirão
futuramente, compreende, enfim, que o nosso grande mal não está ligado ao
clima nem à gente que habita esta face da terra, mas sim às endemias e
epidemias que infelicitam grande parte dos nossos patrícios, principalmente
dos que habitam a zonas rurais.

Kehl – A exposição, que vai fazer o Departamento Nacional de Saúde


Pública, nas alas laterais do Pavilhão das Festas, vale por uma demonstração
do que se tem feito e do que se tem a fazer em matéria de propaganda.
Presta-se ainda, para demonstrar ao público, de um modo simples e evidente,
a importância da execução dos preceitos ditados pela higiene.

Jornal A Noite – Tem esperanças nessa propaganda com o analfabetismo


reinante?

Kehl – Naturalmente. Ao lado da campanha escrita, faz-se a falada, que será


compreendida pelos “iletrados”. Ninguém ignora que a propaganda é o
elemento mais importante para a vitória de uma campanha, seja ela
comercial, política ou sanitária. Antes de tudo, é preciso convencer o
público, para depois se lhe pedir ou exigir a colaboração.200

Kehl, como os demais membros do campo, entendia que o alcoolismo era um fator de
destruição das forças orgânicas do homem brasileiro. As campanhas contra o uso do álcool

200
Entrevista com Renato Kehl. Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e
educação sanitária. O que nos vai mostrar a Diretoria de Saneamento. In: Jornal A Noite, 30/10/1922.
184

foram constantes nos anos 20. Poderíamos dizer que, neste período, as epidemias, as endemias
rurais, a lepra, a sífilis e o alcoolismo, eram as maiores preocupações dos médicos. Através
dos artigos que Kehl escrevia para as colunas que mantinha nos jornais, nosso eugenista
chamava a atenção dos leitores para os malefícios que a vida plena de vícios causava ao corpo
e a raça. Acarretando prejuízos ao país e aos descendentes. Segundo os eugenistas mais
radicais, sob o ponto de vista da possibilidade de transmissão de características adquiridas ao
plasma germinativo, o álcool prejudicava diretamente as células reprodutoras causando
desordens nos elementos que seriam transportados aos descendentes, propiciando a loucura, a
criminalidade e as deformidades físicas201. É importante salientar que todas as possíveis
correntes consideradas dentro do eugenismo, avaliavam como extremamente prejudiciais à
formação da raça, os problemas advindos da vida cosmopolita, identificada como pecaminosa
e com altos riscos de contaminação de doenças venéreas. Aliás, esse ponto unia a todos os
sanitaristas, psiquiatras, eugenistas, mendelistas ou não. Intelectuais de fora da área médica
também consideravam os vícios fonte de degeneração da raça. Ao lado da crítica aos atos
filantrópicos e assistencialistas que prejudicaria a seleção natural e a eliminação dos fracos, a
condenação da vida cheia de vícios, também era um dos principais objetos de reprovação
moral por parte dos eugenistas. “A civilização (...) descuidou-se, lamentavelmente da própria
espécie, além de, contra seus próprios interesses, perverter as leis de seleção natural com atos
de falso humanismo”. (KEHL, 1933: 63).

A campanha contra o uso abusivo do álcool quase dominaria as atividades de uma das
associações: a LBHM. De todas as propostas veiculadas por essa liga, certamente o combate
ao alcoolismo foi a principal bandeira da Liga, que organizaria anualmente, a partir de 1927,
as “semanas antialcoólicas”. Devido ao envolvimento dessa agência com o tema ela passou a
ser conhecida como a Liga Anti-Alcoólica. Até um editorial foi publicado no periódico202
esclarecendo que essa não era a única preocupação da Liga. Kehl participaria das semanas
antialcoólicas promovidas por essa agremiação durante os anos 20. Mas, se a proposta mais
popular da LBHM foi o combate contra o álcool, essa era apenas uma das campanhas da

201
Os partidários do mendelismo afirmavam uma positividade dos cruzamentos raciais. Mas, também poderiam
negar a influência dos fatores ambientais para a obtenção de uma raça eugênica e um Brasil menos miserável.
Donde se conclui que mendelistas ou lamarckistas poderiam preconizar em momentos diferentes soluções
semelhantes para os males do Brasil. José Roberto Franco Reis publicou um artigo onde ele mapeia as correntes
mais radicais do Eugenismo dentro da LBHM. Degenerando em Barbárie: A hora e a vez do Eugenismo
Radical. In: BOARINI (2003).
202
O exemplar número três do periódico da LBHM de julho de 1933 tinha o seguinte título em seu editorial:
“Liga de Higiene Mental não é Sinônimo de Liga antialcoólica.”
185

instituição. A questão racial, com ênfase no controle da imigração teve um peso expressivo na
Liga desde seus primórdios, assim como a prevenção das doenças mentais nas crianças.

Os atuais pesquisadores do eugenismo vêem a preocupação dos eugenistas com as


atitudes, a educação e o uso do álcool como prova da preponderância da eugenia preventiva
durante os anos iniciais da campanha eugênica. Os críticos de Kehl afirmam que, entre 1917 e
1927, os cuidados e a atenção dos agentes sociais, de uma maneira geral, com a educação
higiênica e com os comportamentos humanos corroboram a tese de que a eugenia no Brasil
possuiu em seu momento inicial um caráter “leve” e depois, nos anos 30, teria havido uma
radicalização, com os atores sociais dispensando essas preocupações menores e terminando
por ocupar-se mais com a eugenia negativa (esterilização) e, também com a possibilidade
(nem sempre bem aceita) do povo branquear-se pela miscigenação203 crescente com os
mestiços nacionais brancos ou com os imigrantes. Para esta interpretação, portanto, depois da
fase inicial (pouco científica), seriam adotadas com radicalidade as técnicas da eugenia
negativa, ou seja, a propaganda e a tentativa de implantar no Brasil a esterilização
compulsória dos “degenerados e criminosos”, a obrigatoriedade de exames pré-nupciais e a
segregação de homens e mulheres considerados fracos.

Inegavelmente, a produção intelectual de Kehl, no período entre o início da campanha,


em 1917, até a criação de agências explicitamente voltadas para a deliberação de políticas
públicas como a Comissão Central Brasileira de Eugenia, dirigia-se majoritariamente às
questões de educação e higiene e às orientações matrimoniais. Ele chegou a participar, junto
com Penna, da Primeira Conferência Nacional de Educação, na cidade de Curitiba, em 1927,
promovida pela ABE (Associação Brasileira de Educação)204. Mas, os objetivos da Eugenia
nunca eram restritos. O foco principal seria sempre produzir e reformar o maior número
possível de indivíduos, desde que fossem cumpridos os seguintes itens:

Reduzir até eliminar, paulatinamente por processos biológicos, os sub-


normais e anormais, impedindo a reprodução de indivíduos apresentando
taras nervosas e anormalidades físicas (...) Incentivar o orgulho pela
verdadeira nobreza de estirpe, consubstanciado na beleza físico e psíquico da
família, organizando arvores genealógicas ou pedigree (...) Promover a união
conjugal de eugenizados para fomentar a formação progressiva dos puros-

203 Em relação á miscigenação, constantemente Kehl alertava sobre o seu perigo, deixando evidente que era a
sua maior preocupação: “Assim, pois, o cruzamento constitui o pior fator degenerativo dos povos. Nos países
onde maior é a heterogeneidade de cruzamentos, maior o numero de degenerados”. Renato Khel, “A Utopia da
felicidade coletiva”, 1933. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
204
A tese apresentada por Renato Kehl na Conferência Nacional de Educação era intitulada O Problema da
Educação Sexual.
186

sangues (...) Conservar, cuidadosamente fiscalizadas, as melhores mutações


ou variações hereditárias (...) Melhorar, progressivamente, as condições do
meio e de educação.” (KEHL, 1929:223).

Os pesquisadores que argumentam que Kehl teria sofrido uma alteração radical em
suas proposições datam o final dos anos 20 como um marco. Dizem, inclusive, que as
manifestações, antes de 1929, tanto presentes em Kehl como nos outros eugenistas em torno
da chamada eugenia negativa seriam circunstanciais. Assim, a necessidade alardeada pelos
membros do campo eugênico em controlar os nascimentos sem planejamento familiar estatal
e o pedidos de regulamentação da esterilização dos doentes mentais e criminosos, são
analisados como elementos residuais diante das preocupações higienistas e sanitaristas que
predominariam no horizonte dos intelectuais eugenistas. A eugenia brasileira estaria nos anos
20, dominada pela idéia de prevenção e por temas de alcance moral. Como afirma a
historiadora Nancy Stepan: “(...) o interesse eugênico na educação sexual pouco tinha a ver
com visões radicais sobre sexualidade ou papéis sexuais. Pelo contrário, a eugenia brasileira
vinculava-se estreitamente a uma ideologia conservadora, familiar”. (STEPAN, 2004:352)
Neste sentido, haveria um modelo hegemônico a qual Kehl e outros intelectuais estariam
identificados ou não. Portanto, por esse viés, os membros do eugenismo nacional seriam, em
sua maioria, adeptos de uma eugenia “leve”.

De maneira geral, pode-se dizer que os pressupostos que informavam os


eugenistas brasileiros estavam muito mais ligados às preocupações
higiênicas, sociais e de cunho moral, do que propriamente com os problemas
relacionados à seleção reprodutiva ou as visões racialistas. (SOUZA,
2006:117).

Tenho feito, com alguma regularidade, críticas e comentários a respeito dos trabalhos
produzidos sobre o tema da eugenia. Chamo a atenção para determinados itens, que creio, não
comprometem a contribuição que eles realizaram. Inegavelmente, os textos de Souza e Stepan
avançaram muito na investigação sobre o movimento eugênico no Brasil. Contudo, discordo
de algumas das premissas apresentadas. E, em alguns pontos, Souza (2006) também critica a
obra de Stepan (2005). Mas, isto de maneira nenhuma invalida a posição de Stepan, que,
inclusive, sublinha a originalidade das idéias eugenistas na América Latina e reconhece a
importância delas. Apenas, consideramos que a argumentação que acompanha a maior parte
dos textos sobre a eugenia no Brasil não reconhece algumas nuances que caracterizam os
processos históricos. Se, por um lado, é correto o reconhecimento das propostas “leves” de
grande parte dos eugenistas nacionais, por outro, devemos questionar essa “leveza”.
187

Distanciando-se dos pressupostos higienistas e ambientalistas que até então


tinham moldado suas idéias eugênicas, e que o aproximavam da medicina
social e da educação, Kehl começou a defender medidas eugênicas mais
radicais, restritivas e autoritárias. Ao invés de uma eugenia ao estilo
‘preventivo’ ou ‘positivo’, passou progressivamente a adotar as concepções
da denominada ‘eugenia negativa’, aproximando-se inclusive, das discussões
que formavam o pensamento eugênico alemão e norte-americano. (SOUZA,
2006:118).

De acordo com minhas observações, as alterações avaliadas como significativas e


radicais por parte dos recentes trabalhos historiográficos sobre a eugenia brasileira não foram
mudanças de rotas. Apenas, curvas no caminho. Dessa maneira, ganham uma nova
compreensão, as alianças que os intelectuais construíam para alcançar seus objetivos, em que
não só através de ligas e publicações, mas por meio de inúmeros departamentos
governamentais de saúde médica, sanitária e psiquiátrica, além das associações de cunho
educacionais, os eugenistas procuraram aumentar sua presença política na sociedade205. Como
exemplo, a tentativa constante de influir por meio de lobbies no Congresso ou mesmo da
atuação efetiva e pessoal na confecção das leis. Ao lado de Kehl, os eugenistas fizeram a
partir do início dos anos 20, campanhas para regulamentar a obrigatoriedade do exame
médico pré-nupcial que permitiria ou não o casamento. Em 1927, os membros do campo se
reuniram na sede da Liga de Defesa Nacional, para discutirem um projeto de lei que deveria
ser enviado a Câmara Federal. Renato Kehl, Juliano Moreira e demais eugenistas se
encontraram com o deputado Amaury de Medeiros que apresentaria um projeto tornando o
referido exame compulsório.

Em 1931, com o objetivo de influir nas determinações jurídicas que certamente


surgiriam devido à conjuntura política após a revolução de 1930, Kehl e um grupo de
eugenistas fundaram a Comissão Central Brasileira de Eugenia. Filiada a Federação
Internacional das Associações Eugênicas, a CCBE era semelhante a inúmeras associações do
mesmo tipo existentes na Alemanha, Suécia e Estados Unidos. Segundo seu principal membro
e fundador, esta associação tinha por fim o estudo, a propaganda e a assessoria aos projetos
governamentais na área da imigração e povoamento. Mas, sua principal atribuição era
pressionar os parlamentares em busca de apoio as suas pretensões. A função da CCBE
consistiria, dessa maneira, em elaborar políticas públicas governamentais que pretendessem o
aperfeiçoamento racial da população. Era a eugenia a serviço da nação. A proposição número
11 de uma lista enviada pela Comissão Brasileira Central de Eugenia para o grupo que

205
Sobre a Associação Brasileira de Educação (ABE), ver CARVALHO (1998).
188

aprontava um pré-projeto para a nova constituição procurava definir a função que o Estado
deveria desempenhar. Essa lista está publicada no livro Aparas Eugênicas. Sexo e Civilização
de autoria de Kehl editado em 1933. Ela apresentava muitos pontos de contato com as
resoluções aprovadas pelo Congresso de Eugenia de 1929. Vejamos trechos de ambos os
documentos. As principais conclusões do Primeiro Congresso de Brasileiro de Eugenia estão
no mesmo livro de Kehl.

Proposição número 11 da lista da CCBE:

O Estado, tendo em consideração os itens acima, empenhar-se-á, desde já,


para a defesa das futuras gerações, na preservação e multiplicação das boas
linhagens das diversas classes de trabalhadores sadios e úteis, sejam
manuais, artísticos ou intelectuais. As medidas sumariamente expostas são
indispensáveis para resguarda-las da degeneração, ao mesmo tempo que
favorecem o aumento de suas proles. São recursos básicos, ao lado da
educação, para elevar o nível médio, somato-psíquico da nacionalidade.
(KEHL, 1933: 257).

Duas das conclusões aprovadas pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia:

O Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia solicita do Congresso Nacional


uma legislação destinada a preparar um meio ambiente que ofereça
condições favoráveis ao aperfeiçoamento da raça. (KEHL, 1933: 259).

O Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia dirigirá ao presidente da


Republica, as casas do congresso nacional e aos governadores de estado, um
apelo em que serão postos em foco os gravíssimos perigos da imigração
promíscua sob o ponto de vista dos interesses da raça e da segurança política
e social da república. (1933: 260).

Com a criação da CCBE, Kehl tinha como objetivos reunir tanto os interesses dos
segmentos mais radicais do movimento eugenista, quanto atrair à atenção dos intelectuais das
demais correntes, além dos membros do novo governo. Dentre os integrantes da Comissão
aparecem os nomes de Ernani Lopes e Porto Carrero, respectivamente presidente e vice-
presidente da LBHM; o psiquiatra e eugenista Cunha Lopes, do Departamento de Assistência
a Psicopatas do Rio de Janeiro; os eugenistas Salvador de Toledo Piza Junior e Octavio
Domingues, ambos professores da Escola Agrícola Luiz de Queiroz de Piracicaba; Achiles
Lisboa muito ligado a Belisário Penna. O grupo era formado também por intelectuais e
políticos diretamente ligados ao Departamento Nacional de Saúde, como Gustavo Lessa,
Caetano Coutinho e Penna, nomeado semanas antes pelo Getúlio Vargas para dirigir o
referido departamento. Nesse momento, acima de Penna na hierarquia administrativa da área
da saúde, somente o Ministro de Saúde Pública e Educação. Cargo que o filho de Barbacena
189

(MG) ocuparia em dois breves momentos. Assumiria o ministério em setembro de 1931,


permanecendo por três meses e novamente, em dezembro de 1932, exerceu interinamente a
função por alguns dias.

Assim, o movimento eugenista caminhava pelo meio da década em plena forma. A


criação da Comissão, a edição do Boletim de Eugenia e a realização do Congresso de Eugenia
atestavam a vitalidade do movimento. Após a constituinte de 1934, Renato Kehl foi
convidado, juntamente com Roquette-Pinto, por Oliveira Vianna, para integrar a comissão
responsável por elaborar o projeto que regulamentaria a política de imigração e povoamento
do governo Vargas. Em 1935, através de uma emenda parlamentar à Constituição de 1934, o
projeto final proposto por esse grupo coordenado pelo sociólogo fluminense acabaria sendo
aprovado pelo Congresso Nacional, cujas concepções se baseavam, em parte, nos
pressupostos defendidos pelos demais eugenistas brasileiros. Ressaltamos que vários dos itens
regulamentados faziam parte das teses sustentadas por Azevedo Amaral em sua palestra
realizada no Congresso de Eugenia de 1929. Vamos destacar alguns dos critérios seletivos dos
imigrantes presentes tanto na comunicação feita no evento eugenista quanto no texto final da
equipe coordenada pelo Oliveira Vianna: a avaliação individual médica do imigrante,
exigências de depósitos em dinheiro do imigrante ao entrar no país, as delimitações de cotas
étnicas, além, é claro, do alto valor eugênico coletivo da raça. Vale lembrar que antigos
integrantes do movimento eugenista e defensores das políticas de restrição à imigração, como
Miguel Couto e Xavier de Oliveira, faziam parte da Câmara Federal que aprovava as novas
leis de imigração seletiva. Nancy Stepan (2005:175) afirma que essas cláusulas de restrição à
imigração aprovadas na Constituição de 1934- e que foram mantidas após 1937-
estabelecendo cotas raciais de 2% da população de imigrantes de cada nacionalidade vivendo
no Brasil, afetaram a entrada de japoneses e judeus.

4.2 Eugenia e Imigração

“Afigura-se-nos que este Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia não


poderá conseguir a imediata concretização das idéias nele debatidas em
medidas de ordem prática, pelas quais o Estado manifesta a sua ação
interventora em defesa da raça. Estamos lançando as bases da obra que vai
reclamar trabalho prolongado e penoso, mas, por trás da qual se destacam
190

perspectivas tão brilhantes que não seria possível admitir um pensamento de


hesitação ou de desânimo”.206

Uma série de elementos pode ser apontada para tratar a legislação imigratória dos anos
30 como sistematicamente influenciada pela eugenia e, principalmente, pensada e
implementada pelos intelectuais do campo eugênico. A limitação de cotas por nacionalidade
aplicadas na Constituição de 1934 é um dos grandes símbolos desse período.207 Porém, não
foi o único. As ações desenvolvidas no Conselho de Imigração e Povoamento além das
normas e restrições impostas pelos Ministérios do Trabalho, Justiça e demais órgãos que
regulavam as relações exteriores também identificam as dificuldades criadas para a entrada de
imigrantes no período.

