Espaço e Economia, 3 - 2013

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 16

Espaço e Economia

Revista brasileira de geografia econômica


3 | 2013
Ano II, Número 3

A produção histórica do espaço portuário da


cidade do Rio de Janeiro e o projeto Porto
Maravilha
Correspondência entre os grandes ciclos de acumulação capitalista e as
morfologias urbanas
La production historique de l’espace portuaire de la ville de Rio de Janeiro et le
projet Porto Maravilha : la correspondance entre les grands cycles
d’accumulation capitaliste et les morphologies urbaines
The historical production of the harbour space of Rio de Janeiro and the Porto
Maravilha project: correspondence between great cycles of capitalist
accumulation and urban morphologies
La produccíon histórica del espacio portuario de la ciudad de Rio de Janeiro y el
Proyecto Puerto Maravilla: correspondencia entre los grandes ciclos de
acumulación capitalista y las morfologías urbanas

Letícia de Carvalho Giannella

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/445
DOI: 10.4000/espacoeconomia.445
ISSN: 2317-7837

Editora
Núcleo de Pesquisa Espaço & Economia

Refêrencia eletrónica
Letícia de Carvalho Giannella, « A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro
e o projeto Porto Maravilha », Espaço e Economia [Online], 3 | 2013, posto online no dia 19 dezembro
2013, consultado o 30 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/espacoeconomia/445 ; DOI :
10.4000/espacoeconomia.445

Este documento foi criado de forma automática no dia 30 Abril 2019.

© NuPEE
A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 1

A produção histórica do espaço


portuário da cidade do Rio de Janeiro e o
projeto Porto Maravilha
Correspondência entre os grandes ciclos de acumulação capitalista e as
morfologias urbanas
La production historique de l’espace portuaire de la ville de Rio de Janeiro et le
projet Porto Maravilha : la correspondance entre les grands cycles
d’accumulation capitaliste et les morphologies urbaines
The historical production of the harbour space of Rio de Janeiro and the Porto
Maravilha project: correspondence between great cycles of capitalist
accumulation and urban morphologies
La produccíon histórica del espacio portuario de la ciudad de Rio de Janeiro y el
Proyecto Puerto Maravilla: correspondencia entre los grandes ciclos de
acumulación capitalista y las morfologías urbanas

Letícia de Carvalho Giannella

Introdução
1 O presente artigo procura trazer à luz os processos que vêm engendrando o espaço
portuário do Rio de Janeiro ao longo de sua história, com base na correspondência entre
os ciclos seculares de acumulação capitalista analisados por Arrighi (1996) e as
morfologias urbanas observadas na área. Com isto, estamos traçando um paralelo com o
artigo de Fernandes (2008) a respeito da evolução da morfologia urbana da cidade do Rio
de Janeiro como um todo, a partir de um olhar mais específico para os bairros que
configuram sua zona portuária (em especial, Saúde, Gamboa e Santo Cristo). Sendo assim,
abordaremos as mudanças sofridas pela área em questão ao longo dos “quatro grandes

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 2

ciclos de acumulação e de gestão do território e da cidade: o século XVIII, com o


mercantilismo e a gestão policial; o século XIX, com o liberalismo; o século XX, com o
fordismo-keynesianismo; e, finalmente, o período pós-1970, com o neoliberalismo”
(Fernandes, op.cit., não paginado).
2 O trabalho é pensado em um contexto de transformações intensas sofridas atualmente
pela área em que se inserem, partindo da perspectiva teórica escolhida por nós, na
correspondência entre o neoliberalismo e a gestão do território que vem sendo observada
nas mais variadas cidades do mundo. Trata-se do Projeto Porto Maravilha, nome fantasia
para a Operação Urbana Consorciada (OUC) em questão.
3 Ressalte-se que, neste artigo, estamos direcionando nosso foco para apenas uma das três
dimensões lefebvrianas da produção do espaço. Trata-se do espaço concebido, ou seja, do
espaço hegemônico dos planejadores, dos arquitetos e urbanistas, relacionado ao plano
das representações, das ideias, do porvir, e cuja operação se dá em um nível abstrato e em
uma dimensão técnica e ao mesmo tempo ideológica.
4 O espaço produzido pela ordem hegemônica não é um espaço bem definido, purificado de
contradições, a prática espacial não sendo determinada somente pelas representações – o
espaço concebido –, mas também pelos espaços de representação – o espaço vivido – que
são imprevisíveis, contingentes, cotidianos. Como resultado, a metrópole vai sendo
continuamente transformada pelo choque entre o que existe e o que se impõe como novo.
Todavia, ainda que saibamos que uma dimensão da produção do espaço não existe
isoladamente das demais, isto é, que o processo de produção espacial se dá com base na
indissociabilidade entre as três dimensões lefebvrianas, optamos por, no limite deste
artigo, voltar nosso olhar para a dimensão do espaço concebido, deixando uma análise
mais complexa e abrangente como apontamento para trabalhos futuros.

O espaço portuário do Rio de Janeiro e o Estado


mercantilista
5 Foucault (2008) apresenta o Estado mercantilista do século XVIII como um Estado policial,
no qual a polícia teria seu sentido mais amplo e deveria ocupar-se dos seguintes
elementos:
A religião; os costumes; a saúde e os meios de subsistência; a tranquilidade pública;
o cuidado com os edifícios, praças e caminhos; as ciências e as artes liberais; o
comércio, as manufaturas e as artes mecânicas; os empregados domésticos e os
operários; o teatro e os jogos; enfim o cuidado e a disciplina dos pobres, como parte
considerável do bem público ( 2008, p. 450).
6 Ou seja, a polícia trataria de questões que são urbanas e mercantis, imbricando-se
também na esfera privada. “Daí o fato de que a polícia nos séculos XVII e XVIII foi, a meu
ver, essencialmente pensada em termos do que poderíamos chamar de urbanização do
território” (Foucault, op. cit.,, p. 452).
7 Tal configuração resulta na produção de espaços urbanos que pudessem ser
pertinentemente direcionados para a disciplinarização e regulamentação. É nesse
contexto que se desenvolve o urbanismo barroco, que tratou de clarificar o espaço a fim
de dar visibilidade à vigilância e ao poder do Estado abrindo avenidas, praças, jardins,
construindo fortalezas e monumentos.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 3

