A Outra Perna Do Saci

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A outra perna do Saci

Às goladas, o menino chupava a água gelada que descia pelo riacho. Largou-se no chão,

satisfeito, enquanto completava sua garrafa em antecipação ao assalto seguinte, que

terminaria de garantir o sustento da próxima estação.

Descansando as costas na relva enquanto fumava seu cachimbo e punha de lado o gorro

branco, divertindo-se ao controlar o ar e criar formas com a fumaça, olhou para o céu e

esticou as pernas finas e ligeiras, grato pela aparência que lhe permitia o êxito das

tarefas.

Quando a noite caiu, Saci caminhou por aquele que era seu refúgio quando passavam

por ali os feitores dos grandes comerciantes e lhe perguntavam sobre o Ladrão, sem

ciência de que ele próprio era o autor dos furtos de que tanto se falava.

À diferença dos outros membros de sua tribo, ele aplicava suas habilidades de controle

dos ventos para furtar ervas em grandes plantações que lhe permitiam manufaturar um

produto que ele próprio inventara.

Era o mesmo que agora preenchia seu cachimbo, outra de suas criações, e que

começava a lhe trazer lucro - afinal, não havia entre as tribos mais alguém que

produzisse fumo além do Saci.

Disto ele muito se orgulhava: desde que sua mãe morreu, que o criava sozinha, e ele viu

na vida de roubo a chance de se obter alimento e, assim, foi sobrevivendo apenas

contando com a própria furtividade e esperteza.4

O êxito de seu negócio, no entanto, em nada aplacava a solidão que lhe arrebatava em

golpes brutos a cada noite. Era justamente ao repousar a cabeça que a memória de sua

amada mãe crescia em seu peito, causando-lhe uma sensação incômoda, afobada, como

um princípio de ausência de ar, o qual, somado às lembranças que guardava dela,

transformavam a carência em um monstro que vinha a cada pôr do sol repousar com ele.

Sua tristeza não era apenas devida à saudade de sua mae. Não tê-la a seu lado para

compartilhar caminhadas entre as frondosas árvores além dos limites da tribo ou para
apenas deitar sobre a relva à noite e contemplar os pontos de luz no céu certamente lhe

trazia dor; porém tencionava, agora que atingira a idade de responsabilidade, dedicar-se

ao trabalho de produção e venda de fumo para, com as moedas conquistadas, adquirir

um pequeno trecho de terra à beira do lago que a própria mãe elegera. Ali, construiriam

seu lar e ele finalmente poderia confiar que ela estaria segura, aquecida e feliz quando

ele precisasse sair para prover o sustento da pequena família.1

Aquele monstro que o visitava à noite mais uma vez achegou-se ao menino e o embalou,

cravando suas garras em seu peito e fazendo brotar em seus olhos lágrimas que

escorriam pela face escura. Cada gota que caía era dedicada à única amiga verdadeira

que jamais teve. Era por ela que prosseguia em seus trabalhos: sabia que seria esse o

desejo de seu coração.2

Com um sorriso terno, suspirou profundamente e repassou mentalmente o plano da

noite.

O projeto, desta vez, era duplamente aventuroso: ele retornaria à residência em que por

pouco não fora capturado na noite anterior. E não o fazia por nenhum motivo que não o

desafio. Ali era onde havia a mais farta plantação de tabaco da tribo e, sendo essa a

matéria-prima do produto que comercializava, dispôs-se a retornar e tomar para si mais

do que já arranjara.1

Parceiro das sombras, Saci tentava fundir-se a elas encostado em pilares, recuos em

paredes ou sob carroções de palha. Costumava aplicar suas habilidades para alterar o

curso dos ventos e não ser farejado por animais rastreadores.

Por sorte - ou quem sabe por providência do espírito do Ar -, aquela noite parecia

particularmente serena.

Saci correu até o fundo da grande propriedade. Os dentes se mostraram em um sorriso

quando avistou os pés de planta de tabaco prontos para serem colhidos.

Na ponta dos pés, preparou a sacola e, sentindo na espinha o calafrio de excitação que

sempre lhe acompanhava nos serviços da noite, concentrou-se no ar que o rodeava e


criou uma corrente em sentido oposto ao que se encontrava para despistar quem quer

que lhe pudesse frustrar a missão.

Foi em um instante que Saci escutou uma sequência de notas musicais se fazer ouvir na

noite e soube, em um lampejo de compreensão, que fora pego em uma armadilha.

Seus feitores haviam plantado uma sequência de bambus furados que apitariam ao

serem traspassados por rajadas de vento, servindo como alarme da invasão.

Antes que pudesse fugir, o rapaz viu-se cercado por um grupo de cinco homens e,

surpreendido pela emboscada, não encontrou para onde escapar.4

O mais forte deles ergueu Saci do chão em uma espiral de vento e, após mantê-lo no ar

apenas por divertimento, soltou-o no chão de modo que caísse sobre a perna direita,

cujo osso se partiu todos ouviram o som.

Acreditando terem lhe dado suficiente lição e castigo, os feitores afastaram-se do

menino e abandonaram-no ferido no chão. Fizeram entre si uma aposta se o ladrãozinho

retornaria ou não.

Recusando-se a clamar socorro, conseguiu, com dor e vigor, mover-se propriedade afora

de volta para sua mata, usando um redemoinho de vento ao redor das pernas para se

locomover.

Aquela noite, Saci fumou o último maço enquanto, com pesar pela despedida da carreira

que não haveria de prosseguir, empunhava a serra que roubara de um silo e com ela

serrava a própria perna, que se consumia com os vermes que vinham da terra chafurdar

em suas feridas.

O gorro branco tornou-se rubro pelo sangue que derramava, mas, além do pesar

escarlate das próprias entranhas, o que mais sangrava era seu coração.
O Flagelo dos Pés Virados

Ele jamais descobriria a verdade: essa ficou restrita à mulher que o pariu,
a qual nunca poderia chamar de mãe.1

Motivos a ela não faltavam, se é que existe alguma forma de advogar sua
causa. Uma vida de abusos e agressões, em que cada entardecer se
apresentava como um anúncio do que estava por vir: os grandes
construtores de sua tribo de regressavam de um dia de intensa fadiga à
espera de certeiros banquetes seguidos de estupros das mulheres que os
haviam preparado.

Ela sabia que era a escolha preferida dos mais indecentes, que se
saboreavam em sua deficiência e a tratavam como a um animal sem
humanidade. Ter nascido com os dois pés virados para trás era a razão de
seus maiores sofrimentos.
A cada noite, recebia uma nova coleção de hematomas que pulsavam e
lhe roubavam o sono, o que afinal era bom: abandonar a vigília parecia
conivência para algum crime maior, se é que haveria algo pior que a
defluência quase diária de abusos e violações de suas intimidades.6

Não havia fuga, pensava ela: para onde poderia ir?1

Não demorou a chegar o dia em que o ventre começou a crescer. Foi


quando soube que não poderia continuar. Na mesma noite em que um
grande grupo de construtores retornaria e certamente estariam sob efeito
das misteriosas substâncias que os deixavam fora de suas plenas
capacidades, observou que os sangramentos haviam cessado.
Recolhendo o que podia, a Mulher partiu para a mata e ali se escondeu
até o parto.

