O Cine Candelaria

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O Cine Candelária

Article in Revista do Centro de Estudos Portugueses · June 2009


DOI: 10.17851/2359-0076.29.41.11-47

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1 author:

Teodoro Rennó Assunção


Federal University of Minas Gerais
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O Cine Candelária
Teodoro Rennó Assunção
Universidade Federal de Minas Gerais

“C’est au fond le ‘savoir’ d’un spectateur que je convoque ici.


Mais c’est le mien, c’est donc aussitôt quelque chose de ma vie qui a passé là.”
Jean Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma

“Fechado o cinema Odeon, na Rua da Bahia.


(...)
Não é possível, minha mocidade
fecha com ele um pouco.
(...)
Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,
maior, mais americano, mais isso e aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon,
o miúdo, fora de moda Cinema Odeon.”
Carlos Drummond de Andrade, “O fim das coisas”

E sta breve e saudosa fantasia amalgama estratos temporais diversos


de um outro eu (também diverso) no tempo, mas caracterizado
por um traço comum: a não inserção adulta no mercado de
trabalho e a disponibilidade. Ela é variadamente detonada – cruel ironia!
– todas as vezes em que, fazendo o percurso automobilístico de casa – no
Sion – em direção ao campus da Pampulha, via Pedro II e Catalão, (eu)
contorno a praça Raul Soares até a esquina onde decrépito e já desativado
se situa o prédio do antigo Cine Candelária (agora só a casca da fachada).
A memória de noitadas nos anos 80 é pré-ativada pela passagem na Bias

11
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Fortes quase chegando à praça onde outrora o glorioso Hi-fi (hoje esquálido
Boehmio’s) servia Pilsen-extras e bons pratos de resistência baratos, enquanto
o ainda mais madrugadeiro Scaramouche servia também a bom preço
carnes grelhadas bem feitas e cerveja gelada. As imediações do Mercado
Central lembram também os seus inúmeros botecos que servem tira-gostos
(carnes bem aceboladas) com cerveja e, em sua mais distante proximidade,
o antigo Tavares com suas carnes de caça proibidas, ou mesmo, na Curitiba,
o heróico-nipo Tokyo com seus êxtases tranqüilos e relativamente baratos
de teishokus regados a sakê, antes de sua súbita desaparição após um
incêndio suspeito conectado na época à exploração “mafiosa” de máquinas
de video-poker. A passagem pela Olegário Maciel (onde um segundo
mercado dispõe também de seus inúmeros bares) reaviva a memória mais
remota do inteiramente desaparecido Cine Texas (com sua programação
faroeste-pornô) assim como a memória bem mais recente do notívago e hard-
core Vagalume com suas desafinadas e precárias bandas tocando ao vivo para
a fauna majoritária de putas, travestis e gigolôs. Enfim, pouco antes da
chegada da esquina do Candelária, reminiscências de leituras já antigas de
Valéry Larbaud (terá sido no Barnabooth ou no Jaune bleu blanc?), descrevendo
ocioso (e feliz no detalhe) as praias do golfo de Nápoles, são evocadas pelo
nome de bom augúrio do pequeno, ordinário e resistente Hotel Sorrento.
Se avançássemos na praça até a outra esquina, chegaríamos a um bar
outrora elegante (cujo nome agora me escapa) com seu balcão largo e
mesas/cadeiras de madeira hoje já desaparecidos, e, virando na Augusto de
Lima, iríamos em direção ao há muito defunto Cine Roxy (antigo Cine
Democrata) e ao campo cruzeirense do Barro Preto, bandas hoje
frequentadas apenas enquanto me encaminho pra ver algum filme em fim
de carreira no Cineclube/sinuca/bar La Bocca. Passando pela Amazonas
(onde lá no alto, já quase com Contorno, a Juiz de Fora guarda hoje um
Haus München com promissoras cervejas incrementadas), poderíamos
enfim virar de novo na Olegário Maciel subindo, onde, no térreo do JK,
ao lado de uma Assembléia de Deus, o subterrâneo e abafado Matrix já foi
palco de shows udi-grudi (que, alcoolizado e sonolento, quase-recentemente
presenciei) como o de Jards Macalé ou os das bandas de rock mineiras
“Último Número” e “Divergência Socialista”.

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Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

Mas é o Cine Candelária que – como majestoso alvo involuntário


desta forçosa e quase diária flânerie automobilística matutina – declancha
a multifacetada fantasia do ócio cinematográfico. Ainda no finalzinho dos
anos 90 foi possível acompanhar sua melancólica derrocada final de prédio
quase abandonado (com sua pintura azul claro toda descascada) onde a partir
das duas da tarde era possível assistir com um único ingresso – promoção
terminal do já quase cadáver ilusionista – a dois filmes pornôs fajutos cujos
títulos mal se deixavam anunciar nos letreiros pretos (ou vermelhos)
banguelos e cujos cartazes de duvidosa obscenidade já haviam se retirado
para o interior da sala de espera. Nem mesmo à tarde ou começo da noite
era mais possível ver um carrinho de pipoca ou baleiro ambulante que fosse
e a discreta bilheteria, sob cujas gradinhas era inverossímil pressupor a
presença de uma alma contábil enclaustrada, parecia completamente
desertada. Logo pela manhã um vago desejo de abandono de qualquer
projeto de vida (ou do árduo e incompleto fazer que resulta em minúsculas
obras) assumia a forma nonchalante e sonhada do cinéfilo diletante que, a
partir das dez ou onze horas da manhã, na poli-oferta parisiense de cinema,
já pode penetrar na sala escura para seguir – esquecido dos afazeres e
justificado pela boa qualidade do divertissement – um filme de um
qualquer festival de autores como os irmãos Lumière, Dziga Vertov, Jean
Vigo ou Renoir (a lista, não fingidamente clássica e educativa como esta,
poderia ser longa e conter, por exemplo, os experimentos mais contemporâneos
de Andy Wahrol, Michael Snow, Hollis Frampton, Margueritte Duras ou
Guy Debord). A desolada paisagem belo-horizontina desmente, porém,
num instante, esta há não tanto tempo (ou seja: no meio dos anos 90) ainda
aberta – mas rarissimamente realizada – possibilidade. Ela se assemelharia
antes – pelo possível mas aqui rarefeito público semi-proletário ou
desempregado – a um cinema popular com repertório ordinário funcionando
desde as onze da manhã na Münzstrasse na Berlim do fim dos anos 20 (cf.
“Cinéma dans la Münzstrasse” de Siegfried Kracauer1). Este público triste

1
KRACAUER, 1995.

13
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

– numeroso na Berlim dos anos 20, mas que, em Belo Horizonte no fim
dos anos 90, não passaria certamente de uma extraordinária e excêntrica meia
dúzia de pessoas – seria ainda hoje composto por pessoas que, nos termos
de Siegfried Kracauer, “não sabem o que fazer do seu tempo.”2
Longe, no entanto, de haver sido sempre assim. Dos relatos de mãe
e tias que moças o frequentaram ao longo dos anos 50, onde (então um cine
bem-afamado no centro geométrico do plano original da cidade de BH)
puderam assistir – se não falha a memória delas – sobretudo a filmes
mexicanos e espanhóis, até minha certamente esquecida primeira vez no fim
dos anos 60 (talvez algum filme comemorativo da Copa de 70) e, primeira
vez de que ainda consigo me lembrar, o então (1972) recém-lançado
Horizonte perdido, que impressionou profunda e seriosamente o pré-
adolescente começando a degustar uma vaga inquietação metafísica e uma
tolamente romântica e insuspeita sede de absoluto, até, enfim e ainda no
plano do cinema sério, o encontro já adolescente pré-marxista, com um
primo distante (então envolvido com o movimento estudantil) no filme
O assassinato de Trotsky de Joseph Losey – bela e então importante lição de
anti-stalinismo – em uma sessão exemplarmente vazia das quatro horas da
tarde de um dia útil. Já no plano da iniciação erótica, caberia citar o filme
A estrela sobe de Bruno Barreto, visto também já adolescente com a expressa
intenção de ver os peitinhos (e talvez a boceta cabeludinha) de Betty Faria,
que desarmou e surpreendeu com a até então desconhecida estória
comovente do romance de Marques Rebelo (seria alucinação a sensação de
lágrimas ou de algum estranho aprendizado sobre o mundo?).
Antes, porém, de finalizar o breve relato do reduzido repertório de
filmes vistos no Candelária de que ainda me lembro, seria útil talvez – nesta
precária tentativa de resgate parcial do lembrado – citar alguns filmes
memoráveis a partir do fim dos anos 60 e ao longo da década dos 70, vistos
em outros cines da cidade, mas que a verossimilhança não impediria de
todo que tivessem sido vistos lá: O dólar furado com Giuliano Gema, visto

2
KRACAUER, 1995, p. 102.

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Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

com o mais chegado dos primos, e Tubarão do Spielberg, numa das raras
vezes com o pai (o que dizer do fiasco de um lento e existencial-burguês
Antonioni visto com ele no Cine-clube da FACE?) no sólido e central Cine
Brasil; O destino de Posseidon, visto com este mesmo primo – filme
catastrófico que, ao espectador sair, desperta a algo fácil sensação de alívio
de se saber são e salvo – no Cine Royal; a Odisséia com Kirk Douglas, visto
com uma prima chegada e coetânea, numa alegre e com o filme radiosa
manhã de domingo (pré-estréia ou sessão infanto-juvenil?) no Cine
Jacques, então ao lado do saudoso Ted’s com seus hot-dogs longos com
batata frita; As 24 horas de Le Mans com Steve Mcqueen, visto com um
antigo colega (mau aluno, doidão e muito bom de bola cf. o infanto-juvenil
do Atlético) que nunca mais vi, no sempre confortável e de boa acústica
Cine Paladium; o Canal 100 inesquecível que, visto com não sei mais
quem no majestoso Cine Metrópole, mostrou a derrota e desclassificação
(já semifinal do Robertão?) no Mineirão do Cruzeiro para o Fluminense
por 1 x 0, gol de Mickey; Irmão Sol, Irmã Lua de Zefirelli, visto com o
irmão (em assombro cristão) no Cine Tamoio; O estranho no ninho com
Jack Nicholson, visto com o irmão também no Cine Paladium; O jovem
Frankenstein com Martin Feldman e Mel Brooks, visto também – em
agradável sessão da tarde – com o primo mais chegado no hoje remoto
Cine Guarany; Butch Cassidy e, pouco depois, O golpe de mestre com Paul
Newman e Robert Redford, respectivamente no Paladium e no Guarany;
O fantasma da liberdade de Buñuel, visto por mim sozinho e então perplexo
(como quando da contemporânea leitura dos contos d’O muro de Jean-Paul
Sartre) no Cine Pathé, assim como aí também o Amarcord de Fellini, visto
com o então recém-conhecido e agora o mais antigo amigo de colégio (e
esta lista, com alguma pesquisa e arranjos de verossimilhança, poderia se
estender indefinidamente, mesmo que continuasse a não incluir todo o
Godard, Pasolini, Antonioni, Glauber Rocha, Wim Wenders, Herzog,
Sganzerla e muitos outros vistos no cineclube da FACE ou na Humberto
Mauro...).

