Tese
Tese
Tese
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
TESE DE DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA SOCIAL
NITERÓI – RJ
2008
2
Niterói
2008
3
CDD 363.920981
4
BANCA EXAMINADORA
Niterói
2008
5
AGRADECIMENTOS
“... país que nasce torto não endireita nem a pau. A receita (...) para
consertar o Brasil é a única que me parece eficaz. Um terremoto de
15 dias, para afofar a terra; e uma chuva de... adubo humano de
outros 15 dias, para adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita,
não?”.
Monteiro Lobato em carta a Renato Kehl em 1936
“Você é negro puro, eu sou branco puro, por isso somos capazes e
inteligentes. A maioria dos brasileiros, infelizmente, porém, é
mestiça, sangue fraco, Maria-vai-com-as-outras, pouco
inteligente. Resultado: de vez em quando o país sai dos trilhos.
Compete ao Exército repô-lo no caminho certo. Feito isso,
voltamos aos quartéis”.
RESUMO
divulgação das idéias sobre a regeneração racial e social do país. Uma das
nação brasileira. Para ele, a miscigenação racial conduziria o Brasil para uma
próspera.
10
ABSTRACT
element for our analysis. But we will not let him alone. A intellectual person
carries ideas, arguments, and put them in dialogue with other elements.
Kehl was one of the main social agents in the field of Brazilian
eugenics. Since the first decades of the XXth Century to the day of his death,
promoted ideas such as racial and social regeneration of the country. One of
the main characteristics of Kehl´s speech was exactly his negative thoughts
about the future of Brazil. For him, racial miscegenation would lead Brazil to
SUMÁRIO
1. Introdução 12
2. Capítulo I. Pensamento Social no Brasil 26
2.1. Estado e Raça 36
2.2. Belisário Penna 46
2.3. A Viagem Científica Neiva-Penna 52
2.4. A Regeneração do Jeca 65
2.5. O Presidente Negro 72
1.
INTRODUÇÃO
Esta tese tem como objetivo o estudo da Eugenia no Brasil. Pesquisas sobre a eugenia
ainda permanecem restritas a determinadas regiões. Freqüentemente, ela é associada ao
nazismo, ignorando-se a existência das idéias e práticas eugenistas, que ultrapassaram
fronteiras ideológicas e geográficas.1 O exemplo norte-americano2 ainda é desconhecido,
assim como o eugenismo na América Latina é pouco estudado. Portanto, esse texto é
concentrado na análise das idéias e estratégias eugênicas em torno das quais se organizou a
sociedade brasileira, durante o século XX. Consideramos que, na atual conjuntura histórica, é
oportuno um projeto que contemple a diversidade de interpretações sobre o tema. Em países
como Brasil e Argentina, existe uma produção recente que trata de maneira superficial as
influências que o eugenismo provocou. Essa literatura aborda os textos de alguns intelectuais
eugenistas, porém não se demonstra a particularidade desses agentes sociais. No Brasil,
recentemente, foram realizados alguns trabalhos acadêmicos sobre o eugenismo nacional.
Com alguma freqüência, analisam as obras de diversos intelectuais e, especialmente, os livros,
1
Durante o simpósio The History of Eugenics: Work in Progress realizado nos Estados Unidos, discutiu-se o
caráter mundial das idéias e práticas eugenistas. Desse evento resultou artigos que foram apresentados no livro
The Wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Russia. Stepan publicou, nesse volume, seu
primeiro texto sobre a eugenia brasileira, que foi fruto de estudos realizados durante os anos 80, quando também
saiu o trabalho, “Eugenesia, genética y salud pública: el movimiento eugenésico brasileño y mundial”, na
Revista Quipu, em 1985.
2
Há evidentes exceções. BLACK (2003) e STERN (2005) realizam investigações instigantes a respeito da
Eugenia nos Estados Unidos. O primeiro reconstitui a trajetória da “caçada aos fracos” nos EUA. O segundo é
um livro fundamental que desmistifica a idéia de que o eugenismo norte-americano tido como “pesado”,
desapareceu ou ficou “leve” depois da Segunda Grande Guerra.
13
artigos e panfletos do médico Renato Kehl (1889-1974), tido como o expoente máximo do
movimento eugênico no Brasil, mas não ampliam a análise, não destacam as nuances do
pensamento social desse intelectual e, tampouco, dos outros autores brasileiros que
compartilharam das idéias eugenistas. Erroneamente, consideram um ator social como
paradigma ou modelo explicativo. Kehl, assim como os demais agentes sociais, não produzia
suas idéias como um Robinson Crusoé numa ilha.
O presente trabalho tem como título Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem
é bom, já nasce feito?Esterilização, Saneamento e Educação. Uma Leitura do Eugenismo em
Renato Kehl (1917-37). Portanto, resta evidente que este médico é a figura central para a
nossa análise. Mas, não o deixaremos sozinho. E ele não falava isoladamente. Um intelectual
carrega idéias, argumentos, dialoga e relaciona-se com outros atores. Kehl foi um dos
principais agentes sociais do campo eugênico brasileiro. Desde as primeiras décadas do século
XX até a data de sua morte (1974) ele esteve envolvido com o debate sobre a pertinência da
eugenia como o remédio para os vários males da sociedade brasileira. Participou da fundação
de associações, organizou congressos e criou periódicos que promoviam a divulgação das
idéias sobre a regeneração racial e social do país. Mas, muitos intelectuais acompanhavam-no.
Kehl não esteve solitário. O movimento eugenista foi exuberante em nomes, títulos,
instituições e publicações. Ao longo do texto, vamos marcar os posicionamentos dos
14
O médico Renato Ferraz Kehl nasceu em Limeira, interior do Estado de São Paulo, a
22 de agosto de 1889, filho de Joaquim Maynert Kehl e Rita de Cássia Ferraz Kehl. Exerceu a
clínica médica em pequeno consultório na capital paulista durante alguns anos. Dedicando-se
aos princípios da Eugenia fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira dedicada ao
estudo e veiculação dos ideais eugenistas aparecida da América do Sul com 140 membros
(quase todos médicos). Lutando pela difusão das suas idéias, Renato Kehl realizou
conferências no Brasil, publicou mais de 30 livros, além de inúmeros artigos em jornais.
Durante os anos em que exerceu cargos na administração pública (1919-1927), dentro do
Serviço de Profilaxia Rural e no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), ajudou a
organizar o serviço de educação sanitária da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas,
subordinado ao DNSP, tendo sido também o responsável pelo Museu de Higiene que esse
setor apresentou na exposição comemorativa do Centenário da Independência (1922). No
Departamento de Saneamento e Profilaxia Rural (DNSP) trabalhou durante três anos (1919-
1922) como inspetor sanitário rural e também como chefe do posto médico-sanitário em
Merity, passando depois para o serviço de Educação e Propaganda Sanitária (1923-1924).
Tendo-se exonerado do DNSP em 1927, ingressou na companhia Bayer.
3
Esse editor dizia que a eugenia brasileira tinha múltiplas interpretações. Depois de ler vários textos de
eugenistas brasileiros, o britânico concluía: “Aparentemente os brasileiros interpretam a palavra eugenia de
forma menos restrita que nós e a fazem-na cobrir muitas coisas que chamaríamos de higiene e sexologia
elementar; e não se traça uma distinção muito clara entre condições congênitas devidas a acidentes pré-natais e
doenças estritamente genéticas (...) Conflitos familiares, educação sexual e exames e atestados pré-nupciais
parecem ser os assuntos que mais interessam aos eugenistas brasileiros, enquanto a genética e a seleção natural e
social são bastante negligenciadas. A abordagem é mais sociológica que biológica”. (STEPAN, 2005:76).
15
que biológica”, ele estava afirmando que a eugenia nacional era menos cientifica. Mas, será
que a abordagem britânica era totalmente ausente de intenções sociais? Ou, por que não dizer,
será que ele estava atribuindo uma inocência ideológica à eugenia inglesa, justamente por
considerá-la mais científica? Para olhos britânicos, as idéias eugênicas brasileiras podiam ser
um conjunto equivocado. Desprovida de uma sistematicidade e envolvida com problemas de
ordem moral. Segundo esse ponto de vista, a eugenia no Brasil estava preocupada com
questões menores como a puericultura, a beleza física e a higiene íntima.
4
STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto & ARMUS, Diego(orgs.)
Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2004, pp 335. Esse trabalho é tradução do artigo publicado na Revista Quipu.
5
Haveríamos que formar um povo a partir do que tínhamos. Não havia, entre nós, uma mítica raça ariana a
representar o ideal racial.
16
incorrer em menosprezo à contribuição das idéias eugênicas desses países, uma parte
significativa dos argumentos de Stepan é inconsistente. Um ponto especial deve ser
destacado, com o propósito de rebatê-lo.
Para Stepan, mas também para Souza (2006) e Diwan (2007), teria havido uma
suposta exacerbação radical das propostas de Renato Kehl no decorrer dos anos 20. Esses
autores identificam uma alteração no pensamento de Kehl em direção a uma eugenia negativa.
Por esta interpretação, Kehl, a partir de um determinado instante, teria radicalizado suas
impressões, desejando um modelo de eugenia mais identificado com ações como a
esterilização compulsória. Também a partir dessa ruptura, ele teria modificado sua opinião
sobre a miscigenação. Com a radicalização, teria se tornando mais intransigente e pessimista a
respeito da mistura de raças. Apesar do bom texto de Stepan, o argumento principal para a
apontada mudança radical é fraco. Poder-se-ia dizer, não sem um pouco de ironia, que se trata
de uma explicação geneticista. A professora da Universidade de Columbia em Nova Iorque
tenta assim explicar a suposta ruptura do pensamento de Kehl: “(...) as origens alemãs de
Renato Kehl, líder dos eugenistas brasileiros, podem ter sido, em parte, responsáveis pela
exacerbação de seu racismo” (STEPAN, 2005: 168). Souza (2006), por seu turno, embora
critique, em alguns pontos, acertadamente a obra de Stepan, também recorre a argumentos
com os quais não concordamos. Por exemplo, menciona-se, por várias vezes, ao longo de seu
texto, que Kehl teria sofrido uma virada em sua trajetória. Ao longo do texto, detalharei esta
minha discordância. Houve, sem dúvida, alterações no seu discurso. Mas, isto não representou
uma modificação do seu pensamento, tampouco uma revolução dentro do campo eugênico.
A primeira crítica a fazer é que tal visão reproduz os padrões estrangeiros clássicos.
Recentemente, foram publicados textos que desmistificam um pouco esse olhar monolítico,
quase sempre fruto de pouco trabalho de pesquisa documental ou amparado em teoria
inadequada. As análises que vão sendo superadas afirmam que devido ao fato de os eugenistas
dos EUA pregarem a esterilização, não defendiam práticas como a educação física, o
saneamento e a higiene como fatores de eugenização da raça. Talvez a ênfase fosse muito
menor do que no Brasil, mas, por outro lado, na sociedade americana era grande a
preocupação com o matrimônio entre as pessoas. Então, havia sim uma mínima preocupação
com esses fatores “sociais”. Talvez, a grande diferença seja que no Brasil, acreditou-se que
era necessário e possível salvar (regenerar) a raça e melhorar o país por meio dessas práticas
educativas e sanitaristas. Também é comum supor que após a Segunda Guerra, a eugenia
norte-americana desapareceu. Contudo, esta é mais uma visão equivocada sobre a questão.
(SOUZA, 2007)6.
Esta tese está dividida em três capítulos. No primeiro, reconstruirei o panorama que
norteava os intelectuais eugenistas do período. Procurarei analisar o contexto dos atores no
6
Nesta resenha escrita por Souza (2007), podemos ver como as idéias eugênicas sofreram modificações, mas
não desapareceram nos EUA após 1945. O livro comentado é STERN, Alexandra Minna. Eugenic nation: faults
and frontier of better breeding in modern America. California: University of California Press, 2005.
19
início do século XX, sobretudo em relação ao que eles pensavam a respeito dos conceitos de
nação, estado, raça e progresso. Como argumentamos, as idéias eugenistas foram formuladas
e apropriadas como símbolos capazes de auxiliar tanto no processo de regeneração da raça
nacional como da modernização da sociedade. Nesse contexto, o Estado deveria influir e
conduzir o acasalamento e a reprodução humana. Nesta parte, falarei do relatório da
expedição ao interior do Brasil empreendida por Belisário Penna e Arthur Neiva como um
documento revelador dos problemas do país. Tratarei da metamorfose que o personagem Jeca
Tatu sofreu como um elemento crucial para perceber a influência que as idéias racistas
deterministas, sanitaristas e, por fim, eugenistas, exerceram sobre a sociedade da época.
Nas conjunturas das décadas de 1930, 40 e 50, vários desses intelectuais eugenistas
ocuparam posições importantes nas administrações governamentais. Koifman (2007) observa
que, embora as políticas públicas ou as orientações dos governos mudem ao longo do tempo,
os funcionários permanecem durante várias gestões à frente das “repartições”, onde
efetivamente são cumpridas as determinações contidas nas políticas públicas. Este autor
demonstra que o eugenismo influenciou e regulamentou fortemente o controle sobre a entrada
de estrangeiros no país durante muitos anos8. Vários intelectuais que exerceram cargos nos
chamados escalões inferiores da administração pública não são considerados dignos de
estudos e análises. Em sua tese de doutorado, Koifman demonstra a importância de Ernani
Reis (1905-1954). Aparentemente um funcionário público de escalão inferior, ele era,
contudo, um intelectual com forte presença no governo e que, freqüentemente, publicava em
jornais e participava de inúmeros programas radiofônicos nas emissoras de rádio da época.
9
Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que nos
vai mostrar a Diretoria de Saneamento. Entrevista com Renato Kehl. Jornal A Noite, 30 out. 1922. Fundo
Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
10
Para Kehl, a aristogenia representava os seres eugenicamente superiores; enquanto, os tipos inferiores
constituíam a classe cacogênica. Esses, por ventura, poderiam assumir uma forma bastante degradada, ou seja, a
disgênica.
23
população, produzindo um “tipo nacional”, com teses de que o futuro eugênico seria resultado
do saneamento das áreas rurais e urbanas, além da educação higiênica que propiciaria a
criação e manutenção da nova ordem. Essa amplitude de técnicas eugênicas não consistia em
interpretação errônea de teorias científicas originais, nem mesmo numa cópia importada sem
critério, mas sim na construção de um pensamento eugênico brasileiro.
11
Não se trata de negar a simpatia que Kehl nutria pelas idéias autoritárias e totalitárias. Em carta destinada a
Oliveira Vianna, em 25/06/1937, ele deixou registrado esse sentimento: “Percorri uma parte da Suíça e agora
depois de viajar pelo sul da Alemanha, instalei-me em Berlim, onde estou observando os magníficos progressos
do III Reich”. Fundo Pessoal Oliveira Vianna, Casa de Oliveira Vianna.
12
Em sua grande maioria, as pesquisas sobre o tema – Eugenia – consideram, equivocadamente, que as
transformações se processaram sem tensões, sem conflitos e ausente de articulações políticas entre os agentes
envolvidos.
24
procriação humana entre 1918 e 1921. Também há citaçoes dele a respeito da esterilização e
da necessidade de exames médicos prévios ao casamento. Portanto, não está nas viagens de
Kehl à Europa a explicação da radicalização. E, por outro lado, mesmo com a acentuação em
torno da “eugenia negativa”, que não negamos, pois efetivamente houve uma alteração, ele
não abandonou a crença na tarefa regeneradora da Eugenia, que seria executada pela tríade
Saneamento-Educação-Eugenia. Afinal se, sob um aspecto, Kehl, teria sofrido uma “virada”
em suas proposições, não seria mais plausível dizer que foi o conjunto de suas propostas que
se radicalizou? Achamos que esta explicação corresponde aos movimentos de Kehl e de seus
interlocutores. Em instigante dissertação de mestrado, Reis (1994) demonstra como a Liga
Brasileira de Higiene Mental (LBHM) abraçou uma eugenia mais radical. Todos os membros
do campo ansiavam por mais eugenia. E ansiavam por mais educação, mais saneamento, mais
esterilização, mais controle do Estado sobre a massa de indivíduos que crescia. Era o medo da
multidão.
13
No Fundo Pessoal Renato Kehl, encontramos cartas com Charles Davenport, considerado o principal
intelectual da Eugenia nos EUA.
25
14
Recentemente, tive acesso ao fundo documental do Congresso de Eugenia de 1929/Museu Nacional. Deste
importante evento, somente foi publicado um volume de suas atas. Do conjunto de documentos, sob a poeira do
tempo, aparecem autores desconhecidos. Ver no Anexo D, a lista de todos os trabalhos apresentados no evento.
26
2.
CAPÍTULO I
(...) porque também é lei antropológica que os mestiços herdem com mais
freqüência os vícios que as qualidades dos seus ancestrais. Os mestiços desta
espécie são espantosos na sua desordem moral, na impulsividade de seus
instintos, na instabilidade de seu caráter. O sangue disgênico, que lhes corre
nas veias, atua neles como a força da gravidade sobre os corpos soltos no
espaço: os atrai para baixo com velocidade crescente. À medida que se
sucedem as gerações. Os vadios congênitos e incorrigíveis das nossas
aldeias, os grandes empreiteiros de arruaças e motins das nossas cidades são
os espécimes desse grupo. (VIANNA, 1987a: 104).
nacionais e mesmo a ausência da idéia de nação15. Por exemplo, durante 40 anos, um dos
membros do campo eugênico, o médico mineiro de Barbacena Belisário Penna apontou tais
fatos como resultados do corpo social doente. No entanto, ele não foi o único a estabelecer as
caraterísticas prejudiciais à nacionalidade. A partir do início do século passado, um número
imenso de reformadores sociais apareceu. O próprio genro de Penna, Renato Kehl, também
estaria entre eles e colocaria esses fatos como efeitos nefastos de um governo de políticos
ladrões e incompetentes:
15
Conforme demonstra Carvalho (2002:44) analisando a obra do Visconde do Uruguai: “Muitos dos males
apontados por Uruguai relativos à política nacional, como a distância entre governo e povo, a burocracia
absolutista e ineficaz, a mania de esperar tudo do Estado, o sufocamento dos municípios, a inadequada
distribuição de responsabilidade entre municípios, províncias e governo central, o empreguismo, o empenho, o
clientelismo, o patronato, o predomínio dos interesses pessoais e de facções, a falta de espírito público, a falta de
garantia dos direitos individuais, continuam na ordem do dia, posto que atenuados.”
28
16
As transformações ocorridas no pensamento social do período devem ser consideradas como, basicamente, a
formação de um sistema ideológico onde a legitimação da autoridade estatal era princípio da própria sociedade.
29
dividia nações e classes sociais em parasitas e parasitadas. Acreditava nos efeitos desastrosos
do parasitismo. Ele destruía o organismo atingido e decretava a decadência moral do parasita.
Oliveira Vianna pagaria um alto preço pela influência que sofreu do chamado arianismo,
enquanto Alberto Torres criticaria a chamada ciência antropológica européia e os teóricos do
racismo científico.
Miceli (1979) aponta que os intelectuais desse período eram representantes das
famílias abastadas, algumas em decadência econômica. Muitos eram filhos de proprietários de
terras, mas sem capital financeiro. Graças aos conhecimentos adquiridos nos cursos superiores
32
Intelectuais cujas trajetórias são paralelas a de Renato Kehl, Monteiro Lobato, Penna e
Arthur Neiva são, de certa forma, facilmente identificados com o eugenismo. Curiosamente,
do próprio campo eugênico nacional surgem dois nomes que demonstram o caráter singular
da história cultural brasileira. São citados por uma ampla bibliografia como membros de um
movimento de teor anti-racista. Trata-se do zoólogo Octavio Domingues e do antropólogo
Roquette-Pinto. Nos anos 30, Roquette-Pinto realmente integrou iniciativas nacionalistas e
anti-racistas no contexto do crescimento de um movimento antinazista. No entanto, ao longo
da tese, procuraremos discordar e dialogar com a literatura historiográfica e sociológica que
consagra miticamente alguns intelectuais. Por exemplo, textos recentes, tratam o intelectual
Roquette-Pinto como um opositor do eugenismo. No entanto, mesmo durante o Congresso de
Eugenia, no qual se manifestou de certa maneira, contrário às afirmativas racistas de Renato
Kehl, ele não abandonou totalmente a concepção vigente sobre os problemas de raça: “do
ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os mestiços manifestam acentuada
fraqueza: a emotividade exagerada, ótima condição para o surto dos estados passionais”.18
impressões sobre a vida brasileira carregadas de uma visão preconceituosa. Não devemos,
pelo menos, por enquanto, examinar a veracidade de suas opiniões. Existe uma distância entre
o mito e o homem real. Se podemos caracterizá-lo como um eugenista de boa cepa, também é
correto, assinalar que atirou com certeira pontaria nos intelectuais e políticos da “República
Velha”, que possuíam sobre o “povo” outras leituras igualmente carregadas de preconceitos.
Vários livros com críticas dessa comunidade de intelectuais engajados ao governo republicano
foram publicados entre 1910 e 1930. Estes textos dão o balanço dos anos de política
republicana levado a cabo por escritores da geração nascida no final do século XIX. Um bom
exemplo destes trabalhos é a coletânea “À Margem da História da República” organizada por
Vicente Licínio Cardoso. A primeira edição desta obra apareceu em 1924. São pequenos
artigos de autores bastante representativos dessa crítica autoritária à República instalada em
1889. Os seus autores são Carneiro Leão, Celso Vieira, Gilberto Amado, Jonathas Serrano,
Jose Antonio Nogueira, Nuno Pinheiro, Oliveira Vianna, Pontes de Miranda, Ronaldo de
Carvalho, Tasso da Silveira, Tristão de Athayde e Vicente Licínio Cardoso.
A política de uma nação é uma política orgânica, o que vale dizer: uma
política de conjunto, de harmonia, de equilíbrio. No quadro incongruente de
nossas instituições-sistema forasteiro-inadequado à nossa índole e ao nosso
caráter, e que por isso não se executa (...). (TORRES, 1978:158)
19
“Evidentemente, deve haver uma causa mais profunda, que explique tamanha incapacidade e tão longo e
continuado insucesso. Esta causa existe e é, como já assinalamos, o desacordo entre o idealismo da Constituição
e a realidade nacional”, VIANNA, Oliveira, “O idealismo da Constituição” In: À Margem da História da
República, Brasília, UNB, 1981, p. 109.
20
“Temos sido um país ao qual tem faltado organização e educação econômica, capital, crédito, organização do
trabalho, política adaptada ao meio, a índole da gente; um país desgovernado em suma”. (TORRES, apud
LEMOS, 1995).
34
Para Alberto Torres, advogado e político fluminense, nascido em Porto das Caixas
(RJ), a realidade nacional poderia ser desvendada (e organizada) desde que se abandonassem
os modelos importados e fosse adotada uma análise científica dessa realidade. Os nossos
males seriam resultado da maléfica combinação do desconhecimento dos dados reais e a cópia
de modelos políticos estrangeiros. Tais idéias, de certa forma, colocavam em dúvida a onda
civilizatória européia, orgulhosamente denominada de belle époque. O modelo liberal estava
sob o fogo cruzado dos que advogavam a reforma da estrutura política. Para essa corrente
interpretativa dos problemas nacionais, era preciso dar um basta àquela mentalidade artificial
que dirigia o país com os olhos voltados para o mundo estrangeiro. Uma parte dos
representantes dessa parcela de pensamento social nacionalista se perguntava: mas por que a
importação de idéias estrangeiras? O que impede de serem criadas instituições políticas a
partir da nossa realidade? A indicação de Alberto Torres é esclarecedora:
O Brasil é um país que nunca foi organizado e está cada vez menos
organizado. Sua ordem aparente e sua legalidade superficial correspondem,
na realidade, a uma perda constante de forças vivas: o povo – longe de se
haver constituído, social e economicamente (...). (TORRES, 1978:160).
Um país a que faltam tais requisitos não é uma nação, e não é mesmo uma
soberania, senão no rótulo jurídico. Nos carecemos de organização, e
precisamos nos organizar, não como instituição jurídica, segundo os modelos
de outros, mas como nacionalidade, como corpo social e econômico, não
devendo copiar nem criar instituições, mas fazê-las surgir dos próprios
materiais do seu país: traduzir em leis suas tendências, dando corretivos a
seus defeitos e desvios de evolução. (TORRES, 1978: 168.)
Criar o povo e a nação brasileira deveriam ser as tarefas desses grupos intelectuais.
Este era o sentimento que animava os diferentes autores. Para eles, a necessidade de uma elite
ilustrada crescia na medida em que o povo não era organizado politicamente. Afinal, não
possuíamos instituições, afirmava enfaticamente Oliveira Vianna. Daí a inviabilidade da
nação: “(...) todo o fracasso do idealismo contido na constituição de 24 de fevereiro tem, em
35
síntese, esta causa geral: somos um povo em que a opinião pública, na sua forma prática, na
sua forma democrática, na sua forma política, não existe”. (VIANNA, 1981:110-111). Em O
Idealismo da Constituição, o mais famoso artigo dessa obra coletiva de críticos da experiência
republicana, Vianna anunciava:
21
Intelectuais próximos a Oliveira Vianna e Alberto Torres duvidavam que a República pudesse ser origem de
uma nação moderna, pois existiria um abismo entre o país real e o país legal.
22
KEHL, Renato. Correio da Manhã, 4 mar. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
36
Em relação ao negro puro, minha opinião-a que falta ainda a base de estudos
psicométricos definitivos (porque os já feitos, e são numerosos, não me
parecem ainda bastantes) – é de que, para certos tipos de inteligência
superiores, ele revela, na sua generalidade uma menor fecundidade do que as
raças arianas ou semitas, com que ele tem estado em contato.(1959:195).
23
Carta de Oliveira Vianna a Renato Kehl, 01/09/1931. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
37
E, em relação ao Estado, como deveria ser portar, diante dessas populações? Podemos
definir que, em linhas gerais, os autores do pensamento social autoritário e nacionalista
desejavam que o Estado fosse administrado por técnicos e cientistas. Afinal, a sociedade
brasileira era “comprovadamente”24 formada por indivíduos pobres e doentes. Portanto,
totalmente incapazes de construir os laços de solidariedade comunal formados durante séculos
pelas sociedades das outras nações. Além disso, para esses autores, os setores importantes da
sociedade, que deveriam ser os alicerces, estavam iludidos e dominados, de um lado, pelos
mecanismos da politicalha e, por outro, por vícios cosmopolitas. Se esses intelectuais não
chegavam a constituir um grupo homogêneo, no entanto possuíam vários pontos de
identificação. Por exemplo, pode-se afirmar que os membros desse grupo eram intelectuais
que criticavam o modelo constitucional de 1891. Porém, existia uma variedade de projetos
políticos em disputa naquele momento histórico. Em suma, freqüentemente, os analistas que
estudam o período reconhecem somente uma crítica autoritária. Achamos que isto é um
equívoco. Vários projetos políticos de organização da sociedade estavam em pauta.
Mas, como era esta realidade que os intelectuais afirmavam conhecer? Como esses
intelectuais, que quase nunca saíam das cidades aonde habitavam, Rio de Janeiro e São Paulo,
podiam falar dos problemas brasileiros? Em que eles se baseavam para as suas afirmações
sobre o lastimável estado de doença e pobreza do país? Uma resposta pode ser encontrada na
repercussão de um relatório. Na segunda década do século XX, o relato de uma viagem ao
interior do Brasil realizada por um sanitarista e um cientista27, Belisário Penna e Arthur Neiva
(1880-1943), traçou um inventário das condições de saúde dos habitantes do imenso país. O
documento ganhou imensa28 publicidade por meio da campanha do escritor Monteiro Lobato
em prol da reformulação da saúde pública. A ressurreição29 vivida por Jeca Tatu que, de
caboclo indolente se transformou em ativo empresário, graças a um eficaz tratamento médico,
deveria servir de exemplo. Questões como saúde pública, educação e condições sanitárias
foram incorporadas à temática política, inserindo-se no amplo debate sobre a reconstrução
nacional.
27
Além do sanitarista e do cientista, viajaram na expedição Neiva-Penna, alguns auxiliares e um fotógrafo, José
Teixeira.
28
O relatório teve uma grande repercussão, provocando comentários de políticos e intelectuais. Gilberto Freyre,
Lobato, Oliveira Vianna e Lima Barreto deixaram – em suas obras imortais – opiniões marcantes sobre a
expedição Neiva-Penna.
29
Vários personagens surgiram em torno da figura do Jeca Tatu de Lobato: o Cearense Ildefonso Albano criou o
“Mané Chique-Chique”. O Paraense Rocha Pombo, o “Jeca Leão”. Um, era herói no Sul do país, o outro, no
Nordeste. Eram, ambos, homens fortes e inteligentes. O próprio Kehl criou o “Jeca Bravo” ou “Jeca Valente”.
Caso dessem comida ao Jeca e ele se livrasse dos parasitas de seu corpo, o jeca de Kehl ficaria regenerado. O
personagem “Jeca Bravo” é citado por Kehl em alguns textos e no livro “A Cura da Fealdade”.
30
Devemos refletir sobre essa afirmação, pois é possível interpretar que a desilusão e o desencanto com “A
República” fossem manifestações de específicos grupos de intelectuais frente a determinados projetos políticos.
39
Cada dia que passa, mais se nos firma a convicção de que só uma política
eugênica, dirigida por administradores de escol, poderá melhorar a situação
econômica, política e social do Brasil. Enquanto este grande país se mantiver
em mãos de estadistas de compadrios, de estadistas improvisados,
amalgamados em conluios e em solidariedades inconfessáveis – enquanto o
Brasil for governado por um núcleo de parceiros coniventes em atos que
concorreram para chegarmos a este estado da falência quase geral (...)
seremos um povo de tristes e deserdados. (KEHL, 1933: 20).
Em suma, esse era o retrato do Brasil fotografado pelo pensamento eugenista: triste,
pobre, doente e sem organização política. Um trágico retrato, onde a razão científica não
podia se reconhecer. Em tal cenário, a República viu surgir inúmeros reformadores de
31
Renato Khel tinha uma visão mais pessimista sobre a mestiçagem do que os demais intelectuais sanitaristas ou
eugenistas. Para ele, somente a ação sanitária ou educativa não transformaria a realidade. Além disso, acusava o
catolicismo de não permitir atos de natureza eugênica mais radical, como a esterilização realizada de forma
compulsória e ampla.
40
32
Inclusive, em parte das obras desses autores transparece um tom saudosista do período monárquico. Muitos
lamentavam o esvanecimento da “unidade nacional” e de uma “paz social” perdida, segundo eles, com as
agitações abolicionistas e republicanas. Vale lembrar que, nesse período, cidades como São Paulo e Rio de
Janeiro tiveram um número razoável de manifestações populares e operárias almejando melhorar as condições de
vida ou mesmo alterar o caráter das relações sociais.
41
últimos anos, padecemos, dentro das ciências sociais, de um ponto de vista a priori para
definir o Estado, quase sempre apresentado como um bloco de vários órgãos administrativos,
vazios de atores sociais portadores de interesses e do qual emanariam de uma forma natural as
políticas públicas.33
33
Ver os livros MENDONÇA (2005) e MENDONÇA (2006), onde encontramos trabalhos consistentes
criticando esse ponto de vista dominante nas denominadas ciências humanas.
34
Ver “A Educação na Primeira República” de Jorge Nagle, In: FAUSTO, Boris (Org.). O Brasil Republicano.
São Paulo, DIFEL, 1985.
42
Esse projeto político pode ser assim resumido: a politicalha republicana era
desorganizada e a Nação deveria ser orientada por uma política livre de paixão ou interesse,
ou seja, científica. Teríamos uma administração pública seguindo critérios objetivos e
centralizados. Nessa perspectiva, os problemas de educação e saúde pública não foram
simples questões técnicas. Elas possuíram uma dimensão política: a construção da Nação. A
educação passou a ser o caminho adequado para a reforma do Brasil e pressupunha a
cooperação entre as classes, uma consciência nacional para a formação da Nação. As novas
ciências e técnicas contribuiriam de maneira decisiva para melhorar as condições de vida dos
habitantes que viviam de forma irracional, sem princípios corretos, de maneira confusa e,
quando em conflito com os órgãos de direção da sociedade, ameaçadoramente perigosos para
a unidade da sociedade35. Além disso, eram presas fáceis para as outras idéias igualmente
perigosas e alienígenas: anarquismo e comunismo.
