Iconicidade e LS

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D.E.L.T.A., Vol. LI, N° 1, 1995 (161 - 168} QUESTOES E PROBLEMAS ICONICIDADE E MUDANCA EM LINGUAS DE SINAIS(1) Maria Cecilia MOLLICA (UFR) 0. Principio da heterogeneidade e universais lingiiisticos A incorporagao das linguas de sinais & lingiistica enquanto objeto de estudo modificou total ou parcialmente alguns principios lingitisticos universais. Por exemplo, o universal segundo o qual todas as linguas sio. orais teve que ser corrigido, uma vez que ha linguas de modalidade oral- auditiva e de modalidade visual-gestual. Também ¢ 0 caso do principio da dupla articulagio da linguagem, que fora proposto. levando-se em conta unicamente a existéncia de linguas orais, € nao Se aplica,como tal. aos sistemas. gestuais-visuais: os pardmetros ' ponto de articulagao’, ‘configuraco de mao e ‘movimento’ (c£Stokoe, 1960) das linguas de sinais nao encontram paralelo perfeito com:as linguas orais-auditivas, sob esse aspecto. No entanto, € possivel falar-se. em . subsistemas semantico-pragmatico, .. morfo-sintatico. fonético-fonolégico como constitutivos dos sistemas lingiisticos «de sinais, respeitadas as diferencas proprias a cada tipo de sistema, ressaltando-se em especial o nivel fonético-fonoldgico (cf. Bellugi & Fischer, 1972; Brito, 1990; Schlesinger, 1970). Sabe-se que .a. revisio dos universais é tarefa permanente. de investigagdo para a: lingbistica (of Contie, 1981;. Greenberg, . 1961: Hockett, 1961). Ela se .constréi a medida que se.acumulam novos saberes.e/ou corrigem-se principios Propostos inadequadamente, ou por causa de equivocos tedricos havidos ao longo da historia da ciéncia, ou em fungdo de auséncia de descobertas cruciais que s&o responsaveis por modificagSes substantivas na formulagio de leis mais gerais,.de maior amplitude ¢ aplicaco portanto. Mas ha universais que nio sofreram qualquer. abalo quando da assimilagdo das linguas de sinais pela lingwistica; a0. contrario, foram 162 D.B.L- Vol. 11, N°? reafirmados. Aplica-se ai a questéo do componente lingtiistico inato, que preconiza uma pré-disposigao genética a faculdade da linguagem 2 todos. os individuos, surdos ou ouvintes. Com efeito, 0 processo de aquisigao de linguagern, seja de um sistema de sinais, seja de um sistema de signos orais é tanto involuntério quanto inexoravel (cf. Chomsky, 1978). Igualmente é 0 caso do principio do dinamismo das linguas. E fato inconteste que todas as linguas so’ heterogéneas, dinamicas, sujeitas a variagSes e a mudangas. Aparentemente cadtica, a heterogeneidade das linguas tem’ motivagSes ‘de naturéza intra extra-sistémicas e possui sistematicidade, vale’ dizer, organicidade imanente’ (cf: Weinreict & Herzog & Labov; 1968). Os estudos sociolingiiisticos, ‘em linguas orais” em ‘ especial, voltados para o binémio variagdo/mudanga, vém explicando os diferentes’ padrdes de uso; ‘acenando-lhes, ’“senio’ “para‘“causas explicativas, ao menos’ para varidveis que os‘ controlam.’ Sabe-se que existem’ motivagSes de: natureza’ sécio-estilistica: € estrutural que se correlacionam ao emprego’ de construgdes lingttisticas’ alternantes: as variantes.Desta feita,toma-se possivel apontar‘maiores' ou’ menores chances de emprego a formas; que °mantém® entre: si’ equivaléncia seméntica, evidenciando-lhes ‘portanto’ a no aleatoriedade (cf, Mollica, 1992:a). 