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Filosofia, Tradição e

Sociedade
Rosana de Oliveira
Filosofia, Tradição e
Sociedade

Introdução
Neste conteúdo, vamos estudar dois dos pensadores mais conhecidos da humanidade,
muito apreciados não só por estudantes e leitores de filosofia: Marx e Nietzsche. Ambos
se inserem na história da filosofia no período da passagem da filosofia moderna à
contemporânea e podem ser lidos como autores de crítica da tradição filosófica que,
a partir disso, constroem sua filosofia. Vamos compreender em que sentido se dá esta
crítica e quais as diferenças nos modos pelos quais Marx e Nietzsche empreendem
tal atividade. Com isso, vamos analisar os principais pontos das filosofias de Marx e
Nietzsche e abordar temas fundamentais como: o materialismo histórico e dialético
e suas implicações para a filosofia na relação com a sociedade e a economia política;
o perspectivismo moral, a crítica dos valores, do sujeito e da verdade, com sua nova
tarefa para a filosofia. Além disso, vamos atentar ainda para alguns mal-entendidos
sobre as concepções filosóficas de Marx e Nietzsche.

Objetivos da Aprendizagem
• Localizar a crítica à ideologia e ao idealismo e a constituição do materialismo
nos escritos de Marx.
• Analisar o tratamento sobre o trabalho e a técnica em “O Capital”.
• Identificar o perspectivismo moral de Nietzsche como uma crítica à moral e à
naturalização dos valores e destacar o projeto da genealogia.

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A sociedade: mais-valia e valor
Enquanto projeto de crítica da modernidade, a principal referência de Karl Marx (1818-
1883) – e, como já se deve destacar, de seu principal colaborador, Friedrich Engels
(1820-1895) – foi Hegel. No período de Marx e Engels, a influência de Hegel era enorme
e se dividia entre os antigos hegelianos (também chamados hegelianos de direita)
e os jovens hegelianos (os hegelianos de esquerda), de quem Marx brevemente se
aproxima, mas aos quais mais se refere enquanto crítica. Os hegelianos de esquerda
herdaram de Hegel as teses sobre o idealismo e pretendiam, a partir disso, uma
resolução dos problemas baseada na razão enquanto ideia e realidade.

Em 1841, Ludwig Feuerbach escreve “A essência do cristianismo”, que se insere como


uma crítica à filosofia de Hegel, inclusive em sua recepção pela esquerda hegeliana,
que usaria de suas teses em prol do liberalismo, minimizando aspectos que teriam
ares conservadores, como o peso que Hegel atribui ao Estado. Contra o idealismo
hegeliano, Feuerbach propõe um materialismo e, valendo-se do conceito de alienação
– central em Hegel, enquanto integrante da dialética – transfere a ideia da alienação
para o campo religioso, tornando-a algo negativo e um obstáculo ao desenvolvimento
do homem.

Estes dois polos, o idealismo hegeliano e o materialismo feuerbachiano, são de


influência vital para Marx, que havia tido contato com os jovens hegelianos durante
sua formação, mas também não estava de acordo com certos aspectos do idealismo,
como a ausência de base histórico-econômica que ali notava. Como já dizia em carta
de 1837 a seu pai, pretendia buscar a Ideia na realidade. Por outro lado, Marx também
não acatava totalmente o materialismo de Feuerbach em sua orientação humanista
naturista.

