Jesse - O Perdao Da Cigana (Os Monstros)
Jesse - O Perdao Da Cigana (Os Monstros)
Jesse - O Perdao Da Cigana (Os Monstros)
Jesse| 1ª Edição
Todos os direitos | Reservados
Livro digital | Brasil
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Sumário
SINOPSE
AVISO
INTRODUÇÃO
Yara – Trecho de Paolo: a rendição do monstro
CAPÍTULO 1
Os velhos olhos
Constância
CAPÍTULO 2
Senhoras e Senhores
Jesse
CAPÍTULO 3
Uma vela ao vento
Constância
Jesse
CAPÍTULO 4
Brincadeira do destino
Malu
CAPÍTULO 5
Lá vamos nós de novo
Jesse
CAPÍTULO 6
Lua cheia
Jesse
CAPÍTULO 7
Silencie sua mente
Constância
CAPÍTULO 8
Lendas
Malu
Jesse
CAPÍTULO 9
Olhos de ouro
Constância
Jesse
CAPÍTULO 10
Pequena ursa corajosa
Rafagá
CAPÍTULO 11
Abrigo
Jesse
Constância
CAPÍTULO 12
O clã
Jesse
Constância
CAPÍTULO 13
Eu estava lá
Jesse
CAPÍTULO 14
Lábios divididos
Constância
Jesse
Constância
CAPÍTULO 15
Sorriso cruel
Constância
Rosalinda
Jesse
CAPÍTULO 16
O presente da Lua
A maldição dos Boris
Constância
CAPÍTULO 17
A maldição da Lua
Jesse
Constância
CAPÍTULO 18
Maldição e dom
Fera
Yara
Jesse
CAPÍTULO 19
O Sol e a Lua
Malu
Jesse
EPÍLOGO
Constância
AGRADECIMENTOS
OUTRAS OBRAS
Outras obras:
Primeira série:
História e conto Irmãos Falcon
Únicos
SINOPSE
Uma maldição rogada por um erro cometido no passado faz Jesse correr contra o tempo, para
conseguir se libertar antes que a Lua de sangue se erga. Porém, o que para ele é maldição, para
Constância significa liberdade. Um segredo do passado entrelaça o futuro dos dois, mas Jesse não
imagina que a única pessoa que poderá libertá-lo é a mesma que poderá odiá-lo pelo erro que
cometeu.
AVISO
A linha do tempo deste livro se passa antes dos Ávilas. Alguns personagens dos livros
anteriores se cruzam nesta história.
INTRODUÇÃO
Yara – Trecho de Paolo: a rendição do monstro
Sinto o vento entrar em meus pulmões, a energia da floresta me alimentar e uma selvageria
cruel me consumir. Sinto tanto medo quanto raiva em meu peito. A terra está em meio ao meu
corpo e meu coração bate como se fosse rasgar a pele a qualquer momento. É insano. Meus
pensamentos gritam. O homem com um lenço na cabeça ri, com uma gargalhada maldita, com seus
dentes de ouro à mostra. Seus olhos negros brilham em vingança dentro do meu cérebro. A grande
Lua brilhosa sobre a minha cabeça sorri como uma doce amante para o seu amado. A fome e a
sede me destroçam, o sangue corrói minhas veias como água fervente. Grito aos céus, implorando
a Deus que me ajude, mas sei que Ele já está longe de mim. Minha alma morta está suja por
sangue e amaldiçoada por meus atos. Meu corpo desacelera, deixando a terra molhada sobre mim.
Ao longe, o barulho da água que escorre me leva a ela e tento aplacar minha sede
incontrolável. Quero rasgar minha garganta para me conter. O som distante me faz parar. As patas
quebrando os galhos me mostram de onde vem. O lindo servo me observa com medo. Sinto o cheiro
e o gosto do seu sangue em minha garganta, é delirante. A sede incontrolável vai aumentando. Ele
me olha sabendo de tudo o que está na minha cabeça, como se já pudesse pressentir o futuro.
Rondo-o lentamente. Meu coração para, o vento gelado corta sobre mim e sinto liberdade quando
meus dentes perfuram sua pele, rasgando-o, dilacerando-o, em um ataque rápido e brutal no
pescoço. A força que ele usa para tentar se libertar me deixa em felicidade pura, pois a cada
fração de segundo que meus dentes o rasgam, mais a minha fome aumenta. A carne crua desce em
minha garganta como a melhor coisa que já experimentei. Ele tomba ao chão, enquanto seu
sangue escorre por meu corpo e as batidas do coração diminuem, até que a magnífica criatura cai
em sono eterno. Uso minhas unhas para rasgar mais a sua pele. Minhas presas se afundam no seu
pescoço e o mastigo com êxtase, me deixando satisfeita. Meus olhos se erguem aos céus e uma paz
me invade assim que a Lua me abraça com sua luz encantadora. Caminho entre as folhas, em
direção ao córrego de água fresca. Me sinto poderosa, mais viva do que nunca, como se nada fosse
superior a mim. Caio no chão, levando meu corpo à margem do riacho, e os olhos frios no reflexo
d’água me devoram em meu corpo amaldiçoado.
— Pergunte. — Trago minhas pernas até meu peito, observando-o. Seu corpo, amarrado à
árvore, deixa-o imóvel.
— Por que um cigano lhe amaldiçoou? — Alguns homens passam ao longe com seus cavalos,
nos vigiando.
Viro meus olhos para Jesse, que apenas fica em silêncio. Ele move a cabeça para não me
olhar nos olhos. O que senti quando tomei suas memórias foi apenas a besta que o habita. A maldição
da Lua que lhe foi rogada é dura e cruel. Baixo os olhos para a fria corrente que me prende como um
animal. A traição de Leona ainda dói e sinto o meu coração sangrar.
— Há um bom tempo nosso bando foi contratado para retirar um clã de ciganos que
invadiram as terras de um coronel. — Ergo meus olhos para o pistoleiro. Seus olhos se apertam,
como se a amarga lembrança o destruísse.
— Uma mulher se jogou em cima de mim, tentando me acertar com um punhal. Eu apenas
reagi! Foi rápido e certeiro. O tiro atravessou a cabeça, fazendo-a cair no chão. — Ele solta o ar
lentamente, balançando a cabeça em desgosto. — O cigano que lutava com Rafagá tinha aparência de
velho, mas, por Deus... Se o visse lutando... Era como observar um jovem em sua melhor fase. — Os
olhos de Jesse se escurecem, ficando sombrios. — Ela era sua companheira. Ele gritava feito louco,
com a mulher nos braços. Foi tão rápido! O cigano me olhava com ódio, gritando palavras que não
compreendia, e, do nada, ele simplesmente apunhalou o próprio coração.
— Ele fez uma maldição de sangue... — sussurro para ele. — Vovó me contou algumas vezes
sobre as magias proibidas, dizendo que quando usamos nosso dom para o mal, nossas almas vão se
queimando aos poucos, até não sobrar mais nada além da escuridão e das trevas lá dentro. Só que o
preço a se pagar é altíssimo.
— Sim. — Jesse perde seus olhos ao longe, com dor.
— Você conhece a regra, não é, Jesse? — Olho para ele, com pena de sua sina.
— Nunca bebi sangue humano, bruxa. — Seus olhos caem para a floresta. — Quando a Lua
sobe ao céu, me rasgando por dentro, eu fujo para as matas. Sei que se sentir o sangue humano,
estarei destinado a deixá-la comandar metade do meu corpo.
Não falo, não tenho coragem, mas a verdade é que a Lua já o domina. Só não entendo por que
a besta que habita nele nunca o levou a concluir a maldição. Talvez os dois estejam mais ligados do
que Jesse pode supor.
CAPÍTULO 1
Os velhos olhos
Constância
Meus olhos negros esfumaçados, carregados com lápis escuro, se perdem no espelho. Em
meus lábios pinto lentamente o batom vermelho com meus dedos firmes. Minhas unhas vermelhas,
perfeitas como sempre, se destacam em minha pele de cor açúcar mascavo. O som que vem do meu
pulso, por causa das pulseiras brilhantes de ouro, tilinta lentamente. Em uma delas, o pequeno
pentagrama, que contém uma estrela de cinco pontas, brilha mais do que todos. É o único laço que me
sobrou de um passado distante, tão perdido, o qual vive apenas em minhas lembranças mais antigas.
Solto o batom, ergo os dedos e balanço os cabelos negros ao vento, levantando o cheiro de rosas
vermelhas por onde passo.
Caminho lentamente e adentro o salão, que possui uma luz fraca e está ao som dos mariachi[1].
Os homens, que usam botas de couro e relógios de ouro, petrificam no lugar, com suas doses de
tequila paradas ao ar, enquanto meus olhos negros e silenciosos de cigana se movimentam, roubando
suspiros de cada um. Meus pés estão descalços e mostram o delicado adorno de prata que brilha toda
vez que a grande saia vermelha balança, quando não está se arrastando ao chão devido às suas
camadas, que a deixam cheia. Minha barriga de fora destaca o brilho da corrente de ouro fino, apenas
mais um dos muitos presentes que ganhei de meus clientes admiradores.
Posso sentir em meu ser cada sentimento que é nutrido por essas pessoas. Posso sentir o
desejo, a inveja e a cobiça que cada um traz em seus sujos corações. Mas quem sou eu para julgar?
Já perdi minha própria inocência há muito tempo. Julgo minha alma tão imunda quanto a deles. Meus
olhos desviam dos homens e se voltam ao meu canto preferido, onde sento toda noite e espero o
momento em que Rosa, a cafetina, encontrará alguém que possa pagar um preço alto por sua
prostituta mais cara. Eu vi cada parte de minha alma morrer lentamente durante esses anos, com cada
homem que pagou para se deitar comigo, mesmo quando ainda, em meu íntimo, tentava salvar o resto
de humanidade roubada aos catorze anos, depois que o clã do meu avô me vendeu como uma
mercadoria barata para a primeira casa de perdição[2] que encontraram, me descartando como um
filhote de gato indesejado.
Qual não foi a alegria de Rosa ao comprar a mestiça cigana. Ela me recebeu de braços
abertos, vendo em meus olhos negros a fortuna que faria às custas do meu corpo. Eles me jogaram
aqui, mesmo eu implorando para ficar no clã depois de ser tratada como lixo. Após perder o meu pai
e a minha mãe, o meu avô cuidou de mim. Me levou junto com ele, mesmo sabendo que não era
sangue puro de cigano que corria em minhas veias. O amor do meu pai e da minha mãe, nascido entre
um cigano e sua negra, a qual ele amou à primeira vista, foi traiçoeiro. O destino foi um ladrão
perverso, levando-os embora enquanto eu ainda era um bebê. Eu não sabia que o clã era tudo o que
teria, o único lugar para chamar de lar. Isso até o meu avô, líder do povo cigano, ser morto em um
ataque nas terras em que ele escolheu viver. E então me vi jogada de canto a canto, em cada
acampamento que era erguido. Junto com minha mocidade veio a sentença do meu destino. Me perdia
contemplando a linda Lua sempre quando se erguia, como se ela me chamasse, como se me
procurasse, e a Lua se tornou a única companheira que tive até meus vinte e cinco anos. Mas algo
dentro de mim mudou, algo que se erguia, se trombava em metamorfose, se moldava, trazendo
alvoroço para minha alma. Era como se algo estivesse vindo, os sonhos me contavam. Tinha sempre
o mesmo sonho há mais de cinco luas. Os mesmos olhos me observando e o grande lobo uivando em
direção ao céu, ao mesmo tempo que ficava no alto da colina, espreitando por mim.
— Cia. — Pisco e me viro para Rique, o barman que trabalha na casa de madame Rosa. —
Quer beber algo, meu anjo? — Puxo o pequeno banco e me sento com meus olhos tristes. Calada,
ouço a melodia que toca.
— Uma dose de martini seria bom. — Olho para o lado e avisto Beca, que está encolhida no
canto, com seus dedos trêmulos.
Tenho pena da pequena, que veio de uma família pobre. Seu pai a vendeu para dar o dinheiro
todo para sua mãe e seus irmãos. Sofro pela vida miserável que terá a pequena Beca, que está no
auge dos seus dezenove anos, mas que parece uma criança, sem entender nada ainda da vida dura de
mulheres como eu. A ajudei na primeira noite que chegou na casa, fazendo um pequeno corte em sua
perna, deixando o sangue espalhar em seus dedos e limpando-os no lençol. Sabia que Rosa não iria
vender Beca durante seu período menstrual, assim lhe poupei de se deitar com um velho bêbado e
nojento, que seria o primeiro cliente dela. Pego dos dedos de Rique a dose que oferece, e a pequena
menina, com seus cachos brilhantes, se aproxima de mim, sentando-se ao meu lado.
— Se acalme, Beca, senão vai enfartar — cicio entre os lábios para a criança perdida.
— Acho que ela vai me vender hoje, Cia... — a menina sussurra. — Vi os homens que
entraram pela manhã na hospedaria, enquanto arrumava a sala.
Sei disso, não porque os vi ou ouvi, mas meus sonhos me mostraram assim que meus olhos se
fecharam na noite anterior. Visualizei um grande homem caminhando no corredor escuro, indo para o
quarto de Beca. O peito dele trazia dor e escuridão, mesmo que ele escondesse em seu íntimo.
Porém, acordei assim que o grande lobo se moveu em minha direção, nublando meus sonhos. Senti a
agonia em meu coração, que disparou acelerado. Meus cabelos estavam colados às costas e meu
corpo agitado. Isso me deu a sensação do sonho ser muito real. Babalu, a gata branca adotada, com
seus olhos amarelos, dormia aos pés da cama. A gata pulou, assustada, correndo para mim, miando
com a mesma angústia que eu sentia no peito. Meus dedos puxaram o animal, roçando seu pelo macio
à medida que tentava me acalmar.
Antes de poder tranquilizar Beca, vejo Rosa caminhar e sorrir para nós duas, como se em
nossos lugares vários cifrões brilhassem.
— Velha ordinária maldita! — murmuro com raiva.
— Vamos, dona Constância. — Suas mãos se estendem, soltando no meu colo a chave do
quarto em que o cliente já espera.
— Rosa... — Olho para a chave e depois para Beca, tomando uma decisão. — Me deixe ficar
com os dois clientes, o meu e o de Beca. — Minhas palavras são rápidas. A velha puta arqueia a
sobrancelha, me encarando.
— Do que está falando, Constância? — A puta velha se vira com sua roupa brilhante e anda
pelo salão. Me levanto, vou atrás dela e puxo-a pelo braço.
— Sabe do que falo, velha — sussurro e aperto os lábios, esmagando-os. — Beca... ela é
uma criança ainda. — Viro a cabeça e olho rapidamente para Beca, sentindo o medo da menina
dentro de mim, como se fosse o meu próprio.
— Desde quando uma puta se preocupa com outra puta, Cia?
A raiva que sempre senti por essa mulher só aumenta a cada dia. Volto a encará-la com nojo.
— Rosa, vai ter seu maldito dinheiro do mesmo jeito! Apenas me deixe ficar com os dois
clientes e poupe a menina. — Sinto gana de ódio e vontade de desfigurar essa velha, que enriqueceu
às custas do meu corpo. — Olhe ela, é apenas uma menina ainda. Sabe que ela será um desastre
nessa vida de prostituta. Irá chorar, sofrer, definhar em vida... Apenas isso! E os clientes vão
machucá-la...
— Esquece, Constância! A menina vira mulher hoje. Já paguei ao pai dela, agora está na hora
de Beca devolver o meu dinheiro. — A maldita puta velha puxa meu braço, me observando com
raiva. — Vá, que o seu cliente não pode esperar por você a noite toda. E você me deve sua alma.
Nunca se esqueça de quem lhe salvou de se tornar um animal de estimação para sempre. Podia ser
muito pior na mão de qualquer outro do que na minha! — Sua voz ácida e amarga escorre seu veneno.
Encaro o seu rosto de cafetina velha, que está pintado com uma maquiagem pesada.
— Só não a odeio tanto, sua velha maldita, porque o que te espera no futuro é muito pior do
que o que você impôs a mim — falo com ódio, profetizando o futuro da velha cafetina.
O tapa forte em meu rosto me faz ficar com a pele ardida, conforme a velha me fita com
cólera.
— Já mandei não abrir essa boca maldita de cigana para mim, sua cadela! — Empurro meus
cabelos para trás, observando-a exasperada, enquanto sinto a dor que essa maldita me fez passar
todos esses anos. — Agora ponha um sorriso no rosto e vá fazer o que lhe pedem. Abra suas pernas e
seja a maldita puta que você é.
O cuspe ao chão sai da boca flácida, e o rosto cheio de rugas me fita enraivecido. Caminho
com ódio pelo salão, enquanto sinto o corpo tremer com a ira. Em meu ser já se antecipa o asco,
como sempre acontece antes de eu deitar com meus clientes. Já vou me fechando, me levando para
outro lugar, deixando apenas o oco do meu ser. O meu corpo fica para os malditos que pagam por ele.
Um dia serei livre, ainda serei apenas Constância, longe disso tudo, longe de todos que me
machucaram. Meus olhos se perdem no corredor escuro, nas portas vermelhas pelas quais passo, uma
por uma. Meu coração aperta assim que paro diante da porta seis, enquanto bato lentamente,
esperando por meu carrasco me receber.
— Você entra, você sai. Apenas isso, Cia — sussurro com dor e sinto os olhos ficarem
quentes pelas lágrimas que sempre querem descer. — Um dia serei livre.
A porta que abre para mim, me traz o cheiro de floresta de eucalipto, que entra em minhas
narinas e se espalha como fogo, escorrendo por minhas veias. Ouço o uivo solitário se alastrar
dentro do meu cérebro e minha cabeça se ergue rapidamente. Ao me perder nos olhos do homem que
me observa, silencioso, no vão da porta aberta, tenho a imagem de dor e gritos. Posso ver todos
correndo e um tiro explodir no peito de alguém. É como se eu estivesse recebendo a bala. Meu corpo
vai para trás e bato com força na porta do lado oposto do corredor, caindo no chão. Conforme tudo
roda à minha volta, vejo o puteiro. Misturado aos gritos e ao choro, uma voz (tão antiga, que tento me
lembrar de onde conheço) sussurra ao vento com raiva, dor e uma tristeza sem fim. Memórias que
não são minhas invadem minha mente.
— Você está bem? — O grande corpo do homem se abaixa, enquanto meus dedos tocam meu
próprio rosto e jogo meus cabelos para trás. Sinto a força, pressinto a fera uivando, nervosa, dentro
dele, rasgando em seu peito como se estivesse em mim mesma.
Suas mãos me ajudam a levantar, e a cada aproximação, sinto o pico de dor que me pega.
— Sua porta é a nove, Constância! — A voz fria afirma brava atrás de mim, quebrando a
ligação que me conectava com o estranho homem.
Meu verdadeiro cliente me puxa pelo braço, fazendo o homem silencioso me soltar, e sou
arrastada para o quarto. Ainda o vejo lá, parado, me encarando conforme meu corpo é trancafiado ao
outro cômodo. O som da porta batendo forte me faz prestar atenção em meu cliente. O frio passa por
minha coluna assim que meus olhos param diante desse homem maquiavélico.
Marlon foi o meu primeiro cliente e há muitos anos não o via. Sei que o que posso esperar
nessa cama é apenas dor.
— Saudades suas, minha doce cigana. — Meus olhos se apertam e encaro o homem que me
mostrou o que realmente é crueldade.
— Eu já não posso dizer o mesmo, Marlon.
Me fecho dentro de mim, deixando apenas o oco de um corpo, sabendo que nada mais ele
terá. Tenho sangue quente, é forte o que corre em minhas veias, o sangue que pertence aos meus
antepassados e que não me deixa encurvar e nem me quebrar diante da face da crueldade, como é o
caso desse homem.
CAPÍTULO 2
Senhoras e Senhores
Jesse
— Damas e cavalheiros. — O som rouco da voz do vocalista faz o salão inteiro se virar para
a frente, na direção do palco.
O puteiro que Rafagá escolheu, perdido no meio do nada, tem cheiro de corpos suados,
cigarros e bebidas vagabundas. É quase como estar em casa, de tão bem que meu amigo conhece
cada buraco onde tem uma puta trabalhando. Rafagá sempre soube achar os endereços desses
puteiros. No primeiro momento, fechei a cara quando chegamos aqui, nesse lugar decadente. Posso
sentir o cheiro de crueldade nesse lugar a quilômetros de distância. Como há dias não durmo em uma
cama decente, acabei concordando em passar a noite na espelunca. Estava exausto, meu corpo
implorava por um banho quente e uma foda bruta. Olho para Rafagá, sentado ao meu lado, com uma
puta no colo, que parece congelada, encolhida de medo pelo grande tamanho de Rafagá, que tem os
cabelos compridos e a barba malfeita. Não demorou muito para mulher ser a primeira coisa que ele
procurou depois de nossos corpos já estarem descansados e limpos. Meu corpo implora por uma
doce e forte bebida quente, além de uma mulher em chamas, para se igualar à destilada. Mas o que
jogaram no colo de Rafagá é uma criatura estranha para um bordel. A menina não tem cheiro de
outros homens em seu corpo. O que brilha em seus olhos não é fome por dinheiro, é o mais puro e
conhecido medo.
— O que foi? — Rafagá vira seu rosto e me encara. — Ainda pensando sobre a puta de
ontem à noite?
Fecho meu semblante e levo a bebida aos lábios, voltando a lembrar dos olhos mais negros
que já vi, tão perdidos como uma estrela solitária em um céu nublado. O toque dela me queimou
como brasa. Senti a besta rugir, a farejando dentro de mim, gritando alto, rosnando forte e
implorando sua libertação como nunca tinha feito antes.
— Trago para vocês a dama mais esperada da noite!
As luzes vermelhas vão se apagando, ficando apenas as fumaças dos charutos e dos cigarros
pelo salão. O som dos aplausos aumenta e um vento traiçoeiro se alastra pelo local. Os corpos se
espalham pelo salão, enquanto mulheres dançam entre os homens, rodando suas saias, agitadas.
— É Cia — a puta no colo de Rafagá sussurra, sorrindo e batendo palmas.
Os olhos de Rafagá se viram para a puta em seu colo, se voltando em seguida para o palco. O
paredão que se ergue junto da forma feminina atrás das sombras, que se mexe, deixa todos
petrificados nos movimentos, que são feitos com seus sedutores gestos. Enquanto sacode seu quadril
lentamente, meus olhos ficam presos em seu corpo sensual. Sinto o batuque, as palmas aumentando a
respiração pesada dos outros clientes junto às batidas do meu coração. As malditas garras me rasgam
de dentro para fora, como se fossem estraçalhar meu corpo por inteiro. Vejo o corpo que se move,
lento e traiçoeiro, como uma cobra entre as sombras, se esgueirando pelos cantos.
Ela solta a saia sem pressa, e meu corpo responde de imediato. Sombras de longas pernas se
formam diante de mim, ao longe. É como se a forma por trás do lençol e as luzes dançassem apenas
para mim. Meu corpo ganha vida a cada passo que ela dá, remexendo seu quadril junto à música. É
como se aqui estivesse apenas ela. O pano se rasga, deixando o corpo repleto de volúpia passar, com
suas coxas grossas e seios fartos, com seu tecido negro transparente sobre o corpo. Os homens dentro
do salão gritam quando os dedos tocam a haste de metal presa ao centro. Seus cabelos longos e
cacheados estão presos em um formoso rabo de cavalo, que se mexe conforme ela anda. É como se
tudo nela me levasse apenas àquele exato e maldito momento dela dançando.
— Deseja um corpo quente e bonito? — Uma puta entra na minha frente e me deixa com
raiva, já que esconde a visão da mulher no palco. Não consigo me conter. O rosnado sai por meus
lábios como fogo, vindo das minhas entranhas, cruel e baixo, mas audível o suficiente para fazer a
puta dar um passo para trás, me fitando horrorizada.
— Ele... ele rosnou. Rosnou como um animal — balbucia, me olhando em choque, com sua
face pálida.
— Saia! — A voz de Rafagá enxota a mulher, que sai apressadamente, e o grande corpo do
meu amigo logo se vira para mim, me encarando. — Você está bem?
Estalo o meu pescoço, o movendo para o lado esquerdo. Conforme meu peito se enche de ar,
posso sentir o aroma de rosas que vem até mim entre todos os outros cheiros adocicados e
enjoativos, além dos cigarros e das bebidas. O perfume de rosas entra em meus pulmões e desce
como uma dose de uísque forte. Ela torce sua perna na barra de ferro, enquanto seu corpo brinca feito
cetim, deixando seu torço cair, esticando o corpo para baixo. Com a respiração lenta e os olhos
fechados, posso ver os brilhos entre o pano transparente que cobre o seu corpo. Não consigo desviar
os meus olhos dela.
— Constância faz isso com os homens. — A voz baixa da puta no colo de Rafagá sussurra. —
Eles ficam loucos com ela, Cia os enfeitiça.
Talvez seja verdade, pois é assim que me sinto, completamente enfeitiçado. As coxas se
prendem à barra de ferro, ao passo que ela se ergue, colando seu corpo ao metal, deslizando sem
pressa sobre ele, como se fosse um antigo amante conhecido. Inferno! Estou ficando sufocado,
raivoso, cruel. O som da música vai acabando enquanto ela diminui o ritmo e deixa os passos mais
lentos. Vejo quando sua perna fraqueja e sinto o cheiro de sangue dela, que me acerta, subindo ao ar.
É um sangue doce, um sangue que faz a minha garganta arranhar, ficar seca, como se eu não bebesse
há eras. Ergo o copo de bebida e o viro de uma única vez, mas a sede ainda está lá. Não sinto essa
necessidade de beber sangue, entretanto, sei que meu tempo está acabando, contudo, nunca senti uma
necessidade tão forte por sangue humano como agora. Seu pequeno corpo balança seus quadris, com
suas mãos ao alto, batendo palmas lentamente, enquanto os pés pisam no chão. Os homens gritam,
aplaudem e jogam dinheiro em sua direção. Suas mãos descem por seu corpo, e quase como por
instinto, meus próprios dedos ficam presos à minha perna. Seus dedos apertam o tecido fino que, em
questão de segundos, ela rasga, puxando para trás e deixando à mostra cada canto do corpo, o que
aumenta a gritaria, fazendo todos se levantarem, ovacionando-a.
— Jesse. — Meus olhos presos a ela desejam ver seu rosto virado para mim, mas ela apenas
deixa a face escondida pela luz fraca, que brilha sobre ela. — Jeeeeeeesse! Caralho, homem, estou te
chamando!
— Que foi, porra?! — Fito Rafagá com raiva.
— Sai agora do salão! — Vejo meu amigo empurrar a puta para o lado e se levantar
rapidamente.
— Estou bem, Rafagá! — falo, furioso, deixando outro rosnado escapar da minha boca. Tento
olhar para a dançarina outra vez, mas Rafagá se move e entra na minha frente, com sua boca rígida e
punhos esmagados.
— Então por que fodeu com a mesa?! — Sua voz é baixa e zangada, e ele está com a
respiração pesada.
Pisco duas vezes, me sentindo perdido. Direciono o meu rosto para a mesa, enxergando as
marcas que foram deixadas. Não entendo como fiz isso. As marcas na mesa, de garras, me fazem
olhar para as minhas próprias mãos rapidamente, que estavam em minhas pernas. Eu destruí o jeans
da mesma forma, deixando a mesma marca de garras. A luz do puteiro vai voltando ao normal,
enquanto me levanto e olho assustado para isso.
— O tempo não é mais nosso amigo, Americano. — Ergo meus olhos para Rafagá, que
sussurra preocupado, encarando a mesa.
— Yara me avisou. — Volto a olhar minha calça. Meus dedos estão em carne viva. As garras
vão retornando para minha pele, deixando as pontas dos meus dedos normais. — Temos que achar
esse povo cigano de merda logo, para me tirar dessa porcaria de maldição, Rafagá, antes que a Lua
de sangue suba!
— Eu sei — meu amigo responde, voltando a se sentar lentamente na cadeira. — Só temos
que conseguir um rastro desses ciganos e vamos encontrar o clã todo. Venha, pequena, não vou
morder. — Rafagá estica o braço e puxa a prostituta outra vez, colocando-a em sua perna. — Só
precisamos de um cigano, um só que nos dê a dica de onde os outros se escondem.
— Cia é cigana. — A voz tímida e baixa fala, com seus dedos apertados ao vestido curto.
Meus olhos se erguem para o salão, onde nem o rastro da dançarina se encontra. Rafagá me
olha e depois se volta para a mulher pequenina em sua perna.
— Diga-me, pequena, qual o seu nome? — Ela o encara, assustada, se voltando para mim.
— Mel.
Rafagá olha para ela em silêncio, deixando seus dedos empurrarem os cabelos cacheados
para trás. Vejo o medo que corre no corpo da garota diante do tamanho da mão de Rafagá, que a
observa por um curto tempo.
— Seu nome verdadeiro. — O pequeno aperto no pulso dela fica mais forte quando a menina
tenta se afastar. — E não minta para mim outra vez.
— Me chamo Beca. Rebeca. — Ela treme e os dedos se apertam ao vestido curto, com os
olhos voltados para baixo.
— Rebeca — chamo, fazendo-a se virar para mim. — Me conte mais sobre Cia.
CAPÍTULO 3
Uma vela ao vento
Constância
Levanto lentamente a alça do vestido no meu corpo dolorido, enquanto os rastros de dor
ainda estão pelo quarto. Marlon não tinha se contentado apenas com a noite passada, hoje, após o
show, ele já aguardava por mim. A sombra escura no canto do quarto abotoa a roupa em silêncio,
com seus olhos ainda vidrados em minha direção. Ele abre a carteira e joga uma quantia de dinheiro
no canto da mesa de cabeceira.
— Um bônus para você, minha doce cigana. — O cigarro, que vai até seus lábios, se acende e
espalha o cheiro mentolado no quarto, de um fumo doce.
Não olho em seu rosto, continuo em silêncio, arrumando o vestido que parece farpas em meus
machucados abertos, feridas brutalmente impostas pela agressividade de Marlon. O som das botas
andando pelo quarto se torna mais alto a cada passo que o carrasco dá. Ele aperta meu pequeno
queixo com mãos frias e calejadas e olha cruelmente em meus olhos.
— Eu poderia ter te tirado dessa vida, Constância... — O meu rosto se aproxima lentamente
do seu. Ele é como uma cobra do deserto, traiçoeira e venenosa.
Fecho minha mão e cravo as unhas em minha palma, perfurando a carne até sentir a dor
latente junto ao sangue quente que escorre, apenas para não gritar de nojo ao maldito.
— Mas sempre tão longe, tão distante. Uma pena! — Ele me empurra com força, fazendo o
meu corpo cair na cama outra vez. — Está ficando velha, pequena. Sua beleza e juventude não serão
eternas, deveria ter aproveitado.
A cobra asquerosa que é Marlon, ainda para a uma distância da saída, com um cigarro nos
lábios, me encarando, antes de abrir a porta e sair por ela.
Meu corpo se encolhe na cama e aperto a saia junto aos joelhos, enquanto comprimo os olhos
para não derramar as lágrimas.
Meus passos delicados arrastam a saia pelo salão vazio do puteiro. Entre o crepúsculo que se
despede e a grande alvorada que se aproxima, meus olhos se perdem na grande janela. Lá fora tem a
liberdade que me chama, quase como uma amiga íntima e distante. A pequena bola branca pula de
cima do piano e caminha até mim, se esfregando em minhas pernas e miando baixinho.
— Onde esteve, sua sumida? — Me abaixo, pego a gata e esfrego meu rosto no pelo macio.
— Um dia seremos apenas nós duas e este mundão todo, Babalu — sussurro, deixando meus olhos
presos no lado de fora.
A gata manhosa mia, como se concordasse comigo, se apertando nos meus braços. Decido
soltar o animal. Ela vai ao chão e seus pelos se arrepiam, com suas pequenas garras de fora.
— O que foi? — Olho para a cadeira, que se move aos poucos. O grande corpo se ergue
lentamente, com seus olhos obscuros se prendendo a mim. Sinto o tiro que passa em meu corpo
quente, como o vento que corta a alma. As imagens do tiroteio voltam a invadir minha mente,
sumindo rápido, da mesma forma que vieram.
— Noite! — A voz é baixa e calma, mas, mesmo assim, posso sentir a energia que vem dele,
mesmo quando seu rosto se esconde no breu, deixando-o cada vez mais sombrio, com um uivo preso
na calada da noite.