A Constituição promulgada a 16 de julho de 1934 determinava que deveriam ser


impostos limites à vinda de imigrantes com o explícito objetivo de garantir a integração
étnica. As cotas estipulavam o percentual de 2% do total dos membros de cada nacionalidade
que habitavam o Brasil no prazo dos últimos 50 anos. Porém, isso foi resultado de intensos
debates e prosseguiria nos anos seguintes. Muitos membros constituintes opinaram,
apresentando emendas e propostas sobre as questões que envolviam eugenia, educação,
trabalho, saneamento e imigração. Na sessão de instalação da Assembléia Constituinte, o
chefe do Governo Provisório, Getulio Vargas apresentou indícios de como esses temas seriam
tratados. Preocupado com o trabalho e o povoamento do vasto território, Vargas declarava que
o Brasil ainda era um país que necessitava de imigrantes devido à carência de braços
qualificados e também pela necessidade de povoar o imenso território. Todavia, admitia que a
política imigratória não continuaria mais permitindo a entrada livre. Não que a vinda de
imigrantes estivesse sendo seguida totalmente sem critérios, nem que não houvesse medidas
legais para impedir a imigração desenfreada. Mas, segundo Vargas, era preciso evitar a vinda
de imigrantes sem que esses apresentassem condições desejáveis e, além disso, era necessário
incentivar a ocupação dos postos de trabalho pelos trabalhadores nacionais.

Visando esse objetivo, adotamos o salutar princípio da nacionalização do


trabalho, só agora incorporado ao texto das nossas principais leis. Passou-se
a exigir, em virtude do mesmo decreto, que regulou a entrada de estrangeiro,
que todos os indivíduos, companhias, empresas ou firmas que explorem
qualquer ramo de indústria ou comércio, mantenham, constantemente, nos
quadros do pessoal dos respectivos estabelecimentos, dois terços, de

206
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
339.
207
Em seu texto final, é explicitamente colocada a necessidade imperiosa de promover a educação eugênica e
higiênica.
191

brasileiros natos. Não inspirou a adoção desta medida qualquer sentimento


egoísta e de hostilidade ao trabalhador estrangeiro. Ela se destina, lógica e
naturalmente, a amparar o operariado nacional dos centros urbanos, para
onde afluem os imigrantes de profissões idênticas, afastados do país de
origem pela falta de trabalho. Ressaltando os interesses de nossa expansão
agrícola, não levantamos obstáculos à penetração, nas zonas do interior, das
correntes imigratórias, fornecedoras de braços adestrados no cultivo da
terra.208

A constituição de 1934 trouxe em seu texto as restrições à entrada livre de imigrantes


no país. Entre a sua promulgação e a implantação do Estado Novo, em 1937, o tema ganhou
uma importância maior. O poder executivo ocupou-se do assunto e promoveria mudanças. A
vinda dos estrangeiros ganhava novos contornos numa sociedade que estava promovendo
políticas imigratórias seletivas e segregacionistas. Uma intensa discussão sobre Eugenia e
Imigração marcou os debates da Assembléia Constituinte que terminou por promulgar a
Constituição em 1934. Porém, essa discussão já dominava os círculos intelectuais e havia sido
especialmente tensa durante os debates do Congresso de Eugenia em 1929. Durante os
trabalhos, uma das várias emendas apresentadas especificando a vinda de imigrantes,
afirmava que esta seria orientada por critérios etnológicos, higiênicos e psicológicos. O exame
e distribuição do conjunto de imigrantes pelo país deveriam seguir uma orientação por cotas
étnicas e que estas deveriam se assemelhar ao “plasma nacional”.

A comissão, que havia escrito um anteprojeto de Constituição, definiu que a lei


federal poderia proibir e favorecer a imigração, tendo em vista os interesses nacionais.
Durante os trabalhos da Constituinte, apresentou-se a emenda sobre a entrada de estrangeiros
que seguiria orientações eugênicas, higiênicas e étnicas, respeitando a assimilação ao tipo
nacional. As justificativas esclareciam que além de avaliar o aspecto médico dos indivíduos,
as correntes imigratórias não poderiam ser de origens muito diferentes da raça nacional. O
médico Miguel Couto, membro Constituinte, assim como outros profissionais da medicina,
em discurso do dia 30/11/1933, defendeu a análise clínica individual e a obediência às cotas
para a vinda de imigrantes para o Brasil. Para isso, se apoiava na tese apresentada por
Azevedo Amaral no Congresso de Eugenia, intitulada “O Problema Eugênico da Imigração” e
também citava a participação de Levy209 Carneiro, ocorrida no mesmo evento, onde ele falou
sobre educação, esterilização e eugenia. Em outros pronunciamentos e, especialmente, num
discurso realizado no mês de fevereiro de 1934, ele não deixaria dúvidas sobre a criação de
obstáculos para a vinda de imigrantes negros, japoneses, judeus ou de outras origens distantes

208
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 115.
209
Levy Carneiro foi membro da Constituinte.
192

da “nossa”. Nesta oportunidade, Miguel Couto, seguindo as orientações de Oliveira Vianna,


afirmou:

Para nós, portanto, que, pelo fato mesmo de termos uma formação, em que
predominam dois sangues inferiores (o negro e o índio), somos um povo de
eugenismo pouco elevado, o grande problema é a arianização intensiva da
nossa composição étnica. Tudo quanto fizermos em contrário a essa
arianização é obra criminosa e impatriótica.210

Explorando textos do autor da Evolução do Povo Brasileiro, Miguel Couto defendia a


introdução dos indo-europeus, pois esses possuiriam um alto grau de eugenismo, porque,
segundo Couto e Vianna, devido à cultura e força desses povos, fatores eugênicos, eles
estavam mais aptos para o progresso. Como resultados dos debates, foi aprovada, em maio de
1934, o limite de 2% para cada nacionalidade, além de proibir a concentração geográfica de
imigrantes. Mas, o efeito mais relevante e decisivo das discussões travadas foi à criação de
um grupo de especialistas em imigração e eugenia. O texto constitucional aprovado foi
considerado como uma proposta muito genérica sobre esses temas, incluindo-se nesse
conjunto a obrigatoriedade da educação eugênica e higiênica, que havia sido incluído na
Constituição, mas que, na realidade, não passava de uma simples menção. O principal atributo
desse grupo seria elaborar um projeto que efetivamente fosse um instrumento de
regulamentação da questão imigratória.

Miguel Couto, um importante membro do campo eugênico e da Constituinte,


ressaltava o papel da vinda de indivíduos saudáveis para a eugenização da população
brasileira e fazia referências ao Congresso de Eugenia de 1929 (que havia sido convocado
pelo próprio Couto). Na Constituinte, ele comentava e recorria a palestra apresentada no
citado evento pelo intelectual Azevedo Amaral. Couto também tecia comentários elogiosos ao
Doutor Levi Carneiro que havia presidido as sessões de Educação, Legislação e Imigração no
referido Congresso realizado catorze anos antes. Levi Carneiro também era membro da nova
Carta. Coincidência? Ou reflexo do poder que a rede de intelectuais, ligas e periódicos
exercia?

É proibida a imigração africana ou de origem africana, e só consentida a


asiática na proporção de 5%, anualmente, sobre a totalidade de imigrantes
dessa procedência existentes no território nacional. É vedado aos estados

210
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 356.
193

fazer contratos para a introdução de imigrantes em contravenção do disposto


neste artigo.211

No pronunciamento de fevereiro de 1934, Couto falou sobre os japoneses, negros e o


problema da miscigenação. Nessa oportunidade, ele citava vários outros intelectuais do campo
eugênico, dentre eles, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto, além de Gobineau. Criticando uns e
buscando apoio em outros, Couto explicitava a opinião de Vianna que defendia abertamente a
introdução no país de indo-europeus, pois esses possuiriam um alto grau eugenismo: “Só estas
nos servem -porque o progresso das sociedades e a sua riqueza e cultura são criações dos seus
elementos eugênicos, cuja função na economia social é análoga à função do oxigênio, na
economia mundial”. Àquela altura, Couto, como os demais membros da Constituinte,
utilizava-se de argumentos eugênicos bastante “duros” e explicitamente baseados em Oliveira
Vianna para destacar o valor da raça nacional para a segurança nacional e para a
nacionalidade. Muitas vezes, em variados discursos, ele alertou contra o perigo da invasão
japonesa e a criação de enclaves étnicos no Brasil por nacionalidades “estranhas” à brasileira.
A seguir, um pequeno trecho de Miguel Couto, negando possuir preconceitos:

(...) de nacionalidade, de cor, ou de raça. Quanto à nacionalidade, porque


nesta era, chamada a idade oceânica ou internacional, de há muito o
estrangeiro deixou de ser o inimigo; é antes o amigo, o comensal, o
companheiro, o mutante de nossa fortuna (...). Os trabalhadores estrangeiros
são, pois, agentes de nossa riqueza.212

Outros deputados constituintes que trabalhavam na nova Carta também expressavam


posições próximas e igualmente restritivas sobre o controle da imigração. Aliás, era grande o
número de médicos eugenistas presentes no trabalho de construção da nova Constituição. Por
exemplo, o psiquiatra Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988), segundo diretor do Asilo
de Juquery, um dos que mais estava preocupado com as questões sobre eugenia, educação e
imigração, era membro do grupo de 60 médicos constituintes da nova Carta e autor da
emenda que consagrou a educação eugênica da Constituição. Um dos resultados desses
intensos debates foi à aprovação da cota de 2% para cada nacionalidade criando a proibição
da concentração de imigrantes em quaisquer regiões do país. Devido às polêmicas suscitadas,
antes, durante e após os trabalhos da Carta, além da necessidade de regulamentar as leis,
constituiu-se a já citada comissão encarregada de organizar as leis de imigração. Composta
por especialistas em eugenia e imigração, era integrada pelos seguintes nomes: Roquette-

211
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Miguel Couto citando Oliveira Vianna. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, p. 490.
212
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Miguel Couto. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p.124.
194

Pinto, antropólogo e Diretor do Museu Nacional, Renato Kehl, Conde Debanné, Cônsul do
Brasil nos países do Oriente, Dulphe Pinheiro Machado, Diretor do Departamento do
Povoamento, Vaz de Mello, Diretor dos Serviços de Passaportes do Ministério do Exterior e
Raul de Paula, representante da Sociedade Amigos de Alberto Torres. Presidia a comissão,
Oliveira Vianna, Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho.

Da massa de documentos, espalhada por vários centros de documentação e arquivos,


gerados e acumulados pelo grupo de estudiosos da ciência eugênica reunidos para formular a
política pública para a imigração do país, surge uma pequena folha contendo rabiscos feitos
por Roquette-Pinto. São comentários sobre o anteprojeto de regulamentação da imigração
levado a cabo pela comissão. A forma de condução dos trabalhos da comissão sugere que
foram divididas as tarefas. Coube a Kehl e ao Conde Debanné formular um texto
consolidando as discussões. Roquette-Pinto aprovou o texto, apesar de tecer ressalvas. Mas, o
que nos interessa é que nessas linhas, o documento traz pistas e aponta para as indefinições e
tensões que marcaram o campo eugênico. Anteriormente, citei uma carta privada de Roquette-
Pinto para Vianna, onde ele elogiava muito o projeto. Porém, nesse outro documento, ele é
mais comedido. Contudo, sonha com o dia que o povo educado entregará os postos de mando
aos homens capazes. Seriam os antropólogos do Museu Nacional esses homens capacitados
para ocupar esses postos?

Aceito, de um modo geral, o projeto formulado pelo Dr. Kehl


regulamentando a seleção qualitativa dos imigrantes. Penso, porém, que a
comissão não pode aceitar certas expressões ali empregadas. Trata-se de
aconselhar aos poderes públicos a adoção de certas medidas. As leis não
devem conter palavras ou expressões de significação duvidosa, imprecisa ou
discutível. Penso que só admitir correntes imigratórias provenientes de etnias
congêneres como está no Projeto Kehl-Debanné é limitar a imigração a
portugueses, espanhóis, italianos, etc. Os nórdicos, que muitos consideram
dos mais desejáveis, estariam entre os recusados, porque só por absurdo,
podem ser declarados de etnias congêneres às nossas-suecos, ingleses,
alemães, etc.

Não posso concordar também com a citação dos ciganos, tal qual está no
art.2 do projeto. Antes, de mais, convém lembrar que os próprios ciganos,
para fugir das perseguições tradicionais, herança medieval do mundo cristão,
costumam declarar a nacionalidade oficial-são espanhóis, italianos,
húngaros, etc. Nunca declaram a sua etnia. Mas o nome cigano, que tão
pejorativo se tornou no Brasil, sinônimo de gatunagem e sordidez,
corresponde de fato a um povo que não merece um insulto sistemático.
Mesmo desprezando tudo quanto dele recebeu o Brasil, na sua formação, em
sangue, lendas, tradições, costumes, até mesmo no idioma. Os ciganos só por
serem nômades, não devem receber tão formal condenação. Ciganos artistas,
e ou artífices, sadios, robustos, de uma vida limpa, em boas condições de
higiene e de bons antecedentes eugênicos, que são sempre individuais. É
195

expressão indefensável. Não sei o que são “elementos raciais


inassimiláveis”. Toda a história da formação étnica do Brasil prova
luminosamente que entre as raças mais afastadas – pelo tipo físico, pela
linguagem, pelos costumes – a assimilação pode ser a mais completa. Se
muitos alemães e japoneses continuam no Brasil a viver vida alemã ou
japonesa – isto não depende em nada da constituição étnica. É
desorganização política do país (Alberto Torres); há de acabar um dia,
quando o povo educado, souber entregar os postos de mando aos homens
capazes, escorraçando os aventureiros.213

Através de uma missiva enviada a Oliveira Vianna em 1935, Renato Kehl


argumentava também estar satisfeito com o resultado final produzido pela comissão
responsável por elaborar o “anteprojeto da lei de imigração”. Após ler o relatório final
preparado por Oliveira Vianna, Kehl afirmava:

Pelo que pude apreender, o referido trabalho condensou, de maneira feliz,


muitas das idéias apresentadas e discutidas nas diversas reuniões da
comissão sob a ilustre presidência de V. Excia. (...) Faço votos que seja
aprovada pela câmara ainda na presente legislatura (...). O principal já está
feito: uma obra simples, clara, concisa e viável. Acredito que, a sua
aprovação, ter-se-ão, com relativa facilidade, recursos para por em prática a
seleção eugênica a fim de melhorar o povoamento do país por parte dos
elementos que aqui aportam como imigrantes.214

Oliveira Vianna ocupou o cargo de Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho entre


1932 e 1940. Em várias cartas de papel timbrado do Ministério, Vianna comunicou-se com
Kehl, manifestando toda a sua preocupação com o trabalho dessa comissão de especialistas
em eugenia responsáveis por estudar e formular políticas para a imigração. Em momento
posterior, entre 1941 e 1945, o Ministério da Justiça e Negócios Interiores ficou com toda a
competência relativa ao assunto. Em decorrência do decreto-lei 3.175 de abril de 1941 e a
conseqüente proibição da emissão de vistos permanentes, as exceções para a concessão dos
mesmos passaram a ser decididas, caso a caso, pelo Serviço de Visto desse ministério. As
regras impunham aos serviços consulares brasileiros no exterior uma verificação clínica de
cada potencial imigrante. Uma vez cumpridas as exigências físicas e morais, os cônsules
remetiam os pedidos de vistos à Divisão de Passaportes do Ministério das Relações Exteriores
que, por sua vez, solicitava autorização para a concessão dos mesmos ao Serviço de Visto do
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Koifman (2007) analisou a documentação oficial
que gerou o decreto-lei 3.175 e o estudo sistemático de cerca de dois mil processos
remanescentes do acervo do Serviço indicam que o governo brasileiro, com a finalidade de
melhorar a composição étnica do Brasil, estabeleceu uma política na qual pretendia receber

213
Roquette-Pinto, Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
214
Correspondência de Renato Kehl a Oliveira Vianna. 11 out. 1935. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
196

grandes correntes imigratórias, desde que previamente selecionadas a partir de critérios


eugênicos.

Trabalhamos intensamente a hipótese da Reversibilidade da Degeneração Racial.215


Em torno dessa possibilidade agregaram-se os intelectuais de vertentes variadas. O que foi
isto? Um consenso no dissenso216. Tratava-se de planificar ao nível do Estado a formação de
uma grande nação e de reformar a raça nacional, fosse isso compreendido como povo, raça
biológica ou cor da pele. Nossa hipótese central afirma que a existência do campo eugênico
possibilitou a constituição e institucionalização de diferentes concepções e estratégias para a
tão esperada civilização brasileira. O eugenismo se constituiu por uma variedade estupenda de
intelectuais, agências e departamentos governamentais que formularam, organizaram e
tentaram implementar a eugenia no Brasil. Contudo, talvez seja necessário observar os limites
da efetivação desses projetos. O conjunto de idéias e práticas denominadas genericamente de
eugenismo nacional representou uma síntese (em constante transformação), de tendências
universais e particularistas, composta de atores, idéias e relações sociais.

Por meio dessa análise, estou criticando uma tendência que constata erros,
contradições ou ausências, onde, na verdade, existem conexões não compreendidas217. Os
discursos dos intelectuais não são contraditórios. Penso que muitos dos equívocos cometidos
por outros pesquisadores, que se aventuraram por essas zonas tempestuosas do pensamento
social e político, ocorreram devidos aos labirintos criados pelos autores estudados. Assim,
leituras que enfatizam demasiadamente as distinções da eugenia negativa, positiva ou
preventiva, estão baseadas em conceitos e argumentos criados pelos próprios objetos de
análise. Os agentes sociais estudados e seus respectivos textos são testemunhas. Os discursos
dos intelectuais tendem a serem mais críveis, e, portanto, fornecem mais dados, tanto quanto
nossas perguntas forem mais elaboradas. As diversas leituras sobre o caminho que deveria ser

215
Este conceito está em Patto (1999).
216
Os conceitos construídos e utilizados pelo sociólogo Bourdieu são interligados: Habitus, Campo e Consenso
no Dissenso. “Os agentes certamente tem uma apreensão ativa do mundo. Certamente constroem sua visão do
mundo. Mas essa construção é operada sob coações estruturais. E pode-se inclusive explicar em termos
sociológicos aquilo que aparece como propriedade universal da experiência humana, a saber, o fato de que o
mundo familiar tende a ser taken for granted, percebido como evidente. Se o mundo social tende a ser percebido
como evidente e a ser apreendido (...) é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é, as estruturas
mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são em essência produto da interiorização das
estruturas do mundo social.” (BOURDIEU, 2004: 157).
217
Quando não se compreende o nosso objeto de pesquisa, corremos o risco de continuar aceitando como
dogmas, interpretações superficiais, pesquisas mal feitas, explicações sem fundamentos, simplesmente porque
somos induzidos a ver o processo histórico segundo nossa vesguice teórica. Há uma tendência que interpreta os
intelectuais como pessoas especiais que produzem obras alheias aos conflitos e tensões sociais. Quase como
semideuses que passeiam por uma cidade das idéias distante da urbe real.
197

obrigatoriamente percorrido, com a desejada e planificada eugenização brasileira, fizeram


parte de um campo eugênico fortemente institucionalizado, cujos primórdios datam de
meados do século XIX.

