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PERIGOSAS NACIONAIS

RETICÊNCIAS
SOLAINE CHIORO

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

SUMÁRIO

SOBRE A AUTORA

ANEXO

PERIGOSAS ACHERON
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@caradaprefeitura: Se a vida é justa, por que é tão difícil deixar


uma camisa sem nenhum amassado?

@vidaspretas: coitado
quem foi que te iludiu dizendo que a vida é justa?

@caradaprefeitura: Eu gosto de manter minhas esperanças.

@vidaspretas: calma, pq vc tá falando disso às duas da manhã?

@caradaprefeitura: Não consigo dormir.

@vidaspretas: e aí decidiu PASSAR ROUPA???

@caradaprefeitura: Eu sou um cara de gostos estranhos.

@vidaspretas: ah, isso eu já tô sabendo desde o dia que vc disse


que nem assistiu o terceiro filme do homem-aranha

@caradaprefeitura: NINGUÉM GOSTA DESSE


FILMEEEEE!!!!

@vidaspretas: uma obra incompreendida

@caradaprefeitura: Eu realmente não sei por que ainda falo


contigo.

@vidaspretas: eu te faço rir e ouço seus problemas

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@caradaprefeitura: Por um minuto achei que você ia dizer


“problemas de pessoa branca” pra manter sua teoria.

@vidaspretas: é uma teoria bem possível


catfish de uma pessoa fingindo ser negra na internet
acontece o tempo todo

@caradaprefeitura: Onde?

@vidaspretas: BLACKFISHING
joga no google

@caradaprefeitura: Ok, eu não precisava passar por isso no meio


da madrugada.

@vidaspretas: viu?
mais um motivo pra gente se falar
vc aprende muito sobre a realidade do mundo comigo

@caradaprefeitura: Não é estranho que isso aconteça sendo que a


gente nunca se conheceu fora da realidade virtual?

@vidaspretas: realidade virtual é realidade também, cara

@caradaprefeitura: Eu sei.

@vidaspretas: tudo que conversamos é bem real


quando a gente fica flertando igual a dois adolescentes é real

@caradaprefeitura: Por favor, me dá mais moral que isso. Eu


acho que flerto bem melhor do que um adolescente.

@vidaspretas: vc quer que eu mande print daquela nossa conversa


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de umas semanas atrás quando vc mandou um “seu pai é padeiro?”


do nada?

@caradaprefeitura: Você não me dá trégua nem quando eu tô


insone um dia antes de algo importante acontecer pra mim.

@vidaspretas: verdade
você tem a tal ~coisa importante~ amanhã
VAI DORMIR

@caradaprefeitura: Eu sou ridículo e tomei café demais.

@vidaspretas: esse troço ainda vai te matar

@caradaprefeitura: Pelo menos eu morro feliz.

@vidaspretas: eu vou dormir


não morre de noite
e boa sorte amanhã <3

@caradaprefeitura: Obrigado. Boa noite!

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1
DAVI
Ele não esperava ter tantos problemas com a
máquina de café logo no primeiro dia. Talvez fosse
o destino querendo lhe lembrar da quantidade
exagerada que já tinha consumido na noite anterior,
mas o que mais Davi poderia fazer se o sono estava
começando a bater e ainda restavam cinco horas de
expediente?
Já tinha apertado o botão do café expresso
pelo menos dez vezes e, depois da máquina fazer
vários barulhos, nada aconteceu. Davi a chutou de
leve e bufou frustrado. Uma xícara de café faria
toda a diferença no aspecto cansado em seu rosto,
que combinava perfeitamente com o estado da
camisa xadrez amarrotada que tinha escolhido usar
naquela manhã. As horas gastas no meio da
madrugada tentando passar o tecido não ajudaram
em nada, já que ele acabou dormindo em cima da
roupa e não teve tempo para escolher outra. Pelo
menos conseguiu ajeitar o cabelo antes de sair e
seus fios crespos estavam com bastante volume,
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bem do jeito que Davi gostava.


— Esse troço sempre quebra — afirmou a
moça loira de olhos azuis que havia apresentado o
escritório para todos os temporários mais cedo. Seu
nome era Ana Clara e, pelos próximos três meses,
ela seria a supervisora de Davi. — O café nem é
muito bom, pra falar a verdade. É melhor tentar na
máquina do segundo andar ou ir naquela confeitaria
na rua de cima, mesmo.
Ana Clara se encostou na parede ao lado de
Davi e cruzou os braços, encarando-o com um
sorriso enorme no rosto. Fazia um tempo que ele
não trabalhava em uma agência como aquela e não
se lembrava muito bem de como era interagir
diariamente com outras pessoas. Já estava
começando a entrar em pânico, sem saber como
puxar assunto, mas Ana Clara tomou as rédeas da
conversa:
— Desculpa não ter te dado mais atenção, é
que a gente tá finalizando um projeto hoje e o
cliente é muito exigente, por isso tá essa correria. A
Patrícia precisou marcar umas reuniões de
emergência e acabou que não consegui te ajudar
mais.
Davi se sentiu nervoso só por ouvir a
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menção a Patrícia Santana, a atual diretora


executiva da Eskina Produções, escolha do próprio
Paulo César Braga, a mente por trás da criação da
agência. Ele teve a oportunidade de conhecer sua
chefe durante a entrevista, mas continuava sendo
atacado por sentimentos intensos toda vez que
lembrava para quem estava trabalhando.
A Eskina era uma das maiores empresas
nacionais emergentes na área de marketing e
propaganda, e todos conheciam a história de como
um jovem começou sozinho, numa loja abandonada
de esquina, o que se tornaria uma das agências de
publicidades mais renomadas do país. Com o
passar dos anos, a Eskina conquistou clientes fiéis e
investiu nas relações com o mercado exterior para
aumentar ainda mais sua credibilidade. Davi era
fascinado tanto pela trajetória de Paulo César,
quanto pelo trabalho excelente de Patrícia em
expandir a empresa, por isso via naquele emprego
temporário a oportunidade perfeita para aprender o
máximo possível. Sabia que ter uma empresa como
aquela no currículo poderia ser útil no futuro e já
estava cansado de seus trabalhos freelancer como
social media, que nem pagavam tão bem assim para
valerem a pena.
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— Tá tudo bem — respondeu ele depois de


se lembrar da etiqueta básica de como sobreviver
trabalhando em equipe: ser simpático. — A
Manuela tá me ajudando bastante.
— Ai, a Manu é um amor, mas eu ainda me
sinto mal de te deixar assim na mão de outra
funcionária. Desculpa mesmo.
— Sem problemas — disse Davi, ajeitando
os óculos. — Por enquanto eu tô conseguindo me
virar. Não é muito diferente do trabalho que eu
fazia quando era estagiário em outra agência.
— Que bom! Mas amanhã eu prometo que
te dou um treinamento de verdade, tá?
Antes que Davi pudesse responder, uma voz
desconhecida chamou Ana Clara e o rapaz se viu
livre da interação com a supervisora, que precisou
se afastar. Soltando um longo suspiro de alívio,
Davi caminhou pelo corredor e voltou ao escritório.
A agência devia ter mais ou menos trinta pessoas
trabalhando no local. O setor de produção ficava na
fileira final de todas aquelas mesas, e era ali que
Davi ficava, escrevendo posts, newsletters e
qualquer coisa que os clientes da Eskina exigissem.
Naquela primeira manhã, seu trabalho foi escrever
algumas postagens sobre as novidades de uma
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novela brasileira; aquela emissora de canal aberto


era um dos maiores clientes da agência.
Davi entrou na sala e sentou na cadeira que
seria sua pelos próximos meses. O assento não era
nada confortável e o espaldar era tão barulhento
que ele tentava não fazer nenhum movimento
brusco para não incomodar o resto do
departamento. Sem contar, é claro, os repousos de
braços que machucavam suas coxas, já que a
cadeira era estreita demais.
Ele escutou Manuela se aproximar antes de
vê-la. A jovem passou entre as mesas, pelo mesmo
caminho que Davi tinha acabado de fazer,
impulsionando sua cadeira de rodas o mais rápido
que conseguia e trazendo algumas pastas no colo.
Ela parou em frente ao monitor ligado à direita de
Davi e abriu um enorme sorriso para o rapaz,
ajeitando o curto cabelo castanho.
— Você demorou demais no café. Já tava
achando que tinha fugido, o que eu cem por cento
não ia julgar — disse ela, posicionando melhor a
cadeira e travando as rodas.
— Briguei com a máquina e nem tinha café
— explicou Davi. — Tô pensando em como vou
sobreviver até o fim do dia.
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Manuela já tinha voltado a digitar algo em


seu teclado, mas não parou de falar mesmo assim:
— Sabe, eu já decidi: você é meu
temporário favorito.
Ele levantou as sobrancelhas, olhando
rapidamente ao redor, encontrando Tomás e Luísa
entretidos com o trabalho em seus computadores.
Davi voltou a encarar Manuela, meneando a
cabeça, e falou:
— Eu não acho que você deveria dizer essas
coisas.
Ela deu de ombros.
— Não falei nada demais. Eles são legais,
só não são mais legais que você.
Davi sorriu ainda mais ao ouvir aquilo. Não
era comum gostarem dele assim logo de cara, sendo
uma pessoa introvertida. Alguém sempre acabava
lhe dizendo que de primeira achou que ele era
arrogante ou algo do tipo. Saber que Manuela já o
considerava alguém bacana, depois de algumas
poucas interações, o deixava ainda mais animado
sobre o trabalho. Chegou até a acreditar que talvez
não fosse tão difícil assim sobreviver sem café.
— Eu tô muito ferrada.
A afirmação feita pela mulher que puxou
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uma cadeira vazia da mesa de trás e se sentou perto


dos dois o pegou de surpresa. Ele nem a tinha visto
se aproximar e, apesar de seu tom murmurado, a
voz dela estava carregada de ódio. Depois de
conseguir se recuperar do susto, Davi finalmente
voltou a atenção para a recém-chegada.
Ele ainda não a conhecia e tinha certeza que
se lembraria caso já tivesse a visto. O vestido
amarelo escuro combinava perfeitamente com o
tom da pele dela – um marrom bem mais escuro do
que a dele –, seu lábio inferior era maior e mais
claro que o superior e o nariz redondinho e largo
estava franzido em frustração. Parte de suas tranças
finas e longas caía pelos ombros, enquanto a outra
porção estava organizada num coque sobre a
cabeça. Ela era, de longe, uma das mulheres mais
lindas que Davi já tinha visto, e ele reagiu da única
forma possível: virou novamente para o monitor e
fingiu que ainda se lembrava no que estava
trabalhando.
— Você precisa ser sempre tão dramática,
Jô? — perguntou Manuela.
— É sério! — disse ela em uma voz de
choro, arrastando a cadeira em que estava para
ainda mais perto da amiga e, consequentemente, de
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Davi.
O rapaz tentou ignorar o fato do cheiro
agradável de coco vindo das tranças dela ter
invadido seu olfato e continuou digitando qualquer
coisa em seu teclado, enquanto via pelo canto do
olho a interação das duas.
— Eu tava quase terminando o layout
daquele banner infernal quando a máquina desligou
— continuou ela. — Chamei o Beto pra ver, mas
ele disse que dessa vez talvez seja a morte oficial
do meu computador.
Ela encostou a cabeça nos ombros de
Manuela, que tentava se manter focada no trabalho,
e disse:
— Que triste. Descanse em paz, monte de
peças velhas.
— Você não tá me levando a sério! —
protestou a outra. — Eu tinha que entregar isso pra
Patrícia antes da reunião das três horas. Não vai dar
tempo!
Manuela revirou os olhos e finalmente virou
o rosto na direção da amiga.
— Pelo amor de Deus, Joana, tá tudo bem!
Você sempre dá um jeito de resolver tudo e não vai
ser diferente dessa vez. Além do mais, se atrasar,
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nem foi sua culpa! Aproveita que a Patrícia te adora


e reclama desse monte de máquina velha que dá
defeito toda semana, quem sabe ela não te escuta e
finalmente compra umas novas? — Após uma
breve pausa, que foi ocupada por uma bufada de
Joana, Manuela inclinou o corpo para alcançar as
costas da cadeira de Davi, batendo seus dedos nela
ao continuar: — Fala também que vocês merecem
lugares melhores pra sentar, porque esses são um
lixo e o Davi tá sofrendo desde o primeiro dia.
Ele abriu um sorriso para sua colega de
trabalho, mas quando olhou para o lado, se deparou
com Joana lhe encarando. Estava tudo bem. Davi
ficou encantado com o tom claro dos seus olhos
castanhos e teve um pouco de dificuldade de focar
em outro ponto, mas estava tudo bem.
— Você é um dos temporários! —
constatou Joana.
Ele assentiu.
— Isso. Davi.
— E essa é a Joana — apresentou Manuela,
mexendo o ombro para afastar a cabeça da amiga.
— Desde já peço desculpas por todas as vezes que
ela vai vir aqui choramingar por coisas sem sentido.
— Não parece sem sentido — disse Davi.
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— Eu ficaria bem nervoso se fosse comigo


também.
— Obrigada! — quase gritou Joana. — Viu,
Piegas? Alguém que me entende nesse lugar!
Davi enrugou a testa, confuso.
— Piegas?
As duas viraram para ele, mas só Joana
parecia animada com a perspectiva de poder
explicar o que tinha dito.
— Ah, é o apelido da Manu desde a
faculdade.
— Quando eu nem conhecia a Jô, então não
faz o menor sentido ela embarcar nessa.
Joana balançou a mão para a amiga ficar
quieta e continuou com os olhos fixos em Davi. Era
meio hipnotizante tê-la o encarando assim.
— A Manuela é a pessoa mais brega que
existe na face da Terra. Quando tava no segundo
ano do curso de Jornalismo, ela conheceu a Sayuri,
uma menina do quarto ano de Letras. As duas
começaram a ficar e minha amiga aqui, trouxa que
só ela, se apaixonou rapidinho. As duas saíram
algumas vezes antes da Manu decidir que era o
momento certo de declarar todo seu sentimento do
jeito mais brega possível: um poema autoral
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dedicado pro seu grande amor, escrito na parede


grafitada do corredor do Centro Acadêmico.
Davi levantou as sobrancelhas sorrindo,
enquanto Manuela escondia o rosto, envergonhada.
Não era difícil notar como sua pele branca e
sardenta estava bem mais avermelhada.
— Eu não lembro direito dos versos, mas
era algo sobre as estrelas brilharem menos que os
olhos da Sayuri e o sol ter inveja do sorriso dela. O
título era: “Arriscando ser piegas”. O apelido meio
que surgiu naturalmente.
— Uau — reagiu Davi.
Manuela meneou a cabeça e mostrou seu
rosto rosado, dando de ombros.
— Eu nem tenho como me defender. Foi
totalmente ridículo.
Joana riu, abraçando os ombros da amiga, e
Davi disse:
— Não acho que foi ridículo. Eu admiro sua
coragem, na verdade. Acho que jamais teria feito
isso.
— Pois é, eu também não — concordou
Joana. — Você é nosso exemplo, Piegas. Um dia
eu vou ser tão ridícula quanto você.
Manuela revirou os olhos mais uma vez,
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mas tinha um sorriso reprimido em seus lábios


quando mexeu os ombros de novo para afastar
Joana de perto dela de vez.
— Ai, vamos logo almoçar que você já me
desconcentrou — ela destravou as rodas da cadeira
e foi para trás, empurrando propositalmente a
amiga.
Joana mostrou a língua para Manuela, mas
levantou de onde estava, tendo um pouco de
dificuldade de se livrar dos apoios de braços
apertados. Apesar de ela ser um pouco mais gorda
do que Davi e ter o quadril bem mais largo que o
do rapaz, ele trocou um olhar simpático com Joana.
Ela meneou a cabeça e murmurou:
— Inferno de cadeira feita só pra magros!
Ele riu e tentou pensar em algo para dizer,
mas Manuela logo estava passando entre os dois e
perguntando:
— Você quer ir com a gente, Davi?
Ele sorriu para as duas e negou com a
cabeça.
— Valeu, mas eu prefiro terminar esse texto
antes de comer.
Joana apontou o dedo indicado para Davi e
estreitou os olhos, enquanto Manuela já se afastava
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pelo corredor, e disse:


— Amanhã você não escapa, novato. Vai
almoçar com a gente e contar mais da sua vida.
— Pode deixar — ele concordou, rindo.
As duas se afastaram e Davi respirou fundo,
um pouco agradecido pelo fim da distração que o
deixaria voltar a trabalhar. Entre a aparência
desconcertante de Joana e a conversa fácil com
Manuela, ele sabia que poderia ter problemas para
se manter focado no futuro. E, além delas, tinha
mais alguém empenhada na tarefa de tornar sua
vida no escritório mais social.
— Como tão indo as coisas? — perguntou
Ana Clara, sentando na cadeira abandonada por
Joana apenas uns cinco muitos depois das duas
terem ido almoçar. — Alguma dificuldade?
Davi meneou a cabeça e forçou um sorriso.
— Tudo tranquilo até agora.
— Espero que a Joana e a Manu não tenham
te atrapalhado muito. Aquelas duas são fogo
quando começam a conversar!
— Não, elas não me incomodaram.
— Se algum dia incomodarem, pode falar
comigo, viu?
— Pode deixar — respondeu, sabendo que
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jamais faria algo do tipo.


— A Joana comentou algo sobre o layout
que ela tava fazendo? A Patrícia achou que ia
receber antes dela sair pro almoço.
— Ah, eu acho que ela teve um problema
com o computador.
Ana Clara arrumou sua postura e fitou Davi
de uma maneira intensa. O rapaz conseguia
perceber o pequeno sorriso que ela expressava em
seus lábios finos.
— Ela não terminou?
Uma onda de pânico invadiu Davi. Ele
deveria ter falado aquilo?
— Acho que terminou sim, mas teve esse
problema com a máquina.
O sorriso de Ana Clara aumentou e Davi
ficou ainda mais apreensivo.
— A gente se fala depois, Davi. Obrigada
pela informação.
A mulher se afastou, fazendo ecoar o tec-tec
dos saltos no chão, um som que engatilhou ainda
mais a ansiedade de Davi. Ele sabia que trabalhar
em um escritório com tantas pessoas poderia ser
algo repleto de dramas, mas não queria se envolver
com nada daquilo.
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Estava prestes a entrar em um furacão de


pensamentos negativos, imaginando todos os
cenários horríveis que aquela conversa poderia lhe
causar, quando sentiu o celular vibrar no bolso da
calça jeans. Assim que viu a prévia na tela, sentiu-
se um pouco mais calmo.