Meus olhos passam por todo salão e observo o que tem mais próximo que posso usar como
arma. E, como se lesse pensamentos, o grande corpo se aproxima rapidamente e para a um passo de
mim. A gata brava mia ainda mais alto.
— Creio que nos esbarramos outra noite, senhorita. — Ele passa os dedos nos meus cabelos
cacheados, empurrando-os para trás.
Uma risada, que há muito tempo não se ouvia, escapa de meus lábios, enquanto me sento no
beiral da janela, observando mais atentamente o estranho, o estudando com curiosidade.
— Já fui chamada por vários nomes, mercenário, mas senhorita é a primeira vez! — Cruzo
meus braços no peito, enquanto a gata ainda fica parada no meio de nós dois, como se fosse atacar a
qualquer momento o intruso.
— Creio que homens errados cruzaram seu caminho, senhorita. — Ele puxa uma cadeira e
vira-a, sentando-se calmamente, com os olhos presos aos meus.
— Deveras... — falo e miro minha saia, tapando a ferida em meu tornozelo. — Muitos
homens... afinal, aqui é um puteiro!
Ao voltar meus olhos para o estranho, o pego parado, observando minhas pernas, que acabei
de esconder. Com o nariz no ar, é como se ele estivesse cheirando o ambiente. Ele solta o ar
pausadamente e volta seus olhos para mim, que o encaro. Não entendo ainda se sinto medo ou
curiosidade pelo tal homem.
— Diga o que traz preso em sua garganta, mercenário... — Ele sorri ironicamente, me
encarando como se eu fosse burra ou ingênua.
— Preciso de uma ajuda, senhorita. — Me pego rindo outra vez, de forma calma. Por que ele
falou isso? Como uma puta poderia ajudá-lo?
— Se você, que é um matador, precisa de ajuda, imagine eu — falo, olhando-o com meus
olhos apertados por conta do sorriso. — O que posso lhe dizer é que o que mais tem aqui é mulher:
ou paga por uma ou pode você mesmo resolver seu problema, se masturbando!
Pulo da janela, pego a gata no colo e passo pelo homem, que sorri no escuro. Meu corpo
estremece quando um odor familiar entra nas minhas narinas. Apenas caminho mais rápido, querendo
me afastar daqui.
— Procuro por um clã, cigana. — A voz do homem faz meus passos pararem no meio do
caminho, enquanto meu corpo congela. — E tenho pressa em encontrar.
— Não conheço nenhum... — Minha voz sai baixa e olho para a escada que devo subir
correndo.
— Seu líder era Boris, o poderoso! — O nome que guardei apenas para mim, em minha
mente, e há muito, muito tempo não ouvia com tamanha clareza, me traz muita tristeza e dor, assim
como tantas memórias esquecidas.
— Nunca ouvi esse nome, mercenário... — digo pausadamente. — Você deveria partir. A tal
pessoa que procura não se encontra por estas bandas.
Arrasto meus pés, enquanto meu coração se aperta em meu peito, por ouvir o nome do meu
ancestral, a quem tanto amei.
— Preciso chegar até o clã dele, Constância! — A voz fria corta o ar. — Procuro por alguém.
— Todos nós procuramos por alguém ou por algo, mercenário...
Parto com o coração na boca, indo para longe desse homem estranho, que me traz memórias
que quero esquecer e que, ao mesmo tempo, me chamam para casa.
Tento não pensar mais na conversa com o homem estranho enquanto retorno para meu quarto,
nem ao menos faço questão de que meus passos se cruzem com os seus. Posso sentir o cheiro de
morte que ele traz dentro de si. Posso sentir em seu corpo algo estranho que ele trancafia. Mas sinto
também que algo está errado.
Assim que meus pés tocam o salão cheio de clientes, sinto a dor no ar: uma dor insuportável,
que me corta a alma, como um agouro de que algo ruim acontecerá essa noite. A pequena fração de
felicidade que tive foi por não ser mais chamada por Marlon, e rezo para que ele tenha partido, para
nunca mais voltar. Meus olhos percorrem o salão, como de costume, e deixo a saia se arrastar
suavemente, me encaminhando até Rique e pedindo minha dose de martini.
Posso sentir no ar. Sinto nas sombras que sussurram silenciosamente. E é observando o copo
que sinto meu coração se apertar e a dor sugar meus sentidos. Nessa noite dancei com uma tristeza
gigante no coração, uma tristeza que ainda não sei ao que se refere. Meus olhos se arrastam pelo
salão em busca de algo e tento descobrir algum sinal do que está por vir.
— Rique, me vê outra dose... — peço e me encosto no balcão. Meus olhos param na pequena
flor solitária no canto. É um estranho contraste ver uma flor tão bonita em um lugar podre como esse.
Meus dedos se esticam para a flor e aliso suas pétalas amarelas. Meu corpo se enrijece assim
que uma sombra para calmamente ao meu lado. Sinto olhos me observarem em silêncio, conforme ele
pega uma dose de uísque com Rique. O odor familiar que vem do mercenário invade o meu nariz, me
deixando ainda mais agitada.
— Estou partindo, senhorita... — ele fala e leva a bebida aos lábios. — Meu parceiro e eu
acamparemos no meio da floresta esta noite. Se mudar de ideia...
Ainda não compreendo o que me puxa até o homem estranho, apenas sinto uma ligação entre
nossos corpos, como se meu destino estivesse entrelaçado ao estranho homem, mesmo quando o
perigo grita em meu cérebro a cada segundo que o cheiro de floresta de eucalipto entra em meus
pulmões.
— Desejo sorte em sua busca, mercenário. — Meus olhos o encaram uma última vez antes
dele se virar, partindo. Vejo ele e o grande homem se afastarem para a saída.
Olho intrigada para o mercenário e sinto minha alma implorar para ter aceitado o pedido de
ajuda dele para encontrar meu povo. Mas no meu sangue corre a força e a lealdade do meu avô, e eu
jamais os trairia, mesmo tendo noção do que o meu povo me fez. Algo me diz que se dois
mercenários estão em busca dos ciganos, algo bom não pode estar por trás disso. Meus olhos param
em minha pulseira, que trago comigo desde menina, e observo a única coisa que ainda me liga ao clã.
Em seguida volto-me para a flor amarela delicada. Então meu coração me mostra o que o estrangula,
o que tanto estava afligindo minha alma, a tristeza sem nome. Meus olhos a procuram pelo salão em
desespero e sinto cada batida acelerada, tendo cada vez mais certeza de que algo ruim aconteceu.
— Rique. — O barman olha para mim e deve enxergar o medo em meus olhos negros. —
Onde está Beca? — A música alta me faz gritar, mas vejo os olhos do homem se entristecendo, se
afastando dos meus. Minha mão passa por cima do balcão e puxo-o, o fazendo olhar para mim. —
Rique, onde Rebeca está?
— Eu sou apenas o homem das bebidas, Cia — responde com a voz baixa, demonstrando um
fio de tristeza.
Sei que ele mente. Rique tem conhecimento de cada coisa que acontece dentro do
estabelecimento de madame Rosa.
Meus olhos procuram pela maldita cafetina, que vejo sorrir e beber no canto da mesa, à
medida que conta seu dinheiro sujo. Sinto meu coração se quebrar a cada passo que dou na direção
da velha, que ergue seus olhos para mim, fechando a cara.
— Que porcaria de show que fez hoje, hein?! — ela fala e volta os olhos para o dinheiro.
— Onde está Beca, Rosa? — A velha ergue os olhos para mim, voltando-se depois ao
dinheiro novamente e dando de ombros.
— Não fico cheirando o rabo de vocês, Constância! — Sinto o frio que percorre o lugar
gelado, como se a morte passasse por aqui. Sinto a tristeza que me pega.
— Vo-você a vendeu? — sussurro com a voz quebrada, triste. — Você... E-ela é uma criança,
Rosa...
— Ela é uma mulher dentro de um puteiro. Todas vocês estão aqui dentro por uma única
razão! — a velha fala amarga, me encarando com raiva.
Tento lembrar de todos os rostos que passaram pelo puteiro hoje, tento lembrar de todos os
homens que vi.
— Em qual quarto ela está? Q-quem foi o cliente? — Minha voz sai trêmula e nervosa,
enquanto me encaminho para a escada.
— Ela é uma puta, Cia! Uma puta! — A anciã me encara. Estou enfurecida, e em um ataque de
indignação, viro a mesa, jogando todo o seu sujo dinheiro no chão.
— Não! — Minha voz sai frustrada em meio às lágrimas. — Beca é inocente... É uma criança
que nunca devia ter posto os pés aqui...
— Escuta aqui, sua puta desgraçada... — O rosto da velha vira para a escada, se calando na
sequência.
Sinto um vento frio percorrer minha espinha, o vento da morte que acaricia minha face, como
uma despedida, e sinto a dor em meu coração, junto à fraqueza que me pega.
— Beca...
Já estou correndo para a escada quando meu corpo pequeno tromba com a forma nojenta de
Marlon, que olha friamente para mim. Ele passa por mim com os cabelos molhados e roupas vestidas
às pressas, parando ao lado da velha no pé da escada, sussurrando algo em seu ouvido. Ele joga uma
quantia exagerada no chão e sai rápido para fora do puteiro.
— Cia... Cia, volta aqui! — Rosa fala baixo, olhando para mim com nervosismo.
Meus olhos encaram a porta onde o homem que me mostrou o lado mais doentio da
humanidade estava hospedado, ao mesmo tempo em que lágrimas caem por minha face com tristeza.
Compreendo agora por que Marlon não chamou por mim essa noite.
— Não, não! Não pode ter feito isso!
— Constância! Volta... volta aqui! — a velha nojenta grita, enquanto corro para cima,
empurrando todos que entram em meu caminho.
— Não... Não... — Minha mão para na porta do quarto onde Marlon se hospedou e vejo-a
encostada. A dor me rasga por dentro.
Beca é a única coisa que me traz um fio de esperança nesse lugar sujo. Eu a ajudei ao
máximo, tentando proteger a jovem inocente. Havia barganhado com Rosa, dando meu corpo aos
clientes no lugar do da pobre Rebeca, tinha ensinado à jovem todas as formas para os homens evitá-
la.
— Não! Oh, meu Deus! Não! — Meus olhos estão nublados e lacrimejando, como se saísse
sangue por eles. Grito pela dor insuportável que me corta inteira. Olho para o pequeno corpo nu,
inerte, com o pescoço pendurado por um cinto, usado como corda para tirar a própria vida na
madeira do teto.
— Beca... — Minhas mãos se prendem aos pés da pequena, que ainda possuem o calor do
corpo inocente. Apenas dor existe dentro desse quarto. Uma cadeira está tombada ao chão, a que ela
usou para se enforcar.
Em desespero, na tentativa de salvar a vida que já não existe, subo na cadeira que estava
caída e tento soltar o corpo da menina, mas o sorriso inocente, costumeiro, já não está mais aqui. Há
apenas as marcas das lágrimas em seu rosto, com os olhos sem vida, petrificados de dor.
— Não! Não, por favor! Por que, meu Deus?! Por quê?! — Meus dedos apertam minha amiga.
Em um impulso, prendo meu corpo ao dela, abraçando-a como se pudesse trazê-la de volta. O peso
cede e faz o couro se partir junto à cadeira, que tomba, derrubando nós duas no chão.
Meus braços se apertam mais e trago-a ao meu peito, enquanto afago seus cabelos, deixando
as lágrimas escorrerem sobre ela como o único acalento à pequenina.
— Me perdoa... — grito com dor, embalando nós duas em um vai e vem, como se ela fosse
me abraçar. — Oh, Beca! O que ele fez com você? Me perdoa... Me perdoa!
Aliso o rosto sem vida. Na sequência arranco do corpo o cinto que lhe estrangulou a garganta
e marcou profundamente a pele. Enxergo as mordidas pelo pequeno corpo, com as marcas cruéis da
brutalidade. Beca era como aquela flor: nunca deveria ter entrado em um lugar tão imundo como
esse. O som dos passos dentro do quarto se fazem, enquanto choro abraçada à minha delicada Beca.
— Rique, suma com isto aqui... — Meus olhos se viram para a porta no momento que limpo o
rosto e encaro a mulher maldita com toda a dor que tenho, uma dor que está se transformando em
ódio.
— Isso. Isso... — repito com a minha voz de choro, fitando o rosto da minha amiga. — Foi
você quem a matou... Foi você... — murmuro tristemente para Rosa, enquanto abraço forte a pequena.
— Constância, não é culpa minha se a menina não sabia lidar com a vida — Rosa fala sem
sentimentos, encarando Beca como se ela não passasse de poeira.
— Isso não é vida! — Meus olhos passam pelo quarto e mostro a cama bagunçada, com
sangue espalhado pelo lençol. O lugar onde a inocência dela foi tirada brutalmente.
— Cia, deixe Rique tirar essa garota daqui, antes que alguém veja e chame a polícia!
Meus braços se apertam forte a ela e balanço-a, olhando com dor para tudo. Sei que Beca não
foi capaz de aguentar a crueldade. Sei que ele havia quebrado a menina das formas mais horríveis.
Meus dedos puxam devagar a colcha, tapando o corpo nu, machucado, durante o tempo que a observo
pela última vez. Deposito em sua testa um beijo de amor, deixando meus dedos passarem
carinhosamente pelo rosto dela, fechando os seus olhos para sempre.
A deito delicadamente no chão, como se pudesse acordá-la de um doce sonho. Me levanto
com as pernas moles, me sentindo tão perdida e sem rumo, enquanto em meu peito apenas o ódio
alimenta minha dor. O cigarro mentolado ainda queima no cinzeiro, deixando no ambiente um cheiro
maldito.
Algo de mim, algo que protegi por todos esses anos, morreu junto com Beca. Me sinto fria,
tanto quanto a amiga que acabei de largar no chão. Meus olhos não olham para trás, não olham para
Rosa. Apenas caminho sem rumo, indo para longe daqui, no mesmo momento que Rosa fecha a porta.
Meus olhos mortos, com o último canto de amor, morreram essa noite. Vaguei pela noite
inteira dentro do puteiro, tendo o último fio de inocência de minha alma partindo junto com Rebeca,
restando dentro de mim apenas o desejo de liberdade e vingança. Tomei uma única decisão. Caminho
com passos silenciosos, não mais arrastando a saia pelo salão, são passos decididos, que vão em
uma direção. Vejo a cada canto do escuro salão a vida que foi roubada. A gata silenciosa não mia
mais, apenas fica parada na janela, observando meu vulto caminhar pela escada, enquanto brinco
com os dedos pelas paredes vermelhas. O líquido vai caindo, e ao passo que jogo uma garrafa vazia,
logo pego outra.
Paro meus olhos na cadeira que deixei bem no centro do quarto da cafetina. Depois de vários
momentos em silêncio, despejo por cada canto tudo o que desejo. Espero, como sempre. Sou
paciente, fico aqui, sentada, calma e vazia.
Raramente fumo, e apenas por essa vez deixo eu me perder no cigarro, saboreando-o como se
fosse o último. Na cama à minha frente, o corpo se move, tentando se levantar, mas as amarras nos
pulsos a fazem ficar no mesmo lugar.
— Que merda é essa?! — A voz tão nojenta, como sempre, grita de ódio. — Que brincadeira
sem graça é essa?! Jogaram água nessa cama?!
O brilho no escuro faz os olhos da cafetina se virarem para mim, enquanto trago o cigarro
devagar.
— Cia, é você? — A mulher amarga tenta escapar, mas sabe que seus braços estão bem
amarrados. — Sua puta desgraçada! O que você está fazendo? Me solta agora!
Olho a mulher que acabou com a minha vida por todos esses anos, trazendo apenas desgraça e
ódio.
— Eu lhe dei um teto... Eu lhe dei comida, sua maldita! — ela grita com zanga. — Me solta!
— Você usa da opressão... usa do medo para sujeitar os outros às suas ordens. Então não me
deu nada, apenas me impôs!
Minha voz, tão quebrada, sussurra com dor. Trago o cigarro e olho para a mulher, que começa
a ficar mais e mais desesperada. Acendo a luz baixa do abajur, que está na mesa perto dela, e deixo a
maldita olhar para o meu rosto. Meus lábios se abrem e mando um beijo frio, como uma despedida,
antes de eu jogar o cigarro aceso em cima da cama. Vejo as grandes labaredas que se erguem assim
que a brasa encosta na gasolina, inflamando a cama inteira. Ainda fico sentada, assistindo o corpo
que se debate, gritando em agonia. Presencio Rosa implorar por ajuda enquanto as cortinas queimam.
Quando o fogo começa a ir até o teto, apenas levanto lentamente, sentindo o cheiro de pele queimada.
Olho para trás uma última vez, antes de trancar a porta.
Caminho pelo corredor, onde as portas começam a abrirem. Risco os fósforos e os jogo nas
paredes encharcadas de líquido inflamável, e mais e mais fogo sobe. As meninas correm e gritam,
assim como os homens covardes, com os paus de fora.
Dou uma derradeira olhada para trás, antes de jogar o último fósforo no lugar maldito. Deixo
a caixa vazia escorregar no chão e, com o caos ao redor, fixo os olhos na pequena flor amarela
solitária, deixando uma única lágrima descer por meu rosto.
Desse inferno, levo apenas Babalu em meus braços.
Jesse
Aperto as flores em meus dedos, jogando-as em cima do punhado de terra. Observo o túmulo,
no qual, finalmente, Lucius tem seu descanso. Meus olhos focam no solo ainda fresco, o local em que
a última pá de terra foi jogada.
Meus dedos calejados se apertam em meu vestido, se entrelaçando enquanto deixo os joelhos
desabarem lentamente. Sinto as lágrimas descerem em meus olhos, enquanto mais uma vez a vida me
dá uma rasteira.
— Filho de uma puta! — Pressiono a terra nos dedos, olhando para as minhas terras. — Até
para morrer você fodeu comigo, Lucius!
Lembro da primeira vez em que o vi, na missa da pequena paróquia. Era uma menina tão
burra, no auge dos dezesseis anos, que se encantou pelo viajante limpo e bem-arrumado, com sua
roupa engomada. Eu me sentia feliz por seus olhos brilharem para mim, o que fazia o meu coração
palpitar.
Antecedentemente ao fim do verão, me vi fugindo de casa, me casando escondida, sendo
renegada por meu pai, considerada uma filha promíscua.
Antes dos dezoito, apertava Raul nos braços, que me olhava com os seus olhos escuros, como
a noite mais estrelada, e tinha os cabelos tão negros e a pele branca, como o orvalho da manhã.
Lucius, como sempre, estava em mais uma de suas viagens quando nosso filho nasceu e me deixou
sozinha por meses. Quando voltava para casa, sem um puto no bolso, o rosto apático pelas bebidas e
a vida leviana que levava, ainda se sentia no direito de me fazer deitar com ele. Tirando Raul, nada
mais me foi oferecido como boa recordação.
Minhas terras, tudo o que minha mãe deixou de herança para mim antes de meu pai tirar o
resto, me faziam ser forte. Eu acordava às quatro horas para ir para a lavoura. O pequeno gado que
tinha foi perdido pelo filho da puta do Lucius em uma mesa de jogo. Consegui apenas salvar a vaca
leiteira, que alimentava meu filho. Trabalhava de sol a sol para fazer a pequena plantação virar
dinheiro, vendendo o que colhia para a mercearia do vilarejo.
Aos vinte e quatro anos, olho meu rosto cansado, tão magro e miúdo, que faz eu me sentir tão
acabada. Meus olhos observam a terra que usei para enterrar o meu digníssimo marido, que não via
desde os três anos de idade do nosso filho. O desgraçado voltou para casa em uma carroça, guiada
por um homem qualquer, que despejou o corpo dele, enrolado em uma coberta, na minha porteira.
Tive que usar meu cavalo para conseguir arrastar o corpo até perto do buraco que eu mesma cavei
para enterrá-lo.
Lucius morreu em uma briga, e só Deus sabe como ainda descobriram onde eu morava, para
deixar o defunto. Pelo menos agora sei dizer para Raul onde seu pai está, quando me perguntar.
Queria poder dizer que chorei, que sofri por sua morte, mas para mim é como enterrar um estranho.
Lembro das poucas vezes que ele vinha para casa, sempre embriagado ou dizendo como todas as
putas que comeu eram duas vezes melhores do que eu, que eu havia me transformado em uma mulher
amarga, que não tinha mais beleza ou atração alguma. Eu comecei a ser indiferente a ele, tinha
deixado de me preocupar. A única coisa que me importava era o meu pequeno Raul.
Fui ao vilarejo para saber os valores das despesas fúnebres, e descobri que não tinha
dinheiro para enterrar Lucius no cemitério, quanto mais para pagar por um caixão. Antes mesmo de
sair do vilarejo, descobri que o filho de uma cadela tinha uma dívida imensa com o chacal, um
maldito agiota. Ele me cobrava como se eu fosse obrigada a pagar por algo que não fiz e, ainda por
cima, ameaçava tomar minhas terras.
O máximo que fiz por Lucius foi achar o lugar mais distante da minha casa, ao fim das terras,
e enterrá-lo com um pouco de dignidade.
Nessa noite, ao deitar meu filho na cama, o qual divide o espaço comigo, beijo seu rosto e
sussurro o quanto o amo. E, por Deus, eu não vou perder minhas terras para ninguém! É o único
legado que deixarei para o meu menino. Serei capaz de apertar a velha espingarda e matar o primeiro
vagabundo que tentar me tirar daqui.
Recebi um estranho chamado do vilarejo de Havana e agora olho com descrença para a porta
da casa de saliência. Posso notar, pelo tipo, que é um local que o meu marido, com certeza, visitava.
— Mamãe só vai resolver uma coisa e já volta, pequeno! — Beijo Raul no topo da cabeça,
enquanto ele se senta no sofá vermelho cor de sangue. Sou guiada por uma mulher com perfume forte.
— Olhe, admiro que tenha vindo — ela fala, me observando de cima a baixo. Mantenho o
nariz erguido, mesmo estando com roupas simples.
— Apenas não entendi ainda por que fui chamada... Como pode ver, não sou o tipo de mulher
que se daria bem em seu estabelecimento.
Ela para no corredor, rindo, enquanto meus olhos se perdem, fixados nas cortinas aveludadas.
Nunca tinha visto tal beleza de perto, o que me faz lembrar da minha casa humilde e das cortinas de
algodão floridas. Isso me faz ter vontade de chorar, de tão velhas que são.
— Creio eu... — Seus olhos me avaliam de cima a baixo. — Que um belo vestido e uma
maquiagem podem fazer muitos mudarem de ideia, pequenina. — Fecho o rosto e olho seriamente
para ela.
— Mas não a mim! — digo, cortando o assunto. — Agora, ficaria feliz de saber por que estou
aqui. E já digo de antemão: se for alguma dívida daquele escroto, eu não tenho nenhum dinheiro para
pagar.
Ela ri mais ainda e abre a porta.
— Não deixa de ser uma dívida. — Ela sai e me deixa sozinha. Olho para a porta, não
sabendo se entro ou não.
Mas é antes mesmo de sair daqui que ouço uma voz doce, baixa e suave me chamar.
— Por fav... — A tosse cruel corta a voz, fazendo-me entrar aos poucos. — Entre, por favor.
No centro do quarto vejo uma cama grande, com lençóis de seda, e sinto o cheiro do mais
doce dos perfumes. Há uma mulher pequenina, acamada, com seus longos cabelos jogados sobre o
travesseiro. Mesmo diante da doença que a pegou, é possível ver sua beleza, com seus grandes olhos
abatidos.
— Você veio... — A voz triste, meio cansada, sussurra, me dando um sorriso.
— Perdão, mas conheço você? — Ela sorri e tosse mais forte, levando um lenço aos lábios.
— Creio que a mim não... — Ela tenta se sentar na cama, me observando. — Mas dividimos
o mesmo amor, talvez?
Então entendo os olhos tristes e o porquê me avalia de cima a baixo.
— Lucius tinha razão... — Ela sorri lentamente. — És uma mulher bela.
Não sei se rio ou choro ao estar diante de uma mulher moribunda, que devia ser a concubina
do meu marido. Mesmo doente, nota-se que é uma mulher bela, enquanto eu tenho minhas mãos
calejadas de trabalhar na terra e meu rosto cansado, além do meu vestido velho. Observo a
brincadeira do destino e daquele maldito miserável.
— Sua doença deve estar afetando a visão. — Meus olhos passam pelo quarto, enquanto sinto
o meu corpo duro tentar se mover aqui dentro.
— Oh, não... Com certeza, não... — A tosse interrompe suas palavras, fazendo-a respirar com
mais dificuldade.
Não sei ao certo o que fazer: se devo odiar a pobre alma ou sentir pena por ela ter se
apaixonado por aquele traste. Apenas me vejo caminhar até ela, enquanto tosse forte.
— Me desculpe — fala baixo, voltando a se deitar no travesseiro. — Está vindo cada vez
mais forte...
Ela aperta meus dedos antes que eu possa sair de perto da cama. Suas mãos fracas puxam meu
corpo e me sento ao seu lado.
— Sou Eudora... — fala fracamente.
Tento sorrir miseravelmente para ela, mesmo sabendo que não consigo.
— Sou Malu... — digo baixo, olhando-a. — Por que me chamou, Eudora? Já sabes qual foi o
destino do seu Romeu? — Vejo seus olhos tristes se apagarem e, talvez, lá no fundo, sinta inveja por
não poder compartilhar a dor que ela sente, algo tão forte por seu amor.
— Sim, eu soube... — Ela fecha os olhos, enquanto fico em silêncio, sem saber o que dizer.
— Eu não tenho raiva de você — digo para ela calmamente. — Realmente não sei por que me
chamou. — Puxo meus dedos lentamente, mas sou parada por ela, que abre seus olhos e me observa.
— Estou morrendo, Malu... — Sua voz baixa me faz ficar com pena da pobre alma. — Meu
Lucius morreu. — A voz dela é duas vezes mais triste. De certa forma, seria até louvável o traste ter
morrido tendo alguém que lhe amava verdadeiramente. — Minha pneumotórax está em um grau
avançado. Os médicos já me disseram que não há nada mais a ser feito.
— Deseja meu perdão? — Olho para ela. — Quer partir em paz?
Seu pequeno sorriso entre as lágrimas, que escorrem dos olhos, corta meu coração. Por mais
que eu queira odiar essa mulher, não posso. Já não amava Lucius, talvez nunca o tenha amado. A cada
dia em que ele foi me deixando, fui deixando-o também, até não restar nada.
— Eu não sinto raiva de ti, nem ódio, se é isso que quer saber. Não precisa... — Dou um leve
tapa em sua mão.
— Lucius dizia que era a mulher mais forte e corajosa que ele encontrou. — Seus olhos se
fixam aos meus enquanto sorri triste. — Dizia que não te merecia... Com certeza, foi a única mulher
que ele realmente amou.
Rio com o que ela diz, contemplando o quarto luxuoso.
— Lucius nunca amou nada além da vida burguesa de que gostava. Com certeza, não fui eu o
amor da vida dele. — Solto um suspiro e me sinto cansada. — E, muito menos, o nosso filho, Raul.
— Está enganada! Ele amava o filho, assim como amava nossa filha... — O meu rosto se vira
para ela no mesmo momento em que as palavras saem de sua boca.
— Vo-vocês tiveram uma filha? — Olho em volta, me afastando da cama, enquanto ela me
encara com tristeza. A porta é aberta lentamente pela mulher que me trouxe ao quarto. Em seus braços
está um pequeno embrulho numa manta rosa, que agora se estica, deixando os delicados sons de bebê
saírem do quarto.
Sinto o meu corpo ficar fraco. Lucius, aquele bastardo, filho de uma cadela, deixou uma filha,
além de sua amante! Viveu com elas em um bordel, enquanto eu e seu filho vivíamos à própria sorte.
— Minha filha, minha doce Lucia... — Sua voz me faz voltar na direção dela. — Não verei
minha menina crescer e, muito menos, se tornar uma mulher. Sei que não tenho o direito de lhe pedir
nada...
— Não! — Minha cabeça já balança negativamente antes mesmo de ela terminar. — Não!
Não mesmo!
— Estou morrendo... E-ela não tem ninguém neste mundo por ela — gagueja, chorando, me
implorando com seu olhar. — Logo, quando eu me for, esse será o futuro dela: ser mulher da vida,
como a mãe.
— Eu lamento o seu destino, assim como o da criança. — Aperto a minha bolsa velha nas
mãos. — Mas não!
Antes de sair do quarto, meus olhos param na pequenina, que está no colo da senhora. Tem os
olhos negros como a noite, com seus cabelos lisos e a pele rosada. Apenas saio pela porta e desço a
escada rapidamente, buscando meu filho, que estava no sofá. Seguro a mão de Raul e levo-o para
longe dali.
— Mamãe... — Seus olhos negros me encaram inocentemente.
Sinto o ar entrar em meus pulmões, enquanto meu coração bate acelerado pela brincadeira de
merda do destino. As pessoas que passam na rua, olham para mim e para Raul, torcendo os narizes
por estarmos parados em frente ao puteiro.
— Mamãe, por que estão olhando para nós assim? — Meu filho se aperta em minhas pernas,
enquanto me agacho, alisando seus cabelos.
— São pessoas vazias, meu amor. — Seu delicado sorriso para mim quebra meu coração. —
Não se preocupe com elas, jamais deixarei alguém machucar você...
Observo meu filho enquanto me levanto, e logo depois encaro de cabeça erguida todos que
nos olham. Meu rosto se vira por um momento para trás e vejo a grande casa rosa, onde um anjo se
esconde lá dentro, e esse é o meu erro.
— Inferno, Malu! — Pego Raul no colo e volto para dentro da porcaria da casa.
CAPÍTULO 5
Lá vamos nós de novo
Jesse
— Você confia nela? — Os olhos de Rafagá se perdem na mulher adormecida, enrolada como
uma bola ao canto, com a pequena gata aninhada em seus cabelos.
Dou de ombros e volto-me para ele, enquanto a fogueira queima lentamente.
— Mulheres como ela trazem a morte junto, como amiga! — Ele acende o seu cigarro e solta
a fumaça para longe.
— A morte nos acompanha a cada passo que damos, meu amigo — digo e aperto meu peito
sobre a camisa.
Ele solta o ar e caminha para longe, enquanto mexo na brasa, observando as estrelas. O vento
frio que vem distante faz o pequeno corpo se encolher, soltando um suspiro. Não percebo ao certo,
apenas me vejo caminhando para ela. Enquanto retiro uma manta do cavalo e jogo em seu corpo, a
cabeleira negra cai sobre o seu rosto, deixando os meus dedos coçando. Delicadamente, retiro mecha
por mecha, o que me permite olhar mais de perto para o rosto pequeno, cansado e triste.
É estranho como sinto minha alma se torcer enquanto o cheiro dela entra no meu nariz. Meus
dedos alisam sua face como se tocasse um pêssego.
Meus olhos param no pequeno pulso, onde marcas cortam a pele. Umas são antigas, quase
brancas; e outras recentes, avermelhadas. Deixo os olhos a percorrerem, parando na pulseira, que
brilha forte.
O metal frio em meu pescoço me faz voltar os olhos para as duas esferas negras que me
encaram. Seu rosto adormecido se fecha como uma muralha em sua face.
— Por que não deveria cortar sua garganta? — Seus lábios se comprimem, deixando a voz
quase sussurrada. Olho mais de perto e vejo a força que emana dela, escondendo por trás disso tudo
uma criança assombrada.
Meu rosto se aproxima mais dela e deixo a faca se apertar mais em meu pescoço, enquanto
olho no fundo de suas esferas negras, que estão assustadas.
— Porque você precisa tanto de mim como eu preciso de você. — Meus olhos observam o
seu rosto, enquanto ela prende a respiração, com os dedos trêmulos na pequena adaga. — Cabe à
senhorita a escolha do seu destino.
Seu sorriso pequeno de canto a faz brilhar, enquanto me vejo aqui, fascinado, entre a cruz e a
espada.
— Destinos são incertos, mercenário. A gente nunca sabe das surpresas que nos aguardam na
próxima esquina.
Seus lábios pequeninos soltam lentamente uma doce respiração, enquanto os olhos avaliam o
meu rosto.
— Houve uma mulher em seu caminho... — sussurra enquanto me observa. — Uma história
que não se entrelaçava com a sua.
