Missão Prevenir e Proteger.

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Missão prevenir e proteger

condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro

Maria Cecília de Souza Minayo


Edinilsa Ramos de Souza
Patrícia Constantino
(coords.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MINAYO, MCS., SOUZA, ER., and CONSTANTINO, P., coords. Missão prevenir e proteger:
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008. 328 p. ISBN 978-85-7541-339-5. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0
International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição
4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons
Reconocimento 4.0.
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MINAYO, MCS., SOUZA, ER., and CONSTANTINO, P., coords. Missão prevenir e proteger:
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro [online]. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008. 328 p. ISBN 978-85-7541-339-5. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

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Missão Prevenir e Proteger
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
Presidente
Paulo Marchiori Buss

Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação


Maria do Carmo Leal

EDITORA FIOCRUZ
Diretora
Maria do Carmo Leal
Editor Executivo
João Carlos Canossa Pereira Mendes
Editores Científicos
Nísia Trindade Lima e Ricardo Ventura Santos

Conselho Editorial
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Gerson Oliveira Penna
Gilberto Hochman
Lígia Vieira da Silva
Maria Cecília de Souza Minayo
Maria Elizabeth Lopes Moreira
Pedro Lagerblad de Oliveira
Ricardo Lourenço de Oliveira
Missão Prevenir e Proteger
condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro

Maria Cecília de Souza Minayo


Edinilsa Ramos de Souza
Patrícia Constantino
coordenadoras
Copyright  2008 dos autores
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA

ISBN: 978-85-7541-161-2

Projeto gráfico
Daniel Pose

Foto da capa
São Jorge, de Jorge Shark - charquinho.blogs.sapo.pt

Copidesque e revisão
Ana Prôa e Irene Ernest Dias

Revisão de provas
Marcionílio Cavalcanti de Paiva

Normalização de referências
Clarissa Bravo

Este livro é resultado de pesquisa que contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Catalogação na fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
M663m Minayo , Maria Cecília de Souza (coord.)

Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do
Rio de Janeiro. / coordenado por Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza
e Patrícia Constantino. – Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2008.

328 p., il., tab., graf.

1. Polícia - Rio de Janeiro. 2. Condições Sociais. 3. Condições de Trabalho. 4.


Saúde do Trabalhador. 5. Riscos Ocupacionais. I. Souza, Edinilsa Ramos de (coord.).
II. Constantino, Patrícia (coord.). III.Título.

CDD - 22.ed. – 363.11

2008
EDITORA FIOCRUZ
Av. Brasil, 4036 – 1o andar – sala 112 – Manguinhos
21040-361 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 3882-9007 / Telefax: (21) 3882-9006
e-mail: [email protected] – http://www.fiocruz.br
Autores

Maria Cecília de Souza Minayo (coordenadora)


Socióloga, antropóloga, doutora em ciências da saúde. Pesquisadora do
Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Edinilsa Ramos de Souza (coordenadora)
Psicóloga, doutora em ciências da saúde. Pesquisadora do Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Patrícia Constantino (coordenadora)
Psicóloga, doutora em ciências da saúde. Pesquisadora do Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Simone Gonçalves de Assis
Médica, doutora em ciências da saúde. Pesquisadora do Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Miriam Schenker
Psicóloga, doutora em ciências da saúde. Pesquisadora colaboradora do
Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz); preceptora e coordenadora de Pesquisa do
Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DMIF/Uerj).
Liane Maria Braga da Silveira
Antropóloga, doutoranda em antropologia social. Pesquisadora do
Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Adalgisa Peixoto Ribeiro
Fisioterapeuta, doutoranda em saúde da criança e da mulher no
Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Pesquisadora do Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz).
Cleber Nascimento do Carmo
Estatístico, mestre em estudos populacionais e pesquisas sociais.
Pesquisador colaborador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp/Fiocruz).
Thiago de Oliveira Pires
Estatístico. Assistente de pesquisa do Centro Latino-Americano de
Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Ensp/Fiocruz).
Sumário

Prefácio 9
Apresentação 13

Parte I - Contextualização
1 Estratégias de Pesquisa:
triangulando métodos, técnicas e perspectivas 25
2 Formação Social da Polícia Militar do Rio de Janeiro 41
3 Perfil Sociodemográfico, Profissional e Econômico 67

Parte II - Condições de Trabalho dos Policiais Militares


4 Estrutura Organizativa 89
5 Seleção e Recrutamento, Formação e Carreira 99
6 Jornada de Trabalho 117
7 Condições Materiais, Técnicas e Ambiente de Trabalho 127
8 Relações Hierárquicas e entre Pares 141
9 Imagem e Identidade 153

Parte III - Condições de Saúde e Risco Profissional


10 Profissão de Risco 183
11 Condições de Saúde Física dos Policiais Militares 205
12 Prazer, Estresse e Sofrimento Mental 217
13 Serviços de Atenção à Saúde 245
Parte IV - Condições e Qualidade de Vida
14 Indicadores Objetivos de Qualidade de Vida:
moradia, transporte, descanso e lazer 275
15 Indicadores Subjetivos de Qualidade de Vida:
percepção sobre relações, apoio social e visão de futuro 283
16 Focos de Insatisfação e Satisfação
com a Qualidade de Vida 297

Conclusões: pistas no caminho e perspectivas 307


Referências 317
Prefácio

Em 2000, buscava dados sobre violência contra policiais militares


para instruir uma monografia que versava sobre treinamento de tiro destinado
a esses profissionais, que atuam em áreas consideradas de risco. Fiquei
impressionado com as poucas, porém importantes, informações conseguidas
nos órgãos de saúde e de administração de pessoal da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), em razão da quantidade de policiais
mortos e feridos em serviço e nos horários de folga. Entendia, na época,
que os fatos estavam relacionados, tão-somente, com a falta de preparo
técnico dos operadores de segurança pública.
Para uma melhor compreensão do fenômeno, cheguei ao Centro
Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Oswaldo
Cruz (Claves/Fiocruz). Nesse centro de excelência, conheci Maria Cecília
de Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza. Após meu relato sobre o
objetivo de minha ‘incursão’ naquele ‘campo’, as pesquisadoras me
apresentaram o projeto de pesquisa Missão Investigar. Ambicioso projeto
que tinha o escopo de investigar as condições de vida, trabalho e saúde dos
policiais civis do estado do Rio de Janeiro.
Surpreso pelo interesse do Claves em investigar o trabalho e suas
conseqüências na saúde do policial civil, não hesitei em propor que os limites
da pesquisa fossem estendidos para abranger a Polícia Militar. Unindo-me
às professoras Minayo e Edinilsa e visando a integrar outros parceiros na
missão de buscar recursos para a pesquisa, durante o ano 2000, chegamos
ao grande obstáculo da autorização para sua realização na PMERJ. Foi
com pesar que recebi a resposta negativa. Em 2003, assisti ao lançamento
do livro Missão Investigar, sabendo da dimensão da pesquisa como potencial
fator de transformação para a Polícia Civil e para a sociedade.

9
Em 2006, durante um encontro casual com as professoras Maria Cecília
Minayo e Edinilsa Ramos, na Academia de Polícia Civil, no Centro do Rio
de Janeiro, tomei conhecimento de que a pesquisa na PMERJ havia sido
autorizada pelo então comandante-geral e estava sendo realizada desde meados
de 2005. Em fevereiro de 2008, fui convidado pelo Claves para ter a honra
de ler o resultado da pesquisa em primeira mão, o qual passo a comentar.
O resultado do trabalho apresentado neste livro possui a capacidade
de construir, juntamente com o leitor, o entendimento da natureza da função
da Polícia Militar na sociedade. A análise da história sob o aspecto de seus
antecedentes, sua instituição e institucionalização, seus integrantes e suas
funções legais, pretéritas e atuais, consolida o conhecimento sobre as
representações culturais da corporação. Seus valores, ritos e crenças, bem
como a discrepância entre o discurso e a prática, e suas influências na forma
de sentir, pensar e agir desses trabalhadores passam a ter significado para
os ‘outros’: o leitor e a sociedade em geral.
Expor as condições de trabalho do ‘universo’ dos policiais militares é
descortinar uma realidade até então ignorada. Os aspectos organizacionais,
o processo de seleção e formação das pessoas que adentram este mundo, a
carreira, a interação entre os membros da corporação, a jornada de trabalho,
as condições materiais, técnicas e ambientais e a imagem construída na
interação com a sociedade apresentam-se como elementos essenciais ao
processo de construção do conhecimento, que é ver com o olhar da alteridade.
Conhecer as condições de saúde física e de risco dos ‘trabalhadores
policiais’ significa poder avaliar as conseqüências das condições de trabalho
impostas a estes operadores de segurança das pessoas. Avaliar os problemas
de saúde, as lesões e incapacitações, o estresse e o sofrimento mental em
razão do trabalho, referenciados com outras categorias de trabalhadores,
por pesquisas e autores reconhecidos, permitirá ao leitor mensurar o nível
de pressão física e psicológica a que nossos ‘guardiões’ estão sujeitos.
Pesquisar e relatar as condições e a qualidade da vida dos policiais
militares é reconhecer sua condição de trabalhador brasileiro. Analisar as
interações entre o trabalho policial e as pessoas em sociedade, as condições
socioeconômicas e ambientais dos policiais, a moradia, o acesso à saúde e à
educação, bem como os hábitos alimentares e culturais, é reconhecer sua
real condição para o pleno exercício do mandato do uso da força para a
preservação da ordem pública.

10
O resultado da pesquisa, em sua essência, humaniza o ‘trabalhador
policial militar’ quando expõe sua condição de trabalho, saúde, risco e
qualidade de vida. Derruba o mito do militar superior ao tempo e às
adversidades que o meio ambiente lhe impõe. Mostra que, estabelecendo a
‘missão’ como meta a ser atingida a ‘qualquer preço’, distorce a realidade e
nos faz esquecer que estamos tratando de pessoas. São trabalhadores –
pais, mães, filhos e filhas – pagos para executar um serviço, como qualquer
outro em qualquer lugar do país: o trabalho de prevenir e proteger outras
pessoas. Na verdade, de nos proteger.
Este magnífico trabalho, mais que uma pesquisa, é uma ferramenta
de gestão pública. Compreendido como um diagnóstico, e não como uma
crítica à instituição Polícia Militar, possui a capacidade de fornecer não
somente dados e informações, mas conhecimentos fundamentais para a
formulação e reformulação de políticas públicas. Que os gestores,
competentes e comprometidos com a segurança das pessoas deste Estado,
façam bom proveito do trabalho, tal como os pesquisadores de diversos
campos certamente o farão.

Paulo Storani
Capitão da reserva da Polícia Militar, ex-integrante
do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e
secretário municipal de Segurança Pública de São Gonçalo

11
Apresentação

Este livro apresenta um estudo sobre as condições de trabalho, saúde


e qualidade de vida da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ). É fruto de uma pesquisa empírica que combinou a aplicação
de questionários em uma amostra representativa desses agentes e entrevistas
e grupos focais também representativos de todos os segmentos da categoria.
O principal objetivo da pesquisa que deu origem a esta obra foi
produzir informações estratégicas visando a subsidiar ações dos profissionais,
da corporação e de seus gestores, para adequar a corporação às necessidades
atuais da segurança pública.
Durante os anos 2001 a 2003, a equipe do Centro Latino-Americano
de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Claves/
Fiocruz) realizou um estudo semelhante e detalhado sobre a Polícia Civil
do Rio de Janeiro, cujos resultados se encontram no livro Missão Investigar:
entre o ideal e a realidade de ser policial, coordenado por Maria Cecília de
Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza.
Quando fizemos o trabalho de campo para produzir a investigação
que redundou no livro citado (entre 2001 e 2002), era nossa intenção
realizar simultaneamente o estudo da Polícia Civil e da Polícia Militar.
Este era um desejo, inclusive, de policiais civis e militares que haviam nos
procurado no Claves, pedindo e sugerindo que investíssemos em uma
pesquisa de suas corporações, uma vez que ninguém havia ainda estudado
a polícia do ponto de vista do policial.
Este espaço seria pequeno para contar as dificuldades que tivemos
para obter êxito nessa empreitada. Somente ao final de 2001, quase um ano
depois de inúmeras tentativas, conseguimos que as autoridades competentes
da Polícia Civil baixassem a guarda e nos consentissem iniciar o trabalho.
Havia nos meios corporativos com os quais nos comunicávamos e
que apoiavam a realização da pesquisa a opinião de que nunca conseguiríamos

13
fazer um trabalho de pesquisa com os policiais civis, considerados
indisciplinados para os padrões que regem as autoridades da corporação
militar. Na verdade, não foi fácil a tarefa de convencimento das chefias de
diferentes escalões da Polícia Civil, e cada passo no trabalho de campo tornou-
se uma conquista. Na parte metodológica do livro Missão Investigar, contamos,
por alto, as dificuldades que encontramos. Entre elas, citamos apenas o fato
de ter de ampliar o número de delegacias investigadas, pois havia recusas de
chefias que, assim, fechavam as portas para os contatos com seus outros
profissionais. Ocorreu também muita devolução de questionários em branco
por parte dos policiais sorteados.
A todos os problemas de entrada em campo somamos as dificuldades
próprias às especificidades da atividade investigativa da Polícia Civil quanto
às escalas de trabalho, que freqüentemente eram trocadas sem que fôssemos
avisados, a urgências de atendimento nos dias e horários agendados para
encontros, entre outros motivos que nos impediam de ter acesso a
determinados agentes. No entanto, conseguimos realizar a pesquisa, e
quando apresentamos seus resultados em várias sessões, nas quais tivemos
a presença – somando todas – de quase mil policiais, a esmagadora maioria
ficou muito contente de se ver retratada. Sobretudo, os policiais civis
ressaltavam o fato de que, pela primeira vez, alguma instituição havia se
interessado por eles e não apenas pelos problemas da segurança pública.
Apesar de, desde o início das tentativas para a realização da pesquisa,
termos conseguido um documento oficial de consentimento emanado do
secretário de Segurança Pública, não tivemos acesso à Polícia Militar. Isso
contrariava toda a lógica vigente em dois sentidos: primeiro, a dificuldade
não era mais proveniente da ‘polícia civil desorganizada’ e, segundo, a recusa
do comandante geral a ‘aprovar’ a realização da pesquisa já consentida
pelo secretário de Segurança Pública estava nos dizendo que os princípios
hierárquicos tinham limites, alguns dos quais não poderíamos ultrapassar.
O porquê dessa recusa, tal como nos foi explicitado, importa aos objetivos
deste trabalho. Na ocasião, o comandante da Polícia Militar estava muito
contrariado com informações, dados e opiniões exarados por pesquisadores
que, segundo essa autoridade, eram desabonadores da corporação. Ou seja,
havia um conflito aberto e não resolvido entre pesquisadores e as autoridades
da Polícia Militar, diante do qual se esvaíram nossas possibilidades de realizar
o estudo. Apenas na metade de 2005, também depois de muitas tentativas,

14
conseguimos permissão de outro comandante para a pesquisa, no caso um
terceiro que havia sucedido o que contatamos primeiramente. Dessa forma,
este estudo foi realizado de 2005 a 2007.
Julgamos importante assinalar essa situação que, segundo clássicos da
pesquisa empírica (Lévi-Strauss, 1975; Berreman, 1975; Becker, 1994;
Bourdieu, 1972, entre outros), faz parte do contexto e dos resultados da
investigação, para reafirmar aqui algumas características da corporação policial
não só brasileira, mas de todo o mundo: conservadorismo, fechamento para a
sociedade, pessimismo e isolamento das outras instâncias democráticas, tudo
isso contrabalançado por um forte espírito de corpo. Bretas (1997a: 82)
comenta em um texto sobre o que chama de “crise” ou “falência da polícia”:

este conjunto de elementos [citados anteriormente] produz uma visão


preferencialmente negativa do mundo exterior – reflexo do tipo de evento
apresentado [à polícia] diariamente – incluindo aí o sistema legal como
um todo – que lhe deixa escapar delinqüentes que ela poderia pegar com
facilidade se não tivesse que respeitar os limites legais.

Em geral, foi com esse universo bastante reticente e arredio de pessoas


que lidamos durante a pesquisa. Por exemplo, no caso dos grupos focais de
soldados e cabos, muitos demonstravam medo de dizer o que pensavam
sobre os temas sugeridos, o que nos sugere fechamento e censura interna na
instituição. Mas também gostaríamos de ressaltar que encontramos
comandantes, chefes intermediários e agentes de todos os escalões que não
só acolheram e entenderam nossa proposta, como foram importantes
colaboradores para que a investigação acontecesse com sucesso. Buscamos
evidenciar a todos que nosso foco de atenção seria a ‘pessoa do policial’.
Que era desse ponto de vista que trataríamos as condições de seu trabalho
dentro da especificidade do mercado do setor público de serviços, a situação
de sua saúde e também da qualidade de sua vida. Ressaltamos, ainda, que
haveria uma orientação estratégica1 do estudo para que os aspectos
problemáticos levantados por eles fossem tratados como subsídios para
mudanças qualitativas na corporação. Na parte metodológica, detalhamos
melhor o movimento do trabalho de campo.
1
Entende-se aqui por investigação estratégica a que, de acordo com Bulmer (1986) e
Minayo (2000), está voltada para iluminar aspectos da realidade passíveis de intervenção
social ou governamental.

15
Depois de termos escrito o livro Missão Investigar, a hipótese que
orientou esta análise é a de que iríamos encontrar uma situação mais
exacerbada de riscos pessoais e coletivos no exercício profissional dos policiais
militares do que no dos policiais civis. Para que pudéssemos produzir
algumas comparações que poderão ser lidas neste livro, utilizamos a mesma
base de instrumentos de coleta de dados para estudar as duas corporações.
Os conceitos centrais desta pesquisa são risco e segurança, trabalho,
saúde e qualidade de vida. Os dois primeiros dizem respeito à condição
intrínseca à profissão de policial. A instituição policial se destaca na
sociedade brasileira pelo seu papel estabelecido no artigo 144 do capítulo
III da Constituição Federal, que trata da segurança pública. À Polícia Militar
cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (§ 5o, art.
144) em nível estadual.
Historicamente, as corporações policiais (no caso brasileiro, a Polícia
Militar e a Polícia Civil) fazem parte do Estado moderno que toma para si
o monopólio da violência, como referem Foucault (1989), Santos (1997)
e outros. Podemos dizer que em todas as duas corporações subsiste um
‘mito de origem’ comum, que se caracteriza pela missão de preservar a
ordem pública como um dos pilares da defesa da sociedade.
Autores como Santos (1997), Bretas (1997a) e Kahn (1997)
analisam as similitudes dos vários tipos de polícia no mundo e especificam
seu papel nos Estados periféricos. Esses autores coincidem na constatação
de que, em países como o Brasil, os policiais tendem a exceder o seu poder,
a agir com truculência, a privilegiar as classes dominantes. Dessa forma,
acrescentam à sua missão constitucional uma terceira dimensão de ordem
axial e atitudinal que os torna autores de várias formas de violência ilegítima,
sobretudo contra os pobres e o povo em geral. Skolnick, no entanto,
utilizando depoimentos de policiais da cidade de Sheffield, no Reino Unido,
julgados por espancamento, comenta que os policiais do mundo inteiro
tendem a extrapolar seu papel legal, por considerarem

que os tribunais tratam os criminosos de forma muito branda; que os criminosos


não respeitam as leis e a polícia precisa e deve fazer o mesmo para chegar na
frente; que a força é aceitável como último recurso de investigação quando os
outros métodos falham; e que uma boa surra é o único meio de desviar um
criminoso de sua vida de crimes. (Skolnick, 1966: 68)

16
Poderíamos dizer, sem dúvida, que existe uma tradição policial de exceder
os limites das leis, a qual não obedece fronteiras nacionais. Porém, em países
periféricos como o Brasil, o grau de adesão à legalidade é muito baixo.
O livro Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade
do século XIX, de Thomas Holloway (1997), citado em vários momentos
nesta obra, caracteriza a conformação estrutural das corporações policiais
neste estado, enaltecendo a importância de estudá-las, por serem seminais
para o entendimento de todas as outras polícias do país. Em capítulo
específico deste livro, relataremos com mais detalhes esta história.
Resumimos, a seguir, os conceitos referenciais desta pesquisa:
1) Risco e segurança tal como tratados pela Polícia – Tais
conceitos, muito caros à atividade policial, sofreram modificações
ao longo da história e hoje têm conotação totalmente diferente.
Associado a toda ação humana que exija decisão, o ‘risco’ se revela
hoje tão mais iminente e ameaçador quanto mais as formas de operar
escapam aos contextos estruturados e definidos. Os avanços sociais,
científicos e tecnológicos, na teoria e na prática, vêm mostrando que
todas as sociedades se confrontam, contemporaneamente, com o
aleatório e com a irrupção da incerteza e do inesperado.
Os estudiosos do tema ‘risco’, na atualidade, ressaltam que o
passado dificilmente explicará o momento presente. Ou seja, o que
aconteceu antes não ajudará mais a prever e a prevenir o que possa
vir a ocorrer. Assim, o risco da criminalidade que ocorre na
vizinhança é apenas mais um a se somar na consciência do ser
humano pós-industrial. Na verdade, o crime na sociedade industrial,
ainda que persistam suas formas tradicionais (que continuam a ser
as mais visíveis), contemporaneamente ganha estratégias e artefatos
poderosos com nova geração de armamentos, organização em rede
por caminhos virtuais e novas possibilidades de ocultação dos
verdadeiros e maiores delinqüentes.
Etimologicamente, a palavra ‘risco’ deriva do vocábulo riscare
e tem a idéia associada a ‘ousar’. No sentido sociológico, risco
significa uma opção, e não um destino (Bernstein, 1997). No
caso, a Polícia Militar pode ser configurada como uma organização
em que esse conceito faz parte da escolha profissional e desempenha

17
um papel inerente às condições de trabalho, ambientais e
relacionais. Os profissionais que compõem a instituição têm
consciência disso. Seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam.
No campo da saúde, o conceito de risco é central.
A epidemiologia o define como a probabilidade, em condições
específicas, de uma pessoa sofrer agravos ou adquirir determinada
enfermidade. Do ponto de vista dos policiais militares, seu ‘risco
epidemiológico’ se caracteriza principalmente nos confrontos armados,
nos quais se expõem e podem perder a vida. A probabilidade que
têm de sofrer graves lesões, traumas e mortes encontra respaldo nas
altas taxas de óbito por violência de que são vítimas, dentro e fora de
seu ambiente de trabalho (Souza & Minayo, 2005).
O sentido de risco, adequado para descrever a situação
intrínseca à profissão de policial, combina a visão epidemiológica e
a visão sociológica e antropológica. A primeira lhe dá parâmetros
quanto à magnitude dos perigos, aos tempos e aos locais de maior
ocorrência das fatalidades. A segunda responde pela capacidade, e
até pela escolha profissional, do afrontamento e da ousadia como
escolhas.
Nesta pesquisa, analisamos o risco real e a percepção de risco,
ou seja, perguntamos como se configura este fenômeno, ao mesmo
tempo subjetivo e objetivo, vivido no exercício da profissão, dentro e
fora do ambiente de trabalho. A ampliação do foco da noção de
risco também para o âmbito exterior se deve ao fato de que, por ser
condição intrínseca da profissão, as situações envolvidas e as
representações que criam impregnam o ambiente de trabalho e a
pessoa que assume a identidade e incorpora a instituição.
O contraponto do conceito de risco é a noção de ‘segurança’.
Segurança é a matéria-prima do trabalho policial. No entanto, existe
hoje uma forte hipótese a respeito da crise do modelo liberal de
organização policial, cujo principal sintoma é o aumento da
insegurança. Vimos isso neste estudo exemplificado no fato de que,
em vários momentos, os próprios policiais se queixam de não terem
segurança para trabalhar.

18
No mundo contemporâneo, nunca houve tantos aparatos para
garantir a vida e a incolumidade dos cidadãos e nunca eles se
sentiram tão frágeis e desamparados. Isso significa que os termos
‘risco-insegurança’ são hoje bastante fluidos e subjetivos,
independentemente de haver ou não maiores garantias nas
sociedades pós-industriais. Portanto, ao nomear a ‘insegurança’ como
um termo característico da contemporaneidade, estamos falando
principalmente do ‘sentimento de insegurança’ que todos temos e
que, freqüentemente, atribuímos injustamente apenas à
incompetência da polícia. Pois não é verdade que vivemos mais
perigosamente agora do que há cem ou duzentos anos. Ou, ainda,
que sociedades diferentes e menos tecnológicas que as nossas sejam
mais seguras. Apesar de todas as situações perigosas, da pobreza e
das expressões de miséria atuais, apesar de todos os novos perigos
criados pelas tecnologias, dificilmente alguma época histórica e algum
contexto social foram tão seguros, como afirmam Beck (1992) e
Giddens (2002).
No entanto, a idéia de segurança com a qual a Polícia trabalha
continua restrita como no passado. Assim como o conceito de risco,
a idéia de segurança nasceu entre os séculos XVII e XVIII, quando
os Estados absolutistas passaram a planejar o desenvolvimento e a
organização das cidades visando à vigilância dos citadinos e à oferta
de condições de convivência civilizadas de forma presencial,
localizada e burocratizada. Hoje, o conceito de segurança pode até
tê-la como seu guardião simbólico, mas precisa estar socializado
com muitas outras instituições e organizações, diante das quais cabe
à polícia o papel de coordenação e ordenação.
Por fim, problematizamos o conceito de segurança em dois
sentidos: ‘público’ e ‘pessoal’. Segurança pública, segundo Silva
(1998), constitui a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por
meio de organizações próprias, contra todo perigo que possa afetar
a ordem em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de
propriedade dos cidadãos: é a essência da missão dos policiais e
deriva do campo jurídico. Já segurança pessoal deriva do mundo do
trabalho e tem um sentido normativo e filosófico. No primeiro caso,
representa a sistematização de normas destinadas a prevenir

19
acidentes, quer eliminando condições inseguras de trabalho, quer
prevenindo desastres ocupacionais. Cuidando da segurança pública,
os policiais são, também, servidores públicos protegidos pela
Constituição, que lhes assegura o direito à integridade física e mental
no exercício do trabalho.
No sentido filosófico clássico, segurança se confunde com
previsibilidade, com ausência de risco e com repetição do presente
no futuro. E, quando há algo a mudar, tal mudança é livremente
consentida pelos referentes. No sentido filosófico contemporâneo, a
partir das teorias da complexidade, o termo ‘segurança’ é substituído
pelo de ‘equilíbrio instável’, muito mais próximo à idéia de
transformação permanente, de caos e de incerteza. Nesse último
sentido, a produção de mudanças está orientada para várias saídas,
de acordo com as escolhas pessoais e sociais.

2) Trabalho, condições de trabalho e processo de trabalho –


Trabalho é uma categoria estruturante tanto das condições de saúde
como das condições de existência e de risco. Refere-se à mediação
da atividade humana na construção das tecnologias e da vida social.
Enquanto constrói e reconstrói o mundo, o ser humano constrói e
reconstrói a si mesmo.
‘Condições de trabalho’ é um conceito que se refere à situação
que precede e perpassa a atividade dos sujeitos e a limita como uma
resultante dos processos sobre os quais os trabalhadores interferem
em sua dinâmica de intersubjetivação. Os elementos que compõem
este último conceito, central para a análise referenciada no trabalho,
são: a atividade prescrita e adequada; o objeto e a matéria sobre os
quais o trabalhador opera; os meios e instrumentos que lhe servem
de mediação; as relações que ocorrem no coletivo de trabalhadores
e com as hierarquias; o mundo simbólico que aí é gerado, envolvendo
as relações e a atividade técnica e se introduzindo na produção
(Brighton Labour Group, 1991; Minayo-Gomez & Thedim-Costa,
1997; Minayo & Souza, 2003).
Do ponto de vista dos riscos e da segurança, entendemos que,
se o processo de trabalho constitui um lócus privilegiado da realização

20
humana, ele também produz (em escala específica referente às
condições em que é exercido) desgaste físico e mental.

3) Condições de saúde – O terceiro macroconceito estruturante


deste trabalho é ‘condições de saúde’. No caso concreto, entendemos
que existe estreita relação entre as atividades exercidas pelos policiais
e o nível de bem-estar e de problemas sanitários que apresentam no
campo físico e mental. Na vinculação entre processo de trabalho e
saúde, várias e imbricadas dimensões devem ser contempladas com
base em conceitos mediadores (Minayo-Gomez & Thedim-Costa,
1997). Alguns dos mais importantes são: aspectos socio-históricos
que se atualizam na cultura organizacional, exigências requeridas
(requerimentos) pela natureza da atividade; riscos presentes nas
atividades em questão; maior ou menor vulnerabilidade de
determinados grupos que exercem tarefas específicas; penosidade;
desgaste psicossocial; perda de capacidade corporal e psíquica
(Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994).

4) Qualidade de vida – Propomos neste livro que a noção de


‘qualidade de vida’ signifique o padrão que a própria sociedade
determina e se mobiliza para conquistar, por meio de políticas
públicas e sociais que induzem e norteiam o desenvolvimento humano
e as mudanças positivas no modo, nas condições e nos estilos de
vida (Minayo, Hartz & Buss, 2000). Dessa forma, qualidade de
vida possui um sentido objetivo e subjetivo quanto a condições,
situações e estilos de vida; a idéias de desenvolvimento sustentável e
ecologia humana; e ao campo da democracia, do desenvolvimento
e dos direitos humanos e sociais. Ao falarmos de qualidade de vida
dos policiais militares, entramos no mérito da sua satisfação na vida
familiar, amorosa, profissional, social e ambiental.

Este livro está organizado em partes e capítulos. Inicialmente, fazemos


uma introdução histórica que situa no contexto a PMERJ desde sua origem,
suas transformações, sua inserção no cenário internacional e sua configuração
atual. Em seguida, apresentamos a metodologia de produção da pesquisa

21
dentro de uma abordagem por triangulação de métodos quantitativo e
qualitativo. Os capítulos que contêm os resultados do trabalho de campo
são os que tratam do perfil dos policiais, de suas condições de trabalho, de
saúde e de qualidade vida. Há uma abordagem especial sobre o conceito e
a realidade de riscos vivenciados pela corporação. Ao final, na conclusão
fazemos recomendações estratégicas.
Desejamos que o leitor nos siga, perdoando nossas falhas, mas
aprendendo a conhecer essa corporação tão importante para a vida social
brasileira e fluminense, observando a riqueza dos dados que estamos lhe
proporcionando. Sobretudo, desejamos que nossos leitores preferenciais
sejam os próprios policiais. À parte a retórica de apresentação das
informações, a discussão dos dados e as reflexões por meio das quais
confrontamos o conhecimento empírico com os estudos nacionais e
internacionais existentes, o material do livro é deles. É o resultado do tempo
que despenderam conosco respondendo aos questionários ou conversando
em entrevistas ou discussão de grupos. Por tudo isso, somos sumamente
agradecidas! Desejamos, em troca, que aqui encontrem elementos e reflexões
que os ajudem, pessoal e coletivamente, a ser uma Polícia cidadã e
democrática como eles próprios e a sociedade brasileira merecem.
Agradecemos à equipe de trabalho de campo, composta por
Raimunda Matilde do Nascimento Mangas, Júlio César Vasconcelos da
Silva, Francisco Adolpho da Cunha Barros e Flávio Augusto Pinto Corrêa;
a Marcelo da Cunha Pereira, pelo apoio técnico; a Danúzia da Rocha de
Paula, pela normalização das referências; à equipe do Claves/Fiocruz, pelo
apoio e incentivo, e especialmente aos policiais que doaram o seu tempo à
pesquisa e dividiram conosco as suas vivências.

As coordenadoras

22
Parte I

Contextualização
Estratégias de Pesquisa
1
triangulando métodos, técnicas e perspectivas

Este estudo foi realizado com o objetivo de analisar as condições de


trabalho, de saúde e alguns aspectos da qualidade de vida dos policiais
militares do Rio de Janeiro. Embora a corporação tenha sua autoridade
exercida em todo o estado, esta pesquisa ficou restrita à capital. A decisão
de manter tal restrição se deve à peculiaridade desse espaço social, que é
bastante diferente do interior e da Baixada, merecendo um aprofundamento
específico que estaria sendo feito pela primeira vez por nós. Mas a escolha
de apenas esse subconjunto também se deve a motivos de ordem prática e
financeira.
Como convém a qualquer trabalho científico, iniciamos nosso estudo
com uma extensa revisão bibliográfica sobre o tema. E, a partir daí,
construímos uma estratégia específica para a elaboração dos instrumentos
de investigação. Precedendo ao fechamento das questões, fizemos algumas
entrevistas exploratórias com policiais para confirmar nossas hipóteses
iniciais. Buscamos conhecer metodologias de trabalhos anteriores, discutimos
entre nós e com consultores as propostas para questionários e roteiros de
entrevistas, grupos focais e observação de campo.
Adotamos aqui uma perspectiva de ‘pesquisa estratégica’, conceito
cunhado pelo pesquisador inglês Bulmer (1986) e adotado por nós para
designar estudos realizados buscando iluminar determinados aspectos da
realidade, com a finalidade de dar subsídios às políticas públicas. Uma
pesquisa estratégica segue todos os passos de uma investigação básica, mas
está totalmente orientada para a prática.
Durante todo o trabalho, usamos uma estratégia denominada
‘triangulação’ para designar o diálogo entre métodos, técnicas e outros
dispositivos observacionais e analíticos. Essa estratégia foi proposta,
primeiramente, por Denzin (1970) e depois passou a ser utilizada por
outros investigadores. Nós a desenvolvemos e praticamos em várias pesquisas
25
(Minayo & Cruz Neto, 1999; Minayo et al., 2007; Minayo, Assis &
Souza, 2005; Minayo & Deslandes, 2007). Da forma como a utilizamos,
consideramos triangulação de métodos e técnicas como a dinâmica de
investigação que integra a análise da magnitude e do significado dos
fenômenos e processos e a inclusão da participação e da visão dos atores
que vivenciam esses processos.
Tendo em vista a natureza e a complexidade do objeto de nossa
investigação, consideramos que esta seria a abordagem mais apropriada, por
permitir, de um lado, conjugar um olhar complexo sobre as questões sociais e
de saúde, articulando pontos de vista da epidemiologia e das ciências sociais
e humanas; de outro, utilizar recursos diferenciados de coleta de dados
buscando a interação de várias perspectivas, desde o desenho do projeto até a
análise final, por meio de diálogo inter e transdisciplinar. Esta mesma estratégia
metodológica foi usada em pesquisa anterior com a Polícia Civil (Minayo &
Souza, 2003), cujos achados são por vezes mencionados na presente
investigação, no sentido de comparar os dados das duas corporações.

Abordagem Quantitativa
O Plano de Amostragem
O plano da pesquisa foi o de uma amostragem de conglomerados em
apenas um estágio. Entendemos como conglomerado a unidade física (uma
academia de polícia, um batalhão etc.) com o seu respectivo grupo de
profissionais.
As amostras foram calculadas com base em listagens fornecidas pela
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), contendo todas as
unidades da corporação na capital do estado e o efetivo de cada uma delas,
especificado segundo os cargos. Para compô-las, observamos diferenciações
características do processo de trabalho, considerando as unidades
administrativas e as unidades operacionais (batalhões).
Um dos critérios para o sorteio das unidades foi a natureza do processo
de trabalho: ‘administrativo’, constituindo um conjunto de atividades-meio
que dão suporte para as atividades-fim, e ‘operacional’, responsável pelo
patrulhamento e enfrentamento da criminalidade. E, dentro de cada unidade,
observamos critérios de diferenciação de cargos. Consideramos os ‘oficiais’

26
(coronel, tenente-coronel, major, capitão, primeiro-tenente e segundo-
tenente), os ‘suboficiais’ (subtenentes) e os ‘não-oficiais’ (sargentos, cabos
e soldados).
Na Tabela 1, encontra-se a amostra selecionada e pesquisada. Foram
sorteadas 18 unidades e 1.700 policiais, mas pesquisamos 17 unidades e
1.120 policiais, mesmo tendo substituído e acrescentado unidades. Os
principais motivos para essas perdas foram algumas recusas dos gestores
em participar da pesquisa e divergências entre o contingente real e as listagens
fornecidas pela administração da corporação. Mesmo tendo, ao final, uma
amostra menor que a prevista, gostaríamos de ressaltar o esforço que fizemos
para obter uma representatividade da corporação. Por causa do grande
número de questionários devolvidos em branco, três novas unidades tiveram
de ser incorporadas à amostra – 2º Batalhão, Grupamento Tático
Motorizado (GTM) e 18º Batalhão. Mesmo assim, não cobrimos o número
previsto dos indivíduos.

Tabela 1 – Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Militar segundo amostra
calculada, contingente real e amostra pesquisada

População Amostra calculada Amostra pesq uisada


Estratos
Unidades Pessoas Unidades Pessoas Unidades Pessoas
Administrativo
1 - Oficial 15 870 2 70 2 55
2 - Não-oficial 15 1.788 2 144 3 59
3 - Sub oficial 15 1.617 4 131 4 73
Operacional
4 - Oficial 32 598 3 48 4 23
5 - Não-oficial 32 10.743 3 867 10 634
6 - Sub oficial 32 5.459 4 440 7 264
Total 47 21.075 18 1.700 17(*) 1.108(**)

(*) O total de 17 unidades pesquisadas não se refere à soma dos itens da coluna porque, em uma mesma
unidade, puderam ser pesquisados policiais de diferentes funções e estratos.
(**) Foram pesquisados 1.120 policiais, porém 12 não informaram o cargo.

27
Os motivos para divergências entre as amostras calculadas e as
pesquisadas foram vários. Citaremos alguns deles, pois possivelmente são
rotineiros para quem faz estudo sobre policiais. No nosso caso, muitas
dificuldades encontradas no estudo dos policiais militares já haviam ocorrido
na pesquisa com os policiais civis, como:
A própria natureza do trabalho e as constantes transferências dos

policiais de uma unidade para outra. Os dados sobre o contingente


de pessoal, fornecidos pelos gestores da corporação, continham
muitas imprecisões quando comparados com os efetivos reais e não
coincidiam com os existentes nos locais de trabalho.
Os horários de trabalho das equipes, completamente diferentes de

uma unidade para outra, também dificultaram a aplicação do


questionário e o trabalho de campo em geral.
O fato de policiais terem muitas atividades externas e imprevistas

foi também relevante, impedindo o acesso da equipe de pesquisa a


esses profissionais.
Motivações de ordem subjetiva tornaram difícil a coleta de dados.

Por exemplo, policiais que decidiram não devolver o questionário


ou que o devolveram em branco. Acreditamos que o estresse
permanente no desempenho das atividades, sobretudo por parte
dos ‘operacionais’, e a descrença em qualquer mudança institucional
também contribuíram para a não-adesão de muitos deles.

Elaboração e Aplicação do Questionário


Adaptamos para os policiais militares um questionário que já havia
sido pré-testado e utilizado na pesquisa com a Polícia Civil (Minayo &
Souza, 2003), composto por 107 itens distribuídos em quatro blocos de
questões: características socioeconômicas; questões sobre qualidade de vida;
condições de trabalho; condições de saúde. Inserimos, ao final do
questionário, uma pergunta aberta para que o respondente pudesse se
expressar sobre a pesquisa, sobre sua vida e sobre seu processo de trabalho,
caso lhe apetecesse. Apropriamos o conteúdo das perguntas do questionário
à especificidade da Polícia Militar e esse instrumento foi avaliado por um
oficial da corporação quanto à sua adequação.

28
Os policiais participantes preencheram os questionários anonimamente.
Esses instrumentos de coleta de dados foram entregues dentro de envelopes
fechados, acompanhados do termo de consentimento livre e esclarecido,
conforme prevê a resolução n. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Em
vários casos, os questionários foram devolvidos sem a assinatura do termo de
consentimento. Foi-nos relatado por alguns deles que não assinar era um
procedimento de precaução, para não serem identificados por suas chefias.
O instrumento de coleta de dados incorporou algumas escalas
previamente estruturadas e validadas: a de Apoio Social e a de Sofrimento
Psíquico – SRQ20 (Self Report Questionnaire). A Escala de Apoio Social
– desenvolvida por Sherbourne e Stewart apud Chor, Griepe e Faertein
(2001) – possui 19 itens relativos ao apoio social e cinco de rede social.
Neste trabalho, apenas os itens referentes ao apoio social foram utilizados.
Essa escala é constituída por cinco dimensões: emocional – apoio recebido
mediante a confiança, a disponibilidade em ouvir, o compartilhamento de
preocupações e medos e a busca de compreensão dos seus problemas por
outrem; de informação – recebimento de sugestões, bons conselhos e
sugestões; material – possibilidade de a pessoa receber ajuda se ficar doente
e de cama, podendo ter alguém que a leve ao médico, prepare suas refeições
e auxilie nas tarefas diárias; afetiva – demonstração de afeto e amor,
capacidade de abraçar e de amar; de interação positiva – diversão em
conjunto com outros, capacidade de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de
distrair a cabeça. Cinco escores são obtidos, um para cada dimensão.
Essa escala foi adaptada à população brasileira por Chor, Griepe e
Faertein (2001) em um inquérito com duzentos funcionários de uma
instituição pública do Rio de Janeiro. Nessa fase de teste, os autores
verificaram uma proporção muito pequena de itens não respondidos, o que
sugere compreensão das perguntas formuladas. Além disso, outros critérios
foram utilizados para a mensuração da qualidade dos itens pertencentes ao
bloco de perguntas de apoio social. Em um primeiro momento, fazendo uso
do coeficiente de correlação de Pearson, verificamos a correlação entre cada
uma das perguntas, tomadas duas a duas. Este indicador foi útil para
observar a capacidade que os itens têm para medir o apoio social e não
qualquer outro conceito. Um resultado próximo de zero indicaria ausência
de relação do item com o conceito medido. Porém, um resultado próximo

29
da unidade indicaria redundância, pois teríamos dois itens medindo a mesma
coisa. Os dois resultados nos apontariam a exclusão do item.
Em seguida, o mesmo coeficiente foi aplicado para testar a correlação
entre cada pergunta e a sua dimensão teoricamente pertencente. Nesse
contexto, nenhum resultado menor que 0,20 foi encontrado, critério de
exclusão preconizado por Rowland, Arkkelin e Crisler (1991). Por último,
investigamos também se as diferentes perguntas utilizadas mediam o mesmo
conceito, com base no coeficiente alfa de Cronbach. Os resultados obtidos
foram elevados: 0,81, 0,89, 0,89, 0,93 e 0,76, respectivamente, para as
dimensões de apoio afetivo, emocional, de informação, interação positiva e
material – todos excedendo o limite de 0,70 recomendado por Rowland,
Arkkelin e Crisler (1991).
Na pesquisa que fizemos com policiais civis (Minayo & Souza, 2003),
foram obtidos altos coeficientes psicométricos: 0,93, para alfa de Cronbach;
coeficiente de correlação intraclasse (ICC) em torno de 0,65, para cada
tipo de apoio investigado; e Kappa variando do regular ao moderado. Todas
as dimensões dessa escala se correlacionaram entre si.
Na amostra de policiais militares, foi examinada a validade de
construto e a confiabilidade da escala. A validade envolveu três técnicas
estatísticas: análise fatorial, correlação item-escala corrigida e avaliação da
associação das dimensões da escala com alguns itens que, por hipótese,
caracterizam o apoio. A confiabilidade foi verificada pelo coeficiente alfa
de Cronbach. Observamos por meio da análise fatorial que três dimensões
do apoio social foram discriminadas: apoio emocional/informação, afetiva/
interação positiva e apoio material, em que o percentual da variância
explicada por cada fator foi de 61,7%, 6,4%, 5,3%, respectivamente, e a
explicação total da variância contida nos dados foi de 73,4%. Dois itens
foram alocados fora de suas dimensões originais: um de apoio material
(“contar com alguém para preparar suas refeições, se você não puder prepará-
las”), que ficou no fator afetivo/interação positiva; e um de apoio emocional
(“contar com alguém para ouvi-lo quando você precisa falar”), que ficou
no fator representado pelos itens de apoio material.
Na análise da confiabilidade, após a aplicação da análise fatorial,
encontramos coeficientes alfa de Cronbach de 0,95, 0,93 e 0,83, estimados
para as três dimensões observadas. Para a escala global, o coeficiente foi de

30
0,96. Nenhum coeficiente sofreu alteração significativa ao se excluir um
item de sua respectiva dimensão.
A avaliação da saúde mental foi executada por meio da aplicação da
escala SQR20, desenvolvida por Harring e Mcmullin (1992). Esse
instrumento mede a existência dos chamados ‘distúrbios psiquiátricos
menores’ entre a população. O questionário originalmente possuía 24
perguntas: vinte sobre distúrbios não psicóticos e quatro referentes a distúrbios
psicóticos. Várias versões do SQR surgiram em diversas línguas, inclusive
no Brasil. Harding e colaboradores (1980), Dhadphale, Ellison e Griffin
(1983), Sen, Wilkinson e Mari (1986) e Sen e Mari (1986) demonstraram
bons índices de confiabilidade e validade; entre 73% e 93% para
sensibilidade; entre 72% e 89% para especificidade; e a taxa de erros de
classificação oscilou entre 18% e 24%. A versão aplicada no Brasil foi
validada por Mari e Williams (1986), que observou sensibilidade de 83%,
especificidade de 80/% e 19% de erros de classificação.
O ponto de corte proposto para a escala é de 7/8 para homem e
mulher, respectivamente. Cada ponto equivale à resposta positiva a uma
pergunta, conduzindo ao estado de ‘sofrimento psíquico’. São elas: sentir
dor de cabeça freqüente; ter falta de apetite; dormir mal; assustar-se com
facilidade; apresentar tremor nas mãos; estar nervoso, tenso ou agitado;
apresentar má digestão; sentir dificuldade de pensar com clareza; sentir-se
triste; chorar facilmente; ter dificuldade em realizar tarefas diárias com
satisfação; sentir dificuldade em tomar decisões (indecisão); apresentar
dificuldade no serviço; sentir-se incapaz de realizar algo útil; perder o
interesse pelas coisas; sentir-se inútil; pensar em suicídio; sentir desconforto
estomacal; mostrar cansaço constante; cansar-se com facilidade.
A escala utilizada neste trabalho possui vinte itens que medem o
sofrimento psíquico (distúrbios não psicóticos). O alfa de Cronbach
encontrado no presente estudo é de 0,8346, confirmando que os vinte itens
indicam uma única característica.
Além das duas escalas citadas, foram pesquisados indicadores de
qualidade de vida, subdivididos em itens objetivos e subjetivos. Os
indicadores subjetivos corresponderam ao que o policial percebe, sente e
valoriza em relação a vários aspectos de sua vida. E os objetivos, a condições
gerais de vida como alimentação, moradia e lazer. Para este trabalho, foi

31
utilizado o grau de satisfação composto por 16 variáveis sobre relacionamento
e outros aspectos da vida. As cinco opções de resposta variaram em três
gradientes: satisfeito, nem satisfeito/nem insatisfeito e insatisfeito.

Contatos Institucionais
Para viabilizar a pesquisa, vários contatos foram realizados desde
2001. Por diversos motivos independentes da nossa vontade, a sua
autorização só foi conseguida em 2005, depois de muitas idas e vindas.
Depois de publicada a autorização na ordem do dia da corporação, foram
feitos os contatos em cada unidade. Do ponto de vista institucional, é
importante ressaltar que investimos em um árduo trabalho de exposição do
sentido, dos objetivos e da dinâmica do estudo, buscando convencer os
comandantes, oficiais e praças das unidades sorteadas sobre a importância
da pesquisa.
Após a adesão, era pactuada com os comandantes a melhor forma
para proceder à coleta dos dados. De modo geral, esses oficiais receberam
bem a proposta, apenas buscando se certificar de que a pesquisa estava
devidamente autorizada. Um fator que pode ter contribuído para a adesão
é o fato de já termos realizado e publicado uma pesquisa similar a respeito
dos policiais civis.

Aplicação dos Questionários


A aplicação dos questionários durou dois meses. Algumas vezes, o
instrumento, em envelopes individuais, era entregue ao comando da unidade
para que chegasse às mãos dos seus subordinados. Mas também os
pesquisadores promoveram a aplicação coletiva. A primeira forma, ou seja,
deixar os envelopes para serem distribuídos, foi-nos indicada pelos
comandantes das unidades e, concretamente, mostrou-se a estratégia mais
eficaz. Em alguns casos, tendo em vista a cultura hierárquica da Polícia
Militar e sabendo que havia autorização oficial do comandante geral da
Polícia para a realização do estudo, chefes de unidades impuseram o
preenchimento do questionário aos policiais. Se, por um lado, essa fórmula
garantiu a adesão de alguns entrevistados, por outro pode ter prejudicado a
qualidade das informações prestadas. Mesmo não tendo condições de avaliar

32
os resultados dessas circunstâncias, não queremos deixar dúvidas ao leitor
sobre as condições de possibilidade em que a investigação foi realizada.
A pesquisa de campo demandou muitas idas às unidades para cobrir
os vários turnos das equipes e localizar os policiais, visando tanto à entrega
dos envelopes quanto ao seu recolhimento. Na prática, distribuímos muito
mais questionários do que os recolhidos, pois o retorno dependia de um ato
voluntário dos pesquisados.
No balanço final, tivemos 1.700 questionários entregues, dos quais
199 (11,7%) foram devolvidos sem preenchimento e 381 (22,4%) não
foram sequer devolvidos. Essa taxa de não-resposta é da ordem de 34,1%.
Na Tabela 2, encontram-se distribuídos por hierarquia, segundo os
cargos, os policiais militares que compõem a amostra, excluídos 12 que não
informaram seus cargos.

Tabela 2 – Distribuição dos policiais militares que compõem a amostra, segundo os


cargos

Cargos policiais n. %
Coronel 5 0,4
Tenente-coronel 9 0,8
Major 19 1,7
Capitão 13 1,2
Primeiro-tenente 11 1,0
Segundo-tenente 21 1,9
Sub tenente 20 1,8
Primeiro-sargento 36 3,3
Segundo-sargento 161 14,5
Terceiro-sargento 120 10,8
Ca b o 180 16,3
Soldado 513 46,3
Total 1.108 100,0

33
Expansão da Amostra
Quando estimamos características de determinada população com
base em amostra probabilística, cada unidade amostral pesquisada representa
certo número de unidades não selecionadas da população, no caso, dos
policiais militares. Partindo desse princípio, optamos pela utilização de pesos
amostrais para as unidades policiais estudadas. Silva e colaboradores (1999)
recomendam que, nesse caso, um peso amostral deve ser especificado para
cada unidade investigada, refletindo a sua representação na população.
Ainda segundo os autores, os pesos amostrais, denominados ‘fatores de
expansão’, são calculados com base na probabilidade de inclusão de uma
unidade policial na amostra. A escolha desse desenho foi motivada pela
premissa de que o trabalho de campo seria facilitado com a participação de
todos os policiais de uma mesma unidade policial. Mas também porque o
único cadastro disponível continha apenas o nome das unidades com seus
respectivos quadros de servidores, segundo seus estratos de locação.
Após a expansão, mesmo com considerável margem de não-resposta
aos questionários e possível redução na precisão das estimativas, verificamos
que a amostra expandida ficou semelhante ao real contingente dos policiais.
Para os dados analisados, após expansão da amostra, obtivemos 7% de
pessoas em cargos de oficiais. O peso do estrato administrativo na pesquisa
foi de 24% e o do grupo operacional, de 76%. Trabalhamos com uma
população estimada de 21.075 policiais militares. Todos os resultados aqui
apresentados relacionam-se a essa população.

Processamento e Análise dos Dados


O processamento dos dados foi feito no programa Epidata, versão
3.1. A fim de minimizar os erros na fase de digitação e agilizar o
processamento dos dados, foram cumpridas quatro etapas: codificação,
digitação, crítica e análise. Seguimos os mesmos passos usados na pesquisa
anterior com os policiais civis (Minayo & Souza, 2003). Criamos um
programa (máscara de entrada) para estabelecer os valores válidos para
cada pergunta existente no questionário. Com esse dispositivo, nenhum valor
fora do previsto seria aceito no momento da digitação.
Na etapa seguinte, estabelecemos regras para agilizar a digitação.
Tal processo é conhecido como codificação. O detalhamento dessas regras

34
está contido em um manual para o codificador, elaborado pela equipe de
estatísticos que trabalharam na pesquisa. Esse estágio foi imprescindível,
visto que evitou, além de erros de digitação, a perda de tempo provocada
comumente por incompreensão das respostas.
No que diz respeito à crítica dos dados, fase em que objetivamos a
eliminação dos possíveis erros capazes de provocar enganos de apresentação
e análise dos resultados, optamos por dois processos distintos. O primeiro
procedimento de crítica destinou-se a procurar erros de codificação ou
digitação dos questionários. Nessa abordagem, escolhemos realizar uma
amostragem aleatória simples de 10% dos questionários. Houve falha de
digitação em 25,7%. De todas as questões, 9% apresentaram erros que
foram corrigidos. Em seguida, rastreamos incoerências, isto é, investigamos
se havia problemas com respostas a determinadas questões que, teoricamente,
deveriam se relacionar de maneira lógica. Constatamos que 375 (33,5%)
questionários apresentaram alguma inconsistência; 3,2% de tais
inconsistências eram erros de digitação logo retificados. As questões
incoerentes foram anuladas.
Na fase de análise, o banco foi convertido para o software SPSS
versão 10.0, onde realizamos a descrição de freqüências simples e análises
uni e bivariadas das variáveis. Os dados foram abordados, inicialmente,
por meio de uma análise exploratória em relação a todas as questões. Para
verificarmos diferenças estatisticamente significativas, utilizamos o teste Qui-
quadrado de Pearson. De acordo com Siegel (1956), este teste é usado
para encontrar associação entre variáveis em tabelas de contingência,
permitindo também avaliar o grau e a significância da associação encontrada.
No texto, essas diferenças apenas são mencionadas quando foram
estatisticamente significativas (p<0,05).
Todas as variáveis foram comparadas em função das categorias
analíticas ‘cargo na polícia: soldados e cabos versus oficial/suboficial/
sargento’, visando a um melhor balizamento quantitativo dos dois grupos, e
‘processo de trabalho: atividade administrativa versus atividade operacional’.
Na parte qualitativa, discriminamos com maior especificidade cada categoria
de servidor.
Recorrendo a modelos de regressão logística, fizemos uma modelagem
em relação às situações de risco sofridas pelos policiais, sendo esta a variável
de interesse no estudo, no intuito de identificar os seus determinantes.

35
O indicador de risco sofrido foi construído com base teórica por meio das
seis questões dicotômicas referentes à auto-avaliação reportada pelos policiais,
envolvendo as atividades consideradas mais perigosas ao bem-estar físico
daqueles que estavam em atividade operacional. Os tipos de violência
mensurados pelo indicador nas situações de enfrentamento são: ferimento
por projétil de arma de fogo; ferimento por arma branca; agressão física;
violência sexual; tentativa de suicídio; tentativa de homicídio.
Na construção da variável de interesse, as categorias de respostas
utilizadas basearam-se no seguinte padrão de classificação: ausência e
presença de risco, de acordo com a resposta dada pelo policial. Caso ele
reportasse não ter vivenciado nenhuma das situações adversas anteriormente
descritas, sua resposta seria codificada como ausência; caso contrário, a
codificação recebida seria a de presença de risco.
Em um primeiro momento, testamos modelos individuais de regressão
logística individuais para cada uma das variáveis explicativas; em seguida,
fizemos uma abordagem na qual consideramos modelos para cada um dos
quatro blocos de variáveis; uma terceira modelagem uniu os resultados
gerados pelas duas anteriores.
Também foram testadas algumas hipóteses propostas por Griep e
colaboradores (2005). A primeira é a de que as mulheres, os mais jovens e
os indivíduos com maior escolaridade e renda freqüentemente apresentam
altos escores de apoio social. A segunda afirma que pessoas com maior
número de parentes, de amigos íntimos, que são casadas ou não moram
sozinhas e que participam de atividades sociais em grupo também têm mais
chance de apresentar altos escores de apoio social. Enfim, a terceira hipótese
diz que indivíduos com melhor percepção sobre seu estado de saúde, com
menor número de doenças crônicas e que não apresentam transtornos mentais
comuns igualmente demonstram elevados escores.
Realizamos investigação de características que hipoteticamente
apresentam alguma associação com o apoio social. As associações foram
verificadas por meio da estimação de razões de chances – odds ratio (OR)
– com base em modelos de resposta binária (logísticos), onde a variável
resposta seria a dimensão do apoio social categorizada em nível alto ou
baixo (ponto de corte estabelecido pela mediana da distribuição dos escores
da respectiva dimensão).

36
Abordagem Qualitativa
Construímos os dados qualitativos exercitando a triangulação, a partir
de múltiplos informantes, observadores e técnicas de aproximação e
compreensão da realidade. Elaboramos todos os instrumentos coletivamente
e buscamos que fossem criticados por especialistas ad hoc nas áreas da
saúde do trabalhador e da segurança pública.
Tomamos como ponto de partida para a elaboração dos roteiros as
discussões da equipe em torno da leitura de várias pesquisas sobre os
indicadores de qualidade de vida, sobre o perfil de saúde de distintas
categorias profissionais e sobre a descrição das condições do trabalho policial.
Realizamos alguns seminários internos voltados para a discussão dos marcos
teóricos da investigação. E retomamos as entrevistas realizadas com
informantes-chave na fase exploratória do trabalho, para examinar a
adequação dos nossos instrumentos.
Também pudemos nos beneficiar dos debates realizados pela equipe
na fase de construção do instrumento quantitativo, identificando questões
que seriam mais pertinentes do ponto de vista qualitativo, nos grupos focais
e nas entrevistas. Outros referenciais foram os resultados significativos
estatisticamente e a análise realizada na pesquisa anterior com policiais
civis. Esse diálogo metodológico e interdisciplinar permitiu-nos, também,
perceber a necessidade de melhor esclarecer o sentido de determinados
temas que queríamos investigar.
Nesse exercício de triangulação metodológica com os pesquisadores
da área quantitativa, pudemos definir algumas categorias para guiar a
‘conversa com finalidade’ sobre cada um dos três grandes eixos do trabalho
(qualidade de vida, condições de saúde e condições de trabalho). Dada a
sinergia entre esses três componentes, muitas vezes uma questão acabava
por complementar o enfoque dos outros dois campos. Assim, por exemplo,
ao perguntarmos sobre o que afetaria a saúde do policial, as suas condições
de trabalho acabariam, inevitavelmente, por surgir no relato.
Incluímos nos roteiros as seguintes temáticas: qualidade de vida nos
âmbitos de trabalho, da família e da comunidade; condições de trabalho do
setor; sugestões para a melhoria dessas condições; riscos e estratégias para
lidar com os desafios cotidianos; relações de trabalho; reconhecimento do
policial e do seu serviço pela sociedade e pela própria corporação.

37
A contemplação da diversidade de atuação dos policiais foi o critério
fundamental para a escolha do espaço de abrangência da amostra qualitativa.
Por isso, incluímos: unidades que atuam na Zona Sul, na Zona Norte e na
Zona Oeste da cidade; unidades presentes em regiões socialmente
diversificadas: áreas pobres, de favela e de classe média; unidades conhecidas
por terem bom relacionamento com a comunidade e unidades que apresentam
dificuldades de interação no ambiente social em que estão presentes.
Trabalhamos, basicamente, com três técnicas: grupo focal, entrevista
individual e, de forma complementar, observações de campo. Para as
‘entrevistas’, utilizamos um roteiro semi-estruturado, com ampla abertura para
que nosso interlocutor interferisse e colocasse seu ponto de vista, além ou
apesar das questões que apresentávamos. Essa postura acabou por nos brindar
com muito mais material do que nossa lista de temas inicialmente propunha.
Utilizamos o ‘grupo focal’ como uma técnica de conveniência, pois
não teríamos condições de expandir as entrevistas individuais por tantos
policiais. No entanto, a empregamos explorando a especificidade de sua
potencialidade reflexiva. Sabemos que o material resultante de um grupo
de discussão é absolutamente diferente do que obtemos em uma entrevista.
Isso porque, no grupo, ouvir o outro e apreciar sua opinião permite atingir
um nível de explicação razoavelmente profunda sobre determinado tema de
forma consensual, assim como possibilita, também, deixar claro os dissensos
existentes entre os diferentes participantes. Dessa maneira, o resultado de
um grupo focal é um material interpretativo de primeira ordem (Schutz,
1979) bastante elaborado. Como preconiza essa técnica, colocamos em
cada sessão um ‘moderador’, que introduziu as regras do encontro, animou
o debate e buscou estabelecer a participação mais eqüitativa possível entre
os membros do grupo, e um ‘relator’, que fez o registro, checou com o
grupo a síntese das opiniões, os pontos consensuais e os principais conflitos,
além de ter tirado dúvidas sobre os depoimentos apresentados.
A ‘observação de campo’, no caso deste estudo, constituiu apenas
aporte complementar. Realizamos observações durante as diversas visitas
para a aplicação dos questionários da amostra quantitativa. Assim, a equipe
destinada a cobrir cada unidade ficou responsável pela elaboração de um
diário de campo. Seguindo um roteiro construído pelo grupo, buscamos
mapear observações sobre condições e relações de trabalho e impressões e
expectativas geradas pela pesquisa.

38
Amostra Qualitativa
Como já é de conhecimento de todos os que trabalham com pesquisa
qualitativa, nesse tipo de abordagem não importa o número de interlocutores,
e sim o aprofundamento das questões relevantes e a abrangência de todos
os atores principais, neste caso da organização policial militar. Visamos,
assim, a compreender a ‘lógica interna’ com que esses atores pensam, sentem
e atuam diante dos problemas tratados.
Fizemos oito entrevistas, sendo sete com gestores (dois comandantes
de unidades operacionais, dois de unidades operacionais especiais, um de
unidade administrativa e dois de unidades de saúde). Entrevistamos também
uma psicóloga que atua em uma unidade operacional especial.
Fizemos 11 grupos focais. Neles, entrevistamos 92 policiais (84
homens e oito mulheres) com a seguinte composição: três com oficiais
graduados (coronel, tenente-coronel e major), três com sargentos e cinco
com cabos e soldados, distribuídos de acordo com a natureza da unidade
(operacional, operacional especial e administrativa).

Processamento de Dados e Técnicas de Análise


O tratamento e a interpretação dos dados qualitativos seguiram
princípios do Método de Interpretação de Sentidos (Gomes et al., 2005).
Tais princípios, ancorados em uma perspectiva hermenêutica-dialética
(Minayo, 2006), trabalham com a interpretação do contexto, das razões e
das lógicas das falas, das ações e do conjunto de inter-relações de forma
contextualizada. Poderíamos dizer que os resultados apresentados nesta
pesquisa atingiram o nível de uma descrição analítica.
A análise cumpriu as seguintes etapas:
Transcrição e digitação das gravações das entrevistas individuais e

dos grupos focais.


 Atribuição de códigos aos entrevistados e às pessoas por eles

mencionadas, de forma a assegurarmos o sigilo das informações.


Leitura intensiva e compreensiva dos textos transcritos, buscando

identificar a lógica dos atores quando afirmaram, negaram ou


omitiram determinadas informações. Para isso criamos três
subgrupos de análise com base na categoria profissional dos

39
entrevistados: ‘oficiais’, ‘sargentos e subtenentes’ e ‘cabos e soldados’.
A análise foi realizada por três pesquisadores separadamente. Cada
um deles aprofundou um subgrupo, e posteriormente foi feita a
comparação. Na versão final da estrutura, trabalhamos com apenas
dois grupos: ‘círculo dos oficiais’ e ‘círculo das praças’.
 Elaboração de estruturas de análise, agrupando os depoimentos

em três eixos temáticos: processo de trabalho, qualidade de vida e


condições de saúde.
Identificação das idéias centrais presentes em cada um dos eixos.

Identificação dos sentidos atribuídos às idéias.

Elaboração de sínteses interpretativas de cada eixo temático.

Articulação entre os sentidos atribuídos pelos autores a suas falas

ou a seus silêncios, com os resultados dos questionários e com


referenciais teóricos sobre os vários temas que estudamos.
Também buscamos levar em conta na análise qualitativa os textos
escritos pelos policiais na questão aberta dos questionários. Do conjunto,
153 deles fizeram algum tipo de registro nessa seção do instrumento. Desses,
apenas 4,7% eram oficiais e os demais (95,3%) pertenciam ao grupo das
praças. Fizemos uma leitura atenta dos depoimentos e selecionamos os mais
emblemáticos, que também foram utilizados juntamente com os provenientes
das entrevistas e dos grupos focais. Ressaltamos que, de modo geral, os
conteúdos desses registros foram extremamente críticos, incluindo denúncias,
problemas relativos ao uso de drogas por parte do próprio policial e pedidos
desesperados de ajuda.

40
Formação Social da
2
Polícia Militar do Rio de Janeiro

Analisamos a história da Polícia Militar em cinco aspectos: seus


antecedentes; sua instituição e institucionalização; seus comandos; seu corpo
de servidores e suas funções atuais. Quanto aos seus antecedentes, o
policiamento do Rio de Janeiro na atualidade ocorre por meio de uma
secretaria específica, denominada Secretaria de Estado de Segurança
Pública. Seu formato, tal como está desenhado hoje, vem desde 1992
(Figura 1). No entanto, sua história é mais antiga e tem vários antecedentes.

Figura 1 – A estrutura da Segurança Pública


Secretaria do Estado de
Segurança Pública

Polícia Militar Polícia Civil

Polícia Ostensiva Polícia Judiciária

Policiamento Ostensivo de Prevenção Investigação do Crime e sua Autoria

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro (www.seguranca.rj.gov.br), 2007.

Dos primórdios da história colonial até 1603, o país não manteve


organização policial. No Rio de Janeiro, todo o poder – Executivo,
Legislativo e Judiciário – estava reunido nas mãos dos governadores da

41
cidade, desde a sua fundação em 1565. A primeira polícia aqui existente
foi a Guarda Escocesa, trazida por Villegaignon, em 1555. E a primeira
cadeia pública foi construída em 1567, no morro do Castelo. A segunda
foi edificada em 1639, no local onde hoje se ergue o palácio Tiradentes.
O Conselho de Vereança, criado por Mem de Sá (que governou o
Rio de Janeiro de 1567 a 1572), foi quem editou as primeiras posturas
referentes à atividade policial, estabelecendo severas penas para o ‘vício de
jogo’. A fiscalização e a aferição de pesos e medidas, os preços dos
comestíveis, o asseio da cidade e seu povoamento também foram alvos de
normas governamentais. As diligências noturnas – com o intuito de realizar
prisões – foram atribuídas ao alcaide pequeno,2 que sempre se fazia
acompanhar de um tabelião que anotava e atestava as ocorrências.
Um novo tipo de entidade policial apareceu em 1626. Era um esboço
de organização, nos moldes dos quadrilheiros existentes em Lisboa, com
sua sede instalada no campo de Santana. Sua organização se sustentava
pelos impostos sobre as casas de pasto, fogos de artifício, tabernas abertas
até depois da meia-noite, lançamento de barcos e canoas, material de
construção, passaportes, diversões públicas, taxas de carceragem e liberdade
de presos, taxa sobre açoites em escravos (!), licença para construção de
moradias e venda de capim.
O marquês de Lavradio, nomeado vice-rei para representar o rei de
Portugal no Brasil em 1760, alarmado com a criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e com a decadência e o descrédito da organização dos
quadrilheiros, criou e regulamentou o Corpo dos Guardas Vigilantes, bem
como organizou uma guarda montada. Até a chegada de dom João VI ao
Brasil, os vice-reis combinavam, sob sua responsabilidade, funções
administrativas e policiais, contando com a colaboração de ouvidores gerais.

2
No período colonial, ‘alcaide’, palavra derivada do árabe, significava ‘o chefe’, ‘o guia’.
Os alcaides (mores e pequenos) eram funcionários que vigiavam a cidade de dia e de noite,
acompanhados de um tabelião que registrava flagrantes, delitos e outros problemas sobre os
quais eles tinham responsabilidade. Os auxiliares do alcaide-mor se reuniam à noite na
residência dessa autoridade para programar a vigilância da cidade no dia seguinte.

42
Processo de Institucionalização da Polícia Militar
A Polícia Militar nasceu inspirada na organização das corporações
européias. As instituições policiais modernas da Europa Ocidental surgiram
durante a transição do século XVII para o século XVIII, processo que se
estendeu ao início do século XIX, coincidindo com a difusão das idéias
liberais em vários países (Critchley, 1992; Harring & Mcmullin, 1992;
Holloway, 1997). O conceito fundamental para a criação dessas corporações
foi a idéia de ‘segurança pública’ como serviço essencial prestado pelo
Estado, concernente à garantia de direitos e assentamento da autoridade.
Como refere Muniz (1999), as perspectivas de solução de conflitos sociais
por intermédio de uma instituição fundada em princípios de legalidade e
de consentimento social representaram o desafio de construção do Estado de
direito. E, segundo Foucault (1965), é daí que se aprofundou a idéia
de uma sociedade disciplinada.
Em regiões sob influência européia, como o Brasil do século XIX,
foram criadas corporações policiais, destinadas, pouco a pouco, a serem
uma resposta civilizada às insatisfações públicas relativas às arbitrariedades
produzidas pelo uso da força e pelas intervenções descontínuas e truculentas
dos exércitos e dos intendentes diante dos conflitos sociais.
No Rio de Janeiro, a história do que viria a ser conhecida como
Polícia Militar começou em 1808, e sua organização administrativa e
uniformizada coincide com a vinda da família real portuguesa para o Brasil,
fugindo dos projetos expansionistas de Napoleão Bonaparte. Sua
organização constituiu uma adaptação do que já vinha sendo experimentado
em Lisboa, com base no modelo francês. Foi obra do imperador dom João
VI a criação da Intendência Geral da Polícia, órgão com poderes judiciais
e encarregado de várias tarefas administrativas. Pelo alvará de 10 de maio
de 1808, dom João VI instituiu – com as mesmas atribuições que tinha em
Portugal – o cargo de ‘intendente geral de Polícia da Corte’, inaugurando
uma nova fase para a vida da cidade e dando origem a grandes modificações
no organismo policial que vigorava até então.
Dom João VI tinha como objetivo organizar uma polícia eficiente,
com o intuito de precaver-se contra espiões e agitadores franceses. Mas não
pretendia instituir, nessa ocasião, um mecanismo repressor de crimes comuns.
Sua idéia era dispor de um corpo policial – principalmente político – que

43
amparasse a Corte, apresentasse informes sobre o comportamento do povo
e o preservasse do contágio das idéias liberais que a Revolução Francesa
irradiava pelo mundo. Ele tinha conhecimento de que vários nobres e
letrados da Corte aderiam paulatinamente às idéias libertárias e temia que
tais idéias atingissem toda a população. O corpo de segurança desejado
pelo rei, além de lhe oferecer cobertura política, deu origem à estrutura
básica da atividade policial no Brasil. Suas atribuições incluíam, à época,
muito mais que a mera vigilância e repressão a crimes, pois estavam sob sua
responsabilidade as seguintes áreas:
 Obras públicas;

Segurança pessoal e coletiva;

 Ordem e vigilância da população;

Investigação de crimes;

Punição dos criminosos.