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O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

II
É a figura do antigo companheiro na experiência adolescente de
voyeurismo pornô no Candelária – um primo algo afastado com os dois
sobrenomes de meu pai, colega bonito, inteligente e muito bom de bola,
que morava com os pais (como eu na rua Aimorés com Santa Catarina) na
rua Mato Grosso quase com Aimorés, não muito longe da praça Raul Soares
– quem me desperta, por associação prévia e imperiosa, esta outra e mais
tardia (já com mais de 18 anos) recordação de um uso estranho do cinema
(em que o esperado repertório pornô quase se apaga diante do fenômeno
maior que é estar sentado olhando a tela naquela sala escura) sob o efeito
do haxixe. Banhados na irresponsabilidade ou indiferença acadêmica e
inspirados por um nihilismo alegre e uma disponibilidade meio boba e em
via de extinção para aventuras banais, já fizéramos, rindo de loucura fácil,
experimentos haxixins de flâneries bicicléticas pelo centro de Belo Horizonte
às três e meio ou quatro horas da madrugada. Lembro-me então também
de alguns “experimentos” para obter sob o haxixe no cinema – e aqui no
Cine Candelária que alcançávamos a pé – não a estranheza de uma outra
“realidade” por imersão no simulacro (ou representação), mas a estranheza
anterior e enquadrante de estar em Belo Horizonte, no Cine Candelária,
na tarde de um dia útil, assistindo com um amigo vadio a um pornô
ordinário, até que esta mínima localização e situação, sob uma onda mais
forte da procela haxíxica se perdesse de súbito em uma apavorante
desorientação e não-saber. O frisson metafísico quanto ao espaço e o onírico
desejo de sair do cinema em uma outra cidade nos levava, depois de uma
troca rápida de palavras e já meio saturados do geme-geme do fuck, a
abandonar a sala para confirmar a estranheza ordinária de estar na terra (que
planeta é este afinal?) em Belo Horizonte no Cine Candelária, mas onde
enfim? Estes “experimentos” livres, no entanto, não visavam nenhuma
pesquisa por contraste sobre o funcionamento da consciência normal tal
como a realizada por Henri Michaux e descrita em “Le merveilleux normal”
(em Les grandes épreuves de l’esprit).3 Os flashes desconexos e fulgurantes

3
MICHAUX, 1966.

16
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

desta forjada e quase nunca alcançada iluminação haxíxica – quanto ao


absurdo de estar no mundo e quanto a um não mais reconhecer este mundo
e um não mais saber onde se está – tornavam-se logo, na ausência de qualquer
registro e formalização, mera poeira de uma embriaguez amnésica que consumia
tempo sem quase nada dar em troca além da corrosiva moleza e apatia.
O que de fato sempre me chamou primeiramente a atenção em “Le
merveilleux normal” de Henri Michaux – que pode retrospectivamente ter
contaminado ou deformado com seu filtro exegético a memória larvar de
alguns “experimentos” despretensiosos de dois ingênuos universitários
nihilistas – é menos o conteúdo, certamente surpreendente, da experiência
da desorientação, do que sua bizarra localização em um cinema. O que
ocorre a Michaux sob o efeito do haxixe? Uma estranha e desconhecida (e
enfim intolerável) falta: a de saber em que cidade do mundo ele estava; e,
ao reencontrar Paris (“Paris, rive gauche, tout bonnement.”4) saindo do
cinema, a continuidade intermitente da perda da situação em que se
encontra ou como ele mesmo define então: “O que se passava? Eu estava
desorientado. O que quer dizer isso? Desordenadamente desorientado por
desorientações múltiplas, incessantes, incessantemente diferentes,
imprevisíveis; desconcertado por interrupções de orientação. Era preciso
que eu bem o reconhecesse: desde meu nascimento eu tinha passado a
maior parte do meu tempo me orientando. Obrigatoriamente vigilante,
golpeado sem trégua pelos estrépitos, os choques, os chamados que de todas
as partes sinalizam, advertem, alertam, eu tinha, como qualquer homem,
sido obrigado desde sempre a precisar a situação em que me encontrava, a
fazê-lo várias vezes por segundo, a refazê-lo, navio no meio do estranho, do
estrangeiro, forçado a estas indispensáveis operações para me manter em
estado de conhecimento da situação indefinidamente mutante.”5
São, porém, pinceladas breves, comuns e vagas – de um paisagista
pouco interessado na crônica autobiográfica direta – as que definem a
situação em que a crise de orientação ocorre: “Um dia, no cinema, após ter

4
MICHAUX, 1966, p. 10.
5
MICHAUX, 1966, p. 10.

17
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

tomado haxixe, como eu seguia na obscuridade um filme anglo-saxão


(...)”,6, sem que jamais saibamos que filme anglo-saxão era aquele, qual
cinema na rive gauche e qual dia (não seria então noite – ou seja: “Un soir
(...)” –, mas que dia da semana ou do fim de semana?), alimentando assim
a ociosa curiosidade do leitor e abrindo-lhe a fantasia de uma deliciosa
disponibilidade do escritor e pesquisador Henri Michaux, então
frequentador diurno de cinemas. Uma semelhante e nonchalante
disponibilidade – para a leitura, a música ou a contemplação solitária –
parece enquadrar a maior parte dos minuciosos relatos sobre os efeitos de
alucinógenos (e, em particular, de mescalina) cuja pesquisa cuidadosa e
exaustiva é matéria – além das notações poéticas de Paix dans les brisements
(1959) – de quatro densos livros de relatos e reflexões: Misérable miracle
(La mescaline) (1956), L’infini turbulent (1957), Connaissance par les
gouffres (1961) e Les grandes épreuves de l’esprit (1966). O “disponível
escritor”, que prepara então seu vigésimo livro: Les grandes épreuves de
l’esprit (1966), é já sexagenário (nascido em 1899), apesar de inaposentável
como artista, também artista plástico cuja primeira exposição data de 1937,
e – antes das relativamente tardias “viagens” por meio de drogas – grande
viajante do mundo: Savannah, Norfolk, Newport-News, Rio de Janeiro,
Buenos Aires (1920); um ano no Equador (1927); Turquia, Itália, África
do Norte (1929); “enfim sua viagem” em 1930-1931 na Índia, Indonésia
e China; Lisboa (1932); Montevidéu e Buenos Aires (1937); Brasil (Minas
Gerais e Estado do Rio) em 1939; Saint-Antoine e Le Lavandou (1940-
1942); Egito (1945-1946); Estados Unidos, Roma e Londres (1957) e
ainda muitos outros lugares posteriores não inscritos nas “Algumas
informações sobre cinqüenta e nove anos de existência” (“Quelques
renseignements sur cinquante-neuf années d’existence”7), e que – nesta
mesma mini(auto)biografia agora citada – registra já em 1921: “Métiers e
empregos diversos, medíocres e mediocremente exercidos.”,8 depois em

6
MICHAUX, 1966, p. 9.
7
MICHAUX, 1983.
8
MICHAUX, 1983, p. 13.

18
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

1925: “Empregos diversos. Algum tempo em uma editora a serviço da


fabricação.”,9 e enfim em 1938-1939: “Ocupa-se da revista Hermès”,10 sem
que, no entanto, sejam precisados o quando e o como o escritor e artista
conquista o decisivo direito ao ócio para dedicar-se sempre insatisfeito e
incompleto à plena aventura da composição das obras. Mas pode-se, ainda
assim, ter acesso a um flash biográfico sobre o cinéfilo Henri Michaux, no
começo de seu retrato (“Michaux: A paixão do exaustivo”) por E. M.
Cioran: “Há uns quinze anos, Michaux me levava regularmente ao Grand
Palais onde eram exibidos todos os tipos de filmes de caráter científico,
alguns curiosos, outros técnicos, impenetráveis. Para dizer a verdade, o que
me intrigava era menos as projeções do que o interesse que mostrava por
elas. Não compreendia muito bem o motivo de uma atenção tão obstinada.
Como, não cessava de me perguntar, um espírito tão veemente, voltado
para si mesmo, em perpétuo fervor ou frenesi, conseguia se entusiasmar por
demonstrações tão minuciosas, tão escandalosamente impessoais?”11
Mas, assim como Ulisses perde o senso de orientação ao chegar à ilha
Eéia, não sabendo mais onde o sol se levanta e onde se põe, e, depois da
descida ao Hades, de volta à ilha de Circe, reconhece estar no Oriente, assim
também os dois jovens experimentadores nihilistas, após a não de todo
explicitada experiência de desorientação no cine Candelária, alucinam
precariamente sob o efeito do haxixe ornamentos e arabescos pseudo-
orientais tanto em bazares de quinquilharias (segundo Henri Michaux:
“detalhes no detalhe; rendados no rendado; continuação monótona”12)
quanto nos jogos melancólicos das colunetas de água da hoje extinta fonte
luminosa do jardim (parádeisos) da praça Raul Soares, extraordinariamente
sensíveis aos fugidios e em B.H. improváveis “minaretes” evidenciados pelo
cânhamo [e alimentando, na extremidade oposta do círculo da praça ao

