Missão Prevenir e Proteger.
Missão Prevenir e Proteger.
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MINAYO, MCS., SOUZA, ER., and CONSTANTINO, P., coords. Missão prevenir e proteger:
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008. 328 p. ISBN 978-85-7541-339-5. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.
All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0
International license.
Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição
4.0.
Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons
Reconocimento 4.0.
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MINAYO, MCS., SOUZA, ER., and CONSTANTINO, P., coords. Missão prevenir e proteger:
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008. 328 p. ISBN 978-85-7541-339-5. Available from SciELO Books
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Missão Prevenir e Proteger
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
Presidente
Paulo Marchiori Buss
EDITORA FIOCRUZ
Diretora
Maria do Carmo Leal
Editor Executivo
João Carlos Canossa Pereira Mendes
Editores Científicos
Nísia Trindade Lima e Ricardo Ventura Santos
Conselho Editorial
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Gerson Oliveira Penna
Gilberto Hochman
Lígia Vieira da Silva
Maria Cecília de Souza Minayo
Maria Elizabeth Lopes Moreira
Pedro Lagerblad de Oliveira
Ricardo Lourenço de Oliveira
Missão Prevenir e Proteger
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro
ISBN: 978-85-7541-161-2
Projeto gráfico
Daniel Pose
Foto da capa
São Jorge, de Jorge Shark - charquinho.blogs.sapo.pt
Copidesque e revisão
Ana Prôa e Irene Ernest Dias
Revisão de provas
Marcionílio Cavalcanti de Paiva
Normalização de referências
Clarissa Bravo
Este livro é resultado de pesquisa que contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Catalogação na fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
M663m Minayo , Maria Cecília de Souza (coord.)
Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do
Rio de Janeiro. / coordenado por Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza
e Patrícia Constantino. – Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2008.
2008
EDITORA FIOCRUZ
Av. Brasil, 4036 – 1o andar – sala 112 – Manguinhos
21040-361 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 3882-9007 / Telefax: (21) 3882-9006
e-mail: [email protected] – http://www.fiocruz.br
Autores
Prefácio 9
Apresentação 13
Parte I - Contextualização
1 Estratégias de Pesquisa:
triangulando métodos, técnicas e perspectivas 25
2 Formação Social da Polícia Militar do Rio de Janeiro 41
3 Perfil Sociodemográfico, Profissional e Econômico 67
9
Em 2006, durante um encontro casual com as professoras Maria Cecília
Minayo e Edinilsa Ramos, na Academia de Polícia Civil, no Centro do Rio
de Janeiro, tomei conhecimento de que a pesquisa na PMERJ havia sido
autorizada pelo então comandante-geral e estava sendo realizada desde meados
de 2005. Em fevereiro de 2008, fui convidado pelo Claves para ter a honra
de ler o resultado da pesquisa em primeira mão, o qual passo a comentar.
O resultado do trabalho apresentado neste livro possui a capacidade
de construir, juntamente com o leitor, o entendimento da natureza da função
da Polícia Militar na sociedade. A análise da história sob o aspecto de seus
antecedentes, sua instituição e institucionalização, seus integrantes e suas
funções legais, pretéritas e atuais, consolida o conhecimento sobre as
representações culturais da corporação. Seus valores, ritos e crenças, bem
como a discrepância entre o discurso e a prática, e suas influências na forma
de sentir, pensar e agir desses trabalhadores passam a ter significado para
os ‘outros’: o leitor e a sociedade em geral.
Expor as condições de trabalho do ‘universo’ dos policiais militares é
descortinar uma realidade até então ignorada. Os aspectos organizacionais,
o processo de seleção e formação das pessoas que adentram este mundo, a
carreira, a interação entre os membros da corporação, a jornada de trabalho,
as condições materiais, técnicas e ambientais e a imagem construída na
interação com a sociedade apresentam-se como elementos essenciais ao
processo de construção do conhecimento, que é ver com o olhar da alteridade.
Conhecer as condições de saúde física e de risco dos ‘trabalhadores
policiais’ significa poder avaliar as conseqüências das condições de trabalho
impostas a estes operadores de segurança das pessoas. Avaliar os problemas
de saúde, as lesões e incapacitações, o estresse e o sofrimento mental em
razão do trabalho, referenciados com outras categorias de trabalhadores,
por pesquisas e autores reconhecidos, permitirá ao leitor mensurar o nível
de pressão física e psicológica a que nossos ‘guardiões’ estão sujeitos.
Pesquisar e relatar as condições e a qualidade da vida dos policiais
militares é reconhecer sua condição de trabalhador brasileiro. Analisar as
interações entre o trabalho policial e as pessoas em sociedade, as condições
socioeconômicas e ambientais dos policiais, a moradia, o acesso à saúde e à
educação, bem como os hábitos alimentares e culturais, é reconhecer sua
real condição para o pleno exercício do mandato do uso da força para a
preservação da ordem pública.
10
O resultado da pesquisa, em sua essência, humaniza o ‘trabalhador
policial militar’ quando expõe sua condição de trabalho, saúde, risco e
qualidade de vida. Derruba o mito do militar superior ao tempo e às
adversidades que o meio ambiente lhe impõe. Mostra que, estabelecendo a
‘missão’ como meta a ser atingida a ‘qualquer preço’, distorce a realidade e
nos faz esquecer que estamos tratando de pessoas. São trabalhadores –
pais, mães, filhos e filhas – pagos para executar um serviço, como qualquer
outro em qualquer lugar do país: o trabalho de prevenir e proteger outras
pessoas. Na verdade, de nos proteger.
Este magnífico trabalho, mais que uma pesquisa, é uma ferramenta
de gestão pública. Compreendido como um diagnóstico, e não como uma
crítica à instituição Polícia Militar, possui a capacidade de fornecer não
somente dados e informações, mas conhecimentos fundamentais para a
formulação e reformulação de políticas públicas. Que os gestores,
competentes e comprometidos com a segurança das pessoas deste Estado,
façam bom proveito do trabalho, tal como os pesquisadores de diversos
campos certamente o farão.
Paulo Storani
Capitão da reserva da Polícia Militar, ex-integrante
do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e
secretário municipal de Segurança Pública de São Gonçalo
11
Apresentação
13
fazer um trabalho de pesquisa com os policiais civis, considerados
indisciplinados para os padrões que regem as autoridades da corporação
militar. Na verdade, não foi fácil a tarefa de convencimento das chefias de
diferentes escalões da Polícia Civil, e cada passo no trabalho de campo tornou-
se uma conquista. Na parte metodológica do livro Missão Investigar, contamos,
por alto, as dificuldades que encontramos. Entre elas, citamos apenas o fato
de ter de ampliar o número de delegacias investigadas, pois havia recusas de
chefias que, assim, fechavam as portas para os contatos com seus outros
profissionais. Ocorreu também muita devolução de questionários em branco
por parte dos policiais sorteados.
A todos os problemas de entrada em campo somamos as dificuldades
próprias às especificidades da atividade investigativa da Polícia Civil quanto
às escalas de trabalho, que freqüentemente eram trocadas sem que fôssemos
avisados, a urgências de atendimento nos dias e horários agendados para
encontros, entre outros motivos que nos impediam de ter acesso a
determinados agentes. No entanto, conseguimos realizar a pesquisa, e
quando apresentamos seus resultados em várias sessões, nas quais tivemos
a presença – somando todas – de quase mil policiais, a esmagadora maioria
ficou muito contente de se ver retratada. Sobretudo, os policiais civis
ressaltavam o fato de que, pela primeira vez, alguma instituição havia se
interessado por eles e não apenas pelos problemas da segurança pública.
Apesar de, desde o início das tentativas para a realização da pesquisa,
termos conseguido um documento oficial de consentimento emanado do
secretário de Segurança Pública, não tivemos acesso à Polícia Militar. Isso
contrariava toda a lógica vigente em dois sentidos: primeiro, a dificuldade
não era mais proveniente da ‘polícia civil desorganizada’ e, segundo, a recusa
do comandante geral a ‘aprovar’ a realização da pesquisa já consentida
pelo secretário de Segurança Pública estava nos dizendo que os princípios
hierárquicos tinham limites, alguns dos quais não poderíamos ultrapassar.
O porquê dessa recusa, tal como nos foi explicitado, importa aos objetivos
deste trabalho. Na ocasião, o comandante da Polícia Militar estava muito
contrariado com informações, dados e opiniões exarados por pesquisadores
que, segundo essa autoridade, eram desabonadores da corporação. Ou seja,
havia um conflito aberto e não resolvido entre pesquisadores e as autoridades
da Polícia Militar, diante do qual se esvaíram nossas possibilidades de realizar
o estudo. Apenas na metade de 2005, também depois de muitas tentativas,
14
conseguimos permissão de outro comandante para a pesquisa, no caso um
terceiro que havia sucedido o que contatamos primeiramente. Dessa forma,
este estudo foi realizado de 2005 a 2007.
Julgamos importante assinalar essa situação que, segundo clássicos da
pesquisa empírica (Lévi-Strauss, 1975; Berreman, 1975; Becker, 1994;
Bourdieu, 1972, entre outros), faz parte do contexto e dos resultados da
investigação, para reafirmar aqui algumas características da corporação policial
não só brasileira, mas de todo o mundo: conservadorismo, fechamento para a
sociedade, pessimismo e isolamento das outras instâncias democráticas, tudo
isso contrabalançado por um forte espírito de corpo. Bretas (1997a: 82)
comenta em um texto sobre o que chama de “crise” ou “falência da polícia”:
15
Depois de termos escrito o livro Missão Investigar, a hipótese que
orientou esta análise é a de que iríamos encontrar uma situação mais
exacerbada de riscos pessoais e coletivos no exercício profissional dos policiais
militares do que no dos policiais civis. Para que pudéssemos produzir
algumas comparações que poderão ser lidas neste livro, utilizamos a mesma
base de instrumentos de coleta de dados para estudar as duas corporações.
Os conceitos centrais desta pesquisa são risco e segurança, trabalho,
saúde e qualidade de vida. Os dois primeiros dizem respeito à condição
intrínseca à profissão de policial. A instituição policial se destaca na
sociedade brasileira pelo seu papel estabelecido no artigo 144 do capítulo
III da Constituição Federal, que trata da segurança pública. À Polícia Militar
cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (§ 5o, art.
144) em nível estadual.
Historicamente, as corporações policiais (no caso brasileiro, a Polícia
Militar e a Polícia Civil) fazem parte do Estado moderno que toma para si
o monopólio da violência, como referem Foucault (1989), Santos (1997)
e outros. Podemos dizer que em todas as duas corporações subsiste um
‘mito de origem’ comum, que se caracteriza pela missão de preservar a
ordem pública como um dos pilares da defesa da sociedade.
Autores como Santos (1997), Bretas (1997a) e Kahn (1997)
analisam as similitudes dos vários tipos de polícia no mundo e especificam
seu papel nos Estados periféricos. Esses autores coincidem na constatação
de que, em países como o Brasil, os policiais tendem a exceder o seu poder,
a agir com truculência, a privilegiar as classes dominantes. Dessa forma,
acrescentam à sua missão constitucional uma terceira dimensão de ordem
axial e atitudinal que os torna autores de várias formas de violência ilegítima,
sobretudo contra os pobres e o povo em geral. Skolnick, no entanto,
utilizando depoimentos de policiais da cidade de Sheffield, no Reino Unido,
julgados por espancamento, comenta que os policiais do mundo inteiro
tendem a extrapolar seu papel legal, por considerarem
16
Poderíamos dizer, sem dúvida, que existe uma tradição policial de exceder
os limites das leis, a qual não obedece fronteiras nacionais. Porém, em países
periféricos como o Brasil, o grau de adesão à legalidade é muito baixo.
O livro Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade
do século XIX, de Thomas Holloway (1997), citado em vários momentos
nesta obra, caracteriza a conformação estrutural das corporações policiais
neste estado, enaltecendo a importância de estudá-las, por serem seminais
para o entendimento de todas as outras polícias do país. Em capítulo
específico deste livro, relataremos com mais detalhes esta história.
Resumimos, a seguir, os conceitos referenciais desta pesquisa:
1) Risco e segurança tal como tratados pela Polícia – Tais
conceitos, muito caros à atividade policial, sofreram modificações
ao longo da história e hoje têm conotação totalmente diferente.
Associado a toda ação humana que exija decisão, o ‘risco’ se revela
hoje tão mais iminente e ameaçador quanto mais as formas de operar
escapam aos contextos estruturados e definidos. Os avanços sociais,
científicos e tecnológicos, na teoria e na prática, vêm mostrando que
todas as sociedades se confrontam, contemporaneamente, com o
aleatório e com a irrupção da incerteza e do inesperado.
Os estudiosos do tema ‘risco’, na atualidade, ressaltam que o
passado dificilmente explicará o momento presente. Ou seja, o que
aconteceu antes não ajudará mais a prever e a prevenir o que possa
vir a ocorrer. Assim, o risco da criminalidade que ocorre na
vizinhança é apenas mais um a se somar na consciência do ser
humano pós-industrial. Na verdade, o crime na sociedade industrial,
ainda que persistam suas formas tradicionais (que continuam a ser
as mais visíveis), contemporaneamente ganha estratégias e artefatos
poderosos com nova geração de armamentos, organização em rede
por caminhos virtuais e novas possibilidades de ocultação dos
verdadeiros e maiores delinqüentes.
Etimologicamente, a palavra ‘risco’ deriva do vocábulo riscare
e tem a idéia associada a ‘ousar’. No sentido sociológico, risco
significa uma opção, e não um destino (Bernstein, 1997). No
caso, a Polícia Militar pode ser configurada como uma organização
em que esse conceito faz parte da escolha profissional e desempenha
17
um papel inerente às condições de trabalho, ambientais e
relacionais. Os profissionais que compõem a instituição têm
consciência disso. Seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam.
No campo da saúde, o conceito de risco é central.
A epidemiologia o define como a probabilidade, em condições
específicas, de uma pessoa sofrer agravos ou adquirir determinada
enfermidade. Do ponto de vista dos policiais militares, seu ‘risco
epidemiológico’ se caracteriza principalmente nos confrontos armados,
nos quais se expõem e podem perder a vida. A probabilidade que
têm de sofrer graves lesões, traumas e mortes encontra respaldo nas
altas taxas de óbito por violência de que são vítimas, dentro e fora de
seu ambiente de trabalho (Souza & Minayo, 2005).
O sentido de risco, adequado para descrever a situação
intrínseca à profissão de policial, combina a visão epidemiológica e
a visão sociológica e antropológica. A primeira lhe dá parâmetros
quanto à magnitude dos perigos, aos tempos e aos locais de maior
ocorrência das fatalidades. A segunda responde pela capacidade, e
até pela escolha profissional, do afrontamento e da ousadia como
escolhas.
Nesta pesquisa, analisamos o risco real e a percepção de risco,
ou seja, perguntamos como se configura este fenômeno, ao mesmo
tempo subjetivo e objetivo, vivido no exercício da profissão, dentro e
fora do ambiente de trabalho. A ampliação do foco da noção de
risco também para o âmbito exterior se deve ao fato de que, por ser
condição intrínseca da profissão, as situações envolvidas e as
representações que criam impregnam o ambiente de trabalho e a
pessoa que assume a identidade e incorpora a instituição.
O contraponto do conceito de risco é a noção de ‘segurança’.
Segurança é a matéria-prima do trabalho policial. No entanto, existe
hoje uma forte hipótese a respeito da crise do modelo liberal de
organização policial, cujo principal sintoma é o aumento da
insegurança. Vimos isso neste estudo exemplificado no fato de que,
em vários momentos, os próprios policiais se queixam de não terem
segurança para trabalhar.
18
No mundo contemporâneo, nunca houve tantos aparatos para
garantir a vida e a incolumidade dos cidadãos e nunca eles se
sentiram tão frágeis e desamparados. Isso significa que os termos
‘risco-insegurança’ são hoje bastante fluidos e subjetivos,
independentemente de haver ou não maiores garantias nas
sociedades pós-industriais. Portanto, ao nomear a ‘insegurança’ como
um termo característico da contemporaneidade, estamos falando
principalmente do ‘sentimento de insegurança’ que todos temos e
que, freqüentemente, atribuímos injustamente apenas à
incompetência da polícia. Pois não é verdade que vivemos mais
perigosamente agora do que há cem ou duzentos anos. Ou, ainda,
que sociedades diferentes e menos tecnológicas que as nossas sejam
mais seguras. Apesar de todas as situações perigosas, da pobreza e
das expressões de miséria atuais, apesar de todos os novos perigos
criados pelas tecnologias, dificilmente alguma época histórica e algum
contexto social foram tão seguros, como afirmam Beck (1992) e
Giddens (2002).
No entanto, a idéia de segurança com a qual a Polícia trabalha
continua restrita como no passado. Assim como o conceito de risco,
a idéia de segurança nasceu entre os séculos XVII e XVIII, quando
os Estados absolutistas passaram a planejar o desenvolvimento e a
organização das cidades visando à vigilância dos citadinos e à oferta
de condições de convivência civilizadas de forma presencial,
localizada e burocratizada. Hoje, o conceito de segurança pode até
tê-la como seu guardião simbólico, mas precisa estar socializado
com muitas outras instituições e organizações, diante das quais cabe
à polícia o papel de coordenação e ordenação.
Por fim, problematizamos o conceito de segurança em dois
sentidos: ‘público’ e ‘pessoal’. Segurança pública, segundo Silva
(1998), constitui a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por
meio de organizações próprias, contra todo perigo que possa afetar
a ordem em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de
propriedade dos cidadãos: é a essência da missão dos policiais e
deriva do campo jurídico. Já segurança pessoal deriva do mundo do
trabalho e tem um sentido normativo e filosófico. No primeiro caso,
representa a sistematização de normas destinadas a prevenir
19
acidentes, quer eliminando condições inseguras de trabalho, quer
prevenindo desastres ocupacionais. Cuidando da segurança pública,
os policiais são, também, servidores públicos protegidos pela
Constituição, que lhes assegura o direito à integridade física e mental
no exercício do trabalho.
No sentido filosófico clássico, segurança se confunde com
previsibilidade, com ausência de risco e com repetição do presente
no futuro. E, quando há algo a mudar, tal mudança é livremente
consentida pelos referentes. No sentido filosófico contemporâneo, a
partir das teorias da complexidade, o termo ‘segurança’ é substituído
pelo de ‘equilíbrio instável’, muito mais próximo à idéia de
transformação permanente, de caos e de incerteza. Nesse último
sentido, a produção de mudanças está orientada para várias saídas,
de acordo com as escolhas pessoais e sociais.
20
humana, ele também produz (em escala específica referente às
condições em que é exercido) desgaste físico e mental.
21
dentro de uma abordagem por triangulação de métodos quantitativo e
qualitativo. Os capítulos que contêm os resultados do trabalho de campo
são os que tratam do perfil dos policiais, de suas condições de trabalho, de
saúde e de qualidade vida. Há uma abordagem especial sobre o conceito e
a realidade de riscos vivenciados pela corporação. Ao final, na conclusão
fazemos recomendações estratégicas.
Desejamos que o leitor nos siga, perdoando nossas falhas, mas
aprendendo a conhecer essa corporação tão importante para a vida social
brasileira e fluminense, observando a riqueza dos dados que estamos lhe
proporcionando. Sobretudo, desejamos que nossos leitores preferenciais
sejam os próprios policiais. À parte a retórica de apresentação das
informações, a discussão dos dados e as reflexões por meio das quais
confrontamos o conhecimento empírico com os estudos nacionais e
internacionais existentes, o material do livro é deles. É o resultado do tempo
que despenderam conosco respondendo aos questionários ou conversando
em entrevistas ou discussão de grupos. Por tudo isso, somos sumamente
agradecidas! Desejamos, em troca, que aqui encontrem elementos e reflexões
que os ajudem, pessoal e coletivamente, a ser uma Polícia cidadã e
democrática como eles próprios e a sociedade brasileira merecem.
Agradecemos à equipe de trabalho de campo, composta por
Raimunda Matilde do Nascimento Mangas, Júlio César Vasconcelos da
Silva, Francisco Adolpho da Cunha Barros e Flávio Augusto Pinto Corrêa;
a Marcelo da Cunha Pereira, pelo apoio técnico; a Danúzia da Rocha de
Paula, pela normalização das referências; à equipe do Claves/Fiocruz, pelo
apoio e incentivo, e especialmente aos policiais que doaram o seu tempo à
pesquisa e dividiram conosco as suas vivências.
As coordenadoras
22
Parte I
Contextualização
Estratégias de Pesquisa
1
triangulando métodos, técnicas e perspectivas
Abordagem Quantitativa
O Plano de Amostragem
O plano da pesquisa foi o de uma amostragem de conglomerados em
apenas um estágio. Entendemos como conglomerado a unidade física (uma
academia de polícia, um batalhão etc.) com o seu respectivo grupo de
profissionais.
As amostras foram calculadas com base em listagens fornecidas pela
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), contendo todas as
unidades da corporação na capital do estado e o efetivo de cada uma delas,
especificado segundo os cargos. Para compô-las, observamos diferenciações
características do processo de trabalho, considerando as unidades
administrativas e as unidades operacionais (batalhões).
Um dos critérios para o sorteio das unidades foi a natureza do processo
de trabalho: ‘administrativo’, constituindo um conjunto de atividades-meio
que dão suporte para as atividades-fim, e ‘operacional’, responsável pelo
patrulhamento e enfrentamento da criminalidade. E, dentro de cada unidade,
observamos critérios de diferenciação de cargos. Consideramos os ‘oficiais’
26
(coronel, tenente-coronel, major, capitão, primeiro-tenente e segundo-
tenente), os ‘suboficiais’ (subtenentes) e os ‘não-oficiais’ (sargentos, cabos
e soldados).
Na Tabela 1, encontra-se a amostra selecionada e pesquisada. Foram
sorteadas 18 unidades e 1.700 policiais, mas pesquisamos 17 unidades e
1.120 policiais, mesmo tendo substituído e acrescentado unidades. Os
principais motivos para essas perdas foram algumas recusas dos gestores
em participar da pesquisa e divergências entre o contingente real e as listagens
fornecidas pela administração da corporação. Mesmo tendo, ao final, uma
amostra menor que a prevista, gostaríamos de ressaltar o esforço que fizemos
para obter uma representatividade da corporação. Por causa do grande
número de questionários devolvidos em branco, três novas unidades tiveram
de ser incorporadas à amostra – 2º Batalhão, Grupamento Tático
Motorizado (GTM) e 18º Batalhão. Mesmo assim, não cobrimos o número
previsto dos indivíduos.
Tabela 1 – Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Militar segundo amostra
calculada, contingente real e amostra pesquisada
(*) O total de 17 unidades pesquisadas não se refere à soma dos itens da coluna porque, em uma mesma
unidade, puderam ser pesquisados policiais de diferentes funções e estratos.
(**) Foram pesquisados 1.120 policiais, porém 12 não informaram o cargo.
27
Os motivos para divergências entre as amostras calculadas e as
pesquisadas foram vários. Citaremos alguns deles, pois possivelmente são
rotineiros para quem faz estudo sobre policiais. No nosso caso, muitas
dificuldades encontradas no estudo dos policiais militares já haviam ocorrido
na pesquisa com os policiais civis, como:
A própria natureza do trabalho e as constantes transferências dos
28
Os policiais participantes preencheram os questionários anonimamente.
Esses instrumentos de coleta de dados foram entregues dentro de envelopes
fechados, acompanhados do termo de consentimento livre e esclarecido,
conforme prevê a resolução n. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Em
vários casos, os questionários foram devolvidos sem a assinatura do termo de
consentimento. Foi-nos relatado por alguns deles que não assinar era um
procedimento de precaução, para não serem identificados por suas chefias.
O instrumento de coleta de dados incorporou algumas escalas
previamente estruturadas e validadas: a de Apoio Social e a de Sofrimento
Psíquico – SRQ20 (Self Report Questionnaire). A Escala de Apoio Social
– desenvolvida por Sherbourne e Stewart apud Chor, Griepe e Faertein
(2001) – possui 19 itens relativos ao apoio social e cinco de rede social.
Neste trabalho, apenas os itens referentes ao apoio social foram utilizados.
Essa escala é constituída por cinco dimensões: emocional – apoio recebido
mediante a confiança, a disponibilidade em ouvir, o compartilhamento de
preocupações e medos e a busca de compreensão dos seus problemas por
outrem; de informação – recebimento de sugestões, bons conselhos e
sugestões; material – possibilidade de a pessoa receber ajuda se ficar doente
e de cama, podendo ter alguém que a leve ao médico, prepare suas refeições
e auxilie nas tarefas diárias; afetiva – demonstração de afeto e amor,
capacidade de abraçar e de amar; de interação positiva – diversão em
conjunto com outros, capacidade de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de
distrair a cabeça. Cinco escores são obtidos, um para cada dimensão.
Essa escala foi adaptada à população brasileira por Chor, Griepe e
Faertein (2001) em um inquérito com duzentos funcionários de uma
instituição pública do Rio de Janeiro. Nessa fase de teste, os autores
verificaram uma proporção muito pequena de itens não respondidos, o que
sugere compreensão das perguntas formuladas. Além disso, outros critérios
foram utilizados para a mensuração da qualidade dos itens pertencentes ao
bloco de perguntas de apoio social. Em um primeiro momento, fazendo uso
do coeficiente de correlação de Pearson, verificamos a correlação entre cada
uma das perguntas, tomadas duas a duas. Este indicador foi útil para
observar a capacidade que os itens têm para medir o apoio social e não
qualquer outro conceito. Um resultado próximo de zero indicaria ausência
de relação do item com o conceito medido. Porém, um resultado próximo
29
da unidade indicaria redundância, pois teríamos dois itens medindo a mesma
coisa. Os dois resultados nos apontariam a exclusão do item.
Em seguida, o mesmo coeficiente foi aplicado para testar a correlação
entre cada pergunta e a sua dimensão teoricamente pertencente. Nesse
contexto, nenhum resultado menor que 0,20 foi encontrado, critério de
exclusão preconizado por Rowland, Arkkelin e Crisler (1991). Por último,
investigamos também se as diferentes perguntas utilizadas mediam o mesmo
conceito, com base no coeficiente alfa de Cronbach. Os resultados obtidos
foram elevados: 0,81, 0,89, 0,89, 0,93 e 0,76, respectivamente, para as
dimensões de apoio afetivo, emocional, de informação, interação positiva e
material – todos excedendo o limite de 0,70 recomendado por Rowland,
Arkkelin e Crisler (1991).
Na pesquisa que fizemos com policiais civis (Minayo & Souza, 2003),
foram obtidos altos coeficientes psicométricos: 0,93, para alfa de Cronbach;
coeficiente de correlação intraclasse (ICC) em torno de 0,65, para cada
tipo de apoio investigado; e Kappa variando do regular ao moderado. Todas
as dimensões dessa escala se correlacionaram entre si.
Na amostra de policiais militares, foi examinada a validade de
construto e a confiabilidade da escala. A validade envolveu três técnicas
estatísticas: análise fatorial, correlação item-escala corrigida e avaliação da
associação das dimensões da escala com alguns itens que, por hipótese,
caracterizam o apoio. A confiabilidade foi verificada pelo coeficiente alfa
de Cronbach. Observamos por meio da análise fatorial que três dimensões
do apoio social foram discriminadas: apoio emocional/informação, afetiva/
interação positiva e apoio material, em que o percentual da variância
explicada por cada fator foi de 61,7%, 6,4%, 5,3%, respectivamente, e a
explicação total da variância contida nos dados foi de 73,4%. Dois itens
foram alocados fora de suas dimensões originais: um de apoio material
(“contar com alguém para preparar suas refeições, se você não puder prepará-
las”), que ficou no fator afetivo/interação positiva; e um de apoio emocional
(“contar com alguém para ouvi-lo quando você precisa falar”), que ficou
no fator representado pelos itens de apoio material.
Na análise da confiabilidade, após a aplicação da análise fatorial,
encontramos coeficientes alfa de Cronbach de 0,95, 0,93 e 0,83, estimados
para as três dimensões observadas. Para a escala global, o coeficiente foi de
30
0,96. Nenhum coeficiente sofreu alteração significativa ao se excluir um
item de sua respectiva dimensão.
A avaliação da saúde mental foi executada por meio da aplicação da
escala SQR20, desenvolvida por Harring e Mcmullin (1992). Esse
instrumento mede a existência dos chamados ‘distúrbios psiquiátricos
menores’ entre a população. O questionário originalmente possuía 24
perguntas: vinte sobre distúrbios não psicóticos e quatro referentes a distúrbios
psicóticos. Várias versões do SQR surgiram em diversas línguas, inclusive
no Brasil. Harding e colaboradores (1980), Dhadphale, Ellison e Griffin
(1983), Sen, Wilkinson e Mari (1986) e Sen e Mari (1986) demonstraram
bons índices de confiabilidade e validade; entre 73% e 93% para
sensibilidade; entre 72% e 89% para especificidade; e a taxa de erros de
classificação oscilou entre 18% e 24%. A versão aplicada no Brasil foi
validada por Mari e Williams (1986), que observou sensibilidade de 83%,
especificidade de 80/% e 19% de erros de classificação.
O ponto de corte proposto para a escala é de 7/8 para homem e
mulher, respectivamente. Cada ponto equivale à resposta positiva a uma
pergunta, conduzindo ao estado de ‘sofrimento psíquico’. São elas: sentir
dor de cabeça freqüente; ter falta de apetite; dormir mal; assustar-se com
facilidade; apresentar tremor nas mãos; estar nervoso, tenso ou agitado;
apresentar má digestão; sentir dificuldade de pensar com clareza; sentir-se
triste; chorar facilmente; ter dificuldade em realizar tarefas diárias com
satisfação; sentir dificuldade em tomar decisões (indecisão); apresentar
dificuldade no serviço; sentir-se incapaz de realizar algo útil; perder o
interesse pelas coisas; sentir-se inútil; pensar em suicídio; sentir desconforto
estomacal; mostrar cansaço constante; cansar-se com facilidade.
A escala utilizada neste trabalho possui vinte itens que medem o
sofrimento psíquico (distúrbios não psicóticos). O alfa de Cronbach
encontrado no presente estudo é de 0,8346, confirmando que os vinte itens
indicam uma única característica.
Além das duas escalas citadas, foram pesquisados indicadores de
qualidade de vida, subdivididos em itens objetivos e subjetivos. Os
indicadores subjetivos corresponderam ao que o policial percebe, sente e
valoriza em relação a vários aspectos de sua vida. E os objetivos, a condições
gerais de vida como alimentação, moradia e lazer. Para este trabalho, foi
31
utilizado o grau de satisfação composto por 16 variáveis sobre relacionamento
e outros aspectos da vida. As cinco opções de resposta variaram em três
gradientes: satisfeito, nem satisfeito/nem insatisfeito e insatisfeito.
Contatos Institucionais
Para viabilizar a pesquisa, vários contatos foram realizados desde
2001. Por diversos motivos independentes da nossa vontade, a sua
autorização só foi conseguida em 2005, depois de muitas idas e vindas.
Depois de publicada a autorização na ordem do dia da corporação, foram
feitos os contatos em cada unidade. Do ponto de vista institucional, é
importante ressaltar que investimos em um árduo trabalho de exposição do
sentido, dos objetivos e da dinâmica do estudo, buscando convencer os
comandantes, oficiais e praças das unidades sorteadas sobre a importância
da pesquisa.
Após a adesão, era pactuada com os comandantes a melhor forma
para proceder à coleta dos dados. De modo geral, esses oficiais receberam
bem a proposta, apenas buscando se certificar de que a pesquisa estava
devidamente autorizada. Um fator que pode ter contribuído para a adesão
é o fato de já termos realizado e publicado uma pesquisa similar a respeito
dos policiais civis.
32
os resultados dessas circunstâncias, não queremos deixar dúvidas ao leitor
sobre as condições de possibilidade em que a investigação foi realizada.
A pesquisa de campo demandou muitas idas às unidades para cobrir
os vários turnos das equipes e localizar os policiais, visando tanto à entrega
dos envelopes quanto ao seu recolhimento. Na prática, distribuímos muito
mais questionários do que os recolhidos, pois o retorno dependia de um ato
voluntário dos pesquisados.
No balanço final, tivemos 1.700 questionários entregues, dos quais
199 (11,7%) foram devolvidos sem preenchimento e 381 (22,4%) não
foram sequer devolvidos. Essa taxa de não-resposta é da ordem de 34,1%.
Na Tabela 2, encontram-se distribuídos por hierarquia, segundo os
cargos, os policiais militares que compõem a amostra, excluídos 12 que não
informaram seus cargos.
Cargos policiais n. %
Coronel 5 0,4
Tenente-coronel 9 0,8
Major 19 1,7
Capitão 13 1,2
Primeiro-tenente 11 1,0
Segundo-tenente 21 1,9
Sub tenente 20 1,8
Primeiro-sargento 36 3,3
Segundo-sargento 161 14,5
Terceiro-sargento 120 10,8
Ca b o 180 16,3
Soldado 513 46,3
Total 1.108 100,0
33
Expansão da Amostra
Quando estimamos características de determinada população com
base em amostra probabilística, cada unidade amostral pesquisada representa
certo número de unidades não selecionadas da população, no caso, dos
policiais militares. Partindo desse princípio, optamos pela utilização de pesos
amostrais para as unidades policiais estudadas. Silva e colaboradores (1999)
recomendam que, nesse caso, um peso amostral deve ser especificado para
cada unidade investigada, refletindo a sua representação na população.
Ainda segundo os autores, os pesos amostrais, denominados ‘fatores de
expansão’, são calculados com base na probabilidade de inclusão de uma
unidade policial na amostra. A escolha desse desenho foi motivada pela
premissa de que o trabalho de campo seria facilitado com a participação de
todos os policiais de uma mesma unidade policial. Mas também porque o
único cadastro disponível continha apenas o nome das unidades com seus
respectivos quadros de servidores, segundo seus estratos de locação.
Após a expansão, mesmo com considerável margem de não-resposta
aos questionários e possível redução na precisão das estimativas, verificamos
que a amostra expandida ficou semelhante ao real contingente dos policiais.
Para os dados analisados, após expansão da amostra, obtivemos 7% de
pessoas em cargos de oficiais. O peso do estrato administrativo na pesquisa
foi de 24% e o do grupo operacional, de 76%. Trabalhamos com uma
população estimada de 21.075 policiais militares. Todos os resultados aqui
apresentados relacionam-se a essa população.
34
está contido em um manual para o codificador, elaborado pela equipe de
estatísticos que trabalharam na pesquisa. Esse estágio foi imprescindível,
visto que evitou, além de erros de digitação, a perda de tempo provocada
comumente por incompreensão das respostas.
No que diz respeito à crítica dos dados, fase em que objetivamos a
eliminação dos possíveis erros capazes de provocar enganos de apresentação
e análise dos resultados, optamos por dois processos distintos. O primeiro
procedimento de crítica destinou-se a procurar erros de codificação ou
digitação dos questionários. Nessa abordagem, escolhemos realizar uma
amostragem aleatória simples de 10% dos questionários. Houve falha de
digitação em 25,7%. De todas as questões, 9% apresentaram erros que
foram corrigidos. Em seguida, rastreamos incoerências, isto é, investigamos
se havia problemas com respostas a determinadas questões que, teoricamente,
deveriam se relacionar de maneira lógica. Constatamos que 375 (33,5%)
questionários apresentaram alguma inconsistência; 3,2% de tais
inconsistências eram erros de digitação logo retificados. As questões
incoerentes foram anuladas.
Na fase de análise, o banco foi convertido para o software SPSS
versão 10.0, onde realizamos a descrição de freqüências simples e análises
uni e bivariadas das variáveis. Os dados foram abordados, inicialmente,
por meio de uma análise exploratória em relação a todas as questões. Para
verificarmos diferenças estatisticamente significativas, utilizamos o teste Qui-
quadrado de Pearson. De acordo com Siegel (1956), este teste é usado
para encontrar associação entre variáveis em tabelas de contingência,
permitindo também avaliar o grau e a significância da associação encontrada.
No texto, essas diferenças apenas são mencionadas quando foram
estatisticamente significativas (p<0,05).
Todas as variáveis foram comparadas em função das categorias
analíticas ‘cargo na polícia: soldados e cabos versus oficial/suboficial/
sargento’, visando a um melhor balizamento quantitativo dos dois grupos, e
‘processo de trabalho: atividade administrativa versus atividade operacional’.
Na parte qualitativa, discriminamos com maior especificidade cada categoria
de servidor.
Recorrendo a modelos de regressão logística, fizemos uma modelagem
em relação às situações de risco sofridas pelos policiais, sendo esta a variável
de interesse no estudo, no intuito de identificar os seus determinantes.
35
O indicador de risco sofrido foi construído com base teórica por meio das
seis questões dicotômicas referentes à auto-avaliação reportada pelos policiais,
envolvendo as atividades consideradas mais perigosas ao bem-estar físico
daqueles que estavam em atividade operacional. Os tipos de violência
mensurados pelo indicador nas situações de enfrentamento são: ferimento
por projétil de arma de fogo; ferimento por arma branca; agressão física;
violência sexual; tentativa de suicídio; tentativa de homicídio.
Na construção da variável de interesse, as categorias de respostas
utilizadas basearam-se no seguinte padrão de classificação: ausência e
presença de risco, de acordo com a resposta dada pelo policial. Caso ele
reportasse não ter vivenciado nenhuma das situações adversas anteriormente
descritas, sua resposta seria codificada como ausência; caso contrário, a
codificação recebida seria a de presença de risco.
Em um primeiro momento, testamos modelos individuais de regressão
logística individuais para cada uma das variáveis explicativas; em seguida,
fizemos uma abordagem na qual consideramos modelos para cada um dos
quatro blocos de variáveis; uma terceira modelagem uniu os resultados
gerados pelas duas anteriores.
Também foram testadas algumas hipóteses propostas por Griep e
colaboradores (2005). A primeira é a de que as mulheres, os mais jovens e
os indivíduos com maior escolaridade e renda freqüentemente apresentam
altos escores de apoio social. A segunda afirma que pessoas com maior
número de parentes, de amigos íntimos, que são casadas ou não moram
sozinhas e que participam de atividades sociais em grupo também têm mais
chance de apresentar altos escores de apoio social. Enfim, a terceira hipótese
diz que indivíduos com melhor percepção sobre seu estado de saúde, com
menor número de doenças crônicas e que não apresentam transtornos mentais
comuns igualmente demonstram elevados escores.
Realizamos investigação de características que hipoteticamente
apresentam alguma associação com o apoio social. As associações foram
verificadas por meio da estimação de razões de chances – odds ratio (OR)
– com base em modelos de resposta binária (logísticos), onde a variável
resposta seria a dimensão do apoio social categorizada em nível alto ou
baixo (ponto de corte estabelecido pela mediana da distribuição dos escores
da respectiva dimensão).
36
Abordagem Qualitativa
Construímos os dados qualitativos exercitando a triangulação, a partir
de múltiplos informantes, observadores e técnicas de aproximação e
compreensão da realidade. Elaboramos todos os instrumentos coletivamente
e buscamos que fossem criticados por especialistas ad hoc nas áreas da
saúde do trabalhador e da segurança pública.
Tomamos como ponto de partida para a elaboração dos roteiros as
discussões da equipe em torno da leitura de várias pesquisas sobre os
indicadores de qualidade de vida, sobre o perfil de saúde de distintas
categorias profissionais e sobre a descrição das condições do trabalho policial.
Realizamos alguns seminários internos voltados para a discussão dos marcos
teóricos da investigação. E retomamos as entrevistas realizadas com
informantes-chave na fase exploratória do trabalho, para examinar a
adequação dos nossos instrumentos.
Também pudemos nos beneficiar dos debates realizados pela equipe
na fase de construção do instrumento quantitativo, identificando questões
que seriam mais pertinentes do ponto de vista qualitativo, nos grupos focais
e nas entrevistas. Outros referenciais foram os resultados significativos
estatisticamente e a análise realizada na pesquisa anterior com policiais
civis. Esse diálogo metodológico e interdisciplinar permitiu-nos, também,
perceber a necessidade de melhor esclarecer o sentido de determinados
temas que queríamos investigar.
Nesse exercício de triangulação metodológica com os pesquisadores
da área quantitativa, pudemos definir algumas categorias para guiar a
‘conversa com finalidade’ sobre cada um dos três grandes eixos do trabalho
(qualidade de vida, condições de saúde e condições de trabalho). Dada a
sinergia entre esses três componentes, muitas vezes uma questão acabava
por complementar o enfoque dos outros dois campos. Assim, por exemplo,
ao perguntarmos sobre o que afetaria a saúde do policial, as suas condições
de trabalho acabariam, inevitavelmente, por surgir no relato.
Incluímos nos roteiros as seguintes temáticas: qualidade de vida nos
âmbitos de trabalho, da família e da comunidade; condições de trabalho do
setor; sugestões para a melhoria dessas condições; riscos e estratégias para
lidar com os desafios cotidianos; relações de trabalho; reconhecimento do
policial e do seu serviço pela sociedade e pela própria corporação.
37
A contemplação da diversidade de atuação dos policiais foi o critério
fundamental para a escolha do espaço de abrangência da amostra qualitativa.
Por isso, incluímos: unidades que atuam na Zona Sul, na Zona Norte e na
Zona Oeste da cidade; unidades presentes em regiões socialmente
diversificadas: áreas pobres, de favela e de classe média; unidades conhecidas
por terem bom relacionamento com a comunidade e unidades que apresentam
dificuldades de interação no ambiente social em que estão presentes.
Trabalhamos, basicamente, com três técnicas: grupo focal, entrevista
individual e, de forma complementar, observações de campo. Para as
‘entrevistas’, utilizamos um roteiro semi-estruturado, com ampla abertura para
que nosso interlocutor interferisse e colocasse seu ponto de vista, além ou
apesar das questões que apresentávamos. Essa postura acabou por nos brindar
com muito mais material do que nossa lista de temas inicialmente propunha.
Utilizamos o ‘grupo focal’ como uma técnica de conveniência, pois
não teríamos condições de expandir as entrevistas individuais por tantos
policiais. No entanto, a empregamos explorando a especificidade de sua
potencialidade reflexiva. Sabemos que o material resultante de um grupo
de discussão é absolutamente diferente do que obtemos em uma entrevista.
Isso porque, no grupo, ouvir o outro e apreciar sua opinião permite atingir
um nível de explicação razoavelmente profunda sobre determinado tema de
forma consensual, assim como possibilita, também, deixar claro os dissensos
existentes entre os diferentes participantes. Dessa maneira, o resultado de
um grupo focal é um material interpretativo de primeira ordem (Schutz,
1979) bastante elaborado. Como preconiza essa técnica, colocamos em
cada sessão um ‘moderador’, que introduziu as regras do encontro, animou
o debate e buscou estabelecer a participação mais eqüitativa possível entre
os membros do grupo, e um ‘relator’, que fez o registro, checou com o
grupo a síntese das opiniões, os pontos consensuais e os principais conflitos,
além de ter tirado dúvidas sobre os depoimentos apresentados.
A ‘observação de campo’, no caso deste estudo, constituiu apenas
aporte complementar. Realizamos observações durante as diversas visitas
para a aplicação dos questionários da amostra quantitativa. Assim, a equipe
destinada a cobrir cada unidade ficou responsável pela elaboração de um
diário de campo. Seguindo um roteiro construído pelo grupo, buscamos
mapear observações sobre condições e relações de trabalho e impressões e
expectativas geradas pela pesquisa.
38
Amostra Qualitativa
Como já é de conhecimento de todos os que trabalham com pesquisa
qualitativa, nesse tipo de abordagem não importa o número de interlocutores,
e sim o aprofundamento das questões relevantes e a abrangência de todos
os atores principais, neste caso da organização policial militar. Visamos,
assim, a compreender a ‘lógica interna’ com que esses atores pensam, sentem
e atuam diante dos problemas tratados.
Fizemos oito entrevistas, sendo sete com gestores (dois comandantes
de unidades operacionais, dois de unidades operacionais especiais, um de
unidade administrativa e dois de unidades de saúde). Entrevistamos também
uma psicóloga que atua em uma unidade operacional especial.
Fizemos 11 grupos focais. Neles, entrevistamos 92 policiais (84
homens e oito mulheres) com a seguinte composição: três com oficiais
graduados (coronel, tenente-coronel e major), três com sargentos e cinco
com cabos e soldados, distribuídos de acordo com a natureza da unidade
(operacional, operacional especial e administrativa).
39
entrevistados: ‘oficiais’, ‘sargentos e subtenentes’ e ‘cabos e soldados’.
A análise foi realizada por três pesquisadores separadamente. Cada
um deles aprofundou um subgrupo, e posteriormente foi feita a
comparação. Na versão final da estrutura, trabalhamos com apenas
dois grupos: ‘círculo dos oficiais’ e ‘círculo das praças’.
Elaboração de estruturas de análise, agrupando os depoimentos
40
Formação Social da
2
Polícia Militar do Rio de Janeiro
41
cidade, desde a sua fundação em 1565. A primeira polícia aqui existente
foi a Guarda Escocesa, trazida por Villegaignon, em 1555. E a primeira
cadeia pública foi construída em 1567, no morro do Castelo. A segunda
foi edificada em 1639, no local onde hoje se ergue o palácio Tiradentes.
O Conselho de Vereança, criado por Mem de Sá (que governou o
Rio de Janeiro de 1567 a 1572), foi quem editou as primeiras posturas
referentes à atividade policial, estabelecendo severas penas para o ‘vício de
jogo’. A fiscalização e a aferição de pesos e medidas, os preços dos
comestíveis, o asseio da cidade e seu povoamento também foram alvos de
normas governamentais. As diligências noturnas – com o intuito de realizar
prisões – foram atribuídas ao alcaide pequeno,2 que sempre se fazia
acompanhar de um tabelião que anotava e atestava as ocorrências.
