Modernismo - Walnice Nogueira Galvão

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© Global Editora, 2007 18 EdicSo, Global Editora, So Paulo, 2008 14 Reimpress8o, 2019 Jefferson L. Alves - diretor editorial Flavio Samuel - gerente de producgdo Rita de C4ssia Sam - coordenadora editorial 7 Anabel Ly Maduar e Jodo Reynaldo de Paiva - revisdo Ricardo van Steen - Tempo Design — projeto de capa Antonio Silvio Lopes — editoracdo eletrénica Obra atualizada conforme o NOVO ACORDO ORTOGRAFICO DA LINGUA PORTUGUESA. Dados Internacionais de Catalogacdo na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Modernismo / selegao e prefacio Walnice Nogueira Galvao ; diregdo Edia van Steen. - Sao Paulo : Global, 2008. ~ (Coleco Roteiro da Poesia Brasileira). Bibliografia. ISBN 978-85-260-1149-6 1. Modernismo (Literatura) - Brasil 2. Poesia brasileira 3, Poetas brasileiros - Biografia I. Galvao, Walnice Nogueira. II. Steen, Edla van. IIL. Série, 08-02239 CDD-869.9109 indices para cat4logo sisteméatico: 1. Modernismo : Poesia : Literatura brasileira : Historia e critica 869.9109 MODERNISMO Seria adequado falar-se em Revolugdo Modernista, tal a como- 40 que estremeceu tantos setores da vida cultural e literdria brasi- leira: estas nunca mais foram as mesmas. A atualizagao dos padroes estéticos, despindo-os do rango oitocentista ¢ académico, abrindo-os para todas as aventuras, foi propésito de incontaveis intelectuais € artistas pelo pafs afora. E nao s6 na literatura e nas artes em geral, mas também na concepgio de educagio e ensino, no ativismo no setor editorial ¢ na produgio de pensamento sobre o Brasil Se pode ser considerada um terremoto, cujo epicentro se localizou em Sao Paulo e Rio de Janeiro, suas ondas s{smicas aos poucos atingiram todos os quadrantes do pais. As adesdes chega- vam de todos os lados, enquanto focos se instalavam na provincia. Pode-se falar em Modernismo mineiro, gaiicho, pernambucano ou nordestino, e assim por diante. A Primeira Guerra Mundial, encerrando definitivamente a belle époque e suas quimeras, soou o alarme ante a precariedade de uma civilizago que era sé verniz, sob 0 qual vicejava a barbérie. A impoténcia em evitar a escalada de um conflito mundial e os horrores que se verificaram durante quase cinco anos, quando a Europa com todos os seus tesouros, farol do Ocidente, virou campo de batalha, fomentaram a urgéncia de uma revisio geral. Uma crise perpétua, com poucas pausas de alfvio, se instauraria desde ent4o. As suces- sivas vanguardas artisticas — Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadafsmo, Surrealismo —, tudo destruindo, fariam parte do processo. Compreende-se que essa revisio implicasse frequentemente uma refutagao de normas e ideais, fossem éticos, comportamen- tais, cientificos ou estéticos. Prestou-se atengdo em sinais esparsos que eclodiam por toda parte jd antes da conflagracao e prefigu- rando-a, como, por exemplo, o louvor da guerra e do sangue derramado, da violéncia enfim, feito por Marinetti no Manifesto Futurista, em 1909. — A clic brasileira era cosmopolita © seus membroy guy tiam-se pessoalmente ao impacto dos novos Padrées, Oswald sy Andrade e Tarsila do Amaral rumavam toda hora a Paris... & ra viagem de Oswald, aos 22 anos, data de 1912, ¢ ele g repetirig periodicamente. Paulo Prado estava sempre por Id. Ania, Malfacei cxtdou pincra primero na Alemanha, onde sofeeu infugncs Expressionismo, to forte naquele pais, e depois nos Estados Uni- dos. 0 escultor Vietor Brecheret fez um estégio na lilia crepes