9
MICHAUX, 1983, p. 15.
10
MICHAUX, 1983, p. 15.
11
CIORAN, 1986, p. 91.
12
MICHAUX, 1967, p. 18.

19
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

modernoso (e outrora chique) edifício Casablanca, por entre cervejas e


bagaceiras no bar (com balcão e mobiliário de madeira escura) Marrocos
(agora sim o nome), uma fantasia qualquer haxíxica retirada inconseqüente,
ingênua e romanescamente d’O quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel
ou da leitura espaçada e preguiçosa – quem sabe? sob uma pseudo-palmeira
empoeirada da praça – de Omar Khayam, Hafez e aqui e ali de algo d’As
mil e uma noites, de Jorge Luis Borges ou das Nourritures terrestres de André
Gide], pois, como lembra com pertinência Henri Michaux em “Como
agem as drogas?” (“Comment agissent les drogues?”), “são os fustes
incrivelmente gráceis das aparições haxíxicas que deram a idéia, o princípio,
o jeito dos jatos d’água filiformes, dos graciosos arcos geminados, das
colunetas, dos arcos sobreelevados, dos minaretes e não o Islã que de
maneira nenhuma os continha, como também não continha as estalactites
ambíguas e vibrantes de seus frontispícios e seus ‘arabescos’ sem fim,
exemplos dos ornamentos com infinitas variações, da fina ornamentificação
incoercível das visões haxíxicas, de seus diamantes misturados.”13

III

Diferentemente do Cine Pathé – cuja história já pode hoje ser


consultada em A sala dos sonhos de Carlos Armando14 (ou mais recentemente
também em Cine Pathé de Celina Albano 15) – o Cine Candelária,
inaugurado em 11 de dezembro de 1952 com capacidade para 2000 pessoas
(cf. O fim das coisas16), aguarda ainda um registro sistemático da sua
programação e frequência até o final da década de 90. Em O fim das coisas:
as salas de cinema de Belo Horizonte, há, além dos dados já citados sobre sua
inauguração, apenas a seguinte informação servindo de legenda a uma foto

13
MICHAUX, 1967, p. 22.
14
ARMANDO, 1999.
15
ALBANO, 2008.
16
BRAGA, 1995, p. 56, nota 60.

20
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

provavelmente do começo dos 80: “Prédio do Cine Candelária, um dos


maiores cinemas da cidade. Foi bastante freqüentado nos anos 60, quando
possuía instalações modernas e confortáveis aliadas a uma programação de
qualidade.”17 Na ausência da memória de uma experiência direta ou de uma
pesquisa em jornais, o pouco que pude saber da programação dos anos 60
me chegou por meio de testemunhos orais: um crítico de cinema belo-
horizontino – da turma antiga do CEC – lembrava ter visto mais de um
Godard (Pierrot le fou, Alphaville?) no Candelária, enquanto um
aficcionado soixante-huitard de blues e rock-and-roll lembrava ali de matinées
dominicais com shows da “Jovem Guarda” onde certa vez na entrada
ganhara um inesquecível beijo da hoje esquecida (e breguíssima) cantora
Vanusa. Não é, porém, minha intenção fazer um registro detalhado e objetivo
da história desta sala de cinema, mas apenas um relato circunstanciado de
algumas experiências pessoais que, como já indicado, datam somente do
início dos anos 70.
Uma possível caracterização genérica do que ocorre às salas de cinema
belo-horizontinas a partir sobretudo do meio dos anos 70 é a sugerida pelo
título do capítulo IV de O fim das coisas: “decadência”. A massificação dos
hábitos televisivos e – por meio de uma novidade tecnológica decisiva – a
introdução do hábito cômodo e doméstico do home video com todo o
novo comércio das videolocadoras (“matou o cinema e foi à família”,
segundo reza a precisa e jocosa fórmula), aliadas a uma crescente e rápida
deterioração urbana do centro da cidade, geram uma situação (cujo
abandono e mal-estar é insistente em filmes coetâneos de Wim Wenders como
Im Lauf der Zeit e The summer in the city) que é descrita resumidamente da
seguinte maneira em O fim das coisas: “Várias salas do circuito comercial –
com suas instalações sucateadas pelo descaso de seus proprietários –
passaram a se dedicar à exibição de produções de qualidade duvidosa, como
filmes de artes marciais e pornochanchadas. (...) Na seqüência, os filmes que
exploravam a violência e a pornografia – em sua maioria produções de baixo

17
BRAGA, 1995, p. 75.

21
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

orçamento – tomaram de assalto as salas de cinema populares. Com isto,


essas salas perderam boa parte de seu público habitual.”18
Dos cines que optaram então pela exibição de filmes pornográficos
poderíamos deixar de lado os menos conhecidos que na década de 70 não
duraram mais do que dois anos como o Boa Vista (na avenida Elísio de
Britto), o Santa Rita (na rua Coronel Alves), o Montanhês (na rua
Guaicurus), o Pio XII (no bairro da Glória) e o Saci (na rua Tamoios) (cf. O
fim das coisas19). Mas não poderíamos deixar de mencionar – memorizando
ainda uma vez o já e para sempre desaparecido – alguns nomes de cines que
a partir da década de 70 compuseram a (consultável em jornais) oferta
semanal belo-horizontina de cinema pornográfico: o – pensado a princípio
para filmes de arte – Regina (na rua da Bahia), o Texas (na avenida Olegário
Maciel), o Miami (na rua Guaicurus), o Las Vegas (na rua Padre Belchior),
assim como os mais antigos e outrora participantes de um circuito comercial
não-degradado: o México, o Tamoio, o Art-Palácio e o Candelária. O
seguinte balanço numérico é expressivo: 1) “(...) no início da década de 80,
o número de salas em atividade no país era a metade do que existia nos anos
50”, 2) em Belo Horizonte, “em 1985, existiam 18 cinemas, sendo que 12
exibiam filmes pornográficos.” (cf. O fim das coisas20).
Um breve parêntese deve, no entanto, corrigir uma grave omissão na
história (meio oficiosa) das salas de cinema de Belo Horizonte proposta por
O fim das coisas: a da existência de salas populares (onde se pagava a metade
do preço das salas chiques) com programação pornográfica já na década de
10, salas saborosamente então denominadas “cine-poeira”, segundo um
testemunho indireto (o de Paulo Augusto Gomes) que paradoxalmente as
deixa no inglório anonimato: “Havia, ainda, os chamados ‘cines-poeira’,
designação da época para salas de má qualidade, quase sempre situadas em
zonas impróprias (do baixo meretrício ou boêmia), que programavam
filmes, seguidos muitas vezes de ‘shows’ ao vivo, onde mulheres semi-nuas

18
BRAGA, 1995, p. 77.
19
BRAGA, 1995, p. 77.
20
BRAGA, 1995, p. 78-79.

22
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

se exibiam em números de dança do ventre, maxixe e outras do mesmo


gênero. Obviamente havia resistência – e forte – a esse tipo de espetáculo,
levando o poeta Carlos Drummond de Andrade a relembrar no poema ‘A
difícil escolha’: ‘Cada manhã, a liga pela moralidade / serviçal, pontual /
indica os filmes que podemos ver, / os prejudiciais, os com reserva, / os
inofensivos.’”21
Apesar de Paulo Augusto Gomes não indicar sua fonte de informação
(e de não termos para Belo Horizonte os dados organizados e descritos das
salas e sessões de cinema, como o fez para São Paulo até 1914 Vicente de
Paula Araújo em Salões, circos e cinemas de São Paulo22), é possível colher
em Beira-mar (Memórias 4) de Pedro Nava uma espécie de confirmação
desta informação (ainda que, infelizmente, indireta e não muito detalhada).
Esta ad- ou supra-informação de Pedro Nava sucede uma primeira descrição
de uma sessão de cinema (ainda mudo) no Cine Odeon, dos jogos e cervejas
no Clube Belo Horizonte e da zona de meretrício para onde enfim aqueles
homens do começo dos anos 20 do século passado desciam. Eis o que diz
então o narrador: “Conforme ficara combinado, no outro sábado reunimo-
nos à mesma hora, o Paulo, o Cavalcanti e eu – enriquecidos pela
companhia do Isador – decididos a programa mais grandioso. Íriamos ao
Éden, o famoso cabaré da Olímpia. Em vez do Odeon, fomos ao Comércio,
velho pulgueiro da rua Caetés, freqüentado pela turcalhada das lojas da
vizinhança e suas famílias. Esse cinema era o segundo na hierarquia dos de
Belo Horizonte. Abaixo dele vinha o Floresta – aliás o mais velho da cidade.
Os outros ainda estavam nos limbos. Tinha havido um, na Zona, o Parque
Cinema, alguma coisa como a Cervejaria Dona Amélia, ao Mangue, onde
os habitués viam filmes enquanto cervejavam. Só que o de Belo Horizonte
era melhor: só passava fita de sacanagem. Infelizmente não conheci essa casa
grandiosa, que fez furor na segunda década, senão na saudosa reminiscência
de velhos boêmios da cidade.”23