Um novo tipo de entidade policial apareceu em 1626. Era um esboço
de organização, nos moldes dos quadrilheiros existentes em Lisboa, com
sua sede instalada no campo de Santana. Sua organização se sustentava
pelos impostos sobre as casas de pasto, fogos de artifício, tabernas abertas
até depois da meia-noite, lançamento de barcos e canoas, material de
construção, passaportes, diversões públicas, taxas de carceragem e liberdade
de presos, taxa sobre açoites em escravos (!), licença para construção de
moradias e venda de capim.
O marquês de Lavradio, nomeado vice-rei para representar o rei de
Portugal no Brasil em 1760, alarmado com a criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e com a decadência e o descrédito da organização dos
quadrilheiros, criou e regulamentou o Corpo dos Guardas Vigilantes, bem
como organizou uma guarda montada. Até a chegada de dom João VI ao
Brasil, os vice-reis combinavam, sob sua responsabilidade, funções
administrativas e policiais, contando com a colaboração de ouvidores gerais.
2
No período colonial, ‘alcaide’, palavra derivada do árabe, significava ‘o chefe’, ‘o guia’.
Os alcaides (mores e pequenos) eram funcionários que vigiavam a cidade de dia e de noite,
acompanhados de um tabelião que registrava flagrantes, delitos e outros problemas sobre os
quais eles tinham responsabilidade. Os auxiliares do alcaide-mor se reuniam à noite na
residência dessa autoridade para programar a vigilância da cidade no dia seguinte.
42
Processo de Institucionalização da Polícia Militar
A Polícia Militar nasceu inspirada na organização das corporações
européias. As instituições policiais modernas da Europa Ocidental surgiram
durante a transição do século XVII para o século XVIII, processo que se
estendeu ao início do século XIX, coincidindo com a difusão das idéias
liberais em vários países (Critchley, 1992; Harring & Mcmullin, 1992;
Holloway, 1997). O conceito fundamental para a criação dessas corporações
foi a idéia de ‘segurança pública’ como serviço essencial prestado pelo
Estado, concernente à garantia de direitos e assentamento da autoridade.
Como refere Muniz (1999), as perspectivas de solução de conflitos sociais
por intermédio de uma instituição fundada em princípios de legalidade e
de consentimento social representaram o desafio de construção do Estado de
direito. E, segundo Foucault (1965), é daí que se aprofundou a idéia
de uma sociedade disciplinada.
Em regiões sob influência européia, como o Brasil do século XIX,
foram criadas corporações policiais, destinadas, pouco a pouco, a serem
uma resposta civilizada às insatisfações públicas relativas às arbitrariedades
produzidas pelo uso da força e pelas intervenções descontínuas e truculentas
dos exércitos e dos intendentes diante dos conflitos sociais.
No Rio de Janeiro, a história do que viria a ser conhecida como
Polícia Militar começou em 1808, e sua organização administrativa e
uniformizada coincide com a vinda da família real portuguesa para o Brasil,
fugindo dos projetos expansionistas de Napoleão Bonaparte. Sua
organização constituiu uma adaptação do que já vinha sendo experimentado
em Lisboa, com base no modelo francês. Foi obra do imperador dom João
VI a criação da Intendência Geral da Polícia, órgão com poderes judiciais
e encarregado de várias tarefas administrativas. Pelo alvará de 10 de maio
de 1808, dom João VI instituiu – com as mesmas atribuições que tinha em
Portugal – o cargo de ‘intendente geral de Polícia da Corte’, inaugurando
uma nova fase para a vida da cidade e dando origem a grandes modificações
no organismo policial que vigorava até então.
Dom João VI tinha como objetivo organizar uma polícia eficiente,
com o intuito de precaver-se contra espiões e agitadores franceses. Mas não
pretendia instituir, nessa ocasião, um mecanismo repressor de crimes comuns.
Sua idéia era dispor de um corpo policial – principalmente político – que
43
amparasse a Corte, apresentasse informes sobre o comportamento do povo
e o preservasse do contágio das idéias liberais que a Revolução Francesa
irradiava pelo mundo. Ele tinha conhecimento de que vários nobres e
letrados da Corte aderiam paulatinamente às idéias libertárias e temia que
tais idéias atingissem toda a população. O corpo de segurança desejado
pelo rei, além de lhe oferecer cobertura política, deu origem à estrutura
básica da atividade policial no Brasil. Suas atribuições incluíam, à época,
muito mais que a mera vigilância e repressão a crimes, pois estavam sob sua
responsabilidade as seguintes áreas:
Obras públicas;
Investigação de crimes;
44
que criou a Intendência confirmou-lhe a outorga de autoridade judicial
sobre delitos menores.
A primeira grande reforma desse arranjo institucional ocorreu em
1831, quando o regente Diogo Antônio Feijó extinguiu a Guarda Real,
que havia se rebelado, e a substituiu por uma organização paramilitar e civil
denominada Guarda Municipal. Composta por cidadãos não
profissionalizados, não remunerados e recrutados entre cidadãos de posse,
essa iniciativa fracassou em cerca de três meses. No seu lugar, Feijó idealizou
e instituiu o Corpo de Guardas Municipais Permanentes.
Holloway (1997), em seu acompanhamento da história política da
elite brasileira no século XIX, chama a atenção para a influência das idéias
liberais na formação desse Corpo de Guardas. Sua doutrina seguia o ideário
que predominava na Europa de então – o que pode ser constatado também
nos atos de dom Pedro I, que outorgou a Constituição Liberal de 1824; do
regente (padre) Diogo Antônio Feijó, que ajudou a fundar o Partido Liberal
e o sistema policial do Rio de Janeiro; e dos ideólogos e conselheiros do
Império, Tavares Bastos e José Tomás Nabuco de Araújo. Também estão
no rol das figuras instituidoras representantes conservadores da política
nacional da época, como Luiz Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias,
que definiu os caminhos a serem trilhados pela Polícia Militar; Eusébio de
Queiroz, que teve papel semelhante na história da organização da Polícia
Civil; e o visconde do Rio Branco, que liderou a reforma judicial liberal
aprovada pelo Parlamento, em 1871.
A partir da Proclamação da Independência e por todo o século XIX,
esses liberais, fossem eles autoritários ou conservadores, contribuíram para
a modernização institucional do país, na qual se inclui a organização das
corporações da Policial Militar e da Polícia Civil. Assim, podemos dizer
que, com exceção do breve lapso ocorrido em 1831, quando Feijó extinguiu
a Divisão Militar da Guarda Real, a Polícia Militar tem estado presente na
história do Brasil e do estado do Rio de Janeiro desde 1808.
O processo de institucionalização dessa corporação desenvolveu-se
de forma contemporânea à consolidação das corporações policiais da Europa
Ocidental, como já dissemos, e ocorreu antes mesmo da constituição dessa
categoria nos Estados Unidos (Holloway, 1997). Seu quartel-general se
organizou desde então nas dependências de um antigo mosteiro, na atual
rua Evaristo da Veiga (antiga rua dos Barbonos), próximo ao Passeio
45
Público, o mais antigo parque da cidade. A intenção do regente era instituir
e manter uma corporação bem localizada, profissional, selecionada e bem
paga, a quem os cidadãos pudessem confiar a segurança de sua pessoa e de
seus bens.3
Entre as várias características do Corpo de Guardas Municipais
Permanentes à época de sua criação, observamos uma clara intenção de que
esta se diferenciasse em relação às Forças Armadas: sua submissão ao ministro
da Justiça e não ao ministro da Guerra, ou seja, não se confundindo com o
Exército; provisão de membros não conscritos do Exército, e sim recrutas
que se alistassem voluntariamente e recebessem melhores condições de vida e
remuneração que as tropas; não-sujeição a castigos corporais, o que costumava
acontecer à época com os soldados do Exército.
Em sua estruturação em 1831, foram confiadas ao Corpo de Guardas
Municipais Permanentes as seguintes funções:
Patrulhar a cidade, circulando dia e noite: a infantaria atuaria no
em grupos maiores.
Prender todos que estivessem cometendo crimes ou que houvessem
3
A boa remuneração prevista por Feijó tinha por base de comparação o soldo pago pelo
Exército e pela Guarda Real. Holloway (1997) registra que, enquanto um soldado da
Guarda Real ganhava 2$400 por mês, a Polícia Militar já pagava 18$000 mensais a um
funcionário na escala inicial. Esse soldo – complementado com casa e comida nos quartéis
– dava às praças da Polícia Militar, à época em que foi criada, uma renda mensal semelhante
à dos assalariados livres, como balconistas e artesãos. No entanto, a base de recrutamento
do pessoal da Polícia Militar foi o segmento pobre da população, desde a época do Império.
E o ‘pagar bem’ proposto pelo regente Feijó esteve permanentemente balizado pelos salários
recebidos pelos trabalhadores pouco qualificados.
46
Nas instruções baixadas por Feijó, a influência da filosofia liberal
era nítida. O Código Criminal oferecia um arcabouço jurídico que limitava
o arbítrio dos policiais. Nele estava escrito que “as patrulhas da Polícia
Militar cumpririam com seu dever sem exceção de pessoa alguma, sendo
com todos prudentes, circunspetas, guardando aquela civilidade e aquele
respeito devidos aos direitos dos cidadãos” (Holloway, 1997: 94). A idéia
do regente era acabar com as brutalidades que vinham ocorrendo contra o
povo desde a criação da Polícia e, sobretudo, nos períodos de comando dos
intendentes gerais. Feijó esperava que a nova Polícia Militar se tornasse
uma instituição capaz de prevenir e reprimir distúrbios e estabelecer a ordem
social, por meio de métodos mais racionais e humanitários, como o de
privação de liberdade e aplicação de multas à luz da lei (Holloway, 1997).
Em 1866, o Corpo de Guardas Permanentes passou a se chamar
Polícia da Corte e, em 1920, recebeu a designação formal de Polícia Militar.
No site corporativo está escrito que a instituição já passou por 12
denominações diferentes, as quais acompanham a história do Brasil e do
estado do Rio de Janeiro (PMRJ, 2007).
Logo depois de criada, a Polícia Militar se viu sobrecarregada de
tarefas e com um efetivo muito aquém de suas necessidades. Além da rotina
de montar guarda e patrulhar a cidade, realizando atividades preventivas e
repressivas, muitas outras funções passaram a ser demandadas à instituição.
Pelo fato de ter de manter a ordem e por apresentar incontáveis contradições
sociais não resolvidas em seu corpo funcional e em seu desempenho, essa
organização nunca gozou de reputação invejável. A maioria dos estudiosos
da formação social do país ressalta, desde o início, a aversão dos brasileiros
às atividades policiais. As autoridades encontraram, desde o início, muitas
dificuldades para o recrutamento de pessoas das classes mais abastadas e
com melhor formação escolar para esse serviço público, por causa do repúdio
às funções típicas e também devido aos baixos salários (Holloway, 1997).
A hostilidade contra a população, um dos alvos das transformações
culturais preconizadas pelo regente Feijó, a serem efetuadas mediante o
cumprimento de procedimentos padronizados, continuou. A tradição do
uso de métodos de mutilação e de produção de dor permaneceu vigente,
estruturando a memória cultural trazida da instituição da Intendência.
Assim, ações arbitrárias e de crueldade manifestavam-se mesmo depois da
promulgação do novo código, sobretudo sob a forma de agressões a pessoas
nas ruas.
47
Os Comandos
Os quadros originais de comando da Polícia eram formados dentro da
tradição patrimonial portuguesa (Bretas, 1998). Homens de grande poder
aquisitivo obtinham a honraria de comandar um corpo policial e, em
contrapartida, pagavam por ele ou buscavam recursos com pessoas abastadas
para manter suas praças. Na organização do Corpo de Guardas Municipais
Permanentes (a atual Polícia Militar), Feijó criou quatro companhias de
infantaria, duas de cavalaria e duas auxiliares. Estas últimas eram comandadas
por oficiais do Exército e agregavam as praças que apresentavam problemas
disciplinares e necessitavam de maior controle. A praça que não mantivesse
comportamento adequado era transferida para o Exército, que pagava muito
menos e cuja disciplina se organizava de forma mais rígida (Bretas, 1998).
O costume de haver influentes portugueses à frente dos comandos
foi, aos poucos, se modificando, pois essa atividade não constituía uma
tarefa suficientemente atrativa. Bretas (1998) assinala que, já na década
de 1830, os documentos evidenciam a presença de um tipo de contratação
de comandantes por dois anos e, mais tarde, por três anos renováveis.
Inclusive, há registros de que nos anos 1830 já se aceitava e praticava a
ascensão na carreira. Um policial teria chance de se engajar no nível mais
baixo da corporação e galgar a postos superiores, por mérito ou por indicação
de pessoas influentes. Os comandantes das companhias também eram, com
freqüência, militares do Exército.
Bretas (1998) comenta que Luiz Alves de Lima e Silva, o futuro
duque de Caxias, que comandou a Polícia por um longo período na década
de 1830, incentivava a promoção de bons policiais. Os documentos da
época evidenciam a existência de servidores bem-sucedidos, embora fossem
muito poucos os que logravam chegar ao oficialato. Entre os oito capitães
listados em 1845, por exemplo, quatro vinham da própria instituição e
quatro do Exército (Bretas, 1998). Mas esse mesmo historiador, examinando
documentos, fala da imagem perturbadora que a história oferece desse grupo
considerado de sucesso, pois seu histórico assinala uma capacidade
profissional muito restrita, aliada à vivência de muitos problemas físicos,
mentais e de comportamento.
Bretas descreve vários exemplos, e dele tomamos o caso do capitão
Albino José Marques, que, ao pedir reforma,4 “apresentava, aos 50 anos,
48
um quadro de gastro-hepato-cistite e laringite crônica, além da suspeita de
idiotice que não fora, até então, obstáculo a sua carreira” (Bretas, 1998:
224). Sobre ele, a junta médica assinalou: “[possui] uma inteligência
limitada que, debaixo de afecções morais, bem poderia distraí-lo de seus
deveres. Não sofre, contudo, de idiotice” (Bretas, 1998: 224). Outro
exemplo vale a pena ser mencionado: o do capitão José Afonso de Castro,
de 41 anos, que deu baixa em 1869, tendo entrado na Polícia em 1846.
Submetido a três exames médicos, o diagnóstico para que pudesse ser
reformado descrevia o seguinte quadro de enfermidades: sífilis terciária,
tuberculose incipiente, bronquite crônica e reumatismo (Bretas, 1998).
É preciso, portanto, ressaltar que, salvo honrosas exceções, sempre
houve longa distância entre o ideário liberal propugnado pelo regente Feijó
e a realidade dos comandos possíveis, reais e concretos da Polícia Militar
do Rio de Janeiro, tanto em relação à capacidade de atuação quanto aos
comportamentos. O oficialato de então estava muito aquém da compreensão
dos ideais de igualdade, de respeito aos direitos humanos e de proteção à
população, previstos nos documentos de institucionalização da corporação.
Corpo de Servidores
Saber quem eram os soldados que compunham a força policial da
época do Império é fundamental para ampliar nossa visão sobre os
componentes de base do aparelho do Estado que então se formava no Brasil.
Bretas (1998) informa que as fontes para tal pesquisa são escassas. No
entanto, o que existe são ‘fragmentos de informação’ provenientes de ofícios e
de petições apresentadas ao imperador por policiais ou por seus familiares,
permitindo traçar características desse segmento social. Os dados nos obrigam
a refletir sobre as ambigüidades entre a condição social e o mandato profissional
desses servidores: “Agentes da dominação estatal, muitas vezes vítimas do
recrutamento forçado e participantes cotidianos dos dramas das vidas da
camada de homens livres e pobres” (Bretas, 1998: 220), eram chamados a
4
Uma lei de 28 de setembro de 1853 concedeu aos policiais o direito à reforma remunerada.
Essa melhoria se refletiu tanto no aumento dos que passaram a permanecer no Corpo de
Guardas Municipais Permanentes quanto no incremento do recrutamento dos que aspiravam
à carreira.
49
defender um Império que não os incluía, uma classe poderosa que os
discriminava e, ainda, a tratar com distinção o povo do qual fazia parte.
Bretas (1998) e Holloway (1997) falam de um universo humano de
pessoas pobres, simples, livres, pouco instruídas; havia também entre os
policiais a presença de alguns escravos fugitivos buscando trabalho e proteção
na força pública. Provinham das roças ou de outros serviços públicos. Seu
engajamento na corporação não significava nem uma mudança de status nem
seu afastamento do mundo familiar. Ao contrário, o exercício da atividade
policial nunca lhes conferiu atributos positivos, pois continuavam a conviver
com os mesmos problemas de outros grupos de trabalhadores pobres.
Em resumo, os agentes encarregados do controle social eram
recrutados nas mesmas camadas sociais que deveriam controlar. No entanto,
esta não era uma questão exclusiva do Brasil. A origem popular das forças
policiais sempre foi um problema para as corporações do mundo inteiro, e
muitas delas desenvolveram estratégias para minorar a solidariedade natural
desses servidores com as pessoas de sua própria classe. A polícia inglesa,
por exemplo, adotou rígida disciplina militar na formação dos seus quadros,
propondo um modelo de servidor padrão, sóbrio e polido (Steedman, 1984;
Emsley, 1991). Nesse caso, todo o empenho se destinava a afastar o policial
de seu grupo de origem, controlando seus locais de moradia, exercendo
vigilância sobre suas namoradas, proibindo sua freqüência a bares e
reprimindo a contratação de dívidas. Mesmo assim, a corporação britânica
sempre teve de enfrentar muitas demissões e resistências por motivos de
solidariedade de classe, conforme assinalam os autores citados. No Brasil,
observamos tanto a solidariedade de classe como a sua negação, exigindo
freqüentemente que as chefias lhes relembrem suas origens.
A história mostra que o número de policiais encarregados de proteger
e vigiar o Rio de Janeiro sempre oscilou muito. Deve-se destacar que em
nenhum momento, e isto até hoje, as vagas existentes para a corporação
foram totalmente preenchidas. Houve períodos em que o número não
ultrapassou a metade do necessário, e os historiadores atribuem isso à
resistência surda da população a adotar a profissão policial. Essa resistência
é tão relevante que, no início de institucionalização da corporação, mesmo
os que se inscreviam desertavam logo que surgisse uma oportunidade melhor.
Em pesquisa histórica, Bretas (1998) encontrou que um dos recursos usados
pelas autoridades para preencher os quadros da Polícia foi o recrutamento
50
de estrangeiros, que na época do Império chegavam a compor cerca de
20% do Corpo de Guardas Municipais Permanentes. Tomando como
exemplo dados do mês de abril de 1882, o autor conta que, nesse período,
havia 82 estrangeiros (desses, 52 eram portugueses, 14 espanhóis, seis
alemães, sete suíços, cinco franceses e dois italianos), em um total de 502
policiais para uma previsão de 560.
Para compor seu quadro de funcionários, a preferência dos comandos
era por jovens robustos encontrados nas ruas. Embora sistematicamente
negado pela Polícia, que, em seus documentos oficiais, sempre ressaltou o
engajamento voluntário, o recrutamento era freqüentemente forçado. Isso
pode ser inferido das inúmeras petições de baixas por parte de policiais e
de seus familiares às autoridades e mesmo ao imperador, sobretudo em
ocasiões festivas. Nessas petições, geralmente eram narradas cenas de
constrangimento no momento em que a praça havia sido recrutada.
Igualmente, muitas adesões admitidas como voluntárias se deviam à fuga
dos jovens ao serviço militar, no qual eram submetidos a condições de rígida
disciplina, recebendo pagamento ainda inferior ao da Polícia.
Os recrutas assinavam uma espécie de contrato de trabalho que variava
de um a três anos. Vários se arrependiam antes e enfrentavam longo processo
para se desvencilhar dos compromissos. Na década de 1830, a tendência dos
comandos era resistir à concessão de dispensas, independentemente dos motivos
alegados. Existem documentos que atestam casos de primeira, segunda e
terceira deserção – uma vez que as dispensas não eram concedidas –,
geralmente punidas com prisões e penas cada vez maiores (Bretas, 1998).
Assim, as indicações históricas sugerem que o conjunto de policiais
recrutados no século XIX para formar o Corpo de Guardas Municipais
Permanentes – ancestral da Polícia Militar – era formado por pessoas muito
simples, pouco instruídas, oriundas das camadas mais pobres da população,
muitas delas apanhadas nas ruas do Rio de Janeiro. A corporação contava
com uma boa parte de homens constrangidos e trabalhando
involuntariamente. Sua qualidade intelectual e moral não era confiável:
proliferavam queixas da população pelas agressões e pelo mau
comportamento, e são incontáveis os relatos de punições internas. Até mesmo
o quadro de oficiais possuía deficiências morais e de instrução escolar, e a
maioria atuava atendendo a favores pessoais dos mais ricos e poderosos
(Holloway, 1997; Bretas, 1998). Dessa forma, os princípios institucionais
51
que preconizavam tratar bem o público e não empregar violência
desnecessária geralmente permaneciam no nível da declaração dos comandos
e não produziam efeitos concretos.
É dentro dos parâmetros históricos assinalados que, a partir de
1831, a Polícia Militar do Rio de Janeiro surgiu como uma força armada
instituída para ser o esteio da manutenção da ordem e modelo para as
que fossem criadas no resto do país. Passou por reformas menores e
mudanças de nome em 1842, 1858, 1866 e 1889, mas manteve notável
continuidade na sua composição e missão desde 1831. Constituiu-se desde
o início, em sua organização interna e em seu regime disciplinar, como
uma corporação militarizada. Foi criada como um instrumento de coerção
da autoridade do Estado e em forma de resposta local, com recursos locais,
às necessidades de uma sociedade escravocrata que se mantinha unida
pela ameaça e pela dominação física e moral. E Feijó, seu fundador,
representava o liberalismo que procurava substituir o exercício arbitrário
do poder por leis frente às quais todos seriam igualmente responsabilizados.
A contradição entre a ordem pela lei e a arbitrariedade na prática está na
raiz da formação histórica da corporação (Holloway, 1997).
Mudanças Institucionais
Faremos um breve sumário histórico das mudanças institucionais
ocorridas a partir da Proclamação da República. Em 1890, o Corpo Militar
de Polícia passou a se chamar Brigada de Polícia da Capital Federal e, em
1891, Força Policial do Distrito Federal. Em 1920, assumiu a denominação
Polícia Militar. Nesse mesmo ano, foi criada a Escola Profissional para
Formação de Oficiais. A Constituição Federal de 1934, em seu artigo 167,
definiu a Polícia Militar como força reserva do Exército, e a lei n. 192, de
1936, determinou que ela se estruturasse da mesma forma que as unidades
de infantaria e cavalaria do Exército regular. Foi na década de 1930 que,
na corporação, se formalizou a simbiose entre segurança pública, segurança
interna e subordinação às Forças Armadas.
A partir do primeiro governo de Getulio Vargas, em que a expansão
das cidades correspondeu à maior consciência de cidadania e ao crescimento
do que poderíamos chamar de ‘uma opinião pública’, as forças de segurança
começaram a amargar críticas bastante negativas e contundentes a seu
52
desempenho, na medida em que não conseguiam estabelecer um plano
eficaz de prevenção ao crime. Autores como Donnicci (1990) consideram
que elas se encastelaram, criando uma cultura corporativa de violência contra
a população, matando impunemente, desrespeitando direitos e garantias
individuais e, também, construindo “superbandidos e admitindo
superpoliciais” (Donnicci, 1990: 59). Por isso, o autor conclui:
53
o período autoritário. O famoso ato complementar de 1968, responsável pelo
aprofundamento da ditadura, também repetiu que “as polícias militares,
instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna nos Estados,
nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são
considerados forças auxiliares do Exército”. Com esse ato complementar,
permitiu-se que a Polícia Militar continuasse a ser utilizada nos serviços de
informação e contra-informação do período autoritário. Infelizmente, ainda
são quase inexistentes estudos que mostrem a atuação específica e as
repercussões dessa atuação na própria cultura da corporação. Temos como
hipótese, no entanto, que sua forma de participação nesse momento histórico
contribuiu para fortalecer a ideologia que considera a população como o inimigo
interno, intensificando o fechamento institucional e o enrijecimento hierárquico.
Do ponto de vista organizacional, as corporações policiais no Brasil
têm passado por muitos questionamentos ao longo da história. Um dos
pontos cruciais debatidos ainda hoje é a integração da Polícia Militar com
a Civil, sendo que alguns cientistas, políticos e mesmo membros da instituição
chegam a mencionar que seria preciso investir na sua união. Analisando a
missão de cada uma, é difícil acreditar que os legisladores aceitem a fusão
de ambas em apenas uma. Outro ponto importante é a própria forma de
organização militar e hierarquizada, que não convence nem aos próprios
policiais e nem à sociedade e freqüentemente é questionada.
A criação da Secretaria de Estado de Segurança Pública, em 1992,
pretendeu ser um instrumento institucional de integração, visando não a reunir,
mas a coordenar os vários serviços, ações e propostas. Mas a primeira tentativa
de criar uma interação entre as forças de segurança vem desde o governo de
Carlos Lacerda, que fez profundas alterações nas estruturas até então vigentes,
organizando-as em superintendências de Administração e Serviços – a de
Polícia Judiciária e a Executiva. Nessa gestão, desapareceu da nova estrutura
o cargo de chefe de Polícia. As funções policiais civis passaram a ser exercidas
pela Superintendência de Polícia Judiciária. As administrativas ficaram a
cargo do superintendente de Administração e Serviços. O policiamento
ostensivo e o de trânsito integraram a competência do superintendente-executivo,
ao qual estava vinculado, também, o Departamento de Ordem Política e
Social. Todos, porém, eram subordinados ao secretário de Segurança Pública.
Em 1964, houve outras modificações, com a criação de novas delegacias
especializadas. A Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e o Corpo Marítimo
54
de Salvamento passaram a compor essa estrutura, como órgãos relativamente
autônomos. Nessa época, foi instituída a Força Policial que absorveu a Guarda
Civil e a antiga Polícia de Vigilância (ex-Guarda Municipal). Como órgãos
de assessoramento direto do secretário de Segurança, destacavam-se o Gabinete
do secretário, a Inspetoria Geral da Secretaria de Segurança Pública, o
Conselho Regional de Trânsito e a Escola de Polícia, esta última transformada,
mais tarde, em Academia de Polícia.
O regime ditatorial implantado em 1964 aprofundou ainda mais a
cisão entre a população e a Polícia. Também abriu um enorme fosso entre a
Polícia Militar e a Polícia Civil, pois o decreto-lei n. 667, de 2 de julho de
1969, deu ao Exército o controle e a coordenação das polícias militares. Em
oposição à corporação militar, cujo papel seria guardar ostensivamente a ordem
interna e ser reserva do Exército Nacional, a corporação civil viu reafirmada
sua autoridade investigativa como primeira instância da função judiciária.
Por ocasião da fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro,
ocorrida em 1975, iniciou-se uma reforma de base na Secretaria de
Segurança Pública. Foram criados, como órgãos de atividade-fim, o
Departamento Geral de Polícia Civil (DGPC) e o Departamento Geral
de Investigações Especiais (DGIE). Ao primeiro, ficaram subordinados o
Departamento de Polícia Metropolitana (DPM), o Departamento de Polícia
Especializada (DPE) e o Departamento de Polícia do Interior (DPI) –
este último, posteriormente, descentralizado em Coordenadorias de
Segurança Pública. A Academia de Polícia e a Corregedoria passaram
também à tutela do Departamento Geral de Polícia Civil. Ao DGIE ficaram
vinculados o Departamento de Polícia Política e Social (DPPS) e o
Departamento de Investigações Gerais (DIG). Nesse tempo, foi criado,
ainda, o Departamento Geral de Defesa Civil.
Em 1977, deu-se prosseguimento às reformas que reestruturavam as
carreiras policiais em três categorias, restabelecendo-se o provimento por
ascensão mediante prova de habilitação e curso específico e criando-se novas
categorias funcionais. Tal reforma tinha como objetivo proporcionar melhores
condições de trabalho aos policiais, assegurando-lhes um sistema de
promoções anuais baseado no mérito objetivamente aferido.
No entanto, os problemas de fundo continuaram a existir: quadro de
funcionários deficiente, salários aviltantes, desempenho baixo e muito pouca
avaliação em relação ao controle da criminalidade. Mesmo depois da
55
abertura política que, a partir de 1979, marcou o início dos movimentos
pela democratização do país, e a despeito de todas as tentativas de reforma
organizacional, persistem a cultura autoritária, o fechamento institucional
para a sociedade e a falta de clareza no desempenho profissional.
Ousamos assinalar algumas razões que explicam as dificuldades de
mudanças: primeiro, uma cultura autoritária não se muda de um dia para o
outro; segundo, todas as instituições policiais e militares, historicamente e em
todo o mundo, são muito fechadas; e terceiro, na prática, em todas elas existe
falta de clareza no desempenho das atribuições. O fator mais importante,
porém, é que a violência policial tem uma relação dialética com a expectativa
do povo a respeito dela. No caso de uma sociedade autoritária e discriminadora
como a brasileira, as falhas apontadas são objeto de imensas e profundas
controvérsias. Portanto, as transformações institucionais e dos policiais como
sujeitos fazem parte da longa agenda de democratização do país.
O conjunto de problemas que a maioria dos estudiosos observa na
corporação foi fartamente dramatizado, em 2007, pelo filme de ficção Tropa
de Elite. Esse filme aborda o heroísmo de um grupo especial da Polícia
Militar que, para cumprir seu dever, vai às últimas conseqüências e
ultrapassa os limites da legalidade, chegando até a cometer torturas. Em
contraposição, os ‘heróis’ convivem com uma tropa conivente com a
criminalidade, suscetível a subornos e promiscuamente compactuando com
a ilegalidade e com o poder. Tal peça de ficção sobre a situação policial
brasileira vem despertando controvérsias e reflexões como nunca havia
ocorrido antes. Temos a hipótese de que esse interesse surpreendente se
deve, entre outras razões, ao despertar da sociedade para essa instituição
que faz parte de seus problemas e de suas soluções.
Transcrevemos aqui fragmentos do artigo de um delegado de polícia,
Alexandre Neto, publicado no jornal O Globo de 2/11/2007, reagindo ao
filme que atualiza para a vida contemporânea do estado do Rio de Janeiro
os dilemas estruturais assinalados por Holloway (1997) em sua obra:
56
instituições policiais do país. Por todos os policiais militares e civis que não se
omitem, que não se corrompem e optam por ir à guerra, mesmo sabendo que
tudo lhes é desfavorável. (...) Na visão elitista de grande parte do público que
assiste ao filme, a chamada barbárie policial se justifica pela ‘tragédia das
drogas’ em nossa sociedade – essa mesma que ela observa complacente e sai
às ruas, em passeatas pela paz; e, ao final de cada uma delas, alguns
participantes acendem ‘baseados’ para relaxar e meditar sobre uma solução
que concilie seus vícios e os interesses sociais. (Neto, 2007)
Cremos que esse depoimento – junto com muitos dos artigos de opinião
que se multiplicaram por mais de um mês nos jornais de grande circulação
do país, após e a propósito da exibição do filme, além de todas as falas de
policiais que os leitores encontrarão neste livro – poderia pautar reflexões e
debates da corporação e da sociedade que busca mais profundidade em
sua experiência democrática.
Missão Contemporânea da
Polícia Militar do Rio de Janeiro
A missão contemporânea da Polícia Militar se encontra escrita no
artigo 144, capítulo III, da Constituição Federal de 1988:
57
§5: Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a manutenção da
ordem pública.
§6: As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares
e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
58
No cumprimento de sua função constitucional, a Polícia Militar que
se localiza no estado do Rio de Janeiro atua em três grandes áreas: na
capital, que compreende o município do Rio; na Baixada, que corresponde
aos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Belford Roxo,
Queimados, Japeri, São João de Meriti e Magé; e no interior, que se refere
aos demais municípios do estado. Cada uma dessas áreas está vinculada a
um ‘Comando de Policiamento’ e a ele se subordinam unidades que executam
a missão institucional por meio de policiamento geral, radiopatrulhamento,
patrulhamento rodoviário, florestal e outros. Existem outras unidades que,
pelo seu alto grau de especialização, reúnem-se em um Comando de
Policiamento Especial que abrange todo o estado: unidades de Polícia
de Choque, Operações Policiais Especiais, Patrulhamento Rodoviário,
Florestal, Montado e Ferroviário (www.policiamilitar.gov.rj).
Segundo dados disponibilizados pela corporação em março de 2007,
o atual efetivo de policiais militares do estado do Rio de Janeiro é de 37.459
membros ativos, correspondendo à relação de um policial para 420
habitantes, considerando-se que a população residente no estado hoje é de
15.738.510 pessoas, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) para julho de 2007. Na relação policial militar/
população, o número previsto pela corporação é de 43.774 policiais, à
razão de 1/350 habitantes. No entanto, há um projeto de lei em tramitação
no Congresso Nacional sobre reformas na categoria que propõe a relação
de 1/250 habitantes, proporção que, se obedecida, faria crescer o efetivo
para 61.144 policiais. A categoria possui hoje 23 mil inativos.
Dentro de sua missão constitucional, a Polícia Militar realiza uma
enorme variedade de tarefas que apresentamos a seguir, a partir das
informações do site institucional. Talvez com o intuito de evidenciar sua
presença em quase todas as circunstâncias da vida fluminense, a Polícia
Militar acaba por nos fazer pensar no excesso de atividades que lhe cabe,
sem dúvida tirando-lhe o foco da missão primordial.
59
2) Realiza patrulhamento motorizado em todos os recantos do estado.
Atende, em contato direto com a população, a milhares de pessoas
que, em especial durante as madrugadas, à beira das estradas e dos
caminhos, solicitam sua ajuda para conduzir ao hospital enfermos,
acidentados e parturientes. Não raro, os próprios policiais realizam
partos de emergência, até dentro das viaturas.
3) Realiza serviço de patrulhamento à porta de escolas públicas e
privadas da rede de ensino de 1° e 2° graus, faculdades e
universidades, como também participa de comemorações cívicas
programadas pelas escolas, em todo o estado.
4) Trabalha no policiamento das orlas marítimas e nas praias das
diversas regiões litorâneas do estado, como na orla da Zona Sul do
município do Rio de Janeiro, nas praias oceânicas de Niterói e
Maricá (e também da baía de Guanabara), na região dos Lagos,
nas praias de Araruama, Saquarema, Cabo Frio e outras, na baía
da Ilha Grande, nas praias do sul do estado, bem como nas do
norte, como em Campos e São João da Barra. O trabalho é
intensificado nos períodos quentes, especialmente no verão, mas é
realizado o ano inteiro.
5) Além do policiamento nos grandes centros comerciais em todas
as cidades do estado, presta serviços nos principais pontos turísticos,
inclusive com atendimento especializado para turistas nacionais e
estrangeiros, por parte do Batalhão de Policiamento em Áreas
Turísticas (BPTur).
6) Atua no policiamento dos terminais rodoviários em várias cidades
do Estado.
7) Realiza a segurança dos grandes eventos esportivos, oficiais e
públicos, em estádios, ginásios e congêneres, dentro dos locais, do
lado de fora, nas adjacências e nos acessos.
8) Está presente nos serviços de policiamento de grandes eventos e
festas populares, tais como: eleições, Carnaval, Natal, Réveillon,
grandes feiras na capital e no estado, em grandes comemorações
públicas, convenções e congressos de interesse público, em nível
60
nacional e internacional. No caso das eleições, os policiais militares
policiam as zonas eleitorais de todos os municípios do estado, além
de fazerem a segurança das urnas e dos locais de apuração até que
as sessões terminem.
9) Controla e orienta o trânsito urbano (em todas as cidades do
estado) e rodoviário, nas vias estaduais e municipais, com vistas à
fluidez do trânsito e à segurança de motoristas e pedestres.
10) Opera na fiscalização e na revista de automóveis, motocicletas,
caminhões, táxis e ônibus, em todo o estado, visando a minimizar
os crimes contra a vida e o patrimônio.
11) Trabalha para a preservação da flora, da fauna e do meio
ambiente, mediante a fiscalização das ações predatórias das pessoas
em matas, rios e lagoas de todo o estado. Atua em praias e feiras
livres, coibindo a comercialização ilegal de animais por intermédio
do Batalhão de Polícia Florestal e do Meio Ambiente (BPFMA),
que apóia também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Fundação Estadual de
Engenharia do Meio Ambiente (Feema), a Fundação
Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) e o Instituto
Estadual de Florestas (IEF).
12) Atua na preservação da ordem por ocasião de greves e
mobilizações populares, a fim de garantir o direito dos grevistas e
daqueles que desejam trabalhar, coibindo os excessos e a violência.
13) Atua no controle de grandes manifestações públicas, passeatas,
comícios e outros eventos da mesma natureza, para a preservação
da ordem e a fluidez do trânsito.
14) Atua, durante as 24 horas, no serviço de segurança externa de
todos os presídios e complexos penitenciários existentes no estado
do Rio de Janeiro.
15) Realiza, quando os meios do sistema penitenciário são
considerados insuficientes, escoltas de presos de alta periculosidade
dos presídios aos locais de julgamento e vice-versa.
61
16) Atua, sobretudo para a custódia de presos recolhidos a leitos
hospitalares, em hospitais das redes estadual e municipal, em todo
o estado.
17) Atua, por solicitação, na revista das dependências de presídios
e delegacias concentradoras de presos, bem como na segurança de
delegacias da Polícia Civil, quando ameaçadas de invasão.
18) Custodia presos beneficiados com prisão especial por terem curso
superior ou por serem advogados.
19) Presta serviços nos fóruns de Justiça das comarcas de todos os
municípios do estado, garantindo a segurança dos magistrados,
promotores, funcionários e do público.
20) Realiza a preservação de locais de crime até a chegada da perícia
e, às vezes, até mesmo depois, e presta serviços também nas
interdições judiciais de imóveis, mesmo da Justiça cível.
21) Presta serviços à instrução criminal por meio dos seus depoimentos
como condutores de presos ou como testemunhas nos inquéritos e
processos penais decorrentes da sua ação policial.
22) Atua em apoio aos oficiais de Justiça nas situações de reintegração
de posse, por decisão judicial em todo o estado.
23) Executa a segurança do governador do estado (e dos palácios
governamentais), do presidente do Tribunal de Justiça, do procurador
geral da Justiça, do presidente da Assembléia Legislativa, bem como
de testemunhas, autoridades e pessoas eventualmente sob ameaça.
24) Atua em apoio às forças federais, com o emprego de grandes
efetivos, na segurança de dignitários nacionais e estrangeiros, como
é o caso das visitas do presidente da República ao Rio de Janeiro.
25) Atua na segurança de representações diplomáticas instaladas
no estado do Rio de Janeiro.
26) Permanece em vigília, em equipes, durante as 24 horas do dia,
os 365 dias do ano, mantendo em funcionamento os diversos centros
de operações da corporação, instalados em todas as unidades da
62
Polícia Militar para apoiar os serviços externos e para atender às
chamadas da população pelo telefone 190.
27) Constitui ponto de referência no policiamento dos logradouros
públicos, em todo o estado, para milhares de solicitações diretas da
população, sejam elas para a ação policial estrita, seja para
informações e orientações.
28) Permanece aquartelada em equipes, durante 24 horas, os 365
dias do ano, para pronto-atendimento a situações que requeiram
forças de choque ou de operações especiais.
29) Atua, para a preservação da ordem pública, em caso de saques,
quebra-quebras, ocupações e outros, em todo o estado.
30) Atua em apoio às autoridades da Defesa Civil e do Corpo de
Bombeiros, por ocasião de enchentes, desmoronamentos, deslizamentos,
interdição de estradas e outros sinistros, em todo o estado.
31) Colabora com a segurança de outras forças, como é o caso da
segurança de policiais civis em delegacias, agentes penitenciários
em presídios e guardas municipais em atuação, até mesmo em áreas
onde se localizam organizações militares das Forças Armadas.
32) Apóia outros órgãos públicos, estaduais e municipais, em
atividades como remoção de mendigos, ação contra camelôs, trato
com crianças e adolescentes abandonados e população de rua.
33) Atua em apoio aos fiscais fazendários e de posturas municipais,
quando solicitados, em todos os municípios do estado.
34) Atua em todas as campanhas de vacinação de crianças e de
animais, bem como, não raro, em campanhas beneficentes.
35) Atua, ainda, no Programa Educacional de Resistência às Drogas
e à Violência (Proerd), de orientação a estudantes, implantado
desde julho de 1992.
36) Presta importantes serviços de segurança em várias secretarias
de estado e prefeituras e para o Poder Legislativo, Poder Judiciário,
Ministério Público e órgãos federais, inclusive militares.
63
O organograma formal e atual da PMERJ assim se estrutura:
1) Comando Geral (Estado-Maior e Assessoria do Comando);
2) Comando de Policiamento da Capital, da Baixada e do Interior;
3) Comando de Unidades Operacionais Especiais;
4) Comando de Policiamento de Trânsito (hoje extinto);
5) Diretorias de Ensino, de Saúde, de Apoio Logístico, de Pessoal
e de Finanças;
6) “Outros”, nos quais se situam unidades subordinadas aos
departamentos descritos, como Centro de Manutenção de Material,
Centro de Criminalística, Centro de Recrutamento e Seleção
de Praças, Delegacia de Polícia Judiciária Militar e Companhia de
Músicos.
64
todos os brasileiros. Referindo-se ao fato de que existe necessidade de
‘coerção’ para contrabalançar os processos de construção de ‘coesão’ social
e de ‘consenso’, com esses autores encerramos este capítulo.
A crítica humanitária aos métodos violentos do trabalho da Polícia
não pode negligenciar os efeitos devastadores – do ponto de vista dos direitos
humanos – da baixa efetividade das organizações do sistema de justiça
criminal no combate à criminalidade. Um deles é o estímulo a resoluções
extralegais de agressões criminosas; outro é a facilitação de cruzadas morais
de forte conteúdo autoritário. De um e de outro resultam, no plano da
psicologia social, o reforço de atitudes de cinismo e descrença em relação à
competência de modelos democráticos de resolução de conflitos (Paixão &
Beato Filho, 1997).
65
Perfil Sociodemográfico,
3
Profissional e Econômico
67
Gráfico 1 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o sexo
96,5% 96,0%
3,5% 4,0%
Masculino Feminino
Os cabos e soldados são mais jovens (têm idade até 35 anos) que os
oficiais, suboficiais e sargentos (Gráfico 2). Neste último grupo, a maioria
dos trabalhadores está na faixa etária intermediária de 36 a 45 anos. No
setor administrativo, está mais concentrado o efetivo que tem entre 36 e 45
anos, correspondendo a 48,5% dos policiais. No grupo operacional, atuam
os policiais mais jovens: 62% deles têm até 35 anos (p=0,000). No setor
administrativo, é na faixa de 36 a 45 anos que se encontra a maior parte
dos militares, correspondendo a 48,5% (p=0,000).
No subconjunto de mulheres, 41,5% se encontram na faixa etária de
31 a 35 anos, 23% têm até 30 anos e 35,5%, mais de 35 anos.
Quando comparamos esses dados com os da Polícia Civil (Minayo
& Souza, 2003), observamos que os policiais militares são mais jovens.
Entre os civis, apenas 4,8% dos que atuam no setor administrativo têm até
35 anos e 42,7% estão na faixa de 46 anos ou mais. No grupo operacional,
novamente observamos que os policiais militares também são mais jovens
que os civis: 33,6% dos últimos têm 46 anos ou mais.
O ingresso na corporação militar é feito por meio de concurso público,
no qual é exigido que o candidato tenha concluído o Ensino Médio (grau
mínimo de escolaridade). Nos dados analisados, observamos que existem
diferenças entre os cargos quanto à escolaridade (p=0,000).
68
Gráfico 2 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a faixa etária
11,0%
até 35 anos
89,2%
72,1%
de 36 a 45 anos
10,5%
17,0%
46 anos ou mais
0,4%
69
No setor administrativo, a proporção de policiais que não completaram
o Ensino Médio atinge 10,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 12%
dos soldados e cabos (p=0,000), mas a maior parte concluiu a escolaridade
exigida pela Polícia. Entre os operacionais, a situação é pior: o percentual
dos que não têm o Ensino Médio completo chega a 28,8% dos oficiais e
suboficiais e a 11,4% dos não-oficiais (p=0,000).
Maior parcela das mulheres, 45,6%, possui o Ensino Médio
completo. Concluíram o Ensino Superior 21,4% e 6,1% possuem pós-
graduação.
É importante destacar que percentuais mais elevados de oficiais,
suboficiais e sargentos, quando comparados aos soldados e cabos, não
possuem a escolaridade mínima exigida de Ensino Médio. Isso indica a
vigência recente de maior grau de instrução, assim como exigências atuais
de investimento na formação da corporação, em todos os níveis. Porém, é
no ciclo dos oficiais, suboficiais e sargentos que estão os percentuais maiores
de policiais com Ensino Superior completo, correspondendo a 14,9% do
total desse grupo versus 4,0% dos não-oficiais. Constatamos, porém, que
mais soldados e cabos (21,6%) versus 12,6% de oficiais, suboficiais e
sargentos estão buscando concluir formação de nível superior. Comparados
com os policiais civis, os militares possuem nível de educação formal bastante
inferior. Entre os civis, 53,2% têm Superior completo (Minayo & Souza,
2003), o dobro do percentual da corporação militar.
Quanto à cor de sua pele, os entrevistados afirmaram, em sua maioria,
que é preta ou parda, como podemos ver no Gráfico 4. No setor
administrativo, os 61,4% que assim se declararam pertencem ao grupo dos
cabos e soldados (p=0,003), e no setor operacional, 62,2% dos que se
consideram pretos ou pardos são oficiais, suboficiais e sargentos (p=0,000).
Os dados sobre cor de pele dos policiais militares contrastam com os dos
policiais civis, que se declararam, em sua maioria (65%), brancos (Minayo
& Souza, 2003). As informações provenientes da corporação civil se
aproximam mais da realidade brasileira e carioca. Segundo o Censo 2000,
a maior parte das pessoas da capital (54,7%) se declarou com cor de pele
branca e, para o Brasil, essa atribuição foi de 53,7% (IBGE, 2000).
