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Sociedade
Rosana de Oliveira
Filosofia, Tradição e
Sociedade
Introdução
Neste conteúdo, vamos estudar dois dos pensadores mais conhecidos da humanidade,
muito apreciados não só por estudantes e leitores de filosofia: Marx e Nietzsche. Ambos
se inserem na história da filosofia no período da passagem da filosofia moderna à
contemporânea e podem ser lidos como autores de crítica da tradição filosófica que,
a partir disso, constroem sua filosofia. Vamos compreender em que sentido se dá esta
crítica e quais as diferenças nos modos pelos quais Marx e Nietzsche empreendem
tal atividade. Com isso, vamos analisar os principais pontos das filosofias de Marx e
Nietzsche e abordar temas fundamentais como: o materialismo histórico e dialético
e suas implicações para a filosofia na relação com a sociedade e a economia política;
o perspectivismo moral, a crítica dos valores, do sujeito e da verdade, com sua nova
tarefa para a filosofia. Além disso, vamos atentar ainda para alguns mal-entendidos
sobre as concepções filosóficas de Marx e Nietzsche.
Objetivos da Aprendizagem
• Localizar a crítica à ideologia e ao idealismo e a constituição do materialismo
nos escritos de Marx.
• Analisar o tratamento sobre o trabalho e a técnica em “O Capital”.
• Identificar o perspectivismo moral de Nietzsche como uma crítica à moral e à
naturalização dos valores e destacar o projeto da genealogia.
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A sociedade: mais-valia e valor
Enquanto projeto de crítica da modernidade, a principal referência de Karl Marx (1818-
1883) – e, como já se deve destacar, de seu principal colaborador, Friedrich Engels
(1820-1895) – foi Hegel. No período de Marx e Engels, a influência de Hegel era enorme
e se dividia entre os antigos hegelianos (também chamados hegelianos de direita)
e os jovens hegelianos (os hegelianos de esquerda), de quem Marx brevemente se
aproxima, mas aos quais mais se refere enquanto crítica. Os hegelianos de esquerda
herdaram de Hegel as teses sobre o idealismo e pretendiam, a partir disso, uma
resolução dos problemas baseada na razão enquanto ideia e realidade.
Para completar este quadro, acrescente a participação de Engels, com quem Marx entra
em contato por volta de 1844. Neste período, Marx já havia passado por sua formação
filosófica com uma tese de doutorado sobre os filósofos materialistas Demócrito e
Epicuro e prosseguira em carreira jornalística, editando a Gazeta Renânia e colaborando
com os Anais Franco-Alemães. Toda esta formação não significa que Marx foi alheio
às questões sociais e econômicas, pelo contrário, sua cidade de nascimento, Trier, é
apontada como um dos centros nos quais se desenvolveram inicialmente as classes
burguesa e proletária. Localizada a oeste da Alemanha, no período de Marx, pertencia
à Prússia e pela localização era fortemente influenciada pela França e pelos seus
ideais revolucionários. Assim é que Trier foi uma das pioneiras no desenvolvimento de
uma forma de organização distinta dos demais estados alemães, já estava presente
ali a dicotomia burguesia-proletariado. Desta forma, ainda que Engels tenha sido para
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Marx o introdutor da economia política, Marx já vinha de uma condição natal que
favorecia a consciência de classe. Mas o fato é que a economia política, e também o
socialismo, se tornam centrais para Marx depois de ter terminado seu doutorado em
filosofia, e tal contato ocorre em sua atividade jornalística, reforçando-se também no
contato com Engels.
Com efeito, Engels é quem já tivera contato com os economistas ingleses e com o
socialismo, como mostra em seu escrito “Esboços de uma crítica da economia política”.
Os Esboços têm efeito decisivo sobre Marx, que passa a trabalhar em conjunto com
Engels e desta colaboração surge, em 1844, os “Manuscritos Econômico-Filosóficos”,
com autoria de Marx. Ali, Marx faz a crítica dos economistas ingleses identificados
como o liberalismo burguês. O princípio da alienação, distintamente do uso de Hegel
e também de Feuerbach, assume aqui outro – e central – significado: é deslocado
para o campo da economia e passa a representar a objetivação do trabalho proletário
na produção, sendo esta transformada e alienada em capital. Isso significa que o
proletariado não consegue reconhecer seu trabalho nas mercadorias que ele mesmo
produz, pois na medida em que a relação do homem com o trabalho se reconfigura,
este deixa de representar uma forma de interação com o mundo e passa a estabelecer
relação direta com o capital.
