SPRICIGO, CM A Retórica Da Hipertrofia Judicial - Ebook

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CARLOS MAGNO SPRICIGO

A RETÓRICA DA
HIPERTROFIA JUDICIAL
neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil
© 2023 Editora Íthala
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Godoy Dotta – Doutor e mestre em Edu- Professor Adjunto de Direito Processual da Univer-
cação. Especialista em Administração, Metodologia sidade Federal Fluminense e membro do corpo per-
do Ensino Superior e em Metodologia do Conheci- manente do Programa de Mestrado e Doutorado
mento e do Trabalho Científico. Licenciado em So- em Sociologia e Direito da mesma universidade.
ciologia e Pedagogia. Bacharel em Tecnologia. Ligia Maria Silva Melo de Casimiro – Doutora em
Ana Claudia Santano – Pós-doutora em Direito Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Mestre
Público Econômico pela Pontifícia Universidade em Direito do Estado pela PUC-SP. Professora de
Católica do Paraná. Doutora e mestre em Ciências Direito Administrativo da UFC-CE. Presidente do
Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Instituto Cearense de Direito Administrativo - ICDA.
Espanha. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Adminis-
Daniel Wunder Hachem – Professor de Direito trativo - IBDA e coordenadora Regional do IBDU.
Constitucional e Administrativo da Universidade Fe- Luiz Fernando Casagrande Pereira – Doutor e mes-
deral do Paraná e da Pontifícia Universidade Católi- tre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
ca do Paraná. Doutor e mestre em Direito do Estado Coordenador da pós-graduação em Direito Eleitoral
pela UFPR. Coordenador Executivo da Rede Docen- da Universidade Positivo. Autor de livros e artigos
te Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo. de processo civil e direito eleitoral.
Emerson Gabardo – Professor Titular de Direito Rafael Santos de Oliveira – Doutor em Direito pela
Administrativo da PUC-PR. Professor Associado de Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre
Direito Administrativo da UFPR. Doutor em Direito e graduado em Direito pela UFSM. Professor na
do Estado pela UFPR com Pós-doutorado pela For- graduação e na pós-graduação em Direito da Uni-
dham University School of Law e pela University of versidade Federal de Santa Maria. Coordenador do
California - UCI (EUA). Curso de Direito e editor da Revista Direitos Emer-
Fernando Gama de Miranda Netto – Doutor em Di- gentes na Sociedade Global e da Revista Eletrônica
reito pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. do Curso de Direito da mesma universidade.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626

Spricigo, Carlos Magno


S769r A retórica da hipertrofia judicial: neoconstitucionalismo e o
esvaziamento da democracia no Brasil / Carlos Magno Spricigo –
1.ed. - Curitiba: Íthala, 2023.
174p.; 22,5 cm
ISBN: 978-65-5765-164-3
1. Neoconstitucionalismo. 2. Democracia – Brasil. 3. Poder judiciário.
I. Título.

CDD 340.1 (22.ed)


CDU 340

Editora Íthala Ltda. Capa: Antonio Dias


Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Revisão: Karla Andrea Leite
Bairro Mercês Diagramação: Sônia Maria Borba
80.710-130 – Curitiba – PR
Fone: +55 (41) 3093-5252
+55 (41) 3093-5257
http://www.ithala.com.br
E-mail: [email protected]
Informamos que é de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos publicados na obra. Nen-
huma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autor-
ização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido
pelo art. 184 do Código Penal.
CARLOS MAGNO SPRICIGO

A RETÓRICA DA
HIPERTROFIA JUDICIAL
neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil

EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2023
Para Aline, Danilo e Henrique,
que formam o quarteto fantástico da minha vida.
“Acredito que o saber jurídico cumprirá na sociedade política
suas funções constitucionais, reforçando simbolicamente o princípio que o
direito deve estar ao serviço da ideia de que a
democracia é um pacto de incertezas possíveis.”
Luis Alberto Warat

“Não haverá esperança para a causa democrática se partirmos


da ideia de que é possível o conhecimento da verdade absoluta,
a compreensão de valores absolutos.”
Hans Kelsen
PREFÁCIO

CONSTITUCIONALISMO, JUDICIÁRIO
E DEMOCRACIA NO BRASIL1

São muitas as formas de se ler o trabalho do professor Carlos Mag-


no Spricigo sobre a hipertrofia judicial e a ameaça ao procedimentalismo
democrático legado pela Constituição de 1988 ao nosso país. A mais inte-
ressante delas é extrair dessa experiência dois rumos fundamentais: saber o
que fazer e o que não fazer do direito em sua relação com a democracia. Os
ingredientes para essa viagem passam pelo entendimento do processo de
transformação do Judiciário – e, em especial, do Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) – em tradutor autoimposto da vontade popular, numa ampliação
claramente excessiva e excepcional de seus poderes. Esse é precisamente
o desafio que o autor se atribui ao escrutinar a história política recente
do Brasil e o envolvimento direto do STF como um tipo schmittiano de
“Guardião da Constituição”, alicerçado na retórica moralista do neocons-
titucionalismo.
Assim, a partir do exame dos fundamentos argumentativos e retó-
ricos do constitucionalismo tupiniquim e, especialmente, de suas decisões
mais atinentes às alterações sabujas da engenharia estabelecida por nosso
texto constitucional, o professor Carlos Magno avança no exame do pro-
cesso constitutivo de nosso senso comum teórico neoconstitucional. Em

1
Esse texto, organizado a título de Prefácio do livro A Retórica da hipertrofia judicial: neocons-
titucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil, de Carlos Magno Spricigo, apresenta
um conjunto de reflexões organizadas com maior detalhe em textos publicados nos
últimos anos, especialmente em meus livros mais recentes.
10 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS - Prefácio

outras palavras, somos levados a reconhecer de qual barro narrativo – e


não necessariamente teórico – somos forjados enquanto arautos de uma
dogmática jurídica que opera funcionalmente para desconstituir o lugar de
centralidade normativa do próprio direito. O que o livro propõe, de saída,
portanto, é a tese de que, para compreendermos até que ponto a nossa
institucionalidade constitucional foi cindida pela retórica da “mutação da
Constituição” precisamos acessar uma autocrítica que nos é velada pelo
discurso moralista do principiologismo alexyano-dworkiniano.
Diferentemente de 99% da literatura constitucional do tempo pre-
sente, este livro examina as entranhas e as consequências nefastas da ope-
racionalização do neoconstitucionalismo, a ponto de não restar alternativa
lógica e política a não ser concordarmos com as conclusões do texto – a
principal, a meu ver, é que o movimento neoconstitucional se estrutura como
essencialmente antidemocrático e que o seu núcleo ideativo e ativo criou o
radicalismo fascista que nos atingiu em cheio em 2018 –, isso na medida em
que aceitemos com tranquilidade as premissas teóricas, históricas e políticas
apresentadas pelo autor.
De minha parte, refletindo sobre o processo histórico de esvazia-
mento democrático apontado por este livro, compreendo também, e para
reforçar a consistência do argumento e das conclusões a que chega o pro-
fessor Carlos Magno, que a história política de nosso constitucionalismo e
sua funcionalidade para com o poder, apesar de claras, nunca foram devida-
mente assumidas pela nossa dogmática. Ou, como já disse o nosso mestre
Luiz Alberto Warat, o saber dos juristas se torna retoricamente puro para
permitir que a dominação se realize sem o recurso direto e explícito à vio-
lência. Violência simbólica que oculta a violência real, portanto. Em outras
palavras waratianas, é o senso comum teórico dos juristas a ser utilizado
como ferramenta para se evitar a crítica radical do senso teórico, sempre
refratário à dominação.
Quando se fala de constitucionalismo brasileiro, não se pode contor-
nar nem o neoconstitucionalismo e nem os fundamentos antidemocráticos
do constitucionalismo fascista que se desenvolveu à larga no país pelo me-
nos entre os anos 1930 e 1980. Esse verdadeiro “avô” dos neocons, cuja
origem remete à obra do jurista mineiro Francisco Luís da Silva Campos
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 11

(1891-1968)2, esse pai das ditaduras brasileiras do último século, estabelece


como elemento distintivo de sua teoria constitucional a possibilidade da
suspensão do direito autorizada pelo próprio direito, o que significa que
esse constitucionalismo e sua antiga, porém sofisticada retórica – como o
é a retórica que produziu a juristocracia recente –, legitima a existência das
ditaduras. Falemos um pouco das ditaduras, para exatamente corroborar as
conclusões do professor Carlos Magno neste livro fundamental. É desse
modo que o Poder Executivo pôde exercer a sua vontade livre de restrições
jurídicas desde o advento do Estado Novo (1937-1945), passando pela Di-
tadura Empresarial Militar (1964-1988) até o momento examinado por este
livro, isto é, até a ascensão do STF como protagonista do cenário político,
a partir dos anos 2000.
É sempre bom lembrar, como o faz rapidamente o autor, que o jurista
alemão Carl Schmitt (1888-1985) é o pai intelectual da teorização sistemática
sobre o constitucionalismo fascista – diretamente influente na obra de Campos – e
funda-o na ideia de democracia substancial (os constitucionalistas a chama-
mos também de “Teoria Material da Constituição”). Dado a sua influência
e o seu grau de detalhamento técnico, o modelo schmittiano acabou por se
transformar no paradigma jurídico-constitucional das ditaduras ocidentais do
século XX. A partir de Schmitt, a vaga conceituação de Estado autoritário é
substituída por uma fórmula mais precisa. Ele desenvolveu uma doutrina cujo
alvo foi a fraqueza constitucional do Estado democrático-liberal para o qual a
Constituição de Weimar, de 1919, era o modelo clássico. Em seu livro Teoria

2
Campos foi um dos políticos mais ativos na configuração do Estado brasileiro durante o
século XX. Responsável pela reorganização dos sistemas educacional, legal e constitucio-
nal durante a Revolução de 30 e no Estado Novo, elaborou também o Ato Institucional n.
1 que deu origem ao regime militar (1964-1985). De 1935 até 1937, quando deixou o cargo
de Secretário de Educação do antigo Distrito Federal para elaborar o Projeto da Constitui-
ção outorgada, Campos já era o jurista mais influente na política nacional, articulando com
os integralistas o apoio a Vargas. De 1937 a 1942, ocupou o cargo de Ministro da Justiça
e Negócios Interiores, colaborando diretamente para a consolidação do regime. Como
personagem do Estado Novo, foi responsável pela reforma dos Códigos de Processo
Civil, Penal e Processo Penal. Criou a Lei Orgânica dos Estados, que pretendia limitar
seus poderes legislativo e administrativo, vinculando-os ao poder central; a Lei de Crimes
contra a Economia Popular, a Lei de Segurança Nacional; as Leis de Naturalidade (natura-
lização, repressão política a estrangeiros, expulsão, extradição e imigração); a regulação da
cobrança da dívida ativa da União; o Decreto-Lei contra o loteamento de terrenos; a Lei
de Fronteiras etc.
12 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS - Prefácio

da Constituição (1928), Schmitt realizou um ataque analítico a cada instituição


política de perfil liberal, sendo o seu modelo constitucional — que derivava
das críticas a Weimar — recepcionado na Alemanha como a saída intelectual
para a crise da democracia contemporânea, então ameaçada pelo comunismo
soviético. Ele preconizava a representação como relação de identidade entre
um determinado povo e seu líder, independentemente de intermediação ins-
titucional.
Assim, o processo de governo pela opinião pública não acontecia
através da discussão parlamentar. Solicitava uma identidade entre “domi-
nadores e dominados”, que se realizava retoricamente através do processo
de aclamação. A lei tornava-se um ato de vontade do líder, que procedia à
regulação, por via administrativa, da vida ordinária. A democracia substan-
cial, percebida pelo autor como um princípio jurídico-formal que significa-
va unidade entre o povo e o líder, numa simbiose mediada pela mobilização
emocional, era a materialização do poder de governo do Estado. O Estado
democrático fascista, “povo em situação de unidade política”, distinguia-
-se de outras formas políticas por demandar homogeneidade nacional. A
democracia substancial tornou possível uma ditadura na medida em que o
escopo e a amplitude da atuação jurídica e política do ditador dependiam e
se justificavam através de seu critério pessoal.
Já no Brasil, a crítica ao federalismo de 1891 e a criação de alternati-
vas centralizadoras de perfil cada vez mais francamente fascista ajudaram a
moldar as instituições que surgem da Constituição de 10 de novembro de
1937. Essa Carta operou uma ruptura com o que se chama, comumente,
de tradição “autoritária”. Instalou uma ordem voltada para os problemas
característicos de uma sociedade em processo de industrialização e agitada
pelas movimentações operárias, com o sentido óbvio de barrá-las do pro-
cesso decisório.
Foi Francisco Campos, redigindo a Constituição de 10 de novembro
de 1937, que desenvolveu um modelo teórico-jurídico de constitucionalismo
fascista, semelhante em escopo ao que pode ser extraído da Teoria da Consti-
tuição de Schmitt. A manipulação das massas pela mobilização da emoção
– daí, inclusive, a utilização da teoria dos mitos, de Georges Sorel – como
um elemento central na organização do poder político e os instrumentos
jurídicos análogos ao modelo schmittiano são as marcas fundamentais da
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 13

Constituição de 1937 na organização jurídico-administrativa do regime e


uma característica desse constitucionalismo, que triunfou entre os anos 30
e 80 do século passado. Portanto, Campos será o responsável por sintetizar,
em instituições, as aspirações políticas das ditaduras vigentes; definirá as
técnicas jurídico-constitucionais implicadas na construção de um Executi-
vo forte e absorvente; as direcionará para a realização do novo modelo de
Estado, paradoxalmente permitindo a modernização (autocrática) do país.
O funcionamento da lógica binária amigo/inimigo, orientadora da
exceção, presente tanto na obra de Schmitt quanto no constitucionalismo
de Campos se estabelece de fato como gestora da eliminação do espaço da
institucionalidade democraticamente plural da política como procedimento.
Não por acaso o neoconstitucionalismo representa uma recidiva de um mo-
vimento historicamente bem-sucedido de ataque às instituições da demo-
cracia procedimental, ou dos elementos compositivos da “Teoria Formal
da Constituição”. Assim, no lugar da mediação institucional dos conflitos
de interesse, coloca-se no centro a decisão unívoca e pessoal do “Guardião
da Constituição” e, principalmente, no lugar da soberania popular, expressa
na Constituição e nas urnas, há o predomínio do “poder contramajoritário”
dos tribunais, tão claramente sublinhado por Carlos Magno neste livro.
De fato, se olharmos para a realidade dos últimos anos poderemos
perceber o que o jurista e politólogo alemão Otto Kirchheimer chama de
justiça política. Para o autor, o objetivo de uma justiça política é ampliar a
capacidade de ação e a influência política de grupos através do recruta-
mento dos tribunais em seu apoio, com o objetivo de debilitar o poder dos
adversários políticos. Nesse sentido, um determinado grupo ou mesmo um
regime político podem alcançar o poder, manter-se ou derrubar oposito-
res — sejam indivíduos, grupos ou movimentos sociais estabelecidos —
“manobrando a opinião pública mediante um juízo político” (KIRCHHEI-
MER, 1968, p. 460). Segundo ele,

Na luta ideológica para dominar a mentalidade do povo, as cortes


são organismos conectados intimamente com os assuntos públicos.
Pelo menos em países não totalitários, permanecem fora do controle
direto do Poder Executivo; entretanto, sua peculiar posição de con-
fiança pública tem feito com que a conduta que adotam nos juízos
14 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS - Prefácio

de caráter político se torne em elemento decisivo no processo políti-


co. Ao mesmo tempo, aumenta consideravelmente o perigo inevitá-
vel de tais juízos: a deformação, devido à parcialidade, de suposições
e procedimentos a eles submetidos. (KIRCHHEIMER, 1968, p. 18).

No Brasil, observou-se, especialmente entre os anos de 2007 e 2018


– entre a Ação Penal 470 do STF e a “Operação Lava-Jato” –, fenômeno
senão idêntico, ou até mesmo mais radical: o da utilização meramente le-
gitimatória de um procedimento judicial ou mesmo policial (abertura de
investigação, denúncia, prisão sem culpa formada etc.), com o anteparo dos
meios de comunicação, para antecipar a criminalização e, consequentemen-
te, para neutralizar adversários políticos. O falseamento dos procedimentos
judiciais propriamente ditos também colabora para esse objetivo.
Uma pergunta possível de se fazer ao se ler o trabalho do professor
Carlos Magno é a seguinte: a retórica encoberta pelo movimento “juristo-
crático” representa e legitima um fazer político que despreza os procedi-
mentos democráticos e que abraça no seu funcionamento a desmedida mais
delirante ou, na verdade, fenômenos como o bolsonarismo e o lavajatismo,
alicerçados/criados em boa parte pelo ativismo do STF se estabelecem hoje
como uma realidade duradoura, para além do governo de plantão? Ou, ain-
da, melhor fraseando: como um fato social de natureza cultural/política se
relaciona com a mudança de horizonte de sentido de um país que, se em
seu último movimento de criação coletiva projetou uma vida democrática,
flertou, especialmente entre 2018 e 2022, de forma aberta com a exaltação
da violência e da ditadura, com o culto ao heroísmo personificado, com
a moralização criminalizadora da política e com o desejo e a aceitação de
governos de caracteres fascistas?
Desde o salvacionismo militar/republicano de Hermes da Fonseca
– que, na campanha presidencial de 1910, queria retirar o poder das oligar-
quias estaduais com o pretexto de limpar as instituições da corrupção –,
o Brasil tem experienciado ondas de um moralismo conservador de perfil
demagógico. Com a desculpa de sanear, limpar e salvar, políticas e interes-
ses privatísticos atacam há muito as instituições de nosso país sem piedade.
Do anti-estatismo de Raymundo Faoro à teoria da dependência de Enzo
Faletto e Fernando Henrique Cardoso, da crítica de Carlos Lacerda ao “mar
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 15

de lama” de Vargas até a vassourinha de Jânio Quadros e os “Marajás” do


serviço público – supostamente “caçados” por Fernando Collor de Mello –,
sua justificativa é sempre a mesma: o Estado é um agente corruptor e cor-
rompido que precisa sofrer uma intervenção que minimize seus “estragos”
através de uma profilaxia que o reduza (leia-se, retire de direitos dos traba-
lhadores, realize privatizações, restrinja o poder do Estado sobre a econo-
mia, desenvolva-o em “dependência agregada” a grandes nações etc.).
Esse “cancro”, segundo a retórica de Faoro, que atrasa o desenvol-
vimento do país é o nosso suposto patrimonialismo de Estado – em bom por-
tuguês, a corrupção –, que seria a fonte de todos os males que sofremos. E
assim se consolida na história uma narrativa simplista – e falsa – sobre a
“nossa sina” de “vira-latas”. Repetido ad nauseam ainda hoje pelos meios de
comunicação de massa e representado diretamente pela lógica principialista
do “pós-positivismo”, esse mantra da corrupção penetrou no imaginário
social a ponto de provocar nele uma cristalização irracional na direção da
antipolítica e do mais aberto projeto fascista de poder. Essa é a nossa fake
news mais resistente.
O que significa, então, na prática, não só a rejeição da “velha política”
compromissória – esse “vício de origem”, nos dizeres de Werneck Vianna
– das coalizões funcionais a um governo representativo, mas também a ado-
ção do discurso demagógico anticorrupção que nasce exatamente na esteira
do neoconstitucionalismo “iluminista” do STF?
Em primeiro lugar, a ideia de patrimonialismo de Estado opera uma cisão
artificial, uma autonomização do Estado em relação à sociedade civil, atri-
buindo os interesses econômicos daquele a funcionários autointeressados
em se locupletarem da coisa pública – agentes estatais que deveriam ser
identificados e punidos. Essa cisão é falsa, na medida em que o domínio
burguês sobre as instituições políticas é a característica das sociedades capi-
talistas, alimentadas pelo credo liberal, mas realizadas sob a égide do Estado
autoritário, ou seja, um Estado controlado e manietado de fora, a partir de
interesses variados, para dentro.
Em segundo lugar, a tese do patrimonialismo indica que esse Estado, do-
minado apenas por interesses incrustados na burocracia, impediria – se-
gundo a ideia da corrupção da política –, dado seu alcance e potência, a
16 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS - Prefácio

livre iniciativa do mercado, tutelando-a de forma marcial. Essa tese, por


sua vez, esconde as relações de acesso privilegiado e exclusivista ao Estado
existentes na própria sociedade civil brasileira, marcada por sua violência
escravocrata e organização política oligárquica, na origem. São os interesses
burgueses da sociedade civil que colonizam o Estado e não vice-versa.
Nesse sentido, percebe-se hoje, no Brasil, que esse imaginário, orien-
tado pelo moralismo – e que também alimentou o punitivismo revanchista
e pequeno-burguês das classes médias –, fez com que estas se subordinas-
sem às pautas de grupos completamente alheios aos seus reais interesses.
E a participação política enquanto “orientação para ação” do fascio, movi-
mento refratário em especial a essas mesmas classes médias, foi reforçada
pela satisfação libidinal promovida através da propaganda antipolítica e seu
contraditório culto em manifestações públicas pontuais e, em geral, finan-
ciadas por organizações ligadas ao mercado ou às milícias.
Assim, o fenômeno da criminalização da política no Brasil é expres-
so, por exemplo, pelas tentativas de alteração da legislação pela retórica
“juristocrática” da mutação da interpretação da Constituição e, mais espe-
cificamente, pela modificação do comportamento dos Tribunais, do Mi-
nistério Público e das polícias na gestão da atividade repressiva. A mudan-
ça mais visível é que o artifício da criminalização passa a se realizar não
somente pelo mandado judicial, mas igualmente a partir da relação cada
vez mais estreita entre grupos políticos, poderes instituídos e meios de co-
municação de massa, explicitando o fenômeno do populismo penal e con-
firmando o deslocamento do poder de dizer o direito do ordenamento
jurídico para o mass media. Para alguns, esse movimento visa controlar e/
ou mesmo eliminar as democracias na América Latina. O resultado mais
nefasto desse processo histórico relativamente recente, foi o governo de
Jair Bolsonaro, caracterizado por declarações e ações refratárias às garan-
tias da Constituição de 1988. Ao fim e ao cabo, o mandato de Bolsonaro
terminou com sua derrota em outubro de 2022 sem que houvesse a des-
mobilização de setores amplamente radicalizados da sociedade civil.
Não se pode, portanto, compreender os desdobramentos do que
acontece no Brasil em sua história recente sem vincular o predomínio po-
lítico do Judiciário e a criminalização da política a um movimento global
de disseminação do paradigma do estado de exceção como forma de governo.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 17

Nesse sentido, o modelo de estado de exceção foi incorporado às práticas


institucionais no Brasil diretamente a partir da mescla subterrânea entre um
paradigma constitucional liberal-burguês e um modelo de juridicidade auto-
ritária, ditatorial, autocrática ou mesmo fascista, que permeia não somente
as instituições da República como orienta a compreensão de mundo de
parte significativa do corpo social, em especial e, primeiramente, os juristas,
por meio de seus modelos antidemocráticos de constitucionalismo.
Essa mistura entre matrizes diversas de constitucionalismo não acon-
teceu somente pelo fato de que, em países como o nosso, ditaduras san-
grentas impuseram-se violentamente, porém sob uma legitimação retórica
de viés jurídico. Como salienta o capítulo “Da hipertrofia executiva à hi-
pertrofia judicial” do presente livro, a retomada formal da democracia no
Brasil nos anos 1980 produziu-se através de compromisso, de acordo, rea-
linhamento e reconhecimento das forças reacionárias como players no jogo
político. A dita Nova República, que nasce com a constituinte de 1987, re-
cebeu os influxos institucionais e ideológicos de uma Ditadura Empresarial-
-Militar que se “extinguiu” por moto próprio — e que, portanto, continuou
a operar politicamente sob nova roupagem e novos representantes. Esse
caminho presidiu a configuração e a gestão das instituições repressivas, a
dinâmica de pulverização do controle penal para agências da administração
e a permanência de um ideário autoritário na sociedade civil.
Um dos atores que se renovaram com a democratização e se em-
poderaram com a Constituição de 1988 — sem perder elementos que o
distinguiram como próceres da ditadura — foi o Judiciário. Nos moldes
da tradição imperial brasileira, reproduzindo, inclusive, a lógica do Poder
Moderador, a cúpula do Judiciário brasileiro arrogou-se à pretensão de fun-
cionar como uma força contramajoritária, não eleita, com a capacidade de
exercer o chamado “equilíbrio” entre os poderes e de substituir o legislativo
e mesmo a administração pública quando lhe convém. Esse movimento de
desestabilização da relação entre direito e política já foi alcunhado de ati-
vismo judicial, de judicialização da política e, aqui neste trabalho, o autor o
denomina de hipertrofia judicial. Como não é orientado pelo voto, e como
as suas estruturas internas de poder são pouquíssimo porosas ao controle
democrático, o nosso Judiciário tende, institucionalmente, a transformar-se
em um poder altamente refratário a mudanças e reacionário à oxigenação,
18 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS - Prefácio

com consequências problemáticas para as instituições políticas e para a de-


mocracia, como lembra o autor.
É bom salientar que esse afastamento do controle público leva esse
órgão da república a privilegiar pautas corporativas. Como exemplo, vê-
se que uma questão que domina a agenda dos órgãos representativos dos
juízes é a do aumento de salários e manutenção de privilégios. A redação
proposta para a Lei Orgânica da Magistratura por esses movimentos previa
um sem-número de prebendas, penduricalhos e auxílios que catapultaram
os ordenados do Judiciário brasileiro para um dos mais altos do mundo.
De outro modo, a ascensão funcional dentro desse poder está longe de ser
democrática. Os desembargadores, por exemplo, são escolhidos a portas
fechadas. Juízes de primeira instância e funcionários não participam da elei-
ção. Essa estrutura hierárquica e engessada tem gerado, há décadas, uma
instituição pautada sob o repisado argumento retórico de moralização do
direito e da política. Refratário à democracia, autoritário, portanto, uma
conclusão do texto do professor Carlos Magno é que o Judiciário convive
com a possibilidade de fazer do país seu refém, na medida em que permite
realizar, em sua prática institucional, alterações normativas de grande al-
cance e que são contrárias aos limites normativos estabelecidos pela Cons-
tituição de 1988, como a extinção da exigência de autorização prévia das
Assembleias Legislativas para o processamento de governadores junto ao
Superior Tribunal de Justiça ou mesmo a alteração no entendimento sobre
o foro por prerrogativa de função.
A degradação institucional decorrente do fenômeno examinado pelo
presente livro fez com que a política no Brasil se transformasse em um
produto de entretenimento: consumível e descartável – às vezes carnava-
lesca, às vezes sombria e mortífera –, ela passou a girar a partir do binômio
emocional satisfação/frustração. A resultante tem sido uma maior facilida-
de para a pilhagem interna e externa e ainda mais espaço para a erupção de
nossa “genética” racista e violenta. Como relativa novidade histórica, volta-
mos mais uma vez a flertar com os excessos típicos do fascismo3, quando

3
O fascismo como prática política e inspiração constitucional já é velho conhecido do
Brasil. E não somente no movimento integralista de Plínio Salgado. Para o Francisco
Campos, por exemplo, as grandes tensões políticas evocadas pelo clima das massas “não
se deixam resolver em termos intelectuais, nem em polêmica de ideias. O seu processo
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 19

a vida é submetida à modulação da guerra. E, assim, o esgarçamento do


espaço político sofrido nas últimas décadas – manifesto pelo declínio da
política institucional e de sua legitimidade – gerou um ambiente poroso a
aventureiros e a extremistas, que premia e elogia torturadores e que governa
com milicianos. Entender esses movimentos que inundam o nosso futuro
de incertezas é fundamental e, para isso, o livro do professor Carlos Magno
aparece na bibliografia do constitucionalismo brasileiro como um instru-
mento nuclear, claro, direto e extremamente qualificado para tal propósito.
Boa leitura!

Niterói, novembro de 2022


Rogerio Dultra dos Santos
Professor Associado IV do Departamento de Direito Público da Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF), professor do Programa de Pós-
-Graduação stricto sensu em Justiça Administrativa (PPGJA-UFF), um dos
coordenadores do CDG-UFF (Centro de Estudos sobre Desigualdades
Globais) e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela De-
mocracia). Foi Coordenador do Mestrado em Direito Constitucional da
UFF (2011-2014). É autor dos livros Teoria Constitucional, Ditadura e Fas-
cismo no Brasil (Tirant lo Blanch, 2021) e Agonia e vertigem: o sequestro da
democracia no Brasil (Kotter, 2022).

dialético não obedece às regras do jogo parlamentar e desconhece as premissas racio-


nalistas do liberalismo”. Nesse novo momento espiritual, portanto, quando as massas
predominam e passam a desempenhar um papel fundamental na arena política, o seu
controle é o objetivo do embate (é o que o filósofo alemão Theodor Adorno chama de
institucionalização do fascismo). No processo de mobilização das massas, diz Campos,
a integração política pelas forças irracionais é total, porque o absoluto é uma categoria
arcaica do espírito humano. Segundo ele, a política transforma-se, dessa maneira, em
teologia. Não há formas relativas de integração política, e o homem pertence, alma e
corpo, à Nação, ao Estado, ao partido, o que equivale a dizer que as formas políticas
de integração parcial, como a política democrática da deliberação parlamentar, pela sua
fraqueza e incompletude acabam, necessariamente, dando lugar a um modelo de demo-
cracia dissociado do liberalismo: a ditadura. Esse credo fascista de Campos orientou o
nosso constitucionalismo por mais de 70 anos, como disse acima.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................23

2 DA HIPERTROFIA EXECUTIVA À HIPERTROFIA


JUDICIAL....................................................................................... 31
2.1 A HIPERTROFIA EXECUTIVA NA DITADURA
DE 1964-1985.......................................................................................... 32
2.2 REDEMOCRATIZAÇÃO E NOVA CONSTITUIÇÃO
EM 1988.................................................................................................... 36
2.3 A CONSTRUÇÃO DA HIPERTROFIA JUDICIAL
NO BRASIL: RECONFIGURAÇÕES INSTITUCIONAIS
MAIS RELEVANTES............................................................................ 42
2.4 PARA ALÉM DO ATIVISMO EPISÓDICO: A
HIPERTROFIA JUDICIAL COMO DISFUNCIONALIDADE
INSTITUCIONAL RELEVANTE...................................................... 52
2.5 HIPERTROFIA JUDICIAL OU REVISÃO JUDICIAL
ABUSIVA?................................................................................................ 60

3 MUDANÇAS NO SABER DOS JURISTAS E A INFLUÊNCIA


NEOCONSTITUCIONALISTA...................................................63
3.1 DE QUE É FEITO O SABER DOS JURISTAS.............................. 65
3.2 NEOCONSTITUCIONALISMO E TEORIA DO DIREITO..... 74
3.3 NEOCONSTITUCIONALISMO E SENSO COMUM
TEÓRICO DOS JURISTAS................................................................. 85
3.4 O NÚCLEO RETÓRICO DO
NEOCONSTITUCIONALISMO: A INVERSÃO DO PAR
CLASSIFICATÓRIO “PRINCÍPIO-REGRA” ................................ 87
3.5 INVERTENDO O PAR CLASSIFICATÓRIO “PRINCÍPIO-
-REGRA” NA DOUTRINA CONSTITUCIONAL........................ 93
22 CARLOS MAGNO SPRICIGO

3.5.1 A lenda do positivismo: nazismo – Estado de princípios..... 94


3.5.2 Evolução teórica: positivismo – pós-positivismo.................. 98
3.5.3 Amoral – moral: estratégia de logos....................................... 100
3.5.4 Majoritário – contramajoritário: a mais antiga estratégia
de páthos contra a democracia................................................ 105
3.5.5 Políticos – juízes: estratégia de ethos..................................... 109
3.5.6 Política – técnica: estratégia de logos..................................... 113
3.5.7 Subsunção – ponderação: estratégia de logos....................... 119
3.5.8 Crise de legitimidade – legitimidade mitificada: estratégia
de ethos institucional: Legislativo – Judiciário...................... 121
3.6 BALANÇO FINAL.............................................................................. 127

4 A IDEOLOGIA NEOCONSTITUCIONALISTA EM AÇÃO


NO BRASIL: 2015-2018.................................................................131
4.1 ADI 4650 E O FIM DO FINANCIAMENTO
EMPRESARIAL OFICIAL DE CAMPANHAS
ELEITORAIS E PARTIDOS POLÍTICOS.................................... 133
4.2 A ADI 5540/MG (ADI 4798/PI E OUTRAS MAIS) E A
EXTINÇÃO DA EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO
PRÉVIA DAS ASSEMBLEIAS LEGISLATIVAS PARA
PROCESSAMENTO DE GOVERNADORES DE ESTADO
JUNTO AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA................... 146
4.3 QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL N. 937/RJ E
A ALTERAÇÃO NO ENTENDIMENTO SOBRE O FORO
POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.......................................... 154

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................161

REFERÊNCIAS ............................................................................... 167


1

INTRODUÇÃO

Quando observamos a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF)


durante o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), o
que vemos é um tribunal que exerceu, de modo geral, suas atribuições
dentro dos parâmetros estabelecidos pela Constituição. Nos momentos
mais decisivos de uma gestão executiva marcada pela busca constante do
conflito e desgaste das instituições democráticas, além de uma atuação
presidencial caracterizada pela prática de crimes de responsabilidade em
série, foi o STF o principal obstáculo contraposto aos desígnios presi-
denciais mais deletérios. E melhor: sua atuação ocorreu dentro de suas
atribuições estabelecidas pela Constituição, resgatando, em parte, seu ethos
institucional com decisões construídas a partir de normas constitucionais
e legais já estabelecidas. Nesses anos, para usar a terminologia de Wal-
dron, o STF concentrou-se em exercer – corajosamente, dadas as ameaças
a que esteve submetido não poucas vezes – o controle judicial, evitando
veleidades de supremacia judicial.
Mas, nem sempre foi assim. A ascensão da extrema direita ao poder
federal – e a volta dos militares ao governo, depois de 34 anos – é o resul-
tado de uma série de eventos que paulatinamente foram promovendo um
processo de subversão sub-reptícia da democracia. O não reconhecimento
do resultado das eleições de 2014 pelo derrotado no segundo turno, uma
bonita e importante tradição nas democracias mais consolidadas, pode ser
identificado como o momento deflagrador de um período de conspiração
aberta na luta pelo poder no Brasil atual. A partir daí, tivemos a intensifi-
24 CARLOS MAGNO SPRICIGO

cação da operação “Lava Jato”, a tentativa de cassação da chapa vencedora


das eleições de 2014, a destituição fraudulenta da presidenta Dilma Vana
Rousseff por meio de um processo de impeachment e o processamento vi-
ciado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguido de sua prisão, que
o impediu de concorrer na eleição de 2018, em que era amplamente favorito
segundo todas as pesquisas de intenção de voto. As causas desse processo
de degradação da institucionalidade democrática refundada em 1988 ain-
da estão por ser desvendadas. Provavelmente, isso exige algum transcurso
do tempo e somente os historiadores poderão reconstruir, no futuro, o
sentido dos eventos que hoje presenciamos. É certo, entretanto, que algo
dessa magnitude aponta para a multicausalidade, pois se trata de fenômeno
complexo. Considerada essa multicausalidade, não se deverá olvidar que
os acontecimentos daqueles anos se deram em um contexto institucional
marcado por uma disfuncionalidade lenta e sofisticadamente erguida pelos
políticos e juristas (profissionais e teóricos), que Ran Hirschl denominou
“juristocracia”. Essa disfuncionalidade construída a muitas mãos, que trans-
fere parcelas importantes de poder decisório do Legislativo e Executivo
para o Poder Judiciário, em especial sua cúpula, é que explica a onipresença
desse poder nos momentos decisivos do processo de subversão sub-reptí-
cia da democracia no Brasil até o ano de 2018, apontando para a ideia de
corresponsabilidade.
Há alguns anos, pesquisas detectaram uma tendência em diversos
países: reformas institucionais promoveram rearranjos que acabaram por
transferir poder de instâncias representativas para organismos de tipo ju-
dicial. Essas reformas normalmente envolvem a adoção de uma carta de
direitos fundamentais e a estruturação do Poder Judiciário – em especial seu
órgão de cúpula, que monopoliza ou centraliza a jurisdição constitucional
– para o exercício efetivo da revisão judicial de atos dos demais poderes.
Esse fenômeno foi batizado de juristocracia por Ran Hirschl. A juris-
tocracia se apresenta como sofisticado mecanismo que possibilita às anti-
gas elites – políticas, empresariais e judiciais, inicialmente prejudicadas em
processos nacionais de transição – a manutenção de significativas parcelas
de poder perdidas em processos de democratização recente. Sua pesquisa
apontou, ainda, que a nova configuração que fortaleceu sobremaneira o
papel das cortes tem sido mais eficiente em proteger direitos civis e políti-
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 25

cos, negligenciando a proteção aos direitos sociais, econômicos e culturais.