70
Gráfico 4 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a cor da pele
39,4%
Oficial / Suboficial /
Sargentos
60,6%
42,2%
Cabos / Soldados
57,8%
71
são 8,9% e 23,8%, respectivamente (p=0,000). Entre as mulheres, 65,9%
são casadas, 27,8% são solteiras e 6,3% são separadas. Entre os policiais
civis, as proporções de pessoas sozinhas são menores que as dos policias
militares. No grupo administrativo, são 23,2% e no operacional, 22,8%
(Minayo & Souza, 2003).
7,8%
Solteiro
24,3%
81,2%
Casado /
Companheiro
71,4%
11,0%
Viúvo / Separado
4,3%
72
Entre os policiais que são pais ou mães, uma grande proporção dos
oficiais, suboficiais e sargentos relata ter dois ou mais filhos e, entre os cabos
e soldados, é mais comum terem até dois filhos, como podemos constatar no
Gráfico 6. Já entre as mulheres, 41,2% possuem um único filho.
Se considerarmos as proporções de casais com filhos na região Sudeste
(44,8%) e no Rio de Janeiro (39,5%), segundo dados do IBGE (2006),
os policiais militares apresentam percentuais mais elevados de pais e mães
(66,5% dos não-oficiais e 83,2% dos oficiais e suboficiais).
No setor administrativo, os que têm apenas um filho são 28,8% dos
cabos e soldados e 26,1% dos oficiais, suboficiais e sargentos. Os que têm
dois filhos são 18,6% e 36,9%, respectivamente. Três ou mais filhos são
relatados por 8,5% dos não-oficiais e por 23,2% dos oficiais, suboficiais e
sargentos (p=0,000).
Para os alocados no setor operacional, as proporções seguem a mesma
tendência dos administrativos. Os que referem apenas um filho são 37,4%
dos cabos e soldados e 17,9% dos oficiais, suboficiais e sargentos; dois
filhos, 23% e 36,9%; e três filhos ou mais, 7,9% e 27,2%, respectivamente
(p=0,000). Entre os policiais civis do Rio de Janeiro, informaram ter apenas
um filho 29,3%; dois filhos, 45,6%; três filhos, 15,8%; e quatro, 6%
(Minayo & Souza, 2003).
16,8%
Nenhum filho
33,5%
20,3%
1 filho
36,2%
36,9%
2 filhos
22,4%
26,0%
3 ou mais filhos
8,0%
73
Indagados sobre suas crenças e atividades religiosas, 23,4% dos cabos
e soldados e 21% dos oficiais, suboficiais e sargentos disseram que não
praticam religião; 23,4% e 26,5% responderam que freqüentemente praticam
uma religião; e 53,2% e 52,5%, respectivamente, praticam às vezes.
Nos estratos administrativo e operacional, a maior parte dos policiais
militares afirma que às vezes pratica alguma religião e, no grupo operacional,
não há uma diferença significativa entre os dois estratos: 53,6% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 52,8% dos cabos e soldados (p=0,001).
A renda mensal líquida derivada do trabalho na Polícia varia de
acordo com o cargo que os servidores ocupam na corporação. A maioria
dos cabos e soldados conta com uma renda de até R$ 1.000. Os oficiais,
suboficiais e sargentos recebem um salário melhor, sendo que quase a metade
deles ganha mais de R$ 1.500 (Gráfico 7).
Os oficiais, suboficiais e sargentos do setor administrativo, em sua maioria
(64,3%), contam com renda mensal líquida de mais de R$ 1.500. No setor
operacional, uma parcela considerável (45%) recebe um salário menor, que
varia de R$ 1.001 a R$ 1.500, e 44% ganham mais de R$ 1.500, com
diferença estatisticamente significativa entre essas proporções (p=0,000).
Para os cabos e soldados que atuam tanto no grupo administrativo
quanto no operacional, a faixa salarial está situada entre os valores menores
que R$ 1.000 (81,4% e 83,4%, respectivamente).
11,4%
Até 1.000 reais
83,1%
38,6%
De 1.001 a 1.500 reais
16,3%
49,9%
Acima de 1.500 reais
0,5%
74
Comparando os policiais militares com os policiais civis, constatamos
que os últimos têm rendimento menor que os oficiais, suboficiais e sargentos:
57,5% dos civis recebem de R$ 1.001 a R$ 1.500 e 23,6% mais de R$
1.500. No setor administrativo, 43% dos civis ganham até R$ 1.000 de
salário (Minayo & Souza, 2003).
Investigamos ainda se o salário recebido por esses policiais estaria
comprometido com algum tipo de desconto relativo a empréstimos ou pensões
alimentícias, por exemplo. Entre os cabos e soldados, 81,6% têm descontos.
Entre oficiais, suboficiais e sargentos, esse percentual é ainda maior: 83,1%.
No setor administrativo, são os oficiais, suboficiais e sargentos (80,9%)
que mais têm descontos em seus rendimentos comparados aos cabos e
soldados (74,6%), com diferenças estatísticas entre eles (p=0,000).
Minayo e Souza (2003) observaram que 58,5% dos policiais civis
tinham descontos de prestações e outros compromissos em seu pagamento
mensal. Do pessoal do setor administrativo, 59,5% se comprometeram com
algum desconto no salário. Por esses dados, constatamos que os policiais
militares são mais endividados que os policiais civis.
65,4%
Uma
56,7%
24,5%
Duas
31,9%
10,1%
Três ou mais
11,4%
75
Os cabos e soldados contam com a ajuda de uma pessoa nas despesas
domésticas (31,9%), em maiores proporções que os oficiais (24,5%), com
diferença estatística entre eles (p=0,000). Entre os policiais civis, encontramos
percentuais menores (53,7%) dos que sustentam seus lares sozinhos, ao passo
que são 36,6% os que têm ajuda de terceiros (Minayo & Souza, 2003).
No setor administrativo, 40,4% de cabos e soldados contam com
uma outra pessoa contribuindo para a renda mensal, percentual que é menor
entre oficiais, suboficiais e sargentos (29,9%), com diferença estatística entre
eles (p=0,000).
Também investigamos a renda familiar dos policiais militares e
constatamos que ela é mais elevada entre os oficiais, suboficiais e sargentos,
como vemos no Gráfico 9. Precisamente 68,4% desses têm renda familiar
acima de R$ 1.500 e, contudo, a maioria dos não-oficiais, apesar de contar
com a ajuda de terceiros no orçamento doméstico, referem uma renda familiar
menor que R$ 1.500 (74,2%). Há diferença estatística entre esses dois
grupos (p=0,000).
5,4%
Até 1.000 reais
39,7%
26,2%
De 1.001 a 1.500 reais
34,5%
68,4%
Acima de 1.500 reais
25,9%
76
segundo grupo, 43,1% declararam que contam com renda familiar menor
que R$ 1.000 (p=0,000). Entre os policiais civis, a renda familiar de
34,3% deles varia de R$ 1.501 a R$ 2.500. No setor administrativo,
37,3% chegam a esse patamar (Minayo & Souza, 2003).
A investigação das despesas mensais foi realizada para o grupo dos
policiais militares como um todo. Percebemos que os itens com os quais
esses profissionais mais gastam (acima de R$ 500) são: prestações e dívidas,
alimentação e moradia. Houve um elevado percentual que afirmou não
efetuar gastos com educação e medicamentos (Gráfico 10). No entanto,
quase 80% dizem gastar até R$ 200 com medicamentos e 71,5% despendem
esse mesmo valor com transporte ou combustíveis. A alimentação é
responsável por uma despesa de R$ 201 a R$ 500 para 61,3% deles. Os
policiais civis do Rio de Janeiro também declararam gastar até R$ 200 com
transportes, combustíveis e medicamentos (Minayo & Souza, 2003).
Nada Até 200 reais De 201 a 500 reais Mais de 500 reais
77
Em resumo, os militares oficiais, suboficiais e sargentos diferem
estatisticamente dos cabos e soldados em todos os itens descritos a seguir.
No grupo dos não-oficiais:
É menor a participação do sexo feminino;
78
encontrou uma versão hegemônica. Em parte pela ausência de uma política
que lhes atribua um papel definido – e a unificação dos quadros, nesses
termos, só contribuiu para acentuar as ambigüidades –, em parte pelo fato
de o lento processo de absorção ser movido por forças, imagens e aspirações
conflitantes e contraditórias (Soares & Musumeci, 2005).
79
Parte II
Condições de Trabalho
dos Policiais Militares
Tratamos aqui de todos os aspectos que dizem respeito ao mundo do
trabalho dos policiais militares. Apresentamos informações sobre aspectos
organizacionais; processo de seleção, capacitação e carreira; condições
materiais, técnicas e ambientais; jornada de trabalho; interação entre os
pares e com os chefes; e, por fim, mas não menos importante, questões sobre
a imagem do policial militar construída na interação com a sociedade.
O conceito central desta reflexão é o de ‘processo de trabalho’,
inspirado em Marx quando escreveu Introdução à Crítica da Economia
Política (1968a) e o quarto capítulo inédito de O Capital (1968b). Quando
produziu sua obra, Marx desenvolveu esse conceito para se referir aos
aspectos técnicos, aos meios, às relações entre iguais e hierárquicas e à
construção ideológica e da subjetividade advinda das interpretações que os
próprios trabalhadores fazem do mundo do trabalho de forma geral, para si
mesmos e em seu cotidiano. Esse conceito é indiscutivelmente potente para
que analisemos a dinâmica interna das relações entre capital e trabalho e a
produção de mais-valia, particularmente no âmbito industrial. No entanto,
por meio dele não conseguimos compreender e interpretar o setor de serviços,
a não ser nos aspectos gerais das relações entre subordinação do trabalhador
e do seu assalariamento, como nos indica Braverman (1975).
Segundo esse autor, quando se olha pelo lado estrutural da construção
da ordem capitalista e se realçam as semelhanças dos vários tipos de processos
de produção, torna-se possível afirmar que o trabalhador do setor de serviços,
mesmo quando apresenta certa diferenciação salarial que lhe permite um
afastamento dos piores aspectos da situação do proletariado, “não possui
qualquer independência econômica ou ocupacional; é empregado pelo capital
e afiliados; não possui acesso algum ao processo de trabalho ou aos meios
de produção fora do emprego e deve renovar seus trabalhos para o capital,
83
incessantemente, a fim de subsistir” (Braverman, 1975: 341). Por esses
motivos, Braverman considera que o setor de serviços está em função do
capital tanto quanto o setor industrial, uma vez que nesta relação predominam
a subordinação à autoridade e a submissão à exploração. Igualmente, os
trabalhadores aí empregados tanto podem conseguir alguns privilégios como
costumam sofrer as desvantagens da condição proletária, sempre avançando
em direção a esta última. Essas observações de Braverman (1975), que
são perfeitas para mostrar a lógica capitalista em todas as atividades das
sociedades em que impera o capitalismo, também não oferecem categorias
intermediárias para a compreensão das especificidades do setor de serviços.
Apenas nos últimos anos, correspondendo ao crescimento rápido do
setor de serviços, vários estudos vêm sendo desenvolvidos para focalizar sua
especificidade. Para tratar do tema e, sobretudo, dos ‘serviços públicos’,
apresentamos uma abordagem que foge aos estudos marxistas iniciais,
dedicados principalmente ao processo de trabalho industrial. Buscamos marcar
o que há de peculiar na produção do serviço de segurança pública, focalizando
a ideologia, a instituição e a prática da corporação ‘Polícia Militar’.
O processo de trabalho em serviços tem algumas características
específicas. Uma delas, segundo Offe (1994), é a dificuldade de
planejamento das ações em relação a seu custo e benefício, uma vez que
esse tipo de atividade diz respeito a respostas imediatas às necessidades da
sociedade e há incerteza sobre quando, em que intensidade e para quanto
os prestadores de tais serviços serão demandados cotidianamente. Outra
peculiaridade é a incerteza em relação ao volume necessário, ao que constitui
o melhor tipo de atendimento e ao momento certo de atuação diante das
necessidades do cliente. Por isso, intrinsecamente, o planejamento de um
serviço – em particular o de segurança pública – conta com dados e
informações menos precisos do que os que um empresário industrial possui
para planejar sua produção material. Esse mesmo autor destaca ainda que,
diferentemente do setor de produção material industrial, no qual os produtos
não rentáveis podem deixar de ser fabricados, muitos serviços – sobretudo
os públicos e de atendimento ao cidadão – não podem parar. Por todas
essas razões, instituições como as de saúde e de segurança pública não
devem e não podem ser avaliadas apenas pelas leis do mercado.
Meirelles (2003, 2006b), revendo várias abordagens teóricas, considera
como características básicas e essenciais do setor de serviços: a simultaneidade,
84
a intangibilidade, a interatividade e a inestocabilidade. “Só é considerada
atividade de serviço a atividade cujo processo de produção é intangível, baseado
em insumos e em ativos intangíveis, e cuja relação de produção e consumo é
simultânea e interativa, resultando num produto também intangível e
inestocável” (Meirelles, 2006b: 351). Segundo a autora,
Qualquer serviço é exclusivamente trabalho em processo ou, melhor
85
ajudam a entender algumas questões sempre postas pelos analistas e pela
opinião pública quando se queixam, sobretudo, do número excessivo de
funcionários públicos, principalmente quanto à manutenção de alta margem
de capacidade ociosa e construção de vínculos entre prestadores e usuários.
O atendimento face a face, direto e pessoal, dificulta a flexibilização da
relação homem/hora (movimento de enxugamento de pessoal próprio
da produção industrial) e operações em larga escala, e facilita a oferta de
privilégios e corrupção.
Do ponto de vista gerencial, no início do século XX, os resultados
da aplicação dos princípios da gerência científica, baseados nas formulações
de Taylor (1963), começaram a ser conhecidos e ampliados de forma
crescente também nas atividades de serviços, depois de serem largamente
aplicados no setor industrial. Da mesma forma que, a respeito desse último,
surgiram estudos de gestão de empresas tratando do tempo de execução
das tarefas, de registros das quantidades de trabalho desempenhado, das
possibilidades de mais rotinização das tarefas e da reorganização física dos
ambientes para diminuição dos tempos ociosos. É o caso das atividades de
serviço no campo da alimentação (fast-food) e de telefonia (telemarketing).
Sabemos que, seja no setor industrial, seja no setor de serviços, o método
taylorista de administração apresenta dois focos: a intensificação da
produtividade e a transferência de controle do processo para as hierarquias
gerenciais. Seus princípios preconizam: divisão radical entre planejamento e
execução, excluindo o exercício da atividade intelectual por parte dos
operadores; treinamento intensivo dos trabalhadores para padronização
dos procedimentos; gestão da produção fundamentada no conhecimento
minucioso das tarefas (Minayo, 2004). No livro em que expõe seu método,
Taylor chega a afirmar que o trabalhador ideal deveria ser “um homem do
tipo bovino, ou seja, ao mesmo tempo estúpido e dono de uma força física
capaz de satisfazer à necessidade exigida pelo trabalho” (Taylor, 1963: 42).
De comum com o método taylorista de gestão da produção, o trabalho
pensante e de planejamento da corporação dos policiais militares fica restrito
a um pequeno grupo, esperando da maioria a execução das atividades
delegadas, havendo, portanto, divisão radical entre quem planeja e quem
executa. No entanto, de acordo com a especificidade do setor serviços, é
impossível planejar tudo, pois a relação dos policiais com a população
é direta, e a subjetividade se manifesta com suas idiossincrasias a cada
86
instante. Veremos nas descrições sobre o processo de trabalho dos policiais
que quase nunca o que foi prescrito é praticado, pois as situações são
extremamente diversificadas. E disso falaremos no decorrer deste livro.
Hoje, em todo o mundo, as empresas mais avançadas – sejam as
industriais ou algumas de serviços – evoluíram do modelo taylorista para o
que se costuma denominar ‘processo de produção flexível’ ou, ainda,
‘toyotismo’ (Araújo, Cartoni & Justo, 2001; Britto, 1996; Antunes, 1999;
Minayo, 2004). O toyotismo pode ser definido como uma forma sistêmica
de modernização de empresas, que representa um desenvolvimento
qualitativamente novo da racionalidade capitalista.
Quando, em seu site institucional, a Polícia Militar fala em
modernização administrativa, esperaríamos que estivesse se referindo a algo
parecido com o segundo modelo. Porém, veremos no decorrer deste livro
que, na prática, para a corporação transformar sua gestão, as dificuldades
são muito maiores do que parecem à primeira vista. O modelo flexível tem
mais êxitos do que o modelo taylorista entre os trabalhadores, exatamente
porque é capaz de propor estratégias efetivas de cooptação da sua
subjetividade, realçando o trabalho cooperativo, colaborativo, criativo e muito
pouco hierarquizado. O modelo flexível exige dos empregados a energia
mental, diminui a hierarquização e concebe a qualidade não como um
conceito externo a ser avaliado, mas como parte da contribuição de cada
um. Valoriza e responsabiliza o funcionário, aproveita seus conhecimentos
e experiências e institui mudanças internas baseadas em seu saber. Inclusive,
cria grupos para solução de problemas, tornando o funcionário polivalente
e multifuncional (Minayo, 2004). A Polícia Militar, por razões até
constitucionais, se organiza de forma militar, rigidamente hierárquica, e é
com essa rigidez que ela opera cotidianamente. Na corporação, há uma
radical separação entre quem manda e quem deve obedecer, em uma cascata
de delimitação de poderes que vai baixando dos escalões mais elevados e
chega até o ciclo das praças.
Com essas e outras questões, entraremos em debate nesta segunda
parte deste livro.
87
Estrutura Organizativa
4
89
da hierarquia, que norteiam toda a vida institucional. Um dos exemplos
muito típicos da forma de hierarquização é a norma segundo a qual deve
haver um refeitório para cada círculo de seus membros.
90
medalhas, elogios, proibições, repreensões e punições acompanha o sistema
de classificações e reatualiza sempre o lugar dos indivíduos na corporação.
Já são conhecidos pelos estudiosos das áreas da antropologia operária
e da saúde do trabalhador os danos causados pela dissociação cognitiva e
prática entre concepção e execução do trabalho. A fragmentação das tarefas
e a separação entre quem pensa e quem manda, próprias do taylorismo e
do fordismo, têm sido alvo de profundas críticas teóricas e práticas nos
últimos 25 anos (Minayo, 2004; Minayo-Gomez & Lacaz, 2005). Essas
críticas evidenciam que nem do ponto de vista da produtividade, nem da
organização do trabalho, tal dissociação é eficiente.
‘Disciplina’ é o segundo componente estruturante de organização da
Polícia Militar. Diz Foucault: “o soldado tornou-se algo que se fabrica: de
uma massa informe, de um corpo inepto fez-se uma máquina de que se
precisa” (Foucault, 1996: 117). Foucault lembra que o disciplinamento do
corpo começou a vigorar na modernidade industrial, habilitando os
indivíduos a determinadas tarefas, prescritas em um registro técnico-político,
do qual os regulamentos militares são exemplos dos mais evidentes.
O disciplinamento se configura como método de controle minucioso dos
corpos, supondo um binômio de docilidade-utilidade em relação ao espaço,
ao tempo e aos movimentos, exercitando os indivíduos para a destreza no
trabalho: ele se pauta em uma correlação de poderes e interesses.
A organização disciplinar exige distribuir as pessoas no espaço, sendo
a melhor forma o quadriculamento, em que cada indivíduo estaria em seu
lugar e em cada lugar um indivíduo: de forma celular e solitária. A disciplina
também eleva seu poder de análise aos mais tênues detalhes da existência,
dentro de uma lógica dupla de poder: seriar os indivíduos, colocá-los em
fila classificando-os, individualizando os corpos não apenas no espaço ou
no tempo, mas em uma rede de relações que também os aliena. Ela se
expande pela arquitetura, pelas funções, pelos escalonamentos, marcando
lugares, definindo valores, garantindo individualidades e obediência.
Mas a ‘disciplina’ tal como exercida na Polícia Militar atinge não só
o corpo como a atividade em si, exigindo dos indivíduos: o controle dos
expedientes, como horários e escalonamentos de trabalho; a elaboração
temporal do ato, de forma tipificada e regulamentada, fazendo o tempo
penetrar o corpo, programando-o para a execução da ação; a articulação
do corpo com os objetos manipulados, recompondo o gesto global
91
institucionalizado em elementos ínfimos; a sujeição à fiscalização e ao controle
dentro de rígida hierarquia, fazendo com que as ordens decorram quase
naturalmente da correlação de forças e de poder; a introjeção da ordem e
da norma de tal modo que o simples olhar já apareça como mecanismo de
coerção e de imposição, desde que por trás dele se desvende a lógica
institucional; a sanção e a penalidade para os recalcitrantes. Como lembra
Foucault (1989: 87), “O exercício da disciplina supõe um dispositivo que
obriga pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver
induzem os efeitos de poder e onde, em troca, os meios de coerção tornam
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplica”.
Sobre esse último ponto, tão importante para entendermos, sobretudo,
a fala das praças, a sanção normatizadora é consoante com a idéia de que,
para que haja disciplina, é necessário haver um mecanismo penal. Atrasos,
erros, negligências e insolência são atitudes reprimidas por micromecanismos
de sanção, visando a explicitar a norma e a reproduzi-la. O castigo ocorre
para reduzir desvios e reafirmar a lei, ao mesmo tempo que visa a explicitar
os dois únicos pólos possíveis de comportamentos que ressaltam a divisão
binária da ordem (normal-anormal) e da repartição coercitiva (quem é,
onde deve ficar, como reconhecer e exercer uma vigilância constante). Dessa
forma, os códigos disciplinares tornam evidente o que é positivo e o que é
negativo, concomitantemente à gratificação daqueles que obtenham bom
desempenho e à penalização dos ineptos. O ‘normal’ se estabelece como
princípio de coerção, conjugando vigilância e regulação.
A contraface da rigidez institucional, lembra Holloway (1997),
compõe-se de três dilemas que se impregnaram e se reproduzem na cultura
corporativa: as transgressões, a corrupção e o suborno. A todas as questões
de rigidez estrutural podemos acrescentar que a truculência no trato com o
povo, sobretudo com as populações de baixa renda, se deve a uma cultura
entranhada e secular, que hoje está fartamente questionada pela sociedade
e traduzida pela mídia.
Os dois princípios básicos que instituem a corporação – hierarquia e
disciplina, frutos do termo ‘militar’ pesadíssimo aposto ao termo ‘polícia’ –
atuam, contraditoriamente, como uma identificação e como uma camisa-
de-força. Essa contradição se faz presente reiteradamente na fala dos
profissionais ao avaliarem a instituição da qual são membros, mas também
nas tentativas sempre parciais e incompletas dos gestores da corporação de,
92
como dizem, “quebrar paradigmas”. Tal contradição se evidencia também
no discurso oficial que aparece no site institucional (PMERJ, 2007), cujo
texto diz para a sociedade como a Polícia exercerá sua missão constitucional,
colocando-se em uma perspectiva contemporânea, com visão de futuro e
reafirmação de valores da cidadania.
Quem lê o texto a seguir capta, ao mesmo tempo, a força tradicional
e estruturante dos regulamentos e os esforços institucionais para mudar,
evidenciando que a corporação está aprisionada a uma multiplicidade de
amarras que vêm desde sua concepção:
93
cidadã’, noção muito em voga no jargão empresarial contemporâneo,
é assumida como princípio gestionário da corporação, talvez em uma
tentativa de superar sua fama de truculenta. A visão de cidadania permeia
a proposta de respeito e proteção à sociedade, sem discriminações entre
povo e poder. Essa busca, como vimos nos rápidos traços históricos esboçados
no início deste livro, tem sido uma meta inglória da corporação desde o
tempo do Império (Holloway, 1997).
Também valores humanistas e de práticas chamadas de ‘qualidade
total’ são reafirmados no discurso institucional:
94
Nos princípios da qualidade total, esses elementos são veiculados por alguns
dispositivos mediadores de transformações objetivas e subjetivas: polivalência,
participação e qualidade. O primeiro vai contra a idéia dos círculos
hierárquicos. O segundo diz respeito à responsabilização (accountability)
do trabalhador individual e coletivo, o que vai contra as ordens de cima
para baixo sem discussão. E o terceiro se refere ao aprimoramento dos
processos em seu sentido individual e coletivo, o que só pode ser feito
recorrendo-se à criatividade, à responsabilidade e ao interesse dos
participantes, virtudes desestimuladas pelo código da obediência cega.
Mas é importante assinalar que não são apenas os elementos estruturais
que marcam o modo de agir das polícias. Alguns autores consideram que
existe uma cultura policial que ultrapassa fronteiras nacionais e cujas
características são o conservadorismo, a suspeita e o isolamento das
comunidades e o corporativismo (Bretas, 1997b; Reiner, 1992). Esse conjunto
de elementos tende a produzir nos policiais uma visão negativa do mundo.
Estudos de Guimarães, Torres e Faria (2005) sobre a adesão desses
profissionais aos valores democráticos destacam que a violência cometida por
eles não é um fato isolado. Origina-se de diversos fatores contextualizados
socialmente: o abuso de autoridade e da força tem raízes nas ditaduras militares
e, acrescentamos com Holloway (1997), vem desde a origem da instituição.
Guimarães, Torres e Faria (2005) mostram que a própria formação
dos policiais passa mensagens ambíguas, ora enaltecendo os direitos
humanos, ora estabelecendo estratégias para torná-los ‘homens’ duros e
confrontantes, influenciando-os, freqüentemente, a aderirem a ações
extrajudiciais. Comentam ainda que o treinamento militar aplicado aos jovens
nas academias vem sendo mais moldado às exigências democráticas. No
entanto, ao mesmo tempo, a instituição resiste em perder seus vínculos com
o militarismo. Albuquerque e Machado (2001), observando a jornada de
instrução de aspirantes a policiais cursando a Academia do Estado da
Bahia, também assinalam a ênfase no militarismo muito mais que nos direitos
humanos. Um rito de passagem submete os recrutas a duras provas,
“sintetizando o percurso do sujeito civil para sua nova condição identitária,
a de oficial da Polícia Militar” (Albuquerque & Machado, 2001: 215).
Esse ritual – no qual os recrutas realizam uma vivência de imersão na
Mata Atlântica durante seis dias – significa “um confronto de currículos: o
novo, o ‘democrático’ os prepararia para uma situação abstrata e para servir
95
numa coletividade imaginária; o currículo velho, em comparação, os
prepararia para a eficácia necessária à manutenção da ordem pública”
(Albuquerque & Machado, 2001: 228). Perguntam-se os autores se o
rigoroso treinamento na selva é condizente com as necessidades dos recrutas
que atuarão nas cidades, dirimindo conflitos sociais, humanos e institucionais
e mantendo a ordem pública. Este é apenas um exemplo das incoerências
que a sociedade precisa conhecer para ajudar a sua polícia a ser, ao mesmo
tempo, depositária da ordem e da paz.
A seguir, detalhamos uma série de normas e prescrições que constituem
o campo administrativo e disciplinar interno da corporação, ressaltando o
plano das expectativas do Estado sobre essa categoria de servidor público e
de seus direitos e deveres no âmbito da organização social que os constitui.
O interesse de apresentar aqui essa descrição formal se fundamenta
no princípio de que todo tipo de produção de bens e serviços exige
concentração, autodisciplina, familiarização com diferentes instrumentos
de produção e conhecimento das potencialidades dos operadores.
A disciplinarização de qualquer força de trabalho ou de qualquer
corporação envolve uma mistura de repressão, familiarização, cooptação e
cooperação, elementos que não somente têm de ser organizados no local de
trabalho como devem fazer parte do consenso na sociedade sobre o produto
esperado. A socialização da Polícia Militar, no caso, exige o direcionamento
das capacidades físicas e mentais de seus profissionais. A educação, o
treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais (ética
do trabalho, lealdade aos companheiros, orgulho da corporação e do serviço
prestado) e propensões psicológicas (busca da identidade por meio do
trabalho, iniciativa individual ou solidariedade social) desempenham um
papel importante na constituição da categoria: estão também claramente
presentes na formação da ideologia corporativa. Mas, para que essa
socialização tenha sucesso, ela precisa, antes de tudo, ser padronizada e
legitimada pelos vários setores do aparelho de Estado e afirmada na
experiência e na rotina cotidiana dos que fazem o trabalho.
Os métodos de trabalho são inseparáveis de um modo específico de
viver, de pensar e de sentir a vida. Questões de sexualidade, de família,
de coerção moral, de consumismo e de ação social estão vinculadas ao
esforço de forjar um tipo particular de trabalhador, adequado ao tipo de
serviço que a sociedade espera dele.
96
No mesmo sentido, a designação da jornada de trabalho e sua
remuneração, além de preverem a produtividade, devem proporcionar ao
servidor renda suficiente e tempo de lazer adequado a uma vida saudável.
Em contrapartida, socialmente é esperado que os membros da corporação
tenham certo tipo de conduta moral, de vida familiar e de capacidade de
consumo, visando a uma coerência entre o cargo e a vida privada e social.
Daí todo o empenho dos legisladores em formular uma proposta e estabelecer
prescrições apropriadas para a atuação da atividade policial, como
descrevemos a seguir. No decorrer da apresentação deste estudo, iremos
enfatizando o que é prescrito e as contradições entre o estabelecido e a
prática. É claro que as formas de atuação, independentemente do que é
estabelecido em lei, das condições materiais e técnicas de trabalho, guardam
uma relação histórica com a cultura corporativa.
97
Seleção e Recrutamento,
5
Formação e Carreira
Processo de Seleção
A seleção de pessoas para atuar na Polícia Militar ocorre por concurso
público, divulgado por meios oficiais. O concurso para soldado exige que o
candidato: seja brasileiro; com idade entre 18 e 30 anos; não tenha sido
licenciado da Polícia Militar de nenhuma unidade da federação por motivos
disciplinares; apresente altura mínima de 1,68 (homens) e 1,60 (mulheres)
e peso proporcional à altura; tenha robustez física e aptidão psicológica,
sanidade física e mental compatíveis com a função; possua grau de
escolaridade de Ensino Médio; não apresente punição por indisciplina nas
Forças Armadas; e seja aprovado em todos os exames do processo seletivo.
Tais exames são eliminatórios e analisam aptidões intelectuais,
antropométricas, psicológicas, físicas, de saúde, sociais e documentais.
Já o concurso para a Academia de Polícia Militar D. João VI constitui
um rito de entrada em um curso superior, seleciona oficiais e compõe-se de
uma parte acadêmica executada atualmente pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) e de uma parte específica de aptidão física, psicológica
e de conduta, realizada pela própria corporação, por intermédio do Centro
de Recrutamento e Seleção de Praças. A etapa universitária inclui exame de
qualificação, exame discursivo e vestibular. A etapa específica consta de exame
antropométrico, de saúde, físico, psicológico, de investigação de conduta e
documental, sendo cada uma das avaliações de caráter eliminatório.
O candidato eliminado nos exames específicos não pode prestar o vestibular.
No Manual do Candidato, estão descritos detalhadamente os requerimentos
exigidos, seja do ponto de vista intelectual, seja do ponto de vista de preparação
física e psicológica para o cargo (PMERJ, 2007).
Em relação ao posto ou ao cargo na corporação, os policiais aqui
estudados foram divididos em dois grupos. O primeiro é o de oficiais e
suboficiais, cuja classificação inclui: coronel, tenente-coronel, major, capitão,
primeiro e segundo-tenente, subtenente e primeiro, segundo e terceiro-
99
sargento. O segundo grupo é o dos não-oficiais, constituído por cabos e
soldados. De acordo com o Gráfico 11, observamos que a proporção de
não-oficiais é muito maior que a dos oficiais e, entre estes últimos, os
suboficiais estão em maior número.
Capacitação e Formação
Formação profissional, segundo Cattani (1997), diz respeito a todos
os processos educativos que possibilitam ao profissional adquirir ou
desenvolver conhecimentos teóricos, técnicos e práticos relacionados à
produção de bens ou serviços. Essa formação, geralmente, é definida pela
empresa ou instituição, considerando os conhecimentos teórico-práticos
100
importantes para sua política de organização e gestão do trabalho. Para o
trabalhador, a formação específica para a tarefa que vai desempenhar se
associa à idéia de autonomia, controle da própria atividade e autovalorização.
A capacitação oferecida também revela o perfil do profissional ideal e
o tipo de habilidades teóricas, tecnológicas e pessoais que se espera de um
funcionário. Seu processo deve contemplar os diversos níveis de complexidade
da organização produtiva da instituição, com as tecnologias envolvidas e com
as lógicas organizacionais. Além do que, pragmaticamente, espera-se que a
formação funcione como suporte para o profissional exercer seu trabalho.
*p=0,000 **p=0,001
101
Quando comparamos a formação inicial oferecida para oficiais,
suboficiais e sargentos e para os cabos e soldados, observamos que os
primeiros estão em desvantagem em relação aos últimos quanto ao acesso a
cursos de prática de tiro, história da Polícia e comunicações. Nos outros
itens, os conteúdos da formação são mais favoráveis aos oficiais, suboficiais
e sargentos. Podemos comprovar esses dados no Gráfico 12.
Se analisarmos os temas estudados pelos policiais de acordo com o
setor em que atuam, percebemos que os cabos e soldados estão em vantagem
sobre os oficiais, suboficiais e sargentos somente em relação à prática de
tiro e defesa pessoal, tanto para o extrato administrativo quanto para o
operacional. Segundo os dados que temos, há temas que são pouco estudados
pelos dois grupos, como instrução a cavalo, técnicas de investigação e perícia
e noções de informática.
102
não só como inadequados, mas também como insuficientes. Igualmente,
71,9% dos oficiais e suboficiais e 91,6% dos cabos e soldados assinalam
também que poucas vezes ou nunca lhes foram ministrados outros cursos
de formação após sua entrada na Polícia. Na corporação civil, essa
constatação também é elevada: 71,2% dos policiais afirmaram que poucas
vezes ou nunca a instituição lhes ofereceu outros cursos durante sua carreira
(Minayo & Souza, 2003).
Ao comparar os achados anteriores com os observados no estudo de
Minayo e Souza (2003) com policiais civis, encontramos que os oficiais
militares se assemelham à polícia investigativa quanto à avaliação que fazem
sobre a inadequação da sua formação, tanto teórica (45,7% dos militares
versus 44,8% dos civis) como prática (58,7% versus 59,1%). Entretanto, os
policiais civis são mais críticos que os oficiais militares, considerando, em sua
maioria, que a formação que recebem é insuficiente do ponto de vista teórico
(53,5% contra 41,3%) e prático (74,5% contra 69,3%). Cabe ressaltar que
os cabos e soldados, justamente aqueles que mais estão no front, avaliam de
forma extremamente crítica sua formação prática (71,8% e 83,6% deles a
consideram inadequada e insuficiente, respectivamente), apresentando
diferenças estatisticamente significativas em relação aos oficiais (p=0,000).
É importante destacar a necessidade de aprimoramento da formação
dos policiais que atuam no setor operacional. Eles estão diretamente lidando
com a segurança pública nas ruas do Rio de Janeiro e precisam de instrução
sobre negociação de conflitos, relacionamento com a população e práticas
de trânsito, temas pouco estudados. Ressaltamos, ainda, que 34,5% dos
cabos e soldados e 22,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos afirmaram
nada terem estudado sobre o tema da segurança pública em sua formação
inicial ou posterior.
Se compararmos os militares com os civis, observamos que os primeiros
estão em desvantagem em relação aos civis somente quanto ao acesso a cursos
de informática e de técnicas de investigação e perícia. Nos outros itens, as
diferenças são favoráveis aos policiais militares (Minayo, 2006).
Não apenas perguntamos as opiniões dos nossos entrevistados sobre
sua preparação profissional como também efetuamos uma análise dos
currículos e ementas dos Cursos de Formação de Soldados (CFSD) e de
Oficiais e Suboficiais. A grade curricular para formação dos soldados
atualmente vigente e que foi produzida em 2002 prevê a carga horária de
103
864 horas-aula, dividida em dois eixos de atividades (disciplinas curriculares
e complementação de ensino). As disciplinas curriculares são divididas em
quatro linhas: fundamentação geral, conteúdos instr umentais,
complementares e operacionais, totalizando 356 horas-aula. Na
complementação de ensino, tem destaque (pela maior carga horária) o estágio
prático operacional, com 288 horas-aula e os serviços internos, com 120
horas-aula. A partir da análise da ementa sobre fundamentação geral, chama
a atenção o tempo reduzido (12 horas-aula) dedicado às disciplinas de
direitos humanos e conduta policial ética, e a ausência do debate conceitual
e prático sobre segurança pública.
Na complementação de ensino, porém, são dispensadas 32 horas-
aula para o treinamento da formatura e 120 horas-aula para os serviços
internos, sem que haja, entretanto, qualquer ementa ou diretriz que oriente
a ocupação dessas horas-aula, o que dificulta, sobremodo, a análise a respeito
das atividades realizadas no âmbito dos serviços internos.
Observamos, ainda, a ausência de disciplinas de cunho humanístico
(sociologia, criminologia e filosofia), que possibilitem ao policial militar a
compreensão do mundo contemporâneo, seus problemas e suas
transformações. É possível observar, também, uma carência no currículo
de fundamentação sobre a legislação brasileira, que é vista somente na
disciplina instrução policial básica individual (IPBI) e, mesmo assim, apenas
nas aulas sobre legislação penal e de trânsito. Disciplinas como direito
constitucional, civil e administrativo não comparecem no currículo.
Das disciplinas profissionalizantes, são dedicadas 32 horas-aula para
defesa pessoal, 48 horas-aula para tiro policial e 22 horas-aula para técnicas
de narração e confecção de documentos. Grande parte do aprendizado
profissional está sendo ministrada no estágio prático operacional, que conta
com 288 horas-aula. Para essa disciplina também não há qualquer
informação sobre conteúdo, ementa ou plano de realização.
Toda a bibliografia utilizada pelas diferentes disciplinas ofertadas
aos soldados da Polícia Militar está baseada em manuais, regulamentos e
regimentos da própria corporação. Não encontramos quaisquer referências
a trabalhos científicos, livros ou outras publicações que complementassem a
formação dos soldados.
Ao se analisar uma nova grade curricular do Curso de Formação de
Soldados produzida em 2005, à luz da proposta de reforma curricular
104
elaborada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), o primeiro aspecto
diferencial que se observa entre a antiga e a nova é em relação à carga
horária: se antes eram exigidas 864 horas-aula, agora houve um aumento
para 1.135 horas-aula, perfazendo um curso de oito meses de duração.
Em relação às novas disciplinas disponíveis, é possível perceber a
inclusão de informática (20 horas-aula), prática policial cidadã (20 horas-
aula) e fundamentos da abordagem (15 horas-aula). A IPBI atualmente
se encontra desmembrada em policiamento ostensivo (18 horas-aula), noções
de direito penal e práticas operacionais (25 horas-aula), legislação aplicada
à PMERJ (12 horas-aula), legislação de trânsito (12 horas-aula) e instrução
tática individual (40 horas-aula), somando 107 horas-aula. Analisando-se
essa readequação de currículo, é possível perceber que, em relação ao
conteúdo, poucas modificações foram realizadas, sendo o aumento da carga
horária a mudança mais relevante. Entre as disciplinas que foram
beneficiadas pelo aumento, destacam-se: psicologia, de 8 horas-aula para
20 horas-aula; primeiros socorros, de 17 para 23 horas-aula; educação
física, de 48 para 106 horas-aula; armamento, de 19 para 50 horas-aula;
tiro policial, de 48 para 68 horas-aula.
Sobre os currículos, o antigo e o novo apresentam poucas diferenças
entre si. Assinalamos alguns pontos que, a nosso ver, deveriam merecer
considerações: excessiva carga horária direcionada para a atividade de ordem
unida e de serviços internos; ausência de discussão sobre conceitos e questões
de segurança pública como referencial teórico importante e estruturante da
profissão; ausência de disciplinas de cunho humanístico e de legislação
brasileira. Observamos, também, que seria muito importante para a formação
dos soldados a incorporação de novos conteúdos provenientes de estudos e
pesquisa e de novas bibliografias e referências.
Ao contrário do Curso de Formação de Soldados, que tem a duração
de oito meses, o Curso de Formação de Oficiais equivale a uma preparação de
Ensino Superior e tem a duração de três anos, com carga horária total
de 3.199 horas-aula. Em cada etapa, as disciplinas são divididas entre
aprofundamento acadêmico e aprofundamento da prática profissional.
Assim, no primeiro ano, 330 horas-aula são destinadas a fundamentos,
valorizando, sobretudo, disciplinas da área do direito.
No segundo ano, das 550 horas-aula da parte acadêmica, 230 horas-
aula são destinadas a disciplinas jurídicas. Igualmente, no terceiro ano,
105
mais 320 horas-aula destinam-se a fundamentos e 190 horas-aula desse
conjunto são para a formação em disciplinas jurídicas.
Entre as disciplinas acadêmicas ministradas aos oficiais, estão
sociologia geral, psicologia e antropologia, cada uma com 30 horas-aula.
Por meio delas são discutidos conteúdos relevantes que dizem respeito à
relação entre a Polícia Militar e a sociedade, como é o caso da ética, que
soma 60 horas-aula, e direitos humanos e direito da criança e do adolescente,
com 50 horas-aula.
Poderíamos concluir dizendo que a distribuição da carga horária voltada
para a formação acadêmica dos oficiais evidencia uma tendência legalista, em
que a forte presença de disciplinas da área do direito (civil, constitucional,
administrativo, penal, penal militar, processual penal, processual penal militar)
traduz uma valorização deste campo de conhecimento, em detrimento de
assuntos voltados para a questão de segurança pública.
O módulo chamado de Ensino Profissional soma 1.999 horas-aula,
divididas em 713 horas-aula para o primeiro ano, 597 horas-aula para o
segundo ano e 689 horas-aula para o terceiro ano. Neste módulo, chamou-
nos a atenção a oferta da disciplina segurança pública, com 144 horas-
aula, sendo que na ementa em nenhum momento há uma discussão desse
conceito estruturante da atividade da Polícia. Também não consta da
bibliografia e das ementas em geral uma abordagem científica sobre
segurança, seus pressupostos e pesquisas realizadas na área. O plano de
curso está focalizado na legislação brasileira que trata do assunto e nas
funções de prevenção do crime próprias à categoria, assim como em
procedimentos policiais em situações diversas. Disso concluímos que o tema
tem sido ensinado de forma legalista, empírica e reificada.
Uma das disciplinas de destaque é a de conhecimentos gerais sobre o
estado do Rio de Janeiro, permitindo ao oficialato ter acesso à história do
estado e a uma abordagem sobre sua estrutura física, geográfica, econômica e
social. Todavia, a ementa é bastante extensa para uma carga horária de apenas
20 horas-aula. Do mesmo modo, parece reduzida a carga horária da disciplina
evolução histórica da PMERJ (20 horas-aula), quando se pressupõe que a
corporação pretenderia levar ao oficial conhecimentos acerca da constituição
e da instituição policial no Brasil desde o Império até os dias atuais.
A matéria referente à legislação básica da PMERJ é apresentada no
primeiro e no segundo anos, totalizando 120 horas-aula. Nela são
106
encontrados os fundamentos da hierarquia e da disciplina militar, bem como
informações sobre rituais, símbolos, cerimônias, regulamentos e padrões
estéticos adotados pela instituição. Essa extensa carga horária reflete a
valorização da doutrina militar dentro das atividades de formação, em
detrimento das questões de ordem e segurança pública em seu sentido mais
complexo. Na disciplina de criminologia, são abordadas diferentes teorias
sobre o fenômeno da criminalidade. Como proposta metodológica, o plano
apresenta discussões em sala de aula a partir de ocorrências divulgadas
pela imprensa. No entanto, os casos registrados nas notificações policiais
não são utilizados como fonte de consulta.
A disciplina sobre ética na sociedade aborda este conceito do ponto
de vista filosófico e apresenta como unidades a ética do brasileiro e a ética
do carioca, sem incluir, contudo, qualquer bibliografia ou referencial teórico
específico para definir esses temas.
O objetivo da disciplina denominada ‘didática’ é qualificar o oficial
para, posteriormente, exercer a função de instrutor, por força do regulamento
interno. A ementa contempla as técnicas de ensino, mas não apresenta ao
oficial meios de dialogar com seu público, em especial com os soldados, os
cabos e os sargentos. Isto é, não lhe dá elementos para desenvolver o que
seria a relação responsável pelo ensino-aprendizagem. Ressaltamos que em
nenhum momento da organização da grade curricular da formação a relação
entre oficiais e praças é um objeto claro de discussão, exceto nos assuntos
relacionados à hierarquia e às punições disciplinares.
A disciplina ‘comunicação social’ chama a atenção pelo objetivo que
apresenta de destacar e analisar a imagem da Polícia Militar nos meios de
comunicação e perante a opinião pública, reconhecendo a importância dessa
interação para a imagem da corporação. Porém, a ementa não evidencia
estratégias de treinamento dos oficiais para dialogar com a mídia e assim
produzir informações de interesse público.
Para a disciplina de prática operacional são reservadas apenas 60
horas-aula. Sua proposta metodológica tem como objetivo simular situações
para o treinamento de tiro tático, patrulhamento, operações em favelas,
abordagem de pessoas, veículos e outras. É possível afirmar que a carga
horária prevista é reduzida diante das funções de comando de operações
que esses profissionais terão de assumir depois de formados.
107
Por fim, a disciplina ‘ordem unida’ perfaz 120 horas-aula, distribuídas
nos três anos. Porém, assim como no currículo do Curso de Formação de
Soldados, não há descrito um plano de atividades a ser executado. Segundo
um oficial, a ‘ordem unida’ ou ‘coreografia do militar’ objetiva, entre outras
coisas, desenvolver a idéia de coletivo.