4.3 Reversibilidade da Degeneração Racial

O novo momento era de crítica. Criticavam-se as elites políticas e


intelectuais por sua falta de consciência nacional. Por sua postura diletante,
por sua francofilia. A questão que se colocava era: como o Brasil podia ser
tão pobre e atrasado se seu território era tão rico? Se a culpa de tal situação
não era mais atribuída às raças e à mestiçagem –ainda que tal interpretação
persistisse –, quem então poderia ser responsabilizado e o que teria que ser
mudado? (OLIVEIRA, 1990:147).

No início do período republicano, um cidadão brasileiro requeria que se adotasse o


tupi como idioma oficial do Brasil. Seu nome: Policarpo Quaresma. Tocava violão. Queria
plantar feijão para salvar o país da miséria. Esse é o personagem central do livro de Lima
Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. Este escritor, nascido no Rio de Janeiro,
registrou com talento crítico o painel que se desenrolava na cidade. Espectador sensível das
posições nacionalistas que ganhavam força, Lima Barreto construiu anti-heróis para narrar
faces do processo que pretendia modernizar o país. Enquanto o público leitor de livros218 e
jornais comentava as descobertas das expedições empreendidas ao interior do país, este autor
seria um dos poucos a lembrar que, para além das discussões políticas e científicas, havia uma
sociedade e seus trabalhadores. Em artigo de jornal, publicado em 1918, encontramos suas
opiniões sobre o “problema vital”:

(...) trabalhos de jovens médicos como os doutores Artur Neiva, Carlos


Chagas, Belisário Penna e outros, vieram demonstrar que a população
roceira do nosso país era vítima desde muito de várias moléstias que a
alquebravam fisicamente (...) julgo que o doutor Penna tem razão, julgo que
ele e seus auxiliares não falsificam o estado de saúde de nossas populações
campestres. Têm toda a razão. O que não concordo com eles, é com o
remédio que oferecem.

Lima Barreto comentava a questão sob este prisma: “Em suma, para não me alongar.
O problema, conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de
natureza econômica e social.”(Barreto, 2004:457). Após estas palavras, podemos ver o
quanto seus comentários divergem do intelectual médico Renato Kehl. Sob o título Pais,

218
Pouco mais de 10% da população brasileira era alfabetizada.
198

Médicos e Mestres, Kehl, incansável propagandista da eugenia, publicou mais um livro sobre
os princípios eugênicos. Mais uma vez este esculápio receitava “remédios” para os males da
sociedade brasileira. Desta feita, articulando questões de saúde e de educação às políticas
governamentais, fez explícitas referências ao controle do Estado sobre o indivíduo, quando
afirmou:

Reconheço e não canso de proclamar a alta e imensurável função social do


médico. Platão disse que a humanidade será feliz quando os filósofos forem
reis ou quando os reis forem filósofos. Na minha opinião dever-se-ia dizer
que a humanidade será feliz no dia em que os médicos forem governantes ou
que os governantes forem médicos. (KEHL, 1939:68).

Tendo em vista considerações desta natureza, presentes no contexto político da época,


interessa-nos apontar mais algumas questões para reflexão em torno dos discursos de
sanitaristas e eugenistas.219 Já vimos que uma das principais marcas existentes nos textos de
Kehl era o seu pessimismo220 quanto ao futuro da nação brasileira. Para ele, a miscigenação
étnica estava conduzindo o Brasil para uma catástrofe. Assim, somente com procedimentos
eugênicos, que evitariam a continuidade da imoral e promíscua mestiçagem, o país poderia
tornar-se uma nação moderna e próspera. Defensor de exames médicos que autorizariam ou
não o casamento e a geração de filhos, Kehl alertava que qualquer das medidas eugenistas
poderiam ser inócuas para a constituição de uma espécie hígida. Por exemplo, para ele, a
esterilização deveria ser aplicada compulsoriamente e permanentemente nos criminosos e
degenerados, mas, sem descartar a possibilidade que esse universo fosse ampliado para outros
tipos de indivíduos identificados como degenerados:

Esterilização! Dirão muitos, admirados ou horrorizados! Como? Uma


operação? Isto é um absurdo! Entretanto, essa mesma gente, que se admira
ou se horroriza, não ignora que, para satisfazer caprichos repugnantes à
natureza, muitos representantes do sexo fraco submetem-se á esterilização
(...) e note-se isto não é de hoje.221

Renato Kehl afirmava a competência técnica dos médicos para efetuar uma seleção
eugênica, no momento histórico em que intelectuais dessa categoria reivindicavam uma

219
Os objetivos de eugenistas e sanitaristas dividiam-se em eugenia preventiva (controle dos fatores disgênicos
pelo saneamento), em eugenia positiva (incentivo e regulação da procriação dos capazes) e na eugenia negativa
(evitar o nascimento dos considerados incapazes).
220
“O fato de que o Brasil vinha conseguindo um branqueamento por meio da miscigenação era, para Kehl,
razão de tristeza, não de comemoração. Ele alertava contra os cruzamentos entre raças e classes, ao mesmo
tempo que desaprovava sua falta de preconceito racial e de classe”.(HOCHMAN e ARMUS, 2004: 369)
221
KEHL, Renato. Artigo publicado no O Estado de São Paulo, 07 jul. 1918. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
199

atuação política mais incisiva na formação social brasileira.222 Entre o final do século XIX e
os últimos anos da década de 1930, diferentes intelectuais brasileiros voltaram-se para a
questão da identidade nacional. Atribuindo-se uma missão patriótica, médicos e cientistas223
empenharam-se em conhecer o país.224 Havia uma expectativa de mudanças sociais e culturais
que mobilizava as camadas urbanas, identificadas e preocupadas com as condições para a
emergência de uma nova nação.

Partindo de uma visão da sociedade, eles não se omitiram em lutar por suas crenças.
Uma das questões centrais para esses homens foi o debate sobre as condições de existência no
Brasil. Observamos entre escritores, artistas e políticos, que havia um consenso sobre as
ameaças que pairavam sobre o Brasil e, como decorrência, forjaram-se interpretações e
projetos de mudança. Queremos refletir sobre esse consenso intelectual enunciado em
diversas reflexões, discursos e projetos políticos: o brasileiro é inferior. Portanto, por meio
das idéias, bastaria compreender e, posteriormente, modificar as condições de saúde do povo
brasileiro em busca da reforma do país. Naquela conjuntura, o cenário sanitário foi apontado
como muito grave e responsável pelas dificuldades que impediam as mudanças sociais
reclamadas. Essa constatação e as questões que ela suscitou podem ser apresentadas desta
forma: eugenistas e sanitaristas apresentavam uma solução original para a tragédia brasileira.
Mas, afinal, por que somos miseráveis e doentes?

Analisando as propostas formuladas por educadores e sanitaristas, entre os anos 20 e


40, relativas à saúde pública e educação higiênica, notamos que eles pretenderam salvar o país
construindo um novo brasileiro225. Para investigar e explicar esse diagnóstico, neste texto,

222
Já esclarecemos que além de ações como a esterilização, Renato Kehl defendia também o saneamento e a
educação como fatores que ajudariam a civilizar o país.
223
Herschmann utiliza um conceito impreciso para designar o tipo de cientista que atuava em vários ofícios: “Na
falta de um termo melhor que designasse estes intelectuais, utilizei este termo composto (cientistas-intelectuais).
A dificuldade de encontrar um termo apropriado para este agente social está fundamentada na atuação deste
especialista, que extrapolava a produção científica, realizando obras abrangentes, de cunho teórico, sociológico e
literário. A partir de sua especialização, de seu saber tecno-científico, eles ‘inventavam’ soluções para os
chamados ‘problemas nacionais’. Longe de propor uma definição de ‘intelectual’, considerei-o como aquele que
se reconhece e é reconhecido pelos outros como tal”. (HERSCHMANN & MESSEDER, 1994:46).
224
Estes intelectuais construíram representações sociais que pretendiam orientar os indivíduos em direção a um
mundo moderno e civilizado. Para realizar estas tarefas, eles organizaram conjuntos discursivos de variadas
formas. Assim, estes pensadores foram cientistas, poetas, médicos e educadores. E veicularam suas idéias a
respeito de raça, amor, sexualidade, doenças, economia e identidade nacional. Oswaldo Cruz, Belisário Penna,
Afrânio Peixoto, Carlos Chagas, Roquete Pinto, Renato Kehl, Nina Rodrigues, Clementino Fraga, Miguel Couto,
Miguel Pereira, Phocion Serpa e outros.
225
Lidamos com representações discursivas do imaginário social. Porém, isto não significa considerar as idéias
como ilusões da vida concreta. A propósito, Chauí e Franco definem que: “A produção das representações é uma
dimensão da praxis social tanto quanto as ações efetivamente realizadas pelos agentes sociais. Pensar e
representar são momentos da praxis tanto quanto agir, este e aqueles exprimindo, dramatizando ou ocultando uns
200

primordialmente, utilizamos os documentos produzidos e acumulados por Renato Kehl (1889-


1974) e Belisário Penna (1868-1939)226. Dentre tantos, estes dois intelectuais acreditavam que
o projeto eugenista, médico e educativo era capaz de justificar o saneamento dos corpos,
cidades e instituições, colocando o país no rol das nações ricas do mundo. Em outras palavras,
eles participavam de um intenso debate cultural e político, empenhando-se em intervir na
realidade, segundo a idéia predominante na época acerca da responsabilidade de modificar a
nação e seus cidadãos227.

Delimitamos nossa pesquisa entre 1917 e 1937. Se foi em 1917 que Renato Kehl falou
publicamente sobre o tema da Eugenia durante uma conferência feita na Associação Cristã de
Moços de São Paulo, vintes anos depois, ele consolidaria seu ideário, através de inúmeros
artigos, folhetos e, especialmente, lançando um pequeno livro, Por que sou eugenista? 20
anos de Campanha Eugênica, comemorando o movimento pela adoção das práticas eugênicas
no Brasil. Já comentamos sobre a presença na literatura que estuda a Eugenia no Brasil, da
afirmação de que a trajetória de Kehl teria sofrido uma inflexão no final dos anos 20. Com o
correr dos anos, teria havido uma crescente radicalização em torno da proposta eugênica
negativa. Nancy Stepan explicou esta mudança, em dois importantes textos228, onde a origem
européia de Kehl, ao menos tornaria possível essa nova realidade. Souza (2006) concordando
com essa autora, argumenta que as viagens do médico à Alemanha, no contexto do
crescimento do nazismo, justificariam a virada de Kehl em suas idéias. Essa mudança
representaria uma radicalização. Uma postura mais agressiva frente às propostas da eugenia
negativa. Ao longo do texto, estabelecemos uma discussão com essas afirmações. Também já
declaramos que consideramos equivocadas as interpretações porque as análises realizadas por
pesquisadores sobre eugenia se enredam nos discursos dos intelectuais investigados. Uma
mistura de conceitos entre analistas e objetos.

Souza (2006) afirma a existência de uma ruptura no pensamento do eugenista. Este


autor realiza uma excelente pesquisa. É um trabalho muito bem escrito. No entanto, discordo
de suas escolhas teóricas e metodológicas. O que não invalida a sua importante contribuição.

aos outros no movimento pelo qual uma sociedade se efetua como sociedade determinada”. (CHAUÍ &
FRANCO, 1985:09).
226
Ao longo do trabalho, um ator extremamente importante está presente: Monteiro Lobato.
227
Intelectuais médicos, identificados com o sanitarismo e o eugenismo atribuíam à ausência de saúde e
educação as causas dos problemas do país.
228
“Eugenia no Brasil, 1917-1940” In: Cuidar, Controlar, Curar. Ensaios históricos sobre saúde e doença na
América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004; A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
201

Em primeiro lugar, ele afirma que houve uma descontinuidade nas idéias de Khel, existindo
mesmo uma discordância ou mudança de direção das idéias eugenistas na trajetória desse
intelectual. Se assim fosse, teríamos que concordar que as ações características da eugenia
negativa foram incompatíveis com as idéias e práticas da eugenia positiva e preventiva.
Entretanto, observamos que a trajetória do eugenismo no Brasil e, também, na América Latina
e, até mesmo, em países como Espanha e Itália, foi marcada por relações conflituosas e, em
algumas ocasiões, amistosas, entre os intelectuais e suas propostas. Talvez, com a conjuntura
nacional e internacional mais favorável ao crescimento das idéias totalitárias, Kehl realmente
manifestou uma ênfase maior em relação à eugenia negativa. No entanto, ele nunca
abandonou totalmente a via positiva ou a preventiva. Ele radicalizou toda a sua política
eugênica. Fosse ela saneadora do meio ambiente, controladora dos genes e do sexo e
educadora dos indivíduos.

Assim, discordamos de boa parte dos autores que trataram do tema. Afirmamos que
embora seja verdadeira a informação de que, em diversos momentos, próximos a década de
30, o eugenista Kehl expunha um conceito menos amplo de eugenia, ele próprio, para
justificar esta atitude, declarava que nos primeiros tempos, era necessário convencer, de uma
maneira geral, as pessoas sobre as vantagens da eugenia. Daí a necessidade de afirmações
generalizantes, em que se incluíssem também a Educação e o Saneamento. Na conjuntura do
final dos anos 20, também declarava a existência de conceitos diferentes, a Eugenia e o
Eugenismo. O segundo conceito, contemplando as ações educativas e saneadoras. Todavia,
nosso propósito reside precisamente em estudar a coexistência das distintas “eugenias”229. Se
Kehl, durante vários anos, alertava sobre a necessidade da esterilização, conjugada à educação
e às aspirações do movimento sanitarista, que por seu lado pretendia até a reforma das
instituições230 políticas, onde está a virada? Se ele era favorável pela prática da esterilização
desde 1918, defendendo claramente a função regeneradora e enriquecedora da eugenia
negativa para a nacionalidade, não podemos concluir que, dentro do universo das idéias
eugenistas, Renato Kehl permaneceu coerente? Por que? Porque o campo eugênico
comportava a existência de idéias e práticas aparentemente inconciliáveis. Diálogo e tensão
marcavam as relações dos intelectuais eugenistas que viviam as contradições da sociedade
numa época determinada.

229
Sobre O Consenso no Dissenso, ver BOURDIEU (1999).
230
“Sanear o país significava, na ótica dos participantes do movimento, a recuperação da autêntica nacionalidade
ignorada pelas elites urbanas ou obscurecida pelo discurso ufanista predominante nos primeiros anos do período
republicano”. (BRITTO & LIMA, 1991:01).
202

A esterilização dá resultados na redução dos degenerados; estes resultados,


porém, não são imediatos e só se farão sentir após muitos anos de uma
execução perfeita e permanente (...) a esterilização é um auxiliar poderoso da
redução dos degenerados, mas isoladamente não resolve o problema da
eugenização da espécie (...) Em suma, para a melhora física, moral e
intelectual dos nossos semelhantes, é necessário lançar mão da esterilização,
sem prescindir, porém, da prática dos demais preceitos ditados pela eugenia
positiva, preventiva e negativa.

A citação anterior foi retirada do artigo “A Esterilização sob o Ponto de Vista


Eugênico” de Renato Kehl, publicado no periódico médico Brazil-Médico no dia 26/03/1921.
Este trecho retirado de um artigo de 1921 está exatamente igual na página 176 do livro
“Lições de Eugenia” de 1929, que segundo autores como Souza e Diwan, seria um marco da
radical transformação de Kehl. Durante os anos de doutrinação e tentativa de implantar no
país as idéias eugenistas, Kehl falava sobre os temas com uma tediosa repetição. Esta é uma
característica que é compartilhada por outros autores do mesmo período: a quantidade
numerosa de produções que são versões recicladas de outros textos. No caso do eugenista,
trabalhos que declaram a importância das três vertentes eugênicas estão presentes desde a
fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo até o final dos anos 30. Como podemos
analisar neste artigo publicado no jornal O Diário Popular, em 1919, onde ele afirmou que a
eugenia era:

(...) O estudo e aplicação das questões de hereditariedade, descendência e


evolução para a conservação e melhoria da espécie humana; o estudo e
aplicação das questões relativas a influência do meio, do estado econômico,
da legislação, dos costumes, do valor das gerações sucessivas e sobre as
aptidões físicas, intelectuais e morais; o estudo das ciências que se
relacionam com a eugenia; a divulgação entre o público de conhecimentos
higiênicos e eugênicos, para o bem do indivíduo, da coletividade e das
gerações futuras.231

Vamos buscar ajuda em Bourdieu232 mais uma vez. Em sua obra, analisando o
conceito de campo científico, esse sociólogo afirmou que em campos de pensamento
aparentemente homogêneos, os debates, as disputas pelo espaço científico e pela posse do
capital intelectual representam aspectos simbólicos contraditórios e similares. Para uma
parcela dos intelectuais brasileiros do início do século passado, a explicação para a situação
do Brasil estava nas características naturais do Estado e da sociedade. Nesse sentido, o país
vivia seus conflitos e crises políticas devido ao clima, ao meio físico-natural e à constituição

231
KEHL, Renato. Diário Popular, São Paulo, abr. 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
232
O conceito de Campo Científico compreende um espaço prenhe de conflitos e lutas por prestígio. Eugenistas
e sanitaristas, médicos ou profissionais de outras especialidades constituíram uma série de estratégias políticas
que tencionava ampliar o capital simbólico dos atores envolvidos. Ver o texto “O campo cientifico” In: ORTIZ,
Renato (org). Pierre Bourdieu. Sociologia. SP: Ática, 1983.
203

racial do povo. Segundo esses atores sociais, não possuíamos o desenvolvimento social de
outras nações porque a localização geográfica do país, o calor e a miscigenação com raças
inferiores tinham-nos tornados incapazes e indolentes. Para essa face do pensamento social
brasileiro não éramos uma nação. E nem seríamos. Este pensamento influenciaria, em parte,
os críticos autoritários da República. Alguns diziam mesmo que era uma crença pensar que o
regime republicano pudesse ser origem de uma nação, pois existiria um abismo entre o país
real e o país legal. Afinal, como trazer leis das outras nações, se o Brasil, nem era um país, era
uma terra abandonada. Para essa fração do pensamento social da época, influenciada pelas
idéias de intelectuais como Gobineau e outros, não tínhamos conhecido o progresso de outras
nações porque a miscigenação gerara uma população preguiçosa, indisciplinada e pouco
inteligente. Essa inferioridade biológica seria a causa da inadaptabilidade à sociedade
moderna e industrial. A responsabilidade dessa condição devia-se, principalmente, ao
cruzamento dos portugueses com as outras raças.

O Conde Joseph Arthur de Gobineau esteve chefiando a representação diplomática


francesa no Brasil, entre abril de 1869 e maio de 1870. Três livros editados no Brasil
reproduzem as cartas trocadas entre o Conde e o Imperador Pedro II, além de outras
correspondências233. O monarca e o ministro tornaram-se muito amigos. Aliás, esta amizade,
era a única coisa, que Gobineau gostava do país. Nessa correspondência, podemos averiguar
as impressões do Conde sobre o Brasil. Sobre a passagem dele pelo Rio de Janeiro, ele assim
narrou a seus parentes e amigos:

Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de
meter medo (...) Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos
casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto
que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes
baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto. (RAEDERS,
1997:39).