21
GOMES, 1997, p. 353.
22
ARAÚJO, 1981.
23
NAVA, 1985, p. 61-62.

23
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Mas, ainda que não explícito nos filmes e no ambiente em que eram
projetados, o erotismo magnetizava também (dentro, embora, das
convenções burguesas) a atmosfera e as sessões do Cine Odeon. Dos cartazes
de filmes da Nordisk, colados nas paredes empapeladas de verde e vermelho
do vestíbulo do Odeon, Pedro Nava nos diz o seguinte: “Lembro dum,
particularmente. Representava cena de teatro onde se via, no palco recurvo,
a figura duma mulher em espartilho, rendas aparecendo por baixo, um
pouco das grossas coxas e das ligas verdes segurando meias pretas que se
perdiam em altos canos de botinas claras. Um enorme chapéu e pleureuse.
Arredondava boca de canto, dedinho no ar e era devorada pelos olhares de
senhores no camarote rente ao palco, de que um dirigia os raios do
monóculo aos regos do seio da artista e o outro, mais para baixo, para o
ponto apontado pela ponta do colete devant-droit. A mulher parecia com
as heroínas de nossos livrinhos de safadezas no colégio.”24 O começo ou
antecomeço das sessões era um momento privilegiado de flerte (assim
como o footing que as sucedia descrito no final deste primeiro capítulo):
“Antes da luz apagar, era costume dar um espaço de tempo para as famílias
se repararem. A orquestra afinava. (...) Como vários rapazes, o Paulo, eu e
o Cavalcanti permanecíamos de pé e corríamos os olhos nas moças sentadas
entre seus pais e mães e tias solteironas. Isoladas como dentro duma vitrine.
Os leques se agitavam, subia um perfume de pó de arroz e os namorados
começavam a trocar suas greladas ofidianas. De repente eu vi luzirem
(positivamente luzirem!) uns cabelos de ouro. Eram curtos e viravam-se em
duas pontas da face levemente picada de sardas de uma menina de narizinho
arrebitado cujos olhos escuros contrastavam com o metal de sua cabeça. Foi
como se eu assistisse uma flor desabrochar, um cristal se precipitar, nascer
uma estrela, subir o sol. Tive a impressão de uma pedrada no peito, coração
galopando no peito. Quando eu ia perguntar aos amigos quem era, a luz
apagou, começou a projeção.”25 Em Drummond também lemos algo assim

24
NAVA, 1985, p. 49.
25
NAVA, 1985, p. 50-51.

24
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

– ainda que poeticamente condensado – na descrição melancolicamente


saudosa do Cine Odeon em “O fim das coisas” (com itálicos meus):
“A espera na sala de espera. A matinê
com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.
A primeira sessão e a segunda sessão da noite.
A divina orquestra, mesmo não divina,
costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.
As meninas de família na platéia.
A impossível (sonhada) bolinação,
pobre sátiro em potencial.”26

Voltemos agora ao nosso ponto. O que a foto do Candelária


provavelmente no começo dos anos 80 revela é um formato de programação
pornô que ainda testemunhei no fim dos anos 90: segundo dois cartazes
acima dos letreiros habituais e mesmo do nome em linha de metal
preenchida por finas e longilíneas lâmpadas elétricas (Cine Candelária)
“sempre 2 FILMES; CENAS DE SEXO EXPLÍCITO DO COMEÇO
AO FIM somente para público adulto” (cf. O fim das coisas27). O que um
cartaz fixo acima dos cambiáveis letreiros ordinários anuncia é um formato
(ou material) pornô onde – como também nos visíveis letreiros “cambiáveis”
de cines como o Tamoio (“filme erótico com cenas de sexo explícito”) e
México (“filmes pornográficos com cenas de sexo explícito HOJE / A
vingança do dragão chinês”, aqui em modelo de dois gêneros; cf. O fim das
coisas28) – pouco importam o nome do filme, o do diretor ou dos atores
principais e mesmo – o que faz muitas vezes dos preparativos rápidos e
romanescamente inverossímeis do fuck e chupadas algo grotesco e sem
nenhuma graça – a estória, que, desconsiderada, está sempre (e toscamente)
a serviço da nudez e da consumação carnal que motivam como objeto o
olhar curioso do voyeur.

26
Apud BRAGA, 1995, p. 2.
27
BRAGA, 1995, p. 75.
28
BRAGA, 1995, p. 65.

25
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Se o termo “erótico” parece no caso destes filmes um eufemismo (já


que reservável apenas a “obras de arte” como o Decameron de Pasolini ou
o Império dos sentidos de Mishima), o termo “pornográfico”, ao designar
algo que é objeto de compra e venda – ainda que como imagem ou
representação (isto é: Ersatz, simulacro) da coisa – para a satisfação do desejo
ou da excitação sexual, parece adequado à idéia de “prostituição” (ou de
“prostituta”, pórnç em grego), neste caso, dos atores que vendem a imagem
de seus corpos “em busca do orgasmo”. Seria, no entanto, difícil e
descabido categorizar esteticamente (ou seja: no plano das “belas artes”) a
excitação sexual produzida por um filme ou – o que vai no mesmo sentido
– censurar, como um desvio patológico em relação a um modelo ideal, um
orgasmo obtido solitariamente ou pelo toque manual de um outro (como
na “pegação”) a partir da contemplação voyeurística excitada de um filme
pornô. Como categorizar, por exemplo, a mistura de nojo e excitação ou
interesse (análoga à que se daria quando da leitura d’Os cento e vinte dias
de Sodoma do Marquês de Sade ou d’As onze mil vergas de Apollinaire) –
em meio a uma parca e pouco à vontade platéia sedenta de prazer fácil – de
quem, como eu, viu Calígula (com o MacDowell do Laranja mecânica)
no começo dos anos 80 no Cine Candelária? Ou como censurar – mesmo
admitindo a funda tristeza da ausência de um parceiro sexual/erótico efetivo
– a “animalidade baixa” de uma descarga orgasmática obtida através da
masturbação solitária ou recíproca de quem se excita semipublicamente
vendo um pornô numa sala escura de cinema (onde se ouvem gemidos de
outros e se sente o cheiro enjoativo de esperma)?
Mesmo que uma estimativa precisa de classes sociais que compunham
a frequentação do Cine Candelária nos anos 70 (sobretudo a 2ª metade) e
80 ainda restasse como informação a ser obtida através de penosa pesquisa,
seria possível avançar (com alguma chance de acerto) uma característica
comum – além do interesse específico por sexo e pornografia – daqueles
frequentadores de sessões vespertinas em dias úteis da semana: a disponibilidade
de tempo e energia sexual (ou – mais ou menos radicalmente – a não-sujeição
ao trabalho). Mas se para os destituídos que estão à margem do trabalho
– como aquele Lumpenproletariat que frequentava as sessões matinais da
Münzstrasse de Berlim do fim dos anos 20 – o “desemprego” é certamente

26
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

signo de degradação social, é urgente, por outro lado, tentar recuperar – através
de um operador dissonante como Georges Bataille – a disponibilidade para
o sexo e a “animalidade bestial” (oposta à humanização servil do trabalho)
como signo de soberania. Em “Kinsey, a escória e o trabalho”, analisando
com alguma cautela metódica os dados do Relatório Kinsey sobre a
frequência hebdomadária de orgasmos, Georges Bataille chega às seguintes
conclusões: “Só a escória, ou seja, só aqueles que não trabalham e cujo
comportamento equivale globalmente a uma negação da ‘humanidade’,
apresenta uma proporção de 49,4% de alta freqüência. (...) Globalmente,
o índice varia segundo a maior ou menor humanização: quanto mais
humanizados estão os homens, mais reduzida é a sua exuberância.
Precisemos: a proporção de altas freqüências é de 15,4% nos trabalhadores;
16,1% nos operários não qualificados; de 12,1% nos operários qualificados;
de 10,7% nos ‘mangas de alpaca’ inferiores; de 8,9% nos superiores. Uma
única exceção a esta regra: ao passar dos empregados superiores às profissões
importantes que correspondem às classes dirigentes, o índice sobe mais de
3 unidades para atingir 12,4%. (...) O sentido deste aumento, no que diz
respeito à classe dominante, é claro: essa classe conhece, relativamente às
outras categorias, um mínimo de ociosidade e a riqueza média de que goza
não corresponde necessariamente a um tempo de trabalho excepcional; por
isso dispõe de um excesso de energia, superior ao das classes trabalhadoras.”29
G. Bataille, na sugestiva nota de pé da página 143, se pergunta então: “Em
certa acepção, que é a classe dominante senão a escória que conseguiu a
felicidade, ainda por cima aceite e consentida por todos os outros?” A
epígrafe de Balzac para este ensaio – uma citação por Bataille de Splendeurs
et misères des courtizanes de Balzac – formula exemplarmente a questão sob
um outro ponto de vista: “Daí a ociosidade que devora os dias; pois os
excessos no amor exigem descanso e refeições reparadoras. Daí esse ódio
pelo trabalho que obriga essas pessoas a procurarem meios rápidos de
arranjar dinheiro.”30

29
BATAILLE, 1980, p. 142.
30
BATAILLE, 1980, p. 133.

27
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

IV

Se, agora, em meio às já podres ruínas de memória, tento voltar um


instante à minha freqüentação em meados dos anos 70 e começo dos 80
do Cine Candelária, é preciso fazer um corte que coincide não com os 18
anos completados (dando acesso legal à entrada em qualquer filme), mas
com a obtenção (já com corpo e cara possíveis de alguém com 18, apesar
de apenas com 16) de uma carteirinha de cinema da UMES com data de
nascimento falsificada, resultado auspicioso da convivência com os cine-
clubistas de esquerda do movimento estudantil secundarista, o que no ano
de 1977 (em que ganhamos com uma chapa de oposição o Grêmio do
Colégio Santo Antônio) foi marcado precisamente pela reativação do cine-
clube neste colégio com a seguinte programação “cabeça” escolhida por
mim: Quando o carnaval chegar de Cacá Diegues, Noites de cabíria de
Fellini, O evangelho segundo São Mateus de Pasolini, Em busca do ouro de
Chaplin, Roma cidade aberta de Rosselini e O golpe de mestre com Paul
Newman e Robert Redford (o único a atrair muitos estudantes e lotar duas
vezes a sala).
Obviamente também depois de 1977 (e já com os 18 anos
completos), como deixa claro a segunda seção sobre o cinema sob o efeito
do haxixe, continuei, juntamente com a intensificação da cinefilia
cineclubística (sobretudo o cine-clube da FACE e a Humberto Mauro), a
freqüentar ocasionalmente o Cine Candelária, não tendo perdido de todo
o inconfessável interesse voyeurístico (apesar de sua urgência ter amainado
um pouco com a iniciação sexual aos 16/17 com paqueras e a primeira
namorada) por belas mulheres peladas e cenas de sexo (o mais das vezes mal)
representadas, ainda que a sensibilidade acrescida ao arbitrário das tramas,
à inconsistência das personagens e ao mau acabamento formal generalizado
começasse também a me fazer evitar um pouco o trash da pornochanchada
e depois também do pornô. Como exemplos quase apenas de títulos (de
filmes de que eu me esqueci quase inteiramente) poderia citar rapidamente
Elas são do baralho (1977) de Sílvio de Abreu, estrelando Antônio