Finalmente, além das considerações específicas, sintetizamos algumas
questões que julgamos críticas quanto ao Curso de Formação de Oficiais:
ressaltamos a ausência de estágio prático supervisionado e realizado dentro
dos batalhões, cuja existência possibilitaria ao oficial a vivência de situações
reais; consideramos excessivo o tempo direcionado para atividade de ordem
unida, uma vez que não há um conteúdo formal para ela; ressaltamos a
importância do aprofundamento do conceito e das questões de segurança
pública no seu sentido mais complexo; cremos ser importante incorporar
nos conteúdos bibliográficos e referenciais informações trazidas por pesquisas
nacionais e locais, que atualmente vêm sendo intensificadas, sobre a categoria
e sobre a segurança pública.
Além dos cursos formais, existe ainda o de Aprimoramento da Prática
Policial Cidadã, fruto de uma parceria entre a PMERJ e a ONG Viva
Rio, estabelecida desde 2002, com o intuito de capacitar os policiais para
lidarem com a população de forma a respeitar os seus direitos.
Esse curso – que poderíamos qualificar na lógica da educação
permanente – apresenta temas transversais que interessam ao serviço
prestado ao cliente-cidadão no policiamento ostensivo, dando ênfase ao
uso adequado da força. Seu currículo é flexível; por visar às necessidades
e prioridades instrucionais de cada unidade, não possui uma ordem
disciplinar obrigatória.
Suas principais diretrizes são a humanização e a qualidade do serviço
policial militar. Visa ao aumento da eficácia do serviço de segurança, com
prioridade para a prevenção do crime e para o papel comunitário da atividade
policial segundo preceitos éticos. A abordagem pedagógica aplica
especialmente estudos de casos escolhidos a partir da própria prática
cotidiana dos policiais, valorizando sua experiência.
O currículo desse curso foi elaborado com base nas estatísticas de
ocorrências policiais e é facilitado por inúmeras cartilhas e vídeos. Nele
são enfatizadas habilidades como discernimento de prioridades e análise
108
de riscos em situações complexas, resolução de conflitos e relações com a
comunidade.
O material didático é constituído de vinte cartilhas e 14 vídeos que
servem de guia para as aulas orientadas por sargentos multiplicadores,
especialmente capacitados para esta função, e que são responsáveis pela
transmissão do conhecimento para seus pares, cabos e soldados de suas
unidades (Viva Rio, 2005).
109
que fizeram o curso de formação de praças e 62,7% e 53,8%,
respectivamente, vêm participando de palestras para complementação e
atualização de sua formação. No entanto, há diferenças muito significativas
nos depoimentos dos dois grupos no que se refere ao treinamento prático:
51,6% dos oficiais estão satisfeitos com a formação e com as oportunidades
de atualização permanente, enquanto apenas 36,3% dos cabos e soldados
estão contentes e a maioria se queixa da insuficiência e da inadequação do
treinamento prático. Em relação ao acesso a cursos de especialização e
aperfeiçoamento que sucedem aos planos de educação formal, os oficiais
mostram-se em ampla vantagem quando comparados aos cabos e soldados
(51% versus 15,8%), indicando haver diferenças gritantes de oportunidades
entre os cargos superiores e os subalternos no que concerne à formação
(p=0,000).
No grupo administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos, em sua
maioria, afirmam ter participado do curso de formação de praças (74,9%),
de palestras (73,1%), da formação de sargento (69,5%) e de cursos de
especialização e aperfeiçoamento (67,9%). Entre os cabos e soldados, o
tipo de treinamento mais comum foi o curso de formação de praças (77,1%),
palestras (49%) e treinamento prático (32,7%). Ressaltamos que há
diferenças estatisticamente significativas a favor dos oficiais em todas as
oportunidades de formação, exceto para o curso de formação de praças,
que é obrigatório para os soldados (p=0,000).
No setor operacional, constatamos que 84,9% dos oficiais, suboficiais
e sargentos já estiveram envolvidos em cursos de formação de praças, 76%
em formação de sargento e 58,5% participaram de palestras. Quanto aos
operacionais, diferentemente dos que atuam no estrato administrativo, 2,5%
dos oficiais realizaram treinamento prático. A maioria (73,3%) dos não-
oficiais fez apenas o curso de formação de praças e 53,4%, além desse
treinamento inicial, tiveram oportunidade apenas de assistir a palestras
oferecidas pela corporação. Novamente encontramos diferenças estatísticas
quanto à formação recebida entre os diferentes cargos, também no interior
do grupo operacional, a favor dos oficiais (p=0,000).
Em suma, os oficiais, suboficiais e sargentos de ambos os setores,
administrativo e operacional, são os que, em maiores proporções, têm acesso
às modalidades oferecidas de educação permanente. Já em relação aos
setores, o grupo que atua no campo operacional tem vantagens sobre o
110
administrativo: de todos os dez itens pesquisados referentes à questão da
formação continuada, em seis deles os operacionais apresentam proporções
mais elevadas, exceto em relação à freqüência a cursos de especialização e
aperfeiçoamento e a cursos técnicos de curta duração.
Quando comparamos os policiais militares com os policiais civis em
relação ao acesso à educação permanente, observamos que existem diferenças
típicas da dinâmica das corporações. Dos policiais civis, 52,3% fizeram
curso de especialização, 47,4% freqüentaram curso técnico de curta duração,
45,7% participaram de palestras e 45,7% tiveram treinamento prático.
Outros 30,8% receberam, juntamente, palestras e treinamento prático
(Minayo & Souza, 2003). Ou seja, em ambas as corporações, a formação
permanente não é igualmente distribuída, e muitos ficam excluídos das
possibilidades de atualização. Pensando em média, isso significa mais da
metade em ambas as corporações. Não entramos nas indagações sobre o
motivo pelo qual isso ocorre. No entanto, consideramos esse fato relevante
para o planejamento e a gestão dos processos de formação permanente que
repercutem no trabalho policial.
Além do acesso diferenciado à capacitação continuada, existe uma
discrepância – presente em todos os setores da Polícia Militar, porém maior
entre os soldados e cabos – quanto à adequação do treinamento recebido
ao trabalho que exercem. Um percentual de 40,8% dos oficiais, suboficiais
e sargentos e 45,4% dos não-oficiais, segundo eles próprios, não exerce a
atividade para a qual foram treinados (p=0,000). Igualmente, entre os
policiais civis essa proporção é elevada: 34,8% (Minayo, Souza &
Constantino, 2007).
Quando analisadas por estratos, essas inadequações se revelam ainda
mais marcantes. Precisamente 62,7% dos cabos e soldados e 44% dos
oficiais do setor administrativo revelam não realizar a atividade para a qual
foram treinados (p=0,000). Ora, tal discrepância significa que as
importantes propostas de “modernização da gestão” assinaladas no
documento oficial que aparece no site da Polícia Militar podem estar
morrendo em seu próprio nascedouro. Como a administração está sendo
levada a cabo por pessoas e meios não apropriados e fundamentados no
senso comum, essa realidade se soma às dificuldades que o excesso de
hierarquização e de disciplina militar representam para as formas
contemporâneas de gestão flexível. No grupo operacional, também são
111
elevadas as proporções dos policiais que estão cumprindo tarefas sem serem
preparados para elas – 42,5% dos não-oficiais e 39,4% dos oficiais,
suboficiais e sargentos (p=0,000), o que exige, também, uma consideração
prioritária por parte dos gestores.
Os cabos e soldados têm uma visão mais negativa do que os oficiais,
suboficiais e sargentos quanto à possibilidade de ascensão profissional:
53,6% dos primeiros, contra 36,1% dos segundos, não vêem chance de
progredir na carreira.
No Gráfico 14, podemos constatar que os que acreditam na
possibilidade de crescimento profissional baseiam suas expectativas no
investimento em cursos e treinamentos e consideram importante aproveitar as
oportunidades. Boa parcela de servidores de ambos os grupos, principalmente
de oficiais, crê na influência de amizades como forma de conseguir promoção.
*p=0,000
Gráfico 15 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo curso fora da Polícia
por conta própria
27,6%
Curso universitário
28,1%
17,0%
Outro*
15,0%
*p=0,000
113
Observamos que tanto oficiais, suboficiais e sargentos (45,6%) quanto
não-oficiais (35,1%) que atuam no setor administrativo envidam esforços
para terem acesso a algum curso de curta duração (p=0,000). No grupo
operacional, 27,5% dos cabos e soldados investem em curso universitário e
24% dos oficiais, em cursos de curta duração. Podemos concluir que,
possivelmente, a excessiva e cansativa jornada e a estressante demanda
operacional os impedem de cuidar de sua formação permanente ou dificultam
seu movimento nesse sentido. No entanto, este assunto deveria se constituir
em uma meta prioritária da corporação, necessária para que cumpra
adequadamente sua tarefa na sociedade contemporânea.
Para o ingresso na corporação militar, é exigido o Ensino Médio
completo. Para entrar na Polícia Civil, desde a promulgação da lei estadual
n. 4.020, de 6 de dezembro de 2002, é necessário ter o Ensino Superior
completo. Essa é uma possível explicação para o fato de haver mais policiais
civis que militares com curso universitário: 66,7% dos primeiros são formados
ou fazem curso superior e 10,1% deles cursam programas de pós-graduação.
Dos policiais civis que atuam nas delegacias, 73% afirmam ter concluído
ou estar terminando a faculdade, a maioria na área de direito (Minayo &
Souza, 2003).
70,4%
Curso superior
88,8%
65,8%
Qualificação / especialização
71,0%
62,4%
Curso ténico de curta duração
59,6%
54,8%
Curso de mestrado / doutorado
66,9%
*p=0,000
114
No entanto, as expectativas de aprimoramento e capacitação
profissional estão presentes nas falas dos policiais militares de forma
veemente, revelando uma enorme aspiração e vontade de investir na carreira
e no crescimento pessoal e institucional. No Gráfico 16, pode-se observar
claramente a existência de uma demanda reprimida, sendo a realização de
curso superior, especialização e até mesmo de pós-graduação o anseio
de um projeto para a grande maioria dos policiais militares, sobretudo para
os cabos e soldados (p=0,000).
Os policiais do setor administrativo são os que mais expressam seu
desejo de aprimorar a formação. Os que querem fazer alguma graduação
são 71,2% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 83,1% dos não-oficiais
(p=0,000). Os que têm essa aspiração no setor operacional são 70% e
89,8%, respectivamente (p=0,000). A motivação de ampliar seus estudos
por parte dos policiais deveria ser capitalizada pelos gestores públicos,
oferecendo à sociedade uma polícia mais bem preparada.
Analisando o conjunto das informações aqui apresentadas,
ressaltamos a necessidade de mais investimento na preparação dos policiais
em vários aspectos já assinalados. Em um mundo que incorpora cada vez
mais ciência e tecnologia nos dispositivos de ação e de gestão, é muito
positivo elevar o nível de escolaridade dos membros da corporação. Valorizar
seu capital humano deveria ser uma prioridade e uma meta da Polícia Militar.
Entendemos que, dando curso às iniciativas individuais, cabe à PMERJ
enfatizar o projeto institucional de desenvolvimento profissional de seus
membros, sem dúvida a maior fonte de riqueza de qualquer organização –
principalmente dessa, cujo foco é proteger a sociedade e prevenir a
criminalidade.
115
Jornada de Trabalho
6
117
Indagamos os policiais sobre a qualidade das ordens que recebem, e
apenas 41,8% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 37,9% dos cabos
e soldados afirmam que lhes são dados comandos claros para realizar suas
atividades. É relevante que 5,4% e 4,9% deles, respectivamente, tenham
dito que nunca receberam diretrizes claras. No setor administrativo, os
oficiais, suboficiais e sargentos (5,2%), mais que os cabos e soldados (1,7%),
afirmaram que as ordens recebidas nunca são claras (p=0,000).
Quando a disciplina militar não é capaz de oferecer orientações
efetivas sobre como agir nas situações reais, ela acaba por ser um fator de
restrição das possibilidades adequadas e criativas de intervenção, encorajando
o indesejável, ou seja, as transgressões. Indagados sobre a necessidade de
modificar as ordens que recebem para conseguir realizar suas atividades, as
respostas ‘sempre, quase sempre e às vezes’ ocorreram por parte de 72,1%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e de 74% dos cabos e soldados. O mesmo
tipo de respostas também foi encontrado, em grandes proporções, entre os
que atuam no setor operacional: 74,8% dos oficiais, suboficiais e sargentos
e 75,9% dos cabos e soldados (p=0,000). Entre os policiais do estrato
administrativo, foram 65,9% e 62,6%, respectivamente, os que assim
responderam (p=0,039).
As proporções citadas são maiores que as observadas na corporação
civil, onde 61% afirmaram que precisam modificar as ordens que recebem
para conseguir atuar (Minayo, et al., 2007). No entanto, na Polícia Civil,
o peso da hierarquia não constrange tanto.
Para Muniz (1999), sobretudo os policiais mais experientes nas
atividades ostensivas acabam por recorrer à indisciplina para trabalhar mais
adequadamente, criando-se, assim, uma espécie de cinismo policial. Esse
cinismo é uma reação crítica aos dilemas e às contradições do cotidiano.
Todo policial de ponta aprende com os mais antigos, “com os cascudos”, que
a orientação recebida, na prática, é outra. “De posse do saber prático
que informa que a bomba explode sempre na ponta, os soldados, cabos e
sargentos sabem que, para agir como polícia de verdade, de antemão terão
não só que produzir alguns arranhões no código disciplinar como também
procurar descaracterizar as possíveis indisciplinas” (Muniz, 1999: 130).
Do conjunto dos policiais militares entrevistados, grande parte tem
uma carga horária de quarenta horas semanais. Somente 15,4% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 17,2% dos cabos e soldados trabalham em plantão
118
24 por 48 horas. Também é significativa a parcela dos que cumprem o
plantão de 12 por 36 horas (Gráfico 17).
6,3%
Escala de 12 por 24 horas
8,7%
14,2%
Escala de 12 por 36 horas
14,7%
8,3%
Escala de 12 por 48 horas
3,6%
15,4%
Escala de 24 por 48 horas
17,2%
3,1%
Escala de 24 por 72 horas 4,2%
39,4%
40 horas semanais
20,4%
13,6%
Outro
31,1%
119
Entre os motivos apresentados para manterem uma carga horária
real muito mais elevada que a convencional, a maioria indica a ‘convocação
por parte de um superior’, como podemos comprovar no Gráfico 18.
Encontramos parcelas significativas de 70,3% dos oficiais, suboficiais
e sargentos e 73,6% dos cabos e soldados que atuam na linha de frente, ou
seja, pertencem ao setor operacional e, estatisticamente, diferem dos que
estão lotados no setor administrativo (p=0,000), fazendo longas jornadas
de trabalho além do tempo prescrito. A segunda razão atribuída por
respectivamente 17,7% e 7,9% dos operacionais para o trabalho extra foi
‘concluir, por vontade própria, uma tarefa importante’.
65,9%
Convocado por ordem superior
73,0%
21,9%
Para concluir, por vontade própria,
uma tarefa importante 8,8%
12,2%
Por outro motivo
18,2%
120
isso mais ocorre também é o operacional: 43,9% mantêm uma carga excessiva
de trabalho (Minayo & Souza, 2003), o que, igualmente, coincide com os
servidores da corporação militar.
Aspecto relevante quanto à jornada de ambas as categorias civis e
militares diz respeito ao trabalho em horário noturno, demandado para o
atendimento ao público (Costa, 2004). Estudos mostram que plantões de
24 horas e os que incluem jornadas noturnas provocam forte desgaste físico
e emocional, gerando distúrbios neuropsíquicos, gastrintestinais,
cardiovasculares e, o mais óbvio, alterações do sono. A privação do sono
gera desânimo, fraqueza e insônia. Além de estar associada ao aparecimento
de tremores do corpo, obesidade e envelhecimento precoce, promove
distúrbios psíquicos como descontrole e agressividade (Rotenberg et al.,
2001). Tais fatores se tornam deveras preocupantes quando falamos de
profissionais cujo ofício, por si mesmo, já é uma permanente fonte de tensão.
Um trabalho policial realizado por pessoas fatigadas e com maior propensão
ao descontrole e à agressividade, pela alteração do sono, só torna as situações
que esses servidores devem manejar menos seguras e mais tensas ainda.
No Gráfico 19, há uma noção mais precisa dos períodos de trabalho
noturno realizados por policiais militares. Entre os oficiais, suboficiais e
sargentos, a proporção dos que sempre trabalham das 18 às 6 horas é de
65,2%. Entre os cabos e soldados, a maior parte (63,1%) diz que vem
realizando trabalho noturno há mais de sete meses.
65,2%
Sempre
23,7%
5,5%
Até 6 meses
11,9%
24,9%
7 meses ou mais
63,1%
4,4%
Nunca
1,3%
121
No setor administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos (54,5%),
mais que os cabos e soldados (15,3%), afirmam ‘sempre’ trabalhar em
período noturno, com diferença significativa entre os cargos (p=0,000).
Entre os operacionais, também são os oficiais, suboficiais e sargentos (69,6%
contra 25,1% dos cabos e soldados) que mais dizem trabalhar ‘sempre’ no
turno da noite, com diferenças estatísticas entre eles (p=0,000).
Na corporação civil, os que mais trabalham ‘sempre’ ou já
trabalharam por mais de um ano em horários noturnos são os operacionais:
79,9% deles, conforme identificado por Minayo e Souza (2003).
A maioria dos policiais militares (75%), nos dois grupos, diz que
suas últimas férias aconteceram há um ano. Trata-se, portanto, de um dado
que mostra a existência de regularidade no estatuto das férias desses
servidores. No entanto, é importante considerar que uma parcela de 11,9%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 7,9% dos cabos e soldados referem
não terem tirado férias há pelo menos três anos (Gráfico 20).
No grupo administrativo, o regime de férias dos cabos e soldados é mais
regular: 79,3% dos que compõem esse grupo contra 71,5% dos oficiais,
suboficiais e sargentos informaram tê-las cumprido no último ano, havendo
diferenças estatísticas significativas entre esses cargos (p=0,000). No grupo
operacional, a situação é inversa, e a regularidade se apresenta maior entre os
oficiais, suboficiais e sargentos: 76,3% contra 74,3% dos não-oficiais (p=0,000).
Gráfico 20 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o tempo que tiraram
férias na Polícia
75,0%
13,2%
2 anos atrás
17,1%
7,9%
122
Comparando as duas corporações, observamos que os policiais
militares têm um regime de férias mais regular que os civis. Entre os últimos,
apenas 13,1% haviam tirado férias há um ano, à época da pesquisa.
Também é importante ressaltar a diferença entre as duas corporações em
relação a um grupo muito expressivo de policiais civis que nunca tirou
férias (16,4% dos civis versus 2,2% dos militares). A maioria dos policiais
civis (70,5%) afirmou que havia gozado as férias há pelo menos dois ou
três anos. Consideramos, portanto, que nas duas corporações a falta de
regularidade do período de descanso prolongado contribui para o acúmulo
de estresse profissional, com repercussões na saúde pessoal e no desempenho
do trabalho. No entanto, ressaltamos que essa situação é crítica entre os
policiais civis, onde 70,5% estão em situação irregular quanto ao regime de
férias (Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Muitos policiais civis e militares utilizam o argumento dos baixos
salários para justificar que não tiram férias para exercer outras atividades
remuneradas, além do trabalho na corporação policial. Em relação ao
exercício dessa outras atividades, com ou sem vínculo empregatício, 51,6%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 61,1% dos cabos e soldados estão
comprometidos. No setor administrativo, isso ocorre entre 50,2% dos
primeiros e 54,3% dos segundos (p=0,009). No grupo operacional, parece
que a situação financeira dos policiais é ainda mais complicada: 52,2%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 62,1% dos cabos e soldados disseram
que precisam realizar outras atividades laborais fora da Polícia para
complementar sua renda (p=0,000). Comparativamente, 55% dos policiais
civis também exercem atividades extras (Minayo & Souza, 2003).
O ramo de atividade que mais emprega policiais militares fora do
seu horário laboral é o de segurança particular (Gráfico 21). No setor
administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos (72,6%), mais que os
cabos e soldados (62,5%), trabalham como seguranças (p=0,000). Já no
operacional ocorre o inverso: os não-oficiais são os que mais fazem trabalho
extra como segurança – 65,7% dos oficiais, suboficiais e sargentos contra
76,7% dos cabos e soldados (p=0,000).
Na Polícia Civil, 32,8% afirmaram exercer atividades fora da
corporação como segurança particular, 6,6% trabalham como comerciante,
2,1% dirigem táxi e 15,5% desempenham outros tipos de tarefa (Minayo,
Souza & Constantino, 2007).
123
Gráfico 21 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a atividade fora da
Polícia
Segurança 67,6%
particular 74,8%
11,4%
Comerciante
8,1%
4,8%
Dirigir táxi
1,8%
16,1%
Outro
15,2%
124
(Bottari, 2005: 15). No segmento legal, a presença das altas patentes é ainda
mais acentuada: das 148 empresas que têm autorização de funcionamento
outorgada pelo Ministério da Justiça no estado do Rio, 50% estão em nome
de policiais militares e de delegados da ativa ou de aposentados e seus parentes.
A participação de oficiais ou delegados em empresas de segurança
oficializadas e registradas é permitida por lei. No entanto, os que estudam
o assunto tendem a fazer restrições a essa prática, mostrando que existe
uma zona cinzenta prejudicial à população que a partir daí se instaura: ela
estimula os policiais de baixa patente a fazerem ‘bico’, cria uma inevitável
promiscuidade entre interesses públicos e privados e privatiza um papel
fundamental do Estado moderno.
Embora no Rio de Janeiro a situação seja agravada, Beato Filho,
Peixoto e Andrade (2004) comentam que, em países como Canadá e
Estados Unidos, a segurança privada já emprega o triplo do efetivo policial.
No Brasil, as empresas legais empregam o dobro e o mercado ilegal, quatro
vezes mais do que todo o sistema de segurança pública.
O tempo dedicado a atividades extras atinge, em média, mais de
vinte horas por semana para 51,3% dos oficiais, suboficiais e sargentos e
para 55,3% dos cabos e soldados. Uma parcela de 37,7% dos oficiais
executam os trabalhos fora da corporação no período diurno (das 6 às 18
horas) e 40,7% dos não-oficiais alternam essas atividades em períodos diurno
e noturno. No grupo administrativo, os que se dedicam a atividades extras
por mais de vinte horas semanais são 52,7% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 43,3% dos cabos e soldados, com diferença estatisticamente
significativa entre esses cargos (p=0,000). Já no setor operacional, essas
proporções chegam a 50,7% e 56,9%, respectivamente (p=0,000).
A remuneração recebida pelo trabalho realizado fora da Polícia
complementa a renda mensal e chega a ser superior ao que o militar recebe
na corporação apenas para 44,8% dos cabos e soldados. Entre os oficiais e
suboficiais, o valor recebido pela atividade extra é menor que o da Polícia
Militar para 45,6% deles (p=0,000).
Considerando os estratos tanto no grupo administrativo como no
operacional, a maioria dos oficiais afirma que recebe menos pelas
atividades extras que o valor pago pela Polícia e, para os cabos e soldados,
tais atividades garantem aporte financeiro maior do que o que eles recebem
pelo trabalho na corporação.
125
Para ambas as categorias, civis e militares, a jornada dos operacionais
é a mais pesada e mais penosa, pois inclui plantões noturnos. De todo
modo, a jornada dos outros setores também não é suave, já que se realiza,
em grande parte, por plantões.
Ao observar a dinâmica real em que se desenvolve a jornada de
trabalho dos policiais militares, entendemos que são necessárias medidas
gerenciais que dêem outros rumos ao cotidiano do desempenho das
atividades. A atenção às necessidades físicas, sociais e emocionais desses
servidores públicos é, com certeza, primordial para garantir melhor
qualidade de vida para a categoria e para suas famílias. Em conseqüência,
os que têm a missão de manter a segurança pública terão a possibilidade de
prestar um serviço mais adequado e eficaz.
126
Condições Materiais, Técnicas
7
e Ambiente de Trabalho
Gráfico 22 – Notas médias dadas pelos policiais militares para o grau de satisfação com
alguns aspectos do trabalho
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
*p=0,000
128
policial como profissional, sobretudo por parte da instituição (1,7) e da
população (2,1), além da inconformidade com os baixos salários (1,3).
O Gráfico 22 é revelador. Primeiramente, embora haja uma
diferenciação significativa entre oficiais e não-oficiais quanto à satisfação no
trabalho, os dois grupos conferem notas baixas para os mesmos itens. Ou
seja, também os oficiais, suboficiais e sargentos estão insatisfeitos com o
salário, com a falta de reconhecimento da população e da corporação, com
as poucas perspectivas de promoção, com a área geográfica em que atuam,
com os horários e o volume de trabalho. As mesmas questões já foram
assinaladas por nós (Minayo & Souza, 2003) em relação aos policiais
civis. Embora as notas médias aferidas por estes últimos sejam mais elevadas
do que as atribuídas pelos policiais militares aos referidos itens, estes também
estão insatisfeitos, como podemos comprovar pelos valores seguintes: 2,2
para a perspectiva de promoção, 2,1 para o reconhecimento por parte da
instituição policial, 3,0 para o reconhecimento da população e 3,1 para os
salários (Minayo & Souza, 2003; Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Ora, o elenco de questões que geram insatisfação, a nosso ver, deveria
merecer a reflexão dos gestores, sobretudo da Secretaria de Segurança
Pública, uma vez que atinge as duas corporações. O trabalho mal
remunerado, sem reconhecimento e sem perspectivas de crescimento
profissional leva ao baixo desempenho no cumprimento das tarefas, o que
se reflete na insatisfação da população. Esse subconjunto de temas aferidos
negativamente e referidos nos últimos parágrafos traz como conseqüência
um sentimento de frustração muito forte, que tem impacto sobre a saúde
física e emocional dos policiais.
Contudo, os policiais atribuem valores maiores e manifestam mais
satisfação com a execução das atividades e com a responsabilidade assumida
em seu trabalho. Embora haja uma importante diferença a favor dos que
cumprem tarefas administrativas em relação aos operacionais que estão mais
contentes, também é importante para os gestores tomarem conhecimento
de que existe uma motivação (embora não tão elevada assim) para o trabalho
na corporação.
Tratando de ouvir como os policiais avaliam os equipamentos que
usam para o cumprimento de suas atividades, entendendo que as condições
materiais interferem fortemente no seu desempenho, também lhes pedimos
129
que atribuíssem a esse dispositivo uma nota de zero a dez. O resultado está
exposto no Gráfico 23.
Gráfico 23 – Notas médias dadas pelos policiais militares dos setores administrativo e
operacional para equipamentos usados no trabalho
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Computadores* 5,5
6,2
Quantidade de munição 5,4
5,3
Walkie-talkies* * 4,9
5,5
Identificador de chamadas 4,7
5,3
Coletes* 4,6
4,1
Capacetes 4,3
4,2
Escudos 3,9
3,8
Rastreador de telefonia 3,6
4,1
Máscaras de gás*** 3,5
3,9
Tipo ou modelo de arma de fogo 6,5
6,2
Qualidade da arma de fogo* 6,4
5,8
Qualidade da munição* 5,3
5,1
Outros equipamentos* 5,1
4,3
Quantidade de munição* 4,9
4,2
Linhas telefônicas* 4,7
4,3
Operacional
Rádios 4,7
4,6
Farda ou uniforme* 1,8 4,6
Viaturas* 4,2
3,1
Computadores* 4,1
2,8
Coletes* 4,1
3,4
Instalações físicas* 3,9
2,9
Banco de dados* 3,8
3,2
Walkie-talkies* 3,2
2,7
Capacetes* 3,2
2,4
Escudos* 3,1
2,1
Identificador de chamadas 2,6
1,7 Oficial / Suboficial / Sargentos
Máscaras de gás* 2,5
1,4 Cabos / Soldados
Rastreador de telefonia 2,4
1,8
Nesse particular, as notas médias foram muito baixas tanto por parte
dos administrativos como dos operacionais. O que primeiro salta à vista são
as baixas notas atribuídas aos equipamentos usados para a proteção pessoal:
130
colete, capacete e escudos. Os cabos e soldados também avaliaram
negativamente os uniformes.
No setor administrativo, os itens que receberam notas mais elevadas
foram os que dizem respeito à qualidade, ao tipo e ao modelo da arma, às
linhas telefônicas e ao banco de dados. Fugindo um pouco do padrão geral,
comparados aos oficiais, suboficiais e sargentos, os cabos e soldados atribuíram
melhores notas aos itens: linhas telefônicas, instalações físicas, computadores,
walkie-talkie, identificadores de chamada telefônica, rastreadores de telefonia
celular e máscaras de gás. Para os outros equipamentos, os valores aferidos
pelos oficiais, suboficiais e sargentos são maiores.
Ainda observando o Gráfico 23, assinalamos que no setor operacional
as melhores notas foram associadas ao tipo, modelo e qualidade da arma e da
munição. Nesse ponto, os cabos e soldados foram muito mais críticos que os
oficiais, suboficiais e sargentos, atribuindo notas baixas a todos os itens
perguntados no questionário de pesquisa. Existe concordância apenas quanto
à qualidade dos rádios, não havendo diferença estatística entre os dois grupos.
Receberam piores notas por parte dos policiais operacionais: instalações físicas,
banco de dados, walkie-talkies, capacetes, escudos, identificadores de chamada
telefônica, máscaras de gás e rastreadores de telefonia celular. Destacamos o
descontentamento dos cabos e soldados de ambos os setores com a farda ou
o uniforme usado por eles em seu trabalho.
Na avaliação sobre as condições materiais de trabalho entre a corporação
militar e a civil, os administrativos civis atribuíram notas muito baixas a suas
instalações físicas (5,0); efetivamente, nas visitas para trabalho de campo,
pudemos constatar que a situação no tocante a esse aspecto é mesmo bastante
precária. Mas também os operacionais dessa categoria valoraram com 6,4
suas instalações operacionais, uma vez que nem todas as delegacias haviam se
transformado fisicamente em ‘Delegacias Legais’, com toda a padronização
correspondente. O item melhor avaliado pelos policiais civis foram as viaturas,
que obtiveram uma média de satisfação de 6,8 entre os administrativos e 7,3
entre os operacionais (Minayo & Souza, 2003).
Diante dessas informações, tecemos algumas considerações.
À primeira vista, pode parecer estranho esses profissionais terem dado notas
mais elevadas para os itens relativos ao armamento, uma vez que,
freqüentemente, depoimentos dos próprios policiais são veiculados na
imprensa dizendo que as armas e munições usadas por eles são ultrapassadas
131
e velhas. No entanto, essas pontuações parecem revelar que a arma é o
equipamento mais valorizado, por ser o instrumento de trabalho que,
simbólica e concretamente, lhes confere poder para agir como policiais e se
defender dos ataques dos criminosos. No entanto, esse dado foi contraditório
com as falas nos grupos focais, em que os participantes se queixaram da
qualidade e da adequação de todos os seus equipamentos.
E qual poderia ser o significado das baixas médias dadas ao
fardamento, sobretudo entre os não-oficiais? Respostas óbvias seriam que
ele é desconfortável, quente, pesado, feio. O grupo das praças queixou-se
também nos grupos focais das péssimas condições de seus uniformes.
Segundo eles, a cada seis meses um novo deveria lhes ser entregue, mas
isso não acontece. Outra interpretação para essa insatisfação poderia ainda
ser buscada em um ditado comum, “vestir a camisa”, expressando que aquele
membro da corporação está aderido à instituição e comunga dos seus
princípios e os defende. Nesse caso específico, o ditado poderia ser
transmutado em “vestir a farda”. No entanto, segundo um oficial, há razões
concretas para essa queixa: os soldados e cabos só têm uma ou duas peças
de um único tipo de farda. Os oficiais têm vários modelos para situações
diferentes. Isso cria uma idéia de ‘classe’ que reforça as desigualdades entre
os círculos hierárquicos.
Estudo de Oliveira e colaboradores (2006) também evidencia as
precárias condições de trabalho vivenciadas pelos policiais militares que
participaram de sua pesquisa: armamentos enferrujados, coletes fora do
prazo de validade e salários defasados.
Nos grupos de discussão que fizemos, as informações quantitativas
foram confirmadas e, por vezes, qualificadas. Os equipamentos para o
desempenho das atividades, principalmente os utilizados no confronto com
a criminalidade, são os mais duramente criticados pelo círculo das praças.
Entre os gestores, o discurso é de que tais dispositivos não são ideais, mas
vêm sendo atualizados. Porém, os próprios oficiais que gerenciam os
batalhões operacionais têm críticas aos materiais de que dispõem. Segundo
um deles, o não-reconhecimento de que seu batalhão é uma unidade de
combate torna a tropa ainda mais vulnerável: “Nós temos alguns coletes,
mas são coletes que não protegem nossos policiais dos projéteis dos fuzis.
Então não adianta, porque, como somos uma unidade de combate, o que
nós encontramos pela frente é isso [os fuzis].”
132
Os dados qualitativos confirmaram fortemente que, na tropa, os cabos
e soldados são os que mais sofrem pela precariedade dos equipamentos.
Por essa razão, é nesse grupo que encontramos as críticas mais enfáticas.
As praças, mais do que os oficiais, falam da precariedade das instalações
físicas, das viaturas e dos equipamentos. A necessidade de dispositivos
mais eficazes e adequados à realidade social com a qual se defrontam foi
trazida pelos grupos que atuam diretamente no conflito com as quadrilhas
de traficantes. A falta de manutenção das viaturas e a inadequação dos
equipamentos fazem com que a tropa fique mais exposta aos riscos, conforme
ressaltou esse grupo de soldados e cabos:
Nós não estamos falando que não existe equipamento. Existe, até mesmo
auditivo, mas são obsoletos: pegar, apertar no BDT [aparelho para
comunicação], falar no próprio rádio, não tem microfone. Você não fica com
as suas mãos livres, não tem um microfone labial. (...) Esses aparelhos são
obsoletos porque, em muitas situações, a gente está fazendo a comunicação
com o outro, mas tem que chegar no silêncio, só que com o rádio não dá.
(...) Esse colete que nós temos não segura tiro de fuzil. Já existem coletes
leves que seguram tiro de fuzil. Não é tão pesado e você não perde a
mobilidade. Mas são coletes caros, importados.
133
operando. Não são aparelhos modernos que facilitariam. Eles se tornam
desfavoráveis. A noite toda andando com aquele peso prejudica a saúde da
gente.
134
A percepção da deterioração das condições de trabalho ao longo do
tempo é compartilhada por 55,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e por
59,3% dos cabos e soldados do grupo administrativo (p=0,000). No
entanto, é ainda mais intensa no setor operacional, incluindo 60,2% dos
primeiros e 69,3% dos segundos (p=0,000).
20,0%
Melhorou
8,8%
21,1%
Continua igual
23,4%
58,8%
Piorou
67,8%
*p=0,000
135
em primeiro lugar, uma consciência muito mais aguda sobre os direitos da
sociedade contemporânea, o que a torna muito mais sensível à necessidade
de segurança; e em segundo lugar, a real discrepância entre os instrumentos de
atuação e a força crescente da criminalidade na cidade e no estado do Rio
de Janeiro, tornando ainda mais difícil o exercício da profissão (Souza &
Minayo, 2005; Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Perguntamos aos policiais sobre a utilização das tecnologias modernas
de informação, tendo em vista que hoje existem inúmeras possibilidades de
monitoramento da segurança e da criminalidade por esses meios.
Descobrimos que o uso dessas tecnologias pelos policiais militares no
ambiente de trabalho é muito baixo. No Gráfico 25, pode-se observar que
os oficiais e suboficiais são os que mais utilizam esses recursos e, mesmo
assim, em proporções muito pequenas.
É bom lembrar que as notas conferidas aos computadores da
corporação foram muito baixas, principalmente entre os cabos e soldados,
os que menos têm acesso a esses meios.
36,6%
Para acessar dados
internos da Polícia
20,2%
30,4%
Para acessar a
Internet no trabalho
12,8%
136
Isso é lastimável, pois significa praticar segurança ainda à moda antiga. Em
um tipo de administração contemporânea – a que se propõe a instituição –,
os policiais deveriam contar com acesso a tecnologias necessárias para a
obtenção de informações articuladas e integradas com outros setores, com
outros estados e até com outros países, em todas as etapas do trabalho.
ADMINISTRATIVO
70,6%
Para acessar dados internos da Polícia
64,6%
63,6%
Para acessar a internet no trabalho
54,3%
OPERACIONAL
22,6%
Para acessar dados internos da Polícia
12,8%
16,4%
Para acessar a internet no trabalho
5,8%
137
desde que houvesse melhores condições de trabalho. Devemos ressaltar que o
descontentamento com a profissão militar é maior entre os oficiais, suboficiais
e sargentos, que escolheriam profissões totalmente diferentes (p=0,000).
16,0%
Escolheria a mesma carreira
8,6%
profissionais
Os cabos e soldados, mais que os oficiais, suboficiais e sargentos,
escolheriam a mesma carreira, caso lhes fossem oferecidas condições de
exercício profissional (Gráfico 27). Esse achado traz à tona uma
controvérsia no debate sociológico sobre a corporação, pois alguns
estudiosos consideram que muitos jovens entram para a Polícia, mais do
que por vocação, com a idéia de ter acesso ao mercado de trabalho por
meio de um emprego público e estável.
Observamos, com surpresa, que maior proporção dos cabos e soldados
que atuam no setor administrativo, em relação aos oficiais, suboficiais e
sargentos da mesma área, escolheria carreira ou atividade parecida (79,3%
dos primeiros contra 60,9% dos segundos), com diferenças estatísticas
significativas entre esses cargos (p=0,000). Já entre os operacionais, os
percentuais dos que fariam essa escolha são mais próximos entre os dois
grupos (71,1% dos cabos e soldados contra 70,4% dos oficiais, suboficiais
e sargentos), mas, mesmo assim, apresentam diferença estatisticamente
138
significativa a favor dos primeiros (p=0,000).
Nos estudos realizados com os policiais civis (Minayo & Souza,
2003), também evidenciamos que, se lhes fosse dada a oportunidade de
tornar a escolher, 75% deles, indiferentemente dos postos que ocupam,
entrariam de novo nessa carreira. Porém, também entre os policiais civis foi
encontrado descontentamento: 26,2% dos administrativos, 23,8% dos
operacionais e 19,9% dos técnicos escolheriam carreira completamente
diferente da atual (Minayo & Souza, 2003). Ou seja, proporções maiores
de policiais militares estão insatisfeitas com a profissão escolhida, como
mostra o gráfico anterior.
Em resumo, existe um espírito de corpo bastante forte na corporação.
Apesar das muitas queixas, poderíamos dizer que ele é maior entre os cabos
e soldados. Constatamos uma adesão bastante forte de mais de 70% ao
trabalho policial. Isso ocorre, segundo um oficial, por dois motivos: eles
disputam menos o acesso aos postos de poder (entre si) e vivem juntos as
maiores dificuldades (os combates). “A dor os une.”
No entanto, há focos de insatisfação muito grandes em alguns aspectos
que podem ser assim resumidos: frustração e, às vezes, ressentimento pela
falta de reconhecimento dos superiores e da população; queixas em relação
aos salários, às condições de trabalho e aos equipamentos pessoais e de
realização dos serviços.
Embora possamos concluir
que em qualquer categoria existem resistências e insatisfações dos
trabalhadores, entendemos que as autoridades deveriam levar em conta o
que ocorre com os policiais militares e civis, uma vez que sua satisfação com
as condições laborais se reflete na nossa segurança e proteção.
139
Relações Hierárquicas e entre Pares
8
A execução, que deve ser reflexiva, significa fazer da melhor forma possível em
cumprimento às leis, normas e institutos jurídicos, protegendo e protegendo-se,
141
adotando comportamentos táticos adequados às situações, usando recursos
regulares ou que se tenha à mão; superando toda e qualquer adversidade que se
apresente pela complexidade das relações sociais que promovem conflitos pré-
penais e suscetíveis de administração.
142
34,9% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 28,6% dos cabos e soldados
operacionais (p=0,000).
32,2%
R elacionam-se bem com seus superiores*
19,4%
23,3%
Podem contar com o apoio dos colegas*
21,8%
16,0%
O ambiente é calmo e agradável*
8,3%
*p=0,000
143
Gráfico 29 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a satisfação com
alguns aspectos da carreira policial
74,6%
Relacionamento com subordinados*
72,3%
57,4%
Funções que desempenha*
45,7%
53,3%
Relacionamento com superiores*
38,3%
34,6%
Quantidade de horas trabalhadas*
24,9%
*p=0,000
144
agentes em suas inter-relações. Se para os oficiais a hierarquia é necessária e
funcional, para as praças ela freqüentemente se traduz em autoritarismo
e arbitrariedade do poder. Geralmente, os oficiais são mais complacentes ao
julgar as relações entre os vários escalões. No entanto, podemos classificar
pelo menos dois grupos de opiniões e lógicas nas interpretações: um primeiro
grupo acredita que há e pode ser ainda melhor construída uma interação
horizontal entre os círculos superiores e os inferiores na relação com os objetos
de trabalho. Um outro grupo, muito crítico, insiste nas dificuldades de
mudanças e até na obsolescência e arbitrariedade das relações hierárquicas.
Configurando a classificação do primeiro grupo, observamos
depoimentos de oficiais e não-oficiais que participam ou participaram de
experiências em que a gestão segue os padrões hierárquicos formais, mas é
marcada pelo diálogo e pela produção de consenso por causa das
peculiaridades ou mesmo filosofia relacional dos comandantes. Falaremos
primeiro desses casos.
Para um gestor administrativo de uma unidade de ensino, existe “um
sistema de hierarquia e disciplina que funciona a contento aqui” e, além
disso, o elevado grau de instrução facilita a “administração desse convívio
na sua unidade”. Esse mesmo gestor afirma: “Eu costumo dizer que a
hierarquia não separa homens, separa papéis. Eu tenho o meu papel, o
sargento tem o dele, ele me respeita e eu o respeito. Eu dou a ordem, ele
executa. Nada absurdo dentro do métier dele. Então, aqui é muito difícil
ter conflito entre superior e subordinado”.
E esse gestor administrativo complementa dizendo que já testemunhou
situações muito difíceis e indesejáveis: “Eu já vi acontecer, várias vezes, um
policial agredir um superior hierárquico e vice-versa. No batalhão, o pessoal
está sob o maior estresse. Um olhar mal dado, uma palavra mal dita, o
policial saca a arma”.
Fazendo um contraponto com a fala do gestor administrativo, alguns
oficiais da mesma unidade referem que a obediência à hierarquia no âmbito
policial controla possíveis problemas de relacionamento, não sem o estresse
que esse poder possa acarretar. Então, acontecem ‘explosões’, não nesse
grupo, mas em outros batalhões.
Um comandante de batalhão comenta que as adversidades do
cotidiano, principalmente a vivência do risco constante, fazem com que os
145
policiais do mesmo círculo se unam. E, nos grupos focais, soldados e cabos
disseram a mesma coisa, coincidindo com as palavras desse oficial: “Eu
acho que, justamente pela alta periculosidade do batalhão, o policial aqui
parece que se une mais, até por causa da necessidade e do risco freqüente.
O risco freqüente de a gente morrer aqui faz com que a gente se una!”.
Um outro gestor operacional relata como percebe o relacionamento
entre pares na instituição: para os soldados e cabos, a motivação e a
convivência são molas propulsoras de um bom relacionamento. No nível
dos oficiais, ‘o amor corporativo’ é a força motriz para a satisfação do trabalho,
o que influenciaria no bom relacionamento. Para esse gestor, “o serviço
público é para quem tem vocação”. E acrescenta que “o grande segredo da
felicidade é transformar o dever em lazer”. Essa filosofia encontra abrigo
na fala de vários estudiosos e filósofos, sobretudo no teórico italiano De
Masi (2000), que produziu um livro sobre ‘o ócio criativo’, colocando-o
como ápice na possibilidade de o ser humano trabalhar por prazer.
Um dos gestores administrativos entrevistados assim filosofa, quando
convidado a falar sobre a relação entre oficiais e seus subordinados,
evidenciando um elevado grau de compreensão dos princípios de solução de
conflitos de forma civilizada: “Onde há seres humanos, há divergência. Acho
que a graça do ser humano é essa, cada um ser diferente do outro. O que se
busca é uma convivência harmoniosa, pacífica, onde procuramos resolver
nossas diferenças com diálogo”. No entanto, esse mesmo oficial comenta que,
quando a desavença prejudica a qualidade do serviço, costuma adotar medidas
disciplinares e até mesmo providenciar o afastamento daquelas pessoas que
provocam forte atrito com os outros membros de sua unidade.
Outro gestor operacional considera que a distância interpessoal entre
oficiais e seus subordinados ocorre por causa dessa estratificação da carreira
militar, distribuída em graduações e postos. Sugere, no entanto, que o
estreitamento das relações pode se dar através de atividades integradoras.
Um desses movimentos de congraçamento foi detalhado por ele ao afirmar
que, em sua unidade, uma vez por mês é oferecido um almoço para os
aniversariantes. Nesse momento, também são destacados os policiais que
obtiveram melhores méritos durante as operações naquele período. Comenta
ainda que, em sua unidade, organiza eventos nos quais são tratados assuntos
de interesse da instituição: as atividades atuais, os projetos, as frustrações
que os subordinados e ele próprio sentem por não terem ainda conseguido
146
implementar algumas propostas e outros temas. Os policiais que porventura
foram lesionados no cumprimento do dever e estão temporariamente afastados
– alguns até definitivamente, em razão do tipo de ferimento – também são
convidados a participar desses encontros, com o intuito de serem prestigiados
e integrados. Para esse gestor,
O importante é que o soldado saiba que essa unidade pode ser uma extensão
da sua casa, da sua família, embora haja diversas subdivisões hierárquicas,
postos e graduações. Mas isso não existe para dividir, e sim para aumentar
responsabilidades. Isso porque é importante que os policiais sintam que, em
todas as atividades a que estão submetidos, o comandante está envolvido, os
oficiais estão envolvidos, toda a unidade está envolvida e preocupada com o
bem-estar de cada um deles.