em 1919. Vicente do Rego Monteiro morava em Paris. Os irmaos Antonio e Regina Gomide estudaram na Suga, onde também vivey por longo periodo Sérgio Milliet. As trocas sio frequentes ¢ inten: sas. Residindo em Lisboa, Ronald de Carvalho participou em 1914 da fundagao da revista Orpheu, em que Fernando Pessoa e Mario de $4-Carneiro pontificariam, sendo codiretor do primeito niimere (1915). John Graz ¢ Lasar Segall vém de fora para ficar, e este ja expusera em Sao Paulo, embora sem maior repercussio, em 1913, Blaise Cendrars também chega,? para uma temporada, Mais adian. te, aqui aportaria em 1929 um surrealista do micleo do movimento e diretor da revista La Révolution Surréaliste, Benjamin Péret, que se havia casado em Paris com a cantora modernista brasileira Elsie Houston.3 A efervescéncia renovadora expressou-se em varios tipos de atividade, cendculos, manifestos, sa des, revistas e festivais, dos quais 0 seminal é a Semana de Arte Moderna de 1922. Tudo isso instaura a sociabilidade modernista, que se prolongaria até os comegos da década de 1930, nos bailes de Carnaval da Sociedade Pré-Arte Moderna (SPAM), que contavam com cenografia de Lasar Segall e roteiro de Matio de Andrade. —___ 1 AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra eseu tempo. 3. ed. Sao Paulo: 34/Edusp, 2003; GOTLIB, Nadia Batella. Tarsila do Amaral, a modernista. Sao Paulo: Senac, 1998, 2 EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrar . ed. rev.€ aum. por Carlos Augusto Calil. Sao Paulo: Edusp, 2001. Plaquete ¢ CD da exposigao “Negras memérias. 3. Entre nés, de modo similar, os sinais de inquietacio e de esgotamento manifestam-se precocemente no novo século. Intelectua novo, ainda nebuloso, que divisavam além do horizonte. O teci- do social tinha-se modificado profundamente com a chegada de sucessivas levas de imigrantes, uma novidade em nossa histéria. Gestava-se o proletariado industrial em Sao Paulo, com turbuléncia is € artistas estavam agitados e procuravam apreender 0 politica e as primeiras greves. Sobre o ano de 1922 pairava a sombra do Centendrio da Independéncia, com muitas festividades e cele- bragées, ¢ a data serviu de pretexto para uma contracomemorasio. O ano da Semana de Arte Moderna teria outros eventos inaugu- rais, como a fundagao do Partido Comunista ¢ o levante tenentista conhecido como 0 episédio de “Os 18 do Forte”, que culminaria na Revolugao de 1930 e no advento de Getilio Vargas. A industria- lizagao do pats — ou, talvez mais do que isso, a civilizagao industrial — esforcava por impor-se ao passado agrério, conflito que pode ser reconhecido nas propostas do Modernismo, com sua valorizagao da metrépole, da maquina e da velocidade. ‘A ruptura se verificaria na Semana, cuja preparagao j4 comegara antes. Trés jornalistas de prestigio, que assinavam colunas em tradicio- nais jornais paulistas - Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida ¢ Candido Mota Filho -, vinham fazendo agitagao em prol da reno- vagio, pelo menos desde 0 ano anterior. A atuagio jornalistica deles devem-se acrescentar as de Oswald e Mario de Andrade no perfodo. A Semana A Semana de Arte Moderna foi realizada no Teatro Municipal de Séo Paulo ¢ durou trés noites sucessivas, com pro- grama publicado nos jornais da cidade.4 Constava de exposigées de 4 BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Telé Porto Ancona; LIMA, Yone Soares de. Brasil: 1 tempo modernista — 1917/29. Sao Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Sao Paulo, 1972. pincura, escultura