Bossi 2010 Reféns Da Riqueza de Nossa Terra
Bossi 2010 Reféns Da Riqueza de Nossa Terra
Bossi 2010 Reféns Da Riqueza de Nossa Terra
O texto acena à extrema rentabilidade prevista resgate de vidas reféns de seu próprio trabalho. O
para a mineração nos próximos anos e, portanto, jornalista Lúcio Flávio Pinto comentou, mais tarde,
aos grandes investimentos que estão sendo que existe um “nosso Chile em Carajás”, fazendo re-
desenhados. Analisa os maiores impactos típicos ferência aos conflitos mineiros silenciados no Brasil2.
desse empreendimento e se debruça, a partir de
um exemplo contextualizado, sobre as relações da Segundo o Observatório de Conflitos Ambientais,
mineração com uma população e seu território. os projetos mineiros, que afetam centenas de comu-
Mostra que o problema não está somente nas nidades, já geraram 120 conflitos em 15 países só na
minas, mas em toda a infraestrutura e logística América Latina. São as comunidades brasileiras as
que sustenta esse sistema. Aponta ao desafio mais afetadas por essa atividade3.
dos licenciamentos ambientais e do novo código
de mineração. Conclui, enfim, com uma breve As informações da CPT relatam que no ano de 2010
referência às resistências mais significativas e às houve 27 conflitos pela terra e 19 pelo acesso à água
perspectivas do enfrentamento da mineração. envolvendo mineração; em 12 casos houve denún-
cias de trabalho escravo em atividades ligadas à mi-
Mexer com as entranhas da mãe terra, por déca- neração (5% do total)4.
das ficou atividade escondida e pouco noticiada,
mas nos últimos tempos ocupa cada vez mais as Em El Salvador o presidente Maurício Funes tomou
manchetes da mídia nacional e internacional: a a decisão de não receber mais projetos enquanto
mineração é para alguns promessa e bênção, para não fosse feita a Avaliação Ambiental Estratégica
outros ameaça silenciosa e violenta. da mineração.
Recentemente, o episódio dos 33 chilenos presos no No mundo, cerca de 43 milhões de pessoas traba-
coração da mina convocou o mundo inteiro para a lham na mineração, que é o segmento que regis-
frente da televisão, acompanhando passo a passo o tra a maior taxa de mortalidade laboral, segundo
1
Pe. Dário Bossi é missionário comboniano; Bruno Milanez é pesquisador e professor da UFJF, Danilo Chammas é advogado e
membro da rede Justiça nos Trilhos. Todos os três são membros do Grupo de Trabalho Articulação Mineração-Siderurgia da Rede
Brasileira de Justiça Ambiental (GT AMS/RBJA). Marcelo Domingos Sampaio Carneiro é Doutor em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ,
professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Para maiores infor-
mações, visite http://www.justicanostrilhos.org e http://www.justicaambiental.org.br.
2
Pinto, L.F. Nosso Chile em Carajás. Disponível em http://colunistas.yahoo.net/posts/5847.html. Acessado em 23 de fevereiro de
2011.
3
Base de Dados de Conflitos Mineiros na América Latina. Disponível em http://www.adital.com.br/site/noticia.
asp?lang=PT&cod=53321. Acessado em 23 de fevereiro de 2011.
4
Veja no mapa os conflitos gerados por mineração e sistematizados pela CPT: em preto os conflitos por terra, em cinza aqueles por
água e em branco os conflitos envolvendo trabalho escravo em mineração. O mapa interativo é accessível aqui: http://www.justi-
canostrilhos.org/Mapa_Mineracao
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Conflitos gerados pela mineração e sistematizados pela CPT: em preto, os conflitos por terra, em cinza, os conflitos pela água e em
branco os que envolveram trabalho escravo
Em Parauapebas/PA, local da mais intensa explo- O relatório State of the World 20037 demonstra que
ração de minério de ferro no mundo, a Justiça do no final dos anos 1990 a mineração consumiu quase
Trabalho recebeu oito mil reclamações, obrigando 10% da energia utilizada no mundo, foi responsá-
o tribunal a criar uma segunda vara. As duas são vel por 13% das emissões de dióxido de enxofre e
as mais congestionadas do país5 . Em volta da mina ameaçou 5,3 milhões de km2 de floresta não con-
de Carajás, muitas comunidades rurais estão sendo taminada. Mas só ofereceu 0,5% dos empregos to-
expulsas6, pois a Vale S.A. já começou sua obra im- tais no mundo e 0,9% do Produto Bruto do planeta.