@vidaspretas: espero que esteja tendo um bom dia <3

Davi vivia conectado desde os 15 anos,


quando seu pai comprou o primeiro computador.
Trabalhava com redes sociais há mais ou menos
três anos. Ele sabia da importância da internet na
vida de todos, mas nunca teria imaginado o quanto
uma mensagem simples, mandada por alguém que
nunca tinha visto em toda sua vida, era capaz de lhe
fazer tão bem.
Já fazia quase cinco meses que ele se
comunicava com @vidaspretas, a ilustradora que
Davi admirava e com quem entrou em contato
quando trabalhava como social media na prefeitura
de São Baltazar para fazer parte de uma campanha
do Dia da Consciência Negra. Além das mensagens
profissionais, os dois acabaram conversando sobre

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filmes, música, livros e tudo que gostavam e


odiavam. A conexão foi rápida e, em menos de um
mês, Davi já não conseguia passar um dia sem
mandar mensagem para ela.
Qualquer pessoa teria aproveitado essa
aproximação para propor que se conhecessem
pessoalmente, ainda mais sabendo que viviam na
mesma cidade, e Davi não fez diferente. O
problema é que @vidaspretas não parecia
concordar com a ideia. Ela disse que queria curtir
mais as conversas livres de julgamento e tudo o que
poderia vir de bom com aquele mistério. Foi meio
frustrante no começo, mas Davi aceitou. Nunca foi
atrás de quem lidou com o pagamento dela pelo
trabalho na campanha e deixou que seu contato
com a ilustradora se desse apenas por mensagens
trocadas entre eles pelas contas profissionais do
Instagram. Davi, por muito tempo, usou a conta da
prefeitura para se comunicar com @vidaspretas, o
que não era muito ético, mas seu freela naquele
lugar não passou de dezembro e ele decidiu fazer
uma nova conta chamada @caradaprefeitura. Sem
fotos, sem nome, apenas um milhão de mensagens
em privado que eram provas do quantos os dois se
tornaram importantes um para o outro.
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Mesmo sem ter dado detalhes de sua vida,


evitando falar sobre onde e com o que trabalharia,
Davi estava feliz por @vidaspretas não ter se
esquecido do quanto aquele dia seria importante.
Ele sabia que sempre poderia contar com ela e esse
pensamento o deixava mais feliz e com mais ânimo
para aguentar as próximas quatro horas e meia de
trabalho.

— Qual é o seu problema!?


Davi já estava na calçada na frente do
prédio da agência quando ouviu a voz de Joana. A
expressão brava em seu rosto e o brilho de irritação
que tinha nos olhos ao encará-lo não deixavam
dúvidas de que algo estava errado.
Ele ajeitou as alças da mochila que trazia
nas costas antes de perguntar:
— Como assim?
Joana caminhava batendo o pé com mais
força do que era necessário, fazendo suas tranças
dançarem para todos os lados. Quando a garota
parou bem à sua frente, Davi só conseguiu reparar
o quanto a altura dos dois era próxima.
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— O que você tá querendo com esse tipo de


comportamento no seu primeiro dia? Acha que vai
te ajudar em algo?
Davi enrugou a testa.
— Eu não faço a menor ideia do que você tá
falando.
— Ah, não? — perguntou ela ironicamente,
cruzando os braços no peito e forçando um sorriso.
— Você só tentou me queimar repassando
fofoquinha pra Ana Clara e esqueceu o que fez?
“Ela não terminou?”
A voz de Ana Clara ressoou na memória de
Davi e o pânico voltou a atormentá-lo.
— Eu posso explicar…
— Nem tenta — interrompeu Joana. — Eu
tava feliz de ter entrado outra pessoa negra na
agência e também porque a Piegas disse que você
era legal, mas, em menos de 24 horas, isso
acontece! Eu podia ter perdido meu emprego,
sabia?
— Joana, eu não tava tentando…
— O quê? Me fazer levar uma bronca
monumental da nossa chefe? Porque foi isso que
aconteceu! Eu não faço ideia de como você
explicou a situação pra Ana Clara, mas a história
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chegou na Patrícia de um jeito absurdo! Eu nunca


vi ela brava daquele jeito.
Davi jogou as duas mãos para o alto, se
rendendo para o olhar furioso da jovem.
— Eu não tava tentando te prejudicar. Eu só
respondi uma pergunta…
Joana não o deixou terminar, soltando uma
risada sarcástica e ajeitando a alça a bolsa em seu
ombro.
— É, na próxima vez não se mete em nada.
Não deu tempo para ele pensar em uma
resposta que o fizesse ser menos odiado naquele
momento. Joana virou as costas e desceu a rua em
passos rápidos, querendo criar distância entre eles o
mais rápido possível.
Davi continuou parado, vendo-a se afastar e
tentando entender tudo o que tinha acontecido.
Ainda confuso sobre como tinha conseguido se
meter naquela encrenca tão rápido, ele pelo menos
agradeceu por ser dia de terapia e poder debater
com sua psicóloga o que tinha se passado.

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@caradaprefeitura: Eu tive um dia horrível.

@vidaspretas: o meu também não foi dos melhores


quer falar sobre?

@caradaprefeitura: Foram só pessoas babacas no trabalho,


ansiedade e vontade de largar tudo. Você?

@vidaspretas: ah, o clássico combo


foi meio que a mesma coisa pra mim
sinto muito que tenha sido um péssimo dia
pareceu que a ~coisa importante~ era mesmo importante

@caradaprefeitura: É, e foi. Mas aí a realidade veio logo me


mostrar que nada é perfeito e eu deveria estar acostumado.

@vidaspretas: sinto muito mesmo

@caradaprefeitura: Tudo bem, não é sua culpa. E sinto muito


pelo seu dia ruim também.

@vidaspretas: eu acabei de encontrar algo que pode te ajudar

@caradaprefeitura: O quê?

@vidaspretas: bit.ly/musicascanalizar

@caradaprefeitura: “Músicas para canalizar a raiva e a tristeza no


trabalho e te salvar da demissão”. Hahahaha Eu tô muito assustado

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com a precisão do nome dessa playlist.

@vidaspretas: E A FOTO DE CAPA!!!!!

@caradaprefeitura: Hahahaha É muito fofa! Não sei nem explicar


como um dachshund nervoso e enrolado em um cobertor representa
tudo o que eu sinto no momento.

@vidaspretas: e as músicas ainda parecem muito com todos


aqueles rocks tristes que vc disse que ouvia quando era adolescente

@caradaprefeitura: SIM! Eu vou com certeza fazer muito bom


uso disso. Obrigado.

@vidaspretas: hahahahaha de nada!


mas agora é sério
não deixe pessoas imbecis fazerem vc se sentir mal!
vc é um excelente profissional, bom no que faz e não merece ouvir
baboseira de ninguém
se quiser um conselho meu, vc deveria aproveitar a primeira
oportunidade para mostrar pras pessoas que não vai se deixar afetar
pela opinião delas de vc

@caradaprefeitura: Você é incrível, sabia?

@vidaspretas: sim, eu me esforço bastante pra manter esse padrão

@caradaprefeitura: E aí está mais uma vez o seu ego do tamanho


de todo o sistema solar.

@vidaspretas: HUAHUAHUAHUA
É O MEU JEITINHO

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@caradaprefeitura: Felizmente, eu já estou acostumado e


encantado com isso. Mas, enfim, talvez eu siga seu conselho.
Obrigado pela conversa.

@vidaspretas: ei

@caradaprefeitura: Fala.

@vidaspretas: não esquece que vc é incrível tbm, tá?

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2
JOANA
Suas tranças ainda estavam úmidas do banho e a
estavam incomodando. Na verdade, essa era apenas
a ponta do iceberg da sua irritação naquela manhã.
Tudo começou quando sua mãe ligou logo
cedo, acordando-a pelo menos uma hora antes do
seu horário normal. Ela quase não falou nada
enquanto ouvia a mulher reclamar sobre como sua
outra filha não estava ajudando em casa. Joana não
se incomodava com o desabafo, sabia que a mãe
não tinha muitas amigas e era apenas com ela que
podia tirar tudo do peito, assim como sabia o
quanto sua irmã adolescente era impossível de
lidar. Joana amava e sentia falta de morar na
mesma cidade que as duas desde que se mudou
para São Baltazar para fazer faculdade e por ali
ficou, mas não tanta saudade ao ponto de querer se
envolver naquele tipo de drama.
Depois ainda teve que aguentar Vanessa,
sua colega de apartamento, reclamar de um cara
babaca com quem tinha ficado na noite anterior.
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Joana era bastante solidária com as histórias de


conquistas da amiga, mas não naquele estado, não
naquela manhã. Ela ainda estava morrendo de sono.
Ouviu calada, só esperando a oportunidade perfeita
para entrar no banho e poder ir para o trabalho.
Chegando lá, as coisas só pioraram, como
era de se esperar. Joana nunca foi profundamente
apaixonada pelo que fazia. Gostava da Eskina e
achava Patrícia uma boa chefe. Tinha a sorte de ter
conhecido pessoas como a Piegas, de quem se
tornou uma grande amiga, mas nada daquilo lhe
fazia parar de sentir que estava perdendo tempo
naquele lugar. Não era nem sobre o trabalho em si
– ela não se incomodava em fazer o serviço de web
designer, mesmo que isso tomasse um pouco do
tempo de investimento na própria arte. Mesmo na
correria, ela ainda conseguia algumas horas para
poder fazer ilustrações e postar em sua conta
profissional.
A @vidaspretas tinha crescido muito mais
do que ela imaginou quando começou a postar os
seus desenhos. Pouco mais de dois anos de
existência e o número de seguidores era bastante
promissor, assim como todos os comentários que
recebia de pessoas que pareciam adorar sua arte.
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Ainda era surreal para Joana imaginar que tanta


gente estivesse interessada no que ela fazia, mas
tinha aprendido a não se deixar engolir por esse
sentimento. Parte do motivo de ela nunca postar
nada sobre a vida pessoal – nem fotos, nem
autorretratos, nem nome verdadeiro – era que sua
conta ficava reservada só para sua arte e isso lhe
deixava um pouco menos pilhada com a atenção.
O problema de seu emprego era, na
verdade, o ambiente de trabalho como um todo.
Sim, tinha aquelas pessoas que ela amava e
admirava, mas também estava repleto de outras que
pareciam interessadas em tornar suas horas naquele
lugar um inferno. Jader, um outro designer, não
perdia a oportunidade de fazer comentários babacas
sobre qualquer coisa que viesse em sua cabeça.
Caio, um dos técnicos de informática e um
completo imbecil, sempre puxava as piadas
homofóbicas no escritório. Davi, o temporário de
conteúdo que parecia ser legal, mas que não
demorou para mostrar as asinhas, entregando-a para
uma das pessoas mais odiosas daquele lugar. Ana
Clara com certeza era o maior motivo de Joana não
aguentar mais trabalhar na Eskina.
As duas tinham entrado na agência mais ou
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menos na mesma época, tinham conquistado seus


atuais postos como sênior com uma trajetória
parecida e Patrícia estava sempre orgulhosa
igualmente das duas. O problema começou quando
Ana Clara decidiu que precisava ser a única
recebendo atenção da chefe, se incomodando
sempre que o trabalho de Joana era elogiado.
Depois disso, trabalhar com ela se tornou um
inferno. Se não precisasse do dinheiro para pagar o
aluguel, Joana com certeza já teria sumido dali.
— Pronta pra reunião?
Joana virou para Piegas, que atravessou o
corredor para chegar perto de sua mesa, fazendo
um biquinho e choramingando.
— Eu tenho mesmo que ir?
Sua amiga fez uma careta, revirando os
olhos, e carregou as palavras com sarcasmo:
— Não, Jô. Metade desse novo projeto vai
ficar nas suas mãos, mas acho que a Patrícia não
vai se incomodar de não te ter lá.
Piegas tinha razão, mas nem por isso Joana
deixou de bufar ao pegar o caderninho de anotações
e seguir a amiga pelo corredor que dava até a sala
de reuniões.
— Eu espero que a Ana Clara evite me
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encher hoje, porque eu tô com sono e sem


paciência — comunicou Joana durante a curta
caminhada.
— Sono por quê? Passou a madrugada
conversando com o seu webnamorado de novo?
Ela mostrou a língua para Piegas, mas não
conseguiu afastar o sorriso dos lábios. Sua amiga
tinha acertado em cheio e as duas sabiam disso.
Não era a primeira, nem a segunda vez que Joana
passava bem mais tempo do que era seu costume
acordada, tudo por ser incapaz de dizer “boa noite”
para o @caradaprefeitura e ir dormir. Vinha sendo
assim há cinco meses, desde que ele entrou em
contato para fechar uma parceria de campanha.
Quem diria que o social media da prefeitura da
cidade seria tão interessante? Joana com toda
certeza não estava esperando por todas as conversas
espirituosas que trocaram e o quanto se tornou mais
e mais interessada em ouvir o que ele achava sobre
qualquer coisa.
Esse cara, que ela não sabia como
aparentava ou se chamava, vinha sendo uma das
pessoas mais importantes e presentes em seus dias.
Era muito raro que os dois passassem vinte e quatro
horas sem se falar, e Joana já não sabia o que era
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assistir a um filme sem logo em seguida lhe contar


suas impressões. Tudo entre eles era agradável e ela
queria que nunca terminasse.
— Ele não é meu namorado — respondeu
antes de entrarem na sala vazia. Joana se
posicionou atrás da porta e a manteve toda aberta
para as rodas da cadeira de Piegas não esbarrarem
em nada. A amiga abriu a boca quando passou por
Joana, mas ela interrompeu antes que a outra
dissesse algo: — Nem webnamorado! Não estamos
num relacionamento, Piegas.
— E por que não mesmo? Até onde eu sei
vocês dois tão caidinhos um pelo outro, só falta se
encontrarem pra darem uns beijos.
Piegas se posicionou no mesmo lugar que
sempre ficava quando participava de uma reunião e
Joana sentou na cadeira ao lado dela, jogando seus
pertences sobre a mesa.
— Eu não quero complicar a situação.
— Como isso aconteceria?
— Sei lá. Não sabemos se a gente ia dar
certo fora da internet.
— E nunca vai saber se não tentar. Pelo
amor de Deus, Jô, como você vive assim? Achei
que com 24 anos as pessoas deveriam agir com
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mais maturidade. Esse cara pode ser qualquer


pessoa!
Joana já tinha passado por aquele estágio.
Andar nas ruas e prestar atenção nos rostos de
todos que encontrava, se perguntando se algum
deles poderia ser o @caradaprefeitura. Sorrir mais
do que o normal para o atendente do restaurante
onde sempre almoçavam, porque… quem sabe?
Várias vezes. Ter certeza de que o cara que trabalha
na cafeteria estava lhe olhando demais por ser o seu
conhecido misterioso? Culpada. Foram dois meses
de pura paranoia. Agora ela estava livre desse
pensamento, porque sabia que apesar de São
Baltazar não ser uma cidade grande, as chances
reais dos dois se esbarrarem por acaso eram
mínimas.
A porta abriu de repente e Davi entrou na
sala, sem jeito ao perceber a presença delas ali. Ele
abriu um sorriso sincero ao cumprimentar Piegas,
mas quando seus olhos encontraram Joana, Davi
apenas mexeu a cabeça desajeitadamente, fechando
a porta com pressa e indo se sentar bem de frente
para as duas. O lugar não era tão grande e a mesa
de reunião também não era enorme, então Davi não
tinha muitas escolhas. Mesmo assim, Joana
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estreitou os olhos ao vê-lo sentar bem na sua linha


de visão.
— A Patrícia chamou os temporários pra
reunião também? — perguntou Piegas
amigavelmente.
— Não, a Ana Clara que pediu pra eu
acompanhar ela hoje — respondeu ele. — As duas
já tão chegando.
Joana precisou se controlar para não ter
alguma reação que demonstrasse o quanto ela
ficava irritada com a menção do nome de Ana
Clara. Ainda mais quando vinha de Davi, a nova
pessoa favorita daquela mulher odiosa. Ele tinha
aquele jeito de rapaz quietinho, sempre ajeitando os
óculos de lentes quadradas, falando apenas o
necessário, vestindo quase sempre camisetas xadrez
e calça jeans, sem nenhum fio desalinhado no seu
black perfeito, um tom de voz melodioso e um
sorriso que transmitia calma e paz. Joana sabia que
o adoraria na mesma intensidade que Piegas, se não
fosse a lembrança de ele ter ido fofocar o que não
devia para Ana Clara.
E ainda tinha aquele perfume meio cítrico
que ele usava todos os dias. O cheiro era tão
marcante que em menos de um minuto no mesmo
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ambiente que Davi, Joana já começava a sentir sua


rinite alérgica dar sinal de vida. Ele levantou a
cabeça em sua direção bem na hora que ela coçava
o nariz, incomodada.
A porta se abriu novamente e Patrícia
entrou na sala acompanhada de uma sorridente Ana
Clara. Joana se incomodou com aquele sorriso,
sentimento que ficou ainda maior quando a jovem
fez questão de lhe lançar um olhar quase
ameaçador. O esforço que Ana Clara fazia para
deixar claro o quanto ela não gostava de Joana era
quase admirável. Até mesmo Piegas, que achava a
amiga exagerada ao desgostar tanto de Davi por um
“deslize inocente”, concordava que Ana Clara não
prestava e estava mais do que preparada para puxar
o tapete de quem quer que atravessasse o seu
caminho.
— Boa tarde, todo mundo — começou
Patrícia, sentando-se na ponta da mesa e abrindo
um sorriso carinhoso para todos os presentes. —
Vamos começar? Ainda tenho uma reunião com o
pessoal da unidade da capital. Inclusive, acho que
vou ter que ir mais cedo do que imaginei pra São
Paulo, então vamos falar um pouco disso também.
Patrícia não só era uma ótima chefe, como
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também uma excelente profissional no geral. Não


tinha problema que não soubesse resolver com
criatividade e comprometimento. Sempre conseguia
convencer os clientes sobre o que seria melhor para
suas empresas, e ainda fazia a fama da Eskina
aumentar mais e mais. Ela era a frente da agência já
há alguns anos, assumindo o lugar de Paulo César
depois de uma longa carreira na área. Uma mulher
não branca, de ascendência indígena, era
responsável por tudo o que acontecia ou deixava de
acontecer na Eskina. Joana se sentia orgulhosa da
chefe que tinha.
Naquela tarde, Patrícia explicou para eles
como funcionaria a campanha de Carnaval que a
emissora de televisão queria organizar. O trabalho
era meio complexo e não muito interessante. Joana
já podia sentir a dor de cabeça que teria com tudo o
que precisaria fazer e as prováveis horas extras que
passaria trabalhando. Passou a reunião inteira
apenas respondendo quando alguém lhe perguntava
algo, pois, além de nem querer estar ali, o sono da
noite mal dormida estava começando a se
apresentar.
— Não se preocupa, Patrícia — disse Ana
Clara ao fim da reunião, quando todos já juntavam
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seus pertences para ir embora. — Vamos dar nosso


melhor e vai sair um trabalho incrível!
— Eu não tenho a menor dúvida, Ana
Clara, mas agora eu pre…
— Posso só sugerir uma alteração? —
voltou a falar, interrompendo Patrícia e chamando
para si a atenção de todos da sala.
— Pode — a voz da chefe soou hesitante.
— Eu só acho que talvez seja melhor
mandar o Jader pra produção durante esse projeto.
Ele teve uma experiência boa quando precisamos
dele lá e acho que vamos precisar de mais ajuda
nessa fase.
Joana pigarreou e apertou a caneta entre os
dedos antes de falar:
— O Jader é a única pessoa comigo e com a
Célia no design. O Renato tá de férias até o fim do
mês, lembra? Eu sei que o Jader é ótimo na
produção e que ele já trabalhou um tempo com
vocês, mas nós vamos ficar bem mais
sobrecarregados do que vocês sem ele.
Patrícia olhou de uma para outra, avaliando
quem tinha o melhor argumento, mas antes que ela
desse o veredicto, Joana já sabia o que teria que
encarar. Afinal, aquele dia estava sendo péssimo e
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ela nunca duvidou de que teria como piorar.