Para completar este quadro, acrescente a participação de Engels, com quem Marx entra
em contato por volta de 1844. Neste período, Marx já havia passado por sua formação
filosófica com uma tese de doutorado sobre os filósofos materialistas Demócrito e
Epicuro e prosseguira em carreira jornalística, editando a Gazeta Renânia e colaborando
com os Anais Franco-Alemães. Toda esta formação não significa que Marx foi alheio
às questões sociais e econômicas, pelo contrário, sua cidade de nascimento, Trier, é
apontada como um dos centros nos quais se desenvolveram inicialmente as classes
burguesa e proletária. Localizada a oeste da Alemanha, no período de Marx, pertencia
à Prússia e pela localização era fortemente influenciada pela França e pelos seus
ideais revolucionários. Assim é que Trier foi uma das pioneiras no desenvolvimento de
uma forma de organização distinta dos demais estados alemães, já estava presente
ali a dicotomia burguesia-proletariado. Desta forma, ainda que Engels tenha sido para

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Marx o introdutor da economia política, Marx já vinha de uma condição natal que
favorecia a consciência de classe. Mas o fato é que a economia política, e também o
socialismo, se tornam centrais para Marx depois de ter terminado seu doutorado em
filosofia, e tal contato ocorre em sua atividade jornalística, reforçando-se também no
contato com Engels.

Figura 1 - Karl Marx


Fonte: Plataforma Deduca (2018).

Com efeito, Engels é quem já tivera contato com os economistas ingleses e com o
socialismo, como mostra em seu escrito “Esboços de uma crítica da economia política”.
Os Esboços têm efeito decisivo sobre Marx, que passa a trabalhar em conjunto com
Engels e desta colaboração surge, em 1844, os “Manuscritos Econômico-Filosóficos”,
com autoria de Marx. Ali, Marx faz a crítica dos economistas ingleses identificados
como o liberalismo burguês. O princípio da alienação, distintamente do uso de Hegel
e também de Feuerbach, assume aqui outro – e central – significado: é deslocado
para o campo da economia e passa a representar a objetivação do trabalho proletário
na produção, sendo esta transformada e alienada em capital. Isso significa que o
proletariado não consegue reconhecer seu trabalho nas mercadorias que ele mesmo
produz, pois na medida em que a relação do homem com o trabalho se reconfigura,
este deixa de representar uma forma de interação com o mundo e passa a estabelecer
relação direta com o capital.

A isso chamamos expropriação dos meios de produção, conceito formulado para


explicar o trabalho assalariado no sistema econômico capitalista, que extrapola a
ideia de exploração do trabalho. Nesta relação, o proprietário dos meios de produção
compra força de trabalho, tornando-a uma mercadoria sem relação direta com o valor
do produto final produzido por esse trabalhador. Ou seja, o empregador, dono dos

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meios de produção, querendo obter lucro em suas transações, requisita do trabalhador
uma força de trabalho maior do que a paga.

Data de 1845 uma formulação mais elaborada de Marx sobre o materialismo


feuerbachiano, que ele expõe nas “Teses sobre Feuerbach”. Nesta obra, Marx
expõe a necessidade de uma filosofia que considere a práxis, isto é, a ação prática
humana. As disputas sobre o pensamento, quando deslocadas do caráter prático,
são meras especulações escolásticas, e mesmo o materialismo que se propõe a
uma consideração intuitiva do objeto, também não passa pelo aspecto da práxis
humana. Haja vista a tese central de Feuerbach sobre a autoalienação religiosa cujo
fundamento, para Marx, estaria também no mundano, na atividade prática e no social.
Nesse sentido, sentencia: o materialismo intuitivo, de Feuerbach, é o materialismo do
liberalismo burguês, já o materialismo proposto por Marx é o social.

Da mesma forma que Marx mantém de Feuerbach a ideia de um materialismo, mantém


de Hegel a dialética como estrutura para compreender os processos da vida humana.
Mas a proposta de Marx é de partir do material ao invés do ideal. Nesse sentido, a
filosofia de Marx é uma filosofia prática, que propõe um ideal revolucionário e marca
a crítica à modernidade herdeira do hegelianismo enquanto crítica à ideologia. Isto
aparece não apenas nas “Teses sobre Feuerbach”, mas também em “A ideologia
alemã”, em colaboração com Engels, do mesmo período de 1845-1846.