8 Esse movimento, contudo, acabou por consistir, na maior parte dos casos, em
transformações de porções do espaço restritas das cidades tanto europeias como
coloniais, ainda que seus reflexos fossem visíveis por toda a cidade. “Nem sempre era
possível planejar toda uma cidade nova ao estilo barroco, mas, no traçado de meia dúzia
de novas avenidas ou de um bairro novo, seu caráter podia ser redefinido” (Munford,
1982, p. 399).
9 O Rio de Janeiro pode ser tomado como um exemplo dessa constatação, uma vez que as
reformas barrocas realizadas em localidades específicas do centro da cidade foram
acompanhadas por transformações que refletiram na cidade como um todo.
10 É interessante notar que o próprio mercado de escravos foi transferido, naquele
momento, da Rua Direita, no centro da cidade, para o Valongo, enseada situada no atual
bairro da Saúde, em nome da higienização e da ordem pública que o urbanismo barroco
demandava e “sob a alegação de preservar o espaço urbano do contágio das doenças e
epidemias” (Honorato, 2008).
A transferência do mercado de escravos para a região do Valongo foi um
importante fator que contribuiu para a dinamização das atividades comerciais e
portuárias da região. Significou também um importante marco no processo de
especialização espacial da cidade, pois, ao mesmo tempo em que confiava ao
Valongo o exercício do comércio negreiro, retirava da Rua Direita uma atividade
que não condizia com as atribuições daquela que desde sempre era a principal
artéria comercial da cidade (Honorato, op. cit., não paginado).
11 Com base nisso, podemos inferir que a atual zona portuária do Rio de Janeiro era tida, no
século XVIII, como uma área isolada e, de certa forma, “não importante” para a cidade, a
não ser para o recebimento de uma das atividades mais indesejadas pelas elites que
viviam no centro da cidade. As classes hegemônicas eram favoráveis a esse tipo de
comércio desde que se realizasse longe de suas vistas.
12 O século XVIII, para o Rio de Janeiro, de acordo com Bernardes (1992), caracterizou-se
pelo espraiamento da cidade em três direções: “na planície, para oeste, entre o maciço
montanhoso e o alinhamento Conceição-Providência. Ao norte, na faixa de marinha entre
esses morros e o mar, e para o sul, a estreita faixa entre as encostas da serra da Carioca e a
praia” (p. 43), o que configurou, em linhas gerais, uma luta da cidade contra os brejos e
lagoas que dificultavam sua urbanização.
13 Não obstante, tal espraiamento em direção ao norte deu-se de maneira mais espontânea e
menos dirigida pelo Estado policial. Poucas foram as ruas abertas naquela área ao longo
do século XVIII que fossem retilíneas e amplas, como é o caso da Rua do Livramento, que
ligava a enseada do Valongo à enseada da Gamboa. O que se observou foi mais uma
relativamente rápida expansão das construções urbanas naquela faixa costeira. Inclusive,
muito daquele traçado pode ser visto ainda hoje em visitas à área.
14 Assim sendo, produziu-se o espaço portuário em questão de maneira mais espontânea e
deixada de lado pela gestão policial do Estado, que teria centrado seus esforços nas
transformações do centro da cidade em si. Essa produção espacial espontânea iria
intensificar-se no século seguinte, mas desta vez tendo como sustentação a “mão invisível
do mercado” do período liberal.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 4

O espaço portuário do Rio de Janeiro e o Estado


liberal
15 A representação que a população possuía e possui, até os dias atuais, da zona portuária da
cidade passa por imagens de degradação, sujeira, violência, velhice, escuridão. Aqui
pretendemos evidenciar, ainda que superficialmente, como se deu aprodução dessa
“degradação” durante o século XIX, destacando-se que este não é um processo restrito ao
Rio de Janeiro, mas que se expressou também em cidades as mais diversas, como Londres
e Paris. Abordaremos também brevemente aquela que foi a grande tentativa de retomada
do controle do Estado sobre o planejamento urbano a fim de acabar com a propalada
“degradação”, conhecida como Reforma Passos.
16 O predomínio do Estado liberal relaciona-se, segundo Arrighi (1996), à hegemonia
britânica e ao imperialismo de livre comércio. Naquele momento houve, em cada parte do
mundo capitalista, um nítido recuo do Estado e um comando das ações e relações sociais
que produzem o espaço pela burguesia que se consolidava. Nesse contexto, o
planejamento urbano que se verificava no período da gestão policial dos territórios foi
parcialmente abandonado e deu lugar a uma prática urbanística que esteve voltada
unicamente para a satisfação dos interesses e estratégias do capital industrial insurgente.
17 Fernandes (2008, não paginado) acredita que esse período pode ser subdividido em dois
momentos: o primeiro, caracterizado pela entrega quase total das cidades à prática do
laissez-faire que vinha sendo incentivada pelos economistas liberais; e o segundo,
caracterizado pelas reformas urbanas que se deram da segunda metade do século XIX até
o início do século XX e que visavam romper os estigmas da “cidade da noite apavorante”
(Hall, 2007).
18 Note-se que esse processo de ocupação da zona portuária do Rio de Janeiro, iniciado mais
timidamente no século anterior, deu-se com base nos interesses privados dos
cafeicultores do Vale do Paraíba, articulados ao mercado mundial – principalmente após a
abertura dos portos –, e através de alianças com os setores industriais relacionados
principalmente com as atividades ferroviárias e portuárias.
19 Foi a zona portuária do Rio de Janeiro que abrigou também a primeira favela da cidade: a
da Providência, situada no morro de mesmo nome, entre os bairros da Gamboa e Santo
Cristo. Em 1897, os soldados republicanos regressos da Guerra de Canudos
territorializaram-se naquela localidade e deram início à sua ocupação.
20 Começava a consolidar-se assim a cidade liberal por excelência, caracterizada pela
transferência das classes altas para os “aprazíveis” subúrbios distantes e das classes
médias para zonas intermediárias, e pela concentração da população pobre nas áreas
centrais, tidas como degradadas e insalubres.
21 Entretanto, localizavam-se também na área central do Rio de Janeiro – em especial na
zona portuária – o terminal ferroviário, o porto e as instalações mercantis da cidade, de
modo que a situação descrita pouco a pouco tornava-se insustentável perante as elites
que necessitavam daquela área para o desenvolvimento de suas próprias atividades.
Assim sendo, a demanda pela reforma urbana revelava-se imperiosa. As velhas formas da
área central da cidade e adjacências iam pouco a pouco se tornando incompatíveis com as
novas funções que adquiriam.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 5

