Educação & Sociedade, Ano XXII, N 77, Dezembro/2001: Elena Inger

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QUANDO O DILOGO A VIOLNCIA*

HELENA SINGER**

Com uma pesquisa exaustiva sobre o movimento estudantil nos anos 60 no Brasil, este livro originalmente uma dissertao de mestrado de Maria Ribeiro do Valle junto ao Departamento de Cincias Sociais Aplicadas Educao da Unicamp nos faz pensar que a violncia a marca das relaes entre os movimentos comprometidos com as transformaes sociais no pas e os governos historicamente comprometidos com a manuteno da desigualdade social, no s nos anos 60, mas ainda hoje. A originalidade da pesquisa encontra-se na forma de tratar o objeto emprico: o noticirio da grande imprensa relativo ao movimento estudantil e peridicos selecionados da imprensa estudantil no ano de 1968. original porque, ao contrrio do que faz a maior parte dos trabalhos que se baseiam neste tipo de material, as notcias no so tratadas como simples fontes de dados, mas, sim, como manifestaes de um embate, de confrontos entre posies divergentes que se explicitam na seleo e no modo de apresentao dos fatos. Conhecemos assim os confrontos no s entre movimento estudantil e ditadura militar, mas tambm entre as diferentes correntes polticas no interior do movimento, entre alguns rgos da grande imprensa e governo, entre outros rgos da imprensa e os estudantes. As posies no so estticas nem homogneas. O golpe de 31 de maro de 1964 instaurara no pas um regime ditatorial, caracterizado pela centralizao do poder e operacionalizado por meio de leis de exceo. O regime militar, em princpio, viria apenas dissipar o perigo vermelho anunciado pela revoluo cubana
* ** VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: O dilogo a violncia: movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. Diretora de educao da Fundao Semco, doutoranda em Sociologia pela USP e membro do Instituto de Estudos em Direitos, Polticas e Sociedades (IEDIS).

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e, no Brasil, pelas Ligas Camponesas, pela agitao estudantil e pelo alto grau de mobilizao que vinham ganhando as foras de esquerda em torno de questes sociais, a exemplo do que estava ocorrendo em outros pases da Amrica Latina, como Argentina e Chile. Patrocinados pelos Estados Unidos e amparados pelos setores mais conservadores da sociedade, os militares tomaram ento o poder para por ordem na casa. Os partidos polticos reduzidos a dois a Aliana para Renovao Nacional (Arena), da situao, e o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), de uma oposio muitssimo moderada. 1 Estes so os antecedentes dos quatro momentos que tornaram o ano de 1968 to marcante e que so analisados em profundidade por Ribeiro do Valle. O primeiro deles aconteceu no dia 28 de maro: a morte do estudante dson Lus. O rapaz foi morto durante choque da Polcia Militar com os estudantes que participavam de uma manifestao da Frente Unida dos Estudantes do Calabouo (FUEC) no Rio de Janeiro. O motivo imediato do protesto estudantil parecia consideravelmente modesto o aumento do preo da refeio e as obras inacabadas do restaurante. Contudo, o confronto inseria-se de fato em uma srie de outros que antagonizavam o movimento estudantil e o governo desde o golpe militar: a extino da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) e das Unies Estaduais dos Estudantes (UEEs) em 1964; a realizao de congressos e outras atividades clandestinas pelas entidades extintas a partir de 1965; a proibio de funcionamento da UNE mesmo como associao civil em 1966; protestos dos