Vale apresentar aqui uma definição da noção de ideologia, pois é central nos escritos
de Marx. A ideologia é apresentada a partir da noção de Ideia, descaracterizada por
Marx de sua importância tal qual havia no sistema hegeliano; a ideologia seria a
sistematização das ideias como uma forma de ilusão, uma espécie de falsa consciência
sobre os processos. Quando se trata da ideologia alemã, Marx se refere ao idealismo
cuja premissa era o pensamento, como se fosse possível fazer uma filosofia propositiva
a partir da ideia, mas para Marx e Engels isso só se dá empiricamente. Só assim seria
possível escapar do risco de tornar-se ideologia, isto é, procedendo de modo científico
na análise empírica da sociedade.

Atenção
O termo ideologia é de grande relevância e uso ainda nos tempos
atuais, mas note a especificidade do sentido marxista de ideologia:
falsa consciência.

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Com efeito, quando se considera o empírico, o primeiro dado é a existência humana,
que se caracteriza na diferenciação da existência animal pela produção de seus
próprios meios de subsistência, com o que produz indiretamente sua própria existência
material. Assim, o ser do homem é a produção, aquilo que ele faz enquanto o que e
como produz. Esta produção engloba até mesmo a produção das ideias, de modo que
mesmo o intelectual estaria relacionado e condicionado ao material.

Nesse sentido, se a filosofia alemã do idealismo representava um movimento


descendente do céu à terra, das ideias ao material, a de Marx e Engels se caracterizava
por um movimento ascendente da terra ao céu, do material às ideias. Observe na
figura a seguir um quadro comparativo entre o idealismo, que parte do pensamento,
e a filosofia de Marx e Engels, que parte das categorias da realidade com a produção.
Marx e Engels

“da terra ao céu”: a "do céu à terra": a

Idealismo alemão
filosofia parte das filosofia parte das
categorias materiais, categorias de
como a produção, pensamento, como
para chegar ao a consciência, para
homem chegar ao homem

Figura 2 - Idealismo e realidade


Fonte: Elaborada pela autora, 2018.

Ora, mas ao propor uma análise empírica, que parte da realidade, a filosofia de Marx
se diferencia também do empirismo clássico. A noção de história consegue mostrar
isso: para Marx e Engels, ela deve ser uma categoria central da filosofia não enquanto
um conjunto de meros dados, como ocorria ao empirismo, nem como atividade
abstrata da imaginação resultante de sujeitos igualmente abstratos, como ocorria
ao idealismo. Para o materialismo, a história é onde se desenvolvem os processos
materiais, de produção.

Entretanto, colocar a realidade material como a base tem consequências. Tudo aquilo
que é por Marx denominado como ideologia, isto é, os modos de ilusão nos quais o
homem não reconhece aquilo que ele mesmo produziu – a religião, a metafísica, a
moral e a própria filosofia – se torna condicionado à realidade material. Isso significa
a perda do estatuto da independência da filosofia.

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Dessa forma, podemos apontar como uma inovação da parte de Marx o fato de que
ele se apropria da tradição filosófica para considerá-la no sentido de uma filosofia
social. Assim, elementos como as relações de produção, especialmente na sua forma
do trabalho, se tornam centrais para Marx, e assim é que, também na colaboração
Marx-Engels, surge o ideal do comunismo e a declaração expressa da história como
luta de classes, em 1848, com o “Manifesto do Partido Comunista”.

Marx, trabalho e o capital


Atentando para as relações de trabalho já consolidadas em sua época, marcadas pela
primeira Revolução Industrial e distintas das relações de trabalho do feudalismo, Marx
percebe que no processo de produção há formas específicas pelas quais o homem e o
produto de seu trabalho, a mercadoria, se relacionam. Além disso, em cada um destes
polos há elementos de relevância: o próprio trabalho do homem, que se torna cada vez
mais um objeto; e a mercadoria, que por sua vez adquire uma autonomia e uma vida
própria, como se tivesse por si só o seu valor. Daí que Marx concebe uma obra – “O
Capital” – na qual descreve a constituição das relações de trabalho por meio de seus
elementos como a própria definição sobre o que é o trabalho, a transformação do
trabalho em capital, o que é mercadoria e como se constitui seu valor, elementos que
surgem todos no processo de ilusão ou de falsa consciência denominado ideologia,
que marca o estranhamento entre o homem e os produtos de seu trabalho.

