Comece Onde Você Está Pema Chodron - 240507 - 065135
Comece Onde Você Está Pema Chodron - 240507 - 065135
Comece Onde Você Está Pema Chodron - 240507 - 065135
Tradução de e Root Text of the Seven Points of Training the Mind © 1981, 1986, por
Chögyam Trungpa; tradução revisada © 1993, por Diana J. Mukpo e o Nalanda
Translation Committee. O Sadhana de Mahamudra © 1968, 1976, por Chögyam
Trungpa. Tradução para o português de Os Sete Pontos do Treinamento da Mente – O uso
dos cartões de máximas, por Shambhala Brasil, Comissão Nalanda de Tradução. As
máximas de Atisha foram utilizadas com permissão.
Apêndice
Agradecimentos
Bibliografia
Fontes adicionais
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Sobre a autora
Informações sobre a Sextante
Prefácio
Este livro é sobre o despertar do coração. Ele servirá como guia para quem
deseja saber o que fazer para que o seu autêntico coração compassivo se
manifeste.
Nos dias de hoje, em que tantas pessoas procuram ajuda para lidar com
os próprios sentimentos de dor ao mesmo tempo que desejam aliviar o
sofrimento que veem ao seu redor, os antigos ensinamentos aqui
apresentados são especialmente encorajadores e oportunos. Há instruções
sobre como podemos nos abrir quando percebemos que estamos nos
fechando para nós mesmos e para os outros. E também sobre como
aprender a doar, quando nossa tendência é reter. O que é indesejável, aquilo
que rejeitamos em nós mesmos e nos demais, pode ser visto e sentido com
honestidade e compaixão. Estes ensinamentos nos mostram como não
recuar e ser capaz de dar apoio aos demais.
Tive meu primeiro contato com esses ensinamentos através do texto e
Great Path of Awakening (A grande trilha do despertar), do mestre tibetano
do século XIX Jamgön Kongtrül, o Grande. Chamados de ensinamentos
lojong, eles incluem a meditação tonglen e a prática de trabalhar com os sete
pontos do treinamento da mente, contidos em um antigo texto tibetano
escrito por Chekawa Yeshe Dorje e denominado Texto-raiz dos sete pontos
do treinamento da mente (ver Apêndice).
Lojong signi ca “treinamento da mente”. Os ensinamentos lojong são
organizados a partir de sete pontos, contendo 59 máximas enérgicas que
lembram o que devemos fazer para despertar o coração. Trabalhar com as
máximas é o ponto central deste livro. Esses ensinamentos pertencem à
escola mahayana do budismo, que enfatiza a comunicação e o
relacionamento compassivo com os outros. Eles também nos ajudam a
perceber que a sensação de haver um “eu” e um “outro” – ambos isolados e
separados – não passa de um doloroso mal-entendido que podemos
esclarecer e abandonar.
Tonglen signi ca “dar e tomar”. Essa prática de meditação visa ajudar
pessoas comuns como nós a entrar em contato com a abertura e suavidade
do próprio coração. Por meio do tonglen, em vez de proteger nossos pontos
vulneráveis, nós nos permitimos sentir o que é ser humano. Com isso,
conseguimos ampliar nosso círculo de compaixão. Espero que este livro
possa trazer a todos esse encorajamento.
Quando li pela primeira vez os ensinamentos lojong, senti-me tocada
pela mensagem pouco habitual de que podemos usar nossas di culdades e
problemas para despertar o coração. Em vez de encarar os aspectos
indesejáveis da vida como obstáculos, Jamgön Kongtrül os apresentava
como a matéria-prima necessária para despertar uma compaixão genuína e
sem artifícios: podemos começar no ponto em que estamos. Embora os
ensinamentos de Kongtrül enfatizem principalmente o ato de tomar para si
o sofrimento dos outros, ca evidente, nos dias de hoje, que o primeiro
passo deve ser desenvolver compaixão por nosso próprio sofrimento. Este
livro repete diversas vezes que a compaixão incondicional em relação a nós
mesmos conduz naturalmente à compaixão incondicional pelos outros. Se
estivermos dispostos a ocupar plenamente o lugar que nos pertence e nunca
desistir de nós mesmos, seremos capazes de nos colocar no lugar dos outros
e nunca desistir deles. A compaixão verdadeira não decorre de querer ajudar
os que são menos afortunados, mas de perceber nossa a nidade com todos
os seres.
Mais tarde, ouvi essas instruções apresentadas de forma mais atualizada
por meu próprio mestre, Chögyam Trungpa Rinpoche, que depois publicou
seus ensinamentos no livro Training the Mind and Cultivating Loving-
Kindness (Treinando a mente e cultivando a bondade amorosa). Trungpa
Rinpoche dizia que havia recebido essas lições ainda bem jovem e que
sentira um grande alívio ao descobrir que o budismo podia ser tão prático e
útil na vida cotidiana. Ele se sentiu inspirado ao perceber que podemos
trazer tudo que encontramos para o caminho, usando os acontecimentos
para despertar nossa inteligência, compaixão e capacidade de ter uma nova
visão.
No inverno de 1992 e 1993, conduzi dathuns – períodos de prática de
um mês – inteiramente dedicados aos ensinamentos lojong e à meditação
tonglen. À medida que as inevitáveis frustrações e di culdades da vida diária
surgiam, os participantes se empenharam em colocar essas instruções em
prática. Víamos o dathun como uma oportunidade para levá-las a sério e
aplicá-las a todas as situações, principalmente àquelas que, de modo geral,
teríamos preferido ignorar, ou às quais reagiríamos criticando ou culpando
alguém. Ou seja, encaramos o dathun como uma oportunidade de usar os
ensinamentos para nos relacionar diretamente – com a mente e o coração
abertos – com a agressividade, o desejo e a rejeição que víamos em nós
mesmos e nos demais.
Os ensinamentos lojong apresentam a possibilidade de uma completa
mudança de atitude, mesmo para os que não estão familiarizados com a
meditação: podemos nos relacionar de forma compassiva com o que
gostaríamos de manter a distância e aprender a doar e compartilhar aquilo a
que mais nos apegamos.
Para aqueles que se consideram preparados para praticar a meditação
sentada e a meditação tonglen, e acham que podem trabalhar com as
máximas lojong de forma permanente, este pode ser o começo de um belo
aprendizado sobre o que realmente signi ca amar. Este é um método que
fornece muito espaço, de forma que as pessoas possam se descontrair e se
tornar mais abertas. Este é o caminho para um viver solidário incondicional
e destina-se principalmente àqueles que estão passando por momentos de
escuridão. Que ele possa bene ciá-los.
1
Não há saída, não há problema
MEDITAÇÃO SHAMATHA-VIPASHYANA
A PRÁTICA LOJONG
Saímos para uma caminhada esta manhã, mas isso agora é uma
lembrança. Toda situação é uma lembrança fugaz. À medida que a vida
transcorre, as repetições se sucedem – tantas manhãs já foram saudadas,
tantas refeições feitas, tantos percursos para o trabalho e de volta para casa,
tanto tempo passado com a família e os amigos, e assim por diante. Todas
essas situações despertam em nós irritação, desejo, raiva, tristeza e temos
todo tipo de sentimento pelas pessoas com quem trabalhamos ou vivemos,
por aqueles que, como nós, estão em uma la ou enfrentam o trânsito.
Muito ainda vai acontecer dessa mesma forma, repetidamente. Tudo é uma
excelente oportunidade para assimilar essa noção de que cada situação é
como uma lembrança.
Há apenas alguns momentos vocês estavam no saguão, mas esse fato já é
somente uma lembrança. Naquele momento, porém, era muito real. Agora
estou falando, mas o que acabei de dizer já passou.
Em relação às máximas que tratam da verdade absoluta – da abertura –,
dizem que não devemos a rmar: “Ah, sim, já entendi”, mas apenas permitir
que haja uma lacuna mental e questionar: “Pode ser isso mesmo? Será que
estou sonhando?” Belisque-se. Os sonhos são tão convincentes quanto a
realidade. Comece a pensar que talvez as coisas não sejam tão sólidas ou
con áveis quanto parecem.
Às vezes, temos essa experiência de forma automática – ela nos acontece
naturalmente. Recentemente, li sobre alguém que estava caminhando nas
montanhas e viu-se sozinho em uma região deserta, a uma grande altitude.
Se algum de vocês já esteve em um lugar muito alto, sabe que a luz ali é
diferente. É mais azul, há maior luminosidade. As coisas parecem mais
difusas e menos densas do que numa grande cidade, principalmente se
carmos sozinhos por algum tempo. Às vezes, nem sabemos ao certo se
estamos dormindo ou acordados. Esse homem descreveu que, enquanto
cozinhava, parecia estar vivendo um sonho e, quando saía para uma
caminhada, tinha a impressão de ir em direção a montanhas feitas de ar. Ao
escrever uma carta, sentia que ela era etérea: sua mão segurava uma caneta-
fantasma e escrevia palavras-fantasma que seriam enviadas a um
destinatário-fantasma. Às vezes, também temos esse tipo de experiência no
nosso dia a dia – e isso faz com que nosso mundo pareça muito maior.
Para não estender esse assunto, gostaria de voltar à nossa prática
shamatha. A chave é: não é nada de mais. Todos nós podemos simplesmente
ser mais leves. Considere todos os dharmas como sonhos. Com nossa
mente, fazemos toda uma grande história de nós mesmos, de nossas dores e
problemas.
Se alguém nos orientasse a prestar atenção no começo, meio e m de
cada pensamento, perceberíamos que eles parecem não ter um começo, um
meio e um m. Eles indiscutivelmente estão ali. Com nossa contínua
corrente mental, conversamos internamente, criamos toda uma identidade,
um mundo, uma sensação de ter problemas, um sentimento de bem-estar.
Mas, se tentarmos realmente encontrar os pensamentos, veremos que eles
estão sempre mudando. Como diz a máxima, cada situação – e mesmo cada
palavra, pensamento e emoção – é uma lembrança fugaz. É como tentar ver
a hora em que a água se transforma em vapor. Nunca vamos perceber o
momento exato. Sabemos que a água existe porque podemos bebê-la e usá-
la para fazer sopa ou tomar banho. Também sabemos que o vapor existe,
mas não conseguimos precisar exatamente quando um se transforma no
outro. Tudo é assim.
Você já deve ter passado por uma situação em que, de uma hora para
outra, deixou de se sentir derrotado e ferido e, sem nenhum motivo especial,
percebeu que esses sentimentos simplesmente desapareceram. Apenas
passaram. Quando isso acontece, você ca pensando por que fez “tanto
barulho por nada”. O que era tudo aquilo? Isso também acontece quando
nos apaixonamos. Ficamos completamente envolvidos, pensando em
alguém 24 horas por dia. Nós nos sentimos obcecados e experimentamos
um tremendo desejo. Então, um tempo depois, você tenta entender o que
deu errado, por que o encanto acabou e você não consegue trazê-lo de volta.