O intendente geral de Polícia da Corte do Brasil tinha status de


ministro e jurisdição ampla e ilimitada, a ele submetendo-se todas as questões
criminais e cíveis. Na prática, o poder que lhe foi conferido permitiu-lhe,
desde o início, um amplo campo de ação no controle da população, quase
sempre exercido, dependendo da personalidade dessa autoridade, com maior
ou menor grau de arbitrariedade, sobretudo contra escravos e pobres livres.
O intendente enfeixava em suas mãos todos os órgãos policiais do
Brasil e tinha responsabilidade, inclusive, sobre ouvidores gerais, alcaides-
mores e pequenos, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de
estradas e assaltos. Era também sua tarefa a organização da Guarda Real
da Polícia da Corte. Em resumo, as atribuições da Intendência Geral cobriam
as funções de justiça, de governo e de administração interna.
Como esse órgão instituído com tantos poderes não possuía,
originalmente, um corpo de profissionais preparados para cumprir sua
missão, foi criada a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia – organizada
à semelhança do Exército, em 13 de maio de 1809. Dessa Guarda Real
derivou-se a corporação policial uniformizada – de formato militar – que
até hoje está presente nas ruas do Rio de Janeiro (Bretas, 1998; Holloway,
1997). Foi configurada uma força policial de tempo integral, com ampla
autoridade para manter a ordem e perseguir os criminosos. O decreto real

44
que criou a Intendência confirmou-lhe a outorga de autoridade judicial
sobre delitos menores.
A primeira grande reforma desse arranjo institucional ocorreu em
1831, quando o regente Diogo Antônio Feijó extinguiu a Guarda Real,
que havia se rebelado, e a substituiu por uma organização paramilitar e civil
denominada Guarda Municipal. Composta por cidadãos não
profissionalizados, não remunerados e recrutados entre cidadãos de posse,
essa iniciativa fracassou em cerca de três meses. No seu lugar, Feijó idealizou
e instituiu o Corpo de Guardas Municipais Permanentes.
Holloway (1997), em seu acompanhamento da história política da
elite brasileira no século XIX, chama a atenção para a influência das idéias
liberais na formação desse Corpo de Guardas. Sua doutrina seguia o ideário
que predominava na Europa de então – o que pode ser constatado também
nos atos de dom Pedro I, que outorgou a Constituição Liberal de 1824; do
regente (padre) Diogo Antônio Feijó, que ajudou a fundar o Partido Liberal
e o sistema policial do Rio de Janeiro; e dos ideólogos e conselheiros do
Império, Tavares Bastos e José Tomás Nabuco de Araújo. Também estão
no rol das figuras instituidoras representantes conservadores da política
nacional da época, como Luiz Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias,
que definiu os caminhos a serem trilhados pela Polícia Militar; Eusébio de
Queiroz, que teve papel semelhante na história da organização da Polícia
Civil; e o visconde do Rio Branco, que liderou a reforma judicial liberal
aprovada pelo Parlamento, em 1871.
A partir da Proclamação da Independência e por todo o século XIX,
esses liberais, fossem eles autoritários ou conservadores, contribuíram para
a modernização institucional do país, na qual se inclui a organização das
corporações da Policial Militar e da Polícia Civil. Assim, podemos dizer
que, com exceção do breve lapso ocorrido em 1831, quando Feijó extinguiu
a Divisão Militar da Guarda Real, a Polícia Militar tem estado presente na
história do Brasil e do estado do Rio de Janeiro desde 1808.
O processo de institucionalização dessa corporação desenvolveu-se
de forma contemporânea à consolidação das corporações policiais da Europa
Ocidental, como já dissemos, e ocorreu antes mesmo da constituição dessa
categoria nos Estados Unidos (Holloway, 1997). Seu quartel-general se
organizou desde então nas dependências de um antigo mosteiro, na atual
rua Evaristo da Veiga (antiga rua dos Barbonos), próximo ao Passeio

45
Público, o mais antigo parque da cidade. A intenção do regente era instituir
e manter uma corporação bem localizada, profissional, selecionada e bem
paga, a quem os cidadãos pudessem confiar a segurança de sua pessoa e de
seus bens.3
Entre as várias características do Corpo de Guardas Municipais
Permanentes à época de sua criação, observamos uma clara intenção de que
esta se diferenciasse em relação às Forças Armadas: sua submissão ao ministro
da Justiça e não ao ministro da Guerra, ou seja, não se confundindo com o
Exército; provisão de membros não conscritos do Exército, e sim recrutas
que se alistassem voluntariamente e recebessem melhores condições de vida e
remuneração que as tropas; não-sujeição a castigos corporais, o que costumava
acontecer à época com os soldados do Exército.
Em sua estruturação em 1831, foram confiadas ao Corpo de Guardas
Municipais Permanentes as seguintes funções:
Patrulhar a cidade, circulando dia e noite: a infantaria atuaria no

Centro e a cavalaria nos subúrbios.


Patrulhar individualmente, em duplas e, no caso de áreas isoladas,

em grupos maiores.
Prender todos que estivessem cometendo crimes ou que houvessem

cometido crime recentemente, dando especial atenção aos


ajuntamentos de pessoas.
Revistar pessoas suspeitas.

 Autorizar eventos públicos e se responsabilizar por eles, tendo

poder de prender pessoas envolvidas em motins ou agitações.

3
A boa remuneração prevista por Feijó tinha por base de comparação o soldo pago pelo
Exército e pela Guarda Real. Holloway (1997) registra que, enquanto um soldado da
Guarda Real ganhava 2$400 por mês, a Polícia Militar já pagava 18$000 mensais a um
funcionário na escala inicial. Esse soldo – complementado com casa e comida nos quartéis
– dava às praças da Polícia Militar, à época em que foi criada, uma renda mensal semelhante
à dos assalariados livres, como balconistas e artesãos. No entanto, a base de recrutamento
do pessoal da Polícia Militar foi o segmento pobre da população, desde a época do Império.
E o ‘pagar bem’ proposto pelo regente Feijó esteve permanentemente balizado pelos salários
recebidos pelos trabalhadores pouco qualificados.

46
Nas instruções baixadas por Feijó, a influência da filosofia liberal
era nítida. O Código Criminal oferecia um arcabouço jurídico que limitava
o arbítrio dos policiais. Nele estava escrito que “as patrulhas da Polícia
Militar cumpririam com seu dever sem exceção de pessoa alguma, sendo
com todos prudentes, circunspetas, guardando aquela civilidade e aquele
respeito devidos aos direitos dos cidadãos” (Holloway, 1997: 94). A idéia
do regente era acabar com as brutalidades que vinham ocorrendo contra o
povo desde a criação da Polícia e, sobretudo, nos períodos de comando dos
intendentes gerais. Feijó esperava que a nova Polícia Militar se tornasse
uma instituição capaz de prevenir e reprimir distúrbios e estabelecer a ordem
social, por meio de métodos mais racionais e humanitários, como o de
privação de liberdade e aplicação de multas à luz da lei (Holloway, 1997).
Em 1866, o Corpo de Guardas Permanentes passou a se chamar
Polícia da Corte e, em 1920, recebeu a designação formal de Polícia Militar.
No site corporativo está escrito que a instituição já passou por 12
denominações diferentes, as quais acompanham a história do Brasil e do
estado do Rio de Janeiro (PMRJ, 2007).
Logo depois de criada, a Polícia Militar se viu sobrecarregada de
tarefas e com um efetivo muito aquém de suas necessidades. Além da rotina
de montar guarda e patrulhar a cidade, realizando atividades preventivas e
repressivas, muitas outras funções passaram a ser demandadas à instituição.
Pelo fato de ter de manter a ordem e por apresentar incontáveis contradições
sociais não resolvidas em seu corpo funcional e em seu desempenho, essa
organização nunca gozou de reputação invejável. A maioria dos estudiosos
da formação social do país ressalta, desde o início, a aversão dos brasileiros
às atividades policiais. As autoridades encontraram, desde o início, muitas
dificuldades para o recrutamento de pessoas das classes mais abastadas e
com melhor formação escolar para esse serviço público, por causa do repúdio
às funções típicas e também devido aos baixos salários (Holloway, 1997).
A hostilidade contra a população, um dos alvos das transformações
culturais preconizadas pelo regente Feijó, a serem efetuadas mediante o
cumprimento de procedimentos padronizados, continuou. A tradição do
uso de métodos de mutilação e de produção de dor permaneceu vigente,
estruturando a memória cultural trazida da instituição da Intendência.
Assim, ações arbitrárias e de crueldade manifestavam-se mesmo depois da
promulgação do novo código, sobretudo sob a forma de agressões a pessoas
nas ruas.

47
Os Comandos
Os quadros originais de comando da Polícia eram formados dentro da
tradição patrimonial portuguesa (Bretas, 1998). Homens de grande poder
aquisitivo obtinham a honraria de comandar um corpo policial e, em
contrapartida, pagavam por ele ou buscavam recursos com pessoas abastadas
para manter suas praças. Na organização do Corpo de Guardas Municipais
Permanentes (a atual Polícia Militar), Feijó criou quatro companhias de
infantaria, duas de cavalaria e duas auxiliares. Estas últimas eram comandadas
por oficiais do Exército e agregavam as praças que apresentavam problemas
disciplinares e necessitavam de maior controle. A praça que não mantivesse
comportamento adequado era transferida para o Exército, que pagava muito
menos e cuja disciplina se organizava de forma mais rígida (Bretas, 1998).
O costume de haver influentes portugueses à frente dos comandos
foi, aos poucos, se modificando, pois essa atividade não constituía uma
tarefa suficientemente atrativa. Bretas (1998) assinala que, já na década
de 1830, os documentos evidenciam a presença de um tipo de contratação
de comandantes por dois anos e, mais tarde, por três anos renováveis.
Inclusive, há registros de que nos anos 1830 já se aceitava e praticava a
ascensão na carreira. Um policial teria chance de se engajar no nível mais
baixo da corporação e galgar a postos superiores, por mérito ou por indicação
de pessoas influentes. Os comandantes das companhias também eram, com
freqüência, militares do Exército.
Bretas (1998) comenta que Luiz Alves de Lima e Silva, o futuro
duque de Caxias, que comandou a Polícia por um longo período na década
de 1830, incentivava a promoção de bons policiais. Os documentos da
época evidenciam a existência de servidores bem-sucedidos, embora fossem
muito poucos os que logravam chegar ao oficialato. Entre os oito capitães
listados em 1845, por exemplo, quatro vinham da própria instituição e
quatro do Exército (Bretas, 1998). Mas esse mesmo historiador, examinando
documentos, fala da imagem perturbadora que a história oferece desse grupo
considerado de sucesso, pois seu histórico assinala uma capacidade
profissional muito restrita, aliada à vivência de muitos problemas físicos,
mentais e de comportamento.
Bretas descreve vários exemplos, e dele tomamos o caso do capitão
Albino José Marques, que, ao pedir reforma,4 “apresentava, aos 50 anos,

48
um quadro de gastro-hepato-cistite e laringite crônica, além da suspeita de
idiotice que não fora, até então, obstáculo a sua carreira” (Bretas, 1998:
224). Sobre ele, a junta médica assinalou: “[possui] uma inteligência
limitada que, debaixo de afecções morais, bem poderia distraí-lo de seus
deveres. Não sofre, contudo, de idiotice” (Bretas, 1998: 224). Outro
exemplo vale a pena ser mencionado: o do capitão José Afonso de Castro,
de 41 anos, que deu baixa em 1869, tendo entrado na Polícia em 1846.
Submetido a três exames médicos, o diagnóstico para que pudesse ser
reformado descrevia o seguinte quadro de enfermidades: sífilis terciária,
tuberculose incipiente, bronquite crônica e reumatismo (Bretas, 1998).
É preciso, portanto, ressaltar que, salvo honrosas exceções, sempre
houve longa distância entre o ideário liberal propugnado pelo regente Feijó
e a realidade dos comandos possíveis, reais e concretos da Polícia Militar
do Rio de Janeiro, tanto em relação à capacidade de atuação quanto aos
comportamentos. O oficialato de então estava muito aquém da compreensão
dos ideais de igualdade, de respeito aos direitos humanos e de proteção à
população, previstos nos documentos de institucionalização da corporação.

Corpo de Servidores
Saber quem eram os soldados que compunham a força policial da
época do Império é fundamental para ampliar nossa visão sobre os
componentes de base do aparelho do Estado que então se formava no Brasil.
Bretas (1998) informa que as fontes para tal pesquisa são escassas. No
entanto, o que existe são ‘fragmentos de informação’ provenientes de ofícios e
de petições apresentadas ao imperador por policiais ou por seus familiares,
permitindo traçar características desse segmento social. Os dados nos obrigam
a refletir sobre as ambigüidades entre a condição social e o mandato profissional
desses servidores: “Agentes da dominação estatal, muitas vezes vítimas do
recrutamento forçado e participantes cotidianos dos dramas das vidas da
camada de homens livres e pobres” (Bretas, 1998: 220), eram chamados a

4
Uma lei de 28 de setembro de 1853 concedeu aos policiais o direito à reforma remunerada.
Essa melhoria se refletiu tanto no aumento dos que passaram a permanecer no Corpo de
Guardas Municipais Permanentes quanto no incremento do recrutamento dos que aspiravam
à carreira.

49
defender um Império que não os incluía, uma classe poderosa que os
discriminava e, ainda, a tratar com distinção o povo do qual fazia parte.
Bretas (1998) e Holloway (1997) falam de um universo humano de
pessoas pobres, simples, livres, pouco instruídas; havia também entre os
policiais a presença de alguns escravos fugitivos buscando trabalho e proteção
na força pública. Provinham das roças ou de outros serviços públicos. Seu
engajamento na corporação não significava nem uma mudança de status nem
seu afastamento do mundo familiar. Ao contrário, o exercício da atividade
policial nunca lhes conferiu atributos positivos, pois continuavam a conviver
com os mesmos problemas de outros grupos de trabalhadores pobres.
Em resumo, os agentes encarregados do controle social eram
recrutados nas mesmas camadas sociais que deveriam controlar. No entanto,
esta não era uma questão exclusiva do Brasil. A origem popular das forças
policiais sempre foi um problema para as corporações do mundo inteiro, e
muitas delas desenvolveram estratégias para minorar a solidariedade natural
desses servidores com as pessoas de sua própria classe. A polícia inglesa,
por exemplo, adotou rígida disciplina militar na formação dos seus quadros,
propondo um modelo de servidor padrão, sóbrio e polido (Steedman, 1984;
Emsley, 1991). Nesse caso, todo o empenho se destinava a afastar o policial
de seu grupo de origem, controlando seus locais de moradia, exercendo
vigilância sobre suas namoradas, proibindo sua freqüência a bares e
reprimindo a contratação de dívidas. Mesmo assim, a corporação britânica
sempre teve de enfrentar muitas demissões e resistências por motivos de
solidariedade de classe, conforme assinalam os autores citados. No Brasil,
observamos tanto a solidariedade de classe como a sua negação, exigindo
freqüentemente que as chefias lhes relembrem suas origens.
A história mostra que o número de policiais encarregados de proteger
e vigiar o Rio de Janeiro sempre oscilou muito. Deve-se destacar que em
nenhum momento, e isto até hoje, as vagas existentes para a corporação
foram totalmente preenchidas. Houve períodos em que o número não
ultrapassou a metade do necessário, e os historiadores atribuem isso à
resistência surda da população a adotar a profissão policial. Essa resistência
é tão relevante que, no início de institucionalização da corporação, mesmo
os que se inscreviam desertavam logo que surgisse uma oportunidade melhor.
Em pesquisa histórica, Bretas (1998) encontrou que um dos recursos usados
pelas autoridades para preencher os quadros da Polícia foi o recrutamento

50
de estrangeiros, que na época do Império chegavam a compor cerca de
20% do Corpo de Guardas Municipais Permanentes. Tomando como
exemplo dados do mês de abril de 1882, o autor conta que, nesse período,
havia 82 estrangeiros (desses, 52 eram portugueses, 14 espanhóis, seis
alemães, sete suíços, cinco franceses e dois italianos), em um total de 502
policiais para uma previsão de 560.
Para compor seu quadro de funcionários, a preferência dos comandos
era por jovens robustos encontrados nas ruas. Embora sistematicamente
negado pela Polícia, que, em seus documentos oficiais, sempre ressaltou o
engajamento voluntário, o recrutamento era freqüentemente forçado. Isso
pode ser inferido das inúmeras petições de baixas por parte de policiais e
de seus familiares às autoridades e mesmo ao imperador, sobretudo em
ocasiões festivas. Nessas petições, geralmente eram narradas cenas de
constrangimento no momento em que a praça havia sido recrutada.
Igualmente, muitas adesões admitidas como voluntárias se deviam à fuga
dos jovens ao serviço militar, no qual eram submetidos a condições de rígida
disciplina, recebendo pagamento ainda inferior ao da Polícia.
Os recrutas assinavam uma espécie de contrato de trabalho que variava
de um a três anos. Vários se arrependiam antes e enfrentavam longo processo
para se desvencilhar dos compromissos. Na década de 1830, a tendência dos
comandos era resistir à concessão de dispensas, independentemente dos motivos
alegados. Existem documentos que atestam casos de primeira, segunda e
terceira deserção – uma vez que as dispensas não eram concedidas –,
geralmente punidas com prisões e penas cada vez maiores (Bretas, 1998).
Assim, as indicações históricas sugerem que o conjunto de policiais
recrutados no século XIX para formar o Corpo de Guardas Municipais
Permanentes – ancestral da Polícia Militar – era formado por pessoas muito
simples, pouco instruídas, oriundas das camadas mais pobres da população,
muitas delas apanhadas nas ruas do Rio de Janeiro. A corporação contava
com uma boa parte de homens constrangidos e trabalhando
involuntariamente. Sua qualidade intelectual e moral não era confiável:
proliferavam queixas da população pelas agressões e pelo mau
comportamento, e são incontáveis os relatos de punições internas. Até mesmo
o quadro de oficiais possuía deficiências morais e de instrução escolar, e a
maioria atuava atendendo a favores pessoais dos mais ricos e poderosos
(Holloway, 1997; Bretas, 1998). Dessa forma, os princípios institucionais

51
que preconizavam tratar bem o público e não empregar violência
desnecessária geralmente permaneciam no nível da declaração dos comandos
e não produziam efeitos concretos.
É dentro dos parâmetros históricos assinalados que, a partir de
1831, a Polícia Militar do Rio de Janeiro surgiu como uma força armada
instituída para ser o esteio da manutenção da ordem e modelo para as
que fossem criadas no resto do país. Passou por reformas menores e
mudanças de nome em 1842, 1858, 1866 e 1889, mas manteve notável
continuidade na sua composição e missão desde 1831. Constituiu-se desde
o início, em sua organização interna e em seu regime disciplinar, como
uma corporação militarizada. Foi criada como um instrumento de coerção
da autoridade do Estado e em forma de resposta local, com recursos locais,
às necessidades de uma sociedade escravocrata que se mantinha unida
pela ameaça e pela dominação física e moral. E Feijó, seu fundador,
representava o liberalismo que procurava substituir o exercício arbitrário
do poder por leis frente às quais todos seriam igualmente responsabilizados.
A contradição entre a ordem pela lei e a arbitrariedade na prática está na
raiz da formação histórica da corporação (Holloway, 1997).

Mudanças Institucionais
Faremos um breve sumário histórico das mudanças institucionais
ocorridas a partir da Proclamação da República. Em 1890, o Corpo Militar
de Polícia passou a se chamar Brigada de Polícia da Capital Federal e, em
1891, Força Policial do Distrito Federal. Em 1920, assumiu a denominação
Polícia Militar. Nesse mesmo ano, foi criada a Escola Profissional para
Formação de Oficiais. A Constituição Federal de 1934, em seu artigo 167,
definiu a Polícia Militar como força reserva do Exército, e a lei n. 192, de
1936, determinou que ela se estruturasse da mesma forma que as unidades
de infantaria e cavalaria do Exército regular. Foi na década de 1930 que,
na corporação, se formalizou a simbiose entre segurança pública, segurança
interna e subordinação às Forças Armadas.
A partir do primeiro governo de Getulio Vargas, em que a expansão
das cidades correspondeu à maior consciência de cidadania e ao crescimento
do que poderíamos chamar de ‘uma opinião pública’, as forças de segurança
começaram a amargar críticas bastante negativas e contundentes a seu

52
desempenho, na medida em que não conseguiam estabelecer um plano
eficaz de prevenção ao crime. Autores como Donnicci (1990) consideram
que elas se encastelaram, criando uma cultura corporativa de violência contra
a população, matando impunemente, desrespeitando direitos e garantias
individuais e, também, construindo “superbandidos e admitindo
superpoliciais” (Donnicci, 1990: 59). Por isso, o autor conclui:

Hoje estou absolutamente convencido de que a polícia no Brasil é totalmente


opressora, defensora dos ricos, deixando o povo como oprimido. Essa minha
afirmativa não é uma ideologia de esquerda, mas a convicção de mais de 40
anos de advocacia criminal e de estudioso de todas as polícias do mundo.
(Donnicci, 1990: 60)

A cultura da truculência, segundo o autor, está na raiz da hostilidade


que o povo brasileiro sente por sua polícia, na qual raramente confia. Diante
desses servidores, a população responde com medo, arrogância ou crescente
cinismo, diz Holloway (1997) em suas considerações históricas.
Há, porém, posições divergentes da que Donnicci (1990) expressa.
A mais recente está na tese de doutoramento de Muniz (1999). Essa autora,
apoiada em Bretas (1997a), faz uma ampla teorização sobre o tema,
partindo da crítica sobre a historiografia moderna brasileira que privilegia
uma abordagem marxista do papel da Polícia. Segundo ela, tal visão –
proveniente, sobretudo, da década de 1970, quando o país passava por
forte repressão política – seria portadora de um tipo de racionalidade
conspiratória na sua análise do Estado brasileiro, entendendo-o
inexoravelmente comprometido com os grupos poderosos do país. Na
condição de agentes reprodutores do status quo, as polícias cumpririam
ordens em quaisquer situações a elas apresentadas. Muniz sugere que o
viés ideológico dessa concepção tem dificultado aos intelectuais, à classe
média e à população trabalhadora encontrar os elementos de positividade
que articulam a instituição policial com a cidadania no país.
Pelas Constituições de 1934, 1937 e 1946, as Polícias Militares
ficaram incumbidas da segurança interna e da manutenção da ordem nos
estados, nos territórios e no Distrito Federal, sendo consideradas forças
auxiliares do Exército.
A Constituição de 1946 confirmou a subordinação da Polícia Militar
ao Exército, assim como o fez a Constituição de 1967, promulgada durante

53
o período autoritário. O famoso ato complementar de 1968, responsável pelo
aprofundamento da ditadura, também repetiu que “as polícias militares,
instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna nos Estados,
nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são
considerados forças auxiliares do Exército”. Com esse ato complementar,
permitiu-se que a Polícia Militar continuasse a ser utilizada nos serviços de
informação e contra-informação do período autoritário. Infelizmente, ainda
são quase inexistentes estudos que mostrem a atuação específica e as
repercussões dessa atuação na própria cultura da corporação. Temos como
hipótese, no entanto, que sua forma de participação nesse momento histórico
contribuiu para fortalecer a ideologia que considera a população como o inimigo
interno, intensificando o fechamento institucional e o enrijecimento hierárquico.
Do ponto de vista organizacional, as corporações policiais no Brasil
têm passado por muitos questionamentos ao longo da história. Um dos
pontos cruciais debatidos ainda hoje é a integração da Polícia Militar com
a Civil, sendo que alguns cientistas, políticos e mesmo membros da instituição
chegam a mencionar que seria preciso investir na sua união. Analisando a
missão de cada uma, é difícil acreditar que os legisladores aceitem a fusão
de ambas em apenas uma. Outro ponto importante é a própria forma de
organização militar e hierarquizada, que não convence nem aos próprios
policiais e nem à sociedade e freqüentemente é questionada.
A criação da Secretaria de Estado de Segurança Pública, em 1992,
pretendeu ser um instrumento institucional de integração, visando não a reunir,
mas a coordenar os vários serviços, ações e propostas. Mas a primeira tentativa
de criar uma interação entre as forças de segurança vem desde o governo de
Carlos Lacerda, que fez profundas alterações nas estruturas até então vigentes,
organizando-as em superintendências de Administração e Serviços – a de
Polícia Judiciária e a Executiva. Nessa gestão, desapareceu da nova estrutura
o cargo de chefe de Polícia. As funções policiais civis passaram a ser exercidas
pela Superintendência de Polícia Judiciária. As administrativas ficaram a
cargo do superintendente de Administração e Serviços. O policiamento
ostensivo e o de trânsito integraram a competência do superintendente-executivo,
ao qual estava vinculado, também, o Departamento de Ordem Política e
Social. Todos, porém, eram subordinados ao secretário de Segurança Pública.
Em 1964, houve outras modificações, com a criação de novas delegacias
especializadas. A Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e o Corpo Marítimo

54
de Salvamento passaram a compor essa estrutura, como órgãos relativamente
autônomos. Nessa época, foi instituída a Força Policial que absorveu a Guarda
Civil e a antiga Polícia de Vigilância (ex-Guarda Municipal). Como órgãos
de assessoramento direto do secretário de Segurança, destacavam-se o Gabinete
do secretário, a Inspetoria Geral da Secretaria de Segurança Pública, o
Conselho Regional de Trânsito e a Escola de Polícia, esta última transformada,
mais tarde, em Academia de Polícia.
O regime ditatorial implantado em 1964 aprofundou ainda mais a
cisão entre a população e a Polícia. Também abriu um enorme fosso entre a
Polícia Militar e a Polícia Civil, pois o decreto-lei n. 667, de 2 de julho de
1969, deu ao Exército o controle e a coordenação das polícias militares. Em
oposição à corporação militar, cujo papel seria guardar ostensivamente a ordem
interna e ser reserva do Exército Nacional, a corporação civil viu reafirmada
sua autoridade investigativa como primeira instância da função judiciária.
Por ocasião da fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro,
ocorrida em 1975, iniciou-se uma reforma de base na Secretaria de
Segurança Pública. Foram criados, como órgãos de atividade-fim, o
Departamento Geral de Polícia Civil (DGPC) e o Departamento Geral
de Investigações Especiais (DGIE). Ao primeiro, ficaram subordinados o
Departamento de Polícia Metropolitana (DPM), o Departamento de Polícia
Especializada (DPE) e o Departamento de Polícia do Interior (DPI) –
este último, posteriormente, descentralizado em Coordenadorias de
Segurança Pública. A Academia de Polícia e a Corregedoria passaram
também à tutela do Departamento Geral de Polícia Civil. Ao DGIE ficaram
vinculados o Departamento de Polícia Política e Social (DPPS) e o
Departamento de Investigações Gerais (DIG). Nesse tempo, foi criado,
ainda, o Departamento Geral de Defesa Civil.
Em 1977, deu-se prosseguimento às reformas que reestruturavam as
carreiras policiais em três categorias, restabelecendo-se o provimento por
ascensão mediante prova de habilitação e curso específico e criando-se novas
categorias funcionais. Tal reforma tinha como objetivo proporcionar melhores
condições de trabalho aos policiais, assegurando-lhes um sistema de
promoções anuais baseado no mérito objetivamente aferido.
No entanto, os problemas de fundo continuaram a existir: quadro de
funcionários deficiente, salários aviltantes, desempenho baixo e muito pouca
avaliação em relação ao controle da criminalidade. Mesmo depois da

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abertura política que, a partir de 1979, marcou o início dos movimentos
pela democratização do país, e a despeito de todas as tentativas de reforma
organizacional, persistem a cultura autoritária, o fechamento institucional
para a sociedade e a falta de clareza no desempenho profissional.
Ousamos assinalar algumas razões que explicam as dificuldades de
mudanças: primeiro, uma cultura autoritária não se muda de um dia para o
outro; segundo, todas as instituições policiais e militares, historicamente e em
todo o mundo, são muito fechadas; e terceiro, na prática, em todas elas existe
falta de clareza no desempenho das atribuições. O fator mais importante,
porém, é que a violência policial tem uma relação dialética com a expectativa
do povo a respeito dela. No caso de uma sociedade autoritária e discriminadora
como a brasileira, as falhas apontadas são objeto de imensas e profundas
controvérsias. Portanto, as transformações institucionais e dos policiais como
sujeitos fazem parte da longa agenda de democratização do país.
O conjunto de problemas que a maioria dos estudiosos observa na
corporação foi fartamente dramatizado, em 2007, pelo filme de ficção Tropa
de Elite. Esse filme aborda o heroísmo de um grupo especial da Polícia
Militar que, para cumprir seu dever, vai às últimas conseqüências e
ultrapassa os limites da legalidade, chegando até a cometer torturas. Em
contraposição, os ‘heróis’ convivem com uma tropa conivente com a
criminalidade, suscetível a subornos e promiscuamente compactuando com
a ilegalidade e com o poder. Tal peça de ficção sobre a situação policial
brasileira vem despertando controvérsias e reflexões como nunca havia
ocorrido antes. Temos a hipótese de que esse interesse surpreendente se
deve, entre outras razões, ao despertar da sociedade para essa instituição
que faz parte de seus problemas e de suas soluções.
Transcrevemos aqui fragmentos do artigo de um delegado de polícia,
Alexandre Neto, publicado no jornal O Globo de 2/11/2007, reagindo ao
filme que atualiza para a vida contemporânea do estado do Rio de Janeiro
os dilemas estruturais assinalados por Holloway (1997) em sua obra:

A ficção acabou expondo uma realidade herdada por nossas instituições


policiais desde a chegada da família real ao Brasil. (...) O que importa
para a sociedade e também para a polícia é que os ‘capitães Nascimento’
não são privativos do Bope e nem da Polícia Militar fluminense. As
frustrações daquele oficial de ficção são reais e se espalham por todas as

56
instituições policiais do país. Por todos os policiais militares e civis que não se
omitem, que não se corrompem e optam por ir à guerra, mesmo sabendo que
tudo lhes é desfavorável. (...) Na visão elitista de grande parte do público que
assiste ao filme, a chamada barbárie policial se justifica pela ‘tragédia das
drogas’ em nossa sociedade – essa mesma que ela observa complacente e sai
às ruas, em passeatas pela paz; e, ao final de cada uma delas, alguns
participantes acendem ‘baseados’ para relaxar e meditar sobre uma solução
que concilie seus vícios e os interesses sociais. (Neto, 2007)

Referindo-se às permanências do passado, marcando o presente com


seu poder simbólico e ritual, Alexandre Neto (2007) continua:

As elites são as mesmas que ainda figuram em seus distintivos e comandam


seus desígnios. No emblema da tropa, há um ramo de café entrecruzado com um
ramo de cana-de-açúcar, tendo ao centro duas pistolas e acima uma coroa –
apesar de passados quase duzentos anos. Ou seja, ainda se consagram os barões
do café, da cana-de-açúcar e a chamada elite dirigente no governo estadual que
hoje substitui a família real portuguesa. Há também o dístico da caveira
traspassada pelo punhal e tendo ao fundo duas pistolas – um emblema do elo
temporal entre os antigos e os atuais capitães do mato.

Cremos que esse depoimento – junto com muitos dos artigos de opinião
que se multiplicaram por mais de um mês nos jornais de grande circulação
do país, após e a propósito da exibição do filme, além de todas as falas de
policiais que os leitores encontrarão neste livro – poderia pautar reflexões e
debates da corporação e da sociedade que busca mais profundidade em
sua experiência democrática.

Missão Contemporânea da
Polícia Militar do Rio de Janeiro
A missão contemporânea da Polícia Militar se encontra escrita no
artigo 144, capítulo III, da Constituição Federal de 1988:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de


todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos: (V) polícias
militares e corpos de bombeiros militares.

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§5: Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a manutenção da
ordem pública.
§6: As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares
e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Nos incisos I a V, o artigo 144 da Constituição de 1988 estabelece


as competências da Polícia Militar:

a) preservação da ordem pública; e b) preservação da incolumidade das


pessoas e do patrimônio. Tais competências devem ser assim exercidas (inciso
V): a) polícia ostensiva; b) caráter militar das ações vinculadas ao Exército
Brasileiro e como Força Auxiliar dele; c) de forma subordinada aos
governadores.

Com base na Carta Magna Federal, a Constituição do estado do


Rio de Janeiro repete a missão e os encargos conferidos na legislação federal:
“preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do
patrimônio”. São mantidos também seu caráter militar e sua subordinação
ao governador. Os conceitos básicos de sua ação são: “ordem pública e
policiamento ostensivo”.
Segundo o eminente advogado administrativista Hely Lopes
Meirelles, em sua obra Direito Administrativo Brasileiro (2007: 287),

O conceito de Ordem Pública, no tempo e no espaço, está sempre vinculado


à noção de interesse público e de proteção e segurança à propriedade, à saúde
pública, aos bons costumes, ao bem-estar coletivo e individual, assim como à
estabilidade das instituições em geral. A proteção a esses bens é, modernamente,
confiada à Polícia de Manutenção da Ordem Pública, no nosso país exercida,
precipuamente, pela Polícia Militar estadual.

O conceito de ‘polícia ostensiva’ é novo no texto constitucional e


expressa uma ampliação do termo ‘policiamento ostensivo’, correspondente
a uma fase da atividade da Polícia para um contexto mais amplo. No texto
constitucional, existe uma preferência nítida do constituinte pela prevenção
ostensiva constante (vinculada à identificação dos policiais militares pelo
uso dos uniformes, equipamentos e armamentos), ao contrário das idéias
de ações repressivas eventuais.

58
No cumprimento de sua função constitucional, a Polícia Militar que
se localiza no estado do Rio de Janeiro atua em três grandes áreas: na
capital, que compreende o município do Rio; na Baixada, que corresponde
aos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Belford Roxo,
Queimados, Japeri, São João de Meriti e Magé; e no interior, que se refere
aos demais municípios do estado. Cada uma dessas áreas está vinculada a
um ‘Comando de Policiamento’ e a ele se subordinam unidades que executam
a missão institucional por meio de policiamento geral, radiopatrulhamento,
patrulhamento rodoviário, florestal e outros. Existem outras unidades que,
pelo seu alto grau de especialização, reúnem-se em um Comando de
Policiamento Especial que abrange todo o estado: unidades de Polícia
de Choque, Operações Policiais Especiais, Patrulhamento Rodoviário,
Florestal, Montado e Ferroviário (www.policiamilitar.gov.rj).
Segundo dados disponibilizados pela corporação em março de 2007,
o atual efetivo de policiais militares do estado do Rio de Janeiro é de 37.459
membros ativos, correspondendo à relação de um policial para 420
habitantes, considerando-se que a população residente no estado hoje é de
15.738.510 pessoas, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) para julho de 2007. Na relação policial militar/
população, o número previsto pela corporação é de 43.774 policiais, à
razão de 1/350 habitantes. No entanto, há um projeto de lei em tramitação
no Congresso Nacional sobre reformas na categoria que propõe a relação
de 1/250 habitantes, proporção que, se obedecida, faria crescer o efetivo
para 61.144 policiais. A categoria possui hoje 23 mil inativos.
Dentro de sua missão constitucional, a Polícia Militar realiza uma
enorme variedade de tarefas que apresentamos a seguir, a partir das
informações do site institucional. Talvez com o intuito de evidenciar sua
presença em quase todas as circunstâncias da vida fluminense, a Polícia
Militar acaba por nos fazer pensar no excesso de atividades que lhe cabe,
sem dúvida tirando-lhe o foco da missão primordial.

1) Atua contra o crime e a violência, por meio do patrulhamento e


de operações de rotina. E, também, na repressão de assaltantes,
seqüestradores, grupos de extermínio e traficantes, por meio de
grandes operações nos locais de homizio de criminosos a fim de
prendê-los, apreender armas e drogas em todo o estado.

59
2) Realiza patrulhamento motorizado em todos os recantos do estado.
Atende, em contato direto com a população, a milhares de pessoas
que, em especial durante as madrugadas, à beira das estradas e dos
caminhos, solicitam sua ajuda para conduzir ao hospital enfermos,
acidentados e parturientes. Não raro, os próprios policiais realizam
partos de emergência, até dentro das viaturas.
3) Realiza serviço de patrulhamento à porta de escolas públicas e
privadas da rede de ensino de 1° e 2° graus, faculdades e
universidades, como também participa de comemorações cívicas
programadas pelas escolas, em todo o estado.
4) Trabalha no policiamento das orlas marítimas e nas praias das
diversas regiões litorâneas do estado, como na orla da Zona Sul do
município do Rio de Janeiro, nas praias oceânicas de Niterói e
Maricá (e também da baía de Guanabara), na região dos Lagos,
nas praias de Araruama, Saquarema, Cabo Frio e outras, na baía
da Ilha Grande, nas praias do sul do estado, bem como nas do
norte, como em Campos e São João da Barra. O trabalho é
intensificado nos períodos quentes, especialmente no verão, mas é
realizado o ano inteiro.
5) Além do policiamento nos grandes centros comerciais em todas
as cidades do estado, presta serviços nos principais pontos turísticos,
inclusive com atendimento especializado para turistas nacionais e
estrangeiros, por parte do Batalhão de Policiamento em Áreas
Turísticas (BPTur).
6) Atua no policiamento dos terminais rodoviários em várias cidades
do Estado.
7) Realiza a segurança dos grandes eventos esportivos, oficiais e
públicos, em estádios, ginásios e congêneres, dentro dos locais, do
lado de fora, nas adjacências e nos acessos.
8) Está presente nos serviços de policiamento de grandes eventos e
festas populares, tais como: eleições, Carnaval, Natal, Réveillon,
grandes feiras na capital e no estado, em grandes comemorações
públicas, convenções e congressos de interesse público, em nível

60
nacional e internacional. No caso das eleições, os policiais militares
policiam as zonas eleitorais de todos os municípios do estado, além
de fazerem a segurança das urnas e dos locais de apuração até que
as sessões terminem.
9) Controla e orienta o trânsito urbano (em todas as cidades do
estado) e rodoviário, nas vias estaduais e municipais, com vistas à
fluidez do trânsito e à segurança de motoristas e pedestres.
10) Opera na fiscalização e na revista de automóveis, motocicletas,
caminhões, táxis e ônibus, em todo o estado, visando a minimizar
os crimes contra a vida e o patrimônio.
11) Trabalha para a preservação da flora, da fauna e do meio
ambiente, mediante a fiscalização das ações predatórias das pessoas
em matas, rios e lagoas de todo o estado. Atua em praias e feiras
livres, coibindo a comercialização ilegal de animais por intermédio
do Batalhão de Polícia Florestal e do Meio Ambiente (BPFMA),
que apóia também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Fundação Estadual de
Engenharia do Meio Ambiente (Feema), a Fundação
Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) e o Instituto
Estadual de Florestas (IEF).
12) Atua na preservação da ordem por ocasião de greves e
mobilizações populares, a fim de garantir o direito dos grevistas e
daqueles que desejam trabalhar, coibindo os excessos e a violência.
13) Atua no controle de grandes manifestações públicas, passeatas,
comícios e outros eventos da mesma natureza, para a preservação
da ordem e a fluidez do trânsito.
14) Atua, durante as 24 horas, no serviço de segurança externa de
todos os presídios e complexos penitenciários existentes no estado
do Rio de Janeiro.
15) Realiza, quando os meios do sistema penitenciário são
considerados insuficientes, escoltas de presos de alta periculosidade
dos presídios aos locais de julgamento e vice-versa.

61
16) Atua, sobretudo para a custódia de presos recolhidos a leitos
hospitalares, em hospitais das redes estadual e municipal, em todo
o estado.
17) Atua, por solicitação, na revista das dependências de presídios
e delegacias concentradoras de presos, bem como na segurança de
delegacias da Polícia Civil, quando ameaçadas de invasão.
18) Custodia presos beneficiados com prisão especial por terem curso
superior ou por serem advogados.
19) Presta serviços nos fóruns de Justiça das comarcas de todos os
municípios do estado, garantindo a segurança dos magistrados,
promotores, funcionários e do público.
20) Realiza a preservação de locais de crime até a chegada da perícia
e, às vezes, até mesmo depois, e presta serviços também nas
interdições judiciais de imóveis, mesmo da Justiça cível.
21) Presta serviços à instrução criminal por meio dos seus depoimentos
como condutores de presos ou como testemunhas nos inquéritos e
processos penais decorrentes da sua ação policial.
22) Atua em apoio aos oficiais de Justiça nas situações de reintegração
de posse, por decisão judicial em todo o estado.
23) Executa a segurança do governador do estado (e dos palácios
governamentais), do presidente do Tribunal de Justiça, do procurador
geral da Justiça, do presidente da Assembléia Legislativa, bem como
de testemunhas, autoridades e pessoas eventualmente sob ameaça.
24) Atua em apoio às forças federais, com o emprego de grandes
efetivos, na segurança de dignitários nacionais e estrangeiros, como
é o caso das visitas do presidente da República ao Rio de Janeiro.
25) Atua na segurança de representações diplomáticas instaladas
no estado do Rio de Janeiro.
26) Permanece em vigília, em equipes, durante as 24 horas do dia,
os 365 dias do ano, mantendo em funcionamento os diversos centros
de operações da corporação, instalados em todas as unidades da
62
Polícia Militar para apoiar os serviços externos e para atender às
chamadas da população pelo telefone 190.
27) Constitui ponto de referência no policiamento dos logradouros
públicos, em todo o estado, para milhares de solicitações diretas da
população, sejam elas para a ação policial estrita, seja para
informações e orientações.
28) Permanece aquartelada em equipes, durante 24 horas, os 365
dias do ano, para pronto-atendimento a situações que requeiram
forças de choque ou de operações especiais.
29) Atua, para a preservação da ordem pública, em caso de saques,
quebra-quebras, ocupações e outros, em todo o estado.
30) Atua em apoio às autoridades da Defesa Civil e do Corpo de
Bombeiros, por ocasião de enchentes, desmoronamentos, deslizamentos,
interdição de estradas e outros sinistros, em todo o estado.
31) Colabora com a segurança de outras forças, como é o caso da
segurança de policiais civis em delegacias, agentes penitenciários
em presídios e guardas municipais em atuação, até mesmo em áreas
onde se localizam organizações militares das Forças Armadas.
32) Apóia outros órgãos públicos, estaduais e municipais, em
atividades como remoção de mendigos, ação contra camelôs, trato
com crianças e adolescentes abandonados e população de rua.
33) Atua em apoio aos fiscais fazendários e de posturas municipais,
quando solicitados, em todos os municípios do estado.
34) Atua em todas as campanhas de vacinação de crianças e de
animais, bem como, não raro, em campanhas beneficentes.
35) Atua, ainda, no Programa Educacional de Resistência às Drogas
e à Violência (Proerd), de orientação a estudantes, implantado
desde julho de 1992.
36) Presta importantes serviços de segurança em várias secretarias
de estado e prefeituras e para o Poder Legislativo, Poder Judiciário,
Ministério Público e órgãos federais, inclusive militares.
63
O organograma formal e atual da PMERJ assim se estrutura:
1) Comando Geral (Estado-Maior e Assessoria do Comando);
2) Comando de Policiamento da Capital, da Baixada e do Interior;
3) Comando de Unidades Operacionais Especiais;
4) Comando de Policiamento de Trânsito (hoje extinto);
5) Diretorias de Ensino, de Saúde, de Apoio Logístico, de Pessoal
e de Finanças;
6) “Outros”, nos quais se situam unidades subordinadas aos
departamentos descritos, como Centro de Manutenção de Material,
Centro de Criminalística, Centro de Recrutamento e Seleção
de Praças, Delegacia de Polícia Judiciária Militar e Companhia de
Músicos.

Fechando este resumo histórico e descritivo, entendemos que, desde


sua origem, a PMERJ – matriz de toda a Polícia Militar brasileira – vive a
ambigüidade de ser defensora implacável das camadas privilegiadas
encasteladas no poder e ao mesmo tempo instituidora da ordem e da
tranqüilidade públicas. Sobre essa ambigüidade, Holloway (1997) comenta
que foi o calor desprendido da fricção entre repressão e resistência nas
ruas, becos e praças do Rio de Janeiro o catalisador da formação da
corporação. Sua organização e os procedimentos formais e informais de
sua atuação, segundo o autor, aplicaram um verniz de modernidade às
atitudes e relações coloniais. Acabou prevalecendo, em sua atuação, o
privilegiamento dos poderosos.
Lembra ainda Holloway (1997), sendo ele um observador externo
que, historicamente, nenhum brasileiro, qualquer que seja sua cor, posição
ideológica ou formação escolar, considera relevante o papel histórico da
polícia. Nem no início houve e nem hoje há legitimidade social e consenso
quanto à relevância de sua função. Os que a defendem pensam na
manutenção da ordem e da disciplina. Os que a criticam vêem nela a imagem
do Estado autoritário e da ação repressiva.
No entanto, como lembram Paixão e Beato Filho (1997) em seu
estudo sobre ‘crimes, vítimas e policiais’, chegou a hora de a sociedade
brasileira perceber as articulações positivas entre Polícia e cidadania de

64
todos os brasileiros. Referindo-se ao fato de que existe necessidade de
‘coerção’ para contrabalançar os processos de construção de ‘coesão’ social
e de ‘consenso’, com esses autores encerramos este capítulo.
A crítica humanitária aos métodos violentos do trabalho da Polícia
não pode negligenciar os efeitos devastadores – do ponto de vista dos direitos
humanos – da baixa efetividade das organizações do sistema de justiça
criminal no combate à criminalidade. Um deles é o estímulo a resoluções
extralegais de agressões criminosas; outro é a facilitação de cruzadas morais
de forte conteúdo autoritário. De um e de outro resultam, no plano da
psicologia social, o reforço de atitudes de cinismo e descrença em relação à
competência de modelos democráticos de resolução de conflitos (Paixão &
Beato Filho, 1997).

65
Perfil Sociodemográfico,
3
Profissional e Econômico

Neste capítulo, apresentamos algumas características


sociodemográficas e econômicas dos policiais militares, com o objetivo de
construir um breve perfil desses trabalhadores. Do ponto de vista
sociodemográfico, consideramos variáveis de sexo, idade, escolaridade, cor
referida, situação conjugal e número de filhos. Também foram analisadas
variáveis relativas à profissão de policial, como cargo e tempo de serviço na
corporação. Em termos econômicos, investigamos a renda mensal do policial
e familiar, o número de pessoas que contribui para a renda familiar e os
gastos mensais.
No Gráfico 1, podemos ver que mais de 95% dos policiais militares
são do sexo masculino, com uma diferença estatisticamente significativa entre
os cargos de soldados e cabos e oficial/suboficial/sargento, em que a
proporção de homens é maior (p=0,038). No setor operacional, as
proporções de homens são ainda maiores (p=0,000), tanto entre os oficiais
e suboficiais (99%) como entre os não-oficiais (97,9%). No setor
administrativo, encontramos o mais elevado percentual de mulheres (11,3%
de oficiais e suboficiais e 11,9% de não-oficiais).
Considerando apenas o grupo das mulheres, encontramos 75,4%
delas no círculo das praças e 24,4% no de oficiais.
Na Polícia Civil do Rio de Janeiro, de acordo com Minayo e Souza
(2003), também ocorre a predominância do gênero masculino (80,8%),
mas as mulheres estão presentes em maior proporção, correspondendo a
19,2%. Quando comparamos a presença feminina na PMERJ com a das
outras unidades da federação, o Rio apresenta um dos percentuais mais
baixos, tanto em relação à média nacional, que é de 7,3%, como em relação
aos padrões internacionais (Soares & Musumeci, 2005).

67
Gráfico 1 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o sexo
96,5% 96,0%

3,5% 4,0%

Cabos / Soldados Oficial / Suboficial / Sargentos

Masculino Feminino

Os cabos e soldados são mais jovens (têm idade até 35 anos) que os
oficiais, suboficiais e sargentos (Gráfico 2). Neste último grupo, a maioria
dos trabalhadores está na faixa etária intermediária de 36 a 45 anos. No
setor administrativo, está mais concentrado o efetivo que tem entre 36 e 45
anos, correspondendo a 48,5% dos policiais. No grupo operacional, atuam
os policiais mais jovens: 62% deles têm até 35 anos (p=0,000). No setor
administrativo, é na faixa de 36 a 45 anos que se encontra a maior parte
dos militares, correspondendo a 48,5% (p=0,000).
No subconjunto de mulheres, 41,5% se encontram na faixa etária de
31 a 35 anos, 23% têm até 30 anos e 35,5%, mais de 35 anos.
Quando comparamos esses dados com os da Polícia Civil (Minayo
& Souza, 2003), observamos que os policiais militares são mais jovens.
Entre os civis, apenas 4,8% dos que atuam no setor administrativo têm até
35 anos e 42,7% estão na faixa de 46 anos ou mais. No grupo operacional,
novamente observamos que os policiais militares também são mais jovens
que os civis: 33,6% dos últimos têm 46 anos ou mais.
O ingresso na corporação militar é feito por meio de concurso público,
no qual é exigido que o candidato tenha concluído o Ensino Médio (grau
mínimo de escolaridade). Nos dados analisados, observamos que existem
diferenças entre os cargos quanto à escolaridade (p=0,000).

68
Gráfico 2 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a faixa etária

11,0%
até 35 anos
89,2%

72,1%
de 36 a 45 anos
10,5%

17,0%
46 anos ou mais
0,4%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

No Gráfico 3, observamos que a maior parte dos agentes possui o


Ensino Médio completo, de forma distribuída em 46,3% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 62,2% dos cabos e soldados. Apesar da exigência
de Ensino Médio completo para o ingresso na corporação, houve uma parcela
considerável de militares que afirmaram ter escolaridade menor que esta:
23,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 11,4% dos cabos e soldados.
É possível que essa situação se refira a praças que fizeram o Curso de
Habilitação aos Quadros de Oficiais de Administração e Oficiais
Especialistas, recebendo a promoção de praça a oficial.

Gráfico 3 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a escolaridade


Ensino fundamental 1,9 %
incompleto 0,4%
Ensino fundamental 4,6%
completo 2,2%
16,9%
Ensino médio
incompleto 8,8%
46,3%
Ensino médio
62,2%
completo
12,6%
Superior incompleto
21,6%
14,9%
Superior completo
4,0%
2,8%
Pós-graduação Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados
0,8%

69
No setor administrativo, a proporção de policiais que não completaram
o Ensino Médio atinge 10,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 12%
dos soldados e cabos (p=0,000), mas a maior parte concluiu a escolaridade
exigida pela Polícia. Entre os operacionais, a situação é pior: o percentual
dos que não têm o Ensino Médio completo chega a 28,8% dos oficiais e
suboficiais e a 11,4% dos não-oficiais (p=0,000).
Maior parcela das mulheres, 45,6%, possui o Ensino Médio
completo. Concluíram o Ensino Superior 21,4% e 6,1% possuem pós-
graduação.
É importante destacar que percentuais mais elevados de oficiais,
suboficiais e sargentos, quando comparados aos soldados e cabos, não
possuem a escolaridade mínima exigida de Ensino Médio. Isso indica a
vigência recente de maior grau de instrução, assim como exigências atuais
de investimento na formação da corporação, em todos os níveis. Porém, é
no ciclo dos oficiais, suboficiais e sargentos que estão os percentuais maiores
de policiais com Ensino Superior completo, correspondendo a 14,9% do
total desse grupo versus 4,0% dos não-oficiais. Constatamos, porém, que
mais soldados e cabos (21,6%) versus 12,6% de oficiais, suboficiais e
sargentos estão buscando concluir formação de nível superior. Comparados
com os policiais civis, os militares possuem nível de educação formal bastante
inferior. Entre os civis, 53,2% têm Superior completo (Minayo & Souza,
2003), o dobro do percentual da corporação militar.
Quanto à cor de sua pele, os entrevistados afirmaram, em sua maioria,
que é preta ou parda, como podemos ver no Gráfico 4. No setor
administrativo, os 61,4% que assim se declararam pertencem ao grupo dos
cabos e soldados (p=0,003), e no setor operacional, 62,2% dos que se
consideram pretos ou pardos são oficiais, suboficiais e sargentos (p=0,000).
Os dados sobre cor de pele dos policiais militares contrastam com os dos
policiais civis, que se declararam, em sua maioria (65%), brancos (Minayo
& Souza, 2003). As informações provenientes da corporação civil se
aproximam mais da realidade brasileira e carioca. Segundo o Censo 2000,
a maior parte das pessoas da capital (54,7%) se declarou com cor de pele
branca e, para o Brasil, essa atribuição foi de 53,7% (IBGE, 2000).

70
Gráfico 4 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a cor da pele

39,4%
Oficial / Suboficial /
Sargentos
60,6%

42,2%
Cabos / Soldados
57,8%

Branco Preto / Pardo

Podemos assim inferir que a profissão de policial constitui um mercado


importante para jovens de cor de pele preta ou parda, pois lhes permite um
emprego formal e ascensão profissional. Muitos, ao longo da carreira,
conseguem ocupar cargos elevados em profissões como a de agente
penitenciário e de policiais militares. Coincidindo com o que constatamos,
Sansone (2002) assinala como motivos para a maior presença de pretos e
pardos na corporação militar o fato de conseguirem trabalho seguro
acompanhado por plano de benefícios diretos e indiretos, além da
possibilidade que esses profissionais passam a ter de ampliar a qualificação,
principalmente na área do direito. Outra razão, segundo o autor, seria o
fato de a população branca de classe média e alta não considerar a carreira
de policial militar como desejável e adequada, confirmando uma tendência
histórica de menosprezo por essa profissão (Bretas, 1998; Holloway, 1997).
A maioria dos policiais é casada ou tem companheiro(a). É o caso,
principalmente, dos oficiais, suboficiais e sargentos. Entre os não-oficiais,
encontramos maior proporção de solteiros, como mostra o Gráfico 5. Viúvos
e separados estão em maior número entre os oficiais, suboficiais e sargentos.
Essas distribuições certamente estão influenciadas pela idade desses agentes.
Observando a situação conjugal segundo o setor de atividade, há 5,2% de
oficiais, suboficiais e sargentos e 27,1% de cabos e soldados (p=0,000) na
área administrativa vivendo sozinhos. Entre os operacionais, esses percentuais

71
são 8,9% e 23,8%, respectivamente (p=0,000). Entre as mulheres, 65,9%
são casadas, 27,8% são solteiras e 6,3% são separadas. Entre os policiais
civis, as proporções de pessoas sozinhas são menores que as dos policias
militares. No grupo administrativo, são 23,2% e no operacional, 22,8%
(Minayo & Souza, 2003).

Gráfico 5 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo situação conjugal

7,8%
Solteiro
24,3%

81,2%
Casado /
Companheiro
71,4%

11,0%
Viúvo / Separado
4,3%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

A maioria dos policiais militares possui filhos e, entre os que não os


têm, os cabos e soldados estão em maior número (33,5%). Essa informação
corrobora os dados do gráfico anterior, pois maiores proporções deles estão
sozinhos. Distribuindo-os por estratos, observamos que, no grupo
administrativo, os que não têm filhos são 44,1% dos não-oficiais e 13,9%
dos oficiais, suboficiais e sargentos (p=0,000). Já no grupo operacional,
são 31,7% e 18%, respectivamente (p=0,000). Entre as mulheres da
corporação, 32,2% declararam não ter filhos.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de
2006, informam que na região Sudeste do país a proporção de casais sem
filhos, em 2005, foi de 13,8% e, no Rio de Janeiro, de 15,5%. Os achados
da presente pesquisa mostram importante diferença em relação a esses
percentuais, que são praticamente o dobro do encontrado para o estado do
Rio de Janeiro.

72
Entre os policiais que são pais ou mães, uma grande proporção dos
oficiais, suboficiais e sargentos relata ter dois ou mais filhos e, entre os cabos
e soldados, é mais comum terem até dois filhos, como podemos constatar no
Gráfico 6. Já entre as mulheres, 41,2% possuem um único filho.
Se considerarmos as proporções de casais com filhos na região Sudeste
(44,8%) e no Rio de Janeiro (39,5%), segundo dados do IBGE (2006),
os policiais militares apresentam percentuais mais elevados de pais e mães
(66,5% dos não-oficiais e 83,2% dos oficiais e suboficiais).
No setor administrativo, os que têm apenas um filho são 28,8% dos
cabos e soldados e 26,1% dos oficiais, suboficiais e sargentos. Os que têm
dois filhos são 18,6% e 36,9%, respectivamente. Três ou mais filhos são
relatados por 8,5% dos não-oficiais e por 23,2% dos oficiais, suboficiais e
sargentos (p=0,000).
Para os alocados no setor operacional, as proporções seguem a mesma
tendência dos administrativos. Os que referem apenas um filho são 37,4%
dos cabos e soldados e 17,9% dos oficiais, suboficiais e sargentos; dois
filhos, 23% e 36,9%; e três filhos ou mais, 7,9% e 27,2%, respectivamente
(p=0,000). Entre os policiais civis do Rio de Janeiro, informaram ter apenas
um filho 29,3%; dois filhos, 45,6%; três filhos, 15,8%; e quatro, 6%
(Minayo & Souza, 2003).

Gráfico 6 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o número de filhos

16,8%
Nenhum filho
33,5%

20,3%
1 filho
36,2%

36,9%
2 filhos
22,4%

26,0%
3 ou mais filhos
8,0%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

73
Indagados sobre suas crenças e atividades religiosas, 23,4% dos cabos
e soldados e 21% dos oficiais, suboficiais e sargentos disseram que não
praticam religião; 23,4% e 26,5% responderam que freqüentemente praticam
uma religião; e 53,2% e 52,5%, respectivamente, praticam às vezes.
Nos estratos administrativo e operacional, a maior parte dos policiais
militares afirma que às vezes pratica alguma religião e, no grupo operacional,
não há uma diferença significativa entre os dois estratos: 53,6% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 52,8% dos cabos e soldados (p=0,001).
A renda mensal líquida derivada do trabalho na Polícia varia de
acordo com o cargo que os servidores ocupam na corporação. A maioria
dos cabos e soldados conta com uma renda de até R$ 1.000. Os oficiais,
suboficiais e sargentos recebem um salário melhor, sendo que quase a metade
deles ganha mais de R$ 1.500 (Gráfico 7).
Os oficiais, suboficiais e sargentos do setor administrativo, em sua maioria
(64,3%), contam com renda mensal líquida de mais de R$ 1.500. No setor
operacional, uma parcela considerável (45%) recebe um salário menor, que
varia de R$ 1.001 a R$ 1.500, e 44% ganham mais de R$ 1.500, com
diferença estatisticamente significativa entre essas proporções (p=0,000).
Para os cabos e soldados que atuam tanto no grupo administrativo
quanto no operacional, a faixa salarial está situada entre os valores menores
que R$ 1.000 (81,4% e 83,4%, respectivamente).

Gráfico 7 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo renda líquida no


último pagamento

11,4%
Até 1.000 reais
83,1%

38,6%
De 1.001 a 1.500 reais
16,3%

49,9%
Acima de 1.500 reais
0,5%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

74
Comparando os policiais militares com os policiais civis, constatamos
que os últimos têm rendimento menor que os oficiais, suboficiais e sargentos:
57,5% dos civis recebem de R$ 1.001 a R$ 1.500 e 23,6% mais de R$
1.500. No setor administrativo, 43% dos civis ganham até R$ 1.000 de
salário (Minayo & Souza, 2003).
Investigamos ainda se o salário recebido por esses policiais estaria
comprometido com algum tipo de desconto relativo a empréstimos ou pensões
alimentícias, por exemplo. Entre os cabos e soldados, 81,6% têm descontos.
Entre oficiais, suboficiais e sargentos, esse percentual é ainda maior: 83,1%.
No setor administrativo, são os oficiais, suboficiais e sargentos (80,9%)
que mais têm descontos em seus rendimentos comparados aos cabos e
soldados (74,6%), com diferenças estatísticas entre eles (p=0,000).
Minayo e Souza (2003) observaram que 58,5% dos policiais civis
tinham descontos de prestações e outros compromissos em seu pagamento
mensal. Do pessoal do setor administrativo, 59,5% se comprometeram com
algum desconto no salário. Por esses dados, constatamos que os policiais
militares são mais endividados que os policiais civis.

Gráfico 8 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo número de pessoas


que contribuem para a renda familiar

65,4%
Uma
56,7%

24,5%
Duas
31,9%

10,1%
Três ou mais
11,4%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

No questionário, também perguntamos quantas pessoas moram com o


policial e se contribuem com a renda familiar (incluindo o próprio policial).
No Gráfico 8, é evidenciado que a maioria deles sustenta a família sozinho.
Esse percentual é ainda maior entre os oficiais, suboficiais e sargentos (65,4%).

75
Os cabos e soldados contam com a ajuda de uma pessoa nas despesas
domésticas (31,9%), em maiores proporções que os oficiais (24,5%), com
diferença estatística entre eles (p=0,000). Entre os policiais civis, encontramos
percentuais menores (53,7%) dos que sustentam seus lares sozinhos, ao passo
que são 36,6% os que têm ajuda de terceiros (Minayo & Souza, 2003).
No setor administrativo, 40,4% de cabos e soldados contam com
uma outra pessoa contribuindo para a renda mensal, percentual que é menor
entre oficiais, suboficiais e sargentos (29,9%), com diferença estatística entre
eles (p=0,000).
Também investigamos a renda familiar dos policiais militares e
constatamos que ela é mais elevada entre os oficiais, suboficiais e sargentos,
como vemos no Gráfico 9. Precisamente 68,4% desses têm renda familiar
acima de R$ 1.500 e, contudo, a maioria dos não-oficiais, apesar de contar
com a ajuda de terceiros no orçamento doméstico, referem uma renda familiar
menor que R$ 1.500 (74,2%). Há diferença estatística entre esses dois
grupos (p=0,000).

Gráfico 9 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a renda familiar

5,4%
Até 1.000 reais
39,7%

26,2%
De 1.001 a 1.500 reais
34,5%

68,4%
Acima de 1.500 reais
25,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

Também os servidores do setor administrativo diferem estatisticamente


do operacional quanto à renda familiar: no primeiro grupo, 41,4% dos
não-oficiais referem renda familiar variando de R$ 1.001 a R$ 1.500 e, no

76
segundo grupo, 43,1% declararam que contam com renda familiar menor
que R$ 1.000 (p=0,000). Entre os policiais civis, a renda familiar de
34,3% deles varia de R$ 1.501 a R$ 2.500. No setor administrativo,
37,3% chegam a esse patamar (Minayo & Souza, 2003).
A investigação das despesas mensais foi realizada para o grupo dos
policiais militares como um todo. Percebemos que os itens com os quais
esses profissionais mais gastam (acima de R$ 500) são: prestações e dívidas,
alimentação e moradia. Houve um elevado percentual que afirmou não
efetuar gastos com educação e medicamentos (Gráfico 10). No entanto,
quase 80% dizem gastar até R$ 200 com medicamentos e 71,5% despendem
esse mesmo valor com transporte ou combustíveis. A alimentação é
responsável por uma despesa de R$ 201 a R$ 500 para 61,3% deles. Os
policiais civis do Rio de Janeiro também declararam gastar até R$ 200 com
transportes, combustíveis e medicamentos (Minayo & Souza, 2003).

Gráfico 10 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo itens de gastos da


renda familiar
1,7%
71,5%
Transporte / combustíveis
24,3%
2,4%
13,1%
79,6%
Medicamentos
5,8%
1,6%
0,5%
19,8%
Alimentação 61,3%
18,4%
23,1%
45,1%
Educação
24,5%
7,3%
4,1%
34,8%
Moradia 43,5%
17,7%
7,2%
24,8%
Prestações e dívidas
34,5%
33,5%

Nada Até 200 reais De 201 a 500 reais Mais de 500 reais

77
Em resumo, os militares oficiais, suboficiais e sargentos diferem
estatisticamente dos cabos e soldados em todos os itens descritos a seguir.
No grupo dos não-oficiais:
É menor a participação do sexo feminino;

Existe maior quantidade de jovens;

A escolaridade é mais baixa;

É menor o número de negros ou pardos;

Existem mais solteiros;

O número de filhos é menor;

O número dos que professam algum tipo de religião é menor;

O salário é menor;

Fazem menos descontos em folha de salário;

 Maior número deles necessita da contribuição de outras pessoas

para completar a renda familiar.

Conforme podemos concluir, em quase todos os itens tratados neste


perfil comparativo, os cabos e soldados ficam em desvantagem em relação
aos oficiais e suboficiais. Entre os aspectos mais relevantes, destacamos a
questão dos baixos salários de uma grande maioria e a existência de elevado
percentual de cabos e soldados com menos de dez anos de corporação,
indicando, possivelmente, uma elevada rotatividade dos servidores de mais
baixa patente. É importante assinalar que, segundo critérios da corporação,
os soldados com mais de dez anos na instituição sobem na carreira.
Sobre o perfil da mulher policial, assinalamos que a maioria está
designada para atividades internas, burocráticas ou para o setor Saúde.
Importante estudo de Bárbara Musumeci Soares e Leonarda Musumeci
(2005), denominado Mulheres Policiais, discute a presença feminina na
corporação em uma perspectiva socio-histórica. Essas autoras ressaltam que,
a não ser no início de sua incorporação na categoria, em 1981, quando
conformavam uma companhia e atuavam com forte presença no controle do
trânsito urbano, a força específica das mulheres ficou diluída pelas unidades
e batalhões.
O que depende dos relatos de homens e mulheres, praças ou policiais,
é que a imagem e, portanto, o lugar institucional das mulheres, ainda não

78
encontrou uma versão hegemônica. Em parte pela ausência de uma política
que lhes atribua um papel definido – e a unificação dos quadros, nesses
termos, só contribuiu para acentuar as ambigüidades –, em parte pelo fato
de o lento processo de absorção ser movido por forças, imagens e aspirações
conflitantes e contraditórias (Soares & Musumeci, 2005).

79
Parte II

Condições de Trabalho
dos Policiais Militares
Tratamos aqui de todos os aspectos que dizem respeito ao mundo do
trabalho dos policiais militares. Apresentamos informações sobre aspectos
organizacionais; processo de seleção, capacitação e carreira; condições
materiais, técnicas e ambientais; jornada de trabalho; interação entre os
pares e com os chefes; e, por fim, mas não menos importante, questões sobre
a imagem do policial militar construída na interação com a sociedade.
O conceito central desta reflexão é o de ‘processo de trabalho’,
inspirado em Marx quando escreveu Introdução à Crítica da Economia
Política (1968a) e o quarto capítulo inédito de O Capital (1968b). Quando
produziu sua obra, Marx desenvolveu esse conceito para se referir aos
aspectos técnicos, aos meios, às relações entre iguais e hierárquicas e à
construção ideológica e da subjetividade advinda das interpretações que os
próprios trabalhadores fazem do mundo do trabalho de forma geral, para si
mesmos e em seu cotidiano. Esse conceito é indiscutivelmente potente para
que analisemos a dinâmica interna das relações entre capital e trabalho e a
produção de mais-valia, particularmente no âmbito industrial. No entanto,
por meio dele não conseguimos compreender e interpretar o setor de serviços,
a não ser nos aspectos gerais das relações entre subordinação do trabalhador
e do seu assalariamento, como nos indica Braverman (1975).
Segundo esse autor, quando se olha pelo lado estrutural da construção
da ordem capitalista e se realçam as semelhanças dos vários tipos de processos
de produção, torna-se possível afirmar que o trabalhador do setor de serviços,
mesmo quando apresenta certa diferenciação salarial que lhe permite um
afastamento dos piores aspectos da situação do proletariado, “não possui
qualquer independência econômica ou ocupacional; é empregado pelo capital
e afiliados; não possui acesso algum ao processo de trabalho ou aos meios
de produção fora do emprego e deve renovar seus trabalhos para o capital,

83
incessantemente, a fim de subsistir” (Braverman, 1975: 341). Por esses
motivos, Braverman considera que o setor de serviços está em função do
capital tanto quanto o setor industrial, uma vez que nesta relação predominam
a subordinação à autoridade e a submissão à exploração. Igualmente, os
trabalhadores aí empregados tanto podem conseguir alguns privilégios como
costumam sofrer as desvantagens da condição proletária, sempre avançando
em direção a esta última. Essas observações de Braverman (1975), que
são perfeitas para mostrar a lógica capitalista em todas as atividades das
sociedades em que impera o capitalismo, também não oferecem categorias
intermediárias para a compreensão das especificidades do setor de serviços.
Apenas nos últimos anos, correspondendo ao crescimento rápido do
setor de serviços, vários estudos vêm sendo desenvolvidos para focalizar sua
especificidade. Para tratar do tema e, sobretudo, dos ‘serviços públicos’,
apresentamos uma abordagem que foge aos estudos marxistas iniciais,
dedicados principalmente ao processo de trabalho industrial. Buscamos marcar
o que há de peculiar na produção do serviço de segurança pública, focalizando
a ideologia, a instituição e a prática da corporação ‘Polícia Militar’.
O processo de trabalho em serviços tem algumas características
específicas. Uma delas, segundo Offe (1994), é a dificuldade de
planejamento das ações em relação a seu custo e benefício, uma vez que
esse tipo de atividade diz respeito a respostas imediatas às necessidades da
sociedade e há incerteza sobre quando, em que intensidade e para quanto
os prestadores de tais serviços serão demandados cotidianamente. Outra
peculiaridade é a incerteza em relação ao volume necessário, ao que constitui
o melhor tipo de atendimento e ao momento certo de atuação diante das
necessidades do cliente. Por isso, intrinsecamente, o planejamento de um
serviço – em particular o de segurança pública – conta com dados e
informações menos precisos do que os que um empresário industrial possui
para planejar sua produção material. Esse mesmo autor destaca ainda que,
diferentemente do setor de produção material industrial, no qual os produtos
não rentáveis podem deixar de ser fabricados, muitos serviços – sobretudo
os públicos e de atendimento ao cidadão – não podem parar. Por todas
essas razões, instituições como as de saúde e de segurança pública não
devem e não podem ser avaliadas apenas pelas leis do mercado.
Meirelles (2003, 2006b), revendo várias abordagens teóricas, considera
como características básicas e essenciais do setor de serviços: a simultaneidade,

84
a intangibilidade, a interatividade e a inestocabilidade. “Só é considerada
atividade de serviço a atividade cujo processo de produção é intangível, baseado
em insumos e em ativos intangíveis, e cuja relação de produção e consumo é
simultânea e interativa, resultando num produto também intangível e
inestocável” (Meirelles, 2006b: 351). Segundo a autora,
Qualquer serviço é exclusivamente trabalho em processo ou, melhor

dizendo, processo de realização de trabalho;


 O trabalho em serviço é essencialmente atividade humana,
utilizando recursos humanos, embora possa incluir, também,
trabalho mecânico;5
Um serviço tem como resultado um produto intangível, ou seja,
não conhecemos antecipadamente seu resultado;
 A produção e o consumo do serviço se dão de forma simultânea
no tempo e no espaço, ou seja, a produção só ocorre quando o
serviço é demandado e se encerra quando a demanda é atendida;
Não é possível armazenar um serviço e consumi-lo depois, pois ele
se extingue logo que é prestado;
O serviço é uma atividade interativa, exigindo, por sua vez, canais
de sustentação de seu fluxo e de manutenção do vínculo entre
prestadores e usuários.

O fato de ser uma atividade em processo estabelece uma distinção


fundamental entre serviço e produto. “O produto ao qual o serviço está
relacionado pode ser tangível ou intangível, tanto pode ser um bem físico
ou uma informação, pois o que caracteriza efetivamente uma atividade como
serviço é, única e exclusivamente, a realização do trabalho” (Meirelles,
2006b: 351). Enquanto serviço é trabalho em processo, seu produto é o
resultado desse processo.
Os serviços possuem três características estruturais: oferta inelástica;
interatividade; incerteza quanto ao resultado. Essas características nos
5
Por trabalho mecânico, entendemos toda atividade que não usa a energia humana como
fonte primária (Meirelles, 2006a).