28
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

Fagundes31; algum filme do estranho gênero (criado no Brasil por Antônio


Polo Galante) do “confinamento de mulheres” tal como (mas qual seria
precisamente?) Presídio de mulheres violentadas (1976) de A. P. Galante ou
Pensionato das vigaristas (1977) de Osvaldo de Oliveira ou Reformatório das
depravadas (1978) de Ody Fraga; Embalos alucinantes (A troca de casais)
(1979) de José Miziara com Nuno Leal Maia e o já bem grisalhudo
Anselmo Duarte impagável como senhor devasso (em uma trama picante
que sugere “ousadamente” o swing e o adultério como formas legítimas de
combater o tédio conjugal); Histórias que as nossas babás não contavam
(1979) de Osvaldo de Oliveira com a gostosa mulata Adele Fátima como
Chapéuzinho Vermelho, o ridículo Costinha como caçador e sete anões
sacanas só pensando naquilo (em conjunto com pretensões ao cômico
chulo, mas descambando mesmo para o grotesco involuntário); Mulher
objeto (1980) de Sílvio de Abreu, com Nuno Leal Maia e Helena Ramos,
em trama análoga (uma mulher frígida com o marido, mas tendo prazer
intenso na infidelidade cometida com vários outros parceiros sonhados) à
de A dama do lotação (1978) de Neville de Almeida, com Sônia Braga e o
mesmo Nuno Leal Maia; o estranhíssimo e então marcante Snuff – Vítimas
do prazer (1977) de Cláudio Cunha, com Carlos Vereza e a musa carioca
Rossana Ghessa e a paulista Nadyr Fernandes (com roteiro inspirado em
uma reportagem da revista Manchete sobre filmes clandestinos que
mostravam as atrizes sendo estupradas e assassinadas de verdade); Mulher
mulher (1979) de Jean Garret, com Helena Ramos em cena inesquecível
(e prenunciadora da zoofilia mais hardcore) sendo lambida no pescoço por
um cavalo;32 Noite das taras (1980), filme em três episódios dirigidos por

31
Em cujo folder de divulgação podemos ler: “Baseado em um roteiro de Georges
Feydeau, mistura o duplo sentido do teatro de revista, a crítica de costumes da
comédia urbana, o humor irreverente das histórias em quadrinhos, a alegria
descompromissada de um circo de cavalinhos.” (ABREU, 2006, p. 79-80).
32
Filme do qual emerge como único e kitschíssimo fragmento a seguinte
frase de uma mulher: “Eu não quero ser apenas um receptáculo do esperma
matrimonial.” (ABREU, 2006, p. 110).

29
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Ody Fraga, John Doo e David Cardoso, onde se destaca a nudez atraente
de Matilde Mastrangi; já transitando para o pornô explícito Oh! Rebuceteio
(1982) de Cláudio Cunha, O círculo do prazer (1982) de Mário Vaz Filho
(cujo pseudônimo cretino era H. Romeu Pinto) e, enfim, para matar a
perversa curiosidade zoofílica, algum título (qual precisamente?) como Um
jumento em minha cama ou Emoções sexuais de um jegue que hoje associo
quase automaticamente à cena do Asno de ouro de Apuleio em que a
matrona romana – após lhe murmurar “Cupio” (“Te desejo”) e “Sine te jam
vivere nequeo” (“Não consigo mais viver sem ti”)33 ou, já mais próxima,
“Teneo te”, “teneo, meum palumbulum, meum passerem” (“Te tenho, meu
pombinho, meu passarinho”)34 – goza plenamente se deixando penetrar
pelo avolumado e rijo órgão do asno narrador.
É, porém, antes de 1977, ou seja: entre 1974 e 1976, quando (ainda
recém-adolescente sem carteirinha falsificada) um simples pedido de
documento representava uma humilhante exclusão, fazendo da entrada no
cinema um momento de alto e adrenalínico risco que fazia suar frio e
acelerava desordenadamente o coração, que o fascínio da ostensiva
transgressão à lei se combinava com o da moralmente “indevida” (apesar de
leve) iniciação sexual ao nu feminino, dando ao Cine Candelária uma aura
rubra de mistério que depois jamais ele teria de igual maneira. Lembro-me,
por exemplo, de um porteiro gordo e careca (trajando um terno puído,
dizendo, impaciente ante a tímida hesitação minha e do primo que é o
personagem da segunda seção, “entra logo!”, “entra logo!” e nós apressando
o passo e contendo o riso que estoura na sala semi-escura quase deserta de
uma modorrenta sessão das duas da tarde. Este exemplo sinaliza bem que,
apesar de eventuais barradas na porta (que então, para não dar na cara, nos
afastavam dali durante meses), pois os porteiros variavam muito em seu
rigor ou capricho, o Cine Candelária era em geral bem tolerante com os
meninotes crescidos que éramos nestes anos longínquos. Mas, como a
frequentação bem esporádica nos parecia então (talvez não tão paranoicamente)

33
APULÉE, 2007, p. 438.
34
APULÉE, 2007, p. 440.

30
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

a melhor tática, nesta breve e tremorizante época de ouro não cheguei a


assistir lá senão a algumas poucas pornochanchadas.
Além do já citado A estrela sobre de Bruno Barreto (e talvez também
– ou seria apenas o trailer? – Guerra conjugal baseado em Dalton Trevisan),
consegui apenas relembrar vagamente a presença vibrante de algumas
gostosas atrizes peladas (apenas algumas individuadas e reconhecidas) – e
como o mero ver atento imagens filmadas já me dava então tanto prazer
(sempre à expectativa de uma improvável e fugidia boceta cabeluda) – e
algumas tiradas que durante um breve e tolo tempo usei como piadas
picantes sem-graça em encontros de jovenzinhos solitários que só pensam
em sexo: em Ainda agarro esta vizinha (1974) de Pedro Carlos Rovai, o
conquistador (que observa da janela de seu apartamento a futura conquista
no andar de baixo) come um omelete, enquanto ela tem um sorvete na mão,
e ele diz pra ela: “Vamos trocar? Eu te dou os meus ovos e você me deixa
chupar o seu sorvete.”; em Secas e molhadas (1975) de Mozael Silveira, o
herói vai à cozinha, coloca dois ovos na frigideira e pergunta para a mulher
onde ela enfiou a linguiça dele. Relendo sinopses rápidas de filmes em
algum capítulo perdido de uma História do cinema dos anos 70, reconheci
também a graça boba que achei na estória de “O despejo” de Adriano Stuart,
um dos episódios de Cada um dá o que tem (1975), em que um casal de
namorados é atacado por quatro assaltantes no instante em que o rapaz
tentava convencer a moça a fazer sexo com ele dentro do carro; os
assaltantes decidem violentar não a moça, mas o rapaz, que aparece na cena
seguinte todo maquiado (à la Ney Matogrosso nos “Secos e Molhados”)
e com gestos femininos.
Se a nudez de Betty Faria em A estrela sobe e a de Sônia Braga em
Dona Flor e seus dois maridos (que vi com o primo mais chegado na primeira
vez em que estive em Salvador) ainda hoje se destacam e quase ganham
autonomia em relação aos filmes em que ocorrem, a nudez lindíssima de
Vera Fischer em um filme que não consegui mais identificar (e que não é,
como pude verificar depois, nem Anjo loiro nem Superfêmea nem Macho
e fêmea nem As delícias da vida nem Essa gostosa brincadeira a dois) é quase
a única lembrança que dele tenho além das circunstâncias bizarras (ou cena)

31
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

em que ela se manifesta: na cama com horríveis (mas, presume-se, bem-


dotados) e lúbricos anões. O efeito contundente (que definirei melhor na
sequência) da cena vinha, parece-me agora, do vivíssimo contraste entre a
deformidade daqueles seres diminutos e a graça inefável e pulsante daquele
jovem e lindíssimo corpo feminino (da qual em sua jovem lindeza e
gostosura talvez apenas Nicole Puzzi se aproxime) de quem já fora, antes
de completar 18 anos e não sem alguma justiça, Miss Brasil e finalista de
Miss Universo. Lembro-me também, um pouco vaga e cruelmente, de um
certo mal-estar e nojo (diante da cena grotesca) impressos na fisionomia da
atriz, que não os conseguia de todo disfarçar (como se pronunciando sua
futura carreira séria de cinema e telenovela); e de eu então sentir também,
como se por transmissão magnética, um certo mal-estar e perplexidade (o
que pensar então dos inumeráveis granículos de poeira naquela grande sala
suja, dançando aleatórios em meio a um jato abafado e quente de luz
vespertina irrompendo por alguma fresta?) que, já acabado o filme e fora
do cinema, quando do comentário com o primo-amigo da rua Mato
Grosso, se resolveu súbita e surpreendentemente no irrefutável prazer de
uma gostosa gargalhada.
Visto à distância, este desejo adolescente meio autônomo de ver
mulher pelada em cenas de sexo (sem conectá-las com as personagens e a
estória contada pelo filme) parece de algum modo ajustado ao efeito de
excitação sexual visado pela pornochanchada e à maneira como nela as cenas
de nu e sexo muitas vezes se desconectam bizarramente da narrativa e
ganham uma involuntariamente ousada gratuidade. Ou seja: neste desejo
de ver (ou nesta pulsão escópica) o cinema não estaria sendo reconhecido
como arte ficcional, mas, apoiado no inequívoco valor documental de seus
milhares de fotogramas, estaria sendo um mero meio de conhecimento do
mundo (em um de seus elementos mais decisivos: o outro do sexo) e de
voluptuosa iniciação (ainda que apenas por meio da imagem) em um de
seus mais prazerosos mistérios. Mas isso em si – para escândalo dos bons
moralistas do trabalho – não chega a ser um mal, assim como não o é a
presença mesma do sexo na pornochanchada, mas sim o fato de ele ser
tímido e mal representado (cf. Jean-Claude Bernardet: “A maior falha dessa