Sinto meu peito apertar à medida em que ela me olha em silêncio. Seu corpo arqueia,
enquanto aperta a pequena adaga em meu pescoço, me fazendo movimentar com ela, se sentando a um
braço esticado de distância. Posso desarmá-la, e ela sabe disso, mas não é medo que quero que ela
tenha de mim.
— Você a amou? — pergunta baixo, examinando-me.
— Não... Não como esse amor que todos falam, foi um afeto fraternal — digo e viro meu
rosto para a esquerda.
— Você mente, mercenário... — fala de forma fria e baixa.
Me viro e olho para ela, que observa sua pequena adaga nos dedos, erguendo o rosto para
mim. O vento que bate em seus cabelos a faz brilhar sob a luz do luar e da fogueira.
— Sim, você a amou. Amou como um homem — ela diz, voltando o olhar para a fogueira,
que queima, estalando lentamente. — Mas o coração dela pertencia a outro, não a ti.
— Não é da sua conta! — Me levanto e jogo a manta de volta para ela. Caminho e passo
perto de Rafagá, que está nos observando, encostado em uma árvore.
Rafagá já tem sua arma escondida na cintura quando uma patrulha se aproxima de nós,
enquanto levantamos acampamento.
— Bom dia, senhores — digo, sorrindo para eles, observando pela lateral e contando quantos
são. Caminho até o cavalo e jogo a manta em cima dele, ao mesmo tempo em que meu dedo se aperta
no gatilho do revólver escondido.
Eles olham para nós, para cada canto, e dois deles caminham, observando tudo em volta.
— O que fazem aqui? — um deles fala conforme nos observa, encarando cada movimento
nosso.
— Somos vendedores ambulantes — respondo, arrumando a coberta no cavalo. —
Estávamos cansados e resolvemos acampar.
— O que vendem? — Rafagá sorri, tirando os dedos das costas e puxando os tecidos que traz
na bolsa.
— As mais lindas sedas, senhor. Não deseja levar alguma para a sua senhora? — Sei que ele
está nervoso. Rafagá odeia a polícia. Ele sente prazer em matar cada um que cruza o seu caminho.
O patrulheiro olha de cara feia para ele e abre um papel que está enrolado em suas mãos.
— Viram essa mulher? — O rosto misterioso, refletido na imagem, com os cabelos negros e
bagunçados e sua pequena boca carnuda, me fez balançar a cabeça, negando.
— Não. Você viu, meu amigo? — Rafagá balança a cabeça em negativo, me encarando.
— Nunca vi. O que essa dona fez de tão grave para estarem atrás dela? — Ele volta a
arrumar os panos, fazendo de conta que não percebe os movimentos dos outros policiais atrás dele.
Seus olhos cruzam os meus uma única vez, permitindo que eu veja toda a raiva lá dentro.
— Ela está sendo procurada por assassinato — o patrulheiro com a foto fala, nos encarando.
— Pôs fogo em um estabelecimento.
— Se a virem, precisam entregá-la a nós — o outro fala atrás de Rafagá.
Vejo meu amigo se retrair, segurar o seu autocontrole, enquanto se vira lentamente.
— Claro que sim... Uma criminosa como ela precisa ser levada à justiça — ele fala em tom
preocupante.
Ficamos em silêncio, olhando os homens que se afastam, satisfeitos com a resposta de
Rafagá. Apenas após eles estarem a uma boa légua de distância, Rafagá se vira para mim e me
observa em silêncio.
— Eu avisei! — O pequeno barulho de galho se quebrando se faz atrás de nós, enquanto vejo
os cabelos presos deixarem à mostra o seu rosto.
— A morte se torna nossa amiga desde o primeiro dia em que viemos ao mundo. — Seus
olhos param em Rafagá, que a encara. — É a única certeza que temos: de que um dia ela vem nos
buscar.
Ele olha para ela com raiva e, depois, se volta para mim. Observo em silêncio a cigana, que
se abaixa e pega no colo o pequeno felino que se aproxima dela.
— Você... O que fez naquele maldito bordel?! — ele fala, enfurecido.
— Rafagá... — Seu rosto se vira para mim, enquanto ergo o meu revólver, mirando em
direção aos olhos negros. — O que fez naquele bordel e quem matou, senhorita?
Destravo o engate do revólver, encarando-a, enquanto ela me observa, com o peito subindo e
descendo.
— Atire! — sussurra lentamente. Posso ver a dor dentro dela. — Eu não me importo de
morrer.
— Ela não é de confiança... Eu avisei! — Rafagá se vira e vai na direção dos cavalos,
enquanto meus olhos ficam presos a ela.
— Atire! — grita em dor.
Eu atiro. Vejo o furo perfeito que faz na árvore atrás dela, quando a bala passa a centímetros
do seu rosto, fazendo-a me encarar com seus olhos nublados de choro.
— Jesse, vamos! — Rafagá fala, empurrando o cavalo para mim. — Esse tiro vai trazer os
fardados para nós outra vez. Monto no cavalo ao mesmo tempo em que ouço seu choro baixo.
Conforme nos afastamos, sinto o desconforto dentro de mim.
— Eu não posso fazer isso sozinha... — A voz chorosa me faz apertar a guia do cavalo à
medida que olho para frente. — Eu fui vendida por meu próprio povo. Fui vendida para cada homem
que me jogaram na frente. E estou cansada de tanta maldade, de tanta crueldade.
— Você pôs fogo em um puteiro, mulher! — Rafagá grita, olhando-a.
— A moça em seu colo... — ela murmura, enquanto vejo Rafagá se virar, a encarando. — Por
que não se deitou com ela? — Ele se contorce no cavalo.
— Não durmo com virgens! — responde bravo, voltando-se para frente. — Já me deitei com
muitas putas, moça, e sei reconhecer uma mulher da vida e uma menina inocente.
— Rebeca se matou... — fala baixo, com a voz chorosa. Observo Rafagá fechar seus olhos e
apertar a cela do cavalo. — Rosa a vendeu para um doente nojento, que gosta de fazer cada parte do
corpo de uma mulher como um parque de dor, para que ele possa sentir prazer. — A voz chorosa se
quebra lentamente, enquanto ela soluça. — Ela... ela não suportou. Não suportou o que ele fez a ela e
preferiu se enforcar a deixar ele tocá-la novamente. — Sinto quando seus dedos param em minha
perna. Meus olhos ainda encaram as árvores, enquanto ela aperta a minha calça. — Há outras
Rebecas por aí... Há tantas que foram vendidas, que foram abandonadas por pessoas que deveriam
cuidar delas... Há tantas mais que ele vai machucar...
Abaixo meus olhos e a fito. Ela me implora ajuda, com seus dedos presos à minha calça.
— Por favor...
Minha mão abaixa até a sua e tiro-a da minha perna. Observo a sua pele retalhada em linhas
finas pela manga do braço, que vai escorregando, deixando seu antebraço à mostra. As linhas que
vejo em seus pulsos vão para dentro, finas e bem traçadas. São cortes que fazem sentir dor, não são
feitos para matar, são para causar extrema dor, são cortes exatos. Não tinham sido feitos por ela,
muito menos por um idiota qualquer. Quem os fez sabia exatamente a precisão dos cortes, para não
afetar nenhuma veia. Seus dedos retiram os meus e puxam o tecido para cobrir seus braços com as
cicatrizes finas.
Quero dizer que tenho controle. Quero dizer que deixarei ela aqui e partirei em busca da
minha cura, antes que a Lua de sangue se erga.
— Jesse, o que fizer, faremos juntos. A decisão é sua. — A voz de Rafagá é baixa e cruel, no
cavalo ao meu lado.
— Eu... Eu prometo que o levo ao meu povo. Levo você e depois nunca mais vai precisar me
ver... Eu prometo. Apenas quero que em troca me ajude a acabar com esse maldito homem que
desgraçou a vida de Rebeca.
— Dê uma direção, senhorita, e terá a sua vingança! — Meu braço se estica para ela e puxo
com força o seu pulso, enquanto sigo as pequenas cicatrizes, que deixarei duas vezes maiores em
quem fez isso a ela.
— Havana... Vilarejo de Havana! — Já puxo o seu corpo para cima, fazendo-a saltar no
cavalo, sentando o seu corpo de lado, enquanto mudo a direção do cavalo.
— É, lá vamos nós de novo! — Rafagá fala com a voz rabugenta. — Vou morrer ou ficar
velho vendo vocês salvarem todas as mulheres que pedem ajuda. Puta que pariu!
CAPÍTULO 6
Lua cheia
Jesse
Observo ao longe a pequena mulher na beira do rio. Seus cabelos longos descem por suas
costas em ondas negras, enquanto seu corpo curvado lava o rosto na beira do rio. A pequenina gata
brinca, andando entre suas pernas, enquanto se diverte entre as pedrarias do pano da sua saia. Mia
baixinho, ronronando para ela, que sorri, tão perdida em seu momento.
— Devemos partir junto com a alvorada. — Viro-me para Rafagá, que termina de arrumar o
cobertor na bolsa lateral do cavalo. — Ela vai chamar atenção! Mulheres como ela não passam
despercebidas.
— Cavalgaremos pela mata. — Deixo meus olhos percorrerem a grande floresta que nos
cobre.
— Iremos demorar dois dias a mais em nossa viagem se formos pela floresta. — Rafagá se
vira, encarando-me. — O tempo não é nosso amigo, meu caro.
Sei disso. Sinto cada vez mais minha garganta latejar de sede. Sinto a cada noite que algo me
pede libertação. Prometi ajudar Constância, foi uma decisão tomada como numa roleta-russa: não
tenho mais certeza se terei todo aquele tempo, não antes de a Lua de sangue se erguer e finalmente
sua maldição se cumprir.
— Daremos um jeito. — Cuspo no chão, arrumando o coldre.
— Ele tem razão. — A voz baixa sussurra atrás de mim, trazendo com ela o cheiro de rosas.
Minha respiração acelera junto à fera que se contorce dentro de mim.
— Iremos pela floresta! — Pego meu chapéu do chão, passando por Rafagá, e me afasto do
aroma doce, que me serve como sentença e, ao mesmo tempo, alívio.
Depois de dar longos passos, esperando me acalmar, sinto que posso me controlar sozinho.
Meus olhos rápidos se deparam com um pequeno coelho que corre entre os galhos. Não me mexo,
continuo em silêncio, acompanhando com o olhar o pequeno animal. Tiro a Colt silenciosamente,
disparando rapidamente. Meus pés caminham até onde o animal abatido jaz no chão e me abaixo.
— É como diz o ditado: Deus não fez todos os homens iguais... — Tombo o animal, virando-o
de barriga para cima, e me levanto. — Mas a Colt igualou a todos. — Guardo a arma no coldre e
volto com o café da manhã.
Observo Rafagá sentado em um tronco, fumando o seu cigarro, enquanto meus olhos se voltam
para o pequeno acampamento, procurando pela cigana.
— Onde ela está? — Olho para Rafagá e jogo o coelho aos seus pés.
Rafagá traga o cigarro e sorri para mim, erguendo o braço e apontando para trás, de onde
acabei de sair.
— Será que poderia ter um cavalo só para mim? — A voz me faz virar na mesma hora,
deixando-me como estátua, a fitando em silêncio. — Acho que assim chamo menos atenção e
poderemos ir pela cidade — ela sussurra, arrumando o chapéu na cabeça.
Se eu não tivesse tido a visão do seu corpo dançando sobre aquele palco, poderia dizer que
estou diante de um rapaz no auge dos vinte anos. Ela sorri arteiramente para mim, deixando apenas o
contorno dos seus lábios à mostra, escondendo os olhos negros com o chapéu. Sua roupa, que
provavelmente foi Rafagá que deu, cobre o seu corpo, com suas pernas longas e torneadas
escondidas pela calça, que ela dobrou cerca de três vezes a barra, assim como a camisa de botão,
que abotoou por inteira. Os cabelos estão amarrados para trás, em uma trança indígena.
— Espero que não fique bravo por eu usar suas roupas. A roupa do grandão ficou parecendo
um grande saco em mim. — Ela explode em uma risada, olhando para Rafagá, que ri junto.
— Você lhe deu essa ideia? — Viro-me e fito meu amigo. Em seguida pego o coelho.
— Claro que não — ele resmunga, bravo. — A ideia foi completamente dela, mas irá dar
certo. Ninguém diz que é uma mulher, parece mais um rapazote mestiço.
— Iremos pela floresta mesmo assim. — Volto a encará-la. — E não, não pode ter uma
montaria apenas para você. — Vejo seu rosto ficar em choque, enquanto ela fecha a boca, brava. —
Agora tire minhas roupas e vista as suas.
Ela cruza os braços, encarando-me.
— Não! — A voz sai de sua garganta zangada, fazendo eu me aproximar um passo a mais
dela.
— Como? — rosno, examinando-a.
— Não! Não irei vestir aquelas roupas outra vez. Na verdade, me vestir assim me deixou
extremamente confortável. E só o fato de não me sentir como uma puta suja já é algo maravilhoso —
desabafa de uma única vez, encarando-me. — Por Deus, nunca mais irei me tornar puta de nenhum
homem! Jamais irá me ver vestida daquela forma outra vez! Nunca mais serei um objeto sem alma!
Ela se vira e sai para longe de nós. Esmago com força a mão enquanto vejo a mulher fugir
para longe. Tenho que me apressar, não posso andar pela cidade, não quando vem uma Lua cheia pela
noite.
CAPÍTULO 7
Silencie sua mente
Constância
— Monte no cavalo. — Vejo os olhos castanhos taciturnos enquanto ele estende sua mão para
mim. Posso ver sua expressão, que está em alerta, não sabendo se terei medo ou nojo dele. Apenas
deixo minha mão segurar a sua, deixando-o me puxar.
É rápido subir no cavalo. Se tem algo que amei é poder usar calças. A flexibilidade, os
movimentos, são tão naturais. Ele me puxa e me arruma no cavalo, enquanto meus dedos passam por
sua cintura lentamente. É estranho estar tão próxima assim dele, um homem silencioso, sempre como
um lobo solitário. O calor que emana do seu corpo é tão grande, que é como se eu estivesse
abraçando um pedaço do Sol.
— Vamos cavalgar. Segure firme, cigana. — Ele vira o rosto e me encara, enquanto seus
olhos observam cada canto do meu rosto. — Eu não vou morder você. — Solta um sorriso falso. —
Você tem certeza da sua escolha?
Sua boca se aperta enquanto ele me olha com intensidade. Eu aprendi a lidar com vários
homens, tinha deitado com cada tipo, mas aqui está um estranho macho, que traz tanto mistério como
dor em seus olhos, além de medo. Eu posso ler o medo em seu olhar, e isso me intriga. Por que um
mercenário, que ganha a vida com a morte de outras pessoas, traz tanto medo dentro dele?
— Sim, eu tenho — sussurro, encarando seus lábios conforme aperto forte a cintura dele.
Sinto Babalu se apertar entre nós, enquanto fica brava, se esticando.
Me recordo de passar a noite toda olhando as estrelas sobre a minha cabeça, com Babalu
deitada em minha barriga, enquanto acariciava seu corpinho, depois da conversa que tive com o
grande homem.
— Inferno! — Jesse grita, enquanto chuta uma pedra, saindo para longe de nós em um
rompante. Ele está nervoso. Seus olhos observam o céu, o que o deixa com mais raiva.
— O que ele tem? — Volto-me para o grande homem, que fica em silêncio, observando-o se
afastar, enquanto acende um cigarro.
— O tempo está correndo para ele. — Ele se vira e me fita. Seu grande corpo se aproxima
e se senta em uma pedra próxima a mim, enquanto brinca com as brasas e um graveto. — O que
vai fazer depois?
Ergo meus olhos para ele, sem entender a pergunta.
— Como?
— Depois que tiver sua vingança, o que vai fazer? Vai se sentir melhor? Vai voltar para
casa? — Ele traga o cigarro, me encarando.
— Eu não sei — digo e dou de ombros. Em relação à casa, eu nunca pensei para onde irei
depois ou o que pode me esperar. Apenas me imagino livre e me deparo com o fato de ser apenas
Babalu e eu. Não tenho mais ninguém além da minha gata.
— Tive minha vingança anos atrás[3] — ele fala, com sua voz grossa, me fazendo olhar
atentamente para ele. — Eu perdi alguém que amava, alguém que era importante para mim, e jurei
me vingar de cada um que a machucou. — Vejo os olhos dele se apagarem silenciosamente.
— E o que sentiu? — Me pego lembrando de Beca, com seu jeito medroso e tímido.
— Vazio. — Ele puxa a bolsa próxima à sua perna, tirando de lá uma garrafa. — O mais
puro vazio. Rastreei, cacei cada maldito, matando um a um, e sobrou apenas o vazio. Quando
terminei, nem sequer me recordava do porquê comecei. E, quando dei por mim, tinha me tornado
um mercenário bem pago, em uma vida vazia e triste, como essa que levamos. Nunca tive terras,
nunca tive um lar, nunca tive um legado para deixar, nem herdeiros para carregar o meu sangue.
Ele volta o olhar para mim assim que termina a garrafa de uísque.
— O que acha que Beca faria? — Olho para ele e sinto dor no meu coração.
— Acho que ela está melhor do que nós dois — ele fala sério. — Pelo menos está livre.
É estranho ver um homem como esse com a guarda tão baixa, com uma solidão e um vazio
muito maior do que ele.
— Continuar com a sua vingança, mesmo tendo liberdade, agora é escolha sua, pequena.
— Ele levanta e bate em sua calça. — Cuidar do meu amigo é um dever meu, e ele precisa chegar
até aquele clã antes que seja tarde demais para ele.
Cavalgamos o dia todo, parando apenas quando a noite chega. Já estou exausta e cansada de
tanto ficar montada no cavalo, somente desejo descansar. Me deito e observo as estrelas altas. Ao
longe, um grande uivo de dor corta a noite. Babalu pula no meu colo, se aninhando ainda mais a mim,
ao mesmo tempo em que meus ouvidos escutam o som da dor da pobre criatura machucada ao longe.
Acordo no meio da madrugada com o barulho de uma coruja, que pia em alguma árvore.
Arrumo Babalu em um canto da manta, à medida que me sento, olhando em volta. O grande homem
está adormecido, com sua arma na mão. Procuro pelo mercenário, mas nada dele. Me levanto
lentamente e esfrego meus olhos, ao passo que observo tudo em volta. Meus pés caminham descalços
entre a grama, procurando por ele, e ouço o som da mata, da pequena coruja que pia ainda mais.
Me vejo entrar em uma clareira. É como se o meu coração me levasse até ali, como se o meu
corpo soubesse exatamente para onde ir.
Circulo lentamente a pulseira que ganhei da minha avó, sempre brilhante, na qual sinto a força
dela em mim. Meu coração bate acelerado. Deixo meus olhos se fecharem, enquanto apenas a
escuridão me toma a visão, junto da floresta que vai silenciando.
— Quando você aprende a controlar o som da sua mente, Cia, tudo à sua volta fica sob o
seu poder — meu avô diz e sorri para mim, enquanto alisa meus cabelos.
Sinto minha respiração baixar, além do ar entrar em meus pulmões.
— Veja, tudo o que vem da natureza é um dom, não um pecado. Somos criaturas selvagens
e aprendemos a respeitar o ciclo, pois somos um só.
As lembranças, presas dentro de mim por anos, se alastram pelo meu corpo como pólvora.
— Meu sangue, que corre em suas veias, é forte, é de liderança, de ancestrais guerreiros
que lutaram por cada respiração sua. Todo esse clã será um dia seu por direito. Você será a
primeira líder mulher a cuidar de todos eles, pois a força em você, além da bondade e da justiça,
ninguém mais tem, pequenina. Você apenas precisa silenciar sua mente curiosa e escutar a Mãe
Natureza quando algo lhe afligir. — Ele toca meu coração, me fazendo sorrir. — Apenas ouça o
que ela tem para dizer.
E tudo se silencia. Não há mais nada além de mim. O único som é o da noite, que se alastra
em meus ouvidos. O vento bate vagarosamente nos meus cabelos e meus olhos se abrem lentamente.
Sinto o poder do povo que corre em minhas veias.
— Você vai ficar aqui. Não queremos você junto da gente. — A voz de Mascau, o braço
direito de meu avô, soa brava, enquanto me joga dentro desse lugar horrível. — Você deixou seu
avô fraco! Você foi a culpada da morte dele! Jamais será bem-vinda em nosso clã com o seu
sangue sujo que tem! Você é igual ao seu pai, um ser inútil!
— Não, não, por favor! Não me deixa!
Sinto as lágrimas descerem pelo meu rosto, enquanto a dor se acalma, deixando apenas as
lembranças se silenciarem.
— Há uma magia bela em nós, Cia. Sinta ela em você, meu amor. — Os olhos negros da
minha avó sorriem para mim. — Se deixar a magia fluir, sempre saberá o que fazer. A magia está
em mim, assim como está em você. Sempre estarei ao seu lado, meu amor. Está na hora de voltar
para casa, cariño[4].
Abro meus olhos e observo a noite silenciosa da floresta, sentindo o gosto salgado das
lágrimas. Meus joelhos caem lentamente, enquanto deixo minhas mãos se espalmarem na terra. É
como sentir o coração da Mãe Natureza junto a mim. Posso sentir a força de todos os ancestrais
silenciando minha mente.
— O que devo fazer? — sussurro para a terra, me sentindo perdida.
O pequeno som do galho se quebrando atrás de mim, me faz levantar. Me viro conforme sinto
minha nuca se arrepiar. Fico aqui, parada, encarando as árvores, apenas para cair de bunda à medida
que a respiração alta se faz próxima a mim.
Então vejo os olhos marrons silenciosos me observarem em sua forma tão grande e
impiedosa, apertando suas patas no chão, no momento em que um pequeno rosnado sai de sua
garganta.
— Mercenário — sussurro, conforme meu coração salta forte a cada compasso.
A grande criatura se senta em suas patas e fica em silêncio, me observando com seus olhos
castanhos. Me perco, fico parada enquanto sua grande cabeça se deita em minha perna, soltando um
triste som. Meus dedos trêmulos tocam lentamente sua grande cabeça, me deixando sentir a textura
macia do seu pelo.
— Oh, meu Deus! É você! — sussurro e ouço o lamento sair da grande boca canina, com suas
presas enormes. — Por isso procura o clã. Foi um dos nossos que lhe mordeu ou amaldiçoou.
Ele esfrega mais sua cabeça em minha perna, enquanto me deixa ver o grande animal, com
suas patas maiores do que minhas pernas, se esticando no gramado.
Lembro das histórias que a vovó contava. Lembro da forma como ela sempre nos deixava
dentro das tendas nas noites de Lua cheia. Os uivos altos se erguiam em noite de Lua cheia e o clã
todo se protegia.
Sua grande cabeça se vira para mim, me deixando ver os olhos marrons. Me sinto ligada a
ele, como se pudesse ser uma coisa só, e nada mais importa: nem vingança nem meu passado, apenas
a dor que vejo sem tamanho em seus olhos, que me dilacera como se fosse minha.
Tudo se conecta. Toda solidão que senti minha vida toda sendo silenciada. Tudo se mescla. É
como se os olhos marrons não fossem apenas do mercenário, mais também do grande animal dividido
em uma só forma, em que uma parte da minha história termina e outra começa. E não é medo nem
pavor. São tambores que batem dentro de mim, altos como os trovões nos céus. Todos os sonhos,
todas as noites de angústia, como se algo me chamasse, como se algo que me procurasse, se cala.
Afago essa grande bola peluda que é a sua cabeça, deixando os meus dedos se afundarem nos pelos
macios, vendo seus olhos ficarem mesclados entre o marrom e o amarelo escuro. Lá está toda a
ligação, toda a selvageria. Lá está a fera me observando com seus olhos amarelos. Deixo minha testa
encostar na dele e sinto toda a força que emana do grande animal, e, enfim, silencio minha mente.
CAPÍTULO 8
Lendas
Malu
Minha mão vai até o meu rosto e tapo um pouco do grande Sol, enquanto olho para a entrada
da casa, onde Raul brinca com seu velho carrinho de latinhas, que fiz para ele. Lucia, em seu cesto,
resmunga, mas sei que está bem. Tinha trocado sua fralda e dado de mamá, então fome não tem.
Jogo a última roupa no varal e ergo a bacia em meus braços, voltando para perto deles
enquanto retiro os pregadores da barra do meu vestido. Sorrio para o meu filho, que brinca todo
alegre. Solto a bacia no chão, me sento na escada velha e puxo o cesto para mim.
— Olá, cariño — sussurro para ela, brincando com suas mãozinhas, que apertam forte os
meus dedos. Seu sorriso banguela, com suas bochechas rosadas e gordas, é alegre para mim,
enquanto tenta levar para a boca os meus dedos. — Está com fome de novo, sua roliça? — Rio,
brincando com ela.
Não sei ao certo o que irei fazer, como irei conseguir cuidar dessa criança. Mal estou
conseguindo comida para o meu Raul, quanto mais alimentar um bebê. Apenas sei que jamais poderia
deixar esse pequeno anjo naquele lugar.
O cachorro, que late no quintal, sai em disparada. Ergo o meu rosto e vejo ao longe o carro
que vem levantando poeira.
— Raul, venha! — Ergo-me e levanto o cesto de Lucia em meus braços, levando os dois para
dentro, trancando-os em meu quarto. Puxo a velha doze de cima do armário, abrindo-a a tempo, para
ver se está carregada. Saio da casa e paro na entrada, no momento em que o carro estaciona na
porteira.
Olho para o homem, que sai de dentro do veículo com suas roupas caras, enquanto ele olha
tudo em volta, cuspindo no chão. Se estivesse andando pelas terras, eu podia jurar que estou diante
de uma cascavel, que com seus olhos mortos só falta soltar o chocalho.
Aperto a espingarda calibre doze em meus dedos, erguendo-a, enquanto miro para essa cobra
falsa, que acende um cigarro, olhando para mim.
— Bom dia, dona. — Ele encosta no carro, tragando um cigarro.
— Para mim vai ser um bom dia, mas para você não sei, depende do que vai sair da sua boca.
E se der mais um passo, creio que para o senhor não vai ser. — Destravo a arma e miro em seu peito.
Ele ri, enquanto seus olhos observam tudo.
— A dona tem espírito. Gosto disso. — Os olhos cruéis se voltam para mim, me fazendo
arrepiar. A cada traço que ele olha em meu corpo, sinto a maldade escorregar por sua saliva de cobra
falsa.
— Diga a que veio e vá embora. — Meus dedos apertam forte a arma. Só preciso de mais um
passo desse filho da puta e estourarei ele inteiro.
— Seu marido ficou devendo para algumas pessoas, as quais a dona não vai querer ficar em
dívida. — Ele joga o cigarro no chão e dá um passo à frente.
O tiro vai ao lado do seu pé, fazendo-o pular para trás. Sinto o solavanco da espingarda por
conta do disparo. Ouço o choro de Lucia dentro da casa, assustada, mas nada me faz desviar os olhos
dele.
— O senhor já me viu em mesa de jogo? Já me viu bebendo? — Olho para ele com raiva. —
Não estou devendo para ninguém. Aquele verme está morto, enterrado lá perto da macieira, pode ir
cobrá-lo pessoalmente.
Ele solta uma risada ainda maior, enquanto limpa a poeira da roupa.
— Acho que a dona não entendeu. — Ele me encara sério. — Não sou um cobrador — fala,
destilando mais veneno. — Eu sou o executor da dívida. — Sua sobrancelha se arqueia mais ainda,
olhando para mim com ódio.
Sinto o medo tomar meu corpo. Sei que é algo bem pior, mais cruel e desprezível que um
simples agiota na minha frente. Lucius tinha se metido com algo ruim, muito ruim, que agora vem ao
meu encalço.
— A gente se vê em breve, dona — fala, sorrindo para mim. — Melhor cuidar do bebê. A
gente não quer que nada de ruim aconteça com ela, não é mesmo? — Ele abre a porta do carro e se
volta para mim. — Ou, melhor dizendo, não queremos que nada de mal aconteça com as duas
crianças.
Vejo o verme partir e meus dedos trêmulos soltam a arma. Meu coração, que bate assustado,
pulsa forte enquanto olho para a maldita macieira.
— Desgraça! Merda! — falo com raiva. — O que Lucius fez?! Onde foi que ele nos meteu?!
Jesse
Sinto quando seu corpo adormece abraçado a mim. Falei sério quando disse que iríamos
cavalgar. O passo rápido dos cavalos corta o chão, levando-nos o mais depressa possível para as
montanhas, onde estará o clã. O cheiro de rosas que entra por minhas narinas faz eu me sentir calmo.
É como se ela domasse o que tem dentro de mim.
Me recordo dos olhos negros assustados, observando-me. Eu estava em choque, caído na
clareira, e ela não correu. Tentei ficar longe dela, mas a fera desejou ver pessoalmente a cigana de
perto, o que me fez deitar em seu colo, como um dócil filhote próximo à sua dona.
Ao cair da noite, depois de pararmos para descansar, vejo a cigana sentada próxima à
fogueira, enquanto solta a trança dos cabelos, deixando-os soltos. Os olhos dela, curiosos, se erguem
para mim, como se soubesse que eu estou a observá-la.
Rafagá solta uma respiração, fazendo um movimento de cabeça enquanto fecha a cara.
Balanço a cabeça em negativo. Ele traga o cigarro, fechando o semblante.
— Constância. — A voz dele me faz dar um passo à frente. Rafagá ergue um braço, fazendo-
me ficar no meu lugar. — O que sabe sobre essa maldição?
Seus olhos se voltam para nós, enquanto ela traz as pernas para si.
— Não é uma maldição — ela sussurra, encarando-me. — Não vê? É um dom!
Sua voz sai baixa e ela olha para Rafagá.
— Como pode ser um dom se transformar em um animal? — Rafagá ri, olhando para ela.
— Somos selvagens, Rafagá. Somos capazes das maiores crueldades em nossa forma humana.
Por que acha que o fato de correr livre com quatro patas seria tão pior? — Ela nos olha seriamente.
— Vovó contava sobre isso. Eu nunca vi. Não até a noite passada.
Seus olhos se erguem para mim, enquanto ela me fita em silêncio.
— Lá trás, no princípio, diziam que o povo cigano trazia magia em seu sangue. Éramos
andarilhos da noite e a Lua era nossa protetora maior. — Ela sorri, brincando com a fogueira,
enquanto seus cachos caem pelos ombros. — Vovó contava que um dia, um clã tinha sido massacrado
por completo, restando apenas um velho líder. Ele chorou sobre o corpo do herdeiro, implorando
para a Lua por vingança, dada tamanha crueldade. Isso tinha sido feito pelos homens, por não
entenderem o nosso espírito livre. — Ela fica triste e solta o graveto. — É da natureza deles não
gostarem de nada livre, sempre se prendendo a tudo: dinheiro, ganância... A Lua, por sua vez, com
pena do pobre cigano, lhe deu um presente. A Lua levou o filho dele, mas deixou um pequeno filhote
de lobo no lugar. — Seus olhos se voltam para mim. — E quando a Lua cheia foi embora, o filhote se
transformou em um rapaz. O rapaz seria justo e forte, com a força e a garra de um lobo, protegendo
seu clã. E aos homens que mataram, seria a maldição do sangue sempre perpetuando o que fizeram a
vida toda. Sempre em busca de mais e mais, com sua sede nunca saciável por sangue, pois, como
homens, sua sede por ouro e morte se iguala.
Ela fica calada e volta-se para o fogo, olhando-o por um longo tempo, antes de voltar a falar.
— São apenas lendas, lendas do meu povo. — Ela sorri. — Bom, foi o que pensei até ver o
grande lobo à minha frente. — Ela ergue os olhos para nós.
— Como se quebra essa maldição, Cia? — Me vejo parado, observando-a. Sinto que meu
tempo está acabando, pois a cada caçada, a cada bicho que mato, nada faz a sede parar.
— Eu não sei. Eu realmente não sei. — Ela se ergue e observa tudo em volta. — Talvez
algum ancião do clã possa te dar essa resposta, Jesse. Mas eu não sei.
Ela se afasta de nós e vai para o meio das árvores, sumindo na escuridão.
— Você devia ter contado a verdade. — Rafagá se levanta e me encara.
— O que eu devia contar é que, provavelmente, matei algum amigo da sua família?
Sinto a raiva me tomar, enquanto quero apenas destruir algo à minha frente
— Está piorando mais a cada dia. — Me viro e encaro meu amigo. — E se chegarmos a esse
clã e não conseguirmos ajuda? — Ele para, me observando, fumando um cigarro.
— Não! Não mesmo! — Rafagá fala bravo.