Tantas luas depois, vivendo de ervas e frutos ao fundo de uma pequena


gruta que ela mesma construiu, deu à luz a criança que jurou proteger.
Via nela a possibilidade de renovar a própria vida; via no ser que crescia
em si uma esperança que jamais pôde ter. No entanto, ele não foi querido
ao nascer. Talvez pela dor que causou à genitora, talvez pelos incomuns
espessos cabelos cor de fogo, ou talvez porque carregasse sua própria
maldição: os dois pés também eram virados para trás.2

A mãe sentiu repulsa. Sentiu-se incapaz. Incapaz de ser plena no que se


tentasse realizar. Falida. A gestação, ao contrário do que imaginara, não
se provou uma salvação, mas sim a declaração final de que a vida não
valia a pena.2

Abandonando a criança disforme sobre uma cama de folhas de palmeira


no chão da mata e alçando preces a Mãe Terra para que cuidasse de seu
filho, ela partiu para o lago e nele adentrou até não sentir mais os pés
tocarem o fundo. Ali perto, o Curupira chorou quando sua única conexão
com o mundo deu o último respiro.2
O lamento atraiu animais e espíritos da mata, que dele tomaram conta
dali em diante. Por sua vez, ele devolveu o amor que recebera dedicando
a vida a cuidar daqueles que o tomaram por família. Sua devoção à
floresta o tornou digno de receber da Mãe Terra o domínio excepcional
sobre a terra, na qual deixava suas pegadas inversas que confundiam
caçadores e outros malfeitores.2

No entanto, ele guardava um segredo. Uma parte de seu coração que


jamais se recuperaria mantinha viva a dor que ele não era capaz de
dominar. Por que?, ele se perguntava. Havia sido rejeitado por quem mais
deveria amá-lo. Essa era a causa de sua maior dor, que mesmo o amor
que recebia dos seres da mata que com ele habitavam não era capaz de
aplacar. A rejeição ardia como uma ferida incapaz de cicatrizar.3

Curupira dividia em seu coração a dor do abandono e a curiosidade


mórbida de retornar às raízes e descobrir sua verdadeira história. Haveria
algum culpado? Haveria de quem se vingar?

Enquanto luz e trevas conviviam em seu peito lutando por extravasar-se,


passava seus dias mascarando dos demais a dor que já se tornava
insuportável.

Para ele, a felicidade era um tesouro que jamais encontraria.

A Mulher do Padre

Não era a primeira vez que Ana se transferia para outro povoado.
Já não contava mais as vezes em que fora forçada a abandonar
tudo e recomeçar em um lugar onde ninguém a conhecesse. Sem
vínculos ou raízes, nem mesmo havia quem culpar por seu
destino.

Compreensiva, a mulher desculpava-se pelos próprios desejos.


Quem poderia culpá-la por ter aflorado em si aquele desejo que
nunca cessava? A pele de outro, o toque de outra; tudo fazia com
que se sentisse viva. Aquilo crescia nela de forma deliciosa e
incontrolável.

Em seu íntimo, porém, havia um princípio que ela seguia como a


uma religião: Ana provava, a cada conquista, que podia inverter
os papéis e assumir o controle das mentes e dos corpos daqueles
que se nomeiam seus superiores.

Tendo tido muito tempo sozinha para dominar suas habilidades


sobre o fogo.

Contava com sua sensualidade para conseguir favores dos mais


diversos homens, fossem eles simplórios operários que lhe
dariam parte de sua munição ou grandes donos de terra de quem,
na calada da noite, fugiria levando os bens furtados que venderia
na manhã seguinte.3

Desta vez, porém, Ana havia se excedido: tentou, com a oferta de


seus serviços, comprar o perdão por seus atos criminosos do
padre do vilarejo. Ofendido, ele a amaldiçoou e jurou que em sete
dias ela receberia o castigo pelo pensamento depravado:
"tomarás para ti o mal que fizeres ao próximo".

A verdade é que a ira do padre era pq ele igualmente a desejava


e, incapaz de suportar a existência daquela que ameaçava roubar
sua virtude, condenou seu destino.4

Passados os sete dias, Ana confrontou sua sorte ao sair pela


madrugada em busca de alimento, jurando ser aquele seu último
crime. Estava cansada de fugir e, mais ainda, sentia-se pouco a
pouco esmagada pela solidão da vida que levava. Encontrou-se
em uma propriedade repleta de animais de carga e, imaginando
que conseguiria boas moedas no mercado pela manhã, com as
quais poderia iniciar sua nova vida, escolheu uma reluzente mula
cuja pelagem negra refletia os raios prateados da lua. A fêmea
estava isolada do rebanho, assim como ela própria e sentiu um
prazer inumano percorrer seu corpo ao tocá-la.3

Decidiu caminhar com a mula em um campo esperando o sol


aparecer, e manteve acesa em sua mão esquerda uma chama
que iluminasse o caminho.

Aproveitando um momento de distração, a mula capturada tentou


escapar e, ágil, conseguiu se desprender das cordas. O animal
empenhou-se em um trote ligeiro, mas se deteve ao chegar à
beira de um penhasco.

Foi o bastante para que fosse alcançada e, ao sentir o toque de


sua captora, coiceou o ar para se livrar das mãos devassas que a
segurava. Foi em um momento de descuido que, assustada com a
repentina ira, Ana perdeu o controle sobre a chama que mantinha
acesa e atingiu a crina da mula, queimando a pele e incendiando
os brilhantes pelos. Também a corda que carregava se incendiou
e, aos urros e coices, a mula sentiu no pescoço as chamas
consumirem sua carne dolorosamente.

Com o coração inflamado ao contemplar a cabeça da mula em


chamas e incapaz de apagá-las, Ana implorou pela primeira vez
por intervenção divina.
Ao ver o corpo do animal desabar sem vida em sua frente, a
cabeça carbonizada já irreconhecível,

Ela reconheceu que a profecia pelo padre estava para se cumprir


e, conformada viu que era merecedora de seu destino.

Escolhendo tomar para si o mal que perpetuou por saber que só


assim encontraria a redenção que agora buscava, percebeu o
próprio espírito transferir-se para o cadáver.