Em “O Capital”, Marx mostra que a alienação do homem em relação ao produto de seu


trabalho ocorre, pois, o que se vê é a mercadoria, não o próprio trabalho. É o fetichismo
da mercadoria, que ganha por assim dizer autonomia, vida própria, e se distancia
daquele que a produz. Com isso, as mercadorias são vistas como se tivessem por si
valor e não como algo atribuído, mas é uma ilusão, uma falsa consciência:

[...] o valor, então, não é algo que é ganho pelas mercadorias, pela
incorporação de trabalho nelas, mas aparece aos olhos de todos
como sendo próprio das mercadorias – este é o centro da ideologia do
capitalismo, da falsa consciência criada no capitalismo a respeito de
como ele se dá e se transforma. Assim é que o capital, o dinheiro, os juros,
tudo o que é conferido aos objetos, surgem como verdadeiramente vivos
(GHIRALDELLI JR, 2010, p. 181).

Dessa forma, a alienação tem um duplo sentido: de um lado engendra o fetichismo da


mercadoria, do outro, a reificação do trabalhador, que se transforma em coisa, morto.

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Marx vive no período das transformações técnicas da primeira Revolução Industrial,
entre os séculos XVIII e XIX, período caracterizado pela introdução do maquinismo em
lugar da manufatura. Analisando a passagem da manufatura ao maquinismo, Marx
nota na introdução da máquina uma mudança tão profunda que realoca o lugar do
trabalhador, dado a composição própria da máquina, como a força motriz, o mecanismo
de transmissão e a ferramenta. A máquina-ferramenta é o que representa a maior
mudança, pois as ferramentas são estruturadas de modo mecânico, prescindindo da
força do trabalhador. Vemos aqui a modificação da relação máquina-trabalhador no
âmbito da produção: a máquina é capaz de trabalhar mais e com mais ferramentas
que o homem, mas há também uma consequência, ela exigirá uma força motriz mais
potente, pois a força motriz humana é imperfeita e não dá conta da crescente exigência
de produção. Isso engendra a necessidade de novas fontes de energia capazes de
alimentar mecanismos que operam com várias ferramentas ao mesmo tempo.

Embora o capitalismo e os processos de produção tenham mudado consideravelmente,


ainda subsistem, em grande parte das empresas, linhas de produção como as de
modelo fordista, que servem bem para exemplificar o processo de alienação entre o
homem e a mercadoria.

Figura 3 - Trabalhador e mercadoria na linha de produção


Fonte: Plataforma Deduca (2018).

Em linhas gerais, Marx identifica nos processos de produção, com seus personagens
e disputas, o móvel do curso da história, representando uma forma de oposição à
tradição filosófica, sobretudo a idealista.

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Reflita
Uma das descrições de Marx sobre os processos e formas de
trabalho corresponde à da sociedade da Revolução Industrial, com
a crescente introdução das máquinas. Você consegue imaginar
como eram as relações de trabalho anteriores a este período?

Nietzsche, moral e crítica à naturalização


Friedrich Nietzsche (1844-1900) teve formação em estudos clássicos, teologia,
filosofia e filologia, área na qual teve atuação na universidade. Sua família era de
pastores protestantes, orientação que, em princípio, também Nietzsche deveria seguir,
mas da qual acaba se distanciando de modo definitivo com o tempo. O grande impulso
para sua entrada na filosofia ocorreu com a leitura da obra “O mundo como vontade e
representação” de Schopenhauer. Outra influência marcante na vida de Nietzsche foi
a de Richard Wagner, famoso músico que contribuíra para a formação do pensamento
de Nietzsche sobre música.