22 Após a elaboração de sete projetos de reformas que não se concretizaram, vem à tona a
reforma de Pereira Passos, realizada no início do século XX. O porto do Rio de Janeiro, tal
como o conhecemos hoje, foi inaugurado oficialmente em 1910, depois de sete anos de
obras que retilinizaram a costa aterrando uma área de 175.000m2 com entulho
proveniente do arrasamento do morro do Senado. “As palavras de ordem passaram a ser
modernizar, higienizar, civilizar. Era preciso renovar, reformar, regenerar a cidade”
(Cardoso et. al.,, 1987, p. 100).
23 Como resultado da reforma, podemos hoje verificar “duas” zonas portuárias da cidade
que praticamente não se comunicam: a primeira delas é a “parte alta” dos morros, que
sempre esteve ali e que começou a ser ocupada ainda nos séculos XVII e XVIII, composta
por diversas territorialidades; a segunda é a “parte baixa”, ou seja, o aterro realizado a
partir do arrasamento do Morro do Senado para expansão do porto em si. Esta última
acabou sendo ocupada – principalmente após o deslocamento das atividades portuárias
para a ponta do Caju, construída na década de 1920 – por atividades e instalações as mais
diversas, indo de galpões de escolas de samba até oficinas de automóvel, passando por
algumas fábricas expressivas, como o Moinho Fluminense.
24 A reforma urbana levada a cabo por Pereira Passos ainda pode ser contextualizada no
período de gestão do território e produção do espaço relacionado ao Estado liberal porque
teria estado a cargo prioritariamente das estratégias do capital, ainda que fosse
possibilitada pela intervenção estatal: “Seu agente seria o grande capital, cabendo ao
Estado apenas a tarefa de conceder os privilégios jurídicos e fiscais para que fosse viável e
lucrativo cada componente da operação” (Benchimol, 2002, p. 131). Parece-nos, como
veremos adiante, que tal mecanismo se repete hoje.
25 Segundo Fernandes (2008, não paginado), a reforma Passos seria considerada o marco de
uma espécie de transição entre um período fortemente liberal, marcado pelo recuo quase
total do Estado no processo de produção do espaço urbano, e um período fordista,
caracterizado pela retomada do controle da produção espacial pelo Estado através da
intervenção e regulação do espaço urbano.

O espaço portuário do Rio de Janeiro e o Estado


fordista
26 Giovanni Arrighi (1996) mostra o processo de decadência da hegemonia britânica e de
ascensão da hegemonia norte-americana como um movimento que teve início no fim do
século XIX e se consolidou após a Primeira Guerra Mundial. Trata-se da terceira
hegemonia do capitalismo histórico observada pelo autor. Naquele momento, o centro da
hegemonia mundial deslocou-se de Londres para Nova Iorque e a morfologia urbana das
cidades norte-americanas passou a ser modelo de gestão do espaço urbano para as mais
variadas cidades do mundo, inclusive o Rio de Janeiro.
Por razões óbvias, o paradigma desta cidade foi a cidade produzida nos EUA. Desde
os arranha-céus no centro aos subúrbios de suas extensas classes médias
promovidos pelo automóvel, passando pelas zonas de obsolescência dos bairros
centrais, os shoping centers e operações de renovação urbana, foi ali que se desenhou
mais nitidamente a cidade fordista (Fernandes, 2008, não paginado).
27 A zona portuária do Rio de Janeiro, que antes parecia “decolar” com a tão sonhada
reforma urbana, sofreu um processo de estagnação após a conclusão da mesma,