Sua faísca de vida manifestou-se no corpo morto em uma


explosão de chamas que irromperam pelo pescoço, desprendendo
a cabeça do animal e fazendo-a rolar desfiladeiro abaixo. 1

Compreendendo que o corpo humano que repousava ao lado


representava a vida que decidira abandonar, deu a ele o mesmo
fim da cabeça do animal em que agora habitava e, golpeando-o
com força, atirou-o nas profundezas do penhasco.

Disforme e irreconhecível, o corpo de Ana acabou sendo


encontrado por mineradores noturnos. Eles jamais descobririam
que, ali perto, uma mula sem cabeça trotava noite adentro
iluminando a escuridão com as chamas que se alimentavam da
corrupção de sua própria alma.
O Erro do Guardião dos Rios
Uma certa tribo era conhecida em todo o continente por celebrar
seus casamentos com festas que se estendiam por dias. A união
de Porã e Inaiê fora grandemente anunciada e estavam presentes
membros das onze tribos da Amazônia. Todos ansiavam por
testemunhar o matrimônio da filha do Sábio da Água.+

Porã aguardava aquela noite desde que seus olhos contemplaram


os de Inaiê pela primeira vez. Como guerreiro-chefe da companhia
que tratava de proteger os rios e toda a vida nele – incluindo a
proibição das atividades de pesca –, o jovem ostentava grande
prestígio entre os líderes do continente e, sabendo elevar o
próprio encanto aliando a invejável aparência física à gentileza
com os que o cercavam, despertava naturalmente desejo e
admiração.

Aqueles de olhos mais sensíveis notariam, no entanto, que Porã


parecia guardar um segredo, o mesmo que fazia com que se
sentisse incapaz de amar.

Contudo, Porã ao acompanhar uma procissão numa travessia pelo


principal rio da região, ele soube que seu coração havia
finalmente sido cativado.
Não foi preciso muito esforço para se provar digno da amada.
Tendo recebido aprovação do pai de Inaiê, marcou a cerimônia de
casamento para dali a poucos dias.

A celebração contava com demonstrações elementais, danças,


jogos e música, como sempre se fazia naquele que os membros
da tribo consideravam o mais sagrado dos eventos, atrás apenas
das gestações. O pajé da tribo proferiu os dizeres da liturgia e
selou, dali em diante, o destino do guerreiro e da nobre, que
ambos já estavam apaixonados.

Eram crescentes os rumores entre a companhia de Porã de que


uma sombria criatura aquática, que passou a ser chamada de
Caboclo D'Água, vinha promovendo ataques nas áreas dos rios.

A cada dia, havia novo relato sobre pescadores que tinham suas
embarcações viradas e depois desapareciam para sempre nas
profundezas das águas, sem deixar rastros ou corpos.

A princípio, os protetores dos rios ficaram gratos pela


intervenção da tal criatura, que de fato havia reduzido as
atividades de pesca clandestina, mas agora o medo se espalhava
entre eles.

O que poucos percebiam é que a temida criatura surgira logo


depois da nomeação de Porã como guerreiro-chefe, mas ninguém
ainda descobrira que esse ser protetor era ele mesmo.

Porã exercia seu cargo como nenhum antes. Foi fácil agir no
anonimato e conseguir, enfim, livrar os rios das atividades
assassinas de pesca.

Foi a própria Inaiê, que não tirava os olhos de Porã, descobriu que
o noivo era o responsável pelas mortes dos pescadores, após
segui-lo numa noite.
Em segredo, a moça desenhou um plano para surpreender o noivo
e fazê-lo saber que descobrira seu disfarce, para então convencê-
lo a cessar a prática:

Ela iria sairia no meio da celebração de casamento e, em um


barco que já arranjara de antemão, pôr-se-ia em um passeio pelo
rio para então ser encontrada pelo amado e, dali, partiriam para a
consumação do matrimônio.1

Sutil, Inaiê afastou-se da festa sem ser vista e, sentindo no peito


uma alegria ingênua pela surpresa que faria ao amado, entrou no
pequeno barco e, com um movimento das mãos, fê-lo deslizar
pela água escura que refletia os raios da lua.

Ali perto, Porã pediu licença ao Sábio, com quem tratava dos
assuntos da companhia, e buscou a esposa em meio à pequena
multidão que celebrava. Sem vê-la, correu até os limites da
propriedade em que se encontrava e a rodeou, mas não a achou.
À distância, porém, avistou um barco seguindo o curso do rio e
irou-se. Quem ousaria aproveitar-se da ausência dos protetores
para macular a vida nas águas? Seguindo o instinto de guerreiro
que nunca o abandonava, entrou no rio em completo silêncio e
mergulhou. Poucas braçadas depois, olhou para o alto e viu o
fundo do pequeno barco, que prosseguia em lento curso em
direção ao mar.

Não haveria misericórdia: a lei de proteção à vida nas águas era


clara. Em um ímpeto de força, Porã lançou-se ao alto e,
segurando firmemente os lados do barco, virou-o e segurou o
pescador que violara sua jurisdição, puxando-o com força e
velocidade para o fundo do rio. Desde o primeiro assalto, Porã
obrigava-se a não olhar o rosto do pescador para não sucumbir
em fraqueza caso reconhecesse o atacante, o que poderia afetar
a equidade de justiça. Foi por esse mesmo motivo que Porã não
percebeu que o corpo que já sucumbia pela falta de oxigênio era
o da mulher que amava e que abandonava a vida lentamente por
suas próprias mãos.1

Ao retornar à superfície, Porã encontrou sua horda de guerreiros


a observá-lo da margem. Foi quando soube que o que devia ter
sido um terno momento com sua amada, o primeiro de uma
cúmplice existência de inabalável felicidade, transformou-se em
uma monção de culpa e terror.

Corroído pelo remorso, Porã atirou-se de volta no rio e mergulhou


em direção ao mar. Ele jamais foi visto novamente em terra firme
e, até hoje, dizem que ele se empenha em proteger as águas,
dedicando-se a transformar em sagrado o leito de descanso final
da única pessoa capaz de fazê-lo feliz na vida.

Corpo seco, o filho bastardo

A manhã não começara bem. Carlos sentia cada parte de seu


corpo protestar de dor e cansaço pela noite mal dormida.
Olhou ao redor e reparou que as outras crianças ainda dormiam
em suas camas. Desde que nasceu, seu lar era numa casinha
junto com outras crianças que eram forçadas a ajudar os pais,
para trabalhar e garantir seu sustento.

seu irmão e sua mãe trabalhavam diariamente na casa dos


patrões, que ficava distante, e com isso, ele pouco a via.

No entanto, ela e o irmão desfrutavam de um cômodo próprio e do


conforto da casa grande.

E ele fora abandonado com outras crianças que trabalhavam nas


plantações e coincidentemente tinham a mesma cor de pele,
algumas até mais escuras.