Todos nós conhecemos essa sensação: criamos uma grande história e depois
percebemos que não havia nada.
Gostaria de dar a todos um encorajamento para que sejam mais leves e
pratiquem com muita suavidade. Aqui não há um sargento dizendo: “Torne-
se mais leve, senão...” Descobri que, sempre que possível, usamos tudo que
aprendemos contra nós mesmos. Por exemplo, você se sente tenso, lembra
que eu disse para ser mais leve e já pensa: “No fundo, acho melhor desistir
de meditar porque não consigo ser mais leve, logo não sou um candidato a
descobrir nem o bodhichitta nem coisa nenhuma.”
A suavidade, na prática e na vida, ajuda-nos a despertar o bodhichitta. É
como se lembrar de alguma coisa. Essa compaixão, clareza e abertura são
como algo que havíamos esquecido. Ao sentar aqui, sendo gentis em relação
a nós mesmos, estamos fazendo um redescobrimento – como uma mãe que
reencontra o lho. Após uma longa separação, eles voltam a estar juntos.
Para reencontrar o bodhichitta precisamos nos tornar leves, tanto na prática
como em toda a vida.
A meditação é uma maneira formal pela qual você se acostuma a ser
leve. Eu o encorajo a seguir elmente as instruções. Contudo, seja gentil
dentro desse método. Deixe que tudo seja suave. Ao expirar, devemos tocar
a respiração à medida que ela sai, devemos estar com ela. Deixe que isso seja
como relaxar. Sinta que ela sai para o grande espaço e se dissolve. Não se
trata de tentar segurar, franzir a testa e prender a respiração, como se
devêssemos nos aferrar à técnica a todo custo para sermos bons praticantes.
Simplesmente relaxe, seguindo a expiração.
Rotular os pensamentos nos dá um poderoso apoio para sermos mais
leves e é um meio muito útil para nos reconectarmos com a shunyata – essa
dimensão aberta de nosso ser, esse aspecto novo e sem preconceitos de
nossa mente. Quando chegamos ao momento de dizer “pensando”, apenas o
fazemos, com uma atitude imparcial e extrema gentileza. Veja os
pensamentos como bolhas de ar que o rótulo toca com uma pluma. Há
apenas esse leve toque – “pensando” – e eles voltam a se dissolver no espaço.
Não pense em conseguir nada nem se preocupe com perfeição. Apenas
esteja ali a cada momento, tanto quanto puder. Quando perceber que está
divagando mais uma vez, simplesmente tome consciência disso com leveza.
Esse toque leve é a chave de ouro para reencontrar a abertura.
A máxima nos diz para considerar todos os dharmas – ou seja,
considerar tudo – como sonhos. Neste caso, poderíamos dizer “Considere
todos os pensamentos como sonhos”, toque-os simplesmente e deixe-os ir.
Quando perceber que está dando muita importância ao processo, apenas
olhe para isso com muita gentileza, com todo o coração. Não é nada de mais.
Se os pensamentos se dissolvem e você ainda sente ansiedade e tensão,
permita que essas sensações estejam ali, com muito espaço em torno delas.
Apenas deixe acontecer. Quando os pensamentos voltarem, considere-os
como são. Não são nada de mais. Você sempre pode se soltar e se tornar
mais leve.
Esse é o signi cado essencial das máximas do bodhichitta absoluto –
conectar-se com a qualidade aberta e espaçosa da mente, de modo a
perceber que não há necessidade de se fechar e dar tanta importância a tudo.
Da mesma forma, quando não conseguir deixar de criar uma grande
história, apenas dê a isso muito espaço e permita que também se vá.
Na prática sentada não há como errar, independentemente de como
você esteja. Apenas relaxe. Relaxe seus ombros, seu estômago, seu coração e
sua mente. Traga para a meditação toda a suavidade que puder. A técnica já
é bastante precisa. Ela possui uma estrutura, uma forma. Portanto, dentro
dessa forma, mova-se com cordialidade e gentileza. É assim que se desperta
o bodhichitta.
3
Puxando o tapete
* Narrativa metafórica apresentada sob a forma de desa o mental com a nalidade de exercitar a
atenção e conduzir ao despertar.
A máxima “seja grato a todos” refere-se a fazer as pazes com aspectos que
rejeitamos em nós mesmos. Ao agir assim, também fazemos as pazes com as
pessoas de quem não gostamos, pois estar com elas frequentemente
funciona como catalisador para desenvolvermos amizade em relação a nós
mesmos. Portanto, “seja grato a todos”.
Se zéssemos uma lista das pessoas de quem não gostamos – as que
achamos insuportáveis, ameaçadoras ou dignas de desprezo –,
descobriríamos muito sobre os aspectos de nós mesmos que não
conseguimos encarar. Se atribuíssemos uma palavra a cada um dos criadores
de caso que aparecem em nossa vida, acabaríamos com uma lista de
características nossas que rejeitamos e projetamos no mundo exterior.
Mesmo sem ter consciência disso, as pessoas que nos causam aversão
mostram aspectos que consideramos inaceitáveis em nós mesmos e que,
sem elas, não conseguiríamos enxergar. Nos ensinamentos tradicionais de
lojong, isso é colocado de outra maneira: os outros desencadeiam nosso
carma mal resolvido. Eles funcionam como um espelho e nos oferecem a
oportunidade de nos reconciliarmos com antigos problemas que carregamos
por aí como uma mochila cheia de pedras.
“Seja grato a todos” é uma forma de dizer que podemos aprender com
qualquer situação, principalmente se praticarmos essa máxima com
consciência. As pessoas e situações de nossa vida podem servir como
lembrete para percebermos a neurose como neurose, para vermos quando
estamos no quarto en ados debaixo das cobertas, quando fechamos as
cortinas, trancamos a porta e decidimos car por ali mesmo.
Podemos aprender com tudo porque temos sabedoria, inteligência e
bondade fundamentais. Portanto, quando o ambiente é propício e nos
estimula a ter coragem, a abrir o coração e a mente, descobrimos que
podemos nos conectar com a sabedoria e a compaixão que já existem –
buscamos recursos em nossa própria fonte, naquilo que já possuímos.
Temos vontade de abrir os olhos, o coração e a mente, de permitir que as
situações da vida se tornem nossos mestres. Com consciência, somos
capazes de descobrir por nós mesmos o que causa infelicidade e o que gera
alegria.
“Ser grato a todos” é alcançar uma completa mudança de atitude. Essa
máxima não é insípida nem ingênua – não signi ca que, se formos atacados
e assaltados na rua, devemos sorrir com condescendência e dizer: “Ah! Devo
ser grato a isso”, antes de desmaiar. Essa máxima refere-se ao modo como
aumentamos nossa ignorância através da fuga, sem perceber que estamos
ingerindo veneno, que estamos colocando mais uma camada de proteção
sobre nosso coração e deixando de ver o que realmente acontece.
“Seja grato a todos” signi ca que todas as situações são um aprendizado
e, frequentemente, as mais difíceis são as que mais nos ensinam. Pode haver
um Juan, um João ou uma Joana em nossa vida, e são eles que nos fazem
andar para a frente. Estou falando daqueles que não vão embora: mãe,
marido, mulher, amores, lhos – as pessoas com quem lidamos todo santo
dia e que fazem parte de situações que não podemos evitar.
Essas situações realmente nos ensinam porque não existe uma solução
pronta para elas. Estamos a cada dia enfrentando adversários, encarando
desa os e chegando ao limite. Ninguém pode nos dizer exatamente o que
fazer, já que só nós conhecemos nossa tortura, só nós sabemos onde nosso
relacionamento com João ou Joana nos atinge. Os outros não sabem: eles
não sabem quando devemos ser mais gentis ou mais diretos, quando
precisamos car quietos e quando precisamos falar.
Ninguém sabe o que abrir a porta signi ca para cada um de nós. Para
alguns, falar já é abrir um pouquinho; para outros, isso acontece quando se
calam. Tudo tem a ver com nossa antiga e habitual reação a um momento
difícil, e com o que é preciso para suavizar a situação e causar uma mudança
de atitude. São os Joões e Joanas que nos confrontam com esses dilemas e
desa os.
Basicamente, só conseguiremos nos comunicar com essas pessoas se
encararmos os ensinamentos e a prática de forma muito pessoal, sem contar
com a interpretação dos outros. Já possuímos sabedoria interior e cabe a nós
descobrir o que é preciso para abrir a porta. Por alguma razão, por mais que
desejemos que desapareçam da nossa vida e nos deem um descanso, essas
pessoas estão sempre por ali e, mesmo quando conseguimos nos livrar delas,
muito rapidamente parecem reaparecer com outros nomes e rostos. São elas
que apontam nossos aspectos mais arraigados.
Quanto a ser grato a tudo, é importante perceber que nenhuma máxima,
nenhuma prática de meditação nem nada do que ouvimos nos
ensinamentos representa uma solução. Estamos evoluindo. Estamos
continuamente aprendendo, abrindo-nos mais e mais.
É bom manter a mente aberta, de modo que cada situação seja
completamente nova. É como se nunca tivéssemos estado ali, como se cada
cena fosse inédita. Entretanto, mesmo essa abordagem pode ser uma
armadilha. Digamos que você seja instrutor de meditação. Sua aluna chega
e, por você estar aberto e sintonizado, algo mágico acontece. Existe algum
tipo de comunicação verdadeira e é possível perceber que alguma ajuda foi
dada, que algo atravessou a barreira e houve conexão com o outro coração.
Quando ela sai, você se sente ótimo: “Uau! Fiz algo maravilhoso e pude
sentir isso.” Quando o próximo aluno entra, você esquece que essa é uma
situação nova porque ainda está se sentindo muito bem com o que acabou
de acontecer. Ele senta, fala – e você se sai com as mesmas respostas que
acabou de dar. O resultado, entretanto, é uma reação fria e desinteressada.
Você passa, então, pela humilhante experiência de perceber que não existe
uma única solução para um problema. Ajudar a si mesmo ou aos outros tem
a ver com abrir-se e apenas estar ali: é assim que alguma coisa acontece entre
as pessoas. Esse é, porém, um processo contínuo de aprendizado. Não é
su ciente abrir-se apenas uma vez.
O que aprendemos com os Joões e Joanas da nossa vida não é algo que
podemos patentear e vender, com absoluta certeza de que sempre vai dar
certo. Não é assim que funciona. Esse tipo de aprendizado é uma contínua
jornada rumo ao despertar.