excedentes (candidatos aprovados no vestibular, mas que no ingressavam nas universidades pblicas por falta de vagas) violentamente reprimidos; protestos igualmente reprimidos contra o acordo do Ministrio da Educao e Cultura (MEC) com a United States Agency for International Development (USAID) e o relatrio do norte-americano Rudolph Atcon, que visavam uma modernizao autoritria da universidade; subordinao do MEC Secretaria Geral do Conselho de Segurana, explicitando a disposio do governo para a militarizao do problema estudantil. Esta a cadeia de eventos conflituosos em que se insere a morte do estudante dson Lus, assassinado por um tiro disparado por um oficial da Polcia Militar. Segundo a verso das lideranas estudantis trazida por Ribeiro do Valle, quando os policiais entraram no restaurante, os estudantes revidaram com pedras e paus e, ento, o general encarregado da operao determinou que os policiais avanassem empunhando suas armas, surrando os jovens e terminando no s por matar
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o garoto de 18 anos, como ainda ferir mais duas pessoas. A violncia ento praticada pelos estudantes aparece, deste ponto de vista, como revide invaso policial (p. 43). A verso dos policiais , conforme esperado, exatamente a oposta: a violncia dos policiais foi uma resposta agressividade dos estudantes. Neste embate, a posio assumida pela grande imprensa a da eterna busca dos culpados, conforme descreve a autora. A grande imprensa consultada, ao noticiar o episdio da morte de dson Lus, caracterizando-o como conflito entre estudantes e a polcia, est, em linhas gerais, centrada na discusso sobre os culpados pela utilizao da violncia (p. 46). Entretanto, h distines importantes: a revista Veja, criada naquele ano, atribuiria, em suas matrias retroativas sobre o episdio, a culpa polcia; o jornal Correio da Manh culpava a polcia e as autoridades civis e militares responsveis por sua ao; a revista Viso culpava a polcia e os estudantes. Estes posicionamentos manter-se-iam em relao a todos os confrontos entre estudantes e governo naquele ano. em meios aos protestos pela morte de dson Lus que se explicitam as divergncias no interior do movimento estudantil: o lado liderado por Vladimir Palmeira defende que os protestos se restrinjam luta especfica, s questes que afetam diretamente os estudantes, ao passo que o lado liderado por Luis Travassos defende o engajamento dos estudantes na luta contra o imperialismo americano e a ditadura militar. A questo tambm se coloca para estes estudantes em termos de culpabilizao: Os estudantes chegam, portanto, concluso dos culpados pela morte de dson Lus: os polticos oportunistas que elegeram Negro de Lima para o governo do estado, o presidente Costa e Silva e sua poltica americana antiestudante e o militarismo norteamericano (p. 61). O velrio de dson Lus igualmente reprimido pela polcia, mas a represso parece estimular mais protestos e o enterro do jovem torna-se a maior mobilizao popular desde o golpe, reunindo mais de 50 mil pessoas. Do enterro at a missa de stimo dia, os protestos espalham-se por vrios estados, sendo sempre reprimidos. A posio assumida pelas revistas Veja e Viso contrria ideologizao do movimento estudantil e utilizao da violncia tanto por estudantes quanto pela polcia. J o governo Costa Silva ampara a represso aos protestos no discurso da normalidade democrtica. Algumas entidades estudantis atribuem a violncia dos protestos a provocadores infiltrados no movimento e legitimam um outro tipo de violncia, em linhas gerais, a violncia como resistncia (p. 55).