O que Carlos não entendia era porque fora desprezado em relação


a seu irmão. Tinha inveja do rapaz, que era seis anos mais velho
que ele, e da mesma cor que sua mãe, então passou a nutrir uma
irritação que cresceu em seu coração, alimentada por um
sentimento de erro e injustiça, até se tornar o mais puro ódio.

Ela não se importava, e ele estava decidido a desvendar seu


destino e, em seguida, fugir dali para a cidade grande.

Assim, caminhou sorrateiro até a casa dos empregados,


escondendo o corpo magérrimo aqui e ali, mas parou quando
avistou o braço direito do dono da fazenda, que todos o temiam, e
o chamavam, de Capitão. Um homem sério rígido, e que
estranhamente nunca tinha lhe dirigido a palavra.

Antes de ser visto, Carlos escalou uma arvore e viu com surpresa
sua mãe sair pela porta dos fundos e encontrar o capitão para
conversar.
Pouco pôde escutar de onde estava, mas as palavras que ouviu
trouxeram tanta surpresa: a mãe contava ao capitão que hoje era
dia de anos do filho caçula e que planejava dispensá-lo dos
trabalhos agora que, pela lei, não era mais responsável por ele.

— Que a ninguém seja revelada a verdade sobre esse seu


bastardo.

— Meu não, nosso! Mas O renegado não terá mais lugar entre nós
— respondeu a mãe.

O menino lembrou de toda a história de seu pai estar morto que


lhe contavam, cair por terra e, sem tentar conter a frustração e a
raiva que lutavam para dominá-lo, desceu de sua árvore
sorrateiramente e, em segundos, pôs-se atrás do pai que o
renegou com uma pedra na mão. Carlos atingiu o homem com
toda a força e o viu desabar desacordado enquanto a ferida na
cabeça sangrava copiosamente, o que lhe deu a chance de
terminar o feito e, com mais dois golpes, criar uma mossa no
crânio do líder e ceifar sua existência.2

Com as mãos e as vestes sujas de sangue, olhou para a mãe, que,


muda de medo e surpresa, não fora capaz de impedir o
assassinato ou mesmo de fugir, e decidiu que ela merecia o
mesmo destino. Antes que pudesse agir, contudo, a mulher o
empurrou com força e o menino foi arremessado no chão, para
em seguida ser golpeado duas vezes no rosto com tapas que
inflamaram ainda mais sua ira.

Carlos estendeu a mão, agarrou a mesma pedra que matou o pai


e atingiu a têmpora da mãe, que tombou para o lado. O menino
montou sobre o corpo da mulher e continuou o ataque,
empreendendo nas pequenas mãos toda a força que foi capaz de
reunir, finalmente descontando a dor da rejeição naquela mulher
por quem, como acabara de descobrir, não nutria o menor traço
de afeição.

A mãe de Carlos finalmente pôs-se a gritar e implorar por socorro,


mas os golpes que recebia na boca, nos olhos, nos peitos, faziam
as palavras serem proferidas de forma atropelada, atrapalhadas
ainda pelo sangue que se acumulava em sua boca.

Carlos já sentia as mãos incharem de hematomas e, ao perceber


que sua mãe finalmente parara de se mover, abandonou o corpo e
fugiu antes que fosse capturado.

O menino correu mata adentro observando os vasos rompidos nas


pequenas mãos e a dor que pulsava de cada hematoma que agora
exibia. Em sua mente, ecoariam para sempre as únicas palavras
de maldição que sua mãe, antes de morrer lhe disse:

"Ao nascer foste rejeitado

e por todo o sempre o será

pelo céu, pelo inferno, até mesmo pela terra,

que jamais o aceitará."

Transformado pela maldição da mãe e agora incapaz de morrer,


Carlos viu cada pessoa que conhecia crescer, envelhecer e
abandonar este mundo, mas ele continuava com sua aparência
magrela, porém a pele envelhecia, e com as mãos eternamente
inchadas e doloridas, que lhe serviam como um lembrete da
própria transgressão.

Conta-se hoje que quem vir esparsas árvores secas em matas, ou


então ouvir sobre algum viajante solitário ou animal cujo sangue
tenha sido sugado até secar, deve elevar uma prece de proteção
para que a criança amaldiçoada conhecida agora como Corpo
seco jamais se ponha em seu caminho.+

A Dança do Sedutor das Águas

Aquela era a noite mais aguardada do ano. Todas as tribos


falavam do casamento da filha de um grande cacique. Embora os
convites para a celebração houvessem sido amplamente
distribuídos para quase toda a região norte, Bagé se encontrava
na lista dos esquecidos ou rejeitados e, por sua vez, não poderia
comparecer.

Uma grande injustiça, murmurava para si mesmo enquanto


nadava em algum ponto distante do rio e sentia a água fria tocar
sua pele escorregadia.

Sendo um nativo-bruxo, possuía a habilidade inata de alterar a


própria forma para se transformar em algum animal, com a
temeridade de nem sempre ser capaz de manter-se consciente ao
longo da transfiguração.

Bagé despendia a maior parte de seu tempo na forma de boto,


mas à noite costumava retornar aos rios que cortavam o
continente e então assumir sua forma humana.
Sim, era uma grande injustiça não ter sido convidado. Todos
sabiam que não havia no norte melhor dançarino que ele. As
moças costumavam se amontoar para vê-lo dedicar-se a
sequências complexas de dança, que sempre terminavam com
ele acompanhado da mais bela delas dançando a seu lado.

Era nessas ocasiões que empregava todo seu poder de sedução


para estender a festa até que ela se resumisse à intimidade entre
ele e a recém-conquistada virgem, que era levada para as
margens de algum leito d'água longe dos olhos de todos. Para
elas, um momento privado com Bagé valia o risco que corriam de,
algumas luas depois, descobrirem no ventre o crescimento de um
novo rebento.3

Com as frequentes perseguições por parte das famílias das


moças que com seu encanto conquistava, Bagé passou a alterar
sua forma humana de modo que não fosse reconhecido. Nesta
noite, porém, planejara infiltrar-se na celebração e, para criar um
disfarce que infalivelmente o ocultasse, decidiu contar com ajuda
de outras criaturas da água: uma arraia transformou-se em um
distinto chapéu branco, com abas grandes o bastante para
ocultar o rosto; dois acaris viraram seus sapatos; um arauaná
transfigurou-se em seu cinto; e um poraquê deu forma à espada
que passou a carregar consigo para se defender de possíveis
represálias dos pais de suas moças.

Com vestes brancas como o luar que agora iluminava seus


passos em direção à área do casamento, Bagé caminhou
decidido, disposto somente a encontrar a jovem em quem
empregaria os encantos que lhe assegurariam uma noite de
luxúria.
Ao longe, podia ouvir os sons das bandas que batucavam em
tambores de madeira e ver, elevando-se ao céu, colunas espirais
de fumaça das fogueiras de chamas coloridas.

