O Cine Candelaria
O Cine Candelaria
O Cine Candelaria
net/publication/285049438
O Cine Candelária
CITATIONS READS
0 987
1 author:
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Teodoro Rennó Assunção on 18 July 2017.
11
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
Fortes quase chegando à praça onde outrora o glorioso Hi-fi (hoje esquálido
Boehmio’s) servia Pilsen-extras e bons pratos de resistência baratos, enquanto
o ainda mais madrugadeiro Scaramouche servia também a bom preço
carnes grelhadas bem feitas e cerveja gelada. As imediações do Mercado
Central lembram também os seus inúmeros botecos que servem tira-gostos
(carnes bem aceboladas) com cerveja e, em sua mais distante proximidade,
o antigo Tavares com suas carnes de caça proibidas, ou mesmo, na Curitiba,
o heróico-nipo Tokyo com seus êxtases tranqüilos e relativamente baratos
de teishokus regados a sakê, antes de sua súbita desaparição após um
incêndio suspeito conectado na época à exploração “mafiosa” de máquinas
de video-poker. A passagem pela Olegário Maciel (onde um segundo
mercado dispõe também de seus inúmeros bares) reaviva a memória mais
remota do inteiramente desaparecido Cine Texas (com sua programação
faroeste-pornô) assim como a memória bem mais recente do notívago e hard-
core Vagalume com suas desafinadas e precárias bandas tocando ao vivo para
a fauna majoritária de putas, travestis e gigolôs. Enfim, pouco antes da
chegada da esquina do Candelária, reminiscências de leituras já antigas de
Valéry Larbaud (terá sido no Barnabooth ou no Jaune bleu blanc?), descrevendo
ocioso (e feliz no detalhe) as praias do golfo de Nápoles, são evocadas pelo
nome de bom augúrio do pequeno, ordinário e resistente Hotel Sorrento.
Se avançássemos na praça até a outra esquina, chegaríamos a um bar
outrora elegante (cujo nome agora me escapa) com seu balcão largo e
mesas/cadeiras de madeira hoje já desaparecidos, e, virando na Augusto de
Lima, iríamos em direção ao há muito defunto Cine Roxy (antigo Cine
Democrata) e ao campo cruzeirense do Barro Preto, bandas hoje
frequentadas apenas enquanto me encaminho pra ver algum filme em fim
de carreira no Cineclube/sinuca/bar La Bocca. Passando pela Amazonas
(onde lá no alto, já quase com Contorno, a Juiz de Fora guarda hoje um
Haus München com promissoras cervejas incrementadas), poderíamos
enfim virar de novo na Olegário Maciel subindo, onde, no térreo do JK,
ao lado de uma Assembléia de Deus, o subterrâneo e abafado Matrix já foi
palco de shows udi-grudi (que, alcoolizado e sonolento, quase-recentemente
presenciei) como o de Jards Macalé ou os das bandas de rock mineiras
“Último Número” e “Divergência Socialista”.
12
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
1
KRACAUER, 1995.
13
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
– numeroso na Berlim dos anos 20, mas que, em Belo Horizonte no fim
dos anos 90, não passaria certamente de uma extraordinária e excêntrica meia
dúzia de pessoas – seria ainda hoje composto por pessoas que, nos termos
de Siegfried Kracauer, “não sabem o que fazer do seu tempo.”2
Longe, no entanto, de haver sido sempre assim. Dos relatos de mãe
e tias que moças o frequentaram ao longo dos anos 50, onde (então um cine
bem-afamado no centro geométrico do plano original da cidade de BH)
puderam assistir – se não falha a memória delas – sobretudo a filmes
mexicanos e espanhóis, até minha certamente esquecida primeira vez no fim
dos anos 60 (talvez algum filme comemorativo da Copa de 70) e, primeira
vez de que ainda consigo me lembrar, o então (1972) recém-lançado
Horizonte perdido, que impressionou profunda e seriosamente o pré-
adolescente começando a degustar uma vaga inquietação metafísica e uma
tolamente romântica e insuspeita sede de absoluto, até, enfim e ainda no
plano do cinema sério, o encontro já adolescente pré-marxista, com um
primo distante (então envolvido com o movimento estudantil) no filme
O assassinato de Trotsky de Joseph Losey – bela e então importante lição de
anti-stalinismo – em uma sessão exemplarmente vazia das quatro horas da
tarde de um dia útil. Já no plano da iniciação erótica, caberia citar o filme
A estrela sobe de Bruno Barreto, visto também já adolescente com a expressa
intenção de ver os peitinhos (e talvez a boceta cabeludinha) de Betty Faria,
que desarmou e surpreendeu com a até então desconhecida estória
comovente do romance de Marques Rebelo (seria alucinação a sensação de
lágrimas ou de algum estranho aprendizado sobre o mundo?).