— Eu acho que a Ana Clara tá certa, Joana.
A gente vai ter muito texto pra escrever nessa
campanha. Deixar Ana Clara, Manu e os
temporários sozinhos na produção pode não ser a
melhor ideia. Você e a Célia dão conta, né?
A pergunta foi retórica e todos ali sabiam
disso. Joana forçou um sorriso e tentou não quebrar
a caneta ao concordar contra sua vontade:
— A gente dá um jeito.
— Ótimo!
Patrícia saiu satisfeita da sala, mas não mais
do que Ana Clara, que até mesmo teve a audácia de
mexer os dedos em um tchauzinho cínico antes de
acompanhar a chefe. Piegas apertou o braço da
amiga para tentar mantê-la calma e Joana respirou
fundo, tentando controlar um pouco toda sua
frustração. Quando as duas estavam se
aproximando da saída, Davi se apressou em passar
as duas para segurar a porta aberta para elas. Piegas
passou primeiro, levantando o rosto para sorrir em
agradecimento ao rapaz, mas Joana preferiu fingir
que ele nem estava ali.
— Espera.
O pedido de Davi veio acompanhado dos
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seus dedos no cotovelo de Joana, tocando sua pele


delicadamente. Antes daquele momento ela era
uma daquelas pessoas que diziam nunca ter sentido
o tal “choquinho” que alguns descreviam de vez em
quando. Nada. Nunca. Joana sempre foi fascinada
pelo conceito e tinha curiosidade de saber como era
a sensação.
Naquele instante, quando os dedos de Davi
roçaram em seu braço, todos os pelos na sua pele se
arrepiaram e uma onda estranha de energia
percorreu pela região. Joana se afastou no mesmo
instante, esfregando o cotovelo e vendo Davi
flexionar os dedos, sinal de que ele também tinha
sentido.
— Fala — ela perguntou seca, querendo
desviar a atenção do acontecido.
— Eu só queria pedir desculpa por isso. —
As palavras não fizeram muito sentido para Joana.
Davi, percebendo, continuou: — Quando eu
perguntei pra Ana Clara se a gente não teria ajuda
nesse projeto, não tava pensando nisso. Achei que
ela ia tentar pedir pra contratarem outro temporário
ou algo assim.
Ela não podia acreditar no que estava
ouvindo. Aquilo era real? Suas sobrancelhas
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subiram tão alto que sua testa até doeu um pouco.


— Uau — disse, cruzando os braços na
frente do peito. — Por que eu não tô nem um pouco
surpresa por você estar de novo envolvido em algo
que vai me ferrar?
— Não foi de propósito — se defendeu
Davi.
— Isso não importa muito agora, né?
— Eu só tô tentando me desculpar.
— Talvez, se você parasse de se meter no
que não deve, precisaria se desculpar menos.
Ele jogou a cabeça para trás, fazendo o
cabelo balançar com o movimento brusco e o óculo
dançar em seu rosto. Um suspiro longo escapou de
Davi antes de ele voltar a encará-la.
— Eu sei que você ficou brava comigo por
causa daquele dia, mas eu já me desculpei e tenho
tentado ser legal contigo. Por que você não pode só
deixar pra lá?
— Pra quê? Pra você poder entregar mais
informações sobre mim pra Ana Clara? — Joana
estalou a língua nos dentes. — Dispenso.
— Eu não… Quer saber? — o olhar meio
desesperado de Davi sumiu repentinamente. — Eu
desisto. Eu fiz uma besteira, pedi desculpa e tentei
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fazer as coisas darem certo, mas você não tá


interessada. Tudo bem. Não vou mais continuar
perdendo meu tempo já que não quer me ouvir.
Joana estava pronta para lhe responder com
algum comentário sarcástico, mas o rapaz não ficou
ali para ouvir. Davi passou pela saída, batendo a
porta atrás de si. Joana escancarou a boca, se
sentindo ofendida com aquele ato rebelde do
temporário. Ela até teria ido atrás dele para
resolverem aquilo de uma vez, mas não tinha
paciência para mais nada naquele dia.
Deixou a sala de reuniões vazia para trás e
voltou para a sua mesa, observando Ana Clara
conversar com Jader pelo canto do olho. Não
perdeu seu tempo com os dois e ligou o
computador assim que sentou na cadeira. Antes de
começar a se irritar com a máquina lenta (porque
nada estava querendo dar certo naquele dia), Joana
ouviu o alerta de uma nova mensagem.
Já imaginando quem poderia ser, ela
conferiu o celular com um sorriso no rosto.

@caradaprefeitura: Espero que o seu dia esteja melhor que o


meu. Não vejo a hora de chegar em casa e poder passar umas boas
horas conversando contigo. Talvez a gente consiga assistir um
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filme juntos?

Se imaginar mais tarde no conforto da sua


cama, assistindo um filme no notebook e
comentando tudo com o @caradaprefeitura fez o
seu coração ficar menos triste. Pelo menos ela teria
algo positivo para esperar daquele dia. A sensação
boa que invadiu seu peito foi tão intensa que ela se
perguntou se Piegas estava certa sobre eles. Não
que Joana não tivesse se questionado antes sobre
seus sentimentos por aquele estranho tão
conhecido, mas, dia após dia, tudo se tornava maior
e melhor, e estava ficando cada vez mais difícil não
se perguntar o que exatamente estava acontecendo.
Até mesmo por esse motivo ela achava mais seguro
eles continuarem apenas com o contato virtual.
Quem poderia saber o tipo de confusão que sairia
daquela mistura de sentimentos?
— Acho melhor você passar menos tempo
no seu celular e mais tempo tentando fechar o seu
projeto atual — o comentário de Ana Clara fez
Joana virar o rosto em sua direção, mas ela só
continuou repetindo para si mesma mentalmente
vários mantras para não se estressar. — Ia ser um
desastre se atrasasse e juntasse com o de Carnaval,

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né? Ainda mais com menos pessoas pra te ajudar.


Joana apertou os dentes, enrijecendo o
maxilar enquanto via Ana Clara se afastar,
sorridente. Não eram poucas as vezes que se via
perguntando o sentido de ter que passar por tudo
aquilo nessa vida. Era impossível ter um propósito
em ter que aguentar aquele tipo de afronta.

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@vidaspretas: algumas vezes vc se pergunta qual o nosso


propósito na vida e pq estamos todos aqui no mundo, vivendo
durante esse mesmo intervalo de tempo?

@caradaprefeitura: Você tá bêbada?

@vidaspretas: não!!!!

@caradaprefeitura: Certeza? Você sempre manda mensagens


profundas quando tá bêbada.

@vidaspretas: NÃO TÔ!


apenas reflexiva

@caradaprefeitura: Bom, respondendo sua pergunta: eu não faço


a menor ideia.

@vidaspretas: obrigada
foi a resposta mais inútil que já recebi

@caradaprefeitura: Hahahahahaha Mas eu também não acho que


a gente precisa saber.

@vidaspretas: eu preciso!!!!
fico meio noiada achando que minha vida não tem propósito
nenhum e que tô deixando de fazer algo que eu deveria estar
fazendo

@caradaprefeitura: Mas e se você soubesse o que precisa fazer?

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Não ia dar na mesma? Você não ia deixar a vida passar para focar
100% no seu propósito principal?

@vidaspretas: mas o meu propósito principal seria a minha vida!

@caradaprefeitura: Claro que não! A vida é o que a gente faz


dela, o que pode ser um milhão de coisas diferentes. Se você tira
todas as pequenas jornadas que te levam até o destino final, você tá
tirando todo o motivo daquela trajetória existir pra começo de
conversa. São os desvios no caminho que fazem você ser quem é. E
tudo isso é a vida.

@vidaspretas: vc tá fazendo parecer mais interessante do que


realmente é

@caradaprefeitura: Hahahahahaha Eu concordo contigo que


muitas vezes a gente não consegue perceber isso, mas, vai por
mim, você não está fazendo nada de errado e nem deixando a vida
passar sem propósito. A vida passar é o propósito.

@vidaspretas: mas é difícil mandar embora essa sensação

@caradaprefeitura: Eu sei. Não quis fazer parecer fácil. Só tô


tentando te ajudar a perceber que você pode estar perdendo o
panorama da situação toda.

@vidaspretas: é, eu sei que vc tá certo


perco isso de vista algumas vezes
até pq tudo parece tão chato que eu até meio que gostaria de ir
viver em outra época
quando a parte ruim já tiver passado.
de preferência quando já existirem carros voadores

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@caradaprefeitura: Hahahahaha Com isso eu não posso


argumentar. Mas, particularmente, sou muito grato por poder viver
agora e ter a oportunidade de te conhecer. Não trocaria isso por
nada.

@vidaspretas: uau
vc quer tanto me beijar assim?

@caradaprefeitura: HAHAHAHAHA Eu não acredito que você


estragou meu momento filosófico e carinhoso!!!!!

@vidaspretas: desculpa, mas pareceu muito que vc quer me


beijar!!!! HAUHAUHUA

@caradaprefeitura: Hahahahahaha O pior de tudo é que você


sabe a resposta.

@vidaspretas: <3

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3
DAVI
Ele sabia, quando perguntaram se poderia trabalhar
naquela manhã de sábado, que deveria ter negado.
Em partes porque já tinha combinado de ajudar a
mãe com a preparação da festa de aniversário de
seu pai, que seria naquela noite, mas também
porque estava ficando cansado de todo o estresse
que a campanha de Carnaval vinha trazendo. O que
ele não poderia ignorar era a grana envolvida, então
não se arrependia completamente de estar trancado
dentro daquele escritório quase vazio num dia
ensolarado.
Davi já tinha tomado uma quantidade de
café bem maior do que deveria, mas decidiu pegar
mais um copinho no caminho até a impressora.
Pelo menos faria valer de algo a caminhada que
teria que fazer para usar a máquina do andar de
cima, já que a do departamento tinha decidido dar
defeito. Em outra ocasião, ele não teria se
incomodado, já que raramente imprimia algo. Mas
seus olhos estavam cansados e Ana Clara não
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estava ali para reclamar.


Depois de enviar a impressão para a
máquina do segundo andar, ele marchou
preguiçosamente escada acima. Primeiro parou
para pegar o café, ficando feliz ao sentir o cheiro do
expresso quentinho e ter a fumaça da bebida
embaçando as lentes dos óculos. Após isso, foi até
a portinha estreita que estava aberta, mostrando o
interior da sala que continha algumas estantes e
uma mesa com uma impressora meio velha. Davi
estava a alguns passos da porta quando viu Joana
surgir na mesma escada de que ele tinha vindo.
Quase uma semana tinha se passado desde o
momento em que Davi bateu a porta na cara de
Joana, tendo que ir direto para o banheiro fazer
alguns exercícios de respiração para controlar o
pequeno ataque de pânico causado pela situação.
Ele não estava acostumado a confrontar pessoas
daquela forma, nem sabia de onde tinha vindo a
coragem. Davi se lembrava de, aos doze anos, ter
dado um soco num primo que estava enchendo sua
paciência numa festa de aniversário, fazendo um
bilhão de piadas ofensivas sobre ele ser gordo.
Daquela vez também teve uma crise de pânico ao
ver o que tinha feito e foi quando seus pais o
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levaram pela primeira vez para terapia. Dez anos


tinham se passado a ele ainda não sabia lidar muito
bem com conflitos.
Joana não o cumprimentou e desviou o
olhar rapidamente. Davi não a culpava, mas
também não estava tentando se aproximar dela
como antes. Apesar de tudo, ele não se arrependia
do que tinha dito. Pelo contrário, estava mesmo
cansado de tentar e não gastaria mais suas energias
com alguém que não queria manter uma boa
relação com ele. Sua terapeuta achou uma atitude
bastante madura e ficou muito orgulhosa. Não tanto
pela parte de bater a porta, mas com isso Davi
conseguiria viver.
Ele suspirou e seguiu seu caminho até a sala
da impressora, mas começou a ficar um pouco
apreensivo ao perceber que Joana estava logo atrás
dele e ia na mesma direção. Davi parou na frente da
mesa, olhando por cima do ombro para ver Joana
parada a alguns passos dele. Depois de terminar de
tomar o café e jogar o copinho no lixo, ele pegou os
papéis impressos, conferindo se todas as páginas
que precisava estavam mesmo ali.
Davi não aguentou nem um minuto daquele
silêncio constrangedor.
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— Não sabia que você vinha hoje também.


Joana respondeu com um “aham” baixo que
ele até ficou em dúvida se tinha sido real, então
preferiu deixar para lá, dando um passo para trás e
deixando a impressora livre para que ela a usasse.
Seu cérebro continuava tentando lhe lembrar: para
de tentar, para de tentar, para de tentar.
— Você fechou a porta?
Davi virou metade do corpo para encarar a
porta fechada e a expressão irritada no rosto de
Joana. Ele tinha feito aquilo? Não conseguia
lembrar. Seu estômago gelou.
— Acho que eu…
Joana fez um gesto com a mão que não
segurava um bloco de papéis, cortando a
explicação, e se aproximou da maçaneta, forçando-
a algumas vezes, sem resultados.
— Argh, esse troço nunca abre pelo lado de
dentro!
— Eu não sabia!
Ela olhou por cima do ombro com uma
careta de descaso e concordou com ironia:
— É, a culpa nunca é sua.
— Por que sempre tem que… Espera — se
interrompeu Davi, virando totalmente para ela e
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dando alguns passos em sua direção. — Você


entrou depois de mim. Você fechou a porta!
Joana parou o que estava fazendo na mesma
hora e girou para encará-lo. Suas sobrancelhas
estavam enrugadas e dava para ver em seus olhos o
quanto ela achava aquela acusação um absurdo.
— Eu não fechei a… — antes de terminar a
frase, a expressão de Joana mudou e seus olhos se
arregalaram um pouco.
Davi também não costumava contar vitória
por bobeiras, mas não conseguiu controlar a alegria
que sentiu naquele momento.
— Rá! Não acredito que você tava querendo
me culpar por um erro seu.
Joana revirou os olhos.
— Eu não tava querendo nada! Só não
lembrei… Ah, deixa pra lá — disse ela, voltando a
encarar a porta e empurrando-a com o ombro
enquanto mexia na maçaneta. — Preciso sair daqui.
— Eu também — concordou Davi, se
colocando ao lado de Joana e ajudando-a. Nada
aconteceu. — Não tava planejando ficar trancado
aqui, ainda mais com você.
Ela estreitou os olhos.
— Como a Piegas acha que você é
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bonzinho e legal?
Davi deu de ombros.
— Porque talvez a Manu sempre seja legal
comigo.
— Ah, agora a culpa é minha? —
perguntou, mais uma vez parando a tentativa de sair
dali para dar sua total atenção a ele. — O que mais
é minha culpa?
Sem pensar muito, Davi levantou as
sobrancelhas, sustentando o olhar de Joana, e bateu
a mão na porta duas vezes. Ela bufou, mas não
pareceu encontrar uma boa resposta para aquele
apontamento. Era estranha a satisfação que dava
ganhar pontos em um jogo que ele nem entendia
direito como funcionava.
Impaciente, Joana começou a bater na porta
e gritar por ajuda, mas Davi se lembrava bem de
ver aquele andar sem uma alma viva, e duvidava
que alguém lá de baixo fosse ouvir. Mesmo não
acreditando que daria resultado, ele a acompanhou
no apelo.
Em menos de um minuto ao seu lado, Davi
viu Joana fazer uma careta e passar a mão no nariz.
Aquela não era a primeira vez que ele a via reagir
assim. Na verdade, quase todas as vezes que ele se
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aproximava dela, Joana repetia aquele gesto. Ele


odiava o quanto aquilo lhe deixava inseguro,
pensando no pior cenário possível, em que algum
tipo de odor ruim estivesse vindo dele.
Aproveitando os acessos de coragem daquele dia,
Davi não se controlou ao perguntar:
— Por que você faz isso sempre que tá
perto de mim?
Joana parou de bater na porta e o encarou
com uma expressão confusa.
— Isso o quê?
— O negócio com o nariz — respondeu ele,
demonstrando o gesto em si. — Parece até que eu
tô fedendo.
A afirmação atingiu Joana
instantaneamente. Seus ombros caíram um pouco e
sua fisionomia se suavizou.
— Não, não é isso. É o seu perfume. Ele me
dá alergia.
— Ah… — Davi não sabia o que dizer,
sentindo-se envergonhado o suficiente para saber
que suas bochechas talvez estivessem um pouco
avermelhadas.
Joana, por outro lado, estava tendo uma
reação bem mais tranquila do que ele achou que ela
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teria. Constrangida, ela pigarreou e confessou numa


voz suave:
— Eu ficava muito paranoica achando que
todo mundo me achava fedida quando eu era
criança. A sensação voltou um pouco quando eu
trancei o cabelo. — Ela apontou para o coque
enorme sobre a cabeça, formado por todas as suas
trancinhas. — Você não sabe quantas pessoas que
me param pra perguntar se eu não tenho nojo de
passar tanto tempo com o cabelo sujo.
Ele nunca tinha pensado na situação
daquela forma. Quer dizer, Davi entendia como as
pessoas conseguiam ser ignorantes quando o
assunto era o cabelo de pessoas negras. Sua prima
Duda usava dreads há um tempo e já tinha lhe
contado que ouvia comentários como aqueles.
Também se lembrava dos olhares que recaíam
sobre ele e em seu cabelo crespo toda vez que a
professora falava sobre piolhos na escola. Mas
Davi nunca tinha refletido sobre o quanto o seu
medo de sempre acharem que ele estava fedido (o
que o levava a passar mais perfume do que era
necessário) poderia ter relação com tudo aquilo.
— Uau — disse ele. — O racismo ferra
nossa cabeça sempre, não é?
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— Com certeza.
Joana já tinha desistido de tentar derrubar
aquela porta, encostando-se nela e aparentando
frustração não só pela situação, como também pelo
assunto em que eles tinham entrado. Ele entendia.
Pensar sobre isso sempre o deixava exausto. A
surpresa, embora não devesse ser, era como as
pessoas eram capazes de olhar para um cabelo tão
lindo e bem cuidado como o de Joana e ter
pensamentos absurdos. A proximidade dos dois
naquele momento fez com que Davi sentisse o
cheiro de coco nas tranças dela.
— Seu cabelo é muito cheiroso.
Demorou alguns segundos para ele perceber
que tinha dito aquilo em voz alta e que agora Joana
o encarava com as sobrancelhas arqueadas, quase
tão surpresa quanto ele. Seu estômago deu sinal de
vida mais uma vez, fazendo o nervosismo se
espalhar. Era muito esquisito ele comentar sobre o
cabelo de Joana, assim, do nada? Ela o acharia
estranho? Os dois voltariam aos termos de antes?
Ou seria pior?
Para sua tranquilidade, Joana abriu um
pequeno sorriso e disse:
— Bom, você já sabe que eu não sou fã do
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seu perfume.
Davi riu, não sabia se por achar graça do
comentário ou se por alívio, e Joana o acompanhou.
O clima voltou a ser descontraído depois daquele
momento de tensão, então ele se sentiu confortável
para comentar, num tom brincalhão:
— Parece que você é capaz de ser legal
comigo de novo…
Joana reprimiu um sorriso.
— Não força — avisou ela, jogando a
cabeça para o lado.
Um riso baixo voltou a sair de Davi,
satisfeito por não estar sentindo o mesmo
nervosismo de todas as outras vezes em que estava
na presença de Joana desde que começou a
trabalhar na Eskina.
O celular de Davi vibrou com a chegada de
uma nova mensagem e ele conferiu, mas não
respondeu ao ver que era só a sua mãe pedindo para
ele comprar mais pratinhos plásticos para a festa.
Mas aquilo tinha lhe dado uma ideia. Olhando entre
seus contatos, Davi procurou pelo nome da
recepcionista no Instagram, com quem ele
mantinha a relação cordial esperada entre duas
pessoas que trabalham no mesmo lugar e costumam
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esperar ônibus juntas no mesmo ponto. Mandou


uma mensagem para ela explicando a situação e
perguntando se ela poderia subir para abrir a porta.
Depois de enviar, seus olhos ficaram presos
nas últimas mensagens da @vidaspretas, que ele
ainda não tinha tido tempo de responder.