Luciano confiava que suas novas vestes fariam de si


irreconhecível e, confiante, finalmente adentrou o perímetro da
grande celebração.

Mal reconheceu as primeiras notas tocadas pelos músicos e


deixou o próprio corpo ser embalado pela alegre canção que, com
efeito, já invocava cada convidado do casamento para uma dança
no círculo central da festividade.

E misturou-se de forma discreta e hábil no meio dos que


dançavam e, como já antecipara, tornou-se rapidamente o centro
de atenção da festa. Homens e mulheres batiam palmas e
cantavam para ele, fascinados com sua beleza e jovialidade.
Quem observasse a cena de fora poderia supor que os
espectadores se encontravam sob alguma espécie de feitiço, mas
somente o próprio Bagé sabia que, de fato, seus movimentos
exalavam uma graça que contagiava a todos como uma onda de
encanto sobrenatural.

Longe dali, um grupo de mulheres observava enquanto o estranho


dançarino de branco achegava-se a uma jovem formosa e, de
forma sutil, começava a afastá-la da multidão em direção ao rio.
O que o rapaz não sabia é que, desta vez, foram as mães das
virgens em perigo que se reuniram para caçá-lo. Não sabiam ao
certo se ele seria ousado o suficiente para surgir na celebração,
considerando que era de conhecimento comum que um bruxo
com desconhecidas habilidades de sedução andava desvirtuando
as mais jovens das cidades. Estando as mulheres afastadas do
círculo de dança, puderam reconhecer o temido boto não pelas
vestes – essas o tornaram irreconhecível –, mas pela soberba na
forma como dançava. O orgulho se tornou sua grande pedra de
tropeço.

Armadas de arpões e lanças, as mulheres, que ostentavam as


faces ocultas por tintas e preparos de sementes, bem como por
vestes que as ajudavam a se camuflar na vegetação, encheram-
se de ira ao confirmar que o dançarino era o próprio homem que
violava suas filhas e, sutis como sombras, aproximaram-se do
casal que caminhava rumo o rio. Em um rápido movimento de
ataque, as guerreiras dispararam seus arpões ao mesmo tempo,
como se houvessem ensaiado, e Bagé sentiu três lanças
atravessarem suas brancas vestes e lacerarem sua pele.

Bagé lançou-se nas escuras águas do rio, presenciando ao


mesmo tempo as peças de roupa assumirem novamente as
formas de animais e o próprio sangue macular a água que lhe
servia de morada.

Às margens do rio, as guerreiras gritavam pelo êxito do cerco e


resgatavam a jovem moça, que já não mais se encontrava sob o
efeito da dança do sedutor das águas.

Longe dali, na manhã seguinte, conta-se que um boto cor-de-rosa


foi encontrado agonizando à margem do rio, com três arpões de
inajá fincados no dorso.1

Bagé sentiu-se ser elevado por braços fortes que o levaram para
receber cuidados. Reconheceu vagamente o rosto de seu
salvador quando olhou com mais atenção: ele estava presente no
casamento e era ninguém menos que o próprio noivo. Mas por
que ele estava sozinho?
— minha alma também se encontra obscurecida pelos erros do
passado, meu amigo — disse-lhe o Caboclo D' Água. — Aceitas
meu alento e amizade para reconstruirmos nossas jornadas?6

Bagé, com esforço e dor, fez-se homem novamente para, com um


sorriso, concordar com a proposta.

— Aceito, amigo. Aceito.

Juntos, o Caboclo D' Água e o Boto Cor-de-Rosa lançaram-se no


rio amazonas e desapareceram em suas profundezas, a água
ocultando suas lágrimas enquanto se afastavam em busca de
vida nova em águas desconhecidas.
A travessia da loira dos espelhos

Sentada sobre uma pedra achatada do alto do grande monte


Ais'Oke, Mariaugus observava, com um sorriso no rosto jovem, a
alegria das crianças que acabavam de chegar à região do Templo
dos Lungtas. Aquele era um dia especial, pois receberiam um
novo grupo de pequenos que haviam acabado de alcançar a idade
de responsabilidade e, por isso, foram enviados pelos pais para o
tradicional curso com os mestres lungtas.2

Mariaugus participava ativamente da comissão selecionada pelo


Sábio do Ar para trabalhar no aprendizado das crianças. As
tarefas eram diversas: havia desde cátedras para os letrados
mestres, lungtas mais idosos que detinham conhecimento e
experiência sobre a história do mundo e as leis que regiam o
continente, até funções para desenvolvimento do corpo, tarefa
igualmente importante e que era delegada à companhia liderada
por Mariaugus. Ela era a melhor guerreira de sua tribo e
capitaneava um grupo de vinte e uma mulheres que ensinavam
meninas e meninos de todos os cantos da Pangeia a encontrarem
na conexão com seus espíritos a força e a beleza das artes de
guerra.2

Mariaugus trançava as longas madeixas loiras que desciam em


cascata pelas costas e sorria de gratidão e ansiedade: aquele
grupo de crianças que agora se organizava no andar mais baixo
do templo lhe era particularmente querido porque nele também
estava Sendriel, seu filho.

Após a palestra de apresentação, da qual participaram Mariaugus


e suas vinte companheiras do clã de guerreiras, os novos pupilos
foram conduzidos aos aposentos e a líder viu-se a sós com o
grão-mestre da tribo. Assim que se encontraram em privacidade,
sua expressão serena se desfez e ele assumiu as rugas que se
torceram em uma declaração de medo: os lungtas que tratavam
da segurança do grande monte Ais'Oke descobriram a iminência
de um ataque por parte de um grupo de nimboos. Mariaugus
estalou a língua pelo amargor que a menção a esse nome trouxe.
Pelo pouco que sabia, nimboos eram a primeira das controversas
experiências de Absahlom, o poderoso jovem que andava pelo
continente recrutando adeptos à sua causa. Conhecidos por agir
em restrita ordem e exatidão, os nimboos eram capazes de criar
e controlar poderosas tempestades.

Observando o céu, os dois velhos amigos deram as mãos ao


testemunhar nuvens espessas e escuras agruparem-se
imediatamente acima do edifício. Quando um raio desceu do céu
e atingiu a beirada do telhado dourado, destruindo parte da
estrutura, todos souberam que o ataque se iniciara.