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meios de produção, querendo obter lucro em suas transações, requisita do trabalhador
uma força de trabalho maior do que a paga.
Vale apresentar aqui uma definição da noção de ideologia, pois é central nos escritos
de Marx. A ideologia é apresentada a partir da noção de Ideia, descaracterizada por
Marx de sua importância tal qual havia no sistema hegeliano; a ideologia seria a
sistematização das ideias como uma forma de ilusão, uma espécie de falsa consciência
sobre os processos. Quando se trata da ideologia alemã, Marx se refere ao idealismo
cuja premissa era o pensamento, como se fosse possível fazer uma filosofia propositiva
a partir da ideia, mas para Marx e Engels isso só se dá empiricamente. Só assim seria
possível escapar do risco de tornar-se ideologia, isto é, procedendo de modo científico
na análise empírica da sociedade.
Atenção
O termo ideologia é de grande relevância e uso ainda nos tempos
atuais, mas note a especificidade do sentido marxista de ideologia:
falsa consciência.
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Com efeito, quando se considera o empírico, o primeiro dado é a existência humana,
que se caracteriza na diferenciação da existência animal pela produção de seus
próprios meios de subsistência, com o que produz indiretamente sua própria existência
material. Assim, o ser do homem é a produção, aquilo que ele faz enquanto o que e
como produz. Esta produção engloba até mesmo a produção das ideias, de modo que
mesmo o intelectual estaria relacionado e condicionado ao material.
Idealismo alemão
filosofia parte das filosofia parte das
categorias materiais, categorias de
como a produção, pensamento, como
para chegar ao a consciência, para
homem chegar ao homem
Ora, mas ao propor uma análise empírica, que parte da realidade, a filosofia de Marx
se diferencia também do empirismo clássico. A noção de história consegue mostrar
isso: para Marx e Engels, ela deve ser uma categoria central da filosofia não enquanto
um conjunto de meros dados, como ocorria ao empirismo, nem como atividade
abstrata da imaginação resultante de sujeitos igualmente abstratos, como ocorria
ao idealismo. Para o materialismo, a história é onde se desenvolvem os processos
materiais, de produção.
Entretanto, colocar a realidade material como a base tem consequências. Tudo aquilo
que é por Marx denominado como ideologia, isto é, os modos de ilusão nos quais o
homem não reconhece aquilo que ele mesmo produziu – a religião, a metafísica, a
moral e a própria filosofia – se torna condicionado à realidade material. Isso significa
a perda do estatuto da independência da filosofia.
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Dessa forma, podemos apontar como uma inovação da parte de Marx o fato de que
ele se apropria da tradição filosófica para considerá-la no sentido de uma filosofia
social. Assim, elementos como as relações de produção, especialmente na sua forma
do trabalho, se tornam centrais para Marx, e assim é que, também na colaboração
Marx-Engels, surge o ideal do comunismo e a declaração expressa da história como
luta de classes, em 1848, com o “Manifesto do Partido Comunista”.
[...] o valor, então, não é algo que é ganho pelas mercadorias, pela
incorporação de trabalho nelas, mas aparece aos olhos de todos
como sendo próprio das mercadorias – este é o centro da ideologia do
capitalismo, da falsa consciência criada no capitalismo a respeito de
como ele se dá e se transforma. Assim é que o capital, o dinheiro, os juros,
tudo o que é conferido aos objetos, surgem como verdadeiramente vivos
(GHIRALDELLI JR, 2010, p. 181).
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Marx vive no período das transformações técnicas da primeira Revolução Industrial,
entre os séculos XVIII e XIX, período caracterizado pela introdução do maquinismo em
lugar da manufatura. Analisando a passagem da manufatura ao maquinismo, Marx
nota na introdução da máquina uma mudança tão profunda que realoca o lugar do
trabalhador, dado a composição própria da máquina, como a força motriz, o mecanismo
de transmissão e a ferramenta. A máquina-ferramenta é o que representa a maior
mudança, pois as ferramentas são estruturadas de modo mecânico, prescindindo da
força do trabalhador. Vemos aqui a modificação da relação máquina-trabalhador no
âmbito da produção: a máquina é capaz de trabalhar mais e com mais ferramentas
que o homem, mas há também uma consequência, ela exigirá uma força motriz mais
potente, pois a força motriz humana é imperfeita e não dá conta da crescente exigência
de produção. Isso engendra a necessidade de novas fontes de energia capazes de
alimentar mecanismos que operam com várias ferramentas ao mesmo tempo.