Autor do “Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas”, publicado em 1854,


Conde de Gobineau foi designado como ministro plenipotenciário de França perante a corte
do Brasil, na embaixada do Rio de Janeiro, a 19 de junho de 1868. Ele tentou evitar esta
nomeação, mas foi obrigado a aceitá-la, apesar de sua opinião contrária. Seu
descontentamento decorria, em primeiro lugar, da separação forçada da Europa e de sua
família e, em segundo lugar, das idéias e sentimentos que ele alimentava há muito tempo em
relação a qualquer tipo de população mestiça. Para ele, um povo mestiço era degenerado; que

233
Os livros são Raeders, 1938; Raeders, 1988; Raeders, 1997.
204

não conservava, nas suas veias, o mesmo sangue original que sucessivas misturas fizeram,
gradualmente, modificar o valor, em outras palavras, não mantinham a mesma raça que seus
fundadores. (GOBINEAU, 1937). Gobineau chegou à capital do Brasil a 20 de março de
1869. Numa carta a sua esposa, ele relatava que:

No mesmo dia de minha chegada, às 6 horas, o Ministro de Relações


Exteriores me enviou um de seus assessores para me cumprimentar e dizer
que o imperador desejava ver o Senhor de Gobineau no dia seguinte, as 2
horas, e que o Ministro da França lhe apresentaria mais tarde num outro dia,
suas credenciais; sem uniforme, não seria nada oficial”(RAEDERS,1988:
49).

Esse foi o início de uma amizade com Pedro II que se prolongaria até bem depois de
sua partida do Brasil. Mas seria, por outro lado, sua única ligação com o país: Gobineau
desprezava os colegas do corpo diplomático de outras nacionalidades e se limitava às estritas
relações oficiais com os do país. Esse intelectual tem sido considerado como o pai das teorias
racistas. Segundo afirmava, as civilizações eram arianas em seus princípios. Uma civilização
sem uma origem ariana não teria futuro, uma vez que, as raças inferiores, degeneradas, eram
incapazes de criação de uma cultura. Embora, ele próprio, não tenha definido o que era
exatamente raça ariana, a partir daí, acreditava-se que a superioridade da raça branca era um
princípio universal e científico, um fator capaz de explicar, por exemplo, as diferenças entrte
os povos. Assim, para ele, a desigualdade das raças humanas não era uma questão absoluta,
mas um fenômeno ligado à miscigenação degenerativa de uma pureza original. Essa teoria
funcionou como justificação ideológica da dominação européia sobre os continentes de
populações consideradas inferiores.

Es ahi unicamente donde se puede seguir, com suficiente exactitu, el


desarrolo de esta afirmación fundamental, según la cual los pueblos no
degeneram sino por efecto y en proporción de las mezclas que experimentan,
y en la medida de la calidad de estas mezclas. (GOBINEAU, 1937: 153)

Contudo, outras correntes nacionais também interpretavam o Brasil. Grosso modo,


podemos citar que além dos intelectuais que traduziam o país através da inferioridade inata,
onde os brasileiros estavam dominados pelo solo seco, calor inclemente, prejudicado pela
miscigenação dos índios, negros e portugueses, havia uma leitura ufanista234 do Brasil que

234
Encontramos no texto de Gobineau, uma descrição pormenorizada da visão da terra brasileira edênica, porém,
habitada por um povo ruim: “No hay ciertamente países más fertiles, ni climas más suaves que los de los
diferentes países de América. Allí abundan los grandes rios; sus golfos, bahias y puertos son vastos, profundos,
magnificos, numerosos. Los metales preciosos se encontran a ras del suelo, la natureza vegetal prodiga casi
espontaneamente los medios de exiostencia más variados, en tanto que la fauna, rica en especies alimenticias,
205

identificava valores positivos em vários desses aspectos. Além destas interpretações, o


movimento sanitarista deslocaria a questão nacional. Isto é, sem uma avaliação
positiva/ufanista ou negativa dos elementos nacionais, os médicos sanitaristas diziam ser
possível superar a miséria nacional, desde que as doenças fossem tratadas. Para este
movimento que congregou, além dos médicos, intelectuais de diversas atividades, o Brasil era
um grande hospital. Os brasileiros livres das doenças que depauperavam e sugavam suas
energias, produziriam tanto quanto os europeus. Posteriormente, depois de 1930, seria
divulgada a interpretação culturalista. Gilberto Freyre, seu principal representante, além de
abarcar a tese do Brasil doente e necessitado de tratamento médico, dizia que a mistura de
raças – e de culturas – era positiva e fundadora de uma nova civilização.

Todavia, a ênfase que era atribuída ao contraste entre o país real e o idealizado
materializava a existência de vários Brasis. Onde residiria a verdadeira identidade cultural do
Brasil? Nas cidades remodeladas segundo os padrões da cultura européia? Ou nos seus
subúrbios? Ou nos sertões abandonados? Nos Jecas ou nos Dândis? Como conciliar os
miseráveis analfabetos e doentes com os cafés, os cinemas e as grandes avenidas?

O sentimento de premência de se conhecer a realidade nacional é, sem


dúvida alguma, uma das cores mais visíveis nesse momento. A consciência
da existência de um Brasil desconhecido, de um lado, e a necessidade de se
substituir o que se considerava empecilho para este conhecimento, de outro
lado, imprimiam duas atitudes que se complementavam: a valorização da
terra e da ‘gente’ brasileira, de uma parte, e de outra, o combate aos
idealismos, aos artificialismos, aos estrangeirismos. (...) Assim, desde Os
Sertões, de Euclides da Cunha, a ânsia de conhecer a realidade nacional
passou a se constituir quase que num guia para a produção intelectual. A
palavra de ordem a ser cumprida por todos aqueles que ambicionavam influir
nos destinos do país poderia ser assim expressa: É preciso descobrir e
conhecer o Jeca Tatu: O Brasil é Os Sertões, é o Jeca Tatu. Somente a
descoberta da brasilidade do país verdadeiro fornecerá critérios para o
julgamento e para a reorganização do Brasil ‘formal’. (SADEK, 1978:81)

Ao longo do texto, estamos vendo a complexidade e a dificuldade em definir as


diferentes visões do país. Mas, de uma forma generalizada, as representações sobre o Brasil,
podem ser divididas em ufanista, crítica/positiva e crítica/negativa. A primeira identificando
uma corrente de intelectuais de começos do século XX, que supervalorizava os elementos
nacionais. Tudo que era nacional era positivo e belo. Os intelectuais ufanistas veriam os
pobres e enfermos como habitantes de um paraíso terrestre com rios, florestas e pássaros
divinos. Alguns, até mesmo enxergariam valores bons na escravidão. Os críticos dessa

oferece recursos(...) Todavia(...) es habitada, desde muchísimos siglos por tribos incapaces de la exploración,
siquiera muy mediocre, de sus imensos tesoros”. (GOBINEAU, 1937: 58).
206

corrente, diversamente, não veriam o Brasil como uma terra da promissão, mas sim como um
inferno de enfermidades e problemas. Todavia, agentes sociais críticos do Brasil e dos
brasileiros, também avaliavam que algumas características eram positivas. E buscavam
romper com as delimitações, criando condições para a transformação do Brasil em uma
grande nação. No entanto, não foi raro que intelectuais como Silvio Romero, Lobato e outros
transitassem pelas diferentes interpretações do país.

A preocupação com a descoberta do Brasil real tomou rumos distintos na produção


cultural do período. Alguns autores construiriam personagens envolvidos no cotidiano de
miséria, ignorância e doenças, degenerados pelas dificuldades do meio hostil. Outros,
seguindo Afonso Celso, autor do livro “Por Que me Ufano de Meu País”235, publicado em
1900, descreveriam um imenso país, de vastas terras; uma natureza exuberante, onde tesouros
jaziam à espera da ação do homem; uma floresta e um clima inigualáveis, enfim, um paraíso
terrestre. Os debates sobre a oposição entre o urbano e o rural, entre o país real e o jurídico,
convergiam para uma conclusão, a necessidade de se construir uma verdadeira Nação
Brasileira. Para os intelectuais influenciados pelos sanitaristas, o obstáculo das doenças que
emperrava o desenvolvimento social, seria superado ao proporcionar uma situação sanitária
ideal às áreas rurais. Dotar de novas condições de saúde pública e educação higiênica o
trabalhador rural era a meta a ser atingida para que se abandonasse a dicotomia entre o país
real e o jurídico/administrativo, para regenerar o símbolo do Brasil rural e abandonado, o Jeca
Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato (THIELEN & SANTOS, 1989). O Jeca era
marcado, no seu próprio corpo e comportamento, pelas marcas de improdutivo, apático e
submisso236. Simbolizava um Brasil e um tipo nacional a ser modificado e superado pela ação
e conhecimento dos cientistas e homens públicos.

A eugenia vinha assim qualificar a higiene como impositora de normas para


regular a vida social das populações urbanas, ampliando consideravelmente
aquele campo de atuação. Isso porque a eugenia se utilizaria de todos os
dispositivos já experimentados pela higiene, desde a ordenação do meio
ambiente até os padrões de habitação das diferentes classes sociais, atingindo
finalmente o que ainda restaria disciplinar: a espécie. (MARQUES,
1994:27).

A procura da verdadeira nação brasileira não esteve presente apenas na produção


literária ficcionista. O discurso científico também proporcionou ao debate novos argumentos.

235
Afonso Celso, neste livro, demonstra uma visão positiva do Brasil.
236
Lobato criticava as instituições políticas da Primeira República no primeiro Jeca. O Jeca era indolente.
Abandonado pelas instituições republicanas, o Jeca votava pelo cabresto dos “coronéis”.
207

Como transformar o Brasil numa Nação? Esta pergunta inquietante seria respondida pelos
cientistas, advogados, professores e engenheiros que elaboraram diferentes propostas para o
Brasil237. No âmbito desse trabalho definimos o movimento sanitarista como conjunto de
idéias e atitudes compartilhadas por intelectuais, médicos e educadores, nas quais está
presente o tema de construção da nação.238 Investigando as relações entre as idéias do
movimento sanitarista e o imaginário social, podemos identificar em que medida e quais
representações sociais orientaram as formulações políticas sobre educação e saúde, no
contexto das décadas de 1920 e 1930. A construção da nacionalidade e a superação da
realidade econômica e social encontraram respostas na melhoria da saúde da população e não
poderia ser explicada apenas por adversidades de natureza climática e/ou inferioridade racial.
A campanha pelo saneamento dos sertões239 desencadeada durante esse período foi uma ação
política desses intelectuais.240

Examinar as concepções que orientaram Kehl foi um dos objetivos deste trabalho.
Portanto, seus textos foram uma fonte privilegiada para a análise dos temas abordados pelos
intelectuais do período241. Essas obras dão um testemunho fundamental. Por meio de suas
análises e projeções – e de outros integrantes do campo intelectual emergente, foi difundida a
idéia de que o Brasil, por intermédio de reformas nas políticas públicas de saúde e educação,
transformar-se-ia num exemplo de nação. Frente às outras interpretações e diagnósticos do
Brasil, Renato Kehl adicionou propostas de ações eugenistas esterilizadoras que deveriam
integrar as políticas públicas, que levariam o Brasil a superar seu estado permanente de
miséria, onde as doenças eram uma constante. Em artigo publicado na Revista do Brasil,
Renato Kehl declararia seu conceito amplo de eugenia: “instruir é eugenizar, sanear é
eugenizar”; e ainda nas páginas desse periódico podemos acompanhar a lógica das idéias

237
Nomes como Roquette-Pinto, Afrânio Peixoto, Belisário Penna, Pacheco e Silva, Franco da Rocha, Arthur
Ramos e Nina Rodrigues estão merecendo a devida atenção. Nísia Trindade Lima lançou livro sobre a forma
com que “Os Sertões” foram representados pelos intelectuais brasileiros. Nele, a autora colabora na reconstrução
da trajetória desses perfis (LIMA, 1999).
238
Um estudo detalhado pode ser visto em Santos, 1985. Os estudos e pesquisas sobre políticas públicas do
período dividem-se em análises explicativas, algumas privilegiando as análises econômicas, demonstrando que
as ações de saúde pública representavam o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, outras afirmando o
aspecto simbólico e/ou político das ações, ou o caráter repressivo. Santos foi um dos primeiros autores a
demonstrar a dimensão simbólica destas políticas para a construção da nacionalidade.
239
Sertão podia significar qualquer lugar distante do centro político e administrativo do país.
240
Sobre os médicos sanitaristas ver BRITTO (1995); MACHADO (1978); LUZ (1982); COSTA (1985);
THIELEN (1991). Existe ainda uma bibliografia crítica e recente criticando os vários “modelos” ou tendências
de análise da história das idéias e práticas médicas. Sobre este tema consultar EDLER (1992) e REIS (1994).
241
Foram investigados os acervos pessoais de Roquette-Pinto, Belisário Penna, Renato Kehl, Oliveira Vianna, e
Arthur Neiva, além dos documentos do Congresso de Eugenia de 1929. Estes documentos estão sob a guarda das
seguintes instituições: Casa de Oswaldo Cruz, CPDOC, ABL, Casa de Oliveira Vianna e Museu Nacional.
208

eugênicas no Brasil242. Depois, Khel responderia aos críticos que o questionavam sobre a
amplitude do seu conceito de eugenia, declarando que no início da campanha eugênica, era
necessário arregimentar o maior número de seguidores.

Todavia, é extremante relevante, observamos a constante mudança das idéias


eugênicas sobre a produção intelectual de Belisário Penna, Renato Kehl e Monteiro Lobato
(1882-1948). Em vários livros, correspondências e manuscritos desses autores, podem ser
encontradas passagens de variadas tonalidades da teoria eugênica. Tânia Regina de Luca
ajuda-nos a esclarecer essas relações, na medida em que poderíamos pensar em contradições
no interior desses discursos. Afinal, a tese do movimento sanitarista não alterara a visão
racista sobre o homem brasileiro? De uma interpretação determinista para uma interpretação
sanitarista, o brasileiro, tido como ser inferior e inadaptável para a civilização não passara à
condição de vítima, um homem doente, sem saúde e sem educação. Mas, o que mudara? A
ciência da higiene não modificara a visão hegemônica sobre a incapacidade nacional para o
mundo moderno? Era ainda necessário o auxílio da eugenia? As ações sanitaristas e
educativas não salvariam das doenças o improdutivo homem brasileiro, antes considerado
perdido? Não. Apesar dessas mudanças, para uma fração dos intelectuais eugenistas, os
brasileiros continuavam carregando uma carga negativa em suas características hereditárias.
Como sanitaristas e eugenistas de todas as correntes conciliavam suas propostas? Segundo
Luca, o elo de aproximação e ligação entre essas diferentes leituras da identidade nacional e
dos males do Brasil era um ideal de sociedade:

(...) a uni-los estava a crença, de fundo neolamarquista, na transmissão dos


caracteres adquiridos, que permitia encarar qualquer melhoria nas condições
higiênico-sanitárias da população, nos hábitos alimentares, como um avanço
em termos de aperfeiçoamento genético.(LUCA, 1999:230).

Desta maneira, os novos conhecimentos higiênicos e eugênicos ofereciam uma saída


para a tragédia nacional. Estávamos realmente condenados pela pesada herança racial e
climática à eterna e imutável inferioridade social? Não. Os registros sobre as condições
sanitárias das populações do norte e nordeste, retratadas e reveladas ao público, ofereciam
novos argumentos: os tipos humanos, produtos da miscigenação étnica, eram indolentes e
improdutivos porque estavam doentes. Regenerar o Brasil e curá-lo, seria construir uma
nação. Para isso, portanto, a necessidade da conjugação do saneamento com a higiene
242
Consultar “Eugenia, Eugenismo e Educação” de Kehl (1941). Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
Sobre Renato Kehl ver “Apontamentos Historiográficos sobre a fundamentação biológica da Eugenia”, de
Casteñeda, Luzia Aurélia”, In: Episteme, Porto Alegre, v.3, n.5, 1998, pp.23-48. Sobre a política biológica mais
radical deste período, consultar SOUZA (2006).
209

individual, além da educação e da eugenia. O processo de descoberta do Brasil havia sido para
os políticos e intelectuais um retrato do Brasil. A existência do país pobre e doente era um
obstáculo à construção da nação. Mas havia uma esperança. Um novo diagnóstico e novos
remédios estavam no mercado das idéias: as viagens científicas haviam retratado o verdadeiro
país. Afinal, não se tratava de uma opinião e tampouco de literatura ufanista. O Brasil, sob a
lente do microscópio e da máquina fotográfica, transformara-se num laboratório onde se podia
alcançar a verdadeira identidade. A descoberta do país pela ciência apresentava uma saída
para o Brasil, pois, além de diagnosticar os problemas, indicava o remédio necessário. O
encontro da realidade nacional havia produzido uma saída. Era possível acabar com a
indolência! Como os intelectuais chegaram a essa conclusão? Já falamos que uma das
explicações está na repercussão que o relatório Penna-Neiva editado pelo Instituto Oswaldo
Cruz obteve. O texto estampava em “instantâneos cruéis” a miséria e as doenças de toda a
região percorrida. Indagados sobre a necessidade de construção de um poço de água limpa, os
membros da expedição comandada por Belisário Penna e Arthur Neiva obtiveram uma
resposta dos habitantes que indicava, sob uma determinada ótica, a eterna apatia e indolência
do homem brasileiro:

A água é detestável, salobra, extraída de poços (...) porque não se faz um


poço, revestido de pedra, e coberto, colhendo-se a água por meio duma
bomba? Não vale a pena, é a resposta. O povo já está acostumado com isso,
que não faz mal algum. (NEIVA-PENNA, 1999:191).

Para os intelectuais marcados pelo racismo científico do século XIX, a constituição


étnica do país era um obstáculo à construção da verdadeira e saudável nacionalidade. Era
intensa a influência dos teóricos desse pensamento como Gobineau, Agassiz e Le Bon
(Carvalho, 1999). Todavia, para os membros do movimento sanitarista, que criticavam o
determinismo biológico e racial, isto não era totalmente correto. Baseavam seus
conhecimentos do Brasil verdadeiro nas viagens científicas efetivamente realizadas, em
contraste com as diferentes idealizações do país. Com variados efeitos, diversas interpretações
do Brasil se sucediam, apresentando, em algum momento, uma visão otimista e, assim,
exaltando o país, ou uma visão pessimista e fatalista, originada nas teorias de inferioridade
racial. Mas, em oposição à literatura que exaltava ufanista e entusiasmadamente o sertanejo,
Penna e Neiva narravam o que haviam encontrado: a triste realidade dos sertões.

Concorrem muito para esse estado de coisas as falsas informações dos que
viajam por essas regiões, pintando em linguagem florida e imaginosa,
quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta. Nós, se fôramos
poetas, escreveríamos um poema trágico com a descrição das misérias, das
210

desgraças dos nossos infelizes sertanejos abandonados. A poesia das


paisagens e dos panoramas ficaria apagada pela tragédia, pela desolação e
pela miséria dos infelizes habitantes sertanejos, nossos patrícios. Aos nossos
filhos, que aprendem nas escolas que a vida simples de nossos sertões é
cheia de poesia e de encantos, pela saúde de seus habitantes, pela fartura do
solo e generosidade da natureza, ficariam sabendo que nessas regiões se
desdobra mais um quadro infernal, que só poderia ser mais magistralmente
descrito pelo DANTE imortal. (NEIVA-PENNA, 1999:222).