Para estes grupos, naquele contexto social, a dicotomia país real versus país legal
retratava o momento político. As instituições republicanas eram analisadas como efeitos do
modo equivocado de percepção da realidade. Assim como o modelo de conhecimento era
criticado, a política governista também o era. A maneira de conduzir a república respondia
pelas mazelas sociais que assolavam o país: a politicalha, o despreparo, a irresponsabilidade
35
Os conservadores de plantão negam a existência da rede específica e institucionalizada de relações sociais: as
classes sociais. No presente texto, adotamos o conceito gramsciano de Estado Ampliado. O Estado como uma
condensação de relações sociais. O Estado não é um ente supra-histórico pairando acima das classes, assim como
não é apenas coerção, mas também consenso. Aliás, adotamos o conceito de classes sociais enquanto um
conjunto de redes relativamente estáveis e hierarquizadas de relações institucionalizadas.
43
das elites e a corrupção. O modo de conhecimento da realidade era combatido porque sendo
incapaz de apreender objetivamente o Brasil, propunha ordená-lo através de estruturas
políticas oriundas de realidades que não diziam respeito ao país real. Daí a percepção de que o
autoritarismo poderia traduzir-se em pensamento próprio para o país. Mas o que distinguiria a
política orientada pela ciência daquela dominada por interesses espúrios? Kehl diria sobre a
necessidade de novos nomes para dirigir o governo, a seguinte frase, demonstrando mais uma
vez a intrínseca articulação dos intelectuais eugenistas a esse pensamento social:
Para vários dos autores eugenistas, entre eles Renato Kehl, Belisário Penna e Monteiro
Lobato, a política deveria significar a resolução dos graves problemas sociais. Esta política
seria resultado de um estudo correto da realidade e indicador seguro de uma solução, guiada
por uma análise objetiva. A política deveria ignorar a dinâmica das forças sociais. Sua ação
decorreria da visão do verdadeiro Brasil. Portanto, uma questão técnica. A política deveria
deslocar-se dos políticos – que manifestavam interesses individuais e classistas – para os
técnicos, profissionais que orientados pelas idéias científicas expressariam necessidades
nacionais. As instituições políticas adequadas teriam que ser as indicadas pela própria
realidade. Portanto, os problemas nacionais seriam resolvidos após a descoberta da realidade
nacional. O conhecimento objetivo da realidade levaria ao modelo político apropriado. E
adotado o modelo político correto, não existiria o conflito social, resultado da inadequação
das instituições políticas republicanas em solo brasileiro. Em resumo, para Kehl, era
explicitamente imperioso e necessário, fazer o “saneamento político”:
Esse discurso, no setor da saúde pública, definiria um modelo que, com o objetivo de
promover a elevação da capacidade produtiva dos trabalhadores levou a uma nova atribuição
social do médico36. O Brasil, identificado por esses médicos como uma terra de curandeiros e
36
No campo médico é inegável que o profissional recebia uma melhor remuneração ao buscar suas novas
atribuições, especialmente, em alguns casos, na administração pública. Por exemplo, a renda recebida pelos
44
A visão do trabalhador rural nacional presente na maior parte dos discursos era aquela
que foi adotada por Monteiro Lobato nos artigos do livro O Problema Vital. O Jeca Tatu era
um indolente, mas não totalmente incapaz. Ainda haveria, sem dúvida, quem afirmasse que o
trabalhador nacional era deficiente por influência do clima e da raça. Mas, o novo projeto era
otimista. Ele dizia: o homem pobre e doente é, sobretudo, uma vítima indefesa da doença, da
ignorância e da deficiência ou do vício de alimentação. Preserve-se das doenças, alimente-se
convenientemente, dê-lhe instrução e a produção do seu trabalho igualará à dos mais robustos
lavradores europeus. Os caipiras, caboclos e mestiços que escapam das doenças nada deixam
a desejar quanto ao vigor físico e à resistência aos mais árduos dos estrangeiros. Para Kehl, a
eugenização do Brasil seria uma redenção bíblica do país:
Não há, pois, obra mais benemérita e altamente valiosa, que a propaganda
sanitária de ensinar aos indivíduos a se protegerem contra as doenças
contagiosas, a obedecer sãos princípios de higiene individual, a manter as
habitações e suas redondezas limpas, incutindo-lhes no espírito a razão da
prosperidade de certos colonos, como os alemães e polacos, no Paraná e
Santa Catarina, em contraste com a pobreza e doença dos nossos patrícios
que, entretanto, vivem nas mesmas regiões, e portanto sob um mesmo clima.
(...) No dia em que a propaganda de higiene conseguir que o povo brasileiro
compreenda a significação da campanha de saneamento, iniciada
promissoramente entre nós, colaborando para esse patriótico “desideratum”,
de reabilitação sanitária, poder-se-á dizer que o Brasil é realmente o seio de
Abrahão dos tempos presentes.37
Porque somos doentes e miseráveis, enquanto outras nações gozam dos benefícios do
mundo moderno e civilizado? Perante a República, Penna, Kehl e Lobato interrogaram-se
dessa maneira. O retrato do Brasil doente era a resposta. Um retrato cruel. Uma imagem que a
percepção culta não podia reconhecer. A consciência de um Brasil rural e desconhecido era
um guia para a produção intelectual do período. Somente o conhecimento do país verdadeiro
forneceria dados para a análise e posterior organização da nação. Assim, as teses sanitaristas
esperavam superar os entraves para a superação da miséria e erradicação das doenças. Mas,
membros das expedições científicas superava, em muito, qualquer salário recebido pelos clínicos nas cidades
brasileiras. Sobre a remuneração desses profissionais, ver Coelho, 1999.
37
Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que
nos vai mostrar a Diretoria de Saneamento. Entrevista com Renato Kehl. Jornal A Noite, 30 out. 1922. Fundo
Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
45
imigração para o país com base na eugenia. Presidido por Oliveira Vianna, desse grupo
fizeram parte Renato Kehl e Roquette-Pinto.38
38
Consultar KOIFMAN (2007).
47
do Brasil, escrevendo os artigos que mais tarde constituiriam o livro publicado com este
nome. Em maio de 1918, durante a presidência de Wenceslau Brás, com a criação do Serviço
de Profilaxia Rural, Penna seria nomeado para a sua direção. Nesse cargo, ele instalou e
dirigiu dez postos sanitários nos subúrbios e zonas rurais do Distrito Federal. Na mesma
época, fundaria a Liga Pró-Saneamento do Brasil, realizando conferências em São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Os registros históricos assinalam que Penna, a partir de 1904, quando se envolveu com
as intervenções governamentais nas ações sanitárias públicas, teve um papel decisivo para
marcar a importância dessas atividades, desde a sua emergência como responsabilidade
estatal. Daquele ano até meados da década de 30, Penna esteve sempre ligado à direção dos
órgãos governamentais, intervindo na sociedade com a criação de entidades científicas e
48
políticas. Participou da formação não só de um setor público voltado para controlar as ações
coletivas da saúde e educativas, mas também na formação de um grupo profissional e técnico
com práticas próprias, ou seja, os educadores e sanitaristas, que deram capacidade intelectual
e executiva aos projetos.
Mas, Penna tem sua importância realçada devido à autoria do relatório da expedição.
O relato da viagem Neiva-Penna forneceu os símbolos que ajudaram a formular um país
moderno, saudável e culto. O diário da empreitada contribuiria para o diagnóstico definitivo
do Brasil – o país é pobre, doente e analfabeto – e para a solução: somente com o esforço dos
cientistas e intelectuais no trabalho de construção da nação, empreendidos na reforma dos
serviços de saúde pública e educação, seríamos, enfim, uma grande nação39.
39
Extremamente relevante foi a contribuição das imagens fotográficas nesse processo. Não se tratava mais de
operar as representações sociais somente com discursos textuais, mas com imagens fotográficas, “traços da
realidade” que os próprios viajantes retiraram. Sobre este assunto, consultar o Álbum A Ciência a Caminho da
Roça (1991) e o artigo Monteiro lobato e a fotografia como Diagnóstico, de Thielen & Santos (1989).
40
Freqüentemente Penna retornaria a esse ponto. Sempre enfatizando a comprovação empírica dos seus
discursos. “Fazendo tal afirmativa não me guio por informações escritas ou faladas, mas por verificação pessoal
no norte, no centro e no sul do país”. (PENNA, 1918:07).
49
No entanto, em 1928, Penna seguiu para o Rio Grande do Sul para organizar o serviço
de higiene e propaganda daquele estado, vindo ainda a participar das articulações da
Revolução de 30. Depois de vitorioso o movimento, foi empossado como diretor do
41
Porque somos miseráveis se o país é tão rico? Porque conhecemos tantos problemas, se nossas florestas são
plenas de riquezas. Porque somos um povo doente e pobre?
42
Carta de Penna a Lobato, em 1928. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
50
Departamento Nacional de Saúde Pública e ainda ocuparia interinamente, por duas ocasiões, a
pasta do Ministério da Educação e Saúde Pública. No período subseqüente ao triunfo do
movimento político que conduziu Vargas à Presidência, criaria vários projetos afins ao seu
plano de educação sanitária. Dentre eles um selo (taxa) para financiar os gastos com educação
e saúde e os lactários infantis. A Inauguração do primeiro lactário de higiene infantil deu-se
em 15/4/32, quando Penna era Diretor do DNSP e Ministro Interino da Educação e Saúde
Pública.
43
“Não se sabia onde acabava o apóstolo e onde começava o charlatão; onde terminava o higienista e principiava
o caixeiro-viajante do vermífugo, naquela bolinha humana de largura igual à altura que percorreu o Brasil como
uma espécie de pregador, de mestre, de camelô, de messias, de orador popular, de empresário e redentor –
gozado e sublime! – falando a crianças, a adultos, a velhos; discursando nos grupos escolares, nos ginásios, nas
faculdades, nas ruas, nos cinemas (como assisti em Belo Horizonte, aí pelos anos 20, no Odeon, onde ele urrava:
‘Dizem que sou caixeiro-viajante! Sou! Sou o caixeiro-viajante da Higiene! Sou e Sou!)’ orando a analfabetos e
a governantes; nas fazendas, nas cidades; ao norte e no sul – ensinando seu evangelho: ‘Botina, Necatorina e
Latrina! Nada de pés descalços por cujas solas penetra a larva filariforme depois da terceira muda... Botina, meus
senhores! Abaixo os remédios caseiros, as receitas de comadre, as garrafadas... Necatorina, meus amigos!
Necatorina e só Necatorina... Necatorina Merck, Cápsulas gelatinosas de tetracloreto de carbono puríssimo,
fabricadas por Merck, nos laboratórios na Alemanha, representados no Brasil exclusivamente por Daudt,
Oliveira e Cia. E, sobretudo nada das cagadas ao vento dos campos, à margem dos rios, em touceira de banana...
Buraco no chão, fossa sanitária, latrina, sempre latrina, só latrina, minhas excelentíssimas senhoras!”. (NAVA,
1983:283). Pedro Nava, em um dos seus livros memorialísticos, rememorou a figura do sanitarista Penna, um
orador inflamado em sua missão messiânica e patriótica em prol do saneamento do Brasil.
44
Carta de W. Luís a B. Penna, em 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
51
Foi depois dessa viagem [da expedição] que me capacitei de ser completa a
ignorância de nossa gente, letrada e iletrada, de comezinhos preceitos de
higiene, a causa primordial da doença endêmica multiforme e generalizada
com predominância das verminoses, do impaludismo e da sífilis, que
deprimem e degenera, física, mental e moralmente a nossa gente,
macabramente agravada pela cachaça, trapaça e desgraça (...) Desde então
aguardei que uma voz autorizada bradasse a verdade, para sair a campo com
os dados colhidos em todas as regiões do país. Essa foi a de Miguel Pereira,
em outubro de 1916, dizendo ser o Brasil ‘um imenso hospital’ (...) Desde
então, saí a campo pelo Correio da Manhã, escrevendo uma série de 13
artigos sobre saneamento rural, reunidos em 1918 – Saneamento do Brasil –
cuja imensa repercussão devo sobretudo a sua pena vigorosa na série de
artigos no Estado de São Paulo comentando-o, e enfeixados depois no
Problema Vital.46
Muito antes dessas viagens patrocinadas pelo estado republicano ao interior do país,
inúmeras expedições percorreram o Brasil em busca de informações e fatos que pudessem
explicar a diversidade e a complexidade natural e social do imenso país. Cientistas e
aventureiros viajaram por várias regiões realizando pesquisas, colhendo amostras,
catalogando ou simplesmente anotando observações. No entanto, uma marca dos que se
embrenharam pelas cidades e localidades mais distantes sempre foi a constatação e a surpresa
diante da miscigenação racial. Quase todos os relatos dos viajantes tocaram nesse ponto,
reprovando-o: “Isto não é uma nação. E nem será!”. Segundo esse pensamento, uma das
causas para a nossa condição, paralisados para sempre na barbárie, era a miscigenação.
Assim, descriam da caminhada brasileira para o topo da civilização. Como esse quadro era
visto por parte dos intelectuais, o que pensavam sobre o assunto? Vejamos, a seguir, um relato
e um comentário acerca dessa constatação:
45
Carta de B. Penna a W. Luís, em 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
46
Carta de Belisário Penna a Monteiro Lobato em 1928. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
52
No passado havia-se formado a base da intensa miscigenação étnica que seria o tema
central dos intelectuais. A miscigenação explicaria ou ao menos tornaria possível a
compreensão dos diferentes olhares e tensões que buscavam encontrar soluções para o país e
seu povo. Novas interpretações sobre a mestiçagem racial e suas condições sociais enchiam
de expectativas o cenário que se afirmava no cotidiano. É este cenário que cientistas,
bacharéis, engenheiros, enfim, intelectuais tentariam entender e modificar. Nas últimas
décadas do século XIX e início do XX, várias missões científicas rasgaram o país.
Entusiasmados pelas conquistas técnicas, especialistas em ciências excursionaram pela
imensidão do território brasileiro. Porém, vamos falar das expedições científicas do Instituto
Oswaldo Cruz. É o relatório de uma delas que nos interessa: a expedição Neiva-Penna.
Oswaldo Cruz havia ocupado o cargo de Diretor Geral da Saúde Pública de 1903 até
1909 e, nesse período, realizou-se uma exaustiva inspeção sanitária por vários portos
brasileiros. Em 1910, o médico Antônio Cardoso Fontes foi enviado à cidade de São Luís, no
Maranhão, para combater um surto de peste bubônica. Na mesma época, Carlos Chagas
dirigiu uma campanha contra a malária em Itatinga, São Paulo, onde a Companhia Docas de
Santos construía uma usina hidrelétrica. Logo depois, auxiliado por Arthur Neiva e Rocha
Faria, Carlos Chagas realizaria o mesmo serviço em Xerém, na Baixada Fluminense (RJ),
onde a Inspetoria Geral das Obras captava mananciais de água para o abastecimento do Rio de
Janeiro. No ano de 1907, Carlos Chagas tinha sido chamado para desempenhar missão de
identificação e profilaxia, ao lado do próprio Belisário Penna, em Minas Gerais, onde a
malária dificultava os trabalhos de prolongamento da linha da Estrada de Ferro Central do
Brasil até Pirapora. Na ocasião, teve sua atenção despertada para o barbeiro, um inseto muito
comum nas habitações rurais daquele estado. Após algumas investigações, verificou que o
53
inseto era o vetor de uma tripanossomíase desconhecida, batizada mais tarde, em sua
homenagem, com o nome de Doença de Chagas. Em 1910, Oswaldo Cruz inspecionou as
obras da Usina Hidrelétrica que uma companhia estrangeira estava construindo em Ribeirão
das Lages, no estado do Rio de Janeiro, uma vez que sobre ela pesavam as acusações de
responsabilidade pelo surto de malária naquela região. Nesse mesmo ano, Oswaldo Cruz
viajou em companhia de Belisário Penna à Amazônia, convidado pela empresa norte-
americana que construía a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em seu retorno, Oswaldo Cruz
parou em Belém onde foi convidado pelo Presidente do estado do Pará a dirigir uma
campanha contra a Febre Amarela naquela capital.
Das cinco expedições científicas realizadas pelo IOC durante esse período, a viagem
de Arthur Neiva e Belisário Penna foi a mais longa e a que percorreu a área mais extensa. Eles
e seus companheiros de viagem percorreram em cavalos, burros e a bordo de trens, quatro mil
quilômetros entre os meses de março a outubro de 1912. Essas viagens deixaram marcas
profundas no pensamento dos membros das expedições e, posteriormente, influenciaram os
demais intelectuais que tiveram acesso aos relatórios e contato com as fotografias. Monteiro
Lobato, comentando as imagens fotográficas – instantâneos cruéis, segundo sua expressão –
realizadas durante a expedição pelo fotógrafo José Teixeira, escreveria a respeito: “(...) bastou
isso para que o problema brasileiro se visse, pela primeira vez, enfocado sob um feixe de luz
rutilante. E instantaneamente vimo-lo evoluir para o terreno da aplicação prática”. (LOBATO,
1957a:297). No relatório, encontramos uma visão crítica e impiedosa da interpretação ufanista
do trabalhador rural. Segundo a narrativa desse documento, essa visão do interior do país
realizada pelos intelectuais alheios da verdadeira realidade seria um conjunto de “(...) falsas
informações dos que viajam por essas regiões, pintando em linguagem florida e imaginosa,
quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta”. (NEIVA & PENNA, 1999:222).
(...) Almas é um arraial maior que o Duro e muito mais antigo com as casas,
porém em ruínas, e em ruína a sua pequena e miserável população, assolada
pela moléstia de Chagas, que aí tem todas as modalidades graves. É um
pandemônio, e se DANTE houvesse visto coisa semelhante, antes de
descrever seu imortal Inferno, teria nele descrito mais um quadro dos mais
impressionantes e sugestivos. (NEIVA & PENNA, 1999:209).
em redes...” (NEIVA & PENNA, 1999:188). Nesse sentido, o que se apregoava era a
necessidade de um saber pronto a instrumentalizar a ação política, ou seja, conhecer o
território nacional, mapear as doenças, a miséria e suas riquezas, tendo em vista sua
exploração e utilização de acordo com os interesses da nação. Como declarou Oliveira
Vianna, justificando a razão para a pesquisa e a formação de dados sobre o país:
O movimento político pelo saneamento das áreas rurais concentrava suas atenções na
rejeição do determinismo negativo (influência degenerativa de clima, raça e geografia) e na
melhoria das condições de vida e, no caso, voltando-se para a erradicação das graves
endemias que assolavam os sertões47. No relatório, as deficiências do trabalhador rural foram
atribuídas à ausência de um saneamento que o protegesse das trágicas doenças tropicais:
47
Depois, os médicos responsáveis pela administração da saúde pública, elegeriam três endemias como as
principais que atacavam o “povo brasileiro”: a malária, a ancilostomíase e a doença de Chagas.
58
Raro o indivíduo que sabe o que é o Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra
terra, Pernambuco outra e assim os demais estados (...) Perguntados se essas
terras (Piauí, Ceará, Pernambuco, etc.) não estão ligados entre si,
constituindo uma nação, um país, dizem que não entendem isso. (NEIVA &
PENNA, 1999:191).
O arraial tem uma capela regular, mas muito pobre. Uma ou outra vez, nunca
mais de duas vezes ao ano, há missa. Há uma escola particular pouco
freqüentada. (1999:189).
foram documentadas em seus próprios locais de trabalho. Porém, o diário apenas assinalou em
pequenas passagens, comentários sobre as relações de trabalho encontradas:
48
PENNA, Belisário. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 05 jun. 1930. Carta aberta de Penna a Luiz Carlos
Prestes. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
49
Penna utilizava em seus textos as palavras “Politicalha” e “Politicagem” para criticar os “desmandos” da
República Velha. Embora sua produção intelectual concentre-se entre 1916 e 1932, o relatório de 1903, como
representante do comércio de Juiz de Fora (ele foi vereador nesta cidade), no Congresso Industrial, Comercial e
Agrícola de Belo Horizonte, do qual foi o relator da Comissão de Comércio, já enunciava a crítica que repetiria
por toda a vida: “... esse povo, curvado e abatido sob o peso das múltiplas contribuições lançadas pela União,
pelo Estado e pelas municipalidades, estas em sua grande maioria inteiramente alheias aos interesses gerais,
inscientes de sua missão econômico-administrativa, e entregues à mais desbragada politicagem, que mais que
todas as crises econômicas, tem prejudicado nosso país, depreciando e aviltando o caráter do seu povo.”
PENNA, Belisário. Relatório apresentado ao Congresso Agrícola, Industrial e Comercial. Belo Horizonte, 1903.
Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
61
Penna, Khel e Lobato foram colaboradores intensos dos jornais. Publicaram centenas
de textos. Cabe destacar que a produção de Lobato foi menor, mas, no entanto, foi muito
original. E, embora a quantidade de artigos e livros de Penna e Khel seja alta, em muitas
oportunidades os trabalhos desses dois constituem-se de variações sobre os mesmos temas.
Como desenvolvimento da campanha pelo “Saneamento do Brasil”, Penna escreveria no
jornal Correio da Manhã uma série de 13 artigos que, em 1918, seriam publicados em livro.
Ele tornara-se um crítico das idéias ufanistas que exacerbavam as supostas qualidades
positivas do sertanejo, da riqueza do solo e do próprio país, uma visão que se opunha ao
Brasil real que ele conhecera. Ao perceber o relatório da missão científica como o documento
que comprovava a verdadeira identidade nacional, Penna pensava, assim, corroborar a frase
de Miguel Pereira sobre o país: “(...) o Brasil é ainda um imenso hospital”.
50
Como reconhecia e afirmava Gobineau: “Es imposible no tener algo en cuenta la influencia reconocida por
muchos sabios a los climas, a la natureza del suelo, a la disposición topográfica, sobre el desarrollo de los
pueblos...” (GOBINEAU, 1937: 57).
62
Para este grupo, especialmente, Lobato, Penna e Kehl, os políticos brasileiros viviam
do suborno, da fraude e das negociatas. Segundo eles, os dirigentes políticos não tinham olhos
para ver o perigo de uma catástrofe social. A anarquia política e social vigente após a
Proclamação da República era o prenúncio de grandes tragédias sociais que podiam levar ao
“bolchevismo”. A preocupação era que o estado de irracionalidade social poderia constituir-se
em ameaça à integração física da nação. O país poderia sofrer uma revolta, um perigo que não
era percebido pelos intelectuais iludidos. Em carta a Afonso Penna Junior, após lamentar as
interferências políticas em sua gestão à frente do Departamento de Saneamento e Profilaxia
Rural, Penna manifestaria essa opinião, atribuindo parte da responsabilidade sobre a ausência
de qualquer ato concreto contra o precário estado de saúde da população à inadequação das
idéias liberais à República brasileira. Nesta correspondência ele comunicava suas intenções e
motivos para pedir demissão do cargo de diretor do departamento. Penna afirmava que o
Departamento Nacional de Saúde Pública e o próprio Instituto Oswaldo Cruz eram “duas
repartições de confusões, de desordem; dois ninhos de intrigas, de picuinhas, de competições
pessoais, onde não há trabalho regular, nem disciplina, nem respeito, nem justiça”. Ele diz que
havia feito tudo para impedir “que essa anarquia atingisse os serviços de minha diretoria”, e
concluía:
63
Nem por isso mudarei o meu feitio moral. Nem arrefecerá o meu amor a esta
terra. Continuarei na luta, sem dar quartel aos hipócritas e velhacos que
teimam em desagregar o bloco brasileiro e transformá-lo em várias
patriazinhas insignificantes. Para lá caminhamos a passos largos numa
carreira vertiginosa de estreito e mesquinho regionalismo, de colossais
negociatas. E completa cegueira dos grandes problemas nacionais – o de
saúde e da educação. Estou até estimando o que vai passando contra a minha
pessoa, porque, liberto das peias de um cargo público de confiança, terei
outro desembaraço para intensificar a campanha pelo saneamento moral,
complemento indispensável da já feita em prol do saneamento físico. O
Brasil está urgentemente necessitado de um Mussolini. Vou tentar a
empresa. [grifo nosso].51
No momento, nosso intuito não é construir biografias desses intelectuais, mas seria
interessante, em estudo futuro, examinar as críticas que, assim como os demais atores (Carlos
Chagas e Kehl), Penna sofreu quando estava à frente de cargos políticos e administrativos.
Um dos mais severos críticos dos sanitaristas, o escritor Lima Barreto, em crônicas publicadas
nos jornais e revistas cariocas, disparava comentários corrosivos contra Penna e o cientista
Carlos Chagas. Em texto intitulado “A superstição do Doutor” ele falou que “Sob o pretexto
de saneamento do interior, um jovem sábio, o senhor Belisário Penna, anda fazendo
propaganda da criação de um Ministério da Saúde Publica. Este moço é um caso típico de
presunção doutoral...”. (BARRETO, 2004:350). No fundo documental de Penna, na série
“Recortes de Jornais”, encontram-se inúmeras menções às nomeações políticas para
correligionários e parentes que Penna fazia. Vários médicos do movimento sanitarista, durante
a década de 1920 e após 1930, ocuparam postos importantes na administração pública.
Belisário Penna, por exemplo, desempenhava funções nos serviços de saúde pública desde as
campanhas sanitárias do início do século passado e, após a Revolução de 30, seria nomeado
diretor do Departamento Nacional de Saúde e ministro interino, em duas ocasiões, da pasta da
Educação e Saúde Pública. As possibilidades de acesso aos cargos públicos importantes
continuavam a depender das estratégias dos grupos políticos e/ou familiares conforme o grau
de proximidade aos grupos dominantes. No mesmo período, na passagem dos anos 20 para os
anos 30, Lobato era adido comercial nos EUA. Em algumas cartas trocadas nesta época, Kehl
e Penna “sugerem” a Lobato a possibilidade de uma oportunidade de trabalho naquele país,
graças às boas relações que o escritor estava fazendo em Nova York. Curiosamente, Kehl na
metade da década de 1920, abandonou o DNSP para ingressar na companhia BAYER de
remédios. Inclusive, foi por meio de um convite feito pela empresa de produtos farmacêuticos
que Renato Khel viajou a Europa por seis meses em 1928. Portanto, os três personagens,
Lobato, Penna e Kehl, mantiveram relações pessoais e profissionais com empresas de
51
Carta de Penna a Afonso Penna Junior, 16/11/1922. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
64
52
“Para estes intelectuais havia uma única palavra de ordem: dar um fim ao hiato que a República criara entre o
‘país político’ e o ‘país real’ e assim propor, instituições que correspondessem à ‘realidade nacional”.
(PÉCAULT, 1990:42).
53
Com a entrada de Penna no integralismo, o reconhecimento de características próprias da sociedade brasileira
seria ressaltado: “Do exposto posso responder que sou integralista, porque já o era desde mais de vinte anos;
porque creio em Deus e pratico a moral cristã; porque não sou um instintivo e quero o primado do espírito sobre
a matéria; porque não sou regionalista e amo com igual afeto os patrícios de todas as regiões do nosso Brasil, que
quero unido, integrados numa só aspiração, num só sentimento; porque amo a família, célula mater da sociedade,
que, sem ela, não passa de um rebanho de animais, como ora acontece na Rússia; porque, finalmente, tenho
plena e absoluta confiança em Plínio Salgado, o criador e o Chefe Nacional do Integralismo, predestinado por
Deus para libertar o Brasil do regionalismo destruidor da Pátria, da sua escravização ao capitalismo internacional
e da calamidade da peste bolchevista”. PENNA, B. Porque sou integralista. 29/06/1937. Fundo Pessoal Belisário
Penna, COC/Fiocruz. Não há referência sobre uma possível participação de Kehl no Integralismo, embora em
várias entrevistas aos jornais ele houvesse declarado que estava à espera da ajuda dos integralistas na tarefa de
salvar a nação através da Eugenia.
65
(...) tudo isto cópia do estrangeiro, do que nada tem conosco: a eletividade
dos juízes, o júri, o municipalismo, o federalismo, os princípios abstratos de
liberdade (...) Tínhamos o milagre da unidade e quisemos dividir-nos como
estavam os norte-americanos que batalhavam pela união, que não a tinham
como a tivemos e por imitação sacrificamos. (TORRES apud LEMOS,
1995:16).
54
Sobre movimento sanitarista consultar LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro:
Revam, 1999; HOCHMAN, Gilberto. A Era do Saneamento. São Paulo: Hucitec, 1998.
55
Alguns trabalhos foram realizados no intuito de analisar a importante contribuição de Lobato para a nossa
história cultural. Enio Passiani (2001) apresentou dissertação de mestrado em Sociologia na qual descreve a
influência de Lobato no campo literário brasileiro.
56
Sobre a construção do personagem Jeca, ver CAMPOS (1986) e ALVES FILHO (2003).
66
Nascido como um símbolo do trabalhador rural, em artigo escrito por Monteiro Lobato
para O Estado de São Paulo, Jeca tornou-se sinônimo de homem do interior. Inclusive, por
meio de sua narrativa, uma empresa de produtos farmacêuticos, difundiu um tônico,
propagando os seus valores terapêuticos, chegando a circular em milhões de exemplares nas
páginas do folheto “Jecatatuzinho”. A presença do homem da roça em campanhas de
educação higiênica, especialmente as direcionadas ao controle das endemias rurais, ajudou a
popularizar os cuidados com a higiene individual e a saúde pública nas primeiras décadas do
século XX. Caricatura do homem do interior, o Jeca é um dos mais conhecidos personagens
de nossa cultura. De caboclo preguiçoso, parasita e indolente à vítima da doença, a trajetória
do matuto desenvolvido por Lobato está relacionada ao papel conferido às políticas públicas
de saúde e de educação no desenvolvimento econômico e social do país. Trata-se de uma forte
representação social da identidade nacional, em que se articula o retrato pobre, ignorante e
doente da sociedade, especialmente dos trabalhadores rurais, à regeneração e salvação do
povo por meio da ação do Estado. Lobato foi uma personalidade central do campo intelectual,
sendo possível perceber em sua trajetória duas atividades, escritor e empresário editorial, que
visavam a um objetivo: a ampliação do número de leitores, por meio da renovação da
linguagem literária, pela modificação na distribuição e comercialização, causando um impacto
no incipiente mercado, ao produzir livros com o farto uso de desenhos e cores (PASSIANI,
2001).
Monteiro Lobato, em 1918, publicou O Problema Vital, reunindo em livro uma série
de 14 artigos veiculados pelo jornal O Estado de S. Paulo. Os artigos evidenciam uma
mudança de perspectiva quanto à análise do “homem rural” brasileiro. Ao criar o Jeca Tatu,
um modelo do homem do interior, Lobato estava alinhado com o pensamento social
dominante na passagem do século XIX para o século XX. Esse pensamento político adotava
as teorias científicas surgidas na Europa para pensar a nacionalidade brasileira. Para tais
idéias, a raça, o clima e a localização geográfica determinavam a evolução e a hierarquia das
sociedades humanas. Nesse momento, Lobato prosseguia denunciando uma determinada
corrente de interpretação dos elementos nacionais, denominada por ele de “caboclismo”, e
atribuindo ao mestiço, espécie degenerada em sua origem e totalmente adaptada ao meio, a
responsabilidade por todos os problemas do universo rural. O Jeca era indolente, incapaz de
participação na política e na produção fabril do mundo moderno. Não possuía qualquer noção
de pátria ou de nação. Era, portanto, incapaz de evolução e de progresso.
67
Neste artigo, aparecem os nomes de Manoel Peroba, Chico Marimbondo e Jeca Tatu.
Porém, segue-se um novo texto, novamente publicado no mesmo jornal, com o título de
“Urupês”, onde Lobato dá um panorama mais completo do Jeca e do seu modo de vida, em
oposição a uma literatura que exaltava o camponês brasileiro. Para Lobato, então fazendeiro
no interior paulista, a explicação para a apatia, a indolência e a incapacidade produtiva do
Jeca encontrava-se nas facilidades de sobrevivência proporcionadas pela mandioca, milho e
cana, e concluía:
57
“Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era ‘positivo’ e dos tais
que ‘só vendo’. O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido atrás da casa e disse: — Tire a
botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu. ― Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho.
Assim. Agora examine a pele com esta lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que
já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado. — E não
é que é mesmo? quem ‘havera’ de dizer!... — Pois é isso sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a
Ciência disser. — Nunca mais! Daqui por diante nha Ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima!
T’esconjuro! E pinga, então nem prá remédio...”. (LOBATO, 1957:333).
58
“A Concepção de progresso de Lobato ligava-se ao espírito científico, ao emprego do microscópio e ao uso do
remédio de laboratório, prescrito pelo doutor. O Jeca emergiria de sua miséria, por meio da ciência, do remédio
científico, da casa higiênica e da botina, todos resultantes do moderno, do progresso e do espírito científico”.