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A autora ressalta que, apesar do movimento estudantil ter interpretado a adeso popular aos protestos como revolta contra o governo, mais provvel que a revolta popular tenha se limitado morte do jovem, j que os apelos dos estudantes contra o imperialismo e a ditadura no lograram maior adeso. Estas so as questes primordiais que Maria Ribeiro do Valle analisar ao longo de todo o livro: a violncia no centro da dinmica dos acontecimentos, as divergncias no interior do movimento estudantil quanto ao alcance de sua luta e o tipo de violncia legitimado, a represso crescente ao movimento e seu isolamento tambm crescente em relao populao, o discurso da normalidade institucional amparando a represso violenta, as crticas ideologizao do movimento. O segundo episdio analisado pela autora ficou conhecido como Sexta-feira sangrenta. O governo propunha um dilogo com os estudantes, o que era apoiado por algumas correntes dentro do movimento e rechaado por outras. No dia 21 de junho, atendendo solicitao do ministro da Educao, Tarso Dutra, os estudantes compareceram ao MEC, mas sob a forma de protesto, que foi violentamente reprimido pela polcia, deixando claro que o dilogo proposto pelo governo teria que sempre vir entre aspas. Desta vez, a populao engrossou o lado dos estudantes. A autora ressalta os adjetivos utilizados pela imprensa para descrever as conseqncias desta adeso: A adeso popular aos estudantes acaba em um episdio sangrento. Batalha campal, guerrilha urbana, escalada, insurreio popular, substantivos utilizados com freqncia nos relatos que buscam transmitir a dimenso atingida pelas cenas de violncia (p. 105). Como sempre que as massas entram em cena, tambm no faltaram as referncias espontaneidade e imprevisibilidade. Policiais sem comando e populao agindo espontaneamente expressam a imprevisibilidade de uma guerra (p. 106). A questo da direo das massas passa a dominar o debate. Alguns dias depois da Sexta-feira sangrenta, os estudantes organizam nova manifestao, qual comparecem cem mil pessoas. A chamada Passeata dos Cem Mil, que no reprimida, leva os estudantes a debater o papel das massas na poltica. A tendncia liderada por Vladimir Palmeira assume publicamente o papel do ME de educar e organizar a massa para utilizar a violncia no momento certo: a educao das massas para a violncia, a violncia para transformar o pas, a necessidade de criao de um exrcito revolucionrio (p. 113-114).
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O terceiro episdio analisado o da Guerra da Maria Antnia. O regime ia aos poucos endurecendo e, segundo a autora, criando fatos que justificassem este endurecimento. O movimento estudantil se mantinha dividido: a corrente de Palmeira propunha o fim das manifestaes, ao passo que a de Travassos queria responder violncia com violncia. A Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo, situada na rua Maria Antnia, havia se tornado territrio dos estudantes de esquerda.2 Do outro lado da rua estava a Universidade Mackenzie, reduto de estudantes de direita apoiados pela reitora Maria Esther de Figueiredo Ferraz e organizaes como o Comando de Caa aos Comunistas, entre outras. A batalha entre ambas as universidades ocorreu no dia 2 de outubro, durou trs horas, deixando um estudante morto e vrios estudantes feridos. A Guarda Civil interveio, com 70 homens, ocupando os jardins da Mackenzie. Mais uma vez, vrias so as verses para os fatos: os estudantes da USP atriburam a morte do rapaz aos grupos da Mackenzie que, por sua vez, responsabilizam os da USP pelo confronto; para o governo, o evento foi um episdio de brigas entre estudantes; segundo o Correio da Manh, a Guarda Civil foi conivente com a Mackenzie; j o Jornal da Tarde, a Folha de S. Paulo e a Veja enfatizavam que os uspianos iniciaram o confronto e consideravam que a Guarda Civil conseguiu por fim ao mesmo. Entre os rgos da imprensa paulista, a busca dos culpados pela violncia feita entre os prprios estudantes e no entre a polcia e o ME. [...] A presena da polcia, para os jornais em questo, alm de no gerar violncia, pe fim quela desencadeada pelos estudantes (p. 180). O ltimo episdio analisado no livro o do XXX Congresso da UNE. A entidade havia organizado um