Duas décadas antes da interpretação de Gilberto Freyre, que tentaria substituir a noção
de raça pelo conceito de cultura, os sanitaristas consideravam possível transformar os Jecas
indolentes em valorosos trabalhadores. Para esses intelectuais, o problema não estava
totalmente na raça, mas, também em outros fatores, como por exemplo, na alimentação
deficiente e na falta de controle dos vetores transmissores das graves doenças endêmicas e
epidêmicas. Entretanto, os sanitaristas, ainda que tenham modificado a interpretação negativa
do Brasil, não abandonaram totalmente as crenças racistas e nem a opinião da incapacidade
para o trabalho dessas populações abandonadas. Portanto, o que havia sido alterado, era que a
condição pouco eficiente pudesse ser modificada. Através, primeiro, das ações sanitaristas,
depois, pela educação higiênica e, por fim, se necessário fosse, com o auxílio da eugenia. A
força de trabalho teria que ser aproveitada.

A crítica à visão deturpada do país encontra-se em vários trechos do relatório.


Segundo este importante documento, os habitantes do interior do país não eram fortes e úteis
camponeses. Mas, tampouco era um grupo humano totalmente inadaptável ao trabalho. Desde
que fossem tratados de suas doenças, poderiam produzir tanto quanto qualquer imigrante
europeu. Determinações como clima e raça cediam importância à doença como a causa
principal para os problemas nacionais243. Portanto, havia uma esperança para o Brasil. O
“problema vital”, como o denominou Monteiro Lobato, estaria na inutilidade da população
brasileira para o mundo racional, técnico e científico, apontando-se como as causas principais
dessa incapacidade, as terríveis doenças endêmicas. Depois de curados, esses doentes
poderiam salvar-se e o Brasil teria sua riqueza aumentada. Assim, era o discurso social desses
intelectuais.

243
Lobato não estava imune às crenças racistas e deterministas. Um dos poucos autores que conseguiu escapar
das influências do racismo científico foi Manoel Bomfim. A crença na degeneração do mestiço era dominante.
Acreditava-se nas potencialidades das raças puras. Branca ou negra. Mas, o mestiço não. Este era inferior. As
forças das novas disciplinas científicas surgidas no final do século XIX faziam com que todos acreditassem
nestas premissas. Afinal, como duvidar da “Ciência”? Imaginem, a recepção, com que Bomfim e outros autores,
que estão para serem recuperados pelos pesquisadores, foram recebidos. Contrariavam a opinião de sábios e
nobres europeus.
211

É habitual dizer, e nós mesmos já temos cometido esse pecado, que o povo é
indolente e sem iniciativa. A verdade, porém, é outra. A ausência de esforço
e de iniciativa dessa pobre gente é proveniente do abandono em que vive, e
da incapacidade física e intelectual, resultante de moléstias deprimentes e
aniquiladoras (...)(NEIVA-PENNA, 1999: 221).

Mais uma vez destaco que todas as estratégias foram formuladas para tornar a raça-
povo-nação, forte, branca, saudável e bela. No entanto, se a flexibilização das determinações
negativas sobre a mestiçagem como fato explicativo da miséria e da doença no Brasil, os
sanitaristas haviam feito, Gilberto Freyre tornaria a intensa mistura étnica um valor
extremamente positivo. Por outro lado, em relação ao valor dos mestiços, Roquette-Pinto e
Domingues apresentavam uma visão bastante otimista. Mas, quanto à incidência das doenças
mentais, restrição à imigração e uso da esterilização as opiniões desses intelectuais já não
ficavam tão cristalizadas. E, quanto às funções que a educação, no sentido mais amplo,
poderia desempenhar, tendiam a se alinhar com o maior número de intelectuais. Em relação
aos matrimônios, Kehl e quase todos os eugenistas eram radicais e sonhadores. Para o genro
de Penna, na almejada metrópolis futurista organizada segundo princípios racionais e
eugênicos, os casamentos seriam controlados pelo Estado e a geração de filhos autorizados ou
não pela ciência. E tudo decidido “como se resolvem formulas químicas”.

Tenho comentado que Kehl mostrou-se repetitivo em suas argumentações. Em relação


á esterilização, esta técnica sempre fazia parte das suas propostas visando a eugenização do
país: “De um modo geral, somos partidários da esterilização em casos de doença grave e de
miséria, devendo ser aplicada, compulsoriamente a certos criminosos e em certos casos de
degeneração hereditária somato-psiquíca” (KEHL, 1933:193). Em alguns momentos,
procurava diferenciar até os tipos de esterilização:

A) Esterilização de alienados e de perversos instintivos; B) esterilização de


grandes criminosos e de miseráveis; C) esterilização econômica, no caso de
casais incapazes de fornecer, pelo próprio esforço, os meios necessários para
garantir a subsistência e a educação dos filhos; D) esterilização social, afim
de reduzir as despesas progressivas que a coletividade é forçada a sustentar
com asilos de débeis mentais e inaptos ao trabalho, cada vez em maior
número; E) esterilização obrigatória, imposta por doenças mentais; F)
esterilização voluntária, praticada por indivíduos com doenças físicas, por
exemplo, em tuberculosos( mãe afetada e com lesão perigosa para ela, no
decurso da gravidez e do parto e para a sua progenitura), por mulheres após
repetidos partos, havendo perigo de vida, cuja morte deixara na orfandade os
filhos. (1933:195).

Problema Vital foi o título dado ao livro de Lobato. Originalmente, são artigos
publicados no jornal O Estado de S. Paulo. Trata-se de documento de maior interesse para a
212

investigação dessa rede de intelectuais e instituições. Nesta época, Lobato era um interlocutor
fundamental para os membros do movimento sanitarista. Ele mantinha intensa
correspondência com Arthur Neiva, Belisário Penna e Renato Kehl. A obra foi editada com o
auxílio da Liga Pró-Saneamento do Brasil e da Sociedade Eugênica de São Paulo. Scliar
(2003) manifesta uma surpresa ao constatar a participação de uma liga de eugenistas nesse
empreendimento editorial. Esse escritor indaga como eugenistas e sanitaristas (juntos)
ajudaram a publicar o livro? Scliar afirma um pouco estupefato: “(...) aos eugenistas, a
solução para os problemas dos jecas tatus estava no aperfeiçoamento da raça (às vezes pela
esterilização) e não no combate às endemias”. (SCLIAR, 2003: 252). Julgamos que, nossa
contribuição ao debate é exatamente demonstrar a articulação da educação higiênica, das
ações de esterilização e do combate às doenças para a formação de uma nação e um povo
educado, higiênico e forte. Mesmo o mais radical eugenista, como Kehl, favorável pelas
técnicas de esterilização de incapazes e criminosos, era também defensor do saneamento e da
educação higiênica. Tudo para transformar o Jeca apático e indolente em Jeca Bravo.

Expurgem-se-lhes dos parasitas, dêem-se-lhes calçados, proíbam-se-lhes de


acocorar de gorilas, – alimentem-se-lhes um pouco melhor do que os
animais de estimação e veremos o Jeca Tatu molengo se enfibrar, se enrijar,
se hominizar, tornando-se um Jeca Bravo, um Jeca Valente, um Jeca duro
como guarantã, ativo, trabalhador, corado, musculoso – forte em suma.244

Consideramos que, de maneira bem ampla e simplista, quase todos os intelectuais só


discordavam quanto às razões da inferioridade racial, mas quase todos reafirmavam esta
condição inelutável: os brasileiros são inferiores. O que era necessário fazer para superar essa
condição? O movimento pela reforma das políticas de saúde e educação exerceu um papel
crucial na construção da nação. A idéia da redenção nacional pelo
Saneamento/Eugenia/Educação ajudaria a definir e legitimar a função do Estado no campo
das políticas sociais. Assim, vários dos intelectuais contemporâneos daquela conjuntura
(1910-1940) passaram a considerar que, após a identificação da verdadeira condição social,
cultural e racial realizada pelo pensamento científico e médico haveria uma resposta: o ensino
de maneiras de viver e pensar orientadas pelas técnicas educativas, higiênicas e eugênicas.
Tarefas que seriam gerenciadas pelo Estado e conduzidas por cientistas e técnicos.

Inúmeras abordagens criticaram o caráter coercitivo das medidas impostas à sociedade


pelas políticas públicas de saúde. Com razão, muitas das ações implementadas pelo Estado

244
Conferência de Kehl realizada no Colégio Militar de Barbacena em 27 de Setembro de 1919. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
213

durante as primeiras décadas do século XX foram autoritárias e extremamente repressivas. No


entanto, é extremamente perigosa a generalização. Por exemplo, a fiscalização sanitária, ainda
que pouco eficiente, do comércio de carnes, procurando afastar os ratos e moscas, não me
parece que era uma “estratégia de controle social” das classes populares. Apesar da violência
presente nestes atos, eles faziam parte das políticas de atenção à saúde. Todavia, por outro
lado, não queremos negar a existência das classes sociais e tampouco ignorarmos o tratamento
desigual proporcionado aos cidadãos. É bastante evidente, após a leitura dos documentos de
época, da presença da visão dos trabalhadores como intrinsecamente maus e preguiçosos. Era
assim que se percebiam as “classes perigosas.”245

Em nossa análise, ínfimas particularidades marcavam os intelectuais do período


(1870-1930) que se propuseram a refletir sobre raça e identidade. Como vimos, alguns
fundamentavam a sua aversão pela sociedade miscigenada numa inferioridade dos mestiços.
Outros identificavam valores positivos no negro. Mas quase todos os exemplos (radicais ou
não) de pensamento social desejavam e pensavam numa maneira de branquear a cor, melhorar
a raça e tornar as atitudes sociais mais civilizadas246. Para Kehl, esse objetivo teria êxito, a
partir de três247 eixos estratégicos. Promovendo condições favoráveis à procriação eugênica
através da educação; evitando a reprodução dos degenerados e criminosos, porque esses
poderiam transmitir os defeitos morais, físicos e mentais aos descendentes, e por último, o
Estado adotando medidas profiláticas para o combate das enfermidades que fortaleciam os
fatores disgênicos (degenerativos) de uma saudável sociedade: a sífilis, a tuberculose e o
alcoolismo. Em suma, o projeto eugênico de Kehl, ultrapassava e englobava as ações
regeneradoras. E, se fosse possível, haveria de existir o controle através da esterilização.
Vejamos a seguir considerações suas a respeito:

245
Ver o artigo de CHALHOUB, Sidney. “Medo Branco de almas negras: escravos libertos e republicanos na
cidade do Rio de Janeiro” In: Discursos Sediciosos, número 1, 1996.
246
Sobre a articulação entre os ideais eugênicos e o racismo científico presente no pensamento social brasileiro
ver o livro de Vera Regina Marques. Neste livro a autora disseca o discurso médico acerca da eugenia e explica
que a eugenia no Brasil “... teria sua razão de ser, na medida em que reforçava a tese de não tomar as teorias
eugênicas ao 'pé da letra', mas adaptá-las ao contexto político-cultural daqueles tempos”.(MARQUES, 1994:63).
247
Fato observado por Magali Engel: “Vista como a ‘ciência do aperfeiçoamento moral e físico da espécie
humana, os objetivos da eugenia orientar-se-iam, segundo Kehl no sentido de estudar os meios pelos quais se
evita o abastardamento das raças, determinando as vias pelas quais se perpetua a geração de indivíduos sãos,
robustos e belos’. Tais objetivos seriam viabilizados mediante três eixos de atuação. Em primeiro lugar... por
meio da educação eugênica. O segundo ponto fundamental seria o de evitar a reprodução... dos degenerados –
loucos, vagabundos, criminosos... O terceiro eixo de atuação deveria compreender, ainda segundo Kehl, um
conjunto de medidas higiênicas que formuladas pelos médicos e viabilizadas por meio das leis, pelos
governantes, combatessem os fatores disgênicos, entre os quais algumas doenças – especialmente a sífilis, a
tuberculose e o alcoolismo.” (ENGEL, 2001: 170)
214

A esterilização destes milhares de degenerados e criminosos representa,


inegavelmente, um grande remédio para salvaguardar a sociedade contra o
aumento crescente dos indesejáveis lançados no mundo. O único defeito da
medida em questão é a dificuldade de ser praticada em larga escala de modo
a que seus benefícios se ampliem (...). Seria absurdo pretender que se
praticasse a intervenção em todos estes indivíduos (...) pretende-se apenas,
sob uma lei que circunscreva exatamente os casos, atingir os grandes
criminosos e degenerados; os indivíduos positivamente perigosos para a
sociedade. (KEHL, 1933:73).

A Educação e a Higiene por mais perfeitas que sejam, não conseguiram nem
conseguirão impedir a decadência. O otimismo infantil de tantos políticos,
pedagogos e filósofos que esperam estender as gerações futuras os
benefícios atuais de assistência social, do esporte, da higiene física, da
educação, etc, não é senão o exemplo típico da mais grosseira ignorância
biológica ou da falta mais completa de raciocínio. (1933:78)

Comumente, o conceito de Habitus de Bourdieu é explicado como um conjunto de


pensamentos, comportamentos e atitudes que se interligam simbolicamente e que dão ordem
ao mundo social. Ou seja, um conjunto de práticas e concepções características de um grupo
de agentes sociais. Os símbolos e as representações que dão sentido a sociedade são
partilhados pelos agentes que constituem, interferem e organizam a construção, difusão e
institucionalização dos sistemas simbólicos e as práticas sociais desses mesmos agentes.
Portanto, os textos de Kehl podem ser compreendidos como produções simbólicas da
construção da identidade nacional. São representações que acrescentavam significados às
ações humanas. A construção da identidade nacional brasileira não acarretou nada de
consensual ou pacífico. Envolveu uma série de disputas. No entanto, o poder não é um
exercício mecânico de dominação. Pelo contrário, ele é repressão e normas regulares de
convivências; assumindo, por vezes, ambas as facetas simultaneamente.

Tratamos de construções discursivas que organizavam um mundo social em intensa


transformação. Visões do Brasil, interpretações que proporcionavam sentidos às ações dos
homens. Algumas leituras sobre a identidade nacional identificavam o clima e a natureza do
país como privilegiados pela beleza e riquezas do solo. Outras explicitavam os problemas.
Surgiam interpretações baseadas na miscigenação racial imoral. Alguns ainda diziam que o
clima hostil e a localização geográfica geraram um arremedo fracassado de nação. De maneira
geral, as explicações sobre o Brasil atribuíam fatores hereditários que brecavam o
desenvolvimento que as nações do velho mundo haviam trilhado. Acreditamos, no entanto,
que muitas dessas diversas visões, embora diferentes, não eram antagônicas. Assinalamos,
que as interpretações do Brasil seguiam uma lógica própria. Embora a origem das diferentes
opiniões sobre os diagnósticos dos Brasil fossem as correntes de pensamento oriundas de
215

autores estrangeiros, eles assumiam um modelo brasileiro que era articulado com a hierarquia
social e a dinâmica da sociedade.

No Brasil, a preocupação com a miscigenação uniu-se a outros símbolos que eclodiam


no seio das preocupações dos intelectuais, indignados com o cenário encontrado pelos
sanitaristas em missões científicas pelo interior do país. A partir desse quadro, em um projeto
de modernização e reorganização do Estado, definiram-se formulações higiênicas e eugênicas
capazes de integrar o país, sanear as cidades, mudar os hábitos e transformar os indivíduos em
cidadãos educados. Esses discursos não foram privilégio de médicos e educadores.
Envolveram também engenheiros, políticos e juristas que participaram do movimento que
influenciou o imaginário social. O discurso que pretendia regular a sociedade estava
articulado a um determinado conjunto de práticas. Nesse sentido, seu objetivo era obter dos
indivíduos uma conduta racional frente às doenças. A estratégia do plano de educação e
regeneração social desejava enquadrar as atitudes sociais. Sua atuação transcendeu a
transmissão de conhecimentos médicos248.

Diante da sociedade revelada e diagnosticada, os intelectuais, médicos e homens da


ciência empenharam-se na construção de um mundo novo. Sonhavam com uma sociedade
organizada, cuja construção exigiria o planejamento de todos os espaços e de todas as relações
sociais. Nesta sociedade utópica, o discurso científico assumiria um status de verdade,
atribuindo-se um poder de organização da formação social. Esse discurso representou um
importante papel na criação do Brasil moderno e na produção de representações. Nessa
construção de uma sociedade organizada em função dos procedimentos científicos, o
cientificismo procurou apreender todos os aspectos da realidade social. Assim, a figura do
homem pobre e doente representaria o símbolo privilegiado das estratégias disciplinares. A
afirmação destes modelos justificaria a realização do sonho de uma sociedade formada por
indivíduos racionais e saudáveis. E esse sonho seria realizado, ainda que intrusos (vadios,
alcoólatras, criminosos) fossem expulsos do futuro paraíso. Para Kehl, os sub-homens
deveriam ser totalmente eliminados: mestiços, degenerados ou apenas indivíduos sem saúde e
sem educação.