Por esse motivo o autor traça uma linha que conecta juristocracia e agenda
neoliberal.
Juristocracia é a palavra que designa, portanto, a transferência iné-
dita e muitas vezes sub-reptícia de atribuições e poderes, que passam a ser
concentrados no Poder Judiciário de um determinado país. Ocorre que esse
fenômeno é bastante complexo, envolvendo diversos atores em sua forma-
ção, não podendo ser creditado singela e exclusivamente à ganância de uma
categoria profissional, os juristas, como o termo parece sugerir de modo pe-
jorativo. Por isso, utilizarei um termo que vale como sinônimo e parece ser
mais friamente descritivo: hipertrofia judicial. Entendo que Jeremy Waldron
se refere a situação similar quando opõe os conceitos de controle judicial e
supremacia judicial.
Quando observamos a situação brasileira, não é difícil encontrar si-
nais importantes de que, também entre nós, a partir de um determinado
momento específico, o concerto entre os poderes da República apresen-
tou-se tomado pela disfuncionalidade denominada hipertrofia judicial. Se
nossa observação recua até um passado recente, o que vemos é que o país
evoluiu de um arranjo de hipertrofia executiva (1964-1985) para um quadro
de crescente hipertrofia judicial (2002-2018).
A hipertrofia judicial é um fenômeno que se desenvolve a partir de
dois fatores principais. O primeiro, foco da pesquisa de Hirschl, envolve
mudanças institucionais realizadas a partir de uma série de reformas cons-
titucionais e da legislação infraconstitucional. Essas mudanças são feitas
às claras, normalmente em alterações normativas promovidas pelo Poder
Legislativo em parceria com o Poder Executivo, como foram os casos da
Emenda Constitucional n. 45/2004 e da Lei Complementar n. 135/2010.
O segundo fator consiste em mudanças na doutrina jurídica, especialmente
a constitucional, mudanças que produzem um discurso hegemônico que
permite operacionalizar juridicamente a transferência sub-reptícia de poder
das instâncias representativas para as cortes judiciais. O caso brasileiro bem
ilustra a exigência da presença desses dois fatores: a constituição de 1988,
apesar de reforçar a carta de direitos fundamentais e restaurar a operacio-
nalidade do Poder Judiciário para o exercício efetivo da revisão judicial, não
logrou sozinha deflagrar o que somente ocorreria pouco mais de uma déca-
26 CARLOS MAGNO SPRICIGO

da de sua entrada em vigor. O que mudou? A renovação parcial na compo-


sição do Supremo Tribunal Federal com o correr dos anos não parece dar
totalmente conta do que aconteceu. Entendo que a mudança mais decisiva
foi o amadurecimento da recepção dos conceitos denominados neocons-
titucionalistas na doutrina jurídica pátria. É que, como ensinou o saudoso
professor Luis Alberto Warat, o saber dos juristas não consiste apenas em
descrições de normas de direito vigentes, mas se apresenta como um saber
que coconstitui o próprio direito.
O discurso neoconstitucionalista se tornou muito influente nas
últimas duas décadas no Brasil. A sua recepção começou pelas pós-
graduações, chegou à doutrina e logo passou a fundamentar decisões
judiciais. O seu auge foi a aprovação de um Código de Processo Civil
marcado pela ideologia jurídica neoconstitucionalista em 2015. O cerne
do discurso neoconstitucionalista se encontra na recepção de reformu-
lações elaboradas na teoria do direito estrangeira, em especial nas obras
de Ronald Dworkin e Robert Alexy. A importação em chave retórica de
reconfigurações no conceito de norma jurídica levou a uma supervalori-
zação dos princípios jurídicos em detrimento das regras de direito. Daí
em diante, sob o pretexto de dar efetividade aos direitos fundamentais ou
de resolver casos difíceis “reconectando” direito e moral, tornou-se cada
vez mais corriqueiro e aceitável que princípios genéricos manuseados por
juízes derrotassem regras aprovadas originariamente pelo legislador; não
raras vezes, o próprio constituinte originário.
Neste livro, quero argumentar que a indiscutível predominância neo-
constitucionalista, no que Warat denominou de senso comum teórico dos juristas,
tem produzido resultados concretos nos últimos anos. Podemos detectá-los
em diversos julgados das cortes brasileiras, em especial do Supremo Tribu-
nal Federal. Sem entrar no mérito da correção das decisões (seria possível
sem mistificações?), vou analisar três acórdãos do Supremo Tribunal Fe-
deral que bem ilustram como opera essa nova retórica constitucional, que
ajuda a transferir sub-repticiamente o poder de decisão de políticas públicas
fundamentais para o Poder Judiciário, debilitando as instâncias institucio-
nais informadas pelo princípio da soberania popular. Será um exercício de
retórica analítica, que tomará por objeto de análise a retórica estratégica
praticada pelos juristas, sejam eles juristas profissionais ou teóricos.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 27

É importante ressaltar, contudo, que ao realizar um estudo empírico


sobre a fundamentação retórica de julgados do STF não se tem aqui a
pretensão de sustentar a existência de uma relação de causalidade entre
discursos jurídicos e processos político-institucionais. A dignidade da pes-
soa humana é citada em julgados emancipatórios como o que autorizou o
aborto do feto anencefálico, mas também se fez presente nos “conside-
randos” do Ato Institucional n. 5. Dinâmicas político-institucionais, como
a que o Brasil vivencia há pelo menos vinte anos – e mais intensamente
desde o episódio da destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016
–, obedecem a intrincadas tramas de fatores múltiplos, que desaguam em
movimentações políticas complexas entre os diversos atores envolvidos no
processo, movimentações políticas essas que incluem a utilização das insti-
tuições político-jurídicas como mecanismos de disputa e busca de hegemo-
nia. Naquilo que essas ações políticas envolvem o direito, automaticamente
incluem também o saber dos juristas, cumprindo o seu papel de emprestar,
como afirma Bourdieu, uma aura de racionalidade legitimadora para pro-
cessos que nunca são exclusivamente jurídicos, mas são apresentados como
se fossem. É uma fotografia de um desses momentos que queremos iden-
tificar neste estudo.
As análises que têm sido publicadas sobre a atual crise da democracia
com frequência apresentam um aspecto lacunoso. Quando realizadas pelos
cientistas políticos, essas análises se caracterizam por obnubilar o papel dos
juristas, pois o saber dos juristas resta permanecer opaco aos não-iniciados.
Por outro lado, a análise dos juristas é marcada por um idealismo forçado
que quer insular as instituições numa dinâmica autônoma, como se isso
fosse de algum modo possível de acontecer. O objetivo aqui é ocultar a po-
liticidade intrínseca do jurídico, que quer e precisa se apresentar ao cidadão
comum como um saber técnico e dotado de uma racionalidade própria e
autônoma. Este estudo quer seguir um caminho diferente. Longe de iso-
lar as dinâmicas institucionais em um laboratório hermeticamente fechado,
pretende, na verdade, compreender como, em um contexto histórico-polí-
tico específico da realidade brasileira, o saber dos juristas pôde ser instru-
mentalizado para fomentar uma determinada agenda política meramente
circunstancial. Essa agenda circunstancial percorreu diversas etapas, aten-
dendo a necessidades políticas de grupos em constante disputa, evoluindo
28 CARLOS MAGNO SPRICIGO

da ação inicial de contenção reativa de políticas de um governo de esquerda


democrática para a implementação de uma agenda própria de combate à
corrupção vista como maior chaga brasileira, culminando com uma atuação
decisiva das instituições judiciais no processo de destituição desse mesmo
grupo político e sua consequente substituição por um governo de extrema
direita estreitamente vinculado às Forças Armadas.
Para realizarmos nossa pretensão, dividimos nossa abordagem em
três seções. Inicialmente, vamos investigar como foi, no Brasil, a passagem
de uma hipertrofia executiva autoritária na ditadura militar (1964-1985) para
a hipertrofia judicial que vai se desenvolver a partir de 2002. Aqui, o olhar
estará mais voltado para a institucionalidade, focando nas alterações nor-
mativas introduzidas principalmente pelo Poder Legislativo em colaboração
com o Poder Executivo. Teremos a oportunidade de conferir que, também
no Brasil, são muitas as mãos que colaboram para a construção de um
quadro de hipertrofia judicial, não apenas as dos juristas. Na segunda seção,
observaremos o papel imprescindível que o saber dos juristas – teóricos e
práticos – desempenha na conformação da hipertrofia judicial. Veremos
como a recepção tardia do ideário neoconstitucionalista produz o discurso
que ajuda a instrumentalizar a transferência sub-reptícia de poder de instân-
cias democraticamente informadas para a cúpula do Poder Judiciário. Por
fim, analisaremos três decisões que acreditamos ilustrar bem o momento de
auge da hipertrofia judicial no Brasil. No período assinalado, foram muitas
as decisões judiciais que tiveram participação decisiva nos eventos que leva-
ram à derrocada da democracia no Brasil. Optamos por não selecionar de-
cisões excessivamente fulanizadas, seja porque tratavam de um personagem
específico (como a impactante decisão que impediu a posse do ex-presiden-
te Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da presidenta Dilma Rousseff
na hora mais crucial da crise política que levou à sua destituição; a decisão
que atropelou a prerrogativa presidencial de conceder indultos no governo
Michel Temer; ou a decisão que destituía o Presidente do Congresso Na-
cional, Renan Calheiros), seja porque foram tomadas monocraticamente,
num exercício do que Diego Arguelhes denominou como “ministrocracia”
(nos casos citados, respectivamente decisões monocráticas de Gilmar Men-
des, Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello). As decisões colegiadas
escolhidas têm em comum o compartilhamento da ideia de que o Judiciário
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 29

teria um programa a realizar, no caso, a ajuda ao combate à corrupção e


impunidade no país: (1) a ADI 4650, que extinguiu o financiamento empre-
sarial oficial de campanhas eleitorais e partidos políticos; (2) a QO na AP
937, que alterou o regramento constitucional do foro por prerrogativa de
função; e (3) a ADI 5540, que anulou os dispositivos das constituições esta-
duais que estabeleciam a necessidade de autorização prévia das assembleias
legislativas para o processamento criminal dos governadores de Estado. Foi
uma época em que os líderes e aliados da operação “Lava Jato”, que se
apresentavam como verdadeiras vestais da república, buscavam implemen-
tar seu ideário, identificado nas “dez medidas contra a corrupção”, seja por
meio de projetos de lei apresentados ao Congresso Nacional, seja por meio
de provocações ao exercício da jurisdição (neo)constitucional junto ao STF.
Em comum, as decisões apresentam em sua fundamentação a estrutura
argumentativa em que princípios ultragenéricos derrotaram regras estabe-
lecidas pelo legislador.
Se no governo Bolsonaro a dinâmica dos eventos situou o STF e
o TSE como fiadores do que restou da democracia refundada em 19884,
nem por isso esquecemos o que ocorreu “no verão passado”. Mais do que
apurar responsabilidades e apontar culpados, num país que conhece agora o
preço de não ter feito isso em relação à ditadura militar mais recente, trata-
-se de contribuir para aperfeiçoar as instituições para quando a normalidade
republicana e democrática voltar.
Este livro é o resultado de pesquisa finalizada durante estágio pós-
-doutoral realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília. Sou muito grato à professora Claudia Roesler, que
supervisionou minha permanência na UnB. Claudia e Isaac Reis, que li-
deram um muito bem-sucedido grupo de pesquisa denominado GPRAJ
(Grupo de Pesquisa em Retórica, Argumentação e Juridicidades), inspira-
ram muito as reflexões aqui contidas, reflexões que se apoiam na afirmação
da importância de construir ferramentas conceituais para compreender a
construção argumentativa/retórica dos discursos jurídicos e judiciais. Ro-
gerio Dultra dos Santos leu o material e fez observações valiosas que con-

4
Com uma nota de louvor à atuação sagaz e destemida, nos momentos mais cruciais, do
Ministro Alexandre de Moraes, devidamente amparado pela maioria dos colegiados dos
respectivos tribunais.
30 CARLOS MAGNO SPRICIGO

tribuíram para o resultado da pesquisa. Agradeço também à Universidade


Federal Fluminense pela concessão de afastamento remunerado para o pe-
ríodo do pós-doutoramento, o que o viabilizou.

Niterói, agosto de 2022.


2

DA HIPERTROFIA EXECUTIVA
À HIPERTROFIA JUDICIAL

Se existe algo constante na história republicana brasileira é a insta-


bilidade institucional. Nascida de um golpe militar a que o povo assistiu
indiferente, a República já teve sete constituições em seus 133 anos. Tive-
mos até uma constituição (1934) que não durou três anos, superada três
décadas depois por outra constituição (1967) que não comemorou seu se-
gundo aniversário intacta. Os monarquistas aqui poderiam querer jactar-se
da longevidade da sua constituição (1824), de fato até hoje não superada
nesse quesito. Mas, basta lembrar do pilar de sustentação mais vigoroso do
período de monarquia parlamentarista brasileira, a escravização do negro,
para que nenhuma força política relevante reivindique seu legado. O fato é
que, emancipados os escravizados, o Império durou pouco mais de um ano.
Nunca deve ser esquecido que a relativa estabilidade do Império re-
pousou sobre o silenciamento brutal da maior parte da classe trabalhadora
nacional. Eram tempos em que a tortura contra o trabalhador coisificado,
o negro escravizado, era legalizada e praticada em praça pública. Já na Re-
pública, a forte restrição ao direito de voto manteve silenciada por mais
de meio século a expressão dos interesses que não fossem os das elites. A
primeira constituição verdadeiramente democrática de 1946 inaugurou a
democracia de massas e, com ela, a instabilidade institucional deixou de ter
mera feição de reflexo de disputas oligárquicas para se constituir como ver-
dadeira luta entre classes sociais. Por isso mesmo, se pensamos na história
32 CARLOS MAGNO SPRICIGO

política brasileira a partir de 1946, o que vemos são conflitos entre grupos
políticos alinhados com os interesses dos trabalhadores de um lado – o
trabalhismo nacionalista de Getúlio Vargas, de João Goulart e de Leonel
Brizola, mas também de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff –, e
grupos políticos representantes dos interesses do que Jessé Souza lapidar-
mente denominou “elite do atraso”5. Desde então, governos trabalhistas
foram severamente tratados pelos setores ligados aos interesses dessa elite:
partidos políticos de direita, associações empresariais, grupos hegemônicos
de mídia, militares, corporações judiciais etc. No período, governos com-
prometidos com a defesa dos interesses dos trabalhadores e com a imple-
mentação de uma agenda de combate às desigualdades sociais – maior ma-
zela social brasileira – foram objeto de forte oposição por diversos meios e,
no limite, a ação política transbordou – explícita ou sub-repticiamente – a
constituição como conjunto de mecanismos que regulam a disputa pelo
poder. Do suicídio de Vargas à deposição de Dilma Rousseff e prisão de
Luiz Inácio Lula da Silva, a história política brasileira recente foi marcada
pela disposição de importantes setores da elite de fazer tudo o que estivesse
ao seu alcance para barrar políticas públicas que afetassem sua posição e
vantagens na distribuição de poder e riquezas vigentes desde a fundação
do país. Tal tarefa, quando observamos o cenário situados no ano de 2022,
quarto ano do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, é implemen-
tada por meio das instituições ou mesmo, muitas vezes, contra elas, e tem
sido bem-sucedida até aqui.

2.1 A HIPERTROFIA EXECUTIVA NA DITADURA


DE 1964-1985

Em 1º de abril de 1964, o conturbado período democrático inaugu-


rado pela Constituição de 1946 foi encerrado por meio de um golpe militar
bem-sucedido. O presidente eleito João Goulart, herdeiro político do tra-
balhismo varguista, foi deposto6 pelas Forças Armadas, em ação articulada

5
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
6
Importante lembrar que a resistência ao nome de Goulart já havia se manifestado ex-
plicitamente quando da crise criada em torno da sua posse em decorrência da renúncia
do então presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Setores militares agiram
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 33

com o governo americano. Jango, como era conhecido popularmente, pre-


tendia implementar uma série de reformas legais denominadas de “refor-
mas de base”, que teriam impacto na redistribuição de renda e terras no
país. Num contexto acirrado de guerra fria pós-revolução cubana, o estan-
cieiro de São Borja foi rotulado de comunista e defenestrado da cadeira pre-
sidencial. Inicialmente, a autoproclamada “revolução” se apresentava como
um golpe preventivo – para evitar a instauração de uma improvável “repú-
blica sindicalista” – e deveria devolver o poder aos civis na eleição nacional
a ser realizada, conforme previsão constitucional, no ano de 1965, após a
exclusão do cenário político de lideranças importantes do campo popular.
As coisas logo tomaram um outro rumo e a ditadura militar brasileira durou
longos 21 anos. Foram anos extremamente difíceis, em que os militares do-
minaram completamente a política nacional. O Estado brasileiro suprimiu
com vigor as vozes divergentes, valendo-se de mecanismos legais e ilegais.
No período, tortura, assassinatos e desaparecimentos até hoje não esclare-
cidos foram políticas públicas implementadas pelos governantes fardados.
O golpe de 1964 foi a violação, pela força, da institucionalidade
estabelecida pela constituição vigente de 1946. De imediato, a violência em-
preendida – que não encontrou resistência à altura – buscou um verniz de
legalidade e, para tal, foi declarada a vacância da cadeira presidencial. A de-
claração de vacância era fraudulenta, pois o presidente ainda se encontrava
em solo brasileiro no momento. Sustentado nessa fraude factual, assumiu
em 2 de abril de 1964 o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Ma-
zzilli, conferindo aparência de respeito aos ditames constitucionais, já que o
presidente da Câmara era o próximo na linha de sucessão, pois João Gou-
lart era o vice-presidente sucedendo o presidente que renunciara em 1961.
Mas, a preocupação com as aparências não durou muito. Em 9 de abril de
1964, com o país formalmente sob a presidência de Mazzilli, apressaram-se
os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica a explicitar suas

fortemente contra a posse do vice-presidente constitucional, então em viagem oficial à


China. O impasse só foi superado com um acordo político que visava retirar de Jango a
totalidade dos poderes presidenciais. A solução foi a adoção de um regime de governo
parlamentarista, que durou até a realização de um plebiscito em 6 de janeiro de 1963,
em que o povo se manifestou pela devolução dos poderes ao presidente, o que evidencia
a legitimidade democrática do seu mandato às vésperas do golpe. Ver: FERREIRA, J.
João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 217 e ss.
34 CARLOS MAGNO SPRICIGO

intenções, apresentando-se como representantes do “Comando Supremo


da Revolução” no legítimo exercício do poder constituinte e editaram o
primeiro ato institucional: “a revolução vitoriosa necessita de se institucio-
nalizar e se apressa pela sua institucionalização”. A partir desse momento,
em que pese a afirmação da “manutenção da Constituição de 1946” e, em
seguida, a produção de uma nova constituição em 1967, o fato é que a insti-
tucionalidade brasileira no período da ditadura militar foi determinada efeti-
vamente por uma série de atos institucionais: “[...] a verdadeira Constituição
daqueles anos foram os atos institucionais.”7 Foi o retorno do que Rogerio
Dultra dos Santos denomina “constitucionalismo antiliberal”:

Quando se fala de constitucionalismo antiliberal, o elemento distin-


tivo é a possibilidade da suspensão do direito autorizada pelo pró-
prio direito, o que significa que esse constitucionalismo legitima a
existência das ditaduras.”8.

Os atos institucionais, combinados com atos complementares,


emendas à constituição e, posteriormente, uma nova constituição em 1967,
implementaram uma série de medidas que soterraram a democracia consti-
tucional inaugurada em 1946: suspensão de direitos políticos por dez anos;
cassação de mandatos legislativos federais, estaduais e municipais; suspen-
são das garantias de estabilidade e vitaliciedade; extinção dos partidos po-
líticos existentes à época; direito do presidente da República de decretar o
recesso do Congresso Nacional, assembleias legislativas e câmaras de verea-
dores; direito do presidente da República, estando as casas legislativas em
recesso decretado por ele próprio, de legislar sobre todas as matérias; fim
da eleição direta para presidente da República, governadores de estado, pre-
feitos de capitais e estâncias hidrominerais. O AI-5 consolidou as medidas
implementadas nos atos anteriores, suspendendo ainda a garantia do habeas
corpus e impedindo a apreciação judicial dos atos praticados com base nele
próprio.

7
BONAVIDES, P. História constitucional do Brasil. 4. ed. Brasília: OAB Editora,
2002. p. 433.
8
SANTOS, R. D. Teoria constitucional, ditadura e fascismo no Brasil. São Paulo:
Tirant lo Blanch, 2021. p. 43.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 35

Quando olhamos retrospectivamente aqueles anos difíceis, para além


da violência explícita e da intensa limitação da liberdade dos cidadãos e de
organização da sociedade, podemos também identificar a construção de
uma institucionalidade que, apesar de apresentar alguma preocupação su-
perficial e de fachada com noções básicas do constitucionalismo moderno
– mantendo uma referência à ideia de existência de três poderes –, de fato,
configurou-se funcionalmente a partir de uma insuperável supremacia do
Poder Executivo. Essa hipertrofia executiva, vigente no período, foi o re-
sultado de desenhos institucionais impostos por normas outorgadas pelos
militares que, na verdade, estabeleciam que o funcionamento regular dos
demais poderes se constituía não como prerrogativa constitucional, mas
como mero beneplácito do Poder Executivo militarizado, passível de sus-
pensão a qualquer momento a critério do ocupante do Palácio do Planalto.
No período, nem Legislativo nem Judiciário puderam exercer com inde-
pendência as atribuições que normalmente se esperariam deles, manietados
que estavam permanentemente por normas que lhes atrofiavam as funções.
No Legislativo meramente tolerado, destaca-se o esforço constante pela
manipulação de critérios eleitorais para a obtenção artificial de maiorias
governistas na Câmara e no Senado, de resto sob ameaça permanente de
decretação de recesso e sequestro executivo de suas prerrogativas legisla-
tivas. O Judiciário, com juízes despidos das garantias essenciais para a sua
independência, como a inamovibilidade e vitaliciedade, foi em diversos mo-
mentos impedido de exercer a revisão judicial dos atos dos demais poderes
e, em especial, ficou impedido de exercer para valer a jurisdição constitu-
cional, neutralizada, na prática, essa função pela atribuição constitucional
de titularidade exclusiva das ações constitucionais ao Procurador Geral da
República, fragilizada essa função pela ausência de garantia constitucional
quanto ao exercício do mandato.9

9
“O Supremo Tribunal Federal foi diluído em 1965 e mutilado em 68. Para neutralizar
os votos dos ministros nomeados por Kubitschek e João Goulart, ampliou-se de onze
para dezesseis o número de assentos no tribunal. Com o AI-5, expurgaram-se Vitor
Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Da corte saiu o único caso de pro-
testo do período. Demitiram-se o presidente da casa, Antônio Gonçalves de Oliveira,
e seu substituto imediato, o ministro Antônio Carlos Lafayete de Andrada. [...] Com
cinco vagas à mão, o governo Médici devolveu o Supremo ao seu tamanho habitual,
e entre os onze sobreviventes lá continuaram Adaucto Lúcio Cardoso e Aliomar Ba-
leeiro, instrumentistas da ‘banda de música’ da UDN [...]” (GASPARI, E. A ditadura
escancarada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 228).
36 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A ditadura de 1964 se estabeleceu por meio da força, e por meio da


força derrotou as lideranças do campo democrático de então. Contudo,
desde logo buscou o efeito de legitimidade conferido pelo direito, confor-
mando a brutal concentração de poder inerente às ditaduras sob a estrutura
de uma hipertrofia executiva, configurada a partir de uma série de normas
outorgadas ou semioutorgadas. Nesse esforço de institucionalização, os ju-
ristas não faltaram. Por todos e apenas para ilustrar o constitucionalismo
da época, vale ler Ferreira Filho, a explicar o papel do AI-5 no contexto
de sua expedição: “Reabriu-se, por isso, o processo revolucionário, com o
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. Este, porém, reiterou o
compromisso democrático da Revolução [...]”10.

2.2 REDEMOCRATIZAÇÃO E NOVA CONSTITUIÇÃO


EM 1988

No final da década de 1970, a ditadura dos fardados começou a per-


der força. Ernesto Geisel assumiu prometendo abertura do regime, uma
abertura “lenta, gradual e segura”. A lentidão e o gradualismo não exigem
complementos para sua inteligibilidade, afinal foram 11 anos até o retorno
de um civil novamente à presidência da República, mas o último adjetivo,
o “segura”, traz imediatamente a questão: segura para quem? Há aí uma
dimensão de busca pela manutenção do controle político do processo de
distensão. O golpe de 1º de abril fora dado para afastar a esquerda do poder
e buscava-se evitar que todo aquele “esforço” terminasse de forma patética,
com o retorno imediato de personagens satanizados pelos militares. De ou-
tra banda, Geisel travou uma luta intestina contra radicais de direita incrus-
tados dentro do próprio governo, representados no projeto presidencial
fracassado do General Sylvio Frota. A distensão envolveu pequenos avan-
ços, manipulações e algumas amarrações para o futuro, como o foram a
revogação do AI-5 (1978), a promulgação da Lei da Anistia (1979) e a volta
das eleições diretas para governador em 1982. Se o atentado do Riocentro
(1981) mostrou que havia resistências internas entre os militares ao proces-

10
FERREIRA FILHO, M. G. A democracia possível. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974.
p. 121.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 37

so de redemocratização, a expressiva mobilização popular pela retomada


das eleições diretas para presidente em 1984 evidenciou que, naquele mo-
mento, o processo era irreversível e sua dinâmica em breve extrapolaria os
desígnios daqueles que sufocaram um país por mais de duas décadas. Nada
impede, aliás, que a campanha das diretas seja tomada como autêntica mani-
festação do poder constituinte popular que confere legitimidade democráti-
ca indiscutível ao processo constituinte deflagrado em 1987. Nesse sentido,
a campanha das diretas, no primeiro momento derrotada juntamente com a
emenda “Dante de Oliveira”, emerge decididamente vitoriosa como funda-
mento político factual que subjaz à Constituição de 1988, devendo ser vista
a Emenda Constitucional n. 26 como uma pequena concessão ao formalis-
mo jurídico. Toda constituição vitoriosa tem a sua mitologia, não há razão
para descurarmos daquela que se apresentou como a mais democrática em
nossa trajetória, em múltiplos sentidos possíveis.11
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988,
resultado do processo constituinte mais inclusivo e participativo da histó-
ria das constituições brasileiras, emergiu no processo de redemocratização
como um marco inequívoco de ruptura com a institucionalidade do período
autoritário que lhe antecedera. Trata-se de uma constituição democrática,
produzida democraticamente.
Essa Carta é o ponto de chegada do longo processo de extensão do
sufrágio eleitoral. Com ela, todos os maiores de 16 anos estão autorizados a
votar nas eleições periódicas: homens e mulheres; negros, brancos e pardos;
alfabetizados e analfabetos; jovens, adultos e idosos. Sendo uma consti-
tuição extensa e detalhada, são muitos os aspectos que nela poderiam ser
destacados, mas eu gostaria de frisar os quatro que eu reputo serem os mais
relevantes para o tema dessas reflexões.

11
“Em que pesem todos os argumentos esgrimidos impugnando a legitimidade do pro-
cesso Constituinte deflagrado no governo José Sarney, não restam dúvidas de que as
eleições livres que resultaram na instalação da Assembleia Nacional Constituinte (ou
Congresso-Constituinte), em 1º de fevereiro de 1987, propiciaram um debate sem
precedentes na história nacional sobre o que viria a ser o conteúdo da Constituição
vigente, na redação final que lhe deu o Constituinte.” (SARLET, I. W. A eficácia dos
direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 63).
38 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Em primeiro lugar, a nova carta tem vocação claramente civilista12.


Depois de um século de instabilidade institucional republicana, liderada
ou coadjuvada por militares das três armas, sempre com destacada proe-
minência de integrantes do Exército, a Constituição restabelece as bases
normativas para o funcionamento do poder civil, marcadas pela submis-
são dos militares às autoridades civis. As Forças Armadas seguem sendo
um conjunto respeitado de servidores públicos especializados na gestão da
violência legítima estatal, focados principalmente na defesa contra possí-
veis inimigos externos e, apenas excepcionalmente, quando convocadas por
um dos poderes civis, auxiliando em alguma pontual dificuldade interna.
Na Constituição de 1988, em suas normas de direito positivo promulgadas
naquele hoje distante 5 de outubro, as Forças Armadas não são um poder
da República, menos ainda um poder latente a ser convocado para dirimir
conflitos entre os verdadeiros poderes constitucionais. Os poucos juristas
que divulgam essa tese são verdadeiros aprendizes de Carl Schmitt. O juris-
ta alemão fez da interpretação tortuosa do artigo 48 um dos caminhos da
ruína da Constituição de Weimar, enquanto os saudosistas do militarismo
no Brasil o emulam ameaçando o Estado de Direito implantado com dis-
torções grosseiras “das quatro linhas” do atual artigo 142 da CRFB.13
A constituição rompeu com a ideia de tutela e superioridade dos
militares sobre os civis. Mas, mais do que isso, ela rejeitou explicitamente
a forma de organização autocrática do poder, vigente durante 21 anos. A
“Constituição cidadã”, nas palavras do saudoso Ulysses Guimarães, pre-
sidente do congresso nacional constituinte, não apenas restabeleceu a de-
mocracia como fundamento da legitimidade do poder no Brasil, mas, de
forma absolutamente inovadora, ampliou os instrumentos de participação
popular, inaugurando potencialidades de implementação de um modelo de
democracia semidireta e participativa. Democracia semidireta14 pois a nova
carta deu inédito status constitucional a instrumentos de participação popu-
lar direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa. O

12
Refiro-me aqui à campanha civilista de Ruy Barbosa, no início da aventura republicana.
13
SPRICIGO, C. M. A volta dos que não foram: o papel das Forças Armadas na Consti-
tuição. In: AUGUSTO, C. B. et al. (org.). Novas direitas e genocídio no Brasil – pan-
demias e pandemônio – v. II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. p. 223.
14
BENEVIDES, M. V. M. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular.
São Paulo: Ática, 1991.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 39

acréscimo desses institutos à já estabelecida democracia dita representativa


constitui importante aperfeiçoamento no processo legislativo, no sentido
de intensificar a participação popular, aumentando a legitimidade demo-
crática do processo de produção normativa no país. Mas, a constituição fez
ainda mais, visto que indicou expressamente a importância da participação
popular na definição de políticas públicas relacionadas com direitos sociais,
como, por exemplo, são os casos das políticas de saúde, assistência social e
educação. O atual marco normativo constitucional da democracia brasileira
estabelece uma democracia não meramente representativa, em que o papel
do cidadão é votar a cada quatro anos e depois voltar para sua casa, mas,
sim, um processo muito mais dinâmico e inclusivo, inerente à democracia
semidireta e participativa.
1988 também restabeleceu as condições normativas para a superação
da hipertrofia executiva vigente na ditadura. O princípio basilar que estrutu-
ra o funcionamento do Estado nos países mais avançados, a separação dos
poderes, recuperou as condições de sua efetividade. A ditadura militar não
eliminou os poderes Legislativo e Judiciário, mas, por razões normativas ou
práticas, eles estavam mais para departamentos anexos do todo-poderoso
Executivo. Agora, o Legislativo e o Judiciário recuperam as condições ele-
mentares para seu funcionamento livre de amarras e ameaças, enfim, com
independência funcional e autoridade equivalente ao Executivo. “Indepen-
dentes e harmônicos entre si”, reza a Constituição.
Recuperada a independência judicial, ficou novamente o Poder Judi-
ciário plenamente apto a examinar toda “lesão ou ameaça a direito”, mesmo
quando oriunda de ação estatal sobre a liberdade individual. Mais do que
isso, a Constituição tornou possível novamente ao Supremo Tribunal Fede-
ral o exercício da jurisdição constitucional. Nesse sentido, nenhuma medida
teve impacto maior do que a redação do artigo 103 da CRFB, que dotou
de legitimidade ativa para propor ações constitucionais um rol inédito de
atores sociais e institucionais: presidente da República, mesa do Senado
Federal, mesa da Câmara dos Deputados, mesa de Assembleia Legislativa
ou Câmara Legislativa (DF), governadores de Estado ou do DF, o Procu-
rador Geral da República, o Conselho Federal da OAB, partido político
representado no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de
classe de âmbito nacional. O novo rol de legitimados foi um fator decisivo
40 CARLOS MAGNO SPRICIGO

para o aumento do protagonismo do Supremo Tribunal Federal. Com uma


constituição abrangente e muitas vezes minuciosa, forte na enunciação de
direitos fundamentais, a ampliação do número de autorizados a provocar a
manifestação da corte constitucional estabeleceu a base para que, no futuro,
o STF fosse cada vez mais demandado a se manifestar sobre os mais diver-
sos aspectos da vida política e social.
Por último, mas não menos importante, a nova constituição não foi
concebida como mero mecanismo de regulação formal do poder, estrutu-
rando as principais instituições e estabelecendo os critérios de interação
entre elas, mas, ao contrário, assumiu intenso compromisso material, nota-
damente pela ênfase dada à declaração minudente dos direitos fundamen-
tais, com especial destaque para os direitos sociais, econômicos e culturais.
A constituição apresenta um verdadeiro programa social, quando se com-
promete explicitamente com a “erradicação da pobreza” e a diminuição das
“desigualdades sociais e regionais”. Não por acaso foi incluída no rol das
“constituições dirigentes”.15 Se não se comprometeu, como a constituição
portuguesa, com a construção de uma “sociedade socialista”, não se pode
ignorar que a carta da redemocratização tinha e tem um feitio expressa-
mente social-democrata. Esses valores expressos numa constituição rígida,
que possui um núcleo apresentado como imutável, as famosas cláusulas pé-
treas, configuram, no mínimo, elementos estruturais para um convite a uma
maior participação do Poder Judiciário na definição das políticas públicas e
normas em geral no país.
O olhar retrospectivo nos mostra que a Constituição de 1988, no
momento que abandonava a tutela asfixiante e sem sentido dos militares
na vida pública brasileira, foi extremamente feliz ao criar as bases para que
o país desenvolvesse, finalmente, um Estado Democrático de Direito. Es-
tado democrático pela reafirmação da importância da democracia dita repre-
sentativa nas três esferas de poder do nosso federalismo, aperfeiçoada e
aprofundada pelo convite feito com a institucionalização dos mecanismos
diretos de participação popular, que são: o referendo, o plebiscito e a inicia-
tiva popular legislativa. Mais do que isso, a constituição destaca, em vários

15
CANOTILHO, J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo
para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra,
2001.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 41

pontos, a necessidade de implementar-se uma democracia participativa para


a definição de políticas públicas ligadas, especialmente, aos direitos sociais.
Desde Rousseau ecoa a reivindicação de que a legitimidade das leis está
diretamente vinculada à participação popular (diretamente, para o genebri-
no) na sua confecção. Estado de Direito pelo (1) estabelecimento de direitos
fundamentais constitucionais de várias dimensões que passam a constituir
uma referência de limites materiais para a legiferação democrática e (2) a
ereção de uma corte constitucional edificada como órgão que, por meio
da jurisdição constitucional, atua como mediadora entre a vontade atual do
povo e seus representantes, expressa nas novas leis, e os limites estabeleci-
dos pelo próprio povo e seus representantes no momento fundacional da
última repactuação da convivência política e social.
É interessante aqui observar que não são poucos os juristas que ma-
nifestam uma visão que opõe Estado de Direito e democracia, o que fica
claro quando frequentemente se celebra o caráter “contramajoritário” da
jurisdição constitucional. Ora, essa abordagem só faz sentido se se presumir
que os direitos fundamentais têm uma origem suprapositiva, o que eviden-
cia o caráter jusnaturalista que subjaz a certas concepções acerca do pro-
blema16. Acontece que qualquer desvio jusnaturalista mina, desde a origem,
as possibilidades de desenvolvimento pleno do projeto democrático. Nesse
ponto estou com Kelsen, que explicitou em suas obras a relação necessária
entre democracia e positivismo jurídico. O Estado Democrático de Direito
só terá alguma efetividade se o Estado de Direito for concebido como o
mecanismo institucional de proteção da democracia estabelecido pela própria democracia,
a partir de critérios (os direitos fundamentais) estabelecidos democratica-
mente. O Estado de Direito desatrelado da democracia é um valor vazio,
mera garantia de que o estabelecido será cumprido, ou seja, que até mesmo
normas de uma ditadura podem ser dotadas de segurança jurídica.
Quando pensamos nos rumos do país a partir da promulgação da
Carta de 1988, salta aos olhos que as potencialidades democráticas desenha-
das naquele ano não foram plenamente desenvolvidas, enquanto, por outro
lado, o Poder Judiciário, a partir de certo momento, explorou ao máximo

16
Como quando Luís Roberto Barroso opõe o que seria uma “razão sem voto” ao voto
desprovido de razão.
42 CARLOS MAGNO SPRICIGO

suas possibilidades de intervenção, chegando ao ponto de um protagonis-


mo excessivo que transcendeu em muito o papel de mediador previsto pe-
los constituintes. Permaneceu bissexto o uso do referendo, plebiscito e ini-
ciativa popular legislativa, de modo que a democracia semidireta desenhada
na Constituição praticamente não saiu do plano do dever ser normativo.
Não foram dados passos decisivos no sentido de estimular a atuação in-
tensiva do que Sanchez17 denomina “poder instituinte popular”, que restou
latente até aqui. A onda Bolsonaro, em 2018, deixou claro que uma cultura
democrática não está definitivamente implantada na sociedade brasileira.
Tal como em Weimar, há 100 anos, enfrentamos o desafio de implementar
uma democracia numa sociedade em que parecem faltar democratas.

2.3 A CONSTRUÇÃO DA HIPERTROFIA JUDICIAL NO


BRASIL: RECONFIGURAÇÕES INSTITUCIONAIS
MAIS RELEVANTES

A juristocracia, segundo Hirschl, surge em processos nacionais de


transição política que envolvem uma constitucionalização ou reconstitu-
cionalização. Ele resume os pontos essenciais do que entende por constitu-
cionalização: a adoção de uma carta de direitos fundamentais e da revisão
judicial. Como assinalei anteriormente, a abordagem de Hirschl privilegia
as mudanças e condições institucionais relacionadas com o fenômeno es-
tudado. Essas mudanças, de caráter normativo, são certamente uma con-
dição necessária, porém não suficiente para identificarmos a formação da
hipertrofia judicial no Brasil. Em nosso país, a hipertrofia judicial exigiu
alterações institucionais que foram sendo implementadas aos poucos, mas
somente se tornou plenamente possível quando encontrou seu comple-
mento coconstitutivo na disseminação do ideário neoconstitucionalista,
cuja “metodologia jurídica” é especialmente favorecedora de uma atuação
hipertrófica do Judiciário. Isso será tratado no próximo capítulo. Agora,
cuidaremos das reconfigurações institucionais mais relevantes ocorridas a
partir de 1988.

17
SANCHEZ, D. Direitos humanos instituintes. Tradução de Bruna N. M. M. de An-
drade e Leonam L. N. Cunha. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 43

A Constituição de 1988 como documento normativo central atendeu


aos dois requisitos elementares de Hirschl. Trouxe, a nova Carta, um rol
destacado de direitos fundamentais, o que fornecerá um importante subs-
trato para o desenvolvimento de uma renovada dogmática dos direitos fun-
damentais. De um ponto de vista mais abrangente, os direitos humanos já
haviam tornado a exercer o que Claude Lefort18 denominou de eficácia sim-
bólica a partir do fim dos anos 1970, em especial com a revogação do AI-5,
em 13 de outubro de 1978, e a Lei da Anistia, de 28 de agosto de 1979. Ali
já estava criado o cenário para a o retorno de um certo protagonismo cida-
dão com cada vez menos amarras e, com isso, tivemos a reforma partidária
no final de 1979, eleições diretas para governadores que elegeram Leonel
Brizola no Rio de Janeiro, Tancredo de Almeida Neves em Minas Gerais e
André Franco Montoro em São Paulo, no ano de 1982. Tivemos também a
campanha das “Diretas já!”, que reivindicava o retorno imediato de eleições
diretas para presidente da República. Era o ressurgimento do poder insti-
tuinte popular a partir da revalidação social e política da ideia do “direito
aos direitos”, o que culminou com um processo constituinte em que os
direitos fundamentais resultaram de uma ampla mobilização e discussão da
sociedade brasileira como um todo. A Constituição trazia a promessa de
devolver a dignidade aos direitos fundamentais – tornados mera “retórica
como expediente”19 no período militar - e determinava a “sua aplicação
imediata” (art. 5º, § 1º). E, mais do que promulgar uma abrangente carta
de direitos, a Constituição abria caminhos institucionais com grande po-
tencial de viabilização desses direitos fundamentais: (1) o estabelecimento
de uma democracia semidireta e participativa como modelo de inserção
cidadã na definição das políticas públicas em todos os níveis; e (2) a criação
inédita (na amplitude da sua configuração) de uma revisão judicial refor-
çada, por meio da diversificação de mecanismos de exercício da jurisdição
constitucional concentrada e da ampliação dos legitimados a acionar esses
instrumentos. As duas trilhas abertas pela nova carta magna dependeriam
de desenvolvimentos ulteriores, sujeitos a grandes indeterminações, sobre-

18
LEFORT, C. A invenção democrática: os limites do totalitarismo. Tradução de Isabel
M. Loureiro. São Paulo: Brasiliense, 1983.
19
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 511.
44 CARLOS MAGNO SPRICIGO

tudo devido ao grande sufocamento social e institucional produzido pelo


período ditatorial, tanto em relação às potencialidades de manifestação do
poder popular no processo de possível radicalização da democracia, quanto
no tocante a uma atuação mais desenvolta e independente do Poder Judi-
ciário no processo de concretização do princípio da separação dos poderes.
A ampliação das ações constitucionais e dos novos legitimados para
proporem essas ações foram medidas que abriram inéditas possibilidades20
na vida político-institucional brasileira. A nova Constituição instituía a ação
direta de inconstitucionalidade, a arguição de descumprimento de precei-
to fundamental e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Em
1993, a Emenda Constitucional n. 3 criou também a ação declaratória de
constitucionalidade. Se a jurisdição constitucional concentrada fora inaugu-
rada em 1965 atribuindo legitimidade ativa exclusivamente ao Procurador
Geral da República, a ampliação significativa do rol de legitimados a provo-
car a função de guardião da Constituição do STF agora criava uma possibi-
lidade de interlocução direta antes inimaginável entre a corte constitucional
e os novos sujeitos da jurisdição constitucional. Dentre os novos legitima-
dos, destacam-se o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) – posição que faz essa organização transcender muito da função
de mera entidade de classe –, os partidos políticos com representação no
Congresso Nacional (o que chegou a gerar, a partir da reiteração da prática
da minoria derrotada em plenário apelar frequentemente ao Supremo, a
impressão de que a manifestação sobre a constitucionalidade das leis é uma
mera etapa rotineira do processo legislativo) e confederações sindicais ou
entidades de classe de âmbito nacional.