e arquitetura no saguzo do teatro, enquanto no palco se sucediam conferéncias, declamagao de poemas, canto, > jea e danga. Uma palestra de Mério de Andrade realizou-se no saguio, no intervalo. A abertura sole! feréncia do renomad: Academia Brasileira de Letras, novos. A conferéncia teve por titulo “A emogao estética na arte derna” e foi ilustrada por musica executada por Ernani Braga, por poemas lidos por Guilherme de Almeida e Ronald ne na primeira noite constou de uma con- lo escritor Graga Aranha, pertencente 4 que emprestava sua reputacao aos mo bem como de Carvalho. Seguia-se um concerto com obras de Villa-Lobos, regendo-as pessoalmente, € de outros. Na segunda parte, Ronald de Carvalho dissertou sobre “A pintura e a escultura modernas no ' Brasil”, seguindo-se outro concerto. Entre os expositores estavam Brecheret, Anita Malfatti, John Graz, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro. Guiomar Novais tocou piano. O modelo se repete na segunda ¢ na terceira noite: uma conferéncia, um concerto, lei- tura de poemas e fragmentos de obras literdrias; entre os conferen- cistas, Menotti Del Pichia. A assisténcia era formada pela burguesia paulista, j4 que o festival se passava no espaco mais nobre da cidade de entao, 0 Teatro Municipal.> E nao agradou. Concebido como provocacio, foi recompensado em suas expectativas, porque os apupos nao falharam, vindos dos presentes; e a seguir os jornais desancaram os espetdculos. Ao violar os cdnones estéticos vigentes, 0 evento foi considerado sinénimo de mau gosto, expressao de loucura e de maus costumes. Até entao, a alcunha vaga de Futurismo aplicava-se a qualquer coisa que fosse nessa diregao. Doravante, seria substitul- da por Modernismo. 5 SEVCENKO, Nicolau. Orféw extdtico na metrépole: Sido Paulo, sociedade ¢ cultura nos frementes anos 20. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1992. Revistas Foi tipico do Modernismo o langamento de revistas progra- ticas ¢ efémeras.§ Por meio delas podem-se acompanhar os mean- dros das varias tendéncias ¢ grupos que 0 movimento encarnou. A primeira, mais famosa e mais completa, foi Klaxon (1922). Reuniu a nata dos militantes ¢ expressou a Semana. Mensal, atingiu nove ntimeros, inaugurando a tiragem logo apés o més de fevereiro em que a Semana se realizou. Depois dela, foi a vez de Terra Roxa e Outras Terras, paulista (1926). No Rio, dois participantes da Semana, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais, neto, fundam Estética (1924), que nao ultrapassaria dois nuimeros. Em Sao Paulo, Cassiano Ricardo cria a Novissima (1924). No mesmo ano, Terra de Sol, carioca, expressava 0 grupo catdlico e espiritualista de Tasso da Silveira, a que sucederia Festa (1927), esta contando com a colaboracao de Cecilia Meireles. Depois é a vez da Revista de Antropofagia (1928), de Oswald, e mais tarde, de Nova (1931), com Paulo Prado, Mario de Andrade e Alcantara Machado na direcao, ambas em Sao Paulo. A medida que o programa do movimento se alastra pelo ter- ritério brasileiro, pipocam publicagdes por toda parte. Em Minas, A Revista (1925) teve entre os fundadores Carlos Drummond de Andrade, além de Pedro Nava, que ainda levaria meio século para langar-se como escritor. Mineiras séo Verde (1927), de Cataguases, ¢ Leite Crioulo (1929), criada por Guilhermino César em Belo Horizonte. No Rio Grande do Sul, Madrugada (1925), em torno de Augusto Meyer; no Recife, Mauriceia (1923), de Joaquim Inojosa, e Revista do Norte (1924); Arco e Flexa (1928) na Bahia; no Ceard, Maracajé (1929). E mencionam-se aqui apenas as mais destacadas. Sao revistas idealizadas exclusivamente para canalizar a voz dos que rejeitavam o cAnone e aderiam entusiasticamente & nova estética. 