32
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

pornochanchada não é ser pornô, mas ser muito pouco pornô”35),


compondo uma estória débil e cretina com personagens muito pouco
convincentes e uma visão de mundo afinal pobre, tacanha e convencional.
Uma longa passagem sobre a pornochanchada no ensaio “Cinema: trajetória
no subdesenvolvimento” de Paulo Emílio Sales Gomes, cujas exemplares
ironia e lucidez justificam sua citação aqui, parece desembocar em uma
sugestão análoga à que vínhamos ensaiando: “O estilo é próximo dos
documentos publicitários cheios de fartura, ornamentados por imagens
fotogenicamente positivas do ocupado e pelo bamboleio amável de quadris
nas praias da moda, combinadas ao louvor de autoridades militares e civis.
Essa simultaneidade audiovisual um pouco insólita não significa que um
setor qualquer do poder público tenha inspirado – dentro da fórmula de
que hoje o circo complementar do pão é o sexo – o erotismo que irrompeu
no cinema brasileiro de uns anos para cá. A idéia divertida infelizmente não
é verdadeira; foi certamente propalada por espíritos desconfiados e
insensatos, mas chegou a intrigar as altas esferas. Essa facilidade de circulação
da tolice nos tempos que correm esclarece em todo caso a relutância oficial
diante do condimento mais atraente que possui o espetáculo de um Brasil
milagroso, com muito apetite e tendo como satisfazê-lo, morando bem e
vestindo melhor, trabalhando pouco e sem problemas de locomoção. O
erotismo desses filmes, apesar do afobamento, da vulgaridade ineficaz, da
tendência autodestruidora em acentuar nos quadris as nádegas e no seio a
mama, é com efeito o que têm de mais verdadeiro, particularmente quando
retratam a obsessão sexual da adolescência.”36
Paulo Emílio, afastando-se de qualquer moralismo burguês ingênuo,
recupera assim o vital elemento básico da pornochanchada: aquele que
justifica a primeira parte de seu nome composto. Não toca, no entanto, no
possível elemento de humor ou comicidade (cujo efeito seria o riso) que a
segunda parte do nome sugere (se inscrevendo também numa tradição
cinematográfica brasileira) e que, por exemplo, a cena de Vera Fischer com

35
Apud ABREU, 1996, p. 81.
36
SALES GOMES, 1996, p. 106-107.

33
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

os anões, em seu bizarro grotesco, teria retrospectivamente liberado. Ainda


uma vez: não é a presença em si de elementos “baixos” (obscenos) ou de
procedimentos como o duplo sentido, o trocadilho e a piada (além de toda
a gama de recursos mímicos pastelônicos), facilmente reconhecíveis na
pornochanchada, assim como não é também a paródia, o deboche ou o
escracho, o que desqualifica estética e moralmente a pornochanchada, mas
sim a maneira diluída e bem comportada como eles se apresentam nestas
“comédias de costume” leves, meio moralistas37 e o mais das vezes muito
sem graça. Assim, pois, o grotesco ocasional (e como se não de todo
deliberado) da cena de Vera Fischer na cama com os anões só se torna mesmo
um pensado princípio de estruturação (exacerbando-se delirantemente e
contaminando o conjunto de cenas) em um filme – este, sim, engraçado
– como Os monstros de Babaloo (1970) de Elyseu Visconti; assim como o
deboche e escracho, educadamente presentes na pornochanchada, só serão
inteiramente assumidos – e aí de maneira ostensivamente deliberada e
programática – em um filme como O Bandido da Luz vermelha (1969)
de Rogério Sganzerla (“Quando a gente não pode fazer nada, a gente se
avacalha. A gente se avacalha e se esculhamba.”). No que é, portanto, o material
específico (e tradicionalíssimo) do humor possível da pornochanchada: o sexo
(e o obsceno), pode-se dizer serenamente que ela jamais conseguiu realizar
plenamente o duplo sentido (tanto o objeto quanto a abordagem) do
termo sacanagem (precedido pela preposição de), fazendo de fato “filmes
de sacanagem”, sendo que também aí é o chamado “cinema marginal” quem
logo vai explorar mais radicalmente estas possibilidades (abandonando-as
pouco depois, senão no caso de Carlos Reichenbach) – apesar de não ter
conseguido criar um filão comercial duradouro como projetava o
“Manifesto do Cinema Cafajeste” de João Callegaro – em filmes como As
Libertinas (1968) de Carlos Reichenbach, Antonio Lima e João Callegaro,

37
Cf. Ody Fraga: “Não apareceu uma pornochanchada que chegasse a contestar
as estruturas e os preconceitos sexuais (...). Pelo contrário, ela sempre reforçou
o amor idealizado à maneira das estruturas burguesas estabelecidas” (ABREU,
2006, p. 166).

34
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

Audácia! (1970) de Carlos Reichenbach e Antonio Lima, O pornógrafo


(1970) de João Callegaro, A mulher de todos (1969) e Copacabana mon
amour (1970) de Rogério Sganzerla, filmes sobre os quais óbvia e
infelizmente eu não tinha na época nenhuma informação (sendo que
mesmo nos melhores cine-clubes belo-horizontinos – organizados por uma
esquerda “séria” – o máximo que se conseguia ver na segunda metade dos
anos 70 era O bandido da luz vermelha).
Feito, porém, este inevitável e necessário juízo de valor moral-estético
discriminando a radicalidade do “cinema marginal” e a diluição erótico-
cômica da pornochanchada, podemos por um instante lembrar, em certos
casos, a confluência dessas duas correntes em um mesmo meio de produção
de cinema: a lendária Boca do Lixo paulista. É, por exemplo, Antônio Polo
Galante (até 1975 junto com Alfredo Palácios na Servicine), homem de
negócios esperto formado na vida (e surgido do acaso38), grande produtor
de pornochanchadas (em seus mais variados gêneros) nos anos 70, quem
vai produzir A trilogia do terror (1968) de Ozualdo Candeias, Luís Sérgio
Person e José Mojica Marins, A mulher de todos (1969) de Sganzerla, O
pornógrafo (1970) de João Callegaro, A guerra dos pelados (1970) de Sylvio
Back e A Selva (1973) de Márcio Souza, assim como mais tarde (já
separado de A. Palácios, que cria a Kinoarte Filmes) nas Produções
Cinematográficas Galante ele produzirá A ilha dos prazeres proibidos (1977)
e Império do desejo (1978) de Carlos Reichenbach. Ora, a grande virada na
vida empresarial de Galante, a produção de Vidas nuas a partir do inacabado
Erótica de Ody Fraga, rendendo bem com produção barata e inaugurando
o filão pornochanchádico, foi feita em parceria com Sylvio Renoldi como
montador, 39 o mesmo Sylvio Renoldi que montou A hora e a vez de
Augusto Matraga (1965, Prêmio do Festival de Brasília) e O bandido da luz
vermelha (1968, Prêmio INC). E, outro exemplo possível, um diretor de
pornochanchadas como Jean Garret, praticamente ignorado pela crítica
séria, teve Carlos Reichenbach como diretor de fotografia em Excitação,

38
Cf. ABREU, 2006, p. 30.
39
Cf. ABREU, 2006, p. 31.

35
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Mulher, mulher, A força dos sentidos e outros, teve João Silvério Trevisan
como roteirista em A mulher que inventou o amor e Inácio de Araújo
também como roteirista em O fotógrafo. A pornochanchada era assim para
os realizadores ou criadores de cinema uma economicamente não
desprezível (apesar de desprezada pelo preconceito comum e pela crítica
séria) possibilidade de continuar fazendo cinema. Que o ponto de vista de
quem então fazia cinema poderia ser menos exclusivo e mais impuramente
misturado (privilegiando antes a alegria de fazer cinema) é o que sugere um
depoimento como o de Guilherme de Almeida Prado (depois reconhecido
pela crítica séria por seu A dama do Cine Xangai): “Eu acho que só depois
de A dama do Cine Xangai é que esse preconceito realmente desapareceu.
Mas quando eu estava trabalhando na Boca eu não prestava a menor atenção
nisso. Nessa época não me incomodava nada. Eu estava fazendo cinema,
que era o que eu queria fazer, e estava muito feliz.”40 Ou de Inácio de Araújo:
“Eu me divertia. Eu fazia pornochanchada também e fazia outros filmes,
fazia publicidade. (...) Esse papo [de preconceito] é coisa de quem não
entende, porque pra quem gosta de cinema, tanto faz como tanto fez se o
filme tem sexo ou deixa de ter.”41 Ou mesmo a ainda mais impura e
radicalmente assumida alegria de fazer... amor (proporcionada pelas
filmagens), segundo o corajoso depoimento de Carlos Reichenbach sobre
o Cinema Marginal: “De 67 a 71, o cinema era apenas um apêndice da vida.
Filmei meu episódio em As libertinas mais interessado em aplicar as lições
do Kama-sutra com a namorada nas areias da locação, enquanto buscava
os ângulos mais absurdos para filmar cavalos e excrementos na praia.”42
Do decisivo ponto de vista econômico (que é também o de uma
política estatal de mercado) pode-se desacreditar inteiramente a hipótese
(que se tornou um lugar-comum) de José Carlos Avellar de que “Antes de
mais nada, a pornochanchada é uma invenção da Censura.” 43 A