Certa vez, eu trabalhava com um estudante de meditação – a quem
chamarei de Dan – que tinha um sério problema com álcool e drogas. Ele
estava fazendo grandes progressos, mas, em um dado momento, tomou uma
bebedeira. No dia em que soube disso, tive a oportunidade de encontrar
Trungpa Rinpoche. Não me contive e contei a ele quanto estava aborrecida
por Dan ter bebido. Eu estava muito decepcionada. Bem, Rinpoche cou
muito bravo, e isso estancou completamente meu coração e minha mente.
Ele disse que estar chateada com a bebedeira de Dan era problema meu:
“Você nunca deve ter expectativas em relação aos outros. Apenas seja gentil.”
Quanto a Dan, eu deveria apenas ajudá-lo a progredir, centímetro por
centímetro, e ser gentil – convidá-lo para jantar, dar-lhe pequenos presentes
e fazer o que fosse possível para trazer alguma alegria à sua vida – sem xar
grandes metas para ele. Disse-me também que colocar objetivos para os
outros pode ser agressivo: o que realmente queremos é uma história de
sucesso para nós mesmos. Quando agimos assim, estamos querendo que os
outros vivam de acordo com nossos ideais. Em vez disso, devemos apenas
ser bondosos.
O ponto principal do “Seja grato a todos” – a “cutucada” – é que
queremos nos livrar das situações que mais nos deixam loucos: nossos Joões
e Joanas. Não desejamos ser gratos a eles. Queremos resolver o problema e
não sentir mais dor. João nos faz sentir envergonhados, rebaixados ou
ofendidos; algo no jeito como ele nos trata nos faz tanto mal que
simplesmente queremos acabar com isso.
Essa máxima nos encoraja a perceber que, no momento em que
encontramos um adversário à altura, também encontramos um mestre. Isso
não signi ca que devemos nos calar, não dizer nada, e apenas car ali,
inspirando e expirando – embora essa possa ser exatamente a nossa reação.
O tonglen é muito mais profundo do que isso e tem a ver com abrir-se à
situação, de modo que a bondade fundamental de João ou Joana e nossa
própria bondade fundamental comecem a se comunicar.
Precisamos de algo que ca entre reprimir e extravasar, mas que é único
e diferente a cada vez: nossa sabedoria nos permitirá descobrir o que é isso.
Cada um de nós possui sabedoria para chegar à abertura: ela é inerente a
todos nós. Não ser aprisionado pelo ego é um processo que implica render-
se às situações, não para ser vitorioso, mas para chegar a uma comunicação.
A ação e a fala compassivas não são uma tentativa isolada, mas uma
jornada para toda a vida. Essa jornada, porém, parece começar ao
percebermos que, quando alguém nos atinge e nos deixa loucos, a solução
não é ser tão simplista a ponto de engolir qualquer coisa, como uma
minhoca: “Tudo bem, podem me atacar.” Por outro lado, também não é tão
fácil quanto dizer: “Vou pegá-los.” É um desa o. Nesse momento surge o
koan na vida cotidiana: as questões sem resposta que a vida nos apresenta
são nossos maiores mestres.
Quando Atisha, o grande mestre budista hindu, foi ao Tibete, já
praticava os ensinamentos lojong há algum tempo. Como a maioria dos
praticantes, sentia-se obcecado pelo fato de que há pontos cegos que
desconhecemos – não sabemos que estamos presos em determinados
aspectos. Por isso, valorizava os Joões e Joanas de sua vida, pois sentia que
somente eles seriam capazes de afetá-lo o bastante para lhe mostrar seus
pontos obscuros. Por meio deles, seu ego cava menor. Por meio deles, sua
compaixão aumentava.
A história conta que Atisha foi informado de que os tibetanos eram
afáveis, simples, exíveis e abertos. Atisha achou que eles não seriam
irritantes o bastante para tirá-lo do sério e, por isso, levou como auxiliar um
jovem bengalês, genioso e de temperamento difícil, pois achava que essa
seria a única maneira de permanecer atento. Os tibetanos gostam de contar
que, quando chegou ao Tibete, esse mestre percebeu que nem precisava ter
trazido seu acompanhante, já que a população local era bem mais
desagradável do que ele esperava.
Em nossa própria vida, nossos acompanhantes bengaleses são as pessoas
que, assim que as deixamos cruzar a soleira da porta, vão direto ao porão
onde guardamos muitas coisas que preferimos nem ver, pegam algo, trazem
até nós e perguntam: “Isto é seu?”
Essas são aquelas pessoas que dizem: “De jeito nenhum vou fazer o que
acabou de me pedir. Acho sua ideia estúpida”, bem no momento em que seu
estilo habitual está funcionando e todos estão a seu favor. Você pensa: “E
agora, o que eu faço?” Em geral, o que fazemos é tentar conseguir que os
outros passem para o nosso time. Sentamos e falamos sobre como essa
pessoa que nos desa ou é horrível. Quando a discordância está nos
domínios da política ou em “ismos” de qualquer natureza, fazemos faixas e
cartazes dizendo até que ponto estamos certos e até que ponto o outro está
errado. A essa altura, nosso adversário também já formou seu time, e assim
surgem os con itos raciais e religiosos e a Terceira Guerra Mundial. Nossa
enfática indignação torna-se um credo para nós e toda a nossa turma.
Acabamos em uma cruzada entre certos e errados, e assim começam os
confrontos. Ninguém nos encoraja a sentir que, em primeiro lugar, fomos
feridos para, em seguida, tentar encontrar a fala e a ação corretas que
poderiam se seguir.
Gurdjieff – mestre do início do século XX e detentor de um tipo de
sabedoria quase louca – compreendia o signi cado dessa máxima. Ele vivia
não muito longe de Paris, em um solar com extensos jardins. Todos os seus
discípulos iam até lá para aprender com ele. Um de seus principais
ensinamentos era o de estar desperto para qualquer processo que se
estivesse atravessando. Ele gostava de pressionar seus alunos; na verdade,
conta-se que ele os fazia aceitar as funções que menos desejavam: se alguém
quisesse ser professor universitário, ele faria com que se tornasse vendedor
de carros usados.
Havia nessa comunidade um homem que tinha um temperamento
horrível. Era tão suscetível que ninguém o suportava. Qualquer coisinha
fazia com que ele tivesse um ataque e casse irritado. Reclamava de tudo e
explodia diante de um simples comentário. Por isso, quando ele estava por
perto, os outros pisavam em ovos. Todos gostariam, simplesmente, que ele
fosse embora.
Gurdjieff costumava pedir a seus alunos que zessem coisas sem sentido.
Um dia, cerca de quarenta pessoas estavam retirando pequenos pedaços de
grama de um lugar e levando para outro ponto do jardim. Isso foi demais
para esse sujeito, foi a gota d’água. Gritou, explodiu, pegou o carro e foi
embora, causando uma reação espontânea de alegria nos demais. Todos
caram animados e felizes. Mas, quando Gurdjieff soube do que havia
acontecido, disse: “Ah, não!”, e saiu atrás dele.
Três dias depois, os dois voltaram. Nessa noite, seu ajudante, ao servir-
lhe o jantar, perguntou: “Por que o senhor o trouxe de volta?” Em voz muito
baixa, ele respondeu: “Você não vai acreditar... isso ca entre nós dois e não
conte para mais ninguém, mas eu pago para que ele que aqui.”
Contei essa história em um centro de meditação e, mais tarde, recebi
uma carta que dizia: “Tínhamos duas pessoas ajudando e tudo estava na
mais perfeita harmonia. Agora, temos quatro, e as confusões estão
começando. Por isso, todos os dias, perguntamos uns aos outros: ‘Alguém
está pagando para que você que por aqui?’”
10
Cortando a solidez dos pensamentos
Certa vez, numa conversa, uma aluna me disse: “Isso tudo é meio
deprimente, não é? Há algo de sinistro e desanimador no que estamos
fazendo aqui. Onde está a alegria? Onde está o bom humor de tudo isso?”
Conversamos um pouco e, no nal, ela teve sua própria intuição: “Acho que
a alegria vem de nos tornarmos reais.”
Isso de fato me impressionou. Quer estejamos nos conectando com o
autêntico coração da tristeza e com as áreas confusas de nossa vida, quer
com a visão, expansão e abertura, o bem-estar inclui tudo que existe. A
alegria não tem a ver com prazer em oposição à dor, ou com entusiasmo em
oposição à tristeza. A alegria engloba tudo.
Há uma máxima que diz: “Não chafurde na autocomiseração.” Se você
acha que a prática do tonglen o faz chorar muito, essa é uma boa máxima
para ter em mente. Essa abordagem, em geral, pode evoluir facilmente para
a autopiedade, e a autopiedade requer muita manutenção. Para sustentá-la, é
preciso falar um bocado consigo mesmo. Essa máxima nos diz para
conhecer a sensação causada pela autocomiseração que permeia nossa
história – é assim que o treinamento nos leva a desenvolver um
relacionamento genuíno, sincero e inteligente com a totalidade da
experiência humana.
Somos realmente engraçados: as pessoas que choram muito acham que
deveriam chorar menos; as que choram pouco acham que deveriam chorar
mais. Um homem me disse que talvez devesse abandonar o tonglen, já que
não experimentava nada. Pensava que não havia entendido a prática: não
cava nem sentimental nem caloroso, apenas um tanto entorpecido. Tive
que encorajá-lo, dizendo que uma experiência genuína de entorpecimento
equivale a uma experiência genuína do que é ser humano.
Tudo é matéria-prima para o despertar. Podemos usar o
entorpecimento, a insensibilidade e até mesmo a autopiedade – não importa
o que seja – desde que possamos ir mais fundo e chegar ao que está por
baixo de nossa história. É nesse ponto que nos conectamos com o que
signi ca ser humano e é daí que decorrem a alegria e o bem-estar: da
sensação de ser real e de ver a realidade nos demais.
Uma máxima nos diz que, quando o mundo está cheio de maldade ou de
coisas que não desejamos, tudo isso pode ser transformado no caminho do
despertar. Temos, então, algumas sugestões como “Atribua todas as culpas a
um só” ou “Seja grato a todos”. Uma terceira sugestão poderia ser a de que é
possível usar aparentes obstáculos para despertar, percebendo a falta de
solidez de todas as coisas, percebendo a shunyata ou o bodhichitta absoluto.
A máxima seguinte é bastante difícil e se refere à shunyata: “Ver a
confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da shunyata.” O
trecho que fala sobre ver a confusão é bastante acessível para todos nós, mas
o restante exige algumas ponderações.
A palavra kaya signi ca corpo. Os quatro kayas são: dharmakaya,
sambhogakaya, nirmanakaya e svabhavikakaya. Podemos dizer que os
quatro kayas são maneiras de descrever como a vacuidade se manifesta e
como podemos experimentá-la.