Antes, porém, de finalizar o breve relato do reduzido repertório de
filmes vistos no Candelária de que ainda me lembro, seria útil talvez – nesta
precária tentativa de resgate parcial do lembrado – citar alguns filmes
memoráveis a partir do fim dos anos 60 e ao longo da década dos 70, vistos
em outros cines da cidade, mas que a verossimilhança não impediria de
todo que tivessem sido vistos lá: O dólar furado com Giuliano Gema, visto
2
KRACAUER, 1995, p. 102.
14
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
com o mais chegado dos primos, e Tubarão do Spielberg, numa das raras
vezes com o pai (o que dizer do fiasco de um lento e existencial-burguês
Antonioni visto com ele no Cine-clube da FACE?) no sólido e central Cine
Brasil; O destino de Posseidon, visto com este mesmo primo – filme
catastrófico que, ao espectador sair, desperta a algo fácil sensação de alívio
de se saber são e salvo – no Cine Royal; a Odisséia com Kirk Douglas, visto
com uma prima chegada e coetânea, numa alegre e com o filme radiosa
manhã de domingo (pré-estréia ou sessão infanto-juvenil?) no Cine
Jacques, então ao lado do saudoso Ted’s com seus hot-dogs longos com
batata frita; As 24 horas de Le Mans com Steve Mcqueen, visto com um
antigo colega (mau aluno, doidão e muito bom de bola cf. o infanto-juvenil
do Atlético) que nunca mais vi, no sempre confortável e de boa acústica
Cine Paladium; o Canal 100 inesquecível que, visto com não sei mais
quem no majestoso Cine Metrópole, mostrou a derrota e desclassificação
(já semifinal do Robertão?) no Mineirão do Cruzeiro para o Fluminense
por 1 x 0, gol de Mickey; Irmão Sol, Irmã Lua de Zefirelli, visto com o
irmão (em assombro cristão) no Cine Tamoio; O estranho no ninho com
Jack Nicholson, visto com o irmão também no Cine Paladium; O jovem
Frankenstein com Martin Feldman e Mel Brooks, visto também – em
agradável sessão da tarde – com o primo mais chegado no hoje remoto
Cine Guarany; Butch Cassidy e, pouco depois, O golpe de mestre com Paul
Newman e Robert Redford, respectivamente no Paladium e no Guarany;
O fantasma da liberdade de Buñuel, visto por mim sozinho e então perplexo
(como quando da contemporânea leitura dos contos d’O muro de Jean-Paul
Sartre) no Cine Pathé, assim como aí também o Amarcord de Fellini, visto
com o então recém-conhecido e agora o mais antigo amigo de colégio (e
esta lista, com alguma pesquisa e arranjos de verossimilhança, poderia se
estender indefinidamente, mesmo que continuasse a não incluir todo o
Godard, Pasolini, Antonioni, Glauber Rocha, Wim Wenders, Herzog,
Sganzerla e muitos outros vistos no cineclube da FACE ou na Humberto
Mauro...).