(RIBEIRO, 1993:210).
68
Alguns anos depois, Lobato lançaria uma publicação com o mesmo nome do segundo
artigo publicado no jornal paulista: o livro Urupês, reunindo contos seus anteriormente
editados, e incluindo os textos Velha Praga e Urupês, páginas militantes contra o homem
indolente e preguiçoso. No entanto, naquela conjuntura Lobato estava progressivamente
participando da campanha pelo saneamento das áreas rurais. Ele tomara contato com os
médicos Arthur Neiva, Belisário Penna e Renato Kehl, membros participantes do movimento
sanitarista. Assim, surgia um novo Jeca Tatu, o Jeca dos artigos de O Problema Vital. O
“Jecatatuzinho da Ressurreição” padecia dos mesmos males, mas após entrar em contato com
a ciência médica, sanitarista e eugênica, curava-se das moléstias que o levavam a ser
69
Mas, se Jeca mudava, o seu criador também mudaria. Marisa Lajolo afirmou que
“Monteiro Lobato parece ter percorrido quase todas as posições ideológicas disponíveis para
um intelectual do seu tempo”. (LAJOLO, 1983) A autora menciona uma personagem que
seria uma continuidade do Jeca Tatu: o Zé Brasil – publicado pela Editorial Vitória, em final
dos anos 40, o texto foi apreendido na época. Este Jeca era compreendido não como
preguiçoso nem como um mero doente, mas como um trabalhador explorado. “Coitado deste
Jeca. Tal qual eu. Tudo o que ele tinha eu também tenho. A mesma opilação, a mesma
maleita, a mesma miséria e até o mesmo cachorrinho” (LOBATO, apud LAJOLO, 1983). A
figura do caipira nacional aparecia pela terceira e última vez na obra de Lobato. Neste
momento, superando a intolerância patronal presente no primeiro (Velha Praga e Urupês) e a
ótica paternalista no segundo Jeca (Jecatatuzinho). Marisa Lajolo conclui:
em O Problema Vital, Lobato refere-se a essas imagens fotográficas ao falar de idéias capazes
de mudar a realidade:
Depois dos estudos de Carlos Chagas, Artur Neiva, Oswaldo Cruz, e depois
das veementíssimas palavras de Belisário Penna, governo nenhum, nenhuma
associação, nenhuma liga pode alegar ignorância. O véu foi levantado. O
microscópio falou. A fauna mentirosa dos apologistas que vêem ouro no que
é amarelo e luz na simples fosforescência pútrida, que recolha os safados
adjetivões que velaram durante tanto tempo os olhos da nação. (LOBATO,
1957a:257).
Em outro artigo, Lobato reafirmaria e consolidaria esta visão. Nesse momento, para
Lobato, o caboclo não era um homem decaído por força de uma preguiça e/ou indolência, mas
71
59
Segundo Skidmore “(...) essas passagens racistas da carta de Lobato de 3/2/1908 foram suprimidas na versão
da correspondência de Monteiro Lobato publicada nas Obras Completas (...)”. (SKIDMORE, 1976:307)
72
Porém, em nenhum outro texto conhecido de outro autor encontraremos uma louvação
tão explicitamente ufanista sobre a eugenia e sua capacidade de transformar a sociedade como
no romance O Presidente Negro de Monteiro Lobato.
Em 1926, um ano antes de embarcar para os EUA, onde ficaria até 1931, como adido
comercial do Brasil, Lobato lançou o texto “O Choque das Raças” ou “O Presidente Negro”.
Um romance futurista. Uma ficção científica. A história que saiu inicialmente em folhetim,
publicada no jornal A Manhã, narra uma disputa presidencial nos EUA de 2228, culminando
com a eleição de um presidente negro. O trabalho sairia em livro no natal de 1926. É uma
obra impregnada de eugenia. Eugenia em estado puro e cristalino. Uma nota publicada no
jornal A Manhã do dia 3 de setembro de 1926, anunciava a chegada nas páginas impressas do
periódico: “É um hino à Eugenia, às leis espartanas, e é um brado d’armas em prol do
princípio mágico que está fazendo da América do Norte um mundo dentro do mundo – A
Eficiência”.
Alguns dos trechos desse romance apresentam uma síntese das idéias eugenistas. Nele,
vamos encontrar críticas à filantropia e à previdência social, comentários sobre a idéia de
regular a união sexual, a presença da educação higiênica e eugênica como maneira de
uniformizar os comportamentos humanos e o elogio da eficiência industrial capitalista norte-
americana. Narrando as maravilhas da nação americana no futuro totalmente eugenizada o
romance descreve:
(...) não parava aí a intervenção seletiva. Se um ‘pai autorizado’ pretendia
casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenométrico,
onde lhes avaliavam o índice eugênico e lhes estudavam os problemas
relativos à harmonização somática e psíquica. (LOBATO, 1961: 282).
60
A primeira edição em livro do romance trazia a seguinte dedicatória: “A Arthur Neiva e Coelho Netto, dois
grandes mestres no trabalho, na ciência e nas letras”.
73
eleição de um presidente negro61. O livro foi esquecido62. Talvez devido ao seu conteúdo
extremamente real e cruel. Trechos inteiros descrevem atos violentos praticados contra os
negros pelos brancos, como prova da evolução eugênica dos Estados Unidos da América no
futuro. Porém, passados 80 anos, o que permanece atual é a crítica eugênica aos pesos mortos.
Segundo a ficção lobatiana a eficiência resolveria todos os problemas do povo americano. O
que a eficiência americana não resolvesse, a eugenia solucionaria. Para o famoso escritor
nacional de livros infantis, esses dois princípios salvariam a humanidade. Mas, quem eram os
pesos mortos? O vadio, o doente e o pobre. A eficiência e o ideal de produtividade
organizariam o trabalho e a eugenia criaria o trabalhador e cidadão produtivo. Em vez de
castigar os parasitas improdutivos e combatê-los com punição, remédio e esmola, vigoraria na
cidade eugenista, eficiente e futurista de Lobato aquela mesma crença alardeada por Kehl e
Penna numa sociedade governada por médicos. Assim, a solução estaria na eugenia, higiene e
eficiência, com vistas a eliminar as cargas inúteis que sobrecarregavam a sociedade científica
e capitalista.
Uma outra menção importante: em O Presidente Negro, há todo o receituário
eugenista. A preocupação não estava somente na raça ou na cor da pele. Era necessário
controlar o casamento dos mais aptos e evitar a procriação dos inaptos. Nos casos necessários,
utilizar a esterilização. Durante o período em que Lobato permaneceu nos EUA como adido
comercial, ele enviou inúmeras cartas aos seus amigos. Nessas missivas, ele manifestava todo
o seu poder crítico com comentários ácidos sobre o Brasil. Ao que parece, autorizado pela
intimidade da correspondência e distância física dos países, ele disparava contra tudo e não
poupava ninguém. Tanto ou mais que em seu romance O Presidente Negro, ele demonstrou,
íntima e privadamente, sua admiração pela eugenia. Encontramos na correspondência enviada
por Lobato para Renato Kehl e Arthur Neiva toda a sua carga de preconceitos. Trata-se de
uma concepção de construção de nação/sociedade civilizada, saudável, bastante autoritária
sob todos os pontos de vista:
Não creio, meu caro Renato, que possas editar teu livro aqui. Não pode
haver país onde a eugenia esteja mais proclamada, estudada, praticada,
‘livrada’ do que este. O número de estudos especializados que sobre tal
assunto aparecem é enorme e manuais como o teu circulam, aos centos e
estão em todas as escolas. A idéia está tão adiantada que já começam a
aparecer ‘filhos eugênicos’. Uma senhora de alta sociedade meses atrás
ocupou durante vários dias a front page dos jornais mexeriqueiros graças à
audácia com que, rompendo contra todos os preconceitos, resolveu ter um
61
Sobre este romance na obra de Lobato, ver HABIB (2003).
62
Recentemente, o romance foi reeditado.
74
É possível supor que essas páginas preconceituosas demonstram que Lobato, Penna e
Kehl estavam produzindo e veiculando idéias que, naquele momento, eram a expressão de um
certo racismo à brasileira, que reproduzia a hierarquia social. Inegavelmente, Lobato realizou
um mea culpa em sua opinião sobre o indolente e apático homem tatu e sua incapacidade. No
texto “Uma Explicação Desnecessária”, publicada na quarta edição do livro Urupês, em 1919,
Lobato assumia uma cristalina revisão ao implorar perdão ao pobre e doente Jeca64. Mas, para
sempre, publicamente ou no âmbito privado, manteria um olhar desconfiado para aqueles, que
ele, como os demais intelectuais eugenistas, chamaria de “brasileiros ineficientes”.
63
A Eugenia na América. Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl, Nova Iorque, 8/7/1929. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
64
Em carta de Lobato para Vianna em 15/04/1928, quando o escritor estava nos EUA como adido comercial do
Brasil, ele demonstra a ligação recorrente e explicativa que os intelectuais teriam com a noção de raça, ainda que
em alguns momentos este conceito seja trabalhado e modificado: “O que vim buscar neste país, sabes o que foi?
Um desânimo infinito-a certeza do que eu suspeitava, que a raça é tudo e que não temos raça...”. Lobato
terminou a correspondência num tom de lamento: “(...) Gobineau, Gobineau (...)”. Fundo Pessoal Oliveira
Vianna, Casa de Oliveira Vianna.
65
Sobre a aplicação das idéias de Darwin nas sociedades humanas e, especialmente, sua difusão no Brasil,
consultar REIS, 1994, op. cit.
75
A doutrina do darwinismo social era uma corrente de pensamento que esteve em voga
entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. Seus adeptos pregavam ser
possível transplantar a regra da sobrevivência dos mais aptos, com que Darwin explicou a
competição pela vida entre os animais, para analisar a sociedade humana. Entre os pensadores
europeus do século XIX que terão larga penetração no Brasil na virada do século –
influenciados pelos darwinistas sociais e também adeptos de um determinismo biológico
fortemente condenatório da miscigenação racial – podem-se destacar Agassiz e Gobineau,
autores que inclusive estiveram no Brasil. Segundo Reis (2000), a doutrina do darwinismo
social teve no Brasil, de forma geral, um uso inusitado, relacionado ao contexto nacional que
lhe sugeria novos significados, servindo para justificar as hierarquias e diferenças sociais
existentes, apontando para a inferioridade natural de largos setores da população, sem
impedir, entretanto, que se pusesse em pauta o tema da viabilidade dessa nação mestiça.67
Portanto, a principal preocupação dos intelectuais era com a questão racial e com a
intensa miscigenação. Por quê? Segundo as idéias cientificistas e naturalistas na Europa e no
Brasil, a forte miscigenação étnica acontecida no país conduzia para uma degeneração racial
que inviabilizaria uma “caminhada para o topo da civilização”. Assim, a miscigenação
representava um obstáculo para a construção da nação e desenvolvimento do país. Embora a
vertente pessimista da hibridação racial seja expressiva no Brasil, sua recepção no país,
segundo Reis (1994), caracterizou-se por uma apropriação em muitos casos original e
seletiva. Introduzida de forma a justificar um certo modelo de identidade nacional e de
hierarquia social, era freqüentemente adaptada.
66
“Em vez de absorção passiva ou mera repetição, o que implicaria negar ao Brasil chances de futuro, ocorreu
um esforço de apropriação, um trabalho de interpretação, reelaboração e mesmo de luta com princípios que nos
eram francamente desfavoráveis”.(LUCA, 1999:157).
67
Reis (2000) trabalhou a presença e o uso social das idéias cientificistas no Brasil. Trata-se de um trabalho
sobre o discurso eugênico na Educação.
76
cegas e impiedosamente, deve o homem fazer precavida, rápida e suavemente”.68 Mas, então,
o que fazer com os nossos pobres caipiras?
Mas, era necessário, primeiro, convencer as elites, depois, o povo. Uma das críticas de
Lobato em O Problema Vital dirigia-se às classes dirigentes da sociedade que, segundo ele,
parasitavam o organismo social, assim como as doenças tropicais prejudicavam os corpos dos
habitantes dos “sertões”. Um desses parasitas seriam os proprietários rurais, incapazes de
cuidar da saúde dos trabalhadores69.
Mas, segundo Lobato, eram também responsáveis pela miséria e doenças no Brasil, os
bacharéis, intelectuais e políticos distantes da análise realista e da necessária ação política
para superar o estado social e econômico deficitário. Lobato deixava bastante evidentes as
razões para a sua mudança de ênfase, realizando a análise crítica que para sempre faria da
sociedade brasileira:
68
GALTON apud KEHL, In: Boletim de Eugenia, Ano III, n.30, junho de 1931. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
69
Esta visão organicista das sociedades humanas era muito comum naquela conjuntura. Penna a utilizava
costumeiramente para explicitar seu pensamento e seus projetos: “A sociedade é um organismo, como o do
homem, que exige energia de trabalho dos seus aparelhos e constante vigilância dos seus órgãos para funcionar
com regularidade e proveito”. Trecho da Conferência realizada na Associação Brasileira de Educação, “A
Educação Rural. O Problema Brasileiro e sua enorme importância social e econômica”. Junho de 1931. Fundo
Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
78
Lobato, em O Problema Vital, comentaria os artigos escritos por Belisário Penna para
o jornal O Correio da Manhã, entre os meses de novembro de 1916 e janeiro de 1917,
reunidos no livro “O Saneamento do Brasil”. Depois desta obra, Penna produziria centenas de
textos. Entre 1916 e 1939, Penna escreveu livros, conferências e artigos de jornal. Nessa
publicação, Penna afirmava que os grandes males do Brasil eram a ignorância e a falta de
saúde do povo. Para o seu autor, a miséria nacional devia-se à mais completa ausência de
educação higiênica entre as populações urbanas e rurais carentes de ensinamentos e hábitos
higiênicos. O livro divide-se em duas partes. Na primeira, encontramos os artigos publicados
na imprensa; na segunda parte, Penna expunha a etiologia, o tratamento e os métodos de
profilaxia das principais endemias rurais (malária, doença de Chagas e ancilostomíase),
propondo o esboço de um plano de saneamento rural. Sua publicação tornou-se possível,
graças à inclusão nas páginas finais do volume de anúncios de publicidade das poucas e
iniciantes empresas de produtos médico-farmacêuticos. A renda advinda da comercialização
destinava-se a fornecer fundos à Liga Pró-Saneamento do Brasil, da qual Penna fora fundador.
Mas, Belisário Penna não deixava claro qual seria o modelo do progresso. Em alguns
momentos, defendia reformas nas estruturas de produção agrícola. Mas, não definiu quais
seriam estas mudanças. Tampouco explicitou um planejamento para a indústria. Suas críticas
direcionavam-se a uma generalizante política nacional. O certo é sua atenção com a
constituição do novo trabalhador, que pressupunha o aprendizado de habilidades e
comportamentos adequados ao novo mundo do trabalho. A inclusão do trabalhador no mundo
da produção industrial exigia sua transformação em cidadão produtivo, e que as razões da
79
apatia, indolência e incapacidade para o trabalho deixassem de ser atribuídas a ele próprio.
Em vez de fator determinante e invariável, a constituição física e moral do homem passou a
ser entendida como algo a ser moldado. Tudo era adaptável, passível de organização, a partir
de critérios e pressupostos ancorados na dominação técnico-científica70. Concepções bem
próximas daquelas defendidas por Renato Kehl, ao afirmar, por exemplo, que:
70
Sobre a articulação entre saber científico, mundo do trabalho e educação, ver o texto de Antonieta Antonacci,
onde ela desvenda o surgimento das organizações que pretendiam redefinir o mundo do trabalho sob um
planejamento científico (ANTONACCI, 1993). Ver também, da mesma autora, “Institucionalizar Ciências e
Tecnologia em Torno da Fundação do IDORT” (São Paulo, 1918/1931) In: Revista Brasileira de História, no 14,
São Paulo: Marco Zero, 1987.
71
Trecho igual foi encontrado em artigo intitulado “O HOMEM PURO-SANGUE. A possibilidade da sua
criação” com data de 13/04/1923: “No nosso país, onde campeiam livremente doenças endêmicas e epidêmicas,
o índice mórbido é, infelizmente, formidável; nestas condições, não é de esperar o seu progresso de acordo com
as possibilidades e riquezas desta prendada terra de Promissão. A política salvadora será aquela que conduzir o
seu povo à regeneração física, intelectual, moral, isto é, será a política sanitária, nela compreendida a do combate
ao analfabetismo, seguida aos depois da política eugênica”. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
72
“Está exuberantemente demonstrado que a nossa Constituição é uma lei teórica. Não é verdadeira
nacionalidade um país que não tem a sua política, e não há verdadeira política que não resulte do estudo racional
dos dados concretos da terra e da sociedade, observados e verificados pela experiência”. (TORRES, 1978: 151).
Vários dos textos dos intelectuais médicos demonstram proximidade com as idéias de Alberto Torres. Vianna e
Penna, inclusive, participaram da “Sociedade dos Amigos de Alberto Torres”, uma importante organização
política fundada após a morte do escritor fluminense.
80
(...) que corrijam por leis, não de empréstimo, mas naturais, resultantes de
observação inteligente do meio físico, moral e social dos governados, os
defeitos e as deficiências do trabalho; que cuidem da eficiência desses
valores, ampliando sua capacidade pela cultura, pela educação e pela
preservação da saúde. (PENNA, 1918:37).
73
PENNA, Belisário. A Escola e a Educação Higiênica. 23/11/1926. Fundo Pessoal Belisário Penna,
COC/Fiocruz.
81
Por que somos pobres e doentes, enquanto as outras nações gozam dos benefícios do
mundo civilizado? Perante àquele diagnostico, os intelectuais interrogaram-se. O retrato
obtido foi um Brasil pobre, doente e sem educação. A visão médico-organicista75 pensava a
sociedade como um organismo. O corpo social estava doente e contaminado por uma grave
doença: a politicalha. Os elementos “funestos” parasitavam a sociedade brasileira tal como as
doenças tropicais. As representações sociais76 ancoradas nessa visão organicista possuíam
uma eficácia simbólica, pois, devido a esse conjunto de interpretações, erigia-se um projeto de
nação e de sua história. As metáforas das doenças reproduziam representações que remetiam
para a vida social, política e cultural.
74
Penna, em vários momentos, mantém a sua crítica à “política republicana”. Quando ministro interino da Pasta
de Educação e Saúde Pública, manifestaria rotineiramente sua posição ao Presidente Getúlio Vargas. Em carta ao
presidente, reafirmava sua postura em relação à administração pública: “Peço propositalmente a simples
autonomia do DNSP, em vez de um ministério, para que seja ele dirigido sempre por um técnico, nunca por um
político. Ouso sugerir igual providência para o ensino e para a assistência pública, serviços técnicos de capital
importância, que devem estar inteiramente a coberto das mutações da política”. Carta de Penna a Vargas em
1932. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
75
A obra de Belisário possui inúmeras metáforas correspondentes à visão orgânica da sociedade. “Está o nosso
infeliz País infeccionado desse vírus temeroso, que contaminou todas as camadas da sociedade, infiltrou-se nos
velhos, nos moços, nas famílias, nos governantes e governados, rebaixando o caráter, obliterando a consciência,
corrompendo os costumes, destruindo as tradições, arruinando os sentimentos religiosos, dissolvendo a família e
profanando a sociedade.”(...) “de inocular na mocidade, que surge, um soro antitóxico, constituído de verdades
cruéis, com o fito de neutralizar os perniciosos efeitos das toxinas da politicalha, que desde muito vêm
corrompendo ou arruinando todos os elementos vitais da nação”. (PENNA, 1918:85-87).
76
As representações expressam a forma simbólica das imagens que auxiliam na construção de uma dada
realidade. A importância e relevância da pesquisa impõem-se a partir da constatação que as idéias eugenistas,
ainda que derrotadas num plano geral, persistiram e foram veiculadas nos mais variados meios. Por esse motivo
selecionamos de uma extensa produção intelectual algumas categorias por meio de referenciais teóricos das
ciências sociais, como representações sociais, e de alguns de seus principais teóricos como Gramsci e Bourdieu.
Incorporarmos a matriz Gramsciana por uma opção política e teórica, mas também devido a uma adequação
metodológica. Investigando as idéias, relações, atores e agências do campo eugênico nacional (Kehl, Sociedade
Eugênica de São Paulo, Lobato, DNSP, Liga Pró-Saneamento, Boletim de Eugenia), averiguamos que era
necessária esta escolha.
82
77
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
78
Khel compareceu à reunião promovida pela Associação Brasileira de Educação. Sua palestra repetiu os
mesmos argumentos de Penna: educação como meio de convencimento da importância da higiene e eugenia.
79
Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
84
Por meio dessa argumentação, caberia à educação higiênica gerar uma nova sociedade,
adequada aos ideais de racionalidade e produtividade. Com base nela, formularam-se normas
sobre o lazer, trabalho, educação e família. As idéias assumidas por esses intelectuais visavam
construir um Brasil moderno. Tratava-se da expressão de um ideário que buscava “civilizar” o
cidadão: a disciplina sobre os problemas da saúde do homem e da sociedade era
absolutamente necessária, entre os quais incluíam-se os hábitos dos indivíduos. Desse grupo
eugenista, quase todos entendiam que era vital a reforma e a implementação de novos valores
educacionais. Curiosamente, um deles, Octavio Domingues, zoólogo de formação,
apresentado pela historiografia sobre Eugenia no Brasil como mendelista, apresentaria em
suas obras, vários pontos, ressaltando a alta função regeneradora da educação.
Assim, para levar adiante o projeto higiênico, seria vital a cooperação da ciência, da
educação e das leis. Kehl e outros inseriam o projeto eugênico nessa visão, que seria
compartilhada pelos demais membros do campo eugênico:
80
PENNA, B. Brasil-Futuro Paraíso. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
85
Perdidos por este imenso Brasil, esparsos, longe dos centros civilizados,
analfabetos e pobres, tendo por teto choças de sapê, qual outro caminho
seguem os caipiras senão o da decadência? Que remédio dar a esses párias?
O que se não conhece – e o leitor certamente concorda conosco –, são os
desleixos de fazendeiros ricos ou arranjados, no que concerne às habitações
dadas aos seus auxiliares. Que o caipira construa suas casas de “pau-a-
pique”, nada há a estranhar. Mas em fazendas onde se levantam ótimas casas
para máquina, tulhas e estribarias, não se compreendem cabanas anti-
higiênicas para os empregados. A melhor lei, para que se melhorem as casas
dos operários rurais, é a educação do fazendeiro. Quando este não é rotineiro
atrasado; quando ele não tem consciência do valor que lhe representa a saúde
dos seus auxiliadores ou, pelo menos, tem o sentimento bastante para avaliar
o sofrimento humano, não precisa de leis que o obrigam a construir casas
saudáveis e a não permitir que os operários vivam amontoados em palhoças
insalubres. É por demais sabida a importância que tem para a saúde dum
indivíduo o seu habitat, o seu modo de vida, o trabalho e o descanso. A
moradia representa um ponto principal, tanto assim que, melhores sendo as
condições domiciliares, melhores serão naturalmente as do trabalhador.Pode-
se aferir da civilização dum povo pelas condições materiais e morais dos
seus operários. Entretanto, para nossa infelicidade, a situação ótima de um
proprietário não condiz com a dos operários. Aquele floresce enquanto estes
deperecem82.
81
PENNA, Saúde, Trabalho e Educação. 14/12/1926. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
82
KEHL, Renato. Como devem ser as casas dos trabalhadores rurais/O médico e o campo. In: Revista Chácaras
e Quintais. Jun. 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
86
À educação peçamos mais esse valioso auxilio, em favor do bom êxito das
medidas eugênicas. Pela educação, podemos ensinar a todos os humanos a
beleza das uniões eugênicas, e pregar o horror à reprodução entre os tipos
cuja herança biológica claudicante for uma ameaça fatal à descendência.
(DOMINGUES, 1929: 143).
83
Belisário Penna elaborou, através de seu plano de educação higiênica, uma estratégia de integração nacional:
“Pela educação higiênica na escola, no colégio, no lar, na fábrica, na fazenda e na caserna é que se conseguirá
formar a consciência sanitária nacional, que, alcançada, constituirá a base sólida do Brasil”. PENNA, Belisário.
Higiene e Civilização. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 06 out. 1925. Fundo Pessoal Belisário Penna,
COC/Fiocruz.
84
PENNA, B. “Escola Prática de Higiene”, 1923. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
85
PENNA, B. “Propaganda Sanitária”. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
86
“Já disse e repito: o médico higienista precisa ser um sociólogo.” PENNA, Belisário. “Consciência Sanitária e
educação higiênica”. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
87
Os militantes dos movimentos pela reforma dos serviços de educação e saúde pública
afirmavam a possibilidade de superar os graves problemas nacionais mediante a intervenção
do Estado na organização da vida social. Afinal, as insustentáveis e precárias condições de
saúde e educação haviam sido eleitas os problemas vitais do país. Eram obstáculos á
realização da verdadeira nacionalidade do Brasil. Os defensores da educação higiênica
propunham a centralização desses serviços a cargo do governo da União.
87
PENNA, Belisário. Propaganda Sanitária. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
88
Sobre este assunto, consultar HOCHMAN (1998). O autor analisa a articulação entre o fortalecimento do
poder central da União frente às políticas públicas de saúde e as representações estaduais no poder legislativo.
88
89
Sobre os equívocos cometidos pelos autores dos textos publicados no final dos anos 70, que estudaram a
história da saúde e da medicina sob uma orientação foucaultiana, ver REIS (1994). Transparece nestes trabalhos,
uma equivocada idéia de que o poder da medicina e dos médicos era total. Depois de duas décadas, fica claro o
alto grau de generalização presente nestas pesquisas, além da heterogeneidade teórica e metodológica. Mas,
contudo, estes pontos não invalidam a pioneira contribuição de alguns desses livros. Por exemplo, os trabalhos
“Danação da Norma” e “Ordem Médica” abriram um campo de análise. Sobre a influência, chamada por
Coelho de nefasta, que Foucault teria causado nos estudos sobre saúde e medicina no Brasil, ver COELHO
(1999). Entretanto, queremos deixar evidente que os médicos eugenistas ansiaram por definir e controlar
totalmente vários aspectos da vida, mesmo a privada, como Kehl transpareceu neste trecho: “Um indivíduo para
casar-se terá de sujeitar-se a uma minuciosa análise do seu registro e da sua própria pessoa; só depois da folha
corrida, fornecida pela repartição genealógica e do atestado de sanidade, terá o honroso direito ao casamento
prolífico. Sim, prolífico, porque os indivíduos considerados inaptos à procriação terão apenas direito aos
prazeres do hymeneu, quando previamente submetidos à esterilização”.(KEHL, 1929:21)
89
3.
CAPÍTULO II
A EUGENIA NO BRASIL
90
A melhor biografia de Galton ainda não tem tradução em língua portuguesa. Ver PELÀEZ (1985).
90
Norte, durante a primeira metade do século XX, que a eugenia assumiu uma das formas mais
agressivas, com seus conceitos modificando drasticamente a vida das pessoas. As idéias e
práticas eugênicas atuaram de maneira tão destrutiva que, entre 1906 e 1940, em vinte e sete
estados americanos da união, mais de 60.000 esterilizações compulsórias foram executadas de
formas extremamente polêmicas. Somente na Califórnia, mais de 15.000 mulheres e homens
teriam sofrido cirurgias desse tipo. Diversas leis e medidas legais foram tomadas para
esterilizar e excluir da sociedade americana indivíduos classificados como inadequados para
gerar filhos ou mesmo continuar vivendo.
No início do século XX, era fundado em Long Island, Estado de Nova York, um
conjunto de laboratórios para aprimoramento racial.91 Tornaram-se os principais e mais
influentes centros de pesquisas sobre raças do mundo. Contavam com auxílio financeiro de
empresários e instituições como a Fundação Rockefeller. Recentemente, nos primeiros anos
do século XXI, finalmente, foi reconhecido que os eugenistas que trabalharam nesses
laboratórios e escritórios pesquisaram e, principalmente, lutaram para que a legislação social
mantivesse grupos sociais, raciais e étnicos portadores de anomalias ou simplesmente gente
“estranha” separada dos supostamente possuidores de genes bons. Para tanto, organizaram
lobbies políticos para implantar políticas públicas segregacionistas, até mesmo buscando
restringir a imigração de grupos não anglo-saxões, do oriente ou mesmo da Europa
Mediterrânica. Também, nos últimos tempos, foi admitido que a Eugenia norte-americana
serviu de exemplo para as experiências nazistas.92 Como comprova o tom lamentoso do
eugenista Joseph Dejarnette, superintendente do Western State Hospital, da Virginia, quando
em 1934, reclamando das dificuldades em efetivar algumas ações esterilizadoras, declarou
que “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”. (BLACK, 2003:48).
91
Há muito pouco tempo, um destes centros de estudos esteve envolvido na polêmica afirmativa sobre a
supremacia biológica humana. O ganhador do Prêmio Nobel, James Watson, diretor de um laboratório de
pesquisas genéticas por mais de 50 anos, declarou que os “negros são menos inteligentes”. Diz o co-descobridor
da estrutura do DNA: ”Não há razão sólida a sustentar que as capacidades intelectuais de pessoas
geograficamente separadas durante sua evolução tenham se desenvolvido de forma idêntica”. In:Jornal O
GLOBO. Rio de Janeiro, 18 out. 2007.
92
Não que a Alemanha precisasse de exemplos. Como demonstram inúmeras publicações e o filme Arquitetura
da Destruição de Peter Cohen. Nesta película, o diretor narra a exterminação contra os doentes mentais e
membros de etnias diferentes da suposta “raça ariana”.
91
Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Belisário Penna, Lima Barreto, Manoel Bomfim,
entre outros, fizeram parte do campo intelectual e político brasileiro do início do século XX.
Operaram suas idéias sob fronteiras delimitadas. Alguns fortemente influenciados pela
eugenia. Outros, nem tanto. Lima Barreto e Manoel Bomfim sofreram, cada um deles,
93
“He observado ya que, de todos los grupos humanos, los que pertenecem a las naciones europeas y a sus
descendencia son los más bellos”.(GOBINEAU, 1937: 117). Controvertido e polêmico, Gobineau era suspeito de
sua nobreza duvidosa. Embora seja autor de um marco racista, o Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas, e sua passagem pelo Brasil tenha lhe causado dor, em artigo para a revista francesa Le Correspondant,
nos números de julho e setembro de 1874, sob o título de ‘L’Emigration au Bresil’, surpreendentemente,
descreve o Brasil como um paraíso. Ao que parece, foi um pequeno agrado ao seu amigo, o Imperador Pedro II.
Sobre esse “nobre” Conde, ver GAHYVA, 2006.
92
Se a miscigenação degenerava a raça, o povo e o Brasil, uma solução teria que ser
buscada para transformar o país numa grande nação, impedindo, favorecendo ou
potencializando o branqueamento da população brasileira. E como era o Brasil? Que porção
do mundo era essa que intelectuais estrangeiros e, também, nacionais julgavam que, dentro
dos padrões burgueses de civilização e progresso, não era um país viável? Quem vivia aqui?
Uma massa de população de negros, brancos e miscigenados, pobres e sob péssimas
condições sanitárias. O crescimento dos centros urbanos com o desenvolvimento do
capitalismo, a expansão da imigração estrangeira, o receio das epidemias, Febre Amarela e
Varíola, e das endemias rurais (ancilostomíase, malária e doença de Chagas) causavam um
permanente estado de medo. Devido a tal cenário, o Brasil era visto por uma determinada
fração do pensamento social como um país que não chegaria ao estágio civilizado, pois sua
população estava degenerada. Em meio a essas impressões, inúmeros reformadores surgiram,
pretendendo oferecer diagnósticos e remédios que evitariam a tragédia: a impossibilidade do
Brasil tornar-se uma nação. Se o país é tão rico - com suas florestas e seu ouro-, por quê
somos pobres e doentes? Os intelectuais médicos e a eugenia ajudariam a encontrar soluções
93
para essa tragédia/dilema. Pelo ponto de vista defendido pelos eugenistas e infelizmente
incorporado, muitas vezes, por pesquisadores contemporâneos, o Eugenismo estava fazendo
um bem à humanidade. Dizia Kehl que:
Kehl viveu a infância e a adolescência no interior de São Paulo. Influenciado por seu
pai, ingressou no curso de Farmácia na capital paulista. Mas, depois seguiria para o Rio de
Janeiro, com seu irmão Wladimir Ferraz Kehl, para a prestigiada e tradicional Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, então na Praia de Santa Luzia. Após a apresentação de sua tese
na cadeira de Dermatologia, formado médico, vamos encontrá-lo, no ano seguinte, clinicando
na capital paulista. Mas, o espaço de um pequeno consultório era insuficiente para Kehl.