147
nem problemas pessoais. Nivela-se pela necessidade. Então é isso o que
determina as relações.
149
Para as praças, a maior expectativa de mudança tem como objeto
alguns elementos que compõem as normas disciplinares da categoria.
O comentário de outro sargento enfatiza esse aspecto: “Gostaria que mudasse
alguns itens do regulamento, como acabar com a prisão de 72 horas, e que
o policial tivesse apoio jurídico em qualquer audiência e julgamento”. Ele
comenta, também, que gostaria que o regulamento disciplinar acabasse
com a prisão e a detenção, pois há outros tipos de punição. Uma pessoa
poderia sofrer, por exemplo, suspensão. Reforça: “A prisão e a detenção
não somam nada na Polícia e, se resolvessem, não haveria tantos policiais
presos e detidos administrativos”.
Segundo um grupo de praças e sargentos, a lógica da corporação em
relação a eles é a mesma que constrói o “elemento suspeito” na prática
profissional da Polícia. No caso da sociedade civil, a população e a mídia
acusam o policial de prender ou executar antes mesmo de investigar o
indivíduo. No caso dos sargentos e praças, eles consideram que é também
essa forma de suspeição que domina a relação das chefias com os escalões
inferiores. Eis alguns de seus depoimentos:
150
focais. Possivelmente isso tenha ocorrido porque, na relação face a face, foi
mais fácil para esses servidores se manifestarem. Ou talvez as indagações
feitas nos encontros pessoais tenham sido mais provocativas. Os problemas
por eles assinalados de forma crítica – inclusive pelos gestores que têm uma
expectativa mais humanística – vão ao encontro das reflexões de Dejours,
quando fala do sofrimento psíquico vivido por outras categorias em suas
relações hierárquicas de trabalho:
151
não pode mais passar ignorado, os trabalhadores continuam em seus postos de
trabalho expondo seu equilíbrio e seu funcionamento mental à ameaça contida
no trabalho, para enfrentar uma exigência ainda mais imperiosa:
sobreviver”(Dejours, 1992: 77-78).
152
Imagem e Identidade
9
Oração do Policial Militar
Senhor,
Saio de casa para o serviço;
fazei com que volte são e salvo.
Enquanto protejo outras famílias,
por favor, proteja a minha.
Não deixe que uma bala traiçoeira me atinja,
nem que eu seja instrumento para injustiças.
Faça com que minha presença irradie segurança e bem-estar,
jamais medo ou desconfiança.
Nos momentos difíceis, e diante da morte,
não deixe que eu caia em desespero.
Sou humano, mortal, às vezes fraco,
mas, me faça parecer sobre-humano, imortal, forte,
a fim de inspirar confiança, esperança e força aos desamparados.
Quando dos meus erros fique do meu lado,
pois todos os demais, por mais pecadores que sejam, estarão contra.
Dá-me força e sabedoria para auxiliar os desesperados
e fé para não desistir diante de uma vida que se acaba.
Auxilie-me a ser criança para as crianças;
pai para os desprotegidos; e adulto para os necessitados.
Que o vigor de minhas ações seja sempre em proteção à paz, à vida,
aos mais fracos, aos oprimidos e aos humilhados.
Que eu saiba ver a beleza do coração, não da face,
da cor, da raça, da religião ou da condição social.
Que os menos esclarecidos compreendam
minhas limitações e a complexidade do meu trabalho.
Senhor, abençoe e proteja os policiais!
(Giraldi, 2005)
153
Começamos este capítulo homenageando a corporação com essa
“Oração do policial militar”, de autoria do coronel da reserva Nilson Giraldi
(2005), criador do método “Tiro defensivo de preservação da vida – Método
Giraldi”. Nela, o autor faz um percurso interior e reflexivo sobre o exercício
de sua profissão: vai do aconchego do lar ao palco das atividades ostensivas,
caminha pelo significado do trabalho, perpassa o perigo, o medo, a
imprevisibilidade e os vários sentimentos que a proximidade dos riscos coloca
para o policial. De forma impressionante, a oração evidencia o sentido da
missão – “que minha presença irradie segurança e bem-estar” – e do caráter
humanitário e público de sua tarefa consagrada pelos preceitos constitucionais.
Igualmente, o texto deixa claro que não raro um policial comete injustiças,
provoca medo, desconfiança e é alvo da própria insegurança que busca conter.
Mirando na sociedade, a prece de Giraldi (2005) é pessimista: ressalta que
existe um prisma negativo pelo qual a população julga e cobra as ações dos
policiais. Porém, essa mesma sociedade os deixa sozinhos com as próprias
fraquezas. Mas, não podemos nos esquecer, essa oração fala também do autor,
de sua visão de mundo e de seu compromisso pessoal.
Teoricamente e com base nos fundamentos de Goffman (1993), a
forma como a pessoa define a si própria em sociedade, quer perante si
mesma, quer perante os outros, faz parte de um processo de socialização
que preexiste ao nascimento do indivíduo. Nesse sentido, a construção da
identidade corporativa da Polícia Militar tem suas raízes na história – como
vimos na primeira parte deste livro – e a identidade dos seus membros dela
deriva, modelando-se através da interação social. Segundo Goffman (1993),
a interação social é por excelência um processo de ação comunicativa que
tem por base o modo como o indivíduo interpreta o universo simbólico de
forma a preservar sua identidade.
Na perspectiva de Goffman,6 a imagem que um policial militar tem
de si é permanentemente edificada sobre um conjunto de movimentos
6
Com base na perspectiva dramática de representação teatral, Goffman (1993) encara as
situações sociais como se elas ocorressem em um palco. Nessas circunstâncias, os atores
desempenham papéis de diferentes personagens, o que os leva a identificar distintas estratégias
e técnicas de atuação. Nesse sentido, existe a ‘fachada’, que é o conjunto de elementos que
identifica o grupo e a situação de atuação; os ‘adereços’, que permitem a identificação das
personagens através da aparência, como tipo de roupas (uniformes) e tudo o que constitui
externamente o status do personagem; os ‘cenários’, locais de apresentação das atividades; e
os ‘bastidores’, que permitem aos atores despirem-se das máscaras e serem eles mesmos.
154
interativos com a realidade que vivencia: com a instituição que cria códigos,
preceitos e ritos, por meio dos quais mantém a visão corporativa e abrange
a todos os servidores, e com a sociedade que aplaude ou reage às práticas
policiais, construindo avaliações e interpretações, segundo suas expectativas
sobre o cumprimento do serviço público que esses profissionais prestam.
Essa dinâmica de formação da identidade ocorre porque, segundo Goffman
(1993), as interações sociais são representações bem construídas e
intimamente relacionadas com o ‘eu’. Na perspectiva desse ator, o ‘eu’,
como produto dramático, derivado de um quadro de representação e mediado
por um público, só ganha visibilidade na ação entre protagonistas.
Usando um termo de Giddens (2002), dizemos que a construção
coletiva da identidade é atravessada pela ‘reflexividade’, pois há uma
realimentação permanente do sentido simbólico da corporação – parte vem
dela e parte vem de fora, se entrelaçando e repercutindo de forma recursiva –,
que também afeta ou constitui o indivíduo, o policial: todo sujeito julga as
interpretações e opiniões dos outros sobre ele próprio. Giddens (2002)
lembra que essa reflexividade não é pontual e circunstancial. Ela é constitutiva
das instituições e das pessoas.
Neste capítulo, apresentamos os elementos de construção da identidade
do policial com base em vários tipos de materiais: a visão corporativa, a visão
da sociedade, a visão do poder e da política e a visão deles sobre si próprios.
Esses materiais estão ao mesmo tempo amalgamados e em permanente
transformação (Goffman, 1993; Giddens, 2002).
155
A corporação tem a pretensão de que, embora nunca plenamente,
seus membros logrem cumprir com êxito a missão constitucional. Essa
convicção, apesar de não ser verbalizada por todos os seus membros, foi
encontrada em muitos policiais que entrevistamos, tanto oficiais quanto
praças, que manifestam autoconfiança e orgulho de sua profissão. Podemos
constatar uma postura muito positiva, por exemplo, nos policiais de um
batalhão que atua na formação da categoria, portanto, em um segmento da
corporação encarregado de presentificar os valores que a identificam e a
conformam:
156
característica corporativa que reúne a todos, e que foi sendo descrita ao longo
de todos os capítulos deste livro, freqüentemente entra em contradição com as
práticas cotidianas e com os métodos de gestão institucional.
Igualmente, quando perguntamos por soluções para o impasse de
uma identidade que funciona ora de forma defensiva, ora de forma arrogante
– o que também observamos no decorrer dos capítulos deste livro –, a
responsabilidade por mudanças é atribuída sempre aos superiores e o
discurso dos policiais retorna ao termo que os unifica: a necessidade de se
criar uma gestão competente da ‘segurança pública’. Nos grupos focais,
servidores de vários escalões deixaram muito claro que um conflito identitário
relevante para eles é o relacionado à rigidez hierárquica que prejudica a
possibilidade de soluções discutidas coletivamente e que, se assim fossem
tratadas, seriam muito mais eficazes:
157
Os policiais militares são chamados para responder a ações de competência
de diversos órgãos públicos, tais como Parques e Jardins, Corpo de Bombeiros
e companhia elétrica. O policial militar acaba respondendo por inúmeras
tarefas que não são de sua estrita responsabilidade.
158
quanto ao excesso de rigidez hierárquica e à forma como são tratados
pelos superiores, eles também, quando se referem ao cumprimento de sua
missão, falam em nome de todos. Essa totalidade em algum ponto os une,
sobrepassando conflitos e sofrimentos e enfatizando o sentido de
trabalhador coletivo: “Nas adversidades e frente às dificuldades,
aprendemos que somos todos por um e um por todos”, refere um sargento
que trabalha em uma área de elevado risco social.
159
mais freqüentes entre os policiais militares de ponta resulta do
sentimento generalizado de que, via de regra, eles não são
devidamente compreendidos pelos cidadãos”. Nas suas falas, sempre
existe uma tentativa defensiva de se descolar da imagem negativa
que os persegue historicamente (Holloway, 1997) e que acompanha
a trajetória da corporação:
Nós somos normais que nem vocês. Mas, tendo em vista que a
gente tem uma carteira no bolso, tem uma responsabilidade... então, de
repente, a senhora vai andando ali com a sua bolsa, aí vem um menor
de rua... Não sei se a senhora já foi vítima, mas 80% aqui em
Copacabana já foram vítimas dessa molecada, dos garotos de rua.
Quando a gente presencia um lance desses, tem de atuar, tem de reprimir.
160
repetida por todos os grupos pesquisados é a de que a Polícia é um
espelho da sociedade. A lógica que explica tal concepção é que a
Polícia existe em função da sociedade. No caminho que a sociedade
brasileira trilha, aos trancos e barrancos, em direção a um Estado
democrático de direito, a polícia segue atrás, buscando se adaptar
às novas demandas surgidas.
161
focais, de soldados a oficiais: “Tem de esconder o uniforme debaixo
do banco, botar atrás, entendeu? Tenso, você já vem tenso”.
Não podemos nos esquecer de que, se a ‘truculência como
cultura’ está na raiz da hostilidade que a sociedade brasileira
manifesta para com a Polícia, a violência policial tem uma relação
dialética com o que dela espera a sociedade autoritária e
discriminadora.
162
Isso prejudica suas ações que, geralmente, visam a resguardar
direitos do cidadão. Um oficial pondera: “Você vai prender alguém
que muitas vezes faz bem à comunidade, na visão dos moradores.
Você vai fazer valer a lei e aquela comunidade não vai entender. Você
vai acabar com o tráfico que muitas vezes se faz presente onde o
governo não está”.
Em seu estudo histórico, Holloway (1997) ressalta que, além
de todos os problemas que rondam a Polícia Militar desde sua
origem, persistentemente ela vem lidando com três dilemas
estruturais: as transgressões dentro da própria corporação, a
corrupção e o suborno. Mas a literatura internacional e o cinema,
sobretudo, costumam projetar imagens das instituições policiais
envolvidas com corrupção e truculência em várias partes do mundo.
Weitzer (2002), ao estudar incidentes de má conduta policial e
opinião pública em Los Angeles e Nova York, observa que a
corrupção é uma das principais manchas na imagem dessas
corporações americanas. Um dos comandantes de batalhão
entrevistado resumiu que a corrupção existe em toda a sociedade e
em toda parte. No entanto, na PMERJ, ela se cola como uma
imagem da sociedade, maculando-a.
163
O policial militar é como o Bombril, tem 1.001 utilidades. Porém, os
meios de comunicação e os representantes só divulgam a parte ruim dos
policiais, o que deveria ser mais sigiloso para resguardar o nome da corporação.
Os muitos aspectos positivos deixam de ser divulgados, ficando no anonimato:
aquele policial que atravessou uma velhinha no trânsito, fez um parto, prestou
socorro e outras coisas mais. São raras as vezes em que um policial é
reconhecido. Mas aquele que, contra a vontade, feriu um transeunte ou
matou um marginal da lei em troca de tiros, e que resultou em ferir um
inocente, este sim é o policial que ficará [marcado] na mídia.
Nos últimos dois dias, só a minha unidade apreendeu três fuzis. E para
apreender três fuzis, a gente não encontra isso encostado em qualquer lugar.
Encontra sempre na mão de um delinqüente disposto a matar o policial.
Então é preciso que o policial vá até ele, olhe nos olhos, se confronte e
consiga sobrepujá-lo. São essas coisas que precisam ser destacadas para a
sociedade, que nós estamos vencendo o mal. É preciso deixar sempre claro
que não estamos sucumbindo com o mal. O tráfico está dominando, a
tendência será cada vez pior. Eu acho que essa tendência acaba atendendo
aos próprios interesses da mídia, à medida que talvez venda mais jornais.
Mas tira o grande interesse da sociedade, à medida que as empresas saem do
estado do Rio de Janeiro. Com esse tipo de propaganda, os policiais não são
dignificados, nem destacados à altura. Não são aqueles guerreiros que a
sociedade deveria ter e ver, a partir do reconhecimento e trabalho. Isso feito
por quem? Pela própria mídia.
164
Por que não responde? [Outra idéia é] fazer uma matéria paga, aparecer lá
na televisão. Uma matéria que mostrasse que nesse dia em que esse policial
se comportou mal, nós fizemos tantas prisões, recolhemos tantas armas da
rua, fizemos tantos partos, socorremos não sei quantos doentes.
165
atravessado. Quando eu entro no meu elevador e o vizinho está com o jornal
na mão, ele faz assim [imita as feições de ‘olhar atravessado’], te julga. Isso
às vezes me deixa até um pouco chateado, sabe?
166
infinitas provocações. Por exemplo, de acordo com os próprios policiais
militares, tem sido crescente o número de casos de separação conjugal,
alcoolismo e distúrbios mentais dentro da sua corporação. Muitos deles
identificam a raiz do problema tanto na natureza do seu trabalho como na
capacidade que a mídia teria de fazer a cabeça das pessoas para as coisas
ruins. No depoimento de um grupo focal de praças,
167
Encontrando um ponto de identidade entre as estratégias da mídia e
as das atividades policiais, Ramos e Paiva (2005) assinalam que a idéia de
que a Polícia, sem um processo inteligente de trabalho, “corre atrás do
crime” poderia ser também aplicada aos periódicos que elas pesquisaram:
Embora o setor Saúde não esteja tão presente nas pautas jornalísticas,
Ramos e Paiva (2005) destacam a capacidade que essa área teve de criar
e implementar políticas públicas juntando profissionais, gestores e
movimentos sociais. A autora chama a atenção para a incapacidade dessa
mesma sociedade de se articular em torno de um projeto de segurança
pública.
É vergonhoso como nossa classe [policial militar] vem sendo tratada pelos
governantes. É um absurdo como somos tratados financeiramente, sem apoio
profissional. As condições de trabalho são péssimas. É degradante servir em
uma organização estadual, a qual tem seus funcionários como um trampolim
168
político. (...) Com essas condições, sem ela o que seria do povo carioca, com
um governo mascarado e corrupto?!
169
investigação, na que descrevemos no livro Missão Investigar (Minayo &
Souza, 2003; Gomes, Minayo & Silva, 2003) e também no livro Fala,
Galera (Minayo et al., 1999). Esta última obra é fruto de uma pesquisa
realizada por amostragem com a juventude do Rio de Janeiro no fechamento
do século XX e na entrada do novo milênio. Ressaltamos, nesse estudo, a
ótica pessimista dos policiais a respeito dos jovens e de suas famílias, o que
nos levou à seguinte afirmação:
E se você for querer prender a pessoa por corrupção, chega na hora ela
quer inverter, falando que você é isso ou aquilo. Quer deturpar as coisas,
falando que você que tentou subornar. É inversão de valores. Ao contrário,
na hora [da infração], as pessoas oferecem [dinheiro] para que possam sair
ilesas daquele erro. A realidade é bem clara: a sociedade quer a Polícia para
servi-la, mas, quando essa sociedade se vê numa situação em que vai ser
posta contra a parede, numa situação em que vai ser prejudicada, essa mesma
sociedade qualifica ou classifica o policial como um verme. Eu canso de
ouvir isso, essa linguagem!
170
Em uma conversa, um desses policiais operacionais disse que procurou
a carreira em uma época em que havia segurança para o seu ir-e-vir cotidiano,
mas que hoje é arriscado exibir a identidade de policial. “Você entrava num
ônibus desarmado. Ia para casa fardado e tranqüilo. Tinha colega até que
dormia. Já vi um colega acordar um outro, dizendo: ‘Cara, acorda aí! Você
está dormindo fardado.’ Hoje, olha a situação que a gente vive!”.
Vários deles consideram que os princípios éticos e morais vêm se
modificando sempre para pior. A educação familiar, escolar e social “está
muito frouxa”. “Não há respeito, não se colocam os limites necessários
para a organização da pessoa e do grupo social”, diz um oficial entrevistado,
no que é seguido por depoimentos de colegas em um grupo focal: “Parece
que nós ficamos fora da realidade. Eu me lembro quando era garoto, aos
10, 12 anos de idade. Se eu parasse numa boca-de-fumo, o próprio marginal
mandava seguir. Dava um cascudo e dizia: ‘Vou falar pro teu pai.’ Hoje
não, as coisas estão bem diferentes. O garoto trabalha com ele!”.
Além do consumismo, os policiais consideram que o valor ‘dinheiro’,
que implica ter coisas, domina de forma generalizada. Dizem eles:
Nós podemos falar porque conhecemos a realidade... Vai ter que tirar esses
aqui, que já estão marginalizados, para você agora salvar essas crianças ali,
que estão nascendo, crescendo. Do jeito que está, só matando gente... Matando
171
esses aí, para poder começar tudo de novo, para as outras crianças crescerem
em paz, entendeu? Porque juntas não vai dar, não! Matar as que já estão
perdidas para salvar as que ainda não se perderam. Esse é que é o dilema!
172
A sociedade não é bem instruída, bem educada, tem situações em que o
policial age com coerência, age dentro dos padrões, e nós já temos um rótulo.
Nós organizamos uma corrida de crianças, mandamos ofício para divulgar
um evento que é da PM. Eles [a mídia] não vêem. Na verdade, isso não
vende jornal. Então, tem atitudes que a sociedade toma por falta de
informação. (...) O policial militar é extraído da sociedade que também é
corrupta, que também tem problemas. Brasília tem problemas, mas é o policial
que é isso e aquilo.
173
sentido negativo que costuma ser atribuído ao ato de reprimir. Um dos oficiais
lamentou não haver na Polícia “uma consciência de proteção e prevenção”.
Igualmente, damos ênfase a outros aspectos da identidade pela voz
de oficiais que consideram tarefa sua contribuir para a educação da
sociedade. Um gestor administrativo, refletindo sobre seu papel, disse que
os policiais deveriam ser mais ativos e cumprir uma função pedagógica em
sua atuação. Diz: “É preciso despertar no nosso homem que ele é um
educador”. Portanto, a educação deverá ser reflexiva, a partir de exemplos:
“O policial está no sinal, um motorista avança [o sinal] e ele multa. Mas
por que a sociedade faz isso? Por que as pessoas avançam o sinal? Qual é
o envolvimento coletivo nisso? Qual é a consciência coletiva nisso?”.
Outro gestor operacional também considera importante que o policial
saiba que sua função vai além de ‘vigiar e punir’. Para esclarecer suas idéias,
ele cita um exemplo que diz ser comum no convívio com a população:
Por exemplo, uma mãe que diz: ‘Filho, pára de chorar senão eu vou pedir
ao guarda para prender você.’ Aí o policial que ouve isso deveria dizer:
‘Vem cá, garoto, sua mãe não sabe o que diz. Ela tem alguma distorção em
relação ao papel do policial. Você pode chorar à vontade, fazer manha, pedir
o que você quiser, porque quem tem o papel de te educar é ela, para amanhã
eu não ter de te prender porque você está no caminho errado’. E deveria
virar-se para a mãe e dizer: ‘A senhora é a única responsável pela educação
do seu filho. Não deixe a vida educá-lo, porque, quando a vida educa, não
dá muito certo, não’.
174
As imagens negativas por parte da sociedade constituem um dos
fatores que levam os policiais civis e militares a ocultarem sua identidade
policial. Seus familiares também são alvos de discriminações e ataques, o
que causa transtornos nas interações familiares e comunitárias, como veremos
na última parte deste livro.
Em uma análise mais contextualizada, temos de compreender que a
construção das imagens individuais e da corporação está fortemente associada
a problemas mais profundos de segurança pública. Segundo Ramos e Novo
(2002), tem sido comum a crença de que há um declínio e um
enfraquecimento do poder do Estado para resolver questões sociais, fazendo
com que os atores da segurança pública sejam percebidos mais como
calamitosos do que como resolutivos de problemas. Tal crença, sem dúvida,
contribui para que a imagem desses servidores reflita dimensões mais
negativas do que positivas.
Em síntese, a imagem dos policiais, construída como em um jogo de
espelhos (Gomes, Minayo & Silva, 2003), reflete sentimentos de
desvalorização institucional e de não-reconhecimento social pelo seu trabalho
e, ao mesmo tempo, de serem guardiões da ordem e da boa educação.
Portanto, uma identidade defensiva e também arrogante. A visão negativa
é mais forte entre os policiais operacionais que estão na linha de
enfrentamento da criminalidade.
Não podemos desconsiderar, porém, que entre esses servidores existem
opiniões de que mudanças são possíveis. Tal perspectiva se evidencia com
mais força nos depoimentos dos gestores. Esse é um fato de fundamental
importância porque, seja qual for o tipo de reforma que a corporação deseje
obter para concretizar sua missão – seja da imagem ou de sua estrutura
organizacional –, o papel das lideranças policiais é decisivo. Como bem
lembra Costa (2004: 81), “embora a sociedade civil e a sociedade política
desempenhem papéis importantes, nenhuma reforma policial pode ser
implementada sem o apoio de algumas lideranças policiais”.
175
Parte III
Condições de Saúde
e Risco Profissional
Três expressões são comumente utilizadas quando estudamos os
problemas de saúde de um determinado grupo populacional, como é o caso
dos policiais militares: condições de saúde, situação de saúde e estilo de
vida. Tratados como categorias classificatórias e explicativas do que ocorre
na realidade, esses três termos dizem respeito a uma dinâmica que articula
questões biológicas e sociais, interagindo na produção de uma vida saudável
ou de várias modalidades de adoecimento.
‘Condições de saúde’, mais que um conceito, é uma noção muito forte
da área da saúde pública e da saúde coletiva, usada para definir os elementos
indispensáveis que permitem a uma população ou a um grupo – como é o
caso da corporação policial – ser saudável. Ou seja, está suposto que
determinados fatores ambientais, sociais, políticos e culturais propiciam mais
ou menos oportunidades de desenvolvimento benéfico para o ser humano.
Isso é reconhecido pela nossa Constituição de 1998, em seu artigo 196 do
capítulo “Seguridade Social”: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Logo em seguida, o texto constitucional especifica as ‘condições de
saúde’ como resultantes do acesso ao trabalho em condições dignas, com
amplo conhecimento e controle pelos trabalhadores do processo e do
ambiente de produção; moradia higiênica e digna; educação e informação
plenas; qualidade adequada do ambiente; transporte acessível e seguro;
descanso, lazer e segurança; e possibilidade de participação na organização,
na gestão e no controle dos serviços públicos.
Em síntese, o termo ‘condições de saúde’ traz uma forte carga de
historicidade, uma vez que o padrão de saúde de um povo ou de um grupo
179
corresponde a conquistas obtidas por ele, com meios objetivos e subjetivos.
Berlinguer (1978) denomina “consciência sanitária” ao sentido
transformador das condições de saúde, o que se configura como uma obra
coletiva e dos indivíduos.
Também McKeown e Löwe (1984), estudando a melhoria do padrão
sanitário da população inglesa desde o século XVIII, chamam a atenção para a
força insubstituível das decisões políticas e dos movimentos sociais para que
isso ocorra. E saúde transcende e ultrapassa os limites setoriais, depende
de macro e micropolíticas econômicas, ambientais e sociais e envolve relações
institucionais, interpessoais e subjetivas. Assim, toda vez que estudamos
‘condições de saúde’, estamos nos referindo ao conjunto dos elementos
econômicos, sociais e ambientais no interior do qual nossa vida se desenvolve.
Entre esses elementos, a categoria ‘trabalho’ tem um papel fundamental
como um dos impulsores de realização pessoal, de criação de identidade,
mas também de adoecimento e de sofrimento. Freqüentemente, mesmo
quando amamos o que fazemos, determinados fatores como o grau de risco,
a carga física e emocional ou mesmo o ambiente laboral confluem para
provocar enfermidades ou problemas emocionais. Por essa razão, a terceira
parte deste livro só pode ser compreendida quando vista de forma interativa
com a segunda, que trata das condições de trabalho.
O conceito de ‘situação de saúde’ se refere a como, na prática, as
condições de saúde (sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais)
impactam a vida de determinada população ou indivíduo, no caso os policiais
militares. Quando estudamos a situação de saúde, geralmente tratamos dos
problemas que prenunciam adoecimento e mesmo dos tipos de enfermidades
prevalentes, assim como dos meios para que sejam melhoradas as ‘condições’
que os provocam. Nesta parte, buscaremos mostrar uma síntese da situação
de saúde dos policiais militares, sempre que possível comparando-a com a
dos policiais civis e outras categorias.
Já ‘estilo de vida’ diz respeito a como determinado grupo leva suas
condições existenciais, o que geralmente está diferenciado por classes, por
status social, por profissões, por gênero, por faixas etárias e por outros
elementos, como crenças religiosas. As questões de classe, de profissão e de
gênero são estruturantes.
Como veremos nesta parte, podemos distinguir não só condições,
como problemas de saúde, assim como uma forma peculiar de exercício da
180
profissão, de interação e de cuidados que distinguem os policiais de outras
categorias sociais. Igualmente, dentro da própria corporação policial,
observaremos e daremos realce a subgrupos específicos.
Como o foco deste livro é a questão profissional e como ela influencia
o conjunto da vida, pensar em saúde de policiais militares nos remete às
condições de trabalho, à resistência e ao desgaste físico e mental, assim
como ao risco inerente à profissão. Em diferentes momentos desta análise,
tratamos separadamente de cada um dos assuntos referidos, sempre
sublinhando a natureza interativa e recursiva dos diferentes fatores. Mas
daremos ênfase à saúde física e mental e seu forte vínculo com o risco
profissional compreendido como uma característica constitutiva do trabalho
policial. A interação entre todos os fatores está claramente estabelecida na
fala deste sargento:
181
Profissão de Risco
10
Canção do Bope
183
Destacamos na entrada do capítulo o hino do Bope, porque este é
um grupo cuja missão precípua é o enfrentamento da criminalidade.
Entendemos que essa unidade pode ser vista como o exemplo real e cabal
da visão sobre riscos por parte dos policiais militares em atividade no Rio
de Janeiro. Diz a letra de seu hino: “equipe pronta a combater a criminalidade
a qualquer preço e a qualquer hora”; “vitória sobre a morte”; “heróis
anônimos que enfrentam a realidade através da ousadia”.
Observamos na pesquisa que essa ousadia que apela ao heroísmo
tem seu contraponto nas fraquezas das subjetividades que se expressam nos
problemas de saúde e emocionais e nas cifras de morte que assustam qualquer
cidadão. A urgência de tratar do tema do ‘risco’ e da ‘vitimização dos
policiais’ também se tornou relevante por causa do aumento acelerado da
criminalidade urbana no país e, sobretudo, em capitais como Rio de Janeiro,
onde a taxa de homicídio atinge 54,6 por cem mil habitantes (Minayo &
Deslandes, 2007).
A literatura atual apresenta alguns conhecimentos estratégicos sobre
a profissão de risco dos policiais, fruto de investigação, entre os quais
citamos os de Muniz e Soares (1998), Soares (1996, 2000), Santos
(1997), Bretas (1997a, 1997b), Holloway (1997), Cerqueira (1994,
1996), Donnici (1990), Adorno e Peralva (1997), Kahn (1997), Lima
(1995) e Amador (1999).
Os policiais militares são aqui tratados como categorias que atuam
sob elevado ‘risco’ epidemiológico e social. O risco epidemiológico diz
respeito à probabilidade de ocorrência de lesões, traumas e mortes e oferece
parâmetros aos policiais quanto à magnitude dos perigos e os períodos e
locais de maior incidência de tais eventos. O risco social, correspondendo
ao significado da escolha profissional, traz, intrinsecamente, o gosto pelo
afrontamento e pela ousadia como opção, e não como destino (Bernstein,
1997; Castiel, 1999; Giddens, 2002; Minayo & Souza, 2003; Minayo,
Souza & Constantino, 2007).
Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de ‘risco’
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e
relacionais para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão
permanentemente expostos e seus espíritos não descansam (Gomes et al.,
2005). A vivência dos ‘riscos’ pode ser constatada nas taxas de mortalidade
e de morbidade por agressões de que os policiais são vítimas, dentro e fora
184
da corporação, muito mais elevadas do que as da população em geral.
Acrescentamos o fato de que no interior da própria instituição todos têm
porte de armas, tornando-se alvos potenciais das agressões uns dos outros.
Esta circunstância é referida por eles quando analisam suas relações no
ambiente de trabalho e mencionam que ali “vivem uma paz armada”.
Muniz (1999), em uma síntese esclarecedora, afirma que em boa
parte das profissões consideradas arriscadas as possibilidades de acidente
de trabalho resultam, principalmente, das falhas técnicas e dos azares
ambientais. No caso da Polícia, os riscos derivam, por excelência, das
interações com os cidadãos. Essas interações apresentam uma significativa
margem de imprevisibilidade, consoante ao que já discutimos em relação à
especificidade do setor de serviços (Meirelles, 2006a, 2006b). O fato de
que o perigo nas atividades ostensivas da Polícia resulte de encontros
circunstanciais leva essa categoria a alimentar uma percepção ampliada da
ameaça que pode, por exemplo, se fazer presente em qualquer situação
cotidiana. De acordo com Pieper e Pieper (1999: 179), “o ser humano,
que possui a virtude cardeal da fortaleza, expõe-se ao perigo da morte por
um bem”. ‘Bem’ que é entendido, por essa categoria de trabalhadores,
como a defesa do cidadão e da ordem pública.
Percepção de Risco
Risco como Probabilidade de Sofrer Agressões e Morte
Ser policial já é em si um risco, na percepção desses trabalhadores.
Nesse sentido, poucas são as diferenças entre os círculos hierárquicos e a
variedade de atividades realizadas pelas diferentes unidades operacionais,
especiais e administrativas. Todos se sentem em enfrentamento e em alerta.
A universalidade da percepção do perigo pode ser entendida com base em
vários aspectos: dentro da corporação, a posição de quem hoje está mais
resguardado pode mudar várias vezes durante a carreira; os policiais hoje
lotados em unidades administrativas dão suporte aos batalhões operacionais,
o que aproxima suas experiências; ao falar de suas ações, os policiais se
referem mais à atividade-fim da unidade do que a sua tarefa específica no
processo de trabalho, ensejando a compreensão do trabalhador coletivo como
experiência; nas relações com a população, a distinção entre policial
185
‘operacional’ ou ‘administrativo’ não é percebida, dá-se visibilidade à missão
principal. Muitos foram os casos observados por nós em que o policial
tinha dificuldade de falar especificamente da sua unidade e se reportava à
condição genérica de ‘ser policial’.
Quando consultados sobre o exercício de sua profissão, os policiais
operacionais reportam-se imediatamente a episódios de confronto e violência.
Na Polícia Militar, soldados e cabos se apresentam como o grupo que mais
intensamente vivencia riscos. Como reforça a fala de um gestor operacional,
“Para o soldado, o risco é a rotina”.
Fizemos uma comparação entre as percepções dos policiais militares e
as dos policiais civis (Souza & Minayo, 2005), como vemos na Tabela 3.
Pudemos constatar na pesquisa realizada com a Polícia Civil que tanto a
freqüência quanto a percepção do risco, apesar de estarem presentes em todos
os setores, foram muito mais elevadas entre os que trabalham em atividades
operacionais, o que corresponde ao nível de exposição das suas atividades.
Com a Polícia Militar ocorreu o mesmo.
Tabela 3 – Distribuição dos policiais civis e militares segundo a percepção de risco em sua
atividade policial*
* p<0,000
186
Tabela 4 – Distribuição dos policiais civis e militares segundo a percepção de risco para a
família*
Polícia Militar Polícia Civil
Risco
n. % n. %
187
Heidegger (1998), Spink (2002), Le Breton (1995) e Muniz (1999),
que o afirmam como o próprio sentido e movimento da existência. Quem
não se arrisca está fadado à morte no sentido real e simbólico. Portanto, os
policiais militares falam sobre ou aludem ao apelo à aventura e à ousadia
que a profissão lhes proporciona. Tal conotação surgiu espontaneamente
no discurso dos cabos e soldados, nas unidades operacionais e no batalhão
operacional especial. A adrenalina produzida pelo inusitado, segundo os
policiais, os ‘vicia’ e os motiva para a ação. Muniz (1999: 191), em seu
estudo “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”, já havia chamado a
atenção para a exaltação da jovialidade na Polícia e para os atributos típicos
entre os que têm de afrontar o perigo. “O espírito aventureiro, o dinamismo,
a canalização das energias pelas ações, o encantamento da superioridade
e a disponibilidade para enfrentar os riscos”, típicos da juventude, fazem
parte do ethos do trabalho operacional. Essas disposições constituem
estratégias para minimizar a percepção do risco como perigo nos momentos
de confronto.
Sobretudo, as praças são, em sua grande maioria, bastante jovens
e, ao narrarem alguns episódios de confronto, parecem de fato se transportar
ao universo virtual dos jogos eletrônicos ou de uma brincadeira tão comum
entre as crianças que se imaginam entre polícia e ladrão: “Às vezes, parece
que não sou eu que estou ali, que é tudo um jogo”, diz um desses rapazes.
Poderíamos supor que esta é também uma estratégia defensiva que busca
negar a dureza do cotidiano, ou seja, vivê-la como uma fantasia, uma
irrealidade, talvez para controlar e se defender do próprio medo.
Bittner (2003: 16) discute a virilidade e o potencial de aventura que
o risco sempre inspirou aos policiais jovens:
188
Os estudos que realizamos também com policiais civis confirmam que,
sobretudo entre os operacionais, o medo existe, mas a busca por situações
de perigo para sentir o gosto da adrenalina no corpo ultrapassa isso (Minayo
& Souza, 2003). O gestor operacional já citado compara a motivação do
policial para ir ao encontro do perigo com a atitude dos indivíduos que
procuram os esportes radicais.
Os esportes radicais, bem como o uso de drogas lícitas e ilícitas,
também são movidos pelo binômio ‘prazer e perigo’. Esses tipos de atividades
dão margem à instalação de uma compulsão nos sujeitos, levando-os a
quererem sempre repetir o comportamento arriscado e a experimentarem as
sensações que dele provêm. No entanto, cremos que há outra situação mais
próxima e emblemática com a qual podemos comparar os sentimentos de
aventura e ousadia dos policiais militares que amam o enfrentamento. É o
caso da ação dos traficantes de drogas, quase todos muito jovens, contra os
quais a corporação atua fortemente há mais de 25 anos no Rio de Janeiro.
O risco maior de enfrentamento que hoje ocorre na rotina das atividades
dos policiais militares e civis diz respeito a esses delinqüentes que dominam
o comércio varejista de drogas na cidade, fortemente armados e disputando
territórios com seus rivais. Escondidos em locais densamente povoados,
que são verdadeiras cidadelas de difícil acesso, e armados com arsenais
potentes, muitos com idade que beira a adolescência, esses delinqüentes
também têm espírito de aventura e gostam de afrontar a Polícia, sentindo-se
em posição privilegiada. É importante, pois, estender a mesma reflexão
sobre o duplo sentido de ‘risco’ a esses grupos armados, uma vez que o
perigo e o confronto vividos pelos policiais são sempre contra alguém que
os ameaça ou ameaça a sociedade com muita petulância e afoiteza. A mesma
atitude de afrontamento que encontramos nos policiais também os domina,
tornando suas atividades repetidos espetáculos de ousadia e audácia.
É importante tratar dessa situação endêmica de confronto entre
policiais e traficantes, pois o sentido de risco e de risco de morte domina
hegemonicamente a representação da ação policial no Rio de Janeiro. Essa
representação, como vimos, passou a ter um papel identificante totalizante
quando não deveria, uma vez que as atividades corporativas são muitas e
muito mais diversificadas – como relatamos no primeiro capítulo deste livro
– e deveriam confluir para o exercício da missão constitucional: prevenir e
reprimir os crimes que põem em risco a vida social, protegendo a população.
189
Estudo de Constantino (2006) com policiais civis da cidade de
Campos dos Goytacazes (RJ) mostrou que os policiais do interior identificam
a atividade policial com o exercício do confronto armado. O fato de não
vivenciarem tais ações faz com que se sintam ‘menos policiais’ do que os
agentes da capital. É a idéia hegemônica do confronto como missão, que
oferece ao policial em serviço nas ruas da cidade – sobretudo em áreas
conflagradas – a experiência existencial de ter a vida sempre por um fio.
Como Muniz (1999: 185) enfatiza, o cotidiano nos policiais lhes dá “a
oportunidade de participar intensamente das nossas manifestações mais
cômicas e mais dramáticas. Algumas delas chegam a ser ridículas, banais e
monstruosas, mas todas elas são inegavelmente verdadeiras, sentidas, reais”.
Por causa da visão de confronto colada como uma segunda pele a
sua identidade profissional, a pesquisa de campo mostrou que os policiais
operacionais se vêem e são vistos pela instituição como homens que possuem
‘algo mais’ do que seres humanos normais. “Tem algo neles que os faz ir ao
encontro do perigo”, é a opinião de um gestor, confirmada por vários
soldados em serviços operacionais: “No fundo, no fundo, a gente quer ir
para a rua combater” (soldado operacional) ou, ainda, “enfrentar o risco é
uma questão de instinto”. Um terceiro confirma esta visão: “O comandante
fala que nós, deste batalhão, temos um gene a mais”.
190
pressupondo o banimento do medo, código ao qual todos devem
subordinar-se. (Amador et al., 2002: 98)
Aquele dia, para mim, foi um dos meus piores dias de serviço. Nós fomos a
primeira viatura a chegar ao local. Estavam os dois colegas lá, caídos. Morreram
na hora. Brincaram de dar tiro neles. A gente socorreu o B., mas ele já não
tinha movimento. Acho que já estava aleijado. Foi conversando com a gente
na viatura preocupado com o outro colega... E logo depois morreu.
191
para esses agentes são as cerimônias fúnebres dos colegas, como um deles
nos narrou:
192
E muitos, conforme o batalhão em que atuam e a escalação que recebem,
consideram seu posto de trabalho como uma verdadeira “sentença de morte”.
Sem a licença cultural para se sentirem fragilizados e temerosos perante
as situações de risco, os policiais criam mecanismos de defesa. Um deles é a
negação: “Não podemos pensar que o medo existe, o risco faz parte do nosso
dia-a-dia”. Outra estratégia é a naturalização: “A gente acostuma com essa
realidade”. Uma terceira forma é a lúdica: “As coisas que acontecem na
favela você transforma numa forma de brincadeira, para tentar descontrair.
Depois, no alojamento, você conversa sobre o que aconteceu, mas num tom
de brincadeira. Acaba rindo, mesmo tendo passado um sufoco ali no momento.
O pessoal tenta contornar de uma maneira engraçada”. Um último jeito é o
próprio enfrentamento cara a cara: “É no próprio combate que a gente resolve
o medo”. Um policial operacional assinala ainda duas outras possibilidades
usadas por eles para amenizar o medo, o uso de drogas e a busca de
experiências místicas: “Ou a cachaça ou a religião”.
Em seus estudos sobre a patologia do trabalho, Dejours (1999) fala
das várias estratégias que citamos como comuns entre outras categorias de
trabalhadores também expostos a elevados riscos. O autor refere-se à negação,
ao escárnio do medo, à supervalorização da virilidade e ao consumo de
substâncias como as formas mais comuns de resistência. Em relação ao
enfrentamento, Le Breton (1995) também assinala a atitude que leva o ser
humano em situações de risco a encará-lo, ao invés de fugir ou evitá-lo.
É uma maneira de o indivíduo lutar contra a angústia, atirando-se em sua
direção, colocando-se corpo a corpo como em desafio. Uma vez enfrentado,
o medo se dissipa e, por alguns instantes, a pessoa tem a sensação de tê-lo
dominado.
193
(Senasp, 2005). Tomamos como exemplo o ano de 2003, para o qual
existem dados consolidados e no qual houve registro de 6.707.955
ocorrências criminais no conjunto dos estados brasileiros e de 2.264.829
nas capitais do país. No estado do Rio de Janeiro, foram notificadas 433.988
ocorrências, das quais 228.243 na capital (Souza & Minayo, 2005). Dados
do Instituto de Segurança Pública, publicados no Diário Oficial, revelam
que no ano de 2006 houve 479.622 registros de ocorrências no estado do
Rio de Janeiro, dos quais 64,7% foram na capital. A taxa de ocorrências
para o estado do Rio de Janeiro, em 2006, foi de 3.759,0 por cem mil
habitantes, 1% maior que no ano anterior. Desse total, a taxa de 956,4 por
cem mil foi de crimes contra a pessoa, menor 6,4% que em 2005 (ISP,
2007). Essa é a matéria com a qual os policiais militares trabalham, visando
ao mesmo tempo prevenir e reprimir a violência e a delinqüência.
A violência social que redunda em mortes é um fenômeno complexo
e difícil de ser definido. No imaginário social, ela discrepa entre a sua
ocorrência real e as sensações que gera. Os sentimentos de medo e de
insegurança levam a confundir crimes reais e percepções subjetivas sobre
riscos de vitimização em proporções inversas. Uma dessas discrepâncias
diz respeito à crença sobre o permanente aumento da delinqüência, o que
às vezes é real e outras, não. A sensação de insegurança crescente no Rio
de Janeiro ocorre, certamente, por vários motivos. Primeiramente, está
relacionada à própria dinâmica da criminalidade na capital, onde existe
elevada concentração tanto da população do estado (40,2%) como dos
registros de delitos (52,6%), o que difere de outras capitais e do país. Por
exemplo, em São Paulo, apenas 27,6% da população do estado e 33% das
ocorrências criminais se concentram na capital. No país como um todo,
esses valores se assemelham mais aos de São Paulo: 22,7% da população e
33,8% dos crimes se localizam nas capitais (Souza & Minayo, 2005).
Apresentamos a seguir uma síntese dos fatores associados à vitimização
dos policiais militares de forma comparativa com os da Polícia Civil.
Constatamos, pelos dados da Tabela 5, que as duas corporações mostram
caracterização distinta do perigo vivido, sendo que, para todos os tipos de
risco, os policiais militares apresentam maiores proporções de vítimas.
194
Tabela 5 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares segundo a vitimização
durante o trabalho policial
Evento Civis Militares
195
31,5% entre os oficiais e suboficiais), assim como o elevado número dos
que foram vítimas de tentativas de homicídios entre os que conformam o
círculo das praças. Também é preocupante o número de policiais que
sofreram perfuração por arma de fogo no período de um ano: 7,4% entre
oficiais e suboficiais e 6,5% entre não-oficiais.
* p<0,001 ** p<0,05
196
Os profissionais que trabalham nas ruas estão, além de mais expostos
à violência do confronto, também mais vulneráveis a problemas de saúde
decorrentes de suas atividades, a exemplo da contaminação por substâncias
poluidoras advindas da exposição ao tráfego de carros, como mostra um
estudo realizado em Lima, Peru, por Mormontoy, Gastañaga e Gonzales
(2004). Nessa pesquisa, os autores verificaram maior exposição e
possibilidade de contaminação por chumbo, presente na gasolina, por
policiais que trabalham com o trânsito do que entre aqueles que realizam
trabalhos em escritórios. Esse fator ainda se agrava no caso de policiais
mulheres, pois as contaminações podem vir a afetar uma possível gravidez.
No Gráfico 31, expomos alguns dados sobre mortalidade dos policiais
militares. Embora haja oscilações, ressaltamos uma tendência ao crescimento
de vitimização em proporções muito mais elevadas do que entre população
em geral. Trabalhamos com os óbitos ocorridos em serviço e nas folgas,
pois, no Rio de Janeiro, ambas as situações se complementam, por duas
circunstâncias: freqüentemente, a folga do policial militar não significa
descanso, pois o percentual dos que trabalham em outra atividade – quase
sempre em empresas e em serviços de segurança – é muito elevado.