85
ajudam a entender algumas questões sempre postas pelos analistas e pela
opinião pública quando se queixam, sobretudo, do número excessivo de
funcionários públicos, principalmente quanto à manutenção de alta margem
de capacidade ociosa e construção de vínculos entre prestadores e usuários.
O atendimento face a face, direto e pessoal, dificulta a flexibilização da
relação homem/hora (movimento de enxugamento de pessoal próprio
da produção industrial) e operações em larga escala, e facilita a oferta de
privilégios e corrupção.
Do ponto de vista gerencial, no início do século XX, os resultados
da aplicação dos princípios da gerência científica, baseados nas formulações
de Taylor (1963), começaram a ser conhecidos e ampliados de forma
crescente também nas atividades de serviços, depois de serem largamente
aplicados no setor industrial. Da mesma forma que, a respeito desse último,
surgiram estudos de gestão de empresas tratando do tempo de execução
das tarefas, de registros das quantidades de trabalho desempenhado, das
possibilidades de mais rotinização das tarefas e da reorganização física dos
ambientes para diminuição dos tempos ociosos. É o caso das atividades de
serviço no campo da alimentação (fast-food) e de telefonia (telemarketing).
Sabemos que, seja no setor industrial, seja no setor de serviços, o método
taylorista de administração apresenta dois focos: a intensificação da
produtividade e a transferência de controle do processo para as hierarquias
gerenciais. Seus princípios preconizam: divisão radical entre planejamento e
execução, excluindo o exercício da atividade intelectual por parte dos
operadores; treinamento intensivo dos trabalhadores para padronização
dos procedimentos; gestão da produção fundamentada no conhecimento
minucioso das tarefas (Minayo, 2004). No livro em que expõe seu método,
Taylor chega a afirmar que o trabalhador ideal deveria ser “um homem do
tipo bovino, ou seja, ao mesmo tempo estúpido e dono de uma força física
capaz de satisfazer à necessidade exigida pelo trabalho” (Taylor, 1963: 42).
De comum com o método taylorista de gestão da produção, o trabalho
pensante e de planejamento da corporação dos policiais militares fica restrito
a um pequeno grupo, esperando da maioria a execução das atividades
delegadas, havendo, portanto, divisão radical entre quem planeja e quem
executa. No entanto, de acordo com a especificidade do setor serviços, é
impossível planejar tudo, pois a relação dos policiais com a população
é direta, e a subjetividade se manifesta com suas idiossincrasias a cada

86
instante. Veremos nas descrições sobre o processo de trabalho dos policiais
que quase nunca o que foi prescrito é praticado, pois as situações são
extremamente diversificadas. E disso falaremos no decorrer deste livro.
Hoje, em todo o mundo, as empresas mais avançadas – sejam as
industriais ou algumas de serviços – evoluíram do modelo taylorista para o
que se costuma denominar ‘processo de produção flexível’ ou, ainda,
‘toyotismo’ (Araújo, Cartoni & Justo, 2001; Britto, 1996; Antunes, 1999;
Minayo, 2004). O toyotismo pode ser definido como uma forma sistêmica
de modernização de empresas, que representa um desenvolvimento
qualitativamente novo da racionalidade capitalista.
Quando, em seu site institucional, a Polícia Militar fala em
modernização administrativa, esperaríamos que estivesse se referindo a algo
parecido com o segundo modelo. Porém, veremos no decorrer deste livro
que, na prática, para a corporação transformar sua gestão, as dificuldades
são muito maiores do que parecem à primeira vista. O modelo flexível tem
mais êxitos do que o modelo taylorista entre os trabalhadores, exatamente
porque é capaz de propor estratégias efetivas de cooptação da sua
subjetividade, realçando o trabalho cooperativo, colaborativo, criativo e muito
pouco hierarquizado. O modelo flexível exige dos empregados a energia
mental, diminui a hierarquização e concebe a qualidade não como um
conceito externo a ser avaliado, mas como parte da contribuição de cada
um. Valoriza e responsabiliza o funcionário, aproveita seus conhecimentos
e experiências e institui mudanças internas baseadas em seu saber. Inclusive,
cria grupos para solução de problemas, tornando o funcionário polivalente
e multifuncional (Minayo, 2004). A Polícia Militar, por razões até
constitucionais, se organiza de forma militar, rigidamente hierárquica, e é
com essa rigidez que ela opera cotidianamente. Na corporação, há uma
radical separação entre quem manda e quem deve obedecer, em uma cascata
de delimitação de poderes que vai baixando dos escalões mais elevados e
chega até o ciclo das praças.
Com essas e outras questões, entraremos em debate nesta segunda
parte deste livro.

87
Estrutura Organizativa
4

Hierarquia e Disciplina como Valores Estruturantes


A Polícia Militar do Rio de Janeiro se caracteriza por ser uma
corporação hierarquicamente organizada e disciplinada e por possuir uma
vida institucional rica em mitos, símbolos, insígnias e intensidade de visão
corporativa. Tais dispositivos informam a todo o corpo de funcionários sobre
o que é a estrutura militar, quem pode dirigi-la e quem deve obedecer: do
comandante geral ao último dos soldados, todos têm atribuições e deveres
determinados pelos postos e graduações que ocupam. Para compreender
essa instituição, é importante entender a cultura interna que reproduz, de
forma permanente e cotidianamente e em todos os seus momentos, rituais
de ‘hierarquia’ e de ‘disciplina’, dois pilares inseparáveis e interdependentes
da vida militar.
‘Hierarquia’ é o princípio fundamental da divisão do trabalho dessa
corporação, expressando-se em papéis, tarefas e status que determinam
condutas e estruturam relações de comando-subordinação. É também a
base sobre a qual se reatualizam, cotidianamente, sinais de respeito,
honras, cerimoniais e rituais de ordem e de disciplina. Na Polícia Militar
do Rio de Janeiro, a hierarquia se estrutura em círculos de poder que
podem ser visualizados no Quadro 1: círculo dos oficiais (superiores,
intermediários e subalternos); círculo das praças especiais e círculo das
praças propriamente ditas.
Os círculos constituem subsistemas de um sistema totalizante que
institui a permanência e a reprodução da corporação e a mobilidade
profissional. Por isso, além de simbolizarem a hierarquia e a disciplina
corporativa, atuam como ideal de acesso para os que se iniciam na carreira,
embora a maioria não consiga chegar às patentes superiores. A antiguidade
nos postos e as promoções por mérito são os princípios básicos de reprodução

89
da hierarquia, que norteiam toda a vida institucional. Um dos exemplos
muito típicos da forma de hierarquização é a norma segundo a qual deve
haver um refeitório para cada círculo de seus membros.

Quadro 1 – Círculo de poder hierárquico da Polícia Militar


Círculo dos Oficiais Círculo das praças Abreviatura
Coronel PM CEL PM
Oficiais superiores Tenente-coronel PM TEN CEL PM
Major PM MAJ PM
Oficial intermediário Capitão PM CAP PM
1º Tenente PM 1º TEN PM
Oficiais subalternos
2º Tenente PM 2º TEN PM
Círculo das praças especiais Graduação Abreviatura
Aspirante a oficial PM A SP OF PM
Praças especiais
Cadete PM CAD PM
Círculo das praças Graduação Abreviatura
Subtenente PM SUB TEN PM
1º Sargento PM 1º SGT PM
2º Sargento PM 2º SGT PM
Praças
3º Sargento PM 3º SGT PM
Cabo PM CB PM
Soldado PM SD PM
Praças Aluno do Curso de Formação
AL CFSd
de Soldados (recr utas)

Fonte: PMERJ, 2007.

A idéia de lealdade por tempo de serviço atua sobre cada um dos


indivíduos que compõem esses círculos, acenando-lhes com o mérito ou
com o apagamento profissional. Em tese, um soldado que é ordenança hoje
pode ter um cargo mais elevado amanhã, dependendo da bravura e de sua
adesão institucional. Um coronel que está dirigindo um batalhão pode ser
chamado para um cargo de maior projeção. Na realidade, os cargos passam
de um para outro, mas cada servidor tem uma visão pessoal sobre sua
situação institucional, o que lhe permite medir suas chances de ascensão e
as limitações que sofre nesse percurso possível. O instituto de condecorações,

90
medalhas, elogios, proibições, repreensões e punições acompanha o sistema
de classificações e reatualiza sempre o lugar dos indivíduos na corporação.
Já são conhecidos pelos estudiosos das áreas da antropologia operária
e da saúde do trabalhador os danos causados pela dissociação cognitiva e
prática entre concepção e execução do trabalho. A fragmentação das tarefas
e a separação entre quem pensa e quem manda, próprias do taylorismo e
do fordismo, têm sido alvo de profundas críticas teóricas e práticas nos
últimos 25 anos (Minayo, 2004; Minayo-Gomez & Lacaz, 2005). Essas
críticas evidenciam que nem do ponto de vista da produtividade, nem da
organização do trabalho, tal dissociação é eficiente.
‘Disciplina’ é o segundo componente estruturante de organização da
Polícia Militar. Diz Foucault: “o soldado tornou-se algo que se fabrica: de
uma massa informe, de um corpo inepto fez-se uma máquina de que se
precisa” (Foucault, 1996: 117). Foucault lembra que o disciplinamento do
corpo começou a vigorar na modernidade industrial, habilitando os
indivíduos a determinadas tarefas, prescritas em um registro técnico-político,
do qual os regulamentos militares são exemplos dos mais evidentes.
O disciplinamento se configura como método de controle minucioso dos
corpos, supondo um binômio de docilidade-utilidade em relação ao espaço,
ao tempo e aos movimentos, exercitando os indivíduos para a destreza no
trabalho: ele se pauta em uma correlação de poderes e interesses.
A organização disciplinar exige distribuir as pessoas no espaço, sendo
a melhor forma o quadriculamento, em que cada indivíduo estaria em seu
lugar e em cada lugar um indivíduo: de forma celular e solitária. A disciplina
também eleva seu poder de análise aos mais tênues detalhes da existência,
dentro de uma lógica dupla de poder: seriar os indivíduos, colocá-los em
fila classificando-os, individualizando os corpos não apenas no espaço ou
no tempo, mas em uma rede de relações que também os aliena. Ela se
expande pela arquitetura, pelas funções, pelos escalonamentos, marcando
lugares, definindo valores, garantindo individualidades e obediência.
Mas a ‘disciplina’ tal como exercida na Polícia Militar atinge não só
o corpo como a atividade em si, exigindo dos indivíduos: o controle dos
expedientes, como horários e escalonamentos de trabalho; a elaboração
temporal do ato, de forma tipificada e regulamentada, fazendo o tempo
penetrar o corpo, programando-o para a execução da ação; a articulação
do corpo com os objetos manipulados, recompondo o gesto global

91
institucionalizado em elementos ínfimos; a sujeição à fiscalização e ao controle
dentro de rígida hierarquia, fazendo com que as ordens decorram quase
naturalmente da correlação de forças e de poder; a introjeção da ordem e
da norma de tal modo que o simples olhar já apareça como mecanismo de
coerção e de imposição, desde que por trás dele se desvende a lógica
institucional; a sanção e a penalidade para os recalcitrantes. Como lembra
Foucault (1989: 87), “O exercício da disciplina supõe um dispositivo que
obriga pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver
induzem os efeitos de poder e onde, em troca, os meios de coerção tornam
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplica”.
Sobre esse último ponto, tão importante para entendermos, sobretudo,
a fala das praças, a sanção normatizadora é consoante com a idéia de que,
para que haja disciplina, é necessário haver um mecanismo penal. Atrasos,
erros, negligências e insolência são atitudes reprimidas por micromecanismos
de sanção, visando a explicitar a norma e a reproduzi-la. O castigo ocorre
para reduzir desvios e reafirmar a lei, ao mesmo tempo que visa a explicitar
os dois únicos pólos possíveis de comportamentos que ressaltam a divisão
binária da ordem (normal-anormal) e da repartição coercitiva (quem é,
onde deve ficar, como reconhecer e exercer uma vigilância constante). Dessa
forma, os códigos disciplinares tornam evidente o que é positivo e o que é
negativo, concomitantemente à gratificação daqueles que obtenham bom
desempenho e à penalização dos ineptos. O ‘normal’ se estabelece como
princípio de coerção, conjugando vigilância e regulação.
A contraface da rigidez institucional, lembra Holloway (1997),
compõe-se de três dilemas que se impregnaram e se reproduzem na cultura
corporativa: as transgressões, a corrupção e o suborno. A todas as questões
de rigidez estrutural podemos acrescentar que a truculência no trato com o
povo, sobretudo com as populações de baixa renda, se deve a uma cultura
entranhada e secular, que hoje está fartamente questionada pela sociedade
e traduzida pela mídia.
Os dois princípios básicos que instituem a corporação – hierarquia e
disciplina, frutos do termo ‘militar’ pesadíssimo aposto ao termo ‘polícia’ –
atuam, contraditoriamente, como uma identificação e como uma camisa-
de-força. Essa contradição se faz presente reiteradamente na fala dos
profissionais ao avaliarem a instituição da qual são membros, mas também
nas tentativas sempre parciais e incompletas dos gestores da corporação de,

92
como dizem, “quebrar paradigmas”. Tal contradição se evidencia também
no discurso oficial que aparece no site institucional (PMERJ, 2007), cujo
texto diz para a sociedade como a Polícia exercerá sua missão constitucional,
colocando-se em uma perspectiva contemporânea, com visão de futuro e
reafirmação de valores da cidadania.
Quem lê o texto a seguir capta, ao mesmo tempo, a força tradicional
e estruturante dos regulamentos e os esforços institucionais para mudar,
evidenciando que a corporação está aprisionada a uma multiplicidade de
amarras que vêm desde sua concepção:

Missão: atender, de forma eficaz e definitiva, às demandas relativas à


preservação da Ordem Pública, aumentando a sensação de segurança da
população, satisfazendo às expectativas e necessidades da comunidade e
criando, com os cidadãos, uma relação de confiança e respeito mútuo, em
conformidade com os princípios éticos e legais. (PMERJ, 2007)

O texto é propositivo e dialoga com as inúmeras críticas históricas


que a sociedade brasileira faz à Polícia Militar. Uma pergunta crucial precisa
ser feita, diante desse primeiro esforço de formalização da missão: em que
medida os conceitos de disciplina e de hierarquia – que, internamente,
formam os indivíduos, uns para pensar e outros para não pensar, para agir
automaticamente e para obedecer – conseguem dar conta de satisfazer às
expectativas e necessidades da comunidade e criar, com os cidadãos, uma
relação de confiança e respeito mútuo? Mas o texto vai se aprofundando no
que a corporação propõe como “Visão de Futuro”:

Ser uma empresa-cidadã, percebida pela comunidade como uma


instituição moderna, reconhecidamente transparente e eficaz. Destacando-
se pelo uso de tecnologia avançada e por profissionais motivados e
capacitados, sensíveis aos anseios da população e comprometidos com o
cumprimento das leis e a proteção da sociedade, através da melhoria
permanente dos serviços prestados. (PMERJ, 2007)

Nessa visão de futuro, o sentido do serviço à população e a


sensibilidade a seus anseios são retomados mais uma vez, em uma clara
manifestação da vontade institucional de estender os laços tradicionalmente
estreitados com os donos do poder e do dinheiro conforme se pronunciara
Donnicci (1984), para abranger a sociedade inteira. A idéia de ‘empresa-

93
cidadã’, noção muito em voga no jargão empresarial contemporâneo,
é assumida como princípio gestionário da corporação, talvez em uma
tentativa de superar sua fama de truculenta. A visão de cidadania permeia
a proposta de respeito e proteção à sociedade, sem discriminações entre
povo e poder. Essa busca, como vimos nos rápidos traços históricos esboçados
no início deste livro, tem sido uma meta inglória da corporação desde o
tempo do Império (Holloway, 1997).
Também valores humanistas e de práticas chamadas de ‘qualidade
total’ são reafirmados no discurso institucional:

Responsabilidade social; qualidade na proteção e atendimento ao cidadão;


melhoria contínua dos serviços; máxima integração da PM com a
comunidade; comunicação clara e constante com os públicos; valorização
do público interno; orgulho de ser Policial Militar; modernização; educação
com aprimoramento constante; lealdade; uso gradativo da força; inteligência,
cordialidade e ética. (PMERJ, 2007)

Diante da descrição dos ideais expressos no planejamento estratégico


da corporação militar, a pergunta que se impõe é sobre como e com que
meios ela conseguirá substituir as marcas estruturantes de instituição fechada
que a caracterizam indelevelmente. Qualquer empresa contemporânea que
se refez à luz da revolução tecnológica e intensificou sua transformação no
último quartil do século XX – incluindo mudanças profundas na organização
do tempo, do espaço, das formas de comunicação e informação e das relações
com os clientes – passou a relativizar, radicalmente, os conceitos de disciplina
e de hierarquia. É preciso lembrar que empresas orientadas por esses dois
valores que continuam a configurar a cultura da Polícia Militar haviam sido
orientadas nesses termos pelas formas de organização do trabalho da era
industrial, embora em dose muito mais branda (Taylor, 1963), pois sem a
imposição institucional de uma corporação militar.
O processo de mudanças estruturais na administração contemporânea
dirige-se em sentido exatamente o contrário ao do eixo norteador institucional
da Polícia Militar: diminuindo níveis hierárquicos na organização do
trabalho, eliminando várias formas intermediárias de super visão,
estabelecendo uma gestão mais leve e mais horizontal e formando equipes
de trabalho polivalentes, inter-relacionadas e voltadas para a melhoria da
produtividade, da qualidade do trabalho e da segurança dos trabalhadores.

94
Nos princípios da qualidade total, esses elementos são veiculados por alguns
dispositivos mediadores de transformações objetivas e subjetivas: polivalência,
participação e qualidade. O primeiro vai contra a idéia dos círculos
hierárquicos. O segundo diz respeito à responsabilização (accountability)
do trabalhador individual e coletivo, o que vai contra as ordens de cima
para baixo sem discussão. E o terceiro se refere ao aprimoramento dos
processos em seu sentido individual e coletivo, o que só pode ser feito
recorrendo-se à criatividade, à responsabilidade e ao interesse dos
participantes, virtudes desestimuladas pelo código da obediência cega.
Mas é importante assinalar que não são apenas os elementos estruturais
que marcam o modo de agir das polícias. Alguns autores consideram que
existe uma cultura policial que ultrapassa fronteiras nacionais e cujas
características são o conservadorismo, a suspeita e o isolamento das
comunidades e o corporativismo (Bretas, 1997b; Reiner, 1992). Esse conjunto
de elementos tende a produzir nos policiais uma visão negativa do mundo.
Estudos de Guimarães, Torres e Faria (2005) sobre a adesão desses
profissionais aos valores democráticos destacam que a violência cometida por
eles não é um fato isolado. Origina-se de diversos fatores contextualizados
socialmente: o abuso de autoridade e da força tem raízes nas ditaduras militares
e, acrescentamos com Holloway (1997), vem desde a origem da instituição.
Guimarães, Torres e Faria (2005) mostram que a própria formação
dos policiais passa mensagens ambíguas, ora enaltecendo os direitos
humanos, ora estabelecendo estratégias para torná-los ‘homens’ duros e
confrontantes, influenciando-os, freqüentemente, a aderirem a ações
extrajudiciais. Comentam ainda que o treinamento militar aplicado aos jovens
nas academias vem sendo mais moldado às exigências democráticas. No
entanto, ao mesmo tempo, a instituição resiste em perder seus vínculos com
o militarismo. Albuquerque e Machado (2001), observando a jornada de
instrução de aspirantes a policiais cursando a Academia do Estado da
Bahia, também assinalam a ênfase no militarismo muito mais que nos direitos
humanos. Um rito de passagem submete os recrutas a duras provas,
“sintetizando o percurso do sujeito civil para sua nova condição identitária,
a de oficial da Polícia Militar” (Albuquerque & Machado, 2001: 215).
Esse ritual – no qual os recrutas realizam uma vivência de imersão na
Mata Atlântica durante seis dias – significa “um confronto de currículos: o
novo, o ‘democrático’ os prepararia para uma situação abstrata e para servir

95
numa coletividade imaginária; o currículo velho, em comparação, os
prepararia para a eficácia necessária à manutenção da ordem pública”
(Albuquerque & Machado, 2001: 228). Perguntam-se os autores se o
rigoroso treinamento na selva é condizente com as necessidades dos recrutas
que atuarão nas cidades, dirimindo conflitos sociais, humanos e institucionais
e mantendo a ordem pública. Este é apenas um exemplo das incoerências
que a sociedade precisa conhecer para ajudar a sua polícia a ser, ao mesmo
tempo, depositária da ordem e da paz.
A seguir, detalhamos uma série de normas e prescrições que constituem
o campo administrativo e disciplinar interno da corporação, ressaltando o
plano das expectativas do Estado sobre essa categoria de servidor público e
de seus direitos e deveres no âmbito da organização social que os constitui.
O interesse de apresentar aqui essa descrição formal se fundamenta
no princípio de que todo tipo de produção de bens e serviços exige
concentração, autodisciplina, familiarização com diferentes instrumentos
de produção e conhecimento das potencialidades dos operadores.
A disciplinarização de qualquer força de trabalho ou de qualquer
corporação envolve uma mistura de repressão, familiarização, cooptação e
cooperação, elementos que não somente têm de ser organizados no local de
trabalho como devem fazer parte do consenso na sociedade sobre o produto
esperado. A socialização da Polícia Militar, no caso, exige o direcionamento
das capacidades físicas e mentais de seus profissionais. A educação, o
treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais (ética
do trabalho, lealdade aos companheiros, orgulho da corporação e do serviço
prestado) e propensões psicológicas (busca da identidade por meio do
trabalho, iniciativa individual ou solidariedade social) desempenham um
papel importante na constituição da categoria: estão também claramente
presentes na formação da ideologia corporativa. Mas, para que essa
socialização tenha sucesso, ela precisa, antes de tudo, ser padronizada e
legitimada pelos vários setores do aparelho de Estado e afirmada na
experiência e na rotina cotidiana dos que fazem o trabalho.
Os métodos de trabalho são inseparáveis de um modo específico de
viver, de pensar e de sentir a vida. Questões de sexualidade, de família,
de coerção moral, de consumismo e de ação social estão vinculadas ao
esforço de forjar um tipo particular de trabalhador, adequado ao tipo de
serviço que a sociedade espera dele.

96
No mesmo sentido, a designação da jornada de trabalho e sua
remuneração, além de preverem a produtividade, devem proporcionar ao
servidor renda suficiente e tempo de lazer adequado a uma vida saudável.
Em contrapartida, socialmente é esperado que os membros da corporação
tenham certo tipo de conduta moral, de vida familiar e de capacidade de
consumo, visando a uma coerência entre o cargo e a vida privada e social.
Daí todo o empenho dos legisladores em formular uma proposta e estabelecer
prescrições apropriadas para a atuação da atividade policial, como
descrevemos a seguir. No decorrer da apresentação deste estudo, iremos
enfatizando o que é prescrito e as contradições entre o estabelecido e a
prática. É claro que as formas de atuação, independentemente do que é
estabelecido em lei, das condições materiais e técnicas de trabalho, guardam
uma relação histórica com a cultura corporativa.

97
Seleção e Recrutamento,
5
Formação e Carreira

Processo de Seleção
A seleção de pessoas para atuar na Polícia Militar ocorre por concurso
público, divulgado por meios oficiais. O concurso para soldado exige que o
candidato: seja brasileiro; com idade entre 18 e 30 anos; não tenha sido
licenciado da Polícia Militar de nenhuma unidade da federação por motivos
disciplinares; apresente altura mínima de 1,68 (homens) e 1,60 (mulheres)
e peso proporcional à altura; tenha robustez física e aptidão psicológica,
sanidade física e mental compatíveis com a função; possua grau de
escolaridade de Ensino Médio; não apresente punição por indisciplina nas
Forças Armadas; e seja aprovado em todos os exames do processo seletivo.
Tais exames são eliminatórios e analisam aptidões intelectuais,
antropométricas, psicológicas, físicas, de saúde, sociais e documentais.
Já o concurso para a Academia de Polícia Militar D. João VI constitui
um rito de entrada em um curso superior, seleciona oficiais e compõe-se de
uma parte acadêmica executada atualmente pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) e de uma parte específica de aptidão física, psicológica
e de conduta, realizada pela própria corporação, por intermédio do Centro
de Recrutamento e Seleção de Praças. A etapa universitária inclui exame de
qualificação, exame discursivo e vestibular. A etapa específica consta de exame
antropométrico, de saúde, físico, psicológico, de investigação de conduta e
documental, sendo cada uma das avaliações de caráter eliminatório.
O candidato eliminado nos exames específicos não pode prestar o vestibular.
No Manual do Candidato, estão descritos detalhadamente os requerimentos
exigidos, seja do ponto de vista intelectual, seja do ponto de vista de preparação
física e psicológica para o cargo (PMERJ, 2007).
Em relação ao posto ou ao cargo na corporação, os policiais aqui
estudados foram divididos em dois grupos. O primeiro é o de oficiais e
suboficiais, cuja classificação inclui: coronel, tenente-coronel, major, capitão,
primeiro e segundo-tenente, subtenente e primeiro, segundo e terceiro-
99
sargento. O segundo grupo é o dos não-oficiais, constituído por cabos e
soldados. De acordo com o Gráfico 11, observamos que a proporção de
não-oficiais é muito maior que a dos oficiais e, entre estes últimos, os
suboficiais estão em maior número.

Gráfico 11 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o cargo na corporação


Coronel 0,4%
Tenente-coronel 0,7%
Major 1,6%
Capitão 1,2%
Primeiro-tenente 1,1%
Segundo-tenente 2,0%
Subtenente 2,0%
Primeiro-sargento 3,6%
Segundo-sargento 16,0%
Terceiro-sargento 11,9%
Cabo 15,5%
Soldado 44,0%

Na Polícia Militar, o setor administrativo é responsável pelo trabalho


burocrático e pela seleção, treinamento, aperfeiçoamento e formação profissional
dos servidores. Os oficiais são responsáveis pelo trabalho administrativo, pelo
planejamento e pela gestão das unidades. Algumas vezes, os policiais graduados
acompanham os grupos que fazem operações. Ao setor operacional cabe fazer
o policiamento externo e manter a ordem pública. O grupo operacional especial
corresponde ao grupamento de elite, habilitado para operações não rotineiras.

Capacitação e Formação
Formação profissional, segundo Cattani (1997), diz respeito a todos
os processos educativos que possibilitam ao profissional adquirir ou
desenvolver conhecimentos teóricos, técnicos e práticos relacionados à
produção de bens ou serviços. Essa formação, geralmente, é definida pela
empresa ou instituição, considerando os conhecimentos teórico-práticos

100
importantes para sua política de organização e gestão do trabalho. Para o
trabalhador, a formação específica para a tarefa que vai desempenhar se
associa à idéia de autonomia, controle da própria atividade e autovalorização.
A capacitação oferecida também revela o perfil do profissional ideal e
o tipo de habilidades teóricas, tecnológicas e pessoais que se espera de um
funcionário. Seu processo deve contemplar os diversos níveis de complexidade
da organização produtiva da instituição, com as tecnologias envolvidas e com
as lógicas organizacionais. Além do que, pragmaticamente, espera-se que a
formação funcione como suporte para o profissional exercer seu trabalho.

Gráfico 12 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo temas estudados


durante a formação inicial ou capacitação posterior na Polícia
Instrução policial básica / ordem unida 92,4%
92,0%
91,2%
Técnicas de abordagem 91,5%
88,5%
Prática de tiro** 90,0%
81,5%
Defesa pessoal 82,6%
81,4%
Direitos humanos / ética*
78,9%
Segurança pública* 77,6%
65,5%
Direitos ( Legislação) / Criminalogia* 74,7%
64,7%
74,5%
História da Polícia * 82,8%
Direitos da criança / adolescente* 73,1%
59,9%
Práticas de trânsito* 70,9%
48,0%
70,3%
Saúde, higiene e psicologia* 65,2%
61,1%
Relacionamento com a população*
51,2%
60,0%
Comunicações* 62,7%
52,2%
Violência contra a mulher* 48,7%
Noções de informática* 43,3%
14,2%
Negociação de conflito* 36,2%
17,0%
35,6%
Técnicas de investigação e perícia* 15,2%
20,7% Oficial / Suboficial / Sargentos
Instrução policial a cavalo*
12,1% Cabos / Soldados

*p=0,000 **p=0,001

101
Quando comparamos a formação inicial oferecida para oficiais,
suboficiais e sargentos e para os cabos e soldados, observamos que os
primeiros estão em desvantagem em relação aos últimos quanto ao acesso a
cursos de prática de tiro, história da Polícia e comunicações. Nos outros
itens, os conteúdos da formação são mais favoráveis aos oficiais, suboficiais
e sargentos. Podemos comprovar esses dados no Gráfico 12.
Se analisarmos os temas estudados pelos policiais de acordo com o
setor em que atuam, percebemos que os cabos e soldados estão em vantagem
sobre os oficiais, suboficiais e sargentos somente em relação à prática de
tiro e defesa pessoal, tanto para o extrato administrativo quanto para o
operacional. Segundo os dados que temos, há temas que são pouco estudados
pelos dois grupos, como instrução a cavalo, técnicas de investigação e perícia
e noções de informática.

Gráfico 13 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o tipo de capacitação


recebida dentro da Polícia

Formação de praças 81,9%


73,8%
Formação de sargentos 74,1%
1,5%
Palestras 62,7%
52,8%
51,6%
Treinamento prático
36,3%
Especialização e aperfeiçoamento 51,0%
15,8%
Palestra com treinamento prático 46,9%
31,4%
Técnico de curta duração 40,2%
25,0%
Extensão de curta duração 25,8%
12,5%
17,7%
Formação de oficial
0,6%
Operações especiais 9,3%
5,1% Oficial / Suboficial / Sargentos
Cabos / Soldados

No Gráfico 13, há um resumo da opinião dos policiais militares


sobre a formação que recebem quando entram na carreira. Grande parcela
deles, sobretudo os oficiais, suboficiais e sargentos, considera as orientações
teóricas transmitidas inicialmente como suficientes e adequadas. Em relação
aos conteúdos práticos, a insatisfação é maior, pois a maioria deles os avalia

102
não só como inadequados, mas também como insuficientes. Igualmente,
71,9% dos oficiais e suboficiais e 91,6% dos cabos e soldados assinalam
também que poucas vezes ou nunca lhes foram ministrados outros cursos
de formação após sua entrada na Polícia. Na corporação civil, essa
constatação também é elevada: 71,2% dos policiais afirmaram que poucas
vezes ou nunca a instituição lhes ofereceu outros cursos durante sua carreira
(Minayo & Souza, 2003).
Ao comparar os achados anteriores com os observados no estudo de
Minayo e Souza (2003) com policiais civis, encontramos que os oficiais
militares se assemelham à polícia investigativa quanto à avaliação que fazem
sobre a inadequação da sua formação, tanto teórica (45,7% dos militares
versus 44,8% dos civis) como prática (58,7% versus 59,1%). Entretanto, os
policiais civis são mais críticos que os oficiais militares, considerando, em sua
maioria, que a formação que recebem é insuficiente do ponto de vista teórico
(53,5% contra 41,3%) e prático (74,5% contra 69,3%). Cabe ressaltar que
os cabos e soldados, justamente aqueles que mais estão no front, avaliam de
forma extremamente crítica sua formação prática (71,8% e 83,6% deles a
consideram inadequada e insuficiente, respectivamente), apresentando
diferenças estatisticamente significativas em relação aos oficiais (p=0,000).
É importante destacar a necessidade de aprimoramento da formação
dos policiais que atuam no setor operacional. Eles estão diretamente lidando
com a segurança pública nas ruas do Rio de Janeiro e precisam de instrução
sobre negociação de conflitos, relacionamento com a população e práticas
de trânsito, temas pouco estudados. Ressaltamos, ainda, que 34,5% dos
cabos e soldados e 22,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos afirmaram
nada terem estudado sobre o tema da segurança pública em sua formação
inicial ou posterior.
Se compararmos os militares com os civis, observamos que os primeiros
estão em desvantagem em relação aos civis somente quanto ao acesso a cursos
de informática e de técnicas de investigação e perícia. Nos outros itens, as
diferenças são favoráveis aos policiais militares (Minayo, 2006).
Não apenas perguntamos as opiniões dos nossos entrevistados sobre
sua preparação profissional como também efetuamos uma análise dos
currículos e ementas dos Cursos de Formação de Soldados (CFSD) e de
Oficiais e Suboficiais. A grade curricular para formação dos soldados
atualmente vigente e que foi produzida em 2002 prevê a carga horária de

103
864 horas-aula, dividida em dois eixos de atividades (disciplinas curriculares
e complementação de ensino). As disciplinas curriculares são divididas em
quatro linhas: fundamentação geral, conteúdos instr umentais,
complementares e operacionais, totalizando 356 horas-aula. Na
complementação de ensino, tem destaque (pela maior carga horária) o estágio
prático operacional, com 288 horas-aula e os serviços internos, com 120
horas-aula. A partir da análise da ementa sobre fundamentação geral, chama
a atenção o tempo reduzido (12 horas-aula) dedicado às disciplinas de
direitos humanos e conduta policial ética, e a ausência do debate conceitual
e prático sobre segurança pública.
Na complementação de ensino, porém, são dispensadas 32 horas-
aula para o treinamento da formatura e 120 horas-aula para os serviços
internos, sem que haja, entretanto, qualquer ementa ou diretriz que oriente
a ocupação dessas horas-aula, o que dificulta, sobremodo, a análise a respeito
das atividades realizadas no âmbito dos serviços internos.
Observamos, ainda, a ausência de disciplinas de cunho humanístico
(sociologia, criminologia e filosofia), que possibilitem ao policial militar a
compreensão do mundo contemporâneo, seus problemas e suas
transformações. É possível observar, também, uma carência no currículo
de fundamentação sobre a legislação brasileira, que é vista somente na
disciplina instrução policial básica individual (IPBI) e, mesmo assim, apenas
nas aulas sobre legislação penal e de trânsito. Disciplinas como direito
constitucional, civil e administrativo não comparecem no currículo.
Das disciplinas profissionalizantes, são dedicadas 32 horas-aula para
defesa pessoal, 48 horas-aula para tiro policial e 22 horas-aula para técnicas
de narração e confecção de documentos. Grande parte do aprendizado
profissional está sendo ministrada no estágio prático operacional, que conta
com 288 horas-aula. Para essa disciplina também não há qualquer
informação sobre conteúdo, ementa ou plano de realização.
Toda a bibliografia utilizada pelas diferentes disciplinas ofertadas
aos soldados da Polícia Militar está baseada em manuais, regulamentos e
regimentos da própria corporação. Não encontramos quaisquer referências
a trabalhos científicos, livros ou outras publicações que complementassem a
formação dos soldados.
Ao se analisar uma nova grade curricular do Curso de Formação de
Soldados produzida em 2005, à luz da proposta de reforma curricular

104
elaborada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), o primeiro aspecto
diferencial que se observa entre a antiga e a nova é em relação à carga
horária: se antes eram exigidas 864 horas-aula, agora houve um aumento
para 1.135 horas-aula, perfazendo um curso de oito meses de duração.
Em relação às novas disciplinas disponíveis, é possível perceber a
inclusão de informática (20 horas-aula), prática policial cidadã (20 horas-
aula) e fundamentos da abordagem (15 horas-aula). A IPBI atualmente
se encontra desmembrada em policiamento ostensivo (18 horas-aula), noções
de direito penal e práticas operacionais (25 horas-aula), legislação aplicada
à PMERJ (12 horas-aula), legislação de trânsito (12 horas-aula) e instrução
tática individual (40 horas-aula), somando 107 horas-aula. Analisando-se
essa readequação de currículo, é possível perceber que, em relação ao
conteúdo, poucas modificações foram realizadas, sendo o aumento da carga
horária a mudança mais relevante. Entre as disciplinas que foram
beneficiadas pelo aumento, destacam-se: psicologia, de 8 horas-aula para
20 horas-aula; primeiros socorros, de 17 para 23 horas-aula; educação
física, de 48 para 106 horas-aula; armamento, de 19 para 50 horas-aula;
tiro policial, de 48 para 68 horas-aula.
Sobre os currículos, o antigo e o novo apresentam poucas diferenças
entre si. Assinalamos alguns pontos que, a nosso ver, deveriam merecer
considerações: excessiva carga horária direcionada para a atividade de ordem
unida e de serviços internos; ausência de discussão sobre conceitos e questões
de segurança pública como referencial teórico importante e estruturante da
profissão; ausência de disciplinas de cunho humanístico e de legislação
brasileira. Observamos, também, que seria muito importante para a formação
dos soldados a incorporação de novos conteúdos provenientes de estudos e
pesquisa e de novas bibliografias e referências.
Ao contrário do Curso de Formação de Soldados, que tem a duração
de oito meses, o Curso de Formação de Oficiais equivale a uma preparação de
Ensino Superior e tem a duração de três anos, com carga horária total
de 3.199 horas-aula. Em cada etapa, as disciplinas são divididas entre
aprofundamento acadêmico e aprofundamento da prática profissional.
Assim, no primeiro ano, 330 horas-aula são destinadas a fundamentos,
valorizando, sobretudo, disciplinas da área do direito.
No segundo ano, das 550 horas-aula da parte acadêmica, 230 horas-
aula são destinadas a disciplinas jurídicas. Igualmente, no terceiro ano,

105
mais 320 horas-aula destinam-se a fundamentos e 190 horas-aula desse
conjunto são para a formação em disciplinas jurídicas.
Entre as disciplinas acadêmicas ministradas aos oficiais, estão
sociologia geral, psicologia e antropologia, cada uma com 30 horas-aula.
Por meio delas são discutidos conteúdos relevantes que dizem respeito à
relação entre a Polícia Militar e a sociedade, como é o caso da ética, que
soma 60 horas-aula, e direitos humanos e direito da criança e do adolescente,
com 50 horas-aula.
Poderíamos concluir dizendo que a distribuição da carga horária voltada
para a formação acadêmica dos oficiais evidencia uma tendência legalista, em
que a forte presença de disciplinas da área do direito (civil, constitucional,
administrativo, penal, penal militar, processual penal, processual penal militar)
traduz uma valorização deste campo de conhecimento, em detrimento de
assuntos voltados para a questão de segurança pública.
O módulo chamado de Ensino Profissional soma 1.999 horas-aula,
divididas em 713 horas-aula para o primeiro ano, 597 horas-aula para o
segundo ano e 689 horas-aula para o terceiro ano. Neste módulo, chamou-
nos a atenção a oferta da disciplina segurança pública, com 144 horas-
aula, sendo que na ementa em nenhum momento há uma discussão desse
conceito estruturante da atividade da Polícia. Também não consta da
bibliografia e das ementas em geral uma abordagem científica sobre
segurança, seus pressupostos e pesquisas realizadas na área. O plano de
curso está focalizado na legislação brasileira que trata do assunto e nas
funções de prevenção do crime próprias à categoria, assim como em
procedimentos policiais em situações diversas. Disso concluímos que o tema
tem sido ensinado de forma legalista, empírica e reificada.
Uma das disciplinas de destaque é a de conhecimentos gerais sobre o
estado do Rio de Janeiro, permitindo ao oficialato ter acesso à história do
estado e a uma abordagem sobre sua estrutura física, geográfica, econômica e
social. Todavia, a ementa é bastante extensa para uma carga horária de apenas
20 horas-aula. Do mesmo modo, parece reduzida a carga horária da disciplina
evolução histórica da PMERJ (20 horas-aula), quando se pressupõe que a
corporação pretenderia levar ao oficial conhecimentos acerca da constituição
e da instituição policial no Brasil desde o Império até os dias atuais.
A matéria referente à legislação básica da PMERJ é apresentada no
primeiro e no segundo anos, totalizando 120 horas-aula. Nela são

106
encontrados os fundamentos da hierarquia e da disciplina militar, bem como
informações sobre rituais, símbolos, cerimônias, regulamentos e padrões
estéticos adotados pela instituição. Essa extensa carga horária reflete a
valorização da doutrina militar dentro das atividades de formação, em
detrimento das questões de ordem e segurança pública em seu sentido mais
complexo. Na disciplina de criminologia, são abordadas diferentes teorias
sobre o fenômeno da criminalidade. Como proposta metodológica, o plano
apresenta discussões em sala de aula a partir de ocorrências divulgadas
pela imprensa. No entanto, os casos registrados nas notificações policiais
não são utilizados como fonte de consulta.
A disciplina sobre ética na sociedade aborda este conceito do ponto
de vista filosófico e apresenta como unidades a ética do brasileiro e a ética
do carioca, sem incluir, contudo, qualquer bibliografia ou referencial teórico
específico para definir esses temas.
O objetivo da disciplina denominada ‘didática’ é qualificar o oficial
para, posteriormente, exercer a função de instrutor, por força do regulamento
interno. A ementa contempla as técnicas de ensino, mas não apresenta ao
oficial meios de dialogar com seu público, em especial com os soldados, os
cabos e os sargentos. Isto é, não lhe dá elementos para desenvolver o que
seria a relação responsável pelo ensino-aprendizagem. Ressaltamos que em
nenhum momento da organização da grade curricular da formação a relação
entre oficiais e praças é um objeto claro de discussão, exceto nos assuntos
relacionados à hierarquia e às punições disciplinares.
A disciplina ‘comunicação social’ chama a atenção pelo objetivo que
apresenta de destacar e analisar a imagem da Polícia Militar nos meios de
comunicação e perante a opinião pública, reconhecendo a importância dessa
interação para a imagem da corporação. Porém, a ementa não evidencia
estratégias de treinamento dos oficiais para dialogar com a mídia e assim
produzir informações de interesse público.
Para a disciplina de prática operacional são reservadas apenas 60
horas-aula. Sua proposta metodológica tem como objetivo simular situações
para o treinamento de tiro tático, patrulhamento, operações em favelas,
abordagem de pessoas, veículos e outras. É possível afirmar que a carga
horária prevista é reduzida diante das funções de comando de operações
que esses profissionais terão de assumir depois de formados.

107
Por fim, a disciplina ‘ordem unida’ perfaz 120 horas-aula, distribuídas
nos três anos. Porém, assim como no currículo do Curso de Formação de
Soldados, não há descrito um plano de atividades a ser executado. Segundo
um oficial, a ‘ordem unida’ ou ‘coreografia do militar’ objetiva, entre outras
coisas, desenvolver a idéia de coletivo.
Finalmente, além das considerações específicas, sintetizamos algumas
questões que julgamos críticas quanto ao Curso de Formação de Oficiais:
ressaltamos a ausência de estágio prático supervisionado e realizado dentro
dos batalhões, cuja existência possibilitaria ao oficial a vivência de situações
reais; consideramos excessivo o tempo direcionado para atividade de ordem
unida, uma vez que não há um conteúdo formal para ela; ressaltamos a
importância do aprofundamento do conceito e das questões de segurança
pública no seu sentido mais complexo; cremos ser importante incorporar
nos conteúdos bibliográficos e referenciais informações trazidas por pesquisas
nacionais e locais, que atualmente vêm sendo intensificadas, sobre a categoria
e sobre a segurança pública.
Além dos cursos formais, existe ainda o de Aprimoramento da Prática
Policial Cidadã, fruto de uma parceria entre a PMERJ e a ONG Viva
Rio, estabelecida desde 2002, com o intuito de capacitar os policiais para
lidarem com a população de forma a respeitar os seus direitos.
Esse curso – que poderíamos qualificar na lógica da educação
permanente – apresenta temas transversais que interessam ao serviço
prestado ao cliente-cidadão no policiamento ostensivo, dando ênfase ao
uso adequado da força. Seu currículo é flexível; por visar às necessidades
e prioridades instrucionais de cada unidade, não possui uma ordem
disciplinar obrigatória.
Suas principais diretrizes são a humanização e a qualidade do serviço
policial militar. Visa ao aumento da eficácia do serviço de segurança, com
prioridade para a prevenção do crime e para o papel comunitário da atividade
policial segundo preceitos éticos. A abordagem pedagógica aplica
especialmente estudos de casos escolhidos a partir da própria prática
cotidiana dos policiais, valorizando sua experiência.
O currículo desse curso foi elaborado com base nas estatísticas de
ocorrências policiais e é facilitado por inúmeras cartilhas e vídeos. Nele
são enfatizadas habilidades como discernimento de prioridades e análise

108
de riscos em situações complexas, resolução de conflitos e relações com a
comunidade.
O material didático é constituído de vinte cartilhas e 14 vídeos que
servem de guia para as aulas orientadas por sargentos multiplicadores,
especialmente capacitados para esta função, e que são responsáveis pela
transmissão do conhecimento para seus pares, cabos e soldados de suas
unidades (Viva Rio, 2005).

Formação Permanente e Ascensão Profissional


Certamente, nenhum tipo de formação acadêmica conseguirá abranger
todas as habilidades e os conhecimentos necessários à formação de um
profissional de qualquer área. Aos cursos formais é necessário incorporar
várias estratégicas de aprimoramento, sendo assim também no caso das
exigências da profissão policial. Mas entendemos também que os
requerimentos profissionais se tornam precisos a partir do encontro com a
prática e das estratégias e dos modos operatórios que a realidade concreta
demanda. É no nível da práxis (ação-reflexão-ação) que, em todas as áreas
de atividades, os profissionais aprendem a responder às exigências físicas,
cognitivas e psíquicas envolvidas na realização das tarefas. Esse saber
construído ao longo da vida, que se torna patrimônio comum do grupo,
consolida formas inventivas de resolução de problemas e de superação de
limitações, explicitando o hiato entre o que é ‘prescrito’ e o que é ‘real’ em
determinado tipo de atividade. Como lembra Amador (1999: 28), o
trabalho dos policiais “não se resume à aplicação de conhecimento técnico,
aprendido em cursos de formação e qualificação, visto que implica
mobilização subjetiva, tanto da inteligência quanto da personalidade e da
criatividade do sujeito”.
Entendemos, portanto, que um programa de aprimoramento dá ênfase
a aspectos em que o profissional necessita se especializar e à discussão
sobre os desafios encontrados nas atividades cotidianas. Balizados por essa
compreensão, levantamos algumas informações sobre o que consideramos
parte da formação permanente.
Indagados sobre “que capacitação haviam recebido”, 81,9% dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 73,8% dos cabos e soldados responderam

109
que fizeram o curso de formação de praças e 62,7% e 53,8%,
respectivamente, vêm participando de palestras para complementação e
atualização de sua formação. No entanto, há diferenças muito significativas
nos depoimentos dos dois grupos no que se refere ao treinamento prático:
51,6% dos oficiais estão satisfeitos com a formação e com as oportunidades
de atualização permanente, enquanto apenas 36,3% dos cabos e soldados
estão contentes e a maioria se queixa da insuficiência e da inadequação do
treinamento prático. Em relação ao acesso a cursos de especialização e
aperfeiçoamento que sucedem aos planos de educação formal, os oficiais
mostram-se em ampla vantagem quando comparados aos cabos e soldados
(51% versus 15,8%), indicando haver diferenças gritantes de oportunidades
entre os cargos superiores e os subalternos no que concerne à formação
(p=0,000).
No grupo administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos, em sua
maioria, afirmam ter participado do curso de formação de praças (74,9%),
de palestras (73,1%), da formação de sargento (69,5%) e de cursos de
especialização e aperfeiçoamento (67,9%). Entre os cabos e soldados, o
tipo de treinamento mais comum foi o curso de formação de praças (77,1%),
palestras (49%) e treinamento prático (32,7%). Ressaltamos que há
diferenças estatisticamente significativas a favor dos oficiais em todas as
oportunidades de formação, exceto para o curso de formação de praças,
que é obrigatório para os soldados (p=0,000).
No setor operacional, constatamos que 84,9% dos oficiais, suboficiais
e sargentos já estiveram envolvidos em cursos de formação de praças, 76%
em formação de sargento e 58,5% participaram de palestras. Quanto aos
operacionais, diferentemente dos que atuam no estrato administrativo, 2,5%
dos oficiais realizaram treinamento prático. A maioria (73,3%) dos não-
oficiais fez apenas o curso de formação de praças e 53,4%, além desse
treinamento inicial, tiveram oportunidade apenas de assistir a palestras
oferecidas pela corporação. Novamente encontramos diferenças estatísticas
quanto à formação recebida entre os diferentes cargos, também no interior
do grupo operacional, a favor dos oficiais (p=0,000).
Em suma, os oficiais, suboficiais e sargentos de ambos os setores,
administrativo e operacional, são os que, em maiores proporções, têm acesso
às modalidades oferecidas de educação permanente. Já em relação aos
setores, o grupo que atua no campo operacional tem vantagens sobre o

110
administrativo: de todos os dez itens pesquisados referentes à questão da
formação continuada, em seis deles os operacionais apresentam proporções
mais elevadas, exceto em relação à freqüência a cursos de especialização e
aperfeiçoamento e a cursos técnicos de curta duração.
Quando comparamos os policiais militares com os policiais civis em
relação ao acesso à educação permanente, observamos que existem diferenças
típicas da dinâmica das corporações. Dos policiais civis, 52,3% fizeram
curso de especialização, 47,4% freqüentaram curso técnico de curta duração,
45,7% participaram de palestras e 45,7% tiveram treinamento prático.
Outros 30,8% receberam, juntamente, palestras e treinamento prático
(Minayo & Souza, 2003). Ou seja, em ambas as corporações, a formação
permanente não é igualmente distribuída, e muitos ficam excluídos das
possibilidades de atualização. Pensando em média, isso significa mais da
metade em ambas as corporações. Não entramos nas indagações sobre o
motivo pelo qual isso ocorre. No entanto, consideramos esse fato relevante
para o planejamento e a gestão dos processos de formação permanente que
repercutem no trabalho policial.
Além do acesso diferenciado à capacitação continuada, existe uma
discrepância – presente em todos os setores da Polícia Militar, porém maior
entre os soldados e cabos – quanto à adequação do treinamento recebido
ao trabalho que exercem. Um percentual de 40,8% dos oficiais, suboficiais
e sargentos e 45,4% dos não-oficiais, segundo eles próprios, não exerce a
atividade para a qual foram treinados (p=0,000). Igualmente, entre os
policiais civis essa proporção é elevada: 34,8% (Minayo, Souza &
Constantino, 2007).
Quando analisadas por estratos, essas inadequações se revelam ainda
mais marcantes. Precisamente 62,7% dos cabos e soldados e 44% dos
oficiais do setor administrativo revelam não realizar a atividade para a qual
foram treinados (p=0,000). Ora, tal discrepância significa que as
importantes propostas de “modernização da gestão” assinaladas no
documento oficial que aparece no site da Polícia Militar podem estar
morrendo em seu próprio nascedouro. Como a administração está sendo
levada a cabo por pessoas e meios não apropriados e fundamentados no
senso comum, essa realidade se soma às dificuldades que o excesso de
hierarquização e de disciplina militar representam para as formas
contemporâneas de gestão flexível. No grupo operacional, também são

111
elevadas as proporções dos policiais que estão cumprindo tarefas sem serem
preparados para elas – 42,5% dos não-oficiais e 39,4% dos oficiais,
suboficiais e sargentos (p=0,000), o que exige, também, uma consideração
prioritária por parte dos gestores.
Os cabos e soldados têm uma visão mais negativa do que os oficiais,
suboficiais e sargentos quanto à possibilidade de ascensão profissional:
53,6% dos primeiros, contra 36,1% dos segundos, não vêem chance de
progredir na carreira.
No Gráfico 14, podemos constatar que os que acreditam na
possibilidade de crescimento profissional baseiam suas expectativas no
investimento em cursos e treinamentos e consideram importante aproveitar as
oportunidades. Boa parcela de servidores de ambos os grupos, principalmente
de oficiais, crê na influência de amizades como forma de conseguir promoção.

Gráfico 14 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a principal razão


para subir na carreira
Fazer cursos, treinamentos e outras 25,9%
formas de capacitação* 16,6%
12,2%
Saber aproveitar as oportunidades*
14,1%
9,6%
Ter amizade com pessoas influentes*
6,0%
Pertencer a algum grupo importante dentro 9,6%
da corporação* 3,7%
6,0%
Ter sorte*
3,3%
0,8%
Demonstrar bravura*
1,3%
35,8%
Não há chance de subir*
55,1%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

Para os oficiais, suboficiais e sargentos alocados no setor


administrativo, a principal mola que lhes permite subir na carreira é a
realização de cursos, treinamentos e capacitação (37,9%). Já os cabos e
soldados consideram que a possibilidade de ascensão profissional ocorrerá
112
pelo aproveitamento de oportunidades (19,3%). Observamos que existe
diferença estatística entre as opiniões dos dois grupos de cargos em relação
a todos os itens pesquisados (p=0,000). Os não-oficiais (56,1%) acreditam,
mais que os oficiais, suboficiais e sargentos (23,4%), não terem chances de
progredir na profissão.
No setor operacional, os dois grupos concordam que a principal forma
de subir na carreira é se capacitando por meio de cursos. No entanto, os
que apostam nessa expectativa são em proporção muito pequena: 21,3%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 16,7% dos não-oficiais. Novamente,
observamos mais pessimismo entre os cabos e soldados (54,9%) em relação
aos primeiros (40,6%). Mais uma vez, foram encontradas diferenças
estatisticamente significativas entre os cargos do estrato operacional a favor
dos oficiais em todos os itens (p=0,000).
Investigamos também as iniciativas individuais e particulares dos policiais
militares em favor de seu aperfeiçoamento profissional. Os cursos de curta
duração são os que mais têm sido procurados por 30,2% dos cabos e soldados.
A busca por formação universitária mobiliza 28,1% dos oficiais, suboficiais e
sargentos, 27,6% dos não-oficiais e, nesse caso, não há diferença
estatisticamente significativa entre os dois grupos (Gráfico 15).

Gráfico 15 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo curso fora da Polícia
por conta própria

Curso de curta 30,2%


duração* 19,9%

27,6%
Curso universitário
28,1%

Curso de pós- graduação* 4,4%


2,5%

17,0%
Outro*
15,0%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

113
Observamos que tanto oficiais, suboficiais e sargentos (45,6%) quanto
não-oficiais (35,1%) que atuam no setor administrativo envidam esforços
para terem acesso a algum curso de curta duração (p=0,000). No grupo
operacional, 27,5% dos cabos e soldados investem em curso universitário e
24% dos oficiais, em cursos de curta duração. Podemos concluir que,
possivelmente, a excessiva e cansativa jornada e a estressante demanda
operacional os impedem de cuidar de sua formação permanente ou dificultam
seu movimento nesse sentido. No entanto, este assunto deveria se constituir
em uma meta prioritária da corporação, necessária para que cumpra
adequadamente sua tarefa na sociedade contemporânea.
Para o ingresso na corporação militar, é exigido o Ensino Médio
completo. Para entrar na Polícia Civil, desde a promulgação da lei estadual
n. 4.020, de 6 de dezembro de 2002, é necessário ter o Ensino Superior
completo. Essa é uma possível explicação para o fato de haver mais policiais
civis que militares com curso universitário: 66,7% dos primeiros são formados
ou fazem curso superior e 10,1% deles cursam programas de pós-graduação.
Dos policiais civis que atuam nas delegacias, 73% afirmam ter concluído
ou estar terminando a faculdade, a maioria na área de direito (Minayo &
Souza, 2003).

Gráfico 16 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o curso complementar


que fariam se tivessem condição

70,4%
Curso superior
88,8%

65,8%
Qualificação / especialização
71,0%

62,4%
Curso ténico de curta duração
59,6%

54,8%
Curso de mestrado / doutorado
66,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

114
No entanto, as expectativas de aprimoramento e capacitação
profissional estão presentes nas falas dos policiais militares de forma
veemente, revelando uma enorme aspiração e vontade de investir na carreira
e no crescimento pessoal e institucional. No Gráfico 16, pode-se observar
claramente a existência de uma demanda reprimida, sendo a realização de
curso superior, especialização e até mesmo de pós-graduação o anseio
de um projeto para a grande maioria dos policiais militares, sobretudo para
os cabos e soldados (p=0,000).
Os policiais do setor administrativo são os que mais expressam seu
desejo de aprimorar a formação. Os que querem fazer alguma graduação
são 71,2% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 83,1% dos não-oficiais
(p=0,000). Os que têm essa aspiração no setor operacional são 70% e
89,8%, respectivamente (p=0,000). A motivação de ampliar seus estudos
por parte dos policiais deveria ser capitalizada pelos gestores públicos,
oferecendo à sociedade uma polícia mais bem preparada.
Analisando o conjunto das informações aqui apresentadas,
ressaltamos a necessidade de mais investimento na preparação dos policiais
em vários aspectos já assinalados. Em um mundo que incorpora cada vez
mais ciência e tecnologia nos dispositivos de ação e de gestão, é muito
positivo elevar o nível de escolaridade dos membros da corporação. Valorizar
seu capital humano deveria ser uma prioridade e uma meta da Polícia Militar.
Entendemos que, dando curso às iniciativas individuais, cabe à PMERJ
enfatizar o projeto institucional de desenvolvimento profissional de seus
membros, sem dúvida a maior fonte de riqueza de qualquer organização –
principalmente dessa, cujo foco é proteger a sociedade e prevenir a
criminalidade.

115
Jornada de Trabalho
6

A jornada de trabalho do policial militar se inicia com a leitura da


ordem do dia, rito matinal realizado no interior das unidades. Silenciosos
e em forma, esses profissionais ouvem a divulgação de suas escalas de serviço
e advertências. Recebem orientação para a ação específica e são lembrados
do modo como devem atender aos cidadãos, às vítimas de acidentes, aos
transgressores e a outros que necessitem de seus serviços.
Essa ordem do dia constitui-se de discursos estruturados de forma
unilateral e hierárquica. Seu pronunciamento reafirma normas disciplinares
e impede que os policiais das patentes mais baixas discutam, de maneira
franca e aberta, questões concretas que lhes dizem respeito, como é o caso
de dificuldades no cumprimento das ordens, problemas encontrados nas
rondas com seus equipamentos e em outras situações.
Logo após esse ritual, os servidores se encaminham para suas
atividades, de acordo com um cronograma de trabalho com horários e escalas
devidamente estabelecidos, dentro da especificidade das atividades previstas.
Aos oficiais cabe a gestão da corporação. Aos policiais que atuam
na ponta estão reservadas as intercorrências do serviço cotidiano. Isso os
leva a vivenciar momentos de grande insegurança no desempenho de suas
atribuições, já que a realidade de seu trabalho freqüentemente entra em
conflito com as normas disciplinares. Muniz (1999) conta em seu estudo
que, acompanhando rondas, pôde observar o receio dos jovens policiais em
adotar qualquer alternativa diferente da que lhes foi ensinada para solução
dos conflitos que vivenciavam. Sua preocupação diante de um problema
concreto era sempre a mesma: “o oficial superior falou somente sobre o que
não pode e não determinou o que pode ser feito” (Muniz, 1999: 129).
Aqui também é importante repetir que o tema ‘resolução de conflitos’ é
pouco abordado na formação inicial e posterior desses policiais.

117
Indagamos os policiais sobre a qualidade das ordens que recebem, e
apenas 41,8% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 37,9% dos cabos
e soldados afirmam que lhes são dados comandos claros para realizar suas
atividades. É relevante que 5,4% e 4,9% deles, respectivamente, tenham
dito que nunca receberam diretrizes claras. No setor administrativo, os
oficiais, suboficiais e sargentos (5,2%), mais que os cabos e soldados (1,7%),
afirmaram que as ordens recebidas nunca são claras (p=0,000).
Quando a disciplina militar não é capaz de oferecer orientações
efetivas sobre como agir nas situações reais, ela acaba por ser um fator de
restrição das possibilidades adequadas e criativas de intervenção, encorajando
o indesejável, ou seja, as transgressões. Indagados sobre a necessidade de
modificar as ordens que recebem para conseguir realizar suas atividades, as
respostas ‘sempre, quase sempre e às vezes’ ocorreram por parte de 72,1%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e de 74% dos cabos e soldados. O mesmo
tipo de respostas também foi encontrado, em grandes proporções, entre os
que atuam no setor operacional: 74,8% dos oficiais, suboficiais e sargentos
e 75,9% dos cabos e soldados (p=0,000). Entre os policiais do estrato
administrativo, foram 65,9% e 62,6%, respectivamente, os que assim
responderam (p=0,039).
As proporções citadas são maiores que as observadas na corporação
civil, onde 61% afirmaram que precisam modificar as ordens que recebem
para conseguir atuar (Minayo, et al., 2007). No entanto, na Polícia Civil,
o peso da hierarquia não constrange tanto.
Para Muniz (1999), sobretudo os policiais mais experientes nas
atividades ostensivas acabam por recorrer à indisciplina para trabalhar mais
adequadamente, criando-se, assim, uma espécie de cinismo policial. Esse
cinismo é uma reação crítica aos dilemas e às contradições do cotidiano.
Todo policial de ponta aprende com os mais antigos, “com os cascudos”, que
a orientação recebida, na prática, é outra. “De posse do saber prático
que informa que a bomba explode sempre na ponta, os soldados, cabos e
sargentos sabem que, para agir como polícia de verdade, de antemão terão
não só que produzir alguns arranhões no código disciplinar como também
procurar descaracterizar as possíveis indisciplinas” (Muniz, 1999: 130).
Do conjunto dos policiais militares entrevistados, grande parte tem
uma carga horária de quarenta horas semanais. Somente 15,4% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 17,2% dos cabos e soldados trabalham em plantão

118
24 por 48 horas. Também é significativa a parcela dos que cumprem o
plantão de 12 por 36 horas (Gráfico 17).

Gráfico 17 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o horário de trabalho


na Polícia

6,3%
Escala de 12 por 24 horas
8,7%
14,2%
Escala de 12 por 36 horas
14,7%
8,3%
Escala de 12 por 48 horas
3,6%
15,4%
Escala de 24 por 48 horas
17,2%
3,1%
Escala de 24 por 72 horas 4,2%
39,4%
40 horas semanais
20,4%
13,6%
Outro
31,1%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

Chama atenção a categoria ‘outro’ preenchida nos questionários, que,


na realidade, está constituída, em sua maioria, pela conjugação de duas escalas
de trabalho e por horários distintos dos listados no Gráfico 17.
Jornada de quarenta horas semanais foi relatada por 62,5% dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 39,7% dos cabos e soldados que atuam no
setor administrativo (p=0,000). No grupo operacional, 29,7% dos primeiros
também têm expediente de quarenta horas por semana e, entre os segundos,
a carga horária mais comum (36,1%) é a que se refere a outro tipo de
horário, diferente dos especificados no questionário.
Consideramos muito relevante a informação de que 92,1% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 92,4% dos cabos e soldados, nos últimos meses,
trabalharam ‘muitas vezes’ além do seu horário prescrito nas atividades
policiais. Destacamos o setor operacional como aquele em que os profissionais
têm as mais longas jornadas: 92% dos oficiais, suboficiais e sargentos e
93,7% dos não-oficiais responderam que diariamente trabalham mais do
que o prescrito (p=0,000).

119
Entre os motivos apresentados para manterem uma carga horária
real muito mais elevada que a convencional, a maioria indica a ‘convocação
por parte de um superior’, como podemos comprovar no Gráfico 18.
Encontramos parcelas significativas de 70,3% dos oficiais, suboficiais
e sargentos e 73,6% dos cabos e soldados que atuam na linha de frente, ou
seja, pertencem ao setor operacional e, estatisticamente, diferem dos que
estão lotados no setor administrativo (p=0,000), fazendo longas jornadas
de trabalho além do tempo prescrito. A segunda razão atribuída por
respectivamente 17,7% e 7,9% dos operacionais para o trabalho extra foi
‘concluir, por vontade própria, uma tarefa importante’.

Gráfico 18 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo razões para o


cumprimento de horas extras

65,9%
Convocado por ordem superior
73,0%

21,9%
Para concluir, por vontade própria,
uma tarefa importante 8,8%

12,2%
Por outro motivo
18,2%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

Trinta e quatro por cento dos oficiais, suboficiais e sargentos e 43,2%


dos cabos e soldados afirmaram que ‘muitas vezes ou sempre’ emendam as
jornadas. Também nesse caso o setor em que isso mais ocorre é o operacional,
em que 34,8% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 44,8% dos cabos e
soldados mantêm uma carga excessiva de trabalho, com diferença
significativa entre esses cargos (p=0,000). No setor administrativo, as
proporções são de 31,9% e de 33,9%, respectivamente.
Entre os policiais civis, 35,9% responderam que emendam as jornadas
de trabalho sem passar por qualquer descanso entre elas. O setor em que

120
isso mais ocorre também é o operacional: 43,9% mantêm uma carga excessiva
de trabalho (Minayo & Souza, 2003), o que, igualmente, coincide com os
servidores da corporação militar.
Aspecto relevante quanto à jornada de ambas as categorias civis e
militares diz respeito ao trabalho em horário noturno, demandado para o
atendimento ao público (Costa, 2004). Estudos mostram que plantões de
24 horas e os que incluem jornadas noturnas provocam forte desgaste físico
e emocional, gerando distúrbios neuropsíquicos, gastrintestinais,
cardiovasculares e, o mais óbvio, alterações do sono. A privação do sono
gera desânimo, fraqueza e insônia. Além de estar associada ao aparecimento
de tremores do corpo, obesidade e envelhecimento precoce, promove
distúrbios psíquicos como descontrole e agressividade (Rotenberg et al.,
2001). Tais fatores se tornam deveras preocupantes quando falamos de
profissionais cujo ofício, por si mesmo, já é uma permanente fonte de tensão.
Um trabalho policial realizado por pessoas fatigadas e com maior propensão
ao descontrole e à agressividade, pela alteração do sono, só torna as situações
que esses servidores devem manejar menos seguras e mais tensas ainda.
No Gráfico 19, há uma noção mais precisa dos períodos de trabalho
noturno realizados por policiais militares. Entre os oficiais, suboficiais e
sargentos, a proporção dos que sempre trabalham das 18 às 6 horas é de
65,2%. Entre os cabos e soldados, a maior parte (63,1%) diz que vem
realizando trabalho noturno há mais de sete meses.

Gráfico 19 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o trabalho noturno na


Polícia

65,2%
Sempre
23,7%

5,5%
Até 6 meses
11,9%

24,9%
7 meses ou mais
63,1%

4,4%
Nunca
1,3%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

121
No setor administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos (54,5%),
mais que os cabos e soldados (15,3%), afirmam ‘sempre’ trabalhar em
período noturno, com diferença significativa entre os cargos (p=0,000).
Entre os operacionais, também são os oficiais, suboficiais e sargentos (69,6%
contra 25,1% dos cabos e soldados) que mais dizem trabalhar ‘sempre’ no
turno da noite, com diferenças estatísticas entre eles (p=0,000).
Na corporação civil, os que mais trabalham ‘sempre’ ou já
trabalharam por mais de um ano em horários noturnos são os operacionais:
79,9% deles, conforme identificado por Minayo e Souza (2003).
A maioria dos policiais militares (75%), nos dois grupos, diz que
suas últimas férias aconteceram há um ano. Trata-se, portanto, de um dado
que mostra a existência de regularidade no estatuto das férias desses
servidores. No entanto, é importante considerar que uma parcela de 11,9%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 7,9% dos cabos e soldados referem
não terem tirado férias há pelo menos três anos (Gráfico 20).
No grupo administrativo, o regime de férias dos cabos e soldados é mais
regular: 79,3% dos que compõem esse grupo contra 71,5% dos oficiais,
suboficiais e sargentos informaram tê-las cumprido no último ano, havendo
diferenças estatísticas significativas entre esses cargos (p=0,000). No grupo
operacional, a situação é inversa, e a regularidade se apresenta maior entre os
oficiais, suboficiais e sargentos: 76,3% contra 74,3% dos não-oficiais (p=0,000).

Gráfico 20 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o tempo que tiraram
férias na Polícia

Até 1 ano atrás 74,9%

75,0%

13,2%
2 anos atrás
17,1%

3 anos atrás ou mais 11,9%

7,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

122
Comparando as duas corporações, observamos que os policiais
militares têm um regime de férias mais regular que os civis. Entre os últimos,
apenas 13,1% haviam tirado férias há um ano, à época da pesquisa.
Também é importante ressaltar a diferença entre as duas corporações em
relação a um grupo muito expressivo de policiais civis que nunca tirou
férias (16,4% dos civis versus 2,2% dos militares). A maioria dos policiais
civis (70,5%) afirmou que havia gozado as férias há pelo menos dois ou
três anos. Consideramos, portanto, que nas duas corporações a falta de
regularidade do período de descanso prolongado contribui para o acúmulo
de estresse profissional, com repercussões na saúde pessoal e no desempenho
do trabalho. No entanto, ressaltamos que essa situação é crítica entre os
policiais civis, onde 70,5% estão em situação irregular quanto ao regime de
férias (Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Muitos policiais civis e militares utilizam o argumento dos baixos
salários para justificar que não tiram férias para exercer outras atividades
remuneradas, além do trabalho na corporação policial. Em relação ao
exercício dessa outras atividades, com ou sem vínculo empregatício, 51,6%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 61,1% dos cabos e soldados estão
comprometidos. No setor administrativo, isso ocorre entre 50,2% dos
primeiros e 54,3% dos segundos (p=0,009). No grupo operacional, parece
que a situação financeira dos policiais é ainda mais complicada: 52,2%
dos oficiais, suboficiais e sargentos e 62,1% dos cabos e soldados disseram
que precisam realizar outras atividades laborais fora da Polícia para
complementar sua renda (p=0,000). Comparativamente, 55% dos policiais
civis também exercem atividades extras (Minayo & Souza, 2003).
O ramo de atividade que mais emprega policiais militares fora do
seu horário laboral é o de segurança particular (Gráfico 21). No setor
administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos (72,6%), mais que os
cabos e soldados (62,5%), trabalham como seguranças (p=0,000). Já no
operacional ocorre o inverso: os não-oficiais são os que mais fazem trabalho
extra como segurança – 65,7% dos oficiais, suboficiais e sargentos contra
76,7% dos cabos e soldados (p=0,000).
Na Polícia Civil, 32,8% afirmaram exercer atividades fora da
corporação como segurança particular, 6,6% trabalham como comerciante,
2,1% dirigem táxi e 15,5% desempenham outros tipos de tarefa (Minayo,
Souza & Constantino, 2007).

123
Gráfico 21 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a atividade fora da
Polícia

Segurança 67,6%
particular 74,8%

11,4%
Comerciante
8,1%

4,8%
Dirigir táxi
1,8%

16,1%
Outro
15,2%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

Alguns dos policiais entrevistados afirmam que a procura por uma


atividade extra se deve ao fato de receberem o dobro da remuneração da
Polícia por um trabalho de mesma carga horária. Assumem, assim, uma
dupla jornada de trabalho, mas têm a consciência de que isso é prejudicial
à saúde.
A afirmação dos policiais de que fora da corporação ganham mais
por serviços pode ser verdadeira apenas em parte, pois, como refere uma
pesquisa do IBGE (2003) sobre empresas de serviços no Brasil, a média
salarial dos trabalhadores em segurança privada não chega a R$ 700.
Por isso, a opção por fazer o chamado ‘bico’ pode não necessariamente
estar vinculado à remuneração, como afirma Bottari (2005a) em artigo no
qual comenta que a Polícia do Rio de Janeiro está sendo privatizada. Dados
da Delegacia de Segurança Privada (Delesp), da Polícia Federal e dos
sindicatos dos vigilantes e dos empresários do setor revelam que 80% das
cerca de quatrocentas empresas ilegais de segurança no Rio de Janeiro estão
nas mãos de oficiais, suboficiais, sargentos, cabos e soldados da Polícia Militar
e de inspetores e delegados da Polícia Civil. Em uma análise detalhada,
Bottari (2005) sustenta que 20% desse mercado clandestino está nas mãos
de coronéis e delegados: “Hoje há cerca de 60.000 policiais militares, policiais
civis e bombeiros atuando na clandestinidade em seus horários de folga”

124
(Bottari, 2005: 15). No segmento legal, a presença das altas patentes é ainda
mais acentuada: das 148 empresas que têm autorização de funcionamento
outorgada pelo Ministério da Justiça no estado do Rio, 50% estão em nome
de policiais militares e de delegados da ativa ou de aposentados e seus parentes.
A participação de oficiais ou delegados em empresas de segurança
oficializadas e registradas é permitida por lei. No entanto, os que estudam
o assunto tendem a fazer restrições a essa prática, mostrando que existe
uma zona cinzenta prejudicial à população que a partir daí se instaura: ela
estimula os policiais de baixa patente a fazerem ‘bico’, cria uma inevitável
promiscuidade entre interesses públicos e privados e privatiza um papel
fundamental do Estado moderno.
Embora no Rio de Janeiro a situação seja agravada, Beato Filho,
Peixoto e Andrade (2004) comentam que, em países como Canadá e
Estados Unidos, a segurança privada já emprega o triplo do efetivo policial.
No Brasil, as empresas legais empregam o dobro e o mercado ilegal, quatro
vezes mais do que todo o sistema de segurança pública.
O tempo dedicado a atividades extras atinge, em média, mais de
vinte horas por semana para 51,3% dos oficiais, suboficiais e sargentos e
para 55,3% dos cabos e soldados. Uma parcela de 37,7% dos oficiais
executam os trabalhos fora da corporação no período diurno (das 6 às 18
horas) e 40,7% dos não-oficiais alternam essas atividades em períodos diurno
e noturno. No grupo administrativo, os que se dedicam a atividades extras
por mais de vinte horas semanais são 52,7% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 43,3% dos cabos e soldados, com diferença estatisticamente
significativa entre esses cargos (p=0,000). Já no setor operacional, essas
proporções chegam a 50,7% e 56,9%, respectivamente (p=0,000).
A remuneração recebida pelo trabalho realizado fora da Polícia
complementa a renda mensal e chega a ser superior ao que o militar recebe
na corporação apenas para 44,8% dos cabos e soldados. Entre os oficiais e
suboficiais, o valor recebido pela atividade extra é menor que o da Polícia
Militar para 45,6% deles (p=0,000).
Considerando os estratos tanto no grupo administrativo como no
operacional, a maioria dos oficiais afirma que recebe menos pelas
atividades extras que o valor pago pela Polícia e, para os cabos e soldados,
tais atividades garantem aporte financeiro maior do que o que eles recebem
pelo trabalho na corporação.