6 Para as revistas do Modernismo, veja CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira. Sio Paulo: Edusp, 1999. v. Il. Para completar, Paulo Prado assumiria 0 comando da cons. picua e jd consolidada Revista do Brasil (segunda fase), de 1923 , 1925, abrindo-a aos modernistas € entregando a Mario de Andrade a secao de critica de arte. Tais publicagdes mostraram-se eruciais, no s6 porque sugs paginas estampavam as novas tendéncias em poesia, ficgdo, ensaio e ilustragao, mas também porque acolhiam polémicas e controvérsias, Cada uma delas fazia questo de escrever com todas as letras sug plataforma, assim tornando-se indispensdveis para a compreensag do idedrio do Modernismo em estado nascente. Manifestos O perfodo foi fértil em manifestos. Toda revista trazia ja no langamento 0 seu; e, como se as revistas nao bastassem, alguns safam em pdgina de jornal.7 Tal foi o caso de “Flaminagu” (1927), do grupo modernista de Belém, redigido por Abguar Bastos; mas foi igualmente 0 caso de um dos mais notérios, 0 “Pau-Brasil” (1924), de Oswald de Andrade, no ano seguinte servindo de intro- dugdo a seu livro de poesia de mesmo titulo. Editoriais e prefécios foram os lugares privilegiados desses pronunciamentos. Entre eles, o editorial de lancamento de Klaxon ocupa um patamar de excecao, pela precedéncia e por congregar 0 nticleo puro e duro da Semana. Para saber as normas que nortearam a turma, basta reportar-se a esse texto, curto e incisivo. Alguns outros se destacaram. Os dois de Oswald de Andrade ~ 0 supracitado “Pau-Brasil” e mais ainda o “Manifesto Antropéfago”, este estampado no primeiro ntimero da Revista de Antropofiigia — S40 marcantes pelo radicalismo, que atinge o nivel da linguagem: concisa, formular, de choque, demolidora. Este tiltimo texto traza frase desde entao repetida: Tupy, or not tupy, that is the question. A quantidade 7 TELLES, Gilberto Mendonga. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 17. ed. Petrépolis: Vozes, 2002. de modernistas de primeira plana em todo o territério brasileiro que acorreram para esse periédico também ¢ significativa. “Pau-Brasil” evoluiu para a Antropofagia ¢ para a esquerda. Jé uma parcela dos pioneiros da Semana a partir de 1926 comecou a tender para a direita ¢ afiliou-se a0 Verde-amarelismo, que depois se tornaria 0 movimento de Anta. E outro caso de manifesto sem revista, pois foi publicado em jornal, ¢ tornou-se conhecido sob 0 titulo de “Nheengagu Verde-amarelo” (1929). Louvando-se num nacionalismo extremado de pendor autoritério ¢ no primitivismo das fontes indigenas — com termo tupi ¢ totem aborigene — opoe- -se frontalmente ao cosmopolitismo do grupo de Oswald e Mario. ‘As assinaturas so de Menotti Del Picchia, Plinio Salgado, Alfredo Elis, Cassiano Ricardo e Cindido Mota Filho. Cassiano Ricardo setia no futuro idedlogo do Estado Novo. Raul Bopp, que por um momento gravitou nessa érbita, opera uma guinada e vai fazer parte da direcao da revista de Oswald. Politicamente, Verde-amarelismo ¢ Anta sio afins ao integralismo de Plinio Salgado, nossa variante do fascismo entao em ascensio internacional. Para enfronhar-se nessas expresses doutrinarias convém inteirar-se também do que saiu como artigo, crénica, reportagem, charge humoristica ¢ comentétio em jornal, acompanhando ao rés do cotidiano 0 que foi tao vivaz e variegado.