O outro motivo é que boa parte dos policiais militares são conhecidos nos
bairros ou nas favelas onde moram, mesmo quando escondem as insígnias
corporativas. Muitos costumam ser vítimas de emboscadas por parte dos
delinqüentes a quem perseguem. Os dados de Souza e Minayo (2005)
que trazemos a seguir ajudam a compreender esse quadro.
Dos 4.518 policiais militares mortos e feridos por todas as causas,
de 2000 a 2004, 56,1% foram vitimados durante as folgas contra 43,9%
em serviço. Nesse período, a ação violenta representou 57,2% das causas
de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu nos últimos dois anos,
passando de 53,2%, em 2002, para 63,7% e 67,1%, em 2003 e 2004,
respectivamente.
Do total de 758 policiais militares mortos, 173 (22,8%) estavam
trabalhando na corporação. Quando vitimados em serviço por ação violenta,
essa proporção é maior (26,4%). Os dados evidenciam um crescimento, desde
o ano de 2002, da proporção de óbitos em serviço por ação violenta, passando
de 75% para 88%. O número de policiais que perderam a vida em serviço foi
2,5 vezes maior em 2004 quando comparado ao do ano de 2000.
197
Gráfico 31 – Taxas(*) de vitimização de policiais militares do estado do Rio de Janeiro
25,00
20,00
15,00
10,00
5,00
0,00
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço 7,20 7,90 9,50 7,30 5,40 5,90 5,10 5,50 6,90 8,10 7,30
Folga 8,30 6,90 10,50 8,30 6,40 6,00 7,70 6,60 6,30 8,90 8,80
Total 15,50 14,80 20,00 15,50 11,80 11,90 12,90 12,10 13,20 17,00 16,10
Fonte: Dados de Muniz & Soares (1998) para os anos de 1994 a 1997 e da Assessoria de Imprensa da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro para os demais anos.
(*) Taxas por 1.000 policiais.
Se, por um lado, cresceu a vitimização dos policiais, por outro também
é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número
de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163, em 2003, e
550.262, em 2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa
aumentaram 4,6%, passando de 5.054 para 5.286. Coincidindo com os
locais de homicídio dos policiais, a maioria dos crimes notificados contra a
população civil aconteceu na Zona Norte da cidade.
Os dados de óbitos por ação violenta indicam que morreram 2,8
vezes mais policiais militares em folga em 2004 do que os que se encontravam
em serviço. No entanto, a importância da circunstância ‘ação violenta’ é
maior entre os que cumpriam a missão policial. Ela representa 83,2% das
causas de óbito dos policiais que morreram em serviço, comparada aos
68,5% das causas dos que morreram enquanto estavam de folga.
Dos 3.760 policiais militares feridos em serviço e em folga, 48,1%,
ou seja, 1.809 deles, estavam em serviço. Desses, 1.054 (58,3%) foram
vitimados em ‘ação violenta’, o que representa uma proporção maior do
que a de 50,5% de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto,
a ação violenta tem crescido proporcionalmente como causa de morte,
198
vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004, ela foi
responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento desses
profissionais. Em 2002, esse percentual havia sido de 39% (Souza &
Minayo, 2005).
No período de 2004 a 2006, os soldados representaram 55,3% dos
policiais militares mortalmente vitimados no Rio de Janeiro: os soldados e
cabos, 31,1% do total; os sargentos, 8%; e os oficiais e suboficiais, os 5,6%
restantes. As circunstâncias da vitimização em serviço foram: dinâmica
criminal (54%), trânsito (19%) e dinâmica conflituosa (21%).
Nas folgas, essas proporções foram de mais ou menos 35%, 29% e
17%, respectivamente. A arma de fogo foi o principal meio usado pelos
agressores para matar os policiais militares em serviço (média de 51%) e
em folga (média 55%). Os acidentes de trânsito responderam por 20,4%
das mortes em serviço e 28,1%, em folga. O local das ocorrências
corresponde às vias públicas (72,7%), ao bairro (6,3%), à vizinhança
(4,6%), à residência (3,5%), ao espaço das próprias instituições policiais e
de segurança (2,8%), aos bares e similares (2,1%) e às instituições
comerciais e financeiras (3,3%).
A seguir, apresentamos os principais fatores de risco relacionados à
morte dos policiais militares (Tabela 6), de forma comparativa com aqueles
relacionados à morte dos policiais civis (Tabela 7). Fizemos esse refinamento
estatístico porque cremos ser importante para os gestores conhecerem os
elementos do contexto laboral desses servidores, que poderiam ser mais
bem gerenciados visando à preservação da sua vida e da sua saúde.
Procuramos comparar as duas corporações, pois em alguns casos os
problemas desencadeadores se sobrepõem.
Para os policiais militares, ressaltamos que os principais fatores de
risco para violência são (Tabela 6): tempo de serviço – policiais com menos
tempo de serviço (até dez anos) têm 2,4 mais riscos no trabalho policial do
que os mais antigos; deficiências auditivas e nevralgias – policiais com
deficiências auditivas correm três vezes mais perigo; nevralgias, 4,1 vezes
mais, indicando sofrimento físico associado a sofrimento mental pela vivência
de situações de violência; condições de trabalho – exercer outra atividade
laboral além do desempenho profissional militar, sem intervalo de descanso,
também se mostrou associado ao vivenciamento de mais riscos.
199
Tabela 6 – Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais militares
Tempo de ser viço De 11 a 20 anos 1,54 0,72 3,31 1,73 0,78 3,86
Saúde
Sim 3,29 1,85 5,87 2,98 1,61 5,52
Deficiência auditiva
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Condições de trabalh o
Condições de trabalh o
Exerce o trabalh o para Não 2,65 (1,59 4,40) 2,29 (1,29 4,04)
o q ual foi treinado
Sim 1,00 - 1,000 -
201
Um terceiro ponto diz respeito às diferenças de percepção de risco e
de vivência de risco por parte dos oficiais. As situações perigosas vividas
por eles são mais ocasionais, pois acontecem em momentos especiais em
que são chamados para atividades de confronto – ou, como dizem, de
“combate” – e precisam “tomar decisões arrojadas”. Como a ordenação
corporativa é hierárquica, a eles cabe deliberar. E quando há um mau ou
equivocado planejamento, as chefias colocam em risco não apenas a si
mesmas como a todos os seus subordinados. Um gestor fala emocionado
da quantidade de vidas que já ‘perdeu’ em confronto. E encara essas situações
fatais como um fracasso ou como uma perda pessoal.
“É o bem (a Polícia) contra o mal (os bandidos)”, diz esse gestor,
ele mesmo classificando de “maniqueístas” as freqüentes decisões que
toma e reconhecendo que esse é o absurdo do exercício de sua autoridade.
No entanto, argumenta que é pela via dessa “ideologia maniqueísta” que
o confronto é possível, pois o enfrentamento só se justifica sob a ótica de
um ideal. Caso contrário, diz: “Se você pensar bem, o confronto é um ato
de loucura”.
Um quarto aspecto a ressaltar é a exposição ao risco que todos sofrem
fora do ambiente de trabalho. Quando saem dos quartéis, onde bem ou mal
existe uma proteção e uma salvaguarda institucional, oficiais e não-oficiais
vivem os mesmos perigos sem o suporte corporativo. Isso acontece no trajeto
para casa, nas folgas e no lazer. Estudos realizados por Souza e Minayo
(2005) revelam que, fora do ambiente de trabalho, os policiais são vítimas
de fortes sentimentos de rejeição da população à categoria e da maior
proximidade com delinqüentes que aproveitam para ir à forra. Nessas
situações, o uniforme e os distintivos são dispositivos que facilitam a
vitimização. Como estratégia para lidar com o sentimento de insegurança,
a condição policial acaba por exigir “um estilo de vida” diferenciado.
O policial se sente “vigiado tanto no batalhão quanto fora dele”. E essa
situação pauta a vida desses servidores que, ao mesmo tempo, se sentem
marcados pela identidade corporativa e precisam encontrar estratégias para
ocultá-la como medida de proteção: “Como se isso fosse possível...”. Vários
deles mencionam que carregam em si a “marca da Polícia”: “Está no jeito”,
“Está no olhar”, “A gente reconhece logo quem é policial”.
Do ponto de vista da cultura brasileira, desde os tempos do Império
– quando foi criado – até os dias de hoje, o serviço de segurança pública no
202
Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população, por motivos diversos:
os cidadãos das classes médias e abastadas, que esperariam mais rigor e
vigilância dos pobres ‘criminógenos’, em função da ordem burguesa,
reclamam da insegurança e da ineficiência policial; a população pobre e
moradora dos bairros periféricos sente-se discriminada e maltratada pelos
agentes da lei; e os delinqüentes os tratam como ‘inimigos número um’,
buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo controlá-los e confrontá-los,
escudados exatamente na ‘má fama’ que os acompanha.
A opinião pública negativa faz parte do ônus da atividade policial, e
nossos estudos mostram, acrescentando-se a outros como o de Amador
(1999), um elevado grau de sofrimento no trabalho pela falta de
reconhecimento social. O conceito negativo emitido sobre eles pelas várias
camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e naturaliza a
violência que os vitimiza, muito mais do que a qualquer outro trabalhador
ou cidadão durante a jornada de trabalho ou, como acabamos de mencionar,
nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as ocorrências de
lesões e traumas de que são vítimas.
Fica patente que, comparativamente com a Polícia Civil, a Polícia
Militar sofre mais riscos, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade
elevadíssimas. Esse privilégio negativo pode ser constatado quando tomamos,
por exemplo, dados para o ano 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por
homicídio na população geral foi de 26,7 por cem mil habitantes. Já essa
taxa na população masculina (geralmente a mais vitimizada) foi de 49,7.
Na capital do Rio de Janeiro, as taxas foram mais elevadas que a média do
país tanto para a população geral (49,5 por cem mil) como para a população
masculina (97,6 por cem mil). Na Polícia Militar, em 2004, a taxa de
mortalidade por agressões chegou a 292 por cem mil! Portanto,
comparativamente, a Polícia Militar apresenta uma mortalidade por violência
3,3 vezes maior do que a da população masculina da cidade do Rio de
Janeiro e 6,5 vezes do que a da população geral da cidade. Comparadas
com as do Brasil, as taxas são 5,8 vezes as da população masculina e 10,8
vezes as da população geral (Souza & Minayo, 2005).
Contraditoriamente, os cabos e soldados, os mais vitimizados e
vulneráveis a todos os riscos, são também os que mais fortemente introjetam
a identidade policial. A realidade profissional transmutada em símbolo pode
mesmo dispensar os signos e se efetivar nas atitudes do corpo e da alma,
203
uma vez que, sem ela, esses trabalhadores nem saberiam mais viver.
Inversamente, é essa força da marca entranhada que acaba contribuindo
ainda mais para o sentimento de insegurança e a percepção de risco
permanente. A simbiose da natureza do trabalho com a própria existência
e razão de vida pode ser exemplificada no slogan de um dos batalhões
pesquisados: “O espelho reflete você e você reflete o batalhão”.
Assim, em resumo, a condição policial nivela os cargos e a natureza
da atividade no que tange ao risco, pois todos percebem que “estão no
mesmo barco”, como disse o chefe de um batalhão. A experiência corporativa
de estresse intenso e de perigo sempre ronda o corpo e a alma. E, sobretudo,
os sargentos e soldados mencionam o fortalecimento da união das equipes
de trabalho: “Um precisa proteger o outro”, “É o medo de morrer que
aproxima”, como um efeito-necessidade das situações e condições de risco.
204
Condições de Saúde Física
11
dos Policiais Militares
Todo o nosso trabalho vai afetar a nossa saúde. É a quantidade
de horas excessivas de trabalho, as condições em que nós vamos
executar esse trabalho. Mas acho que aqueles probleminhas
neurológicos que a gente tem não são visíveis. E a gente desenvolve
problemas além dos psicológicos. A grande maioria tem hipertensão.
Eu nunca tive hipertensão na vida e, agora, passei a ter esse problema.
Reflexões de um grupo focal com soldados
205
Os gestores relatam alguns problemas físicos que afetam a saúde dos
policiais gerados por danos relacionados à atividade diária de ‘combate ao
narcotráfico’: ferimentos por projéteis de arma de fogo, fraturas que
necessitam de cirurgias, dores musculares e doenças como a conjuntivite ou
a sarna, que adquirem no contato muito próximo com a população.
As praças queixam-se de diversas situações ligadas ao atendimento
médico, às doenças propriamente ditas e ainda sublinham dificuldades
associadas aos processos de consecução de licenças médicas. Relacionam
diretamente a sua condição de saúde ao processo de trabalho: horas de
sono perdidas, estresse diário, permanente risco de vida, má alimentação e
intensidade do trabalho são os itens mais freqüentemente mencionados.
O ‘bico’, que ocupa as horas destinadas ao descanso, também foi apontado
como um fator prejudicial à saúde nos grupos focais dos quais participaram
soldados, cabos e sargentos:
206
Avaliação das Condições Físicas:
peso, dieta e atividades
Para avaliar as condições físicas desses servidores, aferimos seu índice
de massa corporal (IMC)7 calculado com base no peso e na altura referidos
por eles. Os oficiais e os suboficiais de maior nível hierárquico predominam
no grupo de obesos (23,4%), quando comparados aos não-oficiais com
menor qualificação profissional (15,6%). Os obesos somados aos que têm
sobrepeso (48,3% e 47,1%, respectivamente) ressaltam um percentual
elevado de servidores acima do peso ideal na corporação. Essas informações
podem ser conferidas no Gráfico 32.
Os dados de sobrepeso dos policiais militares são superiores aos da
população brasileira, medidos na Pesquisa de Orçamentos Familiares do
IBGE em parceria com o Ministério da Saúde (2003), segundo a qual
40,6% da população adulta brasileira está com excesso de massa corporal.
1,7%
Abaixo do peso
2,2%
27,8%
Normal
33,9%
47,1%
Sobrepeso
48,3%
23,4%
Obeso
15,6%
*p=0,000
7
IMC = peso dividido pela estatura elevada ao quadrado. De acordo com o resultado,
são estabelecidas quatro categorias: baixo peso (<20 kg/m2), normal (20-24 kg/m2),
sobrepeso: (25-29 kg/m2) e obesidade (>=30 kg/m2).
207
Embora os obesos estejam distribuídos entre policiais dos setores
administrativos e operacionais, 24% destes últimos (representados por
oficiais, suboficiais e sargentos) estão acima do peso, ressaltando um
percentual mais elevado que os 21,8% do mesmo grupo do setor
administrativo, 16,9% de cabos e soldados administrativos e 15,4% dos
operacionais.
O IMC dos policiais militares é superior ao encontrado entre os
civis, dos quais 17,5% apresentam-se obesos e 41,7% têm sobrepeso.
A obesidade constitui relevante fator de risco que se associa à morte por
hipertensão e ao aumento do colesterol e do açúcar sangüíneo. O excesso
de peso decorre de vários fatores, entre os quais a alimentação hipercalórica
e hiperlipídica.
A ingestão de gordura foi processada como uma variável contínua,
atribuindo-se a cada alimento uma pontuação que variou de zero (não-
ingestão de alimentos gordurosos e elevada ingestão de alimentos saudáveis
– verduras, frutas e legumes) a três (elevado consumo de alimentos
gordurosos e não-ingestão de alimentos saudáveis). Depois, foi construído
um indicador categórico de alimentação, considerando-se baixo consumo
de gordura (somatório <=15 pontos), médio consumo (>15 a <=20
pontos) e alto consumo (>20 pontos).
Policiais militares, especialmente os cabos e soldados (Gráfico 33),
informam consumo semanal elevado de doces, alimentos gordurosos,
industrializados e com alto teor de sal, tais como carnes salgadas (bacalhau,
charque, carne-seca, carne-de-sol, paio, toucinho, costela etc.), produtos
industrializados (enlatados, conservas, sucos engarrafados, sucos
desidratados, sopas desidratadas, produtos em vidros etc.), embutidos
(lingüiça, salsicha, fiambre, presunto, mortadela, etc.); frituras; manteiga;
carne de porco (pernil, carrê, costeleta, entre outros), de carneiro ou de
cabra e de vaca; refrigerantes não dietéticos; balas, doces, geléias, bombons
ou chocolate; açúcar, mel ou melaço usados como adoçantes no café, chá,
suco etc.; ovos (crus, cozidos, fritos, poché, entre outros). Associada à
alimentação não balanceada, os entrevistados informaram reduzidíssima
ingestão de verduras, legumes e frutas.
Os oficiais, suboficiais e sargentos têm consumo um pouco mais
balanceado, com menos gorduras, doces e produtos industrializados e
maior ingestão de legumes e verduras. Por sua vez, os cabos e soldados,
208
administrativos e operacionais, predominam entre os que têm alto consumo
de substâncias ricas em gorduras e açúcares, o que certamente se deve,
entre outros motivos, ao baixo poder aquisitivo para desfrutar de uma
ingesta adequada.
28,0%
Baixo
20,5%
33,8%
Médio
32,9%
38,1%
Alto
46,6%
* p<0,000
209
Gráfico 34 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a prática de atividades
físicas*
25,9%
Três vezes por mês a
poucas vezes por ano 25,3%
* p<0,001
210
Atividade física não tem. A gente desempenha cada um a sua função
dentro do serviço que faz. (...) Agora, na atual administração, no novo
comando que veio pra cá, tem uma atividade meio pequena dentro do quartel,
com opção para dois dias. (...) Nós, que trabalhamos internamente, temos
aquele horário integral das oito às quatro, às terças e quintas-feiras. É um
período que daria para fazer uma educação física.
* p<=0,001 ** p<0,05
212
Diversos outros problemas de saúde foram avaliados na pesquisa,
mas não estão apresentados neste livro por terem sido mencionados por
menos de 10% dos policiais. Merece atenção o fato de que muitas doenças
foram relatadas pelos oficiais, suboficiais e sargentos em proporções maiores
do que as relatadas por cabos e soldados. Um exemplo é o diabetes,
informado por 8% dos primeiros e 2% dos últimos. Talvez haja nessa
diferença a influência da idade como fator preponderante, o que revelaria a
tendência de acumulação de agravos com o passar dos anos. O estudo de
Gershon, Lin e Xianbin (2002) avança na discussão das especificidades
dos agravos à saúde dos policiais ressaltando a importância do estresse
cumulativo de cunho laboral. Por meio de uma pesquisa com policiais
americanos acima de 50 anos, esses autores mostram efeitos associados que
se manifestam em comportamentos de inadequação, como alcoolismo,
jogatina, comportamento agressivo, maior exposição a acidentes, ansiedade,
insônia, hipervigilância, sintomas de estresse pós-traumático, episódios de
explosão emocional e dores crônicas. Tudo isso converge para o
envelhecimento precoce.
Os policiais civis, comparados aos militares, relatam mais dores no
pescoço, nas costas ou na coluna, problemas de visão, reumatológicos e
intestinais.
Lesões e Incapacitações
As condições de risco que os policiais vivenciam se manifestam na
freqüência e nos tipos de lesões físicas permanentes que apresentam. No
total, 21,3% dos oficiais e 12,7% dos não-oficiais (p. 000) atualmente têm
pelo menos um tipo de lesão física permanente (independentemente de
estarem inseridos no setor administrativo ou operacional). As mais comuns
são as deformidades de membros inferiores e superiores. Todas as lesões
referidas predominam entre os oficiais e suboficiais, com exceção da
amputação de dedos ou membros, presente igualmente nos dois grupos,
independentemente da hierarquia profissional, conforme demonstrado no
Gráfico 36.
213
Gráfico 36 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a presença de
lesões permanentes
Deformidade permanente ou rigidez 10,3%
constante de pé, perna ou coluna* 6,4%
9,3%
Outra incapacidade* 2,8%
Deformidade permanente ou rigidez 6,6%
constante de dedo, mão ou braço(2) 4,9%
3,0%
Incapacidade para reter fezes ou urina*
1,2%
2,5%
Paralisia permanente de qualquer tipo*
1,5%
1,8%
Dedo ou membro amputado
1,5%
1,3%
Seio, rim ou pulmão retirado** 1,0%
* p<=0,001 ** p<0,05
214
Quando comparamos a Polícia Militar com a Civil em relação a
todas as lesões apresentadas na Tabela 8, verificamos que proporcionalmente
há mais pessoas com lesões permanentes entre os primeiros.
Tentamos saber se as lesões permanentes tinham a ver com o trabalho
policial. Constatamos que existe essa associação para 17,7% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e para 9,7% dos soldados e cabos (p=000). Também
observamos que 21,2% dos primeiros e 16,9% dos segundos relataram
incapacidades temporárias decorrentes da atividade laboral. Tanto no setor
administrativo quanto no operacional, há predominância dos oficiais.
Comparados aos policiais civis, os policiais militares sofrem muito mais
lesões e traumas, conforme já demonstramos no capítulo sobre ‘riscos
percebidos e riscos vividos’
215
Prazer, Estresse e Sofrimento Mental
12
Todo policial sofre de fadiga, estresse,
e não tem nenhum tipo de acompanhamento.
Se ficarmos doentes, os médicos do Hospital da Polícia
nos tratam como um qualquer e falam que não têm
autonomia para nos dispensar.
Fica tudo a cargo do oficial de dia do batalhão,
que não é médico. É ele quem decide se vamos ou não
para casa. Se ele achar que não, ficamos jogados
no batalhão sem qualquer tipo de conforto,
alojamento ou local de repouso.
Precisamos muito de qualquer tipo de ajuda.
Depoimento de um soldado
217
terminologia. Mas também fazemos uso, para análise e compreensão da
situação, de estudos de fundamentação freudiana, como o de Brant e Minayo-
Gomez (2005), segundo os quais o termo ‘sofrimento’ se relaciona com o
perigo e apresenta várias outras manifestações. É o caso da ‘ansiedade’,
que descreve um estado particular de espera ou preparação para uma
situação arriscada, ainda que desconhecida; do ‘temor’, que exige um objeto
definido do qual tenhamos receio; e do ‘susto’, que ocorre quando a pessoa
se depara com um perigo sem estar preparada para enfrentá-lo. Esses autores
entendem que o sofrimento se configura como uma reação, uma manifestação
da insistência em viver sob circunstâncias que, na maioria das vezes, não
são favoráveis. A vida, nesse sentido, é árdua e proporciona sofrimentos
diversos, decepções e tarefas quase impossíveis.
A reflexão de Brant e Minayo-Gomez contribui para entendermos a
situação dos policiais, pois suas falas e expressões revelam um conjunto de
situações e reações contraditórias que relataremos a seguir. Os autores ressaltam:
218
definida, muitos indivíduos – inclusive os que estão em situação de guerra –
desenvolvem uma forma de ‘alerta permanente’ que, ao mesmo tempo, provoca
fadiga e é proteção diante do perigo.
Já o estresse ocupacional pode ser definido como um processo em
que o indivíduo percebe demandas do trabalho como estressoras, as quais,
ao excederem sua habilidade de enfrentamento, provocam-lhe reações
negativas. Segundo Paschoal e Tamayo (2004) apud Jex (1998), as
definições de estresse ocupacional dividem-se pela ênfase que conferem a
três aspectos: aos estímulos estressores, ou seja, aos estímulos do ambiente
de trabalho que exigem respostas adaptativas e excedem a habilidade de
enfrentamento por parte dos trabalhadores (coping)8 – estes estímulos são
comumente chamados de estressores organizacionais; às respostas aos eventos
estressores, ou seja, às reações psicológicas, fisiológicas e comportamentais
dos indivíduos expostos a fatores que excedam sua habilidade de
enfrentamento; aos estímulos estressores-respostas, quer dizer, à compreensão
do processo geral e das situações de trabalho em que as demandas têm
impacto sobre os trabalhadores. Essa classificação de Jex (1998) visa a
mostrar que existem, sim, estressores vinculados à organização e aos
contextos, como veremos neste estudo. No entanto, para que o estresse
produza sofrimento e adoecimento, é necessário que a pessoa perceba e
avalie os eventos como estressores. Isso significa que fatores cognitivos têm
um papel central no processo que ocorre entre os estímulos e as respostas do
indivíduo. A ocorrência de um evento potencialmente estressor em uma
organização não quer dizer que ele será percebido da mesma forma por
todos os seus membros, conforme veremos aqui.
Nas teorias que concebem o estresse como categoria mediadora entre
o trabalho e a saúde, há uma grande preocupação com a doença
cardiovascular, por um lado, e, por outro, com o esgotamento e o burnout,9
8
Coping é um termo utilizado para descrever o conjunto de estratégias utilizadas pelas
pessoas para se adequarem às circunstâncias adversas e estressantes.
9
Burnout é o nome dado a uma síndrome desenvolvida por trabalhadores por causa do
estresse no trabalho. Atinge, sobretudo, os do setor de serviços. Seus sintomas são: exaustão
emocional, diminuição do sentimento de realização pessoal e despersonalização. Os
trabalhadores com burnout vivem sob o sentimento de fadiga profunda, redução dos recursos
emocionais para fazer face às dificuldades, percepção de deterioração da autocompetência,
ceticismo, insensibilidade e despreocupação com as pessoas (Borges et al., 2002).
219
sendo ambos manifestações diretamente vinculadas ao fenômeno. Entre os
diversos modelos teóricos que assumem esta linha interpretativa, o de Jones
e Fletcher (1996) centra-se no par ‘demandas versus possibilidade de
tomada de decisão’, segundo o qual situações de trabalho em que existam
grandes demandas e estreita margem para o trabalhador atuar e decidir
podem levá-lo ao esgotamento. Ao contrário, alto nível de demanda
combinado com ampla possibilidade de decisão e atuação induzem os
funcionários a menores taxas de esgotamento.
Muitos autores vêm propondo definições mais abrangentes de estresse
laboral. Para Beehr (1998), por exemplo, esse tipo de fenômeno é tão
complexo que não deveria ser tratado como uma variável, mas como uma
área de estudo e prática que se preocupasse com diversas variáveis
interligadas, tais como estímulos do ambiente de trabalho e respostas não
saudáveis de pessoas expostas a eles.
Glowinkowski e Cooper (1987) falam de um conjunto de estressores
que se referem à repetição de tarefas, a pressões de tempo e à sobrecarga.
A sobrecarga de trabalho tem recebido considerável atenção dos
pesquisadores. Esse estressor pode ser quantitativo e qualitativo. A sobrecarga
quantitativa diz respeito ao número excessivo de tarefas além da
disponibilidade do trabalhador. A sobrecarga qualitativa refere-se à
dificuldade do trabalho e ocorre quando as demandas superam as
habilidades e aptidões de quem deve realizá-lo.
Outra categoria de estressores diz respeito ao relacionamento
interpessoal no trabalho entre colegas de mesmo nível hierárquico, superiores,
subordinados e usuários ou clientes. Quando as interações resultam em
conflitos não resolvidos, costumam gerar estresse (Glowinkowski & Cooper,
1987; Jex, 1998). Glowinkowski e Cooper (1987) destacam ainda aspectos
relacionados à falta de estabilidade no trabalho, ao medo de obsolescência
diante das mudanças tecnológicas e às poucas perspectivas de promoções e
crescimento na carreira.
Conforme já foi ressaltado, um indivíduo pode reagir aos estressores
organizacionais de forma diferente de outros e existe uma diversidade de
respostas psicológicas, fisiológicas e comportamentais negativas e positivas.
Geralmente, as reações associadas a estressores são de natureza emocional.
Cooper e Cartwright (2001) comentam que, no futuro, o estudo do estresse
no trabalho poderá ser substituído pelo estudo das emoções no trabalho.
220
Muitas respostas psicológicas enfocadas nas investigações sobre estresse
ocupacional realçam o papel negativo da insatisfação, da ansiedade e da
depressão (Paschoal & Tamayo, 2004; Tamayo et al., 2002). Sobretudo, a
falta de possibilidade de expressar o sofrimento (Brant & Minayo-Gomez,
2005) acaba entrando em sinergia com várias formas de adoecimento. Problemas
gastrintestinais, disfunções cardíacas, insônia e irritação, por exemplo, têm sido
assinalados como conseqüências de estressores organizacionais ou estão
vinculados a respostas pessoais a condições adversas de trabalho, como informam
Jones e Kinman (2001) e Kahn e Byosiere (1992).
No caso do estresse laboral nos policiais, mesmo considerando as
diferenciações das experiências dessa categoria nos âmbitos nacionais e
internacionais, podemos observar algumas questões comuns apresentadas
por pesquisas. Por exemplo, um dos aspectos assinalados por Brooks e
Piquero (1998) diz respeito à relação entre tamanho e estilo dos
departamentos policiais e o estresse vivido pelos seus componentes. Esses
autores chamam a atenção, também, para outros fatores correlacionados,
como é o caso do estado civil – os casados apresentam-se mais estressados
do que os solteiros –, etnia e gênero. Em suas conclusões, Brooks e Piquero
(1998) afirmam que o estresse surge, sobretudo, na metade da carreira do
policial, e os dados de nossa pesquisa confirmam essa observação. No caso
dos policiais militares do Rio de Janeiro, de fato o tamanho dos
departamentos não desempenha importante papel na compreensão do seu
estresse, pelo menos este não foi um problema citado pelos agentes.
Em nossas análises, compreendemos que o estresse do profissional
policial tem relação, sobretudo, com a organização hierárquica que faz
pesar muito sobre as chefias decisões categóricas e tira dos subordinados a
possibilidade de criar e decidir. Mas tem relação também com condições
objetivas e subjetivas insatisfatórias de realização do trabalho, com
sentimentos de falta de reconhecimento social e, obviamente, com a
personalidade de cada policial que vive diferentemente as experiências de
prazer e de ansiedade.
Ressaltamos, ainda, que o estresse não expressa somente um efeito
da prática policial. Pode ser considerado, contraditoriamente, um elemento
protetor, uma vez que desencadeia, rapidamente, uma ação reativa e,
portanto, benfazeja. Neste caso, muitos autores utilizam o termo ‘estresse’
para se referirem ao estresse bom, positivo e criativo.
221
Estresse e Estado de Alerta Permanente
Oficiais e praças apresentam fatores desencadeantes diferenciados
de estresse: enquanto o estresse pós-traumático aparece de maneira recorrente
na fala dos policiais da tropa (cabos e soldados), os oficiais comentam
sobre um estresse continuado e persistente, decorrente da cobrança da
Secretaria de Segurança, da mídia e das atividades de planejamento das
ações. Relatam que têm uma sensação constante de que nunca alcançam o
que se espera deles, sugerindo, da parte de muitos, uma espécie de burnout.
A pressão interna e externa que, principalmente, os policiais dos batalhões
especiais sofrem, também foi mencionada como fator que afeta sua saúde
tanto física quanto mental. Assim se pronuncia um oficial do Bope:
O policial não pode ter erro. Pelo adestramento que o Bope recebe, com
certeza não podemos ter falhas. E estamos sujeitos a falhas. Existem problemas
como em qualquer outra instituição, existem dificuldades, deficiências. Mas
são pessoas que, mesmo com essas faltas, fazem o que devem fazer. Todas estão
comprometidas com a missão. E o policial sente isso: ‘Só me cobram, só me
exigem!’ É um regime rígido, somos regidos por um estatuto, por uma disciplina.
Isso, na cabeça da pessoa, é complicado. Pode levar à depressão, irritabilidade,
hipertensão, gastrite, cefaléia... E não tem Neosaldina que dê jeito.
222
A psicologia hoje denomina a essa descrita paranóia como um ‘estado
de alerta permanente’, como já definimos. Esse estado dificulta o descanso,
mas se diferencia do chamado estresse pós-traumático, que tem
sintomatologia mais severa.
Para avaliar as condições de saúde mental dos policiais militares,
utilizamos uma escala que afere ‘sofrimento psíquico’ ou os chamados
‘transtornos psiquiátricos menores’. Em um limiar entre a saúde e a doença,
o sofrimento psíquico caracteriza-se fundamentalmente por um mal-estar
inespecífico, com repercussões fisiológicas e psicológicas que podem acarretar
limitações severas no dia-a-dia, podendo transformar-se em doença pela
sua intensidade e cronicidade (Mari & Williams, 1986). As expressões de
sofrimento se apresentam em sintomas psicossomáticos, depressivos e de
ansiedade que podem ser visualizados no Gráfico 37.
* p<0,001 ** p<0,05
223
É muito relevante que 35,7% dos policiais militares, sem diferenciação
segundo a posição hierárquica, informem vivenciar sofrimento psíquico.
Comparativamente, muito mais membros desse grupo corporativo apresentam
sofrimento psíquico em relação aos 25,8% de policiais civis (p=000).
A análise isolada das questões mostra algumas diferenças pontuais
entre oficiais e não-oficiais. Para ambos os grupos estudados, dormir mal e
sentir-se tenso e agitado são as principais sensações. Para os oficiais, acresce
um sentimento de tristeza permanente, cansaço e dor de cabeça.
O sentimento de tristeza associado à sensação de cansaço e de sono ruim
também aparecem como sintomas de sofrimento psíquico relatado pelos
não-oficiais.
No grupo administrativo, não há distinção nos níveis de sofrimento
psíquico em função da hierarquia profissional (24,9%). Todavia, entre os
operacionais, a distinção é marcante: 40,4% dos oficiais, suboficiais e
sargentos informam sofrimento psíquico, contra 37,3% dos cabos e soldados
(p=000), revelando o que enfatizamos anteriormente como um efeito
cumulativo que reúne sensações de pressão permanente por parte do governo,
da Secretaria de Segurança e das chefias e sentimentos de não-
reconhecimento por parte da sociedade.
Todos os policiais, inclusive os civis, assinalaram que o estresse é
responsável por doenças subjetivas, não visíveis aos olhos do médico, tais
como enxaquecas, dores de estômago e nervosismo, e que, por serem
subjetivas, não são levadas em consideração pelas chefias. Um gestor
operacional considera como um elemento que influi negativamente na saúde
dos policiais a própria desvalorização do seu sofrimento psíquico, o que
ocorre freqüentemente por parte das chefias. Os oficiais consideram que,
no caso dos escalões inferiores, as queixas têm “o intuito de conseguir
dispensa do serviço”, o que nos foi dito por um gestor operacional.
Como já constatamos, o sofrimento físico e o mental não se apresentam
de forma separada. São ambos resultantes do conjunto de situações
vivenciadas no cotidiano do trabalho. Rodrigues (2000), em estudo de
demanda realizado no Hospital Central da Polícia, mostra que 23% das
queixas que levam os profissionais a buscarem ajuda são cefaléia e mal-
estar geral, o que provavelmente tem forte associação com a somatização de
problemas vivenciados no cotidiano: 10,2% são as cefaléias relacionadas à
hipertensão; 15%, problemas dermatológicos; 24%, problemas ortopédicos;
224
11%, doenças gastrintestinais; e 10,2%, dor precordial, ansiedade, tensão
e nervosismo. Fora as lesões e os traumas ortopédicos que estão diretamente
ligados à atividade laboral (uso de botas e equipamentos pesados, posições
cansativas por longas horas), como entorses, fraturas e lombalgias, os outros
tipos de sintomas se associam ao mal-estar provocado pela tensão, à quebra
de resistência do sistema imunológico e à sensação permanente de cansaço.
Podemos identificar como facilitadores do sofrimento mental: as
condições e a organização ocupacionais, entre elas a falta de treinamento e
planejamento das atividades; a jornada excessiva de trabalho; o reduzido
tempo para o descanso e lazer; e as precárias condições materiais e técnicas
para o desenvolvimento das atividades. A tudo isso somam-se os baixos
salários e as condições de trabalho inadequadas, já citadas na segunda
parte do trabalho. Em alguns relatos das praças, esses profissionais atribuem
o estresse ao soldo insuficiente. De fato, os depoimentos dos sargentos,
soldados e subtenentes nos revelam o quão estão imbricados condições de
trabalho, saúde e salário. Um soldado assim se exprime:
Se você ganha mal, não pode se alimentar bem. Você utiliza o seu horário de
lazer trabalhando em outra função. Se ganha mal, sofre de estresse porque é
muita conta para pagar. Chega em casa e briga com a mulher. Não pode dar
um ensino bom para o filho. Ganhando pouco, compromete tudo.
Por exemplo, chega um informe: vão assaltar o morro, vão invadir o quartel.
Eu já fico preocupado, a pressão já sobe mais, está entendendo? Adrenalina,
tensão... Saio daqui, no dia seguinte, arrebentado. Na hora do descanso, deito
ali sobressaltado. Daqui a pouco já levanto, porque eu tenho de tomar remédio.
E os dias vão passando... Quando chega o final do mês, o salário vem desse
tamanhinho. Aí tem de pagar os compromissos. Falta alguma coisa e a fila vai
andando... O condomínio vai aumentando, as mercadorias vão aumentando...
Quando vê, já está no vermelho. Se você quiser ser uma pessoa decente,
honesta, ter um comportamento correto e viver para a família, precisa superar
diversos fatores.
225
No contexto da formação da identidade, acrescentamos a baixa
auto-estima relacionada às cobranças por causa da falta de qualidade do
serviço prestado à população. Os agravos emocionais freqüentemente
geram sintomas de depressão, desejo de suicídio e, menos freqüentemente,
síndrome de pânico.
O estresse que resulta em problemas físico-emocionais é também uma
fonte de excitação para a realização do trabalho. Sobretudo, isso ocorre
com os mais jovens e com menos tempo na corporação. Eles gostam do
enfrentamento de risco, segundo depoimentos de alguns gestores, e por isso
têm visão distinta sobre estresse no trabalho. Esse estado de espírito é também
lembrado por um dos gestores entrevistados como necessário para as
atividades de confronto: “Nós precisamos estar preparados para reagir, e só
reage quem estiver estressado”. Ele se refere à prontidão, à tensão e ao
sentimento de alerta que o policial experimenta quando está em missões
operacionais.
Vale lembrar que nem mesmo os que sentem subir a adrenalina nas
situações de risco ficam imunes aos efeitos negativos do estresse no organismo.
Na pesquisa denominada “Mapeamento da vitimização de policiais no Rio
de Janeiro”, as pesquisadoras constataram que “tanto em serviço quanto em
folga, a maioria dos policiais vitimados (94,4%) integrava as patentes mais
baixas, que compõem o círculo das praças” (Muniz & Soares, 1998: 81).
Assim, as narrativas dão conta de que, mesmo quando alguns se
sentem excitados com os confrontos e com muita ‘adrenalina’ para atuar,
uma boa parte das praças vivencia um forte estresse proveniente do trabalho.
Seu sofrimento mental mistura medo, incapacidade de prover as necessidades
básicas familiares por causa dos baixos salários e, em conseqüência,
dificuldade para vivenciar a marca identitária do ‘ethos masculino’ em uma
profissão que, contraditoriamente, apela o tempo todo para o ideal do homem
como provedor e para a contenção das emoções. Assim, o trabalho que tem
eficácia simbólica em garantir as atribuições sociais constitutivas da
identidade masculina é também o que provoca doenças e determina uma
série de limitações morais e físicas, colocando em jogo atributos que
definiriam o homem como trabalhador. Conforme Nardi (1998: 182),
“o conflito que se instala na constituição do ethos masculino que vincula
trabalho a outros atributos e funções morais, tais como ser bom pai, bom
226
marido, provedor do lar, forte, honesto, entre outras características”,
é culturalmente marcante.
Diferentemente dos entusiasmados com o risco, existem policiais que
apresentam doenças de fundo emocional, como hipertensão e diabetes,
desenvolvidas no trato com o público e no enfrentamento com a
criminalidade. Estes, ao contrário, no exercício das atividades mais
arriscadas, aumentam em si os efeitos dos chamados sintomas subjetivos e
das somatizações que se expressam, sobretudo, em forma de enxaquecas,
dores de estômago e desânimo. A relação entre o estresse provocado pelo
medo na vida cotidiana dos policiais – que já não têm tanto entusiasmo
com as situações de enfrentamento – pode ser exemplificada com o caso
que nos contou um policial. Ele faltou a um dia de serviço e, de volta a seu
batalhão, foi punido com uma detenção de seis dias: “Tudo bem... Eu
faltei naquele dia porque tive um feeling de que ia morrer. Pelo menos não
morri. Fui preso, mas não morri”.
Seja em uma área de risco por causa da presença de delinqüentes
armados ou, simplesmente, em zonas em que os problemas sociais
permanentemente eclodem, demandando a atenção do policial, sua jornada
de trabalho é considerada estafante. Eis o depoimento de uma praça:
227
pungente de problemas vividos quando trabalhava em um grupamento em
que vários policiais foram feridos e mortos.
Enterrei 13. Um tenente meu levou um tiro na favela do Muquiço e ficou três
semanas desacordado. Quando acordou, não podia falar. Eu fui visitá-lo, porque
eu visitava meus doentes, e ele escreveu uma mensagem para o coronel. E eu me
controlando. Não podia chorar, pois ali eu estou como comandante, mas eu sou
ser humano. Veja só, um garoto com vinte e poucos anos e eu o mandando para
a morte! E eu me controlando. Quando saí da casa dele, desabei [a chorar] na
escada, ninguém estava me vendo. Comandante chora sozinho!
Quando o policial sai de noite, não tem mais condução e vai se arriscando
a assalto, a ser reconhecido. (...) Não fica tranqüilo nem na folga, só dentro de
228
casa. (...) Para sair, principalmente com a família, precisa pensar aonde pode
ir. Se chegar no lugar errado, na hora errada, e for reconhecido como policial
estando junto da família... Então, tem de ser algo muito estudado.
229
Tabela 9 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares, segundo os sintomas de
sofrimento psíquico que ocorrem atualmente (continuação)
Sintomas de sofrimento psíq uico Civil Militar
Tem má digestão* 23,6% 26,2%
Assusta-se com facilidade*** 16,2% 25,6%
Tem sensações desagradáveis no estômago* 20,8% 23,4%
Tem perdido o interesse pelas coisas*** 18,4% 22,7%
Sente dificuldade em pensar com clareza*** 16,3% 22,4%
Sente dificuldade no ser viço (o trab alh o é penoso e causa sofrimento)*** 8,4% 20,4%
Sente dificuldade para tomar decisões*** 15,2% 19,4%
Tem tremores nas mãos*** 9,1% 16,6%
Tem ch orado mais q ue de costume 12,8% 13,6%
Sente-se incapaz de desempenh ar um papel útil na vida 33,2% 25,8%
Sente-se uma pessoa inútil, sem préstimo*** 5,7% 9,0%
Tem tido idéia de acab ar com a própria vida* 3,3% 5,0%
230
fizemos sobre consumo de substâncias tóxicas estão subestimadas. Com
certeza, esses profissionais sentiam-se sob restrições morais, sociais e
institucionais quando responderam aos questionários, na medida em que
tratavam de um tema proibido ou até, em alguns casos, de uma ilegalidade
que a corporação deve combater – e não admitir. Consideramos que entre
os policiais militares a subnotificação foi maior do que na Polícia Civil
(Minayo & Souza, 2003). Havia medo de que as respostas pudessem
comprometê-los pessoalmente, já que a hierarquia é rígida. Muitos
suspeitavam de que seus superiores pudessem ter acesso aos questionários,
o que, obviamente, não ocorreu.
Começamos a perguntar pelo uso de cigarros. Sabemos que o consumo
de tabaco está relacionado a vários agravos à saúde, entre eles as doenças
pulmonares e cardiovasculares. Especialmente, esse hábito se associa ao
infarto agudo do miocárdio e ao câncer de pulmão. No entanto, existe um
ardil no uso de cigarro, porque a nicotina nele presente atua no sistema
nervoso central provocando leve sensação de relaxamento, bem-estar e, ao
mesmo tempo, exigindo doses maiores para a satisfação pessoal.
A prevalência do uso do cigarro na corporação é de 19,1%, 68,6%
nunca fumaram, e a proporção dos que não fumam entre os cabos e soldados
é de 78,5%. Ou seja, a distribuição interna do consumo de tabaco é
diferenciada. Cerca de 25,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos fumam,
contra 16,5% dos cabos e soldados. A situação de maior risco vinculado ao
consumo de tabaco é relatada pelos oficiais operacionais: 28,4% são
fumantes regulares ou eventuais. Oficiais, suboficiais e sargentos
administrativos (15,5%) e cabos e soldados (22,4%) dos dois setores
apresentam menor prevalência de consumo de cigarros.
Esses dados são, no entanto, inferiores à média do país, onde 32,5%
da população acima de 15 anos fumam, sendo o uso mais intenso,
atualmente, entre a população mais pobre. Uma proporção maior de
oficiais, suboficiais e sargentos (17,2%) também afirma ter parado de
fumar. Com certeza correspondendo ao que está acontecendo na sociedade
brasileira, o consumo de tabaco caiu significativamente entre os jovens.
Desta forma, os riscos provenientes da nicotina estão mais presentes entre
os policiais graduados.
Os resultados dessas informações estão resumidos no Gráfico 38.
231
Gráfico 38 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o consumo de tabaco*
57,3%
Nunca fumou
78,5%
17,2%
Parou de fumar
5,0%
Fumo 25,4%
regular/eventual 16,5%
Oficial / Suboficial / Sargentos
Cabos / Soldados
* p=0,000
* p<0,000
232
Gráfico 39 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a freqüência de uso de
bebida alcoólica*
48,6%
Diário/semanal
44,3%
23,8%
Ocasional/raramente
29,3%
* p=0,000
233
individuais, além de estar associado a brigas, desavenças entre companheiros
e superiores, assim como a acidentes de trânsito e violências intrafamiliares
(Souza & Minayo, 2005).
As informações fornecidas pelos policiais sobre a utilização de outras
substâncias tóxicas no último ano podem ser encontradas no Gráfico 40.
O consumo de tranqüilizantes para acalmar a ansiedade é a principal forma
de ingestão de droga entre os dois grupos, com destaque para os oficiais,
suboficiais e sargentos (13,9%, contra 8,5% dos cabos e soldados).