— Rafagá, só tenho você. Se chegar essa maldita Lua de sangue e não tivermos achado a
solução, vai tirá-la de perto de mim. Vai sair para o mais longe e meter uma fodida bala na minha
cabeça.
Caminho lentamente e me afasto de Rafagá. Já tínhamos falado sobre isso, não iremos discutir
de novo. Sinto a noite me invadir. Sei que é perigoso manter os dois próximos a mim. Não tenho
ideia de até quando posso controlar tudo. Meus olhos param na pequena margem do lago, onde vejo
um corpo abaixado. Me encosto entre os galhos, observando cada movimento que ela faz, brincando
com a água. Sinto o meu corpo estranho, como se vibrasse com os movimentos dela. Seu corpo se
levanta, enquanto ela olha para todos os lados. Não me vendo no escuro, volta a olhar para a água.
Sinto a secura em minha garganta. Sinto o palpitar por minha pele, como se fossem formigas
mordiscando pedaço por pedaço, enquanto seus dedos vão até os botões, abrindo um a um, se
libertando da roupa, deixando-a tão livre, como se fosse a perfeita imagem da natureza, apenas com a
luz da noite.
— Não acha estranho isso, Jesse? — O rosto calmo de Yara se vira para mim, me
observando em silêncio.
— O que acha estranho, Yara?
Ela se volta para mim, calando-se. Seus olhos sorriem para Paolo, que passa, parando ao
nosso lado, sentando-se no banco de balanço da varanda, puxando-a para o seu colo.
— Não acha que algo mais o chama? — Ela se vira para mim, enquanto vejo os dois
abraçados, com sua cabeça descansando no peito dele. — Talvez isso que você prende dentro de
você nunca se libertou porque você nunca quis, Jesse — ela fala, me fitando com calma. — Eu
lembro que vovó falava sobre essa maldição, e você me contar que nunca desejou sangue humano
só prova que talvez a maldição vá além de apenas um castigo, meu amigo. Talvez ele deseje estar
aí como está, talvez ele deseje algo que você ainda desconhece, mas só saberá disso quando a Lua
de sangue se cumprir. E se você não tomar sangue humano, então talvez isso seja mais seu do que
imagina. Pode estar buscando algo que nem você conhece.
— Estamos falando de algo ruim, Yara. O que de bom alguém como eu poderia querer? —
digo, olhando para o céu negro.
— A escuridão sempre procura por sua luz, Americano. — Me viro e encaro Paolo, que fala
baixo, puxando Yara para ele e apertando-a mais forte em seus braços. — Como algo tão ruim
como eu pôde desejar algo tão bom como a minha bruxa?
Os dois se olham em silêncio, sorrindo com carinho um para o outro. Me sinto perdido
aqui, como um intruso, mas é algo bom. Vê-la feliz, vê-la viva.
E desejo por um segundo que Yara esteja certa.
As palavras de Yara cortam minha mente, enquanto fico parado observando Cia, olhando para
ela. Sinto a fera, mais do que nunca, forte sobre mim, mesmo quando olho para o céu negro e vejo
que a Lua cheia não está lá. Algo aconteceu na clareira, me deixando como se eu estivesse desligado.
Perdi completamente o poder de mim, deixando apenas a fera tomar conta; assim como ela fica junto
a mim, como guardiã da cigana, que brinca no rio tão lindamente.
CAPÍTULO 9
Olhos de ouro
Constância
A Lua brilha alta no céu estrelado, deixando-a completamente iluminada por sua luz. Sinto
o vento bater no meu rosto, conforme sorrio, brincando sentada na grama. O cheiro do riacho,
misturado à floresta, é como uma conexão, nos ligando. Meu corpo nu recebe o poder do luar em
cada parte em que o toca.
Noto quando os pelos da minha nuca se arrepiam, deixando o meu corpo ereto. Continuo
da mesma maneira, sem mover um músculo sequer, à medida que os sons vão aumentando às
minhas costas. Os pequenos galhos se quebram e noto a força que caminha atrás de mim. Percebo
me ricochetear como um sopro, deixando meu corpo em agonia, em alerta e quente. Tremo assim
que constato a forte respiração quente na minha nuca, ao passo que meu corpo amolece.
Sinto a ponta gelada do nariz tocar o meu pescoço vagarosamente, enquanto o ser cheira
meus cabelos, farejando entre a minha clavícula, deixando rastros de sua língua. Meu corpo
treme, se aquecendo como fogo, tombando devagar. Em questão de segundos, meu corpo é puxado
para cima, me colando a ele. Uma grande mão, misturada às garras retraídas, se alastra por
minha barriga, forte e áspera. O som alto de sua respiração, que acelera enquanto sua boca beija
o meu pescoço, faz a veia latejar mais em pulsação de sangue.
Deixo meus dedos se erguerem e toco o braço forte e musculoso, em meio à roupa que
precisa ser rasgada. Sua boca força mais em minha garganta, no momento que sua mão desce,
parando no meio das minhas pernas, deslizando lentamente seus dedos, me fazendo soltar um
gemido conforme me sinto queimar e o fogo aumentar. Sua outra mão, tão grande, se apossa de um
seio, brincando com o bico rígido, que lateja de dor e desejo ao toque. Meus olhos, nublados de
desejo, fixam em direção à Lua, que brilha mais e mais.
— Cia... — Meu nome sendo dito por sua voz animalesca faz o meu corpo se aninhar mais
a ele.
Viro-me lentamente, deixando meus dedos espalmados em seu peito, e sinto seu coração
forte bater acelerado em minha mão. Deixo meus olhos acompanharem os meus dedos, enquanto
contorno cada parte sua, parando em seu rosto. Não tenho medo, não quando vejo as presas em
seus lábios. Seu rosto tem o pelo grosso que começa a cobri-lo. Toco lentamente as orelhas
pontudas, deixando os meus dedos dedilharem cada parte da sua face animal misturada a de um
homem. Seus olhos, tão amarelos, brilham forte como ouro, me encarando em silêncio.
— Não sinta medo de mim. — Sua voz animal me faz olhar com mais carinho para ele.
Como posso ter medo, se tudo nele me puxa para mais perto, em vez de me afastar?
É tão alto, que me faz parecer uma formiga, tão colada a ele. Sua mão envolve minha
cintura, enquanto a outra se prende aos meus cabelos.
Sabia que nunca deveria deixar nenhum daqueles homens entrarem. Não em minha mente.
Nunca deixava. Naquele lugar, era apenas o meu corpo vazio que eles tinham, nunca a minha
alma, e nunca, nunca meus lábios. Eu me permito desejar, autorizo meus dedos circularem seus
lábios grossos. Deixo meu dedo tocar as pontas de suas presas caninas, enquanto ele me aperta
ainda mais forte.
— Eu não tenho — sussurro, ficando nas pontas dos pés, e estico meu corpo, erguendo-o,
tocando lentamente seus lábios.
E tudo ganha vida, como se estivesse fazendo tudo pela primeira vez, como se meu corpo
tivesse escolhido somente ele. Sua mão grossa me ergue, me puxando para o seu peito, enquanto
ele esmaga ainda mais forte minha boca, fazendo-a se abrir para receber sua língua. É grande,
como se pudesse roubar cada canto da minha alma. Ele faz sentimentos explodirem dentro de mim.
Sinto meu corpo ser tombado sobre a grama, enquanto ele se aperta mais a mim, me
tomando mais e mais.
Seu grande corpo fica sobre o meu, enquanto rasga cada parte da roupa que cobre seu
corpo. E, por Deus, meus dedos se apertam mais ao lado do meu corpo. Tenho desejo de tocar seus
braços, com seus músculos contornados, como se tivesse ganhado duas vezes mais tamanho, com
seu peito que sobe rápido, com a respiração forte.
Me estico mais na grama, ao mesmo tempo que minhas pernas se abrem entre ele. Deixo
meus dedos correrem sobre o meu corpo, enquanto brinco com meus seios, alisando-os. Sinto seus
olhos sobre cada movimento que faço, e rosna alto quando rasga as calças, libertando-se. Desço
meus dedos sobre o meu ventre, desejando que fosse o seu toque em mim, e gemo baixinho quando
me toco lentamente, abrindo mais minhas pernas para ele.
Deixo que ele tenha uma visão perfeita da minha boceta molhada e quente, que se aperta
em espasmos. A cada deslizar dos meus dedos, meus olhos param no grande pau à minha frente,
que lateja, grosso e forte. Nenhum daqueles homens jamais terá um centímetro desse pau, com
suas veias fortes. Gemo mais ainda à medida que meu dedo circula mais forte, ao passo que
esmago o seio com a outra mão, arqueando o meu corpo, enquanto sinto o sangue correr mais
rápido, mais forte.
O baque no chão se faz alto quando ele cai de joelhos entre minhas pernas. Sinto sua mão
esmagar meus joelhos e solto um grito quando ele me puxa para ele. Os beijos quentes que recebo
em minha perna, junto à sua língua gelada, causam choque. O ritmo dos meus dedos vai
aumentando. Sua cabeça se ergue para mim e me perco nos olhos de ouro, que me fitam com suas
presas brilhando. Ele ergue sua grande cabeça ao céu, soltando um uivo alto e forte.
E meu mundo fica vivo assim que sua cabeça cai entre minhas pernas, sugando minha
boceta.
— Jesse...
A cada movimento, meus dedos aceleram junto à grande língua, que vai me lambendo,
como se eu fosse seu prato favorito. Sinto-a dentro de mim, chupando cada parte, crescendo mais
ainda. É um pulo de um penhasco. Ele toca lugares que nenhum outro jamais conseguiu, tirando
meu néctar direto da fonte.
Mais forte, mais rápido. Entre meus gemidos e sussurros, me perco nos movimentos de
pincelada que ele dá, entrando mais rápido e forte, me fodendo com sua língua. Sinto a ponta de
sua presa tocar minha carne macia, onde ele pode dilacerar a hora que bem quiser, pois estou
perdida demais. Suga a cada corte do orgasmo, o que faz tremer meu corpo, como se estivesse
recebendo uma descarga elétrica, me fazendo queimar mais alto do que qualquer fogueira.
Sua grande cabeça se ergue, enquanto o meu mel escorre por seus lábios. Ele move seu
corpo sobre o meu. Deixo meus dedos se perderem em sua cabeça peluda, sentindo meu corpo
vibrar mais e mais quando a ponta grande e grossa do seu pau toca os lábios molhados da minha
boceta. Seu uivo se faz agudo, como se um trovão cortasse a noite estrelada. Meu corpo se inclina
para ele e me esfrego mais no seu pau. Eu desejo, imploro para tê-lo me preenchendo por
completo, me tomando. Sua cabeça se ergue aos céus, outra vez uivando tão forte, como uma dor
que sinto em mim.
O terceiro uivo é mais alto ainda, misturado ao grito de um homem, me fazendo acordar. O
meu coração está acelerado, batendo forte no meu peito. Meus cabelos estão colados em minhas
costas, enquanto Babalu dorme nos meus pés. Olho para os lados, está tudo escuro, com apenas a
fogueira queimando no centro do pequeno acampamento. Olho assustada para tudo. O sonho parecia
ser tão real.
O som alto do homem gritando ao longe me faz virar, enquanto tento entender o que acabou de
acontecer.
— Jesse teve que dar uma volta. — Me viro assustada para Rafagá, que está escorado em
uma árvore, virando o rosto para mim.
— Por quê? — Limpo o meu rosto e jogo os cabelos para trás, ainda mirando-o assustada.
— Acho que ele conseguiu se controlar bem enquanto você estava dormindo e começou a
gemer. — Ele coça a cabeça e solta uma gargalhada. — Mas acho que quando você disse o nome
dele, isso foi meio que demais para ele.
Sinto meu rosto queimar. Se pudesse, ficaria vermelha na minha pele negra. Jogo a coberta
sobre o rosto, querendo me afundar no chão, junto à terra.
— Oh, merda! — Ainda posso ouvir a gargalhada de Rafagá enquanto morro de vergonha.
Jesse
Fico aqui, parado, sentado na maldita pedra enquanto o Sol sobe. Meu pau, que começou a
amolecer depois de ter me masturbado mais de três vezes, ainda está insatisfeito. É com a porra de
um pau duro que ela me deixa. Eu posso, ainda, ouvir os sons que saiam dos seus lábios.
No começo, juro que achei que ela estava com frio. Quando vi seu corpo tremendo, me
levantei, levando mais uma manta para ela. Em seguida, o pequeno gemido escapou de seus lábios e
meu pau pulsou forte na hora. O cheiro de rosas subiu em seu corpo, e então o cheiro dela aumentou,
cheiro este que senti cada vez mais forte. Me afastei, olhando em volta. Rafagá ainda dormia. Voltei a
olhar para ela e seu corpo se virou, retirando a coberta. Vi o seio duro entre a fina camisa, e outro
gemido escapou de seus lábios. Mas sabia que não tinha chance quando ouvi meu nome sair de seus
lábios trêmulos.
A porcaria do pau chega a doer, como se fosse a única necessidade da minha vida: entrar nela
e fodê-la até a alma... Sinto meu corpo pedir libertação, o desejo animal querendo marcá-la como
minha.
Saí de perto dela o mais rápido que podia, rasgando a maldita camisa que estava me
sufocando. As imagens dela se banhando no lago, vivas em minha mente, foi tudo que precisei para
esfolar meu pau até perder a força dos meus braços.
Fico o máximo de tempo que posso afastado do acampamento, preferindo o isolamento.
Quando me junto a eles outra vez, o Sol já está nascendo. Não demoramos para começar a levantar
acampamento.
Ela não me olha, nem sequer vira o rosto diretamente para mim, enquanto estamos partindo.
Sinto seu corpo tremer quando a pego pela cintura, montando-a no cavalo. Mesmo escondida nessas
roupas de menino, desejo tocá-la, nua, como a vi ontem.
— Obrigada — sussurra, me fazendo olhar para ela. Seus olhos desviam dos meus
rapidamente.
Vejo Rafagá me encarar enquanto nos olha, curioso. Ergo meu dedo do meio para ele e monto
no cavalo atrás dela. Meus braços passam por sua cintura, deixando-a próxima a mim. Mas é a pior
ideia! O maldito pau fica ereto apenas com o cheiro de seus cabelos, e me faz odiar ter que cavalgar
assim. Xingo baixo, sentindo raiva, e fico mais puto ao olhar para Rafagá e perceber que segura uma
gargalhada.
— Vá se foder! — rosno para ele, que ri mais ainda.
— Assim que achar um puteiro, com uma boa puta fogosa — ele fala, debochado.
Observo o pequeno corpo se encolher em meus braços. Vejo Rafagá olhar para Constância.
— Eu não quis ofender, Cia. Tenho respeito por sua profissão — ele fala, tentando consertar
a primeira frase, quando percebe o que falou.
A risada envergonhada dela nos surpreende, arrancando de Rafagá uma longa gargalhada.
— Está tudo bem, Rafagá. Não me ofendeu. — Ela se vira para mim. — E, por favor, parem
com as brigas e olhares, como se eu não tivesse aqui... — Seus olhos vão para a minha calça, onde
pode ver o grande volume. — Você está bem?
Sinto minha boca seca enquanto sorrio para ela, balançando minha cabeça positivamente.
— Estou, cigana! — Ela arqueia sua sobrancelha, sorrindo.
— Ok, mercenário. Então, vamos, pois, ao anoitecer, estaremos nas colinas, e lá
encontraremos um clã.
Aperto-a mais em meus braços, puxando-a para mim, deixando-a sentir o efeito que me fez ter
ontem à noite.
— Se dormir, por favor, não solte gemidos — sussurro em seu ouvido. Percebo sua nuca se
arrepiar enquanto ri baixinho.
O Sol já está indo embora quando os cavalos param para beber água. A grande floresta nos
esconde, deixando-nos camuflados. De longe, as colinas já são vistas. Arrumo a cela enquanto vejo
os cascos dos cavalos.
Um grito ao longe faz eu me levantar na mesma hora. Aperto a Colt em meus dedos, correndo
na direção de onde os gritos vêm. Meus olhos procuram por Cia, mas não a encontro. Ouço outro
grito de dor ainda maior. O cheiro de fumaça aumenta e a vejo parada ao lado de uma árvore. Seus
olhos estão com lágrimas, enquanto se aperta à árvore. O terceiro grito é mais doloroso.
Meus olhos acompanham a direção do seu olhar. Ao longe, temos a visão perfeita da pequena
casa em fogo e ouvimos os gritos de desespero que vêm de lá. Há uma criança jogada ao chão, com
um homem de pé ao seu lado, apertando a criança na terra, com seu pé em cima das costas dela.
— Meu bebê. Por favor, meu bebê... Tirem-na da casa, por favor... — uma mulher grita alto,
enquanto a casa já se ergue em fogo. Olho para ela, jogada no chão, com sua roupa rasgada. Seus
olhos estão em choro e o rosto machucado.
Vejo cinco homens com suas roupas de polícia circularem a casa.
— Podemos brincar um pouco com ela, chefe? — um deles pergunta para o sexto homem que
aparece, que está de terno e caminha para o carro. Sinto quando Cia treme e chora mais ainda, e me
aproximo dela. Ela se cola a mim, tapando o rosto assim que o homem se vira.
— Oh, meu Deus! — Ela chora mais ainda. Seu corpo pequeno mostra medo.
Aperto-a em meus braços, enquanto acompanho o passo daquele verme. Sinto a fera
desejando mais do que nunca estar livre. Ela quer tanto sangue quanto eu.
— Termine logo com isso. — Ele joga o cigarro ao chão, entrando no carro e saindo para
longe.
— Minha bebê... Por favor, a minha bebê... — A mulher chora mais alto. — Deixem as
crianças. Por favor, por favor!
O homem segura o menino, o ergue e solta um tapa em seu rosto.
— Vai querer ver isso, seu bostinha? Assim, para de chorar como uma menina! — O menino
chora enquanto olha para a mulher.
— Raul, tá tudo bem. Está tudo bem, amor. Feche os olhos... — ela grita quando os outros
homens arrastam seu corpo pelo terreiro.
— Cia. — Aperto-a em meus braços. — Onde está Rafagá?
Ela olha em direção à casa, apontando para lá.
CAPÍTULO 10
Pequena ursa corajosa
Rafagá
A casa em chamas vai se apagando à minha frente e meu pequeno corpo está jogado ao
chão. A dor que sinto em meu estômago é por conta dos chutes que são desferidos em mim,
enquanto os gritos se fazem alto.
— Não olha... Fecha os olhos, ok? Não olha — ela grita, tentando correr para mim.
— Cintia... — Meus dedos pequenos se esforçam para chegar até ela. Minha irmã mais
velha sorri entre as lágrimas, tentando me acalmar.
— Lembra da nossa brincadeira, irmão? — Ela procura manter seu sorriso enquanto suas
mãos se esticam, buscando me tocar.
Meus olhos se fecham, deixando a imagem dela de joelhos à minha frente apagada,
enquanto o homem a segura forte pelos cabelos.
— Cintia... — Choro, chamando por minha irmã.
— Não olhe, Rafagá. Não... — A voz doce dela se cala, deixando apenas o vazio. Mas eu
olho, eu preciso saber que ela está ali.
Mas é um olhar sem vida que enxergo, conforme o corpo dela é solto, com sua garganta
degolada. Ela desaba, caindo em seu próprio sangue, com os olhos ainda presos aos meus. Minha
casa está em chamas, com os corpos do meus pais lá dentro. À medida que a pequena fazenda é
completamente destruída, os policiais à frente riem, no mesmo momento em que um levanta a
calça.
— Ela foi mais homem do que você, moleque! — Ele passa por mim e desfere um chute em
meu rosto, levando-me para a escuridão. Os olhos de Cintia ainda brilham vividamente em minha
memória infantil destruída.
A fumaça do cigarro contorna minha garganta, enquanto a solto lentamente pelo nariz, olhando
para o céu. Minhas costas estão coladas à madeira da casa velha e liberto a tragada da nicotina
lentamente. Nem os gritos da mulher, sendo arrastada para o outro barracão, fazem eu me distrair.
Continuo à espreita. Meus olhos precisam de um segundo para fazerem a rápida varredura. Três
arrastam a mulher para dentro do celeiro; o quarto está com o garoto; e o quinto, gordo e sedentário,
está encostado na varanda.
Meus dedos soltam o colete e jogo-o ao chão, pegando um dos machados encostados à
parede. Minha arma está carregada, sei disso, já que nunca a deixo sem balas.
Sou bom no que faço, e gosto do que faço, principalmente quando os porcos usam fardas. Sou
excelente.
O primeiro, encostado na varanda, nem percebe quando o rápido ataque acontece, apenas o
meu assobio alto o faz se virar. O corpo desaba quando o machado racha sua testa, derrubando-o.
Passo por ele rapidamente, puxando o machado, o que faz vazar sangue do corpo do morto.
Já caminho na direção do outro. Meu braço se curva, como se fosse soltar uma tacada em uma
bola, e deixo o corpo levemente para a lateral. O segundo vai ao chão, levando o menino junto com
ele, caindo sobre seu corpo. O puxo para cima, tirando a faca de caça da cintura e passando por seu
pescoço, soltando o corpo no chão. O garoto, que olha assustado para mim, chora em desespero.
Coloco meu dedo na frente dos meus lábios, sinalizando para ele fazer silêncio, enquanto movo a
cabeça para longe da casa, apontando para a floresta.
— Corra para lá — sussurro.
— Minha mamãe. Tenho que salvar minha mamãe! — O menino chora, observando o celeiro.
— Está tudo bem, rapaz. Você vai fazer o seguinte... — Olho para o celeiro rapidamente,
voltando-me assustado para a sombra que passa correndo.
— Cia, volta aqui! — Jesse tenta puxar o braço dela, mas ela já corre para a casa, que está
queimando. Olho de Jesse para o garoto, e em seguida volto os olhos para o celeiro, onde os gritos
se tornam altos.
— Vá, que eu vou tirar eles daqui — Jesse fala, pegando o menino no colo. Da casa, Cia
corre para fora, trazendo um embrulho em seus braços, enquanto Jesse a puxa, levando-os para a
floresta.
Os vejo correr para longe. Meu corpo se abaixa e puxo o machado, enquanto me movimento
rápido para o celeiro.
Tem uma pequena abertura na porta, por onde vejo tudo se desenrolar.
— Sua cadela maldita! — A voz asquerosa grita enquanto desfere um tapa forte no rosto da
mulher, jogando-a para longe.
Outro já se arruma entre suas pernas, em meio aos gritos dela, que está jogada no chão, como
um animal sujo. Os demais, com suas calças já abaixadas, a apertam contra o chão, enquanto esperam
por sua vez, para se revezarem. Sinto meu corpo se tornar duro como pedra. Aperto mais forte o
machado em meus dedos, e meu pé explode na porta, jogando-a para longe com o chute. Minha arma
se ergue e miro no primeiro homem, que aperta os cabelos da mulher, e disparo contra ele, o levando
ao chão.
— Mas que merda! — O que está entre as pernas da mulher se levanta, tentando pegar a arma
em sua calça arriada.
Não dou dois passos antes do machado acertar o centro das pernas do fardado. O homem
grita enquanto aperto mais o machado para cima, dilacerando-o. O revólver, em minha outra mão,
mira no terceiro, e disparo contra ele, levando-o ao chão, fazendo-o cair sobre a mulher.
Meus olhos ainda ficam vidrados no policial à minha frente, que tem a lâmina do machado
cravada entre suas pernas. Não perco o olhar de agonia do homem enquanto puxo o machado. Afundo
o objeto no meio da perna, dilacerando seu maldito pau.
— Gostou de ser fodido, seu puto? — Cuspo, jogando o homem ao chão. Meus olhos se
viram para o corpo pequenino caído, enquanto ela treme, chorando. Vejo o sangue entre suas pernas
conforme ela se encolhe.
Me abaixo próximo a ela, enquanto guardo o revólver no coldre. Ela grita, se retraindo mais
ainda.
— Por favor, por favor... — Sua mão está sangrando, posso ver o dedo quebrado na mão da
mulher.
— Não vou te machucar, dona. — Paro, com meus olhos colados aos dela. O rosto pequeno e
magro está machucado, com sua boca cortada. Tem também uma sobrancelha ferida, pelos socos
brutos que foram desferidos em sua face.
— Minha bebê... Meu filho... — Ela chora mais ainda, se encolhendo enquanto seu corpo se
vira. Vejo os cortes em sua roupa e os machucados pela pele.
— Me dê sua mão. — A olho, enquanto a mulher pequenina chora mais ainda. — Seus filhos
estão seguros. — Estendo a mão para ela. — Me dê sua mão.
Ela olha para mim com medo, mas em meio ao choro vejo uma coragem escondida, assim
como olhos carinhosos e calmos. Sua mão trêmula, tão pequenina, some entre a minha, suja de
sangue.
— Você estará com eles logo — sussurro e volto o olhar para ela. Quero dizer que irá doer,
mas isso é desnecessário. Conheço essa dor, sei que o que está sentindo vai muito além de um dedo
quebrado.
Olho o dedo retorcido enquanto ela se move.
— Espera. — Seus olhos se prendem aos meus. Olhos de ursa, uma ursa pequenina e
corajosa. Ela limpa o rosto com a outra mão, se sentando. Seu rosto delicado vira uma armadura. Ela
balança a cabeça em sinal de positivo para mim. — Apenas... apenas olhe para mim.
— Não desviarei por nada, dona. — Deixo meus olhos presos aos dela, enquanto minha mão
segura forte os dedos. Com um único puxão, estalo o dedo, endireitando-o e deixando-o reto.
Ela chora, mordendo seus lábios, não desviando os olhos dos meus, e assim o empurro,
colocando-o no lugar. Seu rosto pequenino se contorce de dor enquanto morde os lábios, deixando
um rastro de sangue nos dentes.
— Venha, acabou. — Passo meus grandes braços por seu corpo, pegando-a no colo enquanto
fico de pé e observo os corpos caídos em volta.
Uma mecha de cabelo cai sobre meu rosto, sua face pequena se aninha em meu peito e tenta
esconder seus machucados. É como segurar uma pena, tão pequenina e magra que é a mulher triste em
meu colo.
Olho para fora enquanto a levo para longe daqui. Meus olhos se prendem à casa, onde vejo o
fogo consumir tudo por completo. Sinto as lembranças me tomarem. Posso ouvir os gritos, ver meus
pais caídos, um ao lado do outro... Posso ver a minha irmã, que não pude salvar...
Sinto uma dor nas costas, na lateral. Algo me acerta, fazendo-me cair. Aperto a pequena
mulher em meu colo, para não desabar por completo sobre ela, apenas liberando-a quando sinto os
meus joelhos tocarem o chão completamente.
— Seu puto desgraçado! — Um dos porcos para na porta do celeiro, com um buraco na
barriga, apontando a arma para mim.
Ele está com a mão trêmula e derruba a arma, mas a pega outra vez. O porco esforça-se para
carregar a arma e caminha para mim, no entanto, sangue vaza do próprio corpo dele. O policial cai
no chão.
— Corra para a floresta. — Meus olhos se viram para ela, que olha para mim.
Mas ela não corre. Vejo o corpo se levantar e pegar a minha arma, a retirando do meu coldre
com as mãos pequenas e trêmulas. Ela mira no porco antes que ele atire. Dispara no peito dele e
caminha para ele, disparando uma segunda vez. Em seguida descarrega completamente a arma no
corpo do homem.
Seus olhos se viram para mim quando ela vem em minha direção.
— Rafagá, lembra do que a gente brincava? — Cintia pergunta para mim. Posso vê-la
andando em minha direção. — Vamos brincar, Rafagá.
— Está tudo bem... Eu não vou deixar você. — A voz calma fala para mim enquanto aperta
meu rosto em suas mãos. Vejo o rosto da pequena ursa corajosa. — Eu não vou te deixar.
Meus dedos se erguem e aliso os cabelos, enquanto vejo a minha doce irmã sorrir para mim.
— Não vai morrer, não, homem. Você pode ser grande, mas te carrego daqui. — A voz da
ursa me chama, enquanto prendo os olhos aos seus. Olhos de ursa, a pequena ursa corajosa.
CAPÍTULO 11
Abrigo
Jesse
Meus olhos fitam o pequeno casebre, que está praticamente se desmontando, coberto pela
vegetação da floresta, que o esconde. Estamos seguros aqui, atrás das colinas, com a mata nos
protegendo ao fim do desfiladeiro de pedras.
— Deus, eu nem me lembrava mais de como era esse lugar! — A pequena mulher para ao
meu lado, com o filho no colo, enquanto o bebê dorme calmamente nos braços de Cia, que está
sentada na velha carroça, onde o corpo de Rafagá está apagado. — Pode amarrar a vaca ali!
Ela aponta com a cabeça para os fundos da casa, entre as grandes árvores. Olho dela para a
vaca e ainda não entendo por que, em plena fuga, a mulher voltou para buscar o animal.
Ela solta o menino, que se prende à sua saia.
— Fique aqui, amor. Está tudo bem, só vou abrir a casa. — Seu rosto machucado sorri para a
criança, enquanto ela vai para a frente.
Lembro-me da forma destemida como ela me enfrentou. Logo depois de deixar Cia e as
crianças escondidas, voltei para o quintal e vi meu amigo jogado ao chão.
Ela, assustada, se pôs sobre o corpo de Rafagá, apontando a arma em minha direção.
Abaixei a arma que segurava lentamente.
— Estou com ele. Está tudo bem agora... — Ela ainda me encara desconfiada. — Preciso
chegar até ele. Preciso saber se o meu amigo está ferido...
Seus olhos se abaixam para Rafagá e voltam-se para mim.
— Ele levou um tiro... — Sua voz fala, trêmula. — Ele se feriu para me salvar...
— Temos que sair daqui! Preciso que abaixe a arma para que eu possa me aproximar. —
Ela olha em volta, perdida, e vê sua casa completamente destruída.
— Meus filhos... — fala de forma aflita.
— Eles estão bem. Mas temos que sair daqui. Eles irão voltar. Voltarão com muito mais
homens e muitas armas...
Ela se levanta lentamente, olhando para Rafagá.
— Ele está perdendo muito sangue...
Me aproximo de Rafagá e caio ao seu lado. Minhas mãos rasgam sua camisa e olho para o
tiro que passou pelo seu abdômen. Meus dedos apertam sua barriga, à procura da bala, mas tenho
certeza de que ela atravessou.
— Você vai ficar bem, grandão. Só tenho que descobrir como te carregar daqui...
Vejo a mulher se afastar e voltar para o celeiro. Meus dedos medem a pulsação fraca de
Rafagá.
Meus olhos vão da estrada para Rafagá. Terei que buscar um dos cavalos, assim será mais
fácil de carregar o corpo ferido do meu amigo.
Rasgo a manga da minha camisa, apertando-a contra o ferimento, estancando o sangue.
— Tem que ser forte, grandão — sussurro para meu amigo. O barulho da porta, que é
aberta, mostra a mulher trazendo uma carroça velha, sendo puxada por um cavalo cansado. Ela
para ao lado de Rafagá e encara-me.
— Temos que erguer ele. — Sinto a força de mil homens enquanto ergo Rafagá. Ele se
tornou meu irmão, e o levaria nas costas se fosse preciso.
Depois de deixar o corpo na carroça, pego um pedaço de madeira em chamas e caminho
para o celeiro.
— Espere... — A mulher me observa. — A vaca! — Ela passa por mim, contorcendo seu
rosto em dor, e puxa o animal lá de dentro. Seus olhos ainda ficam presos nos dois corpos caídos
entre os fenos.
— Me dê isso. — Ela se vira para mim, fitando-me com urgência, e seus dedos não tremem
antes de jogar o fogo entre o feno.
As labaredas altas queimam tudo, enquanto nós três saímos de lá, entrando na floresta com
a pequena carroça.
Cia sai do esconderijo assim que chegamos e eu chamo por ela. Observo o menino, que
corre para os braços da mãe, enquanto ela chora e o aperta forte.
— Mi cariño![5] — Os beijos na cabeça da criança se misturam às lágrimas. Ela olha para
Cia, que lhe passa o embrulho, o qual pega com carinho.
— Rafagá... — Cia olha para mim e volta-se para a carroça. Seus dedos tocam a face de
Rafagá e em seguida ela olha de mim para a pequena família.
— Jesse, não podemos deixá-los. — Sua voz sai em súplica e encara-me com desespero.