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 6

intensificado pela suburbanização não somente das classes médias que se dirigiam cada
vez mais para a Zona Sul da cidade, mas também das indústrias e do proletariado que se
espraiavam em direção à Zona Norte e à Zona Oeste, inclusive estimulados pela produção
estatal de conjuntos habitacionais em bairros como Realengo, Bangu e Marechal Hermes
(Fernandes, 2008, não paginado). Sendo assim,
os bairros portuários ficaram, de certa maneira, à margem da cidade, no tempo e no
espaço. [...]. Esse isolamento seria acentuado a partir de meados do século, devido a
importantes intervenções urbanísticas promovidas pelo poder público. À margem
até do porto, uma vez que o grande aterro afastou definitivamente os antigos
bairros marítimos do mar, e as áreas aterradas nunca chegaram a se integrar
realmente com as áreas antigas. Os elos que promoviam a ligação com a cidade iam
sendo rompidos lentamente, isolando aos poucos os três antigos bairros portuários
(Cardoso et. al., 1987, p. 128).
28 Entretanto, temos algum receio quanto à utilização dos termos isolamento e estagnação
para nos referirmos à zona portuária da cidade no século XX. Acreditamos que tais
denominações legitimem ações que concebem a área como se nela não existisse nem
mesmo a própria história e vida do espaço e das pessoas que moram por lá. O consenso
sobre a obsolescência torna-se parte essencial da chamada construção da
29 “consciência de crise” sobre a qual nos fala Vainer (2009, p. 92) e o perigo da utilização
desse discurso está no fato de que através dele esvai-se o sentido da cidade como lócus da
prática política, dos embates e disputas pelo território, impedindo-se o exercício da
cidadania aos seus moradores. Barbosa (2006) relaciona a ideia da degradação e crise da
cidade com a perigosa construção da imagem da cidade desordenada.
30 É com base nessas representações, inclusive, e percebendo o potencial econômico
esvaziado dos centros urbanos (ou dos centros esvaziados?), que se iniciam os processos
de revitalização de áreas centrais e zonas portuárias, impulsionados pelas reformas das
docas de Londres (as docklands) e de Baltimore (Inner Harbor), que passam a servir como
modelos para reformas em todo o mundo (Hall, 2007, p. 413).
31 Aos poucos, tais processos foram se configurando à luz da “decadência” do período
fordista que, segundo Harvey (1992, p. 135), tornara-se fato entre 1965 e 1973 à medida
que se evidenciava cada vez mais a incapacidade daquele regime “de conter as
contradições inerentes ao capitalismo”. A rigidez estatal do fordismo deu passagem à
acumulação flexível do capital que, por sua vez, mais tarde teria germinado o Estado
neoliberal. Esta passagem caracteriza-se por um quase apagamento dos compromissos do
Estado com o bem-estar social, uma vez que é instalada uma cultura do
empreendedorismo que se volta para um individualismo competitivo que enfraquece as
associações de classe construídas no período fordista, bem como as lutas sociais coletivas.
32 Essa flexibilização do capital, suas consequências e condições sine qua non vêm
acompanhando desde então as mais distintas esferas da vida, inclusive a administração
municipal. É nesse contexto empreendedor que se insere a chamada “guerra dos lugares”
(Santos, 1997; Carlos, 2007) e o desenvolvimento das propostas e projetos de revitalização
de áreas centrais e zonas portuárias nas mais diversas cidades do globo. Tais propostas
vêm sendo desenhadas com base na preparação de áreas específicas das cidades para a
atração de investimentos privados que tenham a capacidade de transformá-las segundo
os interesses das classes hegemônicas próximas e distantes, bem como de movimentar o
capital financeiro transnacional e global.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 7

33 A próxima e última sessão deste artigo apresenta brevemente como esse modelo de
planejamento urbano relacionado ao Estado neoliberal reflete-se no processo atual de
transformação da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.

O espaço portuário do Rio de Janeiro e o Estado


neoliberal: o Projeto Porto Maravilha
34 Existem propostas de reforma urbana da zona portuária do Rio de Janeiro desde pelo
menos 1983, ainda que todas tenham sido pouco ou nada concretizadas. A primeira
tentativa resultou na criação do projeto SAGAS (Saúde, Gamboa e Santo Cristo), em 1988,
quando moradores da área viram-se ameaçados de remoção em massa e, uma vez
mobilizados, pressionaram a Prefeitura municipal a fim de que fossem desenvolvidos
projetos com objetivos conservacionistas.1 Entre 1983 e 2001, foram sete os planos
elaborados para a transformação ou do porto ou da zona portuária como um todo 2 o
último deles (Porto do Rio) representando já fortemente o desejo de se tratar a cidade
como uma forma de empreendimento através de mecanismos de parcerias público-
privadas. As propostas ali contidas são bastante similares às propostas do Projeto Porto
Maravilha; todavia, naquele momento não havia a necessária identificação política entre
as esferas de governo, o que esbarrava na existência de questões fundiárias impeditivas
para a concretização das ideias.3 Acredita-se, também, que faltou mobilização da
sociedade como um todo em torno do projeto. Poderíamos dizer que a capacidade de
convencimento e criação de consenso por meio da mídia não tenha sido tão efetiva
quanto a que vemos atualmente no que se refere ao Projeto Porto Maravilha. Como um
último, mas nem de longe menos importante, fator decisivo para a concretização do
Projeto no momento atual encontramos a articulação do mesmo com a proximidade da
Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, megaeventos responsáveis por
significativo aporte de recursos advindo dos setores privados e das outras esferas de
governo, principalmente a federal.
35 Em meados de 2010 foi noticiado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região
do Porto (CDURP, sobre a qual discutiremos mais adiante) que o Comitê Olímpico
Internacional (COI) havia aprovado a instalação na zona portuária de boa parte da Vila de
Mídia, a ser construída na Avenida Francisco Bicalho. O COI teria ainda lançado a
possibilidade de, nesse contexto de revitalização urbana, serem alocadas outras
instalações necessárias para os jogos e cujas localizações ainda não houvessem sido
escolhidas. Mais tarde, entre o final de 2012 e início de 2013, foi lançado pelo Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB) o concurso Porto Olímpico, com patrocínio da Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro, através do Instituto Pereira Passos (IPP), e apoio do Comitê
Organizador dos Jogos Olímpicos de 2016, que determinou a instalação na área não mais
de parte da Vila de Mídia apenas, mas também da Vila de Árbitros, de hotéis e do Centro
de Exposições e Convenções, que abrigará setores operacionais dos eventos (Concurso
Porto Olímpico).
36 Destaca-se que essa tendência de direcionamento dos planejamentos para as áreas
centrais e portuárias das cidades coexiste com a suburbanização característica do período
fordista e a definição de novas centralidades urbanas, com a diferença temporal, no Rio
de Janeiro, de duas décadas entre a origem de ambas. Isto significa que o processo de
suburbanização das classes médias e altas iniciado com a expansão urbana em direção à