@vidaspretas: eu encontrei um podcast super bizarro


amei
100% viciada

Meneou a cabeça, sorrindo e pensando no


quanto aquilo era típico dela. Cair num buraco sem
fim na internet e ir parar em coisas estranhas que
ninguém nunca tinha ouvido falar antes. Estava
começando a digitar algo para ela, quando seu
celular vibrou com a chegada da resposta da
recepcionista.
— Mandei mensagem pra Carina da
recepção — disse Davi, guardando o celular no
bolso da calça e encarando Joana, que tinha sentado
no chão com as costas apoiadas na porta. — Ela
disse que foi tomar café na padaria, mas já tá
voltando pra ajudar a gente.
— Ótimo. Eu ainda tenho um trilhão de
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coisas pra fazer antes de ir pra casa.


— É, a Manu que se deu bem e ficou em
casa hoje — disse ele, sentando ao lado de Joana.
— As vantagens de se ter uma noiva
gripada, precisando de cuidados.
— Falar isso parece meio errado.
— Não pra Piegas. Ela escapou de ter que
vir hoje e tava contente.
Ele encostou a cabeça na parede, rindo.
— Eu só tô feliz que a Ana Clara não veio
também.
Joana virou a cabeça em sua direção e
perguntou:
— Já cansou da sua amiguinha?
— Ela nunca foi minha amiga. Já te disse
que aquela situação toda foi um mal-entendido. Pra
falar a verdade, a Ana Clara me assusta um pouco.
O comentário fez os lábios de Joana se
repuxarem em um sorriso lindo. Davi ficou meio
orgulhoso de ter gerado aquele resultado.
— É o jeito que ela encara a gente. Descaso
e ódio. Talvez uma dosezinha generosa de racismo.
Ele assentiu, sabendo exatamente ao que
Joana estava se referindo. Ana Clara ainda não
tinha o escolhido como alvo de sua “atenção
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especial”, mas ele sentia falsidade em todas as


palavras que ela lhe dizia, sem contar que dava para
ver como ela ficava satisfeita toda vez que
conseguia prejudicar Joana. Era detestável.
— Como você tem aguentado trabalhar com
ela todo esse tempo?
Joana bufou.
— Eu me pergunto isso todos os dias.
— Mas pelo menos você gosta de trabalhar
aqui, né?
A resposta não veio logo em seguida e,
quando a demora começou a ser incômoda, Davi
virou o rosto para encarar a careta que Joana fazia
ao dizer:
— Gostar é uma palavra muito forte. Eu
comecei a trabalhar aqui depois de passar um
tempo desempregada quando saí da faculdade,
então pareceu uma grande benção. A empresa já era
muito conhecida e Patrícia foi simplesmente um
anjo comigo desde sempre. Eu deveria gostar mais
da Eskina, mas me pergunto todos os dias por que
ainda estou aqui.
— E por que você ainda está aqui?
Joana suspirou e voltou a encarar Davi.
— Porque a realidade é mais complicada do
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que a gente imagina quando somos mais novos. Eu


achei que a essa altura eu ia tá vivendo daquilo que
amo, me sentindo completamente realizada e
caminhando pro sucesso. Mas tinham vários
boletos para serem pagos no meio do caminho.
Ele riu da afirmação.
— Sei bem como é. Tirando a parte de fazer
o que ama, porque eu não faço ideia do que eu amo
fazer.
Joana enrugou a testa e Davi se surpreendeu
ao perceber que tinha começado a falar de algo que
nunca teve coragem de confessar para ninguém.
Não sentiu vontade de parar naquele momento,
então continuou:
— Eu entrei na faculdade achando que
descobriria o que deveria fazer lá e porque gostava
do curso no geral. Segui fazendo uns trabalhos em
que eu era bom, mas nunca senti que gostava
realmente de algo, sabe? Eu meio que não sei
direito o que quero da minha vida.
Davi desviou o olhar, com medo da reação
que viria de Joana. Ele via muitos de seus colegas
já terem objetivos aos 22 anos de idade, alguns
deles até já dando grandes passos em suas jornadas
profissionais, por isso ele acabava se sentindo cada
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vez mais uma completa decepção.


— Tá tudo bem — disse Joana, empurrando
o joelho de Davi com o seu. — Você é novo ainda.
Nós dois somos. Eu sei que às vezes não parece,
mas temos tempo pra descobrir essas coisas.
Seu olhar voltou a Joana e ela tinha um
sorriso doce estampado no rosto. Toda a sua
expressão passava calma e compressão, o que foi
uma surpresa. Ele não esperava ser capaz de se
sentir tão bem ao lado de Joana, tão confortável
para lhe contar algo pessoal. Assim como também
não sabia que ficaria tão interessado nos lábios dela
e nos pensamentos que lhe visitaram naquele
instante. Ele não poderia gostar da Joana daquele
jeito. Não fazia sentido. Os dois só estavam há
tempo demais trancados ali.
O barulho repentino de alguém mexendo na
maçaneta alertou os dois de que finalmente sairiam
daquele lugar. Davi levantou em um pulo e
estendeu os braços para ajudar Joana a se colocar
de pé. Assim que Carina os libertou, Joana foi até a
impressora e, lembrando-se do que tinha a levado
até ali, fez uma cópia do documento que trazia
consigo. Ele não sabia se deveria ou não esperá-la,
mas enquanto pensava no que fazer, Joana
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terminou a cópia e virou-se para ele, sorrindo.


Carina começou a se desculpar assim que
abriu a porta e, enquanto desciam ao primeiro
andar, ela continuou explicando o porquê de não ter
chegado mais rápido (um moço fantasiado de
mosquito, vindo de algum bloco de pré-Carnaval e
segurando uma latinha de cerveja, a seguiu por
alguns quarteirões, então ela teve que despistá-lo).
Um último pedido de desculpa foi gritado para eles
depois de agradecerem a ajuda de Carina e
seguirem para o escritório em que trabalhavam,
deixando-a voltar à recepção.
Davi e Joana não falaram mais nada, apenas
trocaram algumas risadas solidárias, pensando na
velocidade que Carina tinha contado toda aquela
história, e também um último olhar amigável antes
de cada um voltar para sua mesa. Davi tiraria algo
de positivo de trabalhar num sábado antes do
Carnaval, aparentemente.

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@caradaprefeitura: Algumas vezes eu tenho umas memórias


contigo mesmo sabendo que você não tava lá.

@vidaspretas: como assim?

@caradaprefeitura: Lembra que há uns dois meses foi aniversário


da minha mãe? E eu tava na festa de aniversário dela, entediado e
ignorando minhas tias avós enquanto conversava com você por
aqui?

@vidaspretas: lembro
vc me mandou foto do bolo mais feio do mundo

@caradaprefeitura: Isso! Exato! Meu cérebro me prega umas


peças às vezes e eu tenho a impressão que você tava lá comigo.
Fisicamente, digo. Não só conversando por mensagem.

@vidaspretas: mas daí vc tem uma imagem física minha?

@caradaprefeitura: Mais ou menos. Não é uma imagem nítida,


mas eu consigo imaginar uma presença e uma voz que seria sua.
Isso é muito absurdo? Hahahaha

@vidaspretas: HUAHUAHUA
não!!!!
o cérebro humano é fascinante
e eu entendo
a gente passa muito tempo conversando por aqui
muito mesmo

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então acho até normal isso meio que transbordar assim

@caradaprefeitura: Mesmo assim, é estranho.

@vidaspretas: eu tenho um pouco disso tbm


lembra que a gente ficou comentando o globo de ouro aqui?

@caradaprefeitura: Sim. Saudade do nosso drinking game de


tomar uma dose sempre que uma pessoa branca ganhava.

@vidaspretas: sim!!!
foi ótimo
queria ter bebido menos
mas só aquele melhor filme rendeu pelo menos 20 doses

@caradaprefeitura: Hahahahahahaha

@vidaspretas: mas enfim


o que eu ia dizer é que eu tenho um pouco dessa sensação
eu lembro daquele dia e é quase como se vc tivesse aqui na sala
comigo

@caradaprefeitura: E eu teria estado, com muito prazer.

@vidaspretas: alá
lá vem com os papos
HUAHUAHUA

@caradaprefeitura: Me diz de novo: por que a gente não pode se


conhecer mesmo?

@vidaspretas: pra que a pressa?


isso pode acabar com toda a nossa sintonia
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@caradaprefeitura: Ou melhorar.

@vidaspretas: vc é otimista demais

@caradaprefeitura: Nesse caso, tô só sendo realista.

@vidaspretas: não sei se tô disposta a arriscar


vc se tornou muito importante pra mim
não quero perder o que a gente tem por causa de um encontro ruim

@caradaprefeitura: A gente funciona bem demais juntos pra ter


um encontro ruim.

@vidaspretas: mas talvez a gente funcione justamente pq nunca


nos vimos
existe algo empolgante em não saber muito sobre detalhes da sua
vida pessoal
torna as possibilidades infinitas
a gente pode até já ter estado no mesmo lugar e nem sabemos
não é empolgante?

@caradaprefeitura: Não. Eu só fico frustrado pensando nessa


possibilidade. Mas tudo bem, quem sabe um dia?

@vidaspretas: sim
um dia
sério <3

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4
JOANA
Era sempre horrível quando aquilo acontecia. Joana
só conseguia pensar no quanto a vida não era
mesmo justa. Ela nem ao menos tinha comido o seu
cereal quando viu a notícia sobre a morte de Ismael
da Silva Toledo, um garoto negro de doze anos que
tinha levado oito tiros de um policial enquanto
brincava com alguns amigos na rua da favela onde
morava.
Joana não conhecia aquela criança. Não
sabia quem eram seus pais antes daquele
assassinato e nunca tinha ido à comunidade onde
eles moravam, que ficava em outro estado. Mesmo
assim, a sensação de dor era forte e deixava um
peso enorme em todo o seu corpo. Aquela história
já tinha sido contada antes, sempre com o mesmo
final, sempre com sangue preto sendo derramado e
vidas negras sendo descartadas. A sensação de
frustração, impotência e cansaço às vezes era mais
forte que a vontade de lutar. Foi assim naquela
manhã, quando Joana viu a foto do garotinho
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sorridente na televisão.
Estava aliviada por ser Carnaval e não ter
que ir trabalhar, pois sabia que não teria cabeça
para isso. Ao mesmo tempo, precisava encher sua
mente com algo ou acabaria se sentindo ainda pior.
Pensou em mandar alguma mensagem para o
@caradaprefeitura, sabendo que ele a entenderia e
que sempre se sentia melhor depois de
conversarem, mas também sabia que tinham ido
dormir tarde na noite anterior, assistindo um filme
francês chato, e ele ainda demoraria a acordar.
Decidiu fazer a outra coisa que era seu
refúgio: desenhar. Seu coração ficava em paz
quando toda sua concentração estava voltada a uma
ilustração. Cada novo traço, ou a escolha de cores
certas ao colorir, todo o processo era cansativo de
um jeito positivo. Sem contar que estava sentindo
uma necessidade enorme de usar sua arte para se
expressar sobre aquilo, ou explodiria. Por isso,
Joana procurou na internet, ignorando possíveis
comentários, a foto de Ismael que tinha visto na
televisão. Assim que encontrou, começou a
trabalhar no desenho que o homenagearia.
Enquanto suas mãos trabalhavam, para
manter seus pensamentos ainda mais quietos, Joana
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colocou para tocar um episódio do podcast


esquisito que tinha encontrado há uns dias. Era
basicamente uma mulher, Maria Geraldina,
contando histórias absurdas que envolviam seus
vizinhos e conhecidos, para finalizar com alguma
lição que Joana ainda não tinha certeza se era
genial ou sem noção. De qualquer forma, os
Conselhos de Madame Magê foram uma
companhia relaxante durante aquele dia.
Se dependesse dela, teria ficado o dia
inteiro quietinha no apartamento, ainda mais que
Vanessa tinha ido passar o Carnaval em sua cidade
natal e tinha o lugar todo só para ela, mas, naquela
noite, o pessoal do escritório tinha marcado de se
reunir num bar para comemorar o aniversário de
Beto. Ela não era tão próxima assim dele, apesar de
achá-lo uma pessoa bacana no geral, então, Joana
chegou a cogitar não ir, porém Piegas mandou
algumas mensagens dizendo que talvez fosse bom
sair um pouco de casa. Levando em conta que o bar
era bem perto, ela decidiu seguir o conselho da
amiga.
O arrependimento já se fez presente assim
que ela chegou lá e viu a pessoa de que menos
gostava entre os convidados. Ninguém ali era
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grande amigo de Ana Clara, talvez Jader e duas


outras garotas que Joana não conhecia muito bem,
mas por algum motivo ela tinha sido convidada.
Era frustrante saber que passaria o resto da noite
em sua presença.
Tentando evitar ao máximo o contato com
Ana Clara, ela se sentou do outro lado da mesa,
junto com Piegas, que estava acompanhada por sua
noiva Sayuri, e Davi, que andava subindo bastante
em seu conceito naqueles dias. Não tinha tido
muitas oportunidades para conversar com ele
depois de sábado, mas o rapaz tinha almoçado com
ela e Piegas no dia anterior e não tinha sido a pior
coisa do mundo.
Já fazia quase uma hora que ela estava
sentada entre o pessoal, bebericando uma cerveja e
participando de forma moderada das conversas
paralelas na mesa, quando a televisão que estava na
parede ao lado deles começou a passar a notícia do
caso Ismael, chamando a atenção de parte das
pessoas da mesa. Entre elas, Ana Clara, que fez
questão de comentar algo ao fim da reportagem:
— Ai, mas eu vi que esse moleque era
traficante. Tem uma foto dele com o uniforme da
escola e uma arma na mão, até.
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Joana encarou Ana Clara no mesmo


momento, agradecendo aos céus por ter uma mesa
inteira entre as duas.
— E você viu isso numa fonte muito segura,
eu imagino — disse Piegas, carregando seu tom de
voz com sarcasmo.
— Sim, qual tia sua te mandou a foto no
Whatsapp? — perguntou Sayuri, segurando a mão
de Piegas entre a dela, enquanto uma expressão de
curiosidade sincera surgia em seu rosto.
Ana Clara ajeitou sua postura e levantou
uma sobrancelha, respondendo Piegas meio brava,
meio ofendida:
— Foi um amigo meu que é advogado que
me disse.
— E a gente também sabe que deve ter tido
um motivo pra terem atirado — acrescentou Jader.
Ali o arrependimento de ter saído de casa
tomou sua forma completa. Joana não acreditava
que tinha ido até lá para se distrair e estava sendo
obrigada a ouvir aquele tipo de comentário. Sentiu
uma onda de raiva tomar conta de si, resultando
numa vontade enorme de chorar, mas conteve as
lágrimas ao responder com uma voz fria:
— Tinha sim, ele era pobre e negro.
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— Ai, Joana, não tem nada a ver isso —


defendeu Ana Clara. — Pessoas brancas morrem
também, tá? Ele com certeza devia tá metido com
alguma coisa errada.
Ela nem conseguia começar a explicar de
quantas maneiras diferentes Ana Clara estava
errada. Pensou em apontar que pessoas brancas não
morriam só por serem brancas; em dizer que o
Ismael estar ou não envolvido com algo não
justificava os oito tiros que levou enquanto
brincava na rua; em perguntar honestamente se Ana
Clara conseguiria diferenciar Ismael de qualquer
outro garoto negro em uma foto; ou, ainda, se ela se
importava com o fato de uma criança ter sido
assassinada.
Resolveu deixar todos esses
questionamentos para lá, até porque a mesa, a essa
altura, já tinha virado uma grande discussão sobre o
assunto, em que Ana Clara e Jader continuavam
falando absurdos, enquanto Piegas, Sayuri e Luísa,
a outra temporária, argumentavam sensatamente.
Entre todos os presentes, só Joana e Davi eram
pessoas negras, e, ao observá-lo pelo canto do olho,
percebeu que ele estava tão desconfortável quanto
ela.
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Respeitando seus próprios sentimentos,


Joana se levantou e saiu dali. Não se deu ao
trabalho de olhar para trás, nem percebeu se alguém
tinha lhe chamado de volta ou não. Seguiu andando
até estar do lado de fora, parada na calçada e
encostada na parede ao lado do bar.
O ar fresco da noite a ajudou a se acalmar
um pouco, depois que respirou fundo algumas
vezes para deixar a raiva ir embora. Não era a
primeira vez que ouvia comentários daquele tipo,
mas não estava em um bom dia e preferia não ter
passado por aquilo naquela noite. Ou em nenhuma
outra.
— Você tá bem?
A voz de Davi, quase ao seu lado, fez Joana
dar um pulinho de susto. Não tinha percebido ele se
aproximando e não estava preparado para vê-lo
parado bem ao seu lado. Ele usava o mesmo estilo
de quando estava no trabalho: uma camiseta lisa
escura, calça jeans e tênis. Seu black sempre com o
formato e o volume perfeitos e os óculos meio
quadrados que ele era viciado em ajeitar no rosto,
mas foi a ausência de algo que chamou sua atenção
naquele instante. O nariz de Joana não ficou
irritado e ela inspirou fundo para ter certeza de seu
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palpite: Davi não estava usando o mesmo perfume


de antes. Ela tinha notado essa mudança nos
últimos dias, desde o sábado em que ficaram presos
juntos no trabalho, mas não teve coragem de
perguntar se ele tinha parado de usar por causa
dela. Também lhe parecia prepotente demais supor
aquilo.
— Eu vi você saindo e achei melhor checar
se tava tudo bem — ele continuou quando ela não
respondeu.
— Depois de ouvir os importantes
apontamentos da Ana Clara? — disse Joana,
fazendo um sinal positivo com o dedão. — Tudo
maravilhoso.
Ele encostou-se no espaço vazio de parede
ao lado dela e soltou um longo suspiro antes de
dizer:
— Alguém deveria avisar que ela não
precisa ter uma opinião sobre todas as coisas.
— Ela ia ter uma opinião sobre não precisar
ter uma opinião.
Davi soltou um riso baixo, pois, assim
como Joana, sabia que era verdade. Depois de
alguns minutos de silêncio, ele encarou o chão,
mexendo os pés distraidamente, e falou:
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— Eu acordei hoje com a notícia e fiquei


me sentindo mal o dia inteiro. Meus pais falando
disso, os dois arrasados também. Pelo menos eu
tive terapia hoje e passei uma hora desabafando
sobre toda essa situação lá.
— Talvez eu devesse fazer terapia também.
— Deveria — aconselhou Davi, levantando
a cabeça para olhá-la com seriedade. — É
importante. Cuida da sua saúde mental, porque o
resto do mundo obviamente não tá muito
preocupado em como vai atacar seu emocional.
Ele estava certo e Joana sabia disso. Tinha
frequentado a terapia por um tempo há alguns anos,
logo que se mudou para São Baltazar, no começo
da faculdade, e foram meses muito bons, mas
precisou largar por falta de dinheiro. Deveria ter
voltado em algum momento depois disso, porque
não tinha como ter sua saúde mental intacta
vivendo num mundo daqueles.
— Talvez a Piegas esteja mesmo certa sobre
você — afirmou Joana.
— Sobre eu ser o melhor temporário da
Eskina? — questionou ele, brincando.
Foi boa a sensação de ter um sorriso
surgindo de forma espontânea em seu rosto pela
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primeira vez naquele dia.