As considerações de Nietzsche sobre música se encontram no seu primeiro grande


escrito, “O nascimento da tragédia”, de 1871. Neste escrito, Nietzsche trata da
antiguidade clássica, sua beleza e capacidade de criação, dividindo-a em duas
vertentes inspiradas na mitologia: a dionisíaca e a apolínea.

Ao tratar do dionisíaco, referência ao deus Dionísio, o autor traz a representação da


embriaguez, da paixão, da intensidade desorganizada, do caótico e sem medida. Já
à razão, organização, beleza harmônica e comedida, chamou apolíneo, remetendo-se
ao deus Apolo.

Porém, para Nietzsche, a criação reside na articulação entre essas duas representações,
não estando nem apenas localizada na razão apolínea, nem na desordem criativa
dionisíaca.

Nesta ideia estão fundadas as críticas feitas pelo autor à tradição filosófica da
antiguidade clássica. Nietzsche formula a oposição entre o dionisíaco e o apolíneo
como o principio de uma estética metafísica, não aceitando a ideia de uma Grécia
formada de maneira essencialmente apolínea, pautada na serenidade e beleza, ideia
fundada por Winckelmann e Goethe.

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Ao contrário, relaciona tal surgimento com um aspecto mais profundo da Grécia, o
dionisíaco, que acompanha toda interpretação filosófica, ontológica, metafísica,
apresentando uma visão de mundo trágica — constituída a partir do idealismo absoluto,
no final do século XVIII, representada e clarificada nas interpretações das tragédias
gregas, por exemplo.

Curiosidade
Wagner, de quem Nietzsche esteve muito próximo no período em
que surge “O nascimento da tragédia”, foi um dos maiores e mais
relevantes compositores da Alemanha. Wagner se interessava pela
temática da tragédia na antiguidade, pois considerava que ali havia
um desenvolvimento ideal de todas as artes em conjunto, que o
leva a conceber a ideia da obra de arte total, que se reflete em sua
própria obra na forma de óperas com ricos elementos literários.
Com o tempo, Wagner e Nietzsche se afastam.

A filosofia grega, representada sob a figura de Sócrates, estaria contra estas duas
vertentes. Sócrates é descrito por Nietzsche como o início do declínio da antiguidade,
quando se substitui a beleza típica dos gregos pela influência perniciosa na dialética
e do Logos.

Com Sócrates, predominam os questionamentos morais, ausentes nas teorias pré-


socráticas. Ao falar de moral, valores, o autor propõe uma nova lógica, de transvaloração
de todos valores, ou seja, o rompimento de uma noção de homem ideal e distante, pelo
homem real, que aceita e opera sobre o mundo aqui e agora. Assim, o homem não pode
partir de uma moral que tenha concepções estanques de bem e mal, uma vez que tais
conceitos são considerados como sempre variáveis. Este homem real, em Nietzsche,
não adere aos valores impostos, vive uma vida de intensidades e autenticidades, e,
por isso, sofre as consequências desta escolha, pois entende que a moral não passa
de um mecanismo de controle das ações e pensamentos dos homens via formação e
consolidação de instituições.

Essa transvaloração consiste numa perspectiva da moral onde o homem se desprende


de todos os valores recebidos e os questiona, os relê de maneira profunda. Em
Descartes, Nietzsche encontra outro alvo de crítica: estaria ali a continuação da busca
pela verdade inaugurada por Sócrates.

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Podemos não acreditar mais que esse mundo verdadeiro das ideias
realmente existe no céu e que as coisas em nosso mundo são meramente
cópias dessas ideias. Podemos ter abandonado a ideia de uma
transmigração da alma para explicar nossa habilidade de compreender
o mundo e, ainda assim, acreditarmos que o nível da verdade, como a
relação de ideias claras e distintas, seja completamente separado do
mundo da experiência. Em outras palavras, em relação à questão da
verdade, podemos não ser mais realistas platônicos, mas ainda somos
idealistas cartesianos (HAASE, 2011, p. 24).