125
Para ambas as categorias, civis e militares, a jornada dos operacionais
é a mais pesada e mais penosa, pois inclui plantões noturnos. De todo
modo, a jornada dos outros setores também não é suave, já que se realiza,
em grande parte, por plantões.
Ao observar a dinâmica real em que se desenvolve a jornada de
trabalho dos policiais militares, entendemos que são necessárias medidas
gerenciais que dêem outros rumos ao cotidiano do desempenho das
atividades. A atenção às necessidades físicas, sociais e emocionais desses
servidores públicos é, com certeza, primordial para garantir melhor
qualidade de vida para a categoria e para suas famílias. Em conseqüência,
os que têm a missão de manter a segurança pública terão a possibilidade de
prestar um serviço mais adequado e eficaz.

126
Condições Materiais, Técnicas
7
e Ambiente de Trabalho

A discussão sobre as condições materiais e técnicas de trabalho foi


elaborada com base em informações fornecidas pelos próprios policiais
militares nos questionários que lhes foram aplicados, em entrevistas e em
grupos focais. Boa parte deles é unânime em admitir que as condições
materiais, técnicas e ambientais não permitem o desenvolvimento adequado
de sua atividade. Mais que isso, observamos que, entre eles, há um forte
grau de insatisfação.
Para medir a satisfação dos policiais em relação às condições de
trabalho, usamos o recurso de solicitar que atribuíssem uma nota de zero a
dez para alguns itens. Como podemos observar nos Gráficos 22 e 23, as
notas médias são, em geral, muito baixas. É importante destacar que, entre
os operacionais, a insatisfação expressa por meio das notas foi maior que
entre os administrativos e entre os que ocupam cargos de gestão. Os cabos
e soldados foram mais enfáticos e atribuíram as menores notas comparadas
à avaliação feita por colegas oficiais, suboficiais e sargentos.
Em ambos os grupos, administrativos e operacionais, as maiores
médias foram atribuídas aos itens nível de responsabilidade assumida na
função que exerce e tipo de atividade que executa. Também nos dois grupos,
o salário, o reconhecimento do trabalho pela população e do mérito pela
Polícia constituem os itens aos quais foram dadas as menores notas.
A perspectiva de ser promovido também foi avaliada com notas igualmente
baixas, sobretudo pelos cabos e soldados, constituindo um elemento a mais
de desesperança e contribuindo para o baixo desempenho profissional.
No Gráfico 22, encontramos os créditos atribuídos pelos policiais
militares administrativos aos aspectos de satisfação no trabalho. Podemos
constatar que os cabos e soldados conferiram notas mais baixas que os
oficiais, suboficiais e sargentos aos itens relativos ao trabalho, com diferenças
estatísticas significativas entre eles. Chamamos a atenção para a insatisfação
127
que esses servidores demonstram com sua própria instituição, ao mesmo
tempo que denunciam, pela expressão desse sentimento, a falta de
reconhecimento institucional. Destacamos nota aferida pelos cabos e soldados
para a falta de reconhecimento (2,6).

Gráfico 22 – Notas médias dadas pelos policiais militares para o grau de satisfação com
alguns aspectos do trabalho
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Nível de responsabilidade assumida na atividade / função* 7,6


6,7
7,4
Tipo de atividade que executa* 6,5
Área geográfica de atuação* 6,5
5,8
Administrativo

Horário de trabalho* 6,2


5,4
Volume de trabalho* 5,9
5,3
Reconhecimento da instituição policial* 4,4
2,6
4,2
Perspectivas de promoção*
3,0
Reconhecimento da população* 3,9
2,8
Salário* 3,7
2,0
6,0
Nível de responsabilidade assumida na atividade / função 6,0
5,0
Tipo de atividade que executa 5,0
4,1
Horário de trabalho*
3,9
Volume de trabalho* 4,0
3,7
Operacional

Área geográfica de atuação* 3,8


3,5
Perspectivas de promoção* 3,7
3,2
Reconhecimento da instituição policial* 2,6
1,7
Reconhecimento da população* 2,6
2,1
Salário* 2,2 Oficial / Suboficial / Sargentos
1,3
Cabos / Soldados

*p=0,000

Notas muito baixas foram aferidas pelos operacionais, que também


demonstraram a insatisfação com questões referentes ao reconhecimento do

128
policial como profissional, sobretudo por parte da instituição (1,7) e da
população (2,1), além da inconformidade com os baixos salários (1,3).
O Gráfico 22 é revelador. Primeiramente, embora haja uma
diferenciação significativa entre oficiais e não-oficiais quanto à satisfação no
trabalho, os dois grupos conferem notas baixas para os mesmos itens. Ou
seja, também os oficiais, suboficiais e sargentos estão insatisfeitos com o
salário, com a falta de reconhecimento da população e da corporação, com
as poucas perspectivas de promoção, com a área geográfica em que atuam,
com os horários e o volume de trabalho. As mesmas questões já foram
assinaladas por nós (Minayo & Souza, 2003) em relação aos policiais
civis. Embora as notas médias aferidas por estes últimos sejam mais elevadas
do que as atribuídas pelos policiais militares aos referidos itens, estes também
estão insatisfeitos, como podemos comprovar pelos valores seguintes: 2,2
para a perspectiva de promoção, 2,1 para o reconhecimento por parte da
instituição policial, 3,0 para o reconhecimento da população e 3,1 para os
salários (Minayo & Souza, 2003; Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Ora, o elenco de questões que geram insatisfação, a nosso ver, deveria
merecer a reflexão dos gestores, sobretudo da Secretaria de Segurança
Pública, uma vez que atinge as duas corporações. O trabalho mal
remunerado, sem reconhecimento e sem perspectivas de crescimento
profissional leva ao baixo desempenho no cumprimento das tarefas, o que
se reflete na insatisfação da população. Esse subconjunto de temas aferidos
negativamente e referidos nos últimos parágrafos traz como conseqüência
um sentimento de frustração muito forte, que tem impacto sobre a saúde
física e emocional dos policiais.
Contudo, os policiais atribuem valores maiores e manifestam mais
satisfação com a execução das atividades e com a responsabilidade assumida
em seu trabalho. Embora haja uma importante diferença a favor dos que
cumprem tarefas administrativas em relação aos operacionais que estão mais
contentes, também é importante para os gestores tomarem conhecimento
de que existe uma motivação (embora não tão elevada assim) para o trabalho
na corporação.
Tratando de ouvir como os policiais avaliam os equipamentos que
usam para o cumprimento de suas atividades, entendendo que as condições
materiais interferem fortemente no seu desempenho, também lhes pedimos

129
que atribuíssem a esse dispositivo uma nota de zero a dez. O resultado está
exposto no Gráfico 23.

Gráfico 23 – Notas médias dadas pelos policiais militares dos setores administrativo e
operacional para equipamentos usados no trabalho
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Qualidade da arma de fogo* 7,0


6,4
Tipo ou modelo de arma de fogo 6,9
6,7
Linhas telefônicas* 6,5
6,9
Banco de dados 6,2
6,1
Farda ou uniforme* 6,1
4,0
Rádios 6,0
5,8
Outros equipamentos* 5,8
5,4
Qualidade da munição* 5,7
5,3
Instalações físicas** 5,6
5,9
Viaturas**** 5,6
5,4
Administrativo

Computadores* 5,5
6,2
Quantidade de munição 5,4
5,3
Walkie-talkies* * 4,9
5,5
Identificador de chamadas 4,7
5,3
Coletes* 4,6
4,1
Capacetes 4,3
4,2
Escudos 3,9
3,8
Rastreador de telefonia 3,6
4,1
Máscaras de gás*** 3,5
3,9
Tipo ou modelo de arma de fogo 6,5
6,2
Qualidade da arma de fogo* 6,4
5,8
Qualidade da munição* 5,3
5,1
Outros equipamentos* 5,1
4,3
Quantidade de munição* 4,9
4,2
Linhas telefônicas* 4,7
4,3
Operacional

Rádios 4,7
4,6
Farda ou uniforme* 1,8 4,6
Viaturas* 4,2
3,1
Computadores* 4,1
2,8
Coletes* 4,1
3,4
Instalações físicas* 3,9
2,9
Banco de dados* 3,8
3,2
Walkie-talkies* 3,2
2,7
Capacetes* 3,2
2,4
Escudos* 3,1
2,1
Identificador de chamadas 2,6
1,7 Oficial / Suboficial / Sargentos
Máscaras de gás* 2,5
1,4 Cabos / Soldados
Rastreador de telefonia 2,4
1,8

*p=0,000 **p=0,010 ***p=0,009 ****p=0,031

Nesse particular, as notas médias foram muito baixas tanto por parte
dos administrativos como dos operacionais. O que primeiro salta à vista são
as baixas notas atribuídas aos equipamentos usados para a proteção pessoal:

130
colete, capacete e escudos. Os cabos e soldados também avaliaram
negativamente os uniformes.
No setor administrativo, os itens que receberam notas mais elevadas
foram os que dizem respeito à qualidade, ao tipo e ao modelo da arma, às
linhas telefônicas e ao banco de dados. Fugindo um pouco do padrão geral,
comparados aos oficiais, suboficiais e sargentos, os cabos e soldados atribuíram
melhores notas aos itens: linhas telefônicas, instalações físicas, computadores,
walkie-talkie, identificadores de chamada telefônica, rastreadores de telefonia
celular e máscaras de gás. Para os outros equipamentos, os valores aferidos
pelos oficiais, suboficiais e sargentos são maiores.
Ainda observando o Gráfico 23, assinalamos que no setor operacional
as melhores notas foram associadas ao tipo, modelo e qualidade da arma e da
munição. Nesse ponto, os cabos e soldados foram muito mais críticos que os
oficiais, suboficiais e sargentos, atribuindo notas baixas a todos os itens
perguntados no questionário de pesquisa. Existe concordância apenas quanto
à qualidade dos rádios, não havendo diferença estatística entre os dois grupos.
Receberam piores notas por parte dos policiais operacionais: instalações físicas,
banco de dados, walkie-talkies, capacetes, escudos, identificadores de chamada
telefônica, máscaras de gás e rastreadores de telefonia celular. Destacamos o
descontentamento dos cabos e soldados de ambos os setores com a farda ou
o uniforme usado por eles em seu trabalho.
Na avaliação sobre as condições materiais de trabalho entre a corporação
militar e a civil, os administrativos civis atribuíram notas muito baixas a suas
instalações físicas (5,0); efetivamente, nas visitas para trabalho de campo,
pudemos constatar que a situação no tocante a esse aspecto é mesmo bastante
precária. Mas também os operacionais dessa categoria valoraram com 6,4
suas instalações operacionais, uma vez que nem todas as delegacias haviam se
transformado fisicamente em ‘Delegacias Legais’, com toda a padronização
correspondente. O item melhor avaliado pelos policiais civis foram as viaturas,
que obtiveram uma média de satisfação de 6,8 entre os administrativos e 7,3
entre os operacionais (Minayo & Souza, 2003).
Diante dessas informações, tecemos algumas considerações.
À primeira vista, pode parecer estranho esses profissionais terem dado notas
mais elevadas para os itens relativos ao armamento, uma vez que,
freqüentemente, depoimentos dos próprios policiais são veiculados na
imprensa dizendo que as armas e munições usadas por eles são ultrapassadas

131
e velhas. No entanto, essas pontuações parecem revelar que a arma é o
equipamento mais valorizado, por ser o instrumento de trabalho que,
simbólica e concretamente, lhes confere poder para agir como policiais e se
defender dos ataques dos criminosos. No entanto, esse dado foi contraditório
com as falas nos grupos focais, em que os participantes se queixaram da
qualidade e da adequação de todos os seus equipamentos.
E qual poderia ser o significado das baixas médias dadas ao
fardamento, sobretudo entre os não-oficiais? Respostas óbvias seriam que
ele é desconfortável, quente, pesado, feio. O grupo das praças queixou-se
também nos grupos focais das péssimas condições de seus uniformes.
Segundo eles, a cada seis meses um novo deveria lhes ser entregue, mas
isso não acontece. Outra interpretação para essa insatisfação poderia ainda
ser buscada em um ditado comum, “vestir a camisa”, expressando que aquele
membro da corporação está aderido à instituição e comunga dos seus
princípios e os defende. Nesse caso específico, o ditado poderia ser
transmutado em “vestir a farda”. No entanto, segundo um oficial, há razões
concretas para essa queixa: os soldados e cabos só têm uma ou duas peças
de um único tipo de farda. Os oficiais têm vários modelos para situações
diferentes. Isso cria uma idéia de ‘classe’ que reforça as desigualdades entre
os círculos hierárquicos.
Estudo de Oliveira e colaboradores (2006) também evidencia as
precárias condições de trabalho vivenciadas pelos policiais militares que
participaram de sua pesquisa: armamentos enferrujados, coletes fora do
prazo de validade e salários defasados.
Nos grupos de discussão que fizemos, as informações quantitativas
foram confirmadas e, por vezes, qualificadas. Os equipamentos para o
desempenho das atividades, principalmente os utilizados no confronto com
a criminalidade, são os mais duramente criticados pelo círculo das praças.
Entre os gestores, o discurso é de que tais dispositivos não são ideais, mas
vêm sendo atualizados. Porém, os próprios oficiais que gerenciam os
batalhões operacionais têm críticas aos materiais de que dispõem. Segundo
um deles, o não-reconhecimento de que seu batalhão é uma unidade de
combate torna a tropa ainda mais vulnerável: “Nós temos alguns coletes,
mas são coletes que não protegem nossos policiais dos projéteis dos fuzis.
Então não adianta, porque, como somos uma unidade de combate, o que
nós encontramos pela frente é isso [os fuzis].”

132
Os dados qualitativos confirmaram fortemente que, na tropa, os cabos
e soldados são os que mais sofrem pela precariedade dos equipamentos.
Por essa razão, é nesse grupo que encontramos as críticas mais enfáticas.
As praças, mais do que os oficiais, falam da precariedade das instalações
físicas, das viaturas e dos equipamentos. A necessidade de dispositivos
mais eficazes e adequados à realidade social com a qual se defrontam foi
trazida pelos grupos que atuam diretamente no conflito com as quadrilhas
de traficantes. A falta de manutenção das viaturas e a inadequação dos
equipamentos fazem com que a tropa fique mais exposta aos riscos, conforme
ressaltou esse grupo de soldados e cabos:

O não-reconhecimento de que aqui é uma área de guerra, no sentido real


da palavra, faz com que a nossa vida não seja protegida com aparato de
armamento adequado. É tudo contra em relação às condições de trabalho.
As viaturas são as mesmas que são usadas para o policiamento comum, que
passeiam na avenida Atlântica, que vêm pra cá. Os coletes à prova de bala
não resistem. Nenhum colete resiste a fuzil! Não é questão de ser novo ou
obsoleto. É que não sustentam fuzil. As viaturas não sustentam!

O grupo de soldados e cabos de um batalhão especial também falou


da necessidade de outros equipamentos para a especificidade de seu trabalho:

Nós não estamos falando que não existe equipamento. Existe, até mesmo
auditivo, mas são obsoletos: pegar, apertar no BDT [aparelho para
comunicação], falar no próprio rádio, não tem microfone. Você não fica com
as suas mãos livres, não tem um microfone labial. (...) Esses aparelhos são
obsoletos porque, em muitas situações, a gente está fazendo a comunicação
com o outro, mas tem que chegar no silêncio, só que com o rádio não dá.
(...) Esse colete que nós temos não segura tiro de fuzil. Já existem coletes
leves que seguram tiro de fuzil. Não é tão pesado e você não perde a
mobilidade. Mas são coletes caros, importados.

Alguns depoimentos dos grupos focais com as praças relacionaram o


estresse cotidiano com o peso do equipamento, o que compromete a saúde
e a segurança.

O policial tem um equipamento pesado: o colete, o fuzil, a munição, o


rádio. Se você pesar esse equipamento, o policial está carregando ali uma
quantidade de peso que se torna desfavorável para o terreno em que está

133
operando. Não são aparelhos modernos que facilitariam. Eles se tornam
desfavoráveis. A noite toda andando com aquele peso prejudica a saúde da
gente.

O direcionamento das queixas aos equipamentos está relacionado


à natureza do trabalho desenvolvido. Os policiais que trabalham na
atividade operacional falam mais sobre os equipamentos de proteção
(colete, armamento, munição, viatura blindada) e os que executam
atividades administrativas reclamam do aparelhamento técnico. Nas
unidades administrativas, as queixas também revelam as condições
precárias e inadequadas de trabalho, como referenciado por um grupo de
praças e sargentos:

Condições precaríssimas. Nós estamos aqui na Academia há quatro meses


e a nossa seção está péssima. Não temos cabo de Internet, aparelho de fax,
não temos ramais entre as seções. (...) Nós estávamos no quartel general e
viemos transferidos para cá a toque de caixa. Isso está dificultando a execução
do serviço aqui na seção, mas é momentâneo. A seção em si, a diretoria de
ensino, é um ambiente bom de se trabalhar. (...) Por não ter sido bem
programada a nossa vinda, estamos passando por esses problemas. Uma
diretoria inteira, composta por várias subseções, não tem como ficar com
uma única linha telefônica. É impossível. (...) Nós trabalhamos com o Brasil
todo, precisamos de telefone, fax... Precisamos ligar para outros estados, até
para o exterior. Nós queremos ligar e não conseguimos. Isso é um período de
transição, mas mesmo na corporação nós temos problemas de material.
Quando acaba, a gente fica sem as coisas um bom tempo: material de
escritório, xerox, toner, manutenção das máquinas, fardamento.

A falta de recursos humanos em número suficiente para o desempenho


das atividades foi mencionada pelos policiais, independentemente do posto
ocupado. As falas, tanto dos que exercem atividades administrativas quanto
dos operacionais, demonstram o quão sobrecarregados estão por causa da
escassez de pessoal. Como já referimos no capítulo sobre a história
da corporação, e de maneira coerente com a visão que conferiu notas baixas
aos vários aspectos do trabalho e aos equipamentos usados em seu cotidiano,
a maioria dos policiais militares considera que as condições para o exercício
de suas atividades na Polícia vêm piorando. As melhoras foram sentidas
por apenas 8,8% dos cabos e soldados e por 20% dos oficiais, suboficiais e
sargentos, como pode ser constatado no Gráfico 24.

134
A percepção da deterioração das condições de trabalho ao longo do
tempo é compartilhada por 55,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e por
59,3% dos cabos e soldados do grupo administrativo (p=0,000). No
entanto, é ainda mais intensa no setor operacional, incluindo 60,2% dos
primeiros e 69,3% dos segundos (p=0,000).

Gráfico 24 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a condição de


trabalho ao longo do tempo*

20,0%
Melhorou
8,8%

21,1%
Continua igual
23,4%

58,8%
Piorou
67,8%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

Os policiais civis também expressaram um sentimento de piora


evolutiva nas condições de trabalho: 36,4% pensam assim. Entre eles,
encontramos uma parcela considerável de servidores (58,8%) ligados ao
Programa Delegacia Legal avaliando que as condições materiais e técnicas
estão melhores. Mas os que atuam em delegacias tradicionais (37,6%)
falam veementemente sobre a deterioração do seu ambiente de exercício
profissional (Minayo & Souza, 2003).
O sentimento de precarização das condições materiais e
organizacionais de trabalho pode estar vinculado ao que vários autores vêm
detectando, no mundo inteiro, como a crise ou decadência da instituição
policial (Lévy, 1997; Bretas, 1997a). Neste caso concreto, ela vem reforçada
por vários aspectos, entre os quais nos parecem que dois são os principais:

135
em primeiro lugar, uma consciência muito mais aguda sobre os direitos da
sociedade contemporânea, o que a torna muito mais sensível à necessidade
de segurança; e em segundo lugar, a real discrepância entre os instrumentos de
atuação e a força crescente da criminalidade na cidade e no estado do Rio
de Janeiro, tornando ainda mais difícil o exercício da profissão (Souza &
Minayo, 2005; Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Perguntamos aos policiais sobre a utilização das tecnologias modernas
de informação, tendo em vista que hoje existem inúmeras possibilidades de
monitoramento da segurança e da criminalidade por esses meios.
Descobrimos que o uso dessas tecnologias pelos policiais militares no
ambiente de trabalho é muito baixo. No Gráfico 25, pode-se observar que
os oficiais e suboficiais são os que mais utilizam esses recursos e, mesmo
assim, em proporções muito pequenas.
É bom lembrar que as notas conferidas aos computadores da
corporação foram muito baixas, principalmente entre os cabos e soldados,
os que menos têm acesso a esses meios.

Gráfico 25 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o uso do computador


para acessar dados do trabalho

36,6%
Para acessar dados
internos da Polícia
20,2%

30,4%
Para acessar a
Internet no trabalho
12,8%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

No Gráfico 26, comparamos o uso do computador pelos dois setores


da Polícia Militar; como esperávamos, os administrativos usam mais esses
equipamentos do que os grupos operacionais. Ressaltamos a baixa
incorporação da informática por ambos os estratos da corporação militar.

136
Isso é lastimável, pois significa praticar segurança ainda à moda antiga. Em
um tipo de administração contemporânea – a que se propõe a instituição –,
os policiais deveriam contar com acesso a tecnologias necessárias para a
obtenção de informações articuladas e integradas com outros setores, com
outros estados e até com outros países, em todas as etapas do trabalho.

Gráfico 26 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o uso do computador


nos setores da Polícia

ADMINISTRATIVO

70,6%
Para acessar dados internos da Polícia
64,6%

63,6%
Para acessar a internet no trabalho
54,3%

OPERACIONAL
22,6%
Para acessar dados internos da Polícia
12,8%

16,4%
Para acessar a internet no trabalho
5,8%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

Em uma perspectiva comparativa, os policiais civis também


apresentaram baixas proporções de pessoas capazes de utilizar as tecnologias
da informação em seu trabalho cotidiano. Mas nessa corporação, ao contrário
do que ocorre com os policiais militares, os agentes operacionais usam mais
o computador (Minayo & Souza, 2003), em uma demonstração clara de
que passaram a incorporar informações originadas de meios eletrônicos em
suas investigações, na medida em que as Delegacias Legais foram
informatizadas. Também neste particular, os não-oficiais foram os que mais
reclamaram das condições de trabalho.
No Gráfico 27, apresentamos uma questão relativa à escolha
profissional. Se pudessem recomeçar e escolher novamente a carreira
profissional, boa parte dos policiais militares afirma que entraria para a Polícia

137
desde que houvesse melhores condições de trabalho. Devemos ressaltar que o
descontentamento com a profissão militar é maior entre os oficiais, suboficiais
e sargentos, que escolheriam profissões totalmente diferentes (p=0,000).

Gráfico 27 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo suas escolhas

16,0%
Escolheria a mesma carreira
8,6%

Mesma carreira com 41,9%


melhores condições
56,9%

Atividades parecidas, 9,8%


mas fora da Polícia
6,9%

Escolheria carreira 32,4%


completamente diferente
27,7%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

profissionais
Os cabos e soldados, mais que os oficiais, suboficiais e sargentos,
escolheriam a mesma carreira, caso lhes fossem oferecidas condições de
exercício profissional (Gráfico 27). Esse achado traz à tona uma
controvérsia no debate sociológico sobre a corporação, pois alguns
estudiosos consideram que muitos jovens entram para a Polícia, mais do
que por vocação, com a idéia de ter acesso ao mercado de trabalho por
meio de um emprego público e estável.
Observamos, com surpresa, que maior proporção dos cabos e soldados
que atuam no setor administrativo, em relação aos oficiais, suboficiais e
sargentos da mesma área, escolheria carreira ou atividade parecida (79,3%
dos primeiros contra 60,9% dos segundos), com diferenças estatísticas
significativas entre esses cargos (p=0,000). Já entre os operacionais, os
percentuais dos que fariam essa escolha são mais próximos entre os dois
grupos (71,1% dos cabos e soldados contra 70,4% dos oficiais, suboficiais
e sargentos), mas, mesmo assim, apresentam diferença estatisticamente

138
significativa a favor dos primeiros (p=0,000).
Nos estudos realizados com os policiais civis (Minayo & Souza,
2003), também evidenciamos que, se lhes fosse dada a oportunidade de
tornar a escolher, 75% deles, indiferentemente dos postos que ocupam,
entrariam de novo nessa carreira. Porém, também entre os policiais civis foi
encontrado descontentamento: 26,2% dos administrativos, 23,8% dos
operacionais e 19,9% dos técnicos escolheriam carreira completamente
diferente da atual (Minayo & Souza, 2003). Ou seja, proporções maiores
de policiais militares estão insatisfeitas com a profissão escolhida, como
mostra o gráfico anterior.
Em resumo, existe um espírito de corpo bastante forte na corporação.
Apesar das muitas queixas, poderíamos dizer que ele é maior entre os cabos
e soldados. Constatamos uma adesão bastante forte de mais de 70% ao
trabalho policial. Isso ocorre, segundo um oficial, por dois motivos: eles
disputam menos o acesso aos postos de poder (entre si) e vivem juntos as
maiores dificuldades (os combates). “A dor os une.”
No entanto, há focos de insatisfação muito grandes em alguns aspectos
que podem ser assim resumidos: frustração e, às vezes, ressentimento pela
falta de reconhecimento dos superiores e da população; queixas em relação
aos salários, às condições de trabalho e aos equipamentos pessoais e de
realização dos serviços.
Embora possamos concluir
que em qualquer categoria existem resistências e insatisfações dos
trabalhadores, entendemos que as autoridades deveriam levar em conta o
que ocorre com os policiais militares e civis, uma vez que sua satisfação com
as condições laborais se reflete na nossa segurança e proteção.

139
Relações Hierárquicas e entre Pares
8

A ‘hierarquia’ e a ‘disciplina’, sob a égide do patriotismo – vontade


inabalável de cumprir o dever de policial militar e o solene juramento de
fidelidade à Pátria –, configuram os princípios norteadores da carreira do
policial militar. Como já assinalamos, esses dois princípios fundamentam a
divisão de trabalho na corporação e se expressam em papéis, tarefas e status
que determinam condutas e estruturam formas de relações de comando-
subordinação. São eles, também, a base sobre a qual se reatualizam,
cotidianamente, sinais de respeito, honrarias, cerimoniais e rituais.
Na divisão de trabalho dos policiais militares, a inteligência necessária
para o planejamento das tarefas concentra-se nos escalões oficiais. São eles
que concebem as estratégias de ação e a padronização de condutas.
O planejamento significaria: onde estar, quando estar, como estar e por
que estar. No entanto, esses oficiais hierárquicos não conseguem prever
todas as situações contingenciais. Na linha hierárquica, cabe às camadas
imediatamente inferiores cumprir as prescrições, sem questionar. Existe uma
crença, na ideologia militar, de que o diálogo perturba, atrasa o desempenho
das atividades e enfraquece o poder. Em algumas missões, os soldados não
sabem para onde estão sendo conduzidos, mesmo quando se trata de eventos
de elevado risco e perigo, como repressão a assalto, invasão de uma favela,
contenção de tumulto, entre outros.
Essa lógica, no entanto, tem um efeito deletério para a saúde desses
profissionais, que vivem sob tensão e estresse por causa da obediência cega
e do efeito surpresa de muitas operações. É bem verdade que, na sua
preparação, o soldado é treinado para lidar com situações de risco. Porém,
esse aprendizado não é garantia de serenidade e de segurança pessoal. É
como explica um oficial operacional:

A execução, que deve ser reflexiva, significa fazer da melhor forma possível em
cumprimento às leis, normas e institutos jurídicos, protegendo e protegendo-se,

141
adotando comportamentos táticos adequados às situações, usando recursos
regulares ou que se tenha à mão; superando toda e qualquer adversidade que se
apresente pela complexidade das relações sociais que promovem conflitos pré-
penais e suscetíveis de administração.

O enfoque da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1999) mostra


que as vivências de sofrimento e de prazer estão associadas, fortemente, às
relações socioprofissionais. Quando o ambiente de trabalho é bom, mesmo
que as tarefas sejam difíceis e desafiantes, os estímulos positivos funcionam
como fatores de êxito. Mas, quando o clima relacional é ruim, ocorre o que
Dejours denomina ‘pressão para trabalhar mal’.
Analisamos o ambiente de trabalho com base nas respostas a algumas
questões mostradas no Gráfico 28. As respostas ‘concordo totalmente’ e
‘concordo mais do que discordo’ foram somadas. Os oficiais e suboficiais
apresentam percentuais mais elevados do que os não-oficiais em praticamente
todos os itens, mostrando-se mais satisfeitos com o seu ambiente de trabalho.
Nos conceitos que se referem aos colegas, os não-oficiais mostram anuência
maior, apesar de estarem muito próximos dos oficiais e suboficiais. Todos os
componentes dos dois grupos concordam com uma coisa: seu ambiente de
trabalho não é calmo, nem agradável.
Ressaltamos, nas respostas aos questionários – o que se mostrará
diferente na pesquisa qualitativa –, os elevados percentuais de policiais
que consideram positivo o seu ambiente de trabalho: 95% dos oficiais e
89,9% dos não-oficiais disseram que gostam de trabalhar com seus colegas.
E um percentual elevado – 86,8% dos oficiais e 77,9% dos não-oficiais –
respondeu que tem um bom relacionamento com os superiores. Mesmo
sendo altas as proporções de depoimentos positivos, 74,2% dos oficiais e
57,6% dos não-oficiais mencionam o quanto é difícil o seu ambiente de
trabalho, apresentando, portanto, uma contradição no discurso, em parte,
talvez, oriunda das dificuldades do próprio objeto de trabalho.
Para os policiais operacionais, as questões que se relacionam aos
colegas foram ainda melhor avaliadas: 83,1% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 88,1% dos cabos e soldados (p=0,000) concordam que gostam
de trabalhar com os atuais companheiros. E 63,8% dos primeiros e 68,7%
dos segundos (p=0,000) consideram que, quando necessitam, podem contar
com os colegas. Contrariamente, por atuarem no front das operações policiais,
o ambiente de trabalho foi avaliado como calmo e tranqüilo apenas por

142
34,9% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 28,6% dos cabos e soldados
operacionais (p=0,000).

Gráfico 28 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a concordância sobre


aspectos relacionados ao trabalho
42,3%
Gostam de trabalhar com os colegas*
40,7%

32,2%
R elacionam-se bem com seus superiores*
19,4%

23,3%
Podem contar com o apoio dos colegas*
21,8%

Os colegas compreendem quando não 19,5%


está num bom dia* 16,3%

As pessoas se relacionam bem umas 18,2%


com as outras* 11,8%

16,0%
O ambiente é calmo e agradável*
8,3%

Cabos / Soldados Oficial / Suboficial / Sargentos

*p=0,000

Questionamos os policiais sobre alguns aspectos de sua carreira


profissional. O Gráfico 29 mostra as possibilidades que lhes foram oferecidas
de assinalarem opções ‘muito satisfeito’ e ‘satisfeito’. Os oficiais, os suboficiais
e os sargentos apresentam maior grau de satisfação em todos os itens, exceto
para o relacionamento entre pessoas do mesmo nível hierárquico, em que
os cabos e soldados estão mais satisfeitos (p=0,000).
Também nesse particular, os dados ressaltam a insatisfação dos
policiais subordinados. Ao contrário, é em relação aos mesmos itens de
insatisfação dos escalões inferiores que os membros do ciclo superior
apresentam maior satisfação. Ou seja, existe uma polaridade estabelecida
entre eles: uns têm prazer em mandar e emitir ordens e outros não gostam
de obedecer e de cumpri-las. No Gráfico 29, constatamos que quase metade
dos oficiais, suboficiais e sargentos está insatisfeita com seus superiores.
Igualmente, 60% dos cabos e soldados mostram descontentamento.

143
Gráfico 29 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a satisfação com
alguns aspectos da carreira policial

74,6%
Relacionamento com subordinados*
72,3%

Relacionamento com pessoas do 72,9%


mesmo nível* 77,5%

57,4%
Funções que desempenha*
45,7%

53,3%
Relacionamento com superiores*
38,3%

34,6%
Quantidade de horas trabalhadas*
24,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

Os policiais civis apresentam maior grau de satisfação em todos os


itens, inclusive no que diz respeito às relações entre os vários níveis, quando
comparados com a situação dos militares (Minayo et al., 2007). Para estes
últimos, os maiores índices de satisfação ocorrem nos escalões hierárquicos
mais elevados quando se referem ao relacionamento com os subordinados e
com os colegas do mesmo nível.
Na opinião dos policiais militares – e nisso eles coincidem com os
policiais civis (Minayo & Souza, 2003) –, os mais elevados graus de
insatisfação se referem à quantidade de horas trabalhadas e ao relacionamento
com superiores. No entanto, em todos os itens pesquisados, é maior o grau de
insatisfação e maior o número de insatisfeitos na Polícia Militar, onde, em
acréscimo, boa parcela não está contente com as funções que desempenha.
Ressaltamos, também, que um percentual mais elevado de policiais militares
(29,9%) do que de policiais civis (22,4%) manifesta um sentimento de apatia
nas interações sociais de trabalho, afirmando não estarem satisfeitos nem
insatisfeitos nos itens que dizem respeito aos relacionamentos com superiores
e com colegas do mesmo nível (Minayo et al., 2007).
Triangulando várias questões e a abordagem quantitativa com a
qualitativa, obtivemos dados mais próximos à realidade vivida por esses

144
agentes em suas inter-relações. Se para os oficiais a hierarquia é necessária e
funcional, para as praças ela freqüentemente se traduz em autoritarismo
e arbitrariedade do poder. Geralmente, os oficiais são mais complacentes ao
julgar as relações entre os vários escalões. No entanto, podemos classificar
pelo menos dois grupos de opiniões e lógicas nas interpretações: um primeiro
grupo acredita que há e pode ser ainda melhor construída uma interação
horizontal entre os círculos superiores e os inferiores na relação com os objetos
de trabalho. Um outro grupo, muito crítico, insiste nas dificuldades de
mudanças e até na obsolescência e arbitrariedade das relações hierárquicas.
Configurando a classificação do primeiro grupo, observamos
depoimentos de oficiais e não-oficiais que participam ou participaram de
experiências em que a gestão segue os padrões hierárquicos formais, mas é
marcada pelo diálogo e pela produção de consenso por causa das
peculiaridades ou mesmo filosofia relacional dos comandantes. Falaremos
primeiro desses casos.
Para um gestor administrativo de uma unidade de ensino, existe “um
sistema de hierarquia e disciplina que funciona a contento aqui” e, além
disso, o elevado grau de instrução facilita a “administração desse convívio
na sua unidade”. Esse mesmo gestor afirma: “Eu costumo dizer que a
hierarquia não separa homens, separa papéis. Eu tenho o meu papel, o
sargento tem o dele, ele me respeita e eu o respeito. Eu dou a ordem, ele
executa. Nada absurdo dentro do métier dele. Então, aqui é muito difícil
ter conflito entre superior e subordinado”.
E esse gestor administrativo complementa dizendo que já testemunhou
situações muito difíceis e indesejáveis: “Eu já vi acontecer, várias vezes, um
policial agredir um superior hierárquico e vice-versa. No batalhão, o pessoal
está sob o maior estresse. Um olhar mal dado, uma palavra mal dita, o
policial saca a arma”.
Fazendo um contraponto com a fala do gestor administrativo, alguns
oficiais da mesma unidade referem que a obediência à hierarquia no âmbito
policial controla possíveis problemas de relacionamento, não sem o estresse
que esse poder possa acarretar. Então, acontecem ‘explosões’, não nesse
grupo, mas em outros batalhões.
Um comandante de batalhão comenta que as adversidades do
cotidiano, principalmente a vivência do risco constante, fazem com que os

145
policiais do mesmo círculo se unam. E, nos grupos focais, soldados e cabos
disseram a mesma coisa, coincidindo com as palavras desse oficial: “Eu
acho que, justamente pela alta periculosidade do batalhão, o policial aqui
parece que se une mais, até por causa da necessidade e do risco freqüente.
O risco freqüente de a gente morrer aqui faz com que a gente se una!”.
Um outro gestor operacional relata como percebe o relacionamento
entre pares na instituição: para os soldados e cabos, a motivação e a
convivência são molas propulsoras de um bom relacionamento. No nível
dos oficiais, ‘o amor corporativo’ é a força motriz para a satisfação do trabalho,
o que influenciaria no bom relacionamento. Para esse gestor, “o serviço
público é para quem tem vocação”. E acrescenta que “o grande segredo da
felicidade é transformar o dever em lazer”. Essa filosofia encontra abrigo
na fala de vários estudiosos e filósofos, sobretudo no teórico italiano De
Masi (2000), que produziu um livro sobre ‘o ócio criativo’, colocando-o
como ápice na possibilidade de o ser humano trabalhar por prazer.
Um dos gestores administrativos entrevistados assim filosofa, quando
convidado a falar sobre a relação entre oficiais e seus subordinados,
evidenciando um elevado grau de compreensão dos princípios de solução de
conflitos de forma civilizada: “Onde há seres humanos, há divergência. Acho
que a graça do ser humano é essa, cada um ser diferente do outro. O que se
busca é uma convivência harmoniosa, pacífica, onde procuramos resolver
nossas diferenças com diálogo”. No entanto, esse mesmo oficial comenta que,
quando a desavença prejudica a qualidade do serviço, costuma adotar medidas
disciplinares e até mesmo providenciar o afastamento daquelas pessoas que
provocam forte atrito com os outros membros de sua unidade.
Outro gestor operacional considera que a distância interpessoal entre
oficiais e seus subordinados ocorre por causa dessa estratificação da carreira
militar, distribuída em graduações e postos. Sugere, no entanto, que o
estreitamento das relações pode se dar através de atividades integradoras.
Um desses movimentos de congraçamento foi detalhado por ele ao afirmar
que, em sua unidade, uma vez por mês é oferecido um almoço para os
aniversariantes. Nesse momento, também são destacados os policiais que
obtiveram melhores méritos durante as operações naquele período. Comenta
ainda que, em sua unidade, organiza eventos nos quais são tratados assuntos
de interesse da instituição: as atividades atuais, os projetos, as frustrações
que os subordinados e ele próprio sentem por não terem ainda conseguido

146
implementar algumas propostas e outros temas. Os policiais que porventura
foram lesionados no cumprimento do dever e estão temporariamente afastados
– alguns até definitivamente, em razão do tipo de ferimento – também são
convidados a participar desses encontros, com o intuito de serem prestigiados
e integrados. Para esse gestor,

O importante é que o soldado saiba que essa unidade pode ser uma extensão
da sua casa, da sua família, embora haja diversas subdivisões hierárquicas,
postos e graduações. Mas isso não existe para dividir, e sim para aumentar
responsabilidades. Isso porque é importante que os policiais sintam que, em
todas as atividades a que estão submetidos, o comandante está envolvido, os
oficiais estão envolvidos, toda a unidade está envolvida e preocupada com o
bem-estar de cada um deles.

Essa forma de amenizar as rígidas relações hierárquicas é percebida


e valorizada pelo ciclo dos não-oficiais que são subordinados a gestores,
que buscam realizar uma administração mais democrática e participativa,
se pudéssemos defini-la assim. Encontramos vários exemplos de propostas
de interação harmoniosa, voltada para o cumprimento da missão
institucional. É o caso das praças lotadas em uma determinada unidade
administrativa, para quem o relacionamento entre colegas do mesmo nível
e entre os diferentes níveis – oficiais e praças – é considerado excelente:
“Talvez porque o grupo seja seleto, tenha uma identificação com a área de
ensino. Então, tanto o nível superior hierárquico quanto dos pares de iguais
ou abaixo é o melhor possível. (...) É um clima harmônico. De vez em
quando tem um probleminha ou outro, mas o clima é tranqüilo”.
Igualmente, em um determinado batalhão em que realizamos
pesquisas, os depoimentos de sargentos e subtenentes acompanham o
comentário citado. Os participantes dos grupos focais que juntaram praças
e sargentos afirmaram que, apesar da obediência à hierarquia, há uma
relação de companheirismo entre eles e os oficiais. De todo modo, um dos
entrevistados sublinhou que “alguns oficiais não deixam se aproximar,
mantêm aquela hierarquia”. No mesmo sentido, um grupo de praças de
uma terceira unidade apontou:

As condições adversas nivelam a questão hierárquica em certo ponto.


Suprimem a uma só condição, ou seja, a aceitação e a necessidade de convívio
por causa de uma necessidade maior. Não tem espaço para expor sentimentos,

147
nem problemas pessoais. Nivela-se pela necessidade. Então é isso o que
determina as relações.

É forte esse depoimento que objetiva na natureza e na premência do


risco vivido coletivamente a solução da excessiva hierarquia, que se manifesta
com toda a pompa e circunstância nos processos rituais da ordem unida.
Na fala de um oficial, enquanto o enquadramento na hierarquia é gerador
de estresse, a relativa quebra de fronteiras é atribuída às necessidades
circunstanciais de tornar o serviço mais eficiente:

A base do militarismo é a hierarquia, mas hoje eu não vejo tanta cobrança


em cima disso como era antes. Já foi muito pior. Eu diria que há dez, 15 anos
jamais teriam sido entrevistados aqui, juntamente, um segundo-tenente, um
major, um capitão. Essa entrevista seria feita com o primeiro-tenente em um
grupo, o segundo em outro. Jamais teríamos uma mesa-redonda assim. Hoje
eu acho que a coisa está mais democrática.

Um segundo grupo de opiniões, ao contrário, concebe de forma muito


crítica a relação entre oficiais e não-oficiais. Os depoimentos mais fortes,
conforme esperado, provêm dos escalões inferiores. Com um discurso bastante
contundente, praças e sargentos expressam sua compreensão do sistema de
hierarquia como um sistema autoritário. Vejamos alguns comentários:

[Deveria haver] apenas democracia, e não ditadura, para que o policial


tratasse o usuário da mesma forma. (...) Infelizmente, na Polícia, temos
superiores arbitrários, inconseqüentes, ladrões, que só pensam em ferrar os
subordinados. Nunca me arrependi tanto de ser empregado dessa instituição.
(...) Na minha opinião, o regulamento é muito rígido, não deveria existir a
pessoa faltar a um serviço e ficar dez ou 15 dias sem ver seus familiares. Por
que não dá serviço extra para o faltoso? (...) Na minha opinião, isso não passa
de um abuso de superiores. Isso tem de acabar um dia. (...) Não existe o
policial ser excluído só por indisciplina, sem cometer qualquer crime ou falta
grave fora do seu serviço. (...) É um abuso, uma covardia. (...) Um abuso de
autoridade!

Várias entrevistas realizadas com as praças descrevem relações


interpessoais marcadas por manifestações de ansiedade e sofrimento. Seus
depoimentos ressaltam que seu processo de trabalho é perigoso, por estarem
cotidianamente inseridos em uma lógica de combate desgastante – por
ficarem mais horas do que podem suportar sem comer, carregando excesso
148
de peso (munição e equipamento) e sem descanso – e por vezes humilhante
– “alguns superiores não nos respeitam nem como profissionais e nem como
homens” (grupo focal cabos/soldados). Eis o depoimento de um cabo:

O maior problema nas condições de trabalho são os nossos comandantes.


Nós somos punidos com privação de nossa liberdade, com ofensas, humilhações,
devido a faltas pequenas, como estar com o coturno sujo depois da jornada de
trabalho, tirar o chapéu num dia quente, chegar alguns minutos atrasado
devido aos constantes congestionamentos no trânsito ou estar com a barba
aparecendo depois de 12 horas de serviço. Muitas vezes, os nossos comandantes
não querem nem escutar as nossas explicações. Tiram-nos do convívio de
nossos familiares.

De fato, a maneira pela qual o exercício da hierarquia na Polícia


Militar é visto pelas praças e pelos sargentos revela engessamento das relações
entre eles e os oficiais. Apesar de compartilharem da vida profissional na
mesma corporação, consideram os escalões superiores quase como rivais e
inimigos. A fala de um segundo-sargento para quem a Polícia Militar
deturpou e enrijeceu ainda mais a estratificação, que é desenhada e vivida
pelas Forças Armadas, reafirma essa sensação de enrijecimento: “O
regulamento militar que funciona tão bem nas Forças Armadas é usado
aqui, na Polícia Militar, de forma covarde, onde, na maioria das vezes,
castra e aniquila os policiais de boas intenções e de boa formação, dando
espaço ao oportunismo e a corrupção.”
Talvez possamos fazer dialogar a fala descrita com o comentário final
de outro segundo-sargento. Este profissional nos apresenta uma visão da
Polícia Militar que se afasta bastante da fala entusiasmada de alguns
gestores:

Lamentavelmente, a atual Polícia Militar se transformou numa instituição


de interesses escusos de determinados comandantes, onde os serviços de
aproximação aos usuários são preenchidos com uma minoria de homens
de confiança, com a finalidade explícita de extorquir e arrecadar subsídios
para proporcionar-lhes uma condição de vida melhor. Essa irresponsabilidade
impede o Estado de ocupar o seu espaço. Aí a criminalidade prolifera e a
violência cresce de forma assustadora, dominando, manipulando, ditando
ordens, impondo terror, massacrando, assim, a massa trabalhadora e destruindo
famílias.

149
Para as praças, a maior expectativa de mudança tem como objeto
alguns elementos que compõem as normas disciplinares da categoria.
O comentário de outro sargento enfatiza esse aspecto: “Gostaria que mudasse
alguns itens do regulamento, como acabar com a prisão de 72 horas, e que
o policial tivesse apoio jurídico em qualquer audiência e julgamento”. Ele
comenta, também, que gostaria que o regulamento disciplinar acabasse
com a prisão e a detenção, pois há outros tipos de punição. Uma pessoa
poderia sofrer, por exemplo, suspensão. Reforça: “A prisão e a detenção
não somam nada na Polícia e, se resolvessem, não haveria tantos policiais
presos e detidos administrativos”.
Segundo um grupo de praças e sargentos, a lógica da corporação em
relação a eles é a mesma que constrói o “elemento suspeito” na prática
profissional da Polícia. No caso da sociedade civil, a população e a mídia
acusam o policial de prender ou executar antes mesmo de investigar o
indivíduo. No caso dos sargentos e praças, eles consideram que é também
essa forma de suspeição que domina a relação das chefias com os escalões
inferiores. Eis alguns de seus depoimentos:

Gostaria de ser mais respeitado pelos oficiais da nossa corporação, pois a


tropa está com medo, não da criminalidade, mas sim das covardias que
ocorrem em nosso meio policial. (...) Os policiais de nosso estado têm coragem,
mas com essa política de primeiro prender para depois apurar, isso não dá.
Temos de mudar isso, pelo amor de Deus. (...) O regulamento está arcaico,
sem critério algum de punições, superior a tudo, até mesmo à Constituição
Federal ou a qualquer outro tipo de regulamentação no país. (...) Por isso,
considero que é preciso acabar com o desrespeito total dos superiores [oficiais]
às praças.

A propósito dos problemas apontados, Muniz (1999) os atribui às


distorções e aos equívocos das políticas de segurança pública adotadas pelo
estado do Rio de Janeiro. Essa autora assinala: “O sentimento de que o
sacrifício só é cobrado do PM é, de forma perversa, reforçado nas ruas.
O contato diário com o mundo social além dos muros dos quartéis põe em
evidência o contraste entre a inflexível conduta militar e a multiplicidade
de inserções possíveis na vida civil” (Muniz, 1999: 151).
Em resumo, há discrepâncias enormes entre o que os policiais
responderam nos questionários e o que disseram nas entrevistas e nos grupos

150
focais. Possivelmente isso tenha ocorrido porque, na relação face a face, foi
mais fácil para esses servidores se manifestarem. Ou talvez as indagações
feitas nos encontros pessoais tenham sido mais provocativas. Os problemas
por eles assinalados de forma crítica – inclusive pelos gestores que têm uma
expectativa mais humanística – vão ao encontro das reflexões de Dejours,
quando fala do sofrimento psíquico vivido por outras categorias em suas
relações hierárquicas de trabalho:

A desigualdade na divisão de trabalho é uma arma terrível de que se servem


os chefes a bel-prazer da própria agressividade, hostilidade ou perversidade.
Temos o hábito de apresentar estas relações de trabalho em termos políticos ou
em termos de poder. Mas a frustração, a revolta e a agressividade reativas
muitas vezes não conseguem encontrar uma saída. Conhecemos muito mal os
efeitos da repressão desta agressividade sobre o funcionamento mental dos
trabalhadores, se bem que podemos presumir sua importância na relação
saúde e trabalho. Não podemos considerar como epifenômeno ou como questão
acessória a discriminação que opera a hierarquia com relação aos
trabalhadores. Ela faz parte integrante das táticas de comando, mesmo que
não seja explicitamente incluída no papel da hierarquia. (Dejours, 1992: 75)

Consideramos que as três diferentes formas de ansiedade descritas


por Dejours cabem com perfeição para analisar a situação dos policiais,
embora esse autor se refira a contextos muito mais brandos relativos ao
trabalho operário industrial. O autor menciona:

1) um tipo de “ansiedade relativa à degradação do funcionamento mental e


do equilíbrio psico-afetivo”. Ela resulta da “desestruturação das relações psico-
afetivas espontâneas com os colegas de trabalho, de seu envenenamento pela
discriminação e suspeita, ou de sua implicação forçada nas relações de violência
e de agressividade com a hierarquia” (Dejours, 1992: 176);

2) uma outra forma de ansiedade que diz respeito à “degradação do organismo”e


aos riscos que ameaçam diretamente a integridade física dos trabalhadores;

3) e, finalmente, uma manifestação de “ansiedade gerada pela disciplina da


fome”, ou seja, a que se apresenta no fato de a pessoa continuar trabalhando
pela necessidade de sobreviver. Esta modalidade de ansiedade é assim
denominada por Dejours para explicar que ‘apesar do sofrimento mental que

151
não pode mais passar ignorado, os trabalhadores continuam em seus postos de
trabalho expondo seu equilíbrio e seu funcionamento mental à ameaça contida
no trabalho, para enfrentar uma exigência ainda mais imperiosa:
sobreviver”(Dejours, 1992: 77-78).

Comparando as corporações, observamos que os policiais civis (Minayo


& Souza, 2003) apresentaram menos problemas do que os policiais militares
quanto ao ambiente laboral e à relação com os superiores e com os colegas.
Essas diferenças são estatisticamente muito significativas, evidenciando as
piores condições de trabalho dos policiais militares (Minayo et al., 2007).

152
Imagem e Identidade
9
Oração do Policial Militar

Senhor,
Saio de casa para o serviço;
fazei com que volte são e salvo.
Enquanto protejo outras famílias,
por favor, proteja a minha.
Não deixe que uma bala traiçoeira me atinja,
nem que eu seja instrumento para injustiças.
Faça com que minha presença irradie segurança e bem-estar,
jamais medo ou desconfiança.
Nos momentos difíceis, e diante da morte,
não deixe que eu caia em desespero.
Sou humano, mortal, às vezes fraco,
mas, me faça parecer sobre-humano, imortal, forte,
a fim de inspirar confiança, esperança e força aos desamparados.
Quando dos meus erros fique do meu lado,
pois todos os demais, por mais pecadores que sejam, estarão contra.
Dá-me força e sabedoria para auxiliar os desesperados
e fé para não desistir diante de uma vida que se acaba.
Auxilie-me a ser criança para as crianças;
pai para os desprotegidos; e adulto para os necessitados.
Que o vigor de minhas ações seja sempre em proteção à paz, à vida,
aos mais fracos, aos oprimidos e aos humilhados.
Que eu saiba ver a beleza do coração, não da face,
da cor, da raça, da religião ou da condição social.
Que os menos esclarecidos compreendam
minhas limitações e a complexidade do meu trabalho.
Senhor, abençoe e proteja os policiais!
(Giraldi, 2005)

153
Começamos este capítulo homenageando a corporação com essa
“Oração do policial militar”, de autoria do coronel da reserva Nilson Giraldi
(2005), criador do método “Tiro defensivo de preservação da vida – Método
Giraldi”. Nela, o autor faz um percurso interior e reflexivo sobre o exercício
de sua profissão: vai do aconchego do lar ao palco das atividades ostensivas,
caminha pelo significado do trabalho, perpassa o perigo, o medo, a
imprevisibilidade e os vários sentimentos que a proximidade dos riscos coloca
para o policial. De forma impressionante, a oração evidencia o sentido da
missão – “que minha presença irradie segurança e bem-estar” – e do caráter
humanitário e público de sua tarefa consagrada pelos preceitos constitucionais.
Igualmente, o texto deixa claro que não raro um policial comete injustiças,
provoca medo, desconfiança e é alvo da própria insegurança que busca conter.
Mirando na sociedade, a prece de Giraldi (2005) é pessimista: ressalta que
existe um prisma negativo pelo qual a população julga e cobra as ações dos
policiais. Porém, essa mesma sociedade os deixa sozinhos com as próprias
fraquezas. Mas, não podemos nos esquecer, essa oração fala também do autor,
de sua visão de mundo e de seu compromisso pessoal.
Teoricamente e com base nos fundamentos de Goffman (1993), a
forma como a pessoa define a si própria em sociedade, quer perante si
mesma, quer perante os outros, faz parte de um processo de socialização
que preexiste ao nascimento do indivíduo. Nesse sentido, a construção da
identidade corporativa da Polícia Militar tem suas raízes na história – como
vimos na primeira parte deste livro – e a identidade dos seus membros dela
deriva, modelando-se através da interação social. Segundo Goffman (1993),
a interação social é por excelência um processo de ação comunicativa que
tem por base o modo como o indivíduo interpreta o universo simbólico de
forma a preservar sua identidade.
Na perspectiva de Goffman,6 a imagem que um policial militar tem
de si é permanentemente edificada sobre um conjunto de movimentos
6
Com base na perspectiva dramática de representação teatral, Goffman (1993) encara as
situações sociais como se elas ocorressem em um palco. Nessas circunstâncias, os atores
desempenham papéis de diferentes personagens, o que os leva a identificar distintas estratégias
e técnicas de atuação. Nesse sentido, existe a ‘fachada’, que é o conjunto de elementos que
identifica o grupo e a situação de atuação; os ‘adereços’, que permitem a identificação das
personagens através da aparência, como tipo de roupas (uniformes) e tudo o que constitui
externamente o status do personagem; os ‘cenários’, locais de apresentação das atividades; e
os ‘bastidores’, que permitem aos atores despirem-se das máscaras e serem eles mesmos.
154
interativos com a realidade que vivencia: com a instituição que cria códigos,
preceitos e ritos, por meio dos quais mantém a visão corporativa e abrange
a todos os servidores, e com a sociedade que aplaude ou reage às práticas
policiais, construindo avaliações e interpretações, segundo suas expectativas
sobre o cumprimento do serviço público que esses profissionais prestam.
Essa dinâmica de formação da identidade ocorre porque, segundo Goffman
(1993), as interações sociais são representações bem construídas e
intimamente relacionadas com o ‘eu’. Na perspectiva desse ator, o ‘eu’,
como produto dramático, derivado de um quadro de representação e mediado
por um público, só ganha visibilidade na ação entre protagonistas.
Usando um termo de Giddens (2002), dizemos que a construção
coletiva da identidade é atravessada pela ‘reflexividade’, pois há uma
realimentação permanente do sentido simbólico da corporação – parte vem
dela e parte vem de fora, se entrelaçando e repercutindo de forma recursiva –,
que também afeta ou constitui o indivíduo, o policial: todo sujeito julga as
interpretações e opiniões dos outros sobre ele próprio. Giddens (2002)
lembra que essa reflexividade não é pontual e circunstancial. Ela é constitutiva
das instituições e das pessoas.
Neste capítulo, apresentamos os elementos de construção da identidade
do policial com base em vários tipos de materiais: a visão corporativa, a visão
da sociedade, a visão do poder e da política e a visão deles sobre si próprios.
Esses materiais estão ao mesmo tempo amalgamados e em permanente
transformação (Goffman, 1993; Giddens, 2002).

Imagem Construída pela Corporação


A imagem que a Polícia Militar do Rio de Janeiro propõe à sociedade
sobre si mesma é a de uma instituição organizada, hierárquica e disciplinada
que, com esses atributos, tem prestado inegáveis serviços à sociedade
fluminense e ao país. Seu panteão de heróis vai, ano a ano, evidenciando
atos de bravura e modelos a serem seguidos pelos que engrandecem a
corporação no cumprimento de sua missão. Do ponto de vista da cultura
organizacional, as autoridades e os gestores corporativos tentam sempre
presentificar a missão de forma contemporânea, por meio de uma gestão
moderna e afinada com a sociedade brasileira atual, como está publicado
no site institucional da Polícia Militar (PMERJ, 2007).

155
A corporação tem a pretensão de que, embora nunca plenamente,
seus membros logrem cumprir com êxito a missão constitucional. Essa
convicção, apesar de não ser verbalizada por todos os seus membros, foi
encontrada em muitos policiais que entrevistamos, tanto oficiais quanto
praças, que manifestam autoconfiança e orgulho de sua profissão. Podemos
constatar uma postura muito positiva, por exemplo, nos policiais de um
batalhão que atua na formação da categoria, portanto, em um segmento da
corporação encarregado de presentificar os valores que a identificam e a
conformam:

Eu gostaria de deixar registrado o meu testemunho pessoal, porque, para


mim, vir trabalhar na DEI [Divisão de Ensino e Instrução] está sendo a
minha melhor experiência profissional. Eu entrei para a DEI e tinha algumas
convicções políticas e ideológicas que foram reformuladas por conviver nesse
ambiente educacional. Eu defendia a pena de morte, era um republicano
inveterado e hoje procuro ter uma visão socialista e defendo a vida sob qualquer
situação. Tenho um português mais fluente, me expresso melhor. Tudo isso
por estar inserido neste universo. Eu diria que a DEI me tornou mais gente,
o que se reflete na minha vida pessoal, profissional, religiosa e política.

Nesse grupo, quando expressam algum tipo de insatisfação, os


mesmos policiais as dirigem ao plano da política e não ao nível institucional.
Ou seja, responsabilizam os governantes que, a seu ver, teriam o dever de
valorizar a categoria:

O fato de a instituição em si e de os governantes não darem valor à unidade


de ensino da Polícia Militar é terrível, porque é a educação que transforma
o indivíduo. E eu digo isso por mim mesmo. Está sendo uma experiência
extraordinária! Cada vez que a gente vem para cá, a gente cresce mais um
pouco, aprende mais um pouco com os companheiros. A gente fica muito
triste com esse desleixo.

Observamos também que, em menor número, há policiais de vários


batalhões entrevistados por nós que produzem um discurso de valorização e
de reconhecimento institucional traduzido em elogios e confraternizações. Mas
a externalização dessa visão positiva vem sempre associada à afirmação de
que existe diferenciação interna entre as chefias – “depende de quem está no
comando” –, deixando transparecer que não é homogêneo o sentimento de
adesão dos policiais às lógicas internas da corporação. Portanto, a forte

156
característica corporativa que reúne a todos, e que foi sendo descrita ao longo
de todos os capítulos deste livro, freqüentemente entra em contradição com as
práticas cotidianas e com os métodos de gestão institucional.
Igualmente, quando perguntamos por soluções para o impasse de
uma identidade que funciona ora de forma defensiva, ora de forma arrogante
– o que também observamos no decorrer dos capítulos deste livro –, a
responsabilidade por mudanças é atribuída sempre aos superiores e o
discurso dos policiais retorna ao termo que os unifica: a necessidade de se
criar uma gestão competente da ‘segurança pública’. Nos grupos focais,
servidores de vários escalões deixaram muito claro que um conflito identitário
relevante para eles é o relacionado à rigidez hierárquica que prejudica a
possibilidade de soluções discutidas coletivamente e que, se assim fossem
tratadas, seriam muito mais eficazes:

Solução para melhorar existe. Só que as autoridades não põem em prática,


elas não ouvem as nossas opiniões a respeito das soluções para a segurança
pública. Com certeza, nós aqui teríamos muitas sugestões a dar, mas... Nós
que trabalhamos nisso é que sabemos as coisas que podemos fazer pra melhorar.

Assim, a imposição de modelos hierárquicos rígidos é considerada como


questão polêmica e comprometedora da qualidade das ações policiais, pois
torna muito frágil a interação entre as diferentes patentes. Podemos constatar
opiniões sobre isso em vários depoimentos dos soldados e cabos, os que mais
sentem o peso dos escalões profissionais, como estes: “A hierarquia faz com
que a gente tenha um pouco de distância” e “Existem essas patentes, correto?
Então quer dizer, os sargentos, os subtenentes são as interligações dos oficiais
e os soldados e cabos. É assim, em camadas. Dificulta o relacionamento e
o trabalho”.
Assim, do ponto de vista identitário, embora a existência de vários
degraus hierárquicos possa, hipoteticamente, representar estímulos dentro
de uma carreira na qual todos seriam chamados a ascender, na verdade a
rigidez da gestão militar provoca mais ressentimentos que benefícios.
Outro aspecto bastante criticado na organização e que provoca
insegurança na questão identitária é a dificuldade que as autoridades têm
de apresentar e manter projetos coerentes, contribuindo assim para uma
dispersão de focos.

157
Os policiais militares são chamados para responder a ações de competência
de diversos órgãos públicos, tais como Parques e Jardins, Corpo de Bombeiros
e companhia elétrica. O policial militar acaba respondendo por inúmeras
tarefas que não são de sua estrita responsabilidade.

Um gestor operacional considera que essa dispersão existe como


contingência do ofício, porque falta coordenação dos serviços públicos,
muitos dos quais não funcionam à noite, deixando os policiais sozinhos
para solucionar, na maioria das vezes, problemas sociais. Diz:

O cidadão é o cliente que recebe a prestação do serviço público. Ele tem de


ter acesso à Justiça o mais rápido possível, acesso à Polícia e aos serviços
públicos como um todo, e é isso que promove a qualidade de vida da
população. A gente procura estreitar isso aqui na Polícia Militar nos
aproximando da comunidade. Eu penso que todas as instituições públicas
deveriam promover isso para que outras responsabilidades, que não são nossas,
não fiquem na nossa mão. A Polícia Militar faz parto, às vezes tem de atuar
em problema conjugal, briga de marido e mulher, em problemas de saúde...
Por quê? Porque a Polícia Militar está 24 horas, 365 dias por ano, na rua.
Então, há momentos desse dia do cidadão que só tem a Polícia Militar por
perto. E ela tem uma responsabilidade? Tem, porque pode ser um
encaminhador para esses entes públicos, mas, às vezes, a gente tem o problema
e não tem para quem encaminhar. Porque 70% das nossas ocorrências são
assistenciais, só 30% são ocorrências próprias da Polícia. A grande dificuldade
está nesses 70%. Às vezes, você está ali com o problema e sabe que tem de
encaminhá-lo. Mas determinado órgão não está nem aí para receber. Então
o ideal é que a prestação do serviço público funcionasse como um todo.

No entanto, o que esse entrevistado considera ‘contingência’ configura-


se como atividades típicas da corporação, como mostramos no capítulo sobre
a formação social da Polícia.
Em resumo, no caso da identificação corporativa, é possível
distinguir a forte marca institucional da identidade de seus membros,
sobretudo quando separamos os ideais abstratos e a realidade concreta
por meio da análise da ação e das relações sociais. Mas também é possível
construir um discurso de ‘unicidade’ mesmo quando existem muitos
problemas práticos e relacionais. Desse ponto de vista, evidenciamos que
é notório, nas falas dos policiais militares, o espírito de corpo que os
identifica: malgrado as queixas dos que estão nos segmentos inferiores

158
quanto ao excesso de rigidez hierárquica e à forma como são tratados
pelos superiores, eles também, quando se referem ao cumprimento de sua
missão, falam em nome de todos. Essa totalidade em algum ponto os une,
sobrepassando conflitos e sofrimentos e enfatizando o sentido de
trabalhador coletivo: “Nas adversidades e frente às dificuldades,
aprendemos que somos todos por um e um por todos”, refere um sargento
que trabalha em uma área de elevado risco social.

Imagem Construída na Interação com a Sociedade


Recorrendo à linguagem dramática, Goffman (1993) analisa a lógica
dos atores enfatizando a natureza da identidade individual e das relações
grupais e o significado da apresentação (teatral) e da comunicação em um
determinado contexto social. Olhares, gestos, afirmações verbais, rituais,
rotinas e posicionamentos dos atores conferem sentido à ordem normativa
preexistente:

Considerarei o modo como o indivíduo em situações habituais de trabalho


apresenta a si próprio e à sua atividade perante os outros; a maneira como
orienta e controla a impressão que os outros formam dele; e as diferentes
coisas que poderá fazer ou não fazer, enquanto desempenha o seu papel
perante os outros. (Goffman, 1993: 9)

Podemos resumir a imagem que a Polícia Militar considera que a


sociedade tem dela como uma apreciação negativa, que dá ênfase à corrupção
e à truculência:

Imagem negativa – Um dos fatores de conflito identitário mais forte


para os policiais militares é a sua sensação de que a sociedade possui
uma imagem negativa deles: uma imagem de truculência,
menosprezo e temor. Um soldado usa a metáfora do pato para se
referir aos sentimentos de inutilidade que os invade. “Para a
população, a Polícia é que nem pato: o pato nada, anda, voa e não
faz [nenhuma dessas atividades] direito.”
Os sentimentos de incompreensão e desrespeito mencionados no
estudo de Muniz (1999: 211) sinalizam que “uma das queixas

159
mais freqüentes entre os policiais militares de ponta resulta do
sentimento generalizado de que, via de regra, eles não são
devidamente compreendidos pelos cidadãos”. Nas suas falas, sempre
existe uma tentativa defensiva de se descolar da imagem negativa
que os persegue historicamente (Holloway, 1997) e que acompanha
a trajetória da corporação:

Nós somos normais que nem vocês. Mas, tendo em vista que a
gente tem uma carteira no bolso, tem uma responsabilidade... então, de
repente, a senhora vai andando ali com a sua bolsa, aí vem um menor
de rua... Não sei se a senhora já foi vítima, mas 80% aqui em
Copacabana já foram vítimas dessa molecada, dos garotos de rua.
Quando a gente presencia um lance desses, tem de atuar, tem de reprimir.

Nos grupos focais, oficiais, cabos e soldados deram relevância


ao sofrimento que sentem pelo menosprezo social, sobretudo quando
ele vem da população pobre e das periferias que, por sua vez, compõem
o segmento social mais vitimizado pela violência policial. Por causa
da falta de reconhecimento social que gostariam de merecer, esses
profissionais justificam a imagem endurecida que os leva a tratar os
cidadãos como inimigos, como se estivéssemos em uma guerra interna.
Eis o depoimento de soldados, cabos e sargentos:

As comunidades das favelas tratam a gente como lixo! Você passa,


eles cospem! Às vezes, eles querem até te tratar bem, só que têm medo.
E o nosso trabalho é desprezível. Então, há essa guerra, essa rejeição
silenciosa. Aí a gente fala, no todo, do Rio de Janeiro em relação à
Polícia! E a gente sente na carne esse desprezo! Qual é a primeira
ação quando alguém te afronta? É também se enrijecer em relação à
população. Então vamos tirar as máscaras. Eu acho que a Polícia
não gosta do tratamento que a população dá a ela e vice-versa. Então
se digladiam o tempo todo. Isso aí vai repercutir no quê? No trabalho!
Porque se vai depender dela para que esse camarada viva, o trabalho
vai ser complicado. Aí o meu desejo de que aquele camarada seja
atendido com qualidade, com certeza, vai ser menor.

Os policiais militares responsabilizam a população e a mídia


pela construção da identidade negativa que os persegue. Uma idéia

160
repetida por todos os grupos pesquisados é a de que a Polícia é um
espelho da sociedade. A lógica que explica tal concepção é que a
Polícia existe em função da sociedade. No caminho que a sociedade
brasileira trilha, aos trancos e barrancos, em direção a um Estado
democrático de direito, a polícia segue atrás, buscando se adaptar
às novas demandas surgidas.

Imagem de truculentos – Faz parte da imagem negativa a generalização


que a sociedade costuma expressar a respeito da existência de desvios
(corrupção, tortura, agressões) por parte de indivíduos e segmentos
da corporação. Mesmo quando os policiais, justificando a
constatação, dizem que esses fatos lastimáveis são reflexos do
ambiente social, na cola da truculência vem a violência policial.
Para Muniz (1999: 212),

O desconhecimento por parte do senso comum ilustrado


(incluindo aí alguns setores das próprias organizações policiais) de
que o emprego da força e a presteza dele resultante constituem
expedientes indispensáveis à ação ostensiva de Polícia tem
propiciado a conformação de uma perspectiva ingênua e perigosa.
[Essa visão] é incapaz de distinguir, de forma criteriosa e consistente,
o uso da violência (um impulso arbitrário, ilegal, ilegítimo
e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo
e profissional). O ônus dessa indistinção é imenso tanto para Polícia
Militar quanto para a sociedade

O ônus da imagem de truculência que também é celebrada em


alguns hinos, como o do Batalhão de Operações Policiais Especiais
(Bope) – que será apresentado no capítulo 10, sobre profissão de
risco –, (des)estrutura o sentido da profissão e prejudica a qualidade
de vida e saúde do policial militar. Essa identidade reforça a idéia
de profissão de risco em confronto com a sociedade. Não importa
que apenas alguns rompam os direitos de cidadania em suas relações
com a população: a pecha está pregada na testa de todos. E o medo
que os policiais provocam, de forma recursiva, os assola
invariavelmente, conduzindo-os a estratégias de ocultamento da
identidade policial, como demonstram participantes de vários grupos

161
focais, de soldados a oficiais: “Tem de esconder o uniforme debaixo
do banco, botar atrás, entendeu? Tenso, você já vem tenso”.
Não podemos nos esquecer de que, se a ‘truculência como
cultura’ está na raiz da hostilidade que a sociedade brasileira
manifesta para com a Polícia, a violência policial tem uma relação
dialética com o que dela espera a sociedade autoritária e
discriminadora.

Imagem de corruptos – A insistência no tema da corrupção por parte


dos próprios entrevistados faz ressaltar um dos assuntos mais
recorrentes trazidos pela mídia, que, ao falar da criminalidade,
constantemente vem evidenciando o envolvimento de policiais
militares, muitas vezes organizados em quadrilhas, esquadrões da
morte, milícias ou aliciados por delinqüentes.

A sociedade espera por uma ‘Polícia robótica’. Ela é arrogante


com a Polícia e considera que a corporação está envolvida em atos
corruptos e truculentos. Você tem de estar pronto na hora que eles [a
sociedade] querem. E ao mesmo tempo cobram uma Polícia não
corrupta, sendo que a própria sociedade é corrupta. Corrompe e
quer corromper o policial, quando tem oportunidade. A sociedade é
corrupta, e não a Polícia. A Polícia Militar não é corrupta, o que é
corrupta é a própria sociedade. Exemplos disso a gente vê quando
trabalha na rua.

Um gestor operacional, fazendo uma reflexão sobre a imagem


dos policiais na sociedade, considera que, de forma geral, eles não
são benquistos por causa da própria natureza coercitiva do seu
trabalho, o que é uma verdade. Em um dos grupos focais com oficiais
operacionais e administrativos, esses servidores aprofundaram a idéia
de que a função repressiva da Polícia é vista pela sociedade como
resquício do período da ditadura: “A imagem do policial está
arranhada porque ainda é vivamente atrelada à ditadura militar,
quando a corporação era utilizada como força do Estado, como
força de repressão”.