Os oficiais também consomem mais sedativos e barbitúricos, maconha, cocaína
e substâncias para sentir ‘barato’, como lança-perfume, cola, gasolina, entre
outras. Não-oficiais informam, em maiores proporções, utilização de remédios
para emagrecer e para ficar acordado. E usam substâncias anabolizantes
para aumentar a musculatura ou para lhes dar mais força física.
* p=0,000
235
Gráfico 41 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as dificuldades
vivenciadas após beber ou usar outras substâncias
Deixou de usar 21,9%
preservativo 18,6%
15,9%
Problema com a família*
13,2%
Problema de 11,8%
agressividade 11,9%
11,1%
Problema de saúde*
7,7%
7,1%
Faltou ao trabalho*
4,2%
6,1%
Problema no trabalho
5,7%
* p<0,001
236
dos administrativos declararam já ter agido de forma descontrolada após o
uso de substâncias tóxicas. A ingestão de bebida alcoólica ou de outras
drogas para aliviar o estresse do trabalho policial foi relatada principalmente
por oficiais, suboficiais e sargentos, em uma proporção de 23,6%, e menos
por soldados e cabos (18,9% – p= 000).
Quando distinguidos por setor de atividade, oficiais, suboficiais e
sargentos do setor operacional apresentam consumo maior de substâncias
tóxicas para alívio do estresse (26,2%) do que os não-oficiais desse setor
(18,8%). No grupo administrativo, a proporção é de 18,1%. Esses dados
corroboram o maior comprometimento de saúde dos oficiais, suboficiais e
sargentos do setor operacional.
Examinamos as estratégias que os policiais estariam buscando para
interromper o uso de álcool ou outras substâncias. Uma boa proporção
deles diz que está fazendo esforço para isso por conta própria, embora
considere muito difícil se controlar, tendo em vista o contexto de seu trabalho
e de sua vida. Em todos os escalões, as estratégias são similares. Entre os
que tentam parar de usar drogas, a maior parte sinaliza a falta de suporte
institucional para isso. Com baixa freqüência, os policiais buscam entidades
que mantêm o anonimato, como os grupos de ajuda mútua Alcoólicos
Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), procuram auxílio em
religiões e seitas ou recorrem a profissionais da saúde. No entanto, um
percentual significativo de cabos e soldados assinalou que precisou buscar
hospital de emergência para se desintoxicar. As informações sobre esse
esforço se encontram registradas no Gráfico 42.
As estratégias de interrupção do uso de substâncias mostram-se um
pouco distintas segundo o setor a que os policiais pertencem. A tentativa de
parar de consumir por conta própria e pela busca de ajuda em religiões ou
seitas é maior entre os administrativos e entre os oficiais, suboficiais e sargentos.
Apoio de grupos de ajuda mútua e de profissionais da saúde são as
opções mais utilizadas por oficiais, suboficiais e sargentos dos dois setores.
Já cabos e soldados adictos, possivelmente por ingerirem grande quantidade
de substâncias mais tóxicas quando se drogam, dizem que recorrem a
hospitais de emergência. A iniciativa de busca de apoio diferenciado sugere
uma situação de maior cronicidade entre os oficiais.
237
Gráfico 42 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo estratégias usadas
para interromper o consumo de substâncias
30,4%
Por conta própria
29,9%
7,9%
Com a ajuda de religião ou seita
8,0%
* p=0,000
238
No entanto, concordamos que vários fatores promovem o sofrimento
no trabalho dos policiais militares. De modo geral, o sofrimento físico e
mental é resultante do conjunto de situações vivenciadas no cotidiano de
atividades que têm intenso reflexo na vida social. Em primeiro lugar,
ressaltamos que há uma defasagem entre o que é oficialmente determinado
para sua função e o que a sociedade e a própria organização exigem deles.
A lacuna entre o prescrito e o extra-oficialmente exigido é um fator ou uma
fonte de estresse e de sentimentos conflituosos.
Em segundo lugar, também damos relevância ao fato de que não são
apenas os fatores intrínsecos ao trabalho que prejudicam esses profissionais.
Existe uma associação entre eles, a formação, a ideologia e a maneira de as
forças policiais se posicionarem na sociedade. Guimarães, Torres e Faria
(2005) consideraram importante pesquisar, por exemplo, a aceitação de
valores cívicos por parte dos policiais para analisar o alcance de sua atuação
e seus problemas. Realizaram estudo sobre as ações extrajudiciais e a adesão
ou não de policiais militares aos valores democráticos. Os autores destacam
que a violência e as manifestações de agressividade policial não são
fenômenos isolados ou apenas corporativos. Originam-se de diversos fatores
socialmente contextualizados: cultura de autoritarismo, falhas na formação
e, inclusive, idiossincrasias pessoais.
Em terceiro lugar, chamamos a atenção para o fato de que a mesma
sociedade que, por um lado, pede que o ‘combate ao crime’ seja realizado
duramente, por outro lado constantemente faz severas críticas sobre a atuação
da Polícia. Esse conflito de exigências e outros estressores que fazem parte
do dia-a-dia do policial contribuem para sua maior vulnerabilidade ao
sofrimento psíquico.
Em quarto lugar, a disciplina e a dura hierarquia dentro da corporação
são fontes também de estresse, pois às praças cabe cumprir as ordens que vêm
de seus superiores sem questioná-las, mesmo quando estão envolvidas em
atividades de alto risco. Por sua vez, os oficiais têm de determinar ordens que
seriam muito mais efetivas e afetivamente eficazes se pudessem ser discutidas
por quem está na ponta, realizando ações. As teorias de organização laboral
mais modernas ressaltam isso (Minayo, 2004). O trabalho do policial militar
configura, sem dúvida, um espaço de dominação e submissão do trabalhador,
mediante a hierarquia militar, embora o conflito e as brechas de resistência e
de expressão de subjetividade continuem sempre existindo.
239
Quando observamos a literatura internacional sobre a saúde física e
mental dos policiais, encontramos muitas semelhanças em relação tanto ao
sofrimento quanto à profunda associação entre trabalho, vida social, saúde e
problemas de ordem física e psíquica. Estudos de Harpold e Feemster (2002)
sobre a Polícia americana constataram que, do ponto de vista psicológico, os
policiais sob estresse negativo perdem energia ou interesse em vários aspectos
da vida, inclusive o sexual. Cerca de 1% deles chega a pensar em suicídio.
Do ponto de vista comportamental, os policiais referem problemas de bebida
e de fumo, maior susceptibilidade a provocar lesões e abuso físico de esposas,
filhos e companheiros de trabalho. Os autores da pesquisa revelam que,
embora apenas um pequeno percentual apresentasse os problemas citados,
em geral os policiais sofrem 30% mais doenças do coração; cometem três
vezes mais violência contra as esposas; são cinco vezes mais adictos ao álcool;
apresentam cinco vezes mais somatizações; sofrem seis vezes mais de ansiedade
e dez vezes mais de depressão do que a população em geral.
Fortalecendo a nossa hipótese de que existe uma sinergia entre
enfermidades físicas e estresse negativo, um artigo de Cheenan e Van Hasselt
(2003) mostra a confluência de vários fatores que provocam estresse
cumulativo, contribuindo para que os policiais – mais do que a população
comum – sejam acometidos de múltiplos agravos, tais como elevadas taxas
de problemas gastrintestinais, pressão arterial alta, doenças coronárias,
alcoolismo, uso abusivo de drogas, exposição a acidentes, desordem pós-
traumática e muitos outros sintomas transitórios, como pensamentos
intrusivos, dificuldades para dormir, alteração do padrão alimentar e
mudanças nas respostas emocionais. Alguns temas são ressaltados por essa
literatura, como tendência dos policiais a cometerem violência intrafamiliar,
a terem pesadelos e pensamentos intrusivos, a apresentarem hipervigilância
ou estado de alerta permanente e a terem dificuldades para dormir.
Um estudo retrospectivo de mortalidade relacionada ao trabalho de
2.376 policiais americanos empregados em uma região no período de 1950
a 1979, realizado por Vena e colaboradores (1986), revelou elevadas taxas
de suicídio, se comparadas com as de outros empregados municipais (razão
de dois para nove), e elevado risco de neoplasias combinadas (câncer
digestivo e de tecidos linfáticos), arteriosclerose e doenças do coração.
Pesquisa de Paiva e Saraiva (2005) também assinala como relevantes:
excessivo descontrole emocional, doenças físicas associadas a estresse
240
ocupacional, alcoolismo, prática de violência doméstica, taxas mais elevadas
de divórcio do que as da população em geral, baixa expectativa de vida e
suicídio. Embora seja necessário assinalar que os autores relativizam seus
dados, dizendo que são ainda escassas as fontes para comparação, esse
parece ser o primeiro estudo que recorre a um instrumento focalizado em
uma escala que mede saúde mental ótima.
Tanto os achados da investigação sobre policiais do Rio de Janeiro
como os estudos americanos citados (Harpold & Feemster, 2002; Vena et al.,
1986; Cheehan & Van Hasselt, 2003) confirmam ainda que os eventos
mais estressantes para os policiais são acompanhar funeral de companheiros,
realizar prisões com violência, conhecer as vítimas de delinqüentes, ouvir
notícias contra eles na mídia, ter chefes com quem não se dão bem, colocar
o trabalho acima de tudo e ter pouco tempo para si e para a família.
Segundo Dejours (1997, 1999), um fator indispensável para que o
sofrimento no trabalho ganhe sentido e se transforme em prazer é o
reconhecimento. Para esse autor (1999: 3), “esta é condição indispensável
no processo de mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade
promovida pelo trabalho”. Quando a organização do trabalho impede a
experiência e a autonomia do indivíduo, ou quando não há reconhecimento,
ganha espaço o sofrimento patogênico. Anderson, Litzemberg e Plecas
(2002) consideram, com base em seus estudos, que, além de outras
manifestações, os policiais sofrem de estresse antecipado quando saem para
o trabalho. No limite, é o estresse daquele policial, citado por nós, que
deixa de ir ao trabalho porque intuiu que, se fosse, seria atacado e morto.
Brown e Grover (1998) ainda assinalaram o quanto são perniciosos
para a subjetividade dos policiais os treinamentos que implicam controlar
as emoções, projetar força e autoridade, lidar com incursões em locais de
moradia de risco sem demonstrar emoções e colocar as exigências funcionais
na frente das necessidades pessoais. Segundo esses autores, pesquisas vêm
sugerindo que a inibição e a repressão de emoções podem levar à exacerbação
de sintomas psicopatológicos em seguida à exposição a incidentes estressores.
Ao contrário, uma diminuição de tais sintomas tem sido associada à
disponibilidade de suportes sociais.
Evidenciar os problemas de saúde física e mental dos policiais permite
fornecer subsídios para o estabelecimento de prioridades relacionadas à
promoção da saúde, mecanismos de prevenção de agravos e parâmetros
241
para a melhoria da qualidade de sua vida. O controle das situações de
risco, visando à criação de ambientes de trabalho saudáveis, envolve a
caracterização da exposição e quantificação das condições de
vulnerabilidade, a discussão e a definição das alternativas de eliminação
ou controle dos motivos de adoecimento devidos ao trabalho e a
implementação e avaliação das medidas adotadas, segundo o Ministério
da Saúde (Brasil, 2005). Para um processo de promoção e prevenção, a
participação ativa dos profissionais é crucial.
A primeira coisa a ser observada é que nem todos os policiais
submetidos a estresse se tornam cronicamente estressados. Para um grupo
considerável, o estresse ajuda a superar os obstáculos e dá sentido à profissão
e à vida. É por isso que 75% dos policiais civis e 71% dos policiais militares
do Rio de Janeiro disseram que, se tivessem de recomeçar, escolheriam a
mesma profissão, embora, em ambos os casos, os servidores ressaltem um
‘porém’: caso pudessem usufruir de melhores condições de trabalho.
Vários autores como Kelley (2005) assinalam a necessidade de que,
no trabalho com esses servidores, seja buscada uma forma de manejo do
estresse que leve em conta suas estratégias de resiliência. Ressaltam que
atributos pessoais, bom nível de conhecimento dos riscos reais, estratégias
para o fortalecimento emocional e de suporte social podem modificar sua
exposição individual a fatores estressantes. Sublinham que é muito
importante a participação desses trabalhadores nos processos de prevenção
de agravos e promoção de sua saúde. Pois, como reconhecem, a despeito de
toda a sofisticação técnica, apenas os trabalhadores são capazes de informar
sutis diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho real que ajudam a
explicar o adoecimento. São essas brechas que devem ser modificadas para
que se obtenham resultados desejados.
A atividade profissional precisa ser encarada nos dois sentidos: um
lado positivo e libertador, e outro negativo, que provoca muito sofrimento
físico e emocional. A maioria considera seu trabalho como fonte de prazer
e de satisfação – como dizem os oficiais, “os policiais gostam de sentir esse
medo”. Embora sofra pela falta de reconhecimento social, “a verdade é
que o policial ama a Polícia e ama a corporação. É apaixonado pela Polícia
Militar, mas a Polícia Militar não gosta dele. Tanto não gosta que os nossos
governantes não o valorizam”. Possivelmente é esse ânimo elevado em relação
242
à missão e à vida profissional o que mantém forte o sentido corporativo e o
prazer no trabalho, acima de todos os riscos.
No caso do sofrimento psíquico, muitos instrumentos têm sido
propostos, embora poucos sejam realmente utilizados para aliviar as tensões
desse grupo de trabalhadores. Um deles é a estratégia de inventariar e
discutir, de forma medida por profissionais competentes, eventos de exposição
cumulativa nas várias ações operacionais estressantes, tais como o ato de
prender agressores violentos, ouvir o testemunho de vítimas de estupro, entre
outros. Outra perspectiva é a mediação também realizada por profissionais
especializados, em relação a atitudes negativas e expressões emocionais
agressivas decorrentes de eventos estressantes.
Para vários estudiosos, está evidente que o suporte de profissionais e
o suporte social são os fatores que mais proporcionam possibilidades de
superação e de melhor enfrentamento das situações. É o caso de Brown e
Grove (1998) e de Kelley (2005), cujos estudos confirmam a importância
dessas estratégias como aporte à superação de eventos traumáticos. Os
suportes social e emocional, quando oferecidos por superiores, supervisores,
colegas de trabalho, familiares ou mesmo por pessoas de fora do trabalho,
são cruciais, ressaltam também Iwata e Suzuki (1997).
Quanto às habilidades pessoais que influenciam o estresse
ocupacional, o estilo de enfrentamento (estilo de coping) do trabalhador
diante dos eventos estressores consiste na principal variável, constituindo
consenso de muitos estudos. Outras variáveis, como um padrão de
comportamento proativo e de auto-estima elevada, são também vistas como
capazes de influenciar o processo de superação do estresse (Jex & Elacqua,
1999; Paschoal & Tamayo, 2004).
243
Serviços de Atenção à Saúde
13
245
produz um atendimento desigual. Por exemplo, oficiais, suboficiais e
sargentos têm mais acesso a tratamento dentário e é elevado o percentual de
profissionais que está há mais de três anos sem atendimento: 36,5% entre
os cabos e soldados e 29,4% entre os oficiais, suboficiais e sargentos, como
pode ser visualizado nos dados do Gráfico 43, que sintetiza os depoimentos
desses profissionais.
43,8%
Menos de 1 ano
29,8%
26,8%
1-3 anos
33,7%
29,4%
Mais de 3 anos
36,5%
* p=0,000
31,2%
Menos de 1 ano
20,7%
33,5%
1-3 anos
30,1%
35,4%
Mais de 3 anos
49,2%
* p=0,000
Atendimentos de Emergência e
Internações Hospitalares
Também buscamos saber os dados do atendimento emergencial nos
hospitais da Polícia. Mais cabos e soldados (49,1%) do que oficiais,
suboficiais e sargentos (41,4%) – embora os dados sejam muito elevados
para os dois ciclos da hierarquia – já recorreram a atendimento em
emergências médicas (p=000). Os profissionais de posição mais baixa na
hierarquia predominam também na busca de atendimento público ou
privado. Todavia, a maior procura se dá no Hospital Central da Polícia
Militar, cujas proporções de atendimento são: 41,7% dos cabos e soldados
247
não-oficiais e 34,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos, conforme pode ser
visualizado no Gráfico 45.
34,6%
Hospital da PM*
41,7%
14,2%
Hospital público*
18,5%
9,3%
Hospital privado*
10,9%
* p<0,001
248
Apesar de muito importante, o oficial responsável diz que hoje a
atividade está desvirtuada porque a Polícia Militar estava gastando muito
com a remoção de feridos internados em outros hospitais para o Hospital
Central. Por causa disso, decidiu acionar o GPAO para esse serviço, com
as suas seis ambulâncias: três com Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e
três simples. Essa remoção vinha sendo efetuada por veículos de empresas
particulares. Os policiais baleados, quando atendidos fora do hospital militar,
são removidos para lá em um prazo de 24 horas, porque os médicos de
instituições militares estão acostumados a tratar desses agravos com bons
resultados. “O paciente que a gente pega, até pelo tipo de armamento de
hoje, se não morreu na hora e conseguiu chegar ao hospital, tem uma chance
de sobrevida boa”, diz o gestor de saúde.
Além das atividades citadas, o GPAO acompanha as operações
chamadas de ‘grande vulto’. O desvirtuamento referido pelo oficial se deve
ao fato de o GPAO ter sido criado para dar apoio às operações armadas
em área de elevado risco: “O policial aqui é de tropa, tem essa facilidade.
Vai na ambulância mas vai de fuzil. É policial e é da área da saúde. Se ele
vir um assalto, por exemplo, pára e prende, de branco mesmo”, diz o gestor
da GPAO.
O profissional responsável pelo GPAO considera que na Polícia
Militar há problemas de articulação sistêmica entre os serviços. Comenta
que, em determinadas situações, não há como enviar um grupo de saúde
para apoio porque, com freqüência, o batalhão sobe um determinado morro
sem planejamento, sem colete e sem suprimento balístico, acrescentando:
“Enfim, sobe [o morro] por puro heroísmo”. Esse mesmo entrevistado
compara a situação com a das Forças Armadas, que não efetuam uma
instrução de risco sem uma equipe médica de apoio.
O gestor do GPAO afirma ainda que na Polícia Militar, hoje, não
há uma consciência de prevenção ou de proteção para os seus profissionais,
na medida em que não lhes é oferecida infra-estrutura básica para lidar
com as situações de perigo. A estratégia atual está voltada para chegar ao
ferido sem ser ferido. Esse servidor sugere a criação de ambulâncias
blindadas, pois há lugares em que não há meios de ter acesso, a não ser
pelo heroísmo. Mas, diz esse gestor, “o policial não tem de ser herói, e sim
profissional. A corporação preocupa-se com a vida do policial porque tem
conseqüência pecuniária para o Estado”. Mas ele explica que essa
249
preocupação é cheia de contradições. E exemplifica: ao enviar um grupo
do GPAO para uma determinada operação, deixa o centro cirúrgico
reservado e monta uma estrutura para receber o policial ferido. Entretanto,
este é pego de surpresa e colocado “de qualquer maneira numa viatura”,
levado para o hospital mais próximo que, na maioria das vezes, não tem
recursos para atendê-lo.
Mesmo tomando uma atitude crítica, o gestor do GPAO relata que
houve diminuição de policiais baleados por causa da implantação de
estratégias de prevenção. Os policiais dos batalhões passam por cursos e
palestras sobre técnicas de prevenção. Cita o exemplo do bom preparo dos
policias do Bope, que são feridos em proporções menores do que todos os
outros colegas: “Há dois, três anos, morria-se todo dia”.
A procura por serviços emergenciais é similar entre as corporações,
mas os policiais civis utilizam o atendimento do SUS e da rede privada de
saúde em maiores proporções, diante da precária assistência médica oferecida
por essa corporação, conforme pode ser visto na Tabela 11.
* p<0,000
8,6%
Hospital da PM*
10,5%
1,8%
Hospital público*
3,2%
3,0%
Hospital privado
2,9%
* p<0,001
252
Gráfico 48 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as técnicas terapêuticas
usadas nos últimos 12 meses
18,5%
Fisioterapia**
12,0%
6,0%
Homeopatia*
5,0%
5,4%
Psicoterapia*
2,8%
3,5%
Esclerose de varizes*
2,9%
2,3%
Acupuntura**
1,5%
* p<=0,001 ** p<0,05
253
Observando as diferenças existentes entre os setores, constatamos que
a agilidade do atendimento tem favorecido os profissionais da área
administrativa. Desse grupo, 91,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e
86,8% dos cabos e soldados tiveram acesso à consulta em até trinta dias
após solicitá-la (p<0.001). No setor operacional, a despeito de a maioria
dos profissionais ser atendida no primeiro mês de marcação da consulta, é
referido um atendimento mais ágil pelos cabos e soldados (84,8%), em
contraposição a 78,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos.
254
Gráfico 49 – Distribuição proporcional dos militares policiais segundo o grau de satisfação
com os serviços da PM
24,9%
Satisfeito
16,9%
45,8%
Insatifeito
55,9%
* p=0,000
255
ser levado ao chefe do Estado-Maior para a análise, e as decisões dependem
dele. No entanto, o comentário desse oficial é positivo:
O policial militar gosta e sente confiança de ser atendido pelo médico militar.
As pesquisas efetuadas dentro da corporação mostram que os policiais estão
satisfeitos com o atendimento médico, mas reclamam da hotelaria do hospital,
que não é das melhores mesmo. O sistema de saúde é muito procurado por
quem não pertence a ele. Os pais podem ser atendidos. Para outros familiares,
o sistema de saúde é mais ou menos flexível.
256
ia trabalhar com mais satisfação sabendo que a família está coberta. Se ele
passar mal na rua, vai ter um atendimento bom. É questão de vontade política.
257
É importante observar que, na corporação, a atividade médica é
submetida à hierarquia militar. Um policial do círculo das praças nos afirma
que, nos casos em que o profissional recorre à consulta com um médico
externo à instituição, o parecer desse médico precisa ser validado por um
médico da Polícia Militar. Ainda assim, “muitas vezes essa dispensa não é
respeitada. O médico da Polícia tem de colocar ‘convém repouso de tantos
dias’. Ou seja, tudo fica na apreciação do comandante”. Esse policial insiste:
“O médico não dá um parecer direto, ele mantém o ‘convém’ para deixar a
decisão nas mãos do seu superior”. Outro policial acrescenta: “Ele não
tem autoridade para te dispensar”.
Ou seja, o atendimento médico acaba servindo também como uma
forma de controle do trabalho e as queixas dos policiais passam a ser
sancionadas pelo arbítrio da autoridade hierárquica. Em todos os casos, o
policial pode procurar o serviço de saúde, público ou particular, mas
necessariamente terá de passar por um médico militar caso precise de perícia
para obter uma eventual licença médica ou liberação do trabalho. Dessa
forma, as autoridades hierárquicas acompanham o policial militar desde
que entra na emergência, passa por internação, por prescrição de
medicamentos e, em caso de licença, pela perícia. Acompanham-no durante
todo o processo até a alta.
Igualmente, o atendimento à saúde, segundo o grupo das praças, segue
a mesma lógica hierárquica dos batalhões, tendo os oficiais o privilégio na
marcação das consultas e dos atendimentos. Por causa disso, ao contrário da
população em geral, eles têm menos críticas ao atendimento prestado pelo
SUS. Segundo depoimento de um soldado, nas unidades do SUS, pelo fato
de ser um policial, ele acaba recebendo um atendimento diferenciado. Já
no Hospital Central da Polícia Militar, o fato de ser soldado faz dele o
“último das prioridades”.
Buscamos saber sobre o apoio psicológico dentro da corporação aos
servidores em estado de sofrimento mental e aos que sofrem de transtornos
pós-traumáticos. Fomos informados de que, no momento em que o policial
militar apresenta problemas emocionais, um psiquiatra avalia sua
necessidade de internação. Em caso afirmativo, essa pessoa é orientada a
procurar clínicas credenciadas no Rio de Janeiro. Entretanto, a própria
Polícia Militar tem uma estrutura de controle e de auditoria dos
atendimentos: visitas semanais e conversas com os médicos, visando, segundo
os entrevistados, a minorar os gastos com saúde.
258
Um gestor de saúde explica que, em uma determinada unidade
primária, havia facilidade de internação pelo seu serviço de emergência,
pois não existia controle. Para coibir esse abuso, as chefias criaram um
esquema de filtragem, de forma que o psiquiatra se tornasse alcançável e
pudesse emitir o parecer sobre a real necessidade de internação do paciente.
Em geral, os entrevistados (tanto os gestores como os policiais)
consideram difícil que um servidor confie no sistema de saúde da corporação
para falar sobre seus problemas emocionais. A Polícia Militar tinha o
programa de recuperação de adictos, intitulado Renascer, com psiquiatras
e psicólogos, mas foi desativado. Esse programa teria um caráter de prevenção
das complicações clínicas provenientes do consumo abusivo de substâncias
que provocam seqüelas irreversíveis. Esse gestor pondera que sempre foi
muito difícil para um policial buscar ajuda, porque, na medida em que o
uso de drogas é considerado crime, se o seu comandante souber da sua
situação ele será preso.
Apesar das dificuldades para conseguir tratamento por abuso de
álcool e droga, o atendimento existe e é feito de acordo com o estado clínico
(cirrose, miocardiopatia, por exemplo) e psíquico (dependência). No
primeiro caso, o policial pode ser socorrido pela clínica médica, pela
cardiologia ou pelo gastroenterologia. No caso da dependência, a pessoa é
encaminhada ao psiquiatra. O atendimento ao usuário de drogas é feito na
rede conveniada quando se trata de internação.
Um gestor da unidade de saúde comenta ainda que, se o paciente
recair por mais de duas vezes, não poderá mais ser atendido. Relata que,
como em todo o Brasil, onde a prevalência do uso de álcool na população
é de 10%, aqui também é a droga mais consumida. Considera que o uso
da cocaína vem em seguida, pois muitos policiais acabam sendo
influenciados pela proximidade com o tráfico de drogas.
Apesar das dificuldades institucionais, há diferenças entre as chefias
dos batalhões na compreensão da problemática do uso de drogas, que constitui
muito mais um sintoma do que um problema em si. Em alguns casos, os
policiais adictos conseguem ajuda nas suas próprias unidades, sendo atendidos
por psicólogos que estão lotados nos batalhões maiores e próximos às áreas de
conflito armado. Nessas situações, o apoio do comandante é fundamental.
259
Concessão de Licenças Médicas
Para analisar a vitimização dos policiais, recorremos ao trabalho de
Souza e Minayo (2005), que contém um conjunto de informações
denominadas Licença para Tratamento de Saúde (LTS) e Incapacidade
Física Parcial (IFP), resumidas na Tabela 12. Os policiais militares
requereram afastamento temporário das atividades por motivos de agravos
que os retiraram de ações operacionais ostensivas e os mantiveram em tarefas
internas. Embora as duas categorias de afastamento digam respeito a todos
os tipos de agravo, a Tabela 12 tem o objetivo de mostrar como se distribuem
tais ocorrências por escalão dos servidores.
260
Ressaltamos que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5%
no período de 2000 a 2004, enquanto o de sargentos, cabos e soldados
mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças vítimas de
‘agravos que exigiram afastamento’ é mais de vinte vezes o de oficiais,
representando 96% das LTSs no período. As praças, como já dissemos,
estão na linha de frente nos confrontos.
Mais relevantes ainda são o crescimento geral e as diferenças entre as
duas categorias no que concerne a IFP: o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%.
O número médio de praças, no início da série, constituía cerca de 13 vezes
o de oficiais, passando a 16,8 vezes em 2004. As praças corresponderam a
93% dos incapacitados físicos retirados dos serviços ostensivos e colocados
em tarefas internas no período. No ano de 2007, 50,2% das LTSs e 42,8%
das IFP foram provocadas por traumas. Já 5,6% das LTSs e 16,9% das
IFPs deveram-se a problemas psiquiátricos, chamando nossa atenção para
a incidência de sofrimento mental vinculado às atividades laborais.
Um gestor de saúde relata os tipos de LTS mais comuns pela ordem
de relevância: por problemas ortopédicos, lesões que exigem intervenção
neurocirúrgica, distúrbios psiquiátricos, enfermidades que demandam
clínica geral e cardiologia. A chamada IFP é liderada pela ortopedia, seguida
pela psiquiatria e cardiologia. Os problemas maiores são os transtornos
provocados por situações conflituosas e de excessivo risco, provocando
também hipertensão em agentes em uma faixa de idade correspondente à
de adulto mais velho, além de acidentes com arma de fogo. Na condição de
IFP, a corporação procura aproveitar o policial em outras funções, de forma
que complete os trinta anos de serviço. A perícia acompanha sua licença.
No caso de o servidor precisar se afastar por mais de dois anos, uma junta
médica é formada para tomar a decisão. Quando ocorre uma lesão por ‘ato
de serviço’ (tiro seguido de fratura), a aposentadoria é integral.
Os temas da LTS e IFP são abordados pelas praças por diversos
ângulos. Algumas se queixam do monopólio que é mantido pelo médico
da corporação e pelo comandante, conforme já mencionado. Outras relatam
o vínculo entre a licença e o impedimento para a realização de cursos.
O processo de reforma, por vezes, é abordado como uma punição. Enfim,
o que os vários discursos reúnem é a idéia de que, subjacente à doença ou
à licença médica de praças, há sempre o julgamento por parte dos policiais
261
oficiais, que, segundo os entrevistados, traduzem tais acontecimentos como
uma estratégia desses subordinados para fugirem ao trabalho. Alguns se
mostram muito revoltados e consideram os oficiais como inimigos internos.
Eis dois depoimentos de um grupo de sargentos nesse sentido: “Quando o
policial tem um problema muito grave, que vai ultrapassar dois anos, eles
[os oficiais] suspendem a licença. Porque se passar de dois anos e um dia
[em licença], eles são obrigados a dar a reforma” e “Tinha um curso para
ser promovido a sargento. Eles [os oficiais] não me deixaram fazer porque
eu era IFP. Para fazer curso, eu não posso. Para trabalhar, eu posso. Não
posso ser promovido porque a pessoa precisa estar apta fisicamente”.
Os sargentos, cabos e soldados manifestaram muita tensão ao falarem
sobre a licença médica em si, sobre o tempo de licença e sua ligação com o
processo de ‘reforma’,10 a realização de cursos e a dinâmica de promoção
profissional. A maioria dos componentes desse grupo considera-se totalmente
enredada por esses mecanismos de tratamento de saúde, que acabam por
prejudicá-los na carreira, mantendo a idéia de que sempre serão punidos ou
‘enquadrados’, tal como neste relato de um cabo: “Após um ano e oito meses,
eles já te encaminham para o processo de reforma. Isso dependendo se for um
ato de serviço; se não for, é uma reserva remunerada. Vão fazer um processo
para quando chegar a dois anos e um dia você estar enquadrado”.
Como vimos, mais de 93% dos policiais em licença para tratamento
e por incapacidade parcial pertencem ao círculo das praças. Portanto, é
esse grupo em posição subalterna que, além de proporcionalmente ser vinte
vezes maior do que o dos oficiais vitimizados nos ‘acidentes de trabalho’,
acaba tendo a doença ou a lesão no trabalho como um empecilho a mais na
realização e na ascensão profissional.
10
É o desligamento do servidor militar, nos casos de invalidez, com remuneração integral ou
proporcional, observadas as regras específicas para cada situação.
262
e ao estilo de vida que levam. É meridianamente claro que os policiais
subalternos do ciclo das praças são os que passam pelas mais arriscadas
situações e, por isso, sofrem mais lesões, incapacitações e mortes, sobretudo
no enfrentamento dos delinqüentes e de vários tipos de violência. Contudo,
são os oficiais, suboficiais e sargentos que apresentam maiores
comprometimentos da saúde, evidenciando-se aqui o papel cumulativo do
estresse laboral: são mais obesos, têm níveis mais elevados de colesterol,
freqüentemente sofrem mais doenças crônicas e degenerativas e padecem
mais de lesões permanentes.
Quanto à saúde mental, o sofrimento psíquico é similar entre oficiais
e não-oficiais. Há uma exceção, verificada quando se analisa o grupo
operacional, em que há maiores proporções de pessoas que se queixam de
problemas emocionais. Outro sinalizador de permanente sofrimento mental
são as maiores proporções de utilização de substâncias tóxicas pelo grupo
de oficiais, suboficiais e sargentos (cigarro, álcool, tranqüilizantes e sedativos
e maiores conseqüências do uso de substâncias), em comparação com os
soldados e cabos. Neste último grupo, predomina apenas o uso de
substâncias para emagrecer e anabolizantes.
No que se refere aos serviços de saúde, os que estão em níveis
hierárquicos mais elevados têm preferência dentro de um quadro de escassez,
onde nem todos podem ser cuidados a contento. Isso acontece no caso dos
tratamentos dentários, dos exames de vista e na preferência para internações,
principalmente. Soldados e cabos acabam procurando, em maiores
proporções, serviços de emergência médica, seja por causa das lesões e
incapacitações temporárias devidas a confrontos e acidentes de trabalho,
seja simplesmente para obter atendimento imediato.
Uma pergunta que fica ao final desta reflexão deveria ser: é possível,
pelas vias do trabalho, prevenir os problemas de saúde e o estresse dos policiais?
Um gestor operacional propõe um possível antídoto para o estresse físico e
emocional dos seus subordinados. Considera que, por oferecer um comando
de confiança e credibilidade, a tropa vem sendo ‘curada’. Diz esse oficial:
“Eu me preocupo em ter a credibilidade do homem”. Exige trabalho e premia
quando o policial se destaca. Comenta que, em seu setor, “não tem
interferência política”, o que significa admitir que em outros existe este
problema, o qual se constitui em uma razão a mais de preocupação dos
subordinados. Considera que muitas vezes o comando tem de se arriscar para
263
poder dar segurança a seus subordinados hierárquicos. E a saúde psicológica
do policial está relacionada à credibilidade que o chefe imprime ao comando.
Para esse oficial, “o comando tem de ser o mais digno e o mais competente”.
Sempre que perguntados, os chefes realçam a possibilidade de prevenir
agravos e diminuir o estresse por meio da administração de um bom ambiente
nas ‘relações entre oficiais e seus subordinados’:
A pessoa que está comandando a unidade é que vai criar um bom clima no
batalhão, fazendo com que os policiais consigam executar um serviço de
qualidade em uma unidade extremamente difícil. Em contrapartida, está um
comandante carreirista, extremamente preocupado consigo mesmo, que causa
um grande estresse no seu soldado. Porque aí o soldado sabe que não pode
contar com ele em hipótese alguma.
264
4) Falta de atividade física – aqueles que trabalham na ronda ficam
sentados o tempo todo, o que também acarreta problemas de coluna
e dores musculares. A vida ‘sedentária’, de gabinete, segundo um
gestor administrativo, igualmente expõe a saúde a riscos. Esse
comandante diz que tenta, em vão, motivar seus subordinados a
fazerem atividades físicas.
5) Falta de acompanhamento – os policiais não tratam da saúde
como deveriam porque, devido ao baixo salário, trabalham nas folgas
para melhorarem a sua capacidade de gastos. A Polícia Militar já
disponibiliza serviços de atendimento psicológico – não de forma
adequada e nem suficiente –, e um gestor comenta que há também
apoio religioso, pois existe muita vivência de morte no cotidiano da
vida corporativa. No entanto, os policiais não se beneficiam como
poderiam dos serviços disponíveis por sobrecarga de trabalho dentro
e fora da Polícia e por problemas de restrição colocados por
autoridades hierárquicas.
6) Trabalho de ‘bico’ – em um grupo focal com soldados, praças e
cabos, foi relatado que o policial não tem tempo para cuidar da
saúde. Ele sai do batalhão, vai para o ‘bico’ e não dá tempo de
fazer atividades físicas. Passa a se alimentar mal porque quanto
menos tempo tem de casa, mais besteira come: uma pizza aqui, um
salgado ali. A alimentação não é regrada e tudo tem a ver com a
falta de condições objetivas e subjetivas do processo de trabalho.
“Os policiais já têm o estresse diário do serviço público e o ‘bico’
também é estressante porque, em geral, ele trabalha com segurança.
Assim, não há respostas saudáveis: a gente vai acumulando mais
estresse”. A família se sensibiliza com esse tipo de vida do policial,
o que, por sua vez, influencia a saúde dos familiares.
7) Sobreposição e sobrecarga de trabalho e adoecimento psíquico –
os policiais de um grupo focal de operacionais assim informam:
“Tivemos casos de companheiros com síndrome do pânico
desenvolvida em razão do nosso trabalho, que se reflete na saúde e,
novamente, no trabalho do policial” –, como em um círculo vicioso.
8) Efeito cascata da baixa remuneração – ela mina a saúde, seja
pela má alimentação, seja pela falta de tempo hábil para buscar
265
atendimento; dificulta o lazer, o sagrado descanso do corpo e da
mente; afasta os servidores das relações familiares, tão valorizadas
pela maioria; o risco e o estresse da profissão são vividos duplamente,
no trabalho e no ‘bico’.
9) Risco de morte decorrente da profissão – um grupo focal com
oficiais denuncia a violência que eles têm de enfrentar diariamente
em uma cidade tão insegura como o Rio de Janeiro e a que sofrem
por parte de delinqüentes, com grandes chances de resultar em morte.
10) Interdição da fala e das emoções – na conversa com oficiais de
grupos operacionais, esses policiais destacaram o fato de não
poderem expressar suas opiniões, emoções e expectativas. Todos têm
de seguir o regulamento que prioriza a hierarquia e a disciplina,
sem levar em conta que a qualidade do serviço ficará prejudicada.
Se tomarem decisões, o oficial ficará ressentido, e quando recebem
ordens das quais discordam, os subordinados agem com raiva,
quando deveriam ser promotores da ordem.
11) Precariedade da assistência – os policiais consideram que a
demanda para atendimento no hospital militar é muito maior do
que os recursos oferecidos, de forma que acabam sendo
precariamente assistidos em suas necessidades. Além disso, faltam
psicólogos e médicos nos batalhões.
266
A maioria dos entrevistados se queixa da falta de atenção da
corporação às necessidades de suas famílias, à demanda de atendimento
aos dependentes de substâncias tóxicas e aos inativos. Pautados por uma
visão que ainda compreende a corporação como uma instituição fechada,
alguns sugerem a construção de mais hospitais militares. Vários reclamam
que precisam pagar pela educação de seus filhos e pela saúde, quando
acreditam que a instituição teria de se responsabilizar por isso. Muitos têm
plano de saúde distinto do que lhes é oferecido na corporação. O Estado
geralmente é lembrado por boa parte desses profissionais pelos papéis que
deixa de cumprir.
Resumindo, encontramos problemas e propostas de soluções
emanadas dos entrevistados dos vários escalões da Polícia Militar.
Entendemos que as autoridades competentes precisam ouvir esse coro de
muitas vozes, o que certamente trará benefícios para o atendimento que
esses servidores prestam à população. Cremos que não deveria ser preciso
que tantos policiais morressem ou se incapacitassem, física e
psicologicamente, para termos uma segurança pública de qualidade.
267
Parte IV
272
Hartz & Buss, 2000). Mas entendemos que também existe um forte sentido
subjetivo nessa noção que diz respeito às escolhas individuais e aos valores a
elas atribuídos, de tal forma que cada pessoa tenha condições de responder
como sente e define a qualidade de sua vida.
Hoje, existem muitos estudos e propostas que tentam criar indicadores
e estabelecer parâmetros para operacionalizar a noção em pauta, visando a
intervenções sociais. O mais universal desses instrumentos é o chamado
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desenvolvido por Amartya
Sen (2000), que serve de referência para a comparação sobre qualidade
de vida entre um grande número de países. Criado para deslocar o debate
sobre desenvolvimento como crescimento econômico e assim incluir uma
visão mais abrangente, este índice mede nível de renda, saúde, educação e
longevidade das sociedades onde ele é adotado.
No Brasil, foram desenvolvidos outros instrumentos mais complexos,
que entram em sintonia fina para medir as desigualdades, as heterogeneidades
e as estratificações existentes no nível das microrrealidades municipais, estaduais
e do país como um todo. É o caso do Índice de Condições de Vida (ICV),
que trabalha com vinte indicadores (Ipea/IBGE/FJP/Pnud, 1998). Temos
também o exemplo do Índice de Qualidade de Vida (IQV), criado para
avaliar a situação da capital de São Paulo. Esse dispositivo mede, além dos
aspectos objetivos, fatores de natureza subjetiva (Índice Folha, 1999).
Na verdade, nos últimos trinta anos, o termo ‘qualidade de vida’
vem sendo muito usado na linguagem cotidiana por jornalistas, políticos,
profissionais de diversas áreas e gestores ligados às políticas públicas; assim
como no contexto da pesquisa científica, em diferentes campos do saber,
como a economia, a sociologia, a área da educação, a medicina, a
enfermagem, a psicologia e muitas especialidades do setor saúde (Bowling
& Brazier, 1995; Rogerson, 1995; Minayo, Hartz & Buss, 2000).
Na área científica, vários esforços têm sido feitos por autores que tentam
refinar instr umentos de aferição, buscando mostrar parâmetros
que correspondam ao padrão de desenvolvimento social e tecnológico local e
possam constituir subsídios para propostas de metas de políticas públicas.
O acentuado crescimento de pesquisas que buscam operacionalizar essa noção
nas duas últimas décadas atesta os esforços voltados para o amadurecimento
conceitual e metodológico do seu uso na linguagem científica.
273
Nesta parte do livro, trabalhamos com um conjunto de categorias de
indicadores para análises de grupos ou situações sociais, como fez Augusto
(2000). Damos ênfase aos seguintes aspectos da qualidade de vida dos
policiais militares: físicos, concernentes à habitação, ao saneamento, ao
transporte, à alimentação saudável e a outros; de direitos, referentes às
condições sociais, políticas e de cidadania; e subjetivos, a respeito da satisfação
pessoal. Tentamos guiar o presente estudo com base nessa classificação.
274
Indicadores Objetivos
14
de Qualidade de Vida
moradia, transporte, descanso e lazer
Moradia
Observamos que os oficiais, suboficiais e sargentos, mais do que os
cabos e soldados, têm casa própria já quitada. É importante destacar que
26,2% desses últimos vivem em moradias alugadas, o que deve comprometer
parte considerável de seus rendimentos. Pior situação é vivenciada por um
grupo de 10,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 15,7% dos não-
oficiais que moram ‘de favor’, como apresentamos no Gráfico 50.
Gráfico 50 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o tipo de casa em que
moram*
42,9%
Própria quitada
38,6%
20,6%
Própria financiada
11,8%
17,4%
Alugada
26,2%
10,6%
‘De favor’
15,7%
8,4%
Outros
7,8%
*p=0,000
275
Constatamos que as condições de moradia dos policiais militares,
particularmente dos cabos e soldados, são piores do que as encontradas
entre os policiais civis. Enquanto mais de 60% dos civis e oficiais militares
possuem casa própria ou a têm em condição de financiamento (Minayo &
Souza, 2003), apenas 50,4% dos não-oficiais encontram-se nestas condições.
No setor administrativo, 67,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos
estão em melhor situação em relação aos não-oficiais, pois são os donos das
casas onde moram, mesmo que ainda estejam pagando seu financiamento.
Esse percentual é menor no grupo dos cabos e soldados (54,2%), com
diferença significativa (p=0,000) se comparado aos escalões superiores. É
importante destacar que é duas vezes maior (32,2%) o percentual de cabos
e soldados que moram em casas alugadas em relação aos oficiais, suboficiais
e sargentos (15%).
Para os operacionais, somados os que têm casa quitada e os que
ainda a estão pagando, encontramos 61,2% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 49,7% dos cabos e soldados. O aluguel é uma realidade para
16,4% dos primeiros e para 24,2% dos segundos, e essas diferenças entre
os cargos são estatisticamente significativas (p=0,000).
Se a compararmos com os dados obtidos pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006, do IBGE (2007), sobre os
domicílios urbanos brasileiros, observamos que a situação dos policiais militares
é bem pior que a da população brasileira e a da região metropolitana do Rio
de Janeiro. Em 2006, 73% dos domicílios brasileiros eram próprios, 18,7%,
alugados e 7,7%, cedidos. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, esses
percentuais atingiram 75,5%, 17,6% e 5,9%, respectivamente.
Acrescentamos que o fato de ter casa própria não garante qualidade
de vida e, possivelmente, parte dos domicílios dos policiais não tem boas
condições de habitabilidade, como demonstram as informações a seguir.
Em relação ao tamanho das casas, 59% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 59,5% dos cabos e soldados afirmam morar em domicílios que
têm de cinco a seis cômodos, o que equivale a divisões como sala, cozinha,
banheiro e dois a três quartos. Entre os administrativos, a média de números
de cômodos entre os oficiais, suboficiais e sargentos é de 5,81, e entre os
não-oficiais é de 5,37, com diferença significativa entre os cargos
(p=0,000). Entre os operacionais, essas médias chegam a 5,58 entre os
oficiais e 5,1 entre os cabos e soldados (p=0,000). Esses percentuais são
276
semelhantes aos encontrados entre os policiais civis: 55,6% declararam que
suas residências têm de cinco a seis cômodos (Minayo & Souza, 2003).
O número de pessoas que vivem nas casas varia de três a quatro, o
que corresponde a um casal com um ou dois filhos. Essa é a realidade de
61,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e de 60% dos cabos e soldados.
Tais dados estão muito próximos aos da população brasileira, pois o IBGE
(2006) indica que a média de pessoas por domicílio, calculada para o
Brasil como um todo, é 3,5; para a região Sudeste, 3,3; e para o Rio de
Janeiro, 3,1.
Quando avaliamos por categorias, o número médio de pessoas que
vivem na mesma residência entre os oficiais, suboficiais e sargentos
administrativos é de 3,67, e entre os cabos e soldados chega a 4,41 pessoas
(p=0,000). Entre os operacionais, há 3,83 pessoas em média na casa dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 3,53, nas moradias dos não-oficiais
(p=0,005).