Segundo declarações do próprio eugenista, seu interesse pelos estudos da hereditariedade
humana deveu-se à repercussão do Primeiro Congresso Internacional de Eugenia realizado
pela Eugenics Society, na cidade de Londres em 1912. Por essa época, ele teria escrito seu
primeiro trabalho sobre o tema, um estudo sobre as teorias de August Weissmann. Esse autor,
por certo, o marcou imensamente. Por toda a vida, ele o citaria em meio as suas
interpretações.
Em 1933, durante uma palestra realizada em sua cidade natal, constata-se indícios de
seu interesse pelo tema da transmissão das características hereditárias aos descendentes. Kehl,
ao narrar suas realizações dentro do campo eugênico, declarava que as observações dos tipos
humanos, a surpresa e o horror provocados diante das deformações físicas teriam despertado
sua curiosidade sobre hereditariedade e eugenia:
94
(...) Assim, pois, foi o espetáculo das deformidades e (...) também a estranha
diversidade de tipos humanos que me levaram a estudar os problemas
biológicos da hereditariedade e os da influência do meio sobre a espécie
humana94.
Na mesma época desse congresso mundial de eugenia, João Batista de Lacerda (1846-
1915), diretor do Museu Nacional por longo período (1895-1915), compareceu como o
delegado oficial do Brasil em outro evento importante para o campo eugênico, o Primeiro
Congresso Internacional das Raças, realizado na Universidade de Londres em junho de 1911.
Nessa importante reunião, também esteve presente o antropólogo Roquette-Pinto. A tese do
branqueamento progressivo da população brasileira adquiria seu status científico, no
momento da publicação dos trabalhos do então líder da prestigiada instituição de ciência
antropológica (SKIDMORE, 1976: 81). Em seu texto apresentado ao Congresso, após uma
breve introdução sobre as conseqüências da escravidão no país, o autor explicava a origem da
mestiçagem entre brancos e negros no Brasil por meio dos contatos sexuais dos senhores de
escravos com as escravas:
Ce qui surprend, dans cet état de choses, c’est que les maitres, sans aucune
délicatesse, aient fait des concubines de ces femmes esclaves. Naturellement
ces unions entre blancs et noirs devinrent rapidement três fréquentes. Il ne
fallut que trés peu d’années pour voir les alentours des domaines ruraux se
peupler de métis. (LACERDA, 1911: 10).
94
KEHL, Renato. In: O Médico da Coletividade, Conferência realizada em Limeira (SP). Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
95
95
Ver REIS (2000).
96
Este prognóstico foi criticado: ele aparecia demasiadamente longo e demorado aos
espíritos impacientes com o ritmo demonstrado pelo aludido processo de branqueamento do
país. Com os dados fornecidos por Roquette-Pinto, professor de antropologia do Museu
Nacional, Lacerda se esforçava para demonstrar, entretanto, que era inevitável o
desaparecimento dos negros brasileiros, mas sempre dentro do período anunciado. No ano
seguinte, em 1912, a partir das críticas recebidas, Lacerda escreveu um outro texto onde, em
linhas tênues, procurava melhorar sua tese aos apressados críticos que viam uma certa
lentidão naquele prognóstico. Era como se dissessem: teremos que esperar cem anos para
ficarmos mais brancos?96
Entretanto não se pode negar que o demorado contato entre as duas raças,
uma atrasada, outra adiantada, venha com o tempo fazer adquirir a raça
adiantada muitos dos vícios e defeitos da raça atrasada. Existe uma certa
ordem de hábitos, costumes e impressões que facilmente se comunicam de
uns a outros indivíduos, quando se dá entre um diuturno contato, e, mais
fácil se torna esta comunicabilidade, quando o contato se dá desde a tenra
idade. (LACERDA, 1912: 91).
96
“Provavelmente antes de um século a população será representada, na maior parte, por indivíduos da raça
branca, latina, e para a mesma época, o negro e o índio terão certamente desaparecido desta parte da América”.
(LACERDA, 1912: 95).
97
do Brasil em gente branca. O nosso problema é a educação dos que aí se acham, claros ou
escuros (...).” (ROQUETTE-PINTO, 1927: 62).
Por outro lado, os relatórios dos viajantes estrangeiros reforçavam, de uma maneira
geral, as idéias racistas e deterministas, na medida em que estavam impregnados das doutrinas
raciais européias. Pierre Denis, por exemplo, resumiu assim seu ponto de vista: “(...) a
inferioridade econômica e moral da população negra no Brasil não pode ser contestada (...)
São imprevidentes e não conhecem nenhuma das formas da ambição, único estímulo do
progresso. São modestos em seus desejos, com pouco se satisfazem.” (DENIS, 1909: 346).
Ele afirmava que os negros nunca teriam influência decisiva sobre os destinos do Brasil. Sua
análise acompanhava as idéias de um outro intelectual: Vacher de Lapouge. Esse empregava
para designar os indivíduos tidos como hereditariamente e eugenicamente bem dotados e seus
opostos, os degenerados, os conceitos tão caros à eugenia, eugênicos e disgênicos,
respectivamente. Para Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), o cruzamento de raças, a
mestiçagem, não era, sob nenhuma hipótese, aceitável, porém seu efeito pernicioso e negativo
não era definitivo. (LAPOUGE, 1896: 155). A partir de suas observações sobre animais e
procurando explicar a queda da taxa de natalidade francesa do século XIX, ele acusava o
mestiço como culpado, porque
o mestiço não sente a responsabilidade de perpetuar uma raça: ele sente que
nele se enfrentam as heranças de várias delas. Não é uma raça que ele
deveria perpetuar, são duas, são muitas, ou seja, o impossível em si mesmo.
(LAPOUGE, 1896: 192).
Para Lapouge, os mestiços não tinham futuro possível. Mas, se o pensamento social
brasileiro do final do século XIX até meados da segunda década do XX estava influenciado
por intelectuais como Gobineau e Louis Couty (1854-1884), pelo determinismo climático de
Henry Thomas Buckle (1821-1862)97, além do diagnóstico pessimista do zoólogo suíço
97
Um dos intelectuais das idéias deterministas foi Henry Thomas Buckle (1821-1862), cuja História da
Civilização na Inglaterra, é um verdadeiro manual do determinismo. Buckle analisou topografia, sistema
hidrográfico e ventos do Brasil, sem nunca ter estado no país. Porém, ele falava da luxuriante vegetação
ostentando sua força. Em meio a natureza, nenhuma função era deixada para o mestiço brasileiro. Buckle
98
radicado nos Estados Unidos, Agassiz, um novo ponto de vista começou a se afirmar. Os
exageros racistas de Gobineau, Vacher de Lapouge e de Houston Stewart Chamberlain (1855-
1927), seriam alterados. Ao qualificar os mestiços do Brasil como inferiores e desprovidos de
qualquer qualidade positiva, os autores citados negavam qualquer tipo de viabilidade ao país e
aos brasileiros98. Mas, isto mudaria99. E a chave para entendermos a especificidade da eugenia
nacional e as vicissitudes do campo eugênico brasileiro está nessa modificação. Afinal, como
compreender o eugenismo numa terra tão miscigenada e que, em alguns momentos
afirmativos de sua identidade nacional, exalta e até glorifica a capacidade de misturar raças,
culturas e etnias? Pois é precisamente nesse complexo e intrincado tecido de idéias e posições
que reside uma das explicações. Entre os pólos opostos da condenação do país como inviável
e a mitificação do Brasil como sendo o paraíso e os brasileiros como soldados morenos
imbatíveis, se superpõem os discursos.
descreveu que em nenhum outro lugar do mundo haveria tanto contraste entre a força do ambiente e a
mediocridade dos homens.
98
Na América Latina, o desejo de regeneração racial estava ligado diretamente à questão da identidade nacional.
Os intelectuais europeus avaliaram negativamente o país enquanto uma nação consolidada e uma identidade
definida. Dessa forma, vários países da América, abraçaram a eugenia como uma forma de encontrar respostas
satisfatórias e possíveis de melhoramento racial.
99
Mudaria, mas não transformaria. A influência desses diagnósticos cruéis a respeito do Brasil, dos negros e
mestiços, impregnaria durante um bom tempo. Todas as análises sociais fariam diagnósticos que ainda
conteriam, por mais residual que fosse, um desejo inconfessado de que seria melhor para o país, se tivéssemos
um outro “povo”. Tenho sérias desconfianças que, até hoje, em 2008, continuam habitando em corações e
mentes, o desejo de “matar o povo” ou trocá-lo.
99
ligada ao meio geográfico. Isto proporcionava, segundo ele, as bases para a formação de uma
aristocracia rural no país, à qual pertenciam alguns mestiços proprietários de terras. Esses
mestiços possuíam algum valor. Vianna os designava de eugênicos.
Muitas vezes, sob a chancela de leituras equivocadas ou realizadas com pressa e sem
critérios, o racismo científico é totalmente atribuído aos autores nacionais predominantes na
chamada Primeira República. No entanto, muitos desses agentes sociais, com pouquíssimas
exceções, estavam procurando um caminho para o povo ou raça que representasse a sociedade
brasileira, afirmando que éramos um país viável. Enquanto que os autores identificados com o
determinismo biológico negavam qualquer chance para o homem e a terra no Brasil. Os
autores sanitaristas e eugenistas sofriam, de alguma forma, influências do racismo cientfico
do século XIX. Aconteceu a Reversibilidade da Degeneração Racial. Em lugar de negar a
nação, passou-se a tentativa de salvá-la. O que estamos demonstrando, são as tensões
existentes entre as diferentes propostas. Porém, é certo e, temos alertado, ao longo da tese,
que as teses deterministas e racistas nunca foram completamente abandonadas.
100
“Em regra, o que chamamos mulato é o mulato inferior, incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais
baixas da sociedade e provido do cruzamento do branco com o negro de tipo inferior. Há, porém, mulatos
superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos suscetíveis da arianização, capazes de
colaborar com os brancos na organização e civilização do país.” (VIANNA, 1987: 101).
100
Nosso objetivo não é apresentar uma análise conclusiva acerca do racismo científico102
ou do movimento sanitarista, ou ainda, sobre o campo eugênico nacional. O que pretendemos
é esclarecer alguns pontos que permanecem nebulosos.
101
Kehl declarava no Correio da Manhã: “Não tenho em mira, tratando do cruzamento de raça, deprimir uma,
rebaixar outra, para elevar a branca. Interessa-me apenas, a questão do cruzamento para a melhoria progressiva
da nossa nacionalidade”. KEHL, Renato. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 16 mai. 1924. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz. Convém alertar que não estamos preocupados com as possíveis manifestações
racistas dos autores. Evidentemente, esses homens demonstram-se profundamente racistas. Queremos analisar as
implicações sociais e políticas das considerações realizadas. Indagamos como era imaginado o progresso do país.
Como os intelectuais pensavam transformar o Brasil identificado como uma terra de feios, pobres e doentes em
um lugar promissor?
102
Sobre racismo científico, consultar MAIO & SANTOS (1998). Ver também MOOG (1978).
101
O maior representante da Eugenia no Brasil foi, sem dúvida, o médico Renato Kehl.
Mas, ele não estava sozinho. Produziu a maior parte de sua obra intelectual em uma época
onde a preocupação com a identidade nacional e a formação da nacionalidade imperava. Para
entender os conceitos presentes na obra de Kehl é necessário compreender o percurso
realizado pelo autor. Ele se apoiava nos saberes das ciências biomédicas emergentes para
responder como era o Brasil e como deveria ser construída a nacionalidade brasileira. Ao
formular as representações sobre o país, Kehl tentava explicar a sociedade. Um período onde
os intelectuais que pensavam hegemonicamente103 o Brasil, além de considerar a raça branca
superior às demais, condenavam a composição racial heterogênea, porque essa gerava seres
degenerados. De um modo geral, era assim que pensavam o grupo de intelectuais que
estimavam a miscigenação como um mal insanável104 e o Brasil completamente inviável. No
entanto, os discursos eugênicos brasileiros e, principalmente, o pensamento de Kehl,
apresentaram-se de maneira muito singular. Para além da simples consideração da
inviabilidade do Brasil, devido ao seu povo mestiço, o eugenismo brasileiro reconhecia e
lamentava essas inferioridades, mas trataria da construção e reforma desse povo e do país. E,
também diferentemente dos outros representantes intelectuais do movimento sanitarista, que
congregava cientistas, médicos, educadores e demais intelectuais, membros importantes do
pensamento social brasileiro, Kehl adicionaria ao conjunto de ações preconizadoras para a
salvação do Brasil a coerção, ou, ao menos, a total planificação estatal para a vida humana.
No Brasil, a hegemonia do racismo científico e do determinismo biológico metamorfosear-se-
ia num eugenismo peculiar, próprio do campo eugênico brasileiro.
No seio do campo eugênico o tema da esterilização vai ganhar força no final dos anos
20. No entanto, Khel já defendia esse procedimento nos anos anteriores. Queremos destacar
que, embora seu conceito de eugenia seja amplo e um pouco flexível, Kehl era um dos poucos
autores que, mesmo antes de 1920, já pensava em intervir energicamente na sociedade por
meio de exames pré-nupciais, autorização estatal para o casamento, esterilização e isolamento
compulsório. Mas, também, desde o início da campanha eugenista (1917) ele não descartava
as outras ações. Vamos lembrar que, em 1922, Renato Khel participou da construção de um
Museu da Higiene apresentado nas comemorações do Centenário da Independência. Esse
tríplice aspecto que a Eugenia assumiu no Brasil é relevante destacar. Nesse sentido, Renato
Khel foi o mais legítimo representante de um campo eugênico nacional, articulado com a
construção da ordem e de uma cidadania excludentes. Para tanto, as ações educativas e
sanitaristas foram analisadas como imprescindíveis para salvar o povo, mas atos como a
esterilização compulsória, eliminando os criminosos e “grandes degenerados”, eram
necessários, para que o Brasil fosse transformado numa nação moderna. Em suma, essa era a
visão do eugenista de Limeira:
105
Sobre esta hibridização de estratégias, largamente aceita por intelectuais eugenistas, que, ao que parece, não
se contentavam ou até mesmo duvidavam da eficácia de uma ou de outra teoria científica, encontramos
afirmações que indicam a certeza de que utilizando tais várias ações, haveria a chance de o Brasil tornar-se uma
grande nação. Vejam a esse respeito, as palavras de Miguel Couto: “Não podemos deixar nossa pátria em
atraso: cada geração plasma a seguinte, por meios suaves e suasórios se possíveis; coercitivos se necessários”.
In: COUTO, Miguel. Medicina e Cultura, Rio de Janeiro, 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
103
106
KEHL. A Esterilização sob o ponto de vista eugênico. In: Brazil-Medico. 26/03/1921. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
105
estavam presentes em quase todos os discursos dos agentes do campo eugênico. Várias das
leituras efetuadas pela historiografia sobre a eugenia no Brasil, insistem em ler na trajetória da
eugenia latina, a oposição entre os adeptos do neolamarckismo e do mendelismo como um
elemento crucial e determinante do campo, apesar da história política do movimento eugênico
da América Latina ainda está por ser investigada e certamente tem nexos que ultrapassam
querelas científicas. Por exemplo, a articulação das idéias e práticas eugenistas com os
sucessivos governos autoritários e repressivos das repúblicas latino-americanas durante o
seculo XX.
107
August Friedrich Leopold Weismann (1834-1914) é reconhecido por duas contribuições com relação à teoria
da hereditariedade. A primeira foi sua crítica ao princípio da herança das características adquiridas. A segunda se
refere à distinção entre o plasma germinativo (responsável pela hereditariedade, presente nas células
reprodutivas) e o plasma somático (células do corpo). Weismann admitia que o plasma germinativo era
transmitido de uma geração a outra.
106
Como podemos averiguar nos relevantes trechos retirados das obras dos intelectuais
eugenistas, as distinções sobre a função da educação e da capacidade de transmitir
características eram tênues. Por meio da literatuta historiográfica especializada, apenas Kehl é
nomeado como neolamarckista. No entanto, mesmo considerando que o discurso de Roquette-
Pinto se originava das concepções mendelistas, é preciso destacar que esse antropólogo
compartilhava das idéias sanitaristas para reformar a sociedade. Será (ia) uma falsa oposição
entre as teorias mendelistas e neolamarckistas?
108
Consideramos que, embora existissem divergências, estas diferenciações provêm muito mais das afirmações
realizadas pelos pesquisadores contemporâneos do que de uma real distinção entre os intelectuais eugenistas ou
sanitaristas.
109
Em artigo publicado na Revista do Brasil o próprio Kehl afirmou que: “Eugenia é a ciência da boa geração.
Ela não visa, como parecerá a muitos, unicamente proteger a humanidade do cogumelar de gentes feias. Seus
objetivos não se restringem à calipedia, isto é ter filhos bonitos. A beleza é um ideal eugênico. Mas a ciência de
Galton não tem horizontes limitados; ao contrário, seus intuitos além de complexos são de uma maior
elevação...” (KEHL apud LUCA, 1999:224).
108
por um conjunto articulado de idéias, práticas sociais, atores coletivos e conjuntura histórica.
Assim, como a eugenia manifestou-se nos países de maneiras diferentes – e isto é
naturalizado, quase identificado como se a eugenia devesse estar irremediavelmente e
organicamente ligado às nações, ignorando-se as diferentes formações sociais, a história e as
classes –, igualmente as políticas públicas vêem sendo analisadas como uma extensão natural
do Estado neutro. E o aparelho estatal sempre identificado como um corpo homogêneo e
orientado por um planejamento científico e, portanto, correto e imparcial.
Mas, não havia imparcialidade nas ações eugênicas propostas. Eugenistas e sanitaristas
procuraram influenciar politicamente as políticas governamentais. Comumente, encontramos
na visão naturalista das políticas públicas, a mesma ótica desprovida de historicidade que
nega ou menospreza a existência de classes sociais110 nas sociedades humanas. Seguindo essa
linha de raciocínio teórico, a historiografia111 que vêem pesquisando a Eugenia tende a
reproduzir os conceitos que os próprios intelectuais do campo utilizavam. Dessa forma, a
hibridização de estratégias eugênicas torna-se um equívoco cometido pelos agentes sociais ou
pelas correntes de pensamento. No entanto, consideramos que, diante de nossa opção teórica-
metodológica, a conjugação de propostas aparentememte inconciliáveis representou
efetivamente uma estratégia política produzida por homens vivendo em sociedades
historicamente situadas no tempo e no espaço. Preventiva, negativa e positiva são conceitos
que os atores sociais utilizavam em seus argumentos e que devemos criticar em nossas
investigações. Não podem constituir-se em armas analíticas dos pesquisadores localizados no
tempo presente em instituições de pesquisa e ensino.
construir uma nova e almejada sociedade. Foi considerado absolutamente necessário para a
regeneração dos indivíduos que as atitudes sociais fossem adaptadas aos símbolos
emergentes. Em reveladora entrevista, no ano de 1937, um exaltado Renato Kehl demonstrava
preocupação com o comportamento dos Jecas, pois, segundo o eugenista, os hábitos dos
brasileiros eram impróprios para um povo civilizado: “Endireite o corpo! Levante a cabeça!
Brasileiro: firme! Não me posso conformar com a atitude mole, indolente, inexpressiva –
muitas vezes grosseira ou cafajéstica que assumem certos indivíduos em público”. E, mais
adiante, condenava “as atitudes habituais do nosso Jeca, cujas posturas se acham
suficientemente fixadas em charges humorísticas dos nossos caricaturistas”.112
Também há notícias de que, por volta de 1912, na cidade de Salvador (BA), Alfredo
Ferreira de Magalhães realizou uma conferência sobre Puericultura e Eugenia. Magalhães,
professor da Faculdade de Medicina, que também participou do Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia, demonstrava a educação como meio de evitar a propagação dos vícios
sociais, vistos como responsáveis pela degeneração física e moral da raça: o alcoolismo e as
doenças venéreas. Porém, somente em 1914, o médico Alexandre Tepedino, ao colar grau em
medicina, apresentou a primeira tese médica totalmente dedicada ao tema. Com o título de
Eugenia, o trabalho foi orientado por Miguel Couto, que seria um dos principais participantes
do Congresso Nacional, tendo integrado por várias legislaturas, movimentos políticos dentro
do campo eugênico. Como prova da força política desse grupo, dezenas de médicos
112
Entrevista com Renato Kehl, Jornal A Offensiva, 10 dez. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
110
eugenistas foram membros da constituinte que prepararia a nova Carta após a Revolução de
1930. Ressaltaremos a atuação de Couto na formulação e implementação de políticas para o
controle eugênico da imigração.
Portanto, ainda demoraria alguns anos para que a temática da eugenia se impusesse.
Foi somente em 1917, que ela ganhou definitivamente, as páginas dos jornais e as discussões
políticas e intelectuais sobre os rumos da raça e do Brasil tornaram-se corriqueiras. No texto
que é considerado pelos atores sociais e pesquisadores do eugenismo como o marco fundador
da Eugenia no Brasil, Khel afirmava que eram humanitários os desígnios do eugenismo:
O próprio Kehl, “Pai” da Eugenia entre nós, reconhecia as várias iniciativas anteriores
em prol da nascente ciência, inclusive, o pedido que o Professor Agostinho Jose de Souza
Lima apresentou em 1897 solicitando apoio à Academia Nacional de Medicina para o
estabelecimento de leis tornando obrigatório o exame pré-nupcial para a realização de
casamentos e o confinamento legal de doentes tuberculosos e sifilíticos, mas, somente em
abril de 1917, a Eugenia teve a sua “inauguração” no Brasil. Na mencionada palestra no
Congresso de 1929, Kehl inventariou os trabalhos pioneiros sobre eugenia. No texto, o
eugenista detalhava os trabalhos anteriores a palestra de 1917. Foram poucos. Erasmo Braga,
Horácio de Carvalho e João Ribeiro escreveram pequenos artigos na imprensa paulista e
carioca. Kehl também não esqueceu de citar que, em 1914, apareceria a tese inteiramente
dedicada à Eugenia. Apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por Alexandre
Tepedino.114 É curioso observar que o trabalho escrito por Tepedino como requisito para a
graduação em Medicina foi apresentada quando Kehl era ainda um estudante em formação.
113
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, p.75. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
114
Tepedino foi orientado por Miguel Couto.
111
115
Kehl, em vários momentos da sua vida, deixou claro que considerava a conferência realizada na ACM no dia
13/04/1917, como sendo o marco fundador da Eugenia no Brasil.
112
116
A repercussão da Liga foi ampla. Da ata de fundação constam nomes influentes da política e da cultura e
ciência. Meses após a criação da associação, intelectuais requeriam sua inscrição junto a ela. Em carta datada de
24 de abril de 1918, dirigida a Roquette-Pinto, Plínio Cavalcante comunicava em nome da Liga que estava aceita
sua entrada no conselho do grupo: “Venho com a maior satisfação comunicar-vos ter sido a vosso ilustre nome
incluído e unanimemente aceito entre os membros do conselho supremo da Liga Pró Saneamento do Brasil”.
Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
113
instrução, e não por medidas ditadas pela força da lei. Assim, serão
eliminados os indivíduos despidos de senso, os de vida parasitaria.117
Aliás, poucos grupos souberam usar tão bem as relações pessoais para consolidarem
suas posições sociais como as famílias Mesquita e Carvalho, que estavam unidas por vários
laços. Júlio de Mesquita (1862-1927) e Arnaldo Vieira de Carvalho casaram seus filhos: Júlio
de Mesquita Filho (1892-1963) e Marina Vieira de Carvalho; Francisco Ferreira de Mesquita
(1897-1963) e Alice Vieira de Carvalho (1901-1992) e, finalmente, Judith de Mesquita (1897-
1963) e Carlos Vieira de Carvalho (1898-1954). (GUIMARAES, 1967). Carvalho, um
legítimo representante das auto declaradas “classes produtoras”, nascido em Campinas no dia
5 de janeiro de 1867, interior do estado de São Paulo, formou-se em Medicina no Rio de
Janeiro em 1889. Sua tese de conclusão do curso, apresentada na Cadeira de Medicina e
Cirurgia de Crianças, foi o Tratamento das Coxalgias. Trabalhou na clínica da Santa Casa de
Misericórdia e no serviço de imigração como médico da Hospedaria de Imigrantes. Foi diretor
do Instituto Vacinogênico de São Paulo de 1893 a 1913 e sócio fundador da Sociedade de
Medicina e Cirurgia de São Paulo em 1895, sendo seu presidente entre 1901 e 1906. Sua
figura está de tal forma associada à Faculdade de Medicina de São Paulo, instituição que
117
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, 13 abr. 1917, p.79.
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
118
Sobre a relação da Liga Nacionalista e o jornal paulista, ver o texto de MEDEIROS, Valéria Antonia. O
Jornal O Estado de São Paulo como principal divulgador das propostas educacionais da Liga Nacionalista de
São Paulo (1916-1924). Disponível em <http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/282ValeriaAntoniaMedeiros.pdf>.
Acesso em: 16 ago. 2008. Aliás, está para ser escrito um trabalho que investigue as relações dos intelectuais
sanitaristas e eugenistas com a grande imprensa da época. Vale lembrar que além da intensa produção
jornalística de Kehl, os livros O Problema Vital, de Lobato, e o Saneamento do Brasil, de Penna, foram
originalmente artigos veiculados nos jornais O Estado de São Paulo e Correio da Manhã. Ver também
MORAES (1983).
114
ajudou a criar, sendo seu diretor de 1913 a 1920, que ela foi chamada de “a Casa de
Arnaldo”.119 Faleceu em 1920.
119
Sobre instituições e médicos paulistas, ver TEIXEIRA (2007).
120
Carta de Lobato a Kehl. São Paulo, 06 abr. 1918. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
121
KEHL, Renato. In: ANNAES DE EUGENIA, “Conferência de Propaganda Eugênica”, 13 abr. 1917, p.79.
Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz. No volume ANNAES DE EUGENIA editado por Monteiro Lobato,
estão enfeixados textos da Sociedade Eugênica de São Paulo, além da palestra de Kehl na ACM. Sob o título de
115
Dessa maneira, após a publicação da palestra realizada na ACM, Renato Kehl passou a
congregar intelectuais de diversas origens, quase todos médicos, para o debate em torno da
construção da nacionalidade brasileira. Desse empenho nasceu a Sociedade Eugênica de São
Paulo, cujos objetivos eram: os estudos sobre hereditariedade, educação higiênica e sexual,
casamentos, leis de imigração, tratamento dos doentes e encarceramento dos indivíduos
portadores de patologia graves. Participaram dessa sociedade como diretores e fundadores:
Presidentes Honorários, Belisário Penna, Amâncio de Carvalho e Agostinho José de Souza
Lima. Também Arnaldo Vieira de Carvalho (primeiro presidente); Olegário Moura e Luiz
Pereira Barreto (vices-presidentes); Renato Kehl (secretário geral); Fernando de Azevedo
(primeiro secretário); T.H. Alvarenga e Xavier da Silva (segundos secretários); Argemiro
“Conferência de Propaganda Eugênica” está publicada o discurso que é considerado o marco fundador da
Eugenia no Brasil.
122
Em diversas passagens, Kehl manifestou desagrado pela atuação contrária da Igreja Católica à eugenia. A
resistência ficaria registrada na Casti Connubii, uma encíclica promulgada pelo Papa Pio XI em 1930. Ela
reiterava a santidade do matrimônio e proibia o uso de qualquer forma artificial de controle da natalidade e
afirmava a proibição do aborto. Explanava sobre a autoridade da Igreja em questões morais e advogava a
cooperação entre o poder civil e a Igreja. Essa posição oficial refletir-se-ia na trajetória da eugenia nos países
católicos.
116
123
Em REIS (1994), podemos ver que a participação dos médicos psiquiatras foi tão ou mais intensa que dos
demais profissionais. A bibliografia acadêmica sobre eugenia tem valorizado a participação dos sanitaristas e
negligenciado a presença dos outros profissionais.
117
No final do ano de 1919, apesar do entusiasmo criado com o debate provocado pelas
inúmeras associações médicas e nacionalistas, proporcionando a publicação de obras, onde
intelectuais como Olavo Bilac, Belisário Penna, Monteiro Lobato, Lima Barreto124 e demais
debatiam as causas e os remédios para curar o Brasil, a sociedade de eugenistas foi extinta. A
bibliografia existente aponta duas causas: a ida de Renato Kehl para o Rio de Janeiro e a
morte de Arnaldo Vieira de Carvalho. Fatos, que sem dúvida, provocaram um vazio,
especialmente devido à capacidade política de Kehl. Com a extinção da Sociedade, os textos,
artigos e conferências foram reunidos num volume editado com o título de “Annaes de
Eugenia”. Organizados por Renato Kehl e publicados por Monteiro Lobato, eles representam
o primeiro conjunto documental importante onde é possível avaliar o rumo das idéias
eugenistas. Reuniram-se mais de uma dezena de textos, inclusive a palestra inicial de Kehl,
onde a nova ciência foi saudada como o novo e milagroso remédio para os males do Brasil.
Não seria a transferência de Kehl para o Rio de Janeiro que causaria um resfriamento
do ardor eugênico. O campo eugênico já estava suficientemente organizado. Além de
encontrar na cidade maravilhosa, abrigo profissional junto ao Serviço de Profilaxia Rural,
Kehl participaria, em 1923, da fundação de uma outra associação, reunindo intelectuais de
variadas origens e categorias profissionais, embora estivesse muita bem representada pelos
médicos psiquiatras: a Liga Brasileira de Higiene Mental. A LBHM foi criada pelo psiquiatra
Gustavo Riedel, após uma viagem como representante brasileiro a um congresso Médico
Latino-Americano em Havana, em 1922. Aliás, a área médica psiquiátrica também estava
suficientemente organizada. Prova disto, são as dezenas125 de agências políticas promovendo
a eugenia e a psiquiatria. Quase todas editaram periódicos importantes e alguns continuam
correntes, dando testemunho da relevância desse setor dentro do campo. Vários intelectuais,
ligados a área psiquiátrica, participaram das ligas nacionalistas ou das congêneres ligas
sanitaristas e eugenistas. Entre os nomes da Liga Brasileira de Higiene Mental, criada no Rio
de Janeiro, em 1923, destacamos o próprio Juliano Moreira (diretor do Hospital Nacional dos
Alienados), Gustavo Riedel, Renato Kehl, Carlos Chagas (diretor do Instituto Oswaldo Cruz),
Afrânio Peixoto, Miguel Couto (Presidente da Academia Nacional de Medicina) e Roquette-
Pinto (antropólogo, médico e Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro).
124
No livro A Vida de Lima Barreto, do literato Francisco de Assis Barbosa, consta uma curiosa e reveladora
informação. Após sua morte, realizou-se um inventário de sua biblioteca de 800 volumes. Lima Barreto havia
listado seus livros e revistas. Em meio a periódicos franceses, obras de Balzac, Descartes, Machado de Assis e
outros, surgem os trabalhos de Lobato e Penna, respectivamente os livros Urupês e Saneamento do Brasil.
125
No anexo A, listamos alguns exemplos. E no anexo B, inserimos os artigos mais importantes escritos por
Renato Kehl nos periódicos dessas associações. Incluímos, também, os textos de Octavio Domingues no Boletim
de Eugenia.
118
É nesse cenário de um projeto para a nação, no qual o ideal de povo servia como
parâmetro e ocupava um lugar de destaque na condução dos debates, que os novos
conhecimentos psiquiátricos começavam a difundir-se no Brasil por um segmento expressivo
da intelectualidade nacional. Esses saberes entusiasmavam os profissionais médicos na
medida em que lhes oferecia uma interpretação sobre o homem que abrangia, a um só tempo,
uma teoria dos distúrbios psíquicos, um método de investigação e uma modalidade de terapia.
126
Além do surgimento de especialistas da arte de cuidar da vida, os pediatras, ginecologistas e obstretas, era
crescente o mercado de laticínios e produtos farmacêuticos dirigidos às mães e as crianças. Ver a tese de
mestrado de Cynthia Fevereiro Turack. Com o título de Mulher-Mãe: representações femininas no periódico A
Mãe de Família (1879-1888), a autora demonstra as articulações dos médicos com a pequena e embrionária
indústria médica e farmacêutica. O mesmo profissional que no jornal publicava um artigo recomendando
determinado produto, também o recomendava aos pacientes nos poucos consultórios existentes. Além, é claro,
de publicar, no mesmo veículo, um anúncio do seu serviço para a possível clientela. (TURACK, 2008).