15
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
II
É a figura do antigo companheiro na experiência adolescente de
voyeurismo pornô no Candelária – um primo algo afastado com os dois
sobrenomes de meu pai, colega bonito, inteligente e muito bom de bola,
que morava com os pais (como eu na rua Aimorés com Santa Catarina) na
rua Mato Grosso quase com Aimorés, não muito longe da praça Raul Soares
– quem me desperta, por associação prévia e imperiosa, esta outra e mais
tardia (já com mais de 18 anos) recordação de um uso estranho do cinema
(em que o esperado repertório pornô quase se apaga diante do fenômeno
maior que é estar sentado olhando a tela naquela sala escura) sob o efeito
do haxixe. Banhados na irresponsabilidade ou indiferença acadêmica e
inspirados por um nihilismo alegre e uma disponibilidade meio boba e em
via de extinção para aventuras banais, já fizéramos, rindo de loucura fácil,
experimentos haxixins de flâneries bicicléticas pelo centro de Belo Horizonte
às três e meio ou quatro horas da madrugada. Lembro-me então também
de alguns “experimentos” para obter sob o haxixe no cinema – e aqui no
Cine Candelária que alcançávamos a pé – não a estranheza de uma outra
“realidade” por imersão no simulacro (ou representação), mas a estranheza
anterior e enquadrante de estar em Belo Horizonte, no Cine Candelária,
na tarde de um dia útil, assistindo com um amigo vadio a um pornô
ordinário, até que esta mínima localização e situação, sob uma onda mais
forte da procela haxíxica se perdesse de súbito em uma apavorante
desorientação e não-saber. O frisson metafísico quanto ao espaço e o onírico
desejo de sair do cinema em uma outra cidade nos levava, depois de uma
troca rápida de palavras e já meio saturados do geme-geme do fuck, a
abandonar a sala para confirmar a estranheza ordinária de estar na terra (que
planeta é este afinal?) em Belo Horizonte no Cine Candelária, mas onde
enfim? Estes “experimentos” livres, no entanto, não visavam nenhuma
pesquisa por contraste sobre o funcionamento da consciência normal tal
como a realizada por Henri Michaux e descrita em “Le merveilleux normal”
(em Les grandes épreuves de l’esprit).3 Os flashes desconexos e fulgurantes
3
MICHAUX, 1966.
16
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
4
MICHAUX, 1966, p. 10.
5
MICHAUX, 1966, p. 10.
17
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
6
MICHAUX, 1966, p. 9.
7
MICHAUX, 1983.
8
MICHAUX, 1983, p. 13.
18
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
9
MICHAUX, 1983, p. 15.
10
MICHAUX, 1983, p. 15.
11
CIORAN, 1986, p. 91.
12
MICHAUX, 1967, p. 18.
19
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
III
13
MICHAUX, 1967, p. 22.
14
ARMANDO, 1999.
15
ALBANO, 2008.
16
BRAGA, 1995, p. 56, nota 60.
20
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
17
BRAGA, 1995, p. 75.
21
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
18
BRAGA, 1995, p. 77.
19
BRAGA, 1995, p. 77.
20
BRAGA, 1995, p. 78-79.
22
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
21
GOMES, 1997, p. 353.
22
ARAÚJO, 1981.
23
NAVA, 1985, p. 61-62.
23
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
Mas, ainda que não explícito nos filmes e no ambiente em que eram
projetados, o erotismo magnetizava também (dentro, embora, das
convenções burguesas) a atmosfera e as sessões do Cine Odeon. Dos cartazes
de filmes da Nordisk, colados nas paredes empapeladas de verde e vermelho
do vestíbulo do Odeon, Pedro Nava nos diz o seguinte: “Lembro dum,
particularmente. Representava cena de teatro onde se via, no palco recurvo,
a figura duma mulher em espartilho, rendas aparecendo por baixo, um
pouco das grossas coxas e das ligas verdes segurando meias pretas que se
perdiam em altos canos de botinas claras. Um enorme chapéu e pleureuse.