Em linhas gerais, Marx identifica nos processos de produção, com seus personagens
e disputas, o móvel do curso da história, representando uma forma de oposição à
tradição filosófica, sobretudo a idealista.
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Reflita
Uma das descrições de Marx sobre os processos e formas de
trabalho corresponde à da sociedade da Revolução Industrial, com
a crescente introdução das máquinas. Você consegue imaginar
como eram as relações de trabalho anteriores a este período?
Porém, para Nietzsche, a criação reside na articulação entre essas duas representações,
não estando nem apenas localizada na razão apolínea, nem na desordem criativa
dionisíaca.
Nesta ideia estão fundadas as críticas feitas pelo autor à tradição filosófica da
antiguidade clássica. Nietzsche formula a oposição entre o dionisíaco e o apolíneo
como o principio de uma estética metafísica, não aceitando a ideia de uma Grécia
formada de maneira essencialmente apolínea, pautada na serenidade e beleza, ideia
fundada por Winckelmann e Goethe.
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Ao contrário, relaciona tal surgimento com um aspecto mais profundo da Grécia, o
dionisíaco, que acompanha toda interpretação filosófica, ontológica, metafísica,
apresentando uma visão de mundo trágica — constituída a partir do idealismo absoluto,
no final do século XVIII, representada e clarificada nas interpretações das tragédias
gregas, por exemplo.
Curiosidade
Wagner, de quem Nietzsche esteve muito próximo no período em
que surge “O nascimento da tragédia”, foi um dos maiores e mais
relevantes compositores da Alemanha. Wagner se interessava pela
temática da tragédia na antiguidade, pois considerava que ali havia
um desenvolvimento ideal de todas as artes em conjunto, que o
leva a conceber a ideia da obra de arte total, que se reflete em sua
própria obra na forma de óperas com ricos elementos literários.
Com o tempo, Wagner e Nietzsche se afastam.
A filosofia grega, representada sob a figura de Sócrates, estaria contra estas duas
vertentes. Sócrates é descrito por Nietzsche como o início do declínio da antiguidade,
quando se substitui a beleza típica dos gregos pela influência perniciosa na dialética
e do Logos.
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Podemos não acreditar mais que esse mundo verdadeiro das ideias
realmente existe no céu e que as coisas em nosso mundo são meramente
cópias dessas ideias. Podemos ter abandonado a ideia de uma
transmigração da alma para explicar nossa habilidade de compreender
o mundo e, ainda assim, acreditarmos que o nível da verdade, como a
relação de ideias claras e distintas, seja completamente separado do
mundo da experiência. Em outras palavras, em relação à questão da
verdade, podemos não ser mais realistas platônicos, mas ainda somos
idealistas cartesianos (HAASE, 2011, p. 24).
Com efeito, a crítica de Nietzsche não poupa nada: o que estaria em jogo com a
filosofia e com essa busca pela verdade seria antes uma fuga da vida (GHIRALDELLI
JR, 2003), tal como era com Sócrates, contra o que a filosofia de Nietzsche pretende se
voltar e ser uma afirmação da vida. Para tanto, precisa desfazer as certezas filosóficas
como a verdade, o sujeito, e até mesmo os valores estabelecidos como o bem e o
mal, mostrando que todas estas certezas possuem uma origem antes linguística que
ontológica.
A moral dos escravos – tomados aqui menos em sentido factual e sim enquanto tipos
-, fracos porque negam a vida e que insistem na descrição dos senhores, os fortes,
como os que são cruéis porque optam pela vida, como se eles pudessem escolher
isso. Aí está o problema, na ficção da noção de liberdade, de que os senhores podem
escolher ser maus. Quando conseguem, pela linguagem, convencer os senhores
de que são maus e cruéis, os senhores, dominados pela culpa, se tornam também
escravos.
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O autor então aponta a necessidade de criar um espaço de reflexão além da moral,
além do bem e do mal, que não enfraqueça os homens nem os torne fracos, tendo a
vontade de potência - capacidade de criação, reflexão e avaliação - e a própria potência
como representação resignificada daquilo que é bom.