40
ABREU, 2006, p. 169-170.
41
ABREU, 2006, p. 170.
42
PUPPO, 2004, p. 126.
43
AVELLAR, 2005, p. 340.

36
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

pornochanchada (assim como parte do Cinema Marginal produzido na


Boca do Lixo) teria sido antes um resultado da lei, promulgada em 1967
pelo INC, de obrigatoriedade de exibição para o filme brasileiro
(integrando-se em uma política de substituição das importações e incentivo
à produção de um similar nacional) que em 1967 tem uma cota de 56 dias
por ano, em 1969 a de 63 dias e em 1975 (o seu auge) a de 115 dias.44 Já
que a lei obrigava realmente os exibidores a passarem filmes brasileiros,
aqueles, “(...) tradicionalmente a serviço da distribuição internacional,
começaram a se associar ou mesmo a co-produzir filmes, lucrando como
exibidores e como produtores”, 45 obviamente atentos ao possível
rendimento com o público popular que então freqüentava as salas de
cinema dos centros das grandes cidades por um preço acessível (de que hoje,
com ingressos a 6, 7 dólares, já nos esquecemos totalmente) de apenas 80
cents de dólar.46 Ainda que o resultado artístico da fórmula “erotismo,
produção barata e público numeroso” tenha sido – na maioria dos casos –
mais do que duvidoso, é fato que a rara conjunção entre exibidores e
produtores brasileiros na primeira metade dos anos 70 estimulou
quantitativamente a produção de cinema brasileiro, realizando algo que só
aconteceu no Brasil no período áureo das chanchadas (anos 50) e na
chamada “bela época do cinema brasileiro” entre 1908 e 1911.47
Mas pode-se duvidar também – como o fez Paulo Emílio na
passagem maior citada há pouco – de que a também moralmente
conservadora ditadura militar (ainda que preferindo certamente a
pornochanchada aos filmes “comunistas” do Cinema Novo ou “escrachados”
do Cinema Marginal) tivesse algum interesse direto na liberação dos
costumes ou na simples exposição de nus ou de sexo (mesmo tímidas),

44
Cf. ABREU, 2006, p. 17.
45
ABREU, 2002, p. 12.
46
Cf. ABREU, 2002, p. 12.
47
Cf. Paulo Emílio Sales Gomes: “Tal entrosamento entre o comércio de exibição
cinematográfica e a fabricação de filmes explica a singular vitalidade do cinema
brasileiro entre 1908 e 1911.” (SALES GOMES, 1996, p. 24).

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como bem o provam os inumeráveis cortes pela censura de cenas ou falas


eroticamente mais ousadas nas pornochanchadas. Tendemos hoje a
esquecer facilmente a limitação dos meios de comunicação desta época
(ausência de Internet, TV a cabo e videolocadoras) assim como o corrente
conservadorismo familiar nos costumes sexuais, minimizando quase
inevitavelmente a (para os esclarecidos tímida, convencional e tola)
liberação dos temas sexuais na pornochanchada, que então não fazia senão
acompanhar medrosa e canhestramente a revolução sexual pós-movimento
hippie e pós-maio de 68 e o crescente interesse mundial pelo cinema
erótico/pornográfico. Ainda que facilmente criticável como ingênuo e
passivo voyeur,48 o espectador popular (ou adolescente) de pornochanchada
poderia de fato estar encontrando nelas algum elemento de liberação (ou
distensão) em meio à repressão sexual ainda quase generalizada, satisfazendo
de algum modo (que não ousaríamos chamar de ilegítimo) a curiosidade
e o desejo de excitação, tal como sugere este depoimento de Jean-Claude
Bernardet: “Cheguei a fazer algumas pequenas experiências com pessoas, tipo
operários. Passava os filmes – pornochanchadas – e depois conversávamos para
ver o que estavam apreendendo. Eles estavam apreendendo coisas que eu
não estava. E as que eu apreendia eles interpretavam diferentemente. Girava
em torno de sexo e comportamento. Nós tínhamos uma tendência a ver
nos filmes atitudes muito moralistas, com valores até retrógrados. Eles viam
como libertação sexual, escapar a um moralismo, escapar das tensões.”49 E
– para além do mero Ersatz que seria o prazer do auto-erotismo de voyeur
– uma possível dimensão prática da pornochanchada (sobretudo para o
adolescente) de informação e iniciação transgressiva (mesmo se atenuada)
em um assunto vital sobre o qual por pudor nada ou muito pouco se falava
ou se mostrava então é o que (por analogia com o pornô, aí o objeto da fala,

48
Cf. Matilde Mastrangi: “O público que via pornochanchada era o ‘zé mané’.
Ele ia ver sexo. (...) O que me incomodou foi esses homens irem ao cinema
bater punheta. Que tipo de homem eu estou incentivando? Ele tem mais é
que ter uma mulher, ter sexo com essa mulher.” (ABREU, 2006, p. 164).
49
ABREU, 2006, p. 155.

38
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

mas curiosamente o seu maior algoz) sugere este experiente e franco


depoimento de Ozualdo Candeias: “O sexo explícito, enquanto trazia uma
informação erótica, sado-erótica ou o diabo que fosse, existiu. Primeiro,
porque até o [aparecimento do] sexo explícito, e esse é um dos valores dele,
ninguém sabia bem como fazer, como trepar, quem chupava ou dava o
rabo. Era um crime desgraçado. Com o [filme de] sexo explícito isto se
tornou um pouco normal, porque esses comportamentos eram intrínsecos
de determinadas personalidades. Quando isso foi mais ou menos liberado,
por causa desse cinema, deixou de haver um bocado de gente bloqueada.
[...] Coisa que antes disso não havia. Estou falando da importância deles
[dos filmes de sexo explícito], né? Importante para a liberação.”50
Mas foquemos agora, uma última vez, o elemento vital que, para a
atenção curiosa do adolescente, ultrapassava em muito o cinema visto e
pensado como arte: o sexo. Se a própria pornochanchada, em voga
sobretudo na segunda metade dos anos 70, de algum modo realiza
internamente a desconexão entre (a nudez e) o sexo e a narrativa
representada por personagens, e se algumas salas de cinema – como o
Candelária – tendem a se especializar nesse tipo de filme, afastando um
público burguês sério e se convertendo em um espaço erótico sujo e maldito
(no caso, ladeado por muitos bares na Raul Soares e opções de hotel barato
nas imediações), talvez seja possível pensar uma estranha e surpreendente
analogia com os primeiríssimos filmes pornográficos (isto é: dos últimos
cinco anos do século XIX e da primeira metade da primeira década do séc.
XX) – anteriores à constituição de uma narrativa (um gênero literário
segundo o molde ficcional realista do século XIX) no cinema – e também
com os locais iníquos (music-halls e vaudevilles) em que eram passados para
um público predominantemente masculino dos “segmentos mais pobres
e mais desclassificados culturalmente da população”.51 Tanto em um caso
quanto no outro teríamos algo como um “aquém do cinema”, uma mera
forma “baixa” e popular de divertimento.

50
ABREU, 2006, p. 129.
51
MACHADO, 1997, p. 79.

39
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

Arlindo Machado lembra em “Pré-cinemas: o cinema das origens”


(em Pré-cinemas & pós-cinemas) que este pré-cinema “(...) reunia, na sua base
de celulóide, várias modalidades de espetáculos derivadas das formas
populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação,
a pantomima, a feira de atrações e aberrações etc.”, caracterizando este
mundo – via Mikhail Bakhtin – como sendo baseado “no princípio do riso
e do prazer corporal”, cujas formas de expressão (nomeadas por Bakhtin
como realismo grotesco) “(...) compreendem um sistema de imagens em que
o princípio material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda
o espetáculo e em que abundam os gestos e as expressões grosseiras, as
profanações, as heresias e as paródias.”52
É ainda Arlindo Machado quem nos informa: “Não sendo técnica
ou politicamente viável exercer a repressão pura e simples sobre essas formas
de espetáculos ditas ‘baixas’ ou ‘vulgares’, optou-se pelo seu confinamento
em guetos, em geral situados nas periferias, próximos aos cordões
industriais, onde a diversão suspeita misturava-se facilmente com a
prostituição e a marginalidade. Foi aí, nesses lugares iníquos, que o
cinematógrafo nasceu e tomou força durante os seus 10 ou 20 primeiros
anos. (...) Eram locais bastante populares e também um tanto mal-
afamados por causa da atmosfera plebéia e do ‘baixo nível’ dos espetáculos
burlescos ali encenados. Na verdade, os vaudevilles eram abominados pelas
platéias sofisticadas e pelas pessoas de ‘boa família’. Quando, num primeiro
momento, a venda de álcool era ainda tolerada nesses locais e a prostituição
florescia ao seu redor, não era difícil que uma visita a uma dessas casas se
transformasse em bebedeira, quebra-quebra ou aventura sexual.”53
Vejamos, enfim, com Arlindo Machado, o repertório genérico destes
filmes e nele, mais particularmente, o gênero pornográfico (e o comportamento
por ele suscitado): “No período que vai de 1895 (data das primeiras
exibições públicas do cinematógrafo dos Lumière) até meados da primeira