Arredondava boca de canto, dedinho no ar e era devorada pelos olhares de
senhores no camarote rente ao palco, de que um dirigia os raios do
monóculo aos regos do seio da artista e o outro, mais para baixo, para o
ponto apontado pela ponta do colete devant-droit. A mulher parecia com
as heroínas de nossos livrinhos de safadezas no colégio.”24 O começo ou
antecomeço das sessões era um momento privilegiado de flerte (assim
como o footing que as sucedia descrito no final deste primeiro capítulo):
“Antes da luz apagar, era costume dar um espaço de tempo para as famílias
se repararem. A orquestra afinava. (...) Como vários rapazes, o Paulo, eu e
o Cavalcanti permanecíamos de pé e corríamos os olhos nas moças sentadas
entre seus pais e mães e tias solteironas. Isoladas como dentro duma vitrine.
Os leques se agitavam, subia um perfume de pó de arroz e os namorados
começavam a trocar suas greladas ofidianas. De repente eu vi luzirem
(positivamente luzirem!) uns cabelos de ouro. Eram curtos e viravam-se em
duas pontas da face levemente picada de sardas de uma menina de narizinho
arrebitado cujos olhos escuros contrastavam com o metal de sua cabeça. Foi
como se eu assistisse uma flor desabrochar, um cristal se precipitar, nascer
uma estrela, subir o sol. Tive a impressão de uma pedrada no peito, coração
galopando no peito. Quando eu ia perguntar aos amigos quem era, a luz
apagou, começou a projeção.”25 Em Drummond também lemos algo assim
24
NAVA, 1985, p. 49.
25
NAVA, 1985, p. 50-51.
24
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
26
Apud BRAGA, 1995, p. 2.
27
BRAGA, 1995, p. 75.
28
BRAGA, 1995, p. 65.
25
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
26
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
signo de degradação social, é urgente, por outro lado, tentar recuperar – através
de um operador dissonante como Georges Bataille – a disponibilidade para
o sexo e a “animalidade bestial” (oposta à humanização servil do trabalho)
como signo de soberania. Em “Kinsey, a escória e o trabalho”, analisando
com alguma cautela metódica os dados do Relatório Kinsey sobre a
frequência hebdomadária de orgasmos, Georges Bataille chega às seguintes
conclusões: “Só a escória, ou seja, só aqueles que não trabalham e cujo
comportamento equivale globalmente a uma negação da ‘humanidade’,
apresenta uma proporção de 49,4% de alta freqüência. (...) Globalmente,
o índice varia segundo a maior ou menor humanização: quanto mais
humanizados estão os homens, mais reduzida é a sua exuberância.
Precisemos: a proporção de altas freqüências é de 15,4% nos trabalhadores;
16,1% nos operários não qualificados; de 12,1% nos operários qualificados;
de 10,7% nos ‘mangas de alpaca’ inferiores; de 8,9% nos superiores. Uma
única exceção a esta regra: ao passar dos empregados superiores às profissões
importantes que correspondem às classes dirigentes, o índice sobe mais de
3 unidades para atingir 12,4%. (...) O sentido deste aumento, no que diz
respeito à classe dominante, é claro: essa classe conhece, relativamente às
outras categorias, um mínimo de ociosidade e a riqueza média de que goza
não corresponde necessariamente a um tempo de trabalho excepcional; por
isso dispõe de um excesso de energia, superior ao das classes trabalhadoras.”29
G. Bataille, na sugestiva nota de pé da página 143, se pergunta então: “Em
certa acepção, que é a classe dominante senão a escória que conseguiu a
felicidade, ainda por cima aceite e consentida por todos os outros?” A
epígrafe de Balzac para este ensaio – uma citação por Bataille de Splendeurs
et misères des courtizanes de Balzac – formula exemplarmente a questão sob
um outro ponto de vista: “Daí a ociosidade que devora os dias; pois os
excessos no amor exigem descanso e refeições reparadoras. Daí esse ódio
pelo trabalho que obriga essas pessoas a procurarem meios rápidos de
arranjar dinheiro.”30
29
BATAILLE, 1980, p. 142.
30
BATAILLE, 1980, p. 133.
27
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
IV
28
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
31
Em cujo folder de divulgação podemos ler: “Baseado em um roteiro de Georges
Feydeau, mistura o duplo sentido do teatro de revista, a crítica de costumes da
comédia urbana, o humor irreverente das histórias em quadrinhos, a alegria
descompromissada de um circo de cavalinhos.” (ABREU, 2006, p. 79-80).