Pudemos verificar que, em sua maioria, as condições objetivas de
moradia dos cabos e soldados são piores quando comparadas às dos oficiais,
suboficiais e sargentos. Os primeiros residem com mais freqüência em casas
alugadas, menores e com maior número de pessoas, o que condiz com seus
baixos soldos.
Nas entrevistas e nos grupos focais, soldados e cabos deram relevância
à relação entre os baixos salários quando falaram da questão da precariedade
de suas moradias. E os policiais de todas as patentes se referiram à falta de
assistência habitacional, ressaltando o fato de que boa parte dos que ganham
menos vive em locais considerados perigosos para sua integridade física.
Os gestores e oficiais entrevistados deram muita ênfase à situação de elevado
risco de morrer que soldados e cabos vivenciam, situação potencializada
pelo local da residência. Na pesquisa realizada com os policiais civis, esse
mesmo aspecto foi mencionado como um fator que interfere na qualidade
de vida. Os policiais civis queixavam-se de morar “em locais nos quais
convivem com traficantes, limitando, e mesmo impedindo, sua participação
na vida comunitária” (Minayo & Souza, 2003: 316). Eis alguns
depoimentos das praças, seguidos por falas de oficiais. Seus
pronunciamentos, quando discutíamos questões habitacionais, retornaram
ao conjunto das condições gerais de trabalho, sempre vinculadas à esfera
do seu universo social.
277
Queremos que pelo menos dêem valor ao trabalhador policial com salário
digno, escala digna para todos da corporação, o que nos daria possibilidade de
morar num lugar melhor. (Grupo focal com soldados e cabos)
Descanso e Lazer
Em relação ao descanso e ao lazer, investigamos os hábitos mais
comuns dos policiais militares. Em geral, as atividades mais citadas foram
‘ficar em casa com a família’, ‘ver televisão’, ‘descansar’ e ‘dormir’.
Constatamos que os cabos e soldados se destacam em relação a
opções de dormir, encontrar amigos, namorar, praticar esportes e ir à
igreja (Gráfico 51). Eles também, em maiores proporções que os oficiais,
suboficiais e sargentos, referiram exercer uma atividade extra, usando,
portanto, seu tempo de folga na Polícia para trabalhar em um segundo
emprego. Isso foi confirmado por dados que apresentamos anteriormente,
mostrando que tal situação ocorre com 61,1% dos cabos e soldados e com
51,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos. O fato de usar as folgas também
para dormir é compreensível, pois grande parte desses agentes relatou
trabalhar em horários noturnos há sete meses ou mais (63,1%), conforme
indicado na parte em que analisamos as condições de trabalho.
Foi construída uma variável para analisarmos as especificidades dos
momentos de folga dos militares a partir da questão anterior, classificando
como ‘lazer comunitário’ os itens: viajar, ir ao cinema, passear, ir a bares, ir
a clubes, ir à igreja, praticar esportes e encontrar amigos. Como ‘lazer
278
domiciliar’ foram considerados os itens: ler, ver TV, ficar em casa com a
família, ficar sozinho, dormir e descansar. Foi feita uma soma dos itens
relativos aos tipos de lazer, cada um deles valendo um ponto. Consideramos
‘lazer comunitário ou domiciliar’ como um valor ‘baixo’, quando a soma
dos itens foi menor que um; ‘médio’, quando o intervalo foi de dois a
quatro; e ‘alto’, se a pontuação ultrapassou quatro.
Gráfico 51 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo coisas que costumam
fazer nas folgas
p=0,000
279
deles contra 50,9% dos não-oficiais – p=0,000) se destacou por dar
prioridade ao lazer domiciliar. A preferência por lazer extradomiciliar entre
os cabos e soldados pode, em parte, ser explicada pelo fato de eles serem
mais jovens que os seus colegas oficiais, suboficiais e sargentos.
Ressaltamos ainda que, no tocante ao lazer nos períodos de folga, as
atividades são coincidentes entre policiais civis (Minayo & Souza 2003) e
militares. Ficar com a família, descansar e ver televisão também foram as
atividades mais freqüentemente mencionadas pelos policiais civis. No entanto,
podemos observar diferenças estatísticas entre as duas corporações, com
significâncias que variam de p<0,000 a 0,018: os policiais militares, mais
que os civis, costumam durante as folgas ir ao cinema, ver TV, ir a festas e à
igreja, praticar esportes, encontrar amigos, namorar e dormir. Já os policiais
civis costumam, mais que os militares, viajar, ler, ficar em casa com a família,
ficar sozinhos e descansar (Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Na pesquisa qualitativa, os policiais falaram mais da falta de tempo
e espaço para o descanso do que da sensação positiva de estar em seus
domicílios. A ausência de lazer fora de casa foi bastante justificada pelos
baixos soldos. Nos grupos focais, alguns disseram: “Sabe qual é o lazer de
policial? É ficar correndo atrás de bandido! Diversão da gente é correr em
favela! Atrás de bandido! Lazer da gente é esse: é tomar tiro e dar tiro!”.
Muitos deles repetiram que viver em locais de risco muitas vezes implica
compartilhar o local de moradia com pessoas envolvidas em contravenções,
o que dificulta programar qualquer atividade fora de casa.
Os depoimentos a seguir, emitidos por soldados, cabos e sargentos,
evidenciam a dimensão dos sentimentos desses servidores que, ao fazerem
opção por determinado tipo de descanso, não levam em conta apenas gostos
pessoais ou familiares, mas também as condições gerais de existência, marcadas
pelas vivências da profissão. Entre elas, principalmente, destacamos a
exigüidade do tempo, a falta de dinheiro e a possibilidade de serem feridos e
lesionados por delinqüentes: “A questão é a seguinte: quando tem tempo,
não tem dinheiro; e quando tem dinheiro, não tem tempo” e “Para sair,
principalmente com a família, precisa pensar onde pode ir. Se chegar no
lugar errado, na hora errada, e for reconhecido como policial estando junto
da família... Então, tem de ser algo muito estudado”.
280
Este último depoimento chama a atenção para o fato de que, apesar
de esses servidores vivenciarem a condição de policial 24 horas por dia, a
realização do trabalho sob a égide institucional lhes oferece muito mais
proteção do que nas situações de descanso ou realizando outras atividades
fora da corporação.
281
Indicadores Subjetivos
15
de Qualidade de Vida
percepção sobre relações,
apoio social e visão de futuro
Investigamos também questões subjetivas, dando ênfase às
representações sobre o conceito de qualidade de vida, às relações interpessoais
e aos apoios sociais que os policiais informam ter e acham importante para
sua existência.
Instados a definir o que consideram ‘qualidade de vida’ em geral, as
respostas dos policiais deram grande importância a questões relacionadas
ao poder aquisitivo, à capacidade de adquirir bens e ao acesso a alguns
serviços privados: pagar as contas, ter plano de saúde para si e para a
família, propiciar escola particular para os filhos e possuir carro. A posse
de um bom carro é o símbolo máximo de status. E se analisarmos a listagem
dos bens materiais associados ao bem-estar, concluímos que ela constitui o
básico de um sonho voltado para o nível intermediário da classe média,
sem maiores ambições de consumo.11
Para falar da qualidade de sua vida, os policiais das duas corporações
construíram associações e identificações por oposição à situação de outros
ou estabelecendo hierarquias dentro dos próprios segmentos institucionais.
Para os policiais civis, o primeiro alvo de comparação são os policiais
militares, que, segundo alguns entrevistados, estão em situação pior quanto
às condições objetivas de vida e melhor quanto à assistência à saúde.
Se você fizer uma comparação, por exemplo, com um policial militar, isso
em relação ao padrão de vida deles que a gente vê, acho que nós somos um
pouquinho mais privilegiados. Na Polícia Militar, acho que existe uma
11
Não estamos nos referindo aqui aos desvios de conduta tão freqüentemente apontados pela
mídia, quando policiais militares – e civis – apresentam um nível de consumo e
enriquecimento absolutamente incompatível com sua profissão e remuneração. Partimos do
princípio de que a maioria dos policiais é honesta e cumpre sua missão constitucional.
283
assistência médica um pouco melhor, até pela organização militar. Eles estão
afastados da média do funcionalismo público como um todo. Hoje é inegável
dizer que o Iaserj [Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de
Janeiro] faliu. A verba do Iaserj entrou numa caixa única e a assistência
médica para o policial e para a família do policial acabou sendo deteriorada.
284
O cara que trabalha decente prepara a escalinha dele bonitinho, ele vai
complementar esse salário com uma segurança, um ‘bico’, o que vai desgastar
ainda mais o companheiro. Ele vai ficar muito mais extenuado, muito mais cansado,
estressado porque, quando ele estaria no seu dia de folga, tem de completar a sua
renda com um ‘bico’. Daí aumenta mais ainda o nível de estresse.
285
esse tema em relação aos “recursos de que esses profissionais dispõem em
situações de necessidade” (Due et al., 1999). É reconhecido também – e já
falamos sobre isso na Parte III – que o ‘apoio social’ pode desempenhar um
papel mediador, contribuindo para manter a saúde e permitindo que as
pessoas lidem melhor com os problemas do dia-a-dia. Pessoas socialmente
mais integradas costumam apresentar menos doenças e ter melhor
prognóstico quando adoecem (Domingues, 2000; Costa & Ludermir, 2005;
Griep et al., 2005).
Muitos estudos sugerem associação inversa entre o nível de ‘apoio
social’ e a ocorrência de sofrimento psíquico, distúrbios psiquiátricos,
problemas nervosos, insônia e consumo de substâncias como cigarro e álcool,
entre outros problemas de saúde (Holahan & Moos, 1981; Frydman, 1981;
Westman & Shirom, 1985; Hanson & Östergren, 1987; Krantz &
Östergren, 2000).
Para fins analíticos, é importante considerar a percepção do indivíduo
sobre o apoio que considera ter. Os efeitos benéficos da integração social
podem ser reconhecidos na sensação de bem-estar, que se relaciona com o
aumento da satisfação com a vida, com a auto-estima e com a diminuição
de sintomas, como ansiedade (Broadhead et al. apud Griep et al., 2003a).
Aplicamos uma escala padronizada para medir o apoio com que os
policiais militares contam nas áreas afetiva, emocional, material, de
informação e de interação social. O Gráfico 52 mostra as respostas, somando-
se os itens ‘sempre’ e ‘quase sempre’ referentes à pergunta ‘Se precisar, com
que freqüência conta com alguém?’ em cada uma das dimensões avaliadas
pela escala.
Em geral, os policiais dos dois grupos responderam que contam mais
freqüentemente com apoio afetivo e de interação social positiva sobretudo
dentro do contexto familiar. Suas respostas também foram bastante freqüentes
para um dos itens referentes ao apoio material, que perguntava se a pessoa
‘conta sempre ou quase sempre com alguém para preparar suas refeições’.
Quando comparamos o grupo dos oficiais, suboficiais e sargentos com
o dos cabos e soldados, ressaltamos que, em geral, a freqüência das respostas
positivas foi maior entre estes do que entre aqueles. Os segundos afirmam ter
mais apoio social, com diferença significativa em todos os itens da escala.
286
Em comparação com policiais civis, os não-oficiais evidenciaram
porcentagens semelhantes no que se refere a ‘ter apoio afetivo, material e
interação positiva’. Ao contrário, as porcentagens dos oficiais e suboficiais
foram, em sua maioria, inferiores às dos civis. Em relação a apoio emocional
e de informação, os policiais militares aparecem como muito mais carentes
que os civis (Minayo, Souza & Constantino, 2007).
77,8%
Amar e se sentir amado* 84,7%
71,6%
Dar abraço* 78,6%
78,3%
Preparar refeições* 82,5%
70,2%
Apoio material
74,5%
Se divertir junto* 80,8%
Interação positiva
65,2%
Ouvir, quando precisa falar* 66,4%
Apoio emocional
58,7%
Confiar em alguém para falar de você* 64,1%
60,8%
Compreender seus problemas* 64,6%
Compartilhar medos* 58,5%
64,2%
Apoio de informação
58,6%
Dar informação ou ajudar a compreender* 65,6%
60,1%
Dar conselhos, em uma crise* 63,3%
Dar sugestões para problema pessoal* 58, 8%
62,0%
59,3%
De quem você quer conselhos* 64,6%
* p=0,000
287
Para avaliar a capacidade de discriminação do instrumento de
pesquisa para aferir as dimensões subjacentes à versão original da escala,
realizamos uma análise fatorial. Recorrendo a essa técnica estatística,
analisamos as inter-relações entre as variáveis de forma a agregá-las tanto
quanto possível (Griep et al., 2005). A partir de então, três fatores foram
constituídos: no fator 1, ficou ‘apoio emocional e apoio de informação’,
com alfa de Cronbach de a=0,95; o fator 2 ficou composto pelo ‘apoio
afetivo e apoio de interação social positiva’ mais o item ‘preparar refeições’,
com a=0,93; e, finalmente, o fator 3 foi constituído pelos itens ‘apoio
material’e ‘contar com alguém que o ajude se ficar de cama’, com a=0,83.
Os escores obtidos pelos policiais foram divididos em tercis: no
primeiro ficaram os mais altos; no segundo, os médios; no terceiro, os níveis
mais baixos referentes ao apoio social. Podemos constatar, com base na
Tabela 13, que a maior parte dos policiais militares administrativos obteve
escores incluídos no nível baixo para os dois primeiros fatores: 35,4% dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 37,3% dos cabos e soldados no fator 1
(p=0,006). E 34,3% dos primeiros e 38,9% dos segundos, no fator 2
(p=0,006). No fator 3, que corresponde ao item ‘apoio material’ mais
‘contar com alguém que o ajude se ficar de cama’, os policiais dos dois
cargos se incluíram no tercil médio, sendo que os oficiais, suboficiais e
sargentos obtiveram maior freqüência (p=0,000).
No grupo dos operacionais, os maiores percentuais se encontram
nos níveis alto e médio. No fator 1, 42,3% dos oficiais, suboficiais e sargentos
alcançaram o nível alto, enquanto os cabos e soldados, em sua maioria,
permaneceram no nível médio (34,3%), com diferença significativa entre
os cargos (p=0,000). Para o fator 2, que inclui ‘apoio afetivo’ e ‘interação
social positiva’ mais o item ‘alguém para preparar refeições’, os operacionais
obtiveram escores que os incluíram no tercil mais alto: 42,7% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 34,2% dos cabos e soldados (p=0,000). Novamente
no fator 3, os primeiros atingiram tercis alto e médio e os segundos se
concentraram no tercil médio (p=0,000).
Realizamos também a investigação dos escores de apoio social levando
em conta outras características, como as sociodemográficas, de rede social,
de condições de saúde física e mental, tal como é proposto por Griep e
colaboradores (2005).
288
Tabela 13 – Distribuição proporcional do apoio social dos policiais militares segundo estratos,
cargos, fatores e tercis
Fator 1* Fator 2** Fator 3***
Oficial/Sub oficial/
31,6 32,9 35,4 31,5 34,2 34,3 22,0 47,7 30,3
Administrativo Sargento
Cab os e soldados 27,1 35,6 37,3 27,8 33,3 38,9 21,1 40,4 38,6
Oficial/Sub oficial/
42,3 31,4 26,2 42,7 26,0 31,2 35,3 35,3 29,4
Operacional Sargento
Cab os e soldados 32,8 34,3 32,9 34,2 33,3 32,5 30,3 42,3 27,4
289
Tabela 14 – Associação entre variáveis selecionadas e alto apoio social de policiais militares
nos três fatores da escala
Fator 1 - Emocional
Fator 2 - A fetivo &Interação Positiva Fator 3 - Material
&Informação
Variáveis
OR - Wald Wald Wald
I.C 95 % OR * I.C 95 % OR * I.C 95 %
* F F F
Masculino 0,85 0,44 1,66 0,82 0,41 1,64 0,89 0,45 1,74
Sexo 0,636 0,580 0,730
Feminino - - - - - - - - -
Até 25 anos 1,90 0,90 4,03 2,15 0,96 4,83 1,67 0,78 3,58
De 26 a 35 anos 1,24 0,76 2,05 1,10 0,66 1,83 0,78 0,48 1,29
Id a d e 0,161 0,177 0,082
De 36 a 45 anos 1,02 0,61 1,71 1,00 0,59 1,69 0,77 0,46 1,29
46 anos ou mais - - - - - - - - -
Casado/companh eiro 1,33 1,00 1,77 1,67 1,25 2,23 1,55 1,16 2,07
Situação conjugal 0,053 0,001 0,003
Solteiro/viúvo/separado - - - - - - - - -
Sim, freq üentemente 2,15 1,49 3,10 1,62 1,12 2,34 1,51 1,05 2,17
Prática de religião Sim, às vezes 1,41 1,02 1,93 0,000 1,27 0,93 1,74 0,035 1,15 0,84 1,56 0,066
Não - - - - - - - - -
Ensino médio
1,80 0,91 3,56 1,16 0,62 2,18 1,69 0,86 3,31
completo/incompleto
Superior
2,24 1,11 4,54 1,41 0,73 2,72 2,59 1,29 5,22
completo/incompleto
Escolaridade 0,098 0,277 0,002
Pós-graduação 2,56 0,82 7,99 2,45 0,72 8,28 4,15 1,26 13,66
Ensino fundamental
- - - - - - - - -
completo\incompleto
De R$ 501 a R$ 1.500 1,26 0,56 2,85 1,06 0,47 2,37 1,42 0,62 3,26
De R$ 1.501 a R$ 4.000 1,31 0,57 2,97 1,17 0,52 2,65 1,81 0,78 4,19
Renda familiar 0,010 0,019 0,021
Mais de R$ 4.000 3,73 1,36 10,22 3,30 1,16 9,43 3,17 1,16 8,66
Até R$ 500 - - - - - - - - -
Médio 1,41 0,99 2,01 1,21 0,86 1,71 1,33 0,93 1,88
Lazer
Alto 1,99 1,39 2,87 0,001 1,64 1,14 2,36 0,017 1,66 1,16 2,39 0,021
comunitário
B aix o - - - - - - - - -
Satisfação com a Satisfeito 2,21 1,67 2,93 2,40 1,82 3,18 1,92 1,46 2,54
0,000 0,000 0,000
saúde Não satisfeito - - - - - - - - -
Sofrimento Não tem prob lemas 1,79 1,38 2,34 2,11 1,62 2,75 1,91 1,47 2,47
0,000 0,000 0,000
psíq uico
Tem prob lemas - - - - - - - - -
*Odds Ratio
290
Nos testes que realizamos com os dados da pesquisa, confirmamos a
hipótese anterior. Entre os casados ou com companheiros, as chances de
contar com alto apoio afetivo e de ter interação social positiva (fator 1) são
maiores que entre os que estão sozinhos (OR 1,67; IC 95%: 1,25 – 2,23)
e também é assim para o fator 3, que diz respeito ao apoio material (OR
1,55; IC 95%: 1,05 – 2,17). Para os que praticam algum tipo de religião,
foram encontrados altos escores de apoio social para os fatores 1 e 2.
A presença de lazer comunitário também foi uma característica associada à
alta chance de obter apoio social, como verificamos na mesma Tabela 14.
Enfim, a terceira hipótese diz que indivíduos com melhor percepção
sobre seu estado de saúde, com menor número de doenças crônicas e que
não apresentam transtornos mentais comuns têm maior chance de contar
com altos escores de apoio social.
Os policiais militares que estão mais satisfeitos com a saúde e os que
não apresentam sintomas de sofrimento psíquico realmente têm mais apoio
social em todas as dimensões investigadas. Essa constatação sugere que o
apoio e a solidariedade promovem bem-estar e vida de qualidade. A boa
situação de saúde física e mental também facilita a convivência em harmonia
e os vários tipos de apoio social, em um círculo virtuoso de bem-estar.
No Gráfico 53, observa-se que a satisfação dos policiais militares
com alguns aspectos da vida foi superior a 80%, tanto para os oficiais e
suboficiais como para os não-oficiais nos itens círculo familiar, vida sexual
e afetiva, educação que recebeu e capacidade de reagir a situações difíceis.
Quando comparamos os dois grupos, entre os cabos e soldados a satisfação
é maior do que entre os oficiais, suboficiais e sargentos nessas questões. Por
sua vez, o segundo grupo apresenta maior grau de satisfação nos seguinte
itens: família, felicidade dos familiares, bairro em que residem, vida social,
vida como um todo, tempo de lazer, padrão de vida e realização profissional.
Observando as respostas emitidas pelos policiais militares, tanto os
administrativos como os operacionais, é possível identificar sua grande
satisfação com a vida familiar, afetiva e sexual. Cerca de 36,8% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 32,2% dos cabos e soldados (p=0,000)
administrativos se queixam do pouco tempo disponível para o lazer e 35,3%
e 15,3% deles, respectivamente (p=0,000), mostram insatisfação com seu
padrão de vida. Entre os operacionais, o menor grau de satisfação ocorre nos
itens tempo para lazer (27% por parte dos oficiais, suboficiais e sargentos e
22,1% dos não-oficiais; p=0,000) e realização profissional (40,7% dos
291
oficiais, suboficiais e sargentos e 32,5 dos cabos e soldados; p=0,000).
A Tabela 15 mostra as respostas mais freqüentes dos dois grupos a respeito
dos aspectos pesquisados.
* p=0,000
292
problemas de carga horária e de dupla jornada, uma vez que a isso nos
referimos nas partes II e III.
(*) Diferenças estatisticamente significativas entre os cargos, com p variando de 0,000 a 0,005.
293
realização pessoal. Somando os que consideram que tudo continuou igual e
os que acham que sua situação está pior, encontramos mais da metade dos
soldados e cabos e 36% dos oficiais e suboficiais e sargentos insatisfeitos.
64,0%
Padrão de vida*
73,5%
56,4%
Vida profissional*
67,6%
43,3%
Condição de trabalho*
53,5%
40,2%
Condição de saúde*
48,7%
* p=0,000
Gráfico 55 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo situação de vida após
ingresso na Polícia
64,0%
Melhorou
45,0%
21,9%
Continua igual
27,6%
14,2%
Piorou
27,3%
* p=0,000
294
No grupo administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos, mais do
que os cabos e soldados, acham que sua vida melhorou após entrarem para
a Polícia Militar, mas também impressiona o grande percentual de oficiais
que ressalta uma piora em sua situação de vida. Entre os operacionais, os
cabos e soldados, mais que os oficiais, suboficiais e sargentos, também dizem
que sua vida piorou após a entrada na corporação, conforme está exposto
no Gráfico 56.
Apesar de os dados quantitativos serem na maioria dos aspectos mais
positivos do que negativos, quando discutimos nos grupos focais, os policiais
militares referiram que a ‘qualidade de sua vida’ não é boa, utilizando
expressões enfáticas para ressaltar os aspectos negativos, tais como “ruim”,
“difícil”, “muito ruim” ou até “inexistente”. Por isso, resolvemos fazer uma
reflexão qualitativa sobre o conjunto das informações.
Gráfico 56 – Distribuição proporcional dos policiais militares relativa à situação de vida após
ingresso na Polícia, segundo setor
64,0%
Melhorou
45,0%
21,9%
Continua igual
27,6%
14,2%
Piorou
27,3%
* p=0,000
295
profissionais avaliaram, por meio das mais diferentes, contraditórias e
convergentes respostas, que a qualidade de sua vida é “boa”, “melhorou um
pouco”, “está longe do ideal”, “tem muito a melhorar”, “é normal”, “é
razoável”, “não é ruim”, “é sem problema”, “é regular” e “é cheia de
preocupação e de cobrança”. Muitos, porém, da mesma forma que os policiais
militares, se expressaram enfaticamente com expressões negativas, dizendo
que sua vida é “estressante”, “precária”, “ruim” e “péssima”.
296
Focos de Insatisfação e Satisfação
16
com a Qualidade de Vida
Por causa das questões salariais que os induz a fazer ‘bicos’, muitos
policiais, tanto militares como civis, têm uma vida tumultuada e alguns
dizem que sua existência é excessivamente ‘fragmentada’, tendo reflexo na
saúde, na intimidade e no meio social onde convivem.
298
muito sua auto-estima, pois consideram que a maioria procura atuar com
honestidade, seriedade, responsabilidade e compromisso. Em um grupo
focal, cabos e soldados fizeram desabafos em que podemos ressaltar uma
tensão muito forte e confrontante com a sociedade e, sobretudo, com as
populações em áreas consideradas de elevado risco: sentimentos de que são
tratados como lixo, de que seu trabalho é desprezível, o que os faz, em
contrapartida, se enrijecerem mais e cometerem mais violências,
principalmente nas favelas:
Então vamos tirar as máscaras. Eu acho que a Polícia não gosta do tratamento
que a população dá a ela e vice-versa. Então, se digladiam o tempo todo. Isso aí
vai repercutir no quê? No trabalho! Porque se vai depender dela para que esse
camarada viva, o empenho não vai ser tão forte. Então, o meu desejo de que
aquele camarada seja atendido com qualidade vai ser menor, com certeza.
299
O policial militar, assim como o civil, tem sua identidade profissional velada.
É um cidadão que vive no anonimato, senão a gente morre. Os raros momentos
de lazer são de convivência com a família, muitas vezes em casa, pois a gente
tem de pensar muito aonde ir. Não pode levar a família a um lugar e correr o
risco de ser reconhecido como policial.
300
problemas de sono, de alimentação, sentimentos de cobrança e a necessidade
de ficar em alerta permanente:
Eu fico muito cansado. Então, para mim, a minha qualidade de vida é regular,
de regular para ruim, porque eu durmo mal, me alimento mal. (...) O regime de
trabalho não é bom nem para o policial, nem para a instituição. É um homem que
trabalha permanentemente sob cobrança, com carência de nível para trabalhar.
A carência de pessoal, por exemplo, vai fazer com que qualquer levantamento, por
mais básico que seja, ateste o absurdo que se vive nessa instituição.
É Possível Melhorar a
Qualidade da Vida dos Policiais?
Nos grupos focais com soldados, cabos e oficiais e nas entrevistas
com gestores, várias sugestões foram feitas. Um dos oficiais em cargo de
303
chefia, por exemplo, diz que, por ser uma profissão de risco, deveriam ser
criados “antídotos, providências lenitivas que suavizassem os impactos
[negativos] na vida dos policiais”: bom salário, boas condições de trabalho,
bom atendimento médico, hospitalar e odontológico, um programa de
moradia, um programa de educação que lhes ensinasse a serem ponderados,
tolerantes e a se alimentar bem. No caso da alimentação, muitos policiais
sugeriram a presença de um nutricionista por unidade, para estabelecer
cardápios específicos e propiciar refeições apropriadas e mais saborosas.
Por causa das situações cotidianas e corriqueiras de risco, vivenciadas
tanto por policiais civis como por militares, a maioria dos entrevistados
considerou como de extrema necessidade que lhes seja oferecido apoio
psicológico. Muitos policiais militares chamaram a nossa atenção ao
enfatizarem que não querem banalizar a morte e que cada morte de um
colega os confronta com a fragilidade da sua própria vida.
Neste fechamento, cabem algumas observações. A primeira diz
respeito às discrepâncias entre a investigação quantitativa e qualitativa.
Os dados quantitativos ofereceram um panorama muito mais alentador
sobre o tema ‘qualidade de vida’. As informações qualitativas registraram,
sobretudo, as queixas e as insatisfações. Daí a importância de, ao mesmo
tempo, trabalharmos com questionários e ouvirmos os sujeitos que
pesquisamos, de irmos aos seus locais de trabalho e sabermos onde vivem.
E por termos feito esses dois percursos, foi-nos possível observar várias
contradições.
Por exemplo, apesar da simbiose entre vida profissional e vida social,
observamos uma contradição nas percepções dos policiais militares sobre o
mundo do trabalho e as que se referem ao mundo da vida. As queixas e as
notas baixas atribuídas aos pontos problemáticos e negativos das atividades
profissionais são contrapostas a um grande entusiasmo com a vida e com o
futuro, observado entre maioria desses servidores. Na pesquisa qualitativa,
as duras críticas ao processo de trabalho e a todos os temas incluídos neste
conceito foram fortemente associadas à qualidade de vida e aos efeitos
negativos do estresse laboral nas relações familiares.
Outra contradição importante: os policiais subalternos, cabos e soldados
são os mais críticos sobre suas condições de vida, derivadas em grande parte das
condições de trabalho; no entanto, a pesquisa quantitativa mostra que os oficiais,
embora em condições objetivas melhores, apresentam-se menos satisfeitos; e
304
grande parte dos não-oficiais, mesmo estando em pior situação de salário,
de moradia e de lazer, mostra-se mais satisfeita.
Sublinhamos e ressaltamos que há um grupo intermediário na Polícia,
formado pelo escalão de sargentos e subtenentes, com idade entre 40 e 50
anos, há 20-25 anos na profissão, que não tem muitas expectativas de
ascensão. Boa parte desse conjunto de profissionais se mostra muito
insatisfeita ou muito apática. Possivelmente, sua diferença em relação a um
conjunto numeroso de soldados e cabos que são mais otimistas com a vida
e com o futuro se deve à crença, entre os últimos, de que ainda lhes será
possível elevar-se profissionalmente e melhorar seu padrão de vida. Outra
hipótese é que os jovens soldados e cabos se sintam a tempo de desistir e
enfrentar outra carreira, fato que os dados comprovam, mostrando a grande
rotatividade dos que entram e saem da corporação.
As informações que temos permitem-nos ainda outras reflexões.
E uma delas é que os focos de insatisfação não podem se medir apenas
estatisticamente. Por exemplo, quando perguntados sobre expectativas de
melhora nas relações de trabalho, menos de 50% dos cabos e soldados
mostraram-se otimistas. Essa é uma informação preocupante no que concerne
pelo menos a quatro pontos: em primeiro lugar, ao fato de que qualquer
instituição, para que tenha êxito, precisa de um corpo estável e competente
de funcionários que ‘vista a sua camisa’. Isso, na Polícia Militar, parece ser
muito difícil, pois mais da metade da tropa não se sente motivada.
Em segundo lugar, entendemos que a insatisfação em qualquer dos
escalões põe à prova as tentativas que as autoridades têm feito de tornar a
corporação mais contemporânea. Seus esforços têm conseguido envolver
muito pouco os servidores.
Um terceiro fator de insatisfação são as reduzidas perspectivas de
subir na carreira: este dado de realidade afeta o desempenho dos profissionais
e fica patente no grupo de meia-idade composto por sargentos e subtenentes.
E um quarto foco de mal-estar é o tratamento pessoal dispensado, na
corporação, aos policiais dos escalões inferiores. Embora em percentuais
menores, sobretudo os soldados e cabos manifestaram um nível de crítica
bastante elevado sobre o modo como são tratados e com o fato de, embora
realizem um serviço público tão importante para a sociedade, isso traz pouco
retorno para suas condições e expectativas de vida.
305
Podemos concluir, portanto, que esta pesquisa sobre condições e
qualidade de vida dos policiais militares é um estudo sobre as contradições
que eles vivem no trabalho e fora dele. Se é verdade que todos somos
contraditórios e que não é possível estabelecer um curva linear que nos leve
ao bem-estar, ao desenvolvimento e à felicidade, essa tentativa seria totalmente
inglória com os policiais. Eles amam a profissão e a maioria a escolheria
novamente, se lhes fosse necessário optar. Mas há incontáveis críticas às
condições de trabalho e ao que elas trazem de negativo para seu ambiente
social.
Cremos que nos resta dar relevância ao elevado grau de otimismo
com a vida por parte da maioria, sobretudo no caso dos mais jovens, apesar
de todas as dificuldades e de todas as manifestações de insatisfação. Existem
os dados estatísticos mostrando, mais que os qualitativos: um grande
potencial de transformação do estresse e do sofrimento no trabalho em valor
positivo. Tal transmutação evidencia um poder inegável de resistência e de
superação, constituindo talvez aquele ‘gene’ que um dos comandantes de
um batalhão que atua em área de risco diz que seus comandados têm.
Já havíamos constatado esse mesmo potencial de se reinventar e de
enfrentar a vida numa profissão de risco no estudo com os policiais civis
(Minayo & Souza, 2003). Tal descoberta vem reafirmar as teorias (Brant
& Minayo-Gomez, 2004, 2005) que tentam ultrapassar certas idéias
determinísticas de psicopatologização do trabalho e da vida. Esses autores
chamam a atenção para as potencialidades criativas da dor e do sofrimento,
embora alertem também para o fato de que tanto o sofrimento como a dor,
quando reprimidos, costumam ensejar a produção de doenças que afetam o
corpo, a alma e as relações entre as pessoas.
306
Conclusões
pistas no caminho e perspectivas
Valorização Profissional,
Adesão à Profissão e Insatisfações
No desdobrar deste percurso, aprendemos, fomos surpreendidos por
muitas descobertas e, principalmente, buscamos valorizar a ‘pessoa dos
policiais’, problematizando o conceito de segurança em dois sentidos: público
e pessoal. Definimos no texto que ‘segurança pública’ constitui a garantia
que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias,
contra todo o perigo que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida,
da liberdade ou dos direitos de propriedade dos cidadãos, sendo ela a
essência da missão dos policiais e derivada do campo jurídico. Mas, como
cidadãos e trabalhadores, os policiais também têm direito à ‘segurança
pessoal’, conceito que deriva do mundo do trabalho e tem um sentido
normativo e filosófico. Neste caso, o conceito representa a sistematização de
307
normas destinadas a prevenir acidentes, quer eliminando condições inseguras
de trabalho, quer prevenindo desastres ocupacionais. Ou seja, cuidando
da segurança pública, os policiais são, também, servidores públicos
protegidos pela Constituição, que lhes assegura o direito à integridade física
e mental no exercício profissional. Todo o trabalho se encaminhou nessa
dialética de valorização do trabalho e do trabalhador.
Nossa hipótese preliminar era de que, sem a adesão da subjetividade
desses agentes, a segurança pública tão almejada nunca passaria de uma
política burocraticamente exercida, o que é ruim para eles e para a população
à qual servem. Assim, chegamos à conclusão de que, no que tange ao
empenho profissional, impera um espírito de corpo bastante forte na
corporação e um amor à profissão que reúne mais de 70% dos profissionais.
A questão é que, mesmo com um nível de coesão tão elevado, existem também
focos de insatisfação, certamente dizem respeito aos 30% que não se sentem
confortáveis na carreira, mas também em vários aspectos identificados com
a profissão. Os principais motivos, já descritos, são aqui relembrados:
frustração e mesmo ressentimento pela falta de reconhecimento dos superiores
e da população; queixas em relação aos salários, às condições e aos
equipamentos pessoais e de realização do trabalho. Embora possamos
concluir que há resistências e descontentamento entre os trabalhadores de
qualquer categoria, as autoridades deveriam levar em conta o que ocorre
com os policiais militares, uma vez que sua satisfação é pré-requisito de
nossa segurança e proteção.
Algumas reivindicações feitas por quase todos os entrevistados são
aqui colocadas como desafios para as autoridades estaduais e para o comando
geral: melhoria dos salários, modificações nas escalas de horário de trabalho,
investimento em mais tecnologia e sua incorporação nos processos de
trabalho, investimento em mudanças de gestão e na formação das pessoas
que administram os bens à disposição da instituição. De todos esses temas,
comentaremos apenas a questão salarial, mesmo que seja uma redundância,
pois este e todos os temas assinalados anteriormente foram analisados nas
partes específicas deste livro. Estudos comparativos mostram que a Polícia
Militar do Rio de Janeiro é muito mais mal paga do que a maioria de suas
congêneres no país. Ora, para um profissional que tem responsabilidades
tão relevantes, o salário, além de mantê-lo, deveria lhe proporcionar
sentimento de orgulho no exercício das atividades. Os baixíssimos salários,
308
sobretudo para os que estão nos escalões inferiores, trazem muitas
conseqüências funestas: viver em locais de moradia onde existem quadrilhas
de traficantes que os perseguem ou os aliciam; ter de buscar o chamado
‘bico’, o que interfere em seu descanso e o torna defensor de outros interesses
que não os do Estado e dos cidadãos; experimentar constrangimentos quanto
às suas possibilidades de continuar sua formação, ampliar sua cultura e
desfrutar de lazer. Todos esses pontos foram tratados nas páginas deste livro
sob a ótica desses profissionais.
309
da Polícia ostensiva envolve uma quantidade enorme de decisões tomadas
particular ou contingencialmente, cujo controle efetivo exigiria regras
decisórias claras, explícitas e aplicáveis à multiplicidade de situações
enfrentadas cotidianamente.
Ressaltamos que a forma de gestão tradicional acaba, com freqüência,
por produzir efeitos inversos quanto à eficácia e à eficiência desejadas pela
própria corporação. Em estudo de similar importância sobre a Polícia
Militar, Muniz e Soares (1998) listam uma gama de aspectos negligenciados,
sob a capa de competência organizacional, que precisam ser levados em
consideração em projetos de mudança. Reconhecendo com outros autores
que essa corporação “desfruta da imagem de ser a mais organizada das
instituições policiais”, mencionam uma série de problemas práticos que
escapam à rigidez militar. Fazemos nossas as palavras de Jacqueline Muniz:
12
É importante ressaltar que o problema da militarização da Polícia não é privilégio do Rio
de Janeiro. É a forma como são organizadas as PM dos estados onde essa situação também
vem sendo discutida. Há também várias polícias latino-americanas organizadas da mesma
forma (Waldmann, 1996; Pascolo, 1997), assim como é a situação da Polícia francesa e
a dos Estados Unidos (Bittner, 2003).
310
grupo; diminuem os níveis hierárquicos; concebem a qualidade não como
um controle externo, mas como parte da atividade de cada um; valorizam e
responsabilizam o empregado em qualquer instância; premiam e destacam
o desempenho de cada um e do seu grupo; aproveitam o saber dos
trabalhadores, instituindo estratégias de mudanças internas com base na
experiência individual e coletiva (Antunes, 1999; Alves, 2000).
A superioridade dessa proposta que está vigorando nas empresas
mais avançadas e competitivas do mundo inteiro se deve, em grande parte,
à capacidade de produzir estratégias efetivas para integrar e valorizar a
subjetividade dos trabalhadores, contar com sua criatividade e
responsabilizá-los individual e coletivamente pelo desempenho pessoal e
institucional. Na verdade, não sabemos se a proposta de flexibilização seria
a melhor solução organizacional para a Polícia Militar. No entanto, juntando
nossa palavra com a de Muniz e Soares (1998) e Musumeci (2000),
ressaltamos a necessidade de que a corporação enfrente uma séria discussão
sobre a propriedade de sua estruturação diante das exigências do mundo
contemporâneo e de uma sociedade que deseja uma Polícia bem informada,
bem treinada, flexível e ágil.
311
Em segundo lugar, observamos uma tradição de fechamento da
Polícia para a sociedade, embora, nos últimos anos, alguns comandantes
tenham sido quase heróicos no esforço de buscar meios de promover a
abertura corporativa, primeiro passo para a democratização. Por causa dessas
características, o próprio Estado tem dificuldade de orientar essa instituição
em que a maioria dos membros resiste bravamente a tudo o que é suscetível
de introduzir a voz dos usuários na sua programação. Por julgar-se tão
diferente, especial e tão acima do que ocorre na sociedade, a Polícia Militar
apresenta dificuldades em introduzir o controle externo de seus atos e em
definir prioridades, objetivos, metas, parcerias e avaliação.
Em terceiro lugar, notamos que, no discurso da categoria, a
responsabilidade pelos problemas que os policiais não conseguem resolver
é sempre atribuída ao ‘outro’: à família ‘em dissolução’, que não consegue
domesticar e dar limites aos jovens; à escola, que é fraca e não educa como
deveria fazer; ao governador, ao secretário de Segurança e às chefias, que
só agem por razões políticas; às comunidades, todas elas corrompidas pelos
criminosos; e ao aparelho judiciário, que é lento e age contra as ações da
Polícia. No caso dos governadores, um dos problemas mais ressaltados pelos
policiais é a ingerência política, que impede a continuidade de ações de
um mandato para outro. Além da descontinuidade, a maioria deles se
ressente da falta de um planejamento competente que traria benefícios para
a segurança pública. Mas, na opinião de muitos entrevistados, as propostas
sérias e duradouras costumam ser freqüentemente trocadas por “ações que
aparecem” para a sociedade e para a mídia. Nesse caso, eles costumam
associar os propósitos dos titulares da pasta de Segurança Pública com os
projetos políticos dos governadores de turno.
Em quarto lugar, e em conseqüência das três primeiras características,
a instituição da Polícia comunitária, que se apresenta para alguns chefes
da corporação como uma estratégia importante de reaproximação entre os
agentes e os cidadãos, é menosprezada pela maioria. O que para alguns
comandantes é visto como o melhor caminho para solucionar os problemas
da pequena delinqüência e para promover a prevenção de crimes, a maioria
dos policiais considera uma forma de trabalho social que deve ser repudiada
como foco de sua atuação. No caso do Rio de Janeiro, a Polícia comunitária
permanece como exceção, e os policiais que trabalham nesse programa –
porque crêem na prevenção – são considerados ‘militantes’ pelos outros e,
312
portanto, tidos como marginais ao foco de ação do ‘verdadeiro trabalho
policial’. Além do mais, os resultados da Polícia comunitária são difíceis
de serem avaliados quantitativamente, em virtude da falta de indicadores
específicos. Em conseqüência, não são sancionados positivamente pela
instituição para efeitos de promoção interna ou de carreira policial, ficando
assim desintegrados do conjunto das ações e normas corporativas.
Observamos, como síntese dos problemas assinalados, que a imagem
da maioria dos policiais militares sobre si mesmos reflete sentimentos de
desvalorização institucional e de não-reconhecimento social pelo seu trabalho,
produzindo neles uma identidade que oscila de arrogante a defensiva.
Arrogante, principalmente, por vestirem um uniforme, pelo sentimento
corporativo e por portarem armas. Defensiva, pelo embate permanente com
a opinião pública e com o fato de não ‘darem conta’ de ‘combater a
criminalidade’ e manter a ordem em um Estado com alto nível de insurgência
e de criminalidade. Infelizmente, a visão negativa é mais forte entre os
policiais que estão na linha de frente das atividades ostensivas.
Consideramos também como muito importante o fato de que, na
corporação, seja repensada sua relação com a mídia, a quem os policiais
atribuem a culpa pela falta de reconhecimento da população. Entrevistas
com agentes de todos os escalões revelam que há uma verdadeira
demonização dos meios de comunicação. Quando, ao contrário, um processo
de democratização da Polícia deveria significar uma abertura quase que
ilimitada a essa instituição tão necessária para arejar pensamentos,
comportamentos e ação. Mostramos no estudo que, ao contrário do que
pensam os policiais, pesquisas relatadas nos jornais do estado do Rio de
Janeiro sobre eles e suas atividades revelam considerável percentual
de matérias a seu favor e de suas ações. A aproximação entre mídia e Polícia
só faria bem, com certeza, a ambas as instituições, inclusive porque o bom
jornalismo exigiria o acompanhamento dos problemas e a cobrança de
medidas das autoridades, das quais os policiais também se queixam.
O segundo eixo norteador do nosso trabalho foram as condições de
saúde física e mental dos policiais militares. Tentamos aqui indicar as
principais questões que se destacaram na análise desta parte da pesquisa.
313
É Preciso Ampliar o Cuidado com
a Saúde Física dos Policiais
Ficou muito claro no desenvolvimento do estudo que os policiais se
alimentam mal e não se exercitam. Como conseqüência, observamos, no
conjunto, elevados níveis de obesidade, hipertensão e colesterol. Esses, bem
como os demais problemas de que padecem, não têm sido devidamente
contemplados pelos serviços de saúde, tanto da Polícia como da rede pública.
Ressaltamos a insuficiência dos equipamentos e profissionais especializados,
itens que permanecem inalterados numericamente enquanto cresce o efetivo e
o número de seus dependentes. Além da insuficiência, não há disponibilidade
de muitas especialidades necessárias ao cuidado dos problemas de saúde que
apresentam. O atendimento, na maioria dos casos, é moroso, havendo largos
intervalos entre a marcação e a consulta. Finalmente, convém destacar os
relatos reincidentes de que o atendimento nos serviços de saúde da Polícia
prioriza os oficiais em detrimento das praças, que são em número muito maior.
315
de vidas que tanto afetam as famílias e a sociedade como um todo. São
absurdas as taxas de mortes entre policiais, mas também é absurda a
quantidade de óbitos de civis, gerados no confronto Polícia versus ‘suspeitos’
e ‘criminosos’. Sob a alegação de que a Polícia está combatendo a
criminalidade, têm sido ceifadas muitas vidas inocentes.
Sobre a vitimização dos policiais, primeiramente devemos sublinhar
que há uma oscilação na série histórica dos últimos dez anos, indicando
que determinados tipos de políticas e estratégias são mais ou menos letais.
Também temos exemplos de países em que a taxa de morte de policiais foi
se reduzindo progressivamente, de acordo com políticas adotadas
especificamente para se atingir essa meta.
Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro, em
particular de sua Polícia Militar, é criar um ambiente e uma cultura de
segurança pública e cidadã, o que certamente tem a ver com a questão
social e com o processo de democratização dos cidadãos e da instituição.
Esse processo inclui, entre outros tipos de iniciativas, estratégias, instrumentos
e tecnologias menos agressivos de controle da violência contra o policial e
por parte deles, da criminalidade e do clima de acirramento de conflitos
sociais. Significa, também, maior abertura da corporação policial, o que
quer dizer sua democratização. Desta maneira, o exercício da segurança
pública se encontrará com os princípios da segurança humana. Deixará de
se transformar em uma profecia de morte da população civil e dos servidores
que têm a obrigação constitucional de manter a ordem e coibir o crime, e
não de matar ou cumprir o destino ou a fatalidade de viver e morrer vítimas
da insegurança social.
316
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Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Cheltenhm BT e Chianti BT
Papel: Pólen Bold 70g/m2 (miolo)
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Fotolito: Engenho e Arte Editoração Gráfica Ltda. (capa)
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Rio de Janeiro, setembro de 2008