Na filosofia moderna, a busca pela verdade se fundamenta naquilo que se torna o


elemento incontestável: o sujeito. Assim, para desfazer o edifício da filosofia racional,
Nietzsche ataca a ideia de sujeito e o faz pela linguagem.

Com efeito, a crítica de Nietzsche não poupa nada: o que estaria em jogo com a
filosofia e com essa busca pela verdade seria antes uma fuga da vida (GHIRALDELLI
JR, 2003), tal como era com Sócrates, contra o que a filosofia de Nietzsche pretende se
voltar e ser uma afirmação da vida. Para tanto, precisa desfazer as certezas filosóficas
como a verdade, o sujeito, e até mesmo os valores estabelecidos como o bem e o
mal, mostrando que todas estas certezas possuem uma origem antes linguística que
ontológica.

A partir da filologia é possível Nietzsche analisar a etimologia dos termos,


desmascarando tudo aquilo que tenha o verniz de verdade absoluta. É o que ocorre na
obra “Genealogia da Moral” com a análise da palavra “bom”. As transformações que
este termo sofre terminam por identificar com a bondade a classe dos escravos e de
todos os humildes, como ocorre com a moralidade cristã. Ora, com este procedimento
de genealogia da moral, Nietzsche expõe a história dos conceitos e valores, como os
de bem e de mal, que não são naturais, e sim criados. Além disso, denuncia a falsa
moral, que contempla valores como a piedade, a humildade e o amor ao próximo.
Explica tais conceitos, a partir da distinção do que chama de: “ a moral de escravos” e
“ a moral dos senhores”.

A moral dos escravos – tomados aqui menos em sentido factual e sim enquanto tipos
-, fracos porque negam a vida e que insistem na descrição dos senhores, os fortes,
como os que são cruéis porque optam pela vida, como se eles pudessem escolher
isso. Aí está o problema, na ficção da noção de liberdade, de que os senhores podem
escolher ser maus. Quando conseguem, pela linguagem, convencer os senhores
de que são maus e cruéis, os senhores, dominados pela culpa, se tornam também
escravos.

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O autor então aponta a necessidade de criar um espaço de reflexão além da moral,
além do bem e do mal, que não enfraqueça os homens nem os torne fracos, tendo a
vontade de potência - capacidade de criação, reflexão e avaliação - e a própria potência
como representação resignificada daquilo que é bom.

Já o sentimento de culpa, de onde vem a noção de pecado, inibe a ação, trazendo um


ideal ascético, onde um mundo superior só pode ser alcançado a partir da mortificação
do sujeito e da negação da alegria. Nesse ideal ascético, a vontade de potência é
aniquilada, se convertendo em vontade de nada, o niilismo. O niilismo (ou o nada, a
não existência) é a expressão do cansaço, do esgotamento e da decadência afetiva e
intelectual.

Esta análise brevemente esboçada, tem a finalidade de mostrar que a consciência, que
se propõe profunda e carregada de interioridade, não passa de pura superficialidade e
de produto da linguagem. Ora, para Nietzsche a vontade de potência tem de representar
algo diferente disso, mas também não pode ser o dominar, pois esta é a visão do
escravo, que tenta se fazer forte justamente porque é fraco, a vontade de potência tem
então de estar além dos valores.

Por isso predominam em Nietzsche as visões de verticalidade: o voo da águia, a


ascensão da montanha, tudo dá a indicação de um novo tipo, o super-homem, que
é aquele que transcende os limites desta moral, da negação da vida que ocorre na
busca pela verdade.