§ Ventos da renovacao Os ventos da renovagio sopraram por toda parte. Em 1924, Graca Aranha pronuncia na Academia Brasileira de Letras a confe- réncia “O espirito moderno”, nfo s6 propondo que a entidade se modernizasse como apresentando um projeto nesse sentido. Sécio fandador da Academia, produziu um escindalo e pediu demissio. @ BOAVENTURA, Maria Eugénia (Org). 22 por 22: a Semana de Arte “Moderna vista pelos seus contemporineos, Sao Paulo: Edusp, 2000. Gilberto Freyre, em Pernambuco, organiza o Livro do Nordeste em 1925 € 0 12 Congresso de Regionalismo do Nordeste no ano seguinte. O ideério exigia que os brasileiros acatassem ao mesmo nal e as vanguardas europeias,? duplo anseio que tempo o nacio: 0 “Sou um tupi tangendo um alatide” e que Mario expressou no vers Oswald ressemantizou no Antropofagismo. Num polo, os artistas vao redescobrir o Brasil, gestdo que inclui uma excursao comboian- do Blaise Cendrars as cidades barrocas de Minas Gerais, bem como as jornadas de Mario ao Nordeste e 4 Amazénia. No outro polo, o lema era “palavras em liberdade” ¢ a dedicagao a pesquisa estética, sem nenhuma espécie de limitacao. Apés a mostra de Anita Malfatti (1917), que despertou as iras de Monteiro Lobato, ainda em 1922 ela mesma e Tarsila, entre outros, forneceram telas para a coletiva eclética de belas-artes, no Palicio das Indiistrias, em S40 Paulo. Ao longo dos anos, apresen- taram-se sucessivamente Lasar Segall com seu tirocinio no Expres- sionismo alemao, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Cicero Dias, Guignard e Flavio de Carvalho. Em 1928 Porti- nari ganha o prémio de viagem 4 Europa da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio. Ao assumir a direcao desse baluarte do passado, Lucio Costa recebe os modernos em peso para o Salao de 1931.1 Victor Brecheret, que colocara varias obras no saguao do Municipal na Semana, afirma-se como o principal escultor conforme a nova esté- tica ¢ 0 maestro Villa-Lobos, como seu compositor por exceléncia. Enquanto isso, Gregori Warchavchik — que edificou a primei- ra casa modernista —, Flévio de Carvalho e outros vio apontando o tumo do desabrochar futuro da arquitetura, que geraria Lticio Costa ¢ Oscar Niemeyer. O paisagismo de Burle Marx influencia os jardins brasileiros, ao abandonar o geometrismo vigente, adotar espécies 9 a SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo. Sio Paulo: Perspectiva, 1983. re » Gilda de Mello ¢. “Vanguarda e nacionalismo na década de vinte”. In: - Exerctcios de leitura. Sao Paulo: Duas Cidades, 1980. nativas que desbrava e domestica, e substituir 0 quadrilétero pelo canteiro ameboide. Seu primeiro trabalho, de 1932, inseriu-se num projeto arquitetdnico de Liicio Costa e Gregori Warchavchik; e desde entdo sua obra inundou 0 panorama brasileiro ¢ internacional. Por sua vez, 0 desenvolvimento da arquitetura acarreta a atualizagio da arte aplicada e do design. Artistas e artesaos afinados com a nova estética, como Regina Gomide, John Graz ¢ as equipes do Liceu de Artes ¢ Oficios, produzem méveis e objetos de decora- ¢fo de interiores. Ainda quando Mario de Andrade quis renovar seu mobilidrio conforme padrées recentes, ndo achando 0 que comprar, servira-se de revistas alemas ¢ de marcenaria;!! mas essa etapa seria rapidamente superada. Sociabilidade Os jovens iconoclastas contaram com alguns mecenas. Houve dois saldes que propriamente os abrigaram ¢ promoveram, a Vila Kyrial de Freitas Vale!2 ¢ 0 Pavilhto Moderno de D. Olivia Guedes Penteado, projetado por Lasar