119
Afrânio Peixoto e Faustino Esposel são apontados como dirigentes das primeiras campanhas
em favor da profilaxia das doenças mentais. Afrânio Peixoto e Carlos Penafiel são
especialmente citados por suas atuações na Câmara Federal dos Deputados.
Mas, à eugenia nunca faltou espaço. Ela encontraria vários abrigos políticos,
institucionais e culturais. Durante os anos 20, 30 e 40, os profissionais ligados às mais
diversas áreas ficariam seduzidos pela nova ciência que prometia a “cura da raça”. Ou, ao
menos, o seu branqueamento. Intelectuais médicos como Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto,
Belisário Penna e outros entusiasmaram-se com a possibilidade da criação de áreas interativas
da Eugenia com a Antropologia, a Medicina e a Educação. No caso da medicina legal, foi
grande o interesse com os métodos de identificação, estudo dos comportamentos e a
prevenção dos crimes. Todavia, há que se concordar com o alerta dado por COELHO (1999).
Esse autor registra que não devemos nos impressionar com a idéia (para ele, equivocada) de
uma história despojada de sua temporalidade, forjando um esquema evolutivo no qual a
medicina ou o sanitarismo ou mesmo o eugenismo estariam evoluindo de um estágio a outro.
As narrativas dos intelectuais muitas vezes nos fazem crer em autênticas revoluções. Não que
os movimentos nos quais os atores sociais atuaram tenham sido obras de ficção, invenções de
memorialistas ou de pesquisadores. Trata-se de suspeitar que, muitas vezes, avaliamos como
total o poder dos médicos e de suas idéias de dominação da sociedade. Os próprios heróis
dessas jornadas descreveram com bastante romantismo os seus feitos127. Coelho indaga aos
127
“(...) não deixando por menos ao descrever os eventos com expressões tais como a ‘operação de guerra’
contra os cortiços, a ‘guerra de picaretas’ do Doutor Barata Ribeiro que teria acabado com os casarões infectos, a
enorme repercussão da conferência de tal ou qual higienista mais ou menos proeminente e assim por diante”.
(COELHO: 1999, 142).
122
que crêem nesse poder total dos médicos, chamando atenção para a relatividade e diferenças
entre os discursos e a prática:
que controlasse sua existência, condição para a eliminação do delírio e, assim, de sua cura. O
asilo tornava-se imprescindível, dadas suas condições favoráveis à implantação de uma
tecnologia da ordem. No caso brasileiro, a aplicação desses princípios obedeceu a uma razão
peculiar. Em São Paulo, por exemplo, segundo Cunha (1986), foi somente com a ascensão de
Franco da Rocha à direção do Hospício de Alienados desse Estado no período republicano,
que a idéia do hospício como espaço clínico dedicado ao tratamento ganhou fôlego. Isso num
contexto em que o hospício na Europa estava sendo questionado, pelo menos enquanto uma
maneira privilegiada de intervenção psiquiátrica e novas concepções impunham outras formas
de tratamento da doença mental.
Casa de Misericórdia. Esse fato provocava descontentamento entre os alienistas, ansiosos pela
centralização estatal de sua administração. Em São Paulo, surgiria, também na mesma época,
o Asilo Provisório de Alienados, que se sustentaria com inúmeras dificuldades até a
inauguração do tristemente famoso Hospício de Juquery em 1898 (Cunha, 1986). O hospício
de Juquery foi fundado em 1898 por Franco da Rocha. Intelectual alienista e discípulo de
Teixeira Brandão no Hospício Pedro II, ele assumiu a direção do estabelecimento paulista,
escolhendo um modelo que congregava o hospício e uma colônia agrícola, uma “mistura”
terapêutica considerada mais cientifíca que o tratamento do asilo clássico. As características
principais dessa instituição eram o trabalho (encarado como terapêutico), o interesse científico
(como possibilidade de estudar vários tipos de doenças mentais) e o corporativismo (a
constituição de um grupo de especialistas) agregados a um novo tipo de arquitetura
manicomial e a novas práticas médicas, como a terapia dos banhos, a malarioterapia e o
eletrochoque.128
A publicação das Memórias visa, ao lado dos problemas gerais, o estudo dos
problemas que se relacionam particularmente com o nosso meio. A higiene
mental muito tem preocupado a atenção dos psiquiatras, mas antes de
colocar em prática medidas profiláticas, devemos conhecer as causas
determinantes das psicoses.129
O grande objetivo de Renato Kehl e dos outros membros do eugenismo nacional era
despertar mais interesses e preocupações com o estudo e a aplicação das questões da
hereditariedade, descendência, influências do meio, o papel representado pela educação,
comportamentos, controle da imigração, mestiçagem e demais fatores sobre a evolução dos
seres humanos. Os temas dos artigos veiculados pelo Boletim de Eugenia versavam sobre os
mais diversos assuntos como casamento, alcoolismo, exames pré-nupciais, catolicismo,
130
KEHL, Renato. Boletim de Eugenia, Jan. 1929. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
126
maternidade, criminalidade e raça. Sem dúvida, para uma parte dos eugenistas e, em especial,
Renato Kehl considerava que a nacionalidade brasileira dependia dos fatores educacionais e
hereditários; esses elementos, juntos, representavam o que haveria de necessário para a
construção de uma sociedade saudável e próspera.
Kehl formaria uma outra organização eugênica por volta do final dos anos 20. Porém,
esta não prosperou, embora tenha sido um empreendimento dos eugenistas realizado no
mesmo contexto temporal de duas iniciativas muito relevantes: a criação da Comissão Central
Brasileira de Eugenia e a edição do próprio Boletim de Eugenia, o qual precedeu em alguns
meses a fundação do Instituto Brasileiro de Eugenia que, fundado por iniciativa de Renato
Kehl, não vingou. Desse instituto eugênico natimorto, participaram Ernani Lopes, Júlio Porto-
Carrero, Murilo de Campos e Heitor Carrilho. Mas, o momento era pródigo em fatos em torno
da eugenia. Um ano após a Revolução de 1930, Kehl foi criador e presidente da Comissão
Central Brasileira de Eugenia. Formada no Rio de Janeiro tinha como objetivo intensificar a
propaganda eugenista e convertê-la em doutrina orientadora dos projetos governamentais
ligados à imigração, povoamento, educação e saneamento. A comissão possuía os seguintes
membros efetivos: Eunice Penna Kehl (secretária, esposa de Kehl e filha de Penna), Belisário
Penna, Gustavo Lessa, Ernani Lopes, Porto-Carrero, Cunha Lopes, Salvador de Toledo Piza
Junior, Octavio Domingues, Achiles Lisboa e Pacheco Caetano Coutinho.131
Os artigos que compunham o Boletim de Eugenia eram ligados aos temas e aos
objetos de estudo dos intelectuais que debruçavam-se sobre a psiquiatria, a medicina e
eugenia. Do ponto de vista político tratava-se de alçar ao Estado a influência requerida. Tanto
o Boletim de Eugenia quanto a Comissão Central veiculavam as idéias do movimento que
unia médicos, sanitaristas, professores, juízes e comerciantes, além de outros personagens da
sociedade brasileira. Naquela conjuntura, o objetivo mais imediato era propor diretrizes
específicas ao governo. Dentro do espírito nacionalista predominante, todas as associações
criadas, seja a Liga Pró-Saneamento do Brasil, a Liga Brasileira de Higiene Mental, a
Sociedade Eugênica de São Paulo ou a Comissão Central Brasileira de Eugenia, lutavam para
a suplantação dos modelos deterministas que, desde o século XIX, consideravam inviável o
ingresso do Brasil no rol das nações civilizadas. A Liga Pró-Saneamento, especialmente,
rejeitava a explicação que apontava a composição étnica e a miscigenação racial como fatores
que contribuíam para a miséria e para as endemias que assolavam o país. Mas, para a maioria
131
Alguns desses nomes eram representantes da chamada vertente mendelista.
127
Vale destacar que o prestígio da eugenia nas faculdades de medicina era crescente.
Inúmeros textos surgiam. Kehl, em sua conferência, no Congresso de 1929, listou mais de 40
trabalhos, entre livros, teses e artigos sobre a nova ciência132. Um fato, extremamente
importante, é negligenciado: inúmeras instituições políticas foram criadas em prol das
mudanças requeridas. A historiografia sobre eugenia no Brasil e a literatura especializada
sobre saúde pública e medicina social, não observam que essas agências, onde os cientistas,
professores, políticos e funcionários públicos reuniam-se, expressavam os desejos dos grupos
sociais. Comumente, os atores, instituições e periódicos dos sanitaristas e eugenistas não são
vistos como expressões de vontades coletivas organizadas em disputa pela imposição de um
projeto hegemônico. Situação e conceitos muito bem definidos pela historiadora Sonia
Mendonça, quando ela destacou a interação entre intelectuais, aparelhos privados e a noção de
Estado Ampliado:
132
Neste inventário, Kehl ignorou os trabalhos mais identificados com a “eugenia mendeliana”.
128
Por proposta de Juliano Moreira, foram designados os membros Afrânio Peixoto, Henrique
Roxo e Carlos Eiras para elaborarem os respectivos estatutos da Sociedade, ficando
deliberado que os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins seria o
periódico de representação daquela associação. O periódico estabeleceria as relações
científicas entre os psiquiatras, neurologistas e médico-legistas do Brasil. Da apresentação
escrita por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto:
133
Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, Abril de 1905.
129
Eis aí, senhores, o que poderia dizer sobre a Eugenia no Brasil. Numa terra
grandiosa, bela e rica como a nossa, tudo nos impõe o dever de sermos
otimista, otimistas no bom sentido devemos frisar. Precisamos, portanto, nos
congregar sob a bandeira de um ideal comum, para torná-la cada vez mais
próspera e feliz. O ideal máximo seria o da regeneração eugênica do nosso
povo – regeneração esta que pressupõe saúde, paz, justiça e educação.
Precisamos vê-lo sob uma administração moralizadora e sinceramente
patriótica. Só então poderemos ter maior orgulho de sermos brasileiros. Por
enquanto nos envaidecemos do céu, da terra, das nossas riquezas
inexploradas; precisamos nos ufanar de alguma cousa mais que não tenha
sido dádiva da natureza – dos nossos empreendimentos, das nossas ações, do
nosso valor como habitantes deste maravilhoso recanto da terra.
Trabalhemos, pois, para pôr moldura digna no grande quadro da natureza.
(KEHL, 1929: 58).
A citação acima é parte das palavras ditas por Renato Kehl no Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia de 1929 no Rio de Janeiro. Foi um momento importante para o
movimento eugênico, pois as comemorações do centenário da fundação da Academia
Nacional de Medicina trouxeram a Miguel Couto, Presidente da instituição, a oportunidade
para que se convocasse a reunião. Sob o comando de Roquette-Pinto e secretariado134 por
134
Em sua correspondência, o eugenista deixa bastante evidente, que foi tomado de surpresa com a convocação
do evento. Estava em viagem pela Europa, quando leu em jornais brasileiros que Miguel Couto havia anunciado,
durante as comemorações do 99ª aniversário da Academia Nacional de Medicina, que durante a passagem do
centenário da instituição, se promoveria o Congresso de Eugenia. Ainda que em posição secundária, Kehl
ocupou um espaço importante no Congresso. Correndo contra o tempo, terminou o livro Lições de Eugenia, para
ser distribuído durante o evento. Recebeu fortes críticas e acusações por sua defesa intransigente da Eugenia e
130
Kehl, reuniram-se na primeira semana de julho, nos salões da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, na Praia Vermelha, cerca de 200 pessoas, entre médicos, cientistas, jornalistas e
políticos. Alguns temas dos trabalhos apresentados indicam o que era considerado objeto da
eugenia: regulamentação dos casamentos, educação eugênica, proteção da nacionalidade,
controle da imigração, campanhas antivenéreas, tratamento da doença mental, esterilização,
além de vários temas ligados à infância, nutrição e maternidade. Na sessão inaugural, o
antropólogo Roquette-Pinto expôs que até aquele momento a medicina135 era responsável por
resolver problemas de saúde. Mas, após a reunião de especialistas em eugenia, poder-se-ia
exigir um melhor aproveitamento do patrimônio biológico e promover o aperfeiçoamento do
homem.
Em sua conferência realizada no evento, Renato Kehl (1929:45) deixava claro que as
características hereditárias herdadas geneticamente não deveriam ser desconsideradas em
detrimento das condições que poderiam gerar caracteres a serem adquiridos. Analisando os
documentos do congresso, observa-se que as teorias científicas adotadas, aparentemente
opostas, se relacionavam. Não eram totalmente incompatíveis. É certo que havia mesmo
discussões acaloradas do ponto de vista da validade da corrente escolhida, não sendo
infrequentes as acusações mútuas de ausência de cientificidade da proposta do opositor.
pela posição totalmente contrária à miscigenação. Ainda, nesse período, começou a editar, no início do ano de
1929, o Boletim de Eugenia.
135
Roquete-Pinto era médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
131
à eugenia. Para registrar a importância que conferia à nova ciência, Roquette-Pinto citava a
discussão referente à falta de braços fortes e produtivos no Brasil para afirmar que era preciso
aproveitá-los melhor aprimorando os homens existentes e promovendo condições de
aperfeiçoamento da raça pela melhoria do patrimônio biológico da população brasileira.
não havia desinformação sobre as diferentes propostas de aprimoramento científico das raças.
Acreditamos, que, muito mais que divergências sobre o conhecimento teórico, o qual é
sempre possível de ser ou não corroborado, havia uma disputa política muito menos orientada
por discordâncias científicas, como talvez possam supor alguns historiadores da ciência137.
Mas, certamente, a busca por espaços científicos, políticos e culturais afetava o campo
eugênico. Esse fenômeno foi muito bem definido por Bourdieu através da afirmação da
ocorrência do Consenso no Dissenso. Adotamos esse conceito por entendermos que ele nos
ajuda a compreender as relações e redes tecidas pelos intelectuais do eugenismo nacional.
137
As pesquisas orientadas no intuito de desvendar as divergências científicas e teóricas têm se preocupado
talvez demasiadamente com estes fatos. Tem sido sublinhado por esses estudos o desenvolvimento da eugenia no
Brasil como uma resposta às preocupações intelectuais dos agentes sociais (escritores, governantes, jornalistas,
cientistas) com o péssimo estado de saúde da população, com as condições sanitárias e a composição racial do
país, além da atenção com a posição inferior do país no cenário internacional. Mas, talvez esteja ausente, a
análise do receio, medo até, do povo, do populacho, do Zé-Povinho que andava pela rua, sem eira, nem beira. O
processo de transformação intenso e originário da Abolição da Escravidão, da Proclamação da República, do
desenvolvimento das relações sociais capitalistas modificou as maneiras de viver e pensar da sociedade.
133
educação e o controle da imigração. Em relação à primeira, defenderia que era a solução para
os problemas do Brasil. Quanto à segunda, liderava a corrente que se opunha à entrada de
imigrantes não europeus (do Norte), chegando a desenvolver uma grande campanha de
oposição contra a vinda de japoneses para o Brasil. Sua posição estaria baseada não pela
qualidade dos imigrantes, mas pelo temor do expansionismo japonês. Criticava o
enquistamento étnico que os japoneses formavam, o que impediria sua assimilação ao país.
primeiro, no nível mais abstrato, o Estado como representante da nação; segundo, no nível
mais concreto, a seleção dos representantes por intermédio das corporações profissionais, por
fim, o processo indireto de escolha, por cidadãos qualificados, para os poderes Executivo e
Legislativo. Em todos os modos de representação prevaleceria o princípio de uma cidadania
restrita e controlada.
138
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
336.
136
nos EUA139. O que fica evidente, é que, naquela ocasião, Freyre teria ficado chocado com as
atitudes irracionais dos Jecas brincando na neve. Ao que parece, naquele momento, próximo
aos anos 1920, Freyre incorporava as teses deterministas e racistas, enxergando naqueles
mestiços, um retrato desalentador sobre o Brasil. Palhares-Burke (2005) em livro primordial,
reconsituiu a trajetória de Freyre e de sua relação com as idéias racistas, eugenistas e
demonstra, por fim, como ele formulou a sua (dele) visão positiva da mestiçagem no Brasil.
Inclusive, após a publicação da sua obra mais importante, Freyre ergueria uma interpretação
do país fundada na mescla de culturas. Fato este saudado por uma infinidade de intelectuais
ao longo da nossa história como prova da democracia racial existente no país. Palhares-Burke
(2005) insere Freyre nas discussões sobre a questão racial que eram, à época, de magnitude
ímpar. Escritor e obra são analisados passo a passo, desde o início de sua graduação nos EUA,
onde “cheiro de carne queimando” dos negros nas ruas não era um fato raro.
O escritor pernambucano deixava clara sua inquietação com a miscigenação. Para ele
e, como chamamos atenção, para outros intelectuais da época, esta era uma questão de cuja
solução dependia os destinos da nação. E sua proposta declarada era apresentar uma
interpretação fundada na diferença entre raça e cultura, discriminando os efeitos das relações
genéticas e as influências sociais, de herança cultural e de meio.140 Mas, antes de Gilberto
Freyre tentar deslocar o centro da questão nacional de raça para cultura, deixando evidente,
que para ele a miscigenação não seria um impedimento e sim uma qualidade para a produção
de uma grande e nova nação. Antes de Roquette-Pinto e Franz Boas influenciarem141 Freyre,
modificando a visão do autor de Casa-Grande e Senzala, que, sem dúvida, durante os anos de
graduação universitária, flertou com alguns dos maiores intelectuais eugenistas (os mais
radicais) dos EUA, para a interpretação amplamente positiva da mestiçagem no Brasil, os
intelectuais sanitaristas e eugenistas haviam alterado substancialmente a visão determinista e
biológica sobre o Brasil e seus habitantes.
139
“E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois
de quase três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais-mulatos e cafuzos-
descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklin. Deram-me a impressão de
caricaturas de homens... A miscigenação resultava naquilo.” (FREYRE, 1989:XLVII).
140
“Razoável em nome da Eugenia seria exigir o Pedigree dos noivos para descobrir as falhas da sua linhagem
biológica... A Antropologia perguntará ao homem: quem és? A Eugenia: donde vens? A Higiene: como vives?”
(ROQUETTE-PINTO,1929:37).
141
Sobre Gilberto Freyre, consultar PALHARES-BURKE (2005).
137
eficaz se fosse controlado e assumido pelo Estado, devidamente assessorado por esses
agentes. Afinal, se branquear era necessário e positivo e, não obstante, tal fato acontecia
independentemente da vontade dos administradores públicos, políticos, cientistas e literatos,
nada mais coerente se isso fosse controlado e assumido como responsabilidade do Estado.
Essa é uma das participações registradas nas atas do Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia. Através delas e do estudo das relações entre os propagandistas é possível entender
muito do que se falou sobre raça e nação no período analisado. Os pressupostos e discursos
enquadravam-se num processo de reconhecimento das novas populações que estavam se
constituindo nas cidades. Uma das principais propostas dos eugenistas – mendelistas ou
lamarkistas – era a criação de arquivos (banco de dados) com informações detalhadas sobre os
indivíduos. As descrições deveriam conter os fatos relativos ao corpo e a mente. Um histórico
das doenças que haviam acometido os membros familiares. Esse era um dos braços da
institucionalização das idéias formuladas pelos intelectuais do eugenismo. Nessa frente de
batalha, os viscerais defensores143 foram Kehl, Vianna e Roquette-Pinto. Como podemos
investigar, eles se preocupavam, principalmente, em promover condutas preventivas entre os
habitantes. A disseminação das idéias através de ligas, das práticas pelas instituições estatais
deveria envolver a coleta de informações, inclusive com fotos, visando à construção de
arquivos genealógicos. Nesse assunto, os antropólogos do Museu Nacional chegaram a
realizar essas intenções. No livro “Lições de Eugenia”, Kehl apresentava suas preocupações
em relação a esse importante item, que por diversas vezes, ele e outros eugenistas
142
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929,
p.20.
143
Não podemos esquecer que Oliveira Vianna também esteve ocupado em identificar os tipos brasileiros.
138
lamentariam que o Brasil, com sua pobreza financeira, em contraste com os EUA e a
Alemanha, ainda não produzia e nem eram organizados fichas contendo dados sobre a vida
dos seus habitantes:
Em outro livro, lançado em 1939, Kehl falava da mesma idéia. Porém de forma mais
objetiva:
144
Apesar do fato de que Kehl reescreveu seus textos durante sua vida, é inegável a quantidade de trabalhos. São
incontáveis artigos e cerca de 30 livros produzidos por mais de 50 anos.
139
tempo, esse “embranquecimento” formasse uma nova raça, os eugenistas gostariam que ela
fosse um pouco mais branca, educada e saudável. E, se alguns intelectuais eugenistas viam a
existência concreta desse episódio, e além disto, o avaliavam como algo benéfico, ou pelo
menos, não produzindo, necessariamente, seres inúteis, isto não significava uma contradição,
um erro ou ainda, uma mudança.
Preocupado com o alcance dos ideais eugênicos, Kehl falava aos pais, médicos e
professores. Grande parte dos livros, artigos e folhetos produzidos por Kehl são manuais
dirigidos ao grande público. Mas, a eficácia do projeto eugenista dependia em grande parte da
autoridade do Estado. Ao poder estatal caberia a vigilância sobre a conduta das pessoas e,
também, sobre o controle da reprodução dos indesejáveis. Em seu livro “A Cura da
Fealdade”, Kehl deixou claro que em seu projeto de regeneração da espécie, o Estado deveria
interferir até na concepção estética e fisiológica dos indivíduos. No entanto, ele argumentava
e assegurava que sua noção de beleza tinha mais a ver com a harmonia dos dados antropo-
métricos (índice cefálico, tipos e formatos dos olhos, dentes, cabelos) do que com uma
representação artística do belo. A esse respeito, a antropologia física desenvolvida no Brasil
produzia métodos de aferição do forte, bom e belo. No Museu Nacional, João Batista de
Lacerda, Fróes da Fonseca e Roquette-Pinto aplicavam testes em busca de índices estatísticos
e biométricos dos brasileiros. Vários inquéritos para a determinação dos tipos antropológicos
brasileiros aconteceram nos laboratórios de Antropologia do Museu Nacional (FARIA,
1998:160). Em meio ao projeto eugênico do qual partilhava, alguns interesses levaram
Roquette-Pinto a tomar escolhas e decisões frente aos intelectuais alinhados com a
perspectiva eugenista que previa um futuro eugênico para a nação brasileira. Num campo
intelectual de disputas políticas, seu projeto nacionalista procurava realçar as categorias povo
e nação. Roquette-Pinto e seus aliados cumpririam um importante papel na configuração do
campo. No Congresso de 1929, ele expôs a importância da produção intelectual e científica e
o espaço político que a Antropologia deveria ocupar. E para a devida adequação do país ao
futuro que se anunciava, um elemento unia os agentes e deveria ordenar a todos os cidadãos: o
Estado.
(...) Aos responsáveis pelos destinos deste país presta, assim, a Antropologia,
um enorme serviço, apresentando-lhes documentos que não devem ser
desprezados em beneficio de fantasias retóricas desanimadoras. A
141
No entanto, veremos que, inegavelmente, ele apoiou, ainda que num terreno
extremamente movediço e polêmico, as teses totalmente contrárias à liberdade de imigração
defendidas por Azevedo Amaral durante o Congresso de Eugenia. Dentre as afirmações mais
incisivas de Amaral durante o evento, uma delas é, seca e definitivamente, excludente de
possibilidades de ocorrer imigração de indivíduos de etnias, cores e raças não autorizadas: “O
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia aconselha a exclusão de todas as correntes
imigratórias que não sejam de raça branca”.146
145
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
137.
146
Ibid., p. 340.
142
147
Aliás, devemos a Francis Galton a descoberta e aplicação da impressão digital para a identificação pessoal
dos indivíduos.
143
pelos intelectuais sanitaristas anos antes, como Penna148. Encontramos no volume publicado
das Atas do Congresso de Eugenia, as intervenções que Roquete fazia, defendendo suas
considerações como na seguinte frase: “Vossa excelência, mediu mulatos doentes! (...) Todo
progresso do Brasil foi feito por essa gente proveniente de cruzamentos, ora taxados de
inferiores!”149
Ou esta:
O Orador retruca:- Se o exame clínico vale, posso afirmar que são indivíduos
relativamente válidos, pois que hígidos perfeitamente não os há.
148
Esclarecemos que as nossas considerações estão circunscritas ao período analisado. Portanto, não levamos em
conta, as transformações ocorridas após as descobertas das atrocidades cometidas em nome da higiene racial
alemã, durante a Segunda Grande Guerra, quando as alterações eugenistas propostas passaram a serem
identificadas plenamente com o nazismo. E, no Brasil, foi considerável o movimento anti-racista, a partir das
décadas de 30 e 40. Além da visão, fortemente alimentada pelo Estado, de congraçamento das raças para a
formação do Brasil.
149
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
17.
150
Ibid., p. 23.
151
Um grupo de intelectuais instalados hoje em universidades e centros de pesquisa, contrários às políticas
afirmativas (leia-se a criação de cotas étnicas nas universidades) vem recuperando alguns intelectuais. Roquette-
Pinto e Gilberto Freyre, principalmente, surgem embalados em velhas canções exaltando a mistura de raças e
cores. Em (FRY, 2007), encontramos vários textos, onde um bom número de autores reafirma as teses sobre a
sociedade brasileira como uma saudável mistura de raças, etnias e cores. Nessa obra, um artigo recupera a face
anti-racista de Roquette-Pinto, que como vemos não pode ser mitificado. Sobre os argumentos apresentados
pelos partidários contrários as políticas afirmativas, ver o artigo de Marcelo Badaró Mattos, onde esse autor
apresenta as implicações ideológicas dos críticos das políticas afirmativas. (MATTOS, 2007).
144
152
Em muitas questões, prevaleceu um certo pragmatismo político. Quando se discutia a entrada de imigrantes
negros de outros países não africanos, Kehl se manifestou contra, assim como a vinda de imigrantes japoneses:
“Para que atrasar a nossa química racial, no seu trabalho lento de depuração? Para que, pois, complicar a
situação, incorporando outros elementos étnica e socialmente tão diversos?” KEHL, Renato. Correio da
Manhã. 9 fev. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
153
Carta de Roquette-Pinto para Oliveira Vianna em 1935. Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
154
Sobre esta ambigüidade de Roquette-Pinto, ver SEYFERTH (1997). Sobre política indigenista, formação do
Estado e a participação dos antropólogos, ver LIMA (1995).
145
(coletivas) que impedissem a entrada no país de imigrantes japoneses, o que Kehl e Miguel
Couto não aceitavam. Na comunicação realizada no Congresso de Eugenia, Amaral foi
taxativo. Estabeleceu as bases para a implementação das políticas de imigração que seriam
adotadas nos anos seguintes:
155
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
331.
156
KOIFMAN (2007), SOUZA (2006), REIS (1994), STEFANO (2001), NALLI (1999), DIWAN (2007).
146
Doce ilusão. Após algumas semanas dessa visita ao fundo documental, lendo a
bibliografia necessária para falar de Kehl, sem deixar de falar dos demais, Roquette-Pinto e
Domingues157, pude constatar que esse relato não só não é inédito como está publicado no
livro do antropólogo intitulado “Ensaios de Antropologia Brasiliana”. Portanto, nem é um
rascunho. Aliás, é um texto editado ainda em vida do próprio Roquette-Pinto. Sim, porque
poderia ser um texto, que publicado após a morte do autor, não tivesse a autorização e
reconhecimento do mesmo. Mas, não é o caso. São as considerações e impressões após um
dia estafante de trabalho. Mereceram a imortalidade em livro. Desse fato, duas conclusões
podem ser tiradas. A primeira está ligada diretamente a minha principal argumentação.
Roquette-Pinto era membro influente do campo eugênico e, embora, muitas de suas
afirmações marcantes em sua trajetória refletissem uma opinião favorável à mestiçagem no
Brasil, elas não destoaram profundamente das demais. A segunda, os livros de Roquette-Pinto
merecem uma leitura mais atenta.
(...) Deste congresso, até agora, a mais importante memória foi, sem dúvida,
a que sobre ‘imigração e eugenia’ apresentou Azevedo Amaral, trabalho,
sem favor, muito brilhante, que o seu autor sustentou de maneira sóbria e
eloqüente e que eu tive o prazer de discutir(...) Azevedo soube ver, com
espírito de rara penetração e amplo descortino - o que de fato, há para a
eugenia, no problema do imigrante atraído pelo Brasil(...) Finalmente, as
conclusões da memória, tal como foram aprovadas pelo congresso de
Eugenia -oferecem aos legisladores um corpo de doutrina seguro, fiel,
perfeitamente demonstrável e, por isso, científico. (ROQUETTE-PINTO,
1982: 44).
157
Os principais livros desses autores estão listados no Anexo C.
147
podereríamos formar uma nova raça e um grande país. Todavia, acho que está suficientemente
comprovado que, para os membros do campo, as controversas questões científicas tiveram
muito menos importância do que podemos supor. As polêmicas sobre os fatos interpretativos
das diversas teorias científicas, sem dúvida, existiram, mas foram repletos de significados
culturais e políticos. É complexo e pouco eficiente, distinguir entre os grupos, as propostas
sobre a influência do meio sobre a hereditariedade158. Mas, isto não quer dizer que seja uma
tarefa impossível. Ao longo do texto, estamos procurando demarcar as opiniões de Kehl,
Roquette-Pinto e Domingues sobre Educação e Hereditariedade. Em suma, as diferenças eram
reais, mas conciliáveis. Podendo causar uma confusão entre o que era aceito ou não. Afinal, o
que foi desejado, como um grande pano de fundo do cenário de pobreza e miséria,
identificado pelos eugenistas, era transformar o Brasil em uma nação promissora. E, para isso,
os intelectuais armaram-se de todas as armas disponíveis. Também, essa amplitude de opções,
não acarretou numa inércia. Pelo contrário, o campo eugênico foi palco de disputas pessoais e
políticas intensas. Segundo cartas existentes nos documentos do Fundo Pessoal Renato Kehl,
as relações privadas entre Kehl e Roquette-Pinto eram bastante conflituosas. A opinião
divergente sobre o valor da mestiçagem era, sem dúvida, um motivo de afastamento. O
primeiro, sempre considerou a prática perniciosa, enquanto Roquette-Pinto avaliaria a
positividade da mistura de raças. Não obstante, isto não isenta o antropólogo de perspectivas
ambíguas em relação a essa questão.
Podemos ver no trecho anterior, retirado do livro “Sexo e Civilização” de Kehl, que
sua postura sobre o valor da miscigenação ou “cruzamentos heterogêneos” constitui-se um
ponto altamente polêmico. Durante o evento eugênico realizado no Rio de Janeiro, Kehl foi
bastante criticado. Segundo Souza (2006), Renato Kehl, após o Primeiro Congresso Brasileiro
de Eugenia, teria ficado bastante perturbado com as críticas a ele dirigidas, principalmente em
relação aos ataques e críticas anti-racistas lançados por Roquette-Pinto e Fróes da Fonseca.
158
O simples fato de dizer que uma característica, condição ou comportamento era de origem “hereditária”, e não
social/cultural, implicava uma série de conclusões, sendo a principal, que a condição era inerente ao indivíduo ou
a raça, ou ainda ao povo, que era uma coisa fixa.