5
Pinto, L.F. Artigo citado.
6
Veja, por exemplo, os estudos no site Impactos da Mineração no Sul e Sudeste do Pará. Disponíveis em http://mineracaosudeste-
paraense.wordpress.com/diversos/. Acessado em 05 de março de 2011.
7
Sampat, P. Scrapping mining dependence, State of the World 2003. World Resources Institute; 2003. p. 111.
67
Aparece com evidência que não se trata de uma ati- timento, que várias outras empresas mineradoras
vidade sustentável! estão também realizando no Brasil, demonstra que
hoje a mineração é um dos negócios mais rentáveis
Onde há lucro não há receio de atropelar (e, por isso, muito pouco disposto a negociações que
imponham limites de cunho socioambiental).
Mais de 20 bilhões de reais: é o investimento da
Vale S.A., entre 2010 e 2015, para potencializar o A mineração hoje representa quase 25% das ex-
chamado “sistema norte” de escoamento de miné- portações no Brasil e quase 5% de nosso PIB. Nos
rio de ferro. últimos 15 anos, a produção mineral brasileira
quadruplicou, saindo de 10 para quase 40 bilhões
A previsão é de que, a partir de 2014, passarão ao de dólares por ano9. No último trimestre de 2010,
longo da Estrada de Ferro Carajás, anualmente, 230 a Vale S.A. conseguiu um lucro líquido recorde de
milhões de toneladas de minério (mais do dobro, em R$ 30,1 bilhões, o maior da história na indústria de
relação às atuais 100 milhões de toneladas). Isto sig- mineração.
nifica que as comunidades rurais atravessadas pela
ferrovia verão passar a cada dia o correspondente ao Se compararmos as taxas de crescimento de diver-
valor líquido de R$ 242 milhões8! Tamanho inves- sos setores econômicos entre 2009 e 2010, a minera-
8
Considerando o preço do minério de ferro em outubro 2010 (US$ 148/ton) e convertendo o dólar em reais à taxa de R$ 1,60.
9
Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal - Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica - Câmara dos Depu-
tados, 02 de dezembro de 2010.
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10
Sobre o crescimento da indústria extrativa, veja as imagens. Alvarenga, D. Indústria extrativa é destaque do PIB em 2010. Disponí-
vel em http://m.g1.globo.com/economia/noticia/2011/03/industria-extrativa-e-destaque-do-pib-em-2010-com-alta-de-157.html
11
Relatório “Iron Ore – A Global Strategic Businness Report”, Global Industry Analysts (GIA), Julho de 2010, referência em http://www.
vale.com/pt-br/o-que-fazemos/destaques/Paginas/vale-prepara-maior-expansao-da-historia-em-carajas.aspx - acesso 23.02.11
12
Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal.
13
Deputado José Fernando Aparecido de Oliveira, Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal.
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caso dos pequenos proprietários sobre o território às indústrias eletrointensivas, como é o caso das
local e sua utilização. usinas de produção de alumínio.
Hoje, pelo art. 176 da Constituição Federal, as jazi- Se a extração mineral e respectiva logística de trans-
das pertencem à União, mesmo se o solo estiver em porte e escoamento para o mercado externo já por
nome de particulares. As concessões estatais libe- si reproduziam um modelo concentrador de terras,
ram a pesquisa e a exploração minerária. O seminá- hoje temos um cenário ainda mais complexo, com
rio sobre o novo marco legal de mineração reconhe- os conflitos fundiários vinculando-se cada vez mais
ceu que “as jazidas no Brasil, apesar dos esforços à mineração. Um exemplo claro está no projeto da
do Departamento Nacional de Produção Mineral, Vale S.A. em se tornar uma entre as três maiores
têm sido utilizadas mais para exploração predató- produtoras de fertilizantes do mundo. O cerco da
ria ou, muitas vezes, para especulação14. agressão à terra se fecha: a mineração, agora, con-
centra seus capitais de investimento também na ex-
Atualmente já existem oito mil áreas de produção tração de fosfato e potássio, fortalecendo o lobby
mineral no Brasil, mas o governo espera, com o de produtores de fertilizantes químicos. Trata-se de
novo marco legal, expandir rapidamente esse nú- mais um incentivo à expansão da agroindústria, in-
mero. viabilizando cada vez mais as formas tradicionais
de produção familiar e desfavorecendo a democra-
Nesses últimos anos os temas da mineração, da in- tização do acesso à terra.