— Vamos para a colina. Lá vai ter uma caverna para nos escondermos — digo, olhando
para Rafagá. — Preciso achar um lugar seguro antes de a noite cair... Tenho que fazer a limpeza e
a cauterização nesse ferimento do Rafagá, antes que piore...
— Meu pai caçava nessas montanhas. — A voz baixa fala atrás de mim e Cia. — Há um
velho casebre escondido entre as fendas. Ninguém nunca mais foi para lá depois de sua morte. —
Seus olhos se revezam entre a carroça e Rafagá. — Eu não tenho nada, moço, além da minha
gratidão e da dívida com seu amigo e vocês, por salvarem meus filhos e a mim. — Ela balança o
bebê no colo, observando com cara de choro as crianças. — Mas não vou deixar seu amigo morrer
em uma carroça velha. Só preciso chegar até lá...
— Vamos para lá, então. — Meus olhos se voltam para onde a fumaça alta se ergue mais
ainda.
Sei que logo outros virão atrás dos policiais. Temos que estar do outro lado das montanhas
quando eles começarem a nos caçar.
Constância
— Vou fazer uma varredura. — Jesse passa por mim, examinando tudo em volta, com cautela.
Seus olhos param na cama, onde o amigo descansa agora. Sofri com os gritos de dor que Rafagá
soltou. Posso imaginar a dor que o pobre homem sentiu enquanto Malu tentava cauterizar o
machucado.
Vejo o pequeno menino perto do cesto da irmã à medida em que olho tudo em volta. A
primeira coisa que faço é acender o velho fogão, tenho que deixar a casa quente. Logo, com a
noite, virá o vento frio. E, aos poucos, consigo organizar o casebre. Observo os dois que entram e
saem do quarto. Jesse sai da casa, indo até o cavalo de Rafagá e pegando sua garrafa de uísque.
Ele volta, passa por nós e me encara. Logo que arrumo a cozinha encontro uma vassoura velha e
tiro algumas teias de aranha do cômodo. Os sons altos, dos gritos de dor de Rafagá, sacodem a
casa toda. A neném choraminga e a pego no colo, embalando-a.
Nunca tinha ficado com um bebê por tanto tempo em meus braços. Lembro que as meninas
que tinham filhos, logo após o parto eram separadas das crianças, que eram entregues para
freiras ou para alguma família que as compravam. Algumas delas nunca chegaram a ver o rosto
dos seus próprios bebês. Uma das prostitutas mais antigas nos ensinava a tomar chá, a usar as
ervas, para evitar que engravidássemos ou para tirar o feto. Talvez seja por isso que nunca tive
um bebê. Rosa, por sua vez, dizia que eu era seca, como uma árvore velha, e que jamais teria
frutos.
Senti dor no começo por isso, mas talvez a Mãe Natureza tivesse me abençoado por não
trazer ao mundo um anjo que jamais iria poder segurar nos braços.
— Oi, anjinho. — Sorrio para ela, que me observa com seus olhos grandes e curiosos. —
Vamos terminar de deixar esse lugar sem teias de aranha antes de a noite cair.
Ela solta um gritinho enquanto sorrio.
— Venha também, meu anjo. — Ergo meus braços para o menino, que vem amedrontado
para o meu lado. — Vamos deixar esse canto decente para você e sua irmã poderem descansar. —
Ele aperta meus dedos enquanto outro grito de Rafagá sacode a casa toda.
— Ele vai morrer, como o papai? — Meus olhos se prendem aos dele, enquanto me abaixo,
alisando o seu rostinho.
— Não, meu anjo. Rafagá é forte! Ele tem a força de um urso, um ursão! — Abro meus
braços e sorrio para ele. — Venha, vamos terminar de arrumar a casa. Sua mamãe vai querer
descansar um pouco depois, não acha?
Ele sorri para mim. Olho para onde só tem teia de aranha e pó.
CAPÍTULO 12
O clã
Jesse
Depois de vasculhar o perímetro e ter certeza de que ninguém nos achará, vou atrás de algo
para nos alimentar. Um faisão gordo vem a calhar.
Volto para o casebre e vejo-o limpo por dentro. Meus olhos param próximos ao fogão a
lenha, onde Cia sorri, embalando a neném no colo. Seus cabelos estão soltos, caídos sobre o rosto.
Seus olhos, ao se erguerem para mim, sorriem também, iluminando o seu rosto.
Me sinto estranho e me pego perdido olhando para ela, que nunca me pareceu tão linda.
Desejo ver essa imagem para sempre. A noite vai caindo e o céu traz as estrelas. Sinto algo dentro de
mim pedindo por libertação. Ela me olha mais séria, com um sorriso que vai morrendo aos poucos.
— Eu trouxe comida. — Olho para ela e deixo o animal na porta, me virando e saindo daqui.
No alto da colina posso ver toda a montanha. Bem ao longe, vejo algumas luzes que se
movem. A caçada começou. Volto, deixando o máximo de armadilhas que posso por cada perímetro,
dando espaço da casa. Depois de todas prontas, volto à colina para continuar observando a noite.
O vento que passa por mim traz o cheiro de rosas que vem com ele. Não preciso me virar
para saber que ela está aqui.
— A comida está pronta — sussurra, parando ao meu lado.
Me viro e olho para ela, que tem os braços em volta do corpo, se protegendo do frio. Seus
olhos observam o mesmo local ao longe que eu. Sinto o medo que exala do seu corpo.
— Constância. — Ela se vira, me fitando. — Hoje cedo, aquele homem que entrou no carro,
que deu a ordem de deixar os homens fazerem o que quisessem com a mulher... Foi ele quem deixou
essas marcas nos seus braços?
Ela encolhe seus ombros e respira pesadamente. Lembro da primeira vez que coloquei meus
olhos nela, na porta daquele quarto. O homem a puxou para dentro do quarto, tirando-a de mim.
— Era ele, não era? — Seus olhos desviam dos meus, confirmando sem palavras aquilo que
eu já sabia.
Sinto a fera agitada, sinto ela querendo sangue. Devia ter puxado ela para mim naquela noite
que bateu na porta do meu quarto, não devia ter permitido que ele a levasse. Eu devia ter quebrado
aquela maldita porta quando ele a arrastou para dentro, a resgatado e metido uma bala na cabeça
daquele puto.
— Vovó dizia que nossas histórias são escritas nas estrelas, que tudo o que passamos nesta
vida nos leva para um único caminho. — Seus olhos se prendem aos meus. — Naquela noite, me
pergunto como teria sido se tivesse entrado no seu quarto em vez do dele, mercenário. — Ela se
volta para mim. — Talvez não estaríamos juntos salvando aquela pobre mulher e seus filhos... Todo
sofrimento vem acompanhado de uma lição. Nada nessa vida é por acaso, tudo tem uma balança de
prata. — Seus olhos se fecham e solta a respiração devagar.
Meus dedos tocam lentamente sua face. Sinto sua cabeça tombar em meus dedos. Minha
garganta se rasga, como se tivesse sede, desejando-a tão próxima a mim. Deixo a fera solta,
libertando seu desejo. Em resposta, um rosnado escapa da minha garganta. Seus olhos, ao se abrirem,
focam nos meus. Seus dedos pequenos e finos se colam ao meu rosto, enquanto sinto minhas veias
queimarem.
— Há ouro em seus olhos, mercenário... — Ela acaricia morosamente minha face.
Meus dedos deslizam por seus braços e puxo-a para mim, enquanto outro rosnado escapa
entre meus lábios. Ela tomba a cabeça para trás, me deixando sentir o seu cheiro. Meus lábios sentem
a quentura de sua pele como um local sagrado. Beijo-a lentamente enquanto ela suspira. Meus dedos
acariciam sua nuca, enquanto minha mão espalma suas costas, fazendo círculos.
— Cia, olhe para mim. — Deixo minha língua percorrer sua garganta e sinto o seu gosto,
respiro o cheiro doce.
Seus olhos se erguem e se prendem aos meus olhos de demônio, que desejam devorar a
pequena cigana à minha frente. Seu corpo amolece enquanto massageio seus cabelos cacheados. Não
vejo medo, nem um único traço que possa me segurar; nada para me impedir. Apenas o cordeiro
diante do lobo, entregando-se de bom grado.
Rosno mais alto, fazendo o meu peito vibrar. Posso sentir seus seios eretos enquanto ela
prende mais o corpo mole, se colando ao meu. Minha mão desliza entre os cabelos dela, parando ao
lado do rosto, deixando meu dedo contornar sua boca carnuda e avermelhada, como a verdadeira
maçã do pecado. E eu, como já fui amaldiçoado pelo diabo, puxo sua cabeça para mim, devorando o
fruto proibido.
A boca me recebe com acalento, envergonhada, à medida que os dedos trêmulos se prendem à
minha roupa. É uma boca quente e macia. Seu corpo se cola ao meu, conforme esmago mais forte os
seus lábios, ouvindo seus suspiros. Meu peito ruge alto, enquanto minha língua entra entre os lábios
tímidos e acanhados.
Minha língua toca seus cantos escondidos, fazendo-a gemer conforme aprofundo o beijo. A
cada movimento que libero da minha mão, que escorrega entre nós, deixo meus dedos espalmarem
sua bunda, trazendo-a para mim, apertando a pele macia, erguendo a mulher, que envolve suas pernas
na minha cintura.
Minha mão se prende forte às suas costas, enquanto seguro sua cabeça com a outra,
embrenhando seus cabelos. Ela se solta mais intensamente a cada beijo, que nos queima. Seus dedos
circulam o meu pescoço, me abraçando fortemente, com sua cabeça que se move mais livremente em
cada lado, com nossos beijos. Minha mão desce e aperta sua bunda. Seu gemido escapa quando forço
seu quadril, que se esfrega ao meu. Posso senti-la tremer sob mim. Rosno alto, soltando seus lábios,
e minha boca devora cada canto do seu pescoço, lambendo-a, beijando-a. Desço meu rosto e afundo-
o em seus seios. Mordo sua camisa e abaixo um pouco o tecido. Minha boca mordisca sua pele,
lambendo o vale dos seus seios.
— Jesse... — Sua voz sussurrando meu nome é como um tiro reto dentro de mim, me fazendo
desejá-la ainda mais. Seus dedos alisam o meu rosto. Ergo minha cabeça e tomo seus lábios, os quais
ela entrega com alegria.
Sua testa se encosta na minha, nós dois respiramos alto. Posso ver seu sorriso enquanto meus
olhos observam a sua face. Seus dedos tocam lentamente meus lábios, circulando-os com a ponta dos
dedos.
— Temos que entrar — ela sussurra baixinho.
— Temos... — Meus dedos apertam mais sua bunda macia. Esfrego a ponta do meu nariz em
seu pescoço, enquanto ela suspira.
— Jesse. — Sua voz mole fala entre um riso doce para mim, enquanto a solto lentamente no
chão. Seu corpo se move, mas minhas mãos ficam presas às suas, puxando-a de volta. Meus dedos
alisam seu pulso, onde sinto as pequenas linhas finas dos cortes. Minha mão se prende aos seus
cabelos e vejo-a me observar.
— Vou matá-lo, Cia. Terei os ossos dele se quebrando nas minhas mãos antes dessa Lua de
sangue acabar! — Sinto o timbre mais grosso em minha voz, com a fera que rosna junto comigo.
Quero sangue. Sinto o cheiro dele e o caçarei.
Constância
— Você quer mais? — Malu passa o terceiro prato para Jesse. Seus olhos se perdem em volta
da casa, enquanto ela tenta se sentar, fazendo uma cara de dor.
— Por que eles atacaram sua casa, Malu? — Ela me olha triste. Na sequência, seus olhos
passam para o sofá, onde o menino dorme.
— O desgraçado com quem me casei ficou com dívidas. E dívidas enormes! Dois dias atrás,
o quitador das dívidas foi até minha porta — ela fala baixo. — Lucius sempre foi um bosta, só que
nos últimos anos fiquei sabendo que ele estava metido com algo muito ruim. E, no fim, quem pagou
por seus erros foram os filhos.
Olho a pobre neném em meu colo, enquanto mama. É uma mamadeira improvisada, de garrafa
plástica. Passo a manta em volta dela, acalentando-a mais ainda, como se pudesse protegê-la.
— Lucius andava por muitas casas de mulheres da vida. Logo depois da sua morte, fui
chamada a uma delas. — Ela estica as pernas, cruzando os braços. — Qual não foi a minha surpresa
ao ver esse anjo lá! Sua mãe estava morrendo e Lucius era o pai. Ela me fez prometer que eu iria
cuidar da criança. O que eu não sabia, era que além de Lucius, ela tinha outro homem, alguém com
quem se deitava constantemente. Ele sentiu ódio quando soube que o bebê não era dele, então
mandou o quitador atrás de nós. Eu nem tenho ideia de como esse desgraçado nos achou. — Seus
olhos viram para o quarto, onde vejo Rafagá deitado. — Se não fosse por ele, eu estaria enforcada
naquele celeiro. E se não fossem vocês, Lucia e Raul teriam visto a morte dentro daquela casa em
chamas.
Levanto-me e bato lentamente nas costas da neném, para que ela solte um arroto.
— Vocês não podem voltar, Malu — Jesse fala, levando o prato para a pia. Ele para na porta
e acende um cigarro. — Ficar nesse lugar por um tempo será a melhor maneira de manter seus filhos
vivos.
Ela olha para a casa pequena de madeira enquanto ri.
— Minha mãe odiava esse lugar. — Seus olhos se voltam para mim. — Depois que ela
morreu, papai nunca mais veio para cá. Sei que esse lugar é seguro, pois ninguém sobe as montanhas
além dos Dourados.
Sinto o estômago se contorcer ao ouvir esse nome. Os pelos da minha nuca se arrepiam
enquanto sento, com medo das minhas pernas fraquejarem.
— Você os viu? — Jesse conhece o nome do clã. Seus olhos brilham para Malu com
esperança.
— Eles vêm e vão... Há dois anos eles passam por minhas terras, pedindo permissão para
atravessar. O povo da cidade não gosta muito deles — ela fala, se levantando e pegando o bebê do
meu colo. — Venha dormir, sua pequenina. Eles desceram no fim da clareira entre as fendas. O
acampamento deles fica lá. A única vez que vim aqui com o meu pai, foi nove anos atrás. Ele me
mostrou o chefe, um tal de Mascau, um homem de olhos maus. Era o líder... Meu pai chegou a trocar
três sacas de grãos com ele por ouro. O olhar daquele homem me deu pesadelos por dias. Meu pai
disse que ele era o líder do clã, que não precisava sentir medo, mas a verdade é que meu pai era um
homem bem pior do que ele.
— Ele não é nosso líder! — As palavras saem da minha garganta antes que possa segurar. —
Aquele maldito é um tirano que se aproveita do meu povo, que é composto apenas por pessoas boas!
Ele trouxe drogas, brigas e tudo de pior para o nosso povo, que um dia foi alegre na liderança do
meu avô.
— Você é cigana também? — Malu pergunta, me encarando e sorrindo. — Mas você não
parece, não tanto assim...
Meus olhos vão até Jesse, que me observa calado.
CAPÍTULO 13
Eu estava lá
Jesse
Seus olhos estão mortos enquanto ela olha para mim. Saber que Cia é do clã de Boris me faz
sentir algo se quebrar, me esmagar com força.
— Como foi parar naquele lugar, Cia? Por que abandonou seu clã? — Malu olha curiosa para
ela.
— Eu não abandonei o meu clã — a cigana fala, se levantando e parando próxima à janela,
com seus olhos perdidos. A gata pula entre o armário, indo parar perto do seu pé, se esfregando na
dona.
— Eles me venderam! Aquele usurpador de Mascau me vendeu! — Ela fecha os olhos e
suspira com melancolia. — Eu não tenho sangue puro. Meus pais se apaixonaram e minha mãe era
lavradora em uma fazenda. Diziam que era uma negra linda. — Ela sorri, brincando com a pulseira
em seu pulso. — Foi amor à primeira vista. Os dois se amaram e desse amor veio uma mestiça. —
Ela se abaixa para pegar Babalu no colo. — Minha mãe e meu pai morreram quando eu tinha dois
anos. A mulher que trabalhava na fazenda ficou cuidando de mim e conseguiu avisar ao clã do meu
pai através de um grupo retirante de ciganos que passou por lá, e meu avô voltou para me buscar. Ele
cuidou de mim junto da minha avó, Esmeralda. Eu vivia bem entre eles, mesmo sabendo que não era
bem-vista por alguns do clã, como Mascau, que não aceitava meu sangue sujo, dizendo que eu havia
quebrado a linhagem. Mas meus avós não se importavam, pois em minhas veias corre a linhagem
deles.
Ela deixa uma lágrima descer pelos olhos e demonstra tristeza a cada palavra que sai de seus
lábios.
— Houve um ataque em uma das terras em que nós estávamos. Acho que o dono queria se
deitar com uma das nossas mulheres, mas meu avô se negou a deixar que isso acontecesse. Ele disse
que nenhuma delas era puta, mas Mascau queria que fosse permitido. Ele achava que não tinha
problema trocarem as mulheres por favores que beneficiassem o clã. Os dois brigaram naquela noite.
— Ela limpa seu rosto, voltando-se para mim. — Vovó estava doente. Ela não podia aguentar a
viagem até a próxima parada. O dono das terras disse que podíamos ficar por mais uma noite, e era o
que iria ser feito.
Ela olha para a pulseira, que brilha em seu pulso, à medida que sinto o esmagamento me
tomar, enquanto vejo todas as imagens à minha frente, me pegando com as palavras de Cia.
— Eram tantos gritos, tantas mortes e fogo, que corri para a tenda da vovó. Ela estava me
escondendo quando um homem entrou. Ela não falava a língua dele, então não entendia o que ele
gritava em ordens. Ela pedia para ele não nos matar, implorou para não nos machucar.
— Saia! A senhora tem que sair agora! — Destravo a arma, encarando-a. A mulher brava,
grita em castelhano, enquanto ergue suas mãos. Ela faz um movimento com a saia. Ouço o tiro do
lado de fora, que me assusta, e a arma em minha mão dispara sem querer, acertando o peito dela.
— Ela estava tentando pegar sua bolsa de moedas... — Cia olha para fora, escondendo os
olhos em lágrimas. — Ela só queria que ele aceitasse o dinheiro e nos deixasse partir, mas ele não
lhe deu tempo. Apenas atirou a sangue frio.
O rosto da mulher cai sobre mim, enquanto tropeço para fora da barraca, me enchendo de
sangue.
— Eu estava escondida entre os panos de retalhos no fundo da tenda e vi quando ela caiu no
chão, para fora da barraca, em cima dele. Tentei sair, mas meu avô já estava lá. — Ela limpa o rosto,
virando-se para mim. — Ele dizia que ela era a Lua dele e que sem ela nunca estaria completo. Os
dois tinham um amor incondicional.
Posso sentir o cheiro do sangue, posso lembrar do rosto de ódio do homem, que me encarou
com as mãos sujas de sangue da sua mulher, enquanto ele gritava para mim.
— Nosso povo acredita que somos como o Sol e a Lua, e um não pode viver sem o outro.
Quando a Lua se apaga, não tem porque ficar o Sol. Meu avô partiu segundos após minha avó, tirando
a própria vida.
Ela olha para mim, enquanto meu peito explode ao ouvir as palavras daquele velho
martelando em minha cabeça.
— Então Mascau me vendeu uma semana depois, pois assim eu não poderia tomar meu lugar
por direito — ela fala baixo, alisando a pulseira.
— Ele vendeu você para um puteiro? Vendeu uma criança? — Malu olha triste para mim,
balançando a cabeça em desgosto. — Que verme nojento!
— Ele me vendeu porque em minhas veias são as únicas que correm sangue antigo, sangue
forte. É o sangue da minha linhagem, que foi passada dos ancestrais do meu avô para mim. — Cia
respira fundo e fica ereta, arrumando o corpo. — Me vendeu por saber que sou a única Boris viva,
que sou a única e verdadeira líder do clã Dourado. O sangue de meu avô Boris, o poderoso, passou
para meu pai, que passou para mim. E ele sabe que o dia em que eu regressar, todo o clã se voltará
para a única líder de linhagem verdadeira dos primeiros ciganos da Lua.
Fico olhando para ela enquanto sinto minha alma se rasgar. Tinha destruído não só a vida
deles, mas a dela. Cia ser vendida era tão minha culpa quanto do homem que a vendeu. Matar seus
avós e destruir sua única família em nome de dinheiro... Era só mais uma noite de trabalho para o
meu bando, que não se importava se eram mulheres ou crianças. Sou tão cruel como aqueles que já
matei. E eu mereço essa maldição, mereço morrer, pois minha ganância se transformou em minha
sentença. Quando ela souber a verdade, que fui eu quem matei a sua avó, a perderei para sempre.
Como poderei pedir seu perdão?
Como poderei almejar ser perdoado por desgraçar a vida dela?
Saio da casa com meus olhos travados. Estava até há pouco com ela, quente em meus braços.
Agora estou ciente de que todo mal que aconteceu em sua vida foi por culpa minha.
— Jesse. — Seus dedos tocam meu braço, enquanto ela me olha. — Está bravo? — Seus
olhos tristes me fitam com medo. — Eu não contei para você porque não queria me lembrar do
passado, não queria recordar da vida como era antes.
— Cia, se afaste. — Me desvencilho do seu toque, me viro e caminho para longe. Escuto seus
passos atrás de mim, não desistindo de me seguir.
— Jesse, eu nunca quis mentir, eu só queria ser livre. E quando te vi na clareira, quando veio
até mim em forma de lobo, eu senti que teria que voltar para casa. Jesse, por favor, pare de andar. Me
escuta!
Caminho mais rápido, me afastando dela. Preciso me distanciar.
— Jesse, eu não tive medo de você, porque sabia que precisava de ajuda quando vi o que
aconteceu. Porque você foi mordido, mas não tem que ter medo disso. Foi um presente que ele lhe
deu! Ser mordido é um presente!
— Eu não fui mordido, Constância! — Paro, me virando e gritando na direção dela. Estico as
mãos e aperto seus braços, enquanto ela me olha perdida. Meu peito sobe e desce rapidamente, e me
odeio por ver a verdade em seus olhos. — Cia, eu não fui mordido. Não foi um maldito presente!
Quero apertá-la em meus braços. Quero sumir daqui e levar Cia para longe deles, longe de
tudo que possa machucá-la. É isto que a fera quer: levá-la com a gente, tê-la como nossa.
— Você foi amaldiçoado... — sussurra, me observando perdida por um segundo. Seus dedos
se erguem e tocam meu rosto, acariciando-o.
Fecho meus olhos e me deixo morrer com o calor da sua mão que sinto queimar em minha
pele, sabendo que não sou merecedor dos seus carinhos.
— Está tudo bem. A gente procura pelo cigano que fez isso com você, que rogou a maldição.
Se ele for do meu clã, dou um jeito de ele tirar a maldição. Pediremos o seu perdão. O perdão
liberta, Jesse. É assim que vamos quebrar sua maldição, mas não fica bravo comigo. Sinto muito por
ter escondido a verdade de quem eu sou.
Abro os olhos e encaro-a, vendo sua face molhada. Ergo minha mão e limpo as lágrimas em
seus olhos, enquanto ela me olha chorosa.
— Não há perdão para mim, Cia...
— Aquela noite, Jesse, eu senti como se minha vida tivesse ganhado um sentido, como se
tudo estivesse conectado. — Seus olhos estão marejados, derramando lágrimas, enquanto eu aperto
mais forte o seu braço. — Você é meu Sol, Jesse. A fera é meu Sol! Vou conseguir fazer o cigano te
perdoar.
— Não sou nada seu, Cia. Nada! — digo em voz firme e vejo-a se apagar. Quero poder dizer
apenas que sou o filho da puta que destruiu a infância dela.
— Jesse...
— Cia, eu só sou um maldito fodido!
— Jesse, não... — Ela tenta tocar o meu rosto, mas me afasto.
— Cia, eu... — Me perco em sua aflição, vendo as lágrimas de angústia que descem por seu
rosto. Como posso aceitar o que ela me dá, tendo a noção da verdade? — Eu estava...
— Jesse? Cia? — Nos viramos para Malu, que está olhando eufórica para nós. — O grandão
acordou.
Solto seus braços. A pequena cigana me observa perdida. Em seguida se afasta de mim e
limpa o rosto.
Fico em silêncio e vejo as duas partirem. Olho para Constância caminhando para a casa com
os ombros encolhidos.
— Eu estava lá! — sussurro para o vento, querendo ter tido coragem de contar a verdade
para ela.
CAPÍTULO 14
Lábios divididos
Constância
Seguro o riso entre meus lábios e presencio pela terceira vez o bate-boca no quarto.
— Você não pode se levantar! — Malu, com suas mãos na cintura, olha de cara feia para o
homem teimoso na cama.
— Pois fique vendo, mulher! — Rafagá resmunga, zangado, pela terceira vez, tentando se
colocar de pé.
Ele consegue esconder bem a dor em seu rosto, se segurando na raiva que sente.
— Rafagá, talvez seja melhor você ficar se recuperando... — Jesse fala, olhando para ele. —
Preciso ir antes de anoitecer, meu amigo. — Vejo seus olhos e os de Rafagá olharem para Malu, que
balança a pequenina em seus braços. — Seu ferimento ainda está aberto, ainda está sangrando
quando se esforça... — sussurra com tristeza, fitando o amigo.
Rafagá solta uma lufada de ar, se arrumando na cama, entre os travesseiros. Seus olhos se
voltam para mim e depois para Jesse.
— Cia tem que ficar. — Meu riso morre na mesma hora. Desencosto da parede, negando com
a cabeça.
— Vou com Jesse! Meu povo não o deixará nem sequer abrir a boca. — Meus olhos se
apertam e observo-o.
— Como assim seu povo? Que merda não me contaram?! — Rafagá encara Jesse.
Raul passa correndo atrás de Babalu, que pula na cama, se arrumando nas cobertas, junto a
Rafagá.
— Cia é neta de Boris — Jesse fala, observando-me. Vejo seus olhos me fitarem
intensamente, quase como se meu avô fosse uma praga.
— Puta que pariu! — Rafagá grita e soca a cama. O menino pula, assustado, parando próximo
à perna da mãe.
— É melhor maneirar nesse linguajar, homem grande! — Malu o encara. — Está tudo bem,
carinõ. Venha...
— Cadê minha arma, mulher?! — ele grita, vendo-a se afastar. — Se essa mulher me
infernizar, vou atirar nela! — Ele olha com raiva na direção da porta. — Não vou ficar sozinho com
ela! — rosna para Jesse, voltando o olhar para mim.
Os dois ficam em silêncio conforme Rafagá encosta a cabeça no travesseiro. Posso ver seus
olhos se fecharem enquanto o silêncio é pesado entre os dois.
— Que bosta! — Ele abre os olhos e se vira para Jesse. Os dois trocam olhares em silêncio.
— Estou indo. Preciso tentar. — Rafagá olha para ele, balança a cabeça em positivo e,
depois, se volta para mim.
— Cia, eu sinto muito. — Suas palavras, tão tristes, me fazem ficar sem saber o que dizer.
— Você nunca me fez mal, Rafagá. Não tem o que sentir... — Tento sorrir, mas vejo uma dor
mais forte em seu olhar.
— Rafagá! — Jesse dá um passo e se aproxima da cama, enquanto saio do quarto, deixando-
os sozinhos.
Caminho até o fogão, onde Malu brinca com as crianças. Abaixo na altura dos olhos de Raul
e o encaro.
— Poderia me fazer um favor, pequeno homem? — Ele ri, me fitando com os olhos brilhando.
— Sim...
Ergo seus dedos aos meus, enquanto me deixo perder na palma da sua mão. Suas linhas retas
e fortes mostram como será um homem justo.
— Poderia cuidar da Babalu para mim? Eu não posso levá-la. Preciso saber que ela vai estar
segura. — Olho para Malu, que sorri para mim. Ela solta um obrigada baixinho. Raul se apegou à
Babalu.
— Mamãe, posso cuidar dela? — Os olhos se erguem para sua mãe, que balança a cabeça em
positivo.
Ele pula em meus braços, sorrindo para mim.
— Serás um bom homem, pequeno Raul. Um dia serás grande e forte, e trarás orgulho para a
sua mãe... — Beijo sua cabeça e volto a me levantar. — Nos veremos em breve, Malu. — Sorrio
para a pequenina, que sorri de volta para mim. — Você também, sua fofura!
— Você vai voltar, né? — Seus olhos se prendem aos meus enquanto balança a neném. —
Iremos voltar a nos ver?
— Desejo, do fundo do coração, que sim — digo, olhando para ela, que se sente perdida. Me
assusto assim que sinto seus braços me circularem, apertando entre nós duas Lucia.
Me sinto estranha. Nunca fui abraçada por uma amiga. Na verdade, Beca foi o mais próximo
que já tive de uma amizade. Deixo meus braços serem apertados por ela e depois a abraço,
devolvendo todo o seu carinho.
— Nunca esquecerei o que fez pelos meus filhos, Constância — ela sussurra em meu ouvido.
Sinto seu beijo em meu rosto enquanto nos afastamos.
— Não saia daqui, Malu — Jesse fala sério ao sair do quarto e solta um rifle em cima da
mesa. Ele retira as balas e as deixa ao seu lado. — Antes do Sol nascer, eu saí para caçar. Tem um
porco selvagem abatido atrás da casa. Isso garantirá comida para vocês por alguns dias. Se seguir ao
norte, tem um rio. Lá tem peixe...
— Não se preocupe, homem. Vamos ficar bem! Não vou deixar aquele gigante morrer de
fome. — Ela ri, balançando a cabeça para os lados. — Sou grata, Jesse. Muito obrigada por tudo.
Jamais poderei agradecer.
— Você pode me agradecer se protegendo aqui, está bem? Se mantendo segura junto dos seus
filhos. — Seus olhos se voltam para mim, enquanto ele me olha sério. — Vamos!
Saímos antes do Sol da manhã estar alto. Ainda sobre a névoa do amanhecer, vamos nos
perdendo na clareira, enquanto apenas se ouve o silêncio ao nosso redor.
— Ainda está bravo? — pergunto para ele, que fica em silêncio, sem me responder. Não
entendo por que estou sendo castigada.
— Caminhe, Constância — fala rouco, continuando a andar.
— Jesse, Jesse... — Quero que ele me olhe. Me sinto uma idiota desde a noite passada,
quando praticamente me declarei para ele. Ele apenas me negou, me enxotando como se eu não fosse
nada. — Não sou boa o bastante para você, mercenário, por que tenho sangue cigano nas veias? —
pergunto com raiva, estacando no lugar.
Ele para no alto do desfiladeiro, virando-se lentamente para mim. Sinto raiva, sinto o mundo
sempre me negando o que quero, como se minha vida fosse ser apenas um objeto. Nada mais, nada
menos do que nada aos olhos dos outros. Meus olhos se prendem ao céu azul sobre nossas cabeças e
em seguida volto o olhar para ele.
— Quando me beijou não sentiu nojo de mim. — Meus punhos se apertam em volta do meu
corpo. — Como puta pode me desejar, mas não com o sangue dos meus ancestrais? A partir desse
momento já não sirvo para você.
Sua respiração alta se faz, enquanto os olhos se apertam. Quando os abre, vejo o tom do
castanho dos seus olhos mudar, quase chegando a ser negro.
— Caminhe, Constância — rosna enquanto aperta o punho, virando-se, continuando a andar.
Ele simplesmente aperta o passo, andando à minha frente. É como se eu nem estivesse aqui.
Fica em silêncio absoluto, me castigando por algo que não tenho poder. Não pedi para nascer entre
duas raças, não posso me culpar por carregar sangue cigano em minhas veias. Não podemos escolher
de onde viremos, a qual família iremos pertencer.
— Fique aqui. — Ele para, deixando a bolsa ao chão.
Observo ele se afastar, sem nem sequer olhar para mim. Caminha em meio às pedras, sumindo
entre elas.
— Filho da puta! — sussurro brava, me sentando no chão.
Olho para as pedras onde ele sumiu e volto meus olhos para minha pulseira, enquanto a aliso.
Não irei sentir vergonha da minha origem, já me deixei apagada por tempo demais.
Meus dedos vão aos meus cabelos e solto lentamente a trança. Sinto meus cabelos se
afrouxarem e olho em volta, puxando a mochila para mim. Arranco as botas maiores do meu pé,
enquanto tiro as roupas de menino, colocando o vestido que eu trouxe.