32
Filme do qual emerge como único e kitschíssimo fragmento a seguinte
frase de uma mulher: “Eu não quero ser apenas um receptáculo do esperma
matrimonial.” (ABREU, 2006, p. 110).
29
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
Ody Fraga, John Doo e David Cardoso, onde se destaca a nudez atraente
de Matilde Mastrangi; já transitando para o pornô explícito Oh! Rebuceteio
(1982) de Cláudio Cunha, O círculo do prazer (1982) de Mário Vaz Filho
(cujo pseudônimo cretino era H. Romeu Pinto) e, enfim, para matar a
perversa curiosidade zoofílica, algum título (qual precisamente?) como Um
jumento em minha cama ou Emoções sexuais de um jegue que hoje associo
quase automaticamente à cena do Asno de ouro de Apuleio em que a
matrona romana – após lhe murmurar “Cupio” (“Te desejo”) e “Sine te jam
vivere nequeo” (“Não consigo mais viver sem ti”)33 ou, já mais próxima,
“Teneo te”, “teneo, meum palumbulum, meum passerem” (“Te tenho, meu
pombinho, meu passarinho”)34 – goza plenamente se deixando penetrar
pelo avolumado e rijo órgão do asno narrador.
É, porém, antes de 1977, ou seja: entre 1974 e 1976, quando (ainda
recém-adolescente sem carteirinha falsificada) um simples pedido de
documento representava uma humilhante exclusão, fazendo da entrada no
cinema um momento de alto e adrenalínico risco que fazia suar frio e
acelerava desordenadamente o coração, que o fascínio da ostensiva
transgressão à lei se combinava com o da moralmente “indevida” (apesar de
leve) iniciação sexual ao nu feminino, dando ao Cine Candelária uma aura
rubra de mistério que depois jamais ele teria de igual maneira. Lembro-me,
por exemplo, de um porteiro gordo e careca (trajando um terno puído,
dizendo, impaciente ante a tímida hesitação minha e do primo que é o
personagem da segunda seção, “entra logo!”, “entra logo!” e nós apressando
o passo e contendo o riso que estoura na sala semi-escura quase deserta de
uma modorrenta sessão das duas da tarde. Este exemplo sinaliza bem que,
apesar de eventuais barradas na porta (que então, para não dar na cara, nos
afastavam dali durante meses), pois os porteiros variavam muito em seu
rigor ou capricho, o Cine Candelária era em geral bem tolerante com os
meninotes crescidos que éramos nestes anos longínquos. Mas, como a
frequentação bem esporádica nos parecia então (talvez não tão paranoicamente)
33
APULÉE, 2007, p. 438.
34
APULÉE, 2007, p. 440.
30
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
31
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
32
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
35
Apud ABREU, 1996, p. 81.
36
SALES GOMES, 1996, p. 106-107.
33
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
37
Cf. Ody Fraga: “Não apareceu uma pornochanchada que chegasse a contestar
as estruturas e os preconceitos sexuais (...). Pelo contrário, ela sempre reforçou
o amor idealizado à maneira das estruturas burguesas estabelecidas” (ABREU,
2006, p. 166).
34
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
38
Cf. ABREU, 2006, p. 30.
39
Cf. ABREU, 2006, p. 31.
35
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
Mulher, mulher, A força dos sentidos e outros, teve João Silvério Trevisan
como roteirista em A mulher que inventou o amor e Inácio de Araújo
também como roteirista em O fotógrafo. A pornochanchada era assim para
os realizadores ou criadores de cinema uma economicamente não
desprezível (apesar de desprezada pelo preconceito comum e pela crítica
séria) possibilidade de continuar fazendo cinema. Que o ponto de vista de
quem então fazia cinema poderia ser menos exclusivo e mais impuramente
misturado (privilegiando antes a alegria de fazer cinema) é o que sugere um
depoimento como o de Guilherme de Almeida Prado (depois reconhecido
pela crítica séria por seu A dama do Cine Xangai): “Eu acho que só depois
de A dama do Cine Xangai é que esse preconceito realmente desapareceu.