dustrialização da matéria prima, do acesso à terra
e do impacto ambiental entrelaçaram-se de forma Do macro ao micro: tocando com a mão os
cada vez mais estreita. O período de extrema renta- impactos
bilidade da extração minerária aumentou conside-
ravelmente o lucro das empresas e seus investimen- “São enormes máquinas em atividade dia e noite,
tos na pesquisa. com um batalhão de pessoas que, imbuídas da ideia
de que estão trabalhando para o progresso do país
Novos projetos estão sendo lançados, novas comu- e pela defesa de sua sobrevivência, se dedicam a es-
nidades ameaçadas de expulsão, a própria logística tes projetos de destruição e desagregação. As matas
em expansão ameaça violentamente propriedades estão sendo devoradas para construção de estradas,
rurais, aldeias e povoados, comunidades indígenas a passagem de linhas de transmissão, a extração mi-
e quilombolas que eventualmente se encontrarem neral e implantação das usinas de transformação”15.
na linha de passagem de minerodutos e ferrovias, Raimundo Gomes da Cruz, pesquisador de Mara-
ou nas proximidades dos portos. bá/PA, descreve assim a situação do projeto Salobo,
localizado na região de Carajás, estado do Pará.
A verticalização da produção oferece novas vagas
de trabalho, mas concentra investimentos de gran- Apesar de ser considerada a maior jazida de cobre
de impacto em regiões com riqueza de recursos e já descoberta no Brasil, com capacidade de produ-
mão de obra barata. Nega, assim, a diversificação zir 255 milhões de toneladas de minério, a mina es-
econômica e a vocação produtiva local, facilitando, tará esgotada em apenas 29 anos, durante os quais
por exemplo, a monocultura de eucalipto para ali- gerará 705 milhões de toneladas de dejeto estéril.
mentar fornos siderúrgicos ou a construção de bar- Vamos conhecer mais de perto essa mina: as noções
ragens e usinas hidrelétricas para fornecer energia básicas sobre o impacto de um empreendimen-
14
Deputado Inocêncio Oliveira, Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal.
15
Brito, G. e Nader, V. Com a cumplicidade do governo e da mídia, ‘Vale é uma máquina de destruição’. Disponível em http://www.
correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3413
&Itemid=9&bsb_midx=-1
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to específico podem ajudar a ter uma ideia sobre De um lado, há expulsão de vários pequenos produ-
a agressão violenta e intensiva em todos os outros tores rurais, cujas terras vêm sendo subtraídas pela
casos de mineração. mineração. Essas pessoas são transformadas de re-
pente em mão de obra urbana desqualificada e aca-
A mina de Salobo terá uma dimensão de 2.300 x bam empregando-se na própria indústria do minério
800 m, com uma profundidade de 525m. Para cavar (ironia do impacto dos grandes projetos), ou (ainda
esse buraco serão consumidos por ano 9.345 t de ex- pior) em carvoarias, com algumas das quais impon-
plosivos, 13.440.000 litros de óleo diesel, 2.680.000 do-lhes condições análogas à de trabalho escravo.
litros de lubrificantes, milhares de toneladas de re-
agentes. Será construído um mineroduto de 74 km. Do outro lado, a oferta de emprego atrai para a re-
No processo de flotação serão adicionados outros gião muitos novos moradores de outras cidades, em
produtos químicos. busca de trabalho. No caso de Salobo, por exemplo,
já existem cerca de cinco mil trabalhadores homens
Uma vez exaurida a fonte, o que será dessa nos alojamentos instalados nas proximidades da
região toda? Vila Sansão, pequeno povoado rural da região17. A
população entre 2000 e 2007 passou de 10 mil a 23
A Vale S.A. não divulga o plano de fechamento mil pessoas. Essa concentração de muitos homens
da mina, portanto as comunidades se perguntam num espaço restrito gera desequilíbrios e violência,
se as terras serão recuperadas e replantadas ou se aumenta o nível da prostituição infantil, as doenças
a empresa abandonará as áreas desmatadas, com sexualmente transmissíveis e tropicais, o acúmulo
depósitos de material estéril, reservatórios e bacias de lixo, mosquitos e animais roedores, além da es-
poluídas de rejeitos, rios e igarapés contaminados peculação imobiliária e do custo de vida.
pelo processo de exploração.