1. Mudanga nas linguas de sinais Os fendmenos varidveis oferecem interesse a0 pesquisador na medida em que possam ser investigados preditivamente. Vale’ dizer, a perspectiva variacionista de analise pretende: ‘descobrir 0 porqué, 0 como ¢ © caminko que formas variantes’ percorrem, nas linguas, de modo a responder: a‘perguntas do seguinte tipo: (a) de‘que maneira e através de quem’as inovagdes se introduzem:e se instalam nos sistemas e passam a configurar quadro variével com outras formas? (b) que fatores so responsaveis pela contextualizacdo da variacao? (c) como se verifica a transmissao da variagao? (d) as variagdes sao estaveis ou acham-se em processo de mudanga? (e) se ha mudanga, trata-se de retragao da variante inovadora ou' de avango, com vistas ao predominio de uma unica forma em ambos os casos? MOLLICA 163 As linguas.orais tém servido de matéria prima ao lingista para a verificagao dessas questées. As linguas de sinais do. mesmo modo podem e devem tornar-se manancial para esse tipo de investigagao, pois, enquanto sistemas lingilisticos naturais, parecem estar .regulados por principios similares aos encontrados nas linguas orais. A guisa: de. comprovacao”, . examinem-se alguns. exemplos de fendmenos de mudanga em LIBRAS (Lingua de Sinais no Brasil)..As figuras em ta, 1b e 1c (cf. Anexo exemplificagio) so alternativas de sinais para ‘feriado' no atual est4gio da lingua. A forma em la, no entanto, tem seu uso restrito aos surdos de 40 anos em diante (segundo 4 falantes nativos), "perdendo" para as formas representadas em 1b e lc. Os sinais em 1b.e 1c hoje em dia sio largamente adotados pelas comunidades surdas usuarias da LIBRAS, permanecendo ambas como opgbes estruturais em variagdo, sendo que J¢ parece ser preferida pelos surdos jovens (20 ¢.30 anos). Situacaio semelhante est acontecendo com os sinais existentes para."branco’, observados em 2a, 2b ¢ 2c: os surdos idosos preferem a forma 2a, ¢ as variantes 2b € 2c predominam nas demais faixas etarias dos individuos que fazem uso da LIBRAS, circunscrevendo assim quadro. variacional novo no sistema, com a forma 2a sendo paulatinamente extinta, Provavelmente. Pode-se inferir. indiretamente, ainda que através da observacio intuitiva de nativos da lingua, que esses casos constituem exeniplos de mudanga em curso em LIBRAS. No entanto, permanece uma questio crucial quanto ao fendmeno de mudanga lingiiistica: as variantes em anilise so usos proprios a diferentes faixas etarias ¢, nesse caso, podem constituir variacao geracional ou mudanga sistémica em curso? ‘Observem-se porém’os casos em 3a ¢ 3b. O sinal para ‘preto' em 3a caiu completamente em desuso, num momento passado’ que ainda nao se pode precisar, sendo substituido por 3b no atual estagio da LIBRAS (com significado restrito da cor preta para pessoas), havendo um outro sinal para ‘preto' (com significado da cor preta para coisas). Eis ai um exemplo tipico de processo dé mudanga que de fato operou na lingua: ‘as Variantes deixaram de ocorrer situltaneamente, havendo a predominancia ‘de ima sobre'a outra € com diferencas semianticas entre 164 D.EL.T.A, Vol. 11, N° 1 Esses exemplos, mesmo que. insuficientes numericamente, sao evidéncias inquestionaveis’ de que 0° bindmio variaglo/mudanga Presentifica-se nos sistemas: de sinais tal como ‘tos sistemas de signos orais. Ha, todavia, que se’ pesquisar muito, por’meio de’ descricées extensivas e'sistematicas, para qué sé_confirmem’e/ou' se desconfirmem 0s principios até ent&o postulados’ acerca da dinamicidade das linguas naturais, quer orais-auditivas quer gestuais-visuais. Cabe lembrar que esse trabalho deve’ ser feito’ por nativos ‘das’ diferentes linguas,’ assim sendo, os surdos é que‘devem desenvolvé-lo no que’ se refere as linguas de sinais. 