149
Dez dias após o encerramento do congresso, Kehl recebeu uma correspondência de seu irmão
Wladimir Kehl. Souza (2006) atribui os comentários ácidos de Kehl como sendo dirigidos ao
Roquette-Pinto. Nesta correspondência, Wladimir Kehl declarava:
Você faz muito bem não dando importância à atitude injusta e inamistosa
dos tais ‘negróides’. Penso que nesse particular (Eugenia) você pode e deve
estar perfeitamente tranqüilo: todo mundo (...) reconhece que você é o
campeão desse jogo no Brasil. Disso eu tenho prova – e quem não tem? –
por maior referências elogiosas de pessoas de classes sociais mais diversas,
não falando dos meios mais cultos. O único prêmio, portanto, que você pode
esperar dos seus trabalhos – o reconhecimento pela sociedade dos serviços
prestados com a divulgação e pregação dos princípios da Eugenia – esse
tem-no você garantido por todo este Brasil. E basta-te isso. Li há poucos
dias, não sei se na ‘Ordem’ ou no ‘Diário Nacional’ um artigo do Rq. No
qual esse doutor de tal modo se desmancha em elogios e gratidões ao C., que
me senti envergonhado! Aliás, não escapa a ninguém que lê os artigos desse
autor sobre questão racial no Brasil, e coisas afins, que ele, como ‘negróide’,
está sempre a batalhar ‘pro domo sua’. Explica-se, pois o caso; e como
explicar é perdoar.159
Realmente, Wladimir Kehl remete-se a Roquette-Pinto (de origem mestiça), que era
um dos principais críticos do racismo biológico de Renato Kehl. De qualquer modo, essa carta
ajuda-nos a compreender a dimensão pessoal e política que as considerações críticas dirigidas
aos membros do campo eugênico ganharam neste período. Na verdade, essa luta travada em
torno da autoridade científica, intelectual e política deixaria cicatrizes e acirraria ainda mais o
confronto entre Renato Kehl e seus opositores. As divergências e as disputas em torno das
questões mais candentes (miscigenação, imigração, esterilização) representavam, ainda, a
posição que esses eugenistas procuravam ocupar no interior do campo. Roquette-Pinto e
Belisário Penna, entre outros intelectuais que compartilhavam de um nacionalismo otimista,
almejavam consolidar suas concepções políticas sobre a realidade social brasileira. Além de
tentar manter as posições políticas dentro do campo e seus cargos públicos. Por outro lado,
juntamente com Renato Kehl, um outro grupo de intelectuais (Miguel Couto à frente)
esforçava-se no sentido de endossar um modelo de eugenia mais radical que, não obstante,
representava posições ideológicas que ainda habitariam por muito tempo o imaginário político
brasileiro. Mas, em vários momentos Kehl, parece dialogar com Roquette-Pinto a respeito do
valor atribuído aos mestiços e a mistura de raças:
159
Carta de Wladimir Kehl a Renato Kehl. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz. Ver Souza (2006).
150
160
Freqüentemente, políticos fazem menção, geralmente benéfica, a função que o Estado tem ou deveria ter
sobre a reprodução humana. Em abril de 2007, o Vereador Wilson Leite Passos apresentou à câmara municipal
do Rio de Janeiro o projeto de lei número 1.044, que ‘estabelece estímulos e proteção a boa geração e
constituição de famílias sadias’. Curiosamente, o projeto propõe um prêmio Renato Kehl para as crianças
selecionadas pelas Secretarias de Saúde e Educação como representativas de uma boa saúde.
152
Mas surgia uma esperança para a solução do dilema/tragédia: por que o Brasil é
miserável e doente se o seu território é tão rico? Seria possível formar uma nação brasileira
saudável, culta e rica? Encontramos em Lobato indicações para a resposta de tantas
encruzilhadas. No volume intitulado Problema Vital, ele falava das ilusões, “licenças
poéticas” dos que teimavam em não ver o verdadeiro Brasil. E alertava: essas mentiras
ilusórias começam nas escolas!
O que nos campos a gente vê, deambulando pelas estradas com ar abobado, é
um lamentável náufrago da fisiologia, a que chamamos homem por escassez
de sinonímia. Feíssimo, torto, amarelo, cansado, faminto. (LOBATO,
1957:234).
que os cablocos são outros tantos Peris de camisa aberta ao peito. Salva-os a
boa fé. (1957:298).
161
PENNA, Belisário. “A Mulher, A Escola e o Lar”. São Paulo, Diário de Notícias, 3 set. 1930. Fundo Pessoal
Belisário Penna, COC/Fiocruz.
162
Sobre os intelectuais e o uso do rádio na tarefa de educar “as massas”, ver a importantíssima tese de mestrado
de Dângelo (1994).
154
163
PENNA, Belisário. “Plano de Educação de Higiene na Escola e no Lar.” In: Hygia. Revista Popular de
Medicina e Educação Sanitária. Número 2. Julho de 1928. Fundo Belisário Pessoal Penna, COC/Fiocruz.
164
Sobre a Eugenia na América Latina, consultar MIRANDA, Marisa e VALLEJO, Gustavo (orgs.) (2005) e
(2007).
155
trágicas165. Nesse texto, não trataremos das diversas aplicações que as idéias eugenistas
tiveram na sociedade brasileira. Por enquanto, nossa atenção está delimitada.
3.5 O Branqueamento
Uma questão um pouco esquecida, mas que gerou polêmicas nas ciências sociais diz
respeito à presença de “idéias estrangeiras” no Brasil. Essa discussão geralmente partia da
suposição de que o Brasil importava “idéias fora de lugar.”166 Assim, por exemplo, explicava-
se a presença das idéias liberais na sociedade escravista do século XIX como inadequada. Esta
tese já foi suficientemente debatida e refutada, sendo devidamente esquecida. E também não
me parece que devemos perder tempo supondo que o eugenismo estivesse de modo
equivocado sendo transplantado.167 Durante o texto, estamos demonstrando que as idéias
eugenistas não obedeceram fronteiras e muito menos respeitaram ideologias.
165
A identificação do aparato estatal, única e exclusivamente, com a repressão leva-nos a alguns equívocos.
Quando não reconhecermos a amplitude do Estado e a estrutura das classes, somos levados a pensar na
derrocada total das idéias eugenistas, na medida que o Estado não implantou efetivamente políticas eugenistas
restritivas e punitivas aos indivíduos. Mas, alertamos que mulheres pobres e negras foram esterilizadas sob o
argumento terapêutico. E que símbolos derivados das idéias eugenistas atuaram na sociedade, além da
comprovada eficácia na política de imigração. As instituições reorganizam constantemente idéias e práticas
coercitivas e ideológicas. Sobre a história dessas mulheres que, somente muito recentemente, começa a ser
contada ver FACCHINETTI, Cristiana; RIBEIRO, Andréa; MUÑOZ, Pedro F. de. As insanas do Hospício
Nacional de Alienados. História, Ciências, Saúde –Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, supl., p.231-242, jun.
2008.
166
As idéias estavam no lugar, não havendo incompatibilidade entre liberalismo e escravidão. Ver BOSI (2003).
167
Poderíamos indagar: Mas, as idéias têm lugar?
156
sociedade. Não era, como se pode supor, efeito de uma leitura errônea, equivocada ou
imprópria.
Nada mais polêmico para os grupos eugenistas do que o valor da mestiçagem. A não
ser os autores que, indiscutivelmente, mantiveram uma distância considerável das teses
influenciadas pelo racismo científico, como Lima Barreto, Manoel Bomfim e demais agentes
sociais que ainda permanecem desconhecidos, ou por que suas obras não mereceram registros
ou porque estão à espera de pesquisadores168 que investiguem esses intelectuais que
opuseram-se a esses esquemas explicativos baseados em hierarquias racistas de todos os tipos.
Porém, observando jornais, peças teatrais, músicas e textos difusos, vamos encontrar,
certamente, outros “retratos” do Brasil. Veremos, que a apreensão e interpretação das
condições de existência das populações urbanas e rurais não estavam restritas apenas aos
intelectuais que tinham suas obras publicadas em grandes editoras ou artigos em jornais
poderosos como O Estado de São Paulo. Enquanto para esses intelectuais as condições de
saúde, valor dos mestiços e imigração eram questões nacionais, as formas de reprodução das
condições sociais não eram questionadas. A produção e a manutenção da força de trabalho e
da posição periférica que o Brasil ocupava no mundo da produção capitalista, também eram
esquecidas. No entanto, de uma forma bastante difusa, mas nem por isso, irrisória, militantes
políticos, anarquistas, socialistas, libertários e jornalistas representantes das classes sociais
operárias, questionavam aquele modo de vida que estava sendo desenvolvido.169 Como
podemos averiguar, nos textos dos eugenistas, os trabalhadores somente aparecem quando
sofrem críticas por seu atribuído comportamento destituído de razão. No fundo, a noção de
raça continuava imperando como conceito de análise. Muito distante, mas muito distante
mesmo, permanecia oculta, a maneira como a força de trabalho era reproduzida. A discussão
não ultrapassava as fronteiras do campo. Roquette-Pinto, por exemplo, ao que parece, sempre,
procuraria, inclusive, restringir a polêmica, para o seu setor, a Antropologia desenvolvida no
Museu Nacional.
168
Não é absolutamente o caso do Lima Barreto, que vem sendo estudado; e mesmo Bomfim que já mereceu
estudos interessantes. Sobre esse sergipano que refutava as teses racistas e deterministas, recentemente foi
editado um livro que demonstra o quanto Bomfim combateu o racismo. Ver ALVES FILHO (2008).
169
Lima Barreto, talvez seja um bom exemplo de integrante desse grupo. Na crônica “Problema Vital” do dia
22/02/19, ele indagava a Monteiro Lobato, “Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e
modos de fazer desaparecer a ‘fazenda’(...) há câmaras municipais paulistas que obrigam os fazendeiros a
construir casas de telhas, para seus colonos e agregados. Será bom? Examinemos. Os proprietários de
latifúndios, tendo mais despesas com seus miseráveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes
ainda mais dos seus míseros salários ...”. (BARRETO, 2004: 458).
157
que seriam gerenciadas pelo Estado e conduzidas por cientistas e técnicos170. Ronaldo Conde
Aguiar realizou um pequeno balanço de alguns desses autores e correntes de interpretação,
quando analisou Manoel Bomfim. Transcrevo um trecho, um pouco longo, mas elucidativo,
para percebermos que as margens que circunscreveram esse campo existiram e foram
maleáveis:
Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Belisário Penna,
Monteiro Lobato, Silvio Romero, Renato Khel, Roquette-Pinto e outros, quase todos, em
maior ou menor grau, pelo menos em algum momento de suas vidas pensaram a miscigenação
racial como sinônimo de degeneração étnica, moral e física. Certamente, influenciados pelo
conjunto de materiais ideológicos vindos da Europa, como o Positivismo de Comte, o
Evolucionismo de Spencer, o Naturalismo de Taine e Buckler, a Etnologia de Gobineau, além
das idéias de Darwin. Todos pensaram a questão da miscigenação como a grande questão
nacional fundamental, mas o fizeram de modos diversos, alguns dos quais conflituosos entre
170
Sobre a articulação entre os ideais eugênicos e o racismo científico presente no pensamento social brasileiro
ver o livro de Vera Regina Marques. Neste livro a autora disseca o discurso médico acerca da eugenia e explica
sua lógica, afinal a eugenia no Brasil “... teria sua razão de ser, na medida em que reforçava a tese de não tomar
as teorias eugênicas ao 'pé da letra', mas adaptá-las ao contexto político-cultural daqueles tempos.” (MARQUES,
1994:63).
159
si. Penso que qualquer tempo histórico é plural e, portanto complexo, permeado por múltiplas
tensões, onde se destaca como fundamental a de classes. Evidentemente, não há um tempo
que produz pensamentos e ações homogêneas.
Muitos dos pensadores nacionais repensaram e modificaram suas visões sobre o país e
sua gente. Aliás, esta é uma marca da trajetória dos autores que “redescobriam o país”.
Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, Penna e Bomfim construíram, abandonaram ou
simplesmente modificaram suas impressões sobre o país depois que por algum período
abandonaram o “cosmopolitismo” das cidades e embrenharam-se pelos “sertões”. Mas, afinal,
quais as razões da “decantada indolência” dos Jecas?
No final dos anos 20, recebendo fortes críticas daqueles que viam com bons olhos a
miscigenação racial branqueadora, pois ela não produziria, segundo esses críticos, seres
necessariamente degenerados, Kehl realizava malabarismos verbais para elucidar a verdadeira
face da eugenia nacional. Nesse trecho de “Eugenia e Eugenismo”, publicado no Boletim de
Eugenia em agosto de 1929, ele declarava:
assim, além de regras profiláticas contra doenças infecto-contagiosas, padrões morais, isto é,
de atitudes e comportamentos que definiriam o ser humano educado, saudável e trabalhador.
As informações médicas misturaram-se à educação formal, criando a integração entre as
questões relativas à educação e à saúde, procurando consolidar uma visão sobre o homem
produtivo. O eugenista Octavio Domingues dedicou boa parte de sua obra a estabelecer as
relações e hierarquia entre educação e hereditariedade em função da eugenia.
atuação fosse a saúde ou a educação. Segundo os agentes, a higiene deveria atuar até na
localização da escola, abrangendo, por exemplo, a localização do prédio, dimensões das salas,
iluminação e ventilação. A instituição escolar tornava-se higiênica na própria concepção
arquitetônica. Edifícios amplos e iluminados. Várias teses defendidas nas Faculdades de
Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia por jovens médicos ocuparam-se do tema Higiene
Escolar171. Nesses textos é comum haver instruções detalhadas acerca do terreno, instalações
sanitárias, tipo de mobiliário, estabelecendo, até mesmo, a altura da carteira e a distância da
cadeira.
171
O livro de Afrânio Peixoto trazia várias recomendações médicas sobre a higiene escolar. PEIXOTO, Afrânio.
Noções de Higiene. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1914.
163
não é tácita nem automática. É repleta de ambivalências e contradições. Esta aceitação ou esse
consenso tem a participação do Estado e dos intelectuais (Gramsci, 1977:147). E esta
hegemonia é tecida pelos intelectuais. Para Pierre Bourdieu (1930-2002), o poder simbólico
consegue impor significações que são naturalizadas como legítimas. Assim, os símbolos
intelectuais afirmam-se como instrumentos de integração social, tornando possível a
reprodução da ordem estabelecida.
172
Campanhismo. As ações públicas de controle das doenças se deveram em parte a necessidade de garantir a
produção e a circulação de mercadorias. Historicamente, elas assumiram modelos e práticas diversas.
173
Sobre os modelos de atenção á Saúde Pública, consultar MERHY (1992).
174
BENCHIMOL, Jaime Larry e TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, Lagartos e outros Bichos: Uma História
comparada dos Institutos Oswaldo Cruz e Butantan. Rio de Janeiro, UFRJ, 1993. Sobre a atuação da Fundação
Rockefeller no Brasil consultar FARIA, Lina Rodrigues de. “Os primeiros anos da reforma sanitária no Brasil e a
atuação da Fundação Rockefeller (1915-1920)”. Phisis. Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.5, n.1, p.
109-127,1995.
167
4.
CAPÍTULO III
País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan
é país perdido para altos destinos. André Siegfied resume numa frase as duas
atitudes. ‘Nos defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a
nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil.’ Um dia se
fará justiça ao Klux Klan; tivessemos aí uma defesa desta ordem, que
mantem o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa
carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a
mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva. (LOBATO em
1928).175
ideário eugênico. Ao longo de sua existência, Kehl procurou manter contato permanente com
intelectuais eugenistas nacionais, estrangeiros e também com as agências intelectuais e
políticas mundiais, procurando formar uma rede de apoio às idéias eugenistas. Durante a tese,
venho criticando o que nomeei de historiografia da eugenia. Grande parte desta literatura
sustenta que o pensamento de Kehl sofreu uma ruptura. E que, com o passar dos anos, ele
distanciou-se do movimento sanitarista e dos pressupostos de uma eugenia preventiva mais
“suave”. Ou seja, para esse conjunto de trabalhos, alguns bem recentes, não houve uma
interação intelectual e prática entre as idéias eugenistas e sanitaristas. Haveria uma divisão e
oposição. Notamos também, que boa parte desses textos tendem a reproduzir os conceitos e
argumentos que os intelectuais do campo eugênico utilizavam. Se formos seguir linearmente
as declarações textuais dos intelectuais eugenistas, corremos o risco, até mesmo de
considerarmos como benéficas as formulações efetuadas por esses homens. Afinal, poder-se-
ia argumentar que eles estavam preocupados com o futuro da nação. E, além disso, a chamada
via negativa não prosperou no Brasil. Porém, ao longo do texto, já esclarecemos que não
devemos desprezar, por um lado, o aspecto coercitivo do eugenismo nacional e, por outro,
aconteceram, sem dúvida, ações inscritas dentro do que os membros do campo definiram
como específicas da eugenia negativa.
176
Sobre a ciência nacional do período, consultar CUKIERMAN (2007).
177
Sobre estes médicos e cientistas alemães e norte-americanos ver BLACK (2003).
170
escolher quem deveria viver. E o que é importante: para Kehl, estes exemplos serviriam para
que o Brasil selecionasse quem deveria ser “melhorado”.
178
Projeto de Lei número 1044/2007. “Estabelece estímulos e proteção à boa geração e constituição de famílias
sadias”. “Artigo primeiro. Todo casal que - visando a geração de prole sadia subordinar-se as disposições da
presente Lei, terá assegurados- igualmente aos filhos assim resultantes de sua união – a proteção e os benefícios
da Municipalidade, na forma a seguir estabelecida.(...)Artigo quinto. Anualmente, a prefeitura realizará, por
intermédio da Secretaria de Saúde- que estabelecerá normas a respeito- concurso denominado Renato Kehl,
destinado a premiar as crianças de diversas faixas etárias, até 07(sete) anos de idade(...) que sejam selecionadas
como mais representativas, em termos de saúde geral...”.
179
O racismo de Kehl, Vianna e dos membros do campo eugênico nacional foi diferente do racismo dos
Gobineau de “carteirinha”. Para esses, a raça e o Brasil eram totalmente inviáveis. Porém, é certo, que alguns
membros do campo eugênico representavam a tendência mais autoritária sobre a inferior contribuição dos
negros, índios e mestiços. E, além disto, já alertei que muitos poucos intelectuais não sofreram influência das
teses racialistas oriundas do determinismo biológico do século XIX.
171
ACM180 e o retorno de Kehl da Alemanha.181 Após 1928, essa historiadora identifica como o
tempo da radicalização, esterilização, condenação dos mestiços e da restrição à imigração.
Kehl nunca atuou sozinho na luta pela implantação de políticas públicas influenciadas
pela eugenia. Contando com aliados e opositores, sua atuação confunde-se com a história do
movimento eugenista. Entre seus interlocutores estavam os principais intelectuais do período.
Nomes como Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, Lobato e Belisário Penna estão lado a lado
com os líderes de peso do campo eugênico internacional, como o zoólogo Charles Davenport,
o principal propagandista e articulador do eugenismo norte-americano182. De maneira geral,
para Kehl, a regeneração da raça, seria alcançada após a eliminação de todos os fatores
disgênicos. Um dos pontos mais relevantes seria o controle da entrada dos imigrantes no país.
Para a elevação do grau de aristogênia da população, a restrição da imigração evitaria que
elementos externos prejudicassem a eugenização. Kehl, que sempre foi contrário à
mestiçagem e a livre imigração, dizia que se tivessem que aceitar imigrantes dos outros
países, que fossem dos nórdicos, jamais das nações asiáticas ou africanas. Para os eugenistas
que condenavam a livre imigração, esses países estavam expulsando rebutalhos. Afirmavam
mesmo uma supresa com os que defendiam a imigração. Eram favoráveis apenas se os
imigrantes fossem suecos, noruegueses, ingleses e alemães.
Observamos que muitas das afirmações raciológicas contra os indivíduos vistos como
inferiores, destacam que o imigrante português era, no máximo, tolerado. Lobato, nas cartas
enviadas de Nova Iorque para Kehl e Arthur Neiva, demonstrava essa animosidade. E, em
vários pronunciamentos dos demais intelectuais sobre a política de imigração vê-se que,
aceitava-se, de modo geral, que os habitantes desse pequeno país viessem para cá, mas,
claramente, esperava-se que os povos situados mais ao norte da Europa imigrassem com mais
vigor. Vários intelectuais atribuíam aos portugueses e aos negros a situação em que o Brasil
vivia. Permanecia o desejo de impor a mudança da população: embranquecendo-a, porém, não
com brancos ibéricos. Para uma grande parcela dos intelectuais eugenistas, o Brasil devia ser
180
Na Conferência de Propaganda Eugênica realizada pelo Renato Kehl na ACM em 13/4/17 ele identificava
como principais fatores disgênicos: a guerra, a tuberculose, o álcool e a sífilis.
181
Kehl viajaria três vezes a Europa. Em 1928, 1932 e 1937.
182
De certa forma, isto demonstra como o conhecimento de Kehl sobre as concepções estrangeiras neste campo
do conhecimento científico não era “rasteiro”. No Fundo pessoal Renato Kehl estão depositadas várias cartas
trocadas entre Kehl e este importante eugenista. No Boletim de Eugenia em 1929 encontramos uma notícia sob o
título “Cruzamento de Raças” informando que a Comissão de Estudos do Cruzamento de Raças da International
Federation e Eugenic Organizations, com sede em Nova York, dirigida pelo Davenport, convidava Renato Kehl,
para colaborar nessa comissão, apresentando um estudo sobre o problema dos cruzamentos inter-raciais segundo
o ponto de vista brasileiro.
172
outro, ter outra população. Eles não queriam assumir um povo de portugueses, negros, índios
e miscigenados, que ainda é ampla maioria brasileira.183
183
Todavia, os imigrantes portugueses foram, de certa forma, aceitos. Durante todo o período compreendido
entre 1930 e 1960, os indivíduos oriundos desta nacionalidade imigraram com vigor. Segundo boa parte da
literatura, aos olhos dos administradores da política de imigração, esses elementos eram bem absorvido pelo
“plasma nacional”. Eram brancos, católicos e possuíam uma intensa identificação com o Brasil. Porém, é certo
que essa absorção não foi ausente de conflitos. Ver Koifman, 2007.
184
Marcos Nalli chama de racismo acromático e racismo cromático essas linhas do pensamento de Kehl.
185
Melhoradas, mas não transformadas. Seguindo a argumentação do próprio Kehl: o sabão de coco ariano
ajudaria a “melhorar” mas, evidentemente, não modificaria os indivíduos.
173
Se o Brasil não tiver mais tarde uma boa lei de imigração-redigida a luz de
ótimos preceitos antropológicos e eugênicos-não será culpa do Congresso de
Eugenia. (1982: 47).186
186
Octávio Domingues, um dos menos conhecido desses intelectuais, até pelos especialistas, em passagem curta,
demonstra que em hipótese nenhuma os problemas da imigração seriam risco para a nossa nacionalidade. A todo
custo, mesmo os indivíduos mais inferiores, haveriam de ser eugenizados. “Não temamos que a imigração nos
traga o abastardamento da nacionalidade, ou a inferioridade do nosso povo. Certos mestiços são de fato
inferiores, mas nem sempre, ou talvez nunca o sejam mais do que os tipos inferiores das pseudo-raças puras
européias. E contra aqueles, assim como contra estes, oporemos as medidas eugênicas”. (DOMINGUES,
1929:137).
174
Higiene Mental, havia dissensões. Por exemplo, entre Renato Kehl, que via com extremo
pessimismo o Brasil, para ele, uma mistura de raças incompatíveis e Roquette-Pinto que,
apesar de todas as suas ambigüidades, concordava que o Brasil não era degenerado
biologicamente. Ou ainda, aqueles que estavam fora do campo, com propostas que
contemplavam idéias de mudança social, como Manoel Bomfim e Lima Barreto. O que não
devemos fazer, apressadamente, é concluir que a partir das nuances abria-se grandes clarões
no campo.
Mas, vejamos com mais atenção, quem foi Renato Ferraz Kehl.
Renato Ferraz Kehl nasceu em Limeira, pequeno município do Estado de São Paulo, a
22 de agosto de 1889, filho de Joaquim Maynert Kehl e Rita de Cássia Ferraz Kehl. Portanto,
no centro do processo histórico que significou o fim da escravidão e implantação da
República no Brasil. Viveu a sua infância e adolescência em sua cidade natal, concluindo seus
estudos em Jacareí, também no interior do Estado. Formou-se aos vinte anos em Farmácia e,
posteriormente, em 1915, doutorou-se em Medicina na Universidade do Brasil (Rio de
Janeiro). Exerceu a clínica na capital paulista durante alguns anos. No entanto, logo viria a se
interessar pelos princípios da eugenia, fundando a Sociedade Eugênica de São Paulo com
cerca de 140 médicos. Sua família era católica e com raízes européias. Seu pai (1860-1931),
filho de alemães que chegaram ao país na primeira metade do século XIX, era formado pela
faculdade de Medicina de São Paulo (1883). No entanto, Joaquim enveredou pela carreira de
farmacêutico. Tendo, inclusive, na década de 20 do século passado, sido eleito presidente de
uma associação de farmacêuticos de São Paulo. Em 1905, seguindo a trajetória do pai, Renato
Kehl ingressava no curso de Farmácia, formando-se em 1909. Apesar de, durante um curto
período, ter dirigido uma farmácia em Limeira, ele viajaria para o Rio de Janeiro, juntamente
com seu irmão, Wladimir Ferraz Kehl, para iniciar a tradicional Faculdade de Medicina (RJ).
Na cidade de São Sebastião, ele logo faria parte do grupo de intelectuais que nas instituições
de medicina discutiam a vida cultural e política brasileira. Nomes como Miguel Pereira,
Miguel Couto, Belisário Penna, Afrânio Peixoto, Eduardo Rabello e Agostinho de Souza
Lima faziam parte do círculo de amizades que o ajudariam em sua carreira profissional e
intelectual. Durante os seis anos em que passou na faculdade, Khel travou contato com as
175
idéias de Lamarck, Darwin, Spencer, Agassiz, Galton e Weismann187. O seu interesse pela
discussão de raça, degeneração, hereditariedade e miscigenação teria sido despertado pelo
conhecimento desses autores. Mas, também, segundo declarações do próprio Kehl, pela
observação das populações urbanas e rurais. E com o assombro e horror que as visões dos
“defeitos” das pessoas lhe proporcionavam.
Lutando pela difusão e implantação das idéias eugênicas, Renato Kehl realizou
conferências no Brasil e em vários países, publicando mais de 30 livros e inúmeros artigos em
jornais. Durante alguns anos exerceu o cargo de inspetor sanitário rural do Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP), no qual organizou o Serviço de Educação Sanitária
ligado à Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas, tendo sido também o criador do Museu
de Higiene, apresentado por esse serviço nas Comemorações do Centenário da Independência
(1922)188. Neste Museu realizou-se uma exposição da campanha educativa e sanitária que
deveria ser instalada no país. Foram expostos objetos e fotos que mostravam as habitações
típicas das áreas rurais, infestadas de insetos transmissores de doenças. No Departamento de
Saneamento e Profilaxia Rural do DNSP trabalhou durante três anos (1919-1922) como
inspetor sanitário rural e chefe do posto de Merity (RJ), passando depois para o Serviço de
Educação e Propaganda Sanitária (1923-1924). Tendo se exonerado do cargo de inspetor
sanitário do DNSP, ingressou na empresa de produtos Bayer, a princípio como farmacêutico
responsável e depois como diretor. Nessa firma, dirigiu durante muitos anos os periódicos Os
Farmacêuticos Brasileiros e a Revista Terapêutica que circulavam largamente entre os
médicos de todo o país. Entre os seus principais livros destacam-se: Eugenia e Medicina
Social (1920), O Médico no Lar (1919), Aparas Eugênicas (1933), A Cura da Fealdade
(1922), Lições de Eugenia (1929) e Pais, Médicos e Mestres (1939). Realizou conferências na
187
Segundo a Teoria do Plasma Germinativo de Weismann, os efeitos da educação e de um melhor ambiente não
seriam geneticamente assimilados ao longo das sucessivas gerações.
188
A instalação desta exposição realizada pelo DNSP obteve repercussão, sendo saudada pela imprensa como
uma obra de educação para a salvação do país: “Estaremos em plena fase de higienização nacional? Parece que
não, quando se tem em vista a extensão de um sem número de males que continuam a grassar em proporções
assustadoras de norte a sul do país, quando se verifica como os números da estatística se arredondam em todos
os quadros da saúde pública. Parece que sim, quando se recorda a insistência com que inúmeros médicos e
sociedades fazem propaganda de princípios favoráveis à robustez e beleza da raça de amanha, à defesa da saúde
de hoje, e quando se considera a multiplicação de serviços e funcionários do Departamento da Saúde Pública. O
Dr. Renato Kehl, porém, médico daquela organização e com exercício na Profilaxia Rural, entusiasta
propagandista entre nós da eugenia e de tudo o que se relaciona à formosura de nossa raça, com entusiasmos
para discorrer até, como discorreu, nesta folha, e em tempo, sobre a mulher mais bela à luz da ciência médica,
não tem a menor dúvida, acreditando que nos encontramos em plena fase de higienização nacional. Diz-nos ao
menos isto, e com muita oportunidade e autoridade, já que se prepara para a tarde de hoje, a inauguração da
Exposição de Higiene, no Palácio das Festas...”. Entrevista com Renato Kehl. Pelo Maior Bem! Elevando a
significação dos problemas nacionais de higiene e educação sanitária. O que nos vai mostrar a Diretoria de
Saneamento. In: Jornal A Noite. Rio de Janeiro, 30 out. 1922. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
176
Após entregar sua tese sobre medicina dermatológica, intitulada “Blastomicose”, Khel
e seu irmão retornaram a capital paulista. Exerceria a clínica médica em um pequeno
consultório. Mas, Khel estava contaminado pela eugenia. Teria inclusive escrito um pequeno
trabalho que não publicou sobre o tema. Naquela conjuntura, havia acontecido o Primeiro
Congresso Internacional de Eugenia, em Londres, em 1912, e o Primeiro Congresso
Internacional das Raças, em 1911, realizado na mesma cidade. Assim, o encontro de Kehl
com a ciência do aprimoramento humano estava marcado. Quando da conferência realizada
em abril de 1917, na ACM, existia um contexto favorável para a veiculação das idéias
eugenistas. E, a partir daquele momento, ele passou a desempenhar um importante papel na
propaganda dos ideais eugênicos.
189
A pretendida reforma faria desaparecer o impedimento matrimonial criado pelo artigo 183-IV(casamento entre
tios e sobrinhas). Posteriormente, houve até mesmo a convocação exclusiva de uma reunião da Sociedade
Eugênica para debater este tema no dia 13 de junho de 1919. Na palestra proferida no Congresso de Eugenia em
1929, Kehl esclareceu que várias reuniões da Sociedade Eugênica foram palco de intensa discussão sobre a
alteração do código civil brasileiro.
177
nomeado presidente honorário da sociedade de eugenia, Penna enviou uma carta agradecendo
e dizendo que a formação da sociedade de eugenistas lhe serviria para “não esmorecer nessa
cruzada árdua em prol do levantamento da nossa raça, mas de cuja vitória depende a solução
de todos os problemas nacionais, para que o nosso querido Brasil tenha o direito de aspirar a
um lugar distinto no convívio das nações cultas”.190 Para Kehl, eternamente convicto de que a
eugenia influenciaria as políticas públicas e com a simpatia dos demais membros do campo
eugênico, seu caminho messiânico seria o de conduzir esse sonho.
190
Correspondência de Belisário Penna a Renato Kehl em 15/4/1918. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
191
Sob a repercussão da fundação da Liga Pró-Saneamento do Brasil por Belisário Penna, Fernando de Azevedo
demonstrou que as propostas das agências não eram inconciliáveis: “a campanha do saneamento não é
eugenicamente falando, uma tarefa única, mas sim a primeira face de um cyclopeo trabalho de regeneração, de
que o segundo aspecto, não menos importante, é o revigoramento, por meio da educação física contínua e
metodizada, desta raça que o saneamento libertou de causas anemiantes e reintegrou no estado hígido, mas que
ainda continuaria a sofrer do mal inquietante da depressão física... Não basta, pois curar os doentes, é preciso
melhorar os sãos; não basta que a higiene social saneie o povo, é mister o revigor e a educação física por uma
ação enérgica e sistematizada, capaz de imprimir elastério à nacionalidade então ilibada da mácula endêmica, e
de fazer jorrar harmonia de todos estes elementos étnicos diversos concentrados por força comum numa raça
única e pujante, em que a independência das idéias seja assegurada pelo vigor físico e o amor assíduo da
atividade útil e produtiva” (MARQUES, 1994:62).
178
campo científico mais a concorrência é imperfeita e é mais lícito para os agentes intervirem
forças não-científicas nas lutas científicas. É uma visão que, dependendo das opções teóricas e
metodológicas, causará distorções.
produzidos pelo grupo coordenado por Oliveira Vianna, do qual Kehl e Roquette-Pinto
também fizeram parte. Nesses importantes documentos, quase nunca pesquisados,
observamos que, para os membros do campo eugênico, a imigração era concebida como um
fator de transformação e melhoramento eugênico, até mais importante do que a educação ou a
esterilização involuntária. Afinal, representava a defesa do potencial eugênico da raça
nacional. Ao lado da esterilização dos anormais, confinamento dos criminosos, educação,
saneamento, para completar o programa de melhoramento do brasileiro, era necessário evitar
a entrada de estrangeiros de determinados países, raças e cores.