— Não. Sobre você ser um cara legal.
Davi ficou um pouco envergonhado com
aquele comentário, coçando a nuca e com um rubor
se espalhando pelas bochechas. Joana apreciou
bastante aquela reação.
O celular dele vibrou, roubando sua
atenção, e ele atendeu uma ligação. Pelo que ela
conseguiu ouvir da conversa, parecia que o pai de
Davi estava querendo que ele voltasse para casa por
um motivo qualquer envolvendo a irmã mais nova
do rapaz. Ele prometeu que logo estaria lá e
desligou em seguida.
— Preciso ir — anunciou, apontando para o
bar atrás deles. — Eu não vou voltar lá pra me
despedir.
Joana meneou a cabeça, se desencostando
da parede.
— Nem eu. Vou mandar uma mensagem
pra Piegas no caminho de casa e pronto.
— Precisa de uma carona?
— Não, eu moro a duas ruas daqui.
— Ah, sim. — Davi deu dois passos para
longe dela, mas ainda a encarava ao se despedir. —
Então… Até segunda?
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— Até segunda.
Ele se virou, lançando um último
cumprimento com a mão, e caminhou no sentido
contrário ao qual Joana deveria seguir. Ela o viu se
afastar e se sentiu grata por aquela curta conversa,
podendo acrescentar Davi na lista de coisas ou
pessoas que a deixaram um pouco mais leve
naquele dia tão pesado.

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@caradaprefeitura: Eu amei sua ilustração do Ismael. Ficou


muito linda.

@vidaspretas: obrigada

@caradaprefeitura: Você tá bem?

@vidaspretas: vc tá?

@caradaprefeitura: Isso continua acontecendo.

@vidaspretas: todo dia

@caradaprefeitura: Toda hora.

@vidaspretas: é sufocante pensar que isso nunca muda


parece que tudo que a gente fala, tudo que a gente luta não dá em
nada
e eu me sinto completamente inútil fazendo o mínimo do mínimo
colocando um desenho na internet

@caradaprefeitura: Você fez o que podia e o que precisava. Sua


arte importa. Só olhar os comentários. Eu entendo o sentimento,
mas não carrega essa culpa dentro de você.

@vidaspretas: quando não acabam com a nossa vida, enfraquecem


nossa mente, né

@caradaprefeitura: Infelizmente sim. Todo dia uma nova

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batalha.

@vidaspretas: eu odeio isso

@caradaprefeitura: Todos nós. Só não se esqueça que você tem


pessoas que te amam e que estão do seu lado para te ajudar.
Recarregue suas energias e se cerque de coisas boas. A gente
precisa estar bem para poder continuar.

@vidaspretas: é difícil
mas eu fico mais aliviada de saber que tenho pessoas como vc me
dando apoio
espero que saiba que eu tbm tô aqui pro que vc precisar

@caradaprefeitura: Sei sim. Por isso tava ansioso pra chegar em


casa e poder conversar contigo.

@vidaspretas: o pior é que ainda tive que ouvir comentários


babacas sobre isso hoje

@caradaprefeitura: É, eu também. Viver às vezes é pesado


demais.

@vidaspretas: sim :(

@caradaprefeitura: Foi um dia cansativo.

@vidaspretas: por aqui tbm


a gente devia fazer algo para relaxar um pouco

@caradaprefeitura: Tipo o quê?

@vidaspretas: assistir um filme bem legal e comentar por aqui


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tenho até uma indicação

@caradaprefeitura: Boa tentativa, mas eu não vou assistir


Homem-Aranha 3

@vidaspretas: aff
com certeza ia ajudar a gente a tirar um pouco isso da cabeça

@caradaprefeitura: É, mas aí eu ia ficar traumatizado pra sempre


com o Peter Parker Emo. Me deixa manter minhas boas memórias
dessa franquia.

@vidaspretas: tá bom, tá bom


posso escolher outro filme

@caradaprefeitura: Na verdade, eu tô cansado demais. Meus


olhos tão meio pesados já. Acho que vou dormir.

@vidaspretas: uau essa é a primeira vez que você dorme cedo


desde que começamos a nos falar

@caradaprefeitura: Viu só? Você está sendo uma boa influência


para mim.

@vidaspretas: yeeees
sabia que eu ia ser capaz de te dar boas noites de sono

@caradaprefeitura: Ah, isso você já vem dando há algum tempo.


Eu sempre durmo e acordo com um sorriso besta na cara quando
passo a noite conversando contigo.

@vidaspretas: isso foi quase brega demais pra eu apreciar


quase
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@caradaprefeitura: Hahahaha Que bom que gostou.

@vidaspretas: acho que vou dormir também


só de conversar com vc eu já tô mais calma

@caradaprefeitura: Eu também. Você fez o finzinho do meu dia


ficar melhor.

@vidaspretas: digo o mesmo


obrigada por ter aparecido do nada na minha vida

@caradaprefeitura: Obrigado por ter continuado na minha.

@vidaspretas: <3

@caradaprefeitura: Tá bom, vamos dormir antes que a gente


fique a noite inteira conversando.

@vidaspretas: vamos
se cuida, tá?

@caradaprefeitura: Você também.

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5
DAVI
— Eu não acredito no quanto você é incompetente!
As palavras gritadas de repente por Ana
Clara quase levaram Davi a apagar sem querer o
texto que estava digitando. Ela estava parada na
ponta do corredor, bem ao lado de Luísa, e olhava a
garota sentada, com os braços cruzados e ódio no
olhar.
Ele não tinha prestado atenção quando a
bronca tinha começado, mas pelo estado emocional
da temporária, ele chutava que Ana Clara já estava
há algum tempo conversando com a garota – apesar
de Davi ter certeza que conversar não era
exatamente a palavra certa para descrever o que
estava acontecendo.
— Eu te pedi pra fazer uma coisa e você me
entrega um lixo desses!
Mesmo não sendo com ele, Davi sentia sua
ansiedade se manifestando. Seu cérebro começou a
lhe fazer acreditar que Ana Clara viria em seguida
até a sua mesa, dizendo que seu trabalho era
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horrível, que tinha tido acesso às suas notas


medianas na faculdade e que seu diploma de
Comunicação era completamente inútil. Imaginou
Patrícia chegando e se juntando a Ana Clara,
afirmando que Davi era a pior coisa que tinha
acontecido para aquela empresa. Todos finalmente
descobririam que ele era uma fraude.
— Ana Clara, abaixa o tom — pediu
Manuela em voz alta.
Aquela intervenção foi boa para brecar a
linha de raciocínio obsessiva que estava se
formando em Davi. Ele respirou fundo, se
lembrando de que deveria ignorar aquelas vozes
irritantes em sua mente que queriam sempre
colocá-lo para baixo.
— Não, Manu! — esbravejou Ana Clara,
roubando a atenção de todos no escritório. — Essa
menina não sabe fazer nada! Eu não aguento mais
ter que pegar um milhão de erros que ela deixou
passar! Custa muito prestar atenção no que tá
fazendo, hein? Só gruda a cara na tela e faz a droga
do seu trabalho!
Aquela situação ficava cada vez pior. O
burburinho se espalhou no ambiente e não tinha
ninguém ali que não tivesse deixado o trabalho de
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lado para entender o que estava acontecendo.


Uma dessas pessoas era Joana, que saiu de
sua mesa e veio até Ana Clara com uma expressão
séria no rosto. Ela cruzou os braços na frente do
peito e disse:
— Tá bom, Ana Clara, chega.
Ultrajada com a interrupção abrupta, ela
enrugou a testa e escolheu um tom de desprezo para
responder Joana:
— Isso não tem nada a ver com você.
— Bom, quando você tá gritando no meio
do escritório pra geral ouvir, meio que vira
problema de todo mundo.
Ana Clara estalou a língua nos dentes.
— Joana, só volta pro seu lugar.
— Você vai parar de gritar com a Luísa?
— Ela precisa aprender!
— O que não vai acontecer com você
humilhando ela na frente de todo mundo.
Ser a pessoa recebendo a chamada de
atenção não pareceu agradar Ana Clara. Ela virou
de frente para Joana, arrumando sua postura para
ficar ainda mais alta do que já era, olhando a outra
de cima ao dizer:
— Você acha que manda aqui, né? Só
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porque a Patrícia gosta de você, não quer dizer que


você tem o direito de se meter no trabalho de outras
pessoas.
— Eu não chamaria essa gritaria de
trabalho.
— Sabe o que eu não chamo de trabalho?
Você atrasar um projeto todo por ter se perdido na
entrega.
Os comentários sussurrados cessaram na
mesma hora. Todos tinham entendido a indireta –
mais do que direta – que Ana Clara estava fazendo
para Joana. Davi, se lembrando de sua parte de
culpa no fato da supervisora de seu setor ter
descoberto o atraso de Joana, sentiu seu estômago
revirar. Ele apertou o mouse entre os dedos,
ouvindo Piegas praguejar baixinho. Uma reação
que já se justificaria pela tensão entre as duas, mas
que se tornou ainda mais precisa quando Patrícia
surgiu no escritório, caminhando até Ana Clara e
Joana. Era como se os piores pensamentos de Davi
tivessem tomado vida.
— O que tá acontecendo aqui? —
perguntou a chefe.
Para a surpresa de ninguém, Ana Clara
virou para Patrícia na mesma hora e não esperou
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um segundo antes de começar a se explicar:


— A Joana veio se meter no meu
departamento, em algo que não tem nada a ver com
ela.
Patrícia virou para a outra funcionária e
arqueou as sobrancelhas esperando respostas.
— Joana.
Davi, como todos no escritório, encarou
Joana. Mas, diferente dos outros, apenas ele tinha
notado a mudança sutil nas feições dela naquele
instante. Seu rosto estava mais suave e seu olhar
mais sereno, ele até mesmo podia jurar que Joana
suspirou num sinal de alívio. Davi nem sabia que
tinha reparado tanto nela durante o tempo que
trabalharam juntos para ser capaz de detectar
aquelas pequenas diferenças.
Jogando para trás do ombro algumas de
suas tranças, Joana respirou fundo e comunicou a
Patrícia algo que ninguém ali esperava ouvir:
— Patrícia, eu me demito.
A reação geral foi bem sonora. As vozes
voltaram a murmurar e Piegas, ao lado de Davi,
sugou o ar com tanta força que quase se engasgou.
— O quê? — perguntaram, juntas, Patrícia e
Ana Clara.
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Joana abriu um pequeno sorriso e


reafirmou:
— Eu vou terminar tudo que eu ainda tenho
em andamento, mas depois disso eu não quero mais
continuar trabalhando aqui. Já deu.
A felicidade estampada no rosto de Ana
Clara era indescritível. Era como se ela tivesse
conquistado sua maior vitória, e Davi não duvidava
que era exatamente nisso que ela acreditava.
— Joana, vamos conversar no meu
escritório, por favor — pediu Patrícia, fazendo sinal
para que a seguisse.
Ela assentiu e foi atrás da chefe, com todos
os pares de olhos focados em si. Davi sabia que
nunca suportaria receber toda aquela atenção, assim
como nunca teria coragem de tomar a atitude que
Joana tinha tomado.
Davi se pegou sorrindo com admiração ao
observar Joana se afastando.

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@vidaspretas: vamos nos encontrar?

@caradaprefeitura: É você mesmo? Ou alguém invadiu sua


conta?

@vidaspretas: engraçadinho

@caradaprefeitura: Eu não tô brincando. Me fala qual o pior


filme do mundo?

@vidaspretas: vc não sabe valorizar boa arte


essa pergunta nem merece uma resposta

@caradaprefeitura: Ok, agora eu acredito que é você. Mas ainda


tô confuso.

@vidaspretas: com o que?


eu disse que um dia a gente se conheceria

@caradaprefeitura: É, mas eu acho que nunca levei muito a sério.

@vidaspretas: vc não quer mais?

@caradaprefeitura: Claro que eu quero! Inclusive, vai ser ótimo


ter um nome pra te chamar e um rosto pra ligar a todas as nossas
conversas. Mas agora eu tô mais curioso pra saber o motivo de
você ter mudado de ideia.

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@vidaspretas: acho que me dei conta de que a vida é curta


eu tô aqui nessa cidade já faz quase seis anos
longe da minha família e com poucos amigos
sei lá, eu ando me dando conta de muitas coisas ultimamente
e uma delas é que não vale a pena me dar ao luxo de não te
conhecer

@caradaprefeitura: Não tá mais com medo da gente estragar tudo


num encontro?

@vidaspretas: não, eu ainda tenho bastante medo disso


tenho 73,7% de certeza de que eu posso estragar tudo
mas eu não quero ficar fantasiando
e pensando no que pode ou não acontecer
eu quero te conhecer
quero poder te dar um abraço
saber como é o seu sorriso
sei lá
eu tô perdendo muita coisa não te conhecendo

@caradaprefeitura: Uau. Eu nem posso acreditar. É muito


ridículo eu falar que meu coração tá batendo meio rápido só de
pensar em te ver?

@vidaspretas: não
me ajuda a me sentir menos besta tbm

@caradaprefeitura: A gente vai mesmo se conhecer?

@vidaspretas: a gente vai mesmo se conhecer

@caradaprefeitura: Quando? Onde? Como vamos saber quem


somos?
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@vidaspretas: que tal na sexta?


umas 20h, lá na curi doces
e não sei, mas podemos combinar de vestir algo específico

@caradaprefeitura: Ok. Eu estou disposto a ser o cara segurando


um DVD de Homem-Aranha 3.

@vidaspretas: HUAHUAHAUA
vc vai comprar o filme só pra isso????

@caradaprefeitura: Tô vendo preço nesse exato momento.

@vidaspretas: HAUAHUHA
eu gosto do seu empenho, cara
vou entrar nessa tbm
lembra que eu falei que tinha uns brincos parecidos com aquele
treco de pedraria azuis que apareceu naquele filme francês chato
que vc me fez ver?

@caradaprefeitura: A TRILOGIA DAS CORES NÃO É


CHATA! Ainda mais o primeiro filme!

@vidaspretas: tá bom
se ilude aí
mas eu vou usar esses brincos no dia
não chega aos pés do seu empenho
mas já é algo

@caradaprefeitura: Eu faria bem mais que isso se precisasse.


Nem consigo acreditar que esse dia vai realmente acontecer.

@vidaspretas: vc tá me deixando nervosa!


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@caradaprefeitura: Hahahahahha Desculpa! Só estou ansioso pra


te ver.

@vidaspretas: eu tbm

@caradaprefeitura: Espero que você não me odeie quando me


conhecer.

@vidaspretas: eu já te conheço
e já te adoro?