20
Christian Lynch tenta compreender os acontecimentos desses anos turbulentos no Judi-
ciário brasileiro por meio da ideia de “revolução judiciarista”. Para esse autor, a história da
República brasileira consiste numa alternância entre militarismo e judiciarismo na luta por
encarnar o sucessor do Poder Moderador da constituição imperial, verificável desde as pri-
meiras décadas de sua implantação. Em que pese a importância de resgatar momentos de
certo protagonismo judicial no passado, creio que o fenômeno mais recente não encontre
precedentes na história institucional brasileira, dadas as suas dimensões e abrangência.
Basta lembrar que o controle concentrado de constitucionalidade, criado em 1965, mas
sem condições políticas para se tornar efetivo, só se torna mecanismo manejável pelo STF
a partir da CRFB de 1988. Ver: LYNCH, C. Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução
Judiciarista”. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, ano XX, n. 79, p. 158-168, out./nov./
dez. 2017. Disponível em: https://inteligencia.insightnet.com.br/pdfs/79.pdf. Acesso
em: 4 jul. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 45

De início, a arguição de descumprimento de preceito fundamental


foi considerada norma de eficácia contida, pela expressa remissão à regula-
mentação legal prevista no parágrafo único (redação original) do artigo 102
da CRFB. Ela teve que aguardar a aprovação da Lei n. 9.882, de 1999, que a
regulamentou e abriu as portas para sua utilização.
No ano anterior o Congresso Nacional aprovara a Lei n. 9.709, de
1998, que regulamentou as disposições do artigo 14, da Constituição, refe-
rentes ao plebiscito, iniciativa popular legislativa e referendo. Referendo e
plebiscito podem ser propostos por um terço dos membros da Câmara ou
do Senado, disposição que prestigia a iniciativa da minoria. Sua convoca-
ção, todavia, exige a aprovação mediante decreto legislativo. Nas questões
estaduais e municipais, a lei remete para a regulamentação das constituições
estaduais e leis orgânicas municipais.
A construção da hipertrofia judicial no Brasil se fez com o fortale-
cimento de atribuições e competências de órgãos do Poder Judiciário, mas
também contou com medidas de limitação de poderes do Executivo. A
Emenda Constitucional n. 32/2001 é um exemplo. A Constituição de 1988
substituíra o decreto-lei presente na constituição anterior pelo novo institu-
to da medida provisória (MP). Ocorre que a redação original do artigo 62
estabelecia poucas restrições para a edição das medidas provisórias, basica-
mente exigindo situações de “relevância e urgência” e fixando sua vigência
para o máximo de 30 dias. Logo no início da vigência da Constituição, en-
tendeu-se da possibilidade de reedições sucessivas das medidas provisórias,
o que se tornou um fator de disfuncionalidade na relação entre os poderes
durante os primeiros 13 anos da CRFB. O uso abusivo de medidas provi-
sórias foi uma marca desse primeiro período, o que fortalecia sobremaneira
a figura do Presidente da República, usurpando em parte a função legis-
lativa do Congresso Nacional. O’Donnell falava, à época, de democracias
delegativas21 na América Latina, cuja marca principal era o que chamou de
“decretismo”. O confisco da poupança dos brasileiros por Collor de Melo e
o Plano Real de Itamar Franco foram medidas implementadas por medidas
provisórias, para se ter uma ideia de seu uso abrangente. A Emenda Cons-

21
O’DONNELL, G. Democracia delegativa. Novos estudos, Cebrap, n. 31, p. 25-40,
out. 1991. Disponível em: https://uenf.br/cch/lesce/files/2013/08/Texto-2.pdf.
Acesso em: 11 dez. 2022.
46 CARLOS MAGNO SPRICIGO

titucional (EC) n. 32/2001 ampliou o prazo de vigência das MP’s (até 120
dias), acabou com a possibilidade de reedições infinitas e vedou-lhes uma
série de matérias normativas. Com isso, os presidentes da República sofriam
uma importante redução em suas possibilidades de ação política.
O ano de 2004 foi decisivo para o processo que estamos analisando
neste livro. Esse foi o ano da aprovação da EC n. 45, conhecida como
a emenda da “reforma do Judiciário”22. Dentre as várias alterações que
produziu no texto constitucional, duas medidas se destacam: a criação das
súmulas vinculantes e do Conselho Nacional de Justiça.23 Essas duas novi-
dades implementadas no segundo ano do governo do Partido dos Trabalha-
dores criaram condições inéditas para o funcionamento do Poder Judiciário
como uma corporação com capacidade de ação centralizável desde o topo
da sua hierarquia. Essas características só foram reforçadas por alterações
legislativas posteriores.
As súmulas vinculantes alteraram substancialmente a percepção ante-
riormente vigente na cultura jurídica em relação ao papel da jurisprudência
no conjunto das fontes do direito. O novo nome, “súmulas vinculantes”, já
diz muito: antes, as súmulas – e a jurisprudência como um todo – não eram
vinculantes. A jurisprudência, de modo geral, o que compreende acórdãos
e súmulas, sempre teve um certo papel na argumentação jurídica praticada
no Brasil. Antes da criação das súmulas vinculantes, todavia, esse papel es-
tava limitado ao de um argumento de dupla face: um argumento ao mesmo
tempo de justiça, na medida em que reivindicava tratamento igualitário para
casos semelhantes, e um argumento de autoridade24, na medida em que a
menção a um acórdão ou súmula de tribunal de instância superior sugeria
a possibilidade de futura alteração da decisão a ser tomada. A criação da

22
Marcelo Semer fez um ótimo registro crítico da evolução desse processo que levou à EC
n. 45/2004. Ver: SEMER, M. Os paradoxos da justiça: judiciário e política no Brasil.
São Paulo: Contracorrente, 2021.
23
Também foi criado o Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, mas seu im-
pacto não transcendeu às questões internas desse importante órgão republicano.
24
Sobre o argumento de autoridade ver: ROESLER, C. R.; CARVALHO, A. G. P. de. O
argumento de autoridade no Supremo Tribunal Federal: uma análise retórica em pers-
pectiva histórica. Direito, Estado e Sociedade, n. 55, p. 42-68, jul./dez. 2019. Disponí-
vel em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/907/578.
Acesso em: 11 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 47

súmula vinculante surge do debate sobre como melhorar a celeridade pro-


cessual. O aumento da integridade do direito praticado nos tribunais seria
obtido por meio do reforço dos entendimentos do órgão de cúpula, o que
tendencialmente diminuiria uma certa anarquia de entendimentos jurídicos
dos juízes e reduziria a necessidade e possibilidade de recursos, cujo exces-
so sempre foi visto como um grande obstáculo à efetividade da prestação
jurisdicional.
A redação do novo artigo 103-A da CRFB reserva a súmula com ca-
ráter vinculante às matérias constitucionais e ao STF, que, provocado ou “de
ofício”, por maioria de dois terços poderá aprová-las e depois revisá-las ou
cancelá-las. O efeito vinculante se dá em “relação aos demais órgãos do Po-
der Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal”, conforme § 2º do artigo 103-A. O que impede que se
veja a súmula vinculante, a priori, como uma ameaça de se tornar um instru-
mento de legislação por parte do STF e sua inserção contextual normativa.
Súmulas são rotineiramente vistas no mundo jurídico como mecanismos
que buscam a uniformização da jurisprudência, as quais, a princípio, têm
um caráter eminentemente interpretativo do direito preestabelecido. Uma
concepção doutrinária que privilegie princípios genéricos como elemento
central da constituição, porém, poderia, a partir do surgimento das súmu-
las vinculantes, encontrar nelas um poderoso instrumento de imposição de
uma agenda ideológica diversa daquela sufragada periodicamente nas urnas.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi o resultado de muitos
anos de discussão sobre a necessidade de um controle externo do Poder Ju-
diciário, visto desde sempre como o mais opaco dos poderes da República.
Em sua configuração final, o Conselho não cumpriu esse objetivo, na me-
dida em que a maioria dos seus assentos é ocupada, obrigatoriamente, por
juízes de direito, oriundos de tribunais diversos, sempre sob a presidência
do presidente do Supremo Tribunal Federal. A criação do CNJ forneceu ao
Poder Judiciário brasileiro uma organicidade até então desconhecida. Ela
se expressa de diversas maneiras, como na avocação da função correcional,
que minou parcialmente o marasmo de impunidade que vigia nas correge-
dorias locais; expressa-se, também, no incremento da capacidade de gestão,
item em que tem colhido bons resultados; mas também se manifesta na ati-
vidade regulatória, por meio da qual centralizou a produção de padrões nor-
48 CARLOS MAGNO SPRICIGO

mativos para a sua comunidade interna de juízes e serventuários da justiça,


e, além disso, desenvolveu mecanismos de produção de regramentos que
atingem também a comunidade externa. Essas características inovadoras do
CNJ potencializaram a capacidade do Poder Judiciário operar, a partir de
2004, como uma corporação perfeita: produz boa parte de suas normas de
funcionamento, exerce o poder disciplinar sobre a totalidade dos seus inte-
grantes e intensifica sua capacidade de gestão centralizada a partir do topo.
Essas novas características impactaram dinâmicas sociais e institucio-
nais relacionadas com a jurisdição. Vou citar três exemplos. O primeiro é o
da Resolução n. 7, de 2005. Essa resolução mirou a prática do nepotismo
dentro do Poder Judiciário, muito frequente até então. Não era incomum
que juízes e desembargadores instalassem parentes próximos, como filhos
e esposas, em seus gabinetes, recebendo remuneração e gratificações. Em
protesto contra a resolução, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Ge-
rais chegou a fazer um dia de greve. Levada ao exame do STF por uma
ADC, sua constitucionalidade foi declarada e resultou na edição da súmula
vinculante n. 13, em 2008, dessa vez com alcance para os demais poderes.
A prática generalizada do emprego de parentes foi duramente golpeada,
permanecendo apenas de modo mais residual na forma mais complexa do
nepotismo cruzado interinstitucional.
O segundo exemplo é o da união estável e casamento homoafeti-
vos. Em 2011, o STF julgou a ADPF n. 132, que considerou constitucio-
nais a união estável e o casamento homoafetivos. Na dinâmica tradicio-
nalmente estabelecida, essa decisão importantíssima poderia levar ainda
muitos anos para gerar uma estabilização social dos seus efeitos. Como a
decisão envolve alguns aspectos controvertidos, especialmente pelo fato
de a Constituição referir-se explicitamente a “homem e mulher” quando
trata do assunto, muitos membros do Ministério Público e juízes conser-
vadores teriam certamente oportunidade de manifestar sua divergência de
entendimento acerca da matéria, o que produziria uma profusão de ações
que recorrentemente “subiriam” novamente até o STF. Foi a edição de
uma normativa do CNJ, a Resolução n. 175/2013, ao obrigar os cartórios
a realizar o registro de uniões estáveis e casamentos homoafetivos, que
atuou como elemento que forneceu eficácia e efetividade ao que fora de-
cidido na ADPF n. 132.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 49

Registre-se, ainda, o caso dos enunciados das jornadas de direito do


CNJ. Nos últimos anos, o CNJ organizou eventos denominados “jorna-
das”, em que reúne majoritariamente magistrados e outros profissionais
para tratar de temas jurídicos, como nas Jornadas de Direito Civil e Jor-
nadas de Direito da Saúde. Essas jornadas acabam aprovando dezenas de
“enunciados das jornadas”, que se pretendem meramente interpretativos
da legislação vigente no país.25 Chamadas jocosamente por Lênio Streck de
workshops de magistrados, seus enunciados acabam produzindo, de modo
discutível, novos topoi que são efetivamente utilizados pelos tribunais e
juízes brasileiros na fundamentação de suas decisões. Os enunciados das
jornadas de direito configuram-se como uma espécie de subproduto ou
epifenômeno da hipertrofia judicial, em que ela ganha capilaridade e chega a
cuidar de assuntos de menor impacto e abrangência do que aqueles tratados
no âmbito da jurisdição constitucional, sua origem.
A criação da súmula vinculante gerou algumas críticas e resistências
iniciais, mas logo ficou clara qual seria a tendência na evolução do direito
brasileiro. Em 2006, a Lei n. 11.276 alterou o Código de Processo Civil,
estendendo o efeito vinculante também para as tradicionais súmulas do Su-
perior Tribunal de Justiça (STJ) e STF (ver art. 518, § 1º, da Lei n. 11.276,
de 2006). A busca pelo reforço da integridade substantiva na jurisprudência,
inaugurada pela criação da súmula vinculante em 2004, chega ao ápice com
a aprovação da Lei n. 13.105, de 2015: o atual Código de Processo Civil.
Como se pode ver em seus artigos 489 e 927, o novo CPC generalizou, na
prática, o efeito vinculante. Os juízes e tribunais têm a obrigação, sob pena
de nulidade de suas decisões, de respeitarem todas as súmulas dos tribunais
aos quais se encontram subordinados, assim como seus precedentes e julga-
mentos de casos repetitivos. A recusa em aplicar o material jurisprudencial
vigente à disposição implica na necessidade de se justificar a distinção e
peculiaridade do caso examinado.

25
Sobre os enunciados, ver: SPRICIGO, C. M.; ALVES, G. L. A. ; SANTOS, A. T. ;
MORGAN, R. . Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde no Superior Tribunal
de Justiça: novos topoi em contexto de hipertrofia judicial. In: ROESLER, C.; REIS,
I.; Dos Santos, Celso. (Org.). Tópica e discurso: reflexões sobre o direito como prática
social. 1ªed.Curitiba: Alteridade, 2022, v. 1, p. 313-334.
50 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Vê-se, portanto, que mudanças importantes ocorreram a partir da


EC n. 45, de 2004. Por um lado, o Poder Judiciário ganhou uma organici-
dade inédita, que pode ser muito positiva no ganho de coerência interna
e incremento da celeridade no julgamento dos processos. O aumento da
produtividade do Judiciário pós-CNJ é bem-vindo. Antes, sequer havia nú-
meros nacionais confiáveis! Por outro lado, entretanto, as medidas efetiva-
das podem sufocar a dialogicidade inerente ao mundo do Direito, que se
configura de diversos modos nas instituições judiciais. O Poder Judiciário
se estrutura verticalmente em instâncias e tribunais superiores (na prática
são quatro níveis de atuação) e, geralmente, seus quadros mais jovens estão
alocados na base do organograma, ficando situados no topo da hierarquia
seus integrantes mais longevos, até o limite de 75 anos. As alterações postas
em funcionamento, que restringem a dialogicidade interna, apontam, no
limite, para a conformação de uma gerontocracia, o que pode trazer alguns
aspectos problemáticos no futuro. Em todo caso – considerado o tema
deste estudo: a hipertrofia judicial municiada pela ideologia neoconstitucio-
nalista –, as alterações antes descritas têm o condão de intensificar os efei-
tos de um deslocamento de poder do Legislativo e Executivo para o Poder
Judiciário, pois ele agora está redesenhado para marchar em uníssono, de
cima para baixo.
Vimos que a hipertrofia judicial se manifesta como um aumento sis-
temático de protagonismo judicial em detrimento dos demais poderes. Esse
protagonismo dos tribunais normalmente se configura como o resultado
político (retenção, na prática, de uma atribuição alheia) da sua atuação jurí-
dica. É como se o tribunal, atuando no âmbito do Direito, fizesse também,
abertamente, política26. Mas o processo de hipertrofia judicial no Brasil teve

26
A hipertrofia judicial pode até dividir o cenário com a judicialização da política, mas com
ela não se confunde. A judicialização da política corresponde à situação em que, devido
aos diversos fatores em uma dada sociedade, o Poder Judiciário é levado a decidir um
número cada vez maior de temas com elevada carga política, como é o caso de ter que dar
a palavra final sobre a constitucionalidade de políticas públicas que envolvam um substan-
cial dissenso de interesses, moral ou ideológico, na base da sociedade. Na judicialização
da política não necessariamente encontramos o resultado deslocamento de poder, já que o
Poder Judiciário atua cumprindo, na verdade, suas atribuições constitucionais de controle
judicial. A hipertrofia judicial, situação excepcional, envolve necessariamente estes dois fa-
tores: (1) busca, pelo tribunal, da realização de um programa político identificável para além
do mero e rotineiro controle judicial e (2) deslocamento de parcelas de poder que passam
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 51

efeitos simultaneamente na política e em relação aos políticos. Nas duas úl-


timas décadas, o desenvolvimento da hipertrofia judicial compôs um pano
de fundo para um processo com outros desdobramentos, mais especifica-
mente de criminalização da política e de determinados grupos políticos.
Nesse contexto, nenhum caso é mais importante que a aprovação da Lei
Complementar n. 135, de 2010. Oriunda de uma das raras iniciativas po-
pulares legislativas de âmbito nacional, a “lei da ficha limpa” – como ficou
celebrizada –, foi produzida num ambiente já dominado por um moralismo
anticorrupção excessivo, estabelecido a partir do início do processamen-
to da ação penal 470/STF. Essa lei complementar, dentre outros aspectos
problemáticos, estabeleceu a condição de inelegibilidade para candidatos
a cargos políticos condenados por órgãos judiciais colegiados por diversos
crimes listados no texto da lei, ou seja, relativizando a garantia de presun-
ção de não culpabilidade insculpida no art. 5º, LVII da CRFB, que exige
o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Poderia ser pior,
pois a proposta popular estipulava originariamente essa consequência para
condenados em 1ª instância, em juízo monocrático, o que violaria também
o princípio do duplo grau de jurisdição. Essa lei complementar, apesar de
suas ótimas intenções, criou um mecanismo extremamente perigoso para
a vida democrática, ao aumentar as possibilidades de intervenção excessiva
do Direito sobre a política, carregando consigo a potencialidade de esvaziar,
circunstancialmente, a soberania popular.27

a se concentrar na cúpula do Poder Judiciário. A ideologia neoconstitucionalista favorece


a ocorrência da hipertrofia judicial na medida em que, deslocando as regras em favor de
princípios ultragenéricos, torna possível às cortes dizer qualquer coisa em nome do direito
e da constituição.
27
A Lei da Ficha Limpa fez várias vítimas pelo país. Em Criciúma-SC, minha cidade natal,
o prefeito Clésio Salvaro (PSDB), teve seus 81% de votos obtidos para sua reeleição,
em 2012, anulados. Ele fora condenado em 2007 pela Justiça Eleitoral e já cumprira
sua pena, mas a nova lei estendeu o efeito de uma condenação desse tipo pelos próxi-
mos oito anos. Outra vítima foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Condenado
em tempo recorde pelo TRF4 em ações da operação “Lava Jato”, o ex-presidente foi
impedido de concorrer nas eleições nacionais de 2018 por conta dessas condenações,
incidindo as disposições da Lei 135/2010. Detalhe: Lula foi o presidente que promul-
gou a problemática lei. Com a anulação das ações penais contra o ex-presidente pelo
STF, constatadas a incompetência do foro da 13ª Vara Federal de Curitiba e a suspeição
do magistrado de 1ª instância, evidenciou-se a fraude processual que foi decisiva para
a eleição de Jair Messias Bolsonaro para a presidência da República. Lula ficou mais de
500 dias preso injustamente.
52 CARLOS MAGNO SPRICIGO

De todo o exposto, podemos concluir que a hipertrofia judicial, con-


forme assevera Hirschl28, é uma distorção que não pode ser imputada ex-
clusivamente à ação dos juristas, mas que conta, para sua implementação,
com a colaboração de diversos atores institucionais, como autoridades do
Poder Executivo e Legislativo, que serão diretamente afetados por medidas
que eles próprios aprovaram.

2.4 PARA ALÉM DO ATIVISMO EPISÓDICO:


A HIPERTROFIA JUDICIAL COMO
DISFUNCIONALIDADE INSTITUCIONAL
RELEVANTE

A discussão sobre a hipertrofia judicial parece exigir algum esclare-


cimento prévio sobre a questão do ativismo judicial. Para Lênio Streck, a
recepção do ativismo judicial americano é um dos três equívocos cometidos
na cultura jurídica brasileira atual, ao lado da recepção da ponderação alex-
yana e da jurisprudência de valores.29
A discussão sobre ativismo judicial nos Estados Unidos da América
tem praticamente a idade de sua constituição e, dadas as discrepâncias en-
tre aquela realidade político-jurídica e a realidade local, não pode ser sim-
plesmente transportada para cá sem enormes ressalvas. Os EUA são um
país híbrido de common law e civil law, com uma constituição promulgada há
mais de dois séculos, produzida em uma sessão constituinte que compor-
tou algumas dezenas de homens brancos proprietários (no contexto de um
regime escravocrata vigente até 1865). Além disso, lá a reforma da consti-
tuição é dificílima, pois envolve, além da deliberação congressual, a apro-
vação de 38 dos legislativos estaduais. Em decorrência disso, a constituição

28
HIRSCHL, R. Rumo à juristocracia: as origens e consequências do novo constitucio-
nalismo. Tradução de Amauri Feres Saad. Londrina: EDA, 2020.
29
STRECK, L. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 46. Streck chama a atenção de que, na história dos EUA,
o ativismo judicial já adquiriu colorações diversas, como à época conhecida como era
Lochner, em que a atuação judicial da Suprema Corte foi de resistência a políticas públi-
cas de caráter intervencionista implementadas no governo Roosevelt, que contrasta com
o período da corte Warren, em que temas ligados à segregação racial nos EUA foram, em
contexto de fortes embates sociais, finalmente enfrentados em chave emancipadora.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 53

dos EUA foi emendada apenas 27 vezes em 234 anos. Os EUA, ademais,
têm um sistema eleitoral distrital, que acaba por implementar, na prática,
um sistema bipartidário, impedindo que a composição da casa legislativa
possa exprimir mais aproximadamente a pluralidade ideológica existente
na sociedade americana e dificultando, também, a representação política de
minorias. Em sentido bem diverso, o Brasil está na sua oitava constituição,
que não é sintética como a americana; nela, além de uma importante carta
de direitos fundamentais, abundam regras que regulam com certa precisão
o funcionamento das instituições e as principais características de uma série
de políticas públicas. Apesar de a teoria constitucional a classificar tecnica-
mente como uma constituição rígida, a CRFB já foi objeto de 114 emendas,
o que dá uma média de aproximadamente 3,5 emendas por ano de vigência.
E, mais importante, os integrantes da Câmara dos Deputados são escolhi-
dos pelo sistema de votação proporcional, que se caracteriza por permitir
a representação política de minorias, isso num universo político partidário
fragmentado, composto por, ao menos, 35 agremiações30. O cenário das
instituições político-jurídicas americano parece bem mais engessado para
demandas de mudanças que o brasileiro, o que pode explicar lá um maior
apelo por participação de atores não estritamente políticos em processos
institucionais de inovação. Deixarei, então, a experiência dos EUA em se-
gundo plano.
A discussão sobre ativismo judicial envolve uma dimensão político-
-institucional, mais imediata e inteligível, mas seu sentido pleno só pode ser
atingido penetrando-se camadas de reflexão realizadas a partir dos concei-
tos da teoria do direito. Explorando a dimensão institucional, o ativismo
judicial implicaria a atuação jurisdicional de juízes ou tribunais que extrapo-
lasse a clássica tripartição de poderes modernamente creditada a Montes-
quieu. Nesse sentido, um juiz ativista seria o oposto do juiz “boca da lei”.
Essa percepção do problema é bastante intuitiva e se apoia em uma série
de dualismos que sobrevivem residualmente no senso comum teórico dos
juristas, como o dualismo que opõe criação/aplicação do direito. Nesse dualis-

30
Vinte e quatro com representação na Câmara dos Deputados. Ver: BRASIL. Câmara
dos Deputados. Lideranças e bancadas partidárias. [2022]. Disponível em: https://
www.camara.leg.br/deputados/lideres-e-vice-lideres-dos-partidos. Acesso em: 22 fev.
2022.
54 CARLOS MAGNO SPRICIGO

mo, a criação do direito é função exclusiva das autoridades eleitas pelo povo,
como os legisladores (por meio de leis) e os chefes de governo (por meio de
decretos ou medidas provisórias), sendo considerada como legítima atuação
dos juízes e tribunais apenas a aplicação das normas e leis. Em sentido rigo-
roso: do exercício da função jurisdicional não deveria emanar direito novo.31
Esse dualismo traz consigo implícito outro par que lhe confere pleno
sentido de correspondência: vontade/razão. Dessa forma, a função voliti-
va e política somente se faria presente na atuação dos legisladores estan-
do ausente quando os juízes exercem suas atribuições, que seriam mera e
exclusivamente cognoscitivas. A isso tudo subjaz ainda a velha crença no
ideal exegético da subsunção, em que as conclusões judiciais expostas em
uma sentença/acórdão já estariam todas contidas nas palavras genéricas da
lei, bastando apenas às cortes aplicá-las aos fatos constatados no proces-
so. Essa apreensão inicial do problema, que, como veremos, é insuficiente
diante da complexidade das coisas envolvidas, posiciona provisoriamente
os elementos da complexa relação entre atuação judicial e democracia. Se
o poder realmente emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio
de seus representantes, uma atuação criativa das cortes configuraria uma
usurpação de poder por parte de elites judiciais.
Ocorre que a concepção de que o raciocínio judicial pode ser com-
preendido apenas a partir da ideia do silogismo judicial há muito tempo não
se sustenta32. Mesmo as teorias que se apresentam como modernas aqui
são atingidas, pois o neoconstitucionalismo também incorre nesse erro ao
elaborar seus conceitos, quando atrela simploriamente: regras > subsunção

31
O ativismo judicial por um de seus maiores entusiastas: “Já o ativismo é uma atitude,
a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo
o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em
situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe po-
lítica e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas
de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o
Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes.” (BARROSO,
L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e
a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 442).
32
“Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão por vezes até à indeterminação
ou ao equívoco, a operação hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade”
e tem “uma verdadeira função de invenção.” (BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tra-
dução de Fernando Tomaz. Lisboa: Edições 70, 2021. p. 233).
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 55

e princípios > ponderação.33 A noção de subsunção não consegue dar conta


do fenômeno da interpretação/aplicação/argumentação do direito, mesmo
se limitarmos o problema às regras. A pesquisa nos julgados dos tribunais
ilustra isso todos os dias:

Uma análise das decisões judiciais dos tribunais superiores brasilei-


ros indica um acentuado déficit de racionalidade nas justificações
produzidas pelos julgadores quanto às razões de suas decisões, se
utilizados os instrumentos teóricos da Teoria da Argumentação Jurí-
dica. Há uma notável dificuldade em se estabelecer claramente a vin-
culação entre a decisão tomada e suas razões, bem como relacioná-la
com outros elementos do ordenamento jurídico (normas gerais e
padrões jurisprudenciais).34

Já Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito repelira a conformação


de uma lógica judicial nos moldes estreitos do silogismo e da subsunção.
Para este autor, tudo é norma, seja um dispositivo da constituição, seja uma
lei federal, um contrato ou mesmo uma sentença judicial. Como para ele a
norma é o sentido objetivo de um ato de vontade, e isso se aplica também às
sentenças e acórdãos, Kelsen explica a interpretação/aplicação do direito a
partir de um ponto de vista radical. Em se tratando de interpretação reali-
zada pelos juízes – que nesse ponto são equiparados por ele a deputados
ou senadores –, Kelsen afirma que diante da plurissignificação das palavras
contidas num texto normativo, a interpretação a ser feita pelo órgão do
Estado/direito, que necessariamente criará uma nova norma individual e
concreta, se deparará com escolhas a serem feitas por esses juízes. Como
Kelsen constrói suas reflexões sobre uma base sólida de relativismo axioló-
gico, a escolha de um significado ou outro dentro de uma moldura de signi-
ficações possíveis é algo que escapa à sua concepção estrita de racionalidade
e é por esse motivo que ele afirma que

33
Ver capítulo 2.
34
ROESLER, C. R. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de uma
prática jurídica. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 08, n. 04, Número Especial, , 2015.
Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/
view/20940/15319. Acesso em: 11 dez. 2022.
56 CARLOS MAGNO SPRICIGO

[...] de um ponto de vista orientado para o direito positivo, não há


qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas
na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra. [...] A
tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa
(certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica
tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as
únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através da
interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco
podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças
corretas.35

Na verdade, Hans Kelsen vai além em sua análise da interpretação e


aplicação do direito, pois seu ponto de observação descritivista do direito
positivo o leva a reconhecer que os juízes decidem mesmo, por vezes, fora
da moldura de significações possíveis. Nesses casos, o autor apenas assinala
que, por meio dessas decisões, “[...] é muitas vezes criado Direito novo –
especialmente pelos tribunais de última instância”. Essa decisão, digamos,
ativista, é inerente ao funcionamento do direito positivo como um sistema
dinâmico de normas, em que “todo conteúdo pode ser direito”, e é por isso
que Kelsen repele com veemência a possibilidade de uma lógica jurídica
em seu debate com Ülrich Klug. Portanto, em termos de direito positivo,
não há razão jurídica na visão kelseniana, o que exige colocar o problema do
ativismo judicial numa perspectiva mais complexa.
Essa percepção que refuta a conformação do raciocínio judicial
como mero silogismo não é exclusividade do positivismo normativista.
Outros autores que pesquisam o direito na perspectiva pragmática con-
vergem nesse ponto. É o caso de Chaïm Perelman e sua nova retórica.36
Perelman sustenta que ao direito corresponde uma lógica específica – que

35
KELSEN, H. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 2012. p. 393.
36
“Desse ponto de vista, ou seja, do ponto de vista do reconhecimento da diferença entre
no raciocínio lógico e a argumentação jurídica, Kelsen e Perelman estão muito mais pró-
ximos do que as respectivas e recíprocas críticas fazem pensar. Ambos estão alinhados
com igual firmeza contra autores como Klug e Kalinowski, que trataram de reinserir
com destaque a lógica formal no campo do direito.” BOBBIO, N. Direito e poder.
Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2008. p. 253.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 57

não se reduz aos postulados da lógica formal – uma lógica não demons-
trativa, mas sim argumentativa. Essa lógica própria – a que Kelsen não se
dá ao trabalho de observar – não se estrutura senão raramente em algo
próximo a silogismos lógicos, pois afirma Perelman que basta uma impre-
cisão da linguagem ou mesmo dos fatos para que a retórica adentre com
tudo no esforço de resolução da questão. O campo do direito seria, então,
um campo retórico, ou seja, um campo de produção de discursos persua-
sivos em que oradores (ethos) buscam persuadir seu auditório (páthos) por
meio do discurso (logos)37. Nesse esforço persuasivo são empregadas di-
versas técnicas argumentativas e utilizados topoi, muitas vezes articulados
naquilo que mais próximo chega à retórica dos silogismos, os entimemas,
compostos não por axiomas apofânticos, mas por enunciados com mera
pretensão de verossimilhança. Não sendo racional, obedeceria, o direito, a
uma lógica do razoável, afirma Perelman. Razoabilidade essa definida em
cada caso pelo auditório38, pois seria ele o elemento definidor da eficácia
do discurso em termos de persuasão.
Revisitando Kelsen e Perelman vimos que o binarismo elementar
pressuposto pela discussão sobre ativismo judicial não resiste ao escrutí-
nio realizado a partir de estudos mais aprofundados. No mesmo sentido
poderíamos ter recorrido a outros autores, como Theodor Viehweg39 e sua
tópica, ou Stephen Toulmin e seu layout de argumentos.

37
Michel Meyer define a retórica como a negociação da distância entre orador (ethos) e
auditório (páthos) acerca de um determinado assunto (logos). Ver: MEYER, M. What is
rhetoric? Oxford: Oxford University Press, 2017.
38
É verdade que Perelman fala em dois tipos de auditórios, o auditório particular e o
auditório universal. O termo “persuasão” fica associado ao auditório particular, por-
quanto, em se tratando de auditório universal, reserva Perelman o termo mais forte:
“convencimento”. Em todo caso, quando lidamos com o discurso jurídico, em con-
textos de retórica estratégica, estamos diante de situações meramente persuasivas, com
auditórios concretamente identificáveis, e não normativamente pensados pelo orador.
39
“Theodor Viehweg tornou-se conhecido por defender a ideia de que o saber jurídico,
por ele denominado de Jurisprudência, não se desenvolve a maneira do modelo moder-
no de ciência, mas sim à maneira tópica: no âmbito jurídico, o estilo de trabalho que
predomina orienta-se por problemas e procura resolvê-los buscando apoio em pontos
de partida compartilhados, os topoi.” (ROESLER, C. R. O papel de Theodor Viehweg na
fundação das teorias da argumentação jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política,
Itajaí, v. 4, n. 3, p. 36-54, 3º quadrimestre de 2009. Disponível em: https://periodicos.
univali.br/index.php/rdp/article/view/6142/3405. Acesso em: 12 dez. 2022).
58 CARLOS MAGNO SPRICIGO

O fato é que a observação da prática judicial nos revela todos os


dias que a dicotomia criação/aplicação do direito é muito limitada para
explicá-la em sua complexidade. Juízes e tribunais resolvem conflitos ro-
tineiramente, utilizando-se de um farto material argumentativo que lhe é
preexistente e que não se resume exclusivamente às leis: são leis, regras,
princípios, precedentes, topoi, técnicas argumentativas etc. As decisões as-
sim produzidas se apresentam como meramente contingentes, uma de-
cisão dentre outras também igualmente possíveis. Dessa forma, parece
perder importância a discussão sobre ativismo judicial, na medida em que
estão longe de serem raras as sentenças e acórdãos que se distanciam da
ideia simplória da mera aplicação do direito preexistente. Por resultarem
em novas normas individuais e concretas (as sentenças e acórdãos), cujo
alcance é por definição limitado às partes no processo, decisões judiciais
“ativistas” não necessariamente constituem um problema para o funcio-
namento do direito, até mesmo para o direito democrático. Digo isso
porque, mesmo que as decisões judiciais não sejam uniformemente um
reflexo silogístico das leis aprovadas pelo povo ou seus representantes, as
normas jurídicas gerais e abstratas (recuso-me a reduzi-las a mero “texto
normativo”) subsistem em sua função sistêmica de alívio para as expec-
tativas40, orientando a cidadania em como conduzir-se para atender parâ-
metros jurídicos na vida cotidiana, que na maior parte das vezes prescinde
da intervenção judicial.
O problema muda de patamar quando a atuação das cortes deixa de
produzir apenas normas individuais e concretas, de alcance limitado, e pas-
sa a adquirir efeitos erga omnes, característica dos textos legais oriundos do
legislador democraticamente eleito. Falamos aqui da jurisdição constitucio-
nal, mas também dos novos efeitos vinculantes atribuídos a precedentes e
súmulas dos tribunais no Brasil nos últimos anos. Ainda assim, nesses casos,
não parece residir nos tribunais o problema da inevitável situação de pro-
duzirem, excepcional e desarticuladamente, decisões cujo caráter inovador
parece bastante evidente. A teoria do direito mostra que o direito é assim,
comporta essa característica. Como disse um Kelsen resignado, a segurança
jurídica “é um ideal realizável apenas aproximativamente”. O problema se

40
LUHMANN, N. Sociologia do Direito. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1983.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 59

encontra, verdadeiramente, na reiteração intencional e de alguma forma ar-


ticulada dessa prática. Waldron sugere que o saudável e necessário controle
judicial tende a degenerar-se em supremacia judicial quando

[...] os tribunais começam a apresentar-se e a pensar-se como perse-


guindo um programa ou uma política coerente, em lugar de limitar-se a
responder, à medida que surgem, aos abusos particulares identifica-
dos como tais por uma declaração de direitos.41

Como veremos mais adiante, no período aqui estudado, foi exata-


mente essa a situação vivenciada na cultura jurídica/judicial brasileira du-
rante a predominância do neoconstitucionalismo no senso comum teórico
dos juristas. Falou-se expressamente em uma função iluminista, represen-
tativa e “empurradora da história” para o Judiciário da nova era. Em um
contexto específico, a partir do ano de 2014, o Judiciário brasileiro sentiu-
-se mesmo imbuído da missão de combater a “maior chaga” brasileira, a
corrupção. Nesse ponto, a ideologia lavajatista consolidou-se numa prática
(sustentada na ideia básica de que os fins justificam os meios, ou seja, de
que o combate à alta corrupção justificaria o desrespeito às garantias do
devido processo legal) e identificou-se com uma plataforma, conhecida e
amplamente divulgada com o nome “Dez medidas contra a corrupção”.
A implementação dessa plataforma foi tentada por meio de projetos de lei
apresentados ao Congresso Nacional, com pouco êxito, mas também foi
viabilizada de modo fragmentado e parcial através da atuação do Supremo
Tribunal Federal. Aqui, o mecanismo utilizado foi, principalmente, o das
ações constitucionais que integram o leque amplo da jurisdição constitucio-
nal, e o discurso que fundamentou e operacionalizou essa operação foi, via
de regra, o principialismo ponderativo42, uma forma de retórica constitucio-
nal que se tornou onipresente.

41
WALDRON, J. Contra el gobierno de los jueces. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018.
p. 142.
42
GARCÍA AMADO, J. A. Sobre ponderaciones. Debatiendo com Manuel Atienza. In:
ATIENZA, M.; GARCÍA AMADO, J. A. Un debate sobre la ponderación. La Paz:
Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolivia, 2018. p. 49.
60 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Quando isso acontece não se trata mais de mero “ativismo”, mas sim
de hipertrofia judicial. A hipertrofia judicial é uma disfuncionalidade no sis-
tema político-jurídico, na medida em que transfere poder das casas legislati-
vas para as cortes, infensas por definição ao escrutínio e responsabilização
democráticos. Como afirmou Kelsen, nesse caso, as normas deixam de ser a
expressão da pluralidade dos valores da vontade popular constituída no parla-
mento por meio de eleições periódicas, e passam, como disse Hirschl, a ser a
expressão de elites políticas, judiciais e empresariais que, desse modo bastante
intrincado, logram impor seus interesses contornando as dificuldades insu-
peráveis – falta de voto para impor uma agenda antipopular – inerentes ao
funcionamento do sistema democrático numa sociedade capitalista.

2.5 HIPERTROFIA JUDICIAL OU REVISÃO JUDICIAL


ABUSIVA?

Nos últimos anos muitas pesquisas se voltaram para o problema do


enfraquecimento das democracias em diversas partes do globo terrestre.
Essas pesquisas compartilham o interesse em buscar compreender o que
parece ser a novidade desses processos, o fato de que a democracia agora
não é mais necessariamente golpeada com tanques em praça pública, mas
sofre um desgaste interno mais lento e complexo, em que se torna difícil
divisar a travessia do ponto de não-retorno.
David Landau, há algum tempo, voltou sua atenção para o que de-
nominou “constitucionalismo abusivo”43, referindo-se a processos políticos
que envolvem o uso de mecanismos de alteração constitucional, como as
emendas à constituição, para sabotar a democracia em um país. Ele cita o
caso da Venezuela, Colômbia e Hungria como exemplos. No Brasil, pode-
mos identificar a ocorrência esporádica de ações desse tipo, como foi o caso
da EC n. 16/97, que instituiu a reeleição para cargos do Executivo federal,
estadual e municipal e permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso.
Também a EC n. 88/15, conhecida como a PEC da bengala, que aumentou

43
LANDAU, D. Abusive constitutionalism. U.C. Davis Law Review, Davis: University
of California, v. 47, n. 189, p. 189-260, 2013. Disponível em: https://lawreview.law.
ucdavis.edu/issues/47/1/articles/47-1_Landau.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 61

a idade da aposentadoria compulsória de magistrados dos tribunais superio-


res, é exemplo do constitucionalismo abusivo pontual a que se refere Lan-
dau. Na ocasião, o Congresso Nacional, liderado pelo então presidente da
Câmara dos Deputados, deputado Eduardo Cunha, alterou a Constituição
com o objetivo de evitar que a presidenta Dilma Rousseff indicasse novos
juízes para o STF. O conceito de constitucionalismo abusivo, analisado por
Souza Neto em livro recente44, não consegue dar conta da problemática
ocorrida no Brasil, especialmente por focar sua análise em ações que se de-
senrolam exclusivamente nos poderes Executivo e Legislativo, obnubilando
o papel desempenhado pelo Poder Judiciário nesses processos.
Mais recentemente, Landau e Dixon45 ampliaram suas pesquisas,
contemplando a participação do Poder Judiciário em processos de erosão
democrática com o novo conceito de abusive judicial review, que integraria o
quadro de um constitucionalismo abusivo. Os autores dividem a revisão
judicial abusiva em dois tipos: (1) na versão fraca, o tribunal se limita a
convalidar ações deletérias promovidas fora dele por forças autoritárias; (2)
na versão forte, é a própria corte que ataca a democracia. Em todo caso,
Landau e Nixon trabalham com a hipótese de um tribunal que age sempre
coagido ou cooptado por forças autoritárias que visam a derrocada da de-
mocracia. Não considera a hipótese que trabalhamos aqui, de um sofistica-
do processo do qual o tribunal faz parte. A ideia de juristocracia (Hirschl)
ou hipertrofia judicial é mais apropriada, em nossa visão, para descrever a
situação brasileira recente. Não é possível afirmar que os tribunais brasi-
leiros visaram em algum momento algo parecido com uma derrocada da
democracia. Trata-se de um fenômeno mais sutil, um processo sofisticado
que lentamente transferiu na prática – sem alarde, sub-repticiamente – po-
deres originariamente atribuídos ao Executivo e Legislativo para a cúpula
do Poder Judiciário. Buscou-se, tal como descreveu Hirschl, implementar
mecanismos intrincados que permitiram que elites econômicas, políticas,
judiciais e militares, insatisfeitas com sucessivas derrotas nas urnas a cada
eleição, pudessem reter parcelas importantes de poder de decisão. Foi mais

44
SOUZA NETO, C. P. Democracia em crise no Brasil. São Paulo: Contracorrente,
2020.
45
LANDAU, D.; DIXON, R. Abusive constitutional borrowing. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2021.
62 CARLOS MAGNO SPRICIGO

um processo de esvaziamento da democracia, que se veria reduzida à esco-


lha periódica de agentes que comporiam órgãos apenas nominalmente rele-
vantes. A ideia de hipertrofia judicial acaba por ilustrar bem as advertências
de Poulantzas quanto a ilusões indevidas inerentes ao fato de ser o Estado
capitalista um espaço estratégico e dinâmico de disputas por poder:

A organização institucional do Estado torna possível à burguesia


permutar o papel dominante de um aparelho por outro, no caso em
que a esquerda ocupando o governo conseguisse controlar o apa-
relho que, até então, desempenhasse o papel dominante. De outra
maneira, essa organização do Estado burguês lhe permite funcionar
por deslocamentos e substituições sucessivas, dando condições para
o deslocamento do poder da burguesia de um aparelho para outro:
o Estado não é um bloco monolítico, mas um campo estratégico.46

46
POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de
Janeiro: Graal, 1985. p. 160. “Mecanismo complexo que pode encobrir várias formas,
algumas das quais aparentemente paradoxais: particularmente a função decisiva que
assumem repentinamente aparelhos-instituições que até então, tinham um papel perfei-
tamente secundário senão simplesmente decorativo; a Câmara dos Lordes na Inglaterra
derrotando recentemente os projetos de nacionalização por parte do governo trabalhis-
ta, magistratura-tribunais onde se descobrem repentinamente vocações irrepreensíveis
de garantia da ‘legalidade’ (Allende), diferentes conselhos constitucionais, etc”.
3

MUDANÇAS NO SABER DOS JURISTAS E A


INFLUÊNCIA NEOCONSTITUCIONALISTA

Neste livro, partimos da constatação de que o Brasil atual se insere no


fenômeno que muitos denominaram como “crise da democracia”47. Adam
Przeworski refina mais a ideia do processo que leva a essa crise quando cunha
a feliz expressão para descrever o momento atual: “subversão sub-reptícia da
democracia”48. A expressão indica que, hoje, as democracias que se encon-
tram em crise, como é o caso da brasileira, não estão sendo atacadas, dessa
vez, frontal e explicitamente. O processo de sabotagem da democracia no
Brasil abriu temporariamente mão de tanques na rua e uso de violência es-
cancarada, desdobrando-se agora por meio de processos muito mais sutis e,
de certo modo, sofisticados. Quero argumentar aqui que esse lento processo
de degradação institucional do constitucionalismo democrático de 1988 teve
importante participação de uma específica classe profissional: os juristas, tan-
to os juristas profissionais, atuando diretamente nas lides forenses, quanto os
juristas teóricos, conhecidos também como doutrinadores.