Depois de um tempo sem sua volta, pego a mochila e me levanto, indo por onde seus passos
se perderam, no meio das pedras. Com trilhas curtas, meu corpo se espreme entre os grandes
granitos. Vejo ao longe, entre as pedras, como se fosse um pequeno oásis, o lago que se funde com as
pedras ao seu fim. Olho para tudo, procurando por ele, mas nem um sinal. É quase impossível ver
tudo ao fundo, mesmo assim vou, me apertando até conseguir chegar lá.
E qual não é a minha surpresa ao terminar o percurso e ver a pequena cachoeira que cai entre
as pedras, desabando no lago. O céu é tão azul e os pássaros sobrevoam o local, piando alto. Meus
olhos não observam mais a beleza rústica desse lugar, e sim a forma masculina que imerge das
profundezas do lago, os braços fortes junto às costas largas com tantas cicatrizes, seus cabelos
molhados que deslizam por sua face.
Deixo meus dedos soltarem lentamente o laço do vestido, o retirando do meu corpo. Meus
pés sentem a água que me toma, conforme meu corpo quente se afunda.
Jesse
Preciso apenas de alguns minutos longe dela. Posso sentir o cheiro dela aumentar a cada
caminhada do dia. Está se tornando quase insuportável. Algo que adquiri com a maldição foi o olfato
aguçado. O cheiro do cio de Constância é como uma campina de rosas vermelhas, é um maldito tiro
dentro da minha cabeça. Ainda sinto seus lábios quentes, com seu gosto em minha boca, que lateja
por mais. Apenas preciso chegar até esse acampamento e deixá-la. Cia não entende que minhas
prioridades mudaram. Tenho noção que minha maldição não será quebrada, não quando foi
diretamente a ela que afetou. Eu mereço esse castigo. Agora só tenho uma única coisa a fazer: pagar a
dívida que tenho.
Levarei Cia para seu clã, me certificarei que ela tomará seu lugar por direito, que pelo menos
um pouco da sua vida volte, e garantirei também que o homem que a vendeu pague caro. Sei que fui
culpado pela morte dos seus avós, mas sei que o homem também tem culpa e me certificarei que ele
irá pagar caro.
Não terá volta para mim, sei disso. Sei que assim que a Lua cheia se erguer, a última, a
grande Lua de sangue, estarei condenado. Mas irei remediar meus feitos antes da maldição se tornar
completa.
— Você não vai voltar? — Meu amigo me encara, sério.
— Preciso que fique, Rafagá. — Olho entre a porta para as duas mulheres ao longe, que
estão conversando. — Me certificarei que aquele verme do Mascau nunca volte a fazer mal à Cia.
— Me volto para Rafagá. — Mas preciso que fique para proteger aqui, para cuidar dessa família
e ter certeza de que aqueles homens não subam esta montanha.
— Quantos? — Rafagá solta o ar, voltando-se para a porta e observando as mulheres.
— São doze homens, pelo que pude contar.
Passei a madrugada fora, fazendo a ronda completa, e vi os policiais ao longe. Posso
sentir os cheiros deles, sei que as armadilhas irão segurá-los por alguns dias, dando tempo para a
recuperação de Rafagá. Meu amigo de longa data é forte e irá se recuperar rápido. Sei que é o
único em quem posso confiar. A caçada foi rápida, antes do amanhecer já havia garantido os
alimentos deles, antes dos homens subirem a montanha. Não precisa ser um gênio para saber que
foi para cá que ela fugiu, e, estando aqui, será questão de tempo até o quitador achar Cia.
— Eu encontrei a caverna de um urso a 35 metros daqui, o animal está morto — sussurro
para ele. — Mas deixei rastro de sangue e os restos da roupa rasgada de Malu na entrada da
caverna. Os policiais não devem querer entrar, talvez isso possa despistar eles por um tempo.
— Ninguém chegará aqui — Rafagá, com sua voz mortal, fala baixo.
— Eu sei — sussurro, olhando para meu amigo. — Foi uma honra trilhar meu caminho ao
seu lado, meu amigo!
Rafagá ergue os braços, enquanto apertamos as mãos, com um olhar calado.
— A honra foi minha, Americano!
— Jesse... — A voz baixa, com os dedos tocando minha pele, me faz virar nas águas para ela.
Cia, com seu corpo nu, os cabelos como cascatas, me observa com seus olhos negros, fitando-me em
silêncio. Me odeio por desejar tanto algo que jamais poderei ter. O cheiro de rosas inflama minhas
narinas como gasolina, enquanto ela se aproxima lentamente, com as águas batendo em seus seios.
Observo os seios eretos até que se colam ao meu peitoral, enquanto ela me toca timidamente,
erguendo seus dedos até meu rosto.
Por Deus, se ela tivesse a noção de como me seguro para não a tomar à força, dentro desse
lugar, não me torturaria tanto assim.
— Eu nunca estava lá — fala baixo. — Nunca estive presente em nenhuma das vezes que um
homem me tocou, Jesse. — Vejo a dor em seus olhos, enquanto ela se segura a mim. — Apenas um
corpo vazio, sem alma. Não tenho o que lhe oferecer que já não tenham me tirado, mas minha alma
esteve ontem em meu corpo, quando você me beijou, e foi como se estivesse viva pela primeira vez.
Meus dedos, não resistindo mais, tocam em sua cintura, trazendo-a para mim entre a água.
— Cia. — Minha voz sai rouca, não consigo mais me segurar, estou no meu limite. — Não
podemos. Me odiará antes desse dia acabar e iria se odiar mais ainda por me aceitar junto a você.
— Por enquanto o dia não acabou, mercenário. Me deixe decidir o que sentirei ao fim. Mas,
por ora, apenas por agora, serei sua. — Meus olhos fitam seus lábios vermelhos e carnudos, que
imploram por mim.
Então me rendo, me deixo cair nesse desejo doentio que sinto por ela, apertando mais sua
pele, erguendo meus dedos em suas costas, enquanto minha boca toma seus lábios para mim. Sinto
sua respiração se acelerar, enquanto nossos corpos se colam e seus braços se apertam ao redor do
meu pescoço. Beijo-a com desejo, com loucura, sentindo a forma doce com que ela se entrega a mim.
Meus braços se apertam, rodeando sua cintura. Levo-nos para a margem e deposito seu corpo sobre
uma pedra. Deixo-me observar seu corpo nu, molhado, esticado, brilhando ao Sol, tão belo com seus
seios redondos e pernas grossas, enquanto ela se abre para mim.
— Jesse — sussurra em meio ao desejo. Pego uma de suas pernas e a beijo, pedaço por
pedaço, gemendo baixinho.
Quando minha boca para em sua virilha, seus dedos presos em meus cabelos se emaranham a
cada beijo que solto em seu monte sedoso. Posso sentir seus pelos macios que raspam em meu rosto,
enquanto a beijo, tendo-a quente e molhada em minha boca.
— Oh, Jesse! — Deixo meu dedo entrar nela, enquanto ela se contorce.
— Abra os olhos para mim, cigana. — Meu peito, que bate acelerado, deixa minha voz rouca
ordenar para ela. — Quero que esteja aqui, Cia. Somos só eu e você.
Seus olhos negros se abrem para mim e mostram a luxúria brilhando de paixão. Meu corpo
sobe pelo seu, suas mãos deslizam sobre meu peito, traçando-o calmamente, deslizando e parando
sobre meu pau, que ela circula lentamente, deixando-o latejar em suas mãos. Minha boca suga seus
seios, mordiscando os bicos eretos e molhados. Sugo como se fosse um animal com fome, mamando
mais e mais, me revezando entre eles, ouvindo seus gemidos. Ela aperta meu pau, subindo e
descendo, em um vai e vem abaixo do meu quadril, deixando-o raspar em seu ventre. Sua mão o leva
para perto da sua boceta, brincando com o clitóris, passando-o lentamente em sua entrada, me
fazendo sentir meu sangue circular mais rápido.
Uma de suas mãos sobe, se prendendo em meu cabelo. Solto seus seios, subindo minha boca
por sua pele, mordendo seu pescoço, sentindo o gosto dela, prendendo seus lábios e beijando-os com
loucura. Puxo seu corpo para cima, junto ao meu, e me sento em uma pedra, enquanto a deixo
montada em mim. Não irei deixá-la por baixo, como apenas um corpo vazio. Suas pernas se
esparramam sobre nós e prendo suas costas, segurando meu pau com a outra mão.
Meus olhos focam nos seus, conforme ela brilha ao Sol, com seus cabelos caindo sobre os
ombros. Suas mãos se colam em meu rosto à medida que Cia me beija, abaixando seu corpo
lentamente. Meu pau sente seus lábios molhados me receberem, na mesma proporção que ela me
beija mais ainda e seu corpo vai engolindo-o, recebendo-o em sua boceta quente e molhada, ao passo
que ela solta seu quadril, gemendo entre minha boca.
— Oh! — Sua testa se cola à minha conforme sentimos um ao outro.
Levanto seu rosto e faço seus olhos me focarem. Minhas mãos descem até seu quadril,
passando por baixo de suas pernas, apertando sua pele ao mesmo tempo que a elevo lentamente, para
logo após abaixá-la outra vez. Suas unhas se prendem em meu ombro à medida que nos torturo em um
vai e vem, com meu pau a fodendo. Ela solta seu quadril e começa a cavalgar em mim mais rápido e
mais forte, com nossos olhos presos um ao outro. Sua cabeça tomba e a deixo comandar o ritmo.
Rebola, sobe e desce, me tomando mais e mais, se apertando a mim, tão quente, tão molhada. Gemo e
minhas mãos puxam suas costas no mesmo momento em que a trago para mim, colando seu peito ao
meu, beijando-a com mais loucura, me segurando para não soltar todo o desejo que quero, toda forma
que quero me fundir a ela.
Seguro seu quadril e aperto forte suas costas, enquanto puxo meu corpo e nos arrasto para a
água quando a deixo livre, fodendo em meu pau.
Assim que volto seu corpo para a beira do lago, afasto seu corpo do meu, deixando-a na
margem. Ela me olha, perdida, enquanto viro seu corpo, apertando seus cabelos em meus dedos,
puxando com força.
— Minha vez, cigana — sussurro em seu ouvido, mordendo sua orelha. Beijo suas costas e
aperto meu pau nos dedos, levando-o para dentro dela. Seus joelhos tombados na lama sentem o
baque quando solto a primeira estocada, fodendo-a forte. Seus cabelos estão em uma das minhas
mãos, enquanto a outra aperta sua bunda. A fodo forte e duro, e sinto a selvageria me tomar, como se
a fera precisasse se soltar.
— Jesse... Jesse... — Suas mãos tentam se segurar nas pedras. A água bate em meu quadril e
as ondas aumentam, ao mesmo tempo que meu pau sai e entra, nos levando para mais e mais perto do
abismo. Minha mão solta a cascata negra e deslizo meus dedos para baixo, pelo corpo dela. Aperto
seus seios em minhas mãos, enquanto ela grita e geme libertamente.
Minha outra mão, que estava em sua bunda, sobe até sua cintura e desliza pela lateral, até
chegar em sua vagina. Circulo seu clitóris, enquanto meu pau sai e entra em baques fortes na sua
boceta quente, que vai se apertando.
— Venha, Cia! Venha para mim... — Seu corpo explode a cada estocada e tremo forte,
sentindo seu jato quente que escorre em meu pau.
— Oh, Deus! — Ela curva o corpo, baixando a cabeça.
Meus dedos vão em sua cintura e apertam sua pele, e fodo-a duas vezes mais. Sinto a fera
rugir, sinto a forma como quero tomá-la por horas, deixando-a apenas para mim. Com baques fortes,
martelando mais forte, sinto ela vir a mim outra vez. Rosno alto, a voz animalesca ruge, enquanto
quero apenas me afundar mais e mais dentro dela, libertando a fera por completo.
Ergo Cia em meus braços, com suas costas coladas em meu peito, e meto com mais força
dentro dela, que geme, soltando todo seu orgasmo em mim. Encaixo-me até me sentir fundo dentro
dela. Minha boca beija seu pescoço e deixo vir toda a libertação, penetrando-a uma última vez e
explodindo em jatos dentro dela. Rosno à medida que chupo seu pescoço e a sinto tão minha quanto
jamais será de outro homem.
Sinto minhas pernas tremerem enquanto a levo, lentamente, para a pedra. Saio de dentro dela,
com meu pau ainda duro, e a deito devagar, ao mesmo tempo que vejo o sorriso em seus lábios. Meu
corpo se recosta ao seu, trazendo-a para mim conforme a beijo. Deixo meus dedos circularem cada
parte do seu corpo negro, e no mesmo momento ela treme e geme baixinho, ainda em espasmos. Todo
seu corpo se arrepia à medida que olho seu rosto delicado.
— O que foi isso? — Ela abre os olhos lentamente para mim. Meus dedos deslizam por sua
pele e vejo seu rosto se contorcer quando introduzo os dedos em sua boceta. Está quente e inchada.
Por dentro é macia e molhada. — Jesse... — Ela morde os lábios.
Desejo caçar cada maldito homem que pôs os olhos nela, que lhe tocou. Sinto a posse por ela
me tomar. Sei que, por sua reação, Cia nunca foi verdadeiramente tocada, nunca foi mais do que um
objeto.
Puxo seu corpo para mim. Ergo sua perna, que repousa com nossos corpos de lado, trazendo-
a para a minha perna, abrindo espaço para o meu quadril, que se aconchega a ela.
Meu corpo ainda sente fraqueza quando termino de pôr meu vestido. Sinto o beijo calmo em
meu ombro.
— Deixa que lhe ajudo — sussurra em meu ouvido. Jesse termina de arrumar o tecido,
deixando seus dedos deslizarem por meus ombros, até roçarem em meu seio que, mesmo dolorido,
responde a ele. Um gemido escapa dos meus lábios enquanto sinto seu peito vibrar atrás de mim, com
sua risada.
— Temos que ir, cigana. Por mais tentador que seja lhe tomar de novo — ele me vira, me
fazendo ficar de frente para ele —, não quero te machucar...
Ainda estou perplexa pela forma como meu corpo respondeu tão vívido e tão apaixonado ao
meu mercenário. Sinto seus lábios tocarem os meus lentamente. Na sequência, ele se afasta, pega a
bolsa e volta a me olhar. Subimos pelas pedras, voltando nossa caminhada entre a trilha. Quando
chegamos ao fim do desfiladeiro, o Sol alto já nos castiga.
— Cia... — Jesse fala sério, se virando para mim. Vejo seus olhos se apertarem conforme
caminho para perto dele. — Se abaixa. — Ele me puxa, nos escondendo entre as pedras.
— O que foi? Você os encontrou? — Vejo seus olhos se voltarem para a frente e lhe
acompanho.
Meu coração chora em silêncio. Ao fim, entre os pedregulhos, vejo meu povo com seu rosto
sofrido. Alguns estão saindo da mina, e observo a fome em seus olhos, a tristeza. Estão carregando
sacos e mais sacos de carvão, enquanto alguns homens os chicoteiam. Vejo as mulheres com seus
olhos de desespero, as crianças chorando, e sinto as lágrimas caírem de meus olhos e escorrerem por
minha face.
Meu rosto congela ao longe, ao ver Mascau parado na outra entrada da mina, observando tudo
com ódio e nojo.
— Filho de uma cadela! — rosno com raiva. — Jesse, meu povo! Olha no que ele
transformou o meu povo!
Viro-me para Jesse, que está parado de pé ao meu lado, com sua arma apontada para frente.
Ao me levantar, me viro e olho para uma mulher de idade, que segura um cesto e nos observa.
— Eu conheço esses olhos, criança! — ela fala, se aproximando de mim, com seus olhos se
enchendo de lágrimas conforme sua pele flácida da idade se alegra. Seu rosto se vira para Jesse e se
fecha em ódio. — Assim como conheço o seu, assassino!
CAPÍTULO 15
Sorriso cruel
Constância
Sinto as unhas perfurarem minha pele enquanto esmago os dedos. As lágrimas quentes descem
pelos meus olhos e queimam como fogo. Fito cada dor desse lugar, cada crueldade da humanidade,
vendo meu povo ao longe, como um formigueiro sedento pela sua própria salvação.
A grande mina ao fundo do desfiladeiro me dá a visão privilegiada da crueldade dos homens
que escravizam os da sua própria linhagem, não ligando para a idade ou sexo, apenas se importando
com o que eles ganharão com isso.
Posso me recordar de quando era a menina dos vales verdes, que corria pelo riacho, do vento
que brincava com meus cabelos. Mas esse lugar morreu muitos anos atrás, junto com meus avós, pois
nem a sombra dele se pode ver. Existe apenas a escuridão, uma escuridão de fome, desgraça, dor e
miséria.
Homens armados andam entre eles, chicoteando-os, enquanto os gritos agonizantes podem ser
ouvidos de longe.
Sinto o cheiro dos suores, dos sangues, misturados à lama dos barrancos, enquanto eles
sobem com mais e mais sacos. Suas pernas estão definhadas, seus ossos cansados e frágeis não
lembram em nada o povo cigano de sangue forte, com suas cores e vidas alegres de outrora.
Meus olhos param no homem ao longe, com sua barba grande e seus cabelos nos ombros. O
velho de olhos mortos observa todos à sua volta, com seu charuto nos lábios. Não preciso nem estar
ao seu lado para meu cérebro reconhecer o tabaco doce que destrói tudo onde a fumaça toca. Posso
lembrar dos olhos mortos que me jogaram naquele pardieiro sujo, enquanto saiu rindo e contando seu
dinheiro.
Viro-me para Jesse, que está parado, me observando com seus olhos marrons. Ele me fita
como se pudesse ler a dor em minha alma.
— Eu tenho até a Lua cheia dessa noite, antes da maldição se completar. — Ele retira sua
arma do coldre e observa sua Colt em silêncio. — Apenas peça.
Olho para a carroça ao fundo, onde Rosalinda está encostada, nos olhando, segurando suas
pedras nas mãos. Meus olhos param nela antes de se voltarem para ele. Caminho lentamente, parando
ao seu lado. Sei que a Lua cheia se erguerá esta noite, terei pouco tempo antes dela subir ao céu,
chamando pela fera. Meus dedos param em seu peito e sinto seu forte coração bater.
— Eu só preciso de fogo! — Meus olhos se prendem aos seus, ficando tão escuros como a
terra em nossos pés. — Irei ver Mascau queimar na maior fogueira que meu clã já viu — sussurro
lentamente, erguendo meus dedos perto da minha garganta e sentindo a pulseira da minha avó em
minha pele. Meus olhos, cheios de ódio, observam os botões escuros de sua camisa.
Sinto o leve toque em meu queixo no momento em que ele o ergue lentamente, até me prender
em seus olhos marrons. Sinto seu coração bater mais rápido e o cheiro do seu corpo entrar em meus
pulmões, e isso é tudo o que me segura para não cair na dor.
— Terá o que deseja, minha doce cigana.
Suas mãos me puxam para ele, rodeando meu corpo, enquanto sinto a tempestade dentro de
mim, mas me seguro a ele, para a dor não me tomar de vez.
Rosalinda
Vejo o que meus olhos já observaram há muitas luas, entre os campos, em meio às chamas que
queimam à minha frente. Me recordo, mesmo eu sendo menina na época, dos olhos perdidos da minha
irmã no grande homem que entrou no clã. Não demorou muito para Esmeralda cair de amores pelo
poderoso Boris, fugindo e indo viver sua vida junto a dele e de seu clã, levando de recordação
apenas eu, sua irmã caçula, que estava sempre em seu encalço. Presenciei os mesmos olhos
apaixonados de minha irmã, os mesmos olhos escuros que brilham agora em sua neta. Me lembro dos
olhos do assassino, como não poderia, se eu estava ao longe quando vi a arma disparar e matar
minha irmã? Quando vi nos olhos dele o pavor de ter o sangue da mulher em suas mãos? Olho a
brincadeira de mau gosto à minha frente, feita pelo destino, onde o lobo se apaixonou pelo seu
cordeiro. Sinto a força selvagem que está presa dentro dele, a mesma que Boris escondia dentro de
si, a mesma que caiu de joelhos, se rendendo por Esmeralda, e que agora se ajoelha para Constância.
A fera está domada pela cigana.
Olho as pedras turmalinas em meus dedos enrugados e sorrio tristemente com esse destino.
— Acho que nem em suas cartas você um dia pôde ver isso, não é, minha irmã? — Cansada,
me sento no tronco perto de minha carroça, sussurrando solitária ao vento. Sinto meus joelhos velhos
estalarem.
Há quantas e quantas luas chorei pelo sumiço da pobre criança, que jurava estar morta,
deixando todos sem rumo, sem esperança, com o clã sem ser liderado pelo verdadeiro sangue antigo?
— Por que ele faz isso? — A voz de dor de Cia fala baixinho, se voltando para mim. — Por
que a expulsou do clã, te largando sozinha à própria sorte?
— Ele não iria ganhar nada me matando, mas não queria olhar para o que ele fez todos os
dias — respondo para ela. — Mascau precisava acabar com qualquer lembrança de seus avós,
principalmente as dele. No fim, eu sempre soube que aquela noite não foi apenas por ordem daquele
senhor da fazenda, mas sim pela inveja, pela ganância de Mascau, que desejava o poder do seu avô,
desejava a vida de líder, porém ele nunca iria liderar. Quando Boris disse que seria você a tomar o
lugar dele, aquilo foi demais para o coração podre e ganancioso de Mascau. Então, logo depois da
morte dos seus avós, ele voltou dizendo que você tinha caído no rio e sido arrastada para as
profundezas. Como ele era o braço direito de seu avô, foi lhe dado o direito de ser líder pelos mais
velhos do clã. — Olho para o céu cinza, que nunca mais brilhou para nós. — Não demorou para ele
ir desmatando tudo, querendo arrancar até a última preciosidade da terra, matando a todos que iam
contra suas ordens, vendendo as mulheres como putas, matando nossos filhos de fome, nos fazendo
trabalhar mais e mais, até ele conseguir o que queria. Mas nada nunca tapa seu coração negro e sua
ambição.
— Rosalinda, quantos homens armados têm lá? — Vejo os passos de Constância se
aproximarem, junto ao assassino.
Me pergunto silenciosamente se a pequena criança sabe a verdade sobre esse homem, mas
pelos seus olhos brilhosos de paixão, tenho minha resposta, da mesma forma que vejo a mentira nos
dele.
— Acho que apenas cinco homens têm arma, os outros têm apenas o chicote ou mais força
que os outros, que estão cansados, com fome.
Meus olhos se prendem aos da menina, que trazem a mesma coragem que seu avô tinha. Tão
pequenina, mas que traz a força de Boris, o poderoso, dentro dela.
— Ainda tem muitos que são fiéis ao sangue dos antigos, como o seu, Cia. — Deixo meus
dedos tocarem a pele da menina, que se abaixa, ficando próxima a mim, entre minhas pernas. —
Muitos deles lutariam se soubessem que a verdadeira líder deles, sangue do sangue de Boris,
regressou. — Sinto as lágrimas escorrerem por meus olhos, sendo divididas entre a tristeza, a
esperança e a felicidade. — Achamos que toda a linhagem tinha sumido junto com você, quando seu
corpo desapareceu no rio. Eu rezei por sua alma, minha doce criança.
— Eu nunca os deixei, um dia sequer. Nunca houve um dia em minha vida que não desejei
voltar para casa, tia... — Sinto as lágrimas quentes da menina, que aperta meus dedos e beija minha
mão, despejando todo seu carinho. — Senti falta do vovô e da vovó a cada passo que dei em minha
vida.
Ergo meus olhos para a grande sentinela parada atrás dela, como se fosse seu cão de guarda.
Meus olhos se prendem com os dele, que me encara em silêncio. Seguro os dedos da pequena menina
nas mãos, enquanto os esfrego com brandura.
— Você achou seu caminho, meu amor. Você... — Me calo, deixando meus olhos se perderem
na palma da mão da menina, vendo os traços dolorosos de seu caminho. Dois rios grandes e fortes
divididos, que, ao fim, se cruzam como um só. Riscos como pequenos X, em cada canto, marcam a
dor que foi lhe imposta e, ao fim, quase próximo aos dedos, as grandes linhas voltam a se cruzarem,
caminhando juntas como uma só.
— Você sabe que o caminho está certo — ergo meus olhos para o homem grande parado perto
de Cia, que tem seus olhos presos à menina — quando toda trilha percorrida lá atrás lhe trouxe
exatamente até onde você deveria estar. Duas linhas não se cruzam apenas por se cruzarem nessa
vida, Cia.
— Vovô dizia isso. — Ela sorri baixinho, levando seus cabelos para trás da orelha.
— E acho que seu avô nunca imaginaria que estaria tão certo, pequenina. — Me calo e volto-
me para Jesse. — Já descobriu a resposta que procura, homem lobo?
Jesse
Tenho uma forte dor na cabeça ao voltar a abrir os olhos, e sinto o cheiro intenso de sangue,
meu sangue. Tento me levantar quando percebo o aço em minhas mãos.
— Eu lembro de você, matador. — Uma voz fala por trás das grades que me prendem em uma
armadilha. O velho que me observa fuma um charuto e solta lentamente a fumaça, me encarando.
— Filho da puta! — grito com raiva, indo para cima dele, mas as correntes me apertam,
prendendo-me no lugar.
— Oh, eu me lembro sim! — o velho grita, rindo, enquanto sua barriga flácida balança. Meus
olhos observam atentamente o corpo asqueroso à minha frente e o velho fecha o semblante. —
Ninguém invade meu clã, está preso comigo. Irá se arrepender de ter matado meus homens antes da
noite terminar, meu caro.
Meus olhos se erguem para a escuridão, que vai tomando os céus. Meu corpo se escora na
parede, no momento em que uma risada explode na minha garganta, fazendo-me rir de como tudo
terminará.
— Do que está rindo? — O velho me observa com raiva. — Irei tirar esse seu sorriso da
forma mais cruel. — Sinto ódio pelo homem, tenho desejo de sangue, e irei fazê-lo pagar e implorar
por sua alma para Deus.
Termino minha risada e olho em volta. Noto poucos homens realmente armados, os outros
escravizados já estão fora das minas, apenas eles estão ao meu redor. Dou uma gargalhada mais alta
que a anterior.
— Realmente, meu velho. Irá tirar meu sorriso da forma mais cruel e dolorosa. Isso eu lhe
garanto. — Sorrio paulatinamente, soltando um rosnado animalesco enquanto meus olhos se prendem
ao céu negro, onde as nuvens se abrem, deixando a grande bola branca ir tomando o céu com sua
grande magnitude.
CAPÍTULO 16
O presente da Lua
A maldição dos Boris
Quando a Lua presenteou o primeiro dos ciganos com seu filhote lobo, nada parecia mais
real. O devorador de homens, forte e cruel em suas quatro patas, gostava do sangue, gostava da morte
em suas entranhas. Mas a fera caiu diante de tal desordem e massacre quando seus olhos se focaram
no pequeno ser puro e belo à sua frente, mesmo não tendo culpa pelo que seus ancestrais fizeram,
mesmo assim ele sentiu prazer em devorar a alma limpa. A Lua chorou pelo presente usado de forma
horrível, revogando assim, do primeiro homem, a criatura que lhe foi dada. Um da sua própria
espécie foi condenado a vagar em seu lugar, obrigado a passar e repassar em sua linhagem o sangue
animal que lhe corria nas veias. No entanto, por amar demais sua criação, a Lua lhe concedeu um
presente, ficando determinado pela Lua que quando ela lhe chamasse, ele poderia voltar a liberar seu
animal, o sentenciando a correr em quatro patas pela eternidade. Mas aquele que encontrar sua Lua
na Terra, sua alma gêmea, ficará posto em seus pés, meio besta, meio homem, andando entre os dois
mundos.
E por geração após geração, a linhagem dos Boris foi condenada à antiga maldição, se
revogando por eras entre todos os homens. Mas quando sua primeira linhagem de origem feminina
veio, a maldição pulou. O último dos homens, ao ver sua Lua morrer, sabia que sua neta estaria
perdida no mundo, junto com o ciclo da Lua. E ao homem que lhe tirou sua Lua da Terra, a maldição
jogada foi a mais clara de todas, uma maldição de sangue, que condenou o assassino a um dia vir a
ser o protetor.
Constância
Vejo o rosto de cada mulher que sai de trás das árvores. Seus olhos são sofridos, cansados,
de quem já tinha ido ao fim de suas batalhas e que daria de bom grado um sorriso para a morte,
preferindo-a do que continuar a sobreviver. Não se parece em nada com seu povo, não tem vida, não
tem alegria, não tem cores, apenas dor, apenas a morte. Meus olhos ainda fitam o desfiladeiro quando
os disparos surgem alto. A agonia em meu coração aperta meu ser, enquanto sinto as primeiras
lágrimas escorrerem em meu rosto. Apenas os olhos marrons brilham em minha mente. Deixo meus
olhos vagarem pela tarde que se despede, avisando que a noite está vindo. A grande noite e o céu
laranja me mostram que sangue será derramado, sangue se perderá nessa terra. Ainda fico com as
mãos aos céus, orando por meus antepassados, e, como resposta, ao anoitecer, a grande Lua se
esconde entre as nuvens, antes que esteja tão gloriosa radiando.
— O que vai fazer? — Rosalinda me olha em nervos, ao me ver catar a bolsa de Jesse
enquanto procuro por minhas roupas de menino.
— Não o deixarei lá. Ainda posso salvá-lo. — Meus olhos marejados se viram para a velha.
— Não o perderei!
— Cia, não há salvação... Não terá o que fazer. Quando a Lua o chamar, terá que lhe deixar
partir — a velha sussurra baixo, segurando em meus dedos.
— Não! — nego e sinto minhas entranhas doerem. Tem que ter uma salvação, tem que ter um
jeito. — Não o entregarei para a Lua... Não a deixarei tirar algo de mim. Tem que ter um jeito,
Rosalinda... Tem que ter algo e, por Deus, se sabe, preciso que me diga! — A velha mulher solta
meus dedos, afastando-se. Meus olhos perdidos se prendem ao céu no momento em que solto o ar
lentamente.
— E se for o certo deixá-lo assim? E se o mal que ele fez tenha que ser pago assim? —
Conheço todas as lendas, e não me importo se Jesse fez algo para algum dos ciganos. Isso lhe pesará
depois. A única coisa que preciso é uma forma de salvá-lo agora.
— O certo é o que bate em meu coração, Rosalinda. — Minhas palavras chocam na pobre
velha como facas. — Meu coração me dirá o que é certo, e mesmo o que não quer me contar, não irá
me fazer desistir dele. Não importa a quem foi feito o mal. — Puxo a mão da velha em meus dedos,
apertando forte, vendo a noite chegar. Estou apreensiva, pois não irá demorar para a Lua se erguer.
— Preciso que me diga, Rosalinda, a quem pertence a libertação de Jesse? Veja, a Lua se escondeu.
Ele ainda tem uma chance, e se não for a Lua a levá-lo de mim, será Mascau, matando-o. Preciso que
me diga, mulher!
— Não... — a velha sussurra, encarando-me com dor. — Já está tarde para a salvação dele.
Isso tinha que ter sido feito antes da noite cair, pequena. Tinha que ter ganhado o perdão antes da
noite chegar — ela fala e as lágrimas caem pelo meu rosto. As limpo rapidamente e solto a mão de
Rosalinda.
— Terá outra saída! — Me viro, entro na carroça e me troco rapidamente. Pego o punhal que
está no armário e o escondo em minha roupa, deixando o chapéu sobre minha cabeça, enquanto
escondo meus cabelos dentro dele.
Ao sair, vejo todas as mulheres paradas em frente à carroça, me olhando com seus olhos
perdidos, sem saber para onde irem. Esperam por algo de mim, algo que dite seus rumos.
— O que faremos? — elas perguntam, aflitas. — Para onde iremos...
— As de vocês que desejam partir — olho para cada uma delas —, estão livres de agora
para sempre, com seus filhos. Não serão desligadas e nem irão dizer que abandonaram a vida cigana.
Não tiro os grilhões de vocês para pôr outros. As que desejam ficar, as que desejam a vida que
tinham antes de Mascau — solto a respiração lentamente —, eu não posso lhes pedir que lutem por
mim, mas posso pedir que lutem por vocês, por seus maridos, filhos e pais que estão jogados lá.
Ninguém virá por nós, ninguém virá nos salvar, nós mesmas nos salvaremos, e o nome disso é
liberdade. Mas isso cabe apenas a vocês. A minha escolha já fiz.
Já estou me afastando quando Rosalinda vem em minha direção e aperta meus dedos em suas
mãos.