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6
JOANA
Ela nem podia acreditar que estava mesmo prestes
a fazer aquilo, um sentimento que andava sendo
recorrente nos últimos tempos.
Depois de se demitir da Eskina, mesmo
Patrícia tendo tentado lhe convencer a ficar, Joana
precisou lidar com a realidade de que logo estaria
desempregada e sem uma renda fixa. O desespero
bateu no instante em que entrou em seu
apartamento, lembrando-se do quão agoniante foi o
período sem trabalho que passou antes de ser
contratada pela agência, mas uma ligação para a
mãe já acalmou seu coração. Ela a apoiou e disse
que auxiliaria a filha no que precisasse. Ter passado
horas e horas enviando currículos para algumas
vagas que encontrou na internet também ajudou
bastante. Tentaria ser otimista para não ficar tão
abalada.
Mas Joana ainda estava surpresa por ter tido
a coragem de convidar o @caradaprefeitura para
um encontro. Sim, ela queria que aquilo
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acontecesse algum dia, mas não esperava que fosse


tão cedo – embora seis meses não fosse exatamente
um tempo curto. Joana acreditava que um dia, num
momento mágico, ela teria certeza que se
conhecerem pessoalmente seria o certo a se fazer.
Ao contrário do que arquitetou sua imaginação, foi
no meio de uma noite entediante, vestindo pijama e
conversando com o @caradaprefeitura sobre o
novo filme gordofóbico do momento, que ela
decidiu lançar a proposta.
Então, no dia marcado, às oito da noite,
Joana caminhou ao lado de Piegas pelos três
quarteirões que separavam seu prédio da confeitaria
Curi Doces, fingindo não estar tão nervosa quanto
sua amiga acreditava.
— Tá tudo bem sentir um friozinho na
barriga num primeiro date, Jô.
— Isso não é um date e eu não tô com
friozinho na barriga — mentiu.
— Ah, tá bom que não é um date. Me fala,
vocês vão ou não se beijar mais tarde?
As duas atravessavam a rua quando Piegas
lançou a pergunta e Joana não soube como
responder. Ela poderia dizer que não estava
interessada nisso, mas não seria totalmente
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verdade. Claro que conhecer a pessoa com quem


vinha trocando mensagens há meses envolvia
muitas descobertas diferentes, e beijá-lo poderia ou
não ser uma delas. Mas Joana não soaria
convincente se dissesse que nunca pensou na
possibilidade, ainda mais quando muitas das
conversas dos dois terminavam com flertes,
comentários ambíguos e menções a beijos.
— A gente vai só se conhecer — finalmente
respondeu. — Só isso.
— Você tá arrumada demais pra quem “vai
só se conhecer”.
— Ei! — Joana colocou o dedo indicador
na frente dos lábios. — Shhh.
Ela empurrou a cadeira de Piegas por trás,
ajudando-a a subir na calçada, num movimento
automático. As duas eram próximas e se conheciam
há tempo o suficiente para Joana saber que aquilo
não a incomodaria, um cenário que mudaria
completamente se fosse outra pessoa em seu lugar.
Uma vez Jader quis ajudar Piegas – sendo que os
dois quase nunca se falavam – com algo que ela
não precisava de ajuda, e ele ainda ficou sorrindo
de um jeito irritante, como se fosse um grande
herói.
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Piegas, assim que Joana voltou a caminhar


ao seu lado, deu um beliscão no braço dela, se
vingando do silenciamento de antes, e as duas riram
enquanto Joana fazia um pequeno drama pelo
ataque que nem a tinha machucado de verdade.
— Obrigada por vir comigo — disse Joana
quando estavam mais perto da confeitaria.
Piegas abriu um sorriso enorme.
— Jô, eu não ia deixar você encontrar um
possível assassino sozinha. Mesmo que isso
envolva ter que vir nesse lugar imbecil.
O ódio de Piegas pela filial de São Baltazar
de uma das mais famosas confeitarias do país não
era sem motivos. O lugar tinha sido aberto havia
menos de um ano e a cidade inteira ficou animada
com a chegada do estabelecimento, e Piegas entrou
nessa mesma energia, até chegar ao local e ver que
apenas uma escada muito, muito estreita de três
degraus dava acesso à entrada da confeitaria. Joana
estava com ela nesse dia e dividiu com a amiga a
frustração e a raiva de ver mais um estabelecimento
sem acessibilidade no mundo.
— Eu deveria ter marcado em outro lugar,
mas só consegui pensar nele quando tentei lembrar
de um que fosse, ao mesmo tempo, perto de casa e
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com um clima mais tranquilo, sem ser vazio.


Marcar encontros com pessoas que você não
conhece ao vivo é complicado.
Piegas meneou a cabeça, rindo, mas Joana
ficou séria, sentindo o nervoso que ela negava
sentir aumentar cada vez mais. Mais alguns passos
e elas estavam perto da porta de entrada da
confeitaria. Joana ficou parada ali por um tempo,
sentindo seus pés grudarem no chão.
— Não sei se eu tenho coragem.
— O quê? — perguntou Piegas, virando a
cadeira para ficar de frente para a amiga. — Jô,
você já veio até aqui. Não vai deixar o cara te
esperando, né? Olha, se ajudar, eu vou na janela e
olho ele pra você. Que tal?
Aquela era uma ideia excelente. Piegas era
uma pessoa muito observadora e saberia dizer se
ele tinha cara de psicopata ou algo do tipo. Joana
assentiu meio sem coragem e continuou parada no
mesmo lugar, enquanto Piegas se aproximou da
enorme janela de vidro que ia do teto ao chão,
mostrando tudo o que acontecia dentro do local, e
ficava bem ao lado da porta de entrada. Havia
pequenos arbustos enfeitando a frente da parede de
vidro, o que a fez precisar esticar um pouco o
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pescoço para conseguir olhar para dentro do


restaurante. Joana estava pronta para analisar
cuidadosamente a expressão da amiga, mas não
precisava de muito talento para ver as sobrancelhas
grossas de Piegas subirem em surpresa assim que
seus olhos encontraram o que procurava. Com a
curiosidade sendo mais forte que seu nervosismo,
Joana caminhou para mais perto da amiga e parou
em frente à pequena viga de concreto que existia
entre a porta e a janela.
— Como ele é? — perguntou Joana,
impaciente.
Piegas pareceu pensar um pouco antes de
responder:
— Hmmm… Ele tem um rosto amigável,
sabe? Parece alguém que trabalharia com a gente lá
na agência. Mas não tô falando da galera babaca de
lá, alguém legal, alguém com quem poderíamos
bater um papo bacana do lado da máquina de café.
Eu diria até que ele é alguém com quem a gente
almoçaria.
Aquela descrição deixou Joana um pouco
mais tranquila.
— Não parece ruim.
— Não é — concordou Piegas, virando o
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rosto para Joana e mexendo as sobrancelhas


sugestivamente. — E ele é bem bonito também.
Joana soltou um riso nervoso, mas logo
respirou fundo, tentando não pensar na insegurança
que estava voltando a lhe atacar.
— Ok, estou pronta — ela disse, dando um
passo para frente e olhando, pelo cantinho do vidro,
o lado dentro da confeitaria.
Seus olhos vagaram um pouco buscando
alguém com um DVD de Homem-Aranha 3 sobre a
mesa, porque o lugar estava bem mais cheio do que
ela imaginava. Mas Joana não estava pronta para
ver um rosto conhecido bem no meio do salão.
Sozinho em uma pequena mesa estava Davi. A
princípio, apesar de estranhar a coincidência, ela
não viu problema no fato de ele estar ali. Talvez
tornasse o seu encontro um pouco mais
constrangedor, mas nada demais.
Joana estava prestes a desistir de sua busca
e pedir para Piegas lhe apontar o
@caradaprefeitura, quando viu Davi mexer no
objeto que repousava sobre a mesa. Uma caixinha
de DVD. Homem-Aranha 3. Seu cérebro demorou
ainda mais alguns segundos para entender o que
estava acontecendo, e mesmo quando achou que
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começava a compreender, ela continuava confusa.


— É o Davi — murmurou Joana.
— Sim — confirmou Piegas num tom
divertido.
— O Davi do trabalho.
— Ele mesmo.
— O Davi é o “cara da prefeitura”.
Piegas a empurrou para longe da janela.
— Tá bom, Jô, a gente pode ficar nisso o
dia todo — disse, segurando a mão da amiga e
dando um leve puxão para que Joana a encarasse.
— Tá tudo bem?
Aquela era uma pergunta que ela não sabia
como responder. Há um minuto diria “sim”, guiada
pela alegria que sentia em estar indo conhecer
alguém que tinha se tornado essencial em sua vida.
Mas agora seus mundos tinham colidido da forma
mais inexplicável possível, e Joana ainda não
entendia o que estava sentindo.
Davi e @caradaprefeitura eram a mesma
pessoa.
Joana vinha se correspondendo há meses
com a mesma pessoa que tinha ido trabalhar na
Eskina. De todos os cenários que ela tinha
arquitetado, aquele era um que nunca tinha lhe
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passado pela cabeça. Não sabia ao certo se era algo


bom ou ruim, se estava bem ou não.
— Jô.
Ao ser chamada de volta para a realidade
pela amiga, Joana balançou a cabeça, tentando sair
das voltas que sua mente estava dando, e disse:
— Acho que sim. Só é… Estranho. Você
acha que ele sabia o tempo todo? Que ele foi
trabalhar na Eskina por causa disso?
Piegas fez uma careta, parecendo duvidar
daquela possibilidade, mas perguntou mesmo
assim:
— Alguma vez ele pareceu saber?
— Não. Mas ele podia estar fingindo.
Ela continuou segurando a mão de Joana, o
que estava a ajudando a se manter centrada, e virou
o rosto rapidamente na direção da janela da Curi
Doces.
— Sei lá, Jô, mas não acho que o Davi faria
isso.
Apesar de ter levantado a hipótese, Joana
concordava com ela. Já tinha ouvido casos bizarros
sobre pessoas que se conheceram online e não
tinham acabado muito bem. Sempre foi bastante
preocupada com isso, na verdade. Era parte do
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motivo de não ter aceitado encontrar o


@caradaprefeitura pessoalmente na primeira vez
que o assunto surgiu. Mas também não conseguia
acreditar que Davi estivesse armando um plano
diabólico para conhecê-la. Ele nunca deu provas de
saber quem ela era, e estava sentado naquela
confeitaria, parecendo ansioso com a chegada de
quem esperava. Nenhum sinal mostrava que Davi
pudesse saber que Joana era @vidaspretas.
— Mas é estranho. Mesmo se for
coincidência. Não é?— perguntou, preocupada.
Piegas deu de ombros.
— Um pouco, mas tudo é possível — ela
deu mais um puxão suave na mão de Joana e
completou: — Entra lá, vocês conversam e
descobrem tudo.
Colocando daquela forma, tudo parecia
simples, mas era só lembrar quem estava lá dentro
lhe esperando que o coração de Joana batucava
mais alto no peito.
— Piegas, o que eu vou fazer? — perguntou
um pouco desesperada. — A gente trabalha junto
há meses, não vou entrar lá, sentar na mesa e falar
“é comigo que você troca mensagens!”.
— E por que não?
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— Porque é estranho! — ela quase gritou,


passando a mão por suas tranças para tentar se
acalmar.
— Jô, relaxa. Você precisa entrar lá e contar
quem você é. É o mais justo, pra vocês dois.
Como quase sempre acontecia, Piegas
estava com a razão. Claro que ela não poderia
deixar Davi sentado naquela confeitaria pelo resto
da noite. Joana odiaria que fizessem algo parecido
com ela, então jamais o faria com outra pessoa. Isso
sem contar que a pessoa em questão era, ao mesmo
tempo, o cara legal de quem ela tinha aprendido a
gostar nos últimos três meses, e o cara de quem ela
vinha se tornando mais e mais próxima através de
conversas online. Não existia a menor chance de
agir com tanta desconsideração. Ele precisava saber
a verdade.
— Ok. Eu vou.
— Quer que eu espere aqui?
Joana negou com a cabeça, apertando a mão
da amiga carinhosamente.
— Não, eu resolvo isso — disse, se
inclinando para frente e envolvendo Piegas num
abraço. — Obrigada por ter vindo.
— Não precisa agradecer — ela afastou um
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pouco Joana de si para encará-la com as


sobrancelhas arqueadas. — Certeza que não quer
que eu fique?
Tentando aparentar estar mais controlada,
Joana forçou um sorriso.
— Não, tá tudo bem. Pode ir encontrar a
Sayuri no cinema.
Piegas hesitou um pouco, mas decidiu
acatar o pedido da amiga. Deu mais um abraço
rápido em Joana antes de se virar e seguir pela
calçada, mas não sem antes dizer alto:
— Qualquer coisa, me liga! E boa sorte!
Joana tinha certeza que a sorte seria bem-
vinda. A situação inteira ainda lhe parecia muito
surreal e não sabia como conversaria com Davi
sobre isso. E se ele tivesse uma reação péssima?
Uma coisa era o @caradaprefeitura ser um
desconhecido, mas ele saber quem era Joana e
terem convivido juntos por um tempo mudava tudo.
O @caradaprefeitura conhecia aspectos da
personalidade e pensamentos de Joana que apenas
uma pequena porção de pessoas em sua vida
conhecia. A confiança que construíram juntos tirou
dela qualquer medo de ser quem realmente era nas
conversas que tinham. Entrar na Curi Doces e
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encontrar uma pessoa que só teria essa imagem


dela lhe deixava em paz. Porém, não seria essa a
situação. Ao atravessar aquela porta, tudo o que
Davi veria seria a mulher que trabalhou com ele,
com quem tinha brigado algumas vezes e sabe-se lá
quais eram suas outras impressões sobre Joana. Os
dois estavam sendo amigáveis nos últimos tempos,
mas isso não queria dizer que ele seria receptivo
para aceitar que Joana era @vidaspretas. Será que
ficaria decepcionado?
Naquele momento, tudo o que ela precisava
era de coragem. Respirar fundo e entrar na
confeitaria para ter a conversa mais estranha da
vida. Joana respirou fundo. Ela conseguiria fazer
aquilo, ou, pelo menos, foi o que repetiu para si
mesma. Mas, apesar da repentina coragem de entrar
na confeitaria ter lhe dominado, Joana ainda tinha
medo de como seria recebida, por isso decidiu
retirar os brincos de pedrarias azuis que disse para
o @caradaprefeitura que usaria naquela noite,
deixando-os guardado na segurança do bolso de seu
vestido preto. Meia coragem ainda era coragem.
Antes que mudasse de ideia, Joana subiu as
escadas da Curi Doces e abriu a estreita portinha de
vidro, desviando o olhar de Davi enquanto entrava
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na confeitaria. Esperou estar a alguns passos da


mesa em que ele estava para finalmente erguer os
olhos para o rapaz e, quando o fez, encontrou-o
encarando-a com a testa franzida.
Sem saber como reagir, Joana apenas abriu
um sorriso e se aproximou de Davi, fingindo que
tudo aquilo era normal e que não estava com frio na
barriga.
— Joana? — disse ele, com um tom mais
questionador do que qualquer outra coisa. — O que
tá fazendo aqui?
A surpresa de Davi parecia genuína, o que
só provou que ele não sabia mesmo quem ela era.
Seu olhar, inclusive, fugiu de Joana por alguns
segundo quando a porta se abriu e um casal entrou
na confeitaria. Davi voltou a fixar sua atenção nela
depois disso, parecendo frustrado, mas ainda
esperando que ela lhe desse uma resposta. Sem
pensar muito, ela o fez:
— Eles têm a melhor torta de maracujá da
cidade.
— Ah sim — ele não parecia tão
interessado assim em sua resposta, talvez nem
tenha ouvido o que ela tinha dito.
Aproveitando aquele momento e sua falta
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de estratégia, Joana apontou para o balcão e


caminhou até lá, pedindo a tal torta e usando aquele
momento para pensar sobre o que fazer.
Seu plano inicial tinha sido seguir o
conselho de Piegas e contar para Davi que ela era a
pessoa que ele estava esperando, mas talvez não
precisasse fazer isso naquele exato momento, não
é? Poderia usar a situação ao seu favor e testar as
águas antes de se jogar inteira no mar. Parecia
razoável.
Joana se virou e viu Davi de costas, ainda
bastante atento na direção da porta. A cena a fez
sorrir um pouco. Ele estava mesmo ansioso para
conhecer a @vidaspretas. Segurando a torta de
maracujá nas mãos, ela caminhou de volta até a
mesa de Davi, sentou-se no lugar vago sem pedir
permissão e disse:
— Era de se esperar que, com o casal Curi
sendo os melhores confeiteiros do Brasil, o povo
falaria mais sobre os doces e menos sobre tudo o
que a filha deles faz e deixa de fazer, né?
Davi ficou alguns segundos com os olhos
grudados em Joana, piscando repetidas vezes e
parecendo confuso demais com a companhia
inesperada. Ela não o conhecia há tanto tempo, mas
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tinha certeza de que ele estava pensando numa


maneira educada para pedi-la que se retirasse da
mesa.
— Eu não acompanho muito as fofocas dos
famosos — respondeu ele, hesitante.
— Essa é meio difícil de não acompanhar,
tá sempre em todos os lugares — Joana comeu um
pedaço da torta após dizer isso e a porta fez, mais
uma vez, um barulho estridente ao ser aberta,
roubando a atenção de Davi. — Tá esperando
alguém?
Parecendo triste com o que não tinha
encontrado, ele voltou a encarar Joana e respondeu:
— Na verdade, eu tô sim. Se você não se
inco…
— Alguém especial?
As palavras pularam para fora sem que
Joana percebesse e nem teve tempo de se
arrepender antes de ser dominada pela curiosidade.
Ela sabia que não tinha intimidade o suficiente com
ele para se meter em sua vida amorosa, pelo menos
até onde Davi sabia, mas foi inevitável.
Davi pareceu não se incomodar com a
pergunta. Joana acompanhou os movimentos de
seus dedos quando ele tocou a capa do DVD que
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ainda repousava sobre a mesa. Ela precisou conter


um sorriso ao se lembrar de que ele havia
comprado um filme do qual não gosta só para
aquela ocasião.
— Sim — respondeu ele, fazendo o coração
de Joana palpitar um pouco mais forte. — Quer
dizer, eu acho que sim. Não sei. É que… — Davi
suspirou e fez uma careta antes de continuar: — A
gente nunca se viu.
O pedaço de torta que Joana estava prestes a
comer quase escapou de seu garfo quando ouviu
essa afirmação. Não esperava que Davi se sentisse
confortável o suficiente para falar sobre
@vidaspretas com ela. Pensar em si mesma como
duas pessoas diferentes devia estar afetando sua
cabeça, porque a jovem decidiu seguir com aquele
jogo.
— Tá, me explica — pediu ela, recostando-
se ao espaldar da cadeira.
Davi hesitou mais uma vez, ajeitando os
óculos como sempre fazia e usando esse tempo
para refletir. Por fim, disse:
— A gente se conheceu online.
Joana estreitou seus olhos.
— Você tá sozinho esperando pra ver
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alguém que conheceu na internet e que nem sabe


como é?
Davi entortou um pouco a cabeça e a boca
ao fazer uma careta.
— Todo mundo se conhece pela internet
hoje em dia.
— Sim, por isso que existe aquele programa
Catfish.
— Não é o meu caso.
— Você não sabe disso! — afirmou,
apontando para ele com o garfo. — E se estiver
esperando alguém e chegar outra pessoa
completamente diferente do que você imaginou?
Aquela pergunta foi sincera, e Joana
precisava saber a resposta. Porém, Davi não estava
mais tão aberto ao assunto, coçando a nuca com
uma expressão de desconforto estampada no rosto.
— Eu não imaginei nada.
— As pessoas criam expectativas.
— Eu não. E não importa, sei que vou
gostar dela de qualquer jeito.
Joana nunca tinha ficado tão grata por ter
um tom de pele escuro e que não deixava evidente
quando suas bochechas estavam ruborizadas quanto
naquele momento, porque ouvir as palavras de
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Davi fez todo o seu rosto esquentar.