52
MACHADO, 1997, p. 76-77.
53
MACHADO, 1997, p. 77-78.

40
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

década do século seguinte, os filmes que se faziam compreendiam registros


dos próprios números de vaudeville, ou então atualidades reconstituídas,
gags de comicidade popular, contos de fada, pornografia e prestidigitação.
Os catálogos dos produtores da época classificavam os filmes produzidos
como ‘paisagens’, ‘notícias’, ‘tomadas de vaudeville’, ‘incidentes’, ‘quadros
mágicos’, ‘teasers’ (eufemismo para designar a pornografia) etc. (...) A
pornografia, como não podia deixar de ser, corria solta. A Biograph
americana e a Pathé francesa transformaram o erotismo em uma de suas
especialidades. Cenas de adultério, mulheres se despindo para ir para a cama,
personagens míticas fazendo amor, tudo era válido para excitar uma platéia
já por si só bastante suscetível. A Biograph produziu vários filmes
curtíssimos destinados sobretudo aos peep-shows (...), nos quais atrizes
seminuas davam piscadinhas cúmplices para o espectador, implicando-o
abertamente como voyeur dentro do cinema. Na França, a Pathé também
explorava o nu frontal, sobretudo nos pequenos filmes destinados à exibição
nos mutoscópios (...). Nos music-halls e café-concerts, era bastante comum
um gênero de filmes conhecidos como tableaux vivants (...), que mostrava
basicamente mulheres em maiôs colantes ou em trajes sumários, congeladas
em gestos provocantes. A masturbação na sala escura acabou por se
converter em prática regular e disseminada, verdadeiro ato de provocação
coletiva, que resistiria a todas as formas de policiamento.”54
Semelhante uso – “imoral”, segundo a moral puritana (ou
“revolucionária”) do trabalho – do cinema foi previsto imaginária e
inauguralmente por Máximo Gorki em artigo escrito já em 1896, como
lembra Paulo Emílio Sales Gomes ao discutir as semelhanças entre “Cinema
e prostituição” (em Crítica de cinema no Suplemento Literário vol. II):
“Tratava-se de uma reportagem sobre a apresentação na Rússia dos primeiros
filmes de Lumière. Evidentemente não foi o conteúdo dos filmes
apresentados – A chegada de um trem, Saída de operários da fábrica, O
lanche do bebê, ou L’arroseur arrosé – que provocou a meditação de Gorki,
mas precisamente o contraste entre a natureza documental, familiar e

54
MACHADO, 1997, p. 80-81.

41
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47

ingênua desses registros cinematográficos e o ambiente particular do local


onde eram projetados. As exibições foram feitas durante a Feira Anual de
Nijri-Novgorod num estabelecimento pertencente a um certo Charles
Aumont (...). O pavilhão de Aumont é fustigado como um lugar onde
apenas o vício é encorajado e popularizado. O público era composto, segundo
Gorki, de vítimas das misérias sociais e o escritor completa o quadro ao
aludir com moderação a vadios que compram beijos e às mulheres que os
vendem. Gorki sublinha o que havia de insólito na apresentação das imagens
simples ou bucólicas dos Lumière no Concert Parisien – tal era a
denominação do estabelecimento de Charles Aumont – e manifesta a
convicção de que logo esses filmes seriam substituídos por outros cujos
títulos, aliás, ele sugere: Como Ela se Despe, Madame no Banho, ou ainda
A Mulher de Meias, já que naquele tempo de vestidos até o pé (...) a simples
idéia de meias femininas evocava, por si só, todo um universo erótico.”55
Paulo Emílio comenta então a maneira moralista (“revolucionária”)
como é feita por Gorki esta aproximação: “Para a ideologia revolucionária
de Gorki, aliás bastante difusa, a prostituição aparecia como a conseqüência
direta de uma sociedade injusta. (...) Aos seus olhos o mundo que combatia
não podia deixar de aceitar plenamente a prostituição, pois no caso
contrário esse mundo estaria negando-se a si próprio. Quando o escritor
observou, entre os delineamentos seguidos pelo cinema, a confirmação de
suas previsões, não teve dúvidas em considerar a maioria dos filmes como
fazendo parte, com a prostituição, o alcoolismo e outras taras, da
sintomatologia geral de um mundo doente.”56
Paulo Emílio, no entanto, – na contra-mão deste “revolucionário”
Gorki que, como Lenine, “era severo em matéria de moral e convencional
em arte”, e não sem antes algumas precauções (“não gostaria nada de me ver
acusado de simpatizar com a prostituição ou mesmo, quem sabe lá, de
encorajá-la, ou então de estar denegrindo o cinema”) – se sente à vontade
“(...) para observar que de um certo ângulo as necessidades que o cinema e

55
SALES GOMES, 1981, p. 363.
56
SALES GOMES, 1981, p. 364.

42
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

a prostituição satisfazem são as mesmas, e que essas necessidades talvez não


estejam obrigatoriamente, e ao invés do que pensava Gorki, condicionadas
a esta ou aquela estrutura social, mas que sejam expressão de algo
permanente no homem. Dizer que os espectadores entram no cinema como
vão, ou iriam, ao bordel, não deixa de ser chocante, mesmo atenuando-se
bastante a idéia com o acréscimo de que isso sucede sob um ângulo bem
particular de exame, ou ainda com a explanação de que a palavra bordel
resume aqui a gama imensa de estabelecimentos e instituições que vai do
prostíbulo mais miserável ao conforto moderno das call-girls. E no entanto
é um pouco isso que acontece. Para os propósitos deste artigo basta aludir
a algumas significações muito nítidas do fenômeno Brigitte Bardot, ou
lembrar que, se para uma boa parte do público feminino, Rodolfo
Valentino era um príncipe encantado, para outro setor igualmente
considerável do mesmo público, ele era sobretudo um imaginário gigolô.
Tenho os mais jovens em menor medida, e os adultos preclaros e menos
chocantes se, invertendo agora a maneira de ver as coisas, eu lembrar que
com muita freqüência os homens vão ao bordel como se fossem ao cinema.
É evidente que a procura de prostitutas não pode ser interpretada em termos
exclusivos de descarga sexual, sob o risco de total obscurecimento do
problema que nos ocupa. Os homens, os mais jovens em menos medida,
e os adultos plenamente, vão ao bordel em busca de ficção.”57

57
SALES GOMES, 1981, p. 364-365. Com uma perspectiva historicamente
mais abrangente e distanciada do que a de Gorki (e abstraindo de qualquer
conteúdo erótico eventual dos filmes ou da localização de suas projeções em
espaços urbanos iníquos), Walter Benjamin – em “L’œuvre d’art à l’époque
de sa reproductibilité technique” – percebeu na nova forma de arte que é o
cinema uma relação diferenciada do espectador com a obra, relação que (própria
a um novo modo de existência urbana) é caracterizada não mais pela
concentração – como, por exemplo, com a pintura – mas pela distração (ou, nos
termos de uma paradoxal transposição sensorial, não mais pela contemplação,
mas pelo toque): “De espetáculo atraente para o olho ou de sonoridade sedutora
para a orelha, a obra de arte, com o dadaísmo, se fez projétil. O receptor era
atingido por ela. A obra adquiriu uma qualidade tátil. Ela favoreceu assim a

43
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ABREU, Nuno César. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas: Editora
da Unicamp, 2006.

demanda por um mercado cinematográfico, pois o aspecto de distração do


filme tem, também ele, em primeiro lugar um caráter tátil, em razão das
mudanças de lugares e de plano que assaltam o espectador em golpes sucessivos.
Que se compare a tela sobre a qual se desenrola o filme com a tela sobre a
qual está fixada a pintura. Esta última convida o espectador à contemplação;
diante dela, ele pode se abandonar a suas associações de idéias. Nada disso
diante das apreensões de imagens do filme. Mal o olho apreendeu, elas já se
transformaram. Impossível fixá-las. Duhamel, que detesta o cinema e que
não compreende nada de sua significação, mas não sem ter captado alguns
elementos de sua estrutura, sublinha este caráter quando escreve: ‘Não posso
mais pensar o que quero. As imagens em movimento substituem meus
próprios pensamentos.’ Efetivamente o processo de associação do espectador
que olha estas imagens é imediatamente interrompido pela metamorfose
delas. É daí que vem o efeito do choque exercido pelo filme e que, como
todo choque, só pode ser amortecido por uma atenção reforçada.”
(BENJAMIN, 2000, p. 309). A nota de pé-de-página indicada ao fim da
frase que termina esta passagem citada diz o seguinte: “O filme é a forma de
arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa que o homem de hoje
deve enfrentar. A necessidade de se expor aos efeitos de choque é uma
adaptação dos homens aos perigos que os ameaçam. O cinema corresponde
a modificações profundas do aparelho perceptivo, aquelas mesmas que hoje
são vividas, na escala da vida privada, pelo primeiro transeunte surgido em
uma rua de grande cidade, e, na escala da história, por qualquer cidadão de
um Estado contemporâneo.” (BENJAMIN, 2000, p. 309).

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Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

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46
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009

Resumo
Esta crônica-ensaio quer reconstituir – também a partir da
memória pessoal – um período da história de uma sala de cinema
belo-horizontina, o Cine Candelária, ou seja: os anos 70 e 80 (do
século XX) nos quais ocorrem a eclosão da pornochanchada e do
pornô, a introdução massiva do vídeo-cassete e a decadência das
salas de cinema nas grandes cidades brasileiras. Ela visa também
a apresentar rapidamente e a tentar repensar dentro de seu contexto
histórico-social um gênero “baixo” que foi em geral desprezado
pela crítica séria: a pornochanchada.

Résumé
Cette chronique-essai veut reconstituer – à partir de la mémoire
personnelle aussi – une période de l’histoire d’une salle de cinéma
de Belo Horizonte, le Cine Candelária, c’est-à-dire : les années
70 et 80 (du XXème siècle) où ont lieu l’éclosion de la
pornochanchada e du porno, l’introduction massive de la
vidéocassete et la décadence des salles de cinéma dans les grandes
villes brésiliennes. Elle vise aussi à présenter rapidement et à essayer
de repenser dans son contexte socio-historique un genre “bas”
qui a été en général méprisé par la critique sérieuse: la
pornochanchada.

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