Em primeiro lugar há a sensação de espaço fundamental do dharmakaya
– corpo do dharma. Em nossos cânticos da manhã dizemos: “A essência dos
pensamentos é dharmakaya; não é nada, mas tudo emerge daí.” Dharmakaya
é o espaço fundamental a partir do qual tudo surge, e tudo que surge é
essencialmente vasto – não é xo nem pesado.
Sambhogakaya – o “corpo de fruição” – tem a ver com a experiência de
que a vacuidade não é exatamente o espaço, tal como entendemos isso. Há
energia, cor e movimento. Ela é vibrante, como um arco-íris, uma bolha de
sabão ou o re exo de nosso rosto no espelho. Ela é vívida, embora seja, ao
mesmo tempo, insubstancial. Sambhogakaya refere-se a essa qualidade
energética, ao fato de que a vacuidade é uida e vívida. O som é
frequentemente usado como imagem para o sambhogakaya: não podemos
vê-lo ou capturá-lo, mas ele possui vibração, energia e movimento.
Nirmanakaya – o terceiro dos quatro kayas – refere-se à experiência de
que a vacuidade se manifesta na forma. Nirmanakaya é o meio de
comunicação com os outros. O Sutra do Coração diz: “A forma é vacuidade;
a vacuidade também é forma.” Nirmanakaya tem a ver com o fato de que os
fenômenos realmente se manifestam. Árvores, grama, prédios, tráfego, cada
um de nós e o mundo todo, de fato, se manifestam. Essa é a única maneira
pela qual podemos experimentar a vacuidade: aparência/vacuidade,
som/vacuidade. Eles são simultâneos. Tudo que surge é vividamente irreal
na vacuidade, mas a vacuidade não é de fato vazia, não da forma como
imaginamos isso. Ela é vibrante e se manifesta, embora, em geral, só
percebamos sua manifestação. Nós a tornamos sólida, tornamos a nós
mesmos sólidos e solidi camos aquilo que vemos. Tudo passa a ser como
uma guerra ou uma sedução e camos totalmente presos a esse drama.
O quarto kaya é svabhavikakaya. Este último signi ca que os três
anteriores ocorrem ao mesmo tempo. Na verdade, eles não são separados.
Espaço, energia e aparência surgem simultaneamente.
A máxima diz que “Ver a confusão (a sensação de obstáculo, aversão e
interrupção) como os quatro kayas é a proteção insuperável da shunyata.” A
shunyata representa proteção porque corta a solidez de nossos pensamentos,
a maneira pela qual tornamos todas as coisas – inclusive a nós mesmos –
concretas e separadas. Shunyata atravessa nossa atitude de “nós estamos
aqui e todo o resto está ali”.
Como já foi dito em algumas das máximas examinadas anteriormente,
quando a confusão surge, ela se torna parte do caminho – ela é suculenta e
rica. A sensação de que existe um obstáculo é muito fértil e pode nos
ensinar. Nestas práticas, o obstáculo é o ingrediente necessário, sem o qual
não seria possível fazer tonglen ou trabalhar com os ensinamentos lojong.
Entretanto, essa máxima nos diz que, quando a confusão surge, não apenas
praticamos o tonglen e nos conectamos com o coração, mas, a qualquer
momento, podemos ter também uma súbita percepção da falta de solidez
dos fenômenos. Em outras palavras, podemos simplesmente desistir deles.
Todos nós sabemos qual a sensação de desistir de algo. De repente, apenas
desistimos.
Em um retiro de meditação, por exemplo, servem macarrão no café da
manhã. Talvez, no começo, isso possa parecer engraçado. Mas, no decorrer
da refeição, você – em vez de estar consciente da comida, dos pauzinhos em
sua mão, das outras pessoas e das boas instruções que recebeu – percebe que
está falando consigo mesmo sobre quanto seria bom, quanto você gostaria
de estar tomando um bom café da manhã como o que sua mãe costumava
preparar. Pode ser café com leite, pão com manteiga ou presunto com ovos.
Tudo que você deseja é um bom café da manhã, como a mamãe costumava
fazer. Esse macarrão faz você car indignado.
Então, sem qualquer esforço especial, você simplesmente desiste. Para
sua surpresa, há ali um vasto mundo. Você vê todos os pontinhos luminosos
que brilham no fundo de sua tigela. Nota tristeza no rosto de alguém.
Percebe que o homem sentado à sua frente também está pensando em
outros cafés da manhã, já que ele tem o mesmo ar indignado, e isso faz você
rir porque era exatamente assim que você se sentia há apenas um minuto.
O mundo se abre e, de repente, estamos presentes para o que acontece. A
solidez de nossos pensamentos se torna transparente e podemos nos
conectar automaticamente com nosso próprio espaço – shunyata. Somos
capazes de desistir da nossa história, de sacudir a nós mesmos.
Essa é uma experiência cotidiana da shunyata. No entanto, é também
uma prática muito avançada, se formos capazes de realizá-la quando não
estamos nem um pouco a m dela. Quando tudo é sólido, intenso e estamos
mergulhados em autocomiseração ou qualquer coisa desse tipo, se alguém
nos diz: “Desista disso” – mesmo que seja com a voz mais suave, doce e
gentil –, sentimos vontade de dar um soco em seu nariz. Nós só queremos
continuar a afundar em nosso ressentimento e autocomiseração.
Todo o sentido da prática lojong está em começar no ponto em que
estamos. A máxima “Abandone qualquer expectativa de resultado” também
é um encorajamento para carmos exatamente onde estamos, com nosso
entorpecimento, insensibilidade, ressentimento, ou o que quer que seja.
Apenas começamos no ponto em que estamos. Então, como resultado da
prática e para nossa surpresa, vemos que nesta semana está sendo mais fácil
abrir mão de nossa história que na semana passada. Ou que, neste ano,
estamos desistindo mais facilmente do que no ano passado. À medida que o
tempo passa, percebemos que somos capazes, cada vez mais, de apenas
desistir.
O mesmo se aplica à compaixão. Todos somos compassivos. Quando
lembramos ou vemos certas coisas, somos capazes de abrir o coração sem
nenhum esforço. Então, ouvimos que devemos ter compaixão por nossos
inimigos, por aqueles que realmente detestamos. Essa já é uma prática
avançada. Mas, como efeito de praticar lojong e abandonar qualquer
expectativa de resultado, como consequência de simplesmente entrar em
contato com quem somos e com o que estamos sentindo neste exato
momento, percebemos que o círculo de nossa compaixão começa a se
ampliar e passamos a senti-la em situações cada vez mais difíceis.
A compaixão começa a chegar até nós porque temos a aspiração de
praticar e ter maior contato com nossa própria dor e alegria. Em outras
palavras, queremos nos tornar verdadeiros. Percebemos que não é possível
fraudar ou forçar esse processo, mas também sabemos que já possuímos o
que é necessário para trabalhar com nossa atual maneira de ser. Portanto,
começamos assim, e tanto a capacidade de desistir e ser mais alegre quanto a
habilidade de abrir o coração começam a crescer espontaneamente.
“Ver a confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da
shunyata”; é, na verdade, um encorajamento para não dar tanta importância
a tudo. Ao menos podemos ter em mente que é possível desistir, lembrar
qual a sensação que isso nos traz – como o mundo se abre – e descobrir a
amplidão que existe além do estreito casulo limitado pelo ego.
Essa máxima, em particular, é uma instrução de meditação. Diz-se que
somente sentados em nossa almofada conseguiremos entendê-la. De modo
geral, entretanto, gostaria de encorajá-los a usar a abordagem lojong e
tonglen como uma prática, mesmo quando tiverem acabado o período
formal de meditação. É nesse momento que essas noções são mais
poderosas, reais e profundas. À medida que continuamos com nosso dia,
vemos coisas que tocam nosso coração, enfrentamos situações que
provocam medo ou nos deixam rígidos e ressentidos. Nesses momentos
podemos começar a pensar em fazer a troca, inspirando e expirando
imediatamente. Esse é um processo necessário e bené co. Após a meditação,
essa prática parece muito real; às vezes, muito mais real que na sala de
meditação.
Essa máxima sobre os quatro kayas enfatiza que a prática shamatha-
vipashyana nos leva a ver a natureza insubstancial de todas as coisas. Ela se
refere ao momento da prática em que dizemos “pensando”. Estamos
totalmente aprisionados: em nossa mente, estamos tomando aquele café da
manhã, revivemos ressentimentos e alegrias. Então, sem nenhum esforço,
despertamos. Sabemos que é isso que ocorre, mas não estamos falando em
nos forçar a voltar. Apenas percebemos o que acontece e despertamos. Nesse
momento, devemos dizer “pensando”.
O rótulo “pensando” nos faz começar a perceber que nossa história não
tem nenhuma substância e, embora pareça extremamente vívida, ela surge
do nada. Mesmo quando abrimos mão dela, ainda há energia e movimento
que claramente parecem se manifestar sob a forma de mesas, cadeiras,
pessoas e animais. Tudo parece muito tangível, mas, no momento em que
dizemos “pensando”, vemos que todo esse drama é apenas um pensamento
em nossa mente e reconhecemos a shunyata ou vacuidade. Provavelmente,
cada um de nós já teve momentos em que percebeu o quanto isso pode ser
libertador.
Talvez você tenha curiosidade de saber a origem dos pensamentos. De
onde eles vêm de fato? Parece que de lugar nenhum. Você está ali, seguindo
elmente sua respiração e – Zás! – está surfando no Havaí. De onde veio isso
e para onde vai? Grande drama! Grande drama surgindo! E são apenas 9:30
da manhã. “Uau! Puxa! Isso é muito pesado!” Soa uma buzina e, de repente,
você não está mais nessa história, já está em outra.
Certa vez recebi instruções para meditar sobre os pensamentos.
Examinei sua natureza durante dois meses inteiros. Posso dizer a vocês, por
experiência própria, que nunca conseguimos encontrá-los. Os pensamentos
não possuem nenhuma substância, mas nossa mente os transforma em
Assunto Extremamente Importante.
Outra máxima diz: “Todas as atividades devem ser realizadas com uma
intenção.” Inspirar, expirar, sentir-se ressentido, sentir-se feliz, ser capaz de
abrir mão disso, não ser capaz de abrir mão daquilo, comer, escovar os
dentes, andar, sentar – tudo que fazemos pode ser feito com uma intenção:
queremos despertar, queremos amadurecer nossa compaixão e nossa
capacidade de abrir mão. Qualquer coisa pode servir para nos acordar ou
nos fazer adormecer. Só depende de nós permitir o despertar.