47
SOUZA NETO, C. P. Democracia em crise no Brasil. São Paulo: Contracorrente,
2020; AVRITZER, L. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019; AVRIT-
ZER, L. Impasses da democracia no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2016; PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. Tradução de Berilo Vargas. Rio
de Janeiro: Zahar, 2020; SANTOS, W. G. dos. A democracia impedida: o Brasil no
Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.
48
PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro:
Zahar, 2020. p. 97.
64 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Quando focamos nos acontecimentos mais destacados dessa cri-


se ocorridos na última década, fica evidente que nada daquilo poderia ter
acontecido sem a participação ativa de profissionais do mundo do direito.
A operação “Lava Jato”, surgida nominalmente para combater a corrupção
envolvendo grandes figuras da política e do mundo empresarial, é obra di-
reta das mãos dos juristas e de parcelas abrangentes das instituições judi-
ciárias, que endossaram suas práticas e seu discurso de legitimação perante
o público: “não seria possível combater a grande corrupção respeitando o
devido processo legal”. Aqui a participação de juristas foi ativa, explícita e
orgulhosa, apresentando inclusive a figura de um juiz de direito como líder
de uma operação que, antes de mais nada, visava a criminalização de grupos
políticos específicos49, mas tendo como objetivo implícito a criminalização
da política democrática como um todo.
Na deposição de Dilma Rousseff, em 2016, pode parecer a alguns que
os juristas tiveram um papel apenas coadjuvante. O esforço de muitos em ro-
tular o evento como “golpe parlamentar”, mirando deliberadamente apenas
os aspectos superficiais e o momento derradeiro do processo, assinala essa
tendência. Mas a destituição da esquerda democrática do poder federal foi,
na verdade, um dos resultados de um longo processo, que teve como pano
de fundo a lenta formação de um quadro de disfuncionalidade na relação
entre os poderes da República, que chamamos aqui de hipertrofia judicial.
Com a afirmação de que os juristas também participaram do processo de
subversão sub-reptícia da democracia no Brasil não quero simplificar proces-
sos extremamente complexos e fazer como Gustav Radbruch que, falando da
experiência nacional-socialista na Alemanha, após a guerra, apontou o dedo
acusador para o positivismo normativista50. Espero ter mais do que cinco
minutos! Paulo Freire disse que a educação não transforma diretamente o
mundo; para ele, a educação muda as pessoas e as pessoas transformam o

49
Em entrevista à rádio Capital FM, de Mato Grosso, em 29 de dezembro de 2021, na
condição de pré-candidato à presidência da República pelo Podemos, o antigo líder da
operação afirmou textualmente que a “Lava Jato” combateu o Partido dos Trabalhado-
res de forma mais “efetiva e eficaz”. (RODRIGO, Pablo. Moro diz que Lava Jato com-
bateu PT de forma eficaz, mas recua. Folha de São Paulo, 29 dez. 2021. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/moro-diz-que-lava-jato-comba-
teu-pt-de-forma-eficaz-mas-recua.shtml. Acesso em: 16 maio 2022).
50
RADBRUCH, G. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 65

mundo. Da mesma maneira, seria incorreto imputar ao neoconstitucionalis-


mo a responsabilidade exclusiva por eventos diversos que são, antes de mais
nada, a expressão da luta política permanente em uma dada sociedade plural.
Por outro lado, faz muito sentido, na busca pela compreensão de fenômenos
complexos, procurar identificar o papel desempenhado por mudanças no sa-
ber dos juristas no desenvolvimento de processos que contribuíram para um
quadro de degradação institucional, especialmente consideradas as institui-
ções sob a perspectiva do projeto democrático.
Assim, a crise democrática que hoje vivenciamos se explicita após
o desenvolvimento paulatino de um quadro de hipertrofia judicial. A hi-
pertrofia judicial é a situação em que o Poder Judiciário atua, partindo do
exercício de suas atribuições cotidianas, de modo a invadir pontualmente a
competência constitucionalmente atribuída aos demais poderes, adquirin-
do uma proeminência não prevista originariamente no texto constitucional,
que articula o concerto entre os três poderes na perspectiva da indepen-
dência e harmonia funcional na execução de suas tarefas institucionais. Na
prática, a hipertrofia judicial produz um deslocamento de poder político
que, aos poucos e em pontos importantes, vai deixando de ser exercido por
organismos informados pelo princípio da soberania popular e passa a ser
gerido por uma diminuta cúpula do Poder Judiciário. O desenvolvimento da
hipertrofia judicial no Brasil exigiu a presença de dois elementos distintos:
(1) mudanças institucionais propriamente ditas, por meio de reformas cons-
titucionais e alterações de legislação infraconstitucional; e (2) mudanças no
saber dos juristas, com a recepção em chave retórica de reelaborações con-
ceituais de teorias pós-positivistas jurídicas.

3.1 DE QUE É FEITO O SABER DOS JURISTAS

Estou aqui a argumentar que o processo de subversão sub-reptícia


da democracia no Brasil, ocorrido na última década, deu-se em contexto de
desenvolvimento lento e gradual de um quadro de hipertrofia judicial nos
últimos 20 anos, para o qual a contribuição dos juristas foi difícil de se exa-
gerar. Com isso, não quero apenas assinalar a participação dos profissionais
do direito no jogo político, o que seria uma obviedade, mas, sim, destacar
66 CARLOS MAGNO SPRICIGO

que uma importante mudança no saber dos juristas – do mundo profissio-


nal e acadêmico –, ocorrida nesse mesmo período, foi parte relevante do pro-
cesso de configuração de uma retórica constitucional que aos poucos vai se
tornando cada vez mais abrangente. As coisas não teriam acontecido como
ocorreram se a mentalidade dos juristas não tivesse se deixado dominar, em
grande medida, por essa nova “metodologia jurídica”, que surgida com a
importante missão de conferir efetividade aos direitos fundamentais inscri-
tos na constituição do país, degenerou em certo momento em mecanismo
sub-reptício de apropriação do poder estatal por elites políticas, judiciais,
empresariais e – no caso específico do Brasil – militares.
A discussão sobre a configuração do saber dos juristas é o núcleo
das discussões em Teoria e Filosofia do Direito. Sobre ela, muita coisa já
foi dita e vamos aqui recuperar um pouco desse debate, que, geralmente, é
desenvolvido como se o saber jurídico se constituísse como uma instância
autônoma diante dos conflitos e lutas sociais. Na verdade, toda teoria é
filha de seu tempo e carrega consigo uma “[...] vontade de verdade fora
de todo controle epistemológico.”51. Assim, a obra de Carl Schmitt não
apenas discutia temas relevantes de teoria política e teoria constitucional
buscando superar as limitações ou inconsistências da teoria jurídica liberal
de sua época, mas claramente contribuía para desenvolver os potenciais
mais autoritários que restavam latentes na institucionalidade da Alemanha
de Weimar. Mesmo seu contemporâneo Hans Kelsen, talvez o jurista que
mais explicitamente pugnou por uma postura de neutralidade da ciência
jurídica, carregava em seu projeto epistemológico uma determinada agen-
da. Quando examinamos sua teoria do direito, que englobava uma teoria
da democracia e à qual subjazia uma teoria política, podemos ver por de-
trás das rigorosas exigências de purificação a construção de uma estrutura
conceitual a serviço da melhor proposta política de sua época, o projeto
social-democrata, com sua aposta política na transição para uma sociedade

51
WARAT, L. A. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. p. 17. Sobre esse ponto, assim
falou também Nietzche: “Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movi-
mentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a
preservação de uma determinada espécie de vida.” (NIETZCHE, F. W. Além do bem
e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São
Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 11).
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 67

mais igualitária – no limite, socialista –, por meio de reformas legislativas


conduzidas pelo Parlamento.52
Se, por um lado, é característica dos juristas a busca da ocultação de
suas intencionalidades e compromissos por meio do recurso a um discurso
hermético e pretensamente autônomo diante da realidade concreta, por ou-
tro lado, a investigação da crise da democracia feita pelos cientistas políticos
resta incompleta ou insatisfatória por não conseguir romper o véu de opa-
cidade de que intencionalmente se reveste o saber dos juristas. Penso que
o remédio para essa situação paralisante é analisar o saber dos juristas em
ação, ou seja, identificando-o em um momento em que ele esteja diretamen-
te a serviço de uma missão concreta e específica. Assim, ele não aparecerá
como um saber abstrato a serviço de ideais iluministas “incontestáveis”
(como se o iluminismo não tivesse seus opositores), tampouco será o mero
reflexo do desenvolvimento de fatos históricos de uma evolução inexorável
para o Bem. Ele, o saber dos juristas, aparecerá com nitidez desenvolvendo
uma de suas maiores capacidades, qual seja, a de ajudar a operacionalizar
um determinado projeto político mais ou menos circunstancial por meio do
exercício de formatação do “discurso legítimo”.53
Para começar a entender a configuração do saber dos juristas, faz-se
necessário resgatar o esforço teórico empreendido por Hans Kelsen em
sua Teoria Pura do Direito, obra que é, fundamentalmente, um livro de epis-
temologia jurídica prescritiva. Na Teoria Pura do Direito, Kelsen, baseado no
neokantismo de Marburgo e no neopositivismo, buscou estabelecer os re-
quisitos para a obtenção de uma linguagem rigorosa e neutra para o estudo
científico do direito. Para tal, formulou cinco níveis de “purificação”: (1)

52
“Em oposição a certa leitura ‘tradicional’, se pode considerar que as relações de Kelsen
com a social-democracia não se esgotam na simples simpatia pessoal. Na verdade, sua
influência aparece como central no próprio dispositivo conceitual kelseniano. Nesse
sentido, se pode falar também de um laço genético entre algumas das principais con-
cepções políticas de Kelsen e as ideias de Bernstein, Kautsky, Renner e Hilferding nos
anos dez e vinte sobretudo ao que respeita ao Estado como instrumento formal, a de-
mocracia como revelação da situação das classes, e o compromisso como instrumento
da mudança social” (HERRERA, C. M. Kelsen y el socialismo reformista. Revista de
Estudios Políticos, n. 96, p. 77-115, abr./jun. 1997. p. 114. Disponível em: https://
dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/27452.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022).
53
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Edições
70, 2021. p. 255.
68 CARLOS MAGNO SPRICIGO

purificação anti-ideológica; (2) purificação antijusnaturalista; (3) purificação


anticausalista; (4) purificação antidualista e (5) purificação intranormativa54.
Uma ciência do direito rigorosa seria aquela formada por um conjunto de
enunciados exclusivamente descritivos de normas jurídicas vigentes, as
proposições jurídicas, classificáveis como verdadeiras ou falsas conforme
descrevam corretamente os conteúdos normativos. Diante da plurissigni-
ficação das palavras contidas nas normas, Kelsen recorre à metáfora da
moldura: a proposição jurídica será científica se se restringir a descrever a
moldura das significações possíveis contidas numa norma, excluídas apenas
as significações incompatíveis logicamente no cotejo com outras normas
jurídicas igualmente vigentes (eis a forma por meio da qual Kelsen aceita a
ideia de antinomias). Aqui vemos Kelsen concebendo uma ciência jurídica
restrita a critérios sintático-semânticos da linguagem.55
A principal característica da abordagem kelseniana é a cisão, em ple-
no sentido artificial56, do saber jurídico em duas vertentes estanques. Isso
fica claro em sua apresentação do problema da “interpretação” do direito,
em que ele separa a atividade do sujeito que atua como órgão do direito e,
portanto, cria outra norma no processo de interpretação/aplicação/criação
do direito (por exemplo, o juiz), da atividade meramente científica do estu-
dioso puro do direito, que apenas gera enunciados descritivos chamados de
proposições jurídicas. No projeto epistemológico kelseniano, um abismo
instransponível separa uma verdadeira ciência do direito (rechtswissenschaft)
do tipo de racionalidade presente na atividade dos juristas profissionais (tra-
ditionelle jurisprudenz)57. Por um lado, essa abordagem acaba por oferecer uma
surpreendente perspectiva crítica sobre o constitutivo caráter ideológico da
atuação dos juízes e tribunais, bem como do saber dos juristas tradicio-
nalmente estabelecido e conhecido como dogmática jurídica58. Além disso,

54
WARAT, L. A. A pureza do poder. Florianópolis: EdUFSC, 1983.
55
ROCHA, L. S. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: EdUnisinos,
1998.
56
Sua ciência jurídica, em sentido estrito, era um projeto para ser implementado, não uma
descrição do conhecimento jurídico realmente existente.
57
KELSEN, H. Reine rechtslehre. Wien: Verlag Osterreich, 2020.
58
Neste sentido ver: LUZ, V. de C. A invisibilidade da crítica kelseniana sobre os limites
da dogmática jurídica: um senso comum teórico ainda não desvelado. Crítica Jurídica,
v. 27, p. 247-263, ene./jul. 2009. Disponível em: https://revistas-colaboracion.juridicas.
unam.mx/index.php/critica-juridica/article/view/3404. Acesso em: 12 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 69

Kelsen, em sua obra, propõe enxergar o problema do Estado de Direito


de uma perspectiva que não deixa de comunicar uma verdade evidente:
mais do que um projeto epistêmico, o projeto de um Estado de Direito é
eminentemente uma construção política, uma construção política em que
as cortes querem, de modo geral, atuar dento dos limites estabelecidos pelas
normas vigentes. Por outro lado, negando-se a adotar uma epistemologia
descritiva, ou seja, negando-se a observar como funciona na prática o saber
dos juristas, sua obra descartou como mera ideologia um saber multisse-
cular, sem o qual talvez não seja possível atingir completamente a com-
preensão do pleno funcionamento do direito na sociedade, afinal, “ciência
jurídica e práxis judicial conformam uma unidade inseparável [...]”59.
A dogmática jurídica é o nome dado ao saber dos juristas profissionais
e se faz presente naquilo que chamamos doutrina jurídica e na práxis judi-
cial consolidada, em especial, nas sentenças e acórdãos que conjuntamente
formam o que denominamos jurisprudência. Seu desenvolvimento remon-
ta à experiência clássica dos romanos60. Como explica Tércio Ferraz Júnior,
a dogmática é um enfoque de abordagem da realidade, um enfoque que se
caracteriza por buscar uma solução para um problema através de uma in-
vestigação limitada pelo “princípio da proibição da negação” dos pontos de
partida dessa mesma investigação. Esses pontos de partida dogmáticos são
os dogmas, enunciados estabelecidos por uma autoridade que circunscre-
vem o campo de investigação na busca por uma resposta que possa orien-
tar a ação. A dogmática se diferencia da zetética. A zetética é um enfoque
marcado pelo questionamento potencialmente infinito. Suas investigações
se estruturam não a partir de decisões de autoridades, mas de hipóteses
que, após serem testadas e comprovadas em algum grau, atingem o status
de evidências. A ênfase do enfoque zetético se situa no aspecto pergunta e
pode orientar a ação apenas indiretamente.61

59
RÜTHERS, B. Carl Schmitt em el Tercer Reich. Tradução de Luis Villar Borda. Bo-
gotá: Universidad Externado de Colômbia, 2004.
60
FERRAZ JR., T. S. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad,
1998. p. 25 e ss. Ver também: ANDRADE, V. R. P. de. Dogmática jurídica: escorço de
sua configuração e identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
61
Ver livro de Cláudia Roesler: ROESLER, C. R. Theodor Viehweg e a ciência do
direito: tópica, discurso, racionalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 49 e ss.
70 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Vimos que a dogmática se estrutura a partir do princípio da proi-


bição da negação e podemos aduzir aqui que esse princípio, na dogmática
jurídica moderna, está inscrito em nosso ordenamento jurídico na Cons-
tituição Federal, a qual em seu artigo 5º, II, estabelece que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Dessa forma, percebe-se que a liberdade dos cidadãos pretende ser assegu-
rada pelo direito, podendo sofrer limitações apenas quando determinadas a
partir de um tipo de norma jurídica de alto escalão, a lei, veículo privilegiado
para a manifestação legítima da soberania popular, direta ou indiretamente
(artigo 1º, parágrafo único da CRFB). Olhando assim, pode parecer que
o saber dos juristas, a dogmática jurídica, apresenta pouca ou nenhuma
complexidade. Como a norma jurídica é também ela própria linguagem,
poder-se-ia pensar que a dogmática jurídica se constituiu como mero refle-
xo dos textos legais, sendo nesse sentido até mesmo um saber redundante
e supérfluo. Nada mais longe da realidade. As leis existem em profusão e
se expressam em linguagem natural, marcada pela vagueza e ambiguidade,
o que por si só já inviabiliza a percepção ingênua de que ao direito são ple-
namente aplicáveis os postulados da lógica formal dedutiva. Além disso, o
direito é intrinsecamente atravessado pela política, moralidade, economia
etc., de modo que a compreensão do saber dos juristas exige que se busque
compreender a complexa relação entre dogmática jurídica, teoria do direito
e filosofia do direito.
É possível juntar a retórica da doutrina e da jurisprudência como
uma coisa só? Considerando a distinção tripartite dos gêneros retóricos, que
remonta a Aristóteles62, o discurso encontrado em sentenças e acórdãos é
do tipo judicial, que ocorre sob a tensão da necessidade de uma decisão so-
bre situação pretérita (no que se distingue do discurso deliberativo, que im-
plica uma decisão que se volta para o futuro, típica da política), enquanto o
discurso presente na doutrina se configura como quase-epidítico. Dizemos
quase-epidítico consoante a observação de Ferraz Júnior, que assinala que
se na doutrina nada é decidido concretamente, mantém ela a preocupação
central da decidibilidade dos conflitos com a menor perturbação social pos-
sível. Mas, vale aqui destacar o que disse Perelman sobre o gênero epidítico:

62
Deliberativo, judicial e epidítico. Ver: ARISTOTELES. Arte retórica e arte poética.
Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. 14. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 71

ainda que não se dê em contexto decisório, esse gênero retórico tem ampla
repercussão na divulgação de ideias, valores e conceitos, contribuindo so-
bremaneira para a conformação das teses a que um auditório aderirá previa-
mente, facilitando assim a persuasão:

Acreditamos que os discursos epidícticos constituem uma parte cen-


tral da arte de persuadir, e a incompreensão manifestada a seu respei-
to resulta de uma concepção errônea dos efeitos da argumentação
[...] É nessa perspectiva, por reforçar uma disposição para a ação ao
aumentar a adesão aos valores que exalta, que o discurso epidíctico
é significativo e importante para a argumentação [...] a argumentação
do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade da adesão a
certos valores, sobre os quais não pairam dúvidas quando considera-
dos isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer
contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles. O
orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores re-
conhecidos pelo auditório, valendo-se do conjunto de meios de que
a retórica dispõe para amplificar e valorizar.63

Theodor Viehweg64 afirma que uma ciência do direito “completa”


necessariamente exige a intersecção entre dogmática jurídica, teoria do di-
reito e filosofia do direito. O papel da teoria do direito, inicialmente, era
informar a dogmática jurídica com a clarificação de uma ideia de justum
que lhe seria subjacente e facilitaria à dogmática jurídica cumprir seu papel
de atuar como elemento de coesão de uma dada comunidade. O papel da
filosofia do direito aí estava em ser o fundamento filosófico por detrás da
elaboração da teoria do direito, que se apresentava com caráter substancial,
como modernamente aconteceu no processo de positivação dos direitos
fundamentais nas constituições dos Estados nacionais. Recentemente, a
teoria do direito secundarizou sua preocupação com o justum, dedicando-se
mais diretamente à construção de uma linguagem rigorosa para o estudo

63
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
p. 56-57.
64
VIEHWEG, T. Topica y filosofia del derecho. Tradução de Jorge Sena. Barcelona:
Gedisa, 1997. p. 15 e ss.
72 CARLOS MAGNO SPRICIGO

estrutural do direito, como em Bentham, Austin e Kelsen, por exemplo,


alterando sua contribuição à dogmática jurídica.
Viehweg alerta ainda para uma segunda função importantíssima da
filosofia do direito, que é a de, depois de articulada uma teoria do direito
que serve de base para a dogmática jurídica, continuar sua investigação to-
mando agora por objeto a própria teoria do direito, submetendo-a a um
questionamento ilimitado na verificação constante de sua consistência. A
dogmática jurídica dissolveria a si mesma se estivesse articulada com uma
teoria do direito obscura, que mesclasse argumentos de origens diversas e
no limite incompatíveis entre si. Afirma ainda que somente o exame filo-
sófico crítico e independente tem a capacidade de identificar como mera
ideologia uma teoria do direito dotada de autoridade pelo poder político, o
que configuraria uma degeneração da dogmática jurídica.
Viehweg chama nossa atenção para as relações entre saber dogmáti-
co, teoria do direito e filosofia do direito, longe de serem saberes estanques.
Para esse autor, a função social da dogmática seria prejudicada se a teoria
do direito material que lhe fornece a base constituísse no limite uma misce-
lânea nada rigorosa, podendo inclusive degenerar em mera ideologia. Luis
Alberto Warat, a partir de uma perspectiva interdisciplinar que denominou
“semiologia do poder”, buscou também compreender essas interrelações,
escrutando como o saber dos juristas recorre a elaborações da teoria e fi-
losofia do direito na busca da realização de suas funções políticas de coad-
juvar o funcionamento do direito como “uma técnica de controle social”65.
O que para Viehweg configuraria uma disfuncionalidade na “ciência do
direito”, com Warat passa a ser compreendido como o modo próprio de
operação do saber dos juristas, que tem pouca preocupação com a consis-
tência discursiva interna e forte compromisso com os efeitos persuasivos
do discurso.
Para dar inteligibilidade a esse processo, Warat cunhou o termo “sen-
so comum teórico dos juristas”, que expressa a conformação do saber dos
agentes que lidam profissionalmente com o direito. O senso comum teóri-
co dos juristas aparece aqui como um amálgama – pouco consistente – de

65
WARAT, L. A. O direito e sua linguagem. 2. versão. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1995. p. 15.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 73

doxa e episteme, em que elaborações teóricas mais rigorosas são aproveita-


das e mescladas num discurso legitimador e persuasivo, apto a engendrar e
fortalecer projetos de poder, necessariamente implementados por meio de
instituições jurídico-políticas:

[...] podemos dizer que os hábitos semiológicos de referência [dos


juristas] encontram-se constituídos: por uma série móvel de concei-
tos, separados, estes últimos, das teorias que os produziram;
por um arsenal de hipóteses vagas e, às vezes, contraditórias; por
opiniões costumeiras; por premissas não explicitadas e vinculadas
a valores; assim como, por metáforas e representações do mundo.
Todos esses elementos, apesar de sua falta de consistência, levam a
uma uniformidade última de pontos de vista sobre o direito e suas
atividades institucionais.66 [grifos meus].

O conceito waratiano de senso comum teórico dos juristas é muito


importante aqui, pois desnuda o caráter eminentemente retórico do sa-
ber dos juristas e sua função política. Os conceitos da teoria do direito
e da filosofia do direito quando apropriados pelos juristas são, normal-
mente, apropriados em chave retórica, cumprindo um papel genérico de
dotar o saber jurídico de uma aparência de cientificidade que ele, de fato,
não possui. Warat salienta o caráter institucional do senso comum teóri-
co dos juristas, ocorrendo uma verdadeira “[...] apropriação institucional
dos conceitos [..]”, nas faculdades de direito, nos tribunais e nos órgãos
legislativos:

Retornando o tema do emprego estratégico dos conceitos, pode-


mos dizer que a separação dos conceitos de suas teorias produto-
ras, permite a constituição de um sistema de verdades, o qual não
está vinculado a conteúdos, mas sim a procedimentos legitimadores,
determinantes para o consenso social. Este consenso provém de
um processo de conotações institucionais, que substituem a esfe-
ra do sentido conceitual por uma ordem de evocações controladas,

66
WARAT, L. A. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência,
v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982. p. 54. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/
sequencia/article/view/17121. Acesso em: 12 dez. 2022.
74 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ou seja, estereotipadas. Funda-se, por conseguinte, um processo de


apropriação institucional dos conceitos, cuidadosamente elaborado,
para exercitar o poder dos significados.67

Warat aponta ainda o que chamou de regiões principais do senso


comum teórico dos juristas, muito úteis para a análise que pretendemos
fazer sobre a relativamente recente presença dominante do neoconstitu-
cionalismo no saber dos juristas. São elas: (1) a região das crenças ideo-
lógicas, que poderíamos ilustrar com a atribuição de um papel iluminista
e “empurrador da história” ao Poder Judiciário; (2) a região das opiniões
éticas, que poderíamos exemplificar com concepção da constituição como
um sistema objetivo de valores; (3) a região das crenças epistemológicas, em
que eu destacaria o fetiche pela “técnica” da ponderação como mecanismo
de racionalização de problemas morais/jurídicos; e (4) a região dos conhe-
cimentos vulgares, que se dirige diretamente ao homem comum, como por
exemplo, na depreciação da política e dos políticos e exaltação dos juristas
como membros de uma elite intelectual e moral.

3.2 NEOCONSTITUCIONALISMO E TEORIA DO


DIREITO

Para tratarmos do termo “neoconstitucionalismo” é necessário, em


primeiro lugar, situá-lo com alguma precisão conceitual, evitando mis-
turar analiticamente questões de direito positivo e, portanto, institucio-
nais, com aspectos relacionados às reformulações no âmbito da teoria
do Direito, com reflexos no senso comum teórico dos juristas68. Quando
Hirschl se refere a um “novo constitucionalismo”, por exemplo, o que
ele tem em foco é um processo de alteração institucional ocorrido em
67
WARAT, L. A. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, v.
3, n. 5, p. 48-57, 1982. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequen-
cia/article/view/17121. Acesso em: 12 dez. 2022.
68
Barroso não nos ajuda, pois recorrentemente mescla as duas questões, como por exem-
plo, aqui: “Neoconstitucionalismo ou o novo direito constitucional”, título de um su-
bitem de seu curso de direito constitucional. Ver: BARROSO, L. R. Curso de direito
constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 519.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 75

diversos países nas últimas décadas. Essas alterações de cunho eminente-


mente normativo, que ele denomina “constitucionalização”, implicam a
adoção de uma carta de direitos fundamentais e da revisão judicial refor-
çada por parte de uma corte constitucional. É esse o sentido também da
expressão “novo constitucionalismo latino-americano”, quando se refere
a alterações normativas ocorridas em diversos países da América Central
e do Sul, que promoveram experiências de reconhecimento de direitos
dos povos originários e implementaram mecanismos inovadores para o
funcionamento da democracia nesses países. A expressão “novo consti-
tucionalismo” se refere, portanto, às mudanças ocorridas no âmbito do
direito positivo de diversos países.
É possível identificar o neoconstitucionalismo como algo substan-
cialmente diverso. Trata-se, aqui, não de alterações no direito positivo de
um determinado país, mas, sim, de uma mudança na dogmática constitu-
cional a partir da interação com reformulações promovidas no âmbito da
teoria e filosofia do direito. Não estamos mais aqui no mundo das normas,
mas no campo do saber dos juristas, que é coconstitutivo do direito:

As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do fun-


cionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente de-
terminada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe
conferem sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou,
mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e,
por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam
em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo
das soluções propriamente jurídicas.69

Apesar de acabarem se entrelaçando ao longo do tempo, é impor-


tante compreendermos que são fenômenos distinguíveis. Dessa forma,
podemos detectar 1988 como o ano do ingresso do Brasil no novo consti-
tucionalismo, mas o neoconstitucionalismo só chegará na cultura jurídica
nacional na virada do milênio.70 O novo constitucionalismo e o neocons-

69
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Edições
70, 2021. p. 219.
70
“Os primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 envolveram o esforço da teoria
76 CARLOS MAGNO SPRICIGO

titucionalismo são condições necessárias, porém insuficientes, para a con-


figuração de uma hipertrofia judicial. A elas precisa se juntar a motivação
– que é política – para que essa verdadeira transferência de poder de fato
ocorra.
Barroso indica que o neoconstitucionalismo se desenvolve tendo
como pano de fundo o marco filosófico pós-positivista.71 Com isso, quer
apontar para o esforço de superação das teses do positivismo jurídico,
identificado com autores como Kelsen, Hart, Bobbio e Ross. Como cada
um desses autores têm suas especificidades, não é tarefa simples identifi-
car o que exatamente o pós-positivismo72 quer superar. Dworkin, um dos
autores centrais para essa reformulação do saber dos juristas, mira o que
chama “modelo de regras” e critica em Hart, principalmente, a noção de
obrigação jurídica exclusivamente decorrente de uma regra dotada de san-
ção e a tese da discricionariedade judicial. Os pós-positivistas geralmente
afirmam querer reconectar direito e moral (que os positivistas teriam se-
parado), mas, quando lemos Kelsen, vemo-lo reconhecer que toda nor-
ma jurídica implica um valor moral relativo. Talvez, a grande questão que

constitucional para que o Judiciário assumisse o seu papel e desse concretização efetiva
aos princípios, regras e direitos inscritos na Constituição. Pode parecer óbvio hoje, mas
o Judiciário, mesmo o Supremo Tribunal Federal, relutava em aceitar esse papel. No
início dos anos 2000, essa disfunção foi sendo progressivamente superada e o STF foi se
tornando, verdadeiramente, um intérprete da Constituição.” BARROSO, L. R. A razão
sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de
Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50, 2015. p. 27. Disponível
em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/pdf. Acesso em:
12 dez. 2022.
71
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 519.
72
Para Manuel Atienza, o pós-positivismo supõe, dentre outras coisas, o seguinte: “[...] o
Direito não pode ser visto exclusivamente como uma realidade já dada, como o produto
de uma autoridade (de uma vontade), mas sim (além disso e fundamentalmente) como
uma prática social que incorpora uma pretensão de correção ou de justificação. Isso
implica um certo objetivismo valorativo: por exemplo, assumir que os direitos humanos
não são simplesmente convenções, mas sim que têm seu fundamento na moral (em uma
moral universal e crítica, racionalmente fundamentada); atribuir uma especial importân-
cia à interpretação, entendida como uma atividade guiada pela necessidade de satisfazer
os fins e os valores que dão sentido à prática; e outorgar certa prioridade ao elemento
valorativo do Direito sobre o autoritativo, sem por isso desconhecer os valores do ‘lega-
lismo’.” Ver: ATIENZA, M. Curso de argumentação jurídica. Tradução de Claudia
Roesler. Curitiba: Alteridade, 2017. p. 32.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 77

incomode no positivismo jurídico seja a rejeição de qualquer sentido para


uma razão prática e o seu consequente relativismo axiológico, formalis-
mo jurídico e defesa da tese da discricionariedade judicial. Quem percor-
reu os primeiros passos para enfrentar essa questão foram autores como
Viehweg e Perelman, nos anos 50 do século passado, que deram grande
contribuição para a compreensão do caráter argumentativo do direito e
do saber dos juristas.73
Ainda segundo Barroso, ao seu modo misturando novo constitu-
cionalismo e neoconstitucionalismo, o marco teórico do novo fenômeno
– que ele saúda com inigualável entusiasmo – envolveria “três conjuntos
de mudança de paradigma”: (1) o reconhecimento da força normativa da
constituição; (2) a expansão da jurisdição constitucional; e (3) o desenvolvi-
mento de “um conjunto de ideias identificadas como nova interpretação consti-
tucional.”. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal:

Nesse ambiente, foram afetadas premissas tradicionais relativas ao


papel da norma, dos fatos e do intérprete, bem como foram elabo-
radas ou reformuladas categorias como a normatividade dos prin-
cípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderação como
técnica de decisão e a argumentação jurídica.74

A expansão da jurisdição constitucional ocorreu, também, no Brasil,


com a promulgação do novo texto constitucional em 1988. Trata-se, quero
repisar aqui mais uma vez, de mudança normativa, com importante impacto
no funcionamento institucional. Essa expansão se expressa, principalmen-
te, por meio da diversificação das ações constitucionais e do aumento do
número de órgãos e entidades às quais se atribuiu a possibilidade de propo-
situra dessas ações. Mas a verdadeira mudança somente irá ocorrer quando
essas alterações normativas se encontrarem com uma outra mudança, dessa
vez na cultura jurídica.

73
ROESLER, C. R. O papel de Theodor Viehweg na fundação das teorias da argumenta-
ção jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 4, n. 3, p. 36-54, 3º quadri-
mestre de 2009. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/rdp/article/
view/6142/3405. Acesso em: 12 dez. 2022.
74
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 521.
78 CARLOS MAGNO SPRICIGO

O reconhecimento da força normativa da constituição e a formula-


ção de uma nova interpretação constitucional se dará por meio da recep-
ção, no senso comum teórico dos juristas, de reformulações realizadas na
teoria do direito estrangeira, envolvendo diversos autores, dois merecen-
do uma atenção especial: Ronald Dworkin e Robert Alexy. O que Barroso
chama de nova interpretação constitucional decorre fundamentalmente
de uma reformulação que esses autores, cada um em seu contexto e com
suas particularidades, promovem no conceito de norma jurídica. Essa
reformulação, com todas as suas consequências, acaba por concentrar a
maior parte da atenção da teoria do direito para apenas uma das espécies
normativas, os princípios, e com os meios de lidar juridicamente com eles.
O gráfico abaixo mostra o número de ocorrências de menções aos autores
Hans Kelsen, Robert Alexy e Ronald Dworkin nas teses e dissertações em
direito defendidas no Brasil entre os anos de 1998 e 201275. É necessário
destacar que esse período é marcado por uma importante expansão na
pós-graduação stricto sensu brasileira, com aumento de número de progra-
mas de mestrado e doutorado e, consequentemente, aumento também
do número de teses e dissertações defendidas. Enquanto as menções ao
positivista Kelsen permanecem praticamente estáveis no período, perce-
be-se que as menções a Dworkin e Alexy se elevam significativamente,
especialmente a partir da publicação das versões traduzidas de duas de
suas obras principais: Levando os direitos a sério de Dworkin, publicada no
Brasil em 2002; e Teoria da argumentação jurídica de Alexy, publicada no
Brasil em 2001.

75
Segundo levantamento da Associação dos Magistrados Brasileiros, realizado em 2018,
Alexy, Kelsen e Dworkin, nessa ordem, são os autores mais citados pelos juízes entre-
vistados quando se pediu para indicarem autores referenciais de obras “acadêmicas e
filosóficas”. Ver: VIANNA, L. W.; CARVALHO, M. A. R. de; BURGOS, M. B. Quem
somos? A magistratura que queremos. Rio de Janeiro: AMB, 2018. p. 134.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 79

GRÁFICO 1 – EVOLUÇÃO DE OCORRÊNCIA DE AUTORES EM


DISSERTAÇÕES E TESES DE DIREITO76

Ronald Dworkin escreve sua obra em diálogo com o filósofo John


Rawls . Rawls elabora uma teoria da justiça em que defende um méto-
77

do racional para se chegar aos princípios de justiça que sustentariam uma


sociedade bem ordenada. Homens e mulheres situados em uma posição

76
BRASIL. CAPES. Catálogo de teses e dissertações. [2022]. Disponível em: https://
catalogodeteses.capes.gov.br. Acesso em: 12 dez. 2022.
77
Dworkin em muitos momentos parece flertar com o jusnaturalismo, especialmente
quando lemos suas afirmações sobre a existência de direitos morais contra o Estado
ou sua crítica enfática à tese positivista jurídica de que só há direitos construídos insti-
tucionalmente. Ele chega a propor que o verdadeiro progresso do direito constitucio-
nal somente virá quando ocorrer uma fusão entre o “direito constitucional e da teoria
moral”. Aqui ele está fazendo referência direta à teoria da justiça de Rawls: “Mas hoje
dispomos de uma filosofia melhor do que aquelas que estão na lembrança dos juristas.
O professor Rawls, de Harvard, por exemplo, publicou um livro abstrato e complexo
sobre a justiça que nenhum jurista constitucional poderá ignorar. Não é necessário
que os juristas desempenhem um papel passivo no desenvolvimento de uma teoria
dos direitos morais contra o Estado [...]” (DWORKIN, R. Levando os direitos a
sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 234). Ver tam-
bém: CABALLERO, C. Da união social à comunidade liberal: o liberalismo político
de John Rawls e o republicanismo cívico liberal de Ronald Dworkin. In: CABALLE-
RO, C. (org.). Justiça e democracia: entre o universalismo e o comunitarismo. São
Paulo: Landy, 2005. p. 23-50.
80 CARLOS MAGNO SPRICIGO

original, marcada por um véu de ignorância (não saberem quais serão seus
dotes naturais nem quais posições sociais ocuparão numa sociedade de clas-
ses plural), escolheriam uma igual distribuição de direitos de liberdade para
todos e, também, acolheriam a ideia de desigualdades sociais, desde que
elas pudessem de algum modo beneficiar as pessoas em posição de maior
vulnerabilidade social. Os autores elaboram suas teorias nos anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial, em que os Estados Unidos da Amé-
rica viviam uma época de crescimento econômico sem igual. Também foi
uma época de efervescência das lutas sociais, em especial a luta pela eman-
cipação dos pretos e das mulheres; essas lutas, em determinado momento,
encontraram na Suprema Corte uma instituição que, circunstancialmente,
contribuiu para a conquista e consolidação de direitos importantes para
esses grupos sociais. Esse período é conhecido, quando a observação foca
na atuação da Suprema Corte, como o ciclo da Corte Warren, nome do seu
então presidente.
Buscando uma abordagem do direito que reconectasse direito e mo-
ral superando teses do positivismo jurídico, Dworkin desenvolverá o que
ele próprio chamou de “ataque” a essas teses. Quando trata do positivismo
jurídico, o autor deixa evidente que o positivismo jurídico objeto de suas
críticas é o de Herbert L. A. Hart. Mas deve ficar claro que suas críticas se
aplicam igualmente ao pensamento de outro positivista jurídico importan-
tíssimo, Hans Kelsen.
Em Levando os Direitos a Sério, Dworkin manifesta sua insatisfação
com a visão positivista então estabelecida (que ele sintetiza como um “mo-
delo de regras”), focando em especial nas noções positivistas de obrigação
jurídica e discricionariedade judicial. Ele irá propor o que considera uma
inovação conceitual para os dois problemas a partir de uma reformulação
no conceito de norma jurídica que coloca os princípios (jurídicos e morais
ao mesmo tempo) em posição de destaque. Dworkin quer desatrelar a ex-
clusividade da noção de obrigação jurídica do conceito de regra jurídica.
Para os positivistas jurídicos, uma pessoa tem uma obrigação jurídica de
usar máscara facial, por exemplo, apenas se existir uma regra que impute
uma sanção à conduta oposta, de abster-se do seu uso. Em lugar dessa no-
ção restritiva, o autor americano entende que obrigações jurídicas também
podem derivar de princípios, como se vê aqui:
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 81

Poderemos então afirmar que uma obrigação jurídica existe sempre


que as razões que sustentam a existência de tal obrigação, em termos
de princípios jurídicos obrigatórios de diferentes tipos, são mais for-
tes do que as razões contra a existência dela.78

De outro lado, existe a insatisfação com a tese da discricionarie-


dade judicial. Hart a elaborara nos seguintes termos: a textura aberta da
linguagem contamina o direito, que também apresenta essa característica.
Na interpretação do direito, a textura aberta cria duas situações: existem
situações claras, em que as palavras apresentam uma designação positiva
e negativa precisa quanto aos objetos por elas designados, resolvendo-se
o problema por meio da subsunção. Por outro lado, existiria uma zona
de imprecisão da linguagem, uma zona de penumbra, em que não fica
claro se os objetos discutidos nos autos se inserem ou não no campo de
incidência normativa. Nesses casos, para Hart, o juiz ou tribunal decidiria
o caso discricionariamente, atualizando o sentido e a finalidade da lei.
Dworkin se insurge frontalmente contra essa concepção, pois ela geraria
uma situação em que situações pretéritas seriam decididas por normas
criadas apenas posteriormente, violando assim uma das ideias básicas de
um Estado de Direito. Ele propõe a resolução desse problema afirmando
que a problemática da interpretação/aplicação do direito comporta duas
situações: (1) nos casos fáceis, a subsunção dos fatos a uma regra pree-
xistente é providência suficiente para o entendimento da questão; (2) nos
casos difíceis, longe de agir discricionariamente, o juiz ou tribunal deci-
diria o caso recorrendo aos princípios jurídicos (“constelações de princí-
pios”), que se assentam e ao mesmo tempo ajudam a conformar o que ele
chama de moralidade comunitária. Se o caso sofrer a incidência de mais
do que um princípio em sua resolução, situação designada pela metáfora
da “colisão” de princípios, o juiz ou tribunal resolve o caso por meio da
ponderação, processo em que, em cada caso concreto, o juiz ou tribu-
nal atribui peso aos princípios colidentes, fornecendo assim uma decisão
fundamentada. Sobre essa decisão fundamentada em princípios, Dworkin
ainda aduz que não se configura apenas como uma mera decisão dentre

78
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 71.
82 CARLOS MAGNO SPRICIGO

outras igualmente possíveis (como afirma o positivismo jurídico), mas


sim de uma “resposta certa”79.
Vemos, então, que é por meio de uma recuperação da figura dos
princípios jurídicos que Dworkin pretende superar as teses positivistas so-
bre obrigações e interpretação jurídicas. As regras são apresentadas como
apenas um tipo de normas, que se aplicariam na base do tudo ou nada. Ha-
vendo uma antinomia, apenas uma das regras incompatíveis pode subsistir,
pode continuar seguindo válida. Por outro lado, os princípios, também uma
espécie normativa, não atuam na base do tudo ou nada, mas, sim, funcio-
nam na dimensão do peso ou importância. Quando colidentes, os princí-
pios passam pelo processo da ponderação, em que o juiz ou tribunal atribui
a eles pesos diante da situação concreta, não ocorrendo a revogação de um
princípio pelo outro vencedor, mas apenas o afastamento circunstancial da
incidência daquele princípio. Sobre como se dá o processo de ponderação,
o autor é bastante lacônico. De certo modo, em coerência com a racionali-
dade do sistema common law, ele pretende iluminar o processo por meio de
exemplos. Assim, ele narra um determinado caso resolvido pela Suprema
Corte, mostrando como, naquele caso específico, o tribunal resolveu a ques-
tão valendo-se de princípios e ponderação.
Infelizmente, a apresentação do problema da ponderação resta insu-
ficiente em sua obra. Dois aspectos conjugados contribuem para sua debi-
lidade. Em primeiro lugar, ao afirmar que o processo de ponderação leva a
uma resposta correta que se sustenta numa moralidade comunitária (“mo-
ralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem”80),
pressupõe-se um objetivismo moral incompatível com as sociedades com-
plexas, plurais e caracterizadas pelo dissenso.81 Em segundo lugar, apesar de
apresentar a figura mítica do juiz Hércules, indicando um papel normativo,
sua teoria se estabelece com pretensões descritivas por diversas vezes82, o

79
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 429.
80
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 197.
81
NEVES, M. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:
Martins Fontes, 2013. p. 61.
82
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 151 e 137, por exemplo.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 83

que nos levaria a um discurso de superlegitimação acrítica da atuação do


Poder Judiciário: suas decisões não apenas deveriam e poderiam ser certas
do ponto de vista jurídico e moral, mas SÃO corretas. Nesse caso, basta um
rápido olhar para o conjunto das decisões dos tribunais de qualquer país do
mundo para considerar essa conclusão como completamente incompatível
com a realidade dos fatos.
Uma outra observação crítica que se pode fazer à elaboração de Dwor-
kin é em relação à sua reivindicação de extrair-se obrigações jurídicas direta-
mente de princípios, inclusive de princípios em “colisão”. Tal situação seria
um obstáculo considerável na atuação do direito como um alívio para as ex-
pectativas. Na verdade, princípios podem gerar obrigações sim, mas apenas
por meio da mediação de uma regra. De fato, quando um tribunal decide
um determinado caso complicado valendo-se de princípios, o que sucede de
verdade é que a decisão, ainda que sustentada em argumentos de base prin-
cipiológica, gera ela própria uma regra na sentença ou acórdão, um possível
precedente. Será essa regra, criada judicialmente, a origem de uma nova obri-
gação jurídica. Somente a regra confere alguma inteligibilidade a uma obriga-
ção jurídica e pode sustentar minimamente a função do direito na sociedade83.
Robert Alexy realizou uma reformulação na teoria dos princípios de
Dworkin. Ele expressamente elabora uma teoria dogmática geral dos di-
reitos fundamentais da Lei Fundamental de Bonn84, a partir do estudo da
jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão nos anos 1970.
O fundamento filosófico fundamental de sua contribuição é a teoria do
discurso de Jürgen Habermas85. Apesar de nascida desse contexto nacional

83
Nesse sentido: “[...] os princípios são razões mediatas de decisões de questões jurídicas,
pois entre ele e esta sempre haverá uma regra, seja ela atribuível diretamente a texto pro-
duzido pelo processo legislativo (inclusive constituinte e reformador), seja ela atribuída
(indiretamente) a um texto normativo mediante o órgão encarregado da concretização
jurídica, isto é, mediante construção jurisprudencial.” NEVES, M. Entre Hidra e Hér-
cules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 84.
84
ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón
Valdes. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. p. 29.
85
“A teoria de Alexy significa, por um lado, uma sistematização e reinterpretação da
teoria do discurso prático habermasiana e, por outro lado, uma extensão dessa tese
para o campo específico do Direito.” ATIENZA, M. As razões do direito: teorias
da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Cupertino. São Paulo: Landy,
2006. p. 160.
84 CARLOS MAGNO SPRICIGO

específico, sua teoria é muitas vezes tratada como dotada de caráter univer-
sal, aplicável automaticamente a qualquer outro Estado constitucional.
Alexy considera a distinção entre regras e princípios como elemen-
to-chave para a construção de uma dogmática dos direitos fundamentais:

Sem ela [a distinção entre regras e princípios] não pode existir uma
teoria adequada dos limites, nem uma teoria satisfatória da colisão e
tampouco uma teoria suficiente acerca do papel que jogam os direi-
tos fundamentais no sistema jurídico. [...] A distinção entre regras e
princípios constitui, ademais, [...] um ponto de partida para respon-
der à pergunta acerca da possibilidade e os limites da racionalidade
no âmbito dos direitos fundamentais. [...] a distinção entre regras e
princípios é um dos pilares fundamentais do edifício da teoria dos
direitos fundamentais.86

Normas abrangem regras e princípios. Regras são normas que são


cumpridas ou não; diante de uma antinomia real87 que não comporte a in-
trodução de uma cláusula de exceção, uma das regras antinômicas resulta
ser destituída de sua validade jurídica. Princípios são, para Alexy, mandados
de otimização, um tipo de norma que pode ser satisfeita em graus varia-
dos, dependentes de questões fáticas e jurídicas (determinadas por outras
regras e princípios colidentes). Princípios colidentes exigem a definição de
qual, em cada caso concreto, possui o maior peso e isso é feito por meio
da ponderação. Aqui entra a máxima da proporcionalidade, que possui co-
nexão estreita com a ideia de princípios88. A máxima da proporcionalidade
se compõe de três máximas parciais: (1) adequação (aspectos fáticos); (2)
necessidade (aspecto fático relacionado com o meio mais benigno a ser
empregado); e (3) proporcionalidade em sentido estrito (o postulado da
ponderação em sentido estrito, de caráter jurídico).