Segall.!3 Paulo Prado, um dos principais mecenas, senao o principal, abria sua casa para almo- gos dominicais. Seu livro Retrato do Brasil (1928),4 datado do mesmo ano que Macunatma ¢ 0 “Manifesto Antropéfago”, conhe- ceu tal éxito que tiraria quatro edigées em trés anos. Escreveu 0 preficio de Pau-Brasil, de Oswald, ¢ recebeu dedicatéria de Mario 11 PAULA, Rosangela Asche de. “Mirio de Andrade designer aprendiz”. D.O. Leitura, Sio Paulo, ano 19, n. 3, mar. 2003. Os méveis conservam-se no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 12 CAMARGOS, Marcia. Villa Kyrial: crénica da belle époque paulistana, Sio Paulo: Senac, 2001. 13 SOUZA, Gilda de Mello e. “Lasar Segall e © modernismo paulista”, In: . A ideia e 0 figurado. Sao Paulo: Duas Cidades, 2005. 14 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Organizacao, introdugio, apéndices € notas de Carlos Augusto Calil. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1999; PRADO, Paulo. Paulltica etc. Organizagio, introdugio, apéndices ¢ notas de Carlos ‘Augusto Calil. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2004; BERRIEL, Carlos Eduardo. Tieté, Teja, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000. 15 m Macunaima. Sua posigio na Revista do Brasil foi estratégica. O Convivio entre artistas ¢ patronos era intenso; € foi em companhia de D. Olivia que Mario efetuou a viagem de descoberta 4 Ama- zonia, relatada em O turista aprendiz. Dessa convivéncia e da aura dos modernistas entre 0s seto- res esclarecidos da elite, surgiriam na capital paulista o Clube dos Artistas Modernos — idealizado por quatro pintores, a saber: Flévio de Carvalho, Antonio Gomide, Carlos Prado e Di Cavalcanti (1933) - ea Sociedade Pré-Arte Moderna (SPAM), inaugurada por um baile no réveillon de 1932. Ambos pouco durariam e por volta de 1935 tinham-se extinguido.!> D. Olivia foi o pivé da criagao da SPAM, cujas reunides preparatérias abrigou. Lasar Segall e Mério foram figuras-chave do congracamento, que planejava exposigées, tertilias, leituras puiblicas de obras literdrias, saraus musicais etc,, de artistas sintonizados pelo mesmo diapasio. Durante os anos mais cruciais da década de 1920, 0 ende- rego de Mario de Andrade 4 rua Lopes Chaves, a casa de Tarsila e Oswald, a garconnitre deste tiltimo funcionaram como pontos de encontro e de debates semanais. A festeira sociabilidade modernista logo se encerraria. Os retumbantes bailes de carnaval da SPAM — com cenografia de Lasar Segall e roteiro de Mério, do qual constava uma pantomima antiburguesa — despertariam as iras da direita, que os denunciou e exigiu sua extingdo. Sem condigées de continuar, as festas acaba- ram. Mas a essa altura ja tinha terminado a fase da demolicao e se iniciava a fase da construgao modernista. O Modernismo nascente beneficiara-se da prosperidade trazida pela alta do café e seus mecenas eram cafeicultores. Mas © craque da Bolsa, em 1929, e as consequéncias a longo prazo da Depressio subsequente, que se arrastaria pelos anos 1930, muda- riam as coisas de figura. O dinheiro nao mais sobrava para financiat 15 ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu, Sao Paulo: Perspectiva» 1976. “4 aventuras estéticas. A conjuntura internacional, com a Segunda Guerra Mundial delineando-se no horizonte, implicaria a radicali- zagio dos intelectuais, & esquerda e & direita. Entre nés, logo have- ria 0 golpe de Geuilio Vargas, no poder desde 1930, endurecido em 1937, e longos anos de ditadura. Sucedem-se enfrentamentos graves entre a esquerda