Mas quando eu estava trabalhando na Boca eu não prestava a menor atenção
nisso. Nessa época não me incomodava nada. Eu estava fazendo cinema,
que era o que eu queria fazer, e estava muito feliz.”40 Ou de Inácio de Araújo:
“Eu me divertia. Eu fazia pornochanchada também e fazia outros filmes,
fazia publicidade. (...) Esse papo [de preconceito] é coisa de quem não
entende, porque pra quem gosta de cinema, tanto faz como tanto fez se o
filme tem sexo ou deixa de ter.”41 Ou mesmo a ainda mais impura e
radicalmente assumida alegria de fazer... amor (proporcionada pelas
filmagens), segundo o corajoso depoimento de Carlos Reichenbach sobre
o Cinema Marginal: “De 67 a 71, o cinema era apenas um apêndice da vida.
Filmei meu episódio em As libertinas mais interessado em aplicar as lições
do Kama-sutra com a namorada nas areias da locação, enquanto buscava
os ângulos mais absurdos para filmar cavalos e excrementos na praia.”42
Do decisivo ponto de vista econômico (que é também o de uma
política estatal de mercado) pode-se desacreditar inteiramente a hipótese
(que se tornou um lugar-comum) de José Carlos Avellar de que “Antes de
mais nada, a pornochanchada é uma invenção da Censura.” 43 A
40
ABREU, 2006, p. 169-170.
41
ABREU, 2006, p. 170.
42
PUPPO, 2004, p. 126.
43
AVELLAR, 2005, p. 340.
36
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
44
Cf. ABREU, 2006, p. 17.
45
ABREU, 2002, p. 12.
46
Cf. ABREU, 2002, p. 12.
47
Cf. Paulo Emílio Sales Gomes: “Tal entrosamento entre o comércio de exibição
cinematográfica e a fabricação de filmes explica a singular vitalidade do cinema
brasileiro entre 1908 e 1911.” (SALES GOMES, 1996, p. 24).
37
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
48
Cf. Matilde Mastrangi: “O público que via pornochanchada era o ‘zé mané’.
Ele ia ver sexo. (...) O que me incomodou foi esses homens irem ao cinema
bater punheta. Que tipo de homem eu estou incentivando? Ele tem mais é
que ter uma mulher, ter sexo com essa mulher.” (ABREU, 2006, p. 164).
49
ABREU, 2006, p. 155.
38
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
50
ABREU, 2006, p. 129.
51
MACHADO, 1997, p. 79.
39
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
52
MACHADO, 1997, p. 76-77.
53
MACHADO, 1997, p. 77-78.
40
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
54
MACHADO, 1997, p. 80-81.
41
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
55
SALES GOMES, 1981, p. 363.
56
SALES GOMES, 1981, p. 364.
42
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
57
SALES GOMES, 1981, p. 364-365. Com uma perspectiva historicamente
mais abrangente e distanciada do que a de Gorki (e abstraindo de qualquer
conteúdo erótico eventual dos filmes ou da localização de suas projeções em
espaços urbanos iníquos), Walter Benjamin – em “L’œuvre d’art à l’époque
de sa reproductibilité technique” – percebeu na nova forma de arte que é o
cinema uma relação diferenciada do espectador com a obra, relação que (própria
a um novo modo de existência urbana) é caracterizada não mais pela
concentração – como, por exemplo, com a pintura – mas pela distração (ou, nos
termos de uma paradoxal transposição sensorial, não mais pela contemplação,
mas pelo toque): “De espetáculo atraente para o olho ou de sonoridade sedutora
para a orelha, a obra de arte, com o dadaísmo, se fez projétil. O receptor era
atingido por ela. A obra adquiriu uma qualidade tátil. Ela favoreceu assim a
43
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
Referências bibliográficas
ABREU, Nuno César. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema
e no vídeo. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
ABREU, Nuno César. Boca dos Sonhos (Pesquisador aborda a ‘Boca do Lixo’,
epicentro da indústria da pornochanchada). In: SUGIMOTO, Luiz. Boca dos
Sonhos. Jornal da Universidade Estadual de Campinas, 16 a 22/12/2002, p. 12.