162
Isso prejudica suas ações que, geralmente, visam a resguardar
direitos do cidadão. Um oficial pondera: “Você vai prender alguém
que muitas vezes faz bem à comunidade, na visão dos moradores.
Você vai fazer valer a lei e aquela comunidade não vai entender. Você
vai acabar com o tráfico que muitas vezes se faz presente onde o
governo não está”.
Em seu estudo histórico, Holloway (1997) ressalta que, além
de todos os problemas que rondam a Polícia Militar desde sua
origem, persistentemente ela vem lidando com três dilemas
estruturais: as transgressões dentro da própria corporação, a
corrupção e o suborno. Mas a literatura internacional e o cinema,
sobretudo, costumam projetar imagens das instituições policiais
envolvidas com corrupção e truculência em várias partes do mundo.
Weitzer (2002), ao estudar incidentes de má conduta policial e
opinião pública em Los Angeles e Nova York, observa que a
corrupção é uma das principais manchas na imagem dessas
corporações americanas. Um dos comandantes de batalhão
entrevistado resumiu que a corrupção existe em toda a sociedade e
em toda parte. No entanto, na PMERJ, ela se cola como uma
imagem da sociedade, maculando-a.

A Mídia Considerada Vilã na


Formação da Imagem Negativa
À mídia são atribuídas, pelos policiais militares, as causas que
plastificam sua imagem negativa e o não-reconhecimento social. Na opinião
de muitos servidores, a família, a sociedade e a própria corporação são
fortemente influenciadas pelas matérias jornalísticas. Os depoimentos de
policiais civis já haviam nos referido que também eles consideram que a
mídia não é justa que corrobora o “ajuizamento negativo e preconceituoso
da sociedade” sobre seu trabalho (Minayo & Souza, 2003: 170).
O comentário de um segundo-sargento sintetiza, em grande parte,
como a maioria dos policiais compreende o papel da mídia na construção
de sua imagem negativa:

163
O policial militar é como o Bombril, tem 1.001 utilidades. Porém, os
meios de comunicação e os representantes só divulgam a parte ruim dos
policiais, o que deveria ser mais sigiloso para resguardar o nome da corporação.
Os muitos aspectos positivos deixam de ser divulgados, ficando no anonimato:
aquele policial que atravessou uma velhinha no trânsito, fez um parto, prestou
socorro e outras coisas mais. São raras as vezes em que um policial é
reconhecido. Mas aquele que, contra a vontade, feriu um transeunte ou
matou um marginal da lei em troca de tiros, e que resultou em ferir um
inocente, este sim é o policial que ficará [marcado] na mídia.

Nos últimos dois dias, só a minha unidade apreendeu três fuzis. E para
apreender três fuzis, a gente não encontra isso encostado em qualquer lugar.
Encontra sempre na mão de um delinqüente disposto a matar o policial.
Então é preciso que o policial vá até ele, olhe nos olhos, se confronte e
consiga sobrepujá-lo. São essas coisas que precisam ser destacadas para a
sociedade, que nós estamos vencendo o mal. É preciso deixar sempre claro
que não estamos sucumbindo com o mal. O tráfico está dominando, a
tendência será cada vez pior. Eu acho que essa tendência acaba atendendo
aos próprios interesses da mídia, à medida que talvez venda mais jornais.
Mas tira o grande interesse da sociedade, à medida que as empresas saem do
estado do Rio de Janeiro. Com esse tipo de propaganda, os policiais não são
dignificados, nem destacados à altura. Não são aqueles guerreiros que a
sociedade deveria ter e ver, a partir do reconhecimento e trabalho. Isso feito
por quem? Pela própria mídia.

Um terceiro gestor operacional faz coro com os primeiros sobre a


incapacidade da corporação em dialogar com a mídia. E se queixa de que
a Polícia Militar não criou meios de divulgar, por exemplo, as apreensões
de armas que faz ao mês (de 1.100 a 1.200 armas), as prisões e o
desarmamento de pessoas. Acredita que “o impacto psicológico” dessas
notícias geraria credibilidade maior da população em relação à corporação
e influenciaria na auto-estima da tropa.
O mesmo tipo de crítica elaborada por vários comandantes é
corroborado por um grupo de oficiais operacionais. Alguns consideram
que a corporação deveria se contrapor ao que geralmente é veiculado:

Quando eles mostrassem o mau [policial, exemplo], aí a instituição


mostraria só quantas boas ações foram prestadas naquela noite, entende?

164
Por que não responde? [Outra idéia é] fazer uma matéria paga, aparecer lá
na televisão. Uma matéria que mostrasse que nesse dia em que esse policial
se comportou mal, nós fizemos tantas prisões, recolhemos tantas armas da
rua, fizemos tantos partos, socorremos não sei quantos doentes.

Ressaltando que a crítica ao papel da mídia a respeito da corporação


é generalizada, os relatos de sargentos e subtenentes da área administrativa
confirmam a mesma impressão: “A maior divulgação do trabalho realizado
na DEI somos nós próprios que fazemos, porque divulgação da corporação
nós não temos. Eu, no meu meio civil, divulgo o que eu faço. Mostro, na
prática, o serviço que nós realizamos com aqueles policiais. Nós mesmos
fazemos a divulgação”.
Em sua pesquisa, Muniz (1999: 211) destacou:

Uma das queixas mais freqüentes entre os PMs de ponta resulta do


sentimento generalizado de que, via de regra, eles não são devidamente
compreendidos pelos cidadãos. Além de serem chamados de ‘Seu guarda’,
nada desagrada mais aos ‘executivos de esquinas’ do que ouvir alegações
do tipo ‘Vocês não têm o que fazer, não?’ ou ‘Vocês deviam estar subindo
morro e correndo atrás dos bandidos em vez de importunar o cidadão de
bem’. Frases que são constantemente acionadas por aqueles litigantes que,
no processo decisório, não se sentiram beneficiados pelo encaminhamento
dado a uma simples ocorrência como, por exemplo, um conflito no trânsito
ou uma querela de vizinhança.

Nos grupos focais, as praças chegaram a dizer que a mídia “amarga


a qualidade de vida do policial”. E, segundo elas, a falta de reconhecimento
da sociedade aos serviços que prestam acompanha fortemente o ritmo
midiático:

Mas o culpado disso tudo é a própria mídia, que estampa na primeira


página o que o policial fez de errado. Os repórteres nas rádios massacram a
gente. Nossos familiares perguntam: ‘Você age assim? Você faz isso mesmo?’
É verdade... Ainda tem o estresse familiar... É que as pessoas julgam, fazem
um julgamento da gente, por causa da exposição na mídia. Isso é estressante.

Semana passada, saiu uma coisa assim: ‘A PM matou cinco’. Generalizou


tudo, não é? Entendeu? Aí, quando o teu vizinho olha para você, já te olha

165
atravessado. Quando eu entro no meu elevador e o vizinho está com o jornal
na mão, ele faz assim [imita as feições de ‘olhar atravessado’], te julga. Isso
às vezes me deixa até um pouco chateado, sabe?

A violência é pauta diária [na mídia]. A mídia é formadora de opinião.


Então ela põe na cabeça do povo o que ela quer. A nossa mídia é hipócrita.
É a pior mídia do mundo.

Nos depoimentos citados, fica patente que a comunicação social da


Polícia está muito aquém das necessidades que esses servidores têm de se
verem retratados de forma a valorizar os serviços que prestam. Mas também
há uma demonização e um maniqueísmo por parte dos policiais que atribuem
aos meios de comunicação social uma espécie de criação negativa de sua
imagem, quando sabemos que o papel e a função da mídia são muito mais
sutis do que à primeira vista parecem. Ela geralmente não cria fatos, e sim
repercute o que ocorre na realidade, obviamente tendo o poder de magnificá-
los. Alguns oficiais e gestores, nos grupos focais, reconheceram que “não
se pode tapar o sol com a peneira”, dando a entender que muitas situações
veiculadas são procedentes, repetindo sua opinião de que a própria
corporação não faz propaganda dos serviços que presta. “A imagem ruim
da Polícia está ligada aos fatos graves de policiais envolvidos com corrupção.”
Um gestor ressalta, no entanto, que a Polícia Militar tem demitido policiais
corruptos de seus quadros, mas é para ela que o olhar de condenação social
se volta, “mesmo havendo corrupção em outras instituições, e fica por isso
mesmo”. Mais uma vez, todos sublinham que as boas ações deveriam ser
transmitidas por jornais e pela televisão em igual proporção. Para Muniz
(1999: 231),

A demonização dos meios de comunicação de massa, particularmente


da televisão, tem sido uma moeda corrente nas queixosas narrativas policiais.
Segundo esses discursos, as TVs estariam diariamente divulgando os maus
hábitos, elogiando os péssimos exemplos de comportamento e, por conta
disso, promovendo não só a ‘banalização da violência’ como também uma
destrutiva inversão dos valores da sociedade.

Muniz (1999) considera ainda que o poder sedutor das televisões é


de tal maneira superestimado na ‘sociologia’ policial que nem mesmo os
centuriões da ordem pública conseguem sair completamente ilesos das

166
infinitas provocações. Por exemplo, de acordo com os próprios policiais
militares, tem sido crescente o número de casos de separação conjugal,
alcoolismo e distúrbios mentais dentro da sua corporação. Muitos deles
identificam a raiz do problema tanto na natureza do seu trabalho como na
capacidade que a mídia teria de fazer a cabeça das pessoas para as coisas
ruins. No depoimento de um grupo focal de praças,

As pessoas costumam mudar a partir do momento que têm um contato


maior com a gente. Nós somos pessoas como outras quaisquer. Viemos do
povo, normalmente como qualquer pessoa. Temos família como qualquer
um, vivemos os problemas que todas as pessoas vivem, só que com uma
responsabilidade muito maior, que é prestar segurança. É isso o que a
população não vê, não qualifica. Isso nos deixa estressados também, porque
a gente está sempre no combate diário, mas a população não sabe dos
nossos problemas...

Uma pesquisa realizada por Ramos e Paiva (2005) mostra que há


mais demonização da mídia pela Polícia do que a realidade apresenta. As
autoras analisaram 2.514 textos jornalísticos, veiculados ao longo de cinco
meses no ano de 2004, e apresentam de forma bastante diferente – e mais
complexa – o papel que a imprensa desempenha na formação da imagem
da Polícia Militar e dos seus membros. Segundo suas análises, os jornais
reagiram diferentemente à problemática da segurança, alterando estratégias
de cobertura. Desse estudo, interessa-nos sublinhar o fato de que o
protagonismo das forças de segurança mostrado no noticiário derruba
o mito, tantas vezes repetido por eles – e reiterado nos depoimentos –, de
que os meios de comunicação só dão destaque às coisas negativas. As autoras
constataram que 585 (23%) do total de textos analisados focalizaram ações
policiais bem-sucedidas: prisões, apreensões e resultados de investigações.
De fato, a citada pesquisa (Ramos & Paiva, 2005) ressaltou uma
perspectiva importante: as polícias, tanto a civil como a militar, se quiserem,
têm nos jornais um excelente veículo de divulgação de suas ações, pois
naqueles que foram examinados há destaque para os bons feitos realizados
por elas, onde poderíamos imaginar que houvesse apenas críticas. As autoras
assinalam que, comparativamente, as instituições da área da saúde, da
educação ou do saneamento não tiveram, no mesmo período, tanto espaço
para a divulgação de suas ações.

167
Encontrando um ponto de identidade entre as estratégias da mídia e
as das atividades policiais, Ramos e Paiva (2005) assinalam que a idéia de
que a Polícia, sem um processo inteligente de trabalho, “corre atrás do
crime” poderia ser também aplicada aos periódicos que elas pesquisaram:

A cobertura jornalística, mesmo dos melhores jornais do país, padece,


em parte, dos mesmos problemas. Corre atrás da notícia do crime já ocorrido,
ou das ações policiais já executadas, mas tem pouca iniciativa e usa
timidamente sua enorme capacidade para pautar um debate público
consistente sobre o setor. (Ramos & Paiva, 2005: 15)

Embora o setor Saúde não esteja tão presente nas pautas jornalísticas,
Ramos e Paiva (2005) destacam a capacidade que essa área teve de criar
e implementar políticas públicas juntando profissionais, gestores e
movimentos sociais. A autora chama a atenção para a incapacidade dessa
mesma sociedade de se articular em torno de um projeto de segurança
pública.

O Estado e os Governantes Corroboram com a


Imagem Negativa
Na composição de sua imagem, os policiais somam seu
descontentamento ao tratamento recebido por parte do Estado e de seus
governantes. A maioria dos depoimentos mostra uma visão muito crítica da
política e dos políticos, até entrando em contradição com a missão originária
da Polícia: criada como um braço do Estado e essencial para sua existência.
‘Polícia’ e ‘política’ derivam do mesmo termo grego polis, utilizado para
designar a organização da coletividade. Intimamente ligadas, essas palavras
não podem ser dissociadas: “A atividade de Polícia é, portanto, política,
uma vez que diz respeito à forma como a autoridade coletiva exerce seu
poder” (Costa, 2004: 37). No entanto, na realidade, existe uma dissociação,
definida no depoimento deste segundo-sargento:

É vergonhoso como nossa classe [policial militar] vem sendo tratada pelos
governantes. É um absurdo como somos tratados financeiramente, sem apoio
profissional. As condições de trabalho são péssimas. É degradante servir em
uma organização estadual, a qual tem seus funcionários como um trampolim

168
político. (...) Com essas condições, sem ela o que seria do povo carioca, com
um governo mascarado e corrupto?!

No mesmo sentido, vários policiais chamam a atenção para o que


consideram um desdém dos políticos que poderiam investir muito mais e
melhor na Polícia, com proveito para a sociedade. Este é o comentário
geral de alguns praças em um grupo focal:

O que daria voto para eles? Educação, saúde e segurança. Só no nosso


país é que isso não é respeitado, não é visto com bons olhos, não é feito um
trabalho para valorizar. Toda nação que é competente tem de ter uma boa
saúde, uma boa educação e uma boa segurança pública. E o nosso país
nunca vai ser de Primeiro Mundo porque as autoridades não pensam nisso.

Para alguns oficiais operacionais, a missão de preservar a ordem


pública, em certos momentos, fica comprometida por se associar à política.
A visão da política, então, é associada a razões e práticas eleitoreiras.
Portanto, quando cabos, soldados e oficiais tentam separar a atividade
policial da política, não é sobre o exercício da autoridade coletiva que
falam. Referem-se ao fato de a segurança pública nem sempre ser o foco
central de suas ações. Na visão deles, em alguns momentos, por causa de
questões ‘politiqueiras’, muitos são desviados de suas funções para atender
a grupos específicos, inclusive a interesses privados e particulares. Assim,
repercute entre os policiais uma imagem negativa da política e dos políticos,
a quem atribuem intervenções que prejudicam sua imagem e a missão
que devem desempenhar.

Ser Policial, uma Imagem de Muitos Reflexos


Alguns autores (Reiner, 1992; Bretas, 1997a; Poncioni, 2003)
consideram que existe uma cultura policial que ultrapassa fronteiras nacionais
e cujas características são o conservadorismo, o cinismo, o pessimismo, o
preconceito racial e sexual, a suspeita em relação aos cidadãos e o isolamento
em relação às comunidades que atendem, posturas e atitudes
contrabalançadas pelo espírito de corpo (Bretas, 1997a; Reiner, 1992).
No caso brasileiro, essas características vêm sendo descritas empiricamente.
Nós mesmos temos feito isso em pelo menos três ocasiões: na presente

169
investigação, na que descrevemos no livro Missão Investigar (Minayo &
Souza, 2003; Gomes, Minayo & Silva, 2003) e também no livro Fala,
Galera (Minayo et al., 1999). Esta última obra é fruto de uma pesquisa
realizada por amostragem com a juventude do Rio de Janeiro no fechamento
do século XX e na entrada do novo milênio. Ressaltamos, nesse estudo, a
ótica pessimista dos policiais a respeito dos jovens e de suas famílias, o que
nos levou à seguinte afirmação:

A fala dos policiais projeta a sociedade carioca como uma grande


enfermaria de doenças sociais. Além dos dramas familiares, as explicações
sobre as origens da violência oscilam entre os determinantes sociais e as
causas inatas, por isso, às vezes, o termo ‘índole’ é usado por eles para se
referirem a algumas pessoas que são violentas independentemente de suas
condições socioeconômicas. (...) Buscando compreender seu discurso
caberia suscitar duas suposições que atuam sinergicamente: uma visão
incriminadora a priori, partindo da idéia de que garotos e garotas não
sofrem violência e, sim, praticam delitos; e uma ausência conceitual e prática
do sentido de proteção, missão primordial da segurança pública, mormente
em relação aos adolescentes, crianças e jovens. (Minayo et al., 1999: 167)

Podemos constatar a mesma visão negativa do mundo nos muitos


depoimentos que se seguem. Sempre que falam de seu trabalho, os policiais
giram suas críticas para a população: falam da falta de reconhecimento, do
julgamento injusto de que seriam truculentos e corruptos e, sobretudo,
devolvem à sociedade a pecha de arrogante e corrupta:

E se você for querer prender a pessoa por corrupção, chega na hora ela
quer inverter, falando que você é isso ou aquilo. Quer deturpar as coisas,
falando que você que tentou subornar. É inversão de valores. Ao contrário,
na hora [da infração], as pessoas oferecem [dinheiro] para que possam sair
ilesas daquele erro. A realidade é bem clara: a sociedade quer a Polícia para
servi-la, mas, quando essa sociedade se vê numa situação em que vai ser
posta contra a parede, numa situação em que vai ser prejudicada, essa mesma
sociedade qualifica ou classifica o policial como um verme. Eu canso de
ouvir isso, essa linguagem!

Grupos focais com oficiais trouxeram importantes contribuições para


o entendimento de como eles percebem o entrelaçamento entre a identidade
do policial e os atuais valores que regem a sociedade.

170
Em uma conversa, um desses policiais operacionais disse que procurou
a carreira em uma época em que havia segurança para o seu ir-e-vir cotidiano,
mas que hoje é arriscado exibir a identidade de policial. “Você entrava num
ônibus desarmado. Ia para casa fardado e tranqüilo. Tinha colega até que
dormia. Já vi um colega acordar um outro, dizendo: ‘Cara, acorda aí! Você
está dormindo fardado.’ Hoje, olha a situação que a gente vive!”.
Vários deles consideram que os princípios éticos e morais vêm se
modificando sempre para pior. A educação familiar, escolar e social “está
muito frouxa”. “Não há respeito, não se colocam os limites necessários
para a organização da pessoa e do grupo social”, diz um oficial entrevistado,
no que é seguido por depoimentos de colegas em um grupo focal: “Parece
que nós ficamos fora da realidade. Eu me lembro quando era garoto, aos
10, 12 anos de idade. Se eu parasse numa boca-de-fumo, o próprio marginal
mandava seguir. Dava um cascudo e dizia: ‘Vou falar pro teu pai.’ Hoje
não, as coisas estão bem diferentes. O garoto trabalha com ele!”.
Além do consumismo, os policiais consideram que o valor ‘dinheiro’,
que implica ter coisas, domina de forma generalizada. Dizem eles:

Trabalhava-se naquela época para conseguir as coisas. Se papai e mamãe


não tivessem dinheiro para dar, a gente trabalhava pra conseguir. Hoje não.
Espera-se ganhar dinheiro fácil. (...) Dinheiro, dinheiro! As coisas simples
que não se pode pagar, ninguém quer saber mais: a felicidade, o amor, o
carinho... Isso aí não tem vez, só o dinheiro!

Quanto às famílias, consideram-nas quase sempre destruídas e


disfuncionais, sobretudo nas áreas pobres das periferias urbanas: “Não há
diversão na favela. Garotas de 13, 14 anos têm dois a três filhos e não
sabem quem é o pai. Os meninos na favela estão de barriga grande, cheia
de vermes. E o Estado é ausente”.
Alguns oficiais que manifestaram preocupação com o aumento da
violência e com a falta de assistência eficaz às comunidades mais pobres são
totalmente desesperançados e céticos. Por isso propõem uma saída bastante
cruel para os problemas das populações das periferias e justificam sua visão:

Nós podemos falar porque conhecemos a realidade... Vai ter que tirar esses
aqui, que já estão marginalizados, para você agora salvar essas crianças ali,
que estão nascendo, crescendo. Do jeito que está, só matando gente... Matando

171
esses aí, para poder começar tudo de novo, para as outras crianças crescerem
em paz, entendeu? Porque juntas não vai dar, não! Matar as que já estão
perdidas para salvar as que ainda não se perderam. Esse é que é o dilema!

Portanto, ressaltando uma visão pessimista da realidade, muitos


policiais falam da hipocrisia social quanto ao cumprimento das leis e da
falta de educação cívica. Consideram que há uma situação, um ambiente,
uma cultura da sociedade que imputa os erros de suas próprias condutas à
instituição que quer reprimi-los e corrigi-los. Eis o depoimento de um oficial
operacional: “A lei vale para o outro, para mim não. Quando alguém faz
algo errado contra mim, eu quero a prisão. Mas, quando sou eu quem
faz alguma infração ou cometo delinqüência, digo logo que o policial foi
arbitrário”.
Igualmente, nos depoimentos de outros oficiais operacionais em
grupos focais, foi comum a opinião de que a sociedade é corrupta e truculenta
e os policiais são apenas um de seus reflexos:

Os policiais não vêm de pára-quedas de Marte. Eles são retirados do seio


da sociedade, uma sociedade viciada em corrupção, em falta de educação.
Um menor que cresce na favela vendo os ‘caras’ armados trocarem tiro,
fala: ‘Quero ser policial’. Então, tem uma questão social muito forte [pois
ele quer imitar a repressão que o policial tem de exercer].

Observamos, também, que existe uma interação tensa dos policiais


que fazem a vigilância das ruas com a população. Diz um gestor operacional:
“A população espera o Bob Londrino, mas não se comporta como a
população de Londres”. Esse policial e outros entrevistados em um grupo
focal reiteraram que o comportamento do policial espelha a receptividade
que encontra na sociedade, referindo-se tanto à corrupção como à violência
que cerceia direitos individuais e coletivos dos cidadãos.
O seguinte relato de uma praça resume as principais idéias
manifestadas pelos que têm uma visão social pessimista. Aqui, os temas
sociedade, mídia, reconhecimento e corrupção enredam-se em um sistema
de acusações em que as noções de desvio – e as reações suscitadas nos
outros (Becker, 1994) – evidenciam o deslizamento do rótulo de ‘Polícia
corrupta’ para o de ‘sociedade corrupta’ e de ‘Estado corrupto’.

172
A sociedade não é bem instruída, bem educada, tem situações em que o
policial age com coerência, age dentro dos padrões, e nós já temos um rótulo.
Nós organizamos uma corrida de crianças, mandamos ofício para divulgar
um evento que é da PM. Eles [a mídia] não vêem. Na verdade, isso não
vende jornal. Então, tem atitudes que a sociedade toma por falta de
informação. (...) O policial militar é extraído da sociedade que também é
corrupta, que também tem problemas. Brasília tem problemas, mas é o policial
que é isso e aquilo.

Em conseqüência, se a sociedade é tão corrupta e truculenta, e se


os policiais nada mais são do que reflexos dos males de seu contexto,
alguns servidores argumentam que os que infringem as leis e desonram a
farda não deveriam ser punidos. Em um comentário enfático, um segundo-
sargento diz:

De um modo geral, não se deve somente punir e excluir policiais com


determinados desvios de conduta, pois este policial com certeza ficará à mercê
do envolvimento com marginais da lei e é possuidor de grande conhecimento.
Os policiais são pessoas comuns, não são super-homens, e têm sentimentos.
Devemos valorizar a nossa Polícia, porque ruim com ela, pior sem ela.
Apesar de tudo, é a única parte da segurança pública que ainda funciona, e
é esta Polícia que, mesmo com desvio de conduta e o famoso quebra-galho,
defende essa sociedade podre.

Nas entrevistas, observamos certo mal-estar dos policiais em relação


às organizações não governamentais (ONG), especialmente no caso
daquelas que trabalham com direitos humanos. Segundo os policiais, elas
são incapazes de compreender sua função, assim como as dificuldades de
sua atuação em um clima de tanta violência como no Rio de Janeiro.

Sobretudo em um país como o nosso, em que há gente que ainda passa


fome e trabalho escravo, não se tem muito a almejar de um governo no qual
as ONG só servem para marretar uma classe sofredora como a nossa, que
tem maus funcionários como toda classe trabalhadora, e que é utilizada por
todos e em tudo no que se pode imaginar.

Mas ressaltamos também que, entre cabos e soldados – sobretudo


entre os mais jovens –, muitos não conseguem idealizar a imagem da
repressão ao crime de forma positiva, revelando-se mais influenciados pelo

173
sentido negativo que costuma ser atribuído ao ato de reprimir. Um dos oficiais
lamentou não haver na Polícia “uma consciência de proteção e prevenção”.
Igualmente, damos ênfase a outros aspectos da identidade pela voz
de oficiais que consideram tarefa sua contribuir para a educação da
sociedade. Um gestor administrativo, refletindo sobre seu papel, disse que
os policiais deveriam ser mais ativos e cumprir uma função pedagógica em
sua atuação. Diz: “É preciso despertar no nosso homem que ele é um
educador”. Portanto, a educação deverá ser reflexiva, a partir de exemplos:
“O policial está no sinal, um motorista avança [o sinal] e ele multa. Mas
por que a sociedade faz isso? Por que as pessoas avançam o sinal? Qual é
o envolvimento coletivo nisso? Qual é a consciência coletiva nisso?”.
Outro gestor operacional também considera importante que o policial
saiba que sua função vai além de ‘vigiar e punir’. Para esclarecer suas idéias,
ele cita um exemplo que diz ser comum no convívio com a população:

Por exemplo, uma mãe que diz: ‘Filho, pára de chorar senão eu vou pedir
ao guarda para prender você.’ Aí o policial que ouve isso deveria dizer:
‘Vem cá, garoto, sua mãe não sabe o que diz. Ela tem alguma distorção em
relação ao papel do policial. Você pode chorar à vontade, fazer manha, pedir
o que você quiser, porque quem tem o papel de te educar é ela, para amanhã
eu não ter de te prender porque você está no caminho errado’. E deveria
virar-se para a mãe e dizer: ‘A senhora é a única responsável pela educação
do seu filho. Não deixe a vida educá-lo, porque, quando a vida educa, não
dá muito certo, não’.

Em resumo, os relatos dos policiais militares buscam construir uma


‘apresentação do eu’, em diálogo com os diversos atores da cena que
vivenciam na prestação de serviços e na representação de sua identidade.
São vários os movimentos, as interlocuções, os entendimentos e os conflitos
que suas falas expressam: o dilema pessoal, moral e social de adotar
profissionalmente as condições preconizadas pela corporação; a aceitação
do discurso que interioriza a filosofia institucional, por meio da qual o policial
racionaliza, reinventa e encontra uma forma de atuar diante dos problemas
concretos; os desdobramentos de suas ações para a vida dos familiares e
para sua própria vida; e as perspectivas de retorno em forma de
reconhecimento ou menosprezo por parte da sociedade.

174
As imagens negativas por parte da sociedade constituem um dos
fatores que levam os policiais civis e militares a ocultarem sua identidade
policial. Seus familiares também são alvos de discriminações e ataques, o
que causa transtornos nas interações familiares e comunitárias, como veremos
na última parte deste livro.
Em uma análise mais contextualizada, temos de compreender que a
construção das imagens individuais e da corporação está fortemente associada
a problemas mais profundos de segurança pública. Segundo Ramos e Novo
(2002), tem sido comum a crença de que há um declínio e um
enfraquecimento do poder do Estado para resolver questões sociais, fazendo
com que os atores da segurança pública sejam percebidos mais como
calamitosos do que como resolutivos de problemas. Tal crença, sem dúvida,
contribui para que a imagem desses servidores reflita dimensões mais
negativas do que positivas.
Em síntese, a imagem dos policiais, construída como em um jogo de
espelhos (Gomes, Minayo & Silva, 2003), reflete sentimentos de
desvalorização institucional e de não-reconhecimento social pelo seu trabalho
e, ao mesmo tempo, de serem guardiões da ordem e da boa educação.
Portanto, uma identidade defensiva e também arrogante. A visão negativa
é mais forte entre os policiais operacionais que estão na linha de
enfrentamento da criminalidade.
Não podemos desconsiderar, porém, que entre esses servidores existem
opiniões de que mudanças são possíveis. Tal perspectiva se evidencia com
mais força nos depoimentos dos gestores. Esse é um fato de fundamental
importância porque, seja qual for o tipo de reforma que a corporação deseje
obter para concretizar sua missão – seja da imagem ou de sua estrutura
organizacional –, o papel das lideranças policiais é decisivo. Como bem
lembra Costa (2004: 81), “embora a sociedade civil e a sociedade política
desempenhem papéis importantes, nenhuma reforma policial pode ser
implementada sem o apoio de algumas lideranças policiais”.

175
Parte III

Condições de Saúde
e Risco Profissional
Três expressões são comumente utilizadas quando estudamos os
problemas de saúde de um determinado grupo populacional, como é o caso
dos policiais militares: condições de saúde, situação de saúde e estilo de
vida. Tratados como categorias classificatórias e explicativas do que ocorre
na realidade, esses três termos dizem respeito a uma dinâmica que articula
questões biológicas e sociais, interagindo na produção de uma vida saudável
ou de várias modalidades de adoecimento.
‘Condições de saúde’, mais que um conceito, é uma noção muito forte
da área da saúde pública e da saúde coletiva, usada para definir os elementos
indispensáveis que permitem a uma população ou a um grupo – como é o
caso da corporação policial – ser saudável. Ou seja, está suposto que
determinados fatores ambientais, sociais, políticos e culturais propiciam mais
ou menos oportunidades de desenvolvimento benéfico para o ser humano.
Isso é reconhecido pela nossa Constituição de 1998, em seu artigo 196 do
capítulo “Seguridade Social”: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Logo em seguida, o texto constitucional especifica as ‘condições de
saúde’ como resultantes do acesso ao trabalho em condições dignas, com
amplo conhecimento e controle pelos trabalhadores do processo e do
ambiente de produção; moradia higiênica e digna; educação e informação
plenas; qualidade adequada do ambiente; transporte acessível e seguro;
descanso, lazer e segurança; e possibilidade de participação na organização,
na gestão e no controle dos serviços públicos.
Em síntese, o termo ‘condições de saúde’ traz uma forte carga de
historicidade, uma vez que o padrão de saúde de um povo ou de um grupo

179
corresponde a conquistas obtidas por ele, com meios objetivos e subjetivos.
Berlinguer (1978) denomina “consciência sanitária” ao sentido
transformador das condições de saúde, o que se configura como uma obra
coletiva e dos indivíduos.
Também McKeown e Löwe (1984), estudando a melhoria do padrão
sanitário da população inglesa desde o século XVIII, chamam a atenção para a
força insubstituível das decisões políticas e dos movimentos sociais para que
isso ocorra. E saúde transcende e ultrapassa os limites setoriais, depende
de macro e micropolíticas econômicas, ambientais e sociais e envolve relações
institucionais, interpessoais e subjetivas. Assim, toda vez que estudamos
‘condições de saúde’, estamos nos referindo ao conjunto dos elementos
econômicos, sociais e ambientais no interior do qual nossa vida se desenvolve.
Entre esses elementos, a categoria ‘trabalho’ tem um papel fundamental
como um dos impulsores de realização pessoal, de criação de identidade,
mas também de adoecimento e de sofrimento. Freqüentemente, mesmo
quando amamos o que fazemos, determinados fatores como o grau de risco,
a carga física e emocional ou mesmo o ambiente laboral confluem para
provocar enfermidades ou problemas emocionais. Por essa razão, a terceira
parte deste livro só pode ser compreendida quando vista de forma interativa
com a segunda, que trata das condições de trabalho.
O conceito de ‘situação de saúde’ se refere a como, na prática, as
condições de saúde (sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais)
impactam a vida de determinada população ou indivíduo, no caso os policiais
militares. Quando estudamos a situação de saúde, geralmente tratamos dos
problemas que prenunciam adoecimento e mesmo dos tipos de enfermidades
prevalentes, assim como dos meios para que sejam melhoradas as ‘condições’
que os provocam. Nesta parte, buscaremos mostrar uma síntese da situação
de saúde dos policiais militares, sempre que possível comparando-a com a
dos policiais civis e outras categorias.
Já ‘estilo de vida’ diz respeito a como determinado grupo leva suas
condições existenciais, o que geralmente está diferenciado por classes, por
status social, por profissões, por gênero, por faixas etárias e por outros
elementos, como crenças religiosas. As questões de classe, de profissão e de
gênero são estruturantes.
Como veremos nesta parte, podemos distinguir não só condições,
como problemas de saúde, assim como uma forma peculiar de exercício da

180
profissão, de interação e de cuidados que distinguem os policiais de outras
categorias sociais. Igualmente, dentro da própria corporação policial,
observaremos e daremos realce a subgrupos específicos.
Como o foco deste livro é a questão profissional e como ela influencia
o conjunto da vida, pensar em saúde de policiais militares nos remete às
condições de trabalho, à resistência e ao desgaste físico e mental, assim
como ao risco inerente à profissão. Em diferentes momentos desta análise,
tratamos separadamente de cada um dos assuntos referidos, sempre
sublinhando a natureza interativa e recursiva dos diferentes fatores. Mas
daremos ênfase à saúde física e mental e seu forte vínculo com o risco
profissional compreendido como uma característica constitutiva do trabalho
policial. A interação entre todos os fatores está claramente estabelecida na
fala deste sargento:

O serviço policial ativo causa grande desgaste físico e emocional. Juntando


a falta de investimento e recurso para a sobrevivência do próprio policial,
poderá ocasionar problemas no relacionamento familiar, embora não
justificando o desvio de conduta, como, por exemplo, prática de crimes, entre
outros. Solicito das autoridades uma atenção especial para o seu maior
patrimônio, que é o profissional de Polícia.

181
Profissão de Risco
10
Canção do Bope

Lealdade, destemor, integridade serão os primeiros lemas,


Desta equipe sempre pronta a combater toda a criminalidade.
A qualquer hora, a qualquer preço.
Idealismo como marca de vitória
Com extrema energia combatemos todos os nossos inimigos.
Criminosos declarados em igualdade,
Derrotamos os omissos.
Guerra sem trégua, heróis anônimos
Operações especiais
E o batalhão coeso e unido
Não recua ante a adversidade.
Com ousadia enfrentamos a realidade
Vitória sobre a morte, a nossa glória prometida
E o batalhão coeso e unido
Não recua ante a adversidade
Com ousadia enfrentamos a realidade
Vitória sobre a morte, nossa glória prometida.

Neste capítulo, analisamos a ‘percepção de risco’ e o ‘risco real’ vividos


pelos policiais militares. Ou seja, perguntamo-nos como se configura este
fenômeno, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, vivido no exercício da
profissão, dentro e fora do ambiente de trabalho. A ampliação do foco para o
âmbito exterior à atividade corporativa se deve ao fato de que, por ser elemento
intrínseco da profissão, tanto as situações envolvidas como as representações
que ela cria impregnam o ambiente de trabalho, a pessoa e a instituição.
Iniciamos o estudo com o tema do ‘risco’, exatamente porque ele faz uma
perfeita mediação entre condições de trabalho e condições de vida.

183
Destacamos na entrada do capítulo o hino do Bope, porque este é
um grupo cuja missão precípua é o enfrentamento da criminalidade.
Entendemos que essa unidade pode ser vista como o exemplo real e cabal
da visão sobre riscos por parte dos policiais militares em atividade no Rio
de Janeiro. Diz a letra de seu hino: “equipe pronta a combater a criminalidade
a qualquer preço e a qualquer hora”; “vitória sobre a morte”; “heróis
anônimos que enfrentam a realidade através da ousadia”.
Observamos na pesquisa que essa ousadia que apela ao heroísmo
tem seu contraponto nas fraquezas das subjetividades que se expressam nos
problemas de saúde e emocionais e nas cifras de morte que assustam qualquer
cidadão. A urgência de tratar do tema do ‘risco’ e da ‘vitimização dos
policiais’ também se tornou relevante por causa do aumento acelerado da
criminalidade urbana no país e, sobretudo, em capitais como Rio de Janeiro,
onde a taxa de homicídio atinge 54,6 por cem mil habitantes (Minayo &
Deslandes, 2007).
A literatura atual apresenta alguns conhecimentos estratégicos sobre
a profissão de risco dos policiais, fruto de investigação, entre os quais
citamos os de Muniz e Soares (1998), Soares (1996, 2000), Santos
(1997), Bretas (1997a, 1997b), Holloway (1997), Cerqueira (1994,
1996), Donnici (1990), Adorno e Peralva (1997), Kahn (1997), Lima
(1995) e Amador (1999).
Os policiais militares são aqui tratados como categorias que atuam
sob elevado ‘risco’ epidemiológico e social. O risco epidemiológico diz
respeito à probabilidade de ocorrência de lesões, traumas e mortes e oferece
parâmetros aos policiais quanto à magnitude dos perigos e os períodos e
locais de maior incidência de tais eventos. O risco social, correspondendo
ao significado da escolha profissional, traz, intrinsecamente, o gosto pelo
afrontamento e pela ousadia como opção, e não como destino (Bernstein,
1997; Castiel, 1999; Giddens, 2002; Minayo & Souza, 2003; Minayo,
Souza & Constantino, 2007).
Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de ‘risco’
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e
relacionais para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão
permanentemente expostos e seus espíritos não descansam (Gomes et al.,
2005). A vivência dos ‘riscos’ pode ser constatada nas taxas de mortalidade
e de morbidade por agressões de que os policiais são vítimas, dentro e fora

184
da corporação, muito mais elevadas do que as da população em geral.
Acrescentamos o fato de que no interior da própria instituição todos têm
porte de armas, tornando-se alvos potenciais das agressões uns dos outros.
Esta circunstância é referida por eles quando analisam suas relações no
ambiente de trabalho e mencionam que ali “vivem uma paz armada”.
Muniz (1999), em uma síntese esclarecedora, afirma que em boa
parte das profissões consideradas arriscadas as possibilidades de acidente
de trabalho resultam, principalmente, das falhas técnicas e dos azares
ambientais. No caso da Polícia, os riscos derivam, por excelência, das
interações com os cidadãos. Essas interações apresentam uma significativa
margem de imprevisibilidade, consoante ao que já discutimos em relação à
especificidade do setor de serviços (Meirelles, 2006a, 2006b). O fato de
que o perigo nas atividades ostensivas da Polícia resulte de encontros
circunstanciais leva essa categoria a alimentar uma percepção ampliada da
ameaça que pode, por exemplo, se fazer presente em qualquer situação
cotidiana. De acordo com Pieper e Pieper (1999: 179), “o ser humano,
que possui a virtude cardeal da fortaleza, expõe-se ao perigo da morte por
um bem”. ‘Bem’ que é entendido, por essa categoria de trabalhadores,
como a defesa do cidadão e da ordem pública.

Percepção de Risco
Risco como Probabilidade de Sofrer Agressões e Morte
Ser policial já é em si um risco, na percepção desses trabalhadores.
Nesse sentido, poucas são as diferenças entre os círculos hierárquicos e a
variedade de atividades realizadas pelas diferentes unidades operacionais,
especiais e administrativas. Todos se sentem em enfrentamento e em alerta.
A universalidade da percepção do perigo pode ser entendida com base em
vários aspectos: dentro da corporação, a posição de quem hoje está mais
resguardado pode mudar várias vezes durante a carreira; os policiais hoje
lotados em unidades administrativas dão suporte aos batalhões operacionais,
o que aproxima suas experiências; ao falar de suas ações, os policiais se
referem mais à atividade-fim da unidade do que a sua tarefa específica no
processo de trabalho, ensejando a compreensão do trabalhador coletivo como
experiência; nas relações com a população, a distinção entre policial

185
‘operacional’ ou ‘administrativo’ não é percebida, dá-se visibilidade à missão
principal. Muitos foram os casos observados por nós em que o policial
tinha dificuldade de falar especificamente da sua unidade e se reportava à
condição genérica de ‘ser policial’.
Quando consultados sobre o exercício de sua profissão, os policiais
operacionais reportam-se imediatamente a episódios de confronto e violência.
Na Polícia Militar, soldados e cabos se apresentam como o grupo que mais
intensamente vivencia riscos. Como reforça a fala de um gestor operacional,
“Para o soldado, o risco é a rotina”.
Fizemos uma comparação entre as percepções dos policiais militares e
as dos policiais civis (Souza & Minayo, 2005), como vemos na Tabela 3.
Pudemos constatar na pesquisa realizada com a Polícia Civil que tanto a
freqüência quanto a percepção do risco, apesar de estarem presentes em todos
os setores, foram muito mais elevadas entre os que trabalham em atividades
operacionais, o que corresponde ao nível de exposição das suas atividades.
Com a Polícia Militar ocorreu o mesmo.

Tabela 3 – Distribuição dos policiais civis e militares segundo a percepção de risco em sua
atividade policial*

Polícia Militar Polícia Civil


Risco
n. % n. %

Constante 8.199 81,1 965 69,2

Eventual 1.913 18,9 362 26,0

Não h á risco - - 67 4,8

Total 10.112 100,0 1.394 100,0

* p<0,000

Também levantamos algumas questões sobre a percepção deles a respeito


do risco de suas famílias. Estes dados são apresentados na Tabela 4.

186
Tabela 4 – Distribuição dos policiais civis e militares segundo a percepção de risco para a
família*
Polícia Militar Polícia Civil
Risco
n. % n. %

Constante 4.548 44,2 516 36,9

Eventual 5.198 50,5 762 54,5

Não h á risco 548 5,3 119 8,5

Total 10.294 100,0 1.397 100,0


* p<0,000

Como pode ser visualizado nas duas tabelas anteriores, a percepção


de risco dos membros das duas corporações é quase totalizante para ambas
as categorias. No entanto, ela é ‘absoluta’ para os policiais militares. Essa
percepção totalizante deve ser ressaltada porque os graduados, mesmo os
que atuam em unidades operacionais, exercem quase que exclusivamente
atividades de gestão e de comando. Há, portanto, uma diferença bastante
nítida entre os que planejam as operações (oficiais) e os que as executam
(cabos e soldados, sargentos e subtenentes). Os dados de vitimização
confirmam o quanto tal diferença atinge negativamente os que estão no
ciclo das praças. No entanto, os gestores e oficiais também são tomados
pela percepção absoluta do risco laboral.
Como seria de esperar, os policiais das duas corporações percebem
que a extensão do risco potencial é menor para suas famílias do que para
eles próprios. Porém, nos dois grupos, é forte o sentimento de que, ao
combaterem o crime e promoverem a ordem, também seus entes queridos
ficam permanentemente ameaçados. Existe significância estatística nas
diferenças observadas nos dados: 44,2% dos militares e 36,9% dos civis
afirmaram isso. Vemos que os militares, em maiores proporções, percebem
suas famílias em situação de insegurança.

Risco como Aventura e Ousadia


A percepção e a vivência do risco pelos policiais militares têm também
uma conotação positiva, naquele sentido assinalado por vários autores como

187
Heidegger (1998), Spink (2002), Le Breton (1995) e Muniz (1999),
que o afirmam como o próprio sentido e movimento da existência. Quem
não se arrisca está fadado à morte no sentido real e simbólico. Portanto, os
policiais militares falam sobre ou aludem ao apelo à aventura e à ousadia
que a profissão lhes proporciona. Tal conotação surgiu espontaneamente
no discurso dos cabos e soldados, nas unidades operacionais e no batalhão
operacional especial. A adrenalina produzida pelo inusitado, segundo os
policiais, os ‘vicia’ e os motiva para a ação. Muniz (1999: 191), em seu
estudo “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”, já havia chamado a
atenção para a exaltação da jovialidade na Polícia e para os atributos típicos
entre os que têm de afrontar o perigo. “O espírito aventureiro, o dinamismo,
a canalização das energias pelas ações, o encantamento da superioridade
e a disponibilidade para enfrentar os riscos”, típicos da juventude, fazem
parte do ethos do trabalho operacional. Essas disposições constituem
estratégias para minimizar a percepção do risco como perigo nos momentos
de confronto.
Sobretudo, as praças são, em sua grande maioria, bastante jovens
e, ao narrarem alguns episódios de confronto, parecem de fato se transportar
ao universo virtual dos jogos eletrônicos ou de uma brincadeira tão comum
entre as crianças que se imaginam entre polícia e ladrão: “Às vezes, parece
que não sou eu que estou ali, que é tudo um jogo”, diz um desses rapazes.
Poderíamos supor que esta é também uma estratégia defensiva que busca
negar a dureza do cotidiano, ou seja, vivê-la como uma fantasia, uma
irrealidade, talvez para controlar e se defender do próprio medo.
Bittner (2003: 16) discute a virilidade e o potencial de aventura que
o risco sempre inspirou aos policiais jovens:

O que se requeria dos recrutas eram as virtudes másculas da honestidade,


lealdade, agressividade e coragem visceral. Como compensação, os policiais
recebiam a nobreza do serviço, a oportunidade de contribuir para o
melhoramento da vida e, por fim, mas não menos importante, a promessa
de aventura.

Um dos gestores operacionais entrevistados descreve os dois lados


dessas situações de risco: o do prazer e o do perigo. Diz: “Tem o risco que
[o policial] sofre no dia-a-dia, porque lida com a criminalidade armada
[perigo] e se acostuma com uma coisa chamada adrenalina [prazer]”.

188
Os estudos que realizamos também com policiais civis confirmam que,
sobretudo entre os operacionais, o medo existe, mas a busca por situações
de perigo para sentir o gosto da adrenalina no corpo ultrapassa isso (Minayo
& Souza, 2003). O gestor operacional já citado compara a motivação do
policial para ir ao encontro do perigo com a atitude dos indivíduos que
procuram os esportes radicais.
Os esportes radicais, bem como o uso de drogas lícitas e ilícitas,
também são movidos pelo binômio ‘prazer e perigo’. Esses tipos de atividades
dão margem à instalação de uma compulsão nos sujeitos, levando-os a
quererem sempre repetir o comportamento arriscado e a experimentarem as
sensações que dele provêm. No entanto, cremos que há outra situação mais
próxima e emblemática com a qual podemos comparar os sentimentos de
aventura e ousadia dos policiais militares que amam o enfrentamento. É o
caso da ação dos traficantes de drogas, quase todos muito jovens, contra os
quais a corporação atua fortemente há mais de 25 anos no Rio de Janeiro.
O risco maior de enfrentamento que hoje ocorre na rotina das atividades
dos policiais militares e civis diz respeito a esses delinqüentes que dominam
o comércio varejista de drogas na cidade, fortemente armados e disputando
territórios com seus rivais. Escondidos em locais densamente povoados,
que são verdadeiras cidadelas de difícil acesso, e armados com arsenais
potentes, muitos com idade que beira a adolescência, esses delinqüentes
também têm espírito de aventura e gostam de afrontar a Polícia, sentindo-se
em posição privilegiada. É importante, pois, estender a mesma reflexão
sobre o duplo sentido de ‘risco’ a esses grupos armados, uma vez que o
perigo e o confronto vividos pelos policiais são sempre contra alguém que
os ameaça ou ameaça a sociedade com muita petulância e afoiteza. A mesma
atitude de afrontamento que encontramos nos policiais também os domina,
tornando suas atividades repetidos espetáculos de ousadia e audácia.
É importante tratar dessa situação endêmica de confronto entre
policiais e traficantes, pois o sentido de risco e de risco de morte domina
hegemonicamente a representação da ação policial no Rio de Janeiro. Essa
representação, como vimos, passou a ter um papel identificante totalizante
quando não deveria, uma vez que as atividades corporativas são muitas e
muito mais diversificadas – como relatamos no primeiro capítulo deste livro
– e deveriam confluir para o exercício da missão constitucional: prevenir e
reprimir os crimes que põem em risco a vida social, protegendo a população.

189
Estudo de Constantino (2006) com policiais civis da cidade de
Campos dos Goytacazes (RJ) mostrou que os policiais do interior identificam
a atividade policial com o exercício do confronto armado. O fato de não
vivenciarem tais ações faz com que se sintam ‘menos policiais’ do que os
agentes da capital. É a idéia hegemônica do confronto como missão, que
oferece ao policial em serviço nas ruas da cidade – sobretudo em áreas
conflagradas – a experiência existencial de ter a vida sempre por um fio.
Como Muniz (1999: 185) enfatiza, o cotidiano nos policiais lhes dá “a
oportunidade de participar intensamente das nossas manifestações mais
cômicas e mais dramáticas. Algumas delas chegam a ser ridículas, banais e
monstruosas, mas todas elas são inegavelmente verdadeiras, sentidas, reais”.
Por causa da visão de confronto colada como uma segunda pele a
sua identidade profissional, a pesquisa de campo mostrou que os policiais
operacionais se vêem e são vistos pela instituição como homens que possuem
‘algo mais’ do que seres humanos normais. “Tem algo neles que os faz ir ao
encontro do perigo”, é a opinião de um gestor, confirmada por vários
soldados em serviços operacionais: “No fundo, no fundo, a gente quer ir
para a rua combater” (soldado operacional) ou, ainda, “enfrentar o risco é
uma questão de instinto”. Um terceiro confirma esta visão: “O comandante
fala que nós, deste batalhão, temos um gene a mais”.

A Ironia do Medo e as Estratégias de Resistências


Amador e colaboradores (2002) falam dos superpoderes que a
instituição policial acaba incutindo em seus homens como uma espécie de
estratégia defensiva. Utilizam a categoria “ironia do medo” para se referir
à exclusão do policial que porventura manifeste tal sentimento. Quando
isso ocorre, ele precisa se calar, “a palavra e o sentimento lhe são
interditados”, o que produz como conseqüência um sofrimento psíquico
ainda maior. Mas se ele expuser suas emoções, corre o risco de ser
ridicularizado ou discriminado.

A impossibilidade de expressão do medo no exercício do trabalho


policial parece, por um lado, relacionar-se à prescrição para a coragem
no âmbito da organização prescrita do trabalho policial e, por outro lado,
à possível existência de um código de regras, criado pelo grupo de trabalho,

190
pressupondo o banimento do medo, código ao qual todos devem
subordinar-se. (Amador et al., 2002: 98)

Disso poderíamos inferir que o policial vivencia um conflito entre o


enfrentamento desejado pela instituição e a marca da sua masculinidade e
o medo, sentimento justificado pelas situações reais de risco, mas geralmente
interdito na cultura policial.
Devemos acentuar que alguns dos policiais que entrevistamos
pertencem a batalhões localizados em áreas de forte conflito ou em áreas
fronteiriças nas quais brigam quadrilhas de delinqüentes rivais. Um desses
batalhões serve a um território formado por 94 favelas, onde comunidades
de trabalhadores convivem com traficantes de drogas fortemente armados.
É pela via da capacitação e do treinamento – ou pelo “adestramento”,
segundo os operacionais – que o policial se prepara para missões difíceis.
A idéia de confronto total pode ser inferida do slogan que abre o site de
uma das unidades pesquisadas: “Ver os olhos do inimigo é importante,
porém devemos estar preparados para fazê-los fecharem-se”. Essa frase
forte, que trata o cidadão como um potencial delinqüente ou o delinqüente
como inimigo, subvertendo o sentido de prevenção e proteção, visa apenas
à preparação tática da tropa. Não há cuidados específicos ou apoio
psicológico e nenhuma assistência às intercorrências pós-traumáticas depois
dos confrontos.
Mais do que nos outros grupos, percebemos nos policiais que ocupam
os escalões inferiores uma proximidade maior com estratégias de resistência.
Eles se referem aos companheiros mortos e feridos chamando-os pelos nomes
e apelidos e narram episódios vivenciados coletivamente. Alguns soldados,
cabos e sargentos não conseguiram controlar a emoção quando contavam
sobre os óbitos em confronto:

Aquele dia, para mim, foi um dos meus piores dias de serviço. Nós fomos a
primeira viatura a chegar ao local. Estavam os dois colegas lá, caídos. Morreram
na hora. Brincaram de dar tiro neles. A gente socorreu o B., mas ele já não
tinha movimento. Acho que já estava aleijado. Foi conversando com a gente
na viatura preocupado com o outro colega... E logo depois morreu.

A morte e os ferimentos de parceiros são trazidos pelo grupo de


cabos e soldados como parte da rotina de seu trabalho: “Tem vezes aqui
que a gente perde cinco colegas no mês”. Um dos momentos mais difíceis

191
para esses agentes são as cerimônias fúnebres dos colegas, como um deles
nos narrou:

E passaram algumas horas. Nós que fomos socorrer tivemos de ir para o


enterro! Foi no mesmo dia. Nós tivemos de ir para a Comissão de Enterro.
Você teve de chegar no local, viu o colega cheio de tiro, socorreu o colega,
ficou naquela expectativa de um pelo menos sobreviver, recebeu a notícia de
que o colega não sobreviveu. Depois você recebe a notícia de que tem de ir
para o enterro. Ou seja, mais um sofrimento! Não pelos colegas, mas pelo
sofrimento de você chegar lá e ver a família acabada. E depois tem de voltar
às sete horas da noite para ainda trabalhar até às sete horas da manhã! Você
tem condições psicológicas de trabalhar? Depois de ver um colega teu ali
morto, você sabe que pode ser qualquer um da gente da próxima vez!

Apesar da existência de oficiais psicólogos em alguns batalhões, a


procura por algum tipo de atendimento de apoio não faz parte da cultura
da corporação: ou os policiais têm medo de serem reconhecidos como fracos
ou os problemas atingem camadas existenciais muito profundas, não
consideradas no serviço de atendimento que lhes é oferecido. Em alguns
momentos, os policiais disseram que é preciso passar por seus superiores o
pedido para serem atendidos psicologicamente. Isso significa a possibilidade
recorrente de negativa da chefia ou, quando não, uma tutela sobre a situação
emocional dos que solicitam ajuda. Um dos gestores administrativos afirmou
categoricamente que o atendimento às questões emocionais não constitui
prioridade da instituição.
Embora não seja muito habitual dar vez às expressões emocionais, os
grupos focais permitiram que os policiais falassem de suas dores. Nesse
ambiente, principalmente os que atuam em unidades operacionais e
pertencem ao círculo das praças assumiram o sentimento de medo. Os fatos
com os quais são confrontados são muito fortes: “Vemos colegas serem
executados!”. Por viverem, freqüentemente, situações de elevado risco, os
entrevistados falaram de uma experiência muito particular de proximidade
com a morte que se reatualiza a cada dia. E alguns afirmaram que hoje a
principal missão do policial é “manter-se vivo”. É a lógica da autoproteção
invertendo o mandato da missão constitucional. A maioria desses
operacionais diz que se sente em guerra. Segundo um oficial operacional,
“as armas são de guerra, os apetrechos são de guerra, as fortificações são
de guerra, os comportamentos táticos (dinâmicos e estáticos) são de guerra”.

192
E muitos, conforme o batalhão em que atuam e a escalação que recebem,
consideram seu posto de trabalho como uma verdadeira “sentença de morte”.
Sem a licença cultural para se sentirem fragilizados e temerosos perante
as situações de risco, os policiais criam mecanismos de defesa. Um deles é a
negação: “Não podemos pensar que o medo existe, o risco faz parte do nosso
dia-a-dia”. Outra estratégia é a naturalização: “A gente acostuma com essa
realidade”. Uma terceira forma é a lúdica: “As coisas que acontecem na
favela você transforma numa forma de brincadeira, para tentar descontrair.
Depois, no alojamento, você conversa sobre o que aconteceu, mas num tom
de brincadeira. Acaba rindo, mesmo tendo passado um sufoco ali no momento.
O pessoal tenta contornar de uma maneira engraçada”. Um último jeito é o
próprio enfrentamento cara a cara: “É no próprio combate que a gente resolve
o medo”. Um policial operacional assinala ainda duas outras possibilidades
usadas por eles para amenizar o medo, o uso de drogas e a busca de
experiências místicas: “Ou a cachaça ou a religião”.
Em seus estudos sobre a patologia do trabalho, Dejours (1999) fala
das várias estratégias que citamos como comuns entre outras categorias de
trabalhadores também expostos a elevados riscos. O autor refere-se à negação,
ao escárnio do medo, à supervalorização da virilidade e ao consumo de
substâncias como as formas mais comuns de resistência. Em relação ao
enfrentamento, Le Breton (1995) também assinala a atitude que leva o ser
humano em situações de risco a encará-lo, ao invés de fugir ou evitá-lo.
É uma maneira de o indivíduo lutar contra a angústia, atirando-se em sua
direção, colocando-se corpo a corpo como em desafio. Uma vez enfrentado,
o medo se dissipa e, por alguns instantes, a pessoa tem a sensação de tê-lo
dominado.

Riscos Reais de Vitimização


O risco real, a insegurança pessoal e a violência no exercício do
trabalho vividos pelos policiais militares do Rio de Janeiro se materializam
na vitimização por traumas, lesões ou mortes, ocorridas no exercício da
missão de prevenir crimes e contravenções e de manter a ordem. Dados
da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça
ajudam a estimar numericamente o quanto é grande, importante e complexo
esse objeto do trabalho policial, quando se refere à repressão à criminalidade

193
(Senasp, 2005). Tomamos como exemplo o ano de 2003, para o qual
existem dados consolidados e no qual houve registro de 6.707.955
ocorrências criminais no conjunto dos estados brasileiros e de 2.264.829
nas capitais do país. No estado do Rio de Janeiro, foram notificadas 433.988
ocorrências, das quais 228.243 na capital (Souza & Minayo, 2005). Dados
do Instituto de Segurança Pública, publicados no Diário Oficial, revelam
que no ano de 2006 houve 479.622 registros de ocorrências no estado do
Rio de Janeiro, dos quais 64,7% foram na capital. A taxa de ocorrências
para o estado do Rio de Janeiro, em 2006, foi de 3.759,0 por cem mil
habitantes, 1% maior que no ano anterior. Desse total, a taxa de 956,4 por
cem mil foi de crimes contra a pessoa, menor 6,4% que em 2005 (ISP,
2007). Essa é a matéria com a qual os policiais militares trabalham, visando
ao mesmo tempo prevenir e reprimir a violência e a delinqüência.
A violência social que redunda em mortes é um fenômeno complexo
e difícil de ser definido. No imaginário social, ela discrepa entre a sua
ocorrência real e as sensações que gera. Os sentimentos de medo e de
insegurança levam a confundir crimes reais e percepções subjetivas sobre
riscos de vitimização em proporções inversas. Uma dessas discrepâncias
diz respeito à crença sobre o permanente aumento da delinqüência, o que
às vezes é real e outras, não. A sensação de insegurança crescente no Rio
de Janeiro ocorre, certamente, por vários motivos. Primeiramente, está
relacionada à própria dinâmica da criminalidade na capital, onde existe
elevada concentração tanto da população do estado (40,2%) como dos
registros de delitos (52,6%), o que difere de outras capitais e do país. Por
exemplo, em São Paulo, apenas 27,6% da população do estado e 33% das
ocorrências criminais se concentram na capital. No país como um todo,
esses valores se assemelham mais aos de São Paulo: 22,7% da população e
33,8% dos crimes se localizam nas capitais (Souza & Minayo, 2005).
Apresentamos a seguir uma síntese dos fatores associados à vitimização
dos policiais militares de forma comparativa com os da Polícia Civil.
Constatamos, pelos dados da Tabela 5, que as duas corporações mostram
caracterização distinta do perigo vivido, sendo que, para todos os tipos de
risco, os policiais militares apresentam maiores proporções de vítimas.

194
Tabela 5 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares segundo a vitimização
durante o trabalho policial
Evento Civis Militares

Agressão verbal*** 30,0% 38,6%

Queda*** 11,1% 24,6%

Tentativa de h omicídio*** 10,3% 18,8%

Agressão física* 8,2% 10,3%

Per furação por arma de fogo** 4,2% 6,7%

Lesões por atropelamento ou acidente com veículo motorizado*** 1,7% 6,6%

Acidentes com animais usados no trabalh o policial*** 0,5% 6,4%

Explosão com lesões (combustíveis, bujão de gás, explosivos,


0,7% 5,3%
fogos, bomba, granada etc.)***

Contaminação por bactérias ou outros microorganismos*** 2,7% 5,1%

Queimaduras por fogo ou q uímicas*** 0,3% 3,3%

Per furação por arma branca*** 1,2% 3,3%

Tentativa de suicídio*** 0,3% 2,9%

Assédio ou agressão sexual 2,8% 2,6%

Envenenamento, intoxicação por gases ou fumaça*** 0,4% 1,9%

Acidente por desmoronamento*** 0,3% 1,6%

* p<0,05; ** p<0,005; *** p=0,000

No Gráfico 30, apresentamos as informações dos policiais militares


sobre a exposição a situações de risco em seu cotidiano profissional nos últimos
12 meses anteriores à pesquisa, agora ordenadas de forma crescente e
comparativa entre oficiais e não-oficiais. Em algumas das ocorrências mais
frequentemente relatadas, os não-oficiais predominam como principais vítimas.
São elas: agressão verbal, queda, tentativas de homicídio e agressão física.
Os oficiais e suboficiais reportam mais outros tipos de eventos:
ferimentos por arma branca e de fogo, tentativas de suicídio, contaminação
por bactérias e lesões por atropelamentos. Ressaltamos o elevado número
de policiais que se queixam de agressão verbal (46,4% dos não-oficiais e

195
31,5% entre os oficiais e suboficiais), assim como o elevado número dos
que foram vítimas de tentativas de homicídios entre os que conformam o
círculo das praças. Também é preocupante o número de policiais que
sofreram perfuração por arma de fogo no período de um ano: 7,4% entre
oficiais e suboficiais e 6,5% entre não-oficiais.

Gráfico 30 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo situações vividas


durante o trabalho policial
31,5%
Sofreu agressão verbal* 46,4%
19,3%
Queda** 24,8%
13,4%
Sofreu tentativa de homicídio* 25,4%
10,8%
Sofreu agressão física** 13,2%
7,5%
Perfuração por arma de fogo** 6,7%
Lesões por atropelamento/acidente com 6,1%
veículo motorizado** 6,0%
Contaminação por bactérias/outros 5,8%
microorganismos** 4,9%
4,0%
Explosão com lesões** 4,9%
4,0%
Tentativa de suicídio** 3,4%
3,8%
Perfuração por arma branca** 2,7%
2,4%
Queimaduras por fogo ou químicas 2,2%
2,4%
Acidentes com animais usados 6,1%
no trabalho policial*
2,2%
Envenenamento, intoxicação por 2,6%
gases ou fumaça*
1,4%
Sofreu assédio ou agressão sexual 3,7%
Oficial / Suboficial / Sargentos
1,0% Cabos / Soldados
Acidente por desmoronamento 2,6%

* p<0,001 ** p<0,05

196
Os profissionais que trabalham nas ruas estão, além de mais expostos
à violência do confronto, também mais vulneráveis a problemas de saúde
decorrentes de suas atividades, a exemplo da contaminação por substâncias
poluidoras advindas da exposição ao tráfego de carros, como mostra um
estudo realizado em Lima, Peru, por Mormontoy, Gastañaga e Gonzales
(2004). Nessa pesquisa, os autores verificaram maior exposição e
possibilidade de contaminação por chumbo, presente na gasolina, por
policiais que trabalham com o trânsito do que entre aqueles que realizam
trabalhos em escritórios. Esse fator ainda se agrava no caso de policiais
mulheres, pois as contaminações podem vir a afetar uma possível gravidez.
No Gráfico 31, expomos alguns dados sobre mortalidade dos policiais
militares. Embora haja oscilações, ressaltamos uma tendência ao crescimento
de vitimização em proporções muito mais elevadas do que entre população
em geral. Trabalhamos com os óbitos ocorridos em serviço e nas folgas,
pois, no Rio de Janeiro, ambas as situações se complementam, por duas
circunstâncias: freqüentemente, a folga do policial militar não significa
descanso, pois o percentual dos que trabalham em outra atividade – quase
sempre em empresas e em serviços de segurança – é muito elevado.
O outro motivo é que boa parte dos policiais militares são conhecidos nos
bairros ou nas favelas onde moram, mesmo quando escondem as insígnias
corporativas. Muitos costumam ser vítimas de emboscadas por parte dos
delinqüentes a quem perseguem. Os dados de Souza e Minayo (2005)
que trazemos a seguir ajudam a compreender esse quadro.
Dos 4.518 policiais militares mortos e feridos por todas as causas,
de 2000 a 2004, 56,1% foram vitimados durante as folgas contra 43,9%
em serviço. Nesse período, a ação violenta representou 57,2% das causas
de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu nos últimos dois anos,
passando de 53,2%, em 2002, para 63,7% e 67,1%, em 2003 e 2004,
respectivamente.
Do total de 758 policiais militares mortos, 173 (22,8%) estavam
trabalhando na corporação. Quando vitimados em serviço por ação violenta,
essa proporção é maior (26,4%). Os dados evidenciam um crescimento, desde
o ano de 2002, da proporção de óbitos em serviço por ação violenta, passando
de 75% para 88%. O número de policiais que perderam a vida em serviço foi
2,5 vezes maior em 2004 quando comparado ao do ano de 2000.

197
Gráfico 31 – Taxas(*) de vitimização de policiais militares do estado do Rio de Janeiro
25,00

20,00

15,00

10,00

5,00

0,00
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço 7,20 7,90 9,50 7,30 5,40 5,90 5,10 5,50 6,90 8,10 7,30
Folga 8,30 6,90 10,50 8,30 6,40 6,00 7,70 6,60 6,30 8,90 8,80
Total 15,50 14,80 20,00 15,50 11,80 11,90 12,90 12,10 13,20 17,00 16,10

Fonte: Dados de Muniz & Soares (1998) para os anos de 1994 a 1997 e da Assessoria de Imprensa da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro para os demais anos.
(*) Taxas por 1.000 policiais.

Se, por um lado, cresceu a vitimização dos policiais, por outro também
é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número
de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163, em 2003, e
550.262, em 2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa
aumentaram 4,6%, passando de 5.054 para 5.286. Coincidindo com os
locais de homicídio dos policiais, a maioria dos crimes notificados contra a
população civil aconteceu na Zona Norte da cidade.
Os dados de óbitos por ação violenta indicam que morreram 2,8
vezes mais policiais militares em folga em 2004 do que os que se encontravam
em serviço. No entanto, a importância da circunstância ‘ação violenta’ é
maior entre os que cumpriam a missão policial. Ela representa 83,2% das
causas de óbito dos policiais que morreram em serviço, comparada aos
68,5% das causas dos que morreram enquanto estavam de folga.
Dos 3.760 policiais militares feridos em serviço e em folga, 48,1%,
ou seja, 1.809 deles, estavam em serviço. Desses, 1.054 (58,3%) foram
vitimados em ‘ação violenta’, o que representa uma proporção maior do
que a de 50,5% de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto,
a ação violenta tem crescido proporcionalmente como causa de morte,

198
vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004, ela foi
responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento desses
profissionais. Em 2002, esse percentual havia sido de 39% (Souza &
Minayo, 2005).
No período de 2004 a 2006, os soldados representaram 55,3% dos
policiais militares mortalmente vitimados no Rio de Janeiro: os soldados e
cabos, 31,1% do total; os sargentos, 8%; e os oficiais e suboficiais, os 5,6%
restantes. As circunstâncias da vitimização em serviço foram: dinâmica
criminal (54%), trânsito (19%) e dinâmica conflituosa (21%).
Nas folgas, essas proporções foram de mais ou menos 35%, 29% e
17%, respectivamente. A arma de fogo foi o principal meio usado pelos
agressores para matar os policiais militares em serviço (média de 51%) e
em folga (média 55%). Os acidentes de trânsito responderam por 20,4%
das mortes em serviço e 28,1%, em folga. O local das ocorrências
corresponde às vias públicas (72,7%), ao bairro (6,3%), à vizinhança
(4,6%), à residência (3,5%), ao espaço das próprias instituições policiais e
de segurança (2,8%), aos bares e similares (2,1%) e às instituições
comerciais e financeiras (3,3%).
A seguir, apresentamos os principais fatores de risco relacionados à
morte dos policiais militares (Tabela 6), de forma comparativa com aqueles
relacionados à morte dos policiais civis (Tabela 7). Fizemos esse refinamento
estatístico porque cremos ser importante para os gestores conhecerem os
elementos do contexto laboral desses servidores, que poderiam ser mais
bem gerenciados visando à preservação da sua vida e da sua saúde.
Procuramos comparar as duas corporações, pois em alguns casos os
problemas desencadeadores se sobrepõem.
Para os policiais militares, ressaltamos que os principais fatores de
risco para violência são (Tabela 6): tempo de serviço – policiais com menos
tempo de serviço (até dez anos) têm 2,4 mais riscos no trabalho policial do
que os mais antigos; deficiências auditivas e nevralgias – policiais com
deficiências auditivas correm três vezes mais perigo; nevralgias, 4,1 vezes
mais, indicando sofrimento físico associado a sofrimento mental pela vivência
de situações de violência; condições de trabalho – exercer outra atividade
laboral além do desempenho profissional militar, sem intervalo de descanso,
também se mostrou associado ao vivenciamento de mais riscos.

199
Tabela 6 – Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais militares

Variáveis (n=853) R azões Inter valo de R azões Inter valo de


br utas confiança ajustadas confiança
Per fil

Até 10 anos 2,22 1,17 4,25 2,44 1,18 5,01

Tempo de ser viço De 11 a 20 anos 1,54 0,72 3,31 1,73 0,78 3,86

21 anos ou mais 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Saúde
Sim 3,29 1,85 5,87 2,98 1,61 5,52
Deficiência auditiva
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Sim 5,13 2,56 10,27 4,11 1,97 8,60


Nevralgias/neurites
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Condições de trabalh o

Sempre/muitas vezes 5,24 2,84 9,66 4,98 2,61 9,51


Exerce outra atividade
sem descanso Às vezes/poucas vezes 2,51 1,34 4,71 2,30 1,20 4,42

Nunca 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Para os policiais civis, também três variáveis se mostraram importantes:


treinamento insuficiente – os que não exercem o trabalho para o qual foram
treinados passaram 2,3 vezes mais por situações de violência do que os
pares que exercem ações para as quais estão habilitados; dupla jornada –
entre os que sempre ou muitas vezes realizam outras atividades fora da
corporação sem descanso, o ‘risco sofrido’ é cinco vezes maior do que os
que não trabalham no ‘bico’; para os que exercem atividades extras de vez
em quando, o risco é 2,5 vezes maior; estresse intenso – os que sentem
estresse intenso no trabalho sofrem mais riscos que os outros; esse risco é
3,4 vezes maior para os freqüentemente estressados.
Dois pontos devem ser fortemente ressaltados: tanto os policiais civis
como os militares que têm outra atividade permanente passam por cinco
vezes mais riscos de sofrer violência (para os que têm outras atividades
esporadicamente, esse risco é duas vezes maior do que para os que cumprem
apenas a função estabelecida no serviço público); todas as situações de
exposição e vivência de risco registradas nas duas tabelas anteriores são
muito mais graves para os policiais militares, quando comparadas às dos
policiais civis (Souza, Franco & Meireles, 2007).
200
Em resumo, a partir dos dados epidemiológicos apresentados e do
estudo qualitativo, podemos esclarecer algumas informações sobre a vivência
e a percepção de riscos por parte dos policiais militares. O primeiro ponto é
a reafirmação do sentimento universal de que todos estão expostos por causa
do exercício da profissão. Uma segunda questão é que tanto a sensação como
os riscos reais se manifestam muito mais intensa e claramente entre aqueles
que trabalham no confronto direto, ou seja, os operacionais, principalmente
os cabos e soldados. São estes últimos os que formam o front das operações:
“Somos a isca da Polícia”, dizem eles. Ou ainda, como refere um soldado
que atua nos serviços operacionais: “O nosso trabalho é o próprio risco”.