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 8

Zona Sul da cidade na primeira metade do século XX teve continuidade, nos anos 1970,
com a expansão da malha urbana em direção à Barra da Tijuca. Entretanto, essa nova leva
de suburbanização se deu com base na elaboração de um plano urbanístico de autoria de
Lucio Costa cuja referência direta estava nos novos bairros suburbanos verticalizados que
surgiam nas cidades norte-americanas e que minavam a cidade como uma possibilidade
das coexistências e convivências sociais. Ao mesmo tempo, a área central seguia perdendo
importância perante o contexto da cidade como um todo, até o momento em que os
sujeitos públicos e privados voltaram a perceber a potencialidade econômica daquelas
áreas com base na visualização de resultados de intervenções urbanas de “sucesso” em
outras cidades semelhantes. Tal “retorno ao centro” começou a ser desenhado no final da
década de 1980.
37 Para tornar a cidade competitiva, aposta-se na formação de parcerias público-privadas
em que, segundo Harvey (2006, p. 172), “[...] a iniciativa tradicional local se integra com o
uso dos poderes governamentais locais, buscando e atraindo fontes externas de
financiamento, e novos investimentos diretos ou novas fontes de emprego”.
38 Outra característica desse direcionamento das políticas urbanas que pode ser destacada é
a “transferência de técnicas de gestão empresarial à administração urbana – como o
marketing e o planejamento estratégico [...]”, o que implica a reificação da cidade como
empresa e, simultaneamente, mercadoria (Compans, 2005, p. 26). O discurso é o
responsável por construir as representações que naturalizam esse processo.
39 Uma das experiências à qual os gestores urbanos mais se referem com reverência é a de
Barcelona, que transformou sua zona portuária degradada em um centro de atração
turística, negócios e lazer e cujo resultado seria de grande sucesso (para quem?). Sendo
assim, Barcelona segue sendo o modelo de revitalização de áreas centrais e portuárias,
principalmente para as cidades latino-americanas. Porém, segundo Claver (2006), o poder
público promoveu um tipo de centro urbano orientado para o consumo e especializado
por zonas sem se preocupar com a oferta de habitações populares, o que acaba gerando
segregação socioespacial na área (p. 163). Ao que parece, o modelo de intervenção do
Projeto Porto Maravilha segue a mesma cartilha.
40 O projeto foi criado oficialmente com o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº25/2009, que
modifica o Plano Diretor e autoriza a instituição da Operação Urbana Consorciada (OUC)
da Região do Porto do Rio. A lei baseia-se na Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU)
da Região do Porto do Rio, delimitando a área de atuação da OUC, que compreenderia um
conjunto de reestruturações urbanas da região em questão. A primeira diretriz assumida
no projeto de lei quanto à OUC diz respeito ao estímulo à transformação gradativa do uso
portuário de cargas em usos residencial, comercial, de serviços, cultural e de lazer, o que
vem ao encontro dos modelos de reformas aplicados em outras cidades do mundo, como
Barcelona.
41 Chama-nos a atenção também nesse projeto de lei, afora os itens anteriormente
destacados, os instrumentos que serão utilizados para implementação da OUC:
“instituição de parcerias entre o poder público e o setor privado”, “consórcios públicos”,
“utilização de instrumentos de mercados de capitais” e “instrumentos de política urbana
previstos no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro”.
Quanto à alteração do Plano Diretor, a lei possibilita a Outorga Onerosa do Direito de
Construir e de Alteração de Uso do Solo, permitindo o estabelecimento de índices
diferenciados dentro do perímetro definido para realização da OUC, podendo determinar
índices de aproveitamento de terreno superiores aos definidos no Plano Diretor, índices

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 9

esses que passam a ser denominados Coeficientes de Aproveitamento Máximo. Além


disso, o PLC 25 altera o Plano Diretor ao acrescentar-lhe a autorização de usos não
permitidos atualmente para o local mediante o pagamento de contrapartida por Outorga
Onerosa de Alteração de Uso. O instrumento de Outorga Onerosa de Construção se dará
através da venda dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepac). Estes
permitirão a construção de edifícios com gabaritos de até 50 andares na Avenida
Francisco Bicalho e no setor norte, seguindo a linha do cais do porto, próximo ao
Terminal Rodoviário Novo Rio, o que apagará definitivamente da História essas porções
do espaço, bem como a vista livre dos morros da região.
42 O último ponto a ser destacado do texto do PLC 25 trata da criação do Conselho
Consultivo, que terá competência (somente) para emitir pareceres sobre os relatórios
trimestrais da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de
Janeiro (CDURP). O que nos parece grave em relação ao Conselho, além de sua
competência, é sua composição, a ser formada por um representante da CDURP, como
coordenador; dois representantes do município; e dois representantes da sociedade civil a
serem escolhidos pelos demais integrantes do Conselho, com mandato de três anos.
43 A CDURP, por sua vez, consiste em uma sociedade de economia mista, autônoma, em
forma de sociedade por ações, coordenada pelo município e criada pelo Projeto de Lei
Complementar nº26/2009. Sua criação configura um enclave territorial, uma vez que a
Companhia passa a ser responsável pela gestão de serviços de interesse local e serviços
públicos de competência municipal, como paisagismo, limpeza urbana, coleta de resíduos
sólidos, drenagem de águas pluviais, iluminação pública etc. No parágrafo terceiro do PLC
que a cria lê-se que “a CDURP deverá obedecer a padrões de governança corporativa”,
deixando clara a adoção do modelo de planejamento estratégico de cidades para
revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro.
44 Importa observar também como os autores do projeto em questão enxergam a área a ser
afetada pela Operação. Para isso, retomamos a ideia de que a Reforma Passos teria
produzido “duas” zonas portuárias distintas e quase incomunicáveis entre si.
45 A OUC que é objeto de nossa análise, ao que nos parece, considera a área plana da
expansão do porto uma espécie de tabula rasa, ou seja, o que está proposto para aquela
porção do espaço é a demolição dos galpões e barracões preexistentes para a construção
de edifícios comerciais cujo gabarito pode variar de 20 andares para o setor mais próximo
à Praça Mauá a 50 andares ao longo da Avenida Francisco Bicalho. Também para essa área
está prevista a demolição parcial da Avenida Perimetral no trecho que se inicia na direção
do Mosteiro de São Bento até a Rodoviária Novo Rio, a construção de uma garagem
subterrânea na Praça Mauá e de uma via paralela à Rodrigues Alves, cujo nome será
Binário do Porto e que pretende receber o chamado VLT (veículo leve sobre trilhos). O
píer Mauá, já em obras, receberá o Museu do Amanhã, em parceria com a Fundação
Roberto Marinho (e cujo projeto – somente o projeto –, do renomado arquiteto espanhol
Calatrava, estabelece um orçamento de cerca de R$20.000.000,00). Se o leitor visitar o sítio
eletrônico do projeto Porto Maravilha hoje, verá que as únicas propostas concretas de
intervenção na área, com exceção de algumas obras de infraestrutura urbana que já
podem ser observadas ao longo das Avenidas Barão de Tefé e Rodrigues Alves, referem-se
aos chamados projetos-âncora, que são os empreendimentos culturais pontuais que
supostamente atrairão investidores privados para revitalização completa da área. Entre
eles, além do Museu do Amanhã, encontra-se a restauração da Igreja de São Francisco da
Prainha, situada no Morro da Conceição; a restauração, também já em andamento, do