— Talvez... Talvez haja uma forma. Uma única forma. Mas isso é apenas um talvez pequeno...
— Meus olhos se prendem aos da velha.
CAPÍTULO 17
A maldição da Lua
Jesse
Vejo a grande nuvem subir ao céu, tapando por completo a Lua que se ergueu. Mascau está
sentado diante da grande fogueira que os mais jovens fizeram.
Ergo minha cabeça no momento em que o cheiro de rosas entra em meu nariz. Meus olhos
vasculham ao redor, em alerta. A grande nuvem, que ainda cobre a Lua, me faz ter o dobro de agonia,
mas o cheiro das rosas é três vezes mais cruel. Minhas mãos se prendem às grades enquanto meus
olhos buscam por ela. Não a quero aqui, não posso perder minha cigana, não quero que ela me veja
quando a Lua estiver plena no céu. Meus olhos se fecham quando sinto o cheiro de rosas e tento
farejar minha pequena cigana.
— Se afasta! — O homem alto, parado à minha frente, bate com um pedaço de madeira em
minhas mãos, fazendo-me rosnar com ódio. — Matou um dos meus. Pode ter certeza de que a
primeira facada em suas tripas será minha.
Meus olhos focam bem no rosto do homem. Gravo a sua face. Posso ver em seus olhos o
desejo por matar, o prazer que ele sente na tortura. Terei esse homem em minhas mãos, gritando por
clemência, isso é fato.
— Moleque, me traz mais vinho — Mascau grita com raiva para um menino magro, chutando
o outro que derrubou sua bebida.
O homem volta a falar comigo, fazendo-me ir para trás, na cela, onde meus olhos continuam
focados em Mascau. A Lua, ainda escondida, nunca me foi tão desejada. Do que eu sempre fugi, o
que eu sempre neguei, agora eu praticamente imploro para ter.
— Sabe, assassino, eu me lembro daquela noite. — Mascau se volta para mim, depois do
rapaz encher sua taça. — Eu pude ver do alto da colina o massacre que vocês fizeram. — Ele ri e
toma seu vinho. — Pude ouvir os gritos deles implorando... Boris... Eu vi os olhos dele quando tirou
sua própria vida.
— Eu tive um motivo para fazer aquilo... Era meu serviço — falo, olhando-o sério. — Era
pago por aquilo... Mas, e você? Por que traiu sua própria gente? Traiu o homem que confiava em
você.
Mascau faz cara feia e olha para o lado, mas logo volta a sorrir.
— Boris era um líder fraco, jamais conseguiu ver a riqueza que tinha nesse lugar, o tamanho
da fortuna que se esconde nessa pedreira imunda. — Ele cospe no chão, com nojo. — Era apegado a
essas malditas crenças antigas, as mesmas que esses homens fracos acreditam. Foi tão fraco a ponto
de tirar a própria vida ao ver a morte da mulher mais inútil que um homem pode ter. — Ele solta o ar,
observando o céu. — Tinha um poder escondido dentro dele, inimaginável, mas mesmo assim
preferiu ser contido por uma mulher, sendo a sombra de algo maior do que poderia ter sido.
— Você tinha inveja, foi por isso que fez o que fez. — O velho cai na risada e volta seus
olhos para a fogueira.
— Acha mesmo que tinha alguma inveja daquele fraco? Trouxe ao mundo um filho mais inútil
que a mãe, que só serviu para trazer uma suja para nosso clã, desonrando nossa linhagem,
desonrando principalmente a dele. — O velho se volta para mim. — Uma criatura que consumi da
mesma forma que se consome um animal fraco. A essa altura, certeza de que a terra já lhe comeu a
carne. Devia ter matado ela com minhas próprias mãos, mas, te garanto, o que lhe deixei para o
futuro foi bem pior.
— Você tirou Constância do seu caminho porque sabia que ela era a única a ter o respeito
dessa gente... Porque eles lutariam por ela... — rosno com ódio, apertando o metal da cela em meus
dedos.
O velho, que acende seu charuto, para com ele em seus dedos, no ar, voltando seus olhos para
mim, conforme caminha lentamente, segurando sua taça, balançando lentamente o líquido. Ele para na
frente da cela e me observa atento, dando um sorriso demorado.
— Eu não falei o nome dela — ele sussurra para mim e percebo o erro que acabei de
cometer. Em minha face deixo passar o que o velho nojento procura, dando a ele sua resposta.
Seus olhos se fecham assim que ele sorri lentamente.
— Constância... Há muitas e muitas luas não ouvia mais esse nome... — Ele abre seus olhos,
prendendo-os aos meus. — Procurem por essa puta na pedreira... Certeza de que ela está aqui!
Procurem e me tragam essa cadela viva! — ele grita para os homens, enquanto me encara. Tento
esticar meus dedos, com ódio, pela fresta das grades de metal. Quero apertar a maldita garganta
desse porco imundo em meus dedos!
— Seu filho da puta maldito! — grito, com raiva. — Por que não me encara sozinho? Por que
não me solta e resolvemos esse assunto como homens? — Vejo os homens se espalharem, sumindo na
escuridão, indo à caça de Cia. Meu corpo bate na cela com ódio, enquanto a ira me consome. Sinto o
sangue inflamar minhas entranhas, meus olhos queimam quando meus ossos se modificam.
— Eu até iria fazer isso, sabe? — o velho fala. — Mas acho que primeiro vou lhe deixar ver
cada homem desse lugar fodendo-a antes de queimá-la na fogueira. Começando por mim. — Ele sorri
com seus dentes amarelos. — Afinal, aquela puta já deve ter se acostumado com isso.
— Vou matá-lo, Mascau! Por Deus, vou matá-lo! — rosno e caio em minhas pernas.
— Me diga, o que aquela putinha lhe ofereceu? — Ele ri alto. — Deixe-me adivinhar, sua
boceta quente. — Sua voz ri mais alto ainda, assim que ele ergue sua taça, pedindo mais vinho. —
Ela não vai nem lembrar mais quem é você quando eu fodê-la rápido e duro contra esse chão.
Ergo meus olhos em cólera e ouço o som da taça que vai ao chão, se quebrando, enquanto
vejo o homem gordo, com seus olhos arregalados, com uma adaga presa em sua garganta.
Com a voz trêmula e dedos firmes, ela aperta mais ainda o metal no pescoço do homem
flácido, e fala:
— A pequena putinha de Boris. — Mascau ri baixinho, logo que aperto mais ainda a faca
nele. Meus olhos ficam presos ao capanga que me encara, e uso essa baleia como escudo. Por anos
imaginei esse momento. Cada dor me vem à memória e minha mão aperta mais ainda a faca.
— Não ouse dizer o nome do meu avô, seu porco nojento! — Aperto mais a faca, sentindo a
pele ir se cortando. — Não ouse dizer o nome dele. Você matou meus avós, você escravizou meu
povo, não tem honra em sua boca podre para dizer o nome dele.
— E você, tem alguma honra? — O velho ri mais alto e meus olhos se perdem por um instante
no céu, onde vejo as nuvens se moverem. — Qual honra tem em sua boceta depois de trepar com esse
assassino?
— Cala a boca, seu verme nojento! — exclamo com fúria e dou um chute no meio de suas
pernas, fazendo-o cair de joelhos. — Você, abra essa gaiola! — Movo a cabeça para o homem que
olha para Mascau e aperto mais forte a adaga. — Abra logo a porra da gaiola! — brado, enraivecida.
— Solte. Solte ele, se é isso que a puta deseja! — Mascau berra, enfurecido, enquanto ri mais
ainda. — Solte o assassino dos seus avós, se é isso que ela deseja. — Aperto mais forte e puxo a
adaga para cima, entrando em sua pele conforme ele grita.
— Seu porco mentiroso! Você matou meus avós! — exclamo com ódio. Meus olhos se voltam
para Jesse, que aperta a cela com agressividade, enquanto ele a sacode toda.
— Cia... — Sinto o desespero em sua voz quando fala, sinto a grande onda de emoção que
vai me pegando.
— É mentira! — digo baixo, olhando para o céu, observando as nuvens se afastarem,
deixando metade da Lua à vista.
— Mentira?! — Mascau fala com deboche. — Olhe nos olhos dele, puta! Veja com seus olhos
a verdade que ele esconde... — Sua cabeça se ergue para Jesse, encarando-o enquanto ri. — Eu lhe
avisei, assassino. Eu vi tudo, até quando matou Esmeralda à queima-roupa.
— É mentira! — Jesse grita com raiva. Sinto tudo, toda a agonia, toda a dor que me sobe, me
engolindo, ao mesmo tempo que me perco em seus olhos, implorando para ser mentira. Tem que ser
mentira. — Cia, eu estava lá, mas não foi assim. Eu me assustei com a arma. A maldita arma disparou
quando eu me assustei. Meu dedo escorregou... Eu não ia soltar o gatilho.
— Fique aqui, cariño. — Seus dedos se prendem em meu rosto à medida que beija o topo
da minha cabeça. Vejo seus olhos com medo e quero que ela venha comigo.
— Vovó, fica... — Seus olhos fixam-se nos meus conforme alisa meus cabelos.
— Tudo ficará bem...
— Cia... Eu sinto tanto. — A voz de Jesse me segura aqui, na realidade, enquanto todas as
imagens e lembranças me consomem.
— Sua puta burra! — Mascau ri em alegria. Sinto a grande mão puxar meu tornozelo, me
fazendo desequilibrar. O velho nojento rola sobre mim. Quando tento acertar seu rosto, ele desfere
um soco em meu estômago.
Grito de dor e meu rosto tomba para o lado, enquanto tento alcançar a adaga que caiu da
minha mão na hora da queda. Ele desfere outro tapa em meu rosto, me deixando tonta. Ouço os gritos
e os barulhos ao passo que tento me apegar à sobrevivência, e arranho seu rosto, fazendo-o urrar de
dor. Jogando-me de barriga no chão, me rastejo, esforçando-me para chegar à adaga.
— Ahhhhhhhhhh! — berro em agonia assim que sinto o metal frio perfurar minhas costas. Seu
peso nojento está sobre mim, enquanto ele aperta mais ainda uma faca. Minhas mãos trêmulas ainda
se esticam pela última vez e tento pegar minha adaga.
— Eu disse que foderia você, sua puta! — Sinto a língua nojenta de Mascau passar em meu
rosto quando ele puxa meus cabelos para trás, com força, me fazendo gritar, apertando mais ainda a
faca dele nas minhas costas. Sinto ela me rasgar, me perfurando por inteira. Minha cabeça é erguida
com força, e, em meio à dor, vejo a grande Lua, que está plena no céu quando a última nuvem se
dissipa. Ouço o grande uivo.
Meu corpo usa de toda força uma última vez, quando meu braço se estica, alcançando a
adaga. Eu morrerei, mas viverei por alguns segundos para ver o fim de Mascau. Levanto meu braço
com toda força, cravando a adaga em sua face, atravessando seu olho.
— Sua vadia! Meu olho... meu olho... — Mascau range com raiva, saindo de cima de mim.
Me arrasto com todas as minhas forças para longe dele e meus dedos trêmulos vão para minhas
costas, onde tento tirar a faca, mas sei que não conseguirei.
Arrasto-me até uma árvore e ouço os tiros e os gritos. Forço meu corpo, conseguindo me
virar e me encostar em seu tronco. Olho meus dedos com meu sangue, enquanto vejo minha barriga
sangrar. A faca me atravessou e sua ponta brilhosa está passando na roupa.
— Vou matá-la, sua vadia! Vou matá-la da forma mais cruel! — Mascau grita, arrancando a
adaga do seu rosto ensanguentado, caminhando em minha direção.
Sorrio para ele. Entre os dentes, sinto o sangue já escorrer por meus lábios. Enquanto tento
segurar o fôlego, meus olhos se perdem na grande Lua, que brilha no céu, linda e gloriosa, mais do
que o Sol. Meus olhos se voltam para o som animalesco que corta o céu e me deixo perder na
fogueira.
— Sua vadia maldita! — Mascau vem para cima de mim como um touro, mas ele nem sequer
chega a dar o terceiro passo antes da sua cabeça sair do seu corpo pela grande besta que pula em
meio ao fogo.
Vejo suas presas desmembrando parte por parte de Mascau. Ele se perde em sua forma
animalesca. Seus rosnados são intensos, seus olhos se prendem aos meus, ao mesmo tempo em que
ele quebra os ossos daquele porco nojento, parte a parte.
Não é o que vi na clareira, o lobo em forma de animal em suas quatro patas, o que vejo é uma
besta cheia de ódio e fome. Tiros em sua direção o faz despertar, pulando para cima dos outros. O
que quer que seja isso vai destruindo um por um enquanto os destroça.
— Por que é tarde? — Meus olhos fitam Rosalinda, que me encara.
— Pequenina, ele achou sua Lua na Terra... Sua maldição era se quebrar como um animal
de quatro patas. — Ela me olha preocupada. — Mas eu vi os olhos dele para você, pequena. Eram
olhos de predador, olhos de posse. A maldição dele se tornou outra. Você e a Lua exercem poder
nele. Será uma besta quando a Lua o chamar, pois seu coração de homem está preso na Terra...
— Jesse não vai virar uma besta! — digo brava, voltando a me pôr em meu caminho.
— Cia! — ela grita, me fazendo virar. — Quando a hora chegar não pode sentir medo.
Apenas deve ser-lhe sua Lua. A fera irá saber que você pertence a ela.
Vejo a besta caminhar em minha direção. Suas garras se arrastam, fazendo o pior som, com
seus olhos presos aos meus.
A besta ergue seu grande focinho ao céu, uivando para a Lua, e eu me escoro, levantando-me
apoiada na árvore, conforme me perco em seus olhos. Meus dedos trêmulos se apertam ao meu
machucado no mesmo momento que tento não sentir a faca me perfurar.
A vejo cair em seus joelhos, vindo a mim. Sinto seu calor mais quente que o Sol quando sua
grande cabeça se deita em minhas pernas. Meus dedos, ensanguentados, soltam meu ferimento, e sinto
o pelo macio em minhas mãos. Ao erguer sua grande cabeça, são os olhos marrons que vejo, tão
lindos e puros, mesmo com sua forma cruel.
— Jesse... — Me deixo sorrir para ele quando uiva tristemente. Sinto suas grandes garras me
pegarem. Seu movimento para quando grito de dor. Seus olhos se prendem em minha barriga.
Ele uiva mais alto ainda, enquanto meus dedos deslizam por sua cara peluda.
— Estava errado, mercenário... — Tusso, me engasgando com o sangue, voltando meus olhos
aos seus. — A noite está alta e eu não lhe odeio... — Sorrio para ele. — Jesse... está tudo bem...
Deixo minha face encostar na sua, enquanto sinto seu calor me invadir. Meu corpo está leve,
fraco.
— Eu lhe perdoo... — sussurro, sentindo meus braços se soltarem dele.
Me sinto leve como uma pena quando ele me aperta mais forte, me deixando flutuar em seus
braços peludos. O som alto do uivo cortando o céu é tudo que ouço antes de partir.
CAPÍTULO 18
Maldição e dom
Fera
O vento me avisa, sinto assim que meus olhos se abrem, junto com Scarletti, minha raposa,
que me olha, sentada, séria, nos pés da cama. Há três noites, quando a Lua de sangue se ergueu, senti
uma dor que me consumiu, fazendo-me chorar por horas. Paolo, preocupado, ficou em meu calcanhar,
achando que era por conta da gravidez. Mas o vento dizia que algo estava vindo. Scarletti pula da
cama e para próxima à porta do quarto, enquanto me viro para Paolo, que dorme. Caminho pela casa
com passos lentos, ao mesmo tempo que minhas mãos escoram minhas costas. Meu filho cresce forte
em meu ventre. Sei que é forte e que é um menino, mesmo estando apenas com seis meses. Sei que
será um homem forte que trarei ao mundo.
Paro no quarto das crianças, que dormem tranquilamente, e sigo para a cozinha, ligando o
fogão para fazer um chá.
— Vovó dizia que chá é bom para tudo, Scarletti. — A raposa para ao meu lado, encarando-
me, enquanto encho a chaleira de água e levo ao fogo.
Meus olhos se prendem na janela que traz ao longe a alvorada. O céu negro, que irá se
despedir para o Sol se levantar, me dará tempo para deixar a mesa pronta para o café.
Sinto a pequena brisa que bate nos meus cabelos e, com ela, o cheiro de cravo e canela, que
sobe junto aos braços fortes que me prendem. Sinto o leve roçar de lábios em minha nuca, deslizando
suas mãos sobre meu ventre, no momento em que ele me abraça forte. Deixo a cabeça encostar em
seu peito, o que me traz paz.
— Por que acordei sem olhar para seu rosto ao meu lado, bruxa? — sussurra, embalando-me
lentamente, junto ao bebê em meu ventre. — O que está te preocupando?
Deixo meus dedos se erguerem, afagando sua face, no momento em que o coração se aperta
em meu peito.
— Perdi o sono, assassino. — Sinto seus beijos em meus dedos, conforme viro lentamente
para ele. Me perco olhando em seus olhos de mel, à medida que seu cheiro me inunda por dentro.
— Mamãe... — Cristal entra na cozinha coçando seus olhos, enquanto sua irmã caminha atrás
dela, com seus olhos presos aos meus.
Paolo me solta e se vira para as meninas, pegando Cristal no colo. Me abaixo próxima à
Ametista, pegando-lhe pela lateral, para não apertar seu irmão.
— Está cedo, meus amores. — Beijo a cabeça dela e a de Cristal, que está no colo do pai.
Ametista cola seus dedos em meu rosto, com seus olhos presos aos meus. Ela teve um
pesadelo, está triste, posso sentir sua dor. Seus olhos cansados me olham com intensidade, me
deixando sentir tudo que tem em seu peito.
— Foi apenas um sonho, meu amor. — Beijo seu nariz e sinto seus braços me apertarem.
Caminho com ela até o sofá, com Paolo ao meu lado, que deposita Cristal. Deixo as duas no
sofá, brincando com o pai, e vou ao quarto buscar uma manta para elas. O vento me acerta antes do
terceiro passo, sussurrando as dores de quem chega. Prendo meus dedos à parede, enquanto minha
alma, de luto, chora baixinho.
— Bruxa... — Antes do meu corpo se escorar na parede, Paolo já está ao meu lado, me
sustentando em seu aperto de aço. — Yara... o que houve?
Sinto a agonia. É tanta dor, tanto sofrimento... Lembro do seu sorriso e dos olhos calmos
quando me abraçava, lembro da primeira vez que o vi dentro daquele hotel velho e abandonado, no
vilarejo fantasma. Me recordo da solidão que trazia nas costas, junto à culpa, que o perseguiu por
muitos e muitos anos, dilacerando-o parte a parte e, então, seu rosto brilha em minha mente, conforme
aperto o braço do meu marido.
Olho para Yara, que me empurra uma xícara de chá, sorrindo para mim, enquanto tento
entender como vim parar em sua fazenda. Ela me conta sobre como obrigou Paolo a revirar os
arredores da fazenda, até me encontrar jogado em meio à floresta, ao fundo da sua casa. Paolo me
encara, sério, as sobrancelhas arqueadas e os braços cruzados. Sento-me no sofá e vejo as crianças
brincando na sala. Sinto a dor que explode em minha cabeça quando as imagens se misturam em
flashes.
— Você vai se sentir melhor — ela fala calma, me observando.
É estranho estar aqui, mas é o lugar seguro que a fera me trouxe, depois que simplesmente
apaguei minha humanidade, libertando-a de vez quando deixei o corpo imóvel de Cia e senti a dor
me devorar por dentro, junto à loucura.
— Por que estava pelado nas minhas terras? — Paolo me indaga, zangado, enquanto Yara me
faz beber esse chá horrível.
— Eu não lembro como vim parar aqui — respondo, me voltando para ela. — Eu estava
longe. Estava... — A memória, seus olhos magoados quando ouviu a verdade dos lábios de Mascau,
tudo me toma como um soco.
— Isso não importa — Yara fala e se levanta, com seus olhos presos aos meus. Já sei a
resposta, ela sabe que a besta me trouxe para ela. Em minha loucura, em meio à dor, deixei a fera
tomar conta, apenas queria esquecer. Todo sangue, toda morte, esquecer a maior perda que já tive. —
O importante é que está seguro agora. Beba o chá, irá se sentir melhor.
— Está tudo bem... — Acordo com a voz que sussurra baixo. Meus olhos, assustados,
observam tudo em volta, conforme sinto meu coração bater forte, com o suor colado à roupa.
Olho a roupa que não me pertence e vejo a casa onde estou.
— Você teve um pesadelo. — A voz de Paolo vem do lado de fora. Está encostado na porta,
soltando a fumaça de seu cigarro no ar. — Eu também tinha quando ela se foi. Era como se tivessem
tirado tudo de mim...
Meus olhos param nos seus, que me observam em silêncio. Volto o olhar para meus dedos e
me sinto fraco e vazio.
— Talvez Rafagá tivesse razão. Essa vida nunca foi para nós. — Olho a casa em volta e sinto
a dor me consumir. — Eu... Eu não pude salvá-la... — Já matei mais do que ajudei nessa vida, mas eu
queria, queria ela para mim.
— Eu olho tudo isso que tenho — seus olhos taciturnos observam em volta, enquanto Yara
arruma as meninas no quarto — e não acredito que posso ser digno, Americano. — Ele se volta para
mim. — Talvez eu nunca tenha achado que um dia poderia ter o que chamar de meu... E eu lembro a
primeira vez que olhei esse lugar e pude jurar que estava no pior lugar do mundo. Mas essa casa, ao
lado da minha bruxa e das minhas filhas, é o que eu já tive de mais maravilhoso... — Fico em
silêncio e olho para a noite, com o vento balançando as árvores.
Levanto-me e caminho para fora da casa, esticando meu corpo. Calço o sapato largado
próximo à porta e meus olhos veem seu lar. Mais do que ninguém, sei o quão caro lhe foi.
— Eu nunca teria um canto nessa vida, Cão. Talvez, no fundo, eu já soubesse — sussurro, me
lembrando de seus olhos grandes e negros como a noite, onde me perdia. — Todo esse sangue que
trago em minhas mãos, todos os olhos que já fechei... Talvez essa seja minha forma de pagamento. —
Caminho para fora e vejo a noite silenciosa.
— Já fechei muitos olhos nessa minha vida, já enterrei muitos corpos, e nunca senti medo
nessa minha miserável vida. Não até conquistar tudo isso. E todas as noites, quando acordo
assustado, me vendo ao lado dessa mulher, me perco em seus cabelos negros e na barriga que cresce
a cada dia... e tenho medo de que meus demônios voltem para cobrar o débito um dia. — Ele acende
um cigarro e fica em silêncio. Pequenos passos se fazem ouvir dentro da casa.
— Eu sei, estou andando como uma pata... — Yara ri, caminhando para nós.
— Você está perfeita assim, bruxa — Paolo fala, sorrindo para ela, que revira os olhos.
— Isso que se ganha por fazer um pacto com a morte. Fui conversar com ela pessoalmente
para salvar a vida desse ingrato — ela segura suas costas, rindo —, para ele continuar me chamando
de bruxa... — Seu sorriso se expande por seu rosto brilhoso quando ela nos olha.
— Vem se sentar, mulher, antes que tropece e caia! — Paolo segura seu braço, puxando-a
para ele. Sinto meu peito se apertar enquanto imagino tudo que poderia ter tido ao lado de Cia.
— Eu estou grávida, Paolo. Pelo amor de Deus, não estou doente! — Yara solta o ar, bufando,
conforme caminha lentamente, sentando-se na escada, com a mão em seu ventre. — Me dê sua mão,
Jesse. — Ela sorri, esticando seus dedos. Meus olhos vão para Paolo, que me encara
silenciosamente, dando apenas um consentimento com a cabeça.
Estico meus dedos, dando dois passos em sua direção. Sinto a pele arredondada, quente e
esticada, com seus olhos presos aos meus. Puxo minha mão assim que sinto o leve chutar. Olho para
ela, que ri sem parar, e levo a mão de volta para sua barriga, enquanto apenas o silêncio nos envolve.
Posso sentir a vida lá dentro, que se agita.
Sinto seus dedos tocarem minha face quando ela retira uma única lágrima que escorre por ali.
— Eu sinto muito — sussurro para ela. Não me recordo de como vim parar em sua casa,
apenas lembro de quando acordei, com os olhos sérios de Paolo ao meu lado.
Lembro de correr, vagando em meio às árvores, com a dor que ia me consumindo, me
tomando entre a lucidez e a fera. Lembro dos meus gritos entre uivos de dor, implorando por ela, e
apenas os olhos negros brilham em minha mente. Se não tivesse ido atrás dela naquele lugar, se não
tivesse tão obcecado por quebrar essa maldição, Cia estaria viva. Minha doce cigana estaria viva.
— Não sinta, Jesse... — Yara me fala com seu rosto triste. Retiro minha mão do seu ventre e
deixo meu corpo ereto, à medida que me viro para olhar a noite escura. — Todos somos pecadores,
Jesse. O maior perdão não está em receber do outro — ela fala baixo, me olhando, deixando seus
dedos passarem na barriga —, mas sim no perdão que damos a nós mesmos. — Seus olhos negros se
erguem, prendendo-se aos meus. — Porque perdoar os outros é fácil, mas o difícil é nunca
conseguirmos nos perdoar por nossos erros...
Paolo se encaminha, parando ao seu lado, deixando seus dedos em seu ombro. Vejo os dois
aqui, tão juntos, e meu coração grita em dor por ter perdido algo que desejei mais do que a mim
mesmo pela primeira vez na minha vida.
— Eu sou grato por terem me recebido — falo, soltando o ar enquanto limpo meu rosto,
umedecido pelas lágrimas.
— Na verdade, Yara me obrigou — Paolo diz, sério, me fitando.
— Paolo! — Ela se levanta, encarando-o, mas ele dá de ombros, rindo, e se volta para mim.
— Só tenta não aparecer pelado nas minhas terras de novo — fala sério dessa vez, ao mesmo
tempo que vejo Yara rindo. — O único homem que minha mulher precisa ver pelado sou eu — ele
rosna, cruzando seus braços ao peito.
Yara revira os olhos, se voltando para mim.
— Ele nem sequer me deixou chegar perto, Jesse... Praticamente me empurrou para dentro da
casa. — Ela sorri quando ele a abraça, puxando-a para seu peito. — Somos uma família, Jesse, e
estaremos aqui para você, como você já esteve por nós e como sei que estará se precisarmos. — Sua
voz se silencia, conforme ela deixa seus dedos passarem por seu ventre. Vejo os olhos negros se
escurecerem, enquanto ela se vira para a porta. — Alguém está acordada.
Observo a pequenina que está silenciosa caminhar lentamente, esfregando os olhos
sonolentos. Paolo se separa de Yara, que sorri para a filha. A pequena cópia da sua irmã para ao lado
do pai, que estica seus braços para ela, puxando-a para seu colo.
— Está tarde, meu amor... — Me vejo aqui, olhando para o homem que já teve o sangue mais
frio desse mundo, se perdendo nos olhos do pequenino anjo em seus braços, e entendo exatamente ao
que Paolo se referia. Nada pode ser pior do que perder o que nós amamos, justo nós, que nunca
fomos permitidos a amar nada além da morte, que trazíamos em nossas mãos.
Ela se esconde no pescoço de Paolo, apertando-o em seus bracinhos. Desejo saber qual será
o sentimento desse momento, desejo ter tido a sensação de segurar nos braços o meu legado. Lembro
do cheiro de rosas que tanto amo e imagino ela feliz ao meu lado, conforme a aperto forte, junto ao
nosso fruto. Trocaria todo dinheiro do mundo por apenas esse momento. A dor mais insuportável me
rasga a alma.
— Eu tenho que ir — digo baixo, me voltando para o portão.
O vento alto que passa por mim, me pega em cheio, me fazendo virar para Yara, que está
parada atrás de mim, me encarando.
— Eu nunca entendi como nossos caminhos puderam se cruzar, meu amigo. — Ela sorri,
enquanto o vento brinca com seus cabelos. — Duas linhas não se cruzam apenas por se cruzarem
nessa vida, Jesse. — Paro quando a pequena frase entra em meus ouvidos. — Lembre-se disso, meu
amigo.
Caminho até ela e lhe dou um abraço, deixando meus olhos passarem por Paolo, que nos
encara. Separo-me de Yara e estendo minha mão para ele.
— Obrigado! — digo-lhe, sentindo seu aperto de mão forte.
— Um homem nunca se esquece de quem já lhe ajudou, Americano. — Sua voz sai baixa, no
mesmo momento em que solto seus dedos, alisando os cabelos da pequenina em seus braços. — Você
me ajudou a ter minha família e sempre terei esse débito com você.
Balanço minha cabeça em positivo, dando um leve sorriso para ele, e me pego sendo
observado pelos curiosos olhos de mel. Ela aperta o rosto de seu pai em seus dedos, sussurrando em
seu ouvido.
Paolo se vira, olhando-a, balançando sua cabeça em negativo, enquanto ela continua séria, lhe
encarando.
— Não, meu amor... Ela não está... — ele diz baixo para ela.
— O que ela disse? — pergunto, sorrindo.
— Não foi nada — ele fala conforme me afasto, já voltando para o meu caminho. Não tenho
ideia para onde irei, nem o que irei fazer agora. Nunca me vi tão sem rumo.
Viro-me e vejo a família parada. Balanço minha cabeça em despedida uma última vez. A
pequena raposa pula ao lado de Yara, quando ela pega sua filha no colo.
Meus pés já estão atravessando a porteira quando ouço a respiração acelerada e alguém
correndo atrás de mim. Ao me virar, vejo a pequena criança, com seus cabelos soltos e seus pés
descalços, me encarar. Ela vira e olha para seus pais. O vento que passa por seus cabelos, brincando
com eles, a faz rir quando Yara sorri para nós, abraçando Paolo com seu rosto molhado.
A pequenina se vira para mim e estica seus dedos para o alto. É tão pequenina que me
ajoelho, me deixando em sua altura, me prendendo aos seus olhos marrons de terra, tão claros como
mel. Sinto suas mãos gordinhas tocarem minha pele à medida que ela sorri para mim.
O toque quente aperta minha bochecha em seus dedos e ela me estuda silenciosamente, como
se estivesse procurando por algo. Seus dedinhos mexem em minha boca e rio, fitando-a.
— O que procura, pequena? — Ela me olha mais ainda. Olho por seu ombro, para seus pais,
e vejo Yara rir enquanto ela mostra seus dentes para mim. E então entendo o que ela procura com
seus olhos curiosos. — Não tenho presas — digo baixo, observando-a.
Ela balança sua cabeça em positivo, voltando seus olhos dos meus dentes para os meus olhos.
— Ela está triste... — Sua voz é baixa, tão calma como se fosse o próprio vento a me tocar.
— Quem está triste, meu anjo? — pergunto, tocando em seus cabelos. — Sua mamãe?
Ela se vira e olha para sua mãe, e depois se volta, balançando sua cabeça em negativo para
mim.
— Não, a moça no desfiladeiro... — Ametista fala, apertando seus dedinhos. — Papai disse
que ela não está, mas ela está triste. Eu a vi nos meus sonhos, por isso acordei. — Ela volta o olhar
para mim, ao passo que me coloco de pé e sinto meu peito doer. A pequenina me encara, séria. —
Mamãe disse para lhe contar... Eu mostrei para ela o meu sonho...
Meus olhos se erguem para Yara, que me encara, sorrindo nos braços de Paolo.
— Eu lhe disse, Jesse... — Yara fala. — Duas linhas não se cruzam apenas por cruzarem
nesta vida.
A pequenina já corre para os braços de seus pais, apertando as pernas de Paolo, antes que
possa lhe perguntar alguma coisa.
Viro-me, mirando a estrada, sentindo meu peito começar a bater acelerado.
— Americano... — A voz de Paolo se faz alta atrás de mim, e pego no ar a chave que ele
joga. Seus olhos se movem para a velha camioneta parada ao canto, enquanto ele balança a cabeça.
— Eu peguei ela emprestada. — Ele sorri, virando-se e voltando para Yara, puxando-a para seus
braços.
Sorrio mais uma vez para ele, conforme entro na camioneta, erguendo poeira ao sair daqui.
CAPÍTULO 19
O Sol e a Lua
Malu
Sei que é loucura sair da cabana, mas ao ouvir os tiros, quando a noite cai, sinto o coração
bater na boca. Me certifico de deixar o homem teimoso quieto na cama, enquanto a neném dorme no
cesto, com Raul deitado no sofá, próximo a ela. O que vejo ao chegar no desfiladeiro é dor, morte.