248
Na tese não tratamos da eficácia ou aplicação das idéias eugênicas. Contudo, as práticas de esterilização foram
usadas como uma ação terapêutica. “... um certo Dr. Álvaro Ramos teria chegado a ponto de acatar o conselho de
Juliano Moreira, Diretor do Hospital Nacional de Alienados, e fizera a esterilização ‘eugênica’ de mulheres com
diagnóstico do desajuste sexual conhecido como ‘síndrome da perversidade”. (Hochman e Armus, 2004: 352).
216

A primeira condição será a eliminação paulatina dos sub-homens, isto é, dos


defeituosos, cacogênicos, e a supressão das causas blastofóricas,
esterelizando por um ato de vontade espontânea os portadores de maus
germes (células germinais), tudo fazendo para que os homens perfeitos,
felizes e sociáveis, se multipliquem cada vez mais. Parecerá aos leigos
impraticável semelhante processo selecionador, mas não aos que estudaram
os seus intuitos e fundamentos, aos cientistas que, com tenacidade e esforço,
multiplicam, as possibilidades, fundadamente racionais, respeitando os
princípios morais e sentimentais da época. Não será de realização fácil e
rápida com desejam espíritos impacientes, mas difícil e laboriosa, como
todas as transformações que beneficiam a humanidade, e que devem ser
realizadas, evolutivamente e não revolucionariamente.249

O melhor aproveitamento do trabalhador nacional, portanto, tinha sua solução


proposta por um amplo contingente de reformadores autoritários, ainda que alguns se
apresentassem como liberais. O que também não transforma esses intelectuais em inocentes
personagens.250 A raça passou a ser algo a ser moldado. A nova análise provocou um debate
sobre instrução pública e saúde pública. Queremos frisar que as idéias racistas, sem dúvida,
foram enfraquecidas em face das novas interpretações. Mas, isso não significou o abandono
das considerações demeritórias sobre a sociedade e seus membros: os brasileiros. O racismo
ao estilo dos sócios do clube de Gobineau perdeu força. Todavia, as idéias do racismo
científico foram, de certa maneira, reafirmadas quando se considerava que o branqueamento
do país poderia ser comprometido pela vinda de raças inferiores de outros países, fossem
negros americanos, judeus ou japoneses. A vinda de negros e judeus para o Brasil causava
reações as mais destemperadas. Em O Estado de São Paulo nos dias 11/10/26 e 6/8/29,
encontramos as seguintes frases: “O Continente americano não deve ser o logradouro onde se
despeje o que de ruim haja no Velho mundo”; “não constituem fortes elementos de
civilização, nem garantem à raça tipos aperfeiçoados física, mental e moralmente”;
“hospedeiro de raças decaídas, perseguidas ou infelizes.”251

Destacamos a importância do impacto provocado pela descrição dos sertões,


representado simbolicamente através da frase do médico Miguel Pereira: O Brasil é ainda um
imenso hospital.252 Esta afirmação, os “instantâneos cruéis”, os artigos de Kehl, Penna e
Lobato e a criação das associações – como a Liga Pró-Saneamento do Brasil e a Sociedade
Eugênica de São Paulo – foram marcos significativos. O discurso pronunciado por Miguel
Pereira, em outubro de 1916, representando o país como um imenso hospital, aconteceu

249
KEHL, Renato. O homem puro-sangue. A possibilidade da sua criação. 13 abr. 1923. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
250
Sobre as posições autoritárias dos intelectuais denominados de liberais no Brasil, ver SANTOS (1996).
251
Ver MOVSCHOVITZ (2001).
252
Uma narrativa deste momento está em HOCHMAN (1998).
217

durante a saudação ao professor Aloysio de Castro (Diretor da Faculdade de Medicina do Rio


de Janeiro), num contexto nacionalista próprio da época da Primeira Guerra Mundial. Miguel
Pereira atacava uma posição manifestada pelo deputado federal Carlos Peixoto, que declarou
a respeito da possibilidade de o Brasil entrar na Primeira Guerra Mundial que partiria aos
sertões para convocar os fortes e valentes sertanejos para defender o país no conflito.

A divulgação dada às condições dos sertões transformou o discurso ufanista sobre os


nossos caboclos guerreiros em motivo de acirrada polêmica. No entanto, se a frase de Miguel
Pereira gerou controvérsias, o debate sobre as condições sanitárias ganhou um público maior.
Afinal, quais seriam as verdadeiras condições de vida dos habitantes do mundo rural? O país
era um paraíso tropical ou um inferno verde? Por conseguinte, o caráter da identidade
nacional e a possibilidade de construção da nação foram questionados. A revelação do interior
pelas expedições científicas ajudou a repensar as interpretações vigentes. Após esse
diagnóstico, estávamos definidos. Éramos uma população de doentes, no entanto, poderíamos
ser resgatados ou regenerados com o auxílio da higiene e da eugenia. O camponês havia sido
representado pelo personagem de Lobato, o Jeca Tatu indolente. As razões para a
incapacidade sofreram uma modificação, após o contato de Lobato com a campanha pelo
“Saneamento do Brasil”. O desconhecimento do Brasil real e a adoção de modelos políticos
estrangeiros foram considerados como obstáculos para a construção da nacionalidade
brasileira. Os problemas nacionais resultavam do cruzamento da realidade com modelos
institucionais e políticos estrangeiros.

Segundo essas idéias, adotadas por pensadores identificados com o pensamento


autoritário e crítico dos desmandos e corrupção da Primeira República, era preciso dar fim à
mentalidade artificial das elites políticas com os olhos voltados para os outros países. Com
base no pressuposto de uma sociedade desorganizada e incapaz, essas interpretações iriam
conferir um papel central ao Estado. Ao expressarem um anseio de fortalecimento do poder
estatal, os intelectuais consolidaram um modelo de Estado. Muitos dos componentes desse
modelo estão presentes nas análises efetuadas pelos intelectuais eugenistas. Simplificando,
esses elementos podem ser enumerados. O predomínio do princípio governamental sobre o
privado, visão organicista e corporativa da sociedade, crença absoluta nas ciências, os
conflitos sociais são frutos de desordeiros e vagabundos. Em suma, os militantes dos
movimentos pela reforma da educação e saúde afirmavam a possibilidade de superar os
graves problemas mediante a intervenção do Estado.
218

As imagens do Brasil doente e analfabeto foram representações sociais utilizadas na


construção de um eficiente instrumento político e simbólico: a construção da Nação. A
campanha pelo saneamento não surtiu um efeito imediato e eficaz para a melhoria das
condições de vida das populações. Mas, a publicação do relatório ajudou na produção das
interpretações. Com o decorrer dos anos, a construção da nação permanecia como ideal a ser
alcançado. Era preciso reconstruir este país e os intelectuais, guiados pela força das novas
disciplinas que explicavam o mundo, haviam feito disto um projeto político. Para tanto, era
preciso conhecer o país. Seria este o verdadeiro retrato do Brasil: pobre e doente? Certamente
um triste retrato, no qual a razão científica não se reconhecia. O projeto de construção
nacional poderia assim ser resumido: a politicalha republicana deveria ser substituída por
homens capazes, tornando-se uma política científica, e não fruto de paixão ou interesse.
Teríamos então uma administração competente, pois de acordo com os princípios científicos.
As políticas públicas deveriam tornar-se um procedimento de laboratório. O Estado redefinia
sua face253 colocando-se como a garantia das condições de vida e de integração de toda a
sociedade. Essa era grande tarefa dos eugenistas e sanitaristas:

Não nos cansamos de repetir as frases: O Brasil será o Brasil de nossa


aspiração, será o grande Brasil de amanhã, quando nele se implantar a
consciência sanitária e cívica, quando todos os brasileiros souberam zelar a
saúde física e psíquica, quando todos os brasileiros, enfim, se tornarem aptos
para o trabalho e para a cidadania. (KEHL, 1929:207).

Ao analisarmos o pensamento social e a obra dos eugenistas, constatamos que em


paralelo às propostas de transformação da sociedade por meio de estratégias educacionais,
Renato Kehl e os demais agentes sociais, recomendavam que deveriam ocorrer outras ações.
Estamos falando, por exemplo, de exame pré-nupcial e esterilização. Durante as décadas de
1920 e 30, as idéias de formação de uma nova ordem social tiveram uma sofisticada
articulação de tendências.

Somos melhoristas, isto que dizer, que nos guiamos pela Eugenia, por essa
grande idéia do aperfeiçoamento incessante moral e físico dos nossos
semelhantes, pela progressiva regeneração enfim, dos mesmos, no presente e
dos seus descendentes no futuro. E como nós, é melhorista grande numero

253
Hegemonia armada de coerção, negociação, convencimento e consenso. A construção da identidade nacional
contou com canções aveludadas, mas também com muita pancada ou pelo menos com ameaça. Diz Sonia
Mendonça sobre Gramsci: “Para o filósofo italiano, a peculiaridade do estado Capitalista Ocidental de seu tempo
consistia no fato dele guardar um espaço de consenso – e não só de coerção – entre os grupos cujos interesses
faziam-se nele inscritos, consenso este entretecido e construído a partir dos sujeitos coletivos organizados nos
aparelhos privados de hegemonia – ou seja, antes de mais nada, na própria Sociedade Civil – bem como através
da ação do próprio Estado restrito, que igualmente promove e generaliza a visão de mundo da fração de classe
hegemônica”. (MENDONÇA, 2005:11).
219

de paladinos da eugenização que dia a dia vem se juntar às hostes dos deptos
do galtonismo.254

Concluindo, nas décadas iniciais do século passado, a eugenia ultrapassaria e


absorveria as idéias sanitaristas. Uma definição clássica para a eugenia seria um
aperfeiçoamento genético para a eliminação de traços defeituosos físicos e morais. No
entanto, intelectuais como Belisário Penna, Renato Kehl e Monteiro Lobato construíram uma
linha flexível entre higiene, eugenia e educação.

254
KEHL, Renato. “A Eugenia em São Paulo”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 03 mar. 1920. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
220

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os produtos desses caldeamentos heterogêneos são, indubitavelmente


inferiorizados. O mulato, por exemplo, é o produto da fusão de duas energias
hereditárias diversas, um produto da fusão de cromossomos quase
irreconciliáveis, e que só a benevolência da natureza permite a se
associarem.255

Uma pergunta se impõe: por que o tema da representação do Jeca Tatu256 e, por
conseguinte, da identidade nacional vem ganhando um lugar de destaque nas ciências sociais?
Um número impressionante de teses, artigos e palestras. Talvez porque venha cada vez mais
ocupando um lugar político em nossa sociedade. Há pouco tempo, os jornais de grande
circulação gastaram papel discutindo a presença de um tradutor nas viagens internacionais do
Presidente Lula. Ele domina apenas a língua portuguesa. Houve até uma charge ironizando a
dificuldade do próprio dirigente norte-americano George Bush no domínio da língua inglesa.
Satirizava dizendo que ambos (Lula e Bush) não falavam inglês. Pois não é que o nosso
Jecatatuzinho, após sua transformação de homem parasita e incapaz em próspero
empreendedor, teve entre suas mudanças justamente a aprendizagem da língua inglesa! Fala o

255
KEHL, Renato. Correio da Manha, 4 mar. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
256
O Jeca Tatu surgiu em 1914 num artigo escrito por Monteiro Lobato. Mas foram as charges que ajudaram na
popularização do personagem, a ponto de ele se tornar um reflexo da identidade do brasileiro da primeira metade
do século passado. Essa é uma das conclusões da tese de mestrado do sociólogo Márcio José Melo Malta. Este
autor investigou a presença do personagem na revista de humor político Careta. Ele pesquisou as edições
lançadas entre 1919 e 1960. O pesquisador constatou que o Jeca apareceu mais 500 vezes nas capas e páginas da
publicação. (MALTA, 2007).
221

Jeca: “— Quero falar a língua (...) para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu
professor dizia: — O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig!” (LOBATO, 1957: 338).

Parece que estamos sempre definindo a identidade de ser brasileiro. Uma identidade
muitas vezes criada a ferro e a muita pancada. Mas também com idéias e canções suaves.
Mas, afinal, onde estará nossa verdadeira identidade? Inúmeros intelectuais responderam a
essa questão, dentre eles, Renato Kehl, Belisário Penna e Monteiro Lobato. Somos uma
nação? Nas primeiras décadas do século XX, indagações semelhantes demonstravam uma
característica bastante relevante do pensamento social e político brasileiro da época. Momento
fundamental, pois trazia à tona a questão nacional. O horizonte intelectual daquela conjuntura
possuía fronteiras fortemente delimitadas. Havia uma sensação de inferioridade frente às
nações que viviam a era industrial. Não éramos uma nação! Como imaginar uma Nação
Brasileira olhando para a miséria, a doença e o analfabetismo? Uma possibilidade consistia
em, esquecendo das adversidades, assumir um ufanismo romântico. Outra atitude procurou
ver o país do prisma de suas doenças e problemas. Porém, naquele período, a pergunta que
incomodava era: Seria possível construir uma nação a partir deste Caldeirão de Raças?257

Entre o início do século XX e os últimos anos da década de 1930, diferentes grupos de


intelectuais voltaram-se para a questão da identidade nacional. Atribuindo-se uma missão
patriótica e científica, diversos atores sociais empenharam-se em criar um conhecimento
sobre o país. Construíram discursos sobre um conjunto de representações que pretendiam
orientar os indivíduos em direção a um mundo moderno e civilizado. Para realizar esta tarefa,
estes homens foram bacharéis, poetas, literatos, médicos e educadores. E pensaram e
veicularam suas idéias a respeito de raça, amor, sexualidade, doenças, economia, identidade
nacional e nação. Havia uma expectativa de mudanças sociais e culturais que mobilizava
diversos segmentos urbanos, identificados e preocupados em viabilizar as condições para a
emergência de uma nova nação. Partindo de uma visão cosmopolita do que constituiria um
modo de viver e compreender a sociedade, estes segmentos sociais não se omitiram em
expressar e lutar por suas crenças. Uma das questões centrais para estes grupos foi o debate
sobre a identidade e a forma de mudar as condições de vida dos brasileiros. Como conciliar os
miseráveis, analfabetos e doentes com os cafés, cinemas e as grandes avenidas? São perguntas

257
Ronaldo Conde Aguiar sintetizou esse sentimento de perplexidade frente à questão nacional da época: “Na
virada do século, porém, a questão nacional estava relacionada à seguinte indagação: era possível existir uma
nação brasileira constituída majoritariamente de negros, índios e mestiços, gente que a ciência importada – e
plenamente aceita pelo pensamento social e político dominante – dizia ser inativamente inferior e incapaz?”
(AGUIAR, 2000:503).
222

que os escritores, cientistas, médicos e políticos respondiam e que formavam a literatura e a


ciência daquela conjuntura.

Recentemente, alguns economistas e sociólogos nas TVs e jornais da grande imprensa


vêm analisando as crises sociais do país com um monumental desprezo pela vida das pessoas.
Parece que estão em algum frio e asséptico laboratório ou numa longínqua e exótica ilha dos
mares distantes, descrevendo costumes e atitudes. Por exemplo, atualmente, ocorre um debate
intelectual e político sobre as políticas de promoção à igualdade racial, em especial, sobre a
implantação de cotas nas universidades. Um número razoável de artigos têm surgido em
revistas científicas e jornais diários, procurando justificar as opiniões em confronto.
Partidários das iniciativas de inclusão social defendem a maior representação dos negros na
sociedade mediante o ingresso no ensino superior através de cotas. Para eles, as políticas de
ação afirmativas seriam respostas às desigualdades históricas vividas por tais grupos. De outro
lado, observamos argumentos que criticam essas medidas por estimularem a ‘racialização’ da
sociedade brasileira e, no limite, o próprio racismo. Os partidários desta perspectiva
argumentam que mudanças na qualidade do ensino básico e médio e/ou cotas por critérios
socioeconômicos poderiam propiciar o acesso de jovens pobres de origens étnicas diversas à
educação de qualidade e, conseqüentemente, a melhores condições de vida. Argumentos
históricos têm sido buscados por ambos os lados. Um livro ainda recente na literatura sobre o
tema merece alguns comentários. Diploma de Brancura, editado em português no ano de
2006 desempenha um importante papel nessa polêmica.

Nesse livro, o historiador porto-riquenho Jerry Dávila, além de contribuições – mesmo


que involuntárias – ao debate mencionado, faz um relevante estudo das políticas de educação
do Brasil entre 1917 e 1945, quando esta foi valorizada pelo ideário eugênico, para a
construção da nação brasileira. Dávila esmiúça a influência que a eugenia exerceu no
pensamento social brasileiro e como ela orientou a política educacional, marcando o cotidiano
nas escolas do Rio de Janeiro na primeira metade do século passado. Nos seis capítulos que
compõem a obra, encontramos uma profícua análise das instituições e dos intelectuais
empenhados em projetos que visavam tornar as escolas públicas acessíveis aos brasileiros
pobres e não-brancos. Entre os atores analisados estão alguns dos intelectuais brasileiros
daquele tempo: Anísio Teixeira, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Afrânio Peixoto e
Fernando de Azevedo.
223

O texto demonstra que no período entre as duas grandes guerras buscou-se formar
indivíduos saudáveis, produtivos e plenamente integrados, numa reação às concepções
deterministas que influenciaram os pensadores brasileiros, fazendo-os acreditar que a
população brasileira, em sua maioria, era constituída por homens degenerados, indolentes,
analfabetos e doentes. Assim, Dávila argumenta que as décadas iniciais do século passado
foram marcadas pelo esforço de muitos intelectuais em divulgar a eugenia, então considerada
como um antídoto para os males do país, através da publicação de livros, panfletos e da
organização de associações e congressos. A eugenia teria sido, então, uma tentativa científica
de aprimorar os indivíduos por meio do melhoramento de seus traços genéticos. Segundo as
teorias racistas que associavam degeneração à miscigenação, a união de indivíduos de etnias
diferentes produzia incapazes, degenerados, indolentes, ou mesmo com tendências para a
criminalidade. Isto porque, segundo os partidários da teoria da degeneração racial, os mestiços
recebiam traços muitos diversos e mesmo antagônicos dos seus pais de raças diferentes.
Portanto, essa herança racial diversa entrava em conflito ao se miscigenar, produzindo
indivíduos instáveis e incapacitados para a vida civilizada que exigia disciplina, trabalho e
ordem. Dávila argumenta que, diante dessa interpretação pessimista do país, uma ciência que
prometia aperfeiçoar a raça nacional logo alcançaria prestígio: o pessimismo racial seria
superado quando as práticas do eugenismo fossem adotadas. A Eugenia foi distinguida como
uma arma capaz de melhorar a raça e salvar o futuro do Brasil, encontrando entre educadores
e médicos seus mais importantes prosélitos.

Como poderíamos construir uma nação moderna diante desse quadro tão desalentador,
em que a miscigenação de raças inferiores era elemento explicativo para a nossa miséria?
Tínhamos um território potencialmente rico, mas ainda não éramos uma nação. Como vimos,
esta era a perspectiva hegemônica no pensamento social brasileiro até a década de 1910. No
entanto, essa visão determinista e negativa sobre o Brasil sofreria pequenas mudanças. Como
se explica tal reorientação? Que interpretação auxiliou a repensar o ‘improdutivo’ homem
brasileiro? A expedição científica pelos ‘abandonados sertões’ do Brasil constituiu, conforme
observamos, uma inflexão sobre o diagnóstico do país. A viagem de Penna e Neiva aos
rincões desconhecidos e o impacto causado pela publicação do relatório ajudaram a
transformar o paradigma interpretativo dominante. A esse respeito, Dávila corretamente
atribui um peso considerável à repercussão da epopéia para a revelação dos problemas do
Brasil. (DÁVILA, 2006:58). Segundo o historiador, dos médicos sanitaristas, ao negarem as
teses da indolência transmitida geneticamente, surgiram os remédios para o futuro venturoso:
224

a educação higiênica e as ações públicas sanitárias. Afinal, os Jecas encontrados por Penna e
Neiva nos locais mais recônditos do país, se não eram valorosos guerreiros, tampouco eram
inaproveitáveis.

Cotejando o pensamento social e político brasileiro, o professor da Universidade da


Carolina do Norte (EUA) comenta com sucesso o emaranhado de teorias que buscavam
explicar a real condição do ‘homem brasileiro’. Reorganizando as idéias que associavam a
herança negra à degeneração, médicos, educadores e formuladores de políticas públicas
passaram a considerar que, com reformas na saúde e na educação, poder-se-ia fugir da
determinação biológica, que afirmava peremptoriamente a inferioridade nacional, e constituir
uma raça saudável e um Brasil alinhado com o progresso. Como? Substituindo a noção de
‘degeneração herdada’ pela de ‘degeneração adquirida’ e, portanto, remediável ou, ao menos,
melhorada.