86
ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón
Valdes. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. p. 81.
87
BOBBIO, N. Teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1993. p. 213.
88
ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón
Valdes. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. p. 111.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 85

Enquanto as regras, para Alexy, apresentam caráter definitivo, pois


possuem em seu enunciado um detalhamento acerca dos aspectos fáti-
cos e jurídicos a elas relacionados, os princípios apresentam um caráter
prima facie, pois, justamente, não definem com alguma precisão a extensão
de seu conteúdo frente a outros princípios e situações fáticas. Por isso as
regras oferecem razões definitivas, até serem excepcionadas, enquanto os
princípios apresentam apenas razões prima facie.
Entre as teorias de Dworkin e Alexy vemos diferenças e semelhan-
ças. Duas teorias surgidas em contextos constitucionais e sociais tão diversos
fornecem, por certo, respostas distintas para problemas distintos. Dworkin
está às voltas com uma constituição antiga, sintética, de texto frequentemente
lacônico, cujos procedimentos para sua alteração são tão exigentes que prati-
camente a inviabilizam (sua alteração e modernização). Nos EUA, o arbitra-
mento de conflitos sociais intensos como a questão do apartheid americano
tem de lidar com expressões constitucionais de gigantesca abstração como a
cláusula da “igual proteção”. Sua resposta para esse problema é uma revolta
contra o “modelo de regras” positivista, pois o ativismo judicial que reputa
necessário nos EUA tem melhores condições de operar se direciona seu foco
para os princípios, dispositivos considerados aptos à promoção da abertura
do direito para a teoria moral liberal que Dworkin defende89. A teoria de Ale-
xy trabalha com um escopo mais delimitado, pois os direitos fundamentais
que quer colocar no centro de seu sistema jurídico são os direitos fundamen-
tais da Constituição alemã vigente. Constituição, aliás, produzida em contexto
extremamente delicado, num país ocupado por potências estrangeiras após
uma completa derrota militar numa guerra catastrófica.

3.3 NEOCONSTITUCIONALISMO E SENSO COMUM


TEÓRICO DOS JURISTAS

Até aqui vimos a reformulação feita por Dworkin e Alexy no âmbito


da teoria do direito. Cada um deles, a partir de seu contexto sociopolítico
89
“[...] um tribunal que assume o ônus de aplicar plenamente tais cláusulas como lei deve
ser um tribunal ativista, no sentido de que ele deve estar preparado para formular ques-
tões de moralidade política e dar-lhes uma resposta.” (DWORKIN, R. Levando os
direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 231).
86 CARLOS MAGNO SPRICIGO

e, em especial, de uma prática jurisconstitucional local, lida a partir de uma


certa perspectiva, promoveu uma reconfiguração de alguns conceitos jurídi-
cos centrais, notadamente o de norma jurídica. Apesar de todas as diferen-
ças de abordagem, é possível afirmar que os dois autores descrevem uma
prática jurisdicional em seus países de origem em que os princípios jurídicos
desempenham um papel de maior relevo do que aquele tradicionalmente
atribuído pelo positivismo jurídico, em que os princípios são apresentados
como meros informadores subjacentes às regras ou, no máximo, como ele-
mentos colmatadores de lacunas.
Para Dworkin, os princípios passam a ser também uma fonte de
obrigações jurídicas nos casos difíceis, “quando nenhuma regra regula
um caso”90. Nessas situações, o juiz ou tribunal fornece uma resposta
certa não discricionária e, portanto, não inovadora na ordem jurídica. Sua
decisão é o resultado da ponderação de uma constelação de princípios, ju-
rídicos e morais. De outra banda, Alexy observa também um papel prota-
gônico dos princípios na jurisprudência do Tribunal Federal Constitucio-
nal alemão. A prática desse tribunal evidencia a utilização dos princípios
como mandados de otimização nos casos que envolvem discussões sobre
direitos fundamentais. Diante da incidência de mais de um princípio, a
máxima da proporcionalidade se apresenta nesses julgados como uma
“técnica” para a ponderação e delimitação do seu peso e alcance, ofere-
cendo uma decisão racional.
Algo mais une esses dois autores. Dworkin flerta claramente com o
jusnaturalismo. Esse autor afirma expressamente a existência de direitos
anteriores ao Estado e crê que sua teoria não se insere nos “fantasmas”
jusnaturalistas do passado porque tenciona sustentar-se numa teoria da
justiça da atualidade, como a teoria rawlsiana. Alexy pode parecer, a prin-
cípio, mais comedido, pois apresenta sua teoria dos direitos fundamentais
como uma dogmática sustentada exclusivamente na Lei Fundamental de
Bonn e na interpretação que lhe confere o Tribunal Constitucional alemão.
Ocorre que o próprio tribunal, no famoso caso Lüth, em 1958, afirmou ser
a constituição, especialmente o capítulo dos direitos fundamentais, uma or-

90
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 127.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 87

dem objetiva de valores91. Além disso, Alexy reformula o conceito positivista


de validade jurídica, inserindo a vedação a conteúdos “extremamente injus-
tos”92, mostrando-se alinhado com os argumentos de Radbruch no imedia-
to pós-guerra, jogando água no moinho da lenda do positivismo jurídico.93

3.4 O NÚCLEO RETÓRICO DO


NEOCONSTITUCIONALISMO: A INVERSÃO DO
PAR CLASSIFICATÓRIO “PRINCÍPIO-REGRA”

No item anterior, vimos como a teoria do direito recente de autores


como Dworkin e Alexy buscou promover uma reformulação do concei-
to central de norma jurídica. Apesar de suas peculiaridades e diferenças,
em ambos a reformulação acaba por fornecer à subespécie normativa dos
princípios uma centralidade ausente na teoria do direito dominante ante-
riormente: o positivismo jurídico. Interessa agora escrutarmos como essa
reformulação na teoria do direito se relaciona com a dogmática jurídica
(Viehweg) praticada na doutrina e jurisprudência, ou, dizendo de outro
modo, como esses elementos conceituais de pretensão epistêmica se in-
serem no senso comum teórico dos juristas (Warat) e são utilizados para
fundamentar decisões e raciocínios jurídicos.
É importante ressaltar primeiramente, ainda no âmbito da discussão
de teoria do direito propriamente dita, que a novidade na reformulação
pós-positivista não está em afirmar que normas são o gênero que abrange

91
SCHWABE, J. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Fe-
deral Alemão. Tradução de Beatriz Hennig et al. Montevideo: Fundação Konrad Ade-
nauer, 2005. p. 381.
92
“O direito é um sistema normativo que (1) formula uma pretensão à correção, (2) con-
siste na totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em
termos globais e que não são extremamente injustas, bem como na totalidade das
normas estabelecidas em conformidade com essa constituição e que apresentam um
mínimo de eficácia social ou de possibilidade de eficácia e não são extremamente in-
justas, e (3) ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, nos quais
se apoia e/ou deve se apoiar o procedimento de aplicação do direito para satisfazer a
pretensão à correção.” [grifos meus] (ALEXY, R. Conceito e validade no direito.
Tradução de Gercélia Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 151).
93
VALADÃO, R. B. Positivismo jurídico e nazismo: formação, refutação e superação
da lenda do positivismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.
88 CARLOS MAGNO SPRICIGO

regras e princípios.94 Quando lemos os principais autores do positivismo


jurídico do século XX o que encontramos é uma formulação mais centrada
na modalidade normativa regra, mas, de modo algum, a afirmação de que o
direito somente é composto por regras, excluídos, portanto, os princípios.
Bobbio dissera que “para mim não há dúvida: os princípios gerais são nor-
mas como todas as outras”95. Assim ocorre com Kelsen, que era plenamen-
te consciente da existência dos princípios, e alertava há cem anos inclusive
para os perigos de seu uso abusivo: marcados pela imprecisão crônica, o
uso reiterado de princípios genéricos como “igualdade”, justiça”, “morali-
dade” etc. acabaria produzindo um verdadeiro “deslocamento de poder”:

do Parlamento para uma instância a ele estranha, e que pode se tor-


nar representante de forças políticas diferentes das que se exprimem
no Parlamento, a Constituição deve, sobretudo se criar um tribunal
constitucional, abster-se desse gênero de fraseologia, e se quiser es-
tabelecer princípios relativos aos conteúdos das leis, formulá-los da
forma mais precisa possível.96

O positivismo jurídico, portanto, sempre aceitou a ideia de que o di-


reito comporta ao menos dois tipos de normas, quais sejam, as regras e os
princípios. Entretanto, o positivismo jurídico se sente incapacitado, por seus
fundamentos filosóficos, a fornecer uma ideia material de justum97. Na teoria

94
Vezio Crisafulli, em obra de 1952, evidencia que os princípios existem desde as primei-
ras constituições modernas: “Não é supérfluo por isso recordar preliminarmente que
disposições de princípio sempre existiram nas constituições escritas, a partir da primeira
constituição da época liberal proclamada no final do Século XVIII na república norte-
-americana e depois na França, com a grande revolução[...]”. Na Itália, ele remonta a
presença de princípios ao Estatuto Albertino: “Um título inteiro dedicado aos direitos
e deveres do cidadão, no Estatuto de 1848, é quase exclusivamente formado por dis-
posições de princípio.” E arremata: “Um princípio, seja expresso em uma específica
formulação legislativa, seja, ao invés, implícito ou latente no ordenamento, constitui
assim uma norma, aplicável como regra de determinados comportamentos públicos
ou privados.” (CRISAFULLI, V. La costituzione e le sue disposizioni di principio.
Milano: Giuffrè, 1952. p. 28).
95
BOBBIO, N. Teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1993. p. 271.
96
KELSEN, H. Jurisdição constitucional. Tradução de Alexandre Krug. São Paulo:
Martins Fontes, 2013. p. 170,
97
VIEHWEG, T. Tópica y filosofia del derecho. Tradução de Jorge Sena. Barcelona:
Gedisa, 1997. p. 17.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 89

jurídica e política de Kelsen, por exemplo, o direito racionalmente legítimo


decorre antes do procedimento democrático, concebido como nomogênese
descentralizada do direito, fixado o justum de forma extremamente modesta
no ideal da tolerância. Natural, desse modo, a ênfase dada às regras, tipos de
normas que veiculam o resultado pacífico dos conflitos de interesse numa
sociedade plural e que expressam hierarquizações de valores produzidas
por quem têm legitimidade política para fazê-lo. O pós-positivismo, por seu
turno, saudoso de épocas passadas marcadas pela presença de um justum
robusto, recorre à busca pela centralidade dos princípios/direitos funda-
mentais como forma de acessar novamente a esse núcleo essencial material,
repaginado com elementos de cientificidade metodológica assentados na
ideia da ponderação como um método/técnica de hierarquização pontual/
concreta desses valores.
Mesmo no âmbito circunscrito da teoria do direito é possível apon-
tar limites e fazer críticas às elaborações citadas até aqui. Mas o que nos
interessa, nos limites dessa investigação, é identificar a recepção desses
elementos conceituais de teoria do direito no senso comum teórico dos
juristas, ou seja, observar a junção de episteme e doxa na construção do
discurso que se tornará presente na doutrina constitucional e nos julgados
dos tribunais superiores no Brasil. Warat afirmava ser o senso comum
teórico dos juristas um amálgama pouco consistente de episteme e doxa,
em que as formulações teóricas produzidas alhures são utilizadas para fins
persuasivos de forma a dissociar-se de suas origens, mantendo a conexão
com as obras originais apenas como uma espécie de álibi retórico, com
ênfase no ethos concedido pelo argumento de autoridade.
Quando observamos a apropriação do neoconstitucionalismo pelo
senso comum teórico dos juristas no Brasil, podemos verificar, com o auxílio
de Perelman, que ela se concentra principalmente no emprego de uma técnica
argumentativa específica, o da dissociação de noções, mais especificamente
o da inversão do par classificatório princípio-regra. Perelman explica que as
dissociações exprimem “uma visão do mundo, estabelece hierarquias, cujos
critérios se esforça por fornecer.”98. Ele descreve como o protótipo da disso-

98
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 477.
90 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ciação de noções o par filosófico “aparência-realidade”, em que o primeiro


elemento do par é apresentado, via de regra, como carregado de associações
negativas (“ilusão e erro”), enquanto o segundo elemento é associado com
aspectos positivos como “verdadeiro” e “real”. Além dos pares filosóficos,
existem também os pares antitéticos e os pares classificatórios. Esses últimos
são os que nos interessam diretamente, pois a centralidade dos princípios na
resolução das questões constitucionais começa pela pretensa recuperação da
normatividade dos princípios, reintroduzida no discurso jurídico a partir da
ideia bastante singela de que normas são o gênero que compreende as espé-
cies: princípios e regras.99
Perelman alerta que a dissociação de noções não é, de modo al-
gum, inócua. Inicialmente, os pares classificatórios podem parecer que
apenas pretendam subdividir um conjunto em partes distintas, “um
gênero em espécies”, mas, na verdade, eles funcionam como um ins-
trumento que possibilita a estruturação do discurso de um modo que
pareça objetivo, relacionando o par classificatório originário “princípio-
-regra” com outros pares, de modo que os elementos que compõem o
par são conectados discursivamente com outros elementos ora posi-
tivos, ora negativos. Essas associações recíprocas, que compreendem
as três dimensões da retórica, ethos, páthos e logos100, geram, ao final, o
resultado pretendido: o par classificatório princípio-regra “positivista”
se converte no par classificatório “pós-positivista” regra-princípio, com
o tipo de norma “princípio” passando a figurar no elemento II – o mais
valorizado – do par classificatório:

99
“Ganhou a doutrina mais moderna uma classificação das normas, que as separa em
regras e princípios.” (MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. 9. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014. p. 72). “A classificação das normas constitucionais mais discutida
pela doutrina contemporânea é aquela que as distingue em princípios e regras consti-
tucionais.” (SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria,
história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 379).
100
Ao lidar com as “três grandes dimensões em que dividem as estratégias retóricas: ethos,
páthos e logos”, buscamos seguir a conceituação proposta pela Análise Empírico Retórica
do Discurso, elaborada pelo professor Isaac Reis. Ver: REIS, I. Análise empírico-re-
tórica do discurso: fundamentos, objetivos e aplicação. In: ROESLER, C. R.; HART-
MANN, F.; REIS, I. Retórica e argumentação jurídica: modelos em análise. Curitiba:
Alteridade, 2018. p. 138.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 91

De antiga fonte subsidiária de terceiro grau nos Códigos, os princí-


pios gerais, desde as derradeiras Constituições da segunda metade
deste século, se tornaram fonte primária de normatividade, corpori-
ficando do mesmo passo na ordem jurídica os valores supremos ao
redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as competências
de uma sociedade constitucional.101

No quadro abaixo, busco ilustrar o processo de inversão do par clas-


sificatório princípio-regra (que expressava uma importância maior para as
regras e um caráter subsidiário aos princípios), o qual, após uma série de as-
sociações com outros pares antitéticos discursivamente caracterizados, con-
verte-se no par classificatório regra-princípio, que expressa a nova posição
de valorização que os princípios passam a ter na nova cultura jurídica. As
associações cumprem seu papel conectando às regras sempre características
negativas ou menos apreciadas, ao mesmo passo em que liga aos princípios
aspectos sempre positivos ou, ao menos, mais valorizados.

101
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 255. Além de registrar essa percepção de que os princípios passaram de coadjuvantes
a protagonistas, essa citação reforça a ideia de que a centralidade dos princípios teria
decorrido de evolução normativa ocorrida nos textos constitucionais mais modernos
do segundo pós-guerra. Mas a própria obra de Bonavides prova que, na verdade, o que
houve foi uma evolução doutrinária. Até a quarta edição do seu Curso de Direito Consti-
tucional, de 1993, o constitucionalista cearense estava restrito a bradar contra a inércia
no desenvolvimento do Estado Social desenhado na CRFB causado pela concepção de
normas programáticas, apostando um pouco de suas esperanças no conceito de normas
de eficácia diferida. Somente na quinta edição, de 1994, ele descobre o potencial das
reformulações de Dworkin e Alexy, e as desenvolve em capítulo específico a partir dali
acrescentado: “Capítulo 8 – DOS PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO AOS PRIN-
CÍPIOS CONSTITUCIONAIS”. Somente a partir de 1994 ele passa a afirmar que:
“a constitucionalização dos princípios, em termos de normatividade, funda o Estado
principialista.” (BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 9).
92 CARLOS MAGNO SPRICIGO

QUADRO 1 – INVERSÃO DO PAR CLASSIFICATÓRIO


PRINCÍPIO-REGRA

FONTE: Elaborado pelo autor.

É necessário recorrer ao layout de argumentos de Stephen Toulmin


para compreendermos o efeito final desse processo de inversão do par clas-
sificatório princípio-regra. Perelman é de grande valia para a análise das téc-
nicas argumentativas e para se pensar a retórica como um todo, mas pouco
falou sobre a estrutura dos processos argumentativos. Toulmin, a partir de
outra perspectiva, preocupado com pensar uma lógica do raciocínio prático,
elaborou, a partir da observação dos processos judiciais, uma proposta de
estrutura argumentativa que entendia adequada para se analisar as questões
que envolvem o raciocínio prático. Seu modelo procedimental é composto
por seis elementos básicos, que podem ser desdobrados conforme a com-
plexidade do tema envolvido: (1) dados; (2) alegação; (3) garantia; (4) apoio;
(5) qualificadores modais e (6) condições de refutação. O apoio “tem o ob-
jetivo de tornar mais aceitáveis e fidedignas as garantias”102, consistindo em
“avais que se colocam por trás das garantias para garantir-lhes autoridade
102
CARVALHO, A. G. P. O esquema de Toulmin e a análise argumentativa de decisões
judiciais: perspectivas a partir e além de “Harry nasceu nas Bermudas”. In: ROESLER,
C. R.; HARTMANN, F.; REIS, I. Retórica e argumentação jurídica: modelos em
análise. Curitiba: Alteridade, 2018. p. 58.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 93

ou vigência”. É no campo do apoio que encontraremos, normalmente, em


situações judiciais, o registro da legislação, jurisprudência ou doutrina que
se pretende aplicável ao caso. É aí também, como veremos no capítulo 3,
que se dá a disputa sobre qual tipo de apoio utilizar para justificar a decisão,
uma regra ou um princípio? Podemos pensar que a inversão do par classi-
ficatório princípio-regra tem como efeito final a facilitação e disseminação
de um uso mais recorrente de princípios em detrimento do uso de regras no
apoio das fundamentações das decisões judiciais.

3.5 INVERTENDO O PAR CLASSIFICATÓRIO


“PRINCÍPIO-REGRA” NA DOUTRINA
CONSTITUCIONAL

Antes do advento do neoconstitucionalismo, estava solidamente es-


tabelecido no saber dos juristas a primazia das regras sobre os princípios,
no sentido de que se esperava que a solução dos litígios deveria ser apoiada,
preferencialmente, numa regra, sendo o recurso aos princípios circunscrito
para situações de caráter excepcional. Assim estava estabelecido nas leis:
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia,
os costumes e os princípios gerais de direito” (artigo 4º, da Lei de Intro-
dução ao Código Civil, de 1942, ainda em vigor, agora sob a denominação
de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro); “O juiz não se
exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei.
No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo,
recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito” (artigo
128, do Código de Processo Civil de 1973).
A doutrina da época espelhava essa visão então incontestada:

Se é deficiente o repositório de normas, se não oferece, explícita ou


implicitamente, e nem sequer por analogia, o meio de regular ou de
resolver um caso concreto, o estudioso, o magistrado ou funcionário
administrativo como que renova, em sentido inverso, o trabalho do
legislador [...] recorre o aplicador aos princípios gerais[...]103

103
MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro:
94 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A inversão do par classificatório estabelecido durante décadas, prin-


cípio-regra, vai se dar, no Brasil, a partir dos anos 1990 e pode ser detectada
nos textos de doutrina constitucional. Buscarei identificar em alguns desses
textos a elaboração desse discurso que, por meio de associações recíprocas
do par originário com outros pares, constrói o crescente prestígio retórico
dos princípios em detrimento das, cada vez mais combalidas, regras. Foram
analisados os livros de direito constitucional de Paulo Bonavides, Gilmar
Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, Alexandre de Moraes,
Luís Roberto Barroso e Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto.
No muito conhecido livro de direito constitucional de Paulo Bonavides, po-
demos identificar o momento exato de sua epifania neoconstitucionalista:
é somente a partir da 5ª edição do Curso de Direito Constitucional, em 1994,
com a inclusão de um novo capítulo intitulado “Dos princípios gerais do
direito aos princípios constitucionais”, que o jurista cearense passa a explo-
rar as potencialidades das reelaborações na teoria e filosofia do direito de
Dworkin e Alexy. Os cursos de direito constitucional de Mendes, Moraes e
Barroso são analisados por serem estudos de juristas que ocupam assento
junto ao Supremo Tribunal Federal. Barroso, é notório, destaca-se como o
maior entusiasta da recepção do neoconstitucionalismo, o que fica evidente
em seus escritos doutrinários e em seus votos no STF. Por fim, também
analisamos o livro de direito constitucional de Sarmento e Souza Neto, por
ser texto de ótimo nível que, digamos assim, é também um testemunho da
construção retórica da hegemonia neoconstitucionalista, em que pese de-
pois possam ter expressado algumas reservas críticas.

3.5.1 A lenda do positivismo: nazismo – Estado de princípios

O discurso neoconstitucionalista envolve uma crítica direta ao po-


sitivismo jurídico. O neoconstitucionalismo se apresenta sustentado sobre
uma base filosófica “pós-positivista”104, ou seja, como uma superação da-
quele paradigma. Nessa crítica, invariavelmente, encontramos presente o

Forense, 2002. p. 241.


104
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-
damentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 513.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 95

que Valadão105 chamou de “lenda do positivismo”. A lenda do positivismo


nasce no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, num discurso proferido
pelo positivista arrependido Gustav Radbruch chamado de “Cinco minutos
de Filosofia do Direito”. Nele, Radbruch associa diretamente o êxito do
projeto nazista de 1933-1945 à teoria do direito positivista, afirmando que
essa teoria, por seu formalismo, teria deixado indefesos os juristas contra a
ascensão de um Estado criminoso. Valadão mostra em seu livro como essa
associação é indevida. Na verdade, ela ganha corpo na Alemanha em grande
medida por permitir a uma série de juristas filonazistas desresponsabilizar-
-se de sua efetiva contribuição à barbárie hitlerista. Mas, apesar de carecer
de qualquer fundamento histórico, esse relato que associa positivismo jurí-
dico e nazismo é reproduzido ainda hoje, às vezes de modo mais elaborado,
às vezes de modo bem caricato.
Bonavides é um dos autores que faz essa ligação entre positivismo
jurídico e o nazifascismo do período entreguerras:

O positivismo dessa doutrina consagrava, por inteiro, a onipotência


legalista do Estado, bem perto, assim, de produzir, pela indiferença
aos valores, a versão de um neo-absolutismo fadado a corroer e sa-
crificar, por via de consequência, as bases de sua própria legitimação.
Semelhantes bases, todavia, uma vez perdidas, como já aconteceu – e
foi o caso da categoria positivista do Estado totalitário – somente
se restauram com a teoria material e substantiva da Constituição.106

Barroso também ajuda a disseminar a lenda do positivismo, associando


expressamente positivismo com nazismo e fascismo e confundindo a neu-
tralidade axiológica preconizada por Kelsen para o cientista do direito com
uma inexistente afirmação de um ordenamento jurídico indiferente a valores
éticos:

[No positivismo jurídico] O direito reduzia-se ao conjunto de nor-


mas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, como todo

105
VALADÃO, R. B. Positivismo jurídico e nazismo: formação, refutação e superação
da lenda do positivismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.
106
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 7.
96 CARLOS MAGNO SPRICIGO

dogma, não precisava de qualquer justificação além da própria exis-


tência. Com o tempo, o positivismo sujeitou-se à crítica crescente e
severa, vinda de diversas procedências, até sofrer dramática derrota
histórica. A troca do ideal racionalista de justiça pela ambição positi-
vista de certeza jurídica custou caro à humanidade. [...] a decadência
do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo
na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e
militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vi-
gente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusa-
dos de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a
ordens emanadas da autoridade competente. [...] Ao fim da Segunda
Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a
valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma
embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensa-
mento esclarecido.107

Ainda, Barroso explica que:

Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o di-


reito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade
e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do
Século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à der-
rota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que
promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª
Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito.108

De modo um pouco mais sutil e sofisticado, Souza Neto e Sarmento


não deixam de reiterar a associação entre positivismo jurídico e nazismo no
mito fundador do pós-positivismo:

107
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os concei-
tos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
p. 275-276.
108
BARROSO, L. R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. p. 4. Disponí-
vel em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695.
Acesso em: 13 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 97

Essas teorias, ao não se pronunciarem sobre o conteúdo particular


de cada ordenamento, acabaram deixando de fornecer instrumentos
para a crítica do Direito produzido pelos Estados autoritários e tota-
litários da primeira metade do século. A ascensão do partido nazista
ao poder, por exemplo, ocorreu pelos meios previstos na Constitui-
ção de Weimar. Chegando ao poder, os nazistas utilizaram o Direito
como instrumento para a imposição de políticas repressivas e dis-
criminatórias. A Ciência do Direito que simplesmente descrevesse
esse ordenamento jurídico, deixando de se pronunciar sobre a ex-
trema injustiça de seu conteúdo, podia ser condenada como omissa,
quando a afirmação política do Estado de Direito era demandada
em todos os níveis, mesmo no da teoria do Direito. Diante do mal
absoluto, a pretensa neutralidade científica era totalmente incapaz de
se justificar.109

A associação (indevida) entre positivismo jurídico e nazismo é es-


tratégia de páthos na inversão do par classificatório princípio-regra. É o
argumento ad terrorem, que liga artificialmente nazismo>positivismo, que
em outros momentos terá continuidade na conexão positivismo>regras.
Dessa forma, constrói-se a ideia de que a valorização excessiva das regras
levou ao nazismo uma vez, logo poderá levar novamente.110 E somente o
uso mais abrangente de princípios, conformando um “Estado de princí-
pios”111, pode evitar esse destino. É o par antitético nazismo-Estado de
princípios.

109
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 200.
110
Essa associação é profundamente simplificadora. Primeiro, por atribuir a uma singela
corrente do pensamento jurídico a responsabilidade exclusiva de um fenômeno comple-
xo como a ascensão do nazifascismo na Europa. Segundo, por ignorar o papel dos au-
tores não-positivistas que, aí sim, ativamente se esforçaram para o êxito da implantação
daquele regime, como Carl Schmitt e Karl Larenz. Por último, ignora que o nazifascis-
mo era um movimento político e tinha uma expressão na teoria do direito que afirmava
peremptoriamente a força de valores tidos como absolutos, algo completamente in-
compatível com uma perspectiva juspositivista, ligada indissociavelmente ao relativismo
ético a partir de sua convicção acerca da incognoscibilidade dos valores.
111
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 7.
98 CARLOS MAGNO SPRICIGO

3.5.2 Evolução teórica: positivismo – pós-positivismo

A estratégia de páthos continua, agora na associação das regras de


direito com o positivismo jurídico. O positivismo jurídico, que com sua
indiferença aos valores causara nada menos que o nazifascismo, é a teoria
que privilegia as regras em detrimento dos princípios jurídicos. Trata-se de
teoria a ser superada pela novidade teórica, o pós-positivismo, que promete
reconectar direito e moralidade por meio da centralidade dos princípios.
Para Bonavides:

A teoria material da Constituição se acha irresistivelmente vocacio-


nada a executar e aplicar na época do pós-positivismo os valores
igualitários da Justiça, sem os quais a Sociedade se desloca do centro
de gravitação de sua legitimidade para a esfera das incompreensões
e ambiguidades ocasionadas por uma doutrina exageradamente for-
malista [o positivismo jurídico], que durante largo tempo dominou
quase todas as esferas do Direito.112

Paulo Bonavides exulta com a percepção trazida pelo pós-positivismo


de que os princípios “agora” estão constitucionalizados e chega a falar num
“Estado principialista”: “A constitucionalização dos princípios, em termos
de normatividade, funda o Estado principialista. É mais um postulado da
teoria material da Constituição que triunfa na idade do pós-positivismo”.113
Aqui, Bonavides fala numa “idade do pós-positivismo” como supe-
radora tanto do juspositivismo quanto do mais antigo jusnaturalismo, reco-
nhecendo a importância da obra do filósofo do direito americano Ronald
Dworkin para a fundamentação teórica da nova ordem:

É na idade do pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito


Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, sofren-
do golpes profundos e crítica lacerante, provenientes de uma reação

112
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 7.
113
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 9.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 99

intelectual implacável, capitaneada sobretudo por Dworkin, jurista


de Harvard.114

Nesse excerto, Paulo Bonavides constrói uma oposição entre o novo


e o velho, reforçando a ideia de superação inevitável, a partir de uma asso-
ciação de nomes de juristas de impacto internacional de um campo e de
outro:

Assim como Müller, na Alemanha, rompe com a tradição de Kelsen,


Jellinek, Laband e Gerber, já Dworkin, no mundo anglo-americano,
levanta a cátedra de Harvard contra de Oxford, onde até então a fi-
losofia jurídica de Hart conservava intangível a inspiração positivista
de Bentham e Austin.115

Souza Neto e Sarmento também oferecem uma visão em que o pós-


-positivismo supera o positivismo. Abaixo, o positivismo aparece como a
teoria que teria desvinculado direito e moral, enquanto o novo modelo pro-
pugna por sua reconexão através dos princípios jurídicos:

Muitas têm sido as propostas formuladas desde então para oferecer


uma alternativa consistente para o Direito, sem retroceder, contudo,
ao antigo dilema entre positivismo e jusnaturalismo. Nesse cenário,
pode ser identificada a emergência de um novo paradigma filosófico,
que tem sido chamado de pós-positivismo. O pós-positivismo se
caracteriza por buscar a ligação entre o Direito e a Moral por meio
da interpretação de princípios jurídicos muito abertos, aos quais é
reconhecido pleno caráter normativo.116

Em seu livro de direito constitucional, Souza Neto e Sarmento asso-


ciam o positivismo jurídico ao “legalismo”, com claro sentido pejorativo. O

114
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 237.
115
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 248.
116
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 201.
100 CARLOS MAGNO SPRICIGO

legalismo se caracterizaria por um certo desprezo a um maior protagonismo


dos princípios do direito, visão superada hoje na doutrina e jurisprudência:

No Brasil, até não muito tempo atrás, prevalecia a concepção lega-


lista, tributária do positivismo, de que os princípios jurídicos não
seriam propriamente normas, mas meros instrumentos para inte-
gração de lacunas, aos quais o intérprete não deveria se socorrer
senão em situações excepcionais. [...] Atualmente, esta concepção
não corresponde mais ao ponto de vista dominante na doutrina e na
jurisprudência nacionais [...]117

3.5.3 Amoral – moral: estratégia de logos

A associação entre os componentes do par antitético amoral-moral


é uma estratégia de logos. Trata-se de dirigir o discurso diretamente ao con-
ceito de direito, discutindo sua relação com outros fenômenos normativos
correlatos.
Uma das promessas do neoconstitucionalismo pós-positivista é o
que eles chamam de reconexão entre direito e moral. O positivismo jurídico
malvado – no limite teria favorecido o nazifascismo, não esqueçamos – te-
ria imposto uma separação profunda entre esses dois sistemas normativos,
tornando o direito indiferente ao valor da justiça.
Na verdade, quando estudamos a obra de um positivista jurídico
como Kelsen, por exemplo, o que ali encontramos é um esforço teórico
para compreender como, na modernidade, a diferenciação funcional resul-
tante do processo de secularização dos últimos cinco séculos no Ocidente
gerou sistemas normativos relativamente autônomos entre si. O olhar his-
tórico mostra que direito, moral e religião eram indistintos no passado. Al-
gumas teocracias que ainda existem nos mostram como é um mundo assim
configurado. A visão não é das melhores!
Hans Kelsen, então, circunscreve a noção de obrigação no direito em
termos estritamente jurídicos: tenho uma obrigação jurídica, quando uma

117
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 380.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 101

sanção é atribuída à minha conduta por uma norma. Ele se apressa em adu-
zir que ter uma obrigação jurídica não implica automaticamente em ter uma
obrigação moral, pois direito e moral são ordens sociais diferentes. Veja,
isso não apenas não é algo negativo, mas na verdade é algo extremamente
positivo. É esse raciocínio que sustenta a ideia de que eu posso desobedecer
legitimamente a uma norma jurídica, por não corresponder ela ao sistema
moral no qual estou inserido. É por isso que o fato de os hierarcas nazistas
terem se defendido em Nuremberg repetindo “apenas cumprimos a lei
vigente!”, nada tem com o positivismo jurídico, que não prega a obediência
cega ao direito, e sequer afirma que a mera validade implica Justiça118 (com
“j” maiúsculo). O que o positivismo jurídico afirma com clareza é que a
obrigação jurídica está relacionada com a imputação que liga uma sanção a
uma conduta, e que essa imputação é justamente o pressuposto da liberdade
humana, justamente na medida em que, diante do dilema de obedecer ou
não à imposição legal, posso optar por desobedecê-la.
A circunscrição da noção de obrigação jurídica, que diferencia o di-
reito da moral (em que a obrigação não está identificada com uma sanção,
mas com o evitar uma “pressão social difusa” por parte da comunidade em
que a pessoa se insere), não impede Kelsen de observar que toda norma
jurídica, regra ou princípio, implica um valor moral. Mas, e aí talvez esteja
o ponto que seus críticos consideram insuficiente, trata-se, para ele, de um
valor moral relativo. Temos que concluir, portanto, que a relação entre di-
reito e moralidade no positivismo jurídico é algo mais sofisticado do que a
afirmação tantas vezes repetida de que esta corrente teórica teria separado
direito e moral.
Nesse sentido, afirma Barroso:

Nesse ambiente em que a solução dos problemas jurídicos não se


encontra integralmente na norma jurídica, surge a cultura jurídica
pós-positivista. Se a solução não está toda na norma, é preciso pro-
curá-la em outro lugar. E, assim, supera-se a separação profunda que
o positivismo jurídico havia imposto entre o Direito e a Moral [...] A

118
Já o autor considerado pós-positivista, Robert Alexy, considera que uma norma
extremamente injusta não pode ser válida. Ver: ALEXY, R. Conceito e validade no
direito. Tradução de Gercélia Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
102 CARLOS MAGNO SPRICIGO

doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática,


na teoria da justiça [...]119

No mesmo sentido, Souza Neto e Sarmento afirmam:

Surgem, então, a partir do segundo pós-guerra, teorias do Direi-


to que procuram religar as esferas do Direito e da Moral. [...] Há,
porém, convergência no tocante a dois objetivos centrais: procurar
superar a separação entre Direito e Moral preconizada pelo positi-
vismo e reabilitar o uso prático da razão na metodologia jurídica.120

Para parte da doutrina constitucional brasileira, a distinção entre di-


reito e moral promovida pelo positivismo jurídico produz um formalismo
que afasta o direito do ideal de justiça. O pós-positivismo, quando resgata
a normatividade dos princípios, promoveria essa reaproximação reintrodu-
zindo o debate substancial no mundo jurídico. Nessa perspectiva, Bonavi-
des explica que:

Vendo nos princípios, em primeiro lugar, a expressão de uma justiça


material, Enterría afirma que eles estão “conduzindo o pensamento
jurídico ocidental a uma concepção substancialista e não formal do
Direito”.121

Numa abordagem extremamente simplificada, somente os princípios


representam a presença do valor da justiça no ordenamento jurídico, sendo
as regras restringidas apenas a realizar o valor da segurança jurídica122, como
podemos ver nesse excerto de Barroso:

119
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
120
SOUZA NETO, C.P.; SARMENTO, D. op. cit., p. 200.
121
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 257.
122
O que implica na simplificação de que o positivismo jurídico teria abandonado a preo-
cupação com a justiça e a substituído pelo valor da segurança jurídica, ligada a ideia
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 103

Modernamente, no entanto, prevalece a concepção de que o sistema


jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de
regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel refe-
rente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas
– e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da
justiça no caso concreto.123

A nova doutrina se quer superadora tanto do juspositivismo quanto


do jusnaturalismo metafísico de outrora. Para tal, ela se apoia na ideia de
que as constituições mais modernas, por encerrarem uma ampla gama de
princípios jurídicos, configuram uma ordem objetiva de valores. Esse con-
ceito apareceu pela primeira vez no famoso caso Lüth, apreciado no Tri-
bunal Constitucional Alemão. Essa afirmação não é problemática quando
significa que os direitos fundamentais positivados numa dada constituição
conferem o selo de objetividade a esses direitos, cessando discussões e es-
peculações de caráter subjetivo acerca de sua positividade. Ferrajoli aqui não
encontra qualquer problema ou motivo para objeções. Ocorre, porém, que
a objetividade dessa ordem de valores quer expressar também, no contexto
pós-positivista, que ela teria condições de fornecer um critério objetivo,
unívoco, para o trabalho jurídico e moral dos juristas. Nesse ponto Ferrajoli
aponta o dedo e acusa: “neojusnaturalismo!”. Segundo Barroso, “[a Consti-
tuição] compreendida como uma ordem objetiva de valores, transformou-
-se no filtro através do qual se deve ler todo o ordenamento jurídico.”124.
A presença do princípio da dignidade da pessoa humana em nossa
Constituição de 1988 como um dos fundamentos da República é, portanto,
fato incontroverso e, nesse sentido, compõe uma ordem objetiva de va-
lores. Mas as visões discrepantes acerca do que constitui uma vida digna,

da subsunção lógica que envolveria a aplicação das regras/leis. Nada mais equivocado.
Kelsen, o maior positivista jurídico, não endossa a tese da subsunção na interpretação/
aplicação do direito e, consequentemente, afirma que o ideal da segurança jurídica no
direito apenas é “realizável aproximativamente”. Ver: KELSEN, H. Teoria pura do
direito. Tradução de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
123
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 356.
124
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 521.
104 CARLOS MAGNO SPRICIGO

inerentes a uma sociedade plural como a brasileira, exige reflexão. Questões


concretas relacionadas com o conceito de família, o papel da mulher na
sociedade, a relação entre Estado e religião, o tratamento destinado aos
presos, as políticas públicas voltadas a lidar com a redução da desigualdade
social e racial, encontram respostas diferentes no seio de uma sociedade
com as características da nossa. O pós-positivismo, todavia, trabalha com
a perspectiva de que essa ordem objetiva de valores permite realizar uma
leitura moral de todo o ordenamento jurídico. Barroso afirma que:

[A doutrina pós-positivista] procura empreender uma leitura moral


da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas.
[inclui-se] a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com
o reconhecimento da normatividade aos princípios e de sua diferença
qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática [...]125

Ainda, para Barroso: “O pós-positivismo busca ir além da legalidade


estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura
moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas”.126
Mais modestos, Souza Neto e Sarmento não vão tão longe quanto
Barroso, mas também endossam a tese de que o debate sobre aspectos
morais somente retorna ao mundo do direito com o reconhecimento da
normatividade dos princípios, feito pós-positivista:

Ao reconhecer a força normativa de princípios revestidos de elevada


carga axiológica, como dignidade da pessoa humana, igualdade, Es-
tado Democrático de Direito e solidariedade social, o neoconstitu-
cionalismo abre as portas do Direito para o debate moral.127

125
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
126
BARROSO, L.R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. p. 4-5. Disponí-
vel em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695.
Acesso em: 13 dez. 2022.
127
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 204.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 105

Nesse excerto, Souza Neto e Sarmento associam diretamente, va-


lendo-se de pseudodiscurso indireto, princípios constitucionais e o ideal de
justiça:

A sua plasticidade [dos princípios] abre um maior espaço para a pe-


netração de considerações sobre a solução mais justa no caso concre-
to no âmbito da concretização constitucional. É por isso que alguns
autores associam os princípios constitucionais ao ideal de justiça.128

3.5.4 Majoritário – contramajoritário: a mais antiga estratégia


de páthos contra a democracia

A expressão que hoje parece consagrada como a forma de organiza-


ção política por excelência, “constitucionalismo democrático” ou “democracia
constitucional”, oculta uma fortíssima tensão129. A democracia implica uma
preocupação com a maior participação possível dos cidadãos na tomada de
decisões coletivas, enquanto o constitucionalismo carrega consigo a missão
do liberalismo político de organizar, mas acima de tudo limitar, o exercício
do poder130.
No século XVIII, Rousseau levou às últimas consequências o ideal
democrático, quando afirmou que as leis de um país só são legítimas quando
são a expressão da vontade geral, ou seja, quando resultam da deliberação
direta, sem intermediários, dos cidadãos. Disse, ainda, que a vontade geral
só pode ser limitada por ela própria, desconhecendo limites pré-constituí-
dos à instituição do Estado, como faz a doutrina do direito natural que é o
núcleo do liberalismo político.