Mariaugus era uma guerreira dos ares treinada, mas nada a havia
preparado para neutralizar oponentes com tão imenso poder. A
tempestade que caía na área do monte Ais'Oke era
surpreendentemente violenta e ameaçava pôr o templo abaixo. A
guerreira correu até a beira do andar baixo e, com um impulso
aos céus, ergueu-se um voo majestoso e convocou suas aliadas.
As mulheres lutaram para controlar a força devastadora dos
ventos, mas estavam em número muito menor e não seriam
capazes de aplacar a ira dos nimboos.4

Do alto, Mariaugus assistiu, com o coração tomado de horror, as


crianças serem levadas pelos inimigos para através de um portal
de luz que alguém abrira aos pés do templo. Que estranho poder
era aquele que assombrava até os mais experientes e vividos?
A líder gritou em desespero quando avistou Sendriel, seu filho,
ser sequestrado e arrastado em direção ao vórtice de luz. Em um
movimento ágil e preciso, porém jamais despido de graça,
Mariaugus empreendeu um voo rasante em direção ao portal
enquanto se esquivava de raios e granizo que começava a jorrar
das nuvens tormentosas que transformaram, sem aviso, o dia em
noite.

Os nimboos que guardavam o vórtice agiam com violência


desmedida ao lidar com os pequenos, que, assustados, choravam
e tentavam fugir. Os que resistiam apanhavam e, com os braços
presos atrás das costas, eram forçados a caminhar de volta até o
círculo de luz que ameaçava engoli-los. Sendriel foi, para
surpresa dos nimboos e orgulho de Mariaugus, a criança que não
apenas resistiu, mas que lutou. Aprendera diversos movimentos
de guerra com a mãe e já apresentava bom domínio dos tirocínios
do ar e, assim, pôde resistir com valentia. Sua atitude de bravura,
contudo, apenas trouxe ira aos nimboos e um deles, em um ato
de loucura desmedida, invocou do céu um raio que atingiu
Sendriel em cheio, fazendo o menino desabar no chão sem vida. 5

Com as asas pingando pela tempestade impenetrável, Mariaugus


sentiu o próprio coração despedaçar-se ao contemplar o corpo do
filho morto. Seu treinamento de guerreira, no entanto, por um
átimo fê-la manter a mente clara mesmo com a tragédia e, sem
saber quem estava atacando, deixou-se levar pela ira e dizimou a
hora de nimboos que guardavam o vórtice com poderosos
ataques de vento. Ao sentirem resistência por parte das vinte e
uma guerreiras e, principalmente, ao se darem conta das baixas,
os nimboos reuniram-se e, tão rápido quanto chegaram, partiram
para longe levando consigo a tempestade.
Mariaugus chorava aos soluços ao lado do cadáver de Sendriel.
Com leves movimentos das mãos, afagava seus cabelos loiros e
passava os dedos pelos pequenos lábios que jamais haveriam de
sorrir novamente.

— Quem devo matar por isso? — gritou aos céus. O ataque não
fazia sentido. O que lhe sobrava em ira lhe faltava em
entendimento.2

Enquanto observou ao longe suas guerreiras darem conta de


acalmar os membros da tribo mais apavorados, Mariaugus
percebeu uma leve luminescência surgir a seu lado. A princípio,
pensou ser outro vórtice, mas a luz permaneceu como uma esfera
que flutuava no ar com elegância. De dentro dela, surgiu um
objeto feito de puro gelo que a Mariaugus pareceu os espelhos
dos banheiros do templo, pois refletia sua face manchada de
lágrimas e os cabelos loiros ensopados pela chuva. A lungta
estendeu a mão e aceitou o objeto.

Seu reflexo se transformou lentamente em um borrão e, em


seguida, em um rosto masculino. Era um homem de aparência
idosa, com compleição morena e olhos muito claros.

— Tive conhecimento do ataque ao Templo dos Lungtas e do


desfecho com teu filho Sendriel — disse ele, com genuína
tristeza.

— Quem és tu? — perguntou Mariaugus, embora já soubesse a


resposta. Aquele era o Rei dos Reflexos, um antigo espírito que
habitava espelhos e que podia se mover através de qualquer
superfície refletora.

— Vim oferecer-te justiça.


— Meu desejo é somente um: vingar-me desta raça que pôs termo
à vida de Sendriel. Se puderes me auxiliar neste plano, aceito
qualquer proposta que pretendes me fazer como compensação.

Mariaugus ouviu o Rei dos Reflexos apresentar-lhe o parecer: ela


receberia poder suficiente para neutralizar ataques dos nimboos
de forma indireta: tornar-se-ia Rainha dos Reflexos e teria de
habitar a dimensão de espelhos até seu último suspiro. Dessa
forma, sempre teria conhecimento da posição da tribo das
tempestades ao surgir em pontos de reflexo causados pelas
gotas de chuva que os nimboos provocariam.

A guerreira permitiu-se dominar pela incurável dor da perda do


filho e aceitou a proposta, movida igualmente pela mais pura das
iras, mesmo que para isso tivesse de deixar o convívio no templo.

— Reúne tuas vinte guerreiras e avisa-lhes que lhes servirá de


espiã — orientou o Rei dos Reflexos. — Haverá esta de ser uma
horda de poderosas justiceiras que trarão a paz que a terra
necessita e que teu coração procura.

Movida pelo desejo ardente de vingança que lhe queimava no


peito, Mariaugus convocou a companhia e apresentou a
estratégia. Tendo terminado de falar, as mulheres
testemunharam dois braços atravessarem o grande espelho do
salão e, em um abraço etéreo, reclamá-la para si, fazendo a
travessia do mundo material para o dos reflexos.

E assim Mariaugus, seguida por vinte guerreiras fiéis e unas de


espírito e volição, alçou voo em direção ao tempestuoso céu e
jurou evitar que os nimboos trouxessem a outros o mesmo fim
que seu amado Sendriel encontrou.
— Dentro destes espelhos — disse-lhe o Rei dos Reflexos —,
manterei vivas as lembranças mais felizes que construíste com
teu Sendriel. Assim, poderás impedir que esta mesma história se
reconte enquanto revives para sempre teus mais ternos
momentos.

Conta-se que, após a morte do assassino do filho, Mariaugus foi


vista por um pequeno pupilo no templo, que relata ter visto no
banheiro uma jovem e bonita loira a observá-lo de dentro do
espelho com olhar maternal. Ele sabia que a loira que o mirava
jamais sairia de dentro de seus espelhos por ter somente ali
encontrado a verdadeira paz que seu coração tão
desesperadamente desejava.
Iara

o clã formado pelos melhores guerreiros da Amazônia seguiam


rituais conhecidos por todo o Brasil. O grupo contava com
membros de todas as tribos, cada um com habilidades elementais
distintas,

A princípio, somente os nascidos homens poderiam compor as


fileiras do clã, mas a chegada de uma mulher filha de um cacique,
que, obstinada, convenceu o conselho a ser provada e
demonstrou incrível rapidez e graça nas lutas, mudou as regras
de formação de suas fileiras.
+

Araí não gozava de boa fama dentro do grupo. Os guerreiros


homens, entre os quais se encontravam dois de seus irmãos,
sentiam-se ultrajados por terem de dividir espaço com ela. Astuta
e intuitiva, ela sabia que a antipatia deles não passava de medo
por sua misteriosa figura de caçadora, mas estava empenhada
em desconstruir cada barreira erigida ao redor de seus
companheiros de clã.2

Poucas noites depois de sua ordenação, Araí já provava não


somente ser uma disciplinada guerreira, mas também um
excelente benefício ao grupo de caça: usava sua bela voz para
acalmar os animais que encalçavam para, assim, mantê-los
serenos enquanto suas flechas voavam silenciosas, levando a
melodia até seu coração parar de bater.