e os integralistas, enquanto o levante comu- nista de 1935 servia de pretexto para uma repressao feroz. A euforia ¢ a opuléncia dos anos 1920 eram coisa do passado, enquanto o alinhamento politico levava a fissuras ¢ fraturas no nticleo inicial. Ensaio, ficgao, poesia Nao s6 de artistas poetas vivia 0 Modernismo. Numa época de renovagao total, fizeram-se contribuig6es essenciais para © ensaio. Também ensaistas surgidos em seu bojo produziram tra- tados de reflexéo sobre 0 pats. Casa-grande & senzala (1933) de Gilberto Freyre, Evolugao politica do Brasil (1933) de Caio Prado Jr. e Ratzes do Brasil (1934) de Sérgio Buarque de Holanda revolu- cionariam nosso pensamento social. Nessa linha, entre os participantes da Semana destacam-se Sérgio Buarque de Holanda ~ critico literério antes de se tornar his- toriador —, Sérgio Milliet ¢ Rubens Borba de Morais. O segundo seria por toda a vida critico de literatura e de artes plisticas, com atuago duradoura na fundagao continuidade de instituig6es como © Museu de Arte Moderna e a Bienal de Sao Paulo; 0 terceiro seria erudito ¢ bibliéfilo exemplar, com obra marcante em favor do livro. ‘Ambos integraram o famoso ¢ primeiro Departamento de Cultura encabecado por Mario de Andrade e promovido por Paulo Duarte na gestio de Fabio Prado como prefeito da capital (1935). Rubens Borba de Morais cuidaria das bibliotecas, Sérgio Milliet, da documentagio, Antonio de Alcantara Machado, do teatro, e Oneyda Alvarenga, da Discoreca Municipal, menina dos olhos do musicdlogo Mario de Andrade. Entre outras iniciativas do Departamento, realcam gest6es etnograficas pioneiras!6 — com cursos a cargo de Dina Lévi-Strauss e financiamento das expedigies de Claude Lévi-Strauss a dreas indigenas ~ ¢ a Missio de Pesquisas Foleléricas, que circulou pelo Nordeste gravando e registrando fol. guedos populares.” Oneyda Alvarenga seria mais tarde responsével pela organizagao péstuma dos trés volumes do monumental Danas dramdticas do Brasil, de Mario. Este também assentaria as bases ¢ redigiria 0 projeto, vigente até hoje, do Patriménio Histérico Artistico Nacional. \ Mario foi o grande teérico e critico do movimento. Afora | trabalhos mais longos, devem-se a ele mais de um milhar de arti- | gos de jornal. E artigos militantes, que iam discutindo e analisando ' cada acontecimento, cada autor, cada titulo, cada periédico, cada concerto, cada exposigio. Abatido por morte precoce, nao chegou a organizar tudo o que escreveu para publicagao em livro, tarefa que vem sendo executada desde entao.}8 Ja safram varios volumes compilando seus artigos, os quais, como ele mesmo aconselhava, do eram avulsos, mas se compunham de séries que visavam ao livro. Impée-se cada vez mais constatar como Mario estabeleceu os fundamentos da critica moderna de literatura e de artes no Brasil, Outra ramificagao de suas tarefas é a epistolografia. Calcula- ~se que Mario escreveu cerca de dez mil cartas, que compéem propriamente a histéria do Modernismo. Nenhuma ficava sem res- Posta, € sua correspondéncia passiva!? foi recentemente catalogada, 16 SANDRONI, Carlos. “Mario, Oneyda, Dina e Claude”. Revista do Patrimonio, Brasilia, DF, n. 30, 2002; BATISTA, Marta Rossetti. “Introdugao ao caté- logo”. In: (Org.). Colegdo Mério de Andrade. So Paulo: Edusp! Imprensa Oficial, 2004; GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Colegdes ¢ expedi- s0es vigiadas, Sio Paulo: Hucitec, 1998. 17 Acervo organizado por Flavia Toni veja Exposicéo Permanente, CDs € um livro de textos: Centro Cultural Sao Paulo (Vergueiro), 2005. 