128
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 389.
129
GARGARELLA, R. El derecho como conversación entre iguales. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2022.
130
“A existência atual de regimes denominados liberal-democráticos ou de democracia
liberal leva a crer que liberalismo e democracia sejam interdependentes. No entanto,
o problema das relações entre eles é extremamente complexo, e tudo menos linear.”
(BOBBIO, N. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 7).
106 CARLOS MAGNO SPRICIGO

O constitucionalismo nasce, inicialmente, do interesse de uma bur-


guesia em ascensão em conter o poder potencialmente ilimitado de sobe-
ranos absolutos e da aristocracia, daí a ideia fundamental da separação de
poderes formulada por Montesquieu. Em seguida, no contexto do desafio
de criar uma república no Novo Mundo, os americanos dirigiram a preocu-
pação de contenção do poder às facções. Nesse momento, o constituciona-
lismo representou a organização do poder por parte de uma elite proprie-
tária contra possíveis excessos de maiorias populares131. Havia de se criar
mecanismos para a proteção da propriedade, inclusive a propriedade de
seres humanos, pois não devemos esquecer que o celebrado constituciona-
lismo americano nasce sustentado na escravização, permanece assim até a
Guerra da Secessão e organiza um regime de apartheid racial até meados do
século XX.
Se, por um lado, constitucionalismo e democracia partem filosofi-
camente de princípios diversos, muitas vezes opostos, historicamente, em
cada país, eventos específicos ao longo do tempo acabam levando a so-
luções institucionais únicas que organizam um concerto que se pretende
harmônico entre essas duas funções a princípio antagônicas: exercer par-
tilhadamente o poder e estabelecer limites a esse poder. Nos textos que
analisamos, a justificação do poder de impor limites à soberania popular
é muitas vezes articulada como um par classificatório, que opõe um poder
contramajoritário, exercido pelos tribunais, a um poder majoritário, expres-
são dos poderes Legislativo e Executivo.
Conforme Barroso:

O que cabe destacar aqui é que a Corte desempenha, claramente,


dois papéis distintos e aparentemente contrapostos. O primeiro
papel é apelidado, na teoria constitucional, de contramajoritário: em
nome da Constituição, da proteção das regras do jogo democrático
e dos direitos fundamentais, cabe a ela a atribuição de declarar a
inconstitucionalidade de leis (i.é., de decisões majoritárias tomadas
pelo Congresso) e de atos do Poder Executivo (cujo chefe foi elei-

131
Não foi uma preocupação meramente teórica. A revolta dos escravizados no Haiti, sob
a liderança de Toussaint Louverture, pairou como um fantasma nas elites de toda a
América escravista por um bom tempo.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 107

to pela maioria absoluta dos cidadãos). Vale dizer: agentes públicos


não-eleitos, como juízes e Ministros do STF, podem sobrepor a sua
razão à dos tradicionais representantes da política majoritária. Daí o
termo contramajoritário.132

A oposição majoritário versus contramajoritário é uma estratégia de


páthos, pois faz remissão implícita e às vezes explícita a um fantasma que
surgiu no século XIX com a ampliação irresistível do direito de sufrágio: o
risco da ditadura da maioria. Leiamos Barroso:

[...] esse papel contramajoritário do controle judicial de constitucio-


nalidade tornou-se quase universalmente aceito. A legitimidade de-
mocrática da jurisdição constitucional tem sido assentada com base
em dois fundamentos principais: a) a proteção dos direitos funda-
mentais, que correspondem ao mínimo ético e à reserva de justiça
de uma comunidade política, insuscetíveis de serem atropelados por
deliberação política majoritária; e b) a proteção das regras do jogo
democrático e dos canais de participação política de todos. A maior
parte dos países do mundo confere ao Judiciário e, mais particu-
larmente à sua suprema corte ou corte constitucional, o status de
sentinela contra o risco da tirania das maiorias.133 [grifos meus].

Souza Neto e Sarmento também se referem a esse risco como justi-


ficativa para um incremento de um protagonismo judicial:

Na hipótese de controle sobre ponderações já realizadas por outros


poderes do Estado, o Judiciário deve, em geral, adotar uma posição
de autocontenção e deferência. [...] O grau de deferência, todavia, é
variável. Em situações que envolvam restrições a direitos de grupos
minoritários vulneráveis, ou que versem sobre direitos fundamentais
básicos, que possam ser vistos como pressupostos da democracia

132
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 476.
133
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
108 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ou componentes essenciais da dignidade humana, pode justificar-


se um escrutínio jurisdicional mais rigoroso sobre as ponderações
realizadas pelos demais poderes do Estado. O maior ativismo ju-
dicial, nessas hipóteses, visará a evitar a tirania da maioria sobre
a minoria, ou a garantir o funcionamento da própria democracia,
concebida em termos não exclusivamente formais.134 [grifos meus].

O par filosófico majoritário-contramajoritário é um par antitético,


que se conecta aos demais pares analisados, mas remete especialmente ao
par política-técnica. De fato, no senso comum teórico dos juristas subsiste
a crença básica de que a atividade política é prerrogativa exclusiva dos po-
deres Executivo e Legislativo, sendo o Poder Judiciário um poder eminen-
temente técnico, em que as decisões são tomadas a partir não meramente
da vontade, mas do exercício de um saber especializado. À oposição majo-
ritário-contramajoritário subjazem então, implícitas, a oposição poder-saber
e vontade-razão.
O par majoritário-contramajoritário é também, como bem apontou
Waldron135, impreciso. Ao afirmar ser a atividade das cortes constitucionais
do tipo contramajoritária, em oposição a uma atividade que se quer frisar
ser do tipo majoritária, a asserção quer sutilmente ocultar o fato de que
também as decisões dos tribunais são tomadas pelo critério da prevalência
da posição da maioria. Os juízes afinal, tal como os deputados e senadores,
apenas votam, e prevalecem as teses que angariam os votos da maioria num

134
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 524. Importante assinalar
aqui o entendimento dos autores de que, no direito, não apenas ponderam os juízes,
mas também os integrantes do Executivo e Judiciário. Se a ponderação como panaceia
já é excessiva quando aplicada ao Judiciário, ela é totalmente descabida quando pretende
explicar o funcionamento dos demais poderes. As leis resultantes do processo legislativo
não são o produto de uma reflexão puramente moral e racional, mas são sim a expressão
final de embates, mais ou menos explicitados, entre interesses conflitantes, que ora são
resolvidos por meio de soluções de compromisso negociadas (não ponderadas) entre
maioria e minoria, como queria Kelsen, ora são a expressão da vontade de uma maioria
que conseguiu se fazer impor pontualmente. O principialismo ponderativo parece não
querer sequestrar e empobrecer apenas a experiência jurídica, mas também estende sua
visão para a própria política. É que, se “tudo é ponderação”, por quê não deixar a pala-
vra final com os “especialistas”?
135
WALDRON, J. Contra el gobierno de los jueces. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 109

colegiado. Deixando de lado a retórica, o fato que realmente diferencia a


tomada de decisões nos parlamentos e nas cortes não está no método de
tomada de decisões, que eles compartilham, mas no número de integrantes
(mais numeroso nos parlamentos), na forma de composição dos colegiados
(mais explicitamente democrático nos parlamentos, mediante eleições) e na
possibilidade de responsabilização política dos integrantes por seus votos
(ausente nas cortes).

3.5.5 Políticos – juízes: estratégia de ethos

A superioridade dos princípios em relação às regras também é cons-


truída a partir de associações que envolvem estratégias de ethos. Aqui se
buscará associar as duas espécies diferentes de normas aos diferentes atores
que trabalham com elas. As regras são, então, vistas como o material com
o qual lidam predominantemente os integrantes do Legislativo e do Execu-
tivo, em suma, os políticos. Já os princípios são associados aos juízes e às
cortes, enfim, aos integrantes do Poder Judiciário. Nessas associações, es-
teriotipizam-se características que seriam estruturalmente vinculadas a cada
um desses grupos de atores institucionais.
Dessa forma, Barroso reconhece haver subjetividade tanto na atua-
ção dos políticos quanto dos juízes, mas esboça uma tese sobre diferentes
tipos de subjetividades, sendo a subjetividade judicial amarrada pelos valo-
res com lastro constitucional, enquanto a subjetividade política é que seria
caracterizada por ser uma “vontade política própria”:

Discricionariedade judicial, portanto, traduz o reconhecimento de


que o juiz não é apenas o boca da lei, um mero exegeta que realiza
operações formais. Existe dimensão subjetiva na sua atuação. Não
a subjetividade da vontade política própria – que fique bem claro -,
mas a que inequivocamente decorre da compreensão dos institutos
jurídicos, da captação do sentimento social e do espírito de sua épo-
ca. [...] Juízes não fazem escolhas livres, pois são pautados por esses
valores, todos eles com lastro constitucional. 136

136
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
110 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Mas não se trata apenas de diferentes tipos de subjetividade. É o caso


de, em razão de circunstâncias estruturais que envolvem o processo de sele-
ção e promoção dos juízes, afirmar que os juízes são efetivamente melhores
que os políticos. O concurso público seria um fator de maior democratiza-
ção do acesso à função do que a eleição, já que permitiria, na sua visão, o
ingresso de pessoas das mais diversas origens sociais. Com esse perfil, os
juízes seriam capazes de interpretar melhor o “sentimento majoritário” e,
ainda, representar melhor “a vontade da sociedade”:

Não é incomum nem surpreendente que o Judiciário, em certos con-


textos, seja melhor intérprete do sentimento majoritário. Inúmeras
razões contribuem para isso. Inicio por uma que é menos explorada
pela doutrina em geral, mas particularmente significativa no Brasil.
Juízes são recrutados, na primeira instância, mediante concurso pú-
blico. Isso significa que pessoas vindas de diferentes origens sociais,
desde que tenham cursado uma Faculdade de Direito e tenham feito
um estudo sistemático aplicado, podem, ingressar na magistratura.
[...] Por essa razão, em algumas circunstâncias, juízes são capazes de
representar melhor – ou com mais independência – a vontade da
sociedade.137

Barroso segue com seu elogio aos juízes, ressaltando como condi-
ções estruturais da carreira, como a vitaliciedade, inamovibilidade etc., te-
riam o condão de imunizar esses importantes atores institucionais contra
visões de curto prazo ou mesmo “tentações populistas”:

Diversas razões se acrescem a esta. Em primeiro lugar, juízes pos-


suem a garantia da vitaliciedade. Como consequência, não estão
sujeitos às circunstâncias de curto prazo da política eleitoral, nem
tampouco, ao menos em princípio, a tentações populistas. [...] Por
fim, mas não menos importante, decisões judiciais precisam ser mo-

2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/


pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
137
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 111

tivadas. Isso significa que, para serem válidas, jamais poderão ser um
ato de pura vontade discricionária[...]138

Já os políticos, para Barroso, também em razão de circunstâncias


estruturais da atividade político-partidária, estariam, inevitavelmente, en-
volvidos com outros interesses que não o interesse público, o que lhes com-
promete a atuação e seus resultados:

Por outro lado, o acesso a uma vaga no Congresso envolve um custo


financeiro elevado, que obriga o candidato, com frequência, a buscar
financiamentos e parcerias com diferentes atores econômicos e em-
presariais. Esse fato produz inevitável aliança com alguns interesses
particulares.139

Quando pensamos na associação do par políticos-juízes ao par clas-


sificatório regra-princípio, não se pode deixar de registrar a importância da
tese da resposta certa, elaborada por Ronald Dworkin em seu livro Levando
os direitos a sério no senso comum teórico dos juristas. A tese da resposta
certa resgata para o senso comum teórico dos juristas a visão de que o ato
de interpretação/aplicação do direito realizado pelos juízes é um ato rigo-
rosamente cognoscitivo. O positivismo exegético francês e sua tese do silo-
gismo lógico judicial cumpriram essa função durante um bom tempo, mas
foram desmentidos pela elaboração mais sofisticada do positivismo jurídico
do século XX. Com Kelsen, ficamos sabendo que o ato de interpretação/
aplicação do direito envolve elementos de cognição, por certo, mas nele é
decisivo o elemento volitivo, sendo melhor caracterizado como interpreta-
ção/aplicação/criação do direito.

138
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 40. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
139
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 40. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
112 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A tese da resposta certa de Dworkin se insurge contra a ideia de


discricionariedade judicial em Hart (e com muito mais motivos em Kelsen,
porque nele a tese é ainda mais radical). Dworkin, ignorando a superação da
ideia de aplicação do direito como mera subsunção (presente em, Kelsen,
mas também em Perelman e Viehweg, por exemplo), divide os problemas
relacionados com a interpretação/aplicação do direito em dois tipos. Ha-
veria os casos fáceis, resolúveis mediante subsunção. Ao lado deles, haveria
também os casos difíceis, em que os juízes não decidiriam discricionaria-
mente, como via Hart em sua teoria do direito, mas, sim, aplicariam conste-
lações de princípios jurídicos e morais, hierarquizáveis mediante ponderação
em cada caso concreto, fornecendo assim não apenas uma decisão possível
dentre outras igualmente possíveis, mas uma resposta certa, correta para
aquele conflito. Dworkin, autor muito lido no Brasil a partir da tradução de
seus livros para o português no início deste século, e reconhecido por mui-
tos como fonte de fundamentação filosófica do neoconstitucionalismo ao
lado principalmente de Robert Alexy, cria uma associação poderosa entre
juízes>princípios>justiça, endossada por muitos juristas brasileiros, como
é o caso de Lênio Streck140. Ele (Dworkin) cria uma figura mítica de um juiz
ideal, chamado de Hércules, que apontaria para uma dimensão normativa
da tese da resposta certa, ou seja, de que sempre seria possível descobrir
a resposta certa, apesar do que sucede na realidade do direito. Entretan-
to, Dworkin em diversas passagens de seu livro configura sua teoria como
tendo caráter descritivo acerca do funcionamento das instituições jurídicas
de seu país, o que acaba por gerar uma hiperlegitimação da atuação judicial
por meio da insinuação de que os juízes não apenas poderiam fornecer
respostas certas, mas as fornecem efetivamente. O neconstitucionalismo
não caiu no gosto dos juízes por acaso!

140
“Negar a possibilidade de que possa existir (sempre), para cada caso, uma resposta con-
formada à Constituição, portanto uma resposta correta sob o ponto de vista hermenêu-
tico (porque é impossível cindir o ato interpretativo do ato aplicativo), pode significar
a admissão de discricionariedades interpretativas, o que se mostra antitético ao caráter
não relativista da hermenêutica filosófica e ao próprio paradigma do Constitucionalis-
mo Contemporâneo, introduzido pelo Estado Democrático de Direito, incompatível
com a existência de múltiplas respostas.” STRECK, L. Verdade e consenso: constitui-
ção, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 440.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 113

Fiel ao seu estilo que tão bem ilustra as características do que Warat
denominou de senso comum teórico dos juristas, Barroso cita muitas vezes
positivamente a contribuição de Dworkin, mas tergiversa sobre o tema da
resposta certa, oferecendo como solução pessoal um verdadeiro oxímoro:
“Assim, embora não se possa falar, em certos casos difíceis, em uma respos-
ta objetivamente correta – única e universalmente aceita – existe, por certo,
uma resposta subjetivamente correta”.141

3.5.6 Política – técnica: estratégia de logos

A diferenciação entre princípios e regras visando à valorização do


emprego dos primeiros em detrimento das segundas é incrementada pelo
recurso discursivo à ênfase repetitiva de que o uso dos princípios envolve
mecanismos não arbitrários, como a política, mas, sim, recursos relaciona-
dos sempre com algum grau importante de objetividade e exatidão. Trata-se
de uma estratégia de logos, que opõe política e técnica como elementos dis-
tintamente constitutivos do jurídico; a política como o espaço da volição,
do mero querer, a técnica como o espaço do racional.
Discorrendo sobre o princípio da proporcionalidade142, diretamente
vinculado à ideia central do neoconstitucionalismo da ponderação, Barroso
utiliza diversos vocábulos que expressam essa conotação, como mecanis-
mo, controle, parâmetro, aferição, teste, racionalidade e severidade:

Consiste ele [‘o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade’]


em um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e
administrativa. Trata-se de um parâmetro de avaliação dos atos do

141
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022. Impossível não lembrar aqui dessa passagem de Gui-
marães Rosa em Grande Sertão, Veredas: “Viver é muito perigoso [...] querer o bem com
demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar
esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada
um só vê e entende as coisas dum seu modo.”.
142
De uma perspectiva retórica, a referência ao princípio da proporcionalidade não passa
de uma técnica argumentativa que articula elementos da estrutura do real, os meios e os
fins, visando efeitos persuasivos.
114 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor supe-
rior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. [...] O princípio
da proporcionalidade é utilizado, também, com freqüência, como
instrumento de ponderação entre valores constitucionais contra-
postos[...] Nos Estados Unidos, mesmo sem referência expressa ao
termo ‘razoabilidade’, é comum a realização de testes de constitu-
cionalidade dos atos do Poder Público[...] Tais testes são identifica-
dos como sendo de: a) mera racionalidade; b) aferição severa; c)
nível intermediário.143 [grifos meus].

Aqui, Barroso afirma ser a ponderação uma técnica:

Nesse cenário, a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica


a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões
recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos
interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do bem ou
direito que irá prevalecer em concreto, por realizar mais adequada-
mente a vontade constitucional.144

Souza Neto e Sarmento também endossam essa associação neste ex-


certo:

A necessidade de resolver tensões entre princípios constitucionais


colidentes – constante em constituições compromissórias, marcadas
pelo pluralismo axiológico – deu espaço ao desenvolvimento da téc-
nica da ponderação [...]145.

Barroso, explicando a diferença entre valorar concretamente concei-


tos jurídicos indeterminados e o exercício do poder discricionário, reitera o
papel eminentemente técnico do magistrado:

143
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos funda-
mentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 293-294.
144
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-
damentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 350.
145
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 203.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 115

Atribuir sentido a um conceito jurídico indeterminado envolve


uma atuação predominantemente técnica, baseada em regras
de experiência, em precedentes ou, eventualmente, em elementos
externos ao Direito. Já o exercício de competência discricionária
compreende a formulação de juízos de conveniência e oportunidade,
caracterizando uma liberdade de escolha dentro do círculo pré-
traçado pela norma de delegação.146 [grifos meus].

Neste trecho, Barroso denomina a ponderação como um processo


intelectual, o que sutilmente o distingue da mera volição: Todo esse pro-
cesso intelectual tem como fio condutor o princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade”147 [grifos meus].
Abordando os limites à discricionariedade do legislador em se tratan-
do de uma constituição dirigente, Mendes e Branco enfatizam o aspecto es-
tático da relação entre as normas constitucionais – superiores – e as normas
legais – inferiores –, esvaziando esse processo do que ele tem de político: “
É intuitivo que o giro de materialização da Constituição limita o
âmbito de deliberação política aberto às maiorias democráticas.”148 [grifos
meus].
Dworkin fala na ponderação como processo de verificação do peso
de cada princípio colidente em um dado caso concreto. Aqui já se encontra
uma forma de conceber o processo de ponderação que obnubila o papel da
subjetividade do julgador. Uma coisa é verificar o peso, como uma balança
o faz com objetividade, outra coisa é atribuir ou estabelecer o peso – metafo-
ricamente – para aquele caso concreto, expressões que colocam o juiz ou
tribunal no centro do processo de tomada de decisão. Gilmar Mendes, neste
excerto, fala em “apurar” o peso, expressão que exime a subjetividade do
magistrado:

146
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-
damentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 352.
147
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-
damentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 375.
148
MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 53.
116 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Já quando os princípios se contrapõem em um caso concreto, há que


se apurar o peso (nisso consistindo a ponderação) que apresentam
nesse mesmo caso, tendo presente que, se apreciados em abstrato,
nenhum desses princípios em choque ostenta primazia definitiva so-
bre o outro.149 [grifo meu].

Souza Neto e Sarmento aqui também se referem à expressão “sope-


samento”, que designa o ato de comparar massas distintas com a mão, um
processo bem objetivo, classificado como técnica:

No campo jurídico, a ponderação, também chamada de sopesa-


mento, pode ser definida de uma forma mais restrita, como técni-
ca destinada a resolver conflitos entre normas válidas e incidentes
sobre um caso, que busca promover, na medida do possível, uma
realização otimizada dos bens jurídicos em confronto. [...] A técnica
em questão envolve a identificação, comparação e eventual restrição
de interesses contrapostos envolvidos numa dada hipótese [...].150
[grifos meus].

No próximo excerto, Souza Neto e Sarmento tratam da conexão en-


tre ponderação e princípio da proporcionalidade, falando em técnica pon-
derativa relacionada a parâmetros que podem aumentar sua racionalidade:

Nos últimos anos, houve um avanço nesse campo, em razão do uso


mais ajustado do princípio da proporcionalidade na realização da
ponderação. Nada obstante, ainda há muito a progredir nesta seara,
seja no aperfeiçoamento da técnica ponderativa no âmbito juris-
prudencial, com o uso mais ajustado do princípio da proporcionali-
dade, seja na cristalização de parâmetros específicos para resolução
de determinados conflitos recorrentes entre normas constitucionais.
Tais ajustes são indispensáveis para a legitimação do emprego da
técnica, de modo a conferir maior racionalidade e previsibilidade

149
MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 75.
150
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 512-513.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 117

à ponderação, restringindo os riscos de arbítrio judicial.151 [grifos


meus].

Neste trecho, Souza Neto e Sarmento afirmam ser o princípio da


proporcionalidade o critério principal para a ponderação:

Se for o caso de ponderação, o principal critério a ser empregado


para a sua realização é o princípio da proporcionalidade com os seus
três subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito) [...].152 [grifo meu].

Alexy não deixa dúvidas sobre como compreende a relação entre


ponderação e objetividade:

Se o ponderar de antemão estivesse excluído da esfera do objetivo,


todo o início que direciona para a ponderação iria padecer de um
defeito fatal. Jurisdição constitucional é, como cada jurisdição, unida
necessariamente com uma pretensão de correção. Se a ponderação
fosse incompatível com correção, objetividade e fundamentação, ela
não teria lugar no direito constitucional.153

Vimos que, para Dworkin, a ponderação de constelações de prin-


cípios conduziria às respostas certas e atuaria como mecanismo fortalece-
dor de um projeto de Estado de Direito. Resposta certa é o contrário de
subjetividade. Nem todos os neoconstitucionalistas endossam essa tese em
toda sua intensidade, mas em todos a ponderação e o princípio da propor-
cionalidade, que lhe fornece uma espécie de estrutura, aparece como um
elemento de mitigação, de controle da subjetividade. Na próxima citação,
Souza Neto e Sarmento reconhecem a presença da subjetividade na ponde-

151
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 515.
152
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 519.
153
ALEXY, R. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 157.
118 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ração de princípios, mas afirmam que ela nem sempre ocorre e, se ocorre, é
apenas em algum grau “inevitável”: “
A ponderação não é atividade mecânica, e com freqüência envolve
valorações complexas e polêmicas, em que algum grau de subjetividade é
inevitável.”154.
O gráfico 2, a seguir, mostra o número de menções aos conceitos
de “ponderação” e “proporcionalidade” nas dissertações e teses de direito
defendidas no período compreendido entre os anos de 1998 e 2018. Perce-
be-se que houve um notável incremento de ocorrências desses conceitos,
em especial a partir da virada do século.

GRÁFICO 2 – OCORRÊNCIA DE CONCEITOS


‘NEOCONSTITUCIONALISTAS’ EM TESES E DISSERTAÇÕES155

154
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 521.
155
BRASIL. CAPES. Catálogo de teses e dissertações. [2022]. Disponível em: https://
catalogodeteses.capes.gov.br. Acesso em: 12 dez. 2022..
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 119

3.5.7 Subsunção – ponderação: estratégia de logos

A inversão do par classificatório princípio-regra é feita aqui por meio


da associação das regras com a operação mental denominada subsunção,
enquanto os princípios são conectados com o outro tipo de raciocínio de-
nominado ponderação:

Regras operam por via do enquadramento do fato no relato nor-


mativo, com a enunciação da consequência jurídica daí resultante,
isto é, aplicam-se mediante subsunção; princípios podem entrar em
rota de colisão com outros princípios ou encontrar resistência por
parte da realidade fática, hipóteses em que serão aplicados mediante
ponderação.156

Mas não basta estabelecer as conexões regra>subsunção e princí-


pio>ponderação. É necessário atribuir aspectos desvaliosos à subsunção e
enaltecer a ponderação. Barroso aqui enfatiza a subsunção como não sufi-
ciente e agrega valor à ponderação ao associá-la aos casos difíceis: “
Em suma, consiste ela [a ponderação] em uma técnica de decisão
jurídica, aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mos-
trou insuficiente.”157.
Na mesma toada, vemos Souza Neto e Sarmento associando, na tri-
lha desenhada por Dworkin, ponderação>casos difíceis, valendo-se da téc-
nica argumentativa do sacrifício ao utilizarem a expressão “mal necessário”:
“A ponderação é, no mínimo, um ‘mal necessário’, para equacionamento
dos ‘casos difíceis’ do Direito Constitucional.”158.
A noção de casos difíceis (hard cases) foi proposta por Dworkin, autor
central no neoconstitucionalismo. Seguindo de certa maneira seu mestre
Hart, ele dividiu as questões jurídicas em dois tipos: casos fáceis, resolúveis

156
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 357.
157
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 373.
158
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 523.
120 CARLOS MAGNO SPRICIGO

por meio da subsunção, e os casos difíceis, que são, na sua expressão, as


situações em que “nenhuma regra regula o caso”159. O conceito de casos
difíceis ocupa um lugar de destaque na abordagem neoconstitucionalista,
pois os casos difíceis são tidos como a situação que exige ou autoriza um
papel protagonista dos juízes e tribunais, que terão, então, a oportunidade
de reconectar direito e moralidade por meio do manuseio ponderativo dos
princípios, fornecendo, é claro, uma resposta certa ao desafio.
De acordo com Souza Neto e Sarmento:

Ao invés da insistência na subsunção e no silogismo do positivismo


formalista, ou no mero reconhecimento da discricionariedade política
do intérprete nos casos difíceis, na linha do positivismo mais moderno
de Hans Kelsen e Herbert Hart, o neoconstitucionalismo se dedica à
discussão de métodos ou de teorias da argumentação que permitam a
busca da melhor resposta para os ‘casos difíceis’ do Direito.160

Na sequência, os autores abordam a questão do cognitivismo moral,


anátema para positivistas como Kelsen, e afirmam ser a ponderação a for-
ma de raciocínio “por excelência” para quem tem de lidar com problemas
de razão prática, obnubilando o papel que as regras também podem desem-
penhar nesse campo: “Neste sentido amplo, a ponderação é, por excelência,
a forma de raciocínio daqueles que se propõem a resolver questões práti-
cas.”161
Por fim, Souza Neto e Sarmento enaltecem a flexibilidade inerente à
ponderação, característica que se faria ausente na subsunção: “
Neste sentido a ponderação é muito mais flexível do que a subsun-
ção, abrindo espaço para que se considerem as circunstâncias particulares a
cada caso e o respectivo contexto social.”162.

159
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.p. 127.
160
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 204.
161
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 512.
162
SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. Direito constitucional: teoria, história e mé-
todos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 521.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 121

3.5.8 Crise de legitimidade – legitimidade mitificada: estratégia


de ethos institucional: Legislativo – Judiciário

A tensão permanente entre constitucionalismo e democracia é


reflexo da estrutura institucional adotada por muitos países, dentre eles o
Brasil, como modo de encaminhar a disputa política numa sociedade de
classes e plural, portanto plena de desacordos e disputas de interesses, numa
perspectiva de resolução não violenta dos conflitos. Nesse sentido, o direito
de uma democracia capitalista se configura como uma grande trégua, repac-
tuada a cada lance da disputa sem fim; trégua renovada toda vez que uma
lei é aprovada, um decreto expedido, um acórdão prolatado é assimilado
sem uma perturbação social tal que mine o tênue acordo coletivo que é a
institucionalidade de um Estado Democrático de Direito.
Essa estrutura institucional, que passa a ser o campo estratégico das
lutas por poder163, implica em uma série multifacetada de órgãos e entida-
des, articuladas em torno de três polos agregadores, que são os três poderes
da república. Desses, os poderes Executivo e Legislativo, no Brasil, recebem
legitimação popular direta periodicamente, pois a cada dois anos eleições
regulares propiciam que o povo se pronuncie, avaliando mandatários no
exercício do poder e rearticulando as forças políticas em conformidade com
seus interesses e ideais de sociedade. Os chefes do poder Executivo, presi-
dente, governadores e prefeitos, são aqueles eleitos pela maioria dos votos
válidos em cada eleição, situação garantida pela adoção do segundo turno
das votações. Os legisladores, deputados federais, estaduais e vereadores,
são escolhidos pela população por meio do sistema eleitoral proporcional,
que assegura a participação das minorias nas casas legislativas e fomenta um
sistema multipartidário (e não apenas bipartidário, o que o sistema eleitoral
distrital, majoritário, acaba produzindo). Os senadores são escolhidos tam-
bém pelo povo, sendo os mais votados no enorme distrito que é cada es-
tado da federação, sem, no entanto, representarem necessariamente, como
os chefes do Executivo, a maioria dos votos válidos, pois não há segundo
turno para esse pleito. Devido ao sistema de eleições, podemos dizer que
os poderes Executivo e Legislativo atendem a requisitos democráticos, pois

163
POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
122 CARLOS MAGNO SPRICIGO

seus integrantes são escolhidos em consultas livres à população. E, mais que


isso, podemos dizer que o sistema também estabelece um mecanismo de
responsabilidade política acionável pelo eleitor, pois a ele é oportunizado, a
cada quatro anos, renovar ou não o mandato dos legisladores ou adminis-
tradores já experimentados.
O Poder Judiciário, no Brasil, não se configura da mesma maneira.
O povo não escolhe quem serão os juízes e, devido às garantias constitu-
cionais que tornam possível a independência judicial, como a vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de salários, tampouco tem a oportunida-
de de retirar da função um juiz que decida contra seus interesses ou em des-
conformidade com sua visão de mundo. Nem por isso, todavia, poder-se-ia
falar em falta de legitimidade do Poder Judiciário. Todas as características
que estruturam esse poder da República são oriundas da constituição, ten-
do sido, portanto, o resultado das deliberações de deputados e senadores
constituintes, eles próprios eleitos para exercer a função de constituintes
originários. Entendo, ademais, que o Judiciário brasileiro, majoritariamente
configurado para ser constituído por meio de ingresso por concurso públi-
co, recebe uma lufada de ares democráticos na base e no topo. Na base, pela
existência do tribunal do júri, em que cidadãos comuns são tornados juízes de
seus concidadãos nos crimes dolosos – consumados ou tentados – contra a
vida. No topo, o elemento democrático, ainda que obliquamente, penetra na
medida em que os onze ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal
são todos indicados pelo presidente da república (a pessoa mais votada na
última eleição realizada), e sabatinados e aprovados pelo colegiado do Senado
Federal, que compõe o nosso Poder Legislativo bicameral.
Todos os poderes, e não apenas o Poder Judiciário, exercem suas
funções não de maneira irrestrita e completamente livre, mas apenas atuam
legitimamente na medida em que respeitem os limites formais e materiais
estabelecidos na constituição. Mecanismos de correção, presentes na cons-
tituição, são previstos para as situações em que se entenda que algum dos
poderes atue de forma exorbitante, não respaldada pelo ordenamento ju-
rídico. Tudo é montado de forma que o poder limite o poder, sistema que
ficou conhecido como checks and balances.
De um ponto de vista objetivo, todos os poderes são legais e legí-
timos, estabelecidos que foram pela constituição criada pelo povo e com
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 123

configurações que atendem direta, indireta ou remotamente ao princípio


basilar da soberania popular. Mas como a estrutura institucional, na verda-
de, configura-se como um campo estratégico, em que as disputas de poder
e interesses passam a ser travadas enquanto vigora o pacto de não emprego
de meios violentos, a discussão acerca da maior legitimidade desse ou da-
quele poder pode tomar corpo. Assim, o que vemos neste tópico é o es-
forço retórico de associar às regras, vistas como o resultado da atuação dos
poderes Executivo e Legislativo, problemas que afetariam negativamente o
caráter de sua legitimidade.
Barroso afirma que as leis só correspondem à vontade da maioria
numa “idealização desconectada dos fatos: “Até que ponto é possível afir-
mar, sem apegar-se a uma ficção ou a uma idealização desconectada dos
fatos, que os atos legislativos correspondem, efetivamente, à vontade ma-
joritária?”164.
E evidencia, também, as insuficiências da democracia representativa,
que seria marcada por um “déficit democrático”:

Mas as insuficiências da democracia representativa, na quadra atual,


são excessivamente óbvias para serem ignoradas. A consequência
inevitável é a dificuldade de o sistema representativo expressar,
efetivamente, a vontade majoritária da população. [...] Em suma: a
doutrina, que antes se interessava pela dificuldade contramajoritária
dos tribunais constitucionais, começa a voltar atenção para o déficit
democrático da representação política.165

Nesse excerto, Barroso reitera a ideia de que os parlamentos “nem


sempre” expressam o “sentimento” da maioria, e sugere que a corte cons-
titucional poderia fazê-lo:

164
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-50,
2015. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/download/3180/
pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
165
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 38. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
124 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A doutrina da dificuldade contramajoritária, estudada anteriormen-


te, assenta-se na premissa de que as decisões dos órgãos eletivos,
como o Congresso Nacional, seriam sempre expressão da vontade
majoritária. E que, ao revés, as decisões proferidas por uma corte
suprema, cujos membros não são eleitos, jamais seriam. Qualquer
estudo empírico desacreditaria as duas proposições. Por numerosas
razões, o Legislativo nem sempre expressa o sentimento da maioria.
Além do já mencionado déficit democrático resultante das falhas do
sistema eleitoral e partidário, é possível apontar algumas outras. Em
primeiro lugar, minorias parlamentares podem funcionar como veto
players, obstruindo o processamento da vontade da própria maio-
ria parlamentar. Em outros casos, o autointeresse da casa legislativa
lava-a a decisões que frustram o sentimento popular. Além disso,
parlamentos em todo o mundo estão sujeitos à captura eventual por
interesses especiais, eufemismo que identifica o atendimento a in-
teresses de certos agentes influentes do ponto de vista político ou
econômico, ainda quando em conflito com o interesse coletivo.166

Indo além, Barroso classifica a “crise de legitimidade” dos poderes


Executivo e Legislativo como um problema que não é apenas circunstancial
ou conjuntural, mas uma “disfunção institucional crônica”, ou seja, uma
marca da estruturação estabelecida pela própria constituição:

As circunstâncias brasileiras, na quadra atual, reforçam o papel do Su-


premo Tribunal Federal, inclusive em razão da crise de legitimidade
por que passam o Legislativo e o Executivo, não apenas como um
fenômeno conjuntural, mas como uma crônica disfunção institucional
no Brasil.167

166
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 40. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
167
BARROSO, L. R. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, abr./jun. 2005. p. 42. Disponí-
vel em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695.
Acesso em: 13 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 125

Além de ligar às regras os problemas que seriam inerentes à atuação


dos poderes Legislativo e Executivo, a estratégia de ethos institucional tem
continuidade, agora associando aos princípios, privilegiadamente manuseá-
veis pelos juízes e tribunais, características que fariam do Poder Judiciário
um poder dotado de maior legitimidade. Alexy tem um papel fundamental,
porque desenvolve o conceito de legitimidade argumentativa e dele extrai as
seguintes consequências:

Se essas condições estão cumpridas, a resposta à questão acima for-


mulada, por que uma representação puramente argumentativa deve
ter primazia diante de uma representação apoiada em eleições e ree-
leições, não mais é difícil.168

Barroso critica a representatividade dos parlamentos, mas não hesita


em enunciar um caráter representativo do STF, afirmando-o como “repre-
sentante da soberania popular”:

Circunstâncias diversas têm colocado ênfase no papel representativo


do Supremo Tribunal Federal. Apesar de se tratar de uma questão
pouco teorizada, o fato é que um olhar reconstrutivo sobre a juris-
prudência e a própria postura da Corte permite concluir que ela tem
desenvolvido, de forma crescente, uma nítida percepção de si mes-
ma como representante da soberania popular.169 [grifos meus].

Luís Roberto Barroso, flertando agora com a ideia de uma sociedade


homogênea – o que não é sem importância quando estamos lidando com
o tema da legitimidade –, afirma que muitas vezes os juízes e tribunais são
mais representativos daquilo que a sociedade quer do que parlamentos ou
presidentes. Carl Schmitt criticou duramente a democracia liberal e propôs,
em seus escritos, que a democracia pressupunha homogeneidade do povo e
que a legitimidade repousaria na identidade entre o povo, manifestada ativa

168
ALEXY, R. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 165.
169
BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fun-
damentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 477.
126 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ou passivamente, e seu líder. Com base nisso defendeu, contra Kelsen, que
o presidente do Reich alemão seria o verdadeiro guardião da constituição.
Se tomarmos a sério as ideias de Barroso sobre o tema, seria o caso de
afirmar que sua concepção leva o guardião da constituição schmittiano a
sentar-se nas cadeiras do guardião da constituição kelseniano! Ou seja, para
Barroso, o STF não seria o guardião da constituição meramente porque
interpreta e faz aplicar, definitivamente, o documento plural e politicamen-
te construído; mas porque representaria diretamente os valores inerentes
a uma sociedade que se apresentaria como isenta de conflitos e dissensos
relevantes: “Em curioso paradoxo, o fato é que, em muitas situações, juízes
e tribunais se tornaram mais representativos do anseios e demandas sociais
do que as instâncias políticas tradicionais.”170.
No próximo trecho dois aspectos se destacam. Primeiro, a reite-
ração da ideia de uma sociedade homogênea, pois o STF teria condições
melhores de identificar o que a sociedade, em uníssono, estaria a clamar.
Depois, encontramos a confissão da adoção por parte da corte constitu-
cional, de uma espécie de política a ser implementada por ela, no caso,
especificamente, nada menos que a reforma política, que será objeto do
terceiro capítulo deste livro:

A Corte acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem


possibilidade de sistematização, a reforma política que a sociedade
clama. [...] supremas cortes desempenham, ocasionalmente, o papel
de vanguarda iluminista, encarregada de empurrar a história quando
ela emperra.171 [grifos meus].

Por fim, esse último excerto, que é o último parágrafo do texto de


Barroso que trata da americanização do direito constitucional, combina

170
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 39. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
171
BARROSO, L. R. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maio-
ria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, p. 24-
50, 2015. p. 42. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/down-
load/3180/pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 127

as estratégias positivas e negativas de ethos institucional, enfatizando pro-


blemas vistos como insanáveis do Legislativo e Executivo, inerentemente
corruptos, e exaltando “a atuação equilibrada e independente dos tribunais
constitucionais” e desenhando sua missão de arbitragem do que chama de
“avanços sociais possíveis”:

É certo, contudo, que países de democratização tardia ou de


redemocratização recente precisam do modelo que foi celebrado e
exportado [judicial review americano], a despeito de suas idealizações.
Nesses países, como regra, o processo político majoritário não con-
segue satisfazer plenamente as demandas por legitimidade demo-
crática, em razão de distorções históricas na distribuição de poder
e riquezas. Nesse cenário, melhor do que a vocação autoritária do
Executivo ou a baixa representatividade do Legislativo é a atuação
equilibrada e independente dos tribunais constitucionais. Na medida
em que consigam escapar da captura pela política ordinária, cabe a
eles o papel de garantidores da estabilidade institucional e dos avan-
ços sociais possíveis.172

3.6 BALANÇO FINAL

Neste capítulo, pretendi ilustrar como o saber dos juristas promo-


veu retoricamente uma mudança de consequências profundas para a fun-
damentação das decisões judiciais nos últimos anos no Brasil. Bourdieu,
analisando o campo jurídico, destacou o papel nele desempenhado pelas
“obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis
e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas”173. O que
vimos foi um esforço discursivo que resultou numa espécie de autorização
para uma utilização mais ampla de princípios jurídicos como fundamento

172
BARROSO, L. R. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos: teoria e
jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. Interesse Público, Belo Ho-
rizonte, v. 12, n. 59, jan./fev. 2010. p. 301. Disponível em: https://www.editoraforum.
com.br/wp-content/uploads/2014/09/A-americanizacao-do-direito-constitucional-
-e-seus-paradoxos.pdf. Acesso em: 14 dez. 2022.
173
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Edições
70, 2021. p. 219.
128 CARLOS MAGNO SPRICIGO

de decisões judiciais, em especial no âmbito da jurisdição constitucional,


mas não apenas aí.
O processo, que denominamos a partir de Perelman de inversão do
par classificatório princípio-regra, deu-se por meio de associações recípro-
cas de pares filosóficos, com os elementos conotados desfavoravelmente
sendo atribuídos às regras e os elementos conotados favoravelmente sendo
atribuídos aos princípios.
As regras foram assim depreciadas: Nazismo > Positivismo > Amo-
ralidade > Políticos > Política > Subsunção > Majoritário > Crise de Legi-
timidade > Regras.