Após o encerramento das atividades das duas associações que praticamente fundaram
e dirigiram, a Sociedade Eugênica de São Paulo e a Liga Pró-Saneamento do Brasil, Penna e
Khel compartilhavam projetos e idéias. A Sociedade Eugênica foi extinta depois que Kehl
partiu para o Rio de Janeiro e a Liga Pró-Saneamento teve igual destino. Segundo seus
comandantes e membros, ela havia sido criada justamente para propor um modelo de atenção
aos problemas do Brasil, que julgavam ser de ordem sanitária, médica e administrativa. Com a
criação do DNSP, que atenderia aos desejos de centralização nacional e concentração de
poder da união sobre as políticas públicas de saúde, a Liga Sanitarista não teria mais razão
para existir. Afinal, para os seus integrantes, o principal objetivo da associação de sanitaristas
tinha sido obtido: a criação de um órgão nacional de saúde pública e com poderes para atuar
em todo o território nacional.
192
O Serviço de Profilaxia Rural foi criado em 1918 e sua direção foi entregue à Belisário Penna. Subordinado, a
princípio, à Diretoria Geral de Saúde Pública e, a partir de maio de 1919, vinculado diretamente ao Ministério da
Justiça, esse Serviço tinha por finalidade combater as endemias: a malária, a ancilostomíase e a doença de
Chagas.
180
a realização dos esforços empreendidos pela Liga. Com a criação de um órgão governamental
central e com força política para cuidar de assuntos relacionados às condições de vida da
população e a promoção de seu bem-estar, a conclamação da participação efetiva do Estado se
concretizava, ao menos em tese. Será que, a introdução de Kehl no serviço público e a
concentração de poder administrativo nas mãos de Penna, ajudaram a causar o fechamento
das duas entidades? Afinal, com a criação do DNSP, Penna foi alçado à condição de Diretor
do Departamento de Profilaxia e Saneamento Rural. Acima de Penna, na hierarquia
administrativa e política da saúde pública restava somente o cientista Carlos Chagas, recém-
nomeado Diretor do DNSP, também membro ativo das várias associações médicas e assim
como Penna, oriundo da tradição sanitarista nacional que desde os anos 10, influenciava boa
parte das atividades desenvolvidas no interior da Diretoria Geral de Saúde Pública e no
Instituto Oswaldo Cruz.
193
KEHL e MONTEIRO. O Médico no Lar. Dicionário popular de medicina de urgência.
181
Em agosto de 1919, pouco mais de 30 dias após sua entrada no serviço público, Khel
foi designado por Penna para exercer o cargo de Chefe do Posto Sanitário Rural numa
localidade situada na Baixada Fluminense. Neste lugar, com o auxílio de quatro médicos,
foram executados durante dez meses, serviços de atendimento clínico, combate a doenças,
dragagens de rios e campanhas de educação higiênica. Devido a sua preocupação eugênica,
com a ajuda de seus colaboradores, Kehl coletou dados e escreveu um relatório que foi
encaminhado às autoridades. O texto demonstra que as informações comprovavam a fraqueza
das pessoas, tendo como conseqüências a debilidade física e a indolência: “Os dados colhidos
demonstram claramente a fraqueza orgânica dessa gente, cuja indolência não tem outra
explicação senão a anemia, a intoxicação e a miséria como conseqüência final.”194 Para
Kehl, de acordo com as idéias sanitaristas e eugenistas, a higiene, a eugenia e o saneamento
eram instrumentos para subverter o triste destino do país. As doenças, endêmicas e
epidêmicas, estavam transformando a população brasileira em seres doentes e incapazes. Em
artigo para o jornal A Noite, alguns meses depois dessa passagem pelo posto médico, Kehl
opinava sobre as condições eugênicas, sanitárias e higiênicas do povo com o qual ele havia
tomado contato no distante subúrbio carioca195:
(...) Está perfeitamente informado o nosso governo, que em boa hora, vai
iniciar a campanha intensa de saneamento, pois, sanear corresponde praticar
a eugenia denominada preventiva, cujos fins são as defesas da raça contra
todos os fatores de degeneração, sejam eles mórbidos (tuberculose, sífilis,
impaludismo, verminoses, etc), sejam eles os venenos sociais. É por isso que
a eugenia preventiva corresponde a medicina social e se esforça pelo
saneamento rural e urbano, pela regulamentação do trabalho, pela proteção
da infância; consiste, enfim, na organização ativa de uma higiene profilática
acauteladora da saúde dos indivíduos e da coletividade.196
O trecho acima citado revela as orientações contidas no pensamento eugênico dos anos
20. Para a maioria dos membros do campo eugênico brasileiro, educar, sanear, eugenizar e
higienizar eram tarefas necessárias para a reforma do país. Tratava-se de um projeto político
voltado para organizar a sociedade brasileira e normatizar os comportamentos dos
194
KEHL, Renato. Relatório de 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
195
São constantes as referências críticas realizadas pelos intelectuais eugenistas/sanitaristas sobre o
desconhecimento do Brasil pelos intelectuais ufanistas. Corroborando a frase de Afrânio Peixoto, “os sertões
começam no fim da Avenida Central”, Penna comentou sobre os agentes que pensavam o país a partir das
avenidas recém-construídas à beira-mar: “(...) desse grupinho, sem documentação e sem base, fizeram o
monopólio do saber, da realidade dos fatos, embora na sua quase totalidade não conhecem do Brasil senão o
trecho que vai da praia de Ipanema à cidade de Petrópolis.” PENNA, B. Ensino da Higiene. Conferência no
Colégio Jacobina. Fundo Pessoal Belisário Penna, COC/Fiocruz.
196
KEHL, Renato. Os problemas da Regeneração das Raças. 3 set. 1920. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
182
197
Os autores da historiografia sobre Eugenia analisam esta hibridização de estratégias como ações caóticas.
Sem sentido científico ou um estágio, onde a vertente negativa estava momentaneamente impossibilitada de
conseguir êxito e de expressar seus desejos. Costumeiramente também essa versão interpretativa investiga uma
mudança, conceituada como “virada”, dos membros do Eugenismo, em especial, de Kehl, para uma
radicalização dos propósitos eugenistas.
198
Em novembro de 1920, os laços pessoais se consolidaram. Kehl casou-se com Eunice Penna, filha de
Belisário Penna.
199
Sobre este importante personagem do campo médico no Brasil, Eduardo Rabello e o trabalho desenvolvido a
frente da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas, ver CARRARA (1996).
183
Jornal A Noite – Há justo motivo para se acreditar, diz o Dr. Renato Kehl,
que estamos em plena fase de higienização nacional, completando a
memorável obra de reabilitação sanitária iniciada no nosso país pelo grande
patrício Oswaldo Cruz. Dia a dia multiplicam-se as providências de ataque
às epidemias e endemias que assolam o território pátrio e são freqüentes as
manifestações de aplausos a essa auspiciosa campanha de saneamento que se
vai disseminando por quase todos os estados da União. O magno problema
está, pois, em foco. Congressos médicos, mensagens, plataformas, discursos
e conferências, tratam das medidas profiláticas em execução ou em projeto,
mantendo-se unânime a opinião pública de que a política sanitária é a
verdadeira política de salvação nacional. O povo, apercebido dos benefícios
que estão surgindo com as medidas de saneamento e dos que advirão
futuramente, compreende, enfim, que o nosso grande mal não está ligado ao
clima nem à gente que habita esta face da terra, mas sim às endemias e
epidemias que infelicitam grande parte dos nossos patrícios, principalmente
dos que habitam a zonas rurais.
Kehl, como os demais membros do campo, entendia que o alcoolismo era um fator de
destruição das forças orgânicas do homem brasileiro. As campanhas contra o uso do álcool
200
Entrevista com Renato Kehl. Pelo Maior Bem! Elevando a significação dos problemas nacionais de higiene e
educação sanitária. O que nos vai mostrar a Diretoria de Saneamento. In: Jornal A Noite, 30/10/1922.
184
foram constantes nos anos 20. Poderíamos dizer que, neste período, as epidemias, as endemias
rurais, a lepra, a sífilis e o alcoolismo, eram as maiores preocupações dos médicos. Através
dos artigos que Kehl escrevia para as colunas que mantinha nos jornais, nosso eugenista
chamava a atenção dos leitores para os malefícios que a vida plena de vícios causava ao corpo
e a raça. Acarretando prejuízos ao país e aos descendentes. Segundo os eugenistas mais
radicais, sob o ponto de vista da possibilidade de transmissão de características adquiridas ao
plasma germinativo, o álcool prejudicava diretamente as células reprodutoras causando
desordens nos elementos que seriam transportados aos descendentes, propiciando a loucura, a
criminalidade e as deformidades físicas201. É importante salientar que todas as possíveis
correntes consideradas dentro do eugenismo, avaliavam como extremamente prejudiciais à
formação da raça, os problemas advindos da vida cosmopolita, identificada como pecaminosa
e com altos riscos de contaminação de doenças venéreas. Aliás, esse ponto unia a todos os
sanitaristas, psiquiatras, eugenistas, mendelistas ou não. Intelectuais de fora da área médica
também consideravam os vícios fonte de degeneração da raça. Ao lado da crítica aos atos
filantrópicos e assistencialistas que prejudicaria a seleção natural e a eliminação dos fracos, a
condenação da vida cheia de vícios, também era um dos principais objetos de reprovação
moral por parte dos eugenistas. “A civilização (...) descuidou-se, lamentavelmente da própria
espécie, além de, contra seus próprios interesses, perverter as leis de seleção natural com atos
de falso humanismo”. (KEHL, 1933: 63).
A campanha contra o uso abusivo do álcool quase dominaria as atividades de uma das
associações: a LBHM. De todas as propostas veiculadas por essa liga, certamente o combate
ao alcoolismo foi a principal bandeira da Liga, que organizaria anualmente, a partir de 1927,
as “semanas antialcoólicas”. Devido ao envolvimento dessa agência com o tema ela passou a
ser conhecida como a Liga Anti-Alcoólica. Até um editorial foi publicado no periódico202
esclarecendo que essa não era a única preocupação da Liga. Kehl participaria das semanas
antialcoólicas promovidas por essa agremiação durante os anos 20. Mas, se a proposta mais
popular da LBHM foi o combate contra o álcool, essa era apenas uma das campanhas da
201
Os partidários do mendelismo afirmavam uma positividade dos cruzamentos raciais. Mas, também poderiam
negar a influência dos fatores ambientais para a obtenção de uma raça eugênica e um Brasil menos miserável.
Donde se conclui que mendelistas ou lamarckistas poderiam preconizar em momentos diferentes soluções
semelhantes para os males do Brasil. José Roberto Franco Reis publicou um artigo onde ele mapeia as correntes
mais radicais do Eugenismo dentro da LBHM. Degenerando em Barbárie: A hora e a vez do Eugenismo
Radical. In: BOARINI (2003).
202
O exemplar número três do periódico da LBHM de julho de 1933 tinha o seguinte título em seu editorial:
“Liga de Higiene Mental não é Sinônimo de Liga antialcoólica.”
185
instituição. A questão racial, com ênfase no controle da imigração teve um peso expressivo na
Liga desde seus primórdios, assim como a prevenção das doenças mentais nas crianças.
203 Em relação á miscigenação, constantemente Kehl alertava sobre o seu perigo, deixando evidente que era a
sua maior preocupação: “Assim, pois, o cruzamento constitui o pior fator degenerativo dos povos. Nos países
onde maior é a heterogeneidade de cruzamentos, maior o numero de degenerados”. Renato Khel, “A Utopia da
felicidade coletiva”, 1933. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
204
A tese apresentada por Renato Kehl na Conferência Nacional de Educação era intitulada O Problema da
Educação Sexual.
186
Os pesquisadores que argumentam que Kehl teria sofrido uma alteração radical em
suas proposições datam o final dos anos 20 como um marco. Dizem, inclusive, que as
manifestações, antes de 1929, tanto presentes em Kehl como nos outros eugenistas em torno
da chamada eugenia negativa seriam circunstanciais. Assim, a necessidade alardeada pelos
membros do campo eugênico em controlar os nascimentos sem planejamento familiar estatal
e o pedidos de regulamentação da esterilização dos doentes mentais e criminosos, são
analisados como elementos residuais diante das preocupações higienistas e sanitaristas que
predominariam no horizonte dos intelectuais eugenistas. A eugenia brasileira estaria nos anos
20, dominada pela idéia de prevenção e por temas de alcance moral. Como afirma a
historiadora Nancy Stepan: “(...) o interesse eugênico na educação sexual pouco tinha a ver
com visões radicais sobre sexualidade ou papéis sexuais. Pelo contrário, a eugenia brasileira
vinculava-se estreitamente a uma ideologia conservadora, familiar”. (STEPAN, 2004:352)
Neste sentido, haveria um modelo hegemônico a qual Kehl e outros intelectuais estariam
identificados ou não. Portanto, por esse viés, os membros do eugenismo nacional seriam, em
sua maioria, adeptos de uma eugenia “leve”.
Tenho feito, com alguma regularidade, críticas e comentários a respeito dos trabalhos
produzidos sobre o tema da eugenia. Chamo a atenção para determinados itens, que creio, não
comprometem a contribuição que eles realizaram. Inegavelmente, os textos de Souza e Stepan
avançaram muito na investigação sobre o movimento eugênico no Brasil. Contudo, discordo
de algumas das premissas apresentadas. E, em alguns pontos, Souza (2006) também critica a
obra de Stepan (2005). Mas, isto de maneira nenhuma invalida a posição de Stepan, que,
inclusive, sublinha a originalidade das idéias eugenistas na América Latina e reconhece a
importância delas. Apenas, consideramos que a argumentação que acompanha a maior parte
dos textos sobre a eugenia no Brasil não reconhece algumas nuances que caracterizam os
processos históricos. Se, por um lado, é correto o reconhecimento das propostas “leves” de
grande parte dos eugenistas nacionais, por outro, devemos questionar essa “leveza”.
187
205
Sobre a Associação Brasileira de Educação (ABE), ver CARVALHO (1998).
188
aprontava um pré-projeto para a nova constituição procurava definir a função que o Estado
deveria desempenhar. Essa lista está publicada no livro Aparas Eugênicas. Sexo e Civilização
de autoria de Kehl editado em 1933. Ela apresentava muitos pontos de contato com as
resoluções aprovadas pelo Congresso de Eugenia de 1929. Vejamos trechos de ambos os
documentos. As principais conclusões do Primeiro Congresso de Brasileiro de Eugenia estão
no mesmo livro de Kehl.
Com a criação da CCBE, Kehl tinha como objetivos reunir tanto os interesses dos
segmentos mais radicais do movimento eugenista, quanto atrair à atenção dos intelectuais das
demais correntes, além dos membros do novo governo. Dentre os integrantes da Comissão
aparecem os nomes de Ernani Lopes e Porto Carrero, respectivamente presidente e vice-
presidente da LBHM; o psiquiatra e eugenista Cunha Lopes, do Departamento de Assistência
a Psicopatas do Rio de Janeiro; os eugenistas Salvador de Toledo Piza Junior e Octavio
Domingues, ambos professores da Escola Agrícola Luiz de Queiroz de Piracicaba; Achiles
Lisboa muito ligado a Belisário Penna. O grupo era formado também por intelectuais e
políticos diretamente ligados ao Departamento Nacional de Saúde, como Gustavo Lessa,
Caetano Coutinho e Penna, nomeado semanas antes pelo Getúlio Vargas para dirigir o
referido departamento. Nesse momento, acima de Penna na hierarquia administrativa da área
da saúde, somente o Ministro de Saúde Pública e Educação. Cargo que o filho de Barbacena
189
Uma série de elementos pode ser apontada para tratar a legislação imigratória dos anos
30 como sistematicamente influenciada pela eugenia e, principalmente, pensada e
implementada pelos intelectuais do campo eugênico. A limitação de cotas por nacionalidade
aplicadas na Constituição de 1934 é um dos grandes símbolos desse período.207 Porém, não
foi o único. As ações desenvolvidas no Conselho de Imigração e Povoamento além das
normas e restrições impostas pelos Ministérios do Trabalho, Justiça e demais órgãos que
regulavam as relações exteriores também identificam as dificuldades criadas para a entrada de
imigrantes no período.
206
PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA. Atas e trabalhos. Rio de Janeiro: v. 01, 1929, p.
339.
207
Em seu texto final, é explicitamente colocada a necessidade imperiosa de promover a educação eugênica e
higiênica.
191
208
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 115.
209
Levy Carneiro foi membro da Constituinte.
192
Para nós, portanto, que, pelo fato mesmo de termos uma formação, em que
predominam dois sangues inferiores (o negro e o índio), somos um povo de
eugenismo pouco elevado, o grande problema é a arianização intensiva da
nossa composição étnica. Tudo quanto fizermos em contrário a essa
arianização é obra criminosa e impatriótica.210
210
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 356.
193
211
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Miguel Couto citando Oliveira Vianna. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, p. 490.
212
Anais da Assembléia Nacional Constituinte. Miguel Couto. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p.124.
194
Pinto, antropólogo e Diretor do Museu Nacional, Renato Kehl, Conde Debanné, Cônsul do
Brasil nos países do Oriente, Dulphe Pinheiro Machado, Diretor do Departamento do
Povoamento, Vaz de Mello, Diretor dos Serviços de Passaportes do Ministério do Exterior e
Raul de Paula, representante da Sociedade Amigos de Alberto Torres. Presidia a comissão,
Oliveira Vianna, Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho.
Não posso concordar também com a citação dos ciganos, tal qual está no
art.2 do projeto. Antes, de mais, convém lembrar que os próprios ciganos,
para fugir das perseguições tradicionais, herança medieval do mundo cristão,
costumam declarar a nacionalidade oficial-são espanhóis, italianos,
húngaros, etc. Nunca declaram a sua etnia. Mas o nome cigano, que tão
pejorativo se tornou no Brasil, sinônimo de gatunagem e sordidez,
corresponde de fato a um povo que não merece um insulto sistemático.
Mesmo desprezando tudo quanto dele recebeu o Brasil, na sua formação, em
sangue, lendas, tradições, costumes, até mesmo no idioma. Os ciganos só por
serem nômades, não devem receber tão formal condenação. Ciganos artistas,
e ou artífices, sadios, robustos, de uma vida limpa, em boas condições de
higiene e de bons antecedentes eugênicos, que são sempre individuais. É
195
213
Roquette-Pinto, Fundo Pessoal Roquette-Pinto, ABL.
214
Correspondência de Renato Kehl a Oliveira Vianna. 11 out. 1935. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
196
Por meio dessa análise, estou criticando uma tendência que constata erros,
contradições ou ausências, onde, na verdade, existem conexões não compreendidas217. Os
discursos dos intelectuais não são contraditórios. Penso que muitos dos equívocos cometidos
por outros pesquisadores, que se aventuraram por essas zonas tempestuosas do pensamento
social e político, ocorreram devidos aos labirintos criados pelos autores estudados. Assim,
leituras que enfatizam demasiadamente as distinções da eugenia negativa, positiva ou
preventiva, estão baseadas em conceitos e argumentos criados pelos próprios objetos de
análise. Os agentes sociais estudados e seus respectivos textos são testemunhas. Os discursos
dos intelectuais tendem a serem mais críveis, e, portanto, fornecem mais dados, tanto quanto
nossas perguntas forem mais elaboradas. As diversas leituras sobre o caminho que deveria ser
215
Este conceito está em Patto (1999).
216
Os conceitos construídos e utilizados pelo sociólogo Bourdieu são interligados: Habitus, Campo e Consenso
no Dissenso. “Os agentes certamente tem uma apreensão ativa do mundo. Certamente constroem sua visão do
mundo. Mas essa construção é operada sob coações estruturais. E pode-se inclusive explicar em termos
sociológicos aquilo que aparece como propriedade universal da experiência humana, a saber, o fato de que o
mundo familiar tende a ser taken for granted, percebido como evidente. Se o mundo social tende a ser percebido
como evidente e a ser apreendido (...) é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é, as estruturas
mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são em essência produto da interiorização das
estruturas do mundo social.” (BOURDIEU, 2004: 157).
217
Quando não se compreende o nosso objeto de pesquisa, corremos o risco de continuar aceitando como
dogmas, interpretações superficiais, pesquisas mal feitas, explicações sem fundamentos, simplesmente porque
somos induzidos a ver o processo histórico segundo nossa vesguice teórica. Há uma tendência que interpreta os
intelectuais como pessoas especiais que produzem obras alheias aos conflitos e tensões sociais. Quase como
semideuses que passeiam por uma cidade das idéias distante da urbe real.
197
Lima Barreto comentava a questão sob este prisma: “Em suma, para não me alongar.
O problema, conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de
natureza econômica e social.”(Barreto, 2004:457). Após estas palavras, podemos ver o
quanto seus comentários divergem do intelectual médico Renato Kehl. Sob o título Pais,
218
Pouco mais de 10% da população brasileira era alfabetizada.
198
Médicos e Mestres, Kehl, incansável propagandista da eugenia, publicou mais um livro sobre
os princípios eugênicos. Mais uma vez este esculápio receitava “remédios” para os males da
sociedade brasileira. Desta feita, articulando questões de saúde e de educação às políticas
governamentais, fez explícitas referências ao controle do Estado sobre o indivíduo, quando
afirmou:
Renato Kehl afirmava a competência técnica dos médicos para efetuar uma seleção
eugênica, no momento histórico em que intelectuais dessa categoria reivindicavam uma
219
Os objetivos de eugenistas e sanitaristas dividiam-se em eugenia preventiva (controle dos fatores disgênicos
pelo saneamento), em eugenia positiva (incentivo e regulação da procriação dos capazes) e na eugenia negativa
(evitar o nascimento dos considerados incapazes).
220
“O fato de que o Brasil vinha conseguindo um branqueamento por meio da miscigenação era, para Kehl,
razão de tristeza, não de comemoração. Ele alertava contra os cruzamentos entre raças e classes, ao mesmo
tempo que desaprovava sua falta de preconceito racial e de classe”.(HOCHMAN e ARMUS, 2004: 369)
221
KEHL, Renato. Artigo publicado no O Estado de São Paulo, 07 jul. 1918. Fundo Pessoal Renato Kehl,
COC/Fiocruz.
199
atuação política mais incisiva na formação social brasileira.222 Entre o final do século XIX e
os últimos anos da década de 1930, diferentes intelectuais brasileiros voltaram-se para a
questão da identidade nacional. Atribuindo-se uma missão patriótica, médicos e cientistas223
empenharam-se em conhecer o país.224 Havia uma expectativa de mudanças sociais e culturais
que mobilizava as camadas urbanas, identificadas e preocupadas com as condições para a
emergência de uma nova nação.
Partindo de uma visão da sociedade, eles não se omitiram em lutar por suas crenças.
Uma das questões centrais para esses homens foi o debate sobre as condições de existência no
Brasil. Observamos entre escritores, artistas e políticos, que havia um consenso sobre as
ameaças que pairavam sobre o Brasil e, como decorrência, forjaram-se interpretações e
projetos de mudança. Queremos refletir sobre esse consenso intelectual enunciado em
diversas reflexões, discursos e projetos políticos: o brasileiro é inferior. Portanto, por meio
das idéias, bastaria compreender e, posteriormente, modificar as condições de saúde do povo
brasileiro em busca da reforma do país. Naquela conjuntura, o cenário sanitário foi apontado
como muito grave e responsável pelas dificuldades que impediam as mudanças sociais
reclamadas. Essa constatação e as questões que ela suscitou podem ser apresentadas desta
forma: eugenistas e sanitaristas apresentavam uma solução original para a tragédia brasileira.
Mas, afinal, por que somos miseráveis e doentes?
222
Já esclarecemos que além de ações como a esterilização, Renato Kehl defendia também o saneamento e a
educação como fatores que ajudariam a civilizar o país.
223
Herschmann utiliza um conceito impreciso para designar o tipo de cientista que atuava em vários ofícios: “Na
falta de um termo melhor que designasse estes intelectuais, utilizei este termo composto (cientistas-intelectuais).
A dificuldade de encontrar um termo apropriado para este agente social está fundamentada na atuação deste
especialista, que extrapolava a produção científica, realizando obras abrangentes, de cunho teórico, sociológico e
literário. A partir de sua especialização, de seu saber tecno-científico, eles ‘inventavam’ soluções para os
chamados ‘problemas nacionais’. Longe de propor uma definição de ‘intelectual’, considerei-o como aquele que
se reconhece e é reconhecido pelos outros como tal”. (HERSCHMANN & MESSEDER, 1994:46).
224
Estes intelectuais construíram representações sociais que pretendiam orientar os indivíduos em direção a um
mundo moderno e civilizado. Para realizar estas tarefas, eles organizaram conjuntos discursivos de variadas
formas. Assim, estes pensadores foram cientistas, poetas, médicos e educadores. E veicularam suas idéias a
respeito de raça, amor, sexualidade, doenças, economia e identidade nacional. Oswaldo Cruz, Belisário Penna,
Afrânio Peixoto, Carlos Chagas, Roquete Pinto, Renato Kehl, Nina Rodrigues, Clementino Fraga, Miguel Couto,
Miguel Pereira, Phocion Serpa e outros.
225
Lidamos com representações discursivas do imaginário social. Porém, isto não significa considerar as idéias
como ilusões da vida concreta. A propósito, Chauí e Franco definem que: “A produção das representações é uma
dimensão da praxis social tanto quanto as ações efetivamente realizadas pelos agentes sociais. Pensar e
representar são momentos da praxis tanto quanto agir, este e aqueles exprimindo, dramatizando ou ocultando uns
200
Delimitamos nossa pesquisa entre 1917 e 1937. Se foi em 1917 que Renato Kehl falou
publicamente sobre o tema da Eugenia durante uma conferência feita na Associação Cristã de
Moços de São Paulo, vintes anos depois, ele consolidaria seu ideário, através de inúmeros
artigos, folhetos e, especialmente, lançando um pequeno livro, Por que sou eugenista? 20
anos de Campanha Eugênica, comemorando o movimento pela adoção das práticas eugênicas
no Brasil. Já comentamos sobre a presença na literatura que estuda a Eugenia no Brasil, da
afirmação de que a trajetória de Kehl teria sofrido uma inflexão no final dos anos 20. Com o
correr dos anos, teria havido uma crescente radicalização em torno da proposta eugênica
negativa. Nancy Stepan explicou esta mudança, em dois importantes textos228, onde a origem
européia de Kehl, ao menos tornaria possível essa nova realidade. Souza (2006) concordando
com essa autora, argumenta que as viagens do médico à Alemanha, no contexto do
crescimento do nazismo, justificariam a virada de Kehl em suas idéias. Essa mudança
representaria uma radicalização. Uma postura mais agressiva frente às propostas da eugenia
negativa. Ao longo do texto, estabelecemos uma discussão com essas afirmações. Também já
declaramos que consideramos equivocadas as interpretações porque as análises realizadas por
pesquisadores sobre eugenia se enredam nos discursos dos intelectuais investigados. Uma
mistura de conceitos entre analistas e objetos.
aos outros no movimento pelo qual uma sociedade se efetua como sociedade determinada”. (CHAUÍ &
FRANCO, 1985:09).
226
Ao longo do trabalho, um ator extremamente importante está presente: Monteiro Lobato.
227
Intelectuais médicos, identificados com o sanitarismo e o eugenismo atribuíam à ausência de saúde e
educação as causas dos problemas do país.
228
“Eugenia no Brasil, 1917-1940” In: Cuidar, Controlar, Curar. Ensaios históricos sobre saúde e doença na
América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004; A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
201
Em primeiro lugar, ele afirma que houve uma descontinuidade nas idéias de Khel, existindo
mesmo uma discordância ou mudança de direção das idéias eugenistas na trajetória desse
intelectual. Se assim fosse, teríamos que concordar que as ações características da eugenia
negativa foram incompatíveis com as idéias e práticas da eugenia positiva e preventiva.
Entretanto, observamos que a trajetória do eugenismo no Brasil e, também, na América Latina
e, até mesmo, em países como Espanha e Itália, foi marcada por relações conflituosas e, em
algumas ocasiões, amistosas, entre os intelectuais e suas propostas. Talvez, com a conjuntura
nacional e internacional mais favorável ao crescimento das idéias totalitárias, Kehl realmente
manifestou uma ênfase maior em relação à eugenia negativa. No entanto, ele nunca
abandonou totalmente a via positiva ou a preventiva. Ele radicalizou toda a sua política
eugênica. Fosse ela saneadora do meio ambiente, controladora dos genes e do sexo e
educadora dos indivíduos.
Assim, discordamos de boa parte dos autores que trataram do tema. Afirmamos que
embora seja verdadeira a informação de que, em diversos momentos, próximos a década de
30, o eugenista Kehl expunha um conceito menos amplo de eugenia, ele próprio, para
justificar esta atitude, declarava que nos primeiros tempos, era necessário convencer, de uma
maneira geral, as pessoas sobre as vantagens da eugenia. Daí a necessidade de afirmações
generalizantes, em que se incluíssem também a Educação e o Saneamento. Na conjuntura do
final dos anos 20, também declarava a existência de conceitos diferentes, a Eugenia e o
Eugenismo. O segundo conceito, contemplando as ações educativas e saneadoras. Todavia,
nosso propósito reside precisamente em estudar a coexistência das distintas “eugenias”229. Se
Kehl, durante vários anos, alertava sobre a necessidade da esterilização, conjugada à educação
e às aspirações do movimento sanitarista, que por seu lado pretendia até a reforma das
instituições230 políticas, onde está a virada? Se ele era favorável pela prática da esterilização
desde 1918, defendendo claramente a função regeneradora e enriquecedora da eugenia
negativa para a nacionalidade, não podemos concluir que, dentro do universo das idéias
eugenistas, Renato Kehl permaneceu coerente? Por que? Porque o campo eugênico
comportava a existência de idéias e práticas aparentemente inconciliáveis. Diálogo e tensão
marcavam as relações dos intelectuais eugenistas que viviam as contradições da sociedade
numa época determinada.
229
Sobre O Consenso no Dissenso, ver BOURDIEU (1999).
230
“Sanear o país significava, na ótica dos participantes do movimento, a recuperação da autêntica nacionalidade
ignorada pelas elites urbanas ou obscurecida pelo discurso ufanista predominante nos primeiros anos do período
republicano”. (BRITTO & LIMA, 1991:01).
202
Vamos buscar ajuda em Bourdieu232 mais uma vez. Em sua obra, analisando o
conceito de campo científico, esse sociólogo afirmou que em campos de pensamento
aparentemente homogêneos, os debates, as disputas pelo espaço científico e pela posse do
capital intelectual representam aspectos simbólicos contraditórios e similares. Para uma
parcela dos intelectuais brasileiros do início do século passado, a explicação para a situação
do Brasil estava nas características naturais do Estado e da sociedade. Nesse sentido, o país
vivia seus conflitos e crises políticas devido ao clima, ao meio físico-natural e à constituição
231
KEHL, Renato. Diário Popular, São Paulo, abr. 1919. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
232
O conceito de Campo Científico compreende um espaço prenhe de conflitos e lutas por prestígio. Eugenistas
e sanitaristas, médicos ou profissionais de outras especialidades constituíram uma série de estratégias políticas
que tencionava ampliar o capital simbólico dos atores envolvidos. Ver o texto “O campo cientifico” In: ORTIZ,
Renato (org). Pierre Bourdieu. Sociologia. SP: Ática, 1983.
203
racial do povo. Segundo esses atores sociais, não possuíamos o desenvolvimento social de
outras nações porque a localização geográfica do país, o calor e a miscigenação com raças
inferiores tinham-nos tornados incapazes e indolentes. Para essa face do pensamento social
brasileiro não éramos uma nação. E nem seríamos. Este pensamento influenciaria, em parte,
os críticos autoritários da República. Alguns diziam mesmo que era uma crença pensar que o
regime republicano pudesse ser origem de uma nação, pois existiria um abismo entre o país
real e o país legal. Afinal, como trazer leis das outras nações, se o Brasil, nem era um país, era
uma terra abandonada. Para essa fração do pensamento social da época, influenciada pelas
idéias de intelectuais como Gobineau e outros, não tínhamos conhecido o progresso de outras
nações porque a miscigenação gerara uma população preguiçosa, indisciplinada e pouco
inteligente. Essa inferioridade biológica seria a causa da inadaptabilidade à sociedade
moderna e industrial. A responsabilidade dessa condição devia-se, principalmente, ao
cruzamento dos portugueses com as outras raças.
Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de
meter medo (...) Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos
casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto
que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes
baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto. (RAEDERS,
1997:39).
233
Os livros são Raeders, 1938; Raeders, 1988; Raeders, 1997.