Em geral, as cidades para onde muitas das popula-
Mesmo sem ter ainda começado, a mina de Salobo ções rurais se deslocam não dispõem de infraestru-
já traz seus impactos: a mineradora construiu uma tura de saneamento e outros serviços públicos para
nova estrada de acesso às obras, atravessando áreas atender as necessidades básicas dos novos morado-
de castanhais onde os índios fazem coletas. “Já der- res. Um rápido e não planejado crescimento urbano
rubaram em torno de 300 castanheiras. Nada nada, concorre para a baixa qualidade de vida da maioria
são uns 500 hectolitros de castanha que os índios da população, e para os elevados índices de violência
deixam de coletar por conta de tal processo” – co- de médias e grandes cidades localizadas na área da
menta Raimundo Gomes16. exploração mineral de Carajás ou em seu entorno, as
quais se situam entre as mais violentas do Brasil18.
Investimentos maciços e repentinos de dinheiro e
obras, numa região até então equilibrada na base Conflitos desse tipo repetem-se anualmente em
da economia local, alteram as relações sociais do muitas regiões de nosso País, quase sempre silen-
território. ciados pela mídia cúmplice de um modelo de de-
16
Com a cumplicidade do governo e da mídia, ‘Vale é uma máquina de destruição’ (depoimento de Raimundo Gomes)
17
Gomes da Cruz, R., Martins da Cruz, T. et al., Vila Sansão no eixo da destruição, Estudo do curso de Ciências Sociais da UFPA de
Marabá, setembro de 2010.
18
Itupiranga, Marabá e Goianésia do Pará ocupam, respectivamente, o primeiro, o quarto e o sexto lugar no ranking dos municípios
mais violentos do Brasil, segundo informação do Ministério da Saúde para o ano de 2008. Do ponto de vista das unidades da fede-
ração, o Pará ocupa a quarta posição como estado com maior número de homicídios e o Maranhão o que teve a maior variação entre
1998 e 2008. (Cf. matéria O perigo mora ao lado, Jornal Valor Econômico, 11 a 13/03/2011, p.16-20).
71
senvolvimento de mão única, que gera avanços a construção de dezenas de obras de engenharia,
para os empreendedores e precariedade para as com a movimentação de milhões de metros cúbi-
comunidades atingidas. cos de rochas, terra, aterros, brita, e a consequen-
te supressão de vegetação, além de um expressivo
A infraestrutura a serviço da mineração volume de dormentes, grampos, trilhos, máquinas
de via e todos os equipamentos ferroviários neces-
Quando se pensa no impacto socioambiental da sários para essa construção.
mineração, imaginam-se principalmente buracos,
disputa pela terra e contaminação das águas. Pre- Esse trabalho todo prevê a remoção de centenas
cisa-se, porém, levar em consideração toda a infra- de famílias, a intervenção em áreas de preservação
estrutura necessária para garantir o escoamento permanente e unidades de conservação, obras em
da produção. Mais uma vez, um exemplo do norte territórios indígenas e quilombolas (para os quais a
do Brasil pode nos ajudar a compreender: já co- Convenção 169 da OIT – assinada e ratificada pelo
mentamos quanto dinheiro vai ser utilizado nos Brasil - impõe a necessidade de consentimento pré-
próximos cinco anos para a duplicação da Estrada vio, livre e informado da população, por meio de
de Ferro Carajás (EFC). um processo de consulta pública).