FIGURA 1 – REGRAS

FONTE: Elaborado pelo autor.

Os princípios foram enaltecidos de acordo com esse esquema:


Estado de Princípios > Pós-Positivismo > Moralidade > Juízes > Téc-
nica > Ponderação > Contramajoritário > Legitimidade Mitificada > Prin-
cípios.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 129

FIGURA 2 – PRINCÍPIOS

FONTE: Elaborado pelo autor.

Ao final desse processo, o par originariamente estabelecido, princí-


pio-regra, foi suplantado pelo novo par classificatório, novo pela inversão
promovida retoricamente: regra-princípio. O novo par, núcleo da doutrina
neoconstitucionalista, tornou aceitável a existência de um número maior de
decisões judiciais fundamentadas em princípios, muitas vezes derrotando
regras claramente aplicáveis ao caso. Essa inversão no par classificatório
princípio-regra não é a causa da hipertrofia judicial, porque nenhuma ela-
boração de caráter teórico ou discursivo abstrato tem o condão de, isola-
damente, ser o motor de qualquer evento político ou institucional dessa
envergadura. Mas ela cumpriu um papel relevante no processo que resultou
nessa disfuncionalidade na relação entre os poderes, pois se trata de um
discurso que, ao passo que coloca os princípios (caracterizados por sua
maior amplitude significativa) no centro do debate jurídico, deslocando as
regras, necessariamente empodera juízes e tribunais, em detrimento dos de-
mais atores institucionais diretamente ligados à soberania popular. Nesse
130 CARLOS MAGNO SPRICIGO

sentido, o neoconstitucionalismo é a ideologia da hipertrofia judicial, uma


ideologia sutil ou escancaradamente antidemocrática.
Dos autores analisados, somente Alexandre de Moraes não apresen-
tou material que pudesse ser aqui utilizado. Apesar de celebrar174, na apre-
sentação, as novidades trazidas para o direito a partir da atuação jurisdicio-
nal do STF nos últimos anos (escrevendo em 2017, ano de sua indicação ao
Supremo pelo presidente Michel Temer), seu livro de direito constitucional
não pode ser inserido no contexto de reformulação doutrinária neoconsti-
tucionalista, até por conta de seu perfil mais informativo. Os demais livros
se mostram envolvidos ou cientes dessa reformulação. Enquanto Gilmar
Mendes permanece discreto, Barroso abraça a causa com muito entusias-
mo, posicionando-se, certamente, como o maior representante declarado
do movimento neoconstitucionalista no Brasil.

174
“Interpretações inéditas para temas novos e alterações interpretativas para temas ante-
riormente analisados foram os grandes momentos da jurisdição constitucional no ano
passado.” (MORAES, A. Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017).
4

A IDEOLOGIA NEOCONSTITUCIONALISTA
EM AÇÃO NO BRASIL: 2015-2018

Nesse capítulo vamos analisar três decisões do Supremo Tribunal


Federal que se inserem no período que consideramos o ápice da hipertrofia
judicial no Brasil. Essas decisões são todas do colegiado do STF, o que afas-
ta a incidência direta da importante variável que Diego Arguelhes e Lean-
dro Ribeiro denominaram “ministrocracia”175. Os três acórdãos analisados
tratam de temas relacionados diretamente com a política e os políticos: (1)
financiamento empresarial de partidos e campanhas eleitorais (ADI 4650/
DF); (2) autorização prévia das assembleias legislativas para o processa-
mento dos governadores de Estado (ADI 5540/MG); e (3) configuração
constitucional do foro por prerrogativa de função (QO na AP 937/RJ).
As decisões selecionadas têm em comum o fato de que, nelas, re-
gras estabelecidas pelo legislador (ou o constituinte originário) são
derrotadas por princípios jurídicos genéricos. Com a análise dos acórdãos,
buscaremos identificar (1) a possível presença e a conformação da retórica
neoconstitucionalista, e (2) a possível existência comum de argumentos que

175
Nesse estudo os autores focam no papel que a atuação individual dos ministros do
STF, independentemente da manifestação dos órgãos colegiados do tribunal, tem na
dinâmica de funcionamento da corte e seu impacto na crise política brasileira. Ver: AR-
GUELHES, D. W.; RIBEIRO, L. M. Ministrocracia: o Supremo Tribunal individual e o
processo democrático brasileiro. Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, v. 37, n. 1, p. 13-
32, jan./abr. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/GsYDWpRwSKzR-
GsyVY9zPSCP/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 13 dez. 2022.
132 CARLOS MAGNO SPRICIGO

evidenciem que o julgado se insere num contexto transcendente que carac-


terize a busca pela realização um objetivo político específico. Longe de nós
está o objetivo de avaliar a correção ou incorreção dos julgados, tampouco
o de impugnar a validade daquilo que foi decidido. Nesse ponto, partimos
da lição kelseniana ao afirmar o caráter essencialmente dinâmico do direito:
“[...] todo e qualquer conteúdo pode ser direito.”176. Porém, enquanto para
Kelsen eram indiferentes as razões expendidas durante o fazer jurídico, nos-
so foco, situado na dimensão analítica da retórica177, dirige-se justamente ao
discurso judicial contido nos julgados escolhidos.
A análise de julgados de tribunais superiores implica em algumas
dificuldades que foram assinaladas por Claudia Roesler178. A primeira de-
las é a grande extensão dos acórdãos, que dificulta sobremaneira a tarefa
de separar as ratio decidendi dos obiter dicta. As decisões que analisaremos
têm 267 (ADI 5540), 355 (ADI 4650) e 429 (QO na AP 937) páginas.
O fato de os ministros trazerem seus votos prontos de seus gabinetes
também repercute na tarefa de análise. O resultado de cada sessão é mais
uma justaposição de manifestações do que propriamente uma deliberação
colegiada. Mesmo ministros que votam no mesmo sentido, muitas vezes
o fazem com fundamentações diversas. O estilo de redação de ementas
também não ajuda. Ao invés de fornecer a síntese abrangente do que foi
discutido, a ementa normalmente apenas registra a posição do relator –
quando vencedor – ou do ministro que inaugurou a divergência majoritá-
ria, quando é o caso. Por fim, Roesler registra também o uso “pouco cui-
dadoso” da jurisprudência citada como precedente nas fundamentações,
bastando, muitas vezes, a transcrição de ementas sem se esmiuçar os as-
pectos específicos que a tornam pertinente para o caso examinado. Esses
fatores, segundo a autora, levam à seguinte situação preocupante: “sabe-

176
KELSEN, H. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 2012. p. 221.
177
REIS, I. Análise empírico-retórica do discurso: fundamentos, objetivos e aplicação. In:
ROESLER, C. R.; HARTMANN, F.; REIS, I. Retórica e argumentação jurídica:
modelos em análise. Curitiba: Alteridade, 2018.
178
ROESLER, C. R. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de
uma prática jurídica. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 08, n. 04, Número Especial, p.
2517-2531, 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaes-
tioiuris/article/view/20940/15319. Acesso em: 11 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 133

-se dizer qual foi a decisão tomada, mas não necessariamente se consegue
compreender quais as suas razões e, por vezes, qual o seu alcance.”179.
Tratando do modelo da análise empírico-retórica do discurso, Isaac
Reis destaca a importância da investigação acerca do contexto do discur-
180

so, essencial para o entendimento da sua dimensão pragmática. Por isso, va-
mos, antes de abordar cada decisão selecionada, fazer um pequeno esforço
de rememoração dos eventos que formam o contexto histórico-político em
que elas foram tomadas.

4.1 ADI 4650 E O FIM DO FINANCIAMENTO


EMPRESARIAL OFICIAL DE CAMPANHAS
ELEITORAIS E PARTIDOS POLÍTICOS

A democracia não se esgota na existência de eleições periódicas. Mas


é difícil conceber uma democracia sem eleições, processos em que visões
políticas alternativas disputam a preferência do eleitorado. Se há eleições,
haverá a necessidade de busca por recursos, pois a capacidade de articu-
lação política e de comunicação pública exigem o dispêndio de dinheiro.
Qualquer pessoa que tenha disputado uma eleição de centro acadêmico es-
tudantil teve, no mínimo, que fazer uma vaquinha para xerocar seu material
de campanha, onde constam as principais propostas e a nominata completa
da sua chapa. Quanto maior o número de eleitores numa eleição, maior será
o gasto dos concorrentes, mesmo considerando um pleito absolutamente
correto, em que não haja compra de votos. Daí que a questão do financia-
mento de campanhas eleitorais se torna um problema importante para a
própria democracia, pois se teme, desde sempre, que o dinheiro possa pro-
mover graves distorções nos processos de consulta popular.

179
ROESLER, C. R. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de uma
prática jurídica. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 08, n. 04, Número Especial, p. 2517-
2531, 2015. p. 2522. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
quaestioiuris/article/view/20940/15319. Acesso em: 11 dez. 2022.
180
ROESLER, C. R. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de
uma prática jurídica. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 08, n. 04, Número Especial, p.
2517-2531, 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaes-
tioiuris/article/view/20940/15319. Acesso em: 11 dez. 2022.
134 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A ditadura militar proscrevera o financiamento empresarial de par-


tidos políticos e campanhas eleitorais. A doação de empresas privadas foi
proibida, inicialmente, pela Lei n. 4.740/1965 e essa proibição foi reiterada
pela Lei n. 5.682/1971, Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Não é neces-
sário lembrar que numa ditadura as eleições, quando subsistem, são regula-
mentadas sob uma perspectiva de busca de estrito controle do processo e
de seus resultados. Juristas da época falavam, cinicamente, em “democracia
possível”. Durante muitos anos os brasileiros não puderam votar para es-
colher o presidente e os governadores e as alternativas políticas ficavam
limitadas a apenas dois partidos políticos, a Aliança Renovadora Nacional,
situacionista, de um lado, e o Movimento Democrático Brasileiro, oposi-
cionista, de outro. Impressiona que hoje os militares se apresentem como
especialistas em processos eleitorais, dando ultimatos às autoridades civis
responsáveis pela organização dos pleitos. Na verdade, a história republica-
na brasileira mostra que sua especialidade é bem outra e nós a conhecemos.
Com a redemocratização, voltaram as eleições. A primeira eleição
geral com voto direto para presidente foi em 1989 e culminou com uma
disputa no segundo turno entre Fernando Collor de Melo – pelo ad hoc Par-
tido da Reconstrução Nacional – e Luiz Inácio Lula da Silva – pelo Partido
dos Trabalhadores. Apesar da proibição legal de doações empresariais, o
candidato vencedor recebeu imensos recursos a esse pretexto, que depois
se tornaram sobras de campanha administradas por seu famoso tesoureiro,
conhecido como PC Farias. A gestão escandalosa desses recursos levou
Fernando Collor ao impeachment, e PC Farias à morte, num típico crime de
mando, jamais completamente esclarecido. Levou também o Poder Legis-
lativo a refletir sobre o tema do financiamento das eleições, que estava no
centro dos problemas que sacudiram o mandato do primeiro presidente
eleito diretamente após a ditadura militar.
Tendo percebido que apenas proibir as doações empresariais não
dera bons resultados, os congressistas aprovaram a Lei n. 9.096/1995, Lei
dos Partidos Políticos, e, em seguida, a Lei n. 9.504/1997. A Constituição
trata do tema diretamente apenas na regra contida no art. 17, II, que proíbe
aos partidos políticos o “recebimento de recursos financeiros de entidade
ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”. A nova legislação
passou a permitir a doação de empresas às campanhas eleitorais e aos par-
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 135

tidos políticos, estabelecendo limites, prazos e mecanismos de publicização


e controle.
Em 6 de junho de 2005, durante o primeiro mandato presidencial de
Luiz Inácio Lula da Silva, estourou o escândalo político que foi denomina-
do de “mensalão”. Nesse dia, o então deputado federal Roberto Jeferson,
do PTB, concedeu entrevista ao jornal Folha de São Paulo, declarando que
o governo federal pagava mensalmente aos deputados a quantia de 30 mil
reais em troca de apoio político no Congresso. O que havia, na verdade,
eram acertos e desacertos envolvendo novamente sobras de arrecadação de
campanhas eleitorais, ambicionadas por partidos satélites que negociavam
sua aliança com o partido que ocupava, então, a presidência da República.
Dificuldades inerentes ao presidencialismo de coalizão.181 O assim chamado
“mensalão” gerou a AP-470, que tramitou no STF sob a relatoria do Minis-
tro Joaquim Barbosa, atingindo em cheio algumas lideranças importantes
do Partido dos Trabalhadores, como José Dirceu, Delúbio Soares e José
Genoino. O fato é que o escândalo do “mensalão” causou grande abalo à
gestão de Lula, mas não teve força suficiente para impedir sua reeleição em
2006. A AP-470 transcorreu com grande estardalhaço pelos anos seguintes,
e recolocou no centro do debate nacional a ideia da necessidade de uma
reforma política.
Nesse contexto conturbado aparece, aos poucos, a Ordem dos Ad-
vogados do Brasil (OAB). A OAB, por sua história e prerrogativas constitu-
cionais, transcende em muito a configuração de uma mera entidade profis-
sional. Sob a liderança de Raimundo Faoro, a OAB teve grande participação
no processo de volta à democracia e, anos depois, assinou juntamente com
a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) o pedido de impeachment de
Collor de Melo. Desde então, sempre se espera dessa prestigiada entidade
sua manifestação acerca dos principais problemas e desafios nacionais, em
especial, os que se relacionam com as instituições.
Em novembro de 2010, a OAB, na sede do seu Conselho Federal
em Brasília, organizou um evento denominado: “Reforma política – um
projeto para o Brasil”. Poderia ter sido apenas mais um seminário de espí-

181
ABRANCHES, S. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo políti-
co brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2016.
136 CARLOS MAGNO SPRICIGO

rito diletante sobre o tema da reforma política, mas não foi. A partir desse
seminário, a OAB nacional resolveu fazer valer mais intensamente sua legi-
timidade ativa, conferida pela Constituição, para deflagrar o funcionamento
da jurisdição constitucional em prol da realização, em etapas, de uma ver-
dadeira reforma política. Plena do ethos neoconstitucionalista, a iniciativa
convidaria a cúpula do Poder Judiciário a intervir diretamente na institucio-
nalidade política, por meio da declaração de inconstitucionalidades em leis
vigentes sob o fundamento de sua parcial incompatibilidade com princípios
constitucionais genéricos. O evento tinha o então advogado e professor
Luís Roberto Barroso como seu relator geral. A OAB era presidida à época
por Ophir Cavalcante. Uma olhada na programação do evento ajuda a com-
preender o escopo da proposta:

Na quarta-feira (17), o primeiro painel versará sobre Sistema de Go-


verno, presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, e se dividirá
em dois temas. O primeiro, das 8h30 às 10h30, tratará do Semipre-
sidencialismo como Mecanismo de Atenuação da Hegemonia Pre-
sidencial no Brasil, tendo como participantes Luís Roberto Barroso,
a cientista política Argelina Figueiredo e o deputado Michel Temer
(PMDB-SP). O segundo, intitulado Reeleição e Prazo de Mandato
do Presidente da República, das 10h30 às 12h30, terá o jurista Walter
Costa Porto, o cientista político Gaudêncio Torquato e o senador
Demóstenes Torres (DEM-GO). Ainda na quarta-feira, o segundo
painel discutirá Sistema Eleitoral, sob a presidência do ministro Car-
los Ayres Britto, contando também com duas mesas. A primeira,
das 14h às 16h, discutirá Sistema Distrital Misto, com participação
do jurista Luiz Viana Queiroz, o cientista político Jairo Nicolau e o
senador Pedro Simon (PMDB-RS). Das 16hàs 18h será instalada a
mesa Sistema de Lista Fechada – Restrições às Coligações, da qual
participarão o jurista Pedro Abramovay, o cientista Político Marcus
André Melo e o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). Na quinta-feira
(18), último dia do seminário, acontecerá o painel Sistema Partidário,
presidido pela ministra Cármen Lúcia. Cláusula de Barreira – Fideli-
dade Partidária será a primeira mesa, das 8h30 às 10h30, com parti-
cipação do jurista e conselheiro federal da OAB pelo Rio de Janeiro,
Cláudio Pereira de Souza Neto, o cientista político André Marenco e
o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). A segunda e última mesa do
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 137

dia, Financiamento Público de Campanha, das 10h30 às 12h30,


reunirá o jurista e ministro (aposentado) do STF José Paulo Sepúl-
veda Pertence, o cientista político Lúcio Rennó e o deputado José
Eduardo Cardozo (PT-SP).182 [grifos meus].

Menos de um ano depois, em 5 de setembro de 2011, o Conselho


Federal da OAB ingressava com a ADI 4650/DF183. Os autores da ação
pediam a decretação da inconstitucionalidade de diversas regras contidas
na Lei n. 9.096/1995 e Lei n. 9.504/1997, regras que autorizavam a doação
de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais e partidos políticos, bem como
estipulavam critérios – considerados inadequados pelos postulantes – para
doações de pessoas físicas e que autorizavam o autofinanciamento eleitoral.
Foi designado relator para a ação o Ministro Luiz Fux, que leu seu voto em
11 de dezembro de 2013.
É importante aqui lembrar da grande discricionariedade
“ministocrática” relativa à determinação de quando um processo será
julgado no STF. Arguelhes e Ribeiro demonstraram que a definição do mo-
mento em que uma ação é julgada no STF depende de fatores idiossin-
cráticos vinculados ao poder de agenda inerente aos personagens da cor-
te envolvidos diretamente com o processo: relator designado, presidente,
ministro-vistor. Dessa forma, uma ação constitucional pode dormitar por
muitos anos na gaveta de um ministro, esperando o momento “oportuno”
para ser julgada. Isso fica escancarado nas entrevistas concedidas pelos fu-

182
OAB nacional realiza seminário que vai elaborar propostas de reforma política. OAB-
-MS, 12 nov. 2010. Disponível em: https://oabms.org.br/oab-nacional-realiza-semina-
rio-que-vai-elaborar-propostas-de-reforma-politica/. Acesso em: 1 jul. 2022.
183
“Após profundos debates, as conclusões do Seminário foram sistematizadas pelo
Professor Luís Roberto Barroso nas seguintes proposições objetivas, enunciadas em
ordem de prioridade, tendo por critério o nível de apoio obtido nos debates internos:
‘1. Adoção do sistema de lista partidária preordenada ou fechada; 2. Financiamento
público das campanhas eleitorais, ficando aberta ao debate subseqüente a possi-
bilidade de contribuições privadas de pessoas físicas, com limite máximo de contri-
buição por doador, bem como com fixação de gasto máximo por campanha;” [grifos
meus] (CONTRA corrupção, OAB vai a STF por fim de doações empresariais a can-
didatos. OAB Nacional, Brasília, 22 ago. 2011. Disponível em: https://www.oab.
org.br/noticia/22502/contra-corrupcao-oab-vai-a-stf-por-fim-de-doacoes-empresa-
riais-a-candidatos?argumentoPesquisa=SEMIN%C3%81RIO%20REFORMA%20
POL%C3%8DTICA%202010. Aceso em: 17 jul. 2022.
138 CARLOS MAGNO SPRICIGO

turos presidentes da corte, quando declaram aos jornalistas quais os temas


serão privilegiados no seu biênio.
Logo, vemos que essa importante ADI foi pautada seis meses depois
das multitudinárias manifestações de junho de 2013, que são um marco
fundamental do agravamento da crise política pela qual passa o Brasil nos
últimos dez anos. As manifestações de junho de 2013 que, segundo Mar-
cos Nobre184, devem ser lidas no contexto internacional de manifestações
ocorridas em outros países nos anos anteriores, tiveram um caráter difuso.
Nascidas de uma luta emancipatória de um movimento social específico
vinculado ao tema da mobilidade urbana, o Movimento Passe Livre, mui-
to rapidamente tomaram outra configuração, cujo sentido é debatido até
hoje. O fato é que foram as primeiras manifestações de grande porte após
a redemocratização que não foram capitaneadas pela esquerda tradicional
vinculada ao petismo.
Como as manifestações de junho de 2013 tinham um caráter descen-
tralizado, quase anárquico, os meses que se seguiram foram meses em que
os atores políticos relevantes buscaram significá-la, oferecendo respostas às
demandas difusas que pairaram latentes. O Congresso Nacional respondeu
imediatamente, ainda em junho, rejeitando a PEC 37, que visava disciplinar o
poder de investigação do Ministério Público, o que foi entendido no contexto
como uma ação pró-impunidade. O governo federal levou mais tempo para
processar uma resposta, que veio em maio de 2014 na forma de um decreto
que instituía a Política Nacional de Participação Social. De início, também
foi aventada a possibilidade de uma constituinte exclusiva185 para realizar a
reforma política, o que foi em seguida descartado. O PT tentou interpretar as
jornadas de junho como uma reivindicação pela radicalização da democracia,
mas o sentido que se cristalizou com o passar do tempo, em especial depois
da criação da operação “Lava Jato”, foi o de uma insatisfação geral com o
sistema político e suas mazelas, em especial a corrupção e impunidade. Não
foi pequeno o esforço da grande mídia em canalizar aquela energia vibrante
das manifestações na direção que mais lhe interessava.

184
NOBRE, M. Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São
Paulo: Todavia, 2022. p. 14.
185
RIBAS, L. O. (org.) Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível. São
Paulo: Expressão Popular, 2014.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 139

É neste contexto que a ADI 4650, concebida a partir do seminário


sobre reforma política da OAB em 2010, foi pautada e entrou em julga-
mento. Por isso, ela não deixa de configurar, inicialmente, uma resposta do
Judiciário aos desafios das manifestações de junho de 2013. Digo “inicial-
mente”, porque a dinâmica do julgamento, com dois pedidos de vista, de
Teori Zavaski (votou em 2 de abril de 2014) primeiro, e Gilmar Mendes em
seguida, fizeram com que a finalização do julgamento se desse apenas dois
anos depois, em 17 de setembro de 2015.
Quando o julgamento da ADI 4650 foi finalizado, já eram tempos
de grande turbulência no cenário político nacional. A operação “Lava Jato”,
sediada em Curitiba, fora criada em 17 de março de 2014 e produzia grande
desestabilização do governo Dilma Rousseff por meio de investigações com
métodos ilegais que focavam em irregularidades relacionadas direta ou imagi-
nariamente com a maior empresa do Brasil, a Petrobrás. Em 20 de março de
2015, o Ministério Público Federal lançou uma campanha denominada “Dez
medidas contra a corrupção”, a serem implementadas por meio de altera-
ções legislativas propostas pelo grupo de procuradores liderados por Deltan
Dallagnol. A operação “Lava Jato” granjeou enorme apoio popular em seu
primeiro momento, apresentando-se como um ator novo no processo po-
lítico, apto a combater concretamente a “grande corrupção”186 envolvendo
políticos e empresários importantes de um lado, e de outro oferecendo uma
plataforma política de redenção nacional cristalizada nas “dez medidas”. A
decisão do STF na ADI 4650 declarou inconstitucional o financiamento em-
presarial de campanhas eleitorais e partidos políticos nesse novo contexto,
em que o combate à corrupção e a impunidade foram erigidos em objetivos
prioritários do país.
Sobre a decisão em si mesma, podemos dizer que a tese vencedora,
do relator Ministro Fux, resultou na declaração da inconstitucionalidade de
diversos dispositivos das leis n. 9.504/97 (arts. 24; 24, § Único, 81, caput; 81,
§ 1º) e 9.096/95 (arts. 31, 38, III; 39, caput; 39, § 5º). A avaliação que preva-
leceu, e foi registrada na ementa do acórdão, foi de que as regras contidas

186
Jessé Souza mostra que a “Lava jato” na verdade combateu a pequena corrupção de
apenas um campo do espectro político de modo a possibilitar a volta da verdadeiramen-
te grande corrupção praticada desde sempre no país. Ver: SOUZA, J. A elite do atraso:
da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
140 CARLOS MAGNO SPRICIGO

nas leis citadas são incompatíveis com dois princípios da Constituição: prin-
cípios democrático e da igualdade política. Como alertou Roesler, outros
ministros que votaram com o relator ofereceram fundamentos diversifica-
dos: Joaquim Barbosa citou os princípios republicano e da igualdade; Dias
Toffoli citou os princípios do Estado Democrático de Direito, da Repúbli-
ca, da cidadania, da igualdade e da proporcionalidade, além de enfatizar o
dispositivo do art. 14, § 9º, da Constituição, que determina a necessidade
de proteção da “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência
do poder econômico”; Rosa Weber fundamentou sua adesão ao voto do
relator nos princípios da soberania popular e cidadania, além do art. 14, §
9º, da Constituição.
O voto da minoria, composta por Teori Zavaski, Gilmar Mendes
e Celso de Mello, explorou principalmente o sentido autorizativo do art.
17, II da Constituição. Esse artigo estabelece as bases constitucionais para
a configuração dos partidos políticos no país e, no dispositivo específico,
apresenta regra que determina a “proibição de recebimento de recursos fi-
nanceiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”.
Seguindo a ideia de que toda regra carrega consigo uma regra geral exclusi-
va187, a contrario sensu o art. 17, II, implica em uma autorização tácita para que
o legislador infraconstitucional discipline a matéria, inclusive permitindo o
financiamento empresarial de entidades nacionais. Gilmar Mendes proferiu
um voto quase irascível, em que sugeriu que a iniciativa da ADI refletia
um conluio dos autores com partidos de esquerda, em especial o PT, que
segundo ele, teria acumulado ilicitamente dinheiro suficiente para “ganhar
eleições até 2038” e agora aparecia no Supremo Tribunal Federal tentando
descapitalizar as oposições. No final, Mendes e Mello aderiram à posição
manifestada por Teori Zavaski e a votação encerrou em 8 a 3.
O núcleo de fundamentação da decisão consiste, portanto, na opção
por avaliar a (in)constitucionalidade das regras atacadas na ADI, situando
no “apoio”188 dois princípios, em detrimento da regra constitucional con-

187
Ver: KELSEN, H. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2012. Ver também: BOBBIO, N. Teoria generale del diritto.
Torino: Giappichelli, 1993.
188
TOULMIN, S. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 141

tida, a contrario sensu, no art. 17, II, da Constituição. Mas, o longo acórdão
contém uma ampla expressão da técnica argumentativa dos pares filosófi-
cos, tal como vimos no capítulo anterior.
No acórdão aparecem passagens que exploram o aspecto do ethos
institucional, em que se acentuam problemas de legitimidade do Parlamen-
to para discutir a questão específica do financiamento de campanhas, bem
como se reforça a legitimidade da corte para tal. Assim, na página 20, o
relator registra que foi realizada uma audiência pública que contou com a
participação de 30 expositores, que permitiu inclusive “auscultar o senti-
mento de parte da sociedade civil organizada sobre a temática”. Na página
123, o Ministro Luís Roberto Barroso afirma que o “grande problema do
modelo político” brasileiro é o “descolamento entre a classe política e a
sociedade civil”. Na sequência, na página 130, Barroso resgata o tema do
papel representativo das cortes constitucionais:

E é por essa razão que, nas situações que envolvam proteção de mi-
norias, ou nas situações que envolvam certos impasses que emper-
ram a história, acaba sendo indispensável a intervenção do Supremo
Tribunal Federal, não contramajoritária, mas representativa. É para
fazer andar a história, quando ela tenha parado.

O ministro Marco Aurélio Melo, na página 171, afirma de modo “pe-


remptório” que “o Brasil vive profunda crise de representatividade política
marcada pelo distanciamento entre as pretensões e anseios sociais e as ações
concretas dos mandatários políticos”. Na página 273 do acórdão, o relator
deixa clara sua filiação ao ideário neoconstitucionalista, quando justifica a
valorização da audiência pública arguindo a necessidade do alinhamento da
corte com o “sentimento social”:

no meu modo de ver, há uma ideia basilar no neoconstitucionalismo:


se uma determinada questão gravita em torno de algo que é um de-
sacordo moral expressivo, ou razoável da sociedade, a Corte, no meu
modo de ver, ela tem que se alinhar ao sentimento social. Eu citaria
apenas os autores Reva Siegel e Robert Post, que falam exatamente
da deslegitimação democrática da decisão que não está em conso-
nância com o sentimento social.
142 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Diante da objeção de Zavaski de que o sentimento a que deve aten-


der o STF é o “sentimento da Constituição”, Fux retruca, ecoando a lição
de Barroso em seus escritos, que nas situações em que há um “desacor-
do moral razoável” e expressivo na sociedade, “um valor fundamental que
pode influenciar as decisões jurisdicionais é o sentimento social, porque
todo o poder emana do povo”. (p. 285)
Ainda identificando a dimensão de ethos dos argumentos expendidos
no acórdão, também se verifica a presença do par filosófico que opõe po-
líticos a juízes. Assim, na página 24, o relator189 afirma que os políticos fre-
quentemente privilegiam interesses particulares em detrimento do interesse
público, e, na página 38, levanta a suspeição dos políticos e do Parlamento
para regular a matéria, na qual são “diretamente interessados no resultado
dessa reforma [política]”. Mais adiante, o relator aduz, ainda, que os juízes
são institucionalmente mais “insulados” em face do poder político para
tratar do tema da ADI e, além disso, seriam os agentes mais imparciais e
neutros (p. 40 e 41). Fux afirma que “é quase que lógico que a classe política
não vai lutar contra seus próprios interesses” (p. 276) e, citando John Hart
Ely, defende a aptidão dos juízes para a matéria, por “estarem fora do sis-
tema representativo e apenas precisam se preocupar com sua continuidade
no cargo de forma muito oblíqua”. A conclusão a que chega o relator é
inequívoca:

Já julgamos inúmeros casos aqui e que entendemos que deveríamos


prestar sua deferência ao Poder Legislativo, mas, aqui, é mais do que
razoável e, no meu modo de ver, é absolutamente necessária a inter-
venção judicial nessa questão. (p. 278) [grifos meus].

189
Vale a pena lembrar que o mesmo relator, em decisão monocrática de 14 de setembro
de 2014, autorizou o pagamento de auxílio-moradia aos juízes de direito, uma mano-
bra “ministrocrática” que custou mais de 5,4 bilhões de reais aos cofres públicos. Ver:
AUXÍLIO-MORADIA do Judiciário já custa R$ 5,4 bi aos cofres públicos. Políti-
ca ao minuto, 12 fev. 2018. Disponível em: https://www.noticiasaominuto.com.br/
politica/519791/auxilio-moradia-do-judiciario-ja-custa-r-5-4-bi-aos-cofres-publicos.
Acesso em: 18 ago. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 143

Em seu voto-vista, o ministro Teori Zavaski apresenta-se crítico do


encaminhamento da discussão no plenário, e fez uma advertência que me-
rece destaque:

é importante que o Supremo Tribunal Federal tenha o cuidado de


não extrair das raras disposições da Constituição sobre o abuso do
poder econômico ou, o que seria mais grave, da amplitude semântica
e da plurissignificação dos princípios democrático, republicano e
da igualdade, interpretações voluntaristas que imponham gessos
artificiais e permanentes às alternativas que ela, Constituição,
oferece ao legislador encarregado de promover ajustes normativos
ao sistema de financiamento dos partidos políticos e das campanhas
eleitorais. (p. 142).

Todavia, o voto de Fux é claramente inspirado no que se conven-


cionou chamar neoconstitucionalismo de base pós-positivista. Na página
160, ele responde ter feito em seu voto “uma ponderação de paradigmas
materiais, de princípios materiais da Constituição, que no atual modelo
[neoconstitucionalista], são factíveis de sindicalização e de cognição numa
ação de controle de constitucionalidade”. Afinal, hoje nós estaríamos no
“pós-positivismo” (p. 278), em que se torna usual a verificação da inconsti-
tucionalidade de regras diante de princípios.
Se, de um lado, encontramos ao longo do acórdão a técnica argu-
mentativa dos pares filosóficos, que é empregada para promover a inversão
do par classificatório princípio-regra e autorizar discursivamente a inter-
venção do tribunal que derrota regras instituídas pelo legislador em nome
de princípios genéricos manuseados pelos juízes, de outro aparecem tam-
bém diversos momentos em que os ministros associam o financiamento
empresarial de campanhas eleitorais e de partidos políticos à corrupção e,
por conseguinte, apresentam a decisão que está sendo prolatada como um
mecanismo – uma “intervenção judicial” – de combate ou minimização a
esse problema, que estava alçado, então, ao primeiro plano do noticiário
nacional, já no contexto da operação “Lava Jato”.
Dias Toffoli, citando Fávila Ribeiro na página 93, corrobora a ideia
de que a entrada “do dinheiro” no processo eleitoral e na política acaba
144 CARLOS MAGNO SPRICIGO

fazendo com que os políticos sejam “compelidos a se conspurcarem com


métodos corruptos”. Barroso, nas páginas 123 e 124, afirma que a política
não pode ser “um balcão de negócios” e assevera que o “mercado de fi-
nanciamento eleitoral” é elemento gerador de clientelismo e corrupção no
Estado brasileiro. Para Barroso, o modelo brasileiro de financiamento elei-
toral “favorece a corrupção” e se configura como uma forma “de extorsão
não explícita de obtenção de recursos das empresas” (p. 127). Indo além
na conclusão do seu voto, o ministro Barroso relembra outros itens do seu
relatório final do seminário da OAB que inspirou a ADI 4650: “nós temos
um sistema eleitoral que comporta eleição proporcional, lista aberta e fi-
nanciamento empresarial, que é um foco contínuo de antirrepublicanismo
e corrupção no país” (p. 131).
Também o ministro Marco Aurélio Melo associa financiamento pri-
vado de eleições à corrupção, e o faz, na página 169, a partir de uma ci-
tação de publicação de Timothy Kuhner, afirmando que o financiamento
privado acaba por corromper as democracias. Citando em seguida Daniel
Sarmento e Aline Osório, em artigo não publicado à época do acórdão,
corrobora a associação do financiamento empresarial de campanhas e
partidos políticos à “corrupção e patrimonialismo, em detrimento dos
valores republicanos” (p. 174).
Por último, é importante ressaltar que tanto o relator como outros
ministros que votaram com ele afirmaram estar praticando o STF, naquele
momento, um diálogo institucional. A ideia é que o Supremo se manifes-
tava exercendo a jurisdição não de maneira castradora das prerrogativas
legislativas, emitindo um juízo definitivo e infalível acerca das possibilidades
constitucionais de definição infraconstitucional do financiamento empresa-
rial de campanhas eleitorais e partidos políticos. A decisão seria como que
um convite para que o Legislativo aperfeiçoasse o modelo de financiamento
eleitoral e partidário brasileiro, constando da ementa que o STF estaria dan-
do uma “última palavra provisória” sobre o tema.
Ocorre, porém, como pudemos ver analisando a fundamentação do
julgado, que apesar de oferecer esse oxímoro na ementa do acórdão, os mi-
nistros deixam muito claro em diversos momentos que estão a realizar uma
verdadeira “intervenção judicial” na matéria, dadas a inerente inaptidão dos
políticos para lidar com ela, e a também inerente aptidão “natural” dos juí-
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 145

zes. Além disso, fica claro no texto que, além de um julgamento sustentado
em princípios, o STF tinha clareza de que oferecia o que Dworkin conside-
rava um julgamento baseado em políticas, na medida em que entendiam o
deferimento da ADI 4650 como uma medida saneadora de parte relevante
do problema da corrupção no país.
Independentemente do que pensam ou deixam de pensar os mi-
nistros do STF, o fato é que, se levamos a decisão a sério, o que nela se
decretou efetivamente aponta para que, diante de princípios como o da
igualdade e democrático, que imagino nunca estarão ausentes de uma fu-
tura elaboração constitucional possível, será sempre inconstitucional um
regramento legal que autorize o financiamento empresarial de campanhas
e partidos políticos.
A consequência desse julgado se fez ver poucos dias depois do julga-
mento da ADI. A Lei n. 13.165/2015, que promoveu uma reforma política
e foi discutida durante o julgamento no STF, foi sancionada pela presidenta
Dilma Rousseff em 29 de setembro de 2015, tendo sido vetada a parte em
que a lei permitia e regulava a doação de empresas para campanhas eleito-
rais. O veto presidencial foi fundamentado com base no que fora, então,
recentemente decidido pelo STF na ADI 4650.
De lá para cá, o orçamento público reservado para as campanhas
eleitorais saltou de R$ 1,7 bilhões em 2018 para R$ 4,9 bilhões em 2022,
mesmo com o país enfrentando o que foi, talvez, uma de suas maiores
crises econômicas, agravada pela pandemia da Covid-19. E é preciso ser
muito ingênuo ou desinformado para acreditar que a decisão sepultou o
financiamento empresarial da política, que segue impassível, agora sem
uma política pública organizada que permita a sua fiscalização, quantifica-
ção e transparência pública.
146 CARLOS MAGNO SPRICIGO

4.2 A ADI 5540/MG (ADI 4798/PI E OUTRAS MAIS) E


A EXTINÇÃO DA EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO
PRÉVIA DAS ASSEMBLEIAS LEGISLATIVAS PARA
PROCESSAMENTO DE GOVERNADORES DE
ESTADO JUNTO AO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA

A segunda década desse século parece mesmo ter sido o momento


em que atores político-institucionais relevantes passaram a ter uma nova
compreensão acerca das potencialidades da jurisdição constitucional. De
uma tradicional e estabilizada noção mais passiva e corretiva de excessos do
legislador infraconstitucional, a jurisdição constitucional passou a ser vista
como mais um caminho, um caminho alternativo, para a implementação
de inovações jurídicas de alta relevância e impacto institucional. O caso da
ADI 5540/MG, que não pode ser compreendido isolado de mais de duas
dezenas de ADI’s sobre o mesmo assunto, é uma ilustração perfeita dessa
situação. Esse caso também demonstra como a variável ministrocrática190
pode operar na busca de resultados político-jurídicos desejados por quem
sabe se valer do assim chamado “poder de agenda”.
Primeiro, o necessário contexto. O Brasil é uma federação, compos-
ta por 26 Estados membros e o Distrito Federal, além de mais de 5500
municípios que detêm competência de produzir leis municipais. Os mu-
nicípios possuem até mesmo uma miniconstituição, chamada de lei orgâ-
nica do município. As atribuições de cada ente federado são estabelecidas
primordialmente pela Constituição Federal de 1988, mas as constituições
estaduais e as leis orgânicas municipais também estabelecem regramentos
complementares. Nosso país tem um intrincado sistema de estabelecimento
de foros por prerrogativa de função, cuja finalidade não é gerar um privi-
légio antirrepublicano para indivíduos em virtude de sua condição pessoal,
mas sim proteger autoridades constituídas pela comunidade de uma possí-
vel vulnerabilização do mandato derivada de ações judiciais temerárias e/