Quando encontro algumas mulheres pelo caminho, com seus rostos tristes, sinto a dor de cada uma
delas, mas mesmo assim meu coração pede que continue. E é isso o que faço. Não paro, nem quando
o uivo agoniado e terrível corta o céu escuro, fazendo cada parte de meu corpo tremer.
Ando pelo acampamento destruído, com tendas rasgadas, e vejo os olhos de cada um,
assustados. São pessoas sofridas. Algumas das outras mulheres tentam tirar as crianças e os homens
fracos de lá.
— Meu Deus... — Minha mão vai aos lábios ao ver todo sofrimento. Olhos assustados me
encaram quando continuo meu caminho, passando por cada canto.
Mas é ao fim do acampamento que meus olhos se prendem ao chão, ao reconhecer a pulseira
brilhante. Jamais me esqueceria.
— Cia... Oh, meu Deus, Cia! — Meus passos já correm mais rápido na direção da mulher
caída na terra, com uma grande poça de sangue à sua volta. Caio ao chão e puxo o corpo em meus
braços.
— Alguém ajuda... Alguém me ajuda! — grito, tentando achar alguém que possa me socorrer.
Meus olhos se voltam para o rosto caído. — Oh, meu Deus... Cia... — Vejo seu pescoço empastado
de sangue, com a grande mordida na lateral. Meus dedos trêmulos alisam o rosto à medida que sinto
as lágrimas em minha própria face.
Não pode terminar assim. Choro ao lembrar da mulher forte que saiu de casa pela manhã.
Lembro dos seus olhos de guerreira se adoçando ao segurar Lucia em seus braços, ninando-a.
Meus dedos vão ao seu pulso e sinto a leve pulsação quase se apagar. Deito o corpo de Cia,
me levanto, rasgo minha própria saia e a uso para estancar o sangue em seu pescoço. A faca
permanece cravada, não sei se tem como puxar sem rasgá-la mais ainda por dentro.
— Por favor... Por favor, só me deixe pagar minha dívida. — Olho para ela, no mesmo
momento em que vejo os homens se aproximando, com seus rostos tristes. — Por favor, me ajudem.
Ela ainda tem pulsação. Só preciso levá-la para algum lugar limpo... Tenho que retirar essa faca dela,
mas não aqui, vai morrer se eu fizer isso... Por favor... — Olho para todos os rostos, enquanto eles
olham com medo para o corpo de Cia.
— Eu ajudo! — Um homem magro e alto, com o rosto sujo, se aproxima de nós duas, se
abaixando e pegando Cia no colo. — Rosalinda saberá o que fazer — ele fala baixo, encarando o
rosto de Cia.
Vejo os outros abrindo passagem à medida que nos afastamos de onde estávamos, como se
Cia tivesse com alguma peste, enquanto o homem caminha, levando-a para longe dali. A pequena
carroça, que serve como abrigo, é o que vira amparo para Cia. Observo a pequena senhora que
chora, alisando o rosto dela, enquanto todos os outros ficam para fora.
Não tenho ideia de como salvarei a pequena mulher, só sei que não irei deixá-la morrer, não
aqui.
Quando o Sol se ergue, me vejo perdida, sentada na pedra, com meus dedos cheios de sangue.
Ao fim, entendo o que aconteceu, ao ouvir de um e de outro, mas sempre que pergunto sobre o homem
que veio junto com Cia, eles se silenciam, afastando-se de mim. Meu rosto vira para a cabana
pequena, onde fiz o possível e o impossível para salvar a vida dela, junto à velha mulher que não
saiu um minuto de perto dela. Ainda tento entender as marcas em seu pescoço, tão estranhas e
desfiguradas. Mesmo depois de conseguir retirar a faca do corpo dela, queimando o local da ferida
para cicatrizar, a velha senhora não deixou que costurasse seu pescoço.
Não acredito que a pobre mulher possa passar de mais do que duas horas. Obrigo meu corpo
cansado a se levantar, tenho que voltar antes que as crianças acordem. Porém, antes, deixo meus
olhos se perderem mais uma vez na cabana.
— Seja forte, Cia... — sussurro quando me afasto, voltando para meus filhos.
Jesse
Fim!
EPÍLOGO
Constância
— Conta uma lenda cigana que, certa vez, dois jovens apaixonados chegaram de mãos dadas
à tenda do velho feiticeiro de um clã e pediram um conselho.
O velho ancião do clã Dourado se apoia em sua bengala, olhando de mim para Jesse. Meu
coração, que está agitado, não deixa de pensar que nesse momento tão importante da minha vida,
quem estaria fazendo o ritual do casamento, se estivesse vivo, seria meu avô. Mas, dentro de mim,
sei que ele está aqui hoje, celebrando comigo e com nosso clã essa nova fase que se inicia para a
tribo dourada.
— Nós nos amamos e vamos nos casar. — O velho ancião pigarreia, olhando com brandura
para todos, voltando a encarar Jesse e depois eu. — Mas nos amamos tanto que quereremos um
conselho sábio, que garanta ficarmos juntos para sempre, que nos assegure estarmos um ao lado
do outro até a morte. Há algo que possamos fazer?
Mantenho meu silêncio e respiro fundo, soltando o ar lentamente, sentindo os dedos de Jesse
presos aos meus, com ele ao meu lado, segurando minha mão. Toda a tribo dourada está presente,
uma grande fogueira está queimando ao centro do acampamento, atrás do ancião que conduz o ritual
de união. Alguns batem palmas ao som da cantoria em volta de nós, me deixando ver seus olhos
brilhando de felicidade. Meu povo, que há muito tempo ansiava por tempos de paz, se diverte com o
ritual de tradição da nossa tribo. O sangue de Boris corre em minhas veias, me legitimando como a
verdadeira líder do meu clã, e foi com carinho que fui recebida quando saí da tenda de Rosalinda,
depois de ter sobrevivido, tendo a marca da besta tatuada em meu pescoço, fazendo cair por terra
qualquer resquício de dúvida que possa ter restado sobre minha herança dos meus ancestrais, pois
apenas uma descendente dos primeiros ciganos da Lua poderia ter a lealdade da besta, assim como
minha avó, Esmeralda, tinha com meu avô.
Dias de liberdade e paz chegaram para o clã Dourado, com a informação se espalhando entre
os outros clãs ciganos e os retirantes, repercutindo a notícia que a herdeira de Boris tinha retornado
para liderar seu povo para a liberdade, os enchendo de esperança. A terra que meu avô era leal
estava doente, cansada e tão machucada e ferida quanto meu clã. As minerações de Mascau tinham
devastado grande parte da vegetação, poluindo os rios e afastando os animais. Mas eu tenho certeza
que trarei a alegria e a prosperidade de outrora para minha morada, cultivando a fauna, deixando a
Mãe Natureza se levantar outra vez e apenas usando para o meu povo o que eles precisam, não
destruindo tudo por ganância, como Mascau fez. Os tempos de crueldade, sangue e morte tinham
acabado, agora é de recomeço. Minha outra mão se estica e aliso meu ventre, onde o fruto do Sol e
da Lua cresce dentro de mim. Às vezes penso que meu avô já sabia o que estava por vir, e não foi
uma besta que ele mandou para cruzar meu caminho, mas sim um guardião.
— E o velho sábio, tão emocionado ao vê-los tão jovens, tão apaixonados e tão ansiosos por
sua união, resolveu dar uma prova para eles — o ancião fala, rindo, olhando para nós. Jesse aperta
firme meus dedos, erguendo minha mão e depositando um beijo no dorso. — Havia o que podia ser
feito, ainda que fossem tarefas muito difíceis. Ao jovem rapaz, ele mandou escalar a montanha ao
norte da aldeia apenas com uma rede, caçar o falcão mais vigoroso e trazê-lo até o terceiro dia
depois da Lua cheia. E para a jovem moça ordenou que escalasse as montanhas do sul, que lá em
cima encontraria as mais bravas de todas as águias. E tinham que trazer as aves vivas para o velho
sábio.
O clã se silencia, diminuindo as palmas, apenas batendo seus pés no chão, como se fossem
tambores. O longo vestido vermelho em meu corpo balança com a brisa do vento, que passa manso
por mim. Rosalinda está ao canto, com seus olhos marejados, me olhando carinhosamente. Ela tinha
guardado o vestido da cerimônia de união que pertenceu à minha avó, e senti muita emoção quando o
vi. Usar esse vestido hoje é como ter minha avó junto a mim.
— Os jovens se abraçaram com ternura e saíram para completar sua missão. No dia
estabelecido, na frente da tenda do feiticeiro, os dois esperavam com as aves. O velho sábio as tirou
do saco e constatou que eram verdadeiramente os belos exemplares de animais que ele tinha pedido.
E agora, o que faremos? Perguntaram os jovens apaixonados. — O ancião olha de mim para Jesse
de forma bondosa, dando um passo à frente. — Ele pegou as aves e amarrou uma à outra pelos pés,
com fitas de couro.
O velho retira uma longa tira de couro do bolso da calça e Jesse ergue nossos pulsos na
direção do ancião, igual eu o instruí a fazer, quando lhe contei como funciona o ritual de casamento
do meu clã. O ancião faz um laço sobre minha mão e a de Jesse, mantendo nossos pulsos unidos.
— Depois que o ancião deixou as aves unidas, ele pediu para o casal de jovens apaixonados
as soltarem, para que voassem livres. — Uma das ciganas da minha tribo se aproxima do velho com
uma cumbuca, a qual ele leva os dedos para dentro, os melecando na tinta vermelha, e retorna seus
dedos para nossas faces, fazendo riscos em meu rosto e depois no de Jesse. — Os jovens fizeram o
que foi ordenado e soltaram os pássaros amarrados pelos pés. A águia e o falcão tentaram voar, mas
conseguiram apenas pular pela terra. Minutos depois, irritadas pela frustração, começaram a se bicar,
machucando uma à outra. — Ele estica seu pescoço e olha por toda a tribo, retornando a olhar para
mim e Jesse. — Então o velho sábio disse: jamais esqueça do que estão vendo, esse é meu
conselho. — O ancião segura nossas mãos amarradas, as erguendo para cima das nossas cabeças. —
Vocês são como a águia e o falcão. Se tiverem amarrados um ao outro ainda por amor, não só viverão
se arrastando, como também, cedo ou tarde, começarão a machucar um ao outro. Se quiserem que o
amor de vocês perdure pelo tempo, voem juntos, mas jamais amarrados. — O ancião puxa a fita de
couro, desfazendo o laço, abaixando nossas mãos, que ainda continuam ligadas uma à outra, só que
com um aperto mais forte, com nossos dedos entrelaçados.
Jesse vira sua face para mim e me olha no fundo dos olhos. Dentro de mim não tem medo, não
tem mágoa ou qualquer rachadura que possa nos amargurar. Em meu coração, é como se nossa
história começasse aqui.
Rosalinda caminha para nós e estica em seu braço o grande manto negro, o qual ela deu de
presente para Jesse, sendo o manto que pertenceu ao meu avô Boris. Jesse o abre e o mostra para
toda a tribo antes de jogar sobre meu ombro, me puxando lentamente para ele. Jesse passa seus
braços pela minha cintura, me enlaçando, ficando de frente para mim. Nossos olhos se encontram e
sinto meu coração acelerar.
— Sobre você, Constância, cai o manto do seu marido, garantindo que nem um homem que
ande na terra possa lhe machucar.
Sorrio para Jesse, tendo o luar nos acertando em cheio e a Lua ficando mais bela, o que faz
todos olharem para o céu. É como se a Lua confirmasse as palavras do mercenário. Jesse me puxa
mais para ele e deposita um beijo nos meus lábios. Sinto meu coração explodir por dentro. Percorri
muitos caminhos em minha vida, mas nunca me deixei sonhar que um dia estaria passando por esse
momento, me casando diante do meu clã, com o homem que eu amo, tendo a Lua, a regente do nosso
amor, celebrando nossa união.
— Eu te amo, mercenário — murmuro e o beijo com todo meu amor.
Os ciganos do clã Dourado gritam, invocando nossos cânticos antigos e batendo palmas entre
as risadas calorosas. Sorrio em meio ao nosso beijo e me prendo mais a ele, o abraçando com força.
Nossas testas ficam coladas uma à outra e posso sentir o calor de sua respiração e seu cheiro que
tanto amo. Nada nesse mundo poderá me machucar de agora em diante.
— Parabéns, minha doce criança! — Me afasto de Jesse e recebo o abraço carinhoso de
Rosalinda. — Você merece toda a felicidade. Seus avós estão com você esta noite.
— Obrigada, Rosalinda — digo, emocionada, e beijo seu rosto.
O grande homem que traz a força de um poderoso urso me puxa para um abraço quando
Rosalinda se afasta para abraçar Jesse.
— Fico muito feliz por vocês dois, Cia. — Rafagá beija minha testa e sorri para mim. —
Agora tenho uma irmãzinha.
Ele se afasta de mim e vai abraçar Jesse, enquanto os dois riem. Malu, com a pequena Lucia
em seus braços, caminha para mim, com Raul ao lado dela.
— Oh, meu Deus, desejo toda a felicidade desse mundo para vocês, Cia! — Meus braços se
esticam e abraço as duas com carinho, ouvindo sua voz emocionada. — Vocês merecem muitas
felicidades!
Sinto um carinho imenso por Malu, que se tornou uma irmã de coração para mim. Lhe dou um
beijo no rosto e me abaixo, beijando a pequena menina em seus braços. Me afasto dela apenas um
pouco, esticando minha mão e alisando sua barriga, que ainda está sem volume.
— Nós merecemos, minha amiga — falo com brandura para ela. Rafagá se abaixa perto de
Malu e tira Raul do chão, o levando para se sentar em seu ombro. Sua outra mão se estica e passa
pelas costas de Malu, a trazendo com carinho para perto dele.
O amor da pequena mulher para o grande homem ao seu lado é nítido em seus olhos, assim
como o dele por ela. Rafagá e Malu encontraram muito mais que um abrigo dentro do pequeno
casebre escondido entre as montanhas, encontraram um sentimento lindo, que os dois tiveram um pelo
outro. Rafagá, com todo o seu tamanho, bravura e teimosia, não foi páreo para resistir ao encanto da
doce e querida Malu. O jovem Raul, que tinha se afeiçoado ao grande ursão, passou todo tempo de
recuperação de Rafagá dentro do quarto, brincando com ele. Rafagá, por sua vez, gostou da sensação
de paz que a pequena família de Malu trouxe para ele. E quando Marlon, com mais alguns policiais,
subiram a montanha atrás de Malu e das crianças, apenas os gritos horrendos foram possíveis de se
ouvir, ecoando entre os desfiladeiros. Restou apenas um único sobrevivente, que conseguiu fugir
assim que ouviu os gritos dos seus companheiros. Os corpos dos outros nunca foram encontrados, e a
história que se espalhou pelo vilarejo, contada por um jovem policial sobrevivente, era que um
grande urso espreitava a montanha e que Marlon e seus homens tinham invadido a caverna do
poderoso animal. O grande urso impiedoso tinha a força de vinte homens e matava qualquer um que
se aproximasse da montanha.
Os ciganos, por sua vez, espalharam que o grande urso era uma maldição rogada pela tribo
dos Dourados, para condenar qualquer um que ousasse subir as montanhas para fazer algum mal a
qualquer animal ou cigano que morasse por lá. Só Jesse, eu e Malu sabíamos a verdade. Rafagá tinha
prestado atenção no que Jesse relatou a ele antes de partirmos da casa de Malu. Ele sabia que não
iria demorar para Marlon subir com mais reforço. Rafagá esperou dois dias, para seu ferimento
aguentar a cauterização, o que o ajudou a se manter de pé, e foi até a caverna do urso morto, sobre a
qual Jesse tinha lhe contado que levou as roupas sujas de sangue de Malu e das crianças. Rafagá
encontrou o imenso animal morto lá dentro, o esfolou por inteiro, deixando permanecer apenas a
grande cabeça na pele e as patas com as garras. Malu, junto com Raul, deixou pegadas no chão,
fazendo os passos deles pararem na entrada da caverna, contornando e atravessando o rio para voltar
para seu casebre.
Como previsto, Jesse estava certo. Marlon subiu a montanha e seguiu o rastro falso que Malu
deixou, os levando direto para a caverna do urso. Rafagá os atacou, os pegando de surpresa, tendo a
caverna repleta de armadilhas. O grande homem esquartejou Marlon, assim como os outros, e o que o
jovem policial viu antes de fugir foi Rafagá vestido com a pele de urso, com a grande cabeça do
animal em cima da dele. Junto com o que o jovem viu e saiu contando, mais os boatos que os ciganos
tinham amaldiçoado a montanha, ninguém mais do vilarejo teve coragem de subir ao local. Malu foi
atrás de Rafagá quando os gritos se silenciaram e o encontrou durante a madrugada na margem do rio,
se lavando do banho de sangue que ele teve. Eu não quis ser indiscreta e perguntar para ela, mas algo
dentro de mim me diz que o pequeno presente que cresce em sua barriga veio daquela noite junto ao
grande e feroz homem urso. Ela não contou para ele quando descobriu, teve medo de Rafagá partir, e
ela não desejava que ele ficasse ao seu lado apenas por conta de um filho. Mas Malu estava
enganada, Rafagá não partiu, ao contrário, ele entregou a ela toda sua lealdade, assim como seu
coração. Malu me relatou, rindo, que pensou que ficaria surda na noite que contou para ele sobre a
gravidez, de tanto que Ragafá rugia, como um contente ursão.
Meu desejo era ter matado Marlon com minhas próprias mãos, por todo mal que ele fez a mim
e a Beca, mas o destino se encarregou do fim dele, o levando direto para Rafagá, um assassino
impiedoso e cruel, que me deu minha merecida vingança e minha paz.
— Venha, Cia... Venha. — Rosalinda segura minha mão e aponta para o círculo de mulheres,
que estão paradas perto da fogueira.
Desvio minha atenção de Malu e Rafagá, que transbordam amor em uma troca de olhares, e
me volto para Jesse.
— A hora da dança da noiva — falo, rindo para ele, ficando na ponta dos meus pés e
beijando sua boca.
— Vou ter que lhe deixar ir? — ele pergunta, rindo, me abraçando com carinho.
— Vai, se não quiser todas as ciganas lhe olhando zangadas — murmuro entre o riso,
esticando minha mão e alisando sua face.
Jesse se afasta de mim e puxa o manto negro das minhas costas. Espalma sua outra mão em
meu ventre e vejo seu olhar perdido para a minha barriga. Depois ele o ergue para meu pescoço e
olha triste para minha garganta, onde minha cicatriz está. Eu sei o que lhe preocupa, se a besta passou
sua linhagem para nosso bebê quando me mordeu. Mas Jesse me salvou, assim como nosso filho, ao
deixar a mordida da besta marcando minha pele. Ao se alimentar do meu sangue, ele nos uniu.
— Um presente, Jesse, se lembre. — Sorrio para meu marido e tombo minha face para o
lado. — Um presente.
— Não, Cia, Boris não me deu um presente ao me entregar a maldição de sangue, o presente
dele foi você. — Ele segura meu rosto em suas mãos e me beija com intensidade, me fazendo
suspirar baixinho. — Eu te amo, cigana.
Os gritos das mulheres do clã aumentam, me chamando para entrar no centro da roda delas, o
que me faz sorrir para Jesse, murmurando um eu te amo antes de ser puxada por elas para dançar em
volta da fogueira. Os cânticos aumentam, junto com as palmas, e uma canção começa a ser repetida
por todas. Retiro meu sapato e fico descalça. Seguro meu vestido e o ergo para não se arrastar no
chão, me juntando a elas, entrando no meio do círculo das ciganas. Olho para Jesse ao longe, que
sorri para mim, e vou deixando meu corpo ganhar movimento, dançando ao som das músicas antigas
do meu clã. Minha alma se liberta e cada movimento do meu corpo é uma dança de felicidade, de
entrega, de liberdade, a qual eu desejei tanto e consegui tanto para mim quanto para minha gente.
Minhas mãos vão ao alto e se movimentam com graciosidade, enquanto bato palmas,
dançando os passos que me foram ensinados por minha avó. A cada passo que vou me
movimentando, mais silenciosa minha mente vai ficando, se desligando de tudo à minha volta, me
deixando em um mundo só meu. Meus olhos se erguem e encaro a grande fogueira, observando as
labaredas altas, que se movem como se estivessem dançando no ritmo do meu corpo. Posso jurar
pela minha vida que vejo perfeitamente um casal abraçado entre as chamas da fogueira, se beijando.
Assim que a pequena mulher vira seu rosto e olha diretamente para mim, eu tenho absoluta certeza
que estou realmente os vendo entre as chamas.
— Vovó... — murmuro, perdida, sentindo meus olhos ficarem marejados ao olharem para
eles. Ela sorri para mim, encostando sua cabeça no peito do grande cigano parado ao seu lado. —
Vovô...
Sorrio com emoção e recebo um olhar bondoso dele para mim. Sua mão se ergue e toca seu
coração, esticando seu braço em cumprimento para mim, como ele fazia quando eu era menina.
Minha mão se espalma em meu peito e estico meu braço para ele, retribuindo seu amor. Os dois
sorriem para mim, passando seus olhos pelo clã, e meu avô dá um leve balançar de cabeça em
positivo, ficando em paz ao ver seu povo comemorando nossas tradições antigas. Ele abraça sua
doce Esmeralda, voltando a olhar para mim de forma carinhosa. Do jeito que eles apareceram, eles
sumiram.
— Cia... — O toque leve em meu ombro me faz virar. Encontro os olhos preocupados de
Jesse me olhando. — Está bem?
Sorrio para ele e o vejo erguer sua mão e alisar minha face.
— Sim. Estou feliz, meu amor — o respondo carinhosamente.
Seguro suas mãos e as levo para meu ventre, sorrindo com puro amor e felicidade para ele.
Uma nova era se inicia em minha vida, junto com meu mais fiel e leal protetor: meu mercenário,
assassino, amante, marido, meu amor.
AGRADECIMENTOS
Obrigada à minha linda Yara, por me presentear com esses diversos mundos. Obrigada a
Jesse e Cia, que demonstraram o seu amor em cada linha.
Obrigada a todas as minhas colaboradoras, que enriqueceram a obra.
Obrigada à minha amiga e irmã de coração, Valdirene Gonçalves, por estar ao meu lado em
mais um mundo diferente.
E, claro, muito obrigada a vocês, meus leitores maravilhosos!
OUTRAS OBRAS
Outras obras:
Primeira série:
KATORZE - LIVRO 1
PAOLO A RENDIÇÃO DO MONSTRO - LIVRO 2
PAOLO O DESPERTAR DO MONSTRO - LIVRO 3
ATENÇÃO: contém cenas eróticas e gatilhos que podem gerar desconforto. não indicado para menores de 18 anos.
Um inimigo antigo uniu os irmãos Ávilas em uma derradeira vingança. Daario e Paolo juntos, lado a lado, abriram as comportas do
inferno, trazendo carnificina e sangue para aqueles que machucaram suas famílias.
A cada percurso da caçada, em uma busca cruel e implacável pelas suas mulheres, os monstros estavam famintos por morte e justiça,
fazendo aliados poderosos e alianças inquebráveis, deixando um rastro de corpos por onde passavam.
A pequena bruxa Yara encontrou forças para lutar pela sua sobrevivência e do seu filho quando a destemida pantera Katorze cruzou seu
caminho de uma forma inesperada. As duas mulheres traziam fé em seus corações de que seus monstros iriam libertá-las, afinal nem
todo predador é fatal, mas todos os monstros Ávilas criados pelo cruel Joaquim são assassinos.
Um amor além do tempo, do universo, do grande desconhecido. E se nada fosse o que realmente é? E se entre seu mundo tivesse outro,
onde magia e realidade se chocassem? Onde uma maldição foi imposta, obrigando um príncipe do submundo a enxergar com outros
olhos a raça que ele julgava a mais inferior de todas. Onde fosse condenado a vagar por eras e eras em busca de uma estrela solitária.
E se nada fosse o que é?
História e conto Irmãos Falcon
Recomendando para maiores de 18 anos
Este livro contém descrição de sexo explícito e palavrões
Doty só queria uma coisa: achar o miserável que engravidou Tifany e chutar seu rabo até Dallas.
A única coisa que Joe queria era dobrar o demônio de olhos negros que o tirou do sério, fazê-la pagar por sua língua afiada e boca suja.
Uma proposta!
Sete dias!
E tudo foi para os ares!
Bem-vindo à Arena
Billi tinha traçado seu destino, já não era mais o menino delinquente, tinha se transformado em um homem, foi atrás do seu sonho e criou
seu mundo em cada touro que montou aos 32 anos.
Arena Ranger lhe trazia apenas um desejo, o grande touro Asteroide 8 segundo que valeria sua carreira, mas o pequeno cometa que
cruzou seu caminho. Fez o Cowboy mudar seus planos.
Únicos
ATENÇÃO: CONTÉM CENAS ERÓTICAS E GATILHOS que podem gerar desconforto. NÃO INDICADO PARA MENORES DE
18 ANOS.
Se me perguntarem se já era amor desde o início, garanto-lhe
com as minhas palavras salgadas pelas lágrimas que sim. Eu já o
amava antes do princípio, assim como no meio e fim. Nosso amor
mórbido e louco nos unia em nossa agonia chamada vida.
Se existia um inferno, eu iria para lá por ele, pois onde mais
dois pecadores poderiam descansar suas almas negras manchadas
pelos pecados da carne? E então, eu fui. Joguei-me de cabeça em seu
mundo. Conforme trazia Ben para mais perto de mim a cada sonho, a
cada parte dele que eu salvava, uma parte minha ficava presa em
seu labirinto. Em meu peito, onde batia um coração de uma menina
apaixonada, não importava em quantos pedaços eu teria que destruir
minha alma para salvá-lo, pois a loucura que o habitava era a mesma
que tinha morada fixa em meu coração.
Lizandra, essa sou eu, ou a sombra de quem eu fui um dia.
Quatro mulheres desesperadas por apenas uma noite de folga e por um segundo de descanso ganham, misteriosamente, um sorteio
relâmpago de rádio, que tem como prêmio uma estadia nas suítes luxuosas do novo hotel da pacata cidade.
Cada uma tem sua história e seus segredos, mas todas trazem uma coisa em comum: desejos reprimidos.
O Dia das Bruxas nunca mais será o mesmo para elas.
Não deixem de perder essa deliciosa noite de Halloween, principalmente se for uma menina malvada.
Handrey, junto com seu irmão Jonny, participava ativamente de um grupo de neonazistas violentos, pregando a supremacia branca. Seu
destino mudou ao encontrar o corpo do seu irmão junto a um homem negro dentro do seu apartamento, ambos sem vida. Ele nutriu
apenas ódio e autodestruição por catorze anos, jogado dentro da penitenciária federal, almejando apenas uma chance de descobrir quem
era o verdadeiro assassino do seu irmão. Sua chance veio acompanhada de um pro bono misterioso, que lhe deu sua liberdade provisória.
O homem passou a ver as coisas de uma maneira diferente ao se deparar com Eme, uma stripper negra que o levou a questionar uma
doutrina de uma vida inteira. Ele já não se sentia mais à vontade com o grupo neonazista.
Quando corpos mutilados de mulheres negras e imigrantes começaram a aparecer pelas ruelas do porto, assombrando todas as garotas
de programa ao descobrirem que tinha um assassino em série que matava por esporte, Handrey percebeu que mais alguma coisa tinha
escapado junto com ele do esgoto imundo que era seu passado.
Dylan Ozborne sabia que a pior época da sua vida era dezembro. Ainda não acreditava que seu irmão havia o obrigado a ser o Papai
Noel para o evento beneficente.
Elly poderia ter sido a boa menina o ano inteiro, mas deixou para ser a menina má justamente três dias antes do Natal, indignada com o
nada bonzinho e muito menos velhinho Noel. Então resolveu se vingar do tirano e por fim lhe dar uma lição que nenhum
Sedrico Lycaios, mais conhecido pelas noites quentes regadas às promiscuidades de Chicago, como uma divindade do prazer, é
proprietário do clube peculiar, nada ortodoxo e, sim, envolvente e pecaminoso: a Odisseia, onde proporciona todas as experiências
desejadas por seus clientes, para aplacar seus prazeres mais obscuros. Mas, como todo semideus, Dom Lycaios tem sua fraqueza, e é
entre as paredes do seu templo da perdição que se vê sendo fisgado pela doce inocência de Luna, a dançarina exótica, tão silenciosa e
misteriosa, que o prende a cada movimento do corpo dela. Uma perfeita sugar baby, que desperta o interesse do sugar daddy que ele
traz aprisionado no canto mais obscuro do seu ser. Luna não tem chances para escapar das manobras do implacável homem, que a
envolve em suas teias de aranha. Afinal, o prazer sempre fora o maior império de Sedrico.
Maria Eloiza estava acostumada com a batalha diária que a lavoura tinha e com o esforço sobre-humano que seu trabalho lhe trazia.
Seguia batalhando mais uma vez, atrás de outra usina, dando graças a Deus quando essa apareceu, mas nunca imaginou que o canavial
lhe traria mais do que já estava acostumada a ter, até se perder nos olhos mais verdes que as plantações de cana.
Pedro Raia trazia o legado de sua família junto com ele. Mesmo renunciando aos sonhos que tinha, aceitou voltar para casa quando foi
convocado, cuidando de perto de cada um que entrava em suas terras, pois nunca foi de ficar dentro de quatro paredes. Sua paixão pela
terra era antiga, desde menino trabalhava na lavoura. Gostava da terra em suas mãos, sabendo que era dali que vinha toda sua essência.
Mas sua vida mudou quando, entre mais uma remessa de boias-frias, a pequena cabocla, com olhos assustados, lhe mostrou o mais puro
brilho de sua alma. Dois mundos, que andavam entre linhas finas, se chocaram. A realidade de um contra a vida do outro.
A vida sempre foi puxada para Maria Rita, fazendo-a se tornar o alicerce da sua casa e a moldando para ser a presença materna e
paterna para suas irmãs. Não é de riso fácil, e muito menos de ser dobrada por homem, mas algo muda em sua vida quando seus olhos
se cruzam com o peão chucro, Zeca Morais. Ele fará de tudo para laçar a mulher endiabrada, que faz seu coração disparar. Um amor
nasce sem freios entre os dois em meio aos cafezais. E juntos terão que enfrentar um grande inimigo, que fará de tudo para acabar com
a vida de Zeca Morais.
Yane Rinna tem sua vida mudada da água para o vinho quando se torna testemunha principal de um assassinato. Ela se vê obrigada a
entrar em um disfarce para garantir sua segurança até o dia do julgamento. E de uma stripper desastrada, inteiramente azarada, se torna
uma freira monitora de quatro adolescentes rebeldes. O que ela não imagina é que no último lugar que poderia sonhar, o amor e o desejo
puro estarão no ar. Dener Murati, o vizinho aristocrata do convento, tem seu autocontrole testado por uma fajuta freira sexy, nada santa,
que invade sua residência para se refrescar na calada da noite, pelada, em sua piscina. A pequena feiticeira que o encanta vai virar sua
vida meticulosamente organizada de cabeça para baixo.
Cristina Self passou anos reclusa em seu mundo seguro, o qual criou para si mesma depois de uma
separação conturbada e violenta. Até que seu caminho se cruzou com o notório advogado criminalista
Ariel Miller, conhecido nos tribunais por seu cinismo e frieza calculista. Seduzida pelo magnetismo
que ele possui, a encantando com seu olhar intenso, Cristina se desprende do seu mundo seguro, se
permitindo se perder por uma única noite no calor dos braços do charmoso homem. Mas o que
Cristina não sabe é que o destino tem outros planos para eles, um que ligará as duas almas quebradas
para sempre. E de um engano nada angelical, mas sim completamente sexy e envolvente, Cristina irá
do céu ao inferno para viver sua história de amor.
AVISO DE GATILHO: o livro contém violência doméstica e relacionamento abusivo.
[1]
Um gênero de música regional mexicana que remonta ao século XVIII, evoluindo ao longo do tempo no interior de várias regiões do
oeste do México.
[2]
Zona, prostíbulo.
[3]
Essa citação da vingança se passa no livro Paolo: A rendição do monstro, segundo livro da série Os monstros.
[4]
Carinho.
[5]
Meu carinho.