Dávila afirma que os eugenistas brasileiros se diferenciavam dos eugenistas de outros


países no grau em que levavam as idéias e práticas eugenistas para fora dos laboratórios de
genética e para dentro das políticas públicas. (DÁVILA, 2006:55). Portanto, o autor não
ignora a originalidade da eugenia em terras brasileiras. Indubitavelmente, no Brasil, como
venho demonstrando, coexistiam teorias que adotavam uma seleção racial capaz de
embranquecer a população, produzindo um tipo nacional pelas sucessivas miscigenações, com
teses de que o futuro eugênico seria resultado também do aperfeiçoamento das políticas
públicas de saúde e educação. Seguindo a perspectiva neolamarckista, que aceitava a
influência do ambiente na transmissão de características hereditárias, médicos e educadores
acreditavam que as reformas sanitárias aprimorariam a capacidade hereditária de transmitir
boa carga eugênica. Por exemplo, para eles, as campanhas contra o alcoolismo e as doenças
venéreas melhorariam a ‘raça nacional’. As condições do meio deveriam modificar-se para
que, transformando os indivíduos, os seus descendentes fossem beneficiados. A eugenia
brasileira, além de produzir homens saudáveis, pretendia também recuperar ou melhorar os
Jecas degenerados e, conseqüentemente, ‘salvar’ a nação.

Para tratar os produtos da degeneração racial, intelectuais e cientistas eugenistas


valiam-se da eugenia preventiva, positiva e negativa. A primeira, responsável por promover a
higiene individual, a educação e o saneamento do país. Julgando que a modificação das
condições ambientais levaria a uma capacidade genética superior, e que esta seria transmitida
aos descendentes, tal visão influenciou as políticas públicas no Brasil. Sob a perspectiva da
225

eugenia negativa os seres imperfeitos seriam eliminados através da esterilização compulsória,


sendo condenados a não gerarem descendentes. O aspecto negativo da eugenia não prosperou
no Brasil, ao contrário, na Alemanha Nazista, as práticas eugenistas chegaram às ultimas
conseqüências, o holocausto, e os Estados Unidos onde dezenas de milhares de pessoas foram
esterilizadas sem prévia autorização. No entanto, já ressaltamos que não é fato desconhecido
que experiências esterilizadoras foram realizadas nas colônias e hospícios. Essas operações,
geralmente eram realizadas em mulheres negras e pobres. Além disso, institutos de assistência
eugênica existiram no Brasil até a década de 70 do século passado, onde era realizado o
chamado exame pré-nupcial, sendo os futuros noivos desaconselhados a não casarem em
virtude de algum problema eugênico. Também, nesse âmbito, eram feitas as intervenções
cirúrgicas denominadas “ligaduras de trompas”, onde muitas das mulheres nem eram
comunicadas da operação258 realizada em seus corpos.

Assim, para os eugenistas, o objetivo de branquear a sociedade teria êxito, a partir da


promoção de condições favoráveis à procriação eugênica através da educação, da higiene e do
combate à reprodução dos degenerados e criminosos, porque estes poderiam transmitir os
defeitos morais, físicos e mentais aos descendentes. Também encontramos políticas eugênicas
nas propostas para que o Estado adotasse medidas profiláticas para o controle das
enfermidades que beneficiavam os fatores disgênicos (degenerativos) da sociedade, como a
sífilis, a tuberculose e o alcoolismo259. Já declaramos que é um risco acompanharmos, sem
uma devida crítica, os conceitos e explicações dos intelectuais. Em relação a este aspecto,
Dávila adota a distinção – muito presente nas pesquisas – entre os eugenistas ‘leves’, que
aceitavam a melhoria racial por meio da atenção à saúde pública, às influências ambientais e
aos valores culturais, e os ‘pesados’, que propunham a eliminação de características
degeneradas por meio do controle estrito da reprodução humana:

Os eugenistas ‘leves’ aceitavam a melhoria racial por meio da atenção à


saúde, influências ambientais, valores culturais e circunstâncias de
reprodução. Os eugenistas ‘pesados’ não aceitavam a modificação de traços,

258
Entre 1956 e 1975, existiu na cidade do Rio de Janeiro, o Serviço Municipal de Eugenia. O objetivo do orgão
consistia em realizar exames pré-nupciais para obtenção de “filhos sadios e famílias equilibradas”. Também
eram feitos exames pré-natais e pós-natais. Criação e inspiração do político Wilson Passos, o “Instituto de
Eugenia” era freqüentemente acusado de realizar a operação para “ligadura de trompas” sem comunicar o fato às
pacientes.
259
“A sífilis é a principal causa da fealdade infantil; ela inicia sua ação cacogênica com a formação do ovo,
durante a vida embrionária e fetal”. Renato Kehl em ‘O cupim da Raça’. Em 21/10/1923. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
226

e se concentravam na eliminação de traços indesejáveis por meio do controle


da reprodução. (DAVILA, 2006: 53).

Identificado o baixo nível educacional do país como causa da pobreza e das doenças,
uma proposta para superar os obstáculos que dificultavam a entrada do Brasil na civilização –
momento da evolução que os outros países experimentavam – seria a difusão da educação.
Pretendeu-se fazer da escola, portanto, o centro irradiador da moderna nação. E regenerar a
raça nacional pela educação passou a ser um dos pilares do discurso eugênico, que entendia
ser necessário instruir o povo, pois somente a educação conduziria o país à condição de nação
moderna. Todavia, Dávila argumenta que, mesmo com a absorção dos negros nas escolas, a
ascensão social de afros-descendentes e membros das classes populares não ocorreu. O
historiador porto-riquenho explica o fato demonstrando que embora participantes na educação
pública, os alunos pobres e não-brancos foram tratados pelo sistema educacional como
deficientes. O autor afirma que esses alunos não foram excluídos, recebendo dos
administradores da educação pública a oportunidade de participar da expansão educacional
ocorrida nas primeiras décadas do século XX. Mas, paradoxalmente, pobres e não-brancos
teriam sofrido constrangimentos que limitaram sua presença nas escolas, reproduzindo a
posição subordinada dos negros e mestiços na sociedade brasileira.

Dávila argumenta que houve uma reorganização de estratégias mantenedoras da


distância social entre as ‘raças’, impedindo que a desigualdade fosse alterada, ainda que
procedimentos para a superação das barreiras tenham sido criados. Neste ponto, merece
destaque a análise de Dávila sobre os testes psicológicos. Ele explica que os procedimentos
para aferir capacidades de aprendizagem ficaram diluídos numa política de isolamento racial.
De antemão, esperava-se um mau desempenho das crianças das camadas populares. Por meio
desses medidores de inteligência, como a Escala de Binet (também chamada de Teste de Q.I.),
eram atribuídas distinções entre os alunos, estabelecendo rótulos como ‘não inteligente’,
‘rebelde’ ou ‘imaturo’. Acabava-se perpetuando e institucionalizando pressupostos de raça e
classe. Para Dávila as políticas escolares integravam e segregavam ao mesmo tempo. Para ele,
isto era uma incongruência porque reforçava diferenças inerentes à hereditariedade.

Ao final do século XIX e início do XX, a fé no progresso como caminho inevitável da


humanidade, manifestava-se em diversos campos. Ao longo de conquistas de novos espaços,
reproduzindo as conquistas coloniais do século XV e XVI, o mundo assistia entre impávido e
extasiado, o nascimento de novos discursos que afirmavam a dominação do homem sobre a
natureza e a sociedade. A Eugenia, nascida dos esforços de intelectuais, como Francis Galton,
227

Victor Delfino (Argentina), Charles Davenport (EUA), Kehl e demais, apresentou-se como a
possibilidade de aperfeiçoamento e controle da espécie humana. Os primeiros eugenistas
acreditavam que existia uma evolução natural da raça humana, mas o homem poderia através
da ciência, no caso, eugênica, acelerar e dominar este processo, tornando-o manipulável aos
desígnios humanos. Em uma época marcada por profundas transformações técnicas e sociais,
em que a industrialização e a urbanização traziam problemas sanitários, a eugenia afirmava
que a condição precária dos trabalhadores operários resultava da uma incapacidade -adquirida
ou não -em se adaptar a evolução da espécie. Como solucionar? Quais as medidas propostas
pela eugenia? Seus propagandistas afirmavam ser positiva a educação sexual dos jovens,
visando o casamento dos devidamente autorizados a uma procriação sadia e proveitosa. Do
mesmo viés, consideravam preventivas sob o ponto de vista eugenista as medidas combativas
de vícios morais, como o alcoolismo, ou doenças, como a sífilis e a tuberculose, e por fim, os
intelectuais eugenistas definiam que restringir a união sexual ou esterilizar eram medidas
negativas.

(...) a humanidade é extraordinariamente alterável e, portanto, melhorável,


desde que as condições de vida sejam modificadas(...) a biologia, por si só,
não permite prever nada em relação com o futuro humano (...) o progresso
condiciona novos surtos humanos mas, ao mesmo tempo, traz consigo a
proteção aos incapazes. Prometeu, dando o fogo à humanidade, concorreu
definitivamente para a conservação dos débeis. A vacinação enche o mundo
de gente fraca. (ROQUETTE-PINTO, 1982: 54).

A Vacinação enche o mundo de gente fraca! Esse é um aspecto pouco notado pelos
estudos que analisam a eugenia. No decorrer do crescimento e desenvolvimento das lutas
sociais do século XIX, cresceram as leis para proteger os trabalhadores. A eugenia, para os
intelectuais eugenistas, surgia para corrigir os desvios desse processo. Os fracos estavam
sendo “salvos” e a eugenia tentaria fazer com que eles não nascessem. Se nascessem, suas
vidas seriam controladas. Os fracos e degenerados (criminosos, loucos) deveriam ser
encarcerados ou vigiados e não poderiam ter filhos. A sociedade precisaria adotar regras para
impedir que fatores disgênicos progredissem. Os eugenistas argumentavam que a origem e a
necessidade da eugenia estavam no desenvolvimento e conquista dos direitos sociais ao final
do século XIX. A explicação sob o ponto de vista eugenista era que o processo de seleção
natural eliminava os indivíduos menos adaptados. Com o surgimento cada vez maior de leis
de proteção social (Assistência Médica, Filantropia, Previdência Social) os degenerados de
todos os tipos, alcançavam uma sobrevida. Isto acarretaria uma série de problemas. Afinal,
para os intelectuais alinhados com este pensamento, a ajuda dos mais fortes, belos e saudáveis
228

aos necessitados só prejudicaria o progresso da raça humana. Sobre este ponto de vista cruel,
Khel era, sem dúvida, uns dos mais radicais. Como podemos ver em vários trechos de sua
obra, passagens com o seguinte teor:

(...) o número de medíocres, de débeis mentais, de incapazes, de cacoplastas,


em suma, cresce, de modo assustador, afligindo, constrangendo, quase
esmagando a parcela boa e progressista da humanidade. Se a lei inexorável
da luta pela vida ainda se impusesse, completamente, sob a qual sucumbem
os fracos e triunfam os fortes, a maior arte dessa residualha, que vem
surgindo clandestinamente, violando os preceitos da boa geração, estaria
condenada a perecer logo nos primeiros lances da áspera peleja. Tal,
infelizmente não acontece, não mais se podendo contar com a seleção que
outrora constituía o crivo eficaz contra os indesejáveis e que agora
sobrevivem em grande número para sofrer e para sobrecarregar os elementos
úteis e produtivos. (KEHL, 1933: 35).

O eugenismo não foi um discurso isolado e monolítico. Tendo sido incorporado por
diversos movimentos sociais, dividiu-se em múltiplas correntes. Vários eugenistas viam como
prejudicial à sociedade o avanço das leis de proteção social, assistência médica, previdência e
qualquer política ou ação de alcance assistencial. Tais iniciativas, segundo esses eugenistas,
diminuíam o rigor da seleção natural dos homens, permitindo a sobrevivência dos menos
aptos para a vida. Seres incapazes, que em outros tempos da história humana, sem as ações
filantrópicas, uma ajuda equivocada da sociedade, teriam perecido. Por meio dessa análise, o
desenvolvimento das leis de proteção era ruim para a humanidade, pois permitia que
elementos incapazes sobrevivessem. Pelas idéias e normas eugênicas mais rígidas, os
indivíduos considerados impróprios para viver e procriar, não deveriam receber nenhum tipo
de ajuda. Indivíduos sãos não deveriam ajudar os doentes. Sob o ponto de vista da eugenia:

A filantropia mal orientada é um fator de viciação, de indigência, de


degradação social. Infelizmente, via de regra, procura-se tudo favorecer aos
medíocres, aos doentes, aos incapazes, que por isso conseguem vencer, em
prejuízo da parte boa, sacrificada pela concorrência desleal
‘filantropicamente’ estabelecida pela sociedade(...) Impõe-se, pois a
sociedade o dever de orientar melhor a sua filantropia, afim de não agravar a
mediocrinização do gênero humano(...).Como medida fundamental,
portanto, deve-se esforçar para que a filantropia se torne seletiva e não
contra-seletiva, como ora se apresenta. (KEHL, 1933: 227)

Dessa maneira, o equilíbrio estável da humanidade estava comprometido. As


alterações da natureza faziam que a sobrevivência do mais forte funcionasse como uma
seleção dos mais aptos. A sociedade estava sofrendo de um mal que era o assistencialismo.
Seguindo esse pensamento, a mistura de raças também era condenável, dado que ocorreria
uma contaminação com partes ruins. Entre as primeiras leis do estado nazista figurou a
229

proibição de uniões entre representantes da raça ariana e os judeus. Kehl, muitas vezes,
criticaria as ações de filantropia, previdência e assistência social. De maneira geral, os
eugenistas achavam que a caridade ou qualquer ato ou política social semelhante, contribuiria
para a manutenção dos doentes, criminosos e vadios.

Admitindo artifícios, inventando recursos salvadores, multiplicando


filantropias contra-seletivas, a civilização quase sacrificou os propósitos da
seleção natural, sem dúvida ditados pela necessidade imperiosa da espécie.
À proporção que o progresso avança, maiores as condescendências, maiores
as protelações. Os fracos, os degenerados, protegidos pela generosidade
social (aliás, louvabilíssima), são na maioria poupados. Essa protelação
implica, entretanto, no amontoado de resíduos humanos que não são
eliminados a seu tempo. Daí o nosso planeta apresentar-se, no presente
século, pejado de elementos nocivos e de pesos mortos que impedem a vida
normal da sociedade humana. (KEHL, 1933: 36)

De uma forma ampla, os eugenistas mais radicais tendiam a diferenciar-se dos


sanitaristas e demais membros do campo. Geralmente, consideravam as propostas originárias
fora do campo eugênico medidas insuficientes para a redenção do Brasil. As políticas de
reformas urbanas e educacionais não agradavam totalmente. Achavam que essas ações
isoladas não modificariam as condições e modos de vida da sociedade, porque provocavam
desarranjos na seleção natural. Melhorar a vida dos grupos degenerados era, de certa forma,
para o eugenismo “radical”, incentivar o “mau” exemplo. Um estímulo à degeneração. Uma
ameaça ao progresso humano. A multidão representava a escória. Isso não quer dizer, que as
reformas não fossem bem vindas. Afinal, era necessário erradicar as fontes das doenças. As
habitações operárias e os hábitos e costumes das classes trabalhadoras eram, quase sempre,
identificados como a origem das enfermidades. Além das demolições das moradias populares,
eram feitas dragagens de rios e lagoas. Mas, para os agentes do campo eugênico, que essas
providências fossem tomadas em concomitância à criação de restrições a entrada livre de
imigrantes no país, ao estabelecimento de leis para a esterilização compulsória dos
degenerados e criminosos, a divulgação do valor da educação higiênica e a exigência de
exames pré-nupciais para a realização de casamentos e geração de filhos.260

(...) o fato natural é o esmagamento dos fracos. O fato social é a proteção dos
fracos. Pelo estado social, acha-se, pois, viciada a grande lei de seleção que
representa, essencialmente, a sobrevivência dos fortes. Eis, porém que surge
uma nova e genial concepção para corrigir os efeitos da viciação do fato
social, da proteção dos fracos, sem que se torne necessário persegui-los por

260
Havia um alegado sentimento humanitário. As ações eugenistas eram justificadas como benéficas para toda a
humanidade.
230

meios draconianos, contrários aos sentimentos de humanidade. (KEHL,


1933: 67).

A multidão, este novo personagem político das cidades urbanas e modernas,


reclamando direitos era uma ameaça. Provocava medo. Muitas das conquistas sociais vinham
das reivindicações sociais e trabalhistas. O atendimento de um bem estar social e político
surgiu derivado das pressões políticas para responder as demandas da população proletarizada
e urbanizada. Assim, emergiram organismos e serviços estatais de “assistência social”. Diante
desse quadro, os eugenistas não aceitavam que o Estado amparassem (sem selecionar) as
massas crescentes dos “parasitas”. Era necessário eliminar o fardo social, que sobrecarregava
o estado e, além disso, era necessário promover os nascimentos daqueles que elevariam a
produção da sociedade.261

Na verdade, nem só de greves operárias se constrói a imagem da ‘ameaça


urbana’ em São Paulo do início do século, mas também de epidemias, de
levas de forasteiros, negros libertos com sua pobreza exposta, ladrões,
prostitutas, jogadores, bêbados, escroques, aventureiros, pobres amontoados
nos cortiços, crianças abandonadas pelas ruas, desordeiros de todos os tipos,
biscateiros, mendigos e todas as rubricas componentes das ‘classes
perigosas’ que povoam as ruas da cidade. (CUNHA, 1986: 40).

Diante da população emancipada da escravidão, a explicação que buscava entender a


sociedade por meio de justificativas científicas, atribuiu uma base genética inferior aos
brasileiros de origem africana. Muitos dos intelectuais na virada do século XIX para o XX
diziam, inclusive, que a debilidade e fraqueza biológica dos negros conjugada à miscigenação
eram bem vindas, pois assim, o elemento inferior desapareceria. A parte boa da miscigenação
prevaleceria. O campo eugênico brasileiro encampou a “ideologia do branqueamento”. A
mestiçagem aliada com a imigração seletiva levaria ao embranquecimento da população
brasileira e a depuração da raça. Ao longo das décadas de 20, 30 e 40, as propostas de cercear
qualquer imigração não-branca para o país -alem de outros constrangimentos étnicos e de
classes - acabaram por resultar em leis. Nesse contexto político e intelectual, a constituição de
1934, além de mencionar a educação eugênica (o que não significou muita coisa em termos
concretos), trazia a regulamentação das cotas para os imigrantes. Com base no número de
imigrantes nos anos anteriores, dever-se-ia obedecer a um percentual de 2% para cada
nacionalidade. Com isto esperava-se restringir a entrada de elementos racialmente
desfavoráveis para a garantir a homogeneidade do povo brasileiro. Assim, justificava-se a
criação de mecanismos impeditivos a entrada de judeus ou de grupos que, sob o ponto de vista

261
Desde Galton, os intelectuais eugenistas alardeavam o perigo de que “as elites” procriavam menos que as
classes pobres, portadoras de características degenerativas.
231

hegemônico, poderiam comprometer a unidade e a identidade da nação. Indivíduos com


tendências políticas, religiosas ou nacionalidades de “difícil” adaptação ao país foram
considerados inapropriados.