congresso clandestino em Ibina, ao qual compareceram mais de mil estudantes. Dado o tamanho do evento, manter a clandestinidade tornou-se impossvel e a polcia acabou com o Congresso, prendendo centenas de estudantes, inclusive vrios lderes que estavam sendo procurados havia muito tempo. Deste episdio, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e Veja enfatizavam as armas apreendidas e os supostos vnculos das aes terroristas com o movimento estudantil em contraste com a ao noviolenta da polcia. A Veja chegava a mostrar alvio pela priso dos lderes. J os rgos da imprensa estudantil enfatizavam as delaes e as falhas na organizao. Na verso do governo, o movimento estudantil era instrumento de foras externas. Setores da sociedade civil com destaque para os pais dos estudantes mais uma vez se solidarizaram
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com os estudantes, realizando manifestaes, greves e protestos contra as prises. E, mais uma vez, as manifestaes so reprimidas, ocorrendo novas mortes. As divergncias na grande imprensa se mantinham: o Correio da Manh culpando a violncia policial em contraste com a Folha de S. Paulo, que justifica a represso como resposta violncia estudantil. neste clima que, em dezembro, os mais aguerridos do Exrcito, os da chamada linha dura, passaram a dominar o governo, declarando o fechamento definitivo do regime, por meio do Ato Institucional n 5: o movimento estudantil totalmente reprimido e a imprensa censurada. A partir da, intelectuais, artistas e polticos sero exilados e, contra os militantes polticos, sobretudo os envolvidos na luta armada, adotar-se-o prises arbitrrias, torturas e execues sumrias.3 A concluso da autora de que o ingresso na luta armada foi a nica possibilidade restante ao movimento estudantil, dado que a mobilizao das massas j no era mais possvel.4 A luta armada foi o fruto do dilogo impossvel entre o movimento estudantil e a ditadura militar. Maria Ribeiro do Valle abre o seu livro com trs citaes. Uma delas do Presidente Fernando Henrique Cardoso, de 1997: A sociedade brasileira exige um basta a esse clima de baderna. A sociedade no quer a desordem. O Presidente se referia aos manifestos do Movimento dos Sem Terra que veio, de alguma forma, ocupar o lugar do movimento estudantil no cenrio poltico da redemocratizao. A autora no desenvolve, mas a sugesto clara: um presidente democraticamente eleito usando os mesmos argumentos que os militares utilizavam trinta anos antes para justificar a represso poltica. H muitas outras continuidades nos discursos do governo e da imprensa, no s em relao ao MST. Hoje em dia, quando a violncia atribuda ao trfico, ouvimos ecos daquele trata-se de brigas entre eles, sejam eles estudantes ou traficantes. E a polcia sempre idealizada como agente apaziguador. O convite implcito de Maria Ribeiro do Valle para o rememorar de outros contextos, a fim de redimensionar e reavaliar posicionamentos deste tipo. Recebido para publicao em fevereiro de 2001.

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Notas
1. Sobre o contexto: CARDOSO, Irene, A dimenso trgica de 68. Teoria & Debate, n 22, 1993, p. 59-64; MARTINS FILHO, Joo Roberto (Org.), 1968 faz 30 anos. Campinas: Mercado de Letras/UFSCar/FAPESP, 1998; PERRONE, Fernando, Relatos de guerra: Praga, So Paulo, Paris. So Paulo: Busca Vida, 1988; VENTURA, Zuenir, 1968 O ano que no terminou: A aventura de uma gerao. Rio de Janeiro: Crculo do Livro, 1988. Ver CARDOSO, Irene, Maria Antnia a interpretao de um lugar a partir da dor. Tempo Social 8 (2), 1996, p. 1-10; SANTOS, M.C.L. dos (Org.), Maria Antnia: Uma rua na contramo. So Paulo: Nobel, 1988. Sobre os desdobramentos do regime: COELHO, Cludio N.P., Os movimentos libertrios em questo: A poltica e a cultura nas memrias de Fernando Gabeira. So Paulo: Vozes, 1987; COELHO, Cludio N.P., A transformao social em questo: As prticas sociais alternativas durante o regime militar. Tese de doutorado em Sociologia pela FFLCH/USP, So Paulo, 1990; SKIDMORE, Thomas, Brasil: de Castelo a Tancredo. So Paulo: Paz & Terra, 1988. Sobre a mesma questo: GORENDER, Jacob, Combate nas trevas A esquerda brasileira: Das iluses perdidas luta armada. So Paulo: tica, 1987.

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