11
Superando a resistência
A máxima do dia é: “As quatro práticas são o melhor dos métodos.” Essa
máxima refere-se a quatro atividades que nos ajudam a praticar tanto o
bodhichitta relativo quanto o absoluto: (1) acumular méritos, (2) puri car
nossas ações negativas – geralmente chamado de confessar as ações
negativas, (3) alimentar os fantasmas e (4) fazer uma oferenda aos
protetores, às vezes traduzido como pedir aos protetores que nos ajudem em
nossa prática.
Cada uma dessas quatro práticas trata muito diretamente dos
sentimentos, emoções e situações indesejáveis. Já falamos que a melhor
proteção é perceber a qualidade de vazio e sonho que a confusão possui.
Enquanto ver a confusão como os quatro kayas é algo que fazemos no nível
do bodhichitta absoluto, essas quatro práticas referem-se a coisas reais e são
feitas no nível relativo, em termos de ritual e cerimônia.
Quaisquer que sejam os nomes que dermos, o cerne da questão está em
superar a resistência. Essas práticas são os quatro métodos que Milarepa
deve ter usado para tentar se livrar dos demônios que estavam em sua
caverna. O sentido daquela história é que, quando não há mais resistência,
também não existem mais demônios. Resistir às situações indesejáveis faz
com que elas se mantenham vivas e fortes por muito tempo.
ACUMULAR MÉRITOS
A primeira das quatro práticas se refere a acumular méritos. Fazemos isso
quando estamos dispostos a dar, a nos abrir. Esse processo é descrito como
desistir de apegar-se a si mesmo ou desistir da fortaleza do ego. Em vez de
colecionar coisas, nós nos abrimos e as doamos.
Como resultado dessa abertura, começamos a experimentar nosso
mundo como mais amistoso. Este é o mérito: ca mais fácil praticar o
dharma, temos menos kleshas e as circunstâncias parecem mais favoráveis.
Podemos achar que, para encontrar as circunstâncias em que teremos a
oportunidade de praticar o dharma, devemos usar nosso velho e habitual
estilo. Entretanto, a ideia que está por trás de acumular esse tipo de situação
meritória é a de abrir-se, dar e não reter. Em vez de nos fecharmos em um
casulo e encouraçar o coração, nós nos abrimos e deixamos que tudo se
dissolva. É assim que os méritos são acumulados.
Em sociedades budistas, como as de Myanmar (antiga Birmânia), Tibete
e China, acumular méritos é identi cado com praticar qualquer tipo de boa
ação, como, por exemplo, fazer doações para a construção de monastérios e
centros de retiro. É ótimo angariar fundos em Hong Kong ou Taiwan porque
as pessoas acham que é meritório dar dinheiro para esse tipo de obra. Pensa-
se que uma doação feita para essas boas causas funciona – se esse for um
gesto de real generosidade, sem desejar nada de especial em retorno.
Quando tomamos o voto de bodhisattva, oferecemos um presente. No
momento em que damos nosso presente, recebemos uma das marcas que
indicam que tomamos esse voto. A instrução nos diz que devemos dar algo a
que estejamos apegados, algo cuja perda nos cause alguma dor. Se
pretendermos dar dinheiro, devemos dar um pouco mais do que realmente
gostaríamos.
Em todas essas formas tradicionais de acumular méritos, o sentido mais
profundo está em abrir-se completamente à situação com um pouco de
ousadia. Há uma certa magia nisso e diz-se que essa prática é a expressão
máxima de obter méritos porque tem a ver com abandonar a esperança e o
medo: “Se for melhor que eu que doente, que seja assim. Se for melhor que
eu me recupere, que seja assim. Se for melhor que eu morra, que seja assim.”
Ou, em outras palavras: “Conceda-me a bênção de que, se for para eu car
doente, que eu que doente. Conceda-me a bênção de que, se for para eu me
recuperar, que eu me recupere.” Não se trata de pedir a um poder superior
que conceda sua bênção. Na verdade, estamos apenas dizendo: “Deixe
acontecer, deixe acontecer.”
Render-se, abrir mão do sentimento de posse, chegar ao completo
desapego – todos são sinônimos de acumular méritos. O sentido está em
abrir-se, em vez de se fechar.
1. Arrependimento
Portanto, em primeiro lugar, está o arrependimento. Em decorrência da
prática, temos consciência e percebemos o que fazemos. Com isso, ca cada
vez mais difícil esconder-se de si mesmo. Bem, essa acaba sendo uma ótima
notícia, pois nos tornamos capazes de ver a neurose como neurose – não
como uma autocondenação, mas como algo de que podemos tirar partido.
O arrependimento implica estarmos cansados de nos esconder atrás de uma
armadura, de ingerir veneno ou de gritar com alguém sempre que nos
sentimos ameaçados, de falar internamente durante horas quando alguém
nos contraria, de nossa constante reclamação interior. Ninguém precisa
tornar nossa vida difícil. Ninguém precisa dizer nada. Mantendo os olhos
abertos, nós mesmos nos cansamos da neurose. Essa é a ideia do
arrependimento.
Uma vez alguém que estava realmente arrependido de algo que zera foi
até seu mestre e explicou toda a situação. O mestre respondeu: “É bom que
você se arrependa; é preciso reconhecer o que fez. É muito melhor ver que
magoou alguém do que se proteger contra isso. Mas você só tem dois
minutos para pensar no seu arrependimento.” É bom ter isso em mente
porque, caso contrário, podemos começar a nos agelar: “Ai de mim! Ai de
mim!”
2. Abstenção
A segunda parte da con ssão das ações neuróticas é a abstenção. É doloroso
ver como, apesar de tudo, continuamos com nossa neurose. Às vezes é
preciso que ela se gaste por si mesma, como um sapato velho. Entretanto, a
abstenção é muito útil, desde que não imponhamos a nós mesmos um tom
muito autoritário. Abster-se não é uma resolução de Ano-Novo, não é dizer
“Reconheço o que z e nunca mais farei isso” só para nos sentirmos
péssimos quando repetimos a mesma ação meia hora depois.
A abstenção vem espontaneamente, ao ver como nossas ações neuróticas
funcionam. Podemos até pensar: “Continuo achando que seria bom, que
seria divertido”, mas nos abstemos, pois conhecemos a reação em cadeia de
infelicidade que nossas ações provocam. A primeira mordida, o primeiro
gole, a primeira palavra áspera pode trazer certo sentimento de bem-estar,
mas gera uma sequência dolorosa que já percorremos não uma, mas cinco
mil vezes. Assim, a abstenção é um processo natural decorrente de nossa
sabedoria básica. É importante lembrar que a abstenção não é algo áspero –
não signi ca gritar consigo mesmo ou forçar-se a fazer o que não se quer.
Esse é um processo gentil; no máximo, dizemos a nós mesmos: “Uma coisa
de cada vez.”
3. Ação reparadora
A terceira parte da con ssão da neurose é a ação reparadora, ou seja, tomar
alguma providência em relação ao que aconteceu, realizar alguma prática
que regue a semente da sabedoria, dando a ela a umidade necessária para
germinar. Ver a neurose como neurose, ter um sentimento de
arrependimento, abster-se e, em seguida, realizar uma prática, ajuda a
puri car toda a situação. A prática tradicionalmente recomendada é a de
buscar refúgio nas três joias: o Buda, o dharma e o sangha.
Buscar refúgio no Buda signi ca ser acolhido por alguém que
abandonou o apego, o que nós também podemos fazer. Buscar refúgio no
dharma quer dizer buscar abrigo em todos os ensinamentos que nos
encorajam a alimentar nossa habilidade inerente de abrir mão. E buscar
refúgio no sangha é ser amparado pela comunidade de pessoas que
compartilham nosso desejo de abrir mão e nos abrir, em vez de nos proteger.
Como praticantes, a ajuda que damos uns aos outros é diferente do apoio
samsárico* habitual, no qual nos unimos em um time para reclamar de
alguém. Aqui, cada um cuida de si mesmo, completamente sozinho. É de
grande auxílio, porém, saber que há quarenta outras pessoas passando pelas
mesmas situações: esse é um grande apoio e encorajamento. Basicamente,
embora os outros possam nos ajudar, estamos sozinhos e crescemos nesse
processo – em vez de nos tornarmos ainda mais dependentes.
* Samsara: ciclo vicioso da existência. Opõe-se a nirvana: estado em que há cessação da ignorância
e das emoções con itantes e que é, portanto, livre dos renascimentos compulsivos do samsara.
4. Resolução
O quarto aspecto de confessar as más ações consiste na decisão de não
repeti-las. Mais uma vez, se não for bem compreendido, esse pode ser um
ponto complicado: não estamos falando em ser severo consigo mesmo. Não
permita que uma autoritária voz interior lhe diga que, se zer isso mais uma
vez, Papai Noel não vai trazer seu presente de Natal.
As quatro partes desse processo resultam da con ança em nossa
bondade fundamental. Todas elas derivam de uma certa bondade em relação
a nós mesmos decorrente do sentimento de apreciação que já possuímos.
Lamentamos nossa neurose e permitimos a abertura. Paramos de repetir
esse tipo de ação porque não queremos nos machucar ainda mais.
Praticamos porque temos respeito básico por nós mesmos e desejamos fazer
o que permite alimentar nossa sensação de con ança e condição de
guerreiro, e não aquilo que nos faz sentir ainda mais arrasados e isolados.
Portanto, no nal, decidir abster-se da ação neurótica é uma rendição total,
o último estágio no processo quádruplo de abrir-se cada vez mais.
ALIMENTAR OS FANTASMAS
Até aqui, descrevemos duas das práticas a que se refere a máxima “As quatro
práticas são o melhor dos métodos”: acumular méritos e confessar nossas
faltas neuróticas, ou puri car nossa neurose através do processo quádruplo.
A terceira prática consiste em alimentar os fantasmas. Esse aspecto envolve
trabalhar com nossa irracionalidade e, para isso, nós nos relacionamos com
ela. Tradicionalmente, preparamos um pequeno torma – um bolinho – e o
oferecemos. Podemos oferecê-lo durante uma cerimônia ou colocá-lo do
lado de fora de casa todas as manhãs. De qualquer modo, oferecemos
concretamente alguma coisa a nossos fantasmas, aos aspectos negativos de
nós mesmos.
Quando Trungpa Rinpoche falava sobre alimentar os fantasmas, ele se
referia à irracionalidade que simplesmente aparece, não se sabe de onde. De
repente, estamos terrivelmente tristes. Sem saber como, estamos furiosos,
querendo quebrar tudo. Como ele disse: “De repente, o soco já atingiu o
olho de alguém.” Que imagem! Sem aviso, quando menos esperamos, a
irracionalidade simplesmente aparece. Zás! Ali está ela. Frequentemente, ela
é a primeira coisa que surge pela manhã e, então, o dia todo passa a ter um
caráter de raiva e exasperação. O mesmo acontece com a tristeza, o mesmo
acontece com a paixão.