Naquela madrugada, o clã seguiria o ritual de banhar-se nas


águas frias do grande rio para invocar o favor dos espíritos e,
então, partiria em uma missão que, como poucas, oferecia real
perigo: tratariam de caçar uma criatura que rapidamente se
aproximava da cidade.

Os batedores informaram, no dia anterior, que a cabeça do


monstro tocava a copa das árvores e todo o corpo era coberto
por espessos pelos escuros que lhe serviriam como escudo. O
mais estranho é que sua boca ficava na região do estômago. Com
sua força devastadora, a criatura, que passaram a chamar de
Mapinguari (ou "coisa do pé torto"), mataria todos da tribo.
Araí viu aí a chance de provar seu valor, sem se importar se havia
guerreiros mais experientes e talvez mais fortes no clã. Ela
contava com dons que a esses homens faltavam. Ambiciosa, foi a
primeira a despertar e rapidamente correu para o rio. Enquanto
as águas gélidas escorriam por seu corpo moreno, que tremia
com o frio, sorriu ao vislumbrar o próprio futuro. Seria uma
desbravadora, uma pioneira, e quem sabe se tornaria a primeira
mulher a liderar sua tribo. Ali, no grande rio, lavou os longos
cabelos negros enquanto invocou espíritos para se fortalecer e,
sentindo-se pronta, abandonou as águas escuras, preparou-se e,
sem esperar os outros guerreiros – pois nisso consistia seu plano
–, partiu em busca do Mapinguari.2

Não demorou até encontrar a criatura, que repousava em uma


clareira com o corpo espalhado pelo chão, a bocarra no estômago
aberta e escorrendo baba. Em um suspiro de frustração, Iara
achou que seria indigno abater o monstro sem dar-lhe a chance
de se defender. Assim, atirou-lhe uma pedra, que acertou um de
seus afiados dentes. Ele acordou assustado e, em um salto, pôs-
se em pé, olhando diretamente para Iara. A guerreira começou a
correr enquanto o Mapinguari, com surpreendente agilidade, a
seguia, derrubando árvores mais jovens com as garras.
Araí então começou a cantar e, com o mesmo efeito que já
conhecia, o monstro parou de correr e se viu paralisado, como se
encantado, e calmamente caminhou até a guerreira. Não poderia
oferecer resistência. Ninguém poderia.

Ela preparou o arco, sem jamais deixar de cantar. No entanto, o


que não poderia prever é que sua melodia atraíra também os
próprios guerreiros e, em um átimo, viu-se cercada por homens
que a olhavam com luxúria e desejo.1

Assustada, Araí interrompeu o canto para despertar os homens,


mas o efeito deixou também a criatura que caçavam, que, com
um golpe pesado da pata, varreu três guerreiros de uma só vez.
Com as garras pingando sangue, o monstro avançou para mais
um ataque, mas foi detido quando uma flecha lhe atingiu a perna.
Araí correu para tentar atrair o monstro, mas parou quando
braços fortes a agarraram e a impediram, acusando-a e
prometendo entregá-la para julgamento por desobediência e
traição aos termos do clã.

Igualmente irada e assustada, Araí conseguiu se libertar e tentou


correr em direção ao rio, mas foi jogada no chão quando uma
flecha lhe acertou uma coxa e a derrubou. Decidida a não gritar
pela dor lancinante, ainda tentou rastejar até as escuras águas,
mas uma nova flecha lhe atingiu a outra perna. Araí finalmente
parou de se mover enquanto ouvia passos rápidos se
aproximarem. Abriu os olhos e viu um de seus irmãos a observá-
la, com uma nítida e dolorosa expressão de desgosto e
ressentimento.

Ela sabia o que viria a seguir. Segundo os princípios de seu clã,


morte se pagava com a vida. Esse seria seu destino; ali, Araí
encontraria seu fim. Travando os dentes para conter a dor,
removeu as flechas das pernas, já banhadas de sangue, e invocou
silenciosamente um espírito que somente as curandeiras mais
velhas da tribo conheciam. Era chamada de Mãe dos Inversos,
capaz de revelar a verdade em quem a chamasse. O que Araí
desejava era que seu verdadeiro dom se manifestasse para que,
com seu canto, pudesse enfeitiçar os homens que lhe faziam
cerco e assim se safar e fugir. Jamais havia conseguido usar sua
habilidade em tantos homens ao mesmo tempo e para isso
contaria com o favor da entidade.

Os guerreiros não viram quando o espírito surgiu: em verdade, ele


apresentou-se somente a Araí, que lhe anunciou o pedido:
desejaria ter seu real dom revelado. A guerreira ouvira histórias
sobre a Mãe dos Inversos e sabia do grande risco que corria, mas,
ali, sua alternativa seria a morte.

— Revelarei teu verdadeiro eu — proclamou o espírito.

Ao redor, o mundo parecia congelado. Araí sabia que o monstro já


haveria sido dominado pelos guerreiros e que as tribos estariam
seguras. Uma estranha calmaria reinava na mata enquanto, ao
longe, o sol nascia, vestindo o céu de fogo.

Araí sobressaltou-se ao perceber que seu corpo começava a se


transformar: a pele lisa e macia coçava e descascava,
aparecendo escamas; seus cabelos, ficaram com aspecto
gosmento como as algas do rio. As pernas feridas e banhadas de
sangue se colaram, transformando-se em uma grande cauda de
peixe.

Mesmo sem compreender, Araí rastejou a distância que a


separava do rio e, quando alcançou suas águas, sentiu a
transformação completar-se. Ao olhar o próprio reflexo na água, o
medo que sentiu a fez emitir um grito que ecoou pela mata: seus
olhos eram agora duas grandes esferas negras; seus dentes,
afiados como os de um peixe de rio. Os cabelos negros que
desciam pelas costas terminavam onde sua cauda se iniciava.
Arai havia se transformado em um monstro aquático.