190
ARGUELHES, D. W.; RIBEIRO, L. M. Ministrocracia: o Supremo Tribunal indivi-
dual e o processo democrático brasileiro. Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, v. 37,
n. 1, p. 13-32, jan./abr. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/GsY-
DWpRwSKzRGsyVY9zPSCP/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 13 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 147

ou maliciosas. Nesse sentido, a Constituição determina que o presidente da


República deve ser julgado por crimes comuns perante o Supremo Tribunal
Federal (e pelos crimes de responsabilidade perante o Senado Federal) e os
governadores de Estado devem ser julgados pela prática de crimes comuns
no Superior Tribunal de Justiça (pelos crimes de responsabilidade diante da
assembleia legislativa respectiva).
A Constituição federal estabelece, ainda, que o presidente da Repú-
blica somente será processado por crimes comuns no STF após autorização
de 2/3 dos deputados federais. Michel Temer, alvejado duas vezes pelas
“flechas de bambu” do temerário Procurador-Geral da República, Rodri-
go Janot, quando era presidente, teve sua persecução penal interrompida
no nascedouro nas duas oportunidades pela falta de autorização do Par-
lamento. A Constituição Federal não estabelece esse mesmo mecanismo
de admissibilidade para o processamento de governadores de Estado. Dos
27 Estados (contado aí o Distrito Federal), somente duas constituições es-
taduais são silentes sobre o assunto: Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.
Todas as demais constituições locais estabelecem um regramento seme-
lhante para o processamento dos seus governadores nos crimes comuns:
tal como o presidente da República só pode ser processado junto ao STF
após autorização da Câmara dos Deputados, seus governadores só poderão
ser processados junto ao STJ após deliberação autorizativa das respectivas
assembleias legislativas.
Durante décadas essa configuração institucional não foi contestada,
sendo “mansa e remansosa” a jurisprudência do STF sobre o tema, que
remonta a 1964, no Habeas Corpus 41.296/DF. Vejam bem: não apenas
entendia o STF que as regras estaduais que exigiam expressamente a au-
torização prévia das assembleias eram perfeitamente constitucionais, mas
entendia nossa corte constitucional que mesmo nos poucos casos em que
a constituição estadual não fizera essa exigência, a autorização prévia era
necessária pela incidência ao princípio da simetria, princípio decorrente da
arquitetura institucional federativa. Essa configuração institucional se apre-
sentava como um dos pilares jurídicos da autonomia política dos Estados
frente à União, pois permitia que as assembleias protegessem seus chefes
de Executivo de alguma investigação temerária, politicamente interessada.
Pensemos aqui no que vivenciamos nos últimos três anos, em que a ação
148 CARLOS MAGNO SPRICIGO

de governadores, contrárias ao entendimento negacionista do presidente


da República, foi decisiva para a minimização dos efeitos da enorme tra-
gédia que foi a pandemia da Covid-19 no Brasil. A autonomia dos estados
e municípios oscila conceitualmente entre uma perspectiva meramente ad-
ministrativa ou política e essa cláusula era um dispositivo que enfatizava a
dimensão política da autonomia dos estados.
Nos dias 3 e 4 de novembro de 2011, esse consenso sobre o arran-
jo institucional federativo estabelecido começou a ser questionado. Nesses
dias, o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel dos Santos, ingres-
sou com duas ADI’s, respectivamente a ADI 4674/RS e ADI 4675/MA,
arguindo a inconstitucionalidade dos regramentos constitucionais estaduais
que exigiam a autorização prévia das assembleias para o processamento de
seus governadores pela possível prática de crime comum junto ao STJ. Fo-
ram designados, por sorteio, para relatar as ADI’s os ministros Dias Toffoli
e Ricardo Lewandowski, os quais, posteriormente, manterão seus entendi-
mentos contra a anulação dessas cláusulas estaduais, situando-se na minoria
derrotada na matéria.
Entre abril e junho de 2012, uma verdadeira enxurrada de ações so-
bre o tema começará a ingressar no STF, tendo como autores o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil: ADI 4765/AP (relator Min.
Fux); ADI 4766/AL (relator Min. Fux); ADI 4798/PI (relator Min. Mel-
lo); ADI 4771/AM (relator Min. Fachin); ADI 4790 (relator Min. Fachin);
ADI 4781/MS (relator Min. Fachin); ADI 4791 (relator Min. Zavaski); ADI
4792 (relatora Min. Cármen Lúcia); ADI 4764 (relator Min. Mello); ADI
4797 (relator Min. Mello); ADI 4793 (relator Min. Mendes); ADI 4799/RN
(relator Min. Zavaski-Moraes); ADI 4805 (relator Min. Fux); ADI 4806/
SE (relator Min. Zavaski-Moraes); ADI 4772/RJ (relator Min. Fux); ADI
4773 (relator Min. Fux); ADI 4775/CE (relatora Min. Weber); ADI 4778/
PB (relatora Min. Weber).
É interessante lembrar que essas ações ingressam no STF antes dos
eventos de junho de 2013 e da criação da força-tarefa da “Lava Jato”, mas
no ano em que sairão as condenações de políticos importantes na AP-470,
conhecida popularmente como “mensalão do PT”: José Dirceu e José Ge-
noino serão condenados em 10 de outubro daquele ano, após muitas se-
manas de transmissões ao vivo das sessões do Supremo em que Joaquim
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 149

Barbosa (relator) e Ricardo Lewandowski (revisor) travavam um gigantesco


embate sobre os diversos detalhes da AP-470: tipificação, autoria, possibili-
dade de recursos, dosimetria da pena etc. O clima estabelecido no país era
o de que finalmente havia chegado a hora em que a corrupção, tida como
principal chaga nacional por muitos, estava sendo combatida e deveria ser
eliminada por todos os meios possíveis.
Quando analisamos a ADI 5540/MG – que alguns ministros regis-
trarão ser uma Ação Declaratória de Constitucionalidade camuflada –, tão
importante quanto estudar os argumentos constantes do acórdão é iden-
tificar a caprichosa tramitação das demais 21 ações constitucionais, pois
encontramos ali indícios de uso combinado do poder de agenda da presi-
dência do STF e de ministros-vistores, o que indica a possibilidade de in-
cidência indireta da variável ministrocrática para, nesse caso, buscar induzir
um determinado resultado desejado.
Protocoladas em 2011 e 2012, as ADI’s começaram a ser julgadas
a partir de 2015, um ano de crescente turbulência política que levaria à
destituição da presidenta Dilma Rousseff em abril do ano seguinte. É o
caso da ADI 4798/PI. Seu relator, ministro Celso de Mello, leu seu rela-
tório e proferiu seu voto em 5 de agosto daquele ano. É o caso, também,
da ADI 4792/ES, cuja relatora era a ministra Cármen Lúcia (presidente
da corte quando do deslinde da questão). Em ambos os casos, os relatores
reiteraram, em seus votos, a jurisprudência solidamente firmada do STF,
sustentando a constitucionalidade dos dispositivos contidos nas constitui-
ções estaduais que determinavam a necessidade de autorização prévia das
assembleias legislativas para o processamento dos governadores de estado.
Os votos dos relatores foram sucedidos por pedidos de vistas, que suspen-
deram temporariamente a tramitação das ADI’s.
Em 6 de junho de 2016 o partido Democratas (DEM) ingressa com
ADI para contestar dispositivos da Constituição do Estado de Minas Ge-
rais. Dilma Rousseff já estava afastada da presidência da República desde
abril daquele ano, mas só seria destituída definitivamente pelo Senado em
agosto. De outro lado, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel,
seu correligionário, era investigado em operações da Polícia Federal por de-
núncias de corrupção, especialmente na operação denominada “acrônimo”.
150 CARLOS MAGNO SPRICIGO

A ADI 5540/MG é a mais estranha das ações envolvidas nesse con-


texto de anulação da exigência prévia de autorização para processamento de
governadores. Isso decorre do fato de que a Constituição de Minas é uma
das duas que não exige essa autorização. Os debates entre os ministros, in-
clusive, evidenciaram que os anais da assembleia constituinte local registram
que não se tratou de mero esquecimento, mas sim de resultado de delibe-
ração entre alternativas diversas, optando o constituinte estadual mineiro
pela não exigência da prévia autorização. Todavia, devido ao entendimento
firmado no STF, mesmo no caso mineiro, pela incidência do princípio da si-
metria federativa, exigia-se, até aquele momento, a autorização assemblear.
Se a Constituição mineira não tinha o dispositivo atacado naquela batelada
de ADI’s, a mudança de entendimento que se construía indicava que o foco
principal da ação era na verdade de declaração de constitucionalidade, veda-
da para os casos de legislação estadual, como sabemos191. Por isso, na inicial
do DEM consta o pedido lateral de declaração de inconstitucionalidade da
expressão “ou queixa” do artigo 92 da Constituição daquele estado, detalhe
que permitiu fixar a debatida admissibilidade da ação. O artigo 92 dispõe:

Art. 92 – O Governador do Estado será submetido a processo e jul-


gamento perante o Superior Tribunal de Justiça, nos crimes comuns.
§ 1º - O Governador será suspenso de suas funções:
Nos crimes comuns, se recebida a denúncia ou a queixa pelo STJ;
[grifos meus]

Apesar de ter ingressado no STF quatro anos depois das outras 20


ADI’s, a ADI 5540/MG foi pautada – pela presidenta da corte, ministra
Cármen Lúcia – para a sessão de 14 de dezembro de 2016, quando o minis-
tro Luiz Edson Fachin leu o relatório e proferiu seu voto.
A evolução da discussão registrada no acórdão dessa ADI mostra
o caminho tortuoso que foi percorrido para a alteração do entendimento
pacificado do tribunal quanto à matéria. Como a Constituição mineira não
previa a exigência de autorização assemblear prévia, o pedido do DEM
deveria enfrentar apenas o problema da aplicação do princípio da simetria

191
A ADI foi admitida em apertado placar de 6 a 4.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 151

para o caso. Ocorre que, desde o início, o relator, ministro Fachin, abordou
o caso não em sua especificidade, mas apresentou um voto cuja argumenta-
ção abrangia não apenas o caso mineiro, de menor complexidade, mas sim
a situação de todas as demais constituições que, essas sim, possuíam regras
que exigiam expressamente a autorização prévia para processamento dos
governadores. Fachin, mais do que resolver o caso mineiro, largou propon-
do a fixação de uma abrangente tese, nos seguintes termos:

Não há necessidade de prévia autorização da Assembleia Legislativa


para o recebimento de denúncia ou queixa e instauração de ação
penal contra Governador de Estado, por crime comum, cabendo
ao STJ, no ato de recebimento ou no curso do processo, dispor,
fundamentadamente, sobre a aplicação de medidas cautelares penais,
inclusive afastamento do cargo. (p. 3).

Na ementa do acórdão, bastante sucinta, encontramos a gramática


neoconstitucionalista na fundamentação da decisão, pois se afirma que a
exigência de autorização prévia fere os princípios constitucionais republica-
no, da separação de poderes e da igualdade.
O relator mostra ciência da sólida jurisprudência da corte sobre a
matéria, mas afirma ser o momento de superar o entendimento fixado, em
nome do que chama, em tom grandiloquente, “redenção republicana”:

É preciso, portanto, superar os precedentes desta Corte na dimensão


de uma redenção republicana, vale dizer, cumprindo a promessa
republicana estampada no Art. 1º, caput, CRFB, diante dos reiterados
e vergonhosos casos de negligência deliberada pelas Assembleias Le-
gislativas estaduais, que têm sistematicamente se negado a deferir o
processamento dos Governadores de Estado. (p. 25).

Para além da argumentação central que se sustenta na incompati-


bilidade das regras estaduais com os princípios constitucionais citados, o
relator aduz que se deve diferenciar a situação do presidente da República,
que é chefe de Estado e de Governo, daquela dos governadores estaduais,
que são apenas chefes de Governo. Acrescenta, ainda, que o regramento
152 CARLOS MAGNO SPRICIGO

estadual acaba por se configurar como legislação estadual sobre matéria de


direito processual penal, o que é vedado pela Constituição Federal.
Na página 31 do acórdão, o ministro Barroso raciocina que se está
diante de uma tensão entre os princípios republicano e federativo: “Pon-
derar, que é o que se deve fazer aqui entre república e federação, é atribuir
pesos a valores, princípios ou direitos.”. Ao final, ele vota com o relator,
chamando a atenção para o fato da previsão na constituição mineira da sus-
pensão automática do cargo quando do recebimento da denúncia ou quei-
xa, e propõe que essa medida não seja mantida, e sim analisada de acordo
com as circunstâncias de cada caso pelo STJ.
O ministro Luiz Fux, ao votar, novamente remete diretamente à ideia
de legitimidade representativa do tribunal, dotado de capacidade de auscul-
tar o sentimento popular:

Daí, uma válvula de escape é a interpretação conforme, porque efeti-


vamente, hoje, o sentimento constitucional, que dá validade à Cons-
tituição e dá força normativa à Constituição na visão de Konrad
Hesse, é exatamente este: o sentimento do povo em relação à realidade
constitucional. Então, ninguém mais aceita hoje que, para processar o
Governador, a Assembleia tem de autorizar. (p. 89).

No julgamento, em diversas passagens, os ministros se expressam de


modo a evidenciar que as regras atacadas constituem um fator de impunidade
e estímulo à corrupção, apresentando o julgamento como oportunidade de
mitigar esses problemas vistos como graves no país. Na página 150, Mar-
co Aurélio Melo e Alexandre de Moraes argumentam, em aparte a Celso de
Mello, que o dispositivo atacado acaba por criar uma imunidade temporária,
que deriva em impunidade. Na página 137, Moraes assevera que o espírito
da norma se desvirtuou na sua aplicação prática, acabando por configurar-se
como “um escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas pelos chefes
dos poderes Executivos estaduais e distrital”. Na página 21, o relator já des-
tacara que o regramento estadual levava à impunidade, enquanto na página
32 Barroso afirma que sua aplicação serviria a “propósitos chapadamente
antirrepublicanos”.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 153

Após o voto do relator e do ministro Barroso, o ministro Teori Za-


vaski, aparentando discordar do esforço de superação da jurisprudência es-
tabelecida, pede vista dos autos, que voltará ao plenário em 3 de maio de
2017, após o seu trágico falecimento. Um voto que chama muito a atenção
do analista é o voto do ministro Dias Toffoli. Ele questiona diretamente a
presidência sobre o critério para a ordem de decisão das diversas ADI’s so-
bre o mesmo tema e ocupa cinco páginas de seu voto para citar, na íntegra,
o voto da presidenta, ministra Cármen Lúcia, relatora da ADI 4797/ES. Na
ocasião, a relatora dera um contundente voto – fazia alguns meses apenas
– a favor da constitucionalidade da exigência da autorização assemblear pré-
via, e agora, na ADI 5540, claramente sinalizava uma mudança de posição.
Buscou-se, ali, gerar algum constrangimento com a notificação pública de
um colega de que estava claríssima a manobra presidencial.
Enfim, o fato é que, no dia 3 de maio de 2017, decidiu-se, por maio-
ria (Fachin, Barroso, Fux, Weber, Moraes, Mendes e Cármen Lúcia), pela
procedência parcial da ADI 5540/MG, de tal modo conduzida que se aca-
bou por acatar uma tese mais abrangente, inicialmente proposta pelo relator
Fachin, que considerava inconstitucionais todas as regras estaduais que es-
tabeleciam a necessidade de autorização prévia da assembleia para o proces-
samento de governador de Estado junto ao STJ. No dia seguinte, 4 de maio
de 2017, retomou-se o julgamento da ADI 4798/PI, da relatoria de Celso
de Mello, que tratava de Constituição estadual que previa expressamente a
exigência, situação diversa daquela de Minas Gerais. Nessa sessão, Barroso
proferiu seu voto-vista e liderou a, agora certa, dissidência, sacramentando
que a eliminação da autorização assemblear prévia valeria também para as
demais constituições estaduais. As demais ADI’s foram decididas monocra-
ticamente nesse sentido, conforme deliberação do plenário, e a jurisprudên-
cia de meio século do STF foi então, definitivamente, suplantada.
Ou seja, em uma ação que tinha por objeto uma constituição estadual
(Minas Gerais, cujo governador, do mesmo estado do qual é originária a en-
tão presidente do STF, era então acossado por investigações lavajatistas no
contexto da operação “acrônimo”) que não exigia autorização prévia para o
processamento de governador junto ao STJ, foi declarada a inconstituciona-
lidade genérica de dispositivos de constituições estaduais que estabeleciam
essa exigência e que eram objeto de duas dezenas de ADI’s específicas. A
154 CARLOS MAGNO SPRICIGO

ratio decidendi da ADI 5540 constitui um verdadeiro e autêntico quid pro quo,
de tal modo evidente que, analisada isoladamente em si mesma, surge como
carente de fundamentação adequada, porque abandona seu objeto para cui-
dar do objeto de outras ações constitucionais.
Algum tempo depois...
Em 28 de agosto de 2020, no Estado do Rio de Janeiro, o governador
do Estado, Wilson Witzel, foi afastado por decisão monocrática de ministro
do STJ. Sequer houvera ainda sido oferecida denúncia e havido qualquer
possibilidade de defesa e exercício do contraditório. Em meras 13 pági-
nas, em que se tratava também de outros investigados, um governador de
Estado – eleito com 4.675.355 (59,87%) votos – então hostil aos interesses
do presidente da República192, era afastado definitivamente de suas funções,
acusado de envolvimento em prática de corrupção. Alguns meses depois,
Witzel seria destituído em processo de impeachment na Assembleia Legislati-
va do Rio de Janeiro, sem receber um voto sequer em seu favor.

4.3 QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL N. 937/RJ


E A ALTERAÇÃO NO ENTENDIMENTO SOBRE O
FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

No mesmo mês de maio de 2017, em que foram declarados inconsti-


tucionais os dispositivos de constituições estaduais que exigiam autorização
prévia das assembleias legislativas para o processamento de governadores
junto ao STJ, mais precisamente no dia 31 daquele mês, o plenário do STF
iniciou o julgamento de uma Questão de Ordem (Q.O.) na Ação Penal (AP)
937/RJ. Esse julgamento, afetado ao plenário por seu relator, o Min. Ro-
berto Barroso, referia-se ao processo que tramitava no Supremo por conta
do foro por prerrogativa de função de que gozava o seu acusado, o político
Marcos da Rocha Mendes. Eleito sucessivamente prefeito, deputado esta-
dual, deputado federal e, depois, novamente prefeito de Cabo Frio, seu caso
cabia como uma luva para ilustrar as dificuldades que o regramento vigente,

192
O desconhecido Witzel se elegeu na “onda Bolsonaro”, mas logo que assumiu buscou
alçar voo próprio, declarando publicamente que almejava a Presidência da República, o
que o colocou em rota de colisão com o antigo mentor.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 155

estabelecido na Constituição e reiterado na jurisprudência dominante, do


foro por prerrogativa de função, trazia para a finalização dos processos
criminais. Vamos ver aqui que, numa questão de ordem em um processo
específico contra uma determinada pessoa, também é possível ao guardião
da constituição alterá-la, produzindo efeitos erga omnes.
A ementa do acórdão da Q.O. na AP 937/RJ registra que se de-
cidiu, por maioria de 7 a 4, alterar o entendimento do tribunal acerca do
foro por prerrogativa de função. Até então, sustentado principalmente na
interpretação dos dispositivos normativos contidos no art. 102, I, “b” e “c”
da Constituição193, a corte entendia que o foro por prerrogativa de função,
popularmente conhecido como foro privilegiado, se aplicava – sem modu-
lações – às autoridades listadas nas alíneas “b” e “c”. Em decorrência disso,
processos contra autoridades sobre fatos ocorridos antes da investidura
no cargo ou mesmo que tratassem de fatos completamente alheios às
suas funções públicas, eram indistintamente abrangidos pela regra de
competência contida no citado artigo: o processo deveria correr sempre no
foro do STF.
O relator vincula, desde a primeira página do acórdão, o foro pri-
vilegiado à busca pela garantia de impunidade, e apresenta seu argumento
central na forma de um conflito entre regras e princípios:

É que a prática atual [baseada nas regras contidas no art. 102, I, “b”
e “c” da CF] não realiza adequadamente princípios constitucio-
nais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em
grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos
por crimes de naturezas diversas. [grifos meus].

193
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Consti-
tuição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] b) nas infrações penais
comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Na-
cional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações
penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Coman-
dantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os
membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de
missão diplomática de caráter permanente; [...]”
156 CARLOS MAGNO SPRICIGO

É curioso observar que, enquanto o ministro relator vê uma incom-


patibilidade genérica e unidirecional entre a regra do artigo 102 e os prin-
cípios da igualdade e república, a Ministra Cármen Lúcia, cujo voto acom-
panha o relator, fundamentará seu posicionamento numa percepção de que
por detrás da regra do artigo 102, I, “b” e “c”, existiria uma colisão entre os
princípios da igualdade e república, a ser resolvida pelo método da pondera-
ção, que teria a proporcionalidade como critério (p. 116-120). Votos iguais,
fundamentos diversos, conforme já alertara Roesler.
A ementa do acórdão registra a ratio decidendi dentro da gramática
neoconstitucionalista, que opõe princípios constitucionais a regras igual-
mente situadas na Carta Magna. Porém, tal como nos acórdãos anteceden-
tes, não há um desenvolvimento rigoroso acerca dos termos em que essa
oposição entre regras e princípios se daria no caso concreto em análise.
Peixoto, em sua tese de doutorado194 recente, analisou julgados do STF que
teriam aplicado a ponderação de princípios entre os anos de 2003 e 2014,
concluindo que a utilização prática do conceito evidencia uma grande in-
consistência com o modelo teórico de Alexy, em que pese apresente uma
considerável força retórica estratégica.
A falta de rigor quanto à fundamentação da decisão também aparece
quanto à questão da possível ocorrência de mutação constitucional no caso
por eles analisado. Apesar de ser uma questão certamente importantíssima, o
relator não se manifestou a respeito em seu voto trazido pronto, fazendo refe-
rência à hipótese apenas en passant, na introdução oral que antecipou a leitura
de seu voto. O termo “mutação” será citado 48 vezes no correr do acórdão,
com posicionamentos favoráveis (maioria) e desfavoráveis à sua ocorrência
no caso. De todo modo, o relator não se dignou a assinalar qualquer menção
a esse debate na redação da ementa do acórdão, uma lacuna que causa im-
pressão.
Da análise do acórdão, constata-se, também aqui, que é maior o nú-
mero de menções a argumentos de políticas do que a argumentos de prin-

194
PEIXOTO, F. H. A decisão judicial no Supremo Tribunal Federal do Brasil e a
aplicação da teoria dos princípios de Robert Alexy: a ponderação como estraté-
gia de argumentação jurídica. 2015. 276p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito,
Universidade de Brasília, Brasília, 2015. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bits-
tream/10482/18603/1/2015_FabianoHartmannPeixoto.pdf. Acesso em: 14 dez. 2022.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 157

cípios, para lembrar a distinção proposta por Dworkin. Longe de explicitar


devidamente as discrepâncias das regras com os princípios, os votos contêm
mais menções à discussão sobre a necessidade de readequação dos critérios
do foro por prerrogativa de função como um mecanismo para fortalecer o
combate à impunidade e à corrupção.195 Enquanto os termos “impunidade”
e “corrupção” aparecem respectivamente 125 e 90 vezes no acórdão, os
termos “ponderação”, “proporcionalidade” e “peso” aparecem apenas 18,
12 e 14 vezes, respectivamente. Na página 210 do acórdão, o ministro Fux
explicita a visão majoritária no colegiado sobre o ponto em discussão: “
Em suma, é latente o sentimento social que relaciona, com razão, a
interpretação ampliativa das hipóteses de cabimento da competência espe-
cial por prerrogativa de função à impunidade”.
O ministro Barroso encontra no caso a oportunidade de aplicar, mais
uma vez, sua tese do STF como o guardião schmittiano da Constituição,
apto a representar diretamente os interesses, valores e necessidades de uma
sociedade brasileira apreendida como um todo homogêneo, sem fissuras e
dissensos. Na página 14 ele afirma: “[...] porque penso que é do interesse do
Supremo e é o interesse do País e é o interesse da sociedade brasileira, uma
demanda da sociedade brasileira, rever e repensar esta matéria”.
Ao final do seu voto, Barroso conclui seu discurso reiterando sua
cosmovisão:

Estou convencido, Presidente, de que esta é a melhor interpretação


da Constituição. É a melhor para o Supremo Tribunal Federal. É a
melhor para a sociedade brasileira. É a posição que corresponde ao
anseio da sociedade brasileira. E sempre que é possível interpretar a
Constituição de modo a atender os anseios da sociedade, se isso for
compatível, e sobretudo se esta for a interpretação mais adequada
da Constituição, não há por que hesitar em escolher este caminho.
(p. 23).

195
São 22 menções explícitas, contidas nas páginas: 1, 11, 14, 30, 45, 47, 64, 66, 67, 74, 80,
83, 87, 128, 129, 134, 135, 138, 210, 211, 215 e 224.
158 CARLOS MAGNO SPRICIGO

O ministro Alexandre de Moraes, em seu voto-vista, posicionou-se


de maneira crítica às pretensões do relator. De início, apontou a inadequa-
ção da discussão por meio do expediente da questão de ordem, posto que
entendia que somente por emenda à Constituição se poderia distinguir entre
crimes relacionados ou não com a função pública. Salientou que, do modo
como a questão foi apresentada, tinha abrangência desmedida, devendo ser
circunscrita apenas aos políticos eleitos. Tratando do suposto sentimento
social sobre o foro por prerrogativa de função, Moraes apontou – não sem
ironia – oscilações nas manifestações desse sentimento, lembrando que,
apenas cinco anos antes, a opinião pública vibrava com os resultados da
AP-470 (que tramitou exclusivamente no STF), quando se clamava publica-
mente – e assim se fez – pelo processamento dos acusados não na primeira
instância, mas sim no STF (na ocasião o STF decidiu processar conjunta-
mente acusados sem foro privilegiado, sem “fatiamento” do processo. No
contexto atual, dominado pela operação “Lava Jato”, acusados sem foro
por prerrogativa de função ficaram sob a jurisdição da 13ª vara federal de
Curitiba, onde pontificava o então juiz Sérgio Moro).
As observações do ministro Alexandre de Moraes (p. 65-66) real-
mente chamam a nossa atenção. No contexto historicamente recente do
“mensalão”, a fixação do foro junto ao STF era defendida como garantia
contra a impunidade dos envolvidos com corrupção. No novo contexto
desta questão de ordem, que tinha como pano de fundo os feitos da “Lava
Jato” (o ex-presidente Lula fora preso em 7 de abril de 2018 e este processo
foi julgado entre 31/05/2017 e 03/05/2018), os defensores da restrição do
foro privilegiado por via judicial argumentam vivamente que a tramitação
de processos criminais no STF é uma das razões da impunidade e estímulo
à prática da corrupção. O que mudou em uma década para essa guinada
argumentativa? De um ponto de vista objetivo, considerando os eventos
históricos do período, em que se procedeu uma verdadeira caçada judi-
cial a políticos do campo da esquerda democrática e seus satélites políticos
quando no governo, o que mudou foi a condição jurídica da sua principal
liderança: até o ano de 2010 Luiz Inácio Lula da Silva tinha foro junto ao
STF; a partir de 2011 o ex-presidente já não ostentava mais essa condição.
O entendimento da discussão parece extrapolar em muito meras discussões
de caráter jurídico-constitucional, invadindo o campo do uso estratégico do
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 159

direito para fins políticos específicos, conhecido popularmente pela expres-


são em língua inglesa como lawfare.
Impressiona também a abordagem do problema realizada pelo polo
vencedor. Apesar das contrarrazões apresentadas pela minoria, não encon-
trou eco no resultado final do acórdão o alerta de que, longe de se con-
figurar como “privilégio”, o foro por prerrogativa de função, na verdade,
apresenta-se como mecanismo que visa o fortalecimento do exercício de
cargos públicos, que, sem ele, ficariam mais vulneráveis a acusações temerá-
rias visando à debilitação do exercício da função.
Durante os debates que ocuparam mais de quatrocentas páginas no
registro final do acórdão, as manifestações dos ministros são divergentes
acerca do alcance das alterações propostas pelo relator. Elas abrangeriam
todas as autoridades contidas no art. 102, I, “b” e “c”, ou seriam referentes
apenas às autoridades do tipo da ação concreta objeto da questão de ordem,
ou seja, deputados e senadores? Como se vê no registro final do acórdão,
em suas páginas derradeiras, o voto vencido do ministro Toffoli se refe-
re, especialmente, às demais autoridades contidas nos citados dispositivos.
Surpreendentemente, o relator não se preocupou em explicitar essa questão
fundamental, restando a redação da ementa indicando ampla abrangência
do que ali foi decidido, em especial no registro da tese defendida e aprovada
por Barroso:

(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes


cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções
desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a
publicação do despacho de intimação para apresentação de alega-
ções finais, a competência para processar e julgar ações penais não
será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou
deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”.

Vimos com Roesler que, na análise dos julgados de tribunais supe-


riores, é possível identificar o que foi decidido, mas é tarefa mais difícil
compreender os fundamentos da decisão. Na decisão que limitou o foro
por prerrogativa de função, restaram dúvidas até mesmo sobre o que foi de-
cidido. A redação do acórdão, em especial sua ementa, assinala com clareza
160 CARLOS MAGNO SPRICIGO

que se busca restringir o entendimento acerca do disposto no art. 102, I,


“b” e “c” da CRFB, para evitar incompatibilidades diante dos princípios da
igualdade e república. Dessa forma, a alteração do mecanismo de funciona-
mento do foro privilegiado alcançaria todas as autoridades listadas naquelas
alíneas, o que foi de fato objeto de discussão no acórdão estudado, com po-
sicionamentos pró e contra a medida. Em todo caso, apesar do que consta
registrado na ementa do acórdão, parece ter ficado convencionado alhures
que a decisão atinge apenas deputados federais e senadores, como se pode
ver no sítio de notícias do próprio STF: “Por maioria, Plenário decide que o
foro por prerrogativa de função no STF fica restrito a parlamentares fede-
rais nos casos de crimes comuns cometidos após diplomação e relacionados
ao cargo.”196.
Para além da dúvida acerca do alcance do que foi decidido, também
merece registro que o STF, aqui, não contribuiu para a integridade do di-
reito, que pressupõe uma atuação que incremente a coerência interna e a
consecução do ideal de segurança jurídica. O entendimento anterior podia
não satisfazer alguns, mas o quadro normativo era cristalino: autoridades
listadas claramente na Constituição tinham seus processos remetidos ao
STF e ali deveriam tramitar. Agora, com a nova tese assentada, inaugura-se
o debate, caso a caso, sobre quais são os crimes cometidos com “relação
às funções desempenhadas”. Mais uma pecinha colocada no já saturado
mecanismo de seletividade do sistema criminal.

196
STF conclui julgamento e restringe prerrogativa de foro a parlamentares federais. STF
Notícias, 3 maio 2018. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticia-
Detalhe.asp?idConteudo=377332&ori=1. Acesso em: 11 ago. 2022.
5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma espirituosa frase é atribuída ao político prussiano do século


XIX, Otto von Bismarck: “Leis são como salsichas, é melhor não saber
como elas são feitas”. O leitor que chegou até o final deste estudo pode ter
concluído que o mesmo sucede com as decisões judiciais! Todavia, o espí-
rito que move a pesquisa é o de que, se vivemos numa democracia, temos
o dever de conhecer como são feitas não apenas as leis, mas também as
decisões judiciais e, por que não, até mesmo as salsichas.
Busquei argumentar nas páginas antecedentes que a história institu-
cional recente do Brasil evoluiu de uma hipertrofia executiva, durante a dita-
dura militar, para uma crescente hipertrofia judicial, cujo apogeu se encon-
tra nos anos 2015-2018. Sustentei, também, que um quadro de hipertrofia
judicial não se constrói apenas com alterações normativas importantes. Elas
são necessárias, mas não são suficientes. No caso brasileiro, que observa-
mos aqui, foi fundamental uma reelaboração no saber dos juristas, que se
deu aos poucos durante a década de 1990 com a recepção em chave retórica
de conceitos pós-positivistas, em especial a reformulação no conceito de
norma jurídica. Penso que o gap entre a promulgação da Constituição, em
1988, e a afirmação doutrinária e jurisprudencial do neoconstitucionalismo
pátrio na virada do milênio é prova desse ponto.
Ocorre, porém, que não bastam alterações normativas (institucionais)
e mudanças no saber dos juristas para que um fenômeno essencialmente
político, ainda que mediado pelo direito, desenvolva-se. É imprescindível
162 CARLOS MAGNO SPRICIGO

que haja motivações, que são de natureza eminentemente políticas. No


caso brasileiro, descontadas as boas intenções aqui e ali, essas mudanças
nas normas e na doutrina foram efetivamente mobilizadas para esvaziar a
democracia justamente no momento histórico em que, pela primeira vez,
um grupo político identificado com políticas de redução das desigualdades
sociais foi guindado ao poder no contexto de uma Constituição de inspi-
ração social-democrata. O fato incontestável é que a recente húbris judicial
atuou no sentido de (1) construir diques de contenção institucional aptos a
arbitrar a implementação de políticas públicas por parte do governo federal,
(2) ajudar a desestabilizar a esquerda democrática no poder, (3) contribuir
para destituí-la do poder e, em seguida, (4) impedi-la de voltar ao poder pelo
voto popular em 2018. A crise pariu Bolsonaro e, com ele, um sabotador
institucional desde os anos 1980, o comando do Executivo federal voltou
às mãos dos militares.
O centro de gravidade deste estudo se encontra na utilização da aná-
lise retórica do discurso para tentar entender como se deu o processo de
construção jurídica do quadro de hipertrofia judicial. Argumentei que, es-
tabelecido o novo marco constitucional em 1988, o processo se desenrola
na reformulação doutrinária, e busquei mostrar como uma certa doutrina
(neo)constitucional promoveu uma inversão no par classificatório princí-
pio-regra. Essa inversão, realizada por meio de associações recíprocas que
desvalorizaram as regras e supervalorizaram os princípios, possibilitou a
construção de um discurso que autorizou o uso abrangente de princípios –
manuseados por juízes – como fundamento de decisões judiciais, em detri-
mento de regras aprovadas originariamente pelo legislador. O uso abusivo
do “principialismo ponderativo” acaba por permitir que se diga qualquer
coisa em nome do direito, o que produz uma profunda degradação da juri-
dicidade, convertida, ao final, em mero “moralismo constitucional”197.
Com a análise dos três julgados selecionados, tivemos a oportunida-
de de verificar a aplicação prática dessa nova “metodologia”. Os três acór-
dãos são casos em que regras foram derrotadas ou ressignificadas a partir
do seu confronto com princípios genéricos, como democracia, igualdade,
república. Nos três julgados estudados a jurisprudência firmada e reitera-

197
Expressões cunhadas pelo professor Juan António Garcia Amado em seus textos críticos.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 163

da por décadas foi superada sem maiores cerimônias. São também casos
em que, falando diretamente, o STF legislou. Legislou conscientemente,
afirmando em diversos momentos dos julgados, contra o que diz a própria
Constituição que deveria “guardar”, que possuía maior legitimidade – para
fazê-lo. Parte da reforma política anunciada previamente pelo ministro Bar-
roso em seus escritos foi empreendida nesses julgados, que são apenas uma
amostra de um período marcado pelo crescente protagonismo judicial no
concerto dos poderes da República.
A análise das decisões mostra que a gramática neoconstitucionalista
ali se faz presente. São sempre princípios que derrotam regras. Todavia,
apesar da sua grande extensão, não há nos acórdãos um esforço meticuloso
e aplicado no sentido de justificar a inversão do par classificatório princí-
pio-regra e a consequente elevação dos princípios à condição de maior/
melhor fundamento do direito. Como ensinou Perelman, esse trabalho já
havia sido feito, com grande eficácia, pela doutrina neoconstitucionalista,
um discurso quase-epidítico que ganhou corações e mentes no Brasil nas
últimas duas décadas.
Além disso, a leitura dos acórdãos evidencia duas coisas. Primeiro,
de acordo com as várias ocorrências de argumentos de ethos institucional
encontrados, que o tribunal busca afirmar reiteradamente uma condição de
guardião schmittiano da constituição, ou seja, ele seria o ente institucional
mais habilitado na República para representar a vontade popular e o “sen-
timento social” de uma sociedade concebida como um todo homogêneo.
Em segundo lugar, abundam nos julgados manifestações do que Dworkin
denomina “argumentos de política”, ao ponto de quase obnubilarem os
“argumentos de princípio”. Há, nos três julgados, uma clareza pragmática,
de que o que se decide ali vale muito pela missão a ser cumprida, de contribui-
ção do tribunal para a erradicação da corrupção e mitigação da impunidade, que seriam
marcas da política no Brasil. Fala-se abertamente em “empurrar a história”,
em “intervenção judicial”. Quando identificamos num tribunal constitucio-
nal elementos tão claros de busca de realização de um verdadeiro programa
político, ensina Waldron que a corte deixou de fazer apenas sua tarefa de
controle judicial, passando a atuar com veleidades198 de supremacia judicial.

198
Uso aqui o termo “veleidade”, que designa uma vontade imperfeita, por acreditar que o
Poder Judiciário, por sua própria configuração, não se encontra apetrechado para o exer-
164 CARLOS MAGNO SPRICIGO

Houve também a presença do deslocamento circunstancial de poder, na medida


em que, apesar de pontualmente se falar em “diálogos institucionais”, as de-
cisões do STF logicamente cerraram o leque de possibilidades de regulação le-
gislativa no atual marco constitucional no tocante àqueles temas específicos.
É o caso no período estudado, e por isso falamos em hipertrofia judicial.
O fato é que um movimento que nasceu inspirado por notáveis in-
tenções de dar efetividade à melhor constituição que o país já produziu por
meio da elaboração de uma “metodologia” que permitisse a afirmação dos
direitos fundamentais ali contidos, degenerou ao sabor dos acontecimen-
tos políticos e desbordou em mera ideologia a serviço do esvaziamento da
democracia. No final, o país assistiu atônito um tribunal constitucional de
inspiração predominantemente neoconstitucionalista agir abertamente para
influenciar o quadro político, atropelando cláusulas pétreas para, por meio
da inabilitação eleitoral, prisão e silenciamento da maior liderança política
brasileira, entregar o país à extrema direita que, depois, passou quatro anos
fustigando o próprio tribunal. Quando comparamos as boas intenções ini-
ciais do movimento com o que foi efetivamente entregue ao cabo de duas
décadas, inevitável lembrar do desabafo de Macbeth ao final da peça de
Shakespeare, quando percebeu que os vaticínios das bruxas do pântano o
haviam induzido a um erro letal:

Que ninguém mais acredite nestes demônios


Que praticam malabarismos com as palavras,
Brincam conosco à base de frases ambíguas,
sussurram doces promessas em nossos ouvidos
para depois não cumpri-las, azedando nossas esperanças.199

Para encerrar, quero rememorar aqui uma lição do saudoso professor


Luis Alberto Warat, em uma de suas aulas no antigo CPGD-UFSC, onde
tive a satisfação de ser seu aluno. Dizia ele, certa feita, algo mais ou menos

cício de uma supremacia judicial duradoura e consistente, que se aproximasse do que já


se buscou denominar, retoricamente, de “ditadura do Judiciário”.
199
SHAKESPEARE, W. The complete works of William Shakespeare. Oxford: Word-
sworth Editions, 2007, p. 883.
A RETÓRICA DA HIPERTROFIA JUDICIAL – neoconstitucionalismo e o esvaziamento da democracia no Brasil 165

assim acerca da fragilidade intrínseca das aspirações humanas: “No mundo,


tudo é ilusão! Porém existem ilusões boas, e ilusões ruins. A ditadura é uma
ilusão ruim, enquanto a democracia é uma ilusão boa.”. Pois bem, que-
ro concluir afirmando que, ilusão por ilusão, é péssima a ilusão embutida
no ideário neoconstitucionalista, a de entregar a realização de um projeto
de sociedade mais justa por meio do direito nas mãos de uma aristocracia
togada. Melhor apostar na ilusão inerente ao projeto democrático em sua
radicalidade, que pressupõe o envolvimento de toda a sociedade plural – ju-
ristas mais modestos são bem-vindos e necessários – na constante reinven-
ção de vidas boas sustentadas na institucionalização permanente de (novos)
direitos.
Como o professor Warat se autoproclamava o mais baiano dos ar-
gentinos, tomo aqui a liberdade de buscar entender seu sentido do que é ilu-
são na fronteira das significações entre o português e o castelhano. Em por-
tuguês, a palavra “ilusão” carrega apenas um sentido negativo, de se estar
deixando enganar. Já no idioma de Cervantes, quando digo “estoy ilusionado”
também estou querendo dizer que estou animado, que estou esperançoso.
A tarefa dos juristas para quando o pesadelo atual acabar é voltar a construir
uma teoria do direito que torne a depositar suas ilusiones/esperanças nas
potencialidades infinitas da democracia.
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NO SPRICIGO
O
Rogerio Dultra doscentro de gravidade
Santos (Prefácio)
na utilização da an

S
ão muitas aspara
formas de entende
tentar se
ler o trabalho do profes-
de construção jurídica
sor Carlosjudicial.
Magno Argumentei
Spricigo q
sobre a hipertrofia judicial
marco constitucional e
e a ameaça ao procedimen-

RICA DA
senrola na reformulaç
CARLOS MAGNO SPRICIGO talismo democrático legado
mostrar como uma cer
pela Constituição de 1988 ao
nosso país. cional promoveu
interes-uma

É
A mais
doutor em direito pelo
sante delastório princípio-regra.
dessa E

IA JUDICIAL
é extrair
Programa de Pós-Gradua-
experiência meio
dois de associações
rumos fun- re
ção em Direito (PPGD) da damentais: ram
saberaso regras
que fazere superv
Universidade Federal de Santa e o que nãopossibilitou a construç
fazer do direito
Catarina (UFSC). Realizou es-
amento da democracia no Brasil
tágio pós-doutoral no Progra-
torizou
em sua relação como auso abrangen
demo-
seados por juízes
cracia. Os ingredientes para– com
ma de Pós-Graduação em Di- essa viagemjudiciais,
passam em pelodetriment
en-
reito (PPGD) da Universidade tendimento ginariamente
do processo pelo de leg
de Brasília (UnB). É professor transformação do Judiciário
“principialismo ponder
da Faculdade de Direito e do – e, em especial, do Supremo
que se diga qualquer co
Programa de Pós-Graduação Tribunal Federal (STF) uma
que produz – emprofu
Justiça Administrativa da Uni- tradutor autoimposto da von- ao f
cidade, convertida,
versidade Federal Fluminense tade popular, numa amplia-
constitucional”.
(UFF). É líder do Grupo de Es- ção claramente excessiva e
tudos, Debates e Pesquisa “Ar- excepcional de seus poderes.
Esse é, precisamente, o desa-
gumentos para a Democracia”
fio que o autor se atribui ao
(GARDEM-UFF).
escrutinar a história política
recente do Brasil e o envolvi-
mento direto do STF como um
tipo schmittiano de “Guar-
dião da Constituição”, alicer-
çado na retórica moralista do
neoconstitucionalismo.
O
centro de gravidade deste estudo se encontra
na utilização da análise retórica do discurso
para tentar entender como se deu o processo
de construção jurídica do quadro de hipertrofia
judicial. Argumentei que, estabelecido o novo
marco constitucional em 1988, o processo se de-
senrola na reformulação doutrinária, e busquei
mostrar como uma certa doutrina (neo)constitu-
cional promoveu uma inversão no par classifica-
tório princípio-regra. Essa inversão, realizada por
meio de associações recíprocas que desvaloriza-
ram as regras e supervalorizaram os princípios,
possibilitou a construção de um discurso que au-
torizou o uso abrangente de princípios – manu-
seados por juízes – como fundamento de decisões
judiciais, em detrimento de regras aprovadas ori-
ginariamente pelo legislador. O uso abusivo do
“principialismo ponderativo” acaba por permitir
que se diga qualquer coisa em nome do Direito, o
que produz uma profunda degradação da juridi-
cidade, convertida, ao final, em mero “moralismo
constitucional”.

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