Deu mais uma garfada na torta para
disfarçar sua reação e perguntou:
— Ela tá muito atrasada?
— Não muito.
— Mas tá atrasada.
— Isso não é um problema.
— Pode ser. Você não vai querer começar
uma relação com alguém que se atrasa no primeiro
encontro.
Por algum motivo, antes que seu cérebro
pensasse no que dizer, a boca de Joana continuou
falando sem parar sobre os possíveis problemas
com a @vidaspretas, e nem mesmo ela entendia por
que estava fazendo aquilo.
— O problema real é colocar muita pressão
no que algo significa ou não em um primeiro
encontro — respondeu Davi, sem muita vontade.
Joana comeu o último pedaço da torta, se
arrependendo por não ter mais nada para lhe
distrair e pelo fato do doce, que era a assinatura da
família Curi e verdadeiramente saboroso, ter
acabado tão rápido.
— Tudo tem um significado — rebateu ela.
— Até primeiros encontros.
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Davi respirou fundo e abaixou os olhos na


direção do prato vazio de Joana.
— Você terminou sua torta. Já vai embora?
— Tô incomodando?
— Não. Só tô preocupado com você
voltando pra casa tarde.
— E eu preocupada com a sua segurança
encontrando essa estranha.
— Não fique, eu sei me cuidar.
— Acho que era isso o que todo mundo que
foi vítima de assassinos dos relatos no Linha Direta
dizia.
Davi fez uma careta.
— Você tá bem mórbida hoje, Joana.
— Só tô tentando ajudar.
— Obrigado, mas eu dispenso.
O barulho da porta surgiu novamente. Davi
encarou-a no mesmo instante, do mesmo jeito que
tinha acontecido das outras vezes. Ao ver a
frustração voltar ao rosto do rapaz, Joana disse:
— Ela não vai aparecer magicamente se
você olhar pra porta.
— Eu sei.
— Talvez ela seja… aquela mulher.
Joana apontou na direção de uma senhora
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de cabelos brancos e pele enrugada que estava


sentada sozinha numa mesa de canto. Ela comia um
bolo com muita calma enquanto lia um livro.
— A pessoa que eu tô esperando não é
branca, não é magra e nem uma senhora de 80
anos.
— Que você saiba. — Davi revirou os
olhos, mas Joana continuou a brincadeira. — E
aquela ali?
Relutante, ele olhou na direção apontada e
sua linguagem corporal se tornou menos
desanimada ao ver a garota encostada na parede
perto do balcão. Ela tinha um cabelo crespo
volumoso, algumas mechas rosas espalhadas aqui e
ali. Sua pele era mais ou menos do mesmo tom que
a de Davi e também não era magra. Na verdade,
seu corpo parecia bastante com o de Joana.
Quando percebeu que tinha escolhido
alguém que batia com as poucas características que
Davi conhecia de @vidaspretas, Joana se
arrependeu. Não estava fazendo aquilo para enchê-
lo de expectativas. Na verdade, nem sabia direito o
que estava fazendo…
Davi virou-se na cadeira, pronto para se
levantar a qualquer momento, mas antes que Joana
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precisasse intervir, um rapaz se aproximou da moça


e lhe deu um longo beijo nos lábios em
cumprimento.
Ao ver como Davi parecia desapontado,
Joana foi tomada por nervosismo e decidiu tentar
animá-lo da pior forma possível: continuando a
brincadeira.
— Talvez seja a atendente?
Ainda sem se mover, Davi apenas enrugou
a testa e devolveu com outra pergunta:
— Por que ela me chamaria pro lugar em
que trabalha e não viria falar comigo?
Joana levantou as sobrancelhas e sorriu ao
concluir:
— Pra te observar atentamente. Como uma
serial killer.
O efeito procurado com certeza não foi
encontrado, porque Davi não pareceu achar graça
naquele comentário. Ela não estava surpresa,
também não daria risada se fosse ele. Seu
nervosismo estava lhe fazendo agir como uma
besta.
— Ou então…
— Você não tem coisa melhor pra fazer? —
interrompeu Davi, cruzando os braços e
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visivelmente irritado.
— Pior que não. Não fiz planos pra essa
noite.
— Talvez devesse ter feito.
— Acho que foi melhor assim. Agora eu
posso acompanhar de perto no que vai dar o seu
encontro.
— Na verdade, acho que é melhor você ir
embora.
— Mas eu posso te ajudar.
— Como? Você tá aí, me zoando e achando
graça em me torturar. Tá mais uma vez sendo
aquela pessoa irritante, que não ouve os outros e
tira as próprias conclusões de tudo. Por que você
não cuida da sua vida e vai pra casa pensar nos seus
problemas, em vez de ficar aqui me enchendo a
paciência?
Havia arrependimento nos olhos de Davi
assim que ele terminou aquela frase. Joana recebeu
um balde de água fria, não só pelo comentário feito,
que lhe lembrou mais uma vez de todos os atritos
que os dois haviam tido, e como essa imagem ainda
não tinha ido embora, mas também por perceber o
quanto tinha bagunçado aquela noite e a cabeça de
Davi. Não havia a menor chance de tentar lhe
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contar a verdade naquele momento. Ou talvez


nunca.
— Joana…
Ela levantou a mão para interromper Davi e
forçou um sorriso.
— Tá tudo bem.
Joana se apressou em levar o prato de
sobremesa ao balcão, pagou a conta e caminhou
rapidamente até a saída, dando um “tchau”
apressado para Davi antes de sair. Suas pernas
continuaram se movendo automaticamente até o
prédio onde morava, enquanto sua mente parecia
povoada por um grito incessante.
Não era nada disso que ela tinha imaginado
que aconteceria naquela noite. Não esperava
encontrar Davi. Não queria ter deixado suas
emoções tomarem conta, agindo daquele jeito fora
de controle. Não queria ter deixado Davi tão
irritado ao ponto de ele lhe dizer o que tinha dito, e
que a tinha magoado mais do que admitiria. O
encontro que ela imaginou que seria perfeito se
tornou um pesadelo, não sem sua ajuda. E não sabia
o que faria sobre @caradaprefeitura e Davi dali em
diante.

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7
DAVI
Ele estava começando a ficar assustado com todo o
tempo que tinha perdido naquela manhã olhando
para o celular. Tinha um texto pela metade na tela
do computador, mas não conseguia se concentrar
para terminar de escrever. Estava com sorte por
nem Ana Clara, nem Manuela estarem no escritório
naquele dia, ou já teria levado uma bronca pela
falta de atenção.
Já fazia alguns dias desde o encontro
marcado com @vidaspretas, no qual ela nunca
apareceu, deixando Davi pensando em todas as
possibilidades horríveis que explicariam sua
ausência. Talvez ela tivesse se arrependido do
encontro e desistido de ir. Talvez tivesse se
arrependido de Davi num geral. Talvez algum
acidente pudesse ter acontecido no caminho. Talvez
o tivesse visto, se desinteressado e ido embora. Seu
cérebro, às vezes, era um parque de diversões para
paranoias.
Davi tinha mandado uma mensagem para
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ela logo que saiu da confeitaria, mas não recebeu


nenhuma resposta até então. Foi só naquela manhã,
quando abriu a conversa entre eles, que viu o
angustiante “Vidas Pretas está digitando…” e todo
o seu dia foi condenado por causa daquelas
reticências.
Mesmo gostando muito das aulas de
gramática no colégio e de ter uma profissão que o
obrigava a escrever constantemente, ele nunca
pensou que pudesse desenvolver um sentimento tão
forte e real por um sinal gráfico. As reticências
tinham conquistado um poder imenso em sua vida.
Eram aqueles pontos, piscando e piscando e
piscando durante longas conversas, que o faziam
sorrir ao esperar por novas mensagens. Tinham
contato direto com sua ansiedade e lhe causavam
reações físicas, do calor na nuca ao frio na espinha.
A mensagem daquela manhã, assim como
@vidaspretas no encontro marcado, nunca chegou,
mas Davi não conseguia parar de pensar no que ela
queria ter dito, no que estava pensando em lhe
escrever, em qual seriam suas desculpas. De
qualquer forma, como tinha dito para sua terapeuta,
não achava que deveria mandar outra mensagem
antes que ela se manifestasse Ela não tinha ido ao
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encontro e estava ignorado sua primeira mensagem.


Não era uma questão de ego ou orgulho, Davi só
acreditava que precisava respeitar a si mesmo nessa
situação.
Ele desligou o celular, decidindo que não
pensaria mais naquilo, e tentou voltar ao trabalho.
Até mesmo colocou os fones de ouvido para ocupar
a mente com música enquanto os dedos digitavam.
Escolheu ouvir a playlist que, teoricamente, servia
para se distrair em situações ruins, e tinha uma
gatinha usando orelhinhas de coelho como foto de
capa. Preferiu não se lembrar de quem tinha lhe
passado aquela seleção de músicas. Não era muito
fã dos estilos das canções, mas estavam cumprindo
bem a proposta, então não reclamaria.
Tinha acabado de finalizar o primeiro texto
de quase mil palavras, quando viu Joana sair pela
porta da sala de Patrícia. Ela já tinha limpado sua
mesa e seu último dia oficial na Eskina havia sido
alguns dias antes do desastre na Curi Doces, mas
Davi tinha se esquecido de que ela precisava voltar
para resolver burocracias com o RH.
Aquela era a primeira vez que ele a via
depois de ter lhe dito aquela estupidez na
confeitaria. Davi estava ansioso por tudo o que
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aquela noite significaria e não aguentava mais as


perguntas e brincadeiras de Joana, mas nada
daquilo era desculpa para ter feito um comentário
tão rude. Ele não queria se lembrar do tempo que
passou na Eskina sabendo que Joana o odiava, e
muito menos das discussões que haviam
protagonizado, mas mesmo assim foram
comentários desnecessários sobre essa época que
escaparam dele do pior jeito possível. Precisava
consertar pelo menos um dos problemas causados
naquela noite.
Levantando-se de seu lugar e dando passos
acelerados para alcançar Joana antes de ela sair do
escritório, Davi chegou bem perto da jovem e
segurou seu braço com delicadeza. Assim que seus
dedos tocaram a pele de Joana, ele sentiu o mesmo
choque que tinha sentido há uns meses. Não era
algo incomum de acontecer, mas se surpreendeu
por acontecer pela segunda vez. Ela se virou,
esfregando o lugar que ele havia tocado.
— Oi, Davi — cumprimentou Joana,
sorrindo de um modo pouco convincente.
— Me desculpa — falou Davi, soltando as
palavras tão rápido que uma quase tinha tropeçado
na outra. — Pelo que eu disse naquele dia na
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confeitaria. Desculpa.
— Davi…
— Não, de verdade — interrompeu. — Eu
fui um imbecil, estava nervoso e acabei
descontando em você. Não devia ter dito o que
disse. Me perdoa.
Joana entortou a boca, parecendo avaliar
melhor o que lhe era dito. Davi daria o mundo para
saber o que se passava na mente dela, e depois se
assustou com a própria curiosidade. Claro que não
ser odiado pelas pessoas era um de seus anseios,
mas o nervosismo que tomou conta de Davi
enquanto esperava por uma resposta foi diferente
das outras vezes que estivera naquele tipo de
situação. Ele nem ao menos sabia que precisava
tanto assim que Joana não só não o odiasse mas
gostasse dele.
— Bom — disse ela —, eu também deveria
pedir desculpas. Sei que tava enchendo a paciência
com meus comentários.
Um sorriso de alívio surgiu no rosto do
rapaz.
— É, um pouco, mas isso não é motivo pra
eu ter sido grosso daquele jeito.
Joana levantou uma de suas sobrancelhas,
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sorrindo.
— Um pouco?
Davi coçou a nuca, rindo.
— Tudo bem, não foi o nosso melhor
momento.
— É, eu tenho tido vários dos meus piores
momentos com você. Talvez a gente deva evitar
contato pra essas coisas não acontecerem mais.
— Eu não quero isso — ele colocou uma
das mãos sobre o peito dramaticamente. — Tem
sido ótimo ter momentos horríveis contigo.
Davi ficou satisfeito por ter sido
responsável pelo sorriso lindo que surgiu no rosto
de Joana.
— Você diz isso agora, mas espera até o
destino te trancar comigo numa sala de novo.
— Não ia ser tão ruim.
Ela levantou uma sobrancelha, segurando
uma de suas tranças ao dizer:
— Claro, porque eu tenho um cabelo
cheiroso, né?
Davi fez uma careta ao se lembrar de
quando tinha dito aquilo e Joana riu. Todas as
vezes que os dois tinham bons momentos como
aquele, ele ficava feliz por perceber o quanto era
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fácil estar com Joana. Na verdade, até mesmo


quando os dois estavam discutindo havia um traço
daquela sensação, porque Davi sentia uma estranha
liberdade para dizer o que pensava, algo que não
costumava sentir com muitas pessoas. Óbvio que
isso nem sempre rendia boas decisões, mas era
curioso como ele não se anulava quando estava
com Joana, se mostrando como realmente era.
E aqueles olhos. Eles envolviam Davi de
um jeito que ele não conseguia nem explicar. Eram
brilhantes, intensos e pareciam dispostos a enxergar
tudo o que a outra pessoa não queria contar. Talvez
por isso fosse fácil ser sincero com ela. Não existia
espaço para fingimentos quando se estava sob seu
olhar.
Joana pigarreou, quebrando o contato visual
silencioso que já durava bastante tempo.
— Mas isso pode ter um lado bom — disse
Davi, tentando voltar ao rumo da conversa.
Ela estreitou os olhos.
— Você se ver livre de mim?
— Não — respondeu, rindo. — Algo bom
pra sua vida profissional. Quer dizer, ficar sem
trabalhar é horrível e o número de pessoas
desempregadas no Brasil cresce cada dia mais,
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principalmente de pessoas negras e…


Joana franziu a testa, tentando não sorrir.
— Obrigada, eu tô realmente vendo o lado
bom de tudo isso.
— O meu ponto — continuou Davi,
sorrindo — é que você pode tentar fazer algo de
que goste mais. Quem sabe até dar mais foco pra
sua verdadeira paixão, aquela que você me disse
que achou que seria seu ganha-pão hoje em dia.
Sabe, é aquela velha história de uma porta se fecha,
uma janela abre.
Joana assentiu, parecendo compreender o
que ele dizia, e sorriu.
— Talvez você esteja certo, Davi.
— Pode ser uma surpresa pra você, mas eu
sou bom em dar conselhos.
— Não é uma surpresa.
Joana voltou a encará-lo de um jeito
intenso, tragando-o com seus olhos castanhos. Ou
talvez fosse ele, incapaz de parar de prestar atenção
em todos os detalhes no rosto dela. Fazia muito
tempo que ele não se sentia daquele jeito ao
conversar ao vivo com alguém, invadido pela
vontade de continuar mais tempo por perto,
encostar de novo em seu braço e absorver o calor
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de sua pele, sentir aquele cheiro agradável do


cabelo dela. Ele não sabia o que estava
acontecendo, mas ficou descontente quando Joana
deu um passo para trás e disse, apontando para a
saída:
— Eu preciso ir, mas a gente se vê.
Davi abriu um sorriso sincero.
— Sim, a gente se vê.
Ele continuou olhando para ela enquanto
saía e foi mais uma vez surpreendido por seus
próprios sentimentos. Davi sentiria falta da
presença da jovem durante o tempo que ainda lhe
restava ali na Eskina. Ficaria triste de não ver mais
o seu sorriso todos os dias, nem sentir o cheiro
agradável de suas tranças. Não esperava se dar
conta disso, mas, num tempo curto, Joana tinha
deixado uma marca forte em sua vida.

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@vidaspretas: oi, sumido

@caradaprefeitura: Bem original.

@vidaspretas: não sabia o que dizer


nem sabia se vc ia me responder

@caradaprefeitura: Acho que eu não deveria.

@vidaspretas: justo
eu entendo se vc me odiar

@caradaprefeitura: Eu não te odeio.

@vidaspretas: vc poderia
e deveria

@caradaprefeitura: O que aconteceu naquele dia?

@vidaspretas: achei que ia demorar mais pra me perguntar

@caradaprefeitura: Acha mesmo que eu não ia querer saber? Eu


fiquei te esperando por horas.

@vidaspretas: desculpa por isso


não era minha intenção

@caradaprefeitura: Me deixar lá sozinho que nem um besta?

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@vidaspretas: vc não tava sozinho

@caradaprefeitura: O quê?

@vidaspretas: eu fui lá
apareci na confeitaria naquele dia
eu te vi sentado numa das mesas
também vi a garota que tava contigo

@caradaprefeitura: Calma, o quê? Foi por isso que você não


ficou?

@vidaspretas: ela tava sentada na sua mesa, né

@caradaprefeitura: Aquela era Joana, uma moça que trabalha


comigo. Trabalhava, na verdade. Ela só apareceu lá do nada e
conversamos. Não era um encontro nem nada do tipo.

@vidaspretas: vc parecia bem entretido com ela

@caradaprefeitura: Bom, sim, porque ela estava propositalmente


tentando me tirar do sério e era mais fácil ficar bravo com ela do
que ficar sendo comido pela minha ansiedade, sem saber se você
apareceria ou não. Eu acabei até sendo um babaca com ela.

@vidaspretas: vc?
eu duvido
é impossível vc ser um babaca com alguém

@caradaprefeitura: Mas eu fui. Já conversamos e acho que


estamos bem, mas não fui nada gentil naquele dia. Depois eu só
terminei a noite me sentindo mal, tanto por você não ter aparecido,
como por ter sido grosso com ela.
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@vidaspretas: de novo: desculpa por não ter ficado


eu só fiquei insegura e achei melhor ir embora

@caradaprefeitura: Eu não acredito que você foi embora porque


me viu com a Joana!

@vidaspretas: bom, ela era linda


e vc parecia muito entretido com a conversa

@caradaprefeitura: Sim, porque ela não parava de dizer absurdos


só pra me provocar, foi meio difícil ignorar.

@vidaspretas: mas vc concorda que ela é linda, né?


e consegue imaginar o que passou pela minha cabeça?

@caradaprefeitura: Tudo bem, eu entendo que deve ter sido


estranho me ver com ela. E sim, a Joana é realmente muito bonita,
talvez uma das pessoas mais bonitas que eu já conheci, mas isso
não quer dizer nada. Além do mais, por que eu seria burro de
aparecer em um lugar que tinha marcado de te ver com outra
pessoa? Não faz sentido.

@vidaspretas: eu sei
eu não tava pensando direito

@caradaprefeitura: Eu não acredito que você ficou esse tempo


todo sem falar comigo por causa disso!

@vidaspretas: desculpa!
meu ego tava meio abalado
foi difícil não vir falar contigo
várias vezes eu abria nossa conversa
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@caradaprefeitura: É, eu também. Mas eu te mandei uma


mensagem depois do cano que você me deu e, como não
respondeu, achei melhor não mandar mais. Eu não queria ser chato.

@vidaspretas: é, desculpa por isso tbm


foi o maior tempo que ficamos sem nos falar desde que nos
conhecemos, né?

@caradaprefeitura: Sim, foi uma tortura. E a gente ainda perdeu


a chance de se conhecer.

@vidaspretas: vamos ter outra oportunidade


não vou te dar mais bolo

@caradaprefeitura: Ei, espera. Foi por isso que marcou comigo


numa confeitaria?

@vidaspretas: HAUHAUHAUHAUA
uau
sua mente foi longe agora
eu não tava planejando te dar um bolo!!!!!
quer dizer
literalmente, talvez
figurativamente, não!!!!