204
não conservava, nas suas veias, o mesmo sangue original que sucessivas misturas fizeram,
gradualmente, modificar o valor, em outras palavras, não mantinham a mesma raça que seus
fundadores. (GOBINEAU, 1937). Gobineau chegou à capital do Brasil a 20 de março de
1869. Numa carta a sua esposa, ele relatava que:
Esse foi o início de uma amizade com Pedro II que se prolongaria até bem depois de
sua partida do Brasil. Mas seria, por outro lado, sua única ligação com o país: Gobineau
desprezava os colegas do corpo diplomático de outras nacionalidades e se limitava às estritas
relações oficiais com os do país. Esse intelectual tem sido considerado como o pai das teorias
racistas. Segundo afirmava, as civilizações eram arianas em seus princípios. Uma civilização
sem uma origem ariana não teria futuro, uma vez que, as raças inferiores, degeneradas, eram
incapazes de criação de uma cultura. Embora, ele próprio, não tenha definido o que era
exatamente raça ariana, a partir daí, acreditava-se que a superioridade da raça branca era um
princípio universal e científico, um fator capaz de explicar, por exemplo, as diferenças entrte
os povos. Assim, para ele, a desigualdade das raças humanas não era uma questão absoluta,
mas um fenômeno ligado à miscigenação degenerativa de uma pureza original. Essa teoria
funcionou como justificação ideológica da dominação européia sobre os continentes de
populações consideradas inferiores.
234
Encontramos no texto de Gobineau, uma descrição pormenorizada da visão da terra brasileira edênica, porém,
habitada por um povo ruim: “No hay ciertamente países más fertiles, ni climas más suaves que los de los
diferentes países de América. Allí abundan los grandes rios; sus golfos, bahias y puertos son vastos, profundos,
magnificos, numerosos. Los metales preciosos se encontran a ras del suelo, la natureza vegetal prodiga casi
espontaneamente los medios de exiostencia más variados, en tanto que la fauna, rica en especies alimenticias,
205
Todavia, a ênfase que era atribuída ao contraste entre o país real e o idealizado
materializava a existência de vários Brasis. Onde residiria a verdadeira identidade cultural do
Brasil? Nas cidades remodeladas segundo os padrões da cultura européia? Ou nos seus
subúrbios? Ou nos sertões abandonados? Nos Jecas ou nos Dândis? Como conciliar os
miseráveis analfabetos e doentes com os cafés, os cinemas e as grandes avenidas?
oferece recursos(...) Todavia(...) es habitada, desde muchísimos siglos por tribos incapaces de la exploración,
siquiera muy mediocre, de sus imensos tesoros”. (GOBINEAU, 1937: 58).
206
corrente, diversamente, não veriam o Brasil como uma terra da promissão, mas sim como um
inferno de enfermidades e problemas. Todavia, agentes sociais críticos do Brasil e dos
brasileiros, também avaliavam que algumas características eram positivas. E buscavam
romper com as delimitações, criando condições para a transformação do Brasil em uma
grande nação. No entanto, não foi raro que intelectuais como Silvio Romero, Lobato e outros
transitassem pelas diferentes interpretações do país.
235
Afonso Celso, neste livro, demonstra uma visão positiva do Brasil.
236
Lobato criticava as instituições políticas da Primeira República no primeiro Jeca. O Jeca era indolente.
Abandonado pelas instituições republicanas, o Jeca votava pelo cabresto dos “coronéis”.
207
Como transformar o Brasil numa Nação? Esta pergunta inquietante seria respondida pelos
cientistas, advogados, professores e engenheiros que elaboraram diferentes propostas para o
Brasil237. No âmbito desse trabalho definimos o movimento sanitarista como conjunto de
idéias e atitudes compartilhadas por intelectuais, médicos e educadores, nas quais está
presente o tema de construção da nação.238 Investigando as relações entre as idéias do
movimento sanitarista e o imaginário social, podemos identificar em que medida e quais
representações sociais orientaram as formulações políticas sobre educação e saúde, no
contexto das décadas de 1920 e 1930. A construção da nacionalidade e a superação da
realidade econômica e social encontraram respostas na melhoria da saúde da população e não
poderia ser explicada apenas por adversidades de natureza climática e/ou inferioridade racial.
A campanha pelo saneamento dos sertões239 desencadeada durante esse período foi uma ação
política desses intelectuais.240
Examinar as concepções que orientaram Kehl foi um dos objetivos deste trabalho.
Portanto, seus textos foram uma fonte privilegiada para a análise dos temas abordados pelos
intelectuais do período241. Essas obras dão um testemunho fundamental. Por meio de suas
análises e projeções – e de outros integrantes do campo intelectual emergente, foi difundida a
idéia de que o Brasil, por intermédio de reformas nas políticas públicas de saúde e educação,
transformar-se-ia num exemplo de nação. Frente às outras interpretações e diagnósticos do
Brasil, Renato Kehl adicionou propostas de ações eugenistas esterilizadoras que deveriam
integrar as políticas públicas, que levariam o Brasil a superar seu estado permanente de
miséria, onde as doenças eram uma constante. Em artigo publicado na Revista do Brasil,
Renato Kehl declararia seu conceito amplo de eugenia: “instruir é eugenizar, sanear é
eugenizar”; e ainda nas páginas desse periódico podemos acompanhar a lógica das idéias
237
Nomes como Roquette-Pinto, Afrânio Peixoto, Belisário Penna, Pacheco e Silva, Franco da Rocha, Arthur
Ramos e Nina Rodrigues estão merecendo a devida atenção. Nísia Trindade Lima lançou livro sobre a forma
com que “Os Sertões” foram representados pelos intelectuais brasileiros. Nele, a autora colabora na reconstrução
da trajetória desses perfis (LIMA, 1999).
238
Um estudo detalhado pode ser visto em Santos, 1985. Os estudos e pesquisas sobre políticas públicas do
período dividem-se em análises explicativas, algumas privilegiando as análises econômicas, demonstrando que
as ações de saúde pública representavam o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, outras afirmando o
aspecto simbólico e/ou político das ações, ou o caráter repressivo. Santos foi um dos primeiros autores a
demonstrar a dimensão simbólica destas políticas para a construção da nacionalidade.
239
Sertão podia significar qualquer lugar distante do centro político e administrativo do país.
240
Sobre os médicos sanitaristas ver BRITTO (1995); MACHADO (1978); LUZ (1982); COSTA (1985);
THIELEN (1991). Existe ainda uma bibliografia crítica e recente criticando os vários “modelos” ou tendências
de análise da história das idéias e práticas médicas. Sobre este tema consultar EDLER (1992) e REIS (1994).
241
Foram investigados os acervos pessoais de Roquette-Pinto, Belisário Penna, Renato Kehl, Oliveira Vianna, e
Arthur Neiva, além dos documentos do Congresso de Eugenia de 1929. Estes documentos estão sob a guarda das
seguintes instituições: Casa de Oswaldo Cruz, CPDOC, ABL, Casa de Oliveira Vianna e Museu Nacional.
208
eugênicas no Brasil242. Depois, Khel responderia aos críticos que o questionavam sobre a
amplitude do seu conceito de eugenia, declarando que no início da campanha eugênica, era
necessário arregimentar o maior número de seguidores.
individual, além da educação e da eugenia. O processo de descoberta do Brasil havia sido para
os políticos e intelectuais um retrato do Brasil. A existência do país pobre e doente era um
obstáculo à construção da nação. Mas havia uma esperança. Um novo diagnóstico e novos
remédios estavam no mercado das idéias: as viagens científicas haviam retratado o verdadeiro
país. Afinal, não se tratava de uma opinião e tampouco de literatura ufanista. O Brasil, sob a
lente do microscópio e da máquina fotográfica, transformara-se num laboratório onde se podia
alcançar a verdadeira identidade. A descoberta do país pela ciência apresentava uma saída
para o Brasil, pois, além de diagnosticar os problemas, indicava o remédio necessário. O
encontro da realidade nacional havia produzido uma saída. Era possível acabar com a
indolência! Como os intelectuais chegaram a essa conclusão? Já falamos que uma das
explicações está na repercussão que o relatório Penna-Neiva editado pelo Instituto Oswaldo
Cruz obteve. O texto estampava em “instantâneos cruéis” a miséria e as doenças de toda a
região percorrida. Indagados sobre a necessidade de construção de um poço de água limpa, os
membros da expedição comandada por Belisário Penna e Arthur Neiva obtiveram uma
resposta dos habitantes que indicava, sob uma determinada ótica, a eterna apatia e indolência
do homem brasileiro:
Concorrem muito para esse estado de coisas as falsas informações dos que
viajam por essas regiões, pintando em linguagem florida e imaginosa,
quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta. Nós, se fôramos
poetas, escreveríamos um poema trágico com a descrição das misérias, das
210
Duas décadas antes da interpretação de Gilberto Freyre, que tentaria substituir a noção
de raça pelo conceito de cultura, os sanitaristas consideravam possível transformar os Jecas
indolentes em valorosos trabalhadores. Para esses intelectuais, o problema não estava
totalmente na raça, mas, também em outros fatores, como por exemplo, na alimentação
deficiente e na falta de controle dos vetores transmissores das graves doenças endêmicas e
epidêmicas. Entretanto, os sanitaristas, ainda que tenham modificado a interpretação negativa
do Brasil, não abandonaram totalmente as crenças racistas e nem a opinião da incapacidade
para o trabalho dessas populações abandonadas. Portanto, o que havia sido alterado, era que a
condição pouco eficiente pudesse ser modificada. Através, primeiro, das ações sanitaristas,
depois, pela educação higiênica e, por fim, se necessário fosse, com o auxílio da eugenia. A
força de trabalho teria que ser aproveitada.
243
Lobato não estava imune às crenças racistas e deterministas. Um dos poucos autores que conseguiu escapar
das influências do racismo científico foi Manoel Bomfim. A crença na degeneração do mestiço era dominante.
Acreditava-se nas potencialidades das raças puras. Branca ou negra. Mas, o mestiço não. Este era inferior. As
forças das novas disciplinas científicas surgidas no final do século XIX faziam com que todos acreditassem
nestas premissas. Afinal, como duvidar da “Ciência”? Imaginem, a recepção, com que Bomfim e outros autores,
que estão para serem recuperados pelos pesquisadores, foram recebidos. Contrariavam a opinião de sábios e
nobres europeus.
211
É habitual dizer, e nós mesmos já temos cometido esse pecado, que o povo é
indolente e sem iniciativa. A verdade, porém, é outra. A ausência de esforço
e de iniciativa dessa pobre gente é proveniente do abandono em que vive, e
da incapacidade física e intelectual, resultante de moléstias deprimentes e
aniquiladoras (...)(NEIVA-PENNA, 1999: 221).
Mais uma vez destaco que todas as estratégias foram formuladas para tornar a raça-
povo-nação, forte, branca, saudável e bela. No entanto, se a flexibilização das determinações
negativas sobre a mestiçagem como fato explicativo da miséria e da doença no Brasil, os
sanitaristas haviam feito, Gilberto Freyre tornaria a intensa mistura étnica um valor
extremamente positivo. Por outro lado, em relação ao valor dos mestiços, Roquette-Pinto e
Domingues apresentavam uma visão bastante otimista. Mas, quanto à incidência das doenças
mentais, restrição à imigração e uso da esterilização as opiniões desses intelectuais já não
ficavam tão cristalizadas. E, quanto às funções que a educação, no sentido mais amplo,
poderia desempenhar, tendiam a se alinhar com o maior número de intelectuais. Em relação
aos matrimônios, Kehl e quase todos os eugenistas eram radicais e sonhadores. Para o genro
de Penna, na almejada metrópolis futurista organizada segundo princípios racionais e
eugênicos, os casamentos seriam controlados pelo Estado e a geração de filhos autorizados ou
não pela ciência. E tudo decidido “como se resolvem formulas químicas”.
Problema Vital foi o título dado ao livro de Lobato. Originalmente, são artigos
publicados no jornal O Estado de S. Paulo. Trata-se de documento de maior interesse para a
212
investigação dessa rede de intelectuais e instituições. Nesta época, Lobato era um interlocutor
fundamental para os membros do movimento sanitarista. Ele mantinha intensa
correspondência com Arthur Neiva, Belisário Penna e Renato Kehl. A obra foi editada com o
auxílio da Liga Pró-Saneamento do Brasil e da Sociedade Eugênica de São Paulo. Scliar
(2003) manifesta uma surpresa ao constatar a participação de uma liga de eugenistas nesse
empreendimento editorial. Esse escritor indaga como eugenistas e sanitaristas (juntos)
ajudaram a publicar o livro? Scliar afirma um pouco estupefato: “(...) aos eugenistas, a
solução para os problemas dos jecas tatus estava no aperfeiçoamento da raça (às vezes pela
esterilização) e não no combate às endemias”. (SCLIAR, 2003: 252). Julgamos que, nossa
contribuição ao debate é exatamente demonstrar a articulação da educação higiênica, das
ações de esterilização e do combate às doenças para a formação de uma nação e um povo
educado, higiênico e forte. Mesmo o mais radical eugenista, como Kehl, favorável pelas
técnicas de esterilização de incapazes e criminosos, era também defensor do saneamento e da
educação higiênica. Tudo para transformar o Jeca apático e indolente em Jeca Bravo.
244
Conferência de Kehl realizada no Colégio Militar de Barbacena em 27 de Setembro de 1919. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
213
245
Ver o artigo de CHALHOUB, Sidney. “Medo Branco de almas negras: escravos libertos e republicanos na
cidade do Rio de Janeiro” In: Discursos Sediciosos, número 1, 1996.
246
Sobre a articulação entre os ideais eugênicos e o racismo científico presente no pensamento social brasileiro
ver o livro de Vera Regina Marques. Neste livro a autora disseca o discurso médico acerca da eugenia e explica
que a eugenia no Brasil “... teria sua razão de ser, na medida em que reforçava a tese de não tomar as teorias
eugênicas ao 'pé da letra', mas adaptá-las ao contexto político-cultural daqueles tempos”.(MARQUES, 1994:63).
247
Fato observado por Magali Engel: “Vista como a ‘ciência do aperfeiçoamento moral e físico da espécie
humana, os objetivos da eugenia orientar-se-iam, segundo Kehl no sentido de estudar os meios pelos quais se
evita o abastardamento das raças, determinando as vias pelas quais se perpetua a geração de indivíduos sãos,
robustos e belos’. Tais objetivos seriam viabilizados mediante três eixos de atuação. Em primeiro lugar... por
meio da educação eugênica. O segundo ponto fundamental seria o de evitar a reprodução... dos degenerados –
loucos, vagabundos, criminosos... O terceiro eixo de atuação deveria compreender, ainda segundo Kehl, um
conjunto de medidas higiênicas que formuladas pelos médicos e viabilizadas por meio das leis, pelos
governantes, combatessem os fatores disgênicos, entre os quais algumas doenças – especialmente a sífilis, a
tuberculose e o alcoolismo.” (ENGEL, 2001: 170)
214
A Educação e a Higiene por mais perfeitas que sejam, não conseguiram nem
conseguirão impedir a decadência. O otimismo infantil de tantos políticos,
pedagogos e filósofos que esperam estender as gerações futuras os
benefícios atuais de assistência social, do esporte, da higiene física, da
educação, etc, não é senão o exemplo típico da mais grosseira ignorância
biológica ou da falta mais completa de raciocínio. (1933:78)
autores estrangeiros, eles assumiam um modelo brasileiro que era articulado com a hierarquia
social e a dinâmica da sociedade.
248
Na tese não tratamos da eficácia ou aplicação das idéias eugênicas. Contudo, as práticas de esterilização foram
usadas como uma ação terapêutica. “... um certo Dr. Álvaro Ramos teria chegado a ponto de acatar o conselho de
Juliano Moreira, Diretor do Hospital Nacional de Alienados, e fizera a esterilização ‘eugênica’ de mulheres com
diagnóstico do desajuste sexual conhecido como ‘síndrome da perversidade”. (Hochman e Armus, 2004: 352).
216
249
KEHL, Renato. O homem puro-sangue. A possibilidade da sua criação. 13 abr. 1923. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
250
Sobre as posições autoritárias dos intelectuais denominados de liberais no Brasil, ver SANTOS (1996).
251
Ver MOVSCHOVITZ (2001).
252
Uma narrativa deste momento está em HOCHMAN (1998).
217
Somos melhoristas, isto que dizer, que nos guiamos pela Eugenia, por essa
grande idéia do aperfeiçoamento incessante moral e físico dos nossos
semelhantes, pela progressiva regeneração enfim, dos mesmos, no presente e
dos seus descendentes no futuro. E como nós, é melhorista grande numero
253
Hegemonia armada de coerção, negociação, convencimento e consenso. A construção da identidade nacional
contou com canções aveludadas, mas também com muita pancada ou pelo menos com ameaça. Diz Sonia
Mendonça sobre Gramsci: “Para o filósofo italiano, a peculiaridade do estado Capitalista Ocidental de seu tempo
consistia no fato dele guardar um espaço de consenso – e não só de coerção – entre os grupos cujos interesses
faziam-se nele inscritos, consenso este entretecido e construído a partir dos sujeitos coletivos organizados nos
aparelhos privados de hegemonia – ou seja, antes de mais nada, na própria Sociedade Civil – bem como através
da ação do próprio Estado restrito, que igualmente promove e generaliza a visão de mundo da fração de classe
hegemônica”. (MENDONÇA, 2005:11).
219
de paladinos da eugenização que dia a dia vem se juntar às hostes dos deptos
do galtonismo.254
254
KEHL, Renato. “A Eugenia em São Paulo”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 03 mar. 1920. Fundo Pessoal
Renato Kehl, COC/Fiocruz.
220
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma pergunta se impõe: por que o tema da representação do Jeca Tatu256 e, por
conseguinte, da identidade nacional vem ganhando um lugar de destaque nas ciências sociais?
Um número impressionante de teses, artigos e palestras. Talvez porque venha cada vez mais
ocupando um lugar político em nossa sociedade. Há pouco tempo, os jornais de grande
circulação gastaram papel discutindo a presença de um tradutor nas viagens internacionais do
Presidente Lula. Ele domina apenas a língua portuguesa. Houve até uma charge ironizando a
dificuldade do próprio dirigente norte-americano George Bush no domínio da língua inglesa.
Satirizava dizendo que ambos (Lula e Bush) não falavam inglês. Pois não é que o nosso
Jecatatuzinho, após sua transformação de homem parasita e incapaz em próspero
empreendedor, teve entre suas mudanças justamente a aprendizagem da língua inglesa! Fala o
255
KEHL, Renato. Correio da Manha, 4 mar. 1937. Fundo Pessoal Renato Kehl, COC/Fiocruz.
256
O Jeca Tatu surgiu em 1914 num artigo escrito por Monteiro Lobato. Mas foram as charges que ajudaram na
popularização do personagem, a ponto de ele se tornar um reflexo da identidade do brasileiro da primeira metade
do século passado. Essa é uma das conclusões da tese de mestrado do sociólogo Márcio José Melo Malta. Este
autor investigou a presença do personagem na revista de humor político Careta. Ele pesquisou as edições
lançadas entre 1919 e 1960. O pesquisador constatou que o Jeca apareceu mais 500 vezes nas capas e páginas da
publicação. (MALTA, 2007).
221
Jeca: “— Quero falar a língua (...) para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu
professor dizia: — O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig!” (LOBATO, 1957: 338).
Parece que estamos sempre definindo a identidade de ser brasileiro. Uma identidade
muitas vezes criada a ferro e a muita pancada. Mas também com idéias e canções suaves.
Mas, afinal, onde estará nossa verdadeira identidade? Inúmeros intelectuais responderam a
essa questão, dentre eles, Renato Kehl, Belisário Penna e Monteiro Lobato. Somos uma
nação? Nas primeiras décadas do século XX, indagações semelhantes demonstravam uma
característica bastante relevante do pensamento social e político brasileiro da época. Momento
fundamental, pois trazia à tona a questão nacional. O horizonte intelectual daquela conjuntura
possuía fronteiras fortemente delimitadas. Havia uma sensação de inferioridade frente às
nações que viviam a era industrial. Não éramos uma nação! Como imaginar uma Nação
Brasileira olhando para a miséria, a doença e o analfabetismo? Uma possibilidade consistia
em, esquecendo das adversidades, assumir um ufanismo romântico. Outra atitude procurou
ver o país do prisma de suas doenças e problemas. Porém, naquele período, a pergunta que
incomodava era: Seria possível construir uma nação a partir deste Caldeirão de Raças?257
257
Ronaldo Conde Aguiar sintetizou esse sentimento de perplexidade frente à questão nacional da época: “Na
virada do século, porém, a questão nacional estava relacionada à seguinte indagação: era possível existir uma
nação brasileira constituída majoritariamente de negros, índios e mestiços, gente que a ciência importada – e
plenamente aceita pelo pensamento social e político dominante – dizia ser inativamente inferior e incapaz?”
(AGUIAR, 2000:503).
222
O texto demonstra que no período entre as duas grandes guerras buscou-se formar
indivíduos saudáveis, produtivos e plenamente integrados, numa reação às concepções
deterministas que influenciaram os pensadores brasileiros, fazendo-os acreditar que a
população brasileira, em sua maioria, era constituída por homens degenerados, indolentes,
analfabetos e doentes. Assim, Dávila argumenta que as décadas iniciais do século passado
foram marcadas pelo esforço de muitos intelectuais em divulgar a eugenia, então considerada
como um antídoto para os males do país, através da publicação de livros, panfletos e da
organização de associações e congressos. A eugenia teria sido, então, uma tentativa científica
de aprimorar os indivíduos por meio do melhoramento de seus traços genéticos. Segundo as
teorias racistas que associavam degeneração à miscigenação, a união de indivíduos de etnias
diferentes produzia incapazes, degenerados, indolentes, ou mesmo com tendências para a
criminalidade. Isto porque, segundo os partidários da teoria da degeneração racial, os mestiços
recebiam traços muitos diversos e mesmo antagônicos dos seus pais de raças diferentes.
Portanto, essa herança racial diversa entrava em conflito ao se miscigenar, produzindo
indivíduos instáveis e incapacitados para a vida civilizada que exigia disciplina, trabalho e
ordem. Dávila argumenta que, diante dessa interpretação pessimista do país, uma ciência que
prometia aperfeiçoar a raça nacional logo alcançaria prestígio: o pessimismo racial seria
superado quando as práticas do eugenismo fossem adotadas. A Eugenia foi distinguida como
uma arma capaz de melhorar a raça e salvar o futuro do Brasil, encontrando entre educadores
e médicos seus mais importantes prosélitos.
Como poderíamos construir uma nação moderna diante desse quadro tão desalentador,
em que a miscigenação de raças inferiores era elemento explicativo para a nossa miséria?
Tínhamos um território potencialmente rico, mas ainda não éramos uma nação. Como vimos,
esta era a perspectiva hegemônica no pensamento social brasileiro até a década de 1910. No
entanto, essa visão determinista e negativa sobre o Brasil sofreria pequenas mudanças. Como
se explica tal reorientação? Que interpretação auxiliou a repensar o ‘improdutivo’ homem
brasileiro? A expedição científica pelos ‘abandonados sertões’ do Brasil constituiu, conforme
observamos, uma inflexão sobre o diagnóstico do país. A viagem de Penna e Neiva aos
rincões desconhecidos e o impacto causado pela publicação do relatório ajudaram a
transformar o paradigma interpretativo dominante. A esse respeito, Dávila corretamente
atribui um peso considerável à repercussão da epopéia para a revelação dos problemas do
Brasil. (DÁVILA, 2006:58). Segundo o historiador, dos médicos sanitaristas, ao negarem as
teses da indolência transmitida geneticamente, surgiram os remédios para o futuro venturoso:
224
a educação higiênica e as ações públicas sanitárias. Afinal, os Jecas encontrados por Penna e
Neiva nos locais mais recônditos do país, se não eram valorosos guerreiros, tampouco eram
inaproveitáveis.
258
Entre 1956 e 1975, existiu na cidade do Rio de Janeiro, o Serviço Municipal de Eugenia. O objetivo do orgão
consistia em realizar exames pré-nupciais para obtenção de “filhos sadios e famílias equilibradas”. Também
eram feitos exames pré-natais e pós-natais. Criação e inspiração do político Wilson Passos, o “Instituto de
Eugenia” era freqüentemente acusado de realizar a operação para “ligadura de trompas” sem comunicar o fato às
pacientes.
259
“A sífilis é a principal causa da fealdade infantil; ela inicia sua ação cacogênica com a formação do ovo,
durante a vida embrionária e fetal”. Renato Kehl em ‘O cupim da Raça’. Em 21/10/1923. Fundo Pessoal Renato
Kehl, COC/Fiocruz.
226
Identificado o baixo nível educacional do país como causa da pobreza e das doenças,
uma proposta para superar os obstáculos que dificultavam a entrada do Brasil na civilização –
momento da evolução que os outros países experimentavam – seria a difusão da educação.
Pretendeu-se fazer da escola, portanto, o centro irradiador da moderna nação. E regenerar a
raça nacional pela educação passou a ser um dos pilares do discurso eugênico, que entendia
ser necessário instruir o povo, pois somente a educação conduziria o país à condição de nação
moderna. Todavia, Dávila argumenta que, mesmo com a absorção dos negros nas escolas, a
ascensão social de afros-descendentes e membros das classes populares não ocorreu. O
historiador porto-riquenho explica o fato demonstrando que embora participantes na educação
pública, os alunos pobres e não-brancos foram tratados pelo sistema educacional como
deficientes. O autor afirma que esses alunos não foram excluídos, recebendo dos
administradores da educação pública a oportunidade de participar da expansão educacional
ocorrida nas primeiras décadas do século XX. Mas, paradoxalmente, pobres e não-brancos
teriam sofrido constrangimentos que limitaram sua presença nas escolas, reproduzindo a
posição subordinada dos negros e mestiços na sociedade brasileira.
Victor Delfino (Argentina), Charles Davenport (EUA), Kehl e demais, apresentou-se como a
possibilidade de aperfeiçoamento e controle da espécie humana. Os primeiros eugenistas
acreditavam que existia uma evolução natural da raça humana, mas o homem poderia através
da ciência, no caso, eugênica, acelerar e dominar este processo, tornando-o manipulável aos
desígnios humanos. Em uma época marcada por profundas transformações técnicas e sociais,
em que a industrialização e a urbanização traziam problemas sanitários, a eugenia afirmava
que a condição precária dos trabalhadores operários resultava da uma incapacidade -adquirida
ou não -em se adaptar a evolução da espécie. Como solucionar? Quais as medidas propostas
pela eugenia? Seus propagandistas afirmavam ser positiva a educação sexual dos jovens,
visando o casamento dos devidamente autorizados a uma procriação sadia e proveitosa. Do
mesmo viés, consideravam preventivas sob o ponto de vista eugenista as medidas combativas
de vícios morais, como o alcoolismo, ou doenças, como a sífilis e a tuberculose, e por fim, os
intelectuais eugenistas definiam que restringir a união sexual ou esterilizar eram medidas
negativas.
A Vacinação enche o mundo de gente fraca! Esse é um aspecto pouco notado pelos
estudos que analisam a eugenia. No decorrer do crescimento e desenvolvimento das lutas
sociais do século XIX, cresceram as leis para proteger os trabalhadores. A eugenia, para os
intelectuais eugenistas, surgia para corrigir os desvios desse processo. Os fracos estavam
sendo “salvos” e a eugenia tentaria fazer com que eles não nascessem. Se nascessem, suas
vidas seriam controladas. Os fracos e degenerados (criminosos, loucos) deveriam ser
encarcerados ou vigiados e não poderiam ter filhos. A sociedade precisaria adotar regras para
impedir que fatores disgênicos progredissem. Os eugenistas argumentavam que a origem e a
necessidade da eugenia estavam no desenvolvimento e conquista dos direitos sociais ao final
do século XIX. A explicação sob o ponto de vista eugenista era que o processo de seleção
natural eliminava os indivíduos menos adaptados. Com o surgimento cada vez maior de leis
de proteção social (Assistência Médica, Filantropia, Previdência Social) os degenerados de
todos os tipos, alcançavam uma sobrevida. Isto acarretaria uma série de problemas. Afinal,
para os intelectuais alinhados com este pensamento, a ajuda dos mais fortes, belos e saudáveis
228
aos necessitados só prejudicaria o progresso da raça humana. Sobre este ponto de vista cruel,
Khel era, sem dúvida, uns dos mais radicais. Como podemos ver em vários trechos de sua
obra, passagens com o seguinte teor:
O eugenismo não foi um discurso isolado e monolítico. Tendo sido incorporado por
diversos movimentos sociais, dividiu-se em múltiplas correntes. Vários eugenistas viam como
prejudicial à sociedade o avanço das leis de proteção social, assistência médica, previdência e
qualquer política ou ação de alcance assistencial. Tais iniciativas, segundo esses eugenistas,
diminuíam o rigor da seleção natural dos homens, permitindo a sobrevivência dos menos
aptos para a vida. Seres incapazes, que em outros tempos da história humana, sem as ações
filantrópicas, uma ajuda equivocada da sociedade, teriam perecido. Por meio dessa análise, o
desenvolvimento das leis de proteção era ruim para a humanidade, pois permitia que
elementos incapazes sobrevivessem. Pelas idéias e normas eugênicas mais rígidas, os
indivíduos considerados impróprios para viver e procriar, não deveriam receber nenhum tipo
de ajuda. Indivíduos sãos não deveriam ajudar os doentes. Sob o ponto de vista da eugenia:
proibição de uniões entre representantes da raça ariana e os judeus. Kehl, muitas vezes,
criticaria as ações de filantropia, previdência e assistência social. De maneira geral, os
eugenistas achavam que a caridade ou qualquer ato ou política social semelhante, contribuiria
para a manutenção dos doentes, criminosos e vadios.
(...) o fato natural é o esmagamento dos fracos. O fato social é a proteção dos
fracos. Pelo estado social, acha-se, pois, viciada a grande lei de seleção que
representa, essencialmente, a sobrevivência dos fortes. Eis, porém que surge
uma nova e genial concepção para corrigir os efeitos da viciação do fato
social, da proteção dos fracos, sem que se torne necessário persegui-los por
260
Havia um alegado sentimento humanitário. As ações eugenistas eram justificadas como benéficas para toda a
humanidade.
230
261
Desde Galton, os intelectuais eugenistas alardeavam o perigo de que “as elites” procriavam menos que as
classes pobres, portadoras de características degenerativas.
231
262
Carta de Gustavo Capanema a Getulio Vargas. 14 jun. 1937. (LISSOVSKY e SÁ, 1996: 224).
263
Carta de Roquette-Pinto a Capanema. 30 ago. 1937. (LISSOVSKY e SÁ, 1996: 226).
232
Estava ansioso por voltar à cidade e nos cafés, na rua, no escritório, pregar a
Eugenia e insultar a estúpida gente que não vê as coisas mais simples. A
conseqüência foi que só dormi de madrugada. E Sonhei, agitado. Sonhei a
cidade tão limpa dos seus aleijões que ficava reduzida unicamente a duas
criaturas de mãos presas – eu e miss Jane (...). (LOBATO, 1961: 285).
233
ANEXOS
KEHL, Renato, 1930. Nobreza Eugenica. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Out. n.22. Rio de
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KEHL, Renato, 1930. Nova Theoria sobre a Hereditariedade. In: Boletim de Eugenia. Anno
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KEHL, Renato, 1930. O problema da educação sexual. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Dez.
n.24. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1930. O sabio de Concord. In: Boletim de Eugenia. Anno II. Maio. n.17. Rio
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KEHL, Renato, 1930. Qual o mechanismo da hereditariedade normal e morbida? In: Boletim
de Eugenia. Anno II. Abr. n.16. Rio de Janeiro.
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KEHL, Renato, 1931. A campanha da Eugenia no Brasil. In: Boletim de Eugenia. Anno III.
Set. n.33. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Casamentos e natalidade nas classes media e inferior. In: Boletim de
Eugenia. Anno III. Nov. n.35. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Serei um indivíduo normal? In: Boletim de Eugenia. Anno III. Maio.
n.29. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1931. Tal pae, tal filho? Filhos de gordos e filhos de magros. In: Boletim de
Eugenia. Anno III. Fev. n.26. Rio de Janeiro.
KEHL, Renato, 1932. A Eugenia na prática individual. In: Boletim de Eugenia. Anno IV.
Out./Dez. n.40. São Paulo.
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inadaptados. In: Boletim de Eugenia. Anno IV. Jul./Set. n.39. São Paulo.
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1. Expedição Neiva-Penna. Belisário Penna “dando consultas” sob uma jurema. Lages
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240
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