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 10

edifício “A Noite” e do Palacete D. João VI (transformado no Museu de Arte do Rio – MAR),


situados na Praça Mauá; e a construção do AquaRio (o mais moderno aquário da América
Latina, fruto de investimento totalmente privado) em um dos armazéns da antiga área de
operação do porto.
46 Tais ações caracterizam uma espécie de apagamento da história daquela porção do
espaço, uma vez que, no contexto atual de inserção das cidades no mercado global,
é preciso dotar o espaço urbano de um conjunto de representações e situações
capazes de constituir lugares excitantes, atraentes, criativos e ao mesmo tempo
seguros para investir, jogar, apostar e consumir. Esse processo de reestruturação
urbana vem impondo às cidades um catálogo de formas repetitivas e diluidoras das
diferenças socioculturais qualitativas (Barbosa, 2006, p. 129).
47 Isto acontece ao mesmo tempo em que, no plano do discurso, é valorizado o resgate das
identidades culturais e da memória das populações que habitam aquela área. É necessário
aqui remeter-nos à outra zona portuária “isolada” pela Reforma Passos, a “parte alta” que
até o final do século XIX configurava o desenho litorâneo sinuoso das reentrâncias do
porto e da Baía de Guanabara. Tal porção da área caracteriza-se marcadamente pela
presença dos morros que a desenham. São eles: Morro da Conceição, Morro da
Providência/Santo Cristo e Morro do Pinto.
48 Podemos dizer que, basicamente, o projeto tem se voltado para a transformação do Morro
da Conceição em uma área atraente para a atividade turística; para a urbanização do
Morro da Providência, o que inclui a instalação de um teleférico, um plano inclinado e
diversas praças; e para a transformação das vias do entorno com a finalidade de promover
melhorias na circulação de automóveis e a construção do corredor para o VLT. Até o
momento, não encontramos qualquer informação a respeito do Morro do Pinto e
adjacências. O Morro da Conceição caracteriza-se como
um pequeno bairro histórico cuja ocupação inicial remonta à época colonial,
localizado numa colina próxima à Praça Mauá e tendo um casario residencial que,
na sua maioria, foi construído no final do século 19 e na primeira metade do século
20. Mais recentemente, o bairro vem ganhando visibilidade na mídia e recebendo a
atenção de turistas, fotógrafos, cineastas, produtores de eventos culturais e de
outros atores sociais, mas, paradoxalmente, só agora é que instituições públicas
estão voltando a cuidar do bairro após décadas de total repúdio, abandono e
esquecimento onde o Morro da Conceição gozou de grande invisibilidade junto aos
órgãos da Prefeitura, do Governo do Estado e da União (Barbosa e Ossowicki, 2009).
49 Os autores do trecho citado, moradores do bairro, vêm questionando a maneira como o
processo de revitalização vem sendo realizado desde o lançamento do Projeto Porto
Maravilha. Para eles, tal prática tem se dado sem qualquer incentivo à participação dos
moradores, e a grande questão lançada pelos pesquisadores é:
Será que o IPHAN,4 ao invés de se preocupar com a preservação dos espaços de
convívio e das memórias sociais e suas relações múltiplas com fachadas, ruas, becos
e escadarias, estaria se dedicando apenas a um tipo de salvaguarda que mistura
antigas práticas monumentalistas baseadas na contemplação estética das elites
culturais com a tendência atual de transformar patrimônios em novas mercadorias
a serem, simplesmente, consumidas?
50 De fato, tal receio procede, uma vez que projetos de revitalização similares têm
provocado uma espécie de museificação que acaba por gerar uma expulsão de populações
locais e substituição das mesmas por uma população de classe média desejosa da
experiência de habitar ou lançar empreendimentos comerciais em um ambiente bucólico
e charmoso.5 Esse foi o caso da revitalização do Pelourinho, em Salvador, 6 e temos