A segunda fonte de renda da Vale S.A. é obtida As licenças ambientais para essa obra estão sen-
exatamente com a logística (transporte ferroviário do concedidas pelo Ibama de forma fragmentada,
e marítimo) que foi construída para viabilizar a ex- como um artifício para enquadrar a obra na Reso-
ploração mineral. A receita auferida pela Vale com lução Conama 349/2004 e livrar a companhia Vale
prestação de serviços ferroviários e portuários a S.A. da obrigação de obter licenças prévias, elabo-
terceiros, amortiza parcela expressiva dos custos rar EIA/Rima e participar de audiências públicas.
de transporte do minério de ferro das minas até os As ilegalidades que norteiam a concessão dessas
portos de embarque da empresa, o que em termos licenças estão detalhadamente demonstradas na
econômicos constitui uma vantagem significativa representação apresentada pela rede Justiça nos
da Vale em relação a suas concorrentes. Trilhos e pela organização Justiça Global à Procu-
radoria Geral da República, em 18 de novembro
Agora tudo está sendo duplicado: novas minas na de 2010.
região de Carajás, duas linhas de ferro uma ao lado
da outra e ampliação significativa do porto de Pon- A duplicação do porto de Ponta da Madeira, em
ta da Madeira, na capital maranhense. São Luís, com a construção do Pier IV, tem trazido
graves impactos sobre as comunidades de pescado-
A nova mina S11D, no município de Parauapebas, res mais próximas, como a comunidade do Boquei-
faz parte de uma cadeia de montanhas com 120 rão, que ficaram sem acesso à pesca.
km de extensão e 47 jazidas a serem ainda explo-
radas. É o maior projeto da Vale S.A. no mundo, Em síntese, também a logística para escoamento e
previsto para ter início em 2014 com capacidade exportação da mineração traz graves impactos so-
de 90 milhões de toneladas/ano, quase o dobro bre as terras e o equilíbrio das comunidades.
do que Carajás já produz. Na mesma região, além
de S11D, a Vale S.A. abrirá nos próximos anos as Caberia uma reflexão a respeito da agregação de
minas de Salobo, Sossego, 118, Cristalino e Ver- valor ao minério bruto e dos impactos da produção
melho. siderúrgica, ligados também à concentração de ter-
ras para a monocultura de eucalipto, mas o espaço
Para transportar tudo isso será necessário duplicar à disposição não oferece condições para mais esse
a EFC com cerca de 500 quilômetros de linha férrea, aprofundamento.
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O gargalo das licenças ambientais de que a gestão dos territórios se torne exclusiva-
mente uma questão de conveniências econômicas.
Belo Monte tornou-se, no Brasil e no mundo, sím- Isso é confirmado pelo projeto do governo deno-
bolo de uma disputa bem mais ampla entre mode- minado ‘choque de gestão ambiental’, pacote de
los de desenvolvimento e de defesa da vida das co- decretos lançados depois do carnaval de 2011 para
munidades locais. O conflito nesse caso evidencia a flexibilizar a concessão de licenças ambientais.
linha do governo brasileiro a respeito do progresso
sem freios nem limites, fortemente pautado pela “Se existe gargalo hoje são as licenças ambientais,
exploração dos recursos naturais. A postura insti- que acabam levando o processo a ser extremamen-
tucional é ainda mais firme e determinada no caso te moroso. Há problemas como topo e encosta de
dos recursos não renováveis, cujo valor comercial morro, cavernas. O nível de restrição ambiental é
fomenta a competição entre os países produtores. grande. Mas é preciso perceber que, no passado,
toda a atividade degradava, não só mineração.
As propostas contemporâneas de reformas do có- Hoje tem tecnologia, é diferente. Tem coisas que são
digo florestal e do código de mineração devem ser ridículas. O tema é palpitante”20.
lidas sob essa luz: ambas tendem a fomentar setores
estratégicos na economia brasileira; o tema do im- Uma pincelada a respeito de resistências e
pacto ambiental e da chamada “sustentabilidade” perspectivas
parece ser um “agregado simbólico”, em conclusão
dos discursos de cada expert que apresenta os prin- As críticas ao atual modelo de mineração e seus im-
cipais pontos da reforma da mineração. pactos são muitas; as reações e propostas têm sido
também diversas.