Essa súbita irracionalidade que surge do nada é chamada de dön. Ela nos
desperta e devemos encará-la como algo bom, em vez de tentar nos livrar
dela. Portanto, no nível exterior, damos um bolinho a esse dön. No nível
interior, vemos que um dön surgiu, reconhecemos sua força, mas nos
abstemos de deixar alguém com o olho roxo – não extravasamos nem
reprimimos. Uma vez mais, escolhemos o caminho do meio e nos
permitimos estar ali, com a totalidade da força do dön. Permanecer na
situação tem o poder de nos puri car. Essa atitude é a descrição do que é
estar 100% consciente.
Acumulamos méritos quando ultrapassamos a esperança e o medo e
dizemos: “Deixe acontecer.” O mesmo ocorre com o dön: há uma certa
sensação de “deixar acontecer”. Existe até mesmo uma invocação que diz:
“Não apenas desejo que você que, como pode voltar sempre que quiser. E,
tome, pegue um bolinho.”
Pessoalmente, quando li sobre isso, quei um pouco assustada. Somos
orientados a convidá-los a voltar porque eles nos mostram quando
deixamos de estar conscientes. Nós os convidamos a voltar porque eles nos
lembram que estamos desligados. Os döns nos despertam. Enquanto
estivermos conscientes, nenhum dön poderá surgir. Entretanto, eles são
como os germes e os vírus. Sempre que há um espaço – boom! –
manifestam-se. Enquanto estivermos despertos e abertos, os döns recusarão
nosso convite para voltar, mas, no momento em que nos fecharmos, eles não
só o aceitarão com prazer como comerão nosso bolo. Isso é chamado de
alimentar os fantasmas.
Certa vez, uma pessoa me disse que não podia meditar. Ela considerava isso
impossível, pois seus problemas eram bem reais. Na meditação que fazemos,
estamos tentando compreender a orientação muito animadora que diz que
os problemas da vida real são nosso material para despertar, não uma razão
para pararmos de tentar. Essa é uma boa notícia que pode nos servir.
A máxima de hoje diz: “Incorpore à meditação tudo o que você
encontrar inesperadamente.” As máximas enfatizam que tudo pode ser
usado para despertar o bodhichitta, que nada é uma interrupção. Essa
máxima que vamos examinar nos mostra como as próprias interrupções
podem nos acordar, como elas mesmas – surpresas, situações inesperadas,
acontecimentos repentinos – têm o poder de nos despertar, tanto para a
experiência do bodhichitta absoluto quanto para o bodhichitta relativo: para
a qualidade espaçosa e aberta de nossa mente e para o calor que existe em
nosso coração.
Essa máxima trata as surpresas como dádivas. Quer sejam prazerosas ou
desagradáveis, o importante é que elas têm o poder de parar nossa mente.
Estamos andando por aí e levamos uma bolada na cabeça: isso nos faz parar.
A máxima “Repouse na natureza do alaya, a essência” caminha ao lado
desta. Geralmente diz-se que essa é uma máxima para o momento em que
estamos sentados em nossa almofada meditando. Nessa ocasião podemos
repousar nossa mente em seu estado natural, imparcial. Mas, na verdade, o
mesmo acontece quando nosso tapete é puxado: sem nenhum esforço, nossa
mente se percebe em repouso na natureza do alaya.
Eu estava pegando uma carona no carro de um amigo um dia, quando
alguém buzinou ruidosamente atrás de nós. Ao ultrapassar, o motorista,
vermelho de raiva e sacudindo os punhos, gritou: “Vai trabalhar!” Esse fato
ainda hoje faz parar minha mente.
A instrução nos diz que quando algo faz parar nossa mente devemos
aproveitar esse momento de lacuna, de muito espaço, confusão e total
surpresa, e nos permitir repousar nele um pouco mais do que normalmente
faríamos.
É interessante, mas essa é também a instrução sobre como morrer.
Aparentemente, a morte é uma grande surpresa. Talvez vocês já tenham
ouvido falar em samadhi (absorção meditativa), e que nós permanecemos
em samadhi no momento em que morremos. Isso signi ca que podemos
repousar a mente na natureza do alaya e permanecer abertos e conectados
com a qualidade fresca e imparcial da mente que nos é dada no momento da
morte. Essa qualidade, porém, também nos é oferecida em todos os dias da
vida! Recebemos essa dádiva através das circunstâncias inesperadas a que
essa máxima se refere.
Após a lacuna, quando começamos a pensar: “Que pessoa horrível” ou
“É ótimo que ele tenha me dado a oportunidade de repousar a mente na
natureza do alaya”, podemos nos recompor e começar a praticar o tonglen.
Se estivermos nos deixando levar pela raiva, ressentimento ou qualquer dos
sentimentos “negativos” indesejáveis, se estivermos cando muito nervosos
ou qualquer outra coisa, lembramos do tonglen e da lógica lojong, inspirando
nossos sentimentos e entrando em contato com eles. Abrimos mão de nossa
história e camos em contato com nós mesmos. Também é possível lembrar
dessa instrução quando começamos a pensar na maravilha que acabou de
nos acontecer – expiramos e compartilhamos essa sensação de bem-estar.
Geralmente, estamos tão presos e fortemente apegados a nós mesmos
que precisamos, no mínimo, ser atropelados por um caminhão para que
nossa mente pare e desperte. Mas, quando começamos a praticar, até mesmo
o vento que balança a cortina tem esse poder. A surpresa pode ser algo
muito suave, apenas um desvio do foco. Algo atrai nosso olhar, a atenção o
acompanha, e repousamos nossa mente na natureza do alaya. Então, quando
começamos a falar sozinhos mais uma vez, praticamos o tonglen.
A surpresa chega até nós sob formas agradáveis ou desagradáveis – isso
realmente não faz diferença. O importante é que ela é repentina. Estamos
andando na rua, sem perceber nada, presos em uma visão estreita, falando
internamente, e até mesmo o grito de um corvo pode nos despertar desse
dormir-acordado que, de modo geral, é muito denso e cheio de
ressentimento. Algo simplesmente acontece: o escapamento de um carro dá
um estouro e, por um momento, olhamos para o céu, enxergamos o rosto
das pessoas, o trânsito e as árvores. Independentemente do que aconteça, de
repente vemos o mundo enorme que existe além de nossa visão estreita.
Tive uma experiência interessante com algo que me surpreendeu em um
retiro. Foi uma experiência muito forte de shunyata, a completa vacuidade
de tudo. Eu tinha terminado minha prática da noite. Já havia praticado o dia
inteiro, o que pode levar você a pensar que meu estado mental era calmo e
cheio de bondade. Mas, assim que saí do quarto e comecei a andar pelo
corredor, vi que alguém havia deixado louça suja em nossa cozinha.
Comecei a car muito brava.
Nesse retiro, colocamos nosso nome na louça. Todos têm um prato, uma
tigela, uma caneca, uma faca, um garfo e uma colher, e todos esses objetos
estão marcados com nosso nome. Assim, fui andando, tentando ver o que
estava escrito naqueles pratos. Eu já tinha quase certeza de quem poderia
ser, pois havia somente uma mulher, em nosso grupo de oito, capaz de fazer
aquela bagunça: ela sempre deixava as coisas jogadas para que os outros
arrumassem. Quem ela pensa que vai lavar os pratos? A mãe dela? Ela acha
que somos seus escravos? Eu já estava indo por esse caminho. Pensei: “Eu a
conheço há muito tempo e todo mundo acha que ela é uma praticante
experiente, mas, na verdade, daria na mesma se não tivesse praticado nunca,
pois não tem a menor consideração por ninguém neste planeta.”
Quando cheguei perto da pia, olhei para o prato e vi que o nome que
estava nele era “Pema”. E “Pema” era o nome marcado na caneca, no garfo e
na faca. Era tudo meu! Não é preciso dizer que isso cortou totalmente
minhas divagações. Também nesse momento minha mente parou.
Há uma história zen na qual um homem está tranquilamente em um rio,
ao entardecer. Ele vê outro barco se aproximar. De início, parece-lhe muito
bom que alguém mais esteja aproveitando o rio em um belo m de tarde de
verão. Então, ele percebe que o barco vem direto contra ele, cada vez mais
veloz. O homem começa a car nervoso e grita: “Ei! Ei! Cuidado! Por favor,
desvie!” Mas o barco vem cada vez mais rápido, bem na sua direção. A essa
altura, ele já está em pé, gritando e sacudindo os braços. Quando o barco se
espatifa contra o dele, o homem percebe que ele está vazio.
Essa é uma história clássica para as situações da vida de modo geral. Há
muitos barcos vazios passando por aí e nós estamos sempre gritando e
sacudindo os braços para eles. Em vez disso, podemos permitir que eles
parem nossa mente. Mesmo que isso aconteça somente por um décimo de
segundo, já será possível repousar nesse pequeno intervalo. Quando
começamos com nossas histórias, usamos a prática do tonglen que nos
ensina a trocar de lugar com o outro. Desse modo, tudo que encontrarmos
terá potencial para nos ajudar a cultivar a compaixão e entrar em contato
com a qualidade espaçosa e aberta de nossa mente.
13
Ensinamentos para a vida e para a morte
FORTE DETERMINAÇÃO
FAMILIARIZAÇÃO
SEMENTE DE VIRTUDE
REPROVAÇÃO
ASPIRAÇÃO
CULTIVAR A PACIÊNCIA
A nal, o que realmente pode ajudar alguém? O que, de fato, faz com que as
coisas evoluam de forma natural e espontânea? As próximas máximas nos
fornecem alguma orientação. Todas começam com a palavra não. Gosto de
chamá-las de máximas da “verdade nua”.
Assumir a responsabilidade pelas próprias ações, em parte, é ser capaz
de enxergar muito claramente e, por isso, essa é uma outra forma de falar
sobre despertar o bodhichitta. Assumir a responsabilidade também se
relaciona com a gentileza, com não fazer julgamentos, não atribuir conceitos
de certo e errado, bom e mau, mas, em vez disso, olhar para si mesmo com
suavidade e honestidade. Um terceiro aspecto é a capacidade de seguir em
frente, descrita anteriormente como se desapegar. Em um certo sentido, no
entanto, isso signi ca apenas seguir em frente: não camos completamente
dominados pela identidade do vencedor ou vencido, ofensor ou ofendido,
bom ou mau sujeito. Simplesmente olhamos o que fazemos com toda a
clareza e compaixão de que formos capazes e continuamos nosso caminho.