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 11

observado algo semelhante no bairro carioca da Lapa. O Morro da Conceição configura


uma condição sui generis devido ao fato de ser habitado tanto por uma população pobre e
muito antiga, descendente dos portugueses que ali chegaram no século XIX, quanto por
artistas que podem, por um viés, desejar a transformação do bairro em um produto
turístico.
51 No que se refere ao Morro da Providência, a impressão que tivemos em nossas visitas de
campo e a partir da participação no Fórum Comunitário do Porto é de que a justificativa
para a realização de obras por toda a favela é o Projeto Morar Carioca, que de uma forma
ou de outra acabou sendo atrelado ao Porto Maravilha. Contudo, está-se desconsiderando
nesse processo qualquer respeito ao direito à informação e à moradia.
52 Não nos alongaremos quanto a esse assunto devido ao limite de espaço deste artigo, mas
podemos dizer que o Projeto Porto Maravilha, mesmo ao considerar em suas propostas o
espaço construído, no que se refere à área que estamos chamando de “parte alta”, vem
desconsiderando a dimensão do espaço vivido das populações que habitam a área. Tal
questão será mais bem estudada e fica aqui como um apontamento para trabalhos
futuros.
53 Sendo assim, podemos dizer que a proposta atual de revitalização da zona portuária do
Rio de Janeiro cumpre um ideário neoliberal de ordenamento das cidades a partir do
incentivo à iniciativa privada, à estetização do espaço e ao sufocamento dos espaços
vividos e das territorialidades das populações que habitam a área. Tendo em vista tal
configuração, tecemos a hipótese de que o espaço que se produzirá será um espaço
voltado para o desencontro mais do que para o encontro, para anulação das diferenças
mais do que para a convivência com a diversidade, para satisfação de outros que não
aqueles que têm participado ativamente da produção histórica daquela porção do espaço.
Acreditamos, todavia, no potencial dos movimentos sociais que têm se organizado para
resistir às propostas tal como vêm sendo colocadas e para propor alternativas ao projeto.

Para não concluir: em busca de novos apontamentos


54 A zona portuária do Rio de Janeiro caracteriza-se por ser uma área historicamente
produzida sem que tenha havido qualquer preocupação do Estado quanto à satisfação das
necessidades e anseios das suas diversas populações. Atualmente, assistimos a um
processo de intensa transformação de suas territorialidades, o qual está relacionado ao
ideário neoliberal de gestão das cidades -- o que significa que continuaremos a observar,
em um processo nada novo, a expulsão da memória e da história daquele espaço, a partir
da expulsão de quem a produz no cotidiano.
55 O presente trabalho procurou apontar para a construção histórica da zona portuária da
cidade com base nos ciclos seculares de acumulação capitalista, o que configura uma
abordagem que podemos chamar de “oficial”. Resta como novo apontamento o estudo
aprofundado dos espaços vividos daquelas populações a fim de que possamos
compreender o espaço produzido como um embate entre o concebido e o vivido. Para
isso, deixamos como sugestão para futuras investigações também o estudo das
resistências e da organização dos grupos sociais que ali vivem em função da proposição de
um novo projeto, um novo Porto Maravilha.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 12

BIBLIOGRAPHY
ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER,
C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 11-74.

ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996.

BARBOSA, J. L. O ordenamento territorial urbano na era da acumulação globalizada. In: OLIVEIRA,


M. P.; HAESBAERT, R.; MOREIRA, R. (orgs.). Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento
territorial. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, 2ª ed,, p. 125-146.

BARBOSA, A. A.; OSSOWICKI, T. M. Revitalização do Porto, IPHAN e políticas culturais no Morro


da Conceição. Minha Cidade, ano 9, n. 108/02, 2009. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/
revistas/read/minhacidade/09.108/1842>. Acesso em: jun. 2010.

BENCHIMOL, J. O haussmanismo na cidade do Rio de Janeiro. In: AZEVEDO, A. (org.). Rio de Janeiro:
capital e capitalidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 125-158. BERNARDES, L. Evolução da
paisagem urbana do Rio de Janeiro até o início do século XX. In: ABREU, M. (org.). Natureza e
sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1992.

CARDOSO, E. D. et al. História dos bairros: Saúde, Gamboa, Santo Cristo. Rio de Janeiro: Índex,
1987.

CARLOS, A. F. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.

CLAVER, N. A Ciutat Vella de Barcelona: renovação ou gentrificação. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C.


(org.). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos.
São Paulo: Annablume, 2006, p. 145-166.

COMPANS, R. Empreendedorismo urbano: entre o discurso e a prática. São Paulo: Unesp, 2005.

CONCURSO PORTO OLÍMPICO. Disponível em:

<http://concursoportoolimpico.com.br/website>. Acesso em: mai. 2011.

FERNANDES, N. N. Capitalismo e morfologia urbana na longa duração: Rio de Janeiro (século


XVIII-XXI). In: Scripta Nova. Revista Electronica de Geografia y Ciencias Sociales. Barcelona:
Universidad de Barcelona, v. XII, n. 270(56), 2008. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/
sn-270-56.htm>. Acesso em: ago. 2008.

FÓRUM COMUNITÁRIO DO PORTO. Relatório de violações de direitos e reivindicações.

FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo:
Martins Fontes, 2008.

HALL, P. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX.
São Paulo: Perspectiva, 2007.

HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2006.

______. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 13

HONORATO, C. P. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. 2008. 166p.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade
Federal Fluminense.

LEFÈBVRE, H. La production de l’space. Paris: Anthropos, 1974.

MOREIRA, C. C. A cidade contemporânea entre a tabula rasa e a preservação: cenários para o porto do Rio
de Janeiro. São Paulo: Unesp, 2004.

MUNFORD, L. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

PROJETO PORTO MARAVILHA. Disponível em: <http://www.portomaravilhario.com.br>. Acesso em:


mai. 2010.

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

SOARES, E. M.; MOREIRA, F. D. Preservação do patrimônio cultural e reabilitação urbana: o caso


da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Da Vinci, v. 4, n. 1, 2007, p. 101-120.

SOTRATTI, M. A. Pelas ladeiras do Pelô: a requalificação urbana como afirmação de um produto


turístico. 2005, 309p. Dissertação (Mestrado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em
Geografia. Universidade Estadual de Campinas.

VAINER, C. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento


Estratégico Urbano. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único. 5ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2009, p. 75-104.