Tabela 7 – Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais civis

Variáveis (n=475) R azões


R azões Inter valo de Inter valo de
ajustad-
br utas confiança confiança
Per fil as

Até Ensino Médio


1,75 (0,59 5,18) 2,80 (0,98 8,03)
incompleto
Ensino Médio completo/
Escolaridade 2,62 (1,64 4,18) 2,04 (1,21 3,44)
Superior incompleto
Superior completo/
1,00 - 1,000 -
Pós-graduação
Lazer/ Comunidade
B aix a 1,26 (0,47 3,33) 1,33 (0,45 3,91)

Lazer domiciliar Média 2,30 (1,41 3,75) 2,23 (1,31 3,80)

Alta 1,00 - 1,000 -

Condições de trabalh o

Exerce o trabalh o para Não 2,65 (1,59 4,40) 2,29 (1,29 4,04)
o q ual foi treinado
Sim 1,00 - 1,000 -

Sempre/muitas vezes 6,19 (2,98 12,9) 4,96 (2,24 11,0)


Exerce outra atividade
sem descanso Às vezes/poucas vezes 2,54 (1,14 5,66) 2,45 (1,05 5,73)

Nunca 1,00 - 1,000 -

Freq üentemente 4,23 (2,16 8,28) 3,45 (1,60 7,43)


Trabalh o causa estresse
Às vezes 2,16 (1,09 4,29) 2,09 (0,96 4,53)
intenso
R aramente/Nunca 1,00 - 1,000 -

201
Um terceiro ponto diz respeito às diferenças de percepção de risco e
de vivência de risco por parte dos oficiais. As situações perigosas vividas
por eles são mais ocasionais, pois acontecem em momentos especiais em
que são chamados para atividades de confronto – ou, como dizem, de
“combate” – e precisam “tomar decisões arrojadas”. Como a ordenação
corporativa é hierárquica, a eles cabe deliberar. E quando há um mau ou
equivocado planejamento, as chefias colocam em risco não apenas a si
mesmas como a todos os seus subordinados. Um gestor fala emocionado
da quantidade de vidas que já ‘perdeu’ em confronto. E encara essas situações
fatais como um fracasso ou como uma perda pessoal.
“É o bem (a Polícia) contra o mal (os bandidos)”, diz esse gestor,
ele mesmo classificando de “maniqueístas” as freqüentes decisões que
toma e reconhecendo que esse é o absurdo do exercício de sua autoridade.
No entanto, argumenta que é pela via dessa “ideologia maniqueísta” que
o confronto é possível, pois o enfrentamento só se justifica sob a ótica de
um ideal. Caso contrário, diz: “Se você pensar bem, o confronto é um ato
de loucura”.
Um quarto aspecto a ressaltar é a exposição ao risco que todos sofrem
fora do ambiente de trabalho. Quando saem dos quartéis, onde bem ou mal
existe uma proteção e uma salvaguarda institucional, oficiais e não-oficiais
vivem os mesmos perigos sem o suporte corporativo. Isso acontece no trajeto
para casa, nas folgas e no lazer. Estudos realizados por Souza e Minayo
(2005) revelam que, fora do ambiente de trabalho, os policiais são vítimas
de fortes sentimentos de rejeição da população à categoria e da maior
proximidade com delinqüentes que aproveitam para ir à forra. Nessas
situações, o uniforme e os distintivos são dispositivos que facilitam a
vitimização. Como estratégia para lidar com o sentimento de insegurança,
a condição policial acaba por exigir “um estilo de vida” diferenciado.
O policial se sente “vigiado tanto no batalhão quanto fora dele”. E essa
situação pauta a vida desses servidores que, ao mesmo tempo, se sentem
marcados pela identidade corporativa e precisam encontrar estratégias para
ocultá-la como medida de proteção: “Como se isso fosse possível...”. Vários
deles mencionam que carregam em si a “marca da Polícia”: “Está no jeito”,
“Está no olhar”, “A gente reconhece logo quem é policial”.
Do ponto de vista da cultura brasileira, desde os tempos do Império
– quando foi criado – até os dias de hoje, o serviço de segurança pública no

202
Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população, por motivos diversos:
os cidadãos das classes médias e abastadas, que esperariam mais rigor e
vigilância dos pobres ‘criminógenos’, em função da ordem burguesa,
reclamam da insegurança e da ineficiência policial; a população pobre e
moradora dos bairros periféricos sente-se discriminada e maltratada pelos
agentes da lei; e os delinqüentes os tratam como ‘inimigos número um’,
buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo controlá-los e confrontá-los,
escudados exatamente na ‘má fama’ que os acompanha.
A opinião pública negativa faz parte do ônus da atividade policial, e
nossos estudos mostram, acrescentando-se a outros como o de Amador
(1999), um elevado grau de sofrimento no trabalho pela falta de
reconhecimento social. O conceito negativo emitido sobre eles pelas várias
camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e naturaliza a
violência que os vitimiza, muito mais do que a qualquer outro trabalhador
ou cidadão durante a jornada de trabalho ou, como acabamos de mencionar,
nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as ocorrências de
lesões e traumas de que são vítimas.
Fica patente que, comparativamente com a Polícia Civil, a Polícia
Militar sofre mais riscos, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade
elevadíssimas. Esse privilégio negativo pode ser constatado quando tomamos,
por exemplo, dados para o ano 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por
homicídio na população geral foi de 26,7 por cem mil habitantes. Já essa
taxa na população masculina (geralmente a mais vitimizada) foi de 49,7.
Na capital do Rio de Janeiro, as taxas foram mais elevadas que a média do
país tanto para a população geral (49,5 por cem mil) como para a população
masculina (97,6 por cem mil). Na Polícia Militar, em 2004, a taxa de
mortalidade por agressões chegou a 292 por cem mil! Portanto,
comparativamente, a Polícia Militar apresenta uma mortalidade por violência
3,3 vezes maior do que a da população masculina da cidade do Rio de
Janeiro e 6,5 vezes do que a da população geral da cidade. Comparadas
com as do Brasil, as taxas são 5,8 vezes as da população masculina e 10,8
vezes as da população geral (Souza & Minayo, 2005).
Contraditoriamente, os cabos e soldados, os mais vitimizados e
vulneráveis a todos os riscos, são também os que mais fortemente introjetam
a identidade policial. A realidade profissional transmutada em símbolo pode
mesmo dispensar os signos e se efetivar nas atitudes do corpo e da alma,

203
uma vez que, sem ela, esses trabalhadores nem saberiam mais viver.
Inversamente, é essa força da marca entranhada que acaba contribuindo
ainda mais para o sentimento de insegurança e a percepção de risco
permanente. A simbiose da natureza do trabalho com a própria existência
e razão de vida pode ser exemplificada no slogan de um dos batalhões
pesquisados: “O espelho reflete você e você reflete o batalhão”.
Assim, em resumo, a condição policial nivela os cargos e a natureza
da atividade no que tange ao risco, pois todos percebem que “estão no
mesmo barco”, como disse o chefe de um batalhão. A experiência corporativa
de estresse intenso e de perigo sempre ronda o corpo e a alma. E, sobretudo,
os sargentos e soldados mencionam o fortalecimento da união das equipes
de trabalho: “Um precisa proteger o outro”, “É o medo de morrer que
aproxima”, como um efeito-necessidade das situações e condições de risco.

204
Condições de Saúde Física
11
dos Policiais Militares
Todo o nosso trabalho vai afetar a nossa saúde. É a quantidade
de horas excessivas de trabalho, as condições em que nós vamos
executar esse trabalho. Mas acho que aqueles probleminhas
neurológicos que a gente tem não são visíveis. E a gente desenvolve
problemas além dos psicológicos. A grande maioria tem hipertensão.
Eu nunca tive hipertensão na vida e, agora, passei a ter esse problema.
Reflexões de um grupo focal com soldados

Eu entrei para a Polícia que matava e


estou saindo de uma Polícia que morre.
Reflexões de um oficial operacional

A motivação e a consciência de que podemos obter reconhecimento,


gratificação e prazer no trabalho são componentes essenciais da realização
profissional. Em contrapartida, a ‘dor’ remete para o sofrimento no trabalho.
‘Prazer’ e ‘dor’ constituem um par dialético. Nos depoimentos colhidos
dos gestores e dos grupos de oficiais, porém, aparecem muito mais e com
contundência os momentos de desprazer associados notadamente à natureza
do trabalho, à jornada excessiva, à falta de condições adequadas dos
equipamentos e instrumentos, aos problemas de deficiência na assistência à
sua saúde, à insuficiente retribuição financeira e ao sentimento de
desvalorização profissional.
Mesmo sendo os mais bem aquinhoados, muitos oficiais se referem
também a quanto é negativa a rigidez hierárquica que embota a criatividade
e impede a participação dos policiais em decisões que lhes dizem respeito.
Queixam-se muito da distorção da imagem do policial que acreditam ser
projetada para a sociedade e alimentada pela mídia. Ressaltam, ainda, o
fato de que ingerências políticas impedem a continuação de projetos e tornam
descontínuas atividades iniciadas em gestões anteriores.

205
Os gestores relatam alguns problemas físicos que afetam a saúde dos
policiais gerados por danos relacionados à atividade diária de ‘combate ao
narcotráfico’: ferimentos por projéteis de arma de fogo, fraturas que
necessitam de cirurgias, dores musculares e doenças como a conjuntivite ou
a sarna, que adquirem no contato muito próximo com a população.
As praças queixam-se de diversas situações ligadas ao atendimento
médico, às doenças propriamente ditas e ainda sublinham dificuldades
associadas aos processos de consecução de licenças médicas. Relacionam
diretamente a sua condição de saúde ao processo de trabalho: horas de
sono perdidas, estresse diário, permanente risco de vida, má alimentação e
intensidade do trabalho são os itens mais freqüentemente mencionados.
O ‘bico’, que ocupa as horas destinadas ao descanso, também foi apontado
como um fator prejudicial à saúde nos grupos focais dos quais participaram
soldados, cabos e sargentos:

Você perde 24 horas de sono. Você recupera aquele sono? Eu peguei às


sete horas da manhã, vou largar amanhã às sete da manhã. Às oito horas,
eu tenho de estar na segurança. Aí largo às oito da noite, vou para casa e
descanso. Na quarta-feira, tenho uma segurança de novo, das oito da manhã
às oito da noite. Chego em casa para estar às sete horas da manhã aqui na
quinta. E a nossa vida vai por aí.

Não há uma sistematização de atividades voltadas para o preparo


físico. A propósito do apoio do Exército durante o acirramento de conflitos
nas favelas, recordamo-nos de um comentário descrito em matéria jornalística
em que uma jovem – moradora da favela –, ao ser indagada sobre o evento,
imediatamente afirmou que considerava interessante a entrada de militares
do Exército na favela, justificando que esses jovens ostentavam corpos bem
mais esculpidos do que os desarmoniosos corpos de policiais militares. Não
é com a intenção de enfatizar uma perspectiva estética do corpo do policial
que falamos sobre o tema do preparo físico. Buscamos, sim, suscitar algumas
reflexões sobre como deveria ser valorizado, na corporação policial, um
rigoroso planejamento das atividades físicas e nutricionais desse profissional
que tem tarefas tão hercúleas.

206
Avaliação das Condições Físicas:
peso, dieta e atividades
Para avaliar as condições físicas desses servidores, aferimos seu índice
de massa corporal (IMC)7 calculado com base no peso e na altura referidos
por eles. Os oficiais e os suboficiais de maior nível hierárquico predominam
no grupo de obesos (23,4%), quando comparados aos não-oficiais com
menor qualificação profissional (15,6%). Os obesos somados aos que têm
sobrepeso (48,3% e 47,1%, respectivamente) ressaltam um percentual
elevado de servidores acima do peso ideal na corporação. Essas informações
podem ser conferidas no Gráfico 32.
Os dados de sobrepeso dos policiais militares são superiores aos da
população brasileira, medidos na Pesquisa de Orçamentos Familiares do
IBGE em parceria com o Ministério da Saúde (2003), segundo a qual
40,6% da população adulta brasileira está com excesso de massa corporal.

Gráfico 32 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o índice de massa


corporal

1,7%
Abaixo do peso
2,2%

27,8%
Normal
33,9%

47,1%
Sobrepeso
48,3%

23,4%
Obeso
15,6%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

7
IMC = peso dividido pela estatura elevada ao quadrado. De acordo com o resultado,
são estabelecidas quatro categorias: baixo peso (<20 kg/m2), normal (20-24 kg/m2),
sobrepeso: (25-29 kg/m2) e obesidade (>=30 kg/m2).

207
Embora os obesos estejam distribuídos entre policiais dos setores
administrativos e operacionais, 24% destes últimos (representados por
oficiais, suboficiais e sargentos) estão acima do peso, ressaltando um
percentual mais elevado que os 21,8% do mesmo grupo do setor
administrativo, 16,9% de cabos e soldados administrativos e 15,4% dos
operacionais.
O IMC dos policiais militares é superior ao encontrado entre os
civis, dos quais 17,5% apresentam-se obesos e 41,7% têm sobrepeso.
A obesidade constitui relevante fator de risco que se associa à morte por
hipertensão e ao aumento do colesterol e do açúcar sangüíneo. O excesso
de peso decorre de vários fatores, entre os quais a alimentação hipercalórica
e hiperlipídica.
A ingestão de gordura foi processada como uma variável contínua,
atribuindo-se a cada alimento uma pontuação que variou de zero (não-
ingestão de alimentos gordurosos e elevada ingestão de alimentos saudáveis
– verduras, frutas e legumes) a três (elevado consumo de alimentos
gordurosos e não-ingestão de alimentos saudáveis). Depois, foi construído
um indicador categórico de alimentação, considerando-se baixo consumo
de gordura (somatório <=15 pontos), médio consumo (>15 a <=20
pontos) e alto consumo (>20 pontos).
Policiais militares, especialmente os cabos e soldados (Gráfico 33),
informam consumo semanal elevado de doces, alimentos gordurosos,
industrializados e com alto teor de sal, tais como carnes salgadas (bacalhau,
charque, carne-seca, carne-de-sol, paio, toucinho, costela etc.), produtos
industrializados (enlatados, conservas, sucos engarrafados, sucos
desidratados, sopas desidratadas, produtos em vidros etc.), embutidos
(lingüiça, salsicha, fiambre, presunto, mortadela, etc.); frituras; manteiga;
carne de porco (pernil, carrê, costeleta, entre outros), de carneiro ou de
cabra e de vaca; refrigerantes não dietéticos; balas, doces, geléias, bombons
ou chocolate; açúcar, mel ou melaço usados como adoçantes no café, chá,
suco etc.; ovos (crus, cozidos, fritos, poché, entre outros). Associada à
alimentação não balanceada, os entrevistados informaram reduzidíssima
ingestão de verduras, legumes e frutas.
Os oficiais, suboficiais e sargentos têm consumo um pouco mais
balanceado, com menos gorduras, doces e produtos industrializados e
maior ingestão de legumes e verduras. Por sua vez, os cabos e soldados,

208
administrativos e operacionais, predominam entre os que têm alto consumo
de substâncias ricas em gorduras e açúcares, o que certamente se deve,
entre outros motivos, ao baixo poder aquisitivo para desfrutar de uma
ingesta adequada.

Gráfico 33 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o consumo alimentar


de gordura*

28,0%
Baixo
20,5%

33,8%
Médio
32,9%

38,1%
Alto
46,6%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p<0,000

O excesso de peso também pode ser compreendido em função do


baixo nível de atividade física, que configura um estilo de vida sedentário.
Perguntamos aos policiais sobre a prática regular de atividades físicas e
sobre seu condicionamento visando à saúde ou à estética, por pelo menos
vinte minutos por dia. De forma geral, vemos no Gráfico 34 que metade
dos policiais não pratica atividades físicas ou o fazem esporadicamente (três
vezes por mês a poucas vezes no ano). Entre os que se exercitam, oficiais,
suboficiais e sargentos se destacam, por praticarem exercícios quatro
ou mais vezes por semana, e os cabos e soldados apresentam uma freqüência
mais baixa: de uma a três vezes por semana.

209
Gráfico 34 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a prática de atividades
físicas*

Quatro ou mais 10,2%


vezes por semana 8,4%

Uma a três vezes 38,0%


por semana 40,7%

25,9%
Três vezes por mês a
poucas vezes por ano 25,3%

Não pratica 25,8%


atividade física 25,6%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p<0,001

Toda a corporação militar, de forma geral, apresenta elevados fatores


de risco, como alimentação não balanceada, obesidade e reduzida atividade
física. Os oficiais, suboficiais e sargentos têm mais peso corporal, embora
relatem uma dieta um pouco mais equilibrada e mais atividade física do que
os cabos e soldados. Esse quadro deve estar relacionado à idade mais elevada
dos profissionais superiores na hierarquia. Os indicadores, portanto,
demonstram o grau de vulnerabilidade ainda maior para os não-oficiais à
medida que envelhecem.
Levando em conta o setor de trabalho, no grupo administrativo, oficiais,
suboficiais e sargentos sobressaem por realizar mais freqüentemente atividades
físicas do que os cabos e soldados. No setor operacional, ocorre o inverso.
Os policiais militares, se comparados aos policiais civis do Rio de
Janeiro, são menos sedentários: entre estes últimos, 63,7% não realizam
exercícios ou o fazem de forma esporádica.
Os entrevistados, tanto oficiais quanto os subalternos, apresentam
depoimentos que evidenciam a falta de planejamento voltado para o preparo
físico. Suas palavras ressaltam que haveria possibilidade de investir nesse
ponto, caso se organizassem melhor.

210
Atividade física não tem. A gente desempenha cada um a sua função
dentro do serviço que faz. (...) Agora, na atual administração, no novo
comando que veio pra cá, tem uma atividade meio pequena dentro do quartel,
com opção para dois dias. (...) Nós, que trabalhamos internamente, temos
aquele horário integral das oito às quatro, às terças e quintas-feiras. É um
período que daria para fazer uma educação física.

Em relato de estudo realizado em uma cidade do interior do estado


do Rio de Janeiro, Constantino (2006: 90) assinala que:

a prática regular de atividades físicas, visando a melhorar a saúde, o


condicionamento físico ou para fins estéticos durante vinte minutos de cada
vez, foi mais destacada pelos policiais de Campos dos Goytacazes, talvez
pelo fato de serem mais jovens. No entanto, é bom notar que 54,7% deles
já se encontravam com sobrepeso em 2006.

Os policiais militares ressaltaram que seu trabalho ostensivo nas ruas é


um forte empecilho à prática de exercício: “Se for feita uma avaliação com a
totalidade de policiais que trabalham na rua, vamos ver que eles não têm
tempo. Eu acredito que mais de 50% não têm tempo porque trabalham muito”.
Embora não tenhamos feito qualquer avaliação clínica, nem realizado
exames laboratoriais, as condições de saúde física de muitos policiais
militares, do ponto de vista do ‘estilo de vida’, podem ser consideradas
problemáticas, como indicam as informações a seguir.
Perguntamos a esses servidores se haviam sido informados por algum
médico ou outro profissional da área da saúde a respeito de seus níveis de
colesterol. Encontramos 32,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 17%
dos cabos e soldados (p=000) com perfil de risco, ou seja, taxas elevadas de
colesterol. Entre os policiais civis, 31% apresentaram níveis altos de colesterol.

Problemas de Saúde mais Freqüentes


Elevada massa corporal, sedentarismo, alimentação precária e estresse
vivido no trabalho tendem a propiciar o surgimento de vários problemas de
saúde. A freqüência desses agravos referidos pelos policiais nos últimos 12
meses anteriores à pesquisa pode ser constatada no Gráfico 35, organizado
de forma decrescente. Apenas as questões com freqüência superior a 10%
estão colocadas neste gráfico.
211
Gráfico 35 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo os problemas de
saúde mais freqüentes
Defeito da visão (miopia, astigmatismo, 43,0%
vista cansada etc. 24,6%
Freqüentes dores no pescoço, 37,4%
nas costas ou na coluna* 40,8%
32,2%
Dores de cabeça freqüentes / enxaquecas* 37,1%
Deficiência auditiva em um ou ambos os ouvidos* 27,5%
14,3%
Hipertensão arterial* 25,0%
11,3%
21,9%
Torção ou luxação de articulação 22,7%
21,6%
Rinite alérgica* 16,7%
Sinusite* 19,9%
25,8%
Alergia de pele, dermatite alérgica, urticária* 15,1%
16,8%
15,0%
Gastrite crônica* 8,9%
Tumor, cisto ou outro problema 14,4%
de útero ou ovário** 11,7%
Dengue* 13,9%
9,3%
12,2%
Constipação freqüente* 10,3%
11,9%
Artrite ou qualquer outro tipo de reumatismo* 7,9%
Indigestão freqüente* 11,7%
9,8%
Hérnia de disco* 11,5%
6,3%
10,7%
Cálculos renais* 8,0%
10,4% Oficial / Suboficial / Sargentos
Bursite* 8,7%
Cabos / Soldados

* p<=0,001 ** p<0,05

Entre os oficiais, suboficiais e sargentos, as maiores queixas se referem


à deficiência visual e auditiva, à hipertensão arterial, à rinite alérgica, ao cálculo
renal, à dengue, aos problemas digestivos (indigestão e constipação freqüentes
e gastrite crônica, agravos estes associados a dietas inadequadas e a estressores
ambientais e profissionais), a problemas reumatológicos (artrites e bursites) e
à hérnia de disco. As mulheres oficiais e suboficiais se queixam mais de
aparecimento de tumores ou problemas de útero ou de ovário,
comparativamente às não-oficiais. Apenas alergias com manifestações na pele,
sinusites e dores de cabeça e pescoço são mais relatadas pelos cabos e soldados.

212
Diversos outros problemas de saúde foram avaliados na pesquisa,
mas não estão apresentados neste livro por terem sido mencionados por
menos de 10% dos policiais. Merece atenção o fato de que muitas doenças
foram relatadas pelos oficiais, suboficiais e sargentos em proporções maiores
do que as relatadas por cabos e soldados. Um exemplo é o diabetes,
informado por 8% dos primeiros e 2% dos últimos. Talvez haja nessa
diferença a influência da idade como fator preponderante, o que revelaria a
tendência de acumulação de agravos com o passar dos anos. O estudo de
Gershon, Lin e Xianbin (2002) avança na discussão das especificidades
dos agravos à saúde dos policiais ressaltando a importância do estresse
cumulativo de cunho laboral. Por meio de uma pesquisa com policiais
americanos acima de 50 anos, esses autores mostram efeitos associados que
se manifestam em comportamentos de inadequação, como alcoolismo,
jogatina, comportamento agressivo, maior exposição a acidentes, ansiedade,
insônia, hipervigilância, sintomas de estresse pós-traumático, episódios de
explosão emocional e dores crônicas. Tudo isso converge para o
envelhecimento precoce.
Os policiais civis, comparados aos militares, relatam mais dores no
pescoço, nas costas ou na coluna, problemas de visão, reumatológicos e
intestinais.

Lesões e Incapacitações
As condições de risco que os policiais vivenciam se manifestam na
freqüência e nos tipos de lesões físicas permanentes que apresentam. No
total, 21,3% dos oficiais e 12,7% dos não-oficiais (p. 000) atualmente têm
pelo menos um tipo de lesão física permanente (independentemente de
estarem inseridos no setor administrativo ou operacional). As mais comuns
são as deformidades de membros inferiores e superiores. Todas as lesões
referidas predominam entre os oficiais e suboficiais, com exceção da
amputação de dedos ou membros, presente igualmente nos dois grupos,
independentemente da hierarquia profissional, conforme demonstrado no
Gráfico 36.

213
Gráfico 36 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a presença de
lesões permanentes
Deformidade permanente ou rigidez 10,3%
constante de pé, perna ou coluna* 6,4%
9,3%
Outra incapacidade* 2,8%
Deformidade permanente ou rigidez 6,6%
constante de dedo, mão ou braço(2) 4,9%
3,0%
Incapacidade para reter fezes ou urina*
1,2%
2,5%
Paralisia permanente de qualquer tipo*
1,5%
1,8%
Dedo ou membro amputado
1,5%
1,3%
Seio, rim ou pulmão retirado** 1,0%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p<=0,001 ** p<0,05

Tabela 8 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares segundo os tipos de


lesões físicas permanentes
Tipos de lesões físicas permanentes Civil Militar
Deformidade permanente ou rigidez constante de pé, perna ou coluna*** 3,4% 7,7%
Deformidade permanente ou rigidez constante de dedo, mão ou braço* 3,9% 5,2%
Paralisia permanente de q ualq uer tipo** 0,8% 2,0%
Dedo ou membro amputado** 0,4% 1,5%
Incapacidade para reter fezes ou urina** 0,3% 1,4%
Seio, rim ou pulmão retirado* 0,4% 1,1%
Outra incapacidade*** 1,5% 6,5%

* p<0,05 ** p<0,005 *** p=0,000

Do ponto de vista da relação entre saúde e atividades profissionais,


assinalamos que 10,3% de oficiais, suboficiais e sargentos têm deformidade
permanente em membros inferiores e na coluna e 9,3% em membros
superiores. Esses percentuais são muito elevados se comparados aos da
Polícia Civil (Minayo & Souza, 2003).

214
Quando comparamos a Polícia Militar com a Civil em relação a
todas as lesões apresentadas na Tabela 8, verificamos que proporcionalmente
há mais pessoas com lesões permanentes entre os primeiros.
Tentamos saber se as lesões permanentes tinham a ver com o trabalho
policial. Constatamos que existe essa associação para 17,7% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e para 9,7% dos soldados e cabos (p=000). Também
observamos que 21,2% dos primeiros e 16,9% dos segundos relataram
incapacidades temporárias decorrentes da atividade laboral. Tanto no setor
administrativo quanto no operacional, há predominância dos oficiais.
Comparados aos policiais civis, os policiais militares sofrem muito mais
lesões e traumas, conforme já demonstramos no capítulo sobre ‘riscos
percebidos e riscos vividos’

215
Prazer, Estresse e Sofrimento Mental
12
Todo policial sofre de fadiga, estresse,
e não tem nenhum tipo de acompanhamento.
Se ficarmos doentes, os médicos do Hospital da Polícia
nos tratam como um qualquer e falam que não têm
autonomia para nos dispensar.
Fica tudo a cargo do oficial de dia do batalhão,
que não é médico. É ele quem decide se vamos ou não
para casa. Se ele achar que não, ficamos jogados
no batalhão sem qualquer tipo de conforto,
alojamento ou local de repouso.
Precisamos muito de qualquer tipo de ajuda.
Depoimento de um soldado

“Precisamos muito de qualquer tipo de ajuda.” Esta é uma frase


ouvida freqüentemente. Diversos estudos internacionais e nacionais têm
sido dedicados ao tema que resumimos na palavra ‘estresse’ na carreira do
policial. No caso dos policiais militares do Rio de Janeiro, esse é o problema
mais citado por eles como o que afeta e influencia sua saúde mental. O uso
do termo por eles corresponde ao que teoricamente chamamos de ‘estressores
psicossociais’, ou seja, a valores e circunstâncias do ambiente em que o
indivíduo está inserido, capazes de perturbar seu comportamento normal
ou exacerbar um transtorno psíquico. No entanto, a reflexão que fazemos
neste capítulo envolve um campo semântico bem maior, em que circulam
termos como ‘sofrimento psíquico’, ‘transtornos mentais menores’ e ‘estresse
pós-traumático’, todos eles bastante estudados pela psicologia do trabalho.
O termo ‘transtornos psiquiátricos menores’ é usado para designar
vários tipos de sintomas que traduzem sofrimento. Neste capítulo,
apresentamos resultados da aplicação de uma escala que utiliza essa

217
terminologia. Mas também fazemos uso, para análise e compreensão da
situação, de estudos de fundamentação freudiana, como o de Brant e Minayo-
Gomez (2005), segundo os quais o termo ‘sofrimento’ se relaciona com o
perigo e apresenta várias outras manifestações. É o caso da ‘ansiedade’,
que descreve um estado particular de espera ou preparação para uma
situação arriscada, ainda que desconhecida; do ‘temor’, que exige um objeto
definido do qual tenhamos receio; e do ‘susto’, que ocorre quando a pessoa
se depara com um perigo sem estar preparada para enfrentá-lo. Esses autores
entendem que o sofrimento se configura como uma reação, uma manifestação
da insistência em viver sob circunstâncias que, na maioria das vezes, não
são favoráveis. A vida, nesse sentido, é árdua e proporciona sofrimentos
diversos, decepções e tarefas quase impossíveis.
A reflexão de Brant e Minayo-Gomez contribui para entendermos a
situação dos policiais, pois suas falas e expressões revelam um conjunto de
situações e reações contraditórias que relataremos a seguir. Os autores ressaltam:

É importante reconhecer que o sofrimento não tem uma manifestação única


para todos os indivíduos de uma mesma família, cultura ou período histórico.
O que é sofrimento para um, não é, necessariamente, para outro, mesmo quando
submetidos às mesmas condições ambientais adversas. Ou ainda, aquilo que é
sofrimento para alguém, pode ser prazer para outro e vice-versa. Um acontecimento,
como algo capaz de provocar um espanto, em um determinado momento pode
significar sofrimento; em outro, pode ser vivenciado como satisfação. Resta ainda
lembrar que no sofrimento é possível encontrar uma mesclagem de prazer e dor,
simultaneamente. (Brant & Minayo-Gomez, 2004: 215)

O chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept) é uma


manifestação intensa de ansiedade precipitada por um trauma. O traço
essencial desse transtorno é que seu desenvolvimento está ligado a um
evento traumático de dimensão extrema. Uma fração significativa dos
sobreviventes de experiências traumáticas desenvolve uma constelação
aguda de sintomas de Tept, que pode ser dividida em três grupos:
revivescência do trauma, esquiva ou entorpecimento emocional e
hiperestimulação autonômica. O Tept é diagnosticado se esses sintomas
persistirem por quatro semanas após a ocorrência do trauma e se redundarem
em comprometimento social e ocupacional significativos (Figueira &
Mendlowicz, 2003). Hoje, estudos baseados na prática clínica têm mostrado
que, em lugar de um transtorno de estresse pós-traumático, de etiologia bem

218
definida, muitos indivíduos – inclusive os que estão em situação de guerra –
desenvolvem uma forma de ‘alerta permanente’ que, ao mesmo tempo, provoca
fadiga e é proteção diante do perigo.
Já o estresse ocupacional pode ser definido como um processo em
que o indivíduo percebe demandas do trabalho como estressoras, as quais,
ao excederem sua habilidade de enfrentamento, provocam-lhe reações
negativas. Segundo Paschoal e Tamayo (2004) apud Jex (1998), as
definições de estresse ocupacional dividem-se pela ênfase que conferem a
três aspectos: aos estímulos estressores, ou seja, aos estímulos do ambiente
de trabalho que exigem respostas adaptativas e excedem a habilidade de
enfrentamento por parte dos trabalhadores (coping)8 – estes estímulos são
comumente chamados de estressores organizacionais; às respostas aos eventos
estressores, ou seja, às reações psicológicas, fisiológicas e comportamentais
dos indivíduos expostos a fatores que excedam sua habilidade de
enfrentamento; aos estímulos estressores-respostas, quer dizer, à compreensão
do processo geral e das situações de trabalho em que as demandas têm
impacto sobre os trabalhadores. Essa classificação de Jex (1998) visa a
mostrar que existem, sim, estressores vinculados à organização e aos
contextos, como veremos neste estudo. No entanto, para que o estresse
produza sofrimento e adoecimento, é necessário que a pessoa perceba e
avalie os eventos como estressores. Isso significa que fatores cognitivos têm
um papel central no processo que ocorre entre os estímulos e as respostas do
indivíduo. A ocorrência de um evento potencialmente estressor em uma
organização não quer dizer que ele será percebido da mesma forma por
todos os seus membros, conforme veremos aqui.
Nas teorias que concebem o estresse como categoria mediadora entre
o trabalho e a saúde, há uma grande preocupação com a doença
cardiovascular, por um lado, e, por outro, com o esgotamento e o burnout,9

8
Coping é um termo utilizado para descrever o conjunto de estratégias utilizadas pelas
pessoas para se adequarem às circunstâncias adversas e estressantes.
9
Burnout é o nome dado a uma síndrome desenvolvida por trabalhadores por causa do
estresse no trabalho. Atinge, sobretudo, os do setor de serviços. Seus sintomas são: exaustão
emocional, diminuição do sentimento de realização pessoal e despersonalização. Os
trabalhadores com burnout vivem sob o sentimento de fadiga profunda, redução dos recursos
emocionais para fazer face às dificuldades, percepção de deterioração da autocompetência,
ceticismo, insensibilidade e despreocupação com as pessoas (Borges et al., 2002).

219
sendo ambos manifestações diretamente vinculadas ao fenômeno. Entre os
diversos modelos teóricos que assumem esta linha interpretativa, o de Jones
e Fletcher (1996) centra-se no par ‘demandas versus possibilidade de
tomada de decisão’, segundo o qual situações de trabalho em que existam
grandes demandas e estreita margem para o trabalhador atuar e decidir
podem levá-lo ao esgotamento. Ao contrário, alto nível de demanda
combinado com ampla possibilidade de decisão e atuação induzem os
funcionários a menores taxas de esgotamento.
Muitos autores vêm propondo definições mais abrangentes de estresse
laboral. Para Beehr (1998), por exemplo, esse tipo de fenômeno é tão
complexo que não deveria ser tratado como uma variável, mas como uma
área de estudo e prática que se preocupasse com diversas variáveis
interligadas, tais como estímulos do ambiente de trabalho e respostas não
saudáveis de pessoas expostas a eles.
Glowinkowski e Cooper (1987) falam de um conjunto de estressores
que se referem à repetição de tarefas, a pressões de tempo e à sobrecarga.
A sobrecarga de trabalho tem recebido considerável atenção dos
pesquisadores. Esse estressor pode ser quantitativo e qualitativo. A sobrecarga
quantitativa diz respeito ao número excessivo de tarefas além da
disponibilidade do trabalhador. A sobrecarga qualitativa refere-se à
dificuldade do trabalho e ocorre quando as demandas superam as
habilidades e aptidões de quem deve realizá-lo.
Outra categoria de estressores diz respeito ao relacionamento
interpessoal no trabalho entre colegas de mesmo nível hierárquico, superiores,
subordinados e usuários ou clientes. Quando as interações resultam em
conflitos não resolvidos, costumam gerar estresse (Glowinkowski & Cooper,
1987; Jex, 1998). Glowinkowski e Cooper (1987) destacam ainda aspectos
relacionados à falta de estabilidade no trabalho, ao medo de obsolescência
diante das mudanças tecnológicas e às poucas perspectivas de promoções e
crescimento na carreira.
Conforme já foi ressaltado, um indivíduo pode reagir aos estressores
organizacionais de forma diferente de outros e existe uma diversidade de
respostas psicológicas, fisiológicas e comportamentais negativas e positivas.
Geralmente, as reações associadas a estressores são de natureza emocional.
Cooper e Cartwright (2001) comentam que, no futuro, o estudo do estresse
no trabalho poderá ser substituído pelo estudo das emoções no trabalho.

220
Muitas respostas psicológicas enfocadas nas investigações sobre estresse
ocupacional realçam o papel negativo da insatisfação, da ansiedade e da
depressão (Paschoal & Tamayo, 2004; Tamayo et al., 2002). Sobretudo, a
falta de possibilidade de expressar o sofrimento (Brant & Minayo-Gomez,
2005) acaba entrando em sinergia com várias formas de adoecimento. Problemas
gastrintestinais, disfunções cardíacas, insônia e irritação, por exemplo, têm sido
assinalados como conseqüências de estressores organizacionais ou estão
vinculados a respostas pessoais a condições adversas de trabalho, como informam
Jones e Kinman (2001) e Kahn e Byosiere (1992).
No caso do estresse laboral nos policiais, mesmo considerando as
diferenciações das experiências dessa categoria nos âmbitos nacionais e
internacionais, podemos observar algumas questões comuns apresentadas
por pesquisas. Por exemplo, um dos aspectos assinalados por Brooks e
Piquero (1998) diz respeito à relação entre tamanho e estilo dos
departamentos policiais e o estresse vivido pelos seus componentes. Esses
autores chamam a atenção, também, para outros fatores correlacionados,
como é o caso do estado civil – os casados apresentam-se mais estressados
do que os solteiros –, etnia e gênero. Em suas conclusões, Brooks e Piquero
(1998) afirmam que o estresse surge, sobretudo, na metade da carreira do
policial, e os dados de nossa pesquisa confirmam essa observação. No caso
dos policiais militares do Rio de Janeiro, de fato o tamanho dos
departamentos não desempenha importante papel na compreensão do seu
estresse, pelo menos este não foi um problema citado pelos agentes.
Em nossas análises, compreendemos que o estresse do profissional
policial tem relação, sobretudo, com a organização hierárquica que faz
pesar muito sobre as chefias decisões categóricas e tira dos subordinados a
possibilidade de criar e decidir. Mas tem relação também com condições
objetivas e subjetivas insatisfatórias de realização do trabalho, com
sentimentos de falta de reconhecimento social e, obviamente, com a
personalidade de cada policial que vive diferentemente as experiências de
prazer e de ansiedade.
Ressaltamos, ainda, que o estresse não expressa somente um efeito
da prática policial. Pode ser considerado, contraditoriamente, um elemento
protetor, uma vez que desencadeia, rapidamente, uma ação reativa e,
portanto, benfazeja. Neste caso, muitos autores utilizam o termo ‘estresse’
para se referirem ao estresse bom, positivo e criativo.

221
Estresse e Estado de Alerta Permanente
Oficiais e praças apresentam fatores desencadeantes diferenciados
de estresse: enquanto o estresse pós-traumático aparece de maneira recorrente
na fala dos policiais da tropa (cabos e soldados), os oficiais comentam
sobre um estresse continuado e persistente, decorrente da cobrança da
Secretaria de Segurança, da mídia e das atividades de planejamento das
ações. Relatam que têm uma sensação constante de que nunca alcançam o
que se espera deles, sugerindo, da parte de muitos, uma espécie de burnout.
A pressão interna e externa que, principalmente, os policiais dos batalhões
especiais sofrem, também foi mencionada como fator que afeta sua saúde
tanto física quanto mental. Assim se pronuncia um oficial do Bope:

O policial não pode ter erro. Pelo adestramento que o Bope recebe, com
certeza não podemos ter falhas. E estamos sujeitos a falhas. Existem problemas
como em qualquer outra instituição, existem dificuldades, deficiências. Mas
são pessoas que, mesmo com essas faltas, fazem o que devem fazer. Todas estão
comprometidas com a missão. E o policial sente isso: ‘Só me cobram, só me
exigem!’ É um regime rígido, somos regidos por um estatuto, por uma disciplina.
Isso, na cabeça da pessoa, é complicado. Pode levar à depressão, irritabilidade,
hipertensão, gastrite, cefaléia... E não tem Neosaldina que dê jeito.

Um gestor operacional correlaciona o estresse vivido pelos batalhões à


“paranóia”. Segundo esse chefe, trata-se de um sentimento que vai sendo
construído ao longo do contato direto do policial com os delinqüentes em áreas
de risco: “Na boa gíria, é aquela paranóia de que tem sempre alguém querendo
atingi-lo, sempre tem alguém o perseguindo, e ele [policial] tem de estar sempre
muito atento. O policial não consegue se desligar, tem de redobrar a atenção”.
A mesma situação é narrada por outro comandante de batalhão que
está há vinte anos na corporação:

Eu não consigo me desligar das coisas. Não tenho momentos de tranqüilidade


onde eu possa me desligar dos problemas. Eu não tenho como procurar um
lazer sem estar preocupado com o fato de que alguma coisa possa acontecer
naquele momento. Então eu me sinto dessa maneira... Constantemente ligado
às possibilidades de ser atacado, a qualquer momento. Imagino que algum
assalto vá ocorrer. Eu tenho de estar atento para não ser surpreendido e para
me antecipar e tentar evitar um problema. Então eu acredito que todos os
policiais acabam sentindo isso.

222
A psicologia hoje denomina a essa descrita paranóia como um ‘estado
de alerta permanente’, como já definimos. Esse estado dificulta o descanso,
mas se diferencia do chamado estresse pós-traumático, que tem
sintomatologia mais severa.
Para avaliar as condições de saúde mental dos policiais militares,
utilizamos uma escala que afere ‘sofrimento psíquico’ ou os chamados
‘transtornos psiquiátricos menores’. Em um limiar entre a saúde e a doença,
o sofrimento psíquico caracteriza-se fundamentalmente por um mal-estar
inespecífico, com repercussões fisiológicas e psicológicas que podem acarretar
limitações severas no dia-a-dia, podendo transformar-se em doença pela
sua intensidade e cronicidade (Mari & Williams, 1986). As expressões de
sofrimento se apresentam em sintomas psicossomáticos, depressivos e de
ansiedade que podem ser visualizados no Gráfico 37.

Gráfico 37 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o sofrimento psíquico


53,5%
Sente-se nervoso, tenso ou agitado 53,7%
53,4%
Dorme mal* 57,2%
41,8%
Tem se sentido triste ultimamente* 37,4%
34,5%
Tem dores de cabeça freqüentemente* 39,8%
Encontra dificuldade para realizar com 34,2%
satisfação suas atividades diárias* 35,6%
34,1%
Cansa-se com facilidade* 31,5%
33,1%
Sente-se cansado o tempo todo* 37,3%
29,1%
Tem dificuldade de pensar com clareza* 20,0%
26,8%
Assusta-se com facilidade 26,6%
25,7%
Tem má digestão 26,5%
23,7 %
Tem perdido o interesse pelas coisas 23,6%
23,3%
Tem sensações desagradáveis no estômago 23,6%
22,7%
Tem dificuldade para tomar decisões* 19,8%
Tem dificuldade no serviço (seu trabalho é 20,3%
penoso, lhe causa sofrimento) 21,0%
18,4%
Tem tremores nas mãos** 16,9%
14,6%
Tem falta de apetite* 16,6%
13,6%
Tem chorado mais do que de costume 13,1%
10,8%
É incapaz de desempenhar um papel útil em sua vida** 9,9%
8,8%
Sente-se uma pessoa inútil, sem préstimo 8,9% Oficial / Suboficial / Sargentos
7,9%
Tem tido a idéia de acabar com a própria vida* 5,6% Cabos / Soldados

* p<0,001 ** p<0,05
223
É muito relevante que 35,7% dos policiais militares, sem diferenciação
segundo a posição hierárquica, informem vivenciar sofrimento psíquico.
Comparativamente, muito mais membros desse grupo corporativo apresentam
sofrimento psíquico em relação aos 25,8% de policiais civis (p=000).
A análise isolada das questões mostra algumas diferenças pontuais
entre oficiais e não-oficiais. Para ambos os grupos estudados, dormir mal e
sentir-se tenso e agitado são as principais sensações. Para os oficiais, acresce
um sentimento de tristeza permanente, cansaço e dor de cabeça.
O sentimento de tristeza associado à sensação de cansaço e de sono ruim
também aparecem como sintomas de sofrimento psíquico relatado pelos
não-oficiais.
No grupo administrativo, não há distinção nos níveis de sofrimento
psíquico em função da hierarquia profissional (24,9%). Todavia, entre os
operacionais, a distinção é marcante: 40,4% dos oficiais, suboficiais e
sargentos informam sofrimento psíquico, contra 37,3% dos cabos e soldados
(p=000), revelando o que enfatizamos anteriormente como um efeito
cumulativo que reúne sensações de pressão permanente por parte do governo,
da Secretaria de Segurança e das chefias e sentimentos de não-
reconhecimento por parte da sociedade.
Todos os policiais, inclusive os civis, assinalaram que o estresse é
responsável por doenças subjetivas, não visíveis aos olhos do médico, tais
como enxaquecas, dores de estômago e nervosismo, e que, por serem
subjetivas, não são levadas em consideração pelas chefias. Um gestor
operacional considera como um elemento que influi negativamente na saúde
dos policiais a própria desvalorização do seu sofrimento psíquico, o que
ocorre freqüentemente por parte das chefias. Os oficiais consideram que,
no caso dos escalões inferiores, as queixas têm “o intuito de conseguir
dispensa do serviço”, o que nos foi dito por um gestor operacional.
Como já constatamos, o sofrimento físico e o mental não se apresentam
de forma separada. São ambos resultantes do conjunto de situações
vivenciadas no cotidiano do trabalho. Rodrigues (2000), em estudo de
demanda realizado no Hospital Central da Polícia, mostra que 23% das
queixas que levam os profissionais a buscarem ajuda são cefaléia e mal-
estar geral, o que provavelmente tem forte associação com a somatização de
problemas vivenciados no cotidiano: 10,2% são as cefaléias relacionadas à
hipertensão; 15%, problemas dermatológicos; 24%, problemas ortopédicos;

224
11%, doenças gastrintestinais; e 10,2%, dor precordial, ansiedade, tensão
e nervosismo. Fora as lesões e os traumas ortopédicos que estão diretamente
ligados à atividade laboral (uso de botas e equipamentos pesados, posições
cansativas por longas horas), como entorses, fraturas e lombalgias, os outros
tipos de sintomas se associam ao mal-estar provocado pela tensão, à quebra
de resistência do sistema imunológico e à sensação permanente de cansaço.
Podemos identificar como facilitadores do sofrimento mental: as
condições e a organização ocupacionais, entre elas a falta de treinamento e
planejamento das atividades; a jornada excessiva de trabalho; o reduzido
tempo para o descanso e lazer; e as precárias condições materiais e técnicas
para o desenvolvimento das atividades. A tudo isso somam-se os baixos
salários e as condições de trabalho inadequadas, já citadas na segunda
parte do trabalho. Em alguns relatos das praças, esses profissionais atribuem
o estresse ao soldo insuficiente. De fato, os depoimentos dos sargentos,
soldados e subtenentes nos revelam o quão estão imbricados condições de
trabalho, saúde e salário. Um soldado assim se exprime:

Se você ganha mal, não pode se alimentar bem. Você utiliza o seu horário de
lazer trabalhando em outra função. Se ganha mal, sofre de estresse porque é
muita conta para pagar. Chega em casa e briga com a mulher. Não pode dar
um ensino bom para o filho. Ganhando pouco, compromete tudo.

A localização do batalhão é tida como um indicador relevante. Assim,


um batalhão situado na Zona Sul do Rio de Janeiro, segundo os relatos
desses policiais, é muito mais visado e controlado pelo olhar da população,
geralmente mais exigente. Isso se traduz em maior estresse cotidiano. Eis o
que nos conta um soldado:

Por exemplo, chega um informe: vão assaltar o morro, vão invadir o quartel.
Eu já fico preocupado, a pressão já sobe mais, está entendendo? Adrenalina,
tensão... Saio daqui, no dia seguinte, arrebentado. Na hora do descanso, deito
ali sobressaltado. Daqui a pouco já levanto, porque eu tenho de tomar remédio.
E os dias vão passando... Quando chega o final do mês, o salário vem desse
tamanhinho. Aí tem de pagar os compromissos. Falta alguma coisa e a fila vai
andando... O condomínio vai aumentando, as mercadorias vão aumentando...
Quando vê, já está no vermelho. Se você quiser ser uma pessoa decente,
honesta, ter um comportamento correto e viver para a família, precisa superar
diversos fatores.

225
No contexto da formação da identidade, acrescentamos a baixa
auto-estima relacionada às cobranças por causa da falta de qualidade do
serviço prestado à população. Os agravos emocionais freqüentemente
geram sintomas de depressão, desejo de suicídio e, menos freqüentemente,
síndrome de pânico.
O estresse que resulta em problemas físico-emocionais é também uma
fonte de excitação para a realização do trabalho. Sobretudo, isso ocorre
com os mais jovens e com menos tempo na corporação. Eles gostam do
enfrentamento de risco, segundo depoimentos de alguns gestores, e por isso
têm visão distinta sobre estresse no trabalho. Esse estado de espírito é também
lembrado por um dos gestores entrevistados como necessário para as
atividades de confronto: “Nós precisamos estar preparados para reagir, e só
reage quem estiver estressado”. Ele se refere à prontidão, à tensão e ao
sentimento de alerta que o policial experimenta quando está em missões
operacionais.
Vale lembrar que nem mesmo os que sentem subir a adrenalina nas
situações de risco ficam imunes aos efeitos negativos do estresse no organismo.
Na pesquisa denominada “Mapeamento da vitimização de policiais no Rio
de Janeiro”, as pesquisadoras constataram que “tanto em serviço quanto em
folga, a maioria dos policiais vitimados (94,4%) integrava as patentes mais
baixas, que compõem o círculo das praças” (Muniz & Soares, 1998: 81).
Assim, as narrativas dão conta de que, mesmo quando alguns se
sentem excitados com os confrontos e com muita ‘adrenalina’ para atuar,
uma boa parte das praças vivencia um forte estresse proveniente do trabalho.
Seu sofrimento mental mistura medo, incapacidade de prover as necessidades
básicas familiares por causa dos baixos salários e, em conseqüência,
dificuldade para vivenciar a marca identitária do ‘ethos masculino’ em uma
profissão que, contraditoriamente, apela o tempo todo para o ideal do homem
como provedor e para a contenção das emoções. Assim, o trabalho que tem
eficácia simbólica em garantir as atribuições sociais constitutivas da
identidade masculina é também o que provoca doenças e determina uma
série de limitações morais e físicas, colocando em jogo atributos que
definiriam o homem como trabalhador. Conforme Nardi (1998: 182),
“o conflito que se instala na constituição do ethos masculino que vincula
trabalho a outros atributos e funções morais, tais como ser bom pai, bom

226
marido, provedor do lar, forte, honesto, entre outras características”,
é culturalmente marcante.
Diferentemente dos entusiasmados com o risco, existem policiais que
apresentam doenças de fundo emocional, como hipertensão e diabetes,
desenvolvidas no trato com o público e no enfrentamento com a
criminalidade. Estes, ao contrário, no exercício das atividades mais
arriscadas, aumentam em si os efeitos dos chamados sintomas subjetivos e
das somatizações que se expressam, sobretudo, em forma de enxaquecas,
dores de estômago e desânimo. A relação entre o estresse provocado pelo
medo na vida cotidiana dos policiais – que já não têm tanto entusiasmo
com as situações de enfrentamento – pode ser exemplificada com o caso
que nos contou um policial. Ele faltou a um dia de serviço e, de volta a seu
batalhão, foi punido com uma detenção de seis dias: “Tudo bem... Eu
faltei naquele dia porque tive um feeling de que ia morrer. Pelo menos não
morri. Fui preso, mas não morri”.
Seja em uma área de risco por causa da presença de delinqüentes
armados ou, simplesmente, em zonas em que os problemas sociais
permanentemente eclodem, demandando a atenção do policial, sua jornada
de trabalho é considerada estafante. Eis o depoimento de uma praça:

Você, no caso, tem de acompanhar o seguinte: está sentado numa


radiopatrulha às 7 horas da noite e vai sair de dentro dela às 7 horas da
manhã, assistindo, durante essas 12 horas, durante a madrugada, a tudo
quanto é desgraça, mesmo que não seja com você. Mas assistir a tudo quanto
é desgraça não é brincadeira, não! E isso durante anos, não é mole, não! Eu
já acho o policial forte até demais.

É possível que os policiais criem um ‘formação reativa’ à violência e


às mortes violentas de que são testemunhas ou das quais são atores em
confrontos. Uma das expressões dessa situação é comentada por um gestor
operacional: “Há uma carga de anormalidade muito grande que nós
naturalizamos como normal. (...) Eu volto, a viatura toda furada, e eles
rindo. Eles falam assim: ‘Puxa vida! Quase pegou você!’ Ou seja, já
naturalizaram”.
No entanto, o sentimento de banalização da vida não é totalizante.
No depoimento que se segue, outro gestor operacional faz um relato

227
pungente de problemas vividos quando trabalhava em um grupamento em
que vários policiais foram feridos e mortos.

Enterrei 13. Um tenente meu levou um tiro na favela do Muquiço e ficou três
semanas desacordado. Quando acordou, não podia falar. Eu fui visitá-lo, porque
eu visitava meus doentes, e ele escreveu uma mensagem para o coronel. E eu me
controlando. Não podia chorar, pois ali eu estou como comandante, mas eu sou
ser humano. Veja só, um garoto com vinte e poucos anos e eu o mandando para
a morte! E eu me controlando. Quando saí da casa dele, desabei [a chorar] na
escada, ninguém estava me vendo. Comandante chora sozinho!

Esse gestor se referiu várias vezes em sua entrevista à solidão daquele


que se encontra no poder e dos sentimentos de angústia e dor que envolve
um cargo de responsabilidade em uma unidade de operações ostensivas.
Outro chefe de batalhão, mostrando-se preocupado com a saúde
integral dos policiais, considera que eles lidam com a aflição e com o estresse
do ser humano e precisam estar bem preparados para não se deixarem
contaminar pelas emoções de quem busca o seu auxílio. Entende ele que a
natureza de seu trabalho gera uma carga de tensão que se refletirá em seu
corpo mediante uma somatização. Ao final da vida, o policial militar terá a
saúde prejudicada, porque lhe foi exigido um desempenho além de seus
limites. Realmente, este problema é constatado por vários estudiosos.
Ao apresentar um problema de ordem psicológica reconhecido pela
chefia, geralmente o policial é colocado em uma atividade-meio ligada à
parte administrativa. Para um gestor operacional, no entanto, “o ideal seria
que o nosso policial tivesse uma avaliação constante, que passasse por uma
bateria de testes psicológicos para ver como está o estado emocional dele”,
e não apenas recebesse uma avaliação definitiva quando já foi totalmente
destruído emocionalmente.
Uma das questões tratadas de forma relevante nas entrevistas e nos
grupos focais é o estresse vivenciado fora dos quartéis. Nesse caso, a área
administrativa não se diferencia da operacional. Um sentimento persecutório
e um estado de alerta aguçado impregnam emocionalmente os policiais,
como relatado nos grupos focais:

Quando o policial sai de noite, não tem mais condução e vai se arriscando
a assalto, a ser reconhecido. (...) Não fica tranqüilo nem na folga, só dentro de

228
casa. (...) Para sair, principalmente com a família, precisa pensar aonde pode
ir. Se chegar no lugar errado, na hora errada, e for reconhecido como policial
estando junto da família... Então, tem de ser algo muito estudado.

Imagina um policial que trabalha na área do 3º Batalhão. Tem todas as


favelas. Aqueles bandidos não estão centralizados num só lugar. Então, vamos
supor que você vai para a Barra da Tijuca e um deles te reconhece... Vai para
Copacabana e é reconhecido... O policial que trabalha no serviço externo é
um alvo muito fácil. Ele não pode reconhecer todos eles [os delinqüentes],
mas pode ser reconhecido por um deles. E se acontece alguma coisa com o
policial fora do serviço, ele não recebe a mesma coisa que outros recebem.

Sublinhamos que o sentimento persecutório é diagnosticado por eles


como proveniente de duas fontes. A primeira é interna à corporação e se
traduz pela “cobrança 24 horas por dia” e pela “pressão superior”.
A segunda é externa e pode ser sintetizada nos elementos das falas anteriores.
Terminamos esta reflexão fazendo um quadro comparativo (Tabela 9)
entre a Polícia Militar e a Polícia Civil, para demonstrar que, em todos os
quesitos – com exceção de um em que praticamente se igualam (ficar nervoso
e tenso) –, a primeira está em desvantagem quanto ao sofrimento mental.

Tabela 9 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares, segundo os sintomas de


sofrimento psíquico que ocorrem atualmente
Sintomas de sofrimento psíq uico Civil Militar
Dorme mal*** 39,5% 53,5%
Sente-se ner voso, tenso ou agitado 48,8% 47,5%
Sente-se triste*** 33,6% 39,0%
Sente-se cansado o tempo todo*** 24,9% 35,5%
Sente dores de cabeça freq üentemente*** 24,9% 35,3%
Sente dificuldade para realizar com satisfação suas atividades diárias*** 24,5% 34,3%
Cansa-se com facilidade*** 27,2% 34,0%
Tem falta de apetite*** 9,6% 14,6%

* p<0,05; ** p<0,005; *** p=0,000

229
Tabela 9 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares, segundo os sintomas de
sofrimento psíquico que ocorrem atualmente (continuação)
Sintomas de sofrimento psíq uico Civil Militar
Tem má digestão* 23,6% 26,2%
Assusta-se com facilidade*** 16,2% 25,6%
Tem sensações desagradáveis no estômago* 20,8% 23,4%
Tem perdido o interesse pelas coisas*** 18,4% 22,7%
Sente dificuldade em pensar com clareza*** 16,3% 22,4%
Sente dificuldade no ser viço (o trab alh o é penoso e causa sofrimento)*** 8,4% 20,4%
Sente dificuldade para tomar decisões*** 15,2% 19,4%
Tem tremores nas mãos*** 9,1% 16,6%
Tem ch orado mais q ue de costume 12,8% 13,6%
Sente-se incapaz de desempenh ar um papel útil na vida 33,2% 25,8%
Sente-se uma pessoa inútil, sem préstimo*** 5,7% 9,0%
Tem tido idéia de acab ar com a própria vida* 3,3% 5,0%

* p<0,05; ** p<0,005; *** p=0,000

Consumo de Substâncias Tóxicas


Outro fator associado ao estresse profissional e que interfere
negativamente na vida dos trabalhadores é o consumo exagerado de
substâncias tóxicas. Os estudiosos do fenômeno da adição às drogas nos
ensinam que o abuso é muito mais um sintoma do que um problema que
começa e termina em si mesmo. Esse fenômeno se vincula, sobremaneira, à
necessidade que os indivíduos sentem de buscar algum nível de satisfação e
alívio das tensões por meio de estratégias que os afastem da realidade dura
que precisam enfrentar (Freud, 1969; Baptista, 2000; Baptista, Cruz &
Matias, 2003; Schenker & Minayo, 2005). Por isso, muitos autores
consideram o abuso de drogas, lícitas ou ilícitas, como resultante de
problemas e sofrimento psíquicos, embora sempre articulado a questões
de personalidade e tendência a somatizações.
Portanto, não podemos nos admirar que, nas corporações policiais
compostas por profissionais que enfrentam uma vida cotidiana muito dura,
as adições se apresentem de forma contundente, embora freqüentemente
camuflada. Estamos convencidos de que as respostas às perguntas que lhes

230
fizemos sobre consumo de substâncias tóxicas estão subestimadas. Com
certeza, esses profissionais sentiam-se sob restrições morais, sociais e
institucionais quando responderam aos questionários, na medida em que
tratavam de um tema proibido ou até, em alguns casos, de uma ilegalidade
que a corporação deve combater – e não admitir. Consideramos que entre
os policiais militares a subnotificação foi maior do que na Polícia Civil
(Minayo & Souza, 2003). Havia medo de que as respostas pudessem
comprometê-los pessoalmente, já que a hierarquia é rígida. Muitos
suspeitavam de que seus superiores pudessem ter acesso aos questionários,
o que, obviamente, não ocorreu.
Começamos a perguntar pelo uso de cigarros. Sabemos que o consumo
de tabaco está relacionado a vários agravos à saúde, entre eles as doenças
pulmonares e cardiovasculares. Especialmente, esse hábito se associa ao
infarto agudo do miocárdio e ao câncer de pulmão. No entanto, existe um
ardil no uso de cigarro, porque a nicotina nele presente atua no sistema
nervoso central provocando leve sensação de relaxamento, bem-estar e, ao
mesmo tempo, exigindo doses maiores para a satisfação pessoal.
A prevalência do uso do cigarro na corporação é de 19,1%, 68,6%
nunca fumaram, e a proporção dos que não fumam entre os cabos e soldados
é de 78,5%. Ou seja, a distribuição interna do consumo de tabaco é
diferenciada. Cerca de 25,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos fumam,
contra 16,5% dos cabos e soldados. A situação de maior risco vinculado ao
consumo de tabaco é relatada pelos oficiais operacionais: 28,4% são
fumantes regulares ou eventuais. Oficiais, suboficiais e sargentos
administrativos (15,5%) e cabos e soldados (22,4%) dos dois setores
apresentam menor prevalência de consumo de cigarros.
Esses dados são, no entanto, inferiores à média do país, onde 32,5%
da população acima de 15 anos fumam, sendo o uso mais intenso,
atualmente, entre a população mais pobre. Uma proporção maior de
oficiais, suboficiais e sargentos (17,2%) também afirma ter parado de
fumar. Com certeza correspondendo ao que está acontecendo na sociedade
brasileira, o consumo de tabaco caiu significativamente entre os jovens.
Desta forma, os riscos provenientes da nicotina estão mais presentes entre
os policiais graduados.
Os resultados dessas informações estão resumidos no Gráfico 38.

231
Gráfico 38 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o consumo de tabaco*

57,3%
Nunca fumou
78,5%

17,2%
Parou de fumar
5,0%

Fumo 25,4%
regular/eventual 16,5%
Oficial / Suboficial / Sargentos
Cabos / Soldados

* p=0,000

Comparativamente, os policiais civis fumam mais do que os militares,


com uma taxa de prevalência de 23,3% no total da corporação, conforme
assinalamos na Tabela 10.

Tabela 10 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares segundo o consumo de


tabaco*
Freq üência de consumo Civil Militar
Nunca fumei 49,8% 68,6%
Parei de fumar 26,9% 12,2%
Fumo regularmente/eventualmente 23,3% 19,1%

* p<0,000

Percentual muito elevado de policiais militares, 48% dos oficiais,


suboficiais e sargentos e 44,3% dos cabos e soldados, ingere bebida alcoólica
semanalmente (pelo menos uma vez) ou até diariamente. O uso ocasional se
destaca entre as praças. Perto de 28% dos policiais não bebe ou interrompeu
o consumo de bebidas alcoólicas, o que pode ser visto no Gráfico 39.

232
Gráfico 39 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a freqüência de uso de
bebida alcoólica*

48,6%
Diário/semanal
44,3%

23,8%
Ocasional/raramente
29,3%

Parou de beber/ 27,6%


nunca bebeu
27,4%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

O uso semanal ou diário de bebidas alcoólicas foi mencionado em


proporções mais elevadas por oficiais, suboficiais e sargentos dos setores
administrativos e operacionais, com destaque para estes últimos. Mais
policiais militares (cerca de 27%) informaram que não utilizam bebida
alcoólica ou que já pararam de beber; entre os policiais civis, essa proporção
é de 13,4%. Porém, o uso ocasional de cerca de 25% entre os policiais
militares é mais elevado do que entre os policiais civis, que é de 18,4%.
Outra pergunta que afere consumo de álcool é a que indaga se no
último mês o profissional ficou embriagado alguma vez. Encontramos 14,1%
dos policiais militares que confessaram haver tomado bebida alcoólica até
ficarem embriagados – “de porre”, como disseram –, sem diferenciação por
hierarquia profissional.
Cerca de 17,2% dos oficiais, suboficiais e sargentos do setor operacional
lideram o percentual de profissionais que já ficaram ‘de porre’, seguidos por
14% dos cabos e soldados (p<0,001). Percentuais menores foram
mencionados pelos administrativos, com predomínio dos não-oficiais (12,1%)
em relação aos oficiais, suboficiais e sargentos (8%), com p <0,001.
Comparativamente, mais policiais militares (17,2%) que civis (6%)
já ficaram embriagados, o que significa um quadro mais grave entre os
primeiros. O consumo de álcool pode afetar as habilidades e as ações

233
individuais, além de estar associado a brigas, desavenças entre companheiros
e superiores, assim como a acidentes de trânsito e violências intrafamiliares
(Souza & Minayo, 2005).
As informações fornecidas pelos policiais sobre a utilização de outras
substâncias tóxicas no último ano podem ser encontradas no Gráfico 40.
O consumo de tranqüilizantes para acalmar a ansiedade é a principal forma
de ingestão de droga entre os dois grupos, com destaque para os oficiais,
suboficiais e sargentos (13,9%, contra 8,5% dos cabos e soldados).
Os oficiais também consomem mais sedativos e barbitúricos, maconha, cocaína
e substâncias para sentir ‘barato’, como lança-perfume, cola, gasolina, entre
outras. Não-oficiais informam, em maiores proporções, utilização de remédios
para emagrecer e para ficar acordado. E usam substâncias anabolizantes
para aumentar a musculatura ou para lhes dar mais força física.

Gráfico 40 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a utilização de


substâncias psicoativas no último ano
13,9%
Tranqüilizante*
8,5%
6,8%
Para emagrecer/ficar acordado*
7,3%
4,4%
Sedativo, barbitúrico*
3,0%
2,3%
Maconha*
1,0%
2,3%
Cocaína, crack*
1,1%
2,1%
Anabolizante*
4,1%
2,0%
Algo para sentir ‘barato’*
0,7%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Algumas diferenciações por setores foram observadas. O uso de


tranqüilizantes, sedativos e barbitúricos foi proporcionalmente mais relatado
por oficiais, suboficiais e sargentos administrativos. Substâncias para sentir
‘barato’, maconha e cocaína predominaram entre oficiais, suboficiais e
sargentos operacionais. No grupo dos soldados e cabos, há maiores
234
proporções de uso de remédios para emagrecer (especialmente entre os não-
oficiais operacionais) e anabolizantes (com destaque para os operacionais).
Tranqüilizantes são as únicas substâncias relatadas em maiores
proporções pelos policiais civis. Os policiais militares se destacam por
consumirem significativamente mais todas as outras substâncias, como
remédios para emagrecer ou para se manterem acordados, anabolizantes
para dar força e aumentar a musculatura, sedativos, barbitúricos, maconha,
cocaína e outros. Ressaltamos os baixos percentuais dos que dizem consumir
maconha e cocaína, o que é sugestivo de subnotificação dessas ocorrências.
Em consonância com as estatísticas dos usuários de drogas no Rio de
Janeiro, também entre os policiais militares é baixo o uso de substâncias
tóxicas diretamente injetadas na veia, mencionado por 0,7% dos policiais
militares, sem distinção de hierarquia e de setor. Mesmo que esse uso seja
ínfimo, ainda é mais elevado do que entre os policiais civis (0,05%).
Algumas conseqüências do uso de álcool e outras substâncias
manifestam-se freqüentemente como mediadoras entre os riscos da profissão
e a ansiedade, o que indica a possibilidade de que haja um consumo acima
do informado. Os oficiais, suboficiais e sargentos apresentam em maiores
proporções as conseqüências do consumo de substâncias, se comparados
aos soldados e cabos, em relação a quase todos os comportamentos de risco
investigados, com exceção do envolvimento em acidentes de trânsito, nos
quais os não-oficiais são os primeiros. Ressaltamos também a relevância
das manifestações de agressividade (11,2%) – com o agravante de todos
portarem armas –, independentemente do lugar profissional de cada um, o
que ressalta dificuldades de relações em uma instituição rigidamente
hierarquizada.
O uso de substâncias tóxicas nos ambientes de trabalho também traz
conseqüências para a vida familiar e social dos policiais. Entre os problemas,
eles mesmos assinalam alguns: não-uso de preservativos nas relações sexuais;
aumento dos conflitos no seio das famílias; dificuldades para expressar
emoções e para controlar a agressividade, o que certamente redunda em
violência intrafamiliar. No entanto, outras manifestações nos ambientes
profissionais e fora deles são também assinaladas como relevantes. É o caso
de crises nervosas incontroláveis, absenteísmo no trabalho e outros problemas
de saúde. Algumas dessas informações podem ser observadas no Gráfico 41.

235
Gráfico 41 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as dificuldades
vivenciadas após beber ou usar outras substâncias
Deixou de usar 21,9%
preservativo 18,6%

15,9%
Problema com a família*
13,2%

Problema emocional/ 13,1%


‘crise nervosa’* 9,0%

Problema de 11,8%
agressividade 11,9%

11,1%
Problema de saúde*
7,7%

Dificuldade na relação 10,5%


sexual(1) 7,4%

7,1%
Faltou ao trabalho*
4,2%

6,1%
Problema no trabalho
5,7%

Se envolveu em 5,1% Oficial / Suboficial / Sargentos


acidentes no trânsito* 6,6% Cabos / Soldados

* p<0,001

Os policiais do setor operacional se destacam por relatarem, em


maiores proporções, conseqüências do consumo de substâncias tóxicas, o
que indica a vulnerabilidade desse grupo, especialmente no caso dos oficiais.
Conflitos familiares e crises nervosas em casa e no trabalho são mais
freqüentes entre oficiais, suboficiais e sargentos operacionais. Problemas de
saúde, dificuldade nas relações sexuais, omissão no uso de preservativo nas
relações sexuais e absenteísmo no trabalho também são mais comuns entre
oficiais dos dois setores, com maior destaque para os operacionais.
A associação com o uso de substâncias tóxicas, inclusive com o álcool,
mostra que os mais afetados são os oficiais, suboficiais e sargentos do setor
administrativo. Entretanto, em termos gerais, os que mais se envolvem são
os cabos e soldados operacionais.
Manifestações de comportamento agressivo ocorrem igualmente entre
oficiais, suboficiais e sargentos. Todavia, 12,6% dos operacionais e 8,9%

236
dos administrativos declararam já ter agido de forma descontrolada após o
uso de substâncias tóxicas. A ingestão de bebida alcoólica ou de outras
drogas para aliviar o estresse do trabalho policial foi relatada principalmente
por oficiais, suboficiais e sargentos, em uma proporção de 23,6%, e menos
por soldados e cabos (18,9% – p= 000).
Quando distinguidos por setor de atividade, oficiais, suboficiais e
sargentos do setor operacional apresentam consumo maior de substâncias
tóxicas para alívio do estresse (26,2%) do que os não-oficiais desse setor
(18,8%). No grupo administrativo, a proporção é de 18,1%. Esses dados
corroboram o maior comprometimento de saúde dos oficiais, suboficiais e
sargentos do setor operacional.
Examinamos as estratégias que os policiais estariam buscando para
interromper o uso de álcool ou outras substâncias. Uma boa proporção
deles diz que está fazendo esforço para isso por conta própria, embora
considere muito difícil se controlar, tendo em vista o contexto de seu trabalho
e de sua vida. Em todos os escalões, as estratégias são similares. Entre os
que tentam parar de usar drogas, a maior parte sinaliza a falta de suporte
institucional para isso. Com baixa freqüência, os policiais buscam entidades
que mantêm o anonimato, como os grupos de ajuda mútua Alcoólicos
Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), procuram auxílio em
religiões e seitas ou recorrem a profissionais da saúde. No entanto, um
percentual significativo de cabos e soldados assinalou que precisou buscar
hospital de emergência para se desintoxicar. As informações sobre esse
esforço se encontram registradas no Gráfico 42.
As estratégias de interrupção do uso de substâncias mostram-se um
pouco distintas segundo o setor a que os policiais pertencem. A tentativa de
parar de consumir por conta própria e pela busca de ajuda em religiões ou
seitas é maior entre os administrativos e entre os oficiais, suboficiais e sargentos.
Apoio de grupos de ajuda mútua e de profissionais da saúde são as
opções mais utilizadas por oficiais, suboficiais e sargentos dos dois setores.
Já cabos e soldados adictos, possivelmente por ingerirem grande quantidade
de substâncias mais tóxicas quando se drogam, dizem que recorrem a
hospitais de emergência. A iniciativa de busca de apoio diferenciado sugere
uma situação de maior cronicidade entre os oficiais.

237
Gráfico 42 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo estratégias usadas
para interromper o consumo de substâncias

30,4%
Por conta própria
29,9%

7,9%
Com a ajuda de religião ou seita
8,0%

Com médico / psicólogo / assistente social 4,1%


1,6%

Em grupos de ajuda mútua 2,8%


como AA ou NA 2,4%

Em hospital de emergência / 1,7%


desintoxicação* 2,8% Oficial / Suboficial / Sargentos
Cabos / Soldados

* p=0,000

Além de ingerirem mais substâncias tóxicas que os policiais civis, os


policiais militares buscam ajuda para a superação da adição também em
maiores proporções (Minayo & Souza, 2003).

Reflexões sobre Prazer e Sofrimento


no Trabalho de Policial Militar
Dejours (1992) destaca que a erosão da vida mental dos trabalhadores
é útil para se obter um comportamento condicionado favorável à produção.
“O sofrimento mental aparece como intermediário necessário à submissão
do corpo” (1992: 96). Esse sofrimento realça uma funcionalidade expressa
no corpo pelos comportamentos necessários à tarefa. O corpo torna-se dócil,
uma vez que a resistência está diminuída. Diz ainda Dejours (1992: 103):
“O trabalho não causa o sofrimento, é o sofrimento que produz o trabalho”.
Concordamos apenas em parte com esse raciocínio do autor, pois
acreditamos que na escolha da profissão e no desenvolvimento de suas formas
de reação está implicada a subjetividade do trabalhador, que nunca se
moldará completamente ao trabalho como jugo.