O momento seguinte é sempre novo e aberto, não precisamos estar
congelados em nenhum tipo de identidade.
De modo geral, temos a impressão de que nossa imagem está “do lado de
fora” e parecemos sempre atacá-la. Queremos culpar os homens ou as
mulheres, os brancos ou os negros, os políticos ou a polícia; queremos
culpar alguém. Há certa tendência a sempre colocar nossa imagem do lado
de fora, mesmo quando “fora” é nosso próprio corpo. Em vez de lidar com as
situações, lutamos contra elas. Como resultado, nós nos tornamos alienados.
Então, tomamos o remédio errado para nossa doença: usamos diferentes
métodos para criar uma armadura e, de um jeito ou de outro, nunca lidamos
com nossos pontos vulneráveis.
Portanto, as máximas de hoje apresentam uma importante revelação. A
primeira é: “Não fale sobre membros defeituosos.” Em outras palavras, não
fale sobre os defeitos dos outros. Todos nós temos o mesmo tipo de
satisfação quando sentamos juntos ao redor de uma mesa, falando sobre o
mau hálito de Mortimer. E, além disso, ele tem caspa, a risada dele é
esquisita e ele é ignorante. Falar sobre os defeitos dos outros nos dá um tipo
peculiar de segurança. Às vezes, douramos a pílula e disfarçamos. Dizemos
algo como: “Olá! Você sabia que Joana rouba?” Então, continuamos: “Puxa!
Não devia ter dito isso. Desculpe, fui muito grosseiro. Não vou dizer mais
nada.” Gostaríamos de continuar interminavelmente, mas, em vez disso,
falamos apenas o su ciente para colocar as pessoas contra Joana, mas não o
bastante para que elas nos desaprovem por estarmos difamando alguém.
Então, há outra: “Não pense nas falhas dos outros.” Essa máxima refere-
se a rebaixar os outros para elevar a si mesmo. Talvez façamos isso apenas
mentalmente. A nal, não fazemos críticas em voz alta porque sabemos que
os outros desaprovariam. Mentalmente, porém, não paramos de falar de
Mortimer: como detestamos as roupas que ele usa, seu jeito de andar e o
olhar frio com que recebe nossa tentativa de sorriso. Dizemos: “Agora chega!
Desde que cheguei aqui, não faço outra coisa senão criticá-lo. Vou tentar ser
seu amigo.” Mas Mortimer responde ao nosso falso sorriso luminoso com
um olhar gelado. Então, sentados em nossa almofada, continuamos a julgar
seu horrível comportamento e, frequentemente, rotulamos nosso
julgamento como “pensando” ou começamos a inspirá-lo. Não nos ocorre
trocar de lugar com ele e, certamente, não sentimos nenhuma gratidão.
A próxima máxima – “Não seja tão previsível” – também tem sido
traduzida por “Não seja tão con ável”. Essa máxima diz que somos óbvios
demais, o que é bem sabido no mundo da propaganda. Os anunciantes
sabem exatamente o que devem colocar nos painéis e anúncios para que
desejemos comprar seus produtos. Mesmo pessoas inteligentes como nós
são, às vezes, magnetizadas pela propaganda porque somos muito
previsíveis.
Somos 100% previsíveis principalmente quando se trata de fugir do que
não gostamos e dedicar muito tempo e esforço tentando, por assim dizer,
devorar aquilo de que gostamos. Quando alguém nos trata bem, temos isso
sempre em mente e desejamos recompensar a gentileza. Mas, quando
alguém nos fere, lembramos disso pelo resto da vida e sentimos vontade de
nos vingar, de um modo ou de outro. Esse é o signi cado do “Não seja tão
previsível”. Não reaja sempre de modo tão óbvio ao prazer e à dor. Não
continue a tomar o remédio errado.
A próxima máxima é muito fácil de compreender: “Não fale mal dos
outros.” Gastamos muito tempo e energia em fofocas sobre os outros. Talvez
haja alguém, e talvez seja uma única pessoa, com quem você tem um
problema. Talvez seja Pearl, que é tão lamentável. Ela sempre se sente
rejeitada e isso faz você se lembrar de sua mãe, que também é assim. De
algum modo, Pearl e sua mãe se confundem, você se percebe continuamente
irritado e aborrecido com o jeito dela e isso desencadeia muitos
sentimentos. Não existe o menor interesse em conhecê-la realmente e
descobrir o que acontece, não há nenhum desejo de se comunicar e
descobrir quem ela é. Ao contrário, não gostar dela provoca certa satisfação
e você perde muito tempo e energia conversando internamente sobre a
Pobre Pearl ou quem quer que seja – o Horrível Horácio ou o Miserável
Mortimer.
“Não se ponha de emboscada” é outra máxima da “verdade nua”.
Ensinaram-lhe que deveria ser uma boa pessoa, mas você não se sente tão
bondoso assim. Talvez você saiba algo sobre seu marido e ele nem descon e
disso. Esse é um trunfo que ca guardado na manga, esperando o momento
certo para ser usado. Um dia, você está muito alterada, no meio de uma
briga. Ele acaba de ofendê-la. Nesse momento, você tira seu ás da manga e
coloca seu marido contra a parede. Isso é “pôr-se de emboscada”. Estamos
dispostos a ter muita paciência até que o momento certo se apresente e
alguém possa ser encurralado. Esse não é o caminho do guerreiro: esse é o
caminho do covarde. Não apenas queremos “ganhar” – nós não fazemos
nenhum esforço para que haja comunicação. A aspiração de se comunicar
com a outra pessoa, ser capaz de ouvir e falar com o coração, é o que muda
nossos velhos padrões arraigados.
“Não leve as coisas a um ponto penoso” é uma máxima que, de certa
forma, a rma a mesma coisa. Estamos falando de nuances da tragédia
humana, da situação tragicômica em que nos encontramos. “Não leve as
coisas a um ponto penoso” está querendo dizer novamente: “Não humilhe
os outros.” Fazemos isso porque sentimos dor, porque nos sentimos feridos e
isolados. Em vez de, em primeiro lugar, fazer amizade com o que estamos
sentindo e, em seguida, tentar nos comunicar, usamos vários expedientes
para manter forte e sólida toda essa questão do “nós e eles”. Essa atitude
causa todo o sofrimento que há na Terra, incluindo o caos em que está
nosso ecossistema. Tudo isso é resultado de as pessoas não fazerem amizade
consigo mesmas e nunca estarem dispostas a se comunicar com aqueles que
julgam ser os criadores de problemas. É desse modo que camos presos
neste campo de batalha, nesta zona de guerra.
A máxima seguinte diz: “Não trans ra a carga do boi para a vaca.”
Digamos que você seja o chefe de João. Quando aparece uma tarefa que não
lhe agrada e da qual quer se livrar, você a transfere para João. A carga vai
para outra pessoa. É como o mito grego de Atlas: ele só estava passando
inocentemente e alguém disse: “Ah! Atlas, você se incomoda de segurar a
Terra só por um momento?”
Isso é o que fazemos. Quando não gostamos de alguma coisa, não nos
ocorre trabalhar de fato com esse sentimento e ter uma comunicação com a
pessoa que nos passou a tarefa; não pensamos em, de algum modo, abrir a
situação e lidar de forma honesta e corajosa com o que está acontecendo.
Em vez disso, transferimos nossa carga para outra pessoa e pedimos que ela
a carregue. Isso é chamado de “passar o bastão”.
“Não aja ardilosamente” é a máxima seguinte. Isso signi ca não ser falso,
mas se parece com aquelas máximas que falam em não comer alimentos
venenosos ou transformar deuses em demônios. Estamos dispostos a
atribuir todas as culpas a nós mesmos publicamente, para que todos vejam,
porque desejamos que pensem o melhor de nós. Nossa motivação é fazer
com que os outros nos considerem uma pessoa maravilhosa, e esse é o
“ardil”. Ou alguém nos trata mal, lembramos de lojong, mas usamos de um
estratagema. Não dizemos: “Cai fora, Joana” ou qualquer coisa áspera –
somos pessoas doces que têm a admiração de todos. O outro lado disso,
porém, é que as pessoas gostam cada vez menos de Joana porque ela nos
trata mal. Nossa atitude bondosa é uma forma de dar o troco. Essa é a ideia
quando falamos em agir ardilosamente. Há muitas maneiras de se conseguir
uma doce vingança.
Finalmente, “Não procure fazer da dor alheia as pernas de sua própria
felicidade”, que é o mesmo que dizer “Não deseje a dor dos outros como um
meio para ser feliz”. Ficamos contentes quando os que criam problemas em
nossa vida são atropelados por um caminhão, vão à falência ou algo dessa
natureza. Na minha vida, algumas pessoas se encaixam nessa categoria, e
acho incrível ver quanto me sinto feliz quando uma delas me escreve
dizendo que as coisas vão muito mal. Ao contrário, co cheia de desgosto
quando sei que estão indo bem. Tenho sempre comigo a lembrança do mal
que me zeram e desejo que simplesmente continuem a ir ladeira abaixo e
caiam mortas dolorosamente. É assim que usamos a dor dos outros como
base de nossa própria felicidade.
Essas máximas são um curioso estudo sobre a espécie humana. Elas
revelam que precisamos ser muito honestos em relação ao que fazemos. Ao
ver o que acontece, somos capazes de sentir muita compaixão, pois, ao
estudar a nós mesmos, estamos aprendendo sobre toda a raça humana. As
regras monásticas nos dão uma noção de como eram bondosos todos os
monges e monjas da época de Buda. Há regras do tipo: “Não cubra sua carne
com o arroz para que o atendente pense que você ainda não a recebeu e lhe
sirva mais uma porção”, “Não aborreça seu companheiro de quarto com a
intenção de que ele vá embora e você tenha o quarto só para você”. Essas
regras existiam mesmo – eram normas de comportamento para monges e
monjas do tempo de Buda.
Todas as tiras e lmes cômicos do mundo inspiram-se nos mesmos
temas de que trata esse grupo especí co de máximas. Quando agimos assim,
de duas uma: ou nem percebemos, ou percebemos e achamos que estamos
cometendo um pecado. Assim, ou nem prestamos atenção ou damos
enorme importância ao fato: “Falo mal dos outros. Não fui feito para viver
neste planeta. Que cruz! Quanto mais me conheço, mais posso ver. Estou
sempre fofocando. Sou um caso perdido! Ai de mim!” Podemos, no entanto,
simplesmente ver o que fazemos – não apenas com honestidade, mas
também com senso de humor – e prosseguir em nosso caminho sem fazer
disso toda uma identidade.