18 Pelas equipes do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, ‘cujo Arquivo Mario de Andrade tem como curadora Telé Porto Ancona Lopes. 19 Depositada no IEB-USP, num total de oito mil missivas. Jé foi feita a edicéo do mais impor- fante conjunto, o das trocas durante quarenta anos com Manuel Bandeira, até entdo sé conhecidas de um lado: agora temos a inte- gral da reciprocidade.20 Todo o Modernismo muito lhe deve por essa tarefa incessante de atendimento a consultas € discussdo de obras que submetiam a sua apreciagio. A ficgdo produziu trés obras-primas de prosa experimental: Membrias sentimentais de Joao Miramar (1924) Serafim Ponte Grande (1933), ambas de Oswald, e Macunaima (1928). Entre os demais escritores, destaca-se Antonio de Alcantara Machado, ao transformar pioneiramente em ficgio a experiencia da imigragao italiana, que mudaria Para sempre a fisionomia de Sao Paulo. Fixou algo hoje desaparecido, 0 linguajar ftalo-paulista, em Brés, Bexiga ¢ Barra Funda (1927), e outros. Arrolam-se numerosas realizagées, porém menos experimentais. Ainda no campo da prosa, nao pode- mos esquecer, por ter ficado tanto tempo engavetada, a dramatur- gia de Oswald de Andrade, em ostracismo durante décadas, Entre suas varias pegas, O rei da vela seria encenado pela primeira vez somente nos anos 1960, pelo Teatro Oficina de José Celso Mar- tinez Correia, ¢ essa tremenda sétira 4 burguesia revelou um talento até entdo ignorado. A realizagéo maxima do Modernismo se verificaria no cam- po da poesia. Mais receptiva a experimentalismos, foi por ela que o Modernismo comegou. ‘A nova poesia reivindicava a libertagao. Com isso, queria estourar os moldes até entao usuais, constitufdos pelo verso metri- ficado, pela rima e pela forma fixa —soneto, balada, ode etc. Depois, haveria um regresso, embora apenas parcial, e até Drummond faria sonetos. Renegou também a alienagio dos poetas com relagio A empiria brasileira e dedicou-se tanto a representar o pafs quanto a resgatar cronistas ¢ viajantes, o que explica tanta gente versejando 20 MORAES, Marcos Antonio de (Org). Correspondéncia Mario de Andrade & : Edusp, 2000. Manuel Bandeira. Sio Paul 19 sobre a histéria do Brasil. Havia a busca de um “senso de brasilida- de”, Abominando 0 provincianismo, aspirava ao cosmopolitismo; nai uma ver) de Oswald, urgia substituira “poe. esia de exportagio”. O destaque dado em férmula feliz (m sia de importacio” pela “po a0 poema-piada aponta para a valo viamento da linguagem e do rebaixamento do estilo, em reagio as 0 Parnasianismo ¢ do Simbolismo. rizagio do coloquial, do desata- altissonancias di O destino dessa poesia, e dos préprios poetas, foi variado, Alguns se mantiveram vates modernistas, ¢ bem produtivos, até a morte em idade avangada, como Bandeira e Drummond. E também 0 caso de Mario, ceifado precocemente em 1945. J4 Oswald, apés os livros de 1925 € 1927, nos quais dé o melhor de si, ainda publicaria mais um em 1945; mas, entremeadamente e até morrer em 1954, estaria mais interessado em prosa. Outros ou abandonaram o credo, ou de todo a lira; em muitos, 0 Modernismo foi epidérmico e fugaz, ou entio foi a vocagao poética que minguou. Em todo caso, 0 pano- rama é variado e, a par com os tracos de unificacao, nota-se a plura- lidade de poetas, de vozes e de modalidades de expressio. Walnice Nogueira Galvao Not Os autores que compdem esta obra aparecem em ordem cronolégica pel? estreia com livro de poesia.

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