@caradaprefeitura: Hmmmm. Ainda acho suspeito. Vou ficar


bem esperto com o lugar que você escolher pro próximo encontro.

@vidaspretas: isso quer dizer que vc me perdoa por ter sido uma
tonta?

@caradaprefeitura: Isso quer dizer que eu nem sei como ficar


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muito tempo com raiva de você. E que eu entendo como tudo ficou
confuso fora de contexto. E que eu não aguento mais de saudade de
falar contigo. Sim, você está perdoada.

@vidaspretas: eu realmente não mereço vc <3

@caradaprefeitura: Pela primeira vez eu vou concordar contigo


nessa.

@vidaspretas: vc é um anjo, cara


merece o mundo

@caradaprefeitura: Não tô tão interessado no mundo, mas aceito


outro encontro contigo.

@vidaspretas: justo
quando e onde?

@caradaprefeitura: Você vai aparecer dessa vez?

@vidaspretas: vou
juro

@caradaprefeitura: Me perdoa por não ser tão confiante e ter que


ver pra crer.

@vidaspretas: HAUHUA
tudo bem
eu dei motivos
mas escolhe um lugar que eu apareço

@caradaprefeitura: Sabe a feirinha gastronômica que vai rolar na


praça da matriz?
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@vidaspretas: acho que ouvi falar disso

@caradaprefeitura: Tava pensando em ir e não tinha companhia.


Quer ir?

@vidaspretas: então só tá me chamando pq não tem outra pessoa


pra ir contigo?

@caradaprefeitura: Não abusa.

@vidaspretas: AHUAHUAHUA
ok desculpa
mas eu topo
a gente se vê lá
eu até levo rosas pra me desculpar

@caradaprefeitura: Ótimo, porque vai me ajudar a saber quem


você é, e já que você me viu e sabe como eu me pareço, vou deixar
aquele filme horrível em casa. Ou no lixo.

@vidaspretas: às vezes eu acho que vc só diz essas coisas pra me


magoar

@caradaprefeitura: HAHAHAHAHAHA

@vidaspretas: yes!
te fiz rir!

@caradaprefeitura: Infelizmente, eu sou fraco, me falta ódio. E


também tava com saudade demais de você pra fingir que não estou
feliz de estarmos nos falando de novo.

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@vidaspretas: <3
ansiosa pra estar com vc

@caradaprefeitura: Eu também. Então até sábado?

@vidaspretas: até sábado

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8
JOANA
“Tudo vai dar certo dessa vez” foi o mantra que
Joana repetiu milhares de vezes ao acordar naquele
sábado, mesmo quase não tendo pregado o olho
durante a noite. De alguma forma, o segundo
encontro estava lhe deixando mais nervosa que o
primeiro. Dessa vez, ela tinha medo de que Davi a
odiasse ao descobrir que a pessoa que brigou com
ele e o ignorou por semanas no trabalho era quem
iria encontrar.
Não queria dar asas a esse pensamento,
então gastou suas energias em outras coisas. Saiu
de casa logo cedo para ir na floricultura que ficava
na esquina de sua casa. Optou não por uma rosa,
como tinha lhe dito, mas por um cravo cor-de-rosa.
Também preferiu não fazer um buquê nem nada do
tipo, apenas aquela única flor era o suficiente para
o que Joana precisava.
Quando voltou para casa, passou horas
tentando escolher o que vestir. Nada parecia certo.
Acabou optando pela peça menos odiada: um
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vestido todo branco que tinha comprado há meses,


embora aquela fosse ser a primeira vez que o
vestiria. Não gostava muito do comprimento, ele
terminava mais ou menos no meio da canela, mas
as mangas ficavam meio caídas no ombro e o
tecido segurava bem o busto. Sem contar que
sempre gostou de como sua pele escura se realçava
em tecidos claros. Gastou mais algum tempo
fazendo a maquiagem, escolhendo a sandália
perfeita, enfeitando as tranças com anéis dourados
e procurando pelo brinco de ouro que sua mãe tinha
lhe dado de aniversário. Todo o processo causou
um pequeno atraso, mas valeu a pena.
Antes de sair de casa, Joana já estava
nervosa. No entanto, ao colocar os pés na pracinha
da cidade e se dar conta de que finalmente contaria
a verdade para Davi, sentiu um arrepio percorrer
todo o seu corpo. Quase apertou o cravo entre os
dedos ao pensar em como faria essa revelação.
A feira gastronômica estava repleta de
pessoas. Quase todos os moradores de São Baltazar
decidiram fazer o mesmo programa que Davi. O
cheiro das mais diversas comidas enchia o ar e
Joana quase se distraiu com uma barraquinha de
espetinhos de morango. Quase. Seu foco ainda se
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mantinha e, sendo bastante persistente, não


demorou mais do que dez minutos para achar Davi
naquele lugar.
Ele estava encostado à parede da igreja,
bem no fim da feira, olhando para os lados sem
parar. Joana já o tinha visto vestir aquela mesma
camiseta cinza com a camisa xadrez verde por
cima. Assim como aquele jeans escuro não era
surpreendente, ou o tênis que usava no trabalho, ou
os óculos quadrados que sempre levava no rosto.
Ela sabia que o reconheceria em qualquer lugar,
com o cabelo sempre perfeito e os olhos brilhantes.
Ainda era difícil de acreditar que o
@caradaprefeitura era alguém em quem ela vinha
prestando atenção há um tempo.
Reunindo toda a coragem que ainda tinha
em si e sentindo seu coração palpitar mais forte a
cada passo, Joana colocou as mãos para trás e
escondeu a flor nas costas ao se aproximar de Davi,
que só notou sua presença quando ela parou bem ao
seu lado.
— Joana?
Ela sorriu, apertando o caule do cravo entre
os dedos para tentar se controlar.
— Oi, Davi.
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— Veio pro festival?


Joana olhou ao redor, vendo todos aqueles
rostos desconhecidos e felizes.
— Sim, combinei de encontrar uma pessoa
aqui.
Essa resposta foi o suficiente para acabar
com o estranhamento de Davi, afinal, São Baltazar
não era a maior cidade do mundo e nem tinha
muitos outros programas para se fazer.
— Alguém da Eskina?
Joana pensou um pouco antes de responder:
— Na verdade, sim. E você?
Ele pressionou os lábios, hesitando em
responder, uma atitude que ela compreendia depois
de toda a situação na confeitaria.
— Se eu contar talvez você comece a falar
sobre assassinato ou algo assim de novo.
Joana riu.
— Ahhh, a garota misteriosa!
— Isso, mas sem julgamentos. Sério, Jô,
nenhum. Zero.
Aquela era primeira vez que ele a chamava
de Jô. Soava bem em sua voz e ainda lhe dava um
friozinho no estômago.
— Não vou julgar — disse ela. — Eu
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entendo.
Davi estreitou os olhos ao perguntar,
desconfiado:
— Desde quando?
— Desde que você abriu meus olhos sobre
existir da possibilidade de encontrar pessoas que
não sejam serial killers na internet.
— E como eu fiz isso?
— Só… — ela deu de ombros. — Sendo
você mesmo.
Davi a encarava com a testa enrugada.
Aqueles olhos castanhos não desgrudavam de
Joana, deixando-a ainda mais inconformada: como
pôde não saber que o dono do olhar mais doce que
já tinha visto era também o autor das palavras mais
amáveis?
— Isso não faz o menor sentido — concluiu
Davi, meneando a cabeça.
Aquela era a hora. Não tinha por que
esperar mais, eles já tinham esperado muito tempo.
O coração de Joana estava batendo tão forte que ela
achou que todos podiam ouvi-lo. Davi continuava
lhe encarando, esperando por uma resposta, e,
apesar do medo de não saber onde aquilo daria, ela
tirou lentamente as mãos de traz das costas e
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mostrou o cravo rosado. Davi fitou a flor, mas


continuava confuso. Joana suspirou antes de
começar a se explicar:
— Eu ia trazer uma rosa, mas a internet me
disse que cravo também é bom para um pedido de
desculpas, e que o cravo rosa, em especial, significa
que você nunca vai se esquecer da pessoa pra quem
dá a flor. Achei conveniente depois do tempo sem
responder sua mensagem.
Joana estendeu a mão que segurava o cravo
e a aproximou do peito de Davi. Aturdido e ainda
sem entender o que estava acontecendo, ele
mantinha os olhos presos à flor. Aceitou o presente,
pegando-a entre os dedos, e levantou a cabeça para
encarar Joana novamente.
— Eu não sei… Quer dizer, o que…
Ela deu um passo para a frente, colocando a
mão no próprio peito, e explicou da maneira mais
simples que conseguiu:
— Vidas Pretas. — Joana sentiu o frio em
sua barriga piorar ainda mais quando Davi franziu a
sobrancelha, mas continuou, apontando para ele em
seguida: — Cara da prefeitura.
Ele encarou a mão de Joana por um longo
tempo, depois voltou a atenção para a flor que
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segurava, mas seus olhos terminaram fixos e


inexpressivos no rosto da jovem.
— Isso é uma piada? — perguntou,
desnorteado.
— Não.
Ouvir aquilo doeu um pouco o coração de
Joana. Ela sabia que Davi não entendia o que
estava acontecendo e que tudo parecia uma grande
armação, sabia porque foi exatamente isso que
pensou também. Mas ouvi-lo dizer “piada”
reanimou sua insegurança.
— Não pode ser — ele murmurou, sem tirar
os olhos de Joana.
— Pensei a mesma coisa quando te vi na
confeitaria.
Ele meneou a cabeça algumas vezes, seus
óculos escorregando um pouco pelo nariz e o cravo
apertado entre os dedos. Joana ficou em silêncio,
observando Davi começar a entender a situação, o
que ela soube que aconteceu ao ver os olhos do
rapaz se arregalarem um pouco.
— Como é possível? — sua dúvida saiu em
um sussurro.
Joana deu de ombros. Tinha se feito aquela
mesma pergunta algumas vezes nos últimos
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tempos, mas não sabia como e por que o destino


tinha decidido brincar com os dois daquela forma.
— Calma — falou ele um pouco alterado.
— Você sabe que sou eu desde o dia na
confeitaria? E não me disse nada?
Joana fechou os olhos por uns segundos e
assentiu, fazendo uma careta. Ela sabia como
aquilo soava e não podia ignorar sua culpa naquela
questão.
— Eu não sabia como te dizer — tentou
explicar.
— E aí você só ficou lá sentada, falando
várias coisas sem sentido.
— Eu tava nervosa.
— Eu também tava nervoso! E fiquei mais
ainda achando que você não tinha aparecido!
O tom de voz de Davi ressaltava o quanto
aquilo o havia magoado e ela sabia que tinha dado
motivos para isso. Também teria odiado que
tivessem escondido algo assim dela.
— Eu sei — concordou Joana. — E sinto
muito por isso. Só não soube como reagir. Nem
sabia se você ia aceitar bem a ideia de eu ser a
pessoa que você tinha ido encontrar.
Ele passou a mão livre na nuca e respirou
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fundo. Joana não sabia se ele estava nervoso ou


apenas perdido com todas as novidades, mas ela
nunca tinha visto Davi amassar o seu cabelo
perfeitamente alinhado entre os dedos, como estava
fazendo naquele momento. Os olhos do rapaz se
fecharam por um tempo e Joana teve certeza de que
aqueles segundos duraram uma eternidade inteira.
— Eu não acredito que era você esse tempo
todo — disse Davi, ainda com os olhos fechados e
em um tom suave.
— Digo o mesmo. Apesar de você ter
mesmo cara de quem ama filmes chatos.
Ele voltou a encará-la na mesma hora que
Joana disse aquilo. Não parecia bravo ou
decepcionado. Um pouco do medo que ela sentia de
que ele talvez saísse correndo a qualquer momento
diminuiu. Davi parecia enxergar sua alma, do que
ela não duvidaria, sabendo do quanto eles se
conheciam. Mantendo os olhos fixos em Joana, ele
afirmou:
— É estranho olhar pra você e lembrar das
nossas conversas.
Joana sorriu, enrugando o nariz.
— Difícil de juntar as duas pessoas, né?
— Sim. Não consigo imaginar você
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emocionada assistindo Velozes e Furiosos.


Ela fechou a cara de repente, levantando o
indicador e as sobrancelhas para mostrar a
seriedade no que dizia:
— Eles são uma família!
Suas palavras conseguiram arrancar um riso
baixo de Davi, e aquele ruído delicado era tudo o
que Joana precisava para recarregar suas
esperanças. O olhar que ele dedicava a ela era mais
leve e foi preciso muita força de vontade para não
esticar o braço e acariciá-lo na bochecha. Joana só
queria tocá-lo e confirmar que tudo era real.
Davi olhou para o cravo mais uma vez e
girou o caule entre os dedos, brincando com as
pétalas da flor.
— A gente tava perto esses últimos meses
sem saber de nada.
Ainda era estranho para ela também
entender isso.
— E uma parte desse tempo a gente ainda
passou brigados.
— Enquanto conversávamos todos os dias.
Joana riu baixinho, lembrando-se das vezes
que estava irritada com Davi e usava o seu tempo
com o @caradaprefeitura para se distrair, se
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rodeando de boas conversas e sentimentos. Esse


tempo todo, Davi tinha sido a causa e a solução dos
seus problemas.
— Bizarro, né?
Parecendo perder o interesse no cravo, ele
levantou o rosto e repuxou os lábios em um
pequeno sorriso que fez o coração de Joana pular
três vezes mais rápido.
— Foi muito tempo desperdiçado.
Davi colocou a flor no pequeno bolso da
camisa, ajeitando-a com cuidado e deixando Joana
ainda mais feliz. Se ele se importava o suficiente
para não jogar aquele presente no chão e ir embora,
talvez nada estivesse perdido.
— É muito horrível que seja eu?
A intenção era que a pergunta soasse como
uma brincadeira, mas não conseguiu controlar a
verdade em suas palavras, e Davi percebeu o
mesmo. Os olhos dos dois se encontraram e todo o
resto parou. Não havia um milhão de pessoas
andando para lá e para cá pela feira. Não havia
berros de vendedores, nem latidos de cachorros.
Joana não se sentia capaz de tirar Davi de sua vista,
porque ele era tudo o que ela queria ver naquele
momento.
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Parecendo entender os pensamentos dela,


Davi deu um passo para a frente, se colocando
ainda mais perto, as pontinhas dos narizes dos dois
não se tocavam por poucos centímetros. Ele
suspirou, esticando a mão para acariciar o braço de
Joana, espalhando um arrepio na pele que tocava, e,
por fim, Davi encaixou sua mão na dela, apertando-
a suavemente.
— Acho que mereço uma resposta — foi
tudo o que ela conseguiu murmurar.
Davi sorriu, mas não por muito tempo.
Aproximando o rosto do de Joana, ele roçou os
lábios nos dela e repousou a mão em sua cintura,
trazendo-a para mais perto de si. Joana quase
explodiu de alegria ao jogar seus braços ao redor do
pescoço de Davi e acompanhá-lo no ritmo perfeito
do beijo que há muito prometiam.
Era diferente de todos os sonhos que Joana
já havia tido sobre aquele momento. O toque de
Davi lhe causava mais sentimentos do que ela
poderia imaginar, estar entre seus braços fazia seu
peito explodir em alegria e nada seria capaz de
tornar aquele momento menos mágico. Tudo estava
acontecendo exatamente como deveria ser, e ela
sentia isso em seu coração.
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Eles se afastaram, sorrindo, e como se seus


atos não fossem o suficiente, Davi lhe deu uma
resposta:
— Eu tô feliz que seja você.
Davi recostou sua testa a de Joana e
nenhum dos dois conseguiu parar de sorrir. Foram
meses idealizando como seria estarem na presença
um do outro. Meses vendo os seus sentimentos se
aprofundando cada vez mais. Meses em que
estarem abraçados como naquele momento, com os
lábios unidos em um beijo doce, não passava de um
sonho para um futuro incerto. Mas agora que Joana
tinha provado da felicidade de tê-lo ao seu alcance,
podendo tocá-lo e sentir sua presença, ela sabia que
faria tudo em seu poder para não perder aquilo
nunca mais.
Não era nenhuma novidade, mas algo que
Joana ainda não tinha tido coragem de afirmar para
si mesma até aquele momento era que
@vidaspretas estava apaixonada por
@caradaprefeitura. E, com os dedos enroscados nos
de Davi, ela soube que o seu coração estava
igualmente perdido, mas não se arrependia de nada.
Joana era e sempre seria grata por todos os
caminhos tortos e surpreendentes que haviam
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guiado os dois até aquele momento.

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Joana:
eu escolho o filme que vamos ver hoje

Davi:
Jô, eu não vou assistir Homem-Aranha 3.

Joana:
VC TÁ PERDENDO UMA PARTE IMPORTANTE DA
CULTURA HUMANA, DAVI!

Davi:
Prefiro continuar na ignorância, obrigado.

Joana:
davi, já faz quase um ano que a gente namora e vc ainda não se deu
ao trabalho de conhecer a coisa que eu mais amo no mundo inteiro

Davi:
Você também não quis ir comigo nos shows das minhas bandas
favoritas.

Joana:
deus me livre

Davi:
Viu?

Joana:

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tá bom
vamos ver algum do Nicolas Cage mesmo então

Davi:
É por isso que você não pode escolher os filmes.

Joana:
o que vc tem contra filmes boooons?????

Davi:
Nada. Você que não sabe quais são eles.

Joana:

Davi:
Ok, você pode escolher um filme ruim para gente ver.

Joana:
filme bom*
YEEEES!
não esquece de comprar pipoca!

Davi:
Não esqueço.

Joana:
eu te amo <3

Davi:
Também te amo.

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SOBRE A AUTORA

Solaine Chioro é da baixada santista, mora em São


Paulo e se formou em Letras – Português/Latim
pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
(UNESP). Além de escritora, trabalha como
revisora, leitora crítica e leitora de sensibilidade.
Tem diversos textos espalhados pela internet e
adora escrever e conversar sobre representatividade
na cultura pop. Participa de dois podcasts sobre
entretenimento, o Pode Entrar e o Duas
Limonadas. Seu primeiro trabalho, a novela A rosa
de Isabela, foi publicado na Amazon de forma
independente, assim como sua coletânea de contos
de Natal, Sonhos que ganhei. Também tem contos
publicados nas coletâneas Formas reais de amar,
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Cantigas no escuro e Confetes e serpentinas.


www.solainechioro.com.br

“Reticências” copyright © 2019 Solaine Chioro.


Todos os direitos reservados.

Edição e revisão: Taissa Reis


Capa: Limão (instagram.com/limaocomvodka)
Elementos gráficos: Freepik/Flaticon
Diagramação: Solaine Chioro e Taissa Reis

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ANEXO
PLAYLISTS CITADAS
Músicas para canalizar a raiva e a tristeza no trabalho e te salvar da
demissão
http://bit.ly/musicascanalizar

Músicas pra te distrair quando estiver numa situação absurda que


preferiria ter evitado
http://bit.ly/musicasdistrair

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