Ainda nos resta, porém, uma questão: quando vemos o que temos de
pior, quando sentimos inveja ou desejo de vingança, como dar o que temos
de melhor? O primeiro passo é mergulhar na experiência de sentir-se mal e
fazer amizade com esse sentimento. O passo seguinte é aprender a se
comunicar com a pessoa que parece estar nos causando dor e infelicidade,
não para provar que ela está errada e nós estamos certos, mas para chegar à
comunicação que vem do coração. Essa é uma profunda jornada para toda a
vida: não é algo que acontece fácil ou rapidamente.
19
A comunicação que vem do coração
Não é fácil de nir quem somos nós e quem são eles. Bernard Glassman
Sensei, que realiza muitos trabalhos com desabrigados de Nova York, diz
que trabalha com essas pessoas não por ser um ótimo sujeito, mas porque
entrar em contato com camadas da sociedade que ele rejeita é a única
maneira de fazer amizade com aspectos que também rejeita em si mesmo.
Tudo está inter-relacionado.
Trabalhamos com nós mesmos para poder ajudar os outros, mas também
ajudamos os outros para poder trabalhar com nós mesmos. Esse é um ponto
muito importante. Podemos dizer que trabalhar com os demais é uma
prática de maitri em que apostamos alto porque, por alguma razão, quando
começamos a trabalhar com os outros, todos acabam se parecendo com
Juan. Quando somos sinceros em nossa disposição de dar apoio a todos
incondicionalmente, sem deixar nada ou ninguém fora do coração, vemos se
desfazer a linda autoimagem que nos diz quanto somos bons ou
compassivos. Somos testados continuamente e encontramos sempre um
adversário à nossa altura. Quanto mais queremos abrir o coração, mais
surgem desa os que nos fazem desejar fechá-lo.
Não é possível realizar esse trabalho dentro de uma zona de segurança. É
preciso sair e viver a vida como todo mundo, mas acrescentar um
ingrediente: a disposição para não excluir nada do coração. A maitri –
bondade amorosa – tem que ser muito profunda porque, quando a
praticamos, enxergamos tudo sobre nós mesmos. Sempre que estivermos
sob pressão, isso será como um grande espelho re etindo nosso próprio
rosto e, como a madrasta malvada em Branca de Neve e os Sete Anões, vamos
preferir que ele nos diga o que queremos ouvir – mesmo quando isso
signi ca ouvir que não fomos bondosos ou que somos egoístas. De algum
modo, podemos usar até mesmo o reconhecimento de nossas limitações
para manter a sensação de que estamos bem.
Não queremos que o espelho nos dê nenhum feedback inesperado. Não
desejamos estar desarmados e expostos. Temos alguns pontos obscuros e
empregamos muita energia para que eles continuem assim. Um dia, a
madrasta cruel disse: “Espelho, espelho meu! Quem é a mais bela?” Em vez
de: “Você, querida!”, o espelho respondeu: “Branca de Neve.” Assim como
nós, ela não queria ouvir isso. No entanto, acho que todos sabemos que não
faz sentido culpar o espelho quando ele mostra nosso próprio rosto e, com
certeza, quebrá-lo não vai resolver nada.
Conheci uma mulher muito poderosa que sempre dava um jeito para
que tudo saísse à sua maneira. A síntese de sua abordagem diante da vida
era uma balança que tinha no banheiro – estava sempre alterada para
menos, de forma que, ao se pesar, ela via exatamente o peso que desejava ter.
Olhamos no espelho, vemos que temos uma enorme espinha na ponta do
nariz e decidimos encará-la realmente. Isso pode nos fazer estremecer e nos
deixar embaraçados, mas, mesmo assim, continuamos tocando a vida. Desse
modo, quando uma criança de 5 anos chega e diz: “Ei! Você tem uma
enorme espinha na ponta do nariz!”, nós apenas respondemos: “Eu sei.”
Entretanto, se tentarmos cobrir a espinha com cosméticos, vamos nos sentir
chocados e ofendidos quando percebermos que, de qualquer modo, todos
podem vê-la.
Essa tendência a voltar-se para si mesmo e tentar se proteger é muito
forte e permeia tudo. Mudamos esse hábito usando o método simples de
desenvolver curiosidade e espírito inquiridor em relação a todas as coisas.
Essa é mais uma maneira de falar em ajudar os outros, mas é claro que esse
processo também nos bene cia. Todo o caminho parece se relacionar com
desenvolver curiosidade, olhar para fora e ter interesse por todos os detalhes
da vida e do ambiente que nos cerca.
Quando nos vemos em uma situação que toca em nossos pontos
sensíveis, podemos reprimir ou extravasar, ou podemos decidir praticar. Se
formos capazes de começar a troca, inspirando com a intenção de manter
nosso coração aberto ao constrangimento, medo ou raiva que estamos
sentindo, perceberemos, para nossa surpresa, que também estamos abertos
para o que o outro sente. Um coração aberto é um coração aberto. Quando
conseguimos abri-lo, o mesmo acontece com nossos olhos e nossa mente, e
somos capazes de ver o que acontece no rosto e no coração dos outros.
Estamos andando na rua e lá longe – tão longe que não podemos fazer nada
a respeito – vemos um homem batendo em seu cachorro. Nós nos sentimos
impotentes, mas, nesse momento, podemos iniciar a troca. Começamos a
fazê-lo pelo animal, mas passamos a praticar também pelo homem. Então,
acabamos praticando por nosso próprio sofrimento, por todos os animais e
seres humanos que maltratam e são maltratados, por todas as pessoas que,
como nós, assistem e não sabem o que fazer. Essa troca já é o bastante para
transformar o mundo em um lugar mais amplo e amoroso.
Há um ensinamento tradicional que nos diz para ver todos os seres
sensíveis como nossa mãe. Todos foram nossa mãe: já existiu afeto e
intimidade entre nós. Esse ensinamento sempre me pareceu antiquado.
Então, li um livro escrito por Joanna Macy em que ela relata ter estado na
Índia e ouvido um ensinamento tibetano sobre esse assunto. Ela estava tão
entediada que saiu da sala para tomar um pouco de ar. Enquanto
caminhava, veio em sua direção uma velha senhora, encurvada sob a carga
de lenha que levava nas costas. Subitamente, ela pensou: “Essa mulher já foi
minha mãe.” Embora já tivesse cruzado na Índia com muitas pessoas tão
encurvadas sob o peso de pesadas cargas que nem era possível ver seu rosto,
ela desejou olhar nos olhos dessa mulher. Queria saber quem era ela, pois só
conseguia pensar que ela havia sido sua mãe.
Aprendi alguma coisa com essa história: esse ensinamento tem a ver
com interessar-se pelos outros, ser curioso e bondoso. Todas as pessoas
anônimas que encontramos na rua já foram nossos amantes, irmãos, irmãs,
pais, mães, lhos, amigos. Se isso não zer nenhum sentido para você, tente
apenas imaginar quem são e comece a olhá-los com algum interesse e
curiosidade. Todos são exatamente como nós. Temos nossa vida, achamos
que somos o centro do Universo, e nenhum de nós presta muita atenção em
ninguém – a menos que as situações se tornem realmente passionais ou
agressivas.
A máxima de hoje é: “Assuma as três causas principais.” As três causas
principais nos ajudam a manter o coração aberto, a lembrar de trocar de
lugar com o outro e a nos comunicar. Essas três causas são: o mestre, os
ensinamentos e o precioso nascimento humano.
O MESTRE
OS ENSINAMENTOS E AS PRÁTICAS
PRIMEIRO PONTO
As preliminares: base da prática do dharma
SEGUNDO PONTO
Prática principal: treinamento do bodhichitta
TERCEIRO PONTO
Transformação das circunstâncias adversas no caminho da iluminação
11. Quando o mundo está cheio de maldade, transforme todas as
adversidades no caminho de bodhi, 62
12. Atribua todas as culpas a um só, 47, 69, 70, 71, 73, 85, 133
13. Seja grato a todos, 21, 76, 77, 80, 85
14. Ver a confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da
shunyata, 85, 89
15. As quatro práticas são o melhor dos métodos, 92, 98, 101
16. Incorpore à meditação tudo o que você encontrar inesperadamente,
102
QUARTO PONTO
Utilização da prática em todos os aspectos da vida
17. Pratique as cinco forças, as instruções essenciais para o coração, 107
18. A instrução mahayana para ejetar a consciência na hora da morte é
utilizar as cinco forças: como você se conduz é importante, 107
QUINTO PONTO
Avaliação do treinamento da mente
19. Todo o dharma converge para um único ponto, 65, 115, 116
20. Dentre as duas testemunhas, que com a principal, 116, 122
21. Mantenha sempre uma mente alegre, 120a, 121, 122, 124
22. Se puder praticar, mesmo quando distraído, você estará bem treinado,
120, 124
SEXTO PONTO
Disciplinas para o treinamento da mente
23. Atenha-se sempre aos três princípios básicos, 135
24. Mude sua atitude, mas permaneça natural, 134
25. Não fale sobre membros defeituosos, 141
26. Não pense nas falhas dos outros, 141
27. Trabalhe primeiro com as maiores imperfeições, 138
28. Abandone qualquer expectativa de resultado, 88, 125, 129
29. Renuncie aos alimentos venenosos, 138
30. Não seja tão previsível, 142
31. Não fale mal dos outros, 142
32. Não se ponha de emboscada, 143
33. Não leve as coisas a um ponto penoso, 143
34. Não trans ra a carga do boi para a vaca, 144
35. Não aja ardilosamente, 144
36. Não transforme deuses em demônios, 117, 138
37. Não procure fazer da dor alheia as pernas de sua própria felicidade,
145
SÉTIMO PONTO
Diretrizes para o treinamento da mente
38. Todas as atividades devem ser realizadas com uma intenção, 91, 147
39. Corrija todos os erros com uma intenção, 149
40. Duas atividades, uma no início, outra no m, 165
41. Qualquer das duas que ocorra, seja paciente, 158
42 Observe essas duas, mesmo com risco de vida, 176
43. Treine-se nas três di culdades, 163
44. Assuma as três causas principais, 171
45. Cuide para que as três nunca desvaneçam, 174
46. Mantenha as três inseparáveis, 148
47. Treine-se imparcialmente em todas as áreas.
É crucial que isso seja feito sempre, de modo abrangente e
sem reservas, 151
48. Sempre medite sobre tudo que provoca ressentimento, 21, 147, 151
49. Não dependa das circunstâncias externas, 159
50. Desta vez, pratique os pontos principais, 174
51. Não interprete incorretamente, 161, 162
52. Não vacile, 160
53. Pratique com determinação, 176, 178
54. Libere-se através do exame e da análise, 163
55. Não chafurde na autocomiseração, 84, 163
56. Não seja invejoso, 21, 163
57. Não seja frívolo, 163
58. Não espere aplauso, 160
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