— Fostes vítima da própria ambição — disse-lhe a Mãe dos


Inversos. — O que agora vês é tão-somente o que havia dentro de
ti, trazido para fora: ganância, egoísmo, orgulho. Estás fadada a
viver teus dias nestas águas e serás conhecida como o inverso
do que se apresentou um dia, mas, que, afinal, é quem és de
verdade. Não serás mais chamada de Arai, mas sim Iara, seu
oposto.1

O espírito dissolveu-se no ar e o mundo recobrou a vida. À


margem do rio, Iara viu os guerreiros a observá-la com espanto e
genuíno medo. Com o coração tomado por ódio pelo destino que
trouxera a si mesma, Iara entoou seu canto de vingança e, um a
um, os guerreiros do seu clã junto a seus irmãos, seguiram sua
voz até as águas do rio, onde encontraram seu descanso final.

Iara mergulhou e partiu para longe, deixando para trás cada


sonho e ambição que um dia alimentou. Ela sabia que seu destino
ainda lhe traria o que desejava. Seria conhecida e adorada,
mesmo que temida.

Sim, ela sabia. Iara sorriu e, com um ágil movimento da cauda,


nadou até a superfície e observou o nascer do sol. Ela sabia
porque, de todos, ela era a mais forte de toda a Amazônia.

A sentença do negrinho do pastoreio

Desde os dias primeiros de seu ofício no pastoreio, Kito aprendeu


com seu patrão que o coração do pastor deve bater por suas
ovelhas. Em seu caso, sua vida parecia consistir em cuidar dos
animais do campo e, ao contrário de outros trabalhadores que
pouca ou nenhuma empatia tinham com os animais, o menino
trabalhava para que suas vidas fosse a mais feliz possível,
mesmo sabendo que seu destino seria a venda para os
fazendeiros mais milionários da região.

O que poucos sabiam é que o patrão de Kito não era um bom


homem. Embora ostentasse, com orgulho, fama de benfeitor por
“adotar” crianças perdidas, como se dar uma enxada e cama pra
dormir fosse pagamento suficiente para o desumano cotidiano
que as crianças tinham, a verdade é que a vida de seus cavalos
valia mais que a dos pequenos que trabalhavam para ele feito
escravos.

O menino já quase não guardava memórias da vida anterior. Sua


única lembrança era somente um borrão que, que lhe surgia no
silêncio da madrugada com imagens do pai colhendo frutos, com
os dois às gargalhadas, o que sempre lhe trazia lágrimas aos
olhos.

Somada à dor da lembrança estava a saudade dessa vida de


dificuldades e carência, porém plena de amor; separada da
realidade atual pela ocasião de seu sequestro após o assassinato
do pai em uma batida dos malfeitores contratados por aquele que
viria a ser seu patrão.

Naquela manhã, o menino acordou, suspirou, paciente, enquanto


observava os outros que com ele dividiam uma minúscula casa de
madeira.

O único conforto que encontrava para sua vida miserável era a


convivência com os cavalos que com tanto cuidado alimentava e
cuidava.
Caminhou para o estábulo onde, como sempre fazia, tomaria o
cavalo para o passeio da manhã. Esse era o animal particular de
seu patrão, que o deixara sob cuidado específico do pastor mais
habilidoso que tinha entre seus criados.

Após certificar-se de que o cavalo estava bem alimentado, Kito


soltou as amarras e montou nele, usando suas habilidades para
acalmar o coração do animal e mostrar que não lhe almejava mal.
Retribuindo, ele começou a cavalgar em direção ao campo para o
passeio na grama fria da propriedade.2

Kito amava aquele animal como se fosse seu. Chamava-o


secretamente de Zaldi, o mesmo nome de um cavalo que seu pai
tivera em sua idade, e ignorava o codinome concedida pelo
proprietário. Ao passear com Zaldi pelo campo, inspirou o ar frio
do dia que se iniciava e alisou sua crina clara. Sentiu pena do
animal. Assim como ele, sua vida se resumia àquele espaço, com
a diferença de que Zaldi nascera ali e, assim, nada conhecia do
mundo exterior.2

Com as entranhas inflamadas por seu senso de justiça, sentiu o


coração bater por um desejo de liberdade que transcendia a
própria alma, estendendo-se até seu único amigo vivo. Tomou
uma decisão.

Kito certificou-se de que era o único a passear pelo pasto e,


tomado pela certeza, apertou as pernas ao redor das costelas de
Zaldi e trotaram para a porteira. Desmontou e abriu o portão de
madeira e, olhando para o amigo já às lágrimas, beijou-lhe entre
os olhos e o libertou. Enquanto Zaldi, agradecido, cavalgava
mundo afora, os primeiros raios do sol enfim começavam a tingir
o firmamento.
O menino regressou ao estábulo às pressas, torcendo para não
ser visto, e encontrou o próprio patrão a esperá-lo. A seu lado, um
de seus capangas segurava a sela que costumava ser vestida em
Zaldi.1

— Onde está meu cavalo baio? – quis saber o patrão, assim que
viu Kito sem o animal.1

— Receio que o tenha perdido, senhor. Acordou arredio e se


libertou de meu jugo, fugindo para longe do pasto.

— Traga-o aqui imediatamente — ordenou o velho, desamarrando


do cinto o reio com que castigava criados preguiçosos ou
doentes.

Kito não voltaria atrás. Embora tremesse de medo do castigo,


pensar que seu amigo Zaldi estava agora em liberdade lhe enchia
de alegria, e isso valeria cada chibatada que recebesse.

— Ele já está longe, senhor. Não será possível resgatá-lo agora.

A essas palavras seguiu a primeira chibatada, que acertou o


menino nas pernas e o derrubou.

Kito sentiu o couro ferir-lhe a pele e rompê-la. Cada ferida ardia


como fogo. Irado, o patrão seguiu no açoite, como se estivesse
de fato disposto a matá-lo.

Porém, o destino que elegeu para o pequeno escravo foi outro.

— Levem-no para as formigas-sanguíneas — ordenou. — Que este


negrinho morra em dor.

Dois dos capangas seguraram Kito pelos braços e o ergueram do


chão, arrastando-o até um grande formigueiro que se elevava a
um canto do pasto.
Assim que as formigas, sedentas pelo sangue que escorria das
feridas, começaram a sair da entrada do formigueiro e a escalar
seu corpo, os capangas não olharam mais, Kito deu seu ultimo
suspiro, e adormeceu sob o formigueiro.

Passou a noite e veio a manhã e o Sol encoberto.

Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do


corpo do escravo.

Qual não foi o seu grande espanto, quando, chegado perto, viu na
boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita,
sem nenhuma marca das chicotadas e ali ao lado, o cavalo baio, e ali junto a
tropilha dos trinta tordilhos...

o estancieiro viu a madrinha dos que não a tem, viu a Virgem,


Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que
estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante
do escravo.

E o Negrinho, sarado e risonho, pulou no baio, chupou o beiço e


tocou a tropilha a galope.

E assim pela última vez o fazendeiro viu o negrinho, o baio


perdido e toda sua tropilha.

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