Esta análise brevemente esboçada, tem a finalidade de mostrar que a consciência, que
se propõe profunda e carregada de interioridade, não passa de pura superficialidade e
de produto da linguagem. Ora, para Nietzsche a vontade de potência tem de representar
algo diferente disso, mas também não pode ser o dominar, pois esta é a visão do
escravo, que tenta se fazer forte justamente porque é fraco, a vontade de potência tem
então de estar além dos valores.
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é interpretado como sede do pecado, de sofrimento, de ilusão, e o mundo das ideias, o
mundo celeste, é onde reside a verdade e a salvação da alma. Nietzsche recusa essa
divisão e para desmistificar a metafísica platônica e o cristianismo recorre à filologia
como ferramenta.
Em sua oposição à filosofia, onde ficaria Schopenhauer, aquele que fora sua
primeira influência? Uma interpretação possível é a de que a resposta de Nietzsche
ao pessimismo schopenhaueriano apareceria na formulação – não acabada, mas
presente em vários escritos – do eterno retorno enquanto uma forma de sucessão de
eventos que engloba tanto o bem e o mal.
A ideia de eterno retorno, fundada por Nietzsche, sugere polos que não se opõem, mas
se complementam, em vivências que alternadamente se repetem, sem se ater à ideia
de temporalidade. Assim, temos o bem e o mal, o belo e o feio, a criação e destruição,
como complementares contínuos, faces de uma mesma experiência.
Por fim, é preciso notar que a filosofia de Nietzsche sofreu uma apropriação por
parte do nazismo, mas é preciso atentar para alguns fatos. O próprio Nietzsche
teve experiências de guerra na área médica, como voluntário, e esta experiência
lhe impressionou profundamente. Além disso, entendia que a vitória da Alemanha
sobre a França seria prejudicial ao desenvolvimento da cultura. Seu distanciamento
de Wagner deveu-se, em parte, à conversão de Wagner ao cristianismo e adesão ao
antissemitismo.
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Após a morte de Nietzsche, a aproximação entre sua filosofia e o nazismo seria antes
efeito da tentativa de sua irmã Elizabeth de unir os documentos do Nietzsche-Archiv
ao nazismo. Assim, muitas das declarações de Nietzsche, que de fato soam pesadas,
devem ser interpretadas como a crítica que Nietzsche faz às doutrinas totalitárias,
tanto quanto às igualitárias. Para Nietzsche, no socialismo haveria a impossibilidade
de pensar a moral do senhor e do escravo, e neste regime, tanto quanto nos totalitários,
o papel do Estado seria algo a ser repudiado, pois identificado com o signo da violência
– Nietzsche não era adepto do pensamento contratualista, e via a origem do Estado
na violência. Assim, a existência do Estado para ele deveria se condicionar a ser um
meio para o super-homem.
Uma vez que o Estado se ocupa do coletivo, público e social, considerados pelo autor
como instrumentos de melhoria, mas não como meios para elevação de todos. O
super-homem é aquele que se eleva, que coloca sua existência acima das paixões,
dedicando sua vida ao conteúdo de corpo e alma.
Dessa forma, a filosofia de Nietzsche, apesar das declarações ácidas, não deve
ser lida no sentido de um pensamento que favoreceria regimes como o nazismo, e
sim como crítica de certos aspectos deste, levando em consideração a vastidão da
crítica empreendida por Nietzsche. Assim, se Marx se apropria da tradição filosófica
por meio da crítica e a torna uma filosofia social, Nietzsche se aprofunda tanto na
crítica que termina por demolir um dos pilares centrais da filosofia: a própria noção
de verdade. Por conta de seu posicionamento inovador em relação ao problema da
verdade, Nietzsche é tido como o marco final da filosofia moderna.
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Conclusão
Finalizamos o estudo deste conteúdo conhecendo um pouco mais sobre a filosofia,
especialmente a contemporânea. Foram apresentados os seguintes pontos:
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Saiba mais
A tradição marxista sobrevive no tempo e seus adeptos cuidam da
preservação e divulgação de seus textos. Parte deste acervo, bem
como demais materiais, pode ser consultado em: https://www.
marxists.org/portugues/index.htm.
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Referências
GHIRALDELLI Jr, P. Introdução à Filosofia. Barueri: Manole, 2003.
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