238
No entanto, concordamos que vários fatores promovem o sofrimento
no trabalho dos policiais militares. De modo geral, o sofrimento físico e
mental é resultante do conjunto de situações vivenciadas no cotidiano de
atividades que têm intenso reflexo na vida social. Em primeiro lugar,
ressaltamos que há uma defasagem entre o que é oficialmente determinado
para sua função e o que a sociedade e a própria organização exigem deles.
A lacuna entre o prescrito e o extra-oficialmente exigido é um fator ou uma
fonte de estresse e de sentimentos conflituosos.
Em segundo lugar, também damos relevância ao fato de que não são
apenas os fatores intrínsecos ao trabalho que prejudicam esses profissionais.
Existe uma associação entre eles, a formação, a ideologia e a maneira de as
forças policiais se posicionarem na sociedade. Guimarães, Torres e Faria
(2005) consideraram importante pesquisar, por exemplo, a aceitação de
valores cívicos por parte dos policiais para analisar o alcance de sua atuação
e seus problemas. Realizaram estudo sobre as ações extrajudiciais e a adesão
ou não de policiais militares aos valores democráticos. Os autores destacam
que a violência e as manifestações de agressividade policial não são
fenômenos isolados ou apenas corporativos. Originam-se de diversos fatores
socialmente contextualizados: cultura de autoritarismo, falhas na formação
e, inclusive, idiossincrasias pessoais.
Em terceiro lugar, chamamos a atenção para o fato de que a mesma
sociedade que, por um lado, pede que o ‘combate ao crime’ seja realizado
duramente, por outro lado constantemente faz severas críticas sobre a atuação
da Polícia. Esse conflito de exigências e outros estressores que fazem parte
do dia-a-dia do policial contribuem para sua maior vulnerabilidade ao
sofrimento psíquico.
Em quarto lugar, a disciplina e a dura hierarquia dentro da corporação
são fontes também de estresse, pois às praças cabe cumprir as ordens que vêm
de seus superiores sem questioná-las, mesmo quando estão envolvidas em
atividades de alto risco. Por sua vez, os oficiais têm de determinar ordens que
seriam muito mais efetivas e afetivamente eficazes se pudessem ser discutidas
por quem está na ponta, realizando ações. As teorias de organização laboral
mais modernas ressaltam isso (Minayo, 2004). O trabalho do policial militar
configura, sem dúvida, um espaço de dominação e submissão do trabalhador,
mediante a hierarquia militar, embora o conflito e as brechas de resistência e
de expressão de subjetividade continuem sempre existindo.

239
Quando observamos a literatura internacional sobre a saúde física e
mental dos policiais, encontramos muitas semelhanças em relação tanto ao
sofrimento quanto à profunda associação entre trabalho, vida social, saúde e
problemas de ordem física e psíquica. Estudos de Harpold e Feemster (2002)
sobre a Polícia americana constataram que, do ponto de vista psicológico, os
policiais sob estresse negativo perdem energia ou interesse em vários aspectos
da vida, inclusive o sexual. Cerca de 1% deles chega a pensar em suicídio.
Do ponto de vista comportamental, os policiais referem problemas de bebida
e de fumo, maior susceptibilidade a provocar lesões e abuso físico de esposas,
filhos e companheiros de trabalho. Os autores da pesquisa revelam que,
embora apenas um pequeno percentual apresentasse os problemas citados,
em geral os policiais sofrem 30% mais doenças do coração; cometem três
vezes mais violência contra as esposas; são cinco vezes mais adictos ao álcool;
apresentam cinco vezes mais somatizações; sofrem seis vezes mais de ansiedade
e dez vezes mais de depressão do que a população em geral.
Fortalecendo a nossa hipótese de que existe uma sinergia entre
enfermidades físicas e estresse negativo, um artigo de Cheenan e Van Hasselt
(2003) mostra a confluência de vários fatores que provocam estresse
cumulativo, contribuindo para que os policiais – mais do que a população
comum – sejam acometidos de múltiplos agravos, tais como elevadas taxas
de problemas gastrintestinais, pressão arterial alta, doenças coronárias,
alcoolismo, uso abusivo de drogas, exposição a acidentes, desordem pós-
traumática e muitos outros sintomas transitórios, como pensamentos
intrusivos, dificuldades para dormir, alteração do padrão alimentar e
mudanças nas respostas emocionais. Alguns temas são ressaltados por essa
literatura, como tendência dos policiais a cometerem violência intrafamiliar,
a terem pesadelos e pensamentos intrusivos, a apresentarem hipervigilância
ou estado de alerta permanente e a terem dificuldades para dormir.
Um estudo retrospectivo de mortalidade relacionada ao trabalho de
2.376 policiais americanos empregados em uma região no período de 1950
a 1979, realizado por Vena e colaboradores (1986), revelou elevadas taxas
de suicídio, se comparadas com as de outros empregados municipais (razão
de dois para nove), e elevado risco de neoplasias combinadas (câncer
digestivo e de tecidos linfáticos), arteriosclerose e doenças do coração.
Pesquisa de Paiva e Saraiva (2005) também assinala como relevantes:
excessivo descontrole emocional, doenças físicas associadas a estresse

240
ocupacional, alcoolismo, prática de violência doméstica, taxas mais elevadas
de divórcio do que as da população em geral, baixa expectativa de vida e
suicídio. Embora seja necessário assinalar que os autores relativizam seus
dados, dizendo que são ainda escassas as fontes para comparação, esse
parece ser o primeiro estudo que recorre a um instrumento focalizado em
uma escala que mede saúde mental ótima.
Tanto os achados da investigação sobre policiais do Rio de Janeiro
como os estudos americanos citados (Harpold & Feemster, 2002; Vena et al.,
1986; Cheehan & Van Hasselt, 2003) confirmam ainda que os eventos
mais estressantes para os policiais são acompanhar funeral de companheiros,
realizar prisões com violência, conhecer as vítimas de delinqüentes, ouvir
notícias contra eles na mídia, ter chefes com quem não se dão bem, colocar
o trabalho acima de tudo e ter pouco tempo para si e para a família.
Segundo Dejours (1997, 1999), um fator indispensável para que o
sofrimento no trabalho ganhe sentido e se transforme em prazer é o
reconhecimento. Para esse autor (1999: 3), “esta é condição indispensável
no processo de mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade
promovida pelo trabalho”. Quando a organização do trabalho impede a
experiência e a autonomia do indivíduo, ou quando não há reconhecimento,
ganha espaço o sofrimento patogênico. Anderson, Litzemberg e Plecas
(2002) consideram, com base em seus estudos, que, além de outras
manifestações, os policiais sofrem de estresse antecipado quando saem para
o trabalho. No limite, é o estresse daquele policial, citado por nós, que
deixa de ir ao trabalho porque intuiu que, se fosse, seria atacado e morto.
Brown e Grover (1998) ainda assinalaram o quanto são perniciosos
para a subjetividade dos policiais os treinamentos que implicam controlar
as emoções, projetar força e autoridade, lidar com incursões em locais de
moradia de risco sem demonstrar emoções e colocar as exigências funcionais
na frente das necessidades pessoais. Segundo esses autores, pesquisas vêm
sugerindo que a inibição e a repressão de emoções podem levar à exacerbação
de sintomas psicopatológicos em seguida à exposição a incidentes estressores.
Ao contrário, uma diminuição de tais sintomas tem sido associada à
disponibilidade de suportes sociais.
Evidenciar os problemas de saúde física e mental dos policiais permite
fornecer subsídios para o estabelecimento de prioridades relacionadas à
promoção da saúde, mecanismos de prevenção de agravos e parâmetros

241
para a melhoria da qualidade de sua vida. O controle das situações de
risco, visando à criação de ambientes de trabalho saudáveis, envolve a
caracterização da exposição e quantificação das condições de
vulnerabilidade, a discussão e a definição das alternativas de eliminação
ou controle dos motivos de adoecimento devidos ao trabalho e a
implementação e avaliação das medidas adotadas, segundo o Ministério
da Saúde (Brasil, 2005). Para um processo de promoção e prevenção, a
participação ativa dos profissionais é crucial.
A primeira coisa a ser observada é que nem todos os policiais
submetidos a estresse se tornam cronicamente estressados. Para um grupo
considerável, o estresse ajuda a superar os obstáculos e dá sentido à profissão
e à vida. É por isso que 75% dos policiais civis e 71% dos policiais militares
do Rio de Janeiro disseram que, se tivessem de recomeçar, escolheriam a
mesma profissão, embora, em ambos os casos, os servidores ressaltem um
‘porém’: caso pudessem usufruir de melhores condições de trabalho.
Vários autores como Kelley (2005) assinalam a necessidade de que,
no trabalho com esses servidores, seja buscada uma forma de manejo do
estresse que leve em conta suas estratégias de resiliência. Ressaltam que
atributos pessoais, bom nível de conhecimento dos riscos reais, estratégias
para o fortalecimento emocional e de suporte social podem modificar sua
exposição individual a fatores estressantes. Sublinham que é muito
importante a participação desses trabalhadores nos processos de prevenção
de agravos e promoção de sua saúde. Pois, como reconhecem, a despeito de
toda a sofisticação técnica, apenas os trabalhadores são capazes de informar
sutis diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho real que ajudam a
explicar o adoecimento. São essas brechas que devem ser modificadas para
que se obtenham resultados desejados.
A atividade profissional precisa ser encarada nos dois sentidos: um
lado positivo e libertador, e outro negativo, que provoca muito sofrimento
físico e emocional. A maioria considera seu trabalho como fonte de prazer
e de satisfação – como dizem os oficiais, “os policiais gostam de sentir esse
medo”. Embora sofra pela falta de reconhecimento social, “a verdade é
que o policial ama a Polícia e ama a corporação. É apaixonado pela Polícia
Militar, mas a Polícia Militar não gosta dele. Tanto não gosta que os nossos
governantes não o valorizam”. Possivelmente é esse ânimo elevado em relação

242
à missão e à vida profissional o que mantém forte o sentido corporativo e o
prazer no trabalho, acima de todos os riscos.
No caso do sofrimento psíquico, muitos instrumentos têm sido
propostos, embora poucos sejam realmente utilizados para aliviar as tensões
desse grupo de trabalhadores. Um deles é a estratégia de inventariar e
discutir, de forma medida por profissionais competentes, eventos de exposição
cumulativa nas várias ações operacionais estressantes, tais como o ato de
prender agressores violentos, ouvir o testemunho de vítimas de estupro, entre
outros. Outra perspectiva é a mediação também realizada por profissionais
especializados, em relação a atitudes negativas e expressões emocionais
agressivas decorrentes de eventos estressantes.
Para vários estudiosos, está evidente que o suporte de profissionais e
o suporte social são os fatores que mais proporcionam possibilidades de
superação e de melhor enfrentamento das situações. É o caso de Brown e
Grove (1998) e de Kelley (2005), cujos estudos confirmam a importância
dessas estratégias como aporte à superação de eventos traumáticos. Os
suportes social e emocional, quando oferecidos por superiores, supervisores,
colegas de trabalho, familiares ou mesmo por pessoas de fora do trabalho,
são cruciais, ressaltam também Iwata e Suzuki (1997).
Quanto às habilidades pessoais que influenciam o estresse
ocupacional, o estilo de enfrentamento (estilo de coping) do trabalhador
diante dos eventos estressores consiste na principal variável, constituindo
consenso de muitos estudos. Outras variáveis, como um padrão de
comportamento proativo e de auto-estima elevada, são também vistas como
capazes de influenciar o processo de superação do estresse (Jex & Elacqua,
1999; Paschoal & Tamayo, 2004).

243
Serviços de Atenção à Saúde
13

Diferentemente dos policiais civis, que dispõem de uma rede de atenção


à saúde muito frágil, os policiais militares do Rio de Janeiro têm uma base
complexa focalizada no Hospital Central da Polícia Militar, que fica no
bairro do Estácio. Essa unidade tem 320 leitos e um serviço de emergência.
Fazem parte do mesmo sistema o Hospital de Niterói – com oitenta leitos e
um serviço desativado de emergência; policlínicas em Cascadura, Olaria
e São João de Meriti, que provêem internação e atendimento ambulatorial; e
cinco laboratórios farmacêuticos que produzem medicamentos exclusivamente
para uso institucional. Há ainda trinta unidades primárias da corporação,
nas quais há sempre um clínico e um dentista.
A partir de 2001, foram criadas cinco unidades básicas com um
profissional de cada uma das seguintes especialidades: clínica médica,
cardiologia, ginecologia, pediatria, psicologia e odontologia. Há ainda um
Centro de Psiquiatria e Reabilitação, em Olaria, que atende aos
paraplégicos e oferece fisioterapia. No interior, são mantidos convênios com
clínicas e o Sistema Único de Saúde (SUS) fornece uma pequena ajuda
financeira apenas para a internação nos dois hospitais. Apesar dessa rede
complexa, nas entrevistas e nos grupos focais os policiais se queixaram da
qualidade e da quantidade dos serviços: “É preciso melhorar o atendimento
do Hospital Central da Polícia Militar assim como os serviços de exames
médicos”, disseram muitos deles.

Atendimentos Médicos, Hospitalares


e Cuidados em Saúde
Segundo os entrevistados, mesmo sendo complexo, o sistema de saúde
instituído para servir os policiais militares e suas famílias é insuficiente e

245
produz um atendimento desigual. Por exemplo, oficiais, suboficiais e
sargentos têm mais acesso a tratamento dentário e é elevado o percentual de
profissionais que está há mais de três anos sem atendimento: 36,5% entre
os cabos e soldados e 29,4% entre os oficiais, suboficiais e sargentos, como
pode ser visualizado nos dados do Gráfico 43, que sintetiza os depoimentos
desses profissionais.

Gráfico 43 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a realização de


tratamento dentário*

43,8%
Menos de 1 ano
29,8%

26,8%
1-3 anos
33,7%

29,4%
Mais de 3 anos
36,5%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Os policiais do setor administrativo cuidam melhor da saúde bucal


do que os operacionais. Nesse primeiro grupo, 58,1% dos oficiais, suboficiais
e sargentos e 46,3% dos cabos e soldados realizaram tratamento há menos
de um ano (p<0.001). Já entre os operacionais, encontramos que apenas
37,7% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 27% dos cabos e soldados
recorreram a esses ser viços (p<0.001). Notamos uma constante
predominância dos oficiais e suboficiais dos dois setores nos cuidados com
os dentes. No entanto, quando comparados com os policiais civis, os da
corporação militar apresentam desempenho inferior em relação a esse tipo
de atenção à saúde.
Um dos maiores problemas de saúde assinalados pelos policiais
militares está relacionado à visão. Encontramos um percentual mais
246
elevado de oficiais, suboficiais e sargentos (38% do setor administrativo e
28,1% do operacional) com problemas visuais, em comparação com os
cabos e soldados (respectivamente, 17,4% e 21,3%), o que pode estar
relacionado ao comprometimento da visão por idade. Esses dados estão
registrados no Gráfico 44.

Gráfico 44 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a realização de exame


de vista*

31,2%
Menos de 1 ano
20,7%

33,5%
1-3 anos
30,1%

35,4%
Mais de 3 anos
49,2%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Atendimentos de Emergência e
Internações Hospitalares
Também buscamos saber os dados do atendimento emergencial nos
hospitais da Polícia. Mais cabos e soldados (49,1%) do que oficiais,
suboficiais e sargentos (41,4%) – embora os dados sejam muito elevados
para os dois ciclos da hierarquia – já recorreram a atendimento em
emergências médicas (p=000). Os profissionais de posição mais baixa na
hierarquia predominam também na busca de atendimento público ou
privado. Todavia, a maior procura se dá no Hospital Central da Polícia
Militar, cujas proporções de atendimento são: 41,7% dos cabos e soldados

247
não-oficiais e 34,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos, conforme pode ser
visualizado no Gráfico 45.

Gráfico 45 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o atendimento em


serviços de emergência

34,6%
Hospital da PM*
41,7%

14,2%
Hospital público*
18,5%

9,3%
Hospital privado*
10,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p<0,001

Por serem muito freqüentes os acidentes de trabalho e em confronto,


a Polícia Militar criou um serviço próprio para remoção de seus profissionais
feridos e lesionados. Esse serviço é efetuado por paramédicos do
Grupamento de Paramédicos e Apoio Operacional (GPAO), embora ainda
não haja no grupo um plantonista fixo, o que exige deslocamento de um
médico da emergência para efetuar o resgate. Conversamos com o oficial
gestor do GPAO, que esclarece o histórico e as funções do grupo: foi criado
em 1995 para efetuar socorro médico de urgência em atendimento aos
policiais feridos. Isso porque as armas de fogo “usadas pelos marginais”,
diz ele, atualmente incluem fuzis. O profissional da saúde fica próximo à
área de conflito para acompanhar as operações e socorrer os feridos. Esse
profissional é uma praça que passa por um curso de 14 semanas, tendo
aulas de emergência psiquiátrica, pediátrica e de contenção de hemorragias.
Ele estagia em hospitais e exerce uma função reconhecida pelo Conselho
de Medicina como ‘técnico de emergências médicas’.

248
Apesar de muito importante, o oficial responsável diz que hoje a
atividade está desvirtuada porque a Polícia Militar estava gastando muito
com a remoção de feridos internados em outros hospitais para o Hospital
Central. Por causa disso, decidiu acionar o GPAO para esse serviço, com
as suas seis ambulâncias: três com Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e
três simples. Essa remoção vinha sendo efetuada por veículos de empresas
particulares. Os policiais baleados, quando atendidos fora do hospital militar,
são removidos para lá em um prazo de 24 horas, porque os médicos de
instituições militares estão acostumados a tratar desses agravos com bons
resultados. “O paciente que a gente pega, até pelo tipo de armamento de
hoje, se não morreu na hora e conseguiu chegar ao hospital, tem uma chance
de sobrevida boa”, diz o gestor de saúde.
Além das atividades citadas, o GPAO acompanha as operações
chamadas de ‘grande vulto’. O desvirtuamento referido pelo oficial se deve
ao fato de o GPAO ter sido criado para dar apoio às operações armadas
em área de elevado risco: “O policial aqui é de tropa, tem essa facilidade.
Vai na ambulância mas vai de fuzil. É policial e é da área da saúde. Se ele
vir um assalto, por exemplo, pára e prende, de branco mesmo”, diz o gestor
da GPAO.
O profissional responsável pelo GPAO considera que na Polícia
Militar há problemas de articulação sistêmica entre os serviços. Comenta
que, em determinadas situações, não há como enviar um grupo de saúde
para apoio porque, com freqüência, o batalhão sobe um determinado morro
sem planejamento, sem colete e sem suprimento balístico, acrescentando:
“Enfim, sobe [o morro] por puro heroísmo”. Esse mesmo entrevistado
compara a situação com a das Forças Armadas, que não efetuam uma
instrução de risco sem uma equipe médica de apoio.
O gestor do GPAO afirma ainda que na Polícia Militar, hoje, não
há uma consciência de prevenção ou de proteção para os seus profissionais,
na medida em que não lhes é oferecida infra-estrutura básica para lidar
com as situações de perigo. A estratégia atual está voltada para chegar ao
ferido sem ser ferido. Esse servidor sugere a criação de ambulâncias
blindadas, pois há lugares em que não há meios de ter acesso, a não ser
pelo heroísmo. Mas, diz esse gestor, “o policial não tem de ser herói, e sim
profissional. A corporação preocupa-se com a vida do policial porque tem
conseqüência pecuniária para o Estado”. Mas ele explica que essa

249
preocupação é cheia de contradições. E exemplifica: ao enviar um grupo
do GPAO para uma determinada operação, deixa o centro cirúrgico
reservado e monta uma estrutura para receber o policial ferido. Entretanto,
este é pego de surpresa e colocado “de qualquer maneira numa viatura”,
levado para o hospital mais próximo que, na maioria das vezes, não tem
recursos para atendê-lo.
Mesmo tomando uma atitude crítica, o gestor do GPAO relata que
houve diminuição de policiais baleados por causa da implantação de
estratégias de prevenção. Os policiais dos batalhões passam por cursos e
palestras sobre técnicas de prevenção. Cita o exemplo do bom preparo dos
policias do Bope, que são feridos em proporções menores do que todos os
outros colegas: “Há dois, três anos, morria-se todo dia”.
A procura por serviços emergenciais é similar entre as corporações,
mas os policiais civis utilizam o atendimento do SUS e da rede privada de
saúde em maiores proporções, diante da precária assistência médica oferecida
por essa corporação, conforme pode ser visto na Tabela 11.

Tabela 11 – Distribuição proporcional dos policiais civis e militares, segundo o atendimento


em serviços de emergência no último ano*
Tipo de h ospital Civil Militar
Polícia* 3,2% 35,3%
Rede púb lica 16,8% 14,6%
Rede privada* 24,8% 11,7%

* p<0,000

Consultas, Exames Laboratoriais


e Internações Hospitalares
Os dados de internações hospitalares (excetuando os atendimentos
de emergência) mostram que foram internados 13,4% dos soldados e cabos
e 11,9% dos oficiais, suboficiais e sargentos no último ano (p=0,002).
Os não-oficiais se destacam por necessitarem de mais internação hospitalar
tanto nos hospitais da Polícia Militar como nos públicos, o que sugere sua
maior exposição aos acidentes de trabalho e aos confrontos. Esses dados
estão descritos no Gráfico 46.
250
Gráfico 46 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as internações
hospitalares nos últimos 12 meses

8,6%
Hospital da PM*
10,5%

1,8%
Hospital público*
3,2%

3,0%
Hospital privado
2,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados


* p=0,000

A distribuição das internações por setores mostra a predominância


dos atendimentos aos cabos e soldados tanto administrativos como
operacionais. Com exceção dos que recorrem à hospitalização na rede
privada, onde o percentual de oficiais, suboficiais e sargentos do setor
administrativo (6,3%) é maior do que a dos cabos e soldados e do que a
observada entre policiais operacionais (percentuais inferiores a 3,2%).
Comparadas às dos policiais civis, as internações são bem mais
freqüentes entre policiais militares (12%) – mostrando também sua maior
exposição e vulnerabilidade – do que entre os civis (1,2%). Entre estes
últimos, as internações ocorrem mais na rede pública e privada, porque os
serviços de saúde próprios da Polícia Civil são muito precários.
No ano anterior à investigação, 7% dos policiais militares, sem
distinção de hierarquia ou setor, submeteram-se a cirurgias. Já entre os
policiais civis, 4,9% passaram por uma e 1,8% por mais de uma cirurgia.
Muitas dessas operações se devem a acidentes de trabalho ou são
conseqüências de confrontos.
Constatamos a procura maior dos oficiais, suboficiais e sargentos por
quase todos os tipos de procedimentos utilizados para a realização de consultas
e exames. Os serviços mais demandados são os oferecidos pelos hospitais e
policlínicas da Polícia Militar, por clínicas conveniadas com a corporação,
251
por planos privados de saúde e por unidades básicas de saúde. Os não-
oficiais se destacam por buscarem a rede pública e os serviços particulares,
pagando pelo atendimento recebido. Esses dados estão no Gráfico 47.

Gráfico 47 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo os serviços de saúde


usados para consultas e exames
69,8%
Hospitais da Polícia Militar*
60, 3%
51,4%
Policlínicas da Polícia Militar*
42,3%
22,5%
Serviço particular pago*
30,0%
20,8%
Plano privado de saúde*
17,6%
18,9%
Serviço da rede pública de saúde*
26,1%
18,3%
Clínicas conveniadas da Polícia Militar*
10,5%
12,7%
Unidade Básica de Saúde*
10,3%
7,4%
Serviço de associação policial militar*
5,1%
7,4%
Serviço de fisiatria*
4,8%
Oficial / Suboficial / Sargentos
7,3%
Unidade Primária de Saúde* 5,4% Cabos / Soldados

* p<0,001

Nos últimos 12 meses, os oficiais, suboficiais e sargentos alcançaram


maior acesso a todos os tipos de tratamentos e técnicas terapêuticas sobre os
quais perguntamos. Destaca-se o uso intenso de fisioterapia como o
tratamento mais demandado pelos policiais de diferentes hierarquias,
indicando a prevalência de problemas de coluna e de postura. Podemos ver
essas informações no Gráfico 48.

252
Gráfico 48 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as técnicas terapêuticas
usadas nos últimos 12 meses

18,5%
Fisioterapia**
12,0%

6,0%
Homeopatia*
5,0%

5,4%
Psicoterapia*
2,8%

3,5%
Esclerose de varizes*
2,9%

2,3%
Acupuntura**
1,5%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p<=0,001 ** p<0,05

Acupuntura, psicoterapia e fisioterapia são mais demandadas pelos


oficiais, suboficiais e sargentos dos setores administrativos e operacionais.
A psicoterapia é procurada com maior freqüência por policiais dos setores
operacionais do que administrativos e a busca é maior entre oficiais,
suboficiais e sargentos (6,5% operacionais e 2,8% administrativos) do que
entre os cabos e soldados (2,9% versus 1,7%, respectivamente). Algumas
diferenças importantes foram constatadas quanto à demanda de alguns
tratamentos, como a homeopatia. Ela foi mais requisitada pelos cabos e
soldados do setor administrativo e pelos oficiais, suboficiais e sargentos do
setor operacional. Já a esclerose de varizes foi mais freqüentemente demandada
por oficiais, suboficiais e sargentos do setor administrativo.
Uma pergunta crucial, cuja resposta faz a diferença em relação à
satisfação da população com os serviços de saúde, diz respeito ao tempo
decorrido entre a busca do atendimento e a efetiva consulta médica. Nos
serviços de saúde da Polícia Militar, notamos que há um prazo de
atendimento relativamente curto de até trinta dias, referido por 83% dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 85,1% dos cabos e soldados (p=0,001).

253
Observando as diferenças existentes entre os setores, constatamos que
a agilidade do atendimento tem favorecido os profissionais da área
administrativa. Desse grupo, 91,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e
86,8% dos cabos e soldados tiveram acesso à consulta em até trinta dias
após solicitá-la (p<0.001). No setor operacional, a despeito de a maioria
dos profissionais ser atendida no primeiro mês de marcação da consulta, é
referido um atendimento mais ágil pelos cabos e soldados (84,8%), em
contraposição a 78,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos.

Grau de Satisfação dos Policiais


quanto aos Serviços de Saúde
O grau de satisfação dos policiais com os serviços de saúde da própria
corporação é maior entre oficiais, suboficiais e sargentos, independentemente
de sua inserção no setor administrativo ou operacional. No entanto, a
insatisfação nos dois grupos é grande, merecendo uma discussão especial.
Os cabos e soldados nos grupos focais afirmam que o serviço é de qualidade,
mas insuficiente para atender à demanda de todo o grupamento policial e
de seus dependentes.

Nós contamos com um hospital para atender a cinqüenta mil policiais


militares, fora os familiares. Temos as policlínicas, mas não satisfazem à
necessidade. Nós carecemos, primeiramente, de mais hospitais policiais.
Diversificar na Baixada, em Campo Grande, no interior. Os policiais do 29º
[Batalhão], em Itaperuna, têm de vir ser atendidos aqui. Isso é um absurdo!

Os dados referentes a satisfação e insatisfação nesse aspecto estão no


Gráfico 49.
Nos vários serviços de saúde, a planilha de coleta de informações
organizada pelos médicos, a que tivemos acesso, mostra o número de
atendimentos no ano de 2004: quarenta mil em ambulatório por mês; 180
mil pessoas em todos os serviços (policiais e seus dependentes) por mês;
dez mil em odontologia por mês.

254
Gráfico 49 – Distribuição proporcional dos militares policiais segundo o grau de satisfação
com os serviços da PM

24,9%
Satisfeito
16,9%

Nem satisfeito, 29,3%


nem insatisfeito 27,2%

45,8%
Insatifeito
55,9%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Não temos como avaliar se esses atendimentos foram e são suficientes


para o efetivo, pois um mesmo policial pode ter demandado o serviço mais
de uma vez ao longo do ano. Informações precisas de adequação e qualidade
exigiriam uma pesquisa específica.
O gestor do setor considera que o sistema de saúde da Polícia Militar
precisa crescer e que lhe falta muito investimento. Fala da necessidade de
que a rede tenha mais profissionais em algumas especialidades cuja demanda
é intensa. Explica que houve uma tentativa frustrada, pela falta de pessoal,
de se criar uma pequena enfermaria de curta permanência no hospital.
Também comenta que seria necessário colocar um plantonista fixo para o
GPAO, a fim de que um médico lotado na emergência não tenha de se
deslocar para efetuar resgates.
Os oficiais médicos entrevistados explicam que deveria haver
modificações na organização dos serviços para atender à demanda de
atendimento e solucionar as reivindicações dos policiais. Por exemplo, no
interior, nas cidades onde há muitos policiais residindo, os gestores deveriam
pensar em construir policlínicas. No entanto, o gestor do hospital ressalta
que a falta de autonomia financeira dificulta muito seu trabalho e todas as
estratégias pensadas por ele e sua equipe como necessárias para fazer
funcionar bem os serviços. Geralmente, o planejamento que fazem tem de

255
ser levado ao chefe do Estado-Maior para a análise, e as decisões dependem
dele. No entanto, o comentário desse oficial é positivo:

O policial militar gosta e sente confiança de ser atendido pelo médico militar.
As pesquisas efetuadas dentro da corporação mostram que os policiais estão
satisfeitos com o atendimento médico, mas reclamam da hotelaria do hospital,
que não é das melhores mesmo. O sistema de saúde é muito procurado por
quem não pertence a ele. Os pais podem ser atendidos. Para outros familiares,
o sistema de saúde é mais ou menos flexível.

Os policiais descontam 10% do seu soldo como contribuição para os


serviços de saúde e o Estado deveria dar a sua contrapartida; porém, “o
Estado às vezes atrasa um pouquinho, não entra, ocasionalmente dá uma
ajuda”, diz o gestor hospitalar. Isso significa que a arrecadação para manter
o sistema de saúde da corporação é pequena. Apesar disso, o gestor
comemora que em sua gestão o hospital conseguiu comprar três aparelhos
de ultra-sonografia.
Em resumo, o gestor e os policiais afirmam que os hospitais estão
sobrecarregados. E os policiais reclamam que, para conseguirem
atendimento, é preciso chegar de madrugada. A maior queixa é em relação
à consulta odontológica, que só pode ser marcada no intervalo de seis meses,
mostrando-se, nas entrevistas e nos grupos focais, uma contradição com o
que disseram em relação ao tempo muito menor entre a marcação e a consulta
de atendimento. O gestor também considera que há necessidade de mais
profissionais em algumas especialidades com elevada demanda.
Vamos ouvir as falas de alguns usuários. A fim de melhorar a saúde
dos policiais, as praças consideram que a rede hospitalar deveria ser o
primeiro item a ser contemplado. Mas as idéias são contraditórias. Para
alguns, trata-se do aperfeiçoamento do que já existe: “Ampliar a rede
hospitalar tanto da capital como do interior. A parte técnica dos profissionais
é inquestionável, é preciso essa ampliação para absorver a demanda.
Elevaria para um nível satisfatório”. Para outros, a melhor alternativa seria
terceirizar os serviços:

É preciso criar outros mecanismos, pegar um plano de saúde de empresa...


Qual empresa não estaria interessada em pegar um contingente de cinqüenta mil
homens? Ia melhorar para todo mundo e, uma vez melhorando, o profissional

256
ia trabalhar com mais satisfação sabendo que a família está coberta. Se ele
passar mal na rua, vai ter um atendimento bom. É questão de vontade política.

Os comentários dessas praças põem em xeque o corporativismo e o


sentido de ‘instituição total’; outras sugerem ainda mais a necessidade de
soluções que venham de dentro da instituição. “A Polícia Militar teria
de ter hospital conveniado a ela em todo o estado do Rio de Janeiro e ser
aceita a palavra do médico conveniado, pois a Polícia só aceita decisões
médicas dadas por médicos da Polícia”. Outra praça sugere: “A corporação
deveria providenciar, pelo menos, mais uns três hospitais, centros cirúrgicos
e laboratórios para a realização de exames clínicos e técnicos, como é o caso
da tomografia computadorizada”.
O gestor de saúde não chega a questionar o modelo, mas ressalta os
limites a que chegaram as unidades e os equipamentos:

Os nossos hospitais, hoje em dia, têm um atendimento superior à qualidade


que eles podem prestar. No entanto, os serviços não são bem servidos ao
policial militar e à família do policial militar. (...) Na verdade, um hospital
apenas não é suficiente para atender à capital. O efetivo aumentou, há ainda
os vários dependentes. A família do policial aumentou. E continua um único
hospital na capital.

As falas também evidenciam que, por causa da escassez e da


insuficiência de equipamentos, crescem e prosperam os privilégios. E os
mais bem servidos acabam sendo os hierarquicamente superiores: “As praças
que estavam na fila têm de aguardar a vez de um oficial que chega na sua
frente. Eu, que me tratei na ortopedia por muito tempo, chegava de
madrugada, às três, quatro horas da manhã, para ser atendido às oito
horas, e de muleta!”. É como reforça outra fala: “Deveria ter um hospital
só para praça e outro para oficial. Porque a gente fica lá com fome e chega
um oficial e é atendido na nossa frente”. Já um sargento, no grupo focal,
também comenta:

Uma outra dificuldade é que existe no Hospital Central da Polícia Militar


uma seção chamada convênio. Se você ou o seu dependente precisa fazer um
exame, é marcado para daqui a dois meses. Então, a pessoa fica sofrendo esse
tempo todo porque não tem essa especialidade ou acaba tendo de marcar
numa clínica conveniada.

257
É importante observar que, na corporação, a atividade médica é
submetida à hierarquia militar. Um policial do círculo das praças nos afirma
que, nos casos em que o profissional recorre à consulta com um médico
externo à instituição, o parecer desse médico precisa ser validado por um
médico da Polícia Militar. Ainda assim, “muitas vezes essa dispensa não é
respeitada. O médico da Polícia tem de colocar ‘convém repouso de tantos
dias’. Ou seja, tudo fica na apreciação do comandante”. Esse policial insiste:
“O médico não dá um parecer direto, ele mantém o ‘convém’ para deixar a
decisão nas mãos do seu superior”. Outro policial acrescenta: “Ele não
tem autoridade para te dispensar”.
Ou seja, o atendimento médico acaba servindo também como uma
forma de controle do trabalho e as queixas dos policiais passam a ser
sancionadas pelo arbítrio da autoridade hierárquica. Em todos os casos, o
policial pode procurar o serviço de saúde, público ou particular, mas
necessariamente terá de passar por um médico militar caso precise de perícia
para obter uma eventual licença médica ou liberação do trabalho. Dessa
forma, as autoridades hierárquicas acompanham o policial militar desde
que entra na emergência, passa por internação, por prescrição de
medicamentos e, em caso de licença, pela perícia. Acompanham-no durante
todo o processo até a alta.
Igualmente, o atendimento à saúde, segundo o grupo das praças, segue
a mesma lógica hierárquica dos batalhões, tendo os oficiais o privilégio na
marcação das consultas e dos atendimentos. Por causa disso, ao contrário da
população em geral, eles têm menos críticas ao atendimento prestado pelo
SUS. Segundo depoimento de um soldado, nas unidades do SUS, pelo fato
de ser um policial, ele acaba recebendo um atendimento diferenciado. Já
no Hospital Central da Polícia Militar, o fato de ser soldado faz dele o
“último das prioridades”.
Buscamos saber sobre o apoio psicológico dentro da corporação aos
servidores em estado de sofrimento mental e aos que sofrem de transtornos
pós-traumáticos. Fomos informados de que, no momento em que o policial
militar apresenta problemas emocionais, um psiquiatra avalia sua
necessidade de internação. Em caso afirmativo, essa pessoa é orientada a
procurar clínicas credenciadas no Rio de Janeiro. Entretanto, a própria
Polícia Militar tem uma estrutura de controle e de auditoria dos
atendimentos: visitas semanais e conversas com os médicos, visando, segundo
os entrevistados, a minorar os gastos com saúde.

258
Um gestor de saúde explica que, em uma determinada unidade
primária, havia facilidade de internação pelo seu serviço de emergência,
pois não existia controle. Para coibir esse abuso, as chefias criaram um
esquema de filtragem, de forma que o psiquiatra se tornasse alcançável e
pudesse emitir o parecer sobre a real necessidade de internação do paciente.
Em geral, os entrevistados (tanto os gestores como os policiais)
consideram difícil que um servidor confie no sistema de saúde da corporação
para falar sobre seus problemas emocionais. A Polícia Militar tinha o
programa de recuperação de adictos, intitulado Renascer, com psiquiatras
e psicólogos, mas foi desativado. Esse programa teria um caráter de prevenção
das complicações clínicas provenientes do consumo abusivo de substâncias
que provocam seqüelas irreversíveis. Esse gestor pondera que sempre foi
muito difícil para um policial buscar ajuda, porque, na medida em que o
uso de drogas é considerado crime, se o seu comandante souber da sua
situação ele será preso.
Apesar das dificuldades para conseguir tratamento por abuso de
álcool e droga, o atendimento existe e é feito de acordo com o estado clínico
(cirrose, miocardiopatia, por exemplo) e psíquico (dependência). No
primeiro caso, o policial pode ser socorrido pela clínica médica, pela
cardiologia ou pelo gastroenterologia. No caso da dependência, a pessoa é
encaminhada ao psiquiatra. O atendimento ao usuário de drogas é feito na
rede conveniada quando se trata de internação.
Um gestor da unidade de saúde comenta ainda que, se o paciente
recair por mais de duas vezes, não poderá mais ser atendido. Relata que,
como em todo o Brasil, onde a prevalência do uso de álcool na população
é de 10%, aqui também é a droga mais consumida. Considera que o uso
da cocaína vem em seguida, pois muitos policiais acabam sendo
influenciados pela proximidade com o tráfico de drogas.
Apesar das dificuldades institucionais, há diferenças entre as chefias
dos batalhões na compreensão da problemática do uso de drogas, que constitui
muito mais um sintoma do que um problema em si. Em alguns casos, os
policiais adictos conseguem ajuda nas suas próprias unidades, sendo atendidos
por psicólogos que estão lotados nos batalhões maiores e próximos às áreas de
conflito armado. Nessas situações, o apoio do comandante é fundamental.

259
Concessão de Licenças Médicas
Para analisar a vitimização dos policiais, recorremos ao trabalho de
Souza e Minayo (2005), que contém um conjunto de informações
denominadas Licença para Tratamento de Saúde (LTS) e Incapacidade
Física Parcial (IFP), resumidas na Tabela 12. Os policiais militares
requereram afastamento temporário das atividades por motivos de agravos
que os retiraram de ações operacionais ostensivas e os mantiveram em tarefas
internas. Embora as duas categorias de afastamento digam respeito a todos
os tipos de agravo, a Tabela 12 tem o objetivo de mostrar como se distribuem
tais ocorrências por escalão dos servidores.

Tabela 12 – Distribuição das Licenças para Tratamento de Saúde (LTSs) e das


Incapacidades Físicas Parciais (IFPs) dos policiais militares. Estado do Rio
de Janeiro, 2000-2004
A fastamento temporário
LTSs 2000 2001 2002 2003 2004
Número médio
Oficial 22,3 27,9 30,3 41,1 43,6
Praça 539,8 685,0 801,8 919,3 1.124,2
Proporção média
Oficial 4,0 3,9 3,6 4,3 3,7
Praça 96,0 96,1 96,4 95,7 96,3
R azão de número médio -
24,2 24,6 26,5 22,4 25,8
Praça/Oficial
IFPs
Número médio
Oficial 79,2 105,0 136,6 162,7 211,1
Praça 1.081,1 1.307,0 1.796,8 2.123,2 3.540,3
Proporção média
Oficial 6,8 7,4 7,1 7,1 6,0
Praça 93,2 92,6 92,9 92,9 94,0
R azão de número médio -
13,6 12,4 13,2 13,0 16,8
Praça/Oficial

Fonte: Souza & Minayo, 2005.

260
Ressaltamos que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5%
no período de 2000 a 2004, enquanto o de sargentos, cabos e soldados
mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças vítimas de
‘agravos que exigiram afastamento’ é mais de vinte vezes o de oficiais,
representando 96% das LTSs no período. As praças, como já dissemos,
estão na linha de frente nos confrontos.
Mais relevantes ainda são o crescimento geral e as diferenças entre as
duas categorias no que concerne a IFP: o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%.
O número médio de praças, no início da série, constituía cerca de 13 vezes
o de oficiais, passando a 16,8 vezes em 2004. As praças corresponderam a
93% dos incapacitados físicos retirados dos serviços ostensivos e colocados
em tarefas internas no período. No ano de 2007, 50,2% das LTSs e 42,8%
das IFP foram provocadas por traumas. Já 5,6% das LTSs e 16,9% das
IFPs deveram-se a problemas psiquiátricos, chamando nossa atenção para
a incidência de sofrimento mental vinculado às atividades laborais.
Um gestor de saúde relata os tipos de LTS mais comuns pela ordem
de relevância: por problemas ortopédicos, lesões que exigem intervenção
neurocirúrgica, distúrbios psiquiátricos, enfermidades que demandam
clínica geral e cardiologia. A chamada IFP é liderada pela ortopedia, seguida
pela psiquiatria e cardiologia. Os problemas maiores são os transtornos
provocados por situações conflituosas e de excessivo risco, provocando
também hipertensão em agentes em uma faixa de idade correspondente à
de adulto mais velho, além de acidentes com arma de fogo. Na condição de
IFP, a corporação procura aproveitar o policial em outras funções, de forma
que complete os trinta anos de serviço. A perícia acompanha sua licença.
No caso de o servidor precisar se afastar por mais de dois anos, uma junta
médica é formada para tomar a decisão. Quando ocorre uma lesão por ‘ato
de serviço’ (tiro seguido de fratura), a aposentadoria é integral.
Os temas da LTS e IFP são abordados pelas praças por diversos
ângulos. Algumas se queixam do monopólio que é mantido pelo médico
da corporação e pelo comandante, conforme já mencionado. Outras relatam
o vínculo entre a licença e o impedimento para a realização de cursos.
O processo de reforma, por vezes, é abordado como uma punição. Enfim,
o que os vários discursos reúnem é a idéia de que, subjacente à doença ou
à licença médica de praças, há sempre o julgamento por parte dos policiais

261
oficiais, que, segundo os entrevistados, traduzem tais acontecimentos como
uma estratégia desses subordinados para fugirem ao trabalho. Alguns se
mostram muito revoltados e consideram os oficiais como inimigos internos.
Eis dois depoimentos de um grupo de sargentos nesse sentido: “Quando o
policial tem um problema muito grave, que vai ultrapassar dois anos, eles
[os oficiais] suspendem a licença. Porque se passar de dois anos e um dia
[em licença], eles são obrigados a dar a reforma” e “Tinha um curso para
ser promovido a sargento. Eles [os oficiais] não me deixaram fazer porque
eu era IFP. Para fazer curso, eu não posso. Para trabalhar, eu posso. Não
posso ser promovido porque a pessoa precisa estar apta fisicamente”.
Os sargentos, cabos e soldados manifestaram muita tensão ao falarem
sobre a licença médica em si, sobre o tempo de licença e sua ligação com o
processo de ‘reforma’,10 a realização de cursos e a dinâmica de promoção
profissional. A maioria dos componentes desse grupo considera-se totalmente
enredada por esses mecanismos de tratamento de saúde, que acabam por
prejudicá-los na carreira, mantendo a idéia de que sempre serão punidos ou
‘enquadrados’, tal como neste relato de um cabo: “Após um ano e oito meses,
eles já te encaminham para o processo de reforma. Isso dependendo se for um
ato de serviço; se não for, é uma reserva remunerada. Vão fazer um processo
para quando chegar a dois anos e um dia você estar enquadrado”.
Como vimos, mais de 93% dos policiais em licença para tratamento
e por incapacidade parcial pertencem ao círculo das praças. Portanto, é
esse grupo em posição subalterna que, além de proporcionalmente ser vinte
vezes maior do que o dos oficiais vitimizados nos ‘acidentes de trabalho’,
acaba tendo a doença ou a lesão no trabalho como um empecilho a mais na
realização e na ascensão profissional.

Algumas Considerações sobre o


Atendimento Médico-Hospitalar
O quadro de saúde dos policiais militares apresenta uma série de
agravos que estão vinculados ao processo de trabalho, ao risco que correm

10
É o desligamento do servidor militar, nos casos de invalidez, com remuneração integral ou
proporcional, observadas as regras específicas para cada situação.

262
e ao estilo de vida que levam. É meridianamente claro que os policiais
subalternos do ciclo das praças são os que passam pelas mais arriscadas
situações e, por isso, sofrem mais lesões, incapacitações e mortes, sobretudo
no enfrentamento dos delinqüentes e de vários tipos de violência. Contudo,
são os oficiais, suboficiais e sargentos que apresentam maiores
comprometimentos da saúde, evidenciando-se aqui o papel cumulativo do
estresse laboral: são mais obesos, têm níveis mais elevados de colesterol,
freqüentemente sofrem mais doenças crônicas e degenerativas e padecem
mais de lesões permanentes.
Quanto à saúde mental, o sofrimento psíquico é similar entre oficiais
e não-oficiais. Há uma exceção, verificada quando se analisa o grupo
operacional, em que há maiores proporções de pessoas que se queixam de
problemas emocionais. Outro sinalizador de permanente sofrimento mental
são as maiores proporções de utilização de substâncias tóxicas pelo grupo
de oficiais, suboficiais e sargentos (cigarro, álcool, tranqüilizantes e sedativos
e maiores conseqüências do uso de substâncias), em comparação com os
soldados e cabos. Neste último grupo, predomina apenas o uso de
substâncias para emagrecer e anabolizantes.
No que se refere aos serviços de saúde, os que estão em níveis
hierárquicos mais elevados têm preferência dentro de um quadro de escassez,
onde nem todos podem ser cuidados a contento. Isso acontece no caso dos
tratamentos dentários, dos exames de vista e na preferência para internações,
principalmente. Soldados e cabos acabam procurando, em maiores
proporções, serviços de emergência médica, seja por causa das lesões e
incapacitações temporárias devidas a confrontos e acidentes de trabalho,
seja simplesmente para obter atendimento imediato.
Uma pergunta que fica ao final desta reflexão deveria ser: é possível,
pelas vias do trabalho, prevenir os problemas de saúde e o estresse dos policiais?
Um gestor operacional propõe um possível antídoto para o estresse físico e
emocional dos seus subordinados. Considera que, por oferecer um comando
de confiança e credibilidade, a tropa vem sendo ‘curada’. Diz esse oficial:
“Eu me preocupo em ter a credibilidade do homem”. Exige trabalho e premia
quando o policial se destaca. Comenta que, em seu setor, “não tem
interferência política”, o que significa admitir que em outros existe este
problema, o qual se constitui em uma razão a mais de preocupação dos
subordinados. Considera que muitas vezes o comando tem de se arriscar para

263
poder dar segurança a seus subordinados hierárquicos. E a saúde psicológica
do policial está relacionada à credibilidade que o chefe imprime ao comando.
Para esse oficial, “o comando tem de ser o mais digno e o mais competente”.
Sempre que perguntados, os chefes realçam a possibilidade de prevenir
agravos e diminuir o estresse por meio da administração de um bom ambiente
nas ‘relações entre oficiais e seus subordinados’:

A pessoa que está comandando a unidade é que vai criar um bom clima no
batalhão, fazendo com que os policiais consigam executar um serviço de
qualidade em uma unidade extremamente difícil. Em contrapartida, está um
comandante carreirista, extremamente preocupado consigo mesmo, que causa
um grande estresse no seu soldado. Porque aí o soldado sabe que não pode
contar com ele em hipótese alguma.

No entanto, os gestores e os oficiais enumeram ainda vários aspectos


referentes a fatores físicos e emocionais ligados ao trabalho, que precisariam
ser cuidadosamente levados em consideração:
1) Jornada de trabalho – a ‘escala’ de oito por 12 horas desgasta
fisicamente e influencia no envelhecimento precoce dos policiais.
Portanto, precisaria ser repensada.
2) Vigília constante – o policial não consegue descansar no quartel
porque, segundo um gestor operacional, “ele sabe que muitas vezes
um cochilo significa a vida dele”. Além disso, mesmo em escala de
24 horas, não tem descanso no quartel porque as ocorrências se
sucedem. “Esquecem que o policial é um ser humano e o tratam
como uma máquina.”
3) Peso dos equipamentos – Influenciam nos problemas de coluna e
na postura, provocando dores e lesões. Assim, à medida que envelhece,
esse servidor apresenta problemas de hipertensão e de coluna por
causa do uso de armamento pesado. Diz um dos gestores entrevistados:

Há alguns anos, o policial usava um revólver de oitocentos gramas e mais


um bastão. Hoje ele leva duas armas curtas de um quilo, duas pistolas, mais
um fuzil de pouco mais de três quilos, dois carregadores de um quilo cada um
e um colete. Usa um equipamento de guerra. Então, ele usa talvez mais quatro
quilos junto ao corpo dele. Quatro quilos para alguém que a cada dois dias está
transportando [esse equipamento pesado] uma noite inteira, o dia inteiro.

264
4) Falta de atividade física – aqueles que trabalham na ronda ficam
sentados o tempo todo, o que também acarreta problemas de coluna
e dores musculares. A vida ‘sedentária’, de gabinete, segundo um
gestor administrativo, igualmente expõe a saúde a riscos. Esse
comandante diz que tenta, em vão, motivar seus subordinados a
fazerem atividades físicas.
5) Falta de acompanhamento – os policiais não tratam da saúde
como deveriam porque, devido ao baixo salário, trabalham nas folgas
para melhorarem a sua capacidade de gastos. A Polícia Militar já
disponibiliza serviços de atendimento psicológico – não de forma
adequada e nem suficiente –, e um gestor comenta que há também
apoio religioso, pois existe muita vivência de morte no cotidiano da
vida corporativa. No entanto, os policiais não se beneficiam como
poderiam dos serviços disponíveis por sobrecarga de trabalho dentro
e fora da Polícia e por problemas de restrição colocados por
autoridades hierárquicas.
6) Trabalho de ‘bico’ – em um grupo focal com soldados, praças e
cabos, foi relatado que o policial não tem tempo para cuidar da
saúde. Ele sai do batalhão, vai para o ‘bico’ e não dá tempo de
fazer atividades físicas. Passa a se alimentar mal porque quanto
menos tempo tem de casa, mais besteira come: uma pizza aqui, um
salgado ali. A alimentação não é regrada e tudo tem a ver com a
falta de condições objetivas e subjetivas do processo de trabalho.
“Os policiais já têm o estresse diário do serviço público e o ‘bico’
também é estressante porque, em geral, ele trabalha com segurança.
Assim, não há respostas saudáveis: a gente vai acumulando mais
estresse”. A família se sensibiliza com esse tipo de vida do policial,
o que, por sua vez, influencia a saúde dos familiares.
7) Sobreposição e sobrecarga de trabalho e adoecimento psíquico –
os policiais de um grupo focal de operacionais assim informam:
“Tivemos casos de companheiros com síndrome do pânico
desenvolvida em razão do nosso trabalho, que se reflete na saúde e,
novamente, no trabalho do policial” –, como em um círculo vicioso.
8) Efeito cascata da baixa remuneração – ela mina a saúde, seja
pela má alimentação, seja pela falta de tempo hábil para buscar

265
atendimento; dificulta o lazer, o sagrado descanso do corpo e da
mente; afasta os servidores das relações familiares, tão valorizadas
pela maioria; o risco e o estresse da profissão são vividos duplamente,
no trabalho e no ‘bico’.
9) Risco de morte decorrente da profissão – um grupo focal com
oficiais denuncia a violência que eles têm de enfrentar diariamente
em uma cidade tão insegura como o Rio de Janeiro e a que sofrem
por parte de delinqüentes, com grandes chances de resultar em morte.
10) Interdição da fala e das emoções – na conversa com oficiais de
grupos operacionais, esses policiais destacaram o fato de não
poderem expressar suas opiniões, emoções e expectativas. Todos têm
de seguir o regulamento que prioriza a hierarquia e a disciplina,
sem levar em conta que a qualidade do serviço ficará prejudicada.
Se tomarem decisões, o oficial ficará ressentido, e quando recebem
ordens das quais discordam, os subordinados agem com raiva,
quando deveriam ser promotores da ordem.
11) Precariedade da assistência – os policiais consideram que a
demanda para atendimento no hospital militar é muito maior do
que os recursos oferecidos, de forma que acabam sendo
precariamente assistidos em suas necessidades. Além disso, faltam
psicólogos e médicos nos batalhões.

Assim, segundo gestores e não-oficiais, para melhorar a saúde dos


policiais, as condições do trabalho precisariam ser repensadas: salário,
alimentação balanceada que passasse pela orientação de nutricionistas,
atividade física no local de trabalho, assistência à saúde e atividades de
confraternização.
Chefes e subalternos consideram muito séria a precariedade do
atendimento à saúde, porque a demanda é grande para poucos profissionais.
Reclamam que há bons profissionais médicos militares gozando de
privilégios que o corpo da Polícia Militar não tem. Por exemplo: esses
profissionais têm a carga horária menor que a dos oficiais não-médicos, o
que gera uma “falta de efetivo nos centros de atendimento”.

266
A maioria dos entrevistados se queixa da falta de atenção da
corporação às necessidades de suas famílias, à demanda de atendimento
aos dependentes de substâncias tóxicas e aos inativos. Pautados por uma
visão que ainda compreende a corporação como uma instituição fechada,
alguns sugerem a construção de mais hospitais militares. Vários reclamam
que precisam pagar pela educação de seus filhos e pela saúde, quando
acreditam que a instituição teria de se responsabilizar por isso. Muitos têm
plano de saúde distinto do que lhes é oferecido na corporação. O Estado
geralmente é lembrado por boa parte desses profissionais pelos papéis que
deixa de cumprir.
Resumindo, encontramos problemas e propostas de soluções
emanadas dos entrevistados dos vários escalões da Polícia Militar.
Entendemos que as autoridades competentes precisam ouvir esse coro de
muitas vozes, o que certamente trará benefícios para o atendimento que
esses servidores prestam à população. Cremos que não deveria ser preciso
que tantos policiais morressem ou se incapacitassem, física e
psicologicamente, para termos uma segurança pública de qualidade.

267
Parte IV

Condições e Qualidade de Vida


Nesta parte, pretendemos analisar como as condições e a qualidade
de vida, em suas diversas expressões – interação entre trabalho e mundo
social, condições socioeconômicas e ambientais, moradia, acesso à saúde e
educação, hábitos alimentares e hábitos culturais –, são conjugadas no
cotidiano dos policiais militares.
O termo ‘condições de vida’ integra um campo semântico que tem
seus limites nos conceitos de produção de bens e serviços e reprodução da
vida. Em um dos seus estudos clássicos, Marx (1983) evidencia que existe
uma relação intrínseca e dialética entre as esferas de produção, de
distribuição, de consumo e de reprodução não só de bens materiais, como
da vida social, embora cada uma dessas esferas tenha sua própria lógica.
Observamos essa relação dialética e intrínseca de forma absolutamente
relevante no estudo que apresentamos, reunindo questões objetivas e
subjetivas sobre os policiais militares.
Convencionalmente, condições de vida, no seu estado de
operacionalização, dizem respeito à renda familiar, à posse e ao tipo de
moradia (se nela há água encanada e banheiros, por exemplo), posse
de bens materiais (como propriedade de vários tipos de equipamentos
domésticos), práticas de consumo (incluindo tipos de alimentos), acesso à
educação, a serviços de saúde e a transportes. Desde o final do século XX,
variáveis e indicadores ambientais e socioambientais vêm sendo introduzidos
nas pesquisas sociais sobre condições de vida.
O termo ‘qualidade de vida’ traz consigo uma forte conotação de
valor, ao atribuir prioridades a alguns aspectos da existência. Trata-se
de uma noção eminentemente humana, subjetiva e polissêmica que tem
sido aproximada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar, amorosa,
social e ambiental e ao próprio sentido da existência. O termo, que abrange
muitos significados, reflete conhecimentos, experiências, valores de indivíduos
271
e coletividades que a ele se reportam, variando de acordo com o processo
histórico, a cultura e as classes e estratificações sociais. Isso quer dizer que,
em determinado momento de seu desenvolvimento econômico, social e
tecnológico, uma sociedade específica tem parâmetros de qualidade de vida
diferentes de outra sociedade em outra etapa histórica. Do ponto de vista
cultural, significa que valores e necessidades são construídos e hierarquizados
de forma específica por cada povo, revelando-se, nesse particular, suas
tradições. Por fim, no que concerne às classes, as concepções de bem-estar
também são estratificadas, diferenciando-se por segmentos sociais, embora
devamos ressaltar que a idéia hegemônica de qualidade de vida é sempre
estabelecida pelas camadas dominantes de uma sociedade.
Se analisarmos o desenvolvimento desse tema no mundo
contemporâneo, encontraremos, de um lado, a ideologia de qualidade de
vida da sociedade ocidental rica e balizada por um determinado conjunto de
valores. Esses valores, do ponto de vista hegemônico, podem ser resumidos
em um conjunto de aspirações, como a de acesso a prazer, boa mesa, moda,
utilidades domésticas, viagens, carros, televisão, computador, uso de tecnologias
que facilitam o trabalho fora e dentro de casa, arte e cultura.
De outro lado, existem os códigos dos direitos humanos universais
que colocam como parâmetro, para todas as sociedades, a exigência de que
cada pessoa tenha condições de satisfazer as suas necessidades mais
elementares. Esses requerimentos podem ser resumidos no acesso à
alimentação, à água potável, à habitação, ao trabalho, à saúde e ao lazer –
elementos materiais que têm como referência noções relativas de conforto,
bem-estar e realização individual e coletiva. Na sociedade ocidental
contemporânea, por exemplo, desemprego, exclusão social e violência são,
de forma objetiva, considerados situações de negação da qualidade de vida
humana (Minayo, Hartz & Buss, 2000).
Assim, a noção que aqui nos concerne, em seu sentido mais geral, diz
respeito: a condições, situações e estilos de vida; a idéias de desenvolvimento
sustentável e ecologia humana; ao campo da democracia, do desenvolvimento
e dos direitos humanos e sociais.
Propomos, pois, que a noção de ‘qualidade de vida’ signifique o padrão
que a própria sociedade determina e se mobiliza para conquistar por meio de
políticas públicas e sociais que induzem e norteiam o desenvolvimento humano
e as mudanças positivas no modo, nas condições e nos estilos de vida (Minayo,

272
Hartz & Buss, 2000). Mas entendemos que também existe um forte sentido
subjetivo nessa noção que diz respeito às escolhas individuais e aos valores a
elas atribuídos, de tal forma que cada pessoa tenha condições de responder
como sente e define a qualidade de sua vida.
Hoje, existem muitos estudos e propostas que tentam criar indicadores
e estabelecer parâmetros para operacionalizar a noção em pauta, visando a
intervenções sociais. O mais universal desses instrumentos é o chamado
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desenvolvido por Amartya
Sen (2000), que serve de referência para a comparação sobre qualidade
de vida entre um grande número de países. Criado para deslocar o debate
sobre desenvolvimento como crescimento econômico e assim incluir uma
visão mais abrangente, este índice mede nível de renda, saúde, educação e
longevidade das sociedades onde ele é adotado.
No Brasil, foram desenvolvidos outros instrumentos mais complexos,
que entram em sintonia fina para medir as desigualdades, as heterogeneidades
e as estratificações existentes no nível das microrrealidades municipais, estaduais
e do país como um todo. É o caso do Índice de Condições de Vida (ICV),
que trabalha com vinte indicadores (Ipea/IBGE/FJP/Pnud, 1998). Temos
também o exemplo do Índice de Qualidade de Vida (IQV), criado para
avaliar a situação da capital de São Paulo. Esse dispositivo mede, além dos
aspectos objetivos, fatores de natureza subjetiva (Índice Folha, 1999).
Na verdade, nos últimos trinta anos, o termo ‘qualidade de vida’
vem sendo muito usado na linguagem cotidiana por jornalistas, políticos,
profissionais de diversas áreas e gestores ligados às políticas públicas; assim
como no contexto da pesquisa científica, em diferentes campos do saber,
como a economia, a sociologia, a área da educação, a medicina, a
enfermagem, a psicologia e muitas especialidades do setor saúde (Bowling
& Brazier, 1995; Rogerson, 1995; Minayo, Hartz & Buss, 2000).
Na área científica, vários esforços têm sido feitos por autores que tentam
refinar instr umentos de aferição, buscando mostrar parâmetros
que correspondam ao padrão de desenvolvimento social e tecnológico local e
possam constituir subsídios para propostas de metas de políticas públicas.
O acentuado crescimento de pesquisas que buscam operacionalizar essa noção
nas duas últimas décadas atesta os esforços voltados para o amadurecimento
conceitual e metodológico do seu uso na linguagem científica.

273
Nesta parte do livro, trabalhamos com um conjunto de categorias de
indicadores para análises de grupos ou situações sociais, como fez Augusto
(2000). Damos ênfase aos seguintes aspectos da qualidade de vida dos
policiais militares: físicos, concernentes à habitação, ao saneamento, ao
transporte, à alimentação saudável e a outros; de direitos, referentes às
condições sociais, políticas e de cidadania; e subjetivos, a respeito da satisfação
pessoal. Tentamos guiar o presente estudo com base nessa classificação.

274
Indicadores Objetivos
14
de Qualidade de Vida
moradia, transporte, descanso e lazer

Moradia
Observamos que os oficiais, suboficiais e sargentos, mais do que os
cabos e soldados, têm casa própria já quitada. É importante destacar que
26,2% desses últimos vivem em moradias alugadas, o que deve comprometer
parte considerável de seus rendimentos. Pior situação é vivenciada por um
grupo de 10,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos e 15,7% dos não-
oficiais que moram ‘de favor’, como apresentamos no Gráfico 50.

Gráfico 50 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o tipo de casa em que
moram*

42,9%
Própria quitada
38,6%

20,6%
Própria financiada
11,8%

17,4%
Alugada
26,2%

10,6%
‘De favor’
15,7%

8,4%
Outros
7,8%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

*p=0,000

275
Constatamos que as condições de moradia dos policiais militares,
particularmente dos cabos e soldados, são piores do que as encontradas
entre os policiais civis. Enquanto mais de 60% dos civis e oficiais militares
possuem casa própria ou a têm em condição de financiamento (Minayo &
Souza, 2003), apenas 50,4% dos não-oficiais encontram-se nestas condições.
No setor administrativo, 67,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos
estão em melhor situação em relação aos não-oficiais, pois são os donos das
casas onde moram, mesmo que ainda estejam pagando seu financiamento.
Esse percentual é menor no grupo dos cabos e soldados (54,2%), com
diferença significativa (p=0,000) se comparado aos escalões superiores. É
importante destacar que é duas vezes maior (32,2%) o percentual de cabos
e soldados que moram em casas alugadas em relação aos oficiais, suboficiais
e sargentos (15%).
Para os operacionais, somados os que têm casa quitada e os que
ainda a estão pagando, encontramos 61,2% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 49,7% dos cabos e soldados. O aluguel é uma realidade para
16,4% dos primeiros e para 24,2% dos segundos, e essas diferenças entre
os cargos são estatisticamente significativas (p=0,000).
Se a compararmos com os dados obtidos pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006, do IBGE (2007), sobre os
domicílios urbanos brasileiros, observamos que a situação dos policiais militares
é bem pior que a da população brasileira e a da região metropolitana do Rio
de Janeiro. Em 2006, 73% dos domicílios brasileiros eram próprios, 18,7%,
alugados e 7,7%, cedidos. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, esses
percentuais atingiram 75,5%, 17,6% e 5,9%, respectivamente.
Acrescentamos que o fato de ter casa própria não garante qualidade
de vida e, possivelmente, parte dos domicílios dos policiais não tem boas
condições de habitabilidade, como demonstram as informações a seguir.
Em relação ao tamanho das casas, 59% dos oficiais, suboficiais e
sargentos e 59,5% dos cabos e soldados afirmam morar em domicílios que
têm de cinco a seis cômodos, o que equivale a divisões como sala, cozinha,
banheiro e dois a três quartos. Entre os administrativos, a média de números
de cômodos entre os oficiais, suboficiais e sargentos é de 5,81, e entre os
não-oficiais é de 5,37, com diferença significativa entre os cargos
(p=0,000). Entre os operacionais, essas médias chegam a 5,58 entre os
oficiais e 5,1 entre os cabos e soldados (p=0,000). Esses percentuais são

276
semelhantes aos encontrados entre os policiais civis: 55,6% declararam que
suas residências têm de cinco a seis cômodos (Minayo & Souza, 2003).
O número de pessoas que vivem nas casas varia de três a quatro, o
que corresponde a um casal com um ou dois filhos. Essa é a realidade de
61,5% dos oficiais, suboficiais e sargentos e de 60% dos cabos e soldados.
Tais dados estão muito próximos aos da população brasileira, pois o IBGE
(2006) indica que a média de pessoas por domicílio, calculada para o
Brasil como um todo, é 3,5; para a região Sudeste, 3,3; e para o Rio de
Janeiro, 3,1.
Quando avaliamos por categorias, o número médio de pessoas que
vivem na mesma residência entre os oficiais, suboficiais e sargentos
administrativos é de 3,67, e entre os cabos e soldados chega a 4,41 pessoas
(p=0,000). Entre os operacionais, há 3,83 pessoas em média na casa dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 3,53, nas moradias dos não-oficiais
(p=0,005).
Pudemos verificar que, em sua maioria, as condições objetivas de
moradia dos cabos e soldados são piores quando comparadas às dos oficiais,
suboficiais e sargentos. Os primeiros residem com mais freqüência em casas
alugadas, menores e com maior número de pessoas, o que condiz com seus
baixos soldos.
Nas entrevistas e nos grupos focais, soldados e cabos deram relevância
à relação entre os baixos salários quando falaram da questão da precariedade
de suas moradias. E os policiais de todas as patentes se referiram à falta de
assistência habitacional, ressaltando o fato de que boa parte dos que ganham
menos vive em locais considerados perigosos para sua integridade física.
Os gestores e oficiais entrevistados deram muita ênfase à situação de elevado
risco de morrer que soldados e cabos vivenciam, situação potencializada
pelo local da residência. Na pesquisa realizada com os policiais civis, esse
mesmo aspecto foi mencionado como um fator que interfere na qualidade
de vida. Os policiais civis queixavam-se de morar “em locais nos quais
convivem com traficantes, limitando, e mesmo impedindo, sua participação
na vida comunitária” (Minayo & Souza, 2003: 316). Eis alguns
depoimentos das praças, seguidos por falas de oficiais. Seus
pronunciamentos, quando discutíamos questões habitacionais, retornaram
ao conjunto das condições gerais de trabalho, sempre vinculadas à esfera
do seu universo social.

277
Queremos que pelo menos dêem valor ao trabalhador policial com salário
digno, escala digna para todos da corporação, o que nos daria possibilidade de
morar num lugar melhor. (Grupo focal com soldados e cabos)

Infelizmente, somos muito cobrados em nossas atividades. Por mais que


façamos, nunca nos dão o valor que merecemos. Trabalhamos muito e somos
mal remunerados. Moramos mal, não temos direito a nada com este
regulamento arcaico que só nos escraviza e só traz revolta à tropa, a ponto de
companheiros chegarem ao suicídio. (Grupo focal com sargentos)

Não fizemos um estudo específico sobre suicídio entre profissionais da


categoria. No entanto, 5,0% dos policiais militares do Rio de Janeiro (contra
3,0% dos policiais civis) já tiveram ideação suicida, o que reflete o mal-estar
e o sofrimento no trabalho que contaminam a sua vida social. Também a
literatura internacional ressalta que os policiais estão entre as categorias que
mais cometem autoviolência (Vena et al., 1986; Kelley, 2005).

Descanso e Lazer
Em relação ao descanso e ao lazer, investigamos os hábitos mais
comuns dos policiais militares. Em geral, as atividades mais citadas foram
‘ficar em casa com a família’, ‘ver televisão’, ‘descansar’ e ‘dormir’.
Constatamos que os cabos e soldados se destacam em relação a
opções de dormir, encontrar amigos, namorar, praticar esportes e ir à
igreja (Gráfico 51). Eles também, em maiores proporções que os oficiais,
suboficiais e sargentos, referiram exercer uma atividade extra, usando,
portanto, seu tempo de folga na Polícia para trabalhar em um segundo
emprego. Isso foi confirmado por dados que apresentamos anteriormente,
mostrando que tal situação ocorre com 61,1% dos cabos e soldados e com
51,6% dos oficiais, suboficiais e sargentos. O fato de usar as folgas também
para dormir é compreensível, pois grande parte desses agentes relatou
trabalhar em horários noturnos há sete meses ou mais (63,1%), conforme
indicado na parte em que analisamos as condições de trabalho.
Foi construída uma variável para analisarmos as especificidades dos
momentos de folga dos militares a partir da questão anterior, classificando
como ‘lazer comunitário’ os itens: viajar, ir ao cinema, passear, ir a bares, ir
a clubes, ir à igreja, praticar esportes e encontrar amigos. Como ‘lazer

278
domiciliar’ foram considerados os itens: ler, ver TV, ficar em casa com a
família, ficar sozinho, dormir e descansar. Foi feita uma soma dos itens
relativos aos tipos de lazer, cada um deles valendo um ponto. Consideramos
‘lazer comunitário ou domiciliar’ como um valor ‘baixo’, quando a soma
dos itens foi menor que um; ‘médio’, quando o intervalo foi de dois a
quatro; e ‘alto’, se a pontuação ultrapassou quatro.

Gráfico 51 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo coisas que costumam
fazer nas folgas

Ficar em casa com a família 89,5%


88,5%
Ver TV 85,9%
85,1%
Descansar 83,0%
82,2%
Dormir 72,9%
81,1%
Ler 62,7%
57,0%
Encontrar os amigos 61,2%
65,4%
Passear 59,8%
59,5%
Namorar 57,5%
71,8%
Ir a festas 57,2%
56,5%
Praticar esportes 49,1%
50,3%
Ir à igreja 46,7%
46,8%
Ir a bares 32,0%
24,4%
Ir ao cinema 31,0%
30,5%
Ficar sozinho 24,2%
21,7%
Viajar 19,7%
9,9%
Exercer atividade paralela 18,8%
32,4% Oficial / Suboficial / Sargentos

Ir a clubes 18,3% Cabos / Soldados


18,1%

p=0,000

Com base nessas medidas, obser vamos que, no grupo dos


administrativos, um percentual mais elevado de cabos e soldados (47,4%
versus 39,4% dos oficiais, suboficiais e sargentos) atingiu alto nível de
lazer comunitário (p=0,000). E um percentual maior dos últimos (55,2%

279
deles contra 50,9% dos não-oficiais – p=0,000) se destacou por dar
prioridade ao lazer domiciliar. A preferência por lazer extradomiciliar entre
os cabos e soldados pode, em parte, ser explicada pelo fato de eles serem
mais jovens que os seus colegas oficiais, suboficiais e sargentos.
Ressaltamos ainda que, no tocante ao lazer nos períodos de folga, as
atividades são coincidentes entre policiais civis (Minayo & Souza 2003) e
militares. Ficar com a família, descansar e ver televisão também foram as
atividades mais freqüentemente mencionadas pelos policiais civis. No entanto,
podemos observar diferenças estatísticas entre as duas corporações, com
significâncias que variam de p<0,000 a 0,018: os policiais militares, mais
que os civis, costumam durante as folgas ir ao cinema, ver TV, ir a festas e à
igreja, praticar esportes, encontrar amigos, namorar e dormir. Já os policiais
civis costumam, mais que os militares, viajar, ler, ficar em casa com a família,
ficar sozinhos e descansar (Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Na pesquisa qualitativa, os policiais falaram mais da falta de tempo
e espaço para o descanso do que da sensação positiva de estar em seus
domicílios. A ausência de lazer fora de casa foi bastante justificada pelos
baixos soldos. Nos grupos focais, alguns disseram: “Sabe qual é o lazer de
policial? É ficar correndo atrás de bandido! Diversão da gente é correr em
favela! Atrás de bandido! Lazer da gente é esse: é tomar tiro e dar tiro!”.
Muitos deles repetiram que viver em locais de risco muitas vezes implica
compartilhar o local de moradia com pessoas envolvidas em contravenções,
o que dificulta programar qualquer atividade fora de casa.
Os depoimentos a seguir, emitidos por soldados, cabos e sargentos,
evidenciam a dimensão dos sentimentos desses servidores que, ao fazerem
opção por determinado tipo de descanso, não levam em conta apenas gostos
pessoais ou familiares, mas também as condições gerais de existência, marcadas
pelas vivências da profissão. Entre elas, principalmente, destacamos a
exigüidade do tempo, a falta de dinheiro e a possibilidade de serem feridos e
lesionados por delinqüentes: “A questão é a seguinte: quando tem tempo,
não tem dinheiro; e quando tem dinheiro, não tem tempo” e “Para sair,
principalmente com a família, precisa pensar onde pode ir. Se chegar no
lugar errado, na hora errada, e for reconhecido como policial estando junto
da família... Então, tem de ser algo muito estudado”.