Primeiro objetivo da reforma é uma melhor distri-
buição dos lucros derivados das atividades de mi- No final de fevereiro de 2011, por exemplo, a
neração; essa distribuição, porém, seguiria sendo União manifestou-se inconformada com a insis-
uma mera transferência de recursos para os estados tência da companhia Vale S.A. em não recolher os
e municípios, sem garantir uma gestão transparen- royalties no valor e no prazo devidos, ao mesmo
te e participada deles, que venha a incorporar as tempo em que ela goza de enormes lucros deriva-
reais necessidades das comunidades19. dos das atividades de extração de ferro na mina de
Carajás.21 Após uma história de 9 anos de batalhas
Quanto à preservação ambiental, ela estaria cada vez inclusive judiciais, foi requerida a retomada pelo
mais vinculada à dimensão econômica (quem po- Estado da concessão de lavra da maior mina de
luir menos, menos paga; quem impactar mais, paga ferro do mundo.
mais). Nesse caso, vem a faltar a noção de limite e
enfraquece-se a defesa de territórios que estejam to- Apesar de ter sido imediatamente anulado pelo
talmente protegidos da mineração: corremos o risco próprio diretor geral do Departamento Nacional de
19
Veja-se, por exemplo, o artigo da BBC Brasil: Royalties não melhoraram vida em municípios produtores, diz estudo. Disponível em
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/03/614576-royalties+nao+melhoraram+vida+em+municipios+produtores+diz
+estudo.html. Acessado em 05 de março de 2011.
20
Entrevista a Miguel Antonio Cedraz Nery, diretor-geral do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) - Por Agência
Estado, 23 de abril de 2010. Disponível em http://noticiasmineracao.mining.com/2010/04/23/entrevista-novo-codigo-mineral-
-so-sai-em-2011-diz-diretor-do-dnpm/. Acessado em 05 de março de 2011.
21
Cf. Despacho n. 015/2011 do DNPM em data 22 de fevereiro 2011, referente ao processo administrativo 950.029/2011. Sobre o mesmo assunto,
ver matéria do jornal Folha de São Paulo, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/886197-divida-gera-novo-atrito-entre-uniao-e-
-vale.shtml (acessado em 09 de março de 2011).
73
Produção Mineral em Brasília, esse ato do DNPM Outro exemplo de resistência significativa é o das
do Pará evidencia a crítica à mineração descontro- populações quilombolas de Santa Rosa dos Pretos
lada, cada vez mais forte em setores do Estado e da e de Monge Belo, no município de Itapecuru-Mi-
sociedade civil. rim/MA. A ferrovia de Carajás atravessa seus ter-
ritórios e a Vale S.A., que possui a concessão da es-
A luta pela reestatização da Vale S.A. é outro exemplo trada de ferro, está querendo duplicá-la tentando
que aponta para a necessidade de um maior controle conseguir do Ibama licenças ambientais com rapi-
estatal das atividades de mineração e logística (e seus dez e sem o devido respeito às normas legais23, ao
respectivos impactos sobre o patrimônio público, o mesmo tempo em que está obstacularizando por
meio ambiente e comunidades). No entanto, a reesta- meio de recursos apresentados ao Incra o processo
tização da Vale S.A. não pode ser vista como um fim de titulação de seus territórios, bloqueando-lhes
em si mesmo. A Petrobrás e os numerosos conflitos um direito que lhes é constitucionalmente garan-
por ela gerados são exemplo de que somente o fato de tido24.
ser uma empresa estatal, não garante maior distribui-
ção dos lucros e melhores condições de vida. Tais comunidades quilombolas têm mostrado um
nível de organização e de esclarecimento que tem
Outra vertente de resistência é o enfrentamento di- se sobreposto às tentativas da empresa de “sedu-
reto à mineração, negando a possibilidade de novas zi-las” ou fragmentar as negociações25: “Tirem as
pesquisas ou atividades em territórios que devem mãos de nossa terra!” É o lema dessas populações.
ser preservados.
Nos locais onde a resistência não conseguiu impe-
Um dos melhores exemplos disso atualmente no Bra- dir a realização do empreendimento, há ainda a
sil tem sido o “Movimento em prol da criação do Par- possibilidade de negociações com a empresa por
que Nacional das Águas do Gandarela”, em Minas parte de comunidades e movimentos organizados.
