A Outra Perna Do Saci
A Outra Perna Do Saci
A Outra Perna Do Saci
Às goladas, o menino chupava a água gelada que descia pelo riacho. Largou-se no chão,
Descansando as costas na relva enquanto fumava seu cachimbo e punha de lado o gorro
branco, divertindo-se ao controlar o ar e criar formas com a fumaça, olhou para o céu e
esticou as pernas finas e ligeiras, grato pela aparência que lhe permitia o êxito das
tarefas.
Quando a noite caiu, Saci caminhou por aquele que era seu refúgio quando passavam
por ali os feitores dos grandes comerciantes e lhe perguntavam sobre o Ladrão, sem
ciência de que ele próprio era o autor dos furtos de que tanto se falava.
À diferença dos outros membros de sua tribo, ele aplicava suas habilidades de controle
dos ventos para furtar ervas em grandes plantações que lhe permitiam manufaturar um
Era o mesmo que agora preenchia seu cachimbo, outra de suas criações, e que
começava a lhe trazer lucro - afinal, não havia entre as tribos mais alguém que
Disto ele muito se orgulhava: desde que sua mãe morreu, que o criava sozinha, e ele viu
O êxito de seu negócio, no entanto, em nada aplacava a solidão que lhe arrebatava em
golpes brutos a cada noite. Era justamente ao repousar a cabeça que a memória de sua
amada mãe crescia em seu peito, causando-lhe uma sensação incômoda, afobada, como
transformavam a carência em um monstro que vinha a cada pôr do sol repousar com ele.
Sua tristeza não era apenas devida à saudade de sua mae. Não tê-la a seu lado para
compartilhar caminhadas entre as frondosas árvores além dos limites da tribo ou para
apenas deitar sobre a relva à noite e contemplar os pontos de luz no céu certamente lhe
trazia dor; porém tencionava, agora que atingira a idade de responsabilidade, dedicar-se
um pequeno trecho de terra à beira do lago que a própria mãe elegera. Ali, construiriam
seu lar e ele finalmente poderia confiar que ela estaria segura, aquecida e feliz quando
Aquele monstro que o visitava à noite mais uma vez achegou-se ao menino e o embalou,
cravando suas garras em seu peito e fazendo brotar em seus olhos lágrimas que
escorriam pela face escura. Cada gota que caía era dedicada à única amiga verdadeira
que jamais teve. Era por ela que prosseguia em seus trabalhos: sabia que seria esse o
noite.
O projeto, desta vez, era duplamente aventuroso: ele retornaria à residência em que por
pouco não fora capturado na noite anterior. E não o fazia por nenhum motivo que não o
desafio. Ali era onde havia a mais farta plantação de tabaco da tribo e, sendo essa a
do que já arranjara.1
Parceiro das sombras, Saci tentava fundir-se a elas encostado em pilares, recuos em
paredes ou sob carroções de palha. Costumava aplicar suas habilidades para alterar o
Por sorte - ou quem sabe por providência do espírito do Ar -, aquela noite parecia
particularmente serena.
Na ponta dos pés, preparou a sacola e, sentindo na espinha o calafrio de excitação que
Foi em um instante que Saci escutou uma sequência de notas musicais se fazer ouvir na
Seus feitores haviam plantado uma sequência de bambus furados que apitariam ao
Antes que pudesse fugir, o rapaz viu-se cercado por um grupo de cinco homens e,
O mais forte deles ergueu Saci do chão em uma espiral de vento e, após mantê-lo no ar
apenas por divertimento, soltou-o no chão de modo que caísse sobre a perna direita,
retornaria ou não.
Recusando-se a clamar socorro, conseguiu, com dor e vigor, mover-se propriedade afora
de volta para sua mata, usando um redemoinho de vento ao redor das pernas para se
locomover.
Aquela noite, Saci fumou o último maço enquanto, com pesar pela despedida da carreira
que não haveria de prosseguir, empunhava a serra que roubara de um silo e com ela
serrava a própria perna, que se consumia com os vermes que vinham da terra chafurdar
em suas feridas.
O gorro branco tornou-se rubro pelo sangue que derramava, mas, além do pesar
escarlate das próprias entranhas, o que mais sangrava era seu coração.
O Flagelo dos Pés Virados
Ele jamais descobriria a verdade: essa ficou restrita à mulher que o pariu,
a qual nunca poderia chamar de mãe.1
Motivos a ela não faltavam, se é que existe alguma forma de advogar sua
causa. Uma vida de abusos e agressões, em que cada entardecer se
apresentava como um anúncio do que estava por vir: os grandes
construtores de sua tribo de regressavam de um dia de intensa fadiga à
espera de certeiros banquetes seguidos de estupros das mulheres que os
haviam preparado.