ABREU, Nuno César. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas: Editora
da Unicamp, 2006.
44
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
ALBANO, Celina. Cine Pathé (Coleção BH. A cidade de cada um). Belo
Horizonte: Conceito Editorial, 2008.
APULÉE. Les Métamorphoses ou l’Âne d’or. Texte établi par Robertson, D. S.
et traduit par Sers, Oliviers. Paris: Les Belles Lettres, 2007.
ARAÚJO, Vicente de Paula. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
ARMANDO, Carlos. A sala dos sonhos. Belo Horizonte: C/Arte, 1999.
AVELLAR, José Carlos. A teoria da relatividade. In: NOVAES, Adauto (Org.).
Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/Senac Rio,
2005. p. 337-373.
BATAILLE, Georges. Kinsey, a escória e o trabalho. In: O erotismo: o proibido
e a transgressão. Trad. J. Bernard da Costa. 2. ed. Lisboa: Moraes Editores,
1980. p. 133-146.
BENJAMIN, Walter. L’œuvre d’art à l’époque de sa reproductibilité
technique (dernière version de 1939). Trad. Gandillac, Maurice de. In:
Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. p. 269-316.
BRAGA, Ataídes. O fim das coisas: as salas de cinema de Belo Horizonte. Belo
Horizonte: Centro de Referência Áudio-Visual/PBH, 1995.
CIORAN, E. M. Michaux: a paixão do exaustivo. In: Exercícios de admiração – Ensaios
e perfis. Trad. Brum, José Thomaz. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 91-96.
GOMES, Paulo Augusto. 100 anos de cinema em Belo Horizonte. In: Varia História
18: Belo Horizonte – cem anos em cem, novembro de 1997. p. 347-372.
KRACAUER, Siegfried. Cinéma dans la Münzstrasse. In: Rues de Berlin et
d’ailleurs. Trad. Boutout, Jean-François. Paris: Gallimard, 1995. p. 102-104.
MICHAUX, Henri. Le merveilleux normal. In: Les grandes épreuves de l’esprit.
Paris: Gallimard, 1966. p. 7-34.
MICHAUX, Henri. Comment agissent les drogues? In: Connaissance par les
gouffres. Paris: Gallimard, 1967. p. 7-31.
MICHAUX, Henri. Quelques renseignements sur cinquante-neuf années
d’existence. In: BELLOUR, Raymond (Org.). Henri Michaux – Cahiers de
l’Herne. 2. ed. Paris: Éditions de l’Herne, 1983. p. 11-15.
45
O Cine Candelária. Teodoro Rennó Assunção – p.11-47
46
Revista do CESP – v. 29, n. 41 – jan.-jun. 2009
Resumo
Esta crônica-ensaio quer reconstituir – também a partir da
memória pessoal – um período da história de uma sala de cinema
belo-horizontina, o Cine Candelária, ou seja: os anos 70 e 80 (do
século XX) nos quais ocorrem a eclosão da pornochanchada e do
pornô, a introdução massiva do vídeo-cassete e a decadência das
salas de cinema nas grandes cidades brasileiras. Ela visa também
a apresentar rapidamente e a tentar repensar dentro de seu contexto
histórico-social um gênero “baixo” que foi em geral desprezado
pela crítica séria: a pornochanchada.
Résumé
Cette chronique-essai veut reconstituer – à partir de la mémoire
personnelle aussi – une période de l’histoire d’une salle de cinéma
de Belo Horizonte, le Cine Candelária, c’est-à-dire : les années
70 et 80 (du XXème siècle) où ont lieu l’éclosion de la
pornochanchada e du porno, l’introduction massive de la
vidéocassete et la décadence des salles de cinéma dans les grandes
villes brésiliennes. Elle vise aussi à présenter rapidement et à essayer
de repenser dans son contexte socio-historique un genre “bas”
qui a été en général méprisé par la critique sérieuse: la
pornochanchada.
47