2. O ciclo vital dos sinais Torna-se clara eritdo a'relevancia de qualquer empreendimento de pesquisa em lingiistica’ preocupado’ com averiguaco de aspectos relacionados "a" variagao/mudanga.". Em fungao “dos problemas mencionados e’ das’ discussdes ’ envolvidas, outros pontos também merecem ‘ser igualmente ‘salientados. Tomem-se os exemplos (em anexo),, Tepresentagdes possiveis em LIBRAS para a cor ‘azul’. Quando introduzide originariamente, émi‘um primeiro estagio, o significado de ‘azul’ era representado por.4a e 4b. No caso de 4a, 0 gesto apontamento para 0 olho em movimento. ciclico € bastante icSnico, pois se relaciona com a visio, chamando-lhe’ atengao | para algo saliente. No’ caso de 4b; a representacdo se processa através. da estratégia de soletragio, mecanismo produtivo responsavel pela entrada de itens novos na Tingua através de empréstimos | (cf. Brito, 1991), nao sendo ainda um sina! no sistema, Tudo leva a crer que essas variantes 4a e 4b foram substimuidas pela representagao 4c, que constitui a forma atual do sinal em LIBRAS para o significado referido. Evidencia-se, nessa hipdtese, nesse caso ent&o, processo inequivoco de mudanga (cf. Ryle & Woll, 1985),. que nos leva a ‘considerar os seguintes pontos: (a) duas variantes coexistiam no sistema num primeiro momento, sendo substituidas por outra, num seguiido momento da lingua: (b) a variante atual deriva-se da variante introduzida na lingua por soletragao; (c) de 4b € 4c pode-se depreender © principio da economia, universal a todas as linguas, que explico mais adiante, MOLLICA 165, Um ultimo ponto a considerar a partir dos exemplos 4a, 4b e 4c é © grau de vulnerabilidade dos ‘sinais quanto a-possiveis mudangas que os sinais possam vir a sofrer. Assumo aqui a hipétese de que as categorias gramaticais’sio atingidas pelos cambios em graus-diferentes.: Tal fato tem ‘sido atestado em: estudos sobre mudanga numa -perspectiva da difusdo lexical e nao me parece absurdo ‘aplicar-se de alguma maneira 4s linguas de sinais. Postulo ento que os nomes prépiios'sao praticamente mantidos incéliimes no que concerne a mudariga, se comparados com outras categorias, ‘o“que ‘se ‘tem verificado consistentemente em linguas orais (cf. Mollica-et alli, 1992 b-e1994). Para tanto, ha evidentemente algumas razées_lingilistico- estruturais além das motivagdes nao lingtisticas. O processo de nomear pessoas em particular em’ linguas de sinais implica a observagio ea impressio tanto objetiva quanto subjetiva sobre o interlocutor por parte de” um’ ou “mais “de “uni -surdo. Assim, detalhes’ julgados mais caracterizadores de uma pessoa filtram-se, via de regra, através ‘de'um sinal com alto grail de iconicidade, que’ sé ‘fixa € se mantém inalterado, ‘postetiorménte, ‘por questdes dé funcionalidade no sistema: Exatamente isto acontece com os nomes proprios nos sistemas orais. O processo de noméar ‘um individuo tem ‘motivagdes varias, ainda niio completamente descritas: unia vez criado; o item lexical _permanece inalterado, nao'sendo atingido por processos “de mudanca fonético- fonolégicd ou’ de’ outra Ordem, como 6 s&o os demais-itens' lexicais potencialmente afetados por inovagdes e/ou por processos de ‘cambios: Essas reflexGes conduzem ‘a supor algumas hipoteses ‘acerca'do processo de introdiigao, implementacao ‘€ mudanca havidas:a0 longo do tempo nas linguas de sinais. E possivel ént&o assumir ‘qué ‘0s 'Sinais Sdo altamente icdnicos no seu nascedouro, seja através da associacao com o referente ao qual esta remetido seu significado, seja através da lingua oral que serve como ancora