NOTES
1. O projeto SAGAS foi elaborado a partir do Decreto nº 7.351, de 14 de fevereiro de 1988, e suas
principais atribuições são: “a manutenção das características consideradas importantes na
ambiência e identidade cultural da área; preservação dos bens culturais que apresentem
características morfológicas típicas e recorrentes na área; estabelecimento de critérios para
novos gabaritos; prévia aprovação para demolições e construções; criação de um escritório
técnico, para fiscalização e acompanhamento das intervenções” (Soares & Moreira, 2007, p. 108).
2. Não abordaremos aqui cada um dos planos e projetos desenvolvidos, devido à limitação de
espaço deste trabalho; para um aprofundamento sobre esta questão, ver Moreira (2004).
3. Cerca de 62% dos terrenos da zona portuária pertencem à União.
4. Naquele momento inicial de implantação do projeto, o IPHAN foi a instituição mais
presente nas visitas ao Morro. Atualmente é notável a ausência do órgão nas discussões
sobre o projeto
5. Processo iniciado em Londres e chamado por alguns autores de gentrificação. Arantes
(2009) aborda-a como uma estratégia oculta: “Daí a sombra de má consciência que
costuma acompanhar o emprego envergonhado da palavra, por isso mesmo escamoteada
pelo recurso constante ao eufemismo: revitalização, reabilitação, revalorização,
reciclagem, promoção, requalificação, até mesmo renascença, e por aí afora, mal
encobrindo, pelo contrário, o sentido original de invasão e reconquista, inerente ao
retorno das camadas afluentes ao coração das cidades” (p. 31).
6. Ver dissertação de Sotratti (2005).

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 14

ABSTRACTS
O espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro vem passando por uma reestruturação urbana
intensa que pode ser analisada a partir de sua correspondência com o ideário neoliberal. Trata-se
do Projeto Porto Maravilha. Entretanto, para compreendermos o processo contemporâneo de
transformação desse espaço é importante que o tomemos como um produto histórico. Assim,
nosso objetivo é trazer à luz os processos que vêm engendrando o espaço portuário do Rio de
Janeiro ao longo de sua história, com base na correspondência entre os ciclos seculares de
acumulação capitalista analisados por Giovanni Arrighi (mercantilismo, liberalismo, fordismo/
keynesianismo e neoliberalismo) e nas morfologias urbanas visualizadas na área. Conclui-se que
tal espaço caracteriza-se por ter sido historicamente produzido sem que tenha havido, , da parte
dos seus agentes produtores hegemônicos, qualquer olhar para os espaços ocupados pelas
populações que ali vivem e viveram. Tal prática parece repetir-se no decorrer da elaboração e
implementação do Projeto Porto Maravilha.

L’espace portuaire de la ville de Rio de Janeiro connaît une restructuration urbaine intense qui
peut être analysée à travers sa correspondance avec l’idéologie néolibérale. Nous aborderons en
particulier le projet Porto Maravilha. Cependant, pour comprendre la transformation
contemporaine de cet espace, il importe considérer les processus qui ont engendré l’espace
portuaire de Rio au fil de son histoire. Pour cela, nous travaillerons sur la correspondance entre
les cycles séculaires de l’accumulation capitaliste soulignés par Giovanni Arrighi (mercantilisme,
libéralisme, fordisme/keynésianisme et néolibéralisme) et les morphologies urbaines affichées
par cette aire. Nous concluons que tel espace se caractérise par la négligence des acteurs
hégémoniques envers les espaces vécus par la population résidante. Ces pratiques semblent se
prolonger dans le déroulement du projet Porto Maravilha.

The harbor space of Rio de Janeiro knows at present an intense urban restructuration, which can
be analyzed by its correspondence with Neoliberal ideology. We’ll deal specifically with the
Project Porto Maravilha. Nevertheless, to understand the present transformation of this space, it is
important to consider the processes which constructed historically the Rio de Janeiro harbor
space. For this purpose, we’ll work on the correspondence between the secular cycles of capitalist
accumulation established by Giovanni Arrighi (Mercantilism, Liberalism, Fordism/Keynesianism
and Neoliberalism) and the urban morphologies of this area. We argue that this space is
characterized by the negligence of hegemonic actors for the needing of resident population.
These practices seem to be continued in the development of the Porto Maravilha project.

El espacio portuario de la ciudad de Río de Janeiro viene pasando por una re-estructuración
urbana intensa que puede ser analizada a partir de su vínculo con el ideario neo-liberal. Se trata
del Proyecto Puerto Maravilla. No obstante, para comprender la transformación contemporánea
de esta área es importante considerar los procesos que han construido el espacio portuario de Río
de Janeiro a lo largo de su historia. Para tal efecto, observaremos la correspondencia entre los
ciclos seculares de acumulación capitalista trabajados por Giovanni Arrighi (mercantilismo,
liberalismo, fordismo/keynesianismo y neo-liberalismo) y las morfologías urbanas que
encontramos en la región. Se concluye que tal espacio se caracteriza por la negligencia de los
agentes hegemónicos en relación a los espacios vividos por las poblaciones que allí habitan. Tal

Espaço e Economia, 3 | 2013


A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro e o proj... 15

práctica al parecer se repite en el transcurso de la elaboración e implementación del Proyecto


Puerto Maravilla.

INDEX
Mots-clés: restructuration, espace portuaire, morphologie urbaine, Rio de Janeiro, Porto
Maravilha
Keywords: restructuring, port space, urban morphology
Palabras claves: re-estructuración, espacio portuario, morfología urbana, Puerto Maravilla
Palavras-chave: reestruturação, área portuária

AUTHOR
LETÍCIA DE CARVALHO GIANNELLA
Doutoranda em Geografia, Universidade Federal Fluminense. [email protected]

Espaço e Economia, 3 | 2013

Você também pode gostar