Gerais, que está mobilizando o Instituto Chico Men- É o caso de 107 famílias em Ourilândia/PA, expul-
des pela Biodiversidade, o Ministério Público Estadu- sas pela expansão da mina de níquel da Vale S.A.
al e a Superintendência Regional de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável. As ações do movimen- A negociação firme e esclarecida conseguiu garan-
to têm conseguido barrar até agora um projeto grande tir para todos, suficientes medidas compensatórias:
da Vale S.A. (Mina Apolo), para o qual a empresa já uma nova área, à mesma distância da cidade, esco-
investiu 128 milhões de dólares para a produção de 24 lhida pela população, com boas condições de pro-
milhões de toneladas de ferro por ano, numa região dução e toda a infraestrutura pré-existente; a inde-
da “alta relevância biológica, cultural e ambiental (...) nização de todas as benfeitorias presentes nos lotes
com a maior diversidade florística da América do e outra pela casa perdida; a indenização pelo “lucro
Sul”22 e com mais de 300 nascentes de rios. cessante”; uma compensação individual pela his-
22
Recomendação n. 06/2010 da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Belo Horizonte – MG.
23
Entre várias contradições e violações de direito, a mais evidente é o fato de não estar sendo levada em conta a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, que foi devidamente assinada e ratificada pelo Estado brasileiro, e que impõe a imprescin-
dibilidade do consentimento prévio, livre e informado obtido por meio de consultas públicas às comunidades indígenas e tribais
(dentre os quais as quilombolas) para todo tipo de obra que as impactarem. Mais detalhes aqui: http://www.justicanostrilhos.org/
nota/648 (acessado em 02 de março 2011).
24
Constituição Federal, artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, Decreto 4887/2003 e demais
normas afins.
25
Em vários territórios a empresa está tentando negociar individualmente, assinando acordos extrajudiciais com famílias que mal
sabem ler e não têm a quem pedir orientação, obrigando quem assina esses acordos a manter a confidencialidade sobre o que está
acordando.
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tória interrompida da família expulsa da terra; um da Vale S.A. através do “Movimento Internacio-
fundo social para o acompanhamento das famílias nal dos Atingidos pela Vale”, reunido pela pri-
e para começar atividades alternativas na nova co- meira vez em 2010 e convocado novamente para
munidade. abril de 2011.
Outras resistências à mineração descontrolada fa- O movimento já produziu um “Dossiê dos impac-
zem referência a redes de pesquisa e articulação tos e violações da Vale no mundo”26 e participou
entre movimentos de base e academia; o grupo de da Assembleia Geral anual dos acionistas da Vale,
trabalho “Articulação Mineração e Siderurgia” da colocando com lucidez, frente aos maiores investi-
Rede Brasileira de Justiça Ambiental é um ótimo dores, os danos provocados pela empresa e o peri-
exemplo disso. go de que esses interfiram negativamente no valor
das ações, na imagem e nas expectativas de lucro
O trabalho de pesquisa está progressivamente le- da mineradora, que gasta 180 milhões de reais por
vando a reflexão no plano internacional, aprofun- ano em publicidade para ter a imagem de empresa
dando a ligação entre extração mineral, produção sustentável.
industrial e comércio. Objetivo dos estudos, que se-
rão realizados principalmente por Amigos da Terra A resistência está posta, às vezes de forma mais
e Misereor, é definir um “preço social” do minério, organizada, às vezes ainda se estruturando; o de-
que carregue em si não somente o valor comercial, safio é - além da tradicional defesa intransigente
mas também o custo humano e ambiental dos im- dos locais que devem estar livres da mineração - a
pactos provocados por sua extração e transporte. construção de propostas de desenvolvimento real
nos locais onde a mineração já existe ou será ine-
A articulação entre organizações e movimentos vitável. Trata-se de uma tarefa criativa e urgente,
sociais, inclusive do setor sindical, está sendo à qual todos/as somos chamados a dar nossa con-
particularmente significativa no enfrentamento tribuição!
26
A íntegra do dossiê está disponível para download no seguinte endereço (acesso em 12 de março de 2011): http://atingidospelava-
le.wordpress.com/2010/04/27/dossie-dos-impactos-e-violacoes-da-vale-no-mundo/