Ela sabia que era a escolha preferida dos mais indecentes, que se
saboreavam em sua deficiência e a tratavam como a um animal sem
humanidade. Ter nascido com os dois pés virados para trás era a razão de
seus maiores sofrimentos.
A cada noite, recebia uma nova coleção de hematomas que pulsavam e
lhe roubavam o sono, o que afinal era bom: abandonar a vigília parecia
conivência para algum crime maior, se é que haveria algo pior que a
defluência quase diária de abusos e violações de suas intimidades.6
A Mulher do Padre
Não era a primeira vez que Ana se transferia para outro povoado.
Já não contava mais as vezes em que fora forçada a abandonar
tudo e recomeçar em um lugar onde ninguém a conhecesse. Sem
vínculos ou raízes, nem mesmo havia quem culpar por seu
destino.
A cada dia, havia novo relato sobre pescadores que tinham suas
embarcações viradas e depois desapareciam para sempre nas
profundezas das águas, sem deixar rastros ou corpos.
Porã exercia seu cargo como nenhum antes. Foi fácil agir no
anonimato e conseguir, enfim, livrar os rios das atividades
assassinas de pesca.
Foi a própria Inaiê, que não tirava os olhos de Porã, descobriu que
o noivo era o responsável pelas mortes dos pescadores, após
segui-lo numa noite.
Em segredo, a moça desenhou um plano para surpreender o noivo
e fazê-lo saber que descobrira seu disfarce, para então convencê-
lo a cessar a prática:
Ali perto, Porã pediu licença ao Sábio, com quem tratava dos
assuntos da companhia, e buscou a esposa em meio à pequena
multidão que celebrava. Sem vê-la, correu até os limites da
propriedade em que se encontrava e a rodeou, mas não a achou.
À distância, porém, avistou um barco seguindo o curso do rio e
irou-se. Quem ousaria aproveitar-se da ausência dos protetores
para macular a vida nas águas? Seguindo o instinto de guerreiro
que nunca o abandonava, entrou no rio em completo silêncio e
mergulhou. Poucas braçadas depois, olhou para o alto e viu o
fundo do pequeno barco, que prosseguia em lento curso em
direção ao mar.
Antes de ser visto, Carlos escalou uma arvore e viu com surpresa
sua mãe sair pela porta dos fundos e encontrar o capitão para
conversar.
Pouco pôde escutar de onde estava, mas as palavras que ouviu
trouxeram tanta surpresa: a mãe contava ao capitão que hoje era
dia de anos do filho caçula e que planejava dispensá-lo dos
trabalhos agora que, pela lei, não era mais responsável por ele.
— Meu não, nosso! Mas O renegado não terá mais lugar entre nós
— respondeu a mãe.
Bagé sentiu-se ser elevado por braços fortes que o levaram para
receber cuidados. Reconheceu vagamente o rosto de seu
salvador quando olhou com mais atenção: ele estava presente no
casamento e era ninguém menos que o próprio noivo. Mas por
que ele estava sozinho?
— minha alma também se encontra obscurecida pelos erros do
passado, meu amigo — disse-lhe o Caboclo D' Água. — Aceitas
meu alento e amizade para reconstruirmos nossas jornadas?6
Mariaugus era uma guerreira dos ares treinada, mas nada a havia
preparado para neutralizar oponentes com tão imenso poder. A
tempestade que caía na área do monte Ais'Oke era
surpreendentemente violenta e ameaçava pôr o templo abaixo. A
guerreira correu até a beira do andar baixo e, com um impulso
aos céus, ergueu-se um voo majestoso e convocou suas aliadas.
As mulheres lutaram para controlar a força devastadora dos
ventos, mas estavam em número muito menor e não seriam
capazes de aplacar a ira dos nimboos.4
— Quem devo matar por isso? — gritou aos céus. O ataque não
fazia sentido. O que lhe sobrava em ira lhe faltava em
entendimento.2
— Onde está meu cavalo baio? – quis saber o patrão, assim que
viu Kito sem o animal.1
Qual não foi o seu grande espanto, quando, chegado perto, viu na
boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita,
sem nenhuma marca das chicotadas e ali ao lado, o cavalo baio, e ali junto a
tropilha dos trinta tordilhos...