Em fins da década de 1930, um fato ocorrido em torno de uma escultura, ajuda-nos


a entender as vicissitudes do pensamento social nacional. O Ministro Gustavo Capanema
procurando materializar a imagem ideal do homem brasileiro encomendou uma obra a um
escultor. Esse monumento deveria ficar em frente ao majestoso prédio do Ministério da
Educação e Saúde Pública. Para Capanema, o edifício do Ministério era a prova de que o
Brasil estava encontrando sua verdadeira identidade, colocando-se como um país do futuro,
abandonando o passado.262 Não era mais uma nação fraca. Assim, a estátua representaria
alegoricamente a redenção do brasileiro. Significaria que a educação e a saúde haviam
transformado definitivamente os Jecas. No entanto, há alguns acontecimentos interessantes
sobre esse fato. A primeira escultura foi recusada. Mostrava um homem mestiço e com uma
barriga grande. Nada lembrando um grego de músculos fortes e belos. Mas, afinal qual era a
real imagem do brasileiro? E qual seria a representação ideal? Éramos feios, doentes e
mestiços? Na verdade, a obra apresentada era quase uma homenagem ao Jeca. O escultor
Celso Antonio afirmou: ao olhar para o Brasil era aquilo que ele via.

Um inquérito foi formado. Os intelectuais e cientistas dariam sua opinião. Roquette-


Pinto, então diretor do Museu Nacional, respondia em nome do Estado e da Antropologia.
Desaconselhava a escolha de um tipo racial que, na sua opinião, desapareceria. Em vez disso
a figura deveria ser, para Roquette-Pinto, um branco de expressão mediterrânica. Assim,
estaria representado o tipo que para ele era “a evolução morfológica dos outros tipos raciais
do Brasil.”263 No mesmo tom, seguiriam Oliveira Vianna e outros. No seio das diferenças
existentes no campo eugênico intelectual brasileiro, em determinados momentos, critérios de
cor e comportamentos interfeririam nas formulações de um país ideal.

(...) uma multidão de indivíduos inadaptáveis e inadaptados ao meio e a


época em que vivem, a turbulência, a agitação, as idéias anti-sociais, o
embate entre prosélitos de um radicalismo anárquico e da ordem nacional, a
loucura coletiva, explodindo aqui e ali sob a forma de greves ou de
retaliações políticas; daí em suma, a acentuada degradação moral (...).
(KEHL, 1933: 66).

262
Carta de Gustavo Capanema a Getulio Vargas. 14 jun. 1937. (LISSOVSKY e SÁ, 1996: 224).
263
Carta de Roquette-Pinto a Capanema. 30 ago. 1937. (LISSOVSKY e SÁ, 1996: 226).
232

No mesmo período da construção da estátua, o médico Renato Khel, em livros e


jornais manifestava repulsa com as atitudes e comportamentos dos habitantes da cidade do
Rio de Janeiro. É de se supor o nojo com que os intelectuais médicos crentes da superioridade
do homem branco, ou “embranquecido” pelo conjunto formado pela Esterilização, Educação e
Saneamento, ou seja, a Eugenia como a estamos descrevendo, que deveria ser o alicerce moral
da nação, viam aquela população de um milhão e meio de habitantes. Brancos pobres,
mestiços, negros recém-saídos da escravidão e dos campos, desempenhando tarefas simples.
Com baixa qualificação profissional, mulheres e crianças trabalhavam nas mais diversas
ocupações e recebiam uma remuneração muito menor. Então, um grande número de
habitantes do Rio de Janeiro trabalhavam muito, ganhavam pouco e moravam mal. Mas, Kehl
imaginava uma outra nação e não aceitava que o brasileiro fosse diferente de seus sonhos. Ele
pensava em uma nação sem conflitos sociais. Já alertamos para o grande número de greves e
movimentos sociais, que reivindicavam melhores condições de vida e até mesmo a alteração
das relações sociais. Fico a imaginar os intelectuais eugenistas sonhando com um país de
seres racionais, rígidos e o gritante contraste com a dura realidade tropical de uma cidade em
ebulição onde eram construídas outras racionalidades completamente diferentes daquelas que,
por exemplo, o personagem central do romance “O Presidente Negro” desejava:

Estava ansioso por voltar à cidade e nos cafés, na rua, no escritório, pregar a
Eugenia e insultar a estúpida gente que não vê as coisas mais simples. A
conseqüência foi que só dormi de madrugada. E Sonhei, agitado. Sonhei a
cidade tão limpa dos seus aleijões que ficava reduzida unicamente a duas
criaturas de mãos presas – eu e miss Jane (...). (LOBATO, 1961: 285).
233

ANEXOS

6.1 Lista dos Periódicos

Anais da Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro (1885-1982)


Anais da Assistência a Psicopatas – Rio de Janeiro (1931-41)
Anais da Colônia Gustavo Riedel – Rio de Janeiro (1942-43)
Anuário do Departamento de Saúde Pública – Recife (1932-33)
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental – Rio de Janeiro (1925-47)
Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria – Rio de Janeiro (1920-57)
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal – Rio de Janeiro (1908-18)
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins – Rio de Janeiro (1905-07)
Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (1930-50)
Arquivos da Assistência a Psicopatas do Estado de São Paulo (1941-50)
Arquivos da Assistência Geral a Psicopatas do Estado de São Paulo (1936-37)
Arquivos da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado de São Paulo (1936-86)
Arquivos da Diretoria de Higiene do Interior – Recife (1940-41)
Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo (1924-52)
Arquivos de Higiene. Departamento Nacional de Saúde – Rio de Janeiro (1927-68)
Arquivos de Medicina Legal e Identificação – Rio de Janeiro (1931-40)
Arquivos de Neuro-Psiquiatria – São Paulo (1943-96)
Arquivos do Departamento de Assistência a Psicopatas do Fitado de São Paulo (1951-65)
Arquivos do Manicômio Judiciário Heitor Carrilho – Rio de Janeiro (1951-66)
Arquivos do Serviço de Assistência a Psicopatas do Estado de São Paulo (1938-41)
Arquivos do Serviço Nacional de Doenças Mentais – Rio de Janeiro (1945-55)
Arquivos dos Hospitais e das Faculdades de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
(1954-74)
Boletim da Academia Nacional de Medicina – Rio de Janeiro (1885-1982)
Boletim da Colônia Juliano Moreira – Rio de Janeiro (1948-54)
Boletim de Eugenia – Rio de Janeiro e São Paulo (1929-33)
Memórias do Hospício de Juquery – São Paulo (1928-33)
Memórias do Hospital de Juquery – São Paulo (1924-25)
Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (Suplemento) – Rio de Janeiro (1928-29)
234

Revista Brasileira de Saúde Mental – Rio de Janeiro (1955-71)


Revista de Higiene e Saúde Pública – Rio de Janeiro (1925-38)
A Tribuna Médica – Rio de Janeiro (1899-1972)
Tribuna Médica - Notícias – Rio de Janeiro (1967)

6.2 Artigos de Renato Kehl


KEHL, Renato, 1925. A consangüinidade e a surdo-mudez. In: Revista de Hygiene e Saúde
Pública. Publicação Mensal. Anno I. Jan. n.1. Rio de Janeiro: Revista Judiciária Militar.
KEHL, Renato, 1925. A esterilizarão dos grandes degenerados e criminosos. In: Archivos
Brasileiros de Hygiene Mental. Anno I. Dezembro. n.2. Rio de Janeiro: Typo. do Jornal do
Commercio.
KEHL, Renato, 1925. Eugenía ( a eugenía e a guerra, o casamento entre surdo-mudos). In:
Revista de Hygiene e Saúde Pública. Publicação Mensal. Anno I. Fev. n.2. Rio de Janeiro:
Revista Judiciaria Militar.
KEHL, Renato, 1929. Educação e Eugenia. In: Boletim de Eugenia. Anno I. Set. n.9. Rio de
Janeiro.
KEHL, Renato, 1929. Eugenia e Eugenismo. In: Boletim de Eugenia. Anno I. Ago. n.8. Rio
de Janeiro.
KEHL, Renato, 1929. Familia de Hemophilicos. In: Archivos Brasileiros de Hygiene Mental.
Anno II. n.1. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1929. Limitação da natalidade. In: Boletim de Eugenia. Anno I. Dez. n.12.
Rio de Janeiro.
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de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Crescei e Multiplicai-vos. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Jun. n.18.
Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Família de hemophilicos. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Jan. n.13.
Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Famílias sem passado. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Set. n.21. Rio
de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Galton. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Ago. n.20. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Linhagens - paes e avós. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Fev. n.14.
Rio de Janeiro.
235

KEHL, Renato, 1930. Nobreza Eugenica. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Out. n.22. Rio de
Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Nova Theoria sobre a Hereditariedade. In: Boletim de Eugenia. Anno
II. Nov. n.23. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. O problema da educação sexual. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Dez.
n.24. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. O sabio de Concord. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Maio. n.17. Rio
de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. Qual o mechanismo da hereditariedade normal e morbida? In: Boletim
de Eugenia. Anno II. Abr. n.16. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. A campanha da Eugenia no Brasil. In: Archivos Brasileiros de
Hygiene Mental. Anno IV. Mar./Maio. n.2. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. A campanha da Eugenia no Brasil. In: Boletim de Eugenia. Anno III.
Set. n.33. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Casamentos e natalidade nas classes media e inferior. In: Boletim de
Eugenia. Anno III. Nov. n.35. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Serei um indivíduo normal? In: Boletim de Eugenia. Anno III. Maio.
n.29. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Tal pae, tal filho? Filhos de gordos e filhos de magros. In: Boletim de
Eugenia. Anno III. Fev. n.26. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1932. A Eugenia na prática individual. In: Boletim de Eugenia. Anno IV.
Out./Dez. n.40. São Paulo.
KEHL, Renato, 1932. Considerações em torno da plethora humana. In: Archivos Brasileiros
de Hygiene Mental. Anno V. Out./Dez. n.2. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1932. Segregação dos deficientes, dos criminosos e dos socialmente
inadaptados. In: Boletim de Eugenia. Anno IV. Jul./Set. n.39. São Paulo.
KEHL, Renato, 1933. Irmãos gêmeos. In: Boletim de Eugenia. Anno V. Abr./Jun.. n.42. São
Paulo.
KEHL, Renato, 1935. Personalidades pathológicas à luz da psychocritica. In: Archivos
Brasileiros de Hygiene Mental. Anno VIII. Jan./Set. n.1-3. Rio de Janeiro.

6.3 Artigos de Octavio Domingues

DOMINGUES, Octavio, 1930. Os programmas de ensino e a genetica. In: Boletim de


Eugenia. Anno II. Jan. n.13. Rio de Janeiro.
DOMINGUES, Octavio, 1930. Saúde, Hygiene e Eugenia. In: Boletim de Eugenia. Anno II.
Jun. n.18. Rio de Janeiro.
DOMINGUES, Octavio, 1930. Transmissão congênita da tuberculose. In: Boletim de
Eugenia. Anno II. Abr. n.16. Rio de Janeiro.
236

DOMINGUES, Octavio, 1931. “Birth-control”, esterilização e pena de morte. In: Boletim de


Eugenia. Anno III. Jun. n.30. Rio de Janeiro.
DOMINGUES, Octavio, 1931. Poderemos ser melhores? In: Boletim de Eugenia. Anno III.
Fev. n.26. Rio de Janeiro.
DOMINGUES, Octavio, 1932. Limalhas de um eugenista. In: Boletim de Eugenia. Anno IV.
Jul./Set. n.39. São Paulo.
DOMINGUES, Octavio, 1932. Limalhas de um eugenista. In: Boletim de Eugenia. Anno IV.
Out./Dez. n.40. São Paulo.

6.4 Livros de Renato Kehl, Octavio Domingues e Roquette-Pinto

DOMINGUES, Octavio. A Hereditariedade em face da Educação. São Paulo:


Melhoramentos, 1929.
DOMINGUES, Octavio. Hereditariedade e Eugenia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1936.
DOMINGUES, Octavio. Eugenia. Seus Propósitos. Suas Bases. Seus Meios. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1942.
KEHL, Renato. Aparas Eugênicas. Sexo e Civilização. Novas Diretrizes. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1933.
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. Eugenia e medicina social. São Paulo: Monteiro
Lobato, 1923.
KEHL, Renato. Pais, médicos e mestres – Problemas de educação e hereditariedade. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1939.
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.
KEHL, Renato. Catecismo para adultos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Seixos Rolados. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado &
Companhia, 1927.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios Brasilianos. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1927.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de Antropologia Brasiliana. Brasília: UNB, 1982.

6.5 Lista dos trabalhos apresentados no Primeiro Congresso Brasileiro de


Eugenia
1) Contribuição ao estudo da raça nos pontos de vista antropológico e sociológico –
Geraldo de Andrade.
2) Tipos raciais brasileiros – Alfredo Ellis Junior.
3) A eugenia paulista nos I, II, III séculos – Alfredo Ellis Junior.
4) Imigração Japonesa – Alfredo Ellis (pai).
5) Aspectos médico-eugênicos da assistência materna – Victor Russomano.
237

6) Lués y embarazo – Vergara Keller.


7) Da esterilização dos degenerados – Alberto Farani.
8) A esterilização eugênica dos degenerados – Levi Carneiro.
9) Registro individual e arquivo genealógico de família – Renato Kehl.
10) A educação física na moderna prática pedagógica – Mario Cardim
11) O alcoolismo como fator disgênico – Gustavo Augusto de Rezende.
12) A finalidade eugênica da luta anti-alcoólica – José de Moraes Mello.
13) Tentativas eugênicas através da história – Alberto Childe.
14) Registro Genealógico – Affonso de Taunay.
15) Alguns Casos autênticos de prolificidade – Padberg Drenkpol.
16) Exame pré-nupcial e certificado médio – Boccanera Neto.
17) O exame pré-nupcial com fator eugênico – Julio Porto-Carrero.
18) Exame pré-nupcial e alcoolismo – Galdino do Valle.
19) Alguns aspectos sobre o problema sanitário das zonas rurais do Brasil e especialmente
do Amazonas – Samuel Uchoa.
20) Mortalidade Infantil e a Casa da Criança, de Jahú – Celso Barroso.
21) Profilaxia social da toxicomania – José Ignácio Lobo.
22) Organização prática da Ação eugênica no Brasil – Achilles Lisboa.
23) Zea-Mais – F. R. Silveira.
24) Educação Moral e eugenia – Achilles Lisboa.
25) Legislação Social e eugenia – Clemente Ferreira.
26) Algunas Consideraciones em relacion com su aspecto cientifico y social – W. E.
Coutts.
27) Proyecto de Ley sobre investigación de la partenidad ilejitima – Vergara Keller.
28) Educação antivenérea – Américo Valério.
29) As Mães solteiras, sua proteção e dignidade – Astholpho de Rezende.
30) A maternidade consciente – Edgar Braga.
31) O feminismo e a raça – Fernando Magalhães.
32) O feminismo e a raça – Moreira Guimarães.
33) A procriação consciente e a cultura social da raça – Carlos Penafiel.
34) O problema do alcoolismo no Brasil – Severino Lessa.
35) Delito de contaminação – Oscar Fontenelle.
36) Delito de contaminação – Edgar Altino de Araújo.
37) A luta contra a sífilis e moléstias venéreas em São Paulo – Mendes de Castro
38) A influencia da Educação sanitária na redução da mortalidade infantil – Maria
Antonieta de Castro.
39) Educação moral e eugenia – Barbosa de Oliveira.
40) A educação como elemento primacial na eugenia – Cesídio da Gama e Silva.
41) Educação eugênica em geral – Alfredo Ferreira de Magalhães.
42) A luta contra as doenças venéreas no exército brasileiro – Arthur Lobo.
43) A ação eugênica dos exércitos – Arthur Lobo
44) A profilaxia do espiritismo como higiene mental – Mario Ferreira de Carvalho.
45) Imigração – Oscar Coelho de Souza.
46) O problema imigratório no Brasil – Raul Reynaldo Rigo.
47) Política eugênica conjugal – Medeiros e Albuquerque.
48) A eugenia no Brasil – Renato Kehl.
49) Os grandes problemas da antropologia – Álvaro Fróes da Fonseca.
50) O estado atual do problema de hereditariedade – André Dreyfus.
51) Biométrica – Fernando da Silveira.
52) Educação e eugenia – Levi Carneiro.
238

53) Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil – Edgard Roquette Pinto.


54) Ghiandole ebacee libecee libere della mucosa geniana in varie razze Umane – Alfonso
Bovero.
55) Situação do apêndice verminose em relação ao ceco em diversas raças humanas – R.
Lochi.
56) Considerações em torno do índice radio-pelvico de Lapicque e tíbio-pelvico de Fróes
da Fonseca – Emiro Lima.
57) Estado atual da questão dos grupos hemáticos – Roberto F. Hinricksen.
58) Da aplasia clavicular – Benjamin Vinelli Baptista.
59) Genética vegetal – A.J de Sampaio.
60) Contribuições ao estudo dos psychogrammas – Ubirajara da Rocha e Arnauld Bretãs.
61) Estatística dos tarados no Brasil – Bulhões de Carvalho.
62) Quadro demonstrativo das moléstias mentais observadas no hospital de Juquery, de
1925 a 1928 – Pacheco e Silva.
63) Herencia psíquica intra-uterina – Waldemar E. Couts.
64) Procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação – Jorge de Lima.
65) Consangüinidade – Newton Belleza.
66) Casamento e eugenia – Joaquim Moreira da Fonseca.
67) O dispensário psíquico como elemento da educação eugênica – Gustavo Riedel.
68) Da educação física como fato eugênico – Jorge de Moraes.
69) Fatores de degeneração observados nas praças da polícia militar – Motta Rezende.
70) Maternidade consciente – Castro Barreto.
71) O problema eugênico da imigração – Azevedo Amaral.
72) A influência da educação sanitária na redução da mortalidade infantil – Maria
Antonieta de Castro.
73) A idade e o casamento – Leonídio Ribeiro.
74) A luta contra a sífilis e moléstias venéreas em São Paulo – Mendes de Castro.
239

6.5. Caderno de imagens

1. Expedição Neiva-Penna. Belisário Penna “dando consultas” sob uma jurema. Lages
(PI), maio de 1912.
240

2. Capa do periódico HYGIA.


241

3. Manifestação comemorativa do “Dia da Raça”. Durante o Estado Novo a “raça


brasileira” tinha sua celebração no primeiro domingo de setembro.
242

4. Manifestação comemorativa do “Dia da Raça”. Durante o Estado Novo a “raça


brasileira” tinha sua celebração no primeiro domingo de setembro.
243

5. Expedição Neiva-Penna. Engenho de fiar. Peri-Peri (BA), julho de 1912.


244

6. Capa do periódico SANEAMENTO.


245

7. Separata do Periódico BRAZIL-MÉDICO. Fundo Pessoal Renato Kehl.


246

8. Expedição Neiva-Penna. Escola. São Raimundo Nonato (PI), maio de 1912.


247

9. Capa do folheto Jeca Tatuzinho, distribuído com o medicamento Biotônico Fontoura.


248

7.
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