A vontade de poder ou vontade de potência é um conceito que já marca o pensamento


de Nietzsche em relação à tradição filosófica: não se trata de vontade enquanto querer,
enquanto uma faculdade do ser pensante, como era em Descartes. Vontade de poder
em Nietzsche corresponde ao mundo, à realidade e engloba a natureza e os homens.
Esse poder, descrito pelo autor, não se trata de um poder de dominação do outro, mas
sim das forças adormecidas internas, recuperadas pelo sujeito. Representa força,
vigor, capacidade, impulsionando a autorealização.

Nesse sentido, se por um lado a filosofia de Nietzsche é a desnaturalização, ou


transvaloração dos valores, é também um retorno a um pensamento que não
compartilha das separações características da filosofia e do cristianismo, como a
separação homem-natureza (ou cultura-natureza, como foi a descoberta da época),
ou sujeito-objeto, como era na filosofia moderna.

De fato, devemos notar aqui que a crítica de Nietzsche se estende também ao


cristianismo, tal como no platonismo, há a ideia de um algo além que serviria como
consolação para a miséria terrestre. Em ambos os casos, o mundo aparente, material,

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é interpretado como sede do pecado, de sofrimento, de ilusão, e o mundo das ideias, o
mundo celeste, é onde reside a verdade e a salvação da alma. Nietzsche recusa essa
divisão e para desmistificar a metafísica platônica e o cristianismo recorre à filologia
como ferramenta.

Figura 4 - Adão, Eva e o pecado original.


Fonte: Plataforma Deduca (2018).

Em sua oposição à filosofia, onde ficaria Schopenhauer, aquele que fora sua
primeira influência? Uma interpretação possível é a de que a resposta de Nietzsche
ao pessimismo schopenhaueriano apareceria na formulação – não acabada, mas
presente em vários escritos – do eterno retorno enquanto uma forma de sucessão de
eventos que engloba tanto o bem e o mal.

A ideia de eterno retorno, fundada por Nietzsche, sugere polos que não se opõem, mas
se complementam, em vivências que alternadamente se repetem, sem se ater à ideia
de temporalidade. Assim, temos o bem e o mal, o belo e o feio, a criação e destruição,
como complementares contínuos, faces de uma mesma experiência.

Por fim, é preciso notar que a filosofia de Nietzsche sofreu uma apropriação por
parte do nazismo, mas é preciso atentar para alguns fatos. O próprio Nietzsche
teve experiências de guerra na área médica, como voluntário, e esta experiência
lhe impressionou profundamente. Além disso, entendia que a vitória da Alemanha
sobre a França seria prejudicial ao desenvolvimento da cultura. Seu distanciamento
de Wagner deveu-se, em parte, à conversão de Wagner ao cristianismo e adesão ao
antissemitismo.

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Após a morte de Nietzsche, a aproximação entre sua filosofia e o nazismo seria antes
efeito da tentativa de sua irmã Elizabeth de unir os documentos do Nietzsche-Archiv
ao nazismo. Assim, muitas das declarações de Nietzsche, que de fato soam pesadas,
devem ser interpretadas como a crítica que Nietzsche faz às doutrinas totalitárias,
tanto quanto às igualitárias. Para Nietzsche, no socialismo haveria a impossibilidade
de pensar a moral do senhor e do escravo, e neste regime, tanto quanto nos totalitários,
o papel do Estado seria algo a ser repudiado, pois identificado com o signo da violência
– Nietzsche não era adepto do pensamento contratualista, e via a origem do Estado
na violência. Assim, a existência do Estado para ele deveria se condicionar a ser um
meio para o super-homem.

Uma vez que o Estado se ocupa do coletivo, público e social, considerados pelo autor
como instrumentos de melhoria, mas não como meios para elevação de todos. O
super-homem é aquele que se eleva, que coloca sua existência acima das paixões,
dedicando sua vida ao conteúdo de corpo e alma.