para a soletracao. Assim, em decorréncia dos principios comunicativo-funcionais (cf. Givon, 1979) a que os usos das linguas esto submetidos, ‘os sinais evoluiriam no sentido de. diminuir o tempo de processamento. Assim, perderiam. entio-em tamanho no que .conceme a espacialidade e/ou tempo. de. processamento. (nivel .do significante).e, em alguns . casos, 166 DELTA, Vol. 11,N°d vinculam, Meo conseqientemente a ser mais arbitrarios. ‘As hipoteses -aqui..aventadas tocam em: .questOes..universais. da Ciéncia da Linguagem, dentre as quais uma:diz respeito. ao principio da arbitrariedade. das. unidades lingiisticas.. Desta. forma, comprova-se que os sinais sao tao arbitrarios quanto os signos orais,. do: mesmo modo. que estudos mais. recentes. sobre linguas orais vém- atestando a hipétese de que.as estruturas gramaticais tém motivagGes icdnicas, portanto nao so ‘to arbitrarios quanto pareciam ser quando concebidos inicialmente.(cf. Given, op. cit. & Felipe, 1991). » Depreendem-se portanto duas questées de alta. relevincia para.o entendimento: de linguas em. geral. Uma € concernente. a relativizacio dos. principios. tais que. arbitrariedade..¢ iconicidade signica_ com conseqiiéncias importantes para certos universais lingiiisticos até entdo postulados. Ja se. pode ousar afirmar que ambas as modalidades gestual- visual.e. oral-auditiva de linguas comportam.critérios. mistos. (icénico~ arbitrarios) no. processo de. constituicao, fixagio ¢ smudanca, de suas unidades (cf, Brito, 1991). Qutra quest&o vincula-se aos movimentos ciclicos dos signos ¢ dos sinais que, ao que tudo indica, processam-se. similarmente ao ciclo vital da. natureza: . nascimento . (introdugdo na . lingua), sobrevida (Gmplementago) ¢ morte. (desaparecimento). Os ciclos sdéo propulsio- nados, pela atuacao, de. mecanismos. funcionais gerais, que regulam 0 comportamento de um complexo de variaveis de natureza lexical estoutural, pragmatica © extra-sistémica, Sendo, assim, uma rede de fatores . gramaticais, .. interativo-funcionais, __sociolinguisticas e psicolingitisticas. sao. coadjuvantes no. curso. histérico-temporal das unidades linguisticas, que ganham, perdem ¢ se renovam continuamente. (Recebido em 01/07/94 ¢ Aceito em 05/12/94 ) NOTAS T Bete texto constitui versio revista ¢ reduzida de palestra apresentada no Congreso Internacional sobre’ Bilingwismo e Educagéo para Surdos, organizado sob a presidéncia da Professora Doutora Lucinda Ferreira-Brito ¢ MOLLICA 167 Tealizado em novembro de'1993 sob 0s auspicios da UFRI € outros érgiios de Patrocinio. Ele foi apresentado ¢ discutido no IX Encontro Nacional da ANPOLL, em junho,-cm Caxambu, como uma‘das atividades previstas pelo GT Linguagem ¢ Surdez. 2 Agradeco 2 Myrna Salormo, pelas informacées valiosas no que concemé:2os dados sobre os quais me bascei para fazer as reflexdes aqui contidas.-Sem essa ajuda ¢ a dos surdos consultados, o presente trabalho torna-se-ia invidvel e/ou inwalidado, Agradego também a Tadeu Pereira de Sovza pela elaboragao dos descnihos, representagoes dos sinais, que servem de apoio ilustrativo ao texto Com vistas & facilitagao e & compreensio das discussdes aqui apresentadas, Ariexo: exemplificagdo REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BELLUGI, U & S. FISCHER (1972). A cémparision of sign language and spoken lahiguage. Cognition, 1, 173200. BRITO, L. F. (1984) Similarities & diferences in two Brazilian sign language. Sign Language Studies 42 45-57. —— (1990) Uma abordagem fonolégica dos'sinais da I'SCB. 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