280
Este último depoimento chama a atenção para o fato de que, apesar
de esses servidores vivenciarem a condição de policial 24 horas por dia, a
realização do trabalho sob a égide institucional lhes oferece muito mais
proteção do que nas situações de descanso ou realizando outras atividades
fora da corporação.

281
Indicadores Subjetivos
15
de Qualidade de Vida
percepção sobre relações,
apoio social e visão de futuro
Investigamos também questões subjetivas, dando ênfase às
representações sobre o conceito de qualidade de vida, às relações interpessoais
e aos apoios sociais que os policiais informam ter e acham importante para
sua existência.
Instados a definir o que consideram ‘qualidade de vida’ em geral, as
respostas dos policiais deram grande importância a questões relacionadas
ao poder aquisitivo, à capacidade de adquirir bens e ao acesso a alguns
serviços privados: pagar as contas, ter plano de saúde para si e para a
família, propiciar escola particular para os filhos e possuir carro. A posse
de um bom carro é o símbolo máximo de status. E se analisarmos a listagem
dos bens materiais associados ao bem-estar, concluímos que ela constitui o
básico de um sonho voltado para o nível intermediário da classe média,
sem maiores ambições de consumo.11
Para falar da qualidade de sua vida, os policiais das duas corporações
construíram associações e identificações por oposição à situação de outros
ou estabelecendo hierarquias dentro dos próprios segmentos institucionais.
Para os policiais civis, o primeiro alvo de comparação são os policiais
militares, que, segundo alguns entrevistados, estão em situação pior quanto
às condições objetivas de vida e melhor quanto à assistência à saúde.

Se você fizer uma comparação, por exemplo, com um policial militar, isso
em relação ao padrão de vida deles que a gente vê, acho que nós somos um
pouquinho mais privilegiados. Na Polícia Militar, acho que existe uma

11
Não estamos nos referindo aqui aos desvios de conduta tão freqüentemente apontados pela
mídia, quando policiais militares – e civis – apresentam um nível de consumo e
enriquecimento absolutamente incompatível com sua profissão e remuneração. Partimos do
princípio de que a maioria dos policiais é honesta e cumpre sua missão constitucional.

283
assistência médica um pouco melhor, até pela organização militar. Eles estão
afastados da média do funcionalismo público como um todo. Hoje é inegável
dizer que o Iaserj [Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de
Janeiro] faliu. A verba do Iaserj entrou numa caixa única e a assistência
médica para o policial e para a família do policial acabou sendo deteriorada.

Os policiais militares também consideram que, em termos


qualitativos, sua vida é muito pior do que a dos policiais civis, no Rio de
Janeiro. Tendo o trabalho como referência central, é a partir dele que esses
profissionais produzem comparações entre as duas categorias. Ressaltam
que sua escala de serviço é massacrante, se comparada à dos civis. Além
disso, a vida dos policiais militares que atuam na área operacional é descrita
como de ‘duplo estresse’: do ponto de vista da lógica do ‘combate’ e da
ótica ‘disciplinar ’, porque a investidura militar imputa uma
responsabilidade mais severa a eles do que aos policiais civis. Dizem: “No
primeiro caso, corremos o risco de morrer e no segundo, de ser presos e
receber duras punições”.
Em um único grupo de policiais militares que apresentou aspectos
positivos, os profissionais também expressaram a opinião de que suas
condições de vida não são tão ruins, em comparação com a da população
brasileira pobre, pois têm um emprego que lhes possibilita superar as
dificuldades e obter um padrão de vida razoável. Foi o caso de um batalhão
situado na Zona Sul da cidade, composto por sargentos e subtenentes
envolvidos em atividades administrativas e operacionais.
Uma observação necessária quando analisamos a especificidade do
tema em pauta, na forma como ele é definido pelos próprios policiais militares,
é que, de fato, estamos diante de uma categoria profissional que se considera
em prontidão profissional 24 horas por dia. Isso significa que, para eles,
existe uma simbiose entre condições de produção de serviços e condições de
reprodução da existência. De qualquer ótica que façamos perguntas sobre
a ‘qualidade de sua vida’, eles nos remetem às situações que vivenciam na
prestação dos serviços de segurança. Reiteradamente nos dizem também
que, quando não estão na corporação, ou estão exercendo uma função
como segurança em empresa privada, o seu espírito, mesmo em casa, está
alerta. Um soldado desabafa: “Não há qualidade de vida em meio a tanta
tensão e pressão”. E alguns depoimentos apresentados por profissionais do
círculo das praças dão bem a medida de suas interpretações:

284
O cara que trabalha decente prepara a escalinha dele bonitinho, ele vai
complementar esse salário com uma segurança, um ‘bico’, o que vai desgastar
ainda mais o companheiro. Ele vai ficar muito mais extenuado, muito mais cansado,
estressado porque, quando ele estaria no seu dia de folga, tem de completar a sua
renda com um ‘bico’. Daí aumenta mais ainda o nível de estresse.

Não há um parâmetro para estabelecer se [a qualidade de vida] é boa ou


ruim. Na verdade, a gente não tem qualidade de vida. Isso atinge diretamente
a auto-estima, primeiro como policial e depois como soldado. Eu acho que
esse é o primeiro ponto para fazer qualquer outro tipo de análise. O trabalho é
insalubre, os direitos mais elementares como profissionais da Polícia são
negados. Não existe [qualidade de vida]. Então, esse quadro em que nós nos
vemos acaba atingindo diretamente o tipo de serviço que está sendo oferecido
à população. Nós já somos motivo até de chacota dos bandidos.

Mas também os oficiais e gestores são muito críticos e, igualmente,


fazem uma tradução imediata do conceito tendo como referência principal
o universo do trabalho. Eles teceram considerações com base nos parâmetros
objetivos e subjetivos de sua realidade, situando-a no contexto econômico,
social e político do Rio de Janeiro. E os entrevistados de todos os escalões
enunciam expressões de nuances sombrias e visão negativa sobre inúmeros
aspectos pelos quais consideram que os policiais militares não têm uma
vida de boa qualidade e deveriam ser mais bem assistidos.
Os entrevistados, em sua maioria, ressaltaram também como um
ponto negativo de sua vida um sentimento persecutório que os assedia pelo
medo de serem identificados como policiais por algum assaltante ou
delinqüente ou de serem malquistos e menosprezados por onde andam.
Essa situação é respaldada por dados da realidade, segundo os quais mais
da metade dos policiais que morreram ou foram feridos nos últimos cinco
anos foram alvejados fora de seu horário de expediente na corporação, como
já assinalamos anteriormente (Souza & Minayo, 2005).
Assim, por mais que buscássemos dados objetivos sobre qualidade
de vida – e apresentamos informações sobre isso –, tentando fazer uma
separação entre a esfera das atividades profissionais e a rotina cotidiana na
esfera da reprodução social, observamos uma tensão constante entre o espaço
da casa, o da rua e o do trabalho.
Tendo em vista que ‘apoio social’ é o aspecto protetivo mais citado
por estudiosos que trabalham com a questão do estresse policial, investigamos

285
esse tema em relação aos “recursos de que esses profissionais dispõem em
situações de necessidade” (Due et al., 1999). É reconhecido também – e já
falamos sobre isso na Parte III – que o ‘apoio social’ pode desempenhar um
papel mediador, contribuindo para manter a saúde e permitindo que as
pessoas lidem melhor com os problemas do dia-a-dia. Pessoas socialmente
mais integradas costumam apresentar menos doenças e ter melhor
prognóstico quando adoecem (Domingues, 2000; Costa & Ludermir, 2005;
Griep et al., 2005).
Muitos estudos sugerem associação inversa entre o nível de ‘apoio
social’ e a ocorrência de sofrimento psíquico, distúrbios psiquiátricos,
problemas nervosos, insônia e consumo de substâncias como cigarro e álcool,
entre outros problemas de saúde (Holahan & Moos, 1981; Frydman, 1981;
Westman & Shirom, 1985; Hanson & Östergren, 1987; Krantz &
Östergren, 2000).
Para fins analíticos, é importante considerar a percepção do indivíduo
sobre o apoio que considera ter. Os efeitos benéficos da integração social
podem ser reconhecidos na sensação de bem-estar, que se relaciona com o
aumento da satisfação com a vida, com a auto-estima e com a diminuição
de sintomas, como ansiedade (Broadhead et al. apud Griep et al., 2003a).
Aplicamos uma escala padronizada para medir o apoio com que os
policiais militares contam nas áreas afetiva, emocional, material, de
informação e de interação social. O Gráfico 52 mostra as respostas, somando-
se os itens ‘sempre’ e ‘quase sempre’ referentes à pergunta ‘Se precisar, com
que freqüência conta com alguém?’ em cada uma das dimensões avaliadas
pela escala.
Em geral, os policiais dos dois grupos responderam que contam mais
freqüentemente com apoio afetivo e de interação social positiva sobretudo
dentro do contexto familiar. Suas respostas também foram bastante freqüentes
para um dos itens referentes ao apoio material, que perguntava se a pessoa
‘conta sempre ou quase sempre com alguém para preparar suas refeições’.
Quando comparamos o grupo dos oficiais, suboficiais e sargentos com
o dos cabos e soldados, ressaltamos que, em geral, a freqüência das respostas
positivas foi maior entre estes do que entre aqueles. Os segundos afirmam ter
mais apoio social, com diferença significativa em todos os itens da escala.

286
Em comparação com policiais civis, os não-oficiais evidenciaram
porcentagens semelhantes no que se refere a ‘ter apoio afetivo, material e
interação positiva’. Ao contrário, as porcentagens dos oficiais e suboficiais
foram, em sua maioria, inferiores às dos civis. Em relação a apoio emocional
e de informação, os policiais militares aparecem como muito mais carentes
que os civis (Minayo, Souza & Constantino, 2007).

Gráfico 52 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo a condição de contar


sempre ou quase sempre com alguém quando precise
78,5%
Demonstrar amor e afeto* 86,5%
Apoio afetivo

77,8%
Amar e se sentir amado* 84,7%
71,6%
Dar abraço* 78,6%

78,3%
Preparar refeições* 82,5%
70,2%
Apoio material

Ajudar, se ficar de cama* 70,5%


70,1%
Ajudar nas tarefas diárias* 73,5%
58,2%
Levar ao médico* 62,4%

74,5%
Se divertir junto* 80,8%
Interação positiva

Fazer coisas agradáveis* 72,3%


79,3%
68,3%
Relaxar* 76,6%
66,5%
Distrair a cabeça* 72,2%

65,2%
Ouvir, quando precisa falar* 66,4%
Apoio emocional

58,7%
Confiar em alguém para falar de você* 64,1%
60,8%
Compreender seus problemas* 64,6%
Compartilhar medos* 58,5%
64,2%
Apoio de informação

58,6%
Dar informação ou ajudar a compreender* 65,6%
60,1%
Dar conselhos, em uma crise* 63,3%
Dar sugestões para problema pessoal* 58, 8%
62,0%
59,3%
De quem você quer conselhos* 64,6%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

287
Para avaliar a capacidade de discriminação do instrumento de
pesquisa para aferir as dimensões subjacentes à versão original da escala,
realizamos uma análise fatorial. Recorrendo a essa técnica estatística,
analisamos as inter-relações entre as variáveis de forma a agregá-las tanto
quanto possível (Griep et al., 2005). A partir de então, três fatores foram
constituídos: no fator 1, ficou ‘apoio emocional e apoio de informação’,
com alfa de Cronbach de a=0,95; o fator 2 ficou composto pelo ‘apoio
afetivo e apoio de interação social positiva’ mais o item ‘preparar refeições’,
com a=0,93; e, finalmente, o fator 3 foi constituído pelos itens ‘apoio
material’e ‘contar com alguém que o ajude se ficar de cama’, com a=0,83.
Os escores obtidos pelos policiais foram divididos em tercis: no
primeiro ficaram os mais altos; no segundo, os médios; no terceiro, os níveis
mais baixos referentes ao apoio social. Podemos constatar, com base na
Tabela 13, que a maior parte dos policiais militares administrativos obteve
escores incluídos no nível baixo para os dois primeiros fatores: 35,4% dos
oficiais, suboficiais e sargentos e 37,3% dos cabos e soldados no fator 1
(p=0,006). E 34,3% dos primeiros e 38,9% dos segundos, no fator 2
(p=0,006). No fator 3, que corresponde ao item ‘apoio material’ mais
‘contar com alguém que o ajude se ficar de cama’, os policiais dos dois
cargos se incluíram no tercil médio, sendo que os oficiais, suboficiais e
sargentos obtiveram maior freqüência (p=0,000).
No grupo dos operacionais, os maiores percentuais se encontram
nos níveis alto e médio. No fator 1, 42,3% dos oficiais, suboficiais e sargentos
alcançaram o nível alto, enquanto os cabos e soldados, em sua maioria,
permaneceram no nível médio (34,3%), com diferença significativa entre
os cargos (p=0,000). Para o fator 2, que inclui ‘apoio afetivo’ e ‘interação
social positiva’ mais o item ‘alguém para preparar refeições’, os operacionais
obtiveram escores que os incluíram no tercil mais alto: 42,7% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 34,2% dos cabos e soldados (p=0,000). Novamente
no fator 3, os primeiros atingiram tercis alto e médio e os segundos se
concentraram no tercil médio (p=0,000).
Realizamos também a investigação dos escores de apoio social levando
em conta outras características, como as sociodemográficas, de rede social,
de condições de saúde física e mental, tal como é proposto por Griep e
colaboradores (2005).

288
Tabela 13 – Distribuição proporcional do apoio social dos policiais militares segundo estratos,
cargos, fatores e tercis
Fator 1* Fator 2** Fator 3***

Estratos Cargos Tercis Tercis Tercis

Alto Médio B aix o Alto Médio B aix o Alto Médio B aix o

Oficial/Sub oficial/
31,6 32,9 35,4 31,5 34,2 34,3 22,0 47,7 30,3
Administrativo Sargento

Cab os e soldados 27,1 35,6 37,3 27,8 33,3 38,9 21,1 40,4 38,6

Oficial/Sub oficial/
42,3 31,4 26,2 42,7 26,0 31,2 35,3 35,3 29,4
Operacional Sargento

Cab os e soldados 32,8 34,3 32,9 34,2 33,3 32,5 30,3 42,3 27,4

* Fator 1 – Apoio emocional e apoio de informação.


** Fator 2 – Apoio afetivo e de interação social positiva, mais o item alguém para preparar refeições.
*** Fator 3 – Apoio material mais o item contar com alguém que o ajude se ficar de cama.

Seguindo as hipóteses propostas por Griep e colaboradores (2005),


as mulheres, os mais jovens e os indivíduos com maior escolaridade e renda
apresentam, freqüentemente, altos escores de apoio social. Como
evidenciamos na Tabela 14, as chances de os policiais militares com curso
superior completo ou incompleto terem ‘alto apoio material’ foram 2,59
vezes maiores do que as dos que possuem escolaridade mais baixa (IC
95%: 1,29 – 5,22); entre os que possuem pós-graduação, essas chances
são 4,15 vezes maiores (IC 95%: 1,26 – 13,66). Entre os policiais militares
que referiram renda familiar acima de R$ 4.000, as chances de contar com
elevado apoio foram observadas em relação a todos os três fatores
identificados na análise fatorial.
A segunda hipótese de Griep e colaboradores (2005) afirma que
pessoas com maior número de parentes, de amigos íntimos, que são
casadas ou moram com outras pessoas e participam de atividades sociais
em grupo têm mais chance de apresentar altos escores de apoio social.
Domingues (2000) lembra que o grupo familiar e a comunidade composta
por amigos e vizinhos, apesar de todas as dificuldades e contradições, são
lugares naturais de proteção e inclusão social, porque ali as pessoas
encontram companhia, possibilidades de compartilhar confidências, prover
serviços ou obter auxílio em atividades cotidianas.

289
Tabela 14 – Associação entre variáveis selecionadas e alto apoio social de policiais militares
nos três fatores da escala
Fator 1 - Emocional
Fator 2 - A fetivo &Interação Positiva Fator 3 - Material
&Informação
Variáveis
OR - Wald Wald Wald
I.C 95 % OR * I.C 95 % OR * I.C 95 %
* F F F
Masculino 0,85 0,44 1,66 0,82 0,41 1,64 0,89 0,45 1,74
Sexo 0,636 0,580 0,730
Feminino - - - - - - - - -
Até 25 anos 1,90 0,90 4,03 2,15 0,96 4,83 1,67 0,78 3,58

De 26 a 35 anos 1,24 0,76 2,05 1,10 0,66 1,83 0,78 0,48 1,29
Id a d e 0,161 0,177 0,082
De 36 a 45 anos 1,02 0,61 1,71 1,00 0,59 1,69 0,77 0,46 1,29

46 anos ou mais - - - - - - - - -

Casado/companh eiro 1,33 1,00 1,77 1,67 1,25 2,23 1,55 1,16 2,07
Situação conjugal 0,053 0,001 0,003
Solteiro/viúvo/separado - - - - - - - - -
Sim, freq üentemente 2,15 1,49 3,10 1,62 1,12 2,34 1,51 1,05 2,17
Prática de religião Sim, às vezes 1,41 1,02 1,93 0,000 1,27 0,93 1,74 0,035 1,15 0,84 1,56 0,066
Não - - - - - - - - -
Ensino médio
1,80 0,91 3,56 1,16 0,62 2,18 1,69 0,86 3,31
completo/incompleto
Superior
2,24 1,11 4,54 1,41 0,73 2,72 2,59 1,29 5,22
completo/incompleto
Escolaridade 0,098 0,277 0,002
Pós-graduação 2,56 0,82 7,99 2,45 0,72 8,28 4,15 1,26 13,66

Ensino fundamental
- - - - - - - - -
completo\incompleto

De R$ 501 a R$ 1.500 1,26 0,56 2,85 1,06 0,47 2,37 1,42 0,62 3,26

De R$ 1.501 a R$ 4.000 1,31 0,57 2,97 1,17 0,52 2,65 1,81 0,78 4,19
Renda familiar 0,010 0,019 0,021
Mais de R$ 4.000 3,73 1,36 10,22 3,30 1,16 9,43 3,17 1,16 8,66

Até R$ 500 - - - - - - - - -
Médio 1,41 0,99 2,01 1,21 0,86 1,71 1,33 0,93 1,88
Lazer
Alto 1,99 1,39 2,87 0,001 1,64 1,14 2,36 0,017 1,66 1,16 2,39 0,021
comunitário
B aix o - - - - - - - - -

Satisfação com a Satisfeito 2,21 1,67 2,93 2,40 1,82 3,18 1,92 1,46 2,54
0,000 0,000 0,000
saúde Não satisfeito - - - - - - - - -

Sofrimento Não tem prob lemas 1,79 1,38 2,34 2,11 1,62 2,75 1,91 1,47 2,47
0,000 0,000 0,000
psíq uico
Tem prob lemas - - - - - - - - -

*Odds Ratio

290
Nos testes que realizamos com os dados da pesquisa, confirmamos a
hipótese anterior. Entre os casados ou com companheiros, as chances de
contar com alto apoio afetivo e de ter interação social positiva (fator 1) são
maiores que entre os que estão sozinhos (OR 1,67; IC 95%: 1,25 – 2,23)
e também é assim para o fator 3, que diz respeito ao apoio material (OR
1,55; IC 95%: 1,05 – 2,17). Para os que praticam algum tipo de religião,
foram encontrados altos escores de apoio social para os fatores 1 e 2.
A presença de lazer comunitário também foi uma característica associada à
alta chance de obter apoio social, como verificamos na mesma Tabela 14.
Enfim, a terceira hipótese diz que indivíduos com melhor percepção
sobre seu estado de saúde, com menor número de doenças crônicas e que
não apresentam transtornos mentais comuns têm maior chance de contar
com altos escores de apoio social.
Os policiais militares que estão mais satisfeitos com a saúde e os que
não apresentam sintomas de sofrimento psíquico realmente têm mais apoio
social em todas as dimensões investigadas. Essa constatação sugere que o
apoio e a solidariedade promovem bem-estar e vida de qualidade. A boa
situação de saúde física e mental também facilita a convivência em harmonia
e os vários tipos de apoio social, em um círculo virtuoso de bem-estar.
No Gráfico 53, observa-se que a satisfação dos policiais militares
com alguns aspectos da vida foi superior a 80%, tanto para os oficiais e
suboficiais como para os não-oficiais nos itens círculo familiar, vida sexual
e afetiva, educação que recebeu e capacidade de reagir a situações difíceis.
Quando comparamos os dois grupos, entre os cabos e soldados a satisfação
é maior do que entre os oficiais, suboficiais e sargentos nessas questões. Por
sua vez, o segundo grupo apresenta maior grau de satisfação nos seguinte
itens: família, felicidade dos familiares, bairro em que residem, vida social,
vida como um todo, tempo de lazer, padrão de vida e realização profissional.
Observando as respostas emitidas pelos policiais militares, tanto os
administrativos como os operacionais, é possível identificar sua grande
satisfação com a vida familiar, afetiva e sexual. Cerca de 36,8% dos oficiais,
suboficiais e sargentos e 32,2% dos cabos e soldados (p=0,000)
administrativos se queixam do pouco tempo disponível para o lazer e 35,3%
e 15,3% deles, respectivamente (p=0,000), mostram insatisfação com seu
padrão de vida. Entre os operacionais, o menor grau de satisfação ocorre nos
itens tempo para lazer (27% por parte dos oficiais, suboficiais e sargentos e
22,1% dos não-oficiais; p=0,000) e realização profissional (40,7% dos

291
oficiais, suboficiais e sargentos e 32,5 dos cabos e soldados; p=0,000).
A Tabela 15 mostra as respostas mais freqüentes dos dois grupos a respeito
dos aspectos pesquisados.

Gráfico 53 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo o grau de satisfação


com aspectos da vida
Círculo familiar* 85,0%
90,6%
Vida sexual* 82,3%
91,7%
Vida afetiva* 82,2%
88,3%
Educação que recebeu* 77,7%
82,6%
Reagir a situações difíceis* 77,3%
80,6%
Capacidades / habilidades* 75,6%
79,6%
Felicidade dos familiares* 74,5%
70,5%
Felicidade 73,8%
74,8%
Vida espiritual* 72,4%
75,0%
Vida como um todo* 70,4%
66,2%
Saúde* 67,4%
72,0%
Bairro* 61,9%
56,5%
Vida social* 60,8%
54,4%
Realização profissional* 45,3%
32,4%
Tempo para lazer* 29,9%
23,6%
28,4% Oficial / Suboficial / Sargentos
Padrão de vida*
15,4%
Cabos / Soldados

* p=0,000

Há grande concordância entre policiais civis e militares em relação


aos temas de desempenho pessoal, afetivo e familiar (Minayo, Souza &
Constantino, 2007). Os profissionais das duas corporações estão ‘muito
satisfeitos’ ou simplesmente ‘satisfeitos’ com a educação que receberam,
com seu círculo familiar, sua vida afetiva e sexual, e sua capacidade e
habilidades para reagir a situações difíceis. Da mesma forma, os dois grupos
concordam quanto ao item sobre o qual sentem menos satisfação: ‘tempo
disponível para o lazer’. Seria escusado relacionar essa queixa com os

292
problemas de carga horária e de dupla jornada, uma vez que a isso nos
referimos nas partes II e III.

Tabela 15 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo principais aspectos de


satisfação com a vida, estratos e cargos
Administrativo Operacional
Itens
Oficial/Sub oficial/ Cab os eSoldados Oficial/Sub oficial/ Cab os eSoldados
Sargento Sargento

Círculo familiar* 89,9 89,8 82,9 90,7

Vida afetiva* 86,9 88,1 80,2 88,4


Vida sexual* 84,1 88,1 81,5 92,3
Felicidade* 82,0 78,0 70,4 74,2
Capacidades/h ab ilidades* 80,3 79,7 73,7 79,6
Educação q ue receb eu* 80,2 79,6 76,7 83,1

(*) Diferenças estatisticamente significativas entre os cargos, com p variando de 0,000 a 0,005.

Em relação ao futuro, as expectativas de melhoria estão mais presentes


entre os cabos e soldados, quando comparados aos oficiais, suboficiais e
sargentos, em todas as questões propostas neste estudo. É importante dar
relevância ao fato de que ‘a reduzida satisfação com a vida profissional’ e
com o ‘padrão de vida’ não estão impedindo que um grupo significativo de
policiais expresse seu otimismo quanto ao seu futuro (Gráfico 54).
As maiores expectativas dos policiais do setor administrativo se
encontram na melhoria da vida pessoal (75,1% dos oficiais e suboficiais e
79,6% dos não-oficiais; p=0,000) e do padrão de vida (66,9% dos oficiais
e suboficiais e 81,4% dos não-oficiais; p=0,000). Mas também os que atuam
em serviços operacionais esperam que o futuro seja melhor no que se refere a
sua vida pessoal (68,7% dos oficiais e 75,9% dos não-oficiais; p=0,000) e a
sua vida familiar (68,7% dos oficiais e 72,3% dos não-oficiais; p=0,000).
Apesar da pouca satisfação quanto aos aspectos relacionados ao
trabalho, 64% dos oficiais e 45% dos cabos e soldados reconhecem que sua
vida como um todo melhorou depois que entraram na corporação. No Gráfico
55, podemos ter uma idéia, por outro lado, de que há uma boa parcela
insatisfeita com a realização no trabalho e do que isso significa para sua

293
realização pessoal. Somando os que consideram que tudo continuou igual e
os que acham que sua situação está pior, encontramos mais da metade dos
soldados e cabos e 36% dos oficiais e suboficiais e sargentos insatisfeitos.

Gráfico 54 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo as expectativas de


melhoria para o futuro
70,5%
Vida pessoal*
76,4%
68,7%
Vida familiar*
72,8%

64,0%
Padrão de vida*
73,5%
56,4%
Vida profissional*
67,6%
43,3%
Condição de trabalho*
53,5%
40,2%
Condição de saúde*
48,7%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Gráfico 55 – Distribuição proporcional dos policiais militares segundo situação de vida após
ingresso na Polícia

64,0%
Melhorou
45,0%

21,9%
Continua igual
27,6%

14,2%
Piorou
27,3%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

294
No grupo administrativo, os oficiais, suboficiais e sargentos, mais do
que os cabos e soldados, acham que sua vida melhorou após entrarem para
a Polícia Militar, mas também impressiona o grande percentual de oficiais
que ressalta uma piora em sua situação de vida. Entre os operacionais, os
cabos e soldados, mais que os oficiais, suboficiais e sargentos, também dizem
que sua vida piorou após a entrada na corporação, conforme está exposto
no Gráfico 56.
Apesar de os dados quantitativos serem na maioria dos aspectos mais
positivos do que negativos, quando discutimos nos grupos focais, os policiais
militares referiram que a ‘qualidade de sua vida’ não é boa, utilizando
expressões enfáticas para ressaltar os aspectos negativos, tais como “ruim”,
“difícil”, “muito ruim” ou até “inexistente”. Por isso, resolvemos fazer uma
reflexão qualitativa sobre o conjunto das informações.

Gráfico 56 – Distribuição proporcional dos policiais militares relativa à situação de vida após
ingresso na Polícia, segundo setor

64,0%
Melhorou
45,0%

21,9%
Continua igual
27,6%

14,2%
Piorou
27,3%

Oficial / Suboficial / Sargentos Cabos / Soldados

* p=0,000

Tanto os policiais militares como os civis (Minayo & Souza, 2003)


ressaltam a influência do medo e do risco que correm em uma cidade como o
Rio de Janeiro, onde são alvos fáceis de delinqüentes, como fator importante
de prejuízo para a qualidade de sua vida. Como vimos na Parte II, mais da
metade dos policiais em serviço que vão a óbito morrem fora do expediente.
Entrevistas e grupos focais com os policiais civis também revelaram
um nível elevado de insatisfação com as condições gerais de existência, embora
não de forma tão peremptória como na Polícia Militar. Subjetivamente, esses

295
profissionais avaliaram, por meio das mais diferentes, contraditórias e
convergentes respostas, que a qualidade de sua vida é “boa”, “melhorou um
pouco”, “está longe do ideal”, “tem muito a melhorar”, “é normal”, “é
razoável”, “não é ruim”, “é sem problema”, “é regular” e “é cheia de
preocupação e de cobrança”. Muitos, porém, da mesma forma que os policiais
militares, se expressaram enfaticamente com expressões negativas, dizendo
que sua vida é “estressante”, “precária”, “ruim” e “péssima”.

296
Focos de Insatisfação e Satisfação
16
com a Qualidade de Vida

Em Primeiro Lugar, a Questão Salarial


Na descrição das condições e qualidade vida, do ponto de vista
qualitativo, o foco de insatisfações mais relevante mencionado por policiais
de todos os escalões é o salário: “O salário para assegurar tranqüilidade à
família”. No entanto, os depoimentos mais enfáticos sobre o assunto foram
pronunciados por soldados, cabos e sargentos, dizendo que o baixo soldo
justifica sua inferioridade na sociedade e prejudica a qualidade de sua vida
e a de sua família. As praças dizem que seu salário lhes permite pouco mais
que custear a locomoção de sua moradia distante até o local de trabalho.
Tanto os chefes como os subordinados freqüentemente evidenciaram o óbvio,
dizendo que quanto menor a graduação do policial, piores são suas condições
de existência, o que se reflete nos locais de moradia muito distantes das
áreas onde trabalham, na baixa qualidade das habitações, na escassa posse
de bens e nas poucas alternativas de vida social e de lazer.
Os salários baixos se juntam com: carga horária muito extensa de
trabalho e o ‘bico’; má alimentação – são eles que assim a classificam – que
lhes é oferecida nas unidades de trabalho; falta de reconhecimento e mesmo
o menosprezo por parte da população, dirigido justamente a eles que têm a
missão de lhe servir; desvalorização por parte do Estado e dos governantes;
rigidez disciplinar interna da corporação.
A questão salarial é grave porque, dizem vários policiais militares,
“A população não conhece nossas condições financeiras. Não ter dinheiro
abala emocionalmente, estressa, provoca vários problemas de saúde, como
hipertensão, úlcera, insônia e depressão”. Também os policias civis se
expressam quanto a esse tema, como pode ser constatado nos depoimentos
de um grupo de operacionais que enfatiza o fato de que a remuneração
deveria lhes dar tranqüilidade para se dedicarem integralmente a suas
atividades, que são muito estressantes.
297
O salário é muito aquém do que nós merecemos. A vida que nós levamos
todo mundo sabe. Na parte financeira, ela nos faz ter uma qualidade de vida
regular. Infelizmente, não podemos ter um patamar que nos dê tranqüilidade.
Por isso, volta e meia precisamos pensar em outras coisas, uma atividade
paralela, como a que muitos de nós fazemos como suporte para poder manter
uma qualidade de vida razoável. O grande vilão é esse desgaste de arranjar
outra atividade para completar o salário. Desgasta muito. (...) Tem o ‘bico’,
tem o trabalho e tem a faculdade. Você acaba tendo dificuldade até de
relacionamento normal e de dar uma assistência melhor à família.

Por causa das questões salariais que os induz a fazer ‘bicos’, muitos
policiais, tanto militares como civis, têm uma vida tumultuada e alguns
dizem que sua existência é excessivamente ‘fragmentada’, tendo reflexo na
saúde, na intimidade e no meio social onde convivem.

Em Segundo Lugar, a Falta de Reconhecimento


O segundo ponto que os policiais militares consideram mais negativo
para a qualidade de sua vida é o descrédito e falta de reconhecimento por
parte da sociedade e dos governantes. Esse sentimento é reforçado pela
visão de que a mídia raramente aborda o lado positivo de suas ações.
O menosprezo de que se sentem alvo foi ressaltado com muita freqüência e de
forma associada ao sofrimento no trabalho, à opressão hierárquica e à falta
de liberdade, como podemos observar no contundente depoimento deste cabo:

As condições de trabalho e de saúde das praças, bem como a nossa qualidade


de vida, são as piores possíveis. Somos a única classe trabalhadora que não
tem nenhum direito. O nosso direito é não ter direito, principalmente à liberdade
[ênfase dele], a qual é tirada a qualquer momento por causa desse regulamento
arcaico o qual sobrepõe até a Constituição Federal! [ênfase dele] Vai chegar
uma época em que só pessoas de má índole vão querer entrar para a corporação,
só para se aproveitar da carteira e da arma. Não há qualquer tipo de respeito
à praça pelos seus superiores. É só opressão [ênfase dele].

A percepção dos policiais militares é de que a sociedade os considera


“um mal necessário” e a dos policiais civis é de que “a delegacia é a lixeira
da sociedade” (Minayo & Souza, 2003). A generalização que ocorre
quando há corrupção, delinqüência e ineficiência de alguns policiais afeta

298
muito sua auto-estima, pois consideram que a maioria procura atuar com
honestidade, seriedade, responsabilidade e compromisso. Em um grupo
focal, cabos e soldados fizeram desabafos em que podemos ressaltar uma
tensão muito forte e confrontante com a sociedade e, sobretudo, com as
populações em áreas consideradas de elevado risco: sentimentos de que são
tratados como lixo, de que seu trabalho é desprezível, o que os faz, em
contrapartida, se enrijecerem mais e cometerem mais violências,
principalmente nas favelas:

Então vamos tirar as máscaras. Eu acho que a Polícia não gosta do tratamento
que a população dá a ela e vice-versa. Então, se digladiam o tempo todo. Isso aí
vai repercutir no quê? No trabalho! Porque se vai depender dela para que esse
camarada viva, o empenho não vai ser tão forte. Então, o meu desejo de que
aquele camarada seja atendido com qualidade vai ser menor, com certeza.

As comunidades das favelas tratam a gente como lixo! Você passa e as


pessoas cospem! Às vezes, querem até te tratar bem, só que têm medo. E o
nosso trabalho é desprezível. Então, há essa guerra, essa rejeição silenciosa.
Aí a gente fala no todo, do Rio de Janeiro em relação à Polícia! E a gente
sente na carne esse desprezo! Qual é a primeira ação quando alguém te afronta?
É, também, se enrijecer em relação à população.

Quanto à mídia, a maioria dos policiais a considera um fator negativo


para sua vida porque, em sua avaliação, ela repercute uma imagem pejorativa
em todos os aspectos, propiciando ou reproduzindo o repúdio da sociedade.
Segundo os policiais, a televisão, as rádios e os jornais são os principais
responsáveis pelo incremento do distanciamento entre eles e a população.
No depoimento de um soldado que já referimos anteriormente, os policiais
são vistos pela mídia sempre como incompetentes: “A Polícia é que nem
pato: o pato nada, anda, voa e não faz [nenhuma dessas atividades] direito”.
Nos grupos focais, os policiais colocaram muita ênfase nas dificuldades
para se manter na linha e certo desânimo diante dos desafios. Algumas vezes,
suas falas deixaram transparecer certa dubiedade e ambigüidade, não ficando
claro se os empecilhos e as dificuldades justificariam a corrupção, a intolerância
e a violência ou se suas expressões configuravam apenas um desabafo.
Confluindo com os dados da pesquisa quantitativa, a maioria deles
diz se refugiar na convivência familiar, onde consegue raros momentos de
descanso e paz, como revela esta fala de um oficial, em um dos grupos focais:

299
O policial militar, assim como o civil, tem sua identidade profissional velada.
É um cidadão que vive no anonimato, senão a gente morre. Os raros momentos
de lazer são de convivência com a família, muitas vezes em casa, pois a gente
tem de pensar muito aonde ir. Não pode levar a família a um lugar e correr o
risco de ser reconhecido como policial.

Dessa forma, não causa surpresa o fato de que, quando perguntados,


percentuais tão elevados deles coloquem tanta ênfase na importância do
apoio das famílias e das pessoas com quem mantêm relações próximas.
Elas configuram para eles uma âncora fundamental na sua vida privada e
emocional, oferecendo-lhes o alento que, ao contrário, consideram não ter
na esfera profissional e social.

Em Terceiro Lugar, a Centralidade do Trabalho


se Apossa da Vida Pessoal e Social
Tanto do ponto de vista positivo como do negativo, o elemento mais
relevante associado à qualidade de vida é a centralidade do trabalho: é ele
que dá sentido à existência dos policiais. O foco excessivo nos aspectos
profissionais, revelado no discurso tanto dos oficiais e suboficiais como das
praças, quando se referem à qualidade de sua vida individual, ressalta
uma dupla mensagem. De um lado, há uma valorização positiva do trabalho,
pois é em função dele que passam a maior parte de seu tempo. De outro, há
o reconhecimento de que o desempenho de sua profissão é uma grande
fonte de cansaço, frustrações e sofrimentos.
Suas falas foram reiterativas de elementos que já tratamos nas duas
partes anteriores: jornadas intensivas e excessivas; desgaste nos plantões e
trabalho noturno que desestruturam o organismo; salário insuficiente,
levando à necessidade de outro(s) emprego(s); precário ambiente físico e
relacional entre os pares; elevada carga e volume de trabalho; ausência de
folgas e de férias; alimentação inadequada e riscos permanentes de sofrerem
agressão ou morte. Todas essas situações vivenciadas no cotidiano de suas
atividades são vistas como fatores sinérgicos, geradores de pressão, tensão e
estresse. São pontos que ligam o exercício da profissão com a esfera da
reprodução. O depoimento de um sargento, citado a seguir, sintetiza tal
situação, sublinhando o mal-estar por meio de adjetivações e ressaltando

300
problemas de sono, de alimentação, sentimentos de cobrança e a necessidade
de ficar em alerta permanente:

Eu fico muito cansado. Então, para mim, a minha qualidade de vida é regular,
de regular para ruim, porque eu durmo mal, me alimento mal. (...) O regime de
trabalho não é bom nem para o policial, nem para a instituição. É um homem que
trabalha permanentemente sob cobrança, com carência de nível para trabalhar.
A carência de pessoal, por exemplo, vai fazer com que qualquer levantamento, por
mais básico que seja, ateste o absurdo que se vive nessa instituição.

Comparando as duas corporações, todos os operacionais concordam


que o trabalho na rua é fonte de maior estresse e tem como conseqüência e
resultado uma vida de pior qualidade. Na Polícia Militar, é recorrente a
reclamação contra os períodos de 12 horas seguidas em atividades na rua,
em pé e sem alimentação (apenas com uma refeição no quartel antes de
sair). Já os policiais civis que atuam nas delegacias também se queixam, só
que, no caso deles, por se alimentarem mal, com lanches gordurosos e
hipercalóricos (pizzas, salgadinhos, sanduíches e refrigerantes),
freqüentemente doados pelo comércio nas cercanias das delegacias.

Em Quarto Lugar, o Lado Doloroso


da Vivência de Perdas
Na reflexão sobre os aspectos vivenciais que afetam suas condições
de existência, nada foi tão forte como a reflexão de cabos e soldados de um
batalhão situado em área de alto risco. Eles discorreram, emocionados,
sobre a banalização dos casos de morte dos companheiros de serviço e o
tratamento corriqueiro que é dado a tais eventos. Nesse batalhão, contaram
os entrevistados, houve períodos em que foi relativamente comum a perda
de três, quatro ou cinco colegas em uma jornada de trabalho.
Segundo os entrevistados, o argumento de que os policiais são
profissionais preparados para o confronto justifica a ausência de um suporte
especializado e resulta em danos que poderiam ser evitados. Eis o depoimento
de um oficial sobre o peso de conviver cotidianamente com o temor da
morte: “Nós temos de ter um equilíbrio para ver um colega morrer, das
mais diferentes maneiras possíveis, ir ao enterro dele, consolar a família,
depois voltar para a rua como se nada tivesse acontecido”.
301
Alguns outros sargentos e cabos também comentaram a necessidade
de apoio para quem passa por atividades tão estressantes e dolorosas, como
os seguintes depoimentos: “Tem de ter um atendimento psicológico! Daí
você chega lá no Hospital Central da Polícia Militar, existe uma ‘porrada’
de policiais ‘batendo’ [à porta] na psiquiatria. Aí eles começam a se envolver
com bebida.”; “Você tem coragem, você tem condições psicológicas de
trabalhar? Você vê um colega teu ali morto, sabe que pode ser qualquer
um da gente aqui. Ah, pelo amor de Deus! Depois vem consolar a família,
quando ela fica desesperada, perdeu um pilar, o pai, o esposo, tudo!”; e
“Acho que todo mundo aqui é homem igual ao outro, todo mundo aqui
tem medo de morrer, ninguém aqui é demagogo, ninguém quer morrer, não
é verdade? Por pior que seja a vida, a gente tem esperança! É o que mantém
a gente vivo! Mas, para vir trabalhar, é aquilo: ‘será que eu vou? Mas será
que eu volto?’. E nisso a gente não é reconhecido”.
As repercussões do estresse e da vivência sistemática do risco de morte
em confronto sobre a qualidade da vida pessoal e familiar também foram
abordadas pelos policiais civis. Um profissional da saúde que trabalha
nessa corporação fez referência às alterações psíquicas conseqüentes ao ato
de matar outro indivíduo. Essa situação, bastante recorrente nos confrontos
dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro com traficantes armados,
provoca reações que deveriam ser analisadas de forma especializada e
competente, para que não redundassem em mais violência para a população.

Em Quinto Lugar, a Falta de Qualidade


na Alimentação
Para os policiais, há mais um ponto de insatisfação no que concerne
à qualidade de sua vida: a alimentação. Todos os entrevistados manifestaram
concordância quanto ao fato de que a alimentação oferecida pela corporação
é muito ruim em todas as unidades pesquisadas, tanto em termos qualitativos
como quantitativos. As entrevistas com os oficiais nos mostram que, em
geral, eles também têm uma dieta pouco balanceada. Em um grupo focal,
além das críticas à comida oferecida nos batalhões, eles referiram a realização
de lanches na rua, com ingestão de pizzas e salgados, para completar a
comida insuficiente. Ainda assim, um profissional aludiu ao custo dessas
refeições extras: “Isso quando a gente tem dinheiro para comer pizza”.
302
Muitas queixas dizem respeito às dietas diferenciadas para os
membros do círculo superior e para as praças, embora todos digam que
comem mal. Os soldados e cabos manifestam grande insatisfação quanto a
essa discriminação. Comentam que as refeições são preparadas por policiais
sem conhecimento e consideram as porções alimentares muito reduzidas.
Queixam-se também de que aqueles que necessitam de uma dieta
diferenciada por motivo de alguma doença – como, por exemplo, os
hipertensos, que não podem comer sal – não têm opções.
Os seguintes depoimentos são de cabos, soldados e sargentos: “Você
é obrigado a comer um bifinho só. Um peixe ou um frango. Se colocassem
uma firma terceirizada, com uma boa comida... Mas não! A quantidade é
contada!”; “Existe um cardápio que é feito e publicado em boletim para a
corporação inteira. É um cardápio mensal para toda a corporação e que
não pode ser mudado, senão dá o maior problema, porque tem de publicar
outra vez. Não sei se quem elabora é um nutricionista ou não”; “E tem a
questão de que tudo é comprado em licitação. Nem sempre é adquirido o
melhor e, sim, produtos de terceira ou quarta linha”.
Nos grupos focais, alguns soldados e cabos disseram que, pela falta
de cuidados na preparação das refeições, freqüentemente encontram pedras
e, às vezes, até restos de esponja de aço na comida:

O preparo desse alimento fica muito a desejar. Às vezes a gente come um


alimento que está cru ou muito cozido. Por ser uma grande quantidade, não
tem como você prover uma qualidade. Às vezes a gente come até pedra. O
próprio vice-comandante proibiu os atletas de comerem salada, onde se vê
bichinho andando na folha de alface.

Os policiais civis, sobretudo os operacionais, também se alimentam


muito mal, não têm horários adequados e comem muito mais sanduíches
do que produtos saudáveis (Minayo & Souza, 2003).

É Possível Melhorar a
Qualidade da Vida dos Policiais?
Nos grupos focais com soldados, cabos e oficiais e nas entrevistas
com gestores, várias sugestões foram feitas. Um dos oficiais em cargo de

303
chefia, por exemplo, diz que, por ser uma profissão de risco, deveriam ser
criados “antídotos, providências lenitivas que suavizassem os impactos
[negativos] na vida dos policiais”: bom salário, boas condições de trabalho,
bom atendimento médico, hospitalar e odontológico, um programa de
moradia, um programa de educação que lhes ensinasse a serem ponderados,
tolerantes e a se alimentar bem. No caso da alimentação, muitos policiais
sugeriram a presença de um nutricionista por unidade, para estabelecer
cardápios específicos e propiciar refeições apropriadas e mais saborosas.
Por causa das situações cotidianas e corriqueiras de risco, vivenciadas
tanto por policiais civis como por militares, a maioria dos entrevistados
considerou como de extrema necessidade que lhes seja oferecido apoio
psicológico. Muitos policiais militares chamaram a nossa atenção ao
enfatizarem que não querem banalizar a morte e que cada morte de um
colega os confronta com a fragilidade da sua própria vida.
Neste fechamento, cabem algumas observações. A primeira diz
respeito às discrepâncias entre a investigação quantitativa e qualitativa.
Os dados quantitativos ofereceram um panorama muito mais alentador
sobre o tema ‘qualidade de vida’. As informações qualitativas registraram,
sobretudo, as queixas e as insatisfações. Daí a importância de, ao mesmo
tempo, trabalharmos com questionários e ouvirmos os sujeitos que
pesquisamos, de irmos aos seus locais de trabalho e sabermos onde vivem.
E por termos feito esses dois percursos, foi-nos possível observar várias
contradições.
Por exemplo, apesar da simbiose entre vida profissional e vida social,
observamos uma contradição nas percepções dos policiais militares sobre o
mundo do trabalho e as que se referem ao mundo da vida. As queixas e as
notas baixas atribuídas aos pontos problemáticos e negativos das atividades
profissionais são contrapostas a um grande entusiasmo com a vida e com o
futuro, observado entre maioria desses servidores. Na pesquisa qualitativa,
as duras críticas ao processo de trabalho e a todos os temas incluídos neste
conceito foram fortemente associadas à qualidade de vida e aos efeitos
negativos do estresse laboral nas relações familiares.
Outra contradição importante: os policiais subalternos, cabos e soldados
são os mais críticos sobre suas condições de vida, derivadas em grande parte das
condições de trabalho; no entanto, a pesquisa quantitativa mostra que os oficiais,
embora em condições objetivas melhores, apresentam-se menos satisfeitos; e

304
grande parte dos não-oficiais, mesmo estando em pior situação de salário,
de moradia e de lazer, mostra-se mais satisfeita.
Sublinhamos e ressaltamos que há um grupo intermediário na Polícia,
formado pelo escalão de sargentos e subtenentes, com idade entre 40 e 50
anos, há 20-25 anos na profissão, que não tem muitas expectativas de
ascensão. Boa parte desse conjunto de profissionais se mostra muito
insatisfeita ou muito apática. Possivelmente, sua diferença em relação a um
conjunto numeroso de soldados e cabos que são mais otimistas com a vida
e com o futuro se deve à crença, entre os últimos, de que ainda lhes será
possível elevar-se profissionalmente e melhorar seu padrão de vida. Outra
hipótese é que os jovens soldados e cabos se sintam a tempo de desistir e
enfrentar outra carreira, fato que os dados comprovam, mostrando a grande
rotatividade dos que entram e saem da corporação.
As informações que temos permitem-nos ainda outras reflexões.
E uma delas é que os focos de insatisfação não podem se medir apenas
estatisticamente. Por exemplo, quando perguntados sobre expectativas de
melhora nas relações de trabalho, menos de 50% dos cabos e soldados
mostraram-se otimistas. Essa é uma informação preocupante no que concerne
pelo menos a quatro pontos: em primeiro lugar, ao fato de que qualquer
instituição, para que tenha êxito, precisa de um corpo estável e competente
de funcionários que ‘vista a sua camisa’. Isso, na Polícia Militar, parece ser
muito difícil, pois mais da metade da tropa não se sente motivada.
Em segundo lugar, entendemos que a insatisfação em qualquer dos
escalões põe à prova as tentativas que as autoridades têm feito de tornar a
corporação mais contemporânea. Seus esforços têm conseguido envolver
muito pouco os servidores.
Um terceiro fator de insatisfação são as reduzidas perspectivas de
subir na carreira: este dado de realidade afeta o desempenho dos profissionais
e fica patente no grupo de meia-idade composto por sargentos e subtenentes.
E um quarto foco de mal-estar é o tratamento pessoal dispensado, na
corporação, aos policiais dos escalões inferiores. Embora em percentuais
menores, sobretudo os soldados e cabos manifestaram um nível de crítica
bastante elevado sobre o modo como são tratados e com o fato de, embora
realizem um serviço público tão importante para a sociedade, isso traz pouco
retorno para suas condições e expectativas de vida.

305
Podemos concluir, portanto, que esta pesquisa sobre condições e
qualidade de vida dos policiais militares é um estudo sobre as contradições
que eles vivem no trabalho e fora dele. Se é verdade que todos somos
contraditórios e que não é possível estabelecer um curva linear que nos leve
ao bem-estar, ao desenvolvimento e à felicidade, essa tentativa seria totalmente
inglória com os policiais. Eles amam a profissão e a maioria a escolheria
novamente, se lhes fosse necessário optar. Mas há incontáveis críticas às
condições de trabalho e ao que elas trazem de negativo para seu ambiente
social.
Cremos que nos resta dar relevância ao elevado grau de otimismo
com a vida por parte da maioria, sobretudo no caso dos mais jovens, apesar
de todas as dificuldades e de todas as manifestações de insatisfação. Existem
os dados estatísticos mostrando, mais que os qualitativos: um grande
potencial de transformação do estresse e do sofrimento no trabalho em valor
positivo. Tal transmutação evidencia um poder inegável de resistência e de
superação, constituindo talvez aquele ‘gene’ que um dos comandantes de
um batalhão que atua em área de risco diz que seus comandados têm.
Já havíamos constatado esse mesmo potencial de se reinventar e de
enfrentar a vida numa profissão de risco no estudo com os policiais civis
(Minayo & Souza, 2003). Tal descoberta vem reafirmar as teorias (Brant
& Minayo-Gomez, 2004, 2005) que tentam ultrapassar certas idéias
determinísticas de psicopatologização do trabalho e da vida. Esses autores
chamam a atenção para as potencialidades criativas da dor e do sofrimento,
embora alertem também para o fato de que tanto o sofrimento como a dor,
quando reprimidos, costumam ensejar a produção de doenças que afetam o
corpo, a alma e as relações entre as pessoas.

306
Conclusões
pistas no caminho e perspectivas

Propomos aqui algumas conclusões. Mesmo tendo sido fiel ao que


nos foi dito e ouvido, não nos sentimos cômodos em considerar como mais
acertadas as afirmações que aqui serão expressas, nem competentes para
fazer propostas peremptórias. Por isso, solicitamos aos nossos leitores que
tomem as sínteses como sugestões fundamentadas na perspectiva dos próprios
policiais, trianguladas com leituras nacionais e internacionais sobre a
categoria.
Nestas considerações finais, buscamos seguir a lógica que permeou
nossa pesquisa, destacando os três eixos centrais que a constituíram:
condições de trabalho, condições de saúde e qualidade de vida. Destacamos,
inicialmente, o que consideramos mais importante em relação às condições
de trabalho.

Valorização Profissional,
Adesão à Profissão e Insatisfações
No desdobrar deste percurso, aprendemos, fomos surpreendidos por
muitas descobertas e, principalmente, buscamos valorizar a ‘pessoa dos
policiais’, problematizando o conceito de segurança em dois sentidos: público
e pessoal. Definimos no texto que ‘segurança pública’ constitui a garantia
que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias,
contra todo o perigo que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida,
da liberdade ou dos direitos de propriedade dos cidadãos, sendo ela a
essência da missão dos policiais e derivada do campo jurídico. Mas, como
cidadãos e trabalhadores, os policiais também têm direito à ‘segurança
pessoal’, conceito que deriva do mundo do trabalho e tem um sentido
normativo e filosófico. Neste caso, o conceito representa a sistematização de

307
normas destinadas a prevenir acidentes, quer eliminando condições inseguras
de trabalho, quer prevenindo desastres ocupacionais. Ou seja, cuidando
da segurança pública, os policiais são, também, servidores públicos
protegidos pela Constituição, que lhes assegura o direito à integridade física
e mental no exercício profissional. Todo o trabalho se encaminhou nessa
dialética de valorização do trabalho e do trabalhador.
Nossa hipótese preliminar era de que, sem a adesão da subjetividade
desses agentes, a segurança pública tão almejada nunca passaria de uma
política burocraticamente exercida, o que é ruim para eles e para a população
à qual servem. Assim, chegamos à conclusão de que, no que tange ao
empenho profissional, impera um espírito de corpo bastante forte na
corporação e um amor à profissão que reúne mais de 70% dos profissionais.
A questão é que, mesmo com um nível de coesão tão elevado, existem também
focos de insatisfação, certamente dizem respeito aos 30% que não se sentem
confortáveis na carreira, mas também em vários aspectos identificados com
a profissão. Os principais motivos, já descritos, são aqui relembrados:
frustração e mesmo ressentimento pela falta de reconhecimento dos superiores
e da população; queixas em relação aos salários, às condições e aos
equipamentos pessoais e de realização do trabalho. Embora possamos
concluir que há resistências e descontentamento entre os trabalhadores de
qualquer categoria, as autoridades deveriam levar em conta o que ocorre
com os policiais militares, uma vez que sua satisfação é pré-requisito de
nossa segurança e proteção.
Algumas reivindicações feitas por quase todos os entrevistados são
aqui colocadas como desafios para as autoridades estaduais e para o comando
geral: melhoria dos salários, modificações nas escalas de horário de trabalho,
investimento em mais tecnologia e sua incorporação nos processos de
trabalho, investimento em mudanças de gestão e na formação das pessoas
que administram os bens à disposição da instituição. De todos esses temas,
comentaremos apenas a questão salarial, mesmo que seja uma redundância,
pois este e todos os temas assinalados anteriormente foram analisados nas
partes específicas deste livro. Estudos comparativos mostram que a Polícia
Militar do Rio de Janeiro é muito mais mal paga do que a maioria de suas
congêneres no país. Ora, para um profissional que tem responsabilidades
tão relevantes, o salário, além de mantê-lo, deveria lhe proporcionar
sentimento de orgulho no exercício das atividades. Os baixíssimos salários,

308
sobretudo para os que estão nos escalões inferiores, trazem muitas
conseqüências funestas: viver em locais de moradia onde existem quadrilhas
de traficantes que os perseguem ou os aliciam; ter de buscar o chamado
‘bico’, o que interfere em seu descanso e o torna defensor de outros interesses
que não os do Estado e dos cidadãos; experimentar constrangimentos quanto
às suas possibilidades de continuar sua formação, ampliar sua cultura e
desfrutar de lazer. Todos esses pontos foram tratados nas páginas deste livro
sob a ótica desses profissionais.

É Preciso Repensar a Rigidez Hierárquica


em uma Sociedade Plural e Flexível
Outro ponto surgido insistentemente na pesquisa e que precisa ser
considerado como relevante em propostas de transformação organizacional
da Polícia Militar é a questão da hierarquia e da disciplina militar como
essência de sua forma de gestão. Observamos, durante todo este estudo,
que esse tipo de organização das relações de trabalho não é bom nem para
os subalternos, nem para os oficiais. Na pesquisa, não só soldados, praças
e sargentos insistiram fortemente na impropriedade dessa forma de gestão
da corporação, como vários comandantes, ainda que indiretamente,
criticaram o status quo quando se referiram ao ônus da decisão solitária
sobre ações de elevado risco para seu grupo e para a sociedade. As
considerações que faremos a seguir estão de acordo e seguem a mesma linha
de pensamento de Musumeci (2000), em um relatório de estudos sobre a
Polícia Militar já no ano 2000, do qual retiramos as principais idéias.
É inegável que a utilização de métodos importados da disciplina
militar tem efeitos positivos no sentido de promover algum controle sobre
práticas de corrupção, favoritismo pessoal, ingerência política e
estabelecimento de parâmetros para a normalização de comportamentos e
práticas. Tais efeitos, porém, são de curto alcance quando se referem à
qualidade do trabalho que a Polícia ostensiva desenvolve nas ruas. O rigor
que enfatiza a obediência à hierarquia e sua conformidade com as regras
corporativas contrastam fortemente com a precariedade dos instrumentos
de controle e avaliação das atitudes e práticas policiais. Diferentemente do
Exército, que atua em conjunto a partir de ordens centralizadas, a atividade

309
da Polícia ostensiva envolve uma quantidade enorme de decisões tomadas
particular ou contingencialmente, cujo controle efetivo exigiria regras
decisórias claras, explícitas e aplicáveis à multiplicidade de situações
enfrentadas cotidianamente.
Ressaltamos que a forma de gestão tradicional acaba, com freqüência,
por produzir efeitos inversos quanto à eficácia e à eficiência desejadas pela
própria corporação. Em estudo de similar importância sobre a Polícia
Militar, Muniz e Soares (1998) listam uma gama de aspectos negligenciados,
sob a capa de competência organizacional, que precisam ser levados em
consideração em projetos de mudança. Reconhecendo com outros autores
que essa corporação “desfruta da imagem de ser a mais organizada das
instituições policiais”, mencionam uma série de problemas práticos que
escapam à rigidez militar. Fazemos nossas as palavras de Jacqueline Muniz:

Precariedade logística; fraca articulação entre as companhias no interior


dos batalhões; ineficiência dos serviços internos responsáveis por essa
articulação; ausência de planejamento; precária estrutura de levantamento,
distribuição e processamento de informações; escalas de trabalho
dessincronizadas; rigidez do regimento interno em vigor (herança obsoleta da
ditadura militar); centralização e padronização ao extremo (até a comida dos
batalhões tem de ser idêntica em todo o estado do Rio); infindáveis
complicações hierárquico-burocráticas enfrentadas a cada passo; pouquíssimo
investimento na qualificação e reciclagem dos policiais de ponta; indigência
dos critérios de avaliação de desempenho, incompatíveis não apenas com a
Polícia comunitária, mas também com as tarefas convencionais e com o conjunto
de atribuições constitucionais da PM. (Muniz, 1999: 203)

Concluímos com uma sugestão que já esboçamos na parte deste livro


que tratou da questão organizacional.12 Um processo de modernização da
gestão se beneficiaria se fosse inspirado em formas contemporâneas de
organização do trabalho, que: exigem não apenas o esforço físico dos
trabalhadores como também sua energia mental; privilegiam o trabalho em

12
É importante ressaltar que o problema da militarização da Polícia não é privilégio do Rio
de Janeiro. É a forma como são organizadas as PM dos estados onde essa situação também
vem sendo discutida. Há também várias polícias latino-americanas organizadas da mesma
forma (Waldmann, 1996; Pascolo, 1997), assim como é a situação da Polícia francesa e
a dos Estados Unidos (Bittner, 2003).

310
grupo; diminuem os níveis hierárquicos; concebem a qualidade não como
um controle externo, mas como parte da atividade de cada um; valorizam e
responsabilizam o empregado em qualquer instância; premiam e destacam
o desempenho de cada um e do seu grupo; aproveitam o saber dos
trabalhadores, instituindo estratégias de mudanças internas com base na
experiência individual e coletiva (Antunes, 1999; Alves, 2000).
A superioridade dessa proposta que está vigorando nas empresas
mais avançadas e competitivas do mundo inteiro se deve, em grande parte,
à capacidade de produzir estratégias efetivas para integrar e valorizar a
subjetividade dos trabalhadores, contar com sua criatividade e
responsabilizá-los individual e coletivamente pelo desempenho pessoal e
institucional. Na verdade, não sabemos se a proposta de flexibilização seria
a melhor solução organizacional para a Polícia Militar. No entanto, juntando
nossa palavra com a de Muniz e Soares (1998) e Musumeci (2000),
ressaltamos a necessidade de que a corporação enfrente uma séria discussão
sobre a propriedade de sua estruturação diante das exigências do mundo
contemporâneo e de uma sociedade que deseja uma Polícia bem informada,
bem treinada, flexível e ágil.

Identidade, Imagem, Representações


Durante todo o trabalho, pudemos observar algumas peculiaridades
que têm conseqüências sobre as ações no modo de pensar, de sentir e de ser
dos policiais militares. Ressaltamos, em primeiro lugar, a tendência a
privilegiar como tarefa típica da Polícia o trabalho de confronto e de repressão
direta de delinqüentes, muito mais que a função de prevenir e proteger o
cidadão, tal como expresso claramente na Carta Constitucional de 1988,
onde esta menciona a atividade ostensiva da categoria. Dado o caráter militar
da corporação, o transgressor é geralmente visto como inimigo a combater.
Isso se explica porque o conceito de ‘verdadeiro trabalho policial’,
coletivamente entendido pela maioria deles e também pela população, diz
respeito às atividades repressivas. Como foi fartamente comprovado no
trabalho empírico de Constantino (2006), tais ações permitem à Polícia
Militar apresentar uma produção mensurável dos sucessos obtidos e até
demonstrá-las de forma espetaculosa na mídia.

311
Em segundo lugar, observamos uma tradição de fechamento da
Polícia para a sociedade, embora, nos últimos anos, alguns comandantes
tenham sido quase heróicos no esforço de buscar meios de promover a
abertura corporativa, primeiro passo para a democratização. Por causa dessas
características, o próprio Estado tem dificuldade de orientar essa instituição
em que a maioria dos membros resiste bravamente a tudo o que é suscetível
de introduzir a voz dos usuários na sua programação. Por julgar-se tão
diferente, especial e tão acima do que ocorre na sociedade, a Polícia Militar
apresenta dificuldades em introduzir o controle externo de seus atos e em
definir prioridades, objetivos, metas, parcerias e avaliação.
Em terceiro lugar, notamos que, no discurso da categoria, a
responsabilidade pelos problemas que os policiais não conseguem resolver
é sempre atribuída ao ‘outro’: à família ‘em dissolução’, que não consegue
domesticar e dar limites aos jovens; à escola, que é fraca e não educa como
deveria fazer; ao governador, ao secretário de Segurança e às chefias, que
só agem por razões políticas; às comunidades, todas elas corrompidas pelos
criminosos; e ao aparelho judiciário, que é lento e age contra as ações da
Polícia. No caso dos governadores, um dos problemas mais ressaltados pelos
policiais é a ingerência política, que impede a continuidade de ações de
um mandato para outro. Além da descontinuidade, a maioria deles se
ressente da falta de um planejamento competente que traria benefícios para
a segurança pública. Mas, na opinião de muitos entrevistados, as propostas
sérias e duradouras costumam ser freqüentemente trocadas por “ações que
aparecem” para a sociedade e para a mídia. Nesse caso, eles costumam
associar os propósitos dos titulares da pasta de Segurança Pública com os
projetos políticos dos governadores de turno.
Em quarto lugar, e em conseqüência das três primeiras características,
a instituição da Polícia comunitária, que se apresenta para alguns chefes
da corporação como uma estratégia importante de reaproximação entre os
agentes e os cidadãos, é menosprezada pela maioria. O que para alguns
comandantes é visto como o melhor caminho para solucionar os problemas
da pequena delinqüência e para promover a prevenção de crimes, a maioria
dos policiais considera uma forma de trabalho social que deve ser repudiada
como foco de sua atuação. No caso do Rio de Janeiro, a Polícia comunitária
permanece como exceção, e os policiais que trabalham nesse programa –
porque crêem na prevenção – são considerados ‘militantes’ pelos outros e,

312
portanto, tidos como marginais ao foco de ação do ‘verdadeiro trabalho
policial’. Além do mais, os resultados da Polícia comunitária são difíceis
de serem avaliados quantitativamente, em virtude da falta de indicadores
específicos. Em conseqüência, não são sancionados positivamente pela
instituição para efeitos de promoção interna ou de carreira policial, ficando
assim desintegrados do conjunto das ações e normas corporativas.
Observamos, como síntese dos problemas assinalados, que a imagem
da maioria dos policiais militares sobre si mesmos reflete sentimentos de
desvalorização institucional e de não-reconhecimento social pelo seu trabalho,
produzindo neles uma identidade que oscila de arrogante a defensiva.
Arrogante, principalmente, por vestirem um uniforme, pelo sentimento
corporativo e por portarem armas. Defensiva, pelo embate permanente com
a opinião pública e com o fato de não ‘darem conta’ de ‘combater a
criminalidade’ e manter a ordem em um Estado com alto nível de insurgência
e de criminalidade. Infelizmente, a visão negativa é mais forte entre os
policiais que estão na linha de frente das atividades ostensivas.
Consideramos também como muito importante o fato de que, na
corporação, seja repensada sua relação com a mídia, a quem os policiais
atribuem a culpa pela falta de reconhecimento da população. Entrevistas
com agentes de todos os escalões revelam que há uma verdadeira
demonização dos meios de comunicação. Quando, ao contrário, um processo
de democratização da Polícia deveria significar uma abertura quase que
ilimitada a essa instituição tão necessária para arejar pensamentos,
comportamentos e ação. Mostramos no estudo que, ao contrário do que
pensam os policiais, pesquisas relatadas nos jornais do estado do Rio de
Janeiro sobre eles e suas atividades revelam considerável percentual
de matérias a seu favor e de suas ações. A aproximação entre mídia e Polícia
só faria bem, com certeza, a ambas as instituições, inclusive porque o bom
jornalismo exigiria o acompanhamento dos problemas e a cobrança de
medidas das autoridades, das quais os policiais também se queixam.
O segundo eixo norteador do nosso trabalho foram as condições de
saúde física e mental dos policiais militares. Tentamos aqui indicar as
principais questões que se destacaram na análise desta parte da pesquisa.

313
É Preciso Ampliar o Cuidado com
a Saúde Física dos Policiais
Ficou muito claro no desenvolvimento do estudo que os policiais se
alimentam mal e não se exercitam. Como conseqüência, observamos, no
conjunto, elevados níveis de obesidade, hipertensão e colesterol. Esses, bem
como os demais problemas de que padecem, não têm sido devidamente
contemplados pelos serviços de saúde, tanto da Polícia como da rede pública.
Ressaltamos a insuficiência dos equipamentos e profissionais especializados,
itens que permanecem inalterados numericamente enquanto cresce o efetivo e
o número de seus dependentes. Além da insuficiência, não há disponibilidade
de muitas especialidades necessárias ao cuidado dos problemas de saúde que
apresentam. O atendimento, na maioria dos casos, é moroso, havendo largos
intervalos entre a marcação e a consulta. Finalmente, convém destacar os
relatos reincidentes de que o atendimento nos serviços de saúde da Polícia
prioriza os oficiais em detrimento das praças, que são em número muito maior.

É Preciso Institucionalizar Estratégias


de Apoio Psicológico aos Policiais
Também julgamos urgente destacar, com base nas entrevistas e nas
discussões em grupo, o tema da institucionalização de apoio psicológico
para os policiais que atuam nos confrontos, independentemente dos serviços
de psiquiatria hoje existentes nos equipamentos de saúde. Observamos essa
ausência de cuidado não apenas na Polícia Militar, mas também na Polícia
Civil. Aliás, aparentemente a Polícia Militar estaria em vantagem, pois ela
oferece atendimento psiquiátrico no seu Hospital Central e em alguns
batalhões. No entanto, como vimos nas páginas deste livro, esse tipo de
serviço, sobretudo quando vinculado ao hospital, está voltado para o
atendimento de psicopatologias graves e para o tratamento de alcoolismo
ou dependência de drogas. Outros tipos de atenção a pessoas sob forte
tensão e em estado de sofrimento psíquico são excepcionais e ocorrem quando
estas são encaminhadas pelas chefias. A forma como esse encaminhamento
é feito, no entanto, fere os princípios de independência e confiabilidade
tanto da medicina como de qualquer corrente da psicologia, uma vez que a
permissão para atendimento tem de passar pelo arbítrio de comandantes,
mesmo quando tenha havido indicação médica.
314
Nesta proposta, estamos nos referindo à necessidade em si, premente
e urgente, de que os agentes que atuam em confronto sejam apoiados
profissionalmente. Pensamos que seria importante implantar uma estrutura
institucionalizada e legitimada como política de recursos humanos e que
tivesse a função precípua de minorar o sofrimento psíquico dos agentes.
Sabemos que esse tipo de agravo, se não tratado, pode derivar para patologias
graves, embotamento emocional, naturalização da crueldade, entre outras
conseqüências. Sem dúvida, a sociedade agradeceria por ter uma corporação
mais saudável. Insistimos neste ponto porque muitos gestores disseram
claramente nas entrevistas de campo que o apoio psicológico não constitui
uma prioridade da corporação e nem deles pessoalmente. Alguns desses
são os que, mesmo diante de indicação médica, decidem que seus
subordinados não precisam de atendimento.
O terceiro e último eixo abordado por nossa pesquisa se refere à
qualidade de vida dos policiais. No tocante a esse aspecto, destacamos
somente os pontos que consideramos emblemáticos.

É Preciso Maior Eqüidade na Corporação


Uma reflexão crucial que não poderia faltar nestas conclusões é a
que diz respeito às distintas condições objetivas e subjetivas de vida – nelas
incluídas as características de saúde e de trabalho – em razão dos cargos
que as pessoas ocupam na Polícia. As praças se encontram em pior situação
em praticamente todos os aspectos de vida pesquisados, quando as
comparamos aos oficiais. Portanto, é fundamental pensar em formas de
apoio a esse grupo, uma vez que estão na linha de frente e arriscam suas
vidas em defesa da segurança pública. Um ponto importante seria um plano
de habitação para profissionais desse escalão, que hoje vivem em moradias
precárias e situadas em áreas de alto risco e distantes do local de trabalho.

Segurança é Vida, e não Morte


Por fim, é urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de
morte dos policiais e da população civil do estado do Rio de Janeiro,
ressaltando que não existe fatalidade nessa imensa quantidade de perdas

315
de vidas que tanto afetam as famílias e a sociedade como um todo. São
absurdas as taxas de mortes entre policiais, mas também é absurda a
quantidade de óbitos de civis, gerados no confronto Polícia versus ‘suspeitos’
e ‘criminosos’. Sob a alegação de que a Polícia está combatendo a
criminalidade, têm sido ceifadas muitas vidas inocentes.
Sobre a vitimização dos policiais, primeiramente devemos sublinhar
que há uma oscilação na série histórica dos últimos dez anos, indicando
que determinados tipos de políticas e estratégias são mais ou menos letais.
Também temos exemplos de países em que a taxa de morte de policiais foi
se reduzindo progressivamente, de acordo com políticas adotadas
especificamente para se atingir essa meta.
Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro, em
particular de sua Polícia Militar, é criar um ambiente e uma cultura de
segurança pública e cidadã, o que certamente tem a ver com a questão
social e com o processo de democratização dos cidadãos e da instituição.
Esse processo inclui, entre outros tipos de iniciativas, estratégias, instrumentos
e tecnologias menos agressivos de controle da violência contra o policial e
por parte deles, da criminalidade e do clima de acirramento de conflitos
sociais. Significa, também, maior abertura da corporação policial, o que
quer dizer sua democratização. Desta maneira, o exercício da segurança
pública se encontrará com os princípios da segurança humana. Deixará de
se transformar em uma profecia de morte da população civil e dos servidores
que têm a obrigação constitucional de manter a ordem e coibir o crime, e
não de matar ou cumprir o destino ou a fatalidade de viver e morrer vítimas
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Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Cheltenhm BT e Chianti BT
Papel: Pólen Bold 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Fotolito: Engenho e Arte Editoração Gráfica Ltda. (capa)
CTP, impressão e acabamento: Imprinta Express Gráfica e Editora Ltda.
Rio de Janeiro, setembro de 2008

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