Dessa forma, a filosofia de Nietzsche, apesar das declarações ácidas, não deve
ser lida no sentido de um pensamento que favoreceria regimes como o nazismo, e
sim como crítica de certos aspectos deste, levando em consideração a vastidão da
crítica empreendida por Nietzsche. Assim, se Marx se apropria da tradição filosófica
por meio da crítica e a torna uma filosofia social, Nietzsche se aprofunda tanto na
crítica que termina por demolir um dos pilares centrais da filosofia: a própria noção
de verdade. Por conta de seu posicionamento inovador em relação ao problema da
verdade, Nietzsche é tido como o marco final da filosofia moderna.

Em 1879, com a obra “Humano, demasiadamente humano”, Nietzsche inicia sua


crítica dos valores, apontados como uma criação do homem, que os toma, porém,
como absolutos, em vez de neles recordar o aspecto humano e de criação. Essa
crítica dos valores marcará todo o projeto da filosofia de Nietzsche e inclusive sua
visão sobre a própria filosofia. Justamente disso deriva a forma e o estilo, por vezes
inusitados, dos quais Nietzsche se vale: com os aforismos e com o poema, bem como
pelo tom feroz, sarcástico, Nietzsche faz a crítica da tradição filosófica e em vez da
busca pela verdade, que caracteriza toda esta tradição, concentra-se na interpretação
e avaliação dos fenômenos, sem pretensão de verdade absoluta. Tal deve ser então o
procedimento da filosofia.

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Conclusão
Finalizamos o estudo deste conteúdo conhecendo um pouco mais sobre a filosofia,
especialmente a contemporânea. Foram apresentados os seguintes pontos:

• Tanto Marx como Nietzsche partem da tradição filosófica mantendo elemen-


tos pontuais para formular uma crítica.
• Marx direciona sua crítica sobretudo à tradição do idealismo alemão de in-
terpretação da realidade pela razão. Em conjunto com Engels, para Marx, a
filosofia deve partir do elemento material para sua interpretação da realidade,
diferenciando-se, porém, também do materialismo de Feuerbach; mantendo
a dialética hegeliana como estrutura dos processos, se trataria de um mate-
rialismo dialético e histórico. De acordo com isso, a realidade se apresentaria
sob a forma da luta de classes entre a burguesia e o proletariado.
• Quanto ao proletariado, na nova forma de organização socioeconômica pos-
terior ao feudalismo, as relações de trabalho favorecem o distanciamento
entre o homem e os produtos de seu trabalho: a produção humana é vista,
enquanto mercadoria, como produto que nada tem a ver com o homem. Esse
processo ilusório chamado de ideologia resulta, por um lado, no fetichismo da
mercadoria e, por outro, na reificação do homem.
• Nietzsche também parte de uma forte base filosófica, mas acrescido dos es-
tudos de filologia, que lhe rendem grande consideração pela linguagem no
processo de crítica da tradição filosófica.
• Seus maiores alvos são a verdade, o sujeito e a moral: é a partir da análise
etimológica dos termos, que Nietzsche mostra como esses conceitos foram
fabricados em processos que resultam tanto na tradição filosófica de nega-
ção da vida do niilismo, quanto no cristianismo do ressentimento, da culpa, da
moral dos escravos.
• Contra isso, Nietzsche propõe uma filosofia acima do bem e do mal, um ho-
mem acima dos valores (o super-homem) e a vontade de poder enquanto afir-
mação da vida.

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Saiba mais
A tradição marxista sobrevive no tempo e seus adeptos cuidam da
preservação e divulgação de seus textos. Parte deste acervo, bem
como demais materiais, pode ser consultado em: https://www.
marxists.org/portugues/index.htm.

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Referências
GHIRALDELLI Jr, P. Introdução à Filosofia. Barueri: Manole, 2003.

________. A aventura da filosofia: de Parmênides a Nietzsche. Barueri: Manole, 2010.

HAASE, U. Nietzsche. Porto Alegre: Artmed, 2011.

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