Mulheres Negras Na Primeira Pessoa
Mulheres Negras Na Primeira Pessoa
Mulheres Negras Na Primeira Pessoa
Jurema Werneck
Nilza Iraci
Simone Cruz
Organizadoras
MULHERES NEGRAS
NA PRIMEIRA PESSOA
1
Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Jurema Werneck
Nilza Iraci
Simone Cruz
Organizadoras
MULHERES NEGRAS
NA PRIMEIRA PESSOA
1a edição
Redes Editora
Porto Alegre
2012
3
Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Coordenação Editorial:
Guacira Gil
Salete Campos de Moraes
Capa:
Redes Editora sobre foto de Tino Smith
Catalogação na Fonte
W491m Werneck, Jurema
Mulheres negras na primeira pessoa. / Organizadoras
Jurema Werneck, Nilza Iraci, Simone Cruz. –
Porto Alegre : Redes Editora, 2012.
158 p. ; 23 cm.
ISBN: 978-85-61638-52-8
1. Mulheres Negras. 2. Organizações Não-Governamentais.
I. Iraci, Nilza. II. Cruz, Simone. III. Título
CDD 361.76
Bibliotecária Responsável
Ginamara Lima Jacques Pinto – CRB 10/1204
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ..................................................................................... 7
APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
IMENA – Amapá.........................................................................................111
Maria Piedade Queiróz de Jesus (Piedade) – Mazagão Velho/AP ....113
Estefânia Cabral de Souza – Mel da Pedreira / AP .....................119
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AGRADECIMENTOS
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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APRESENTAÇÃO
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
trar como nossa luta política se expressa na vida cotidiana dessas mulheres.
São relatos de trajetórias de vida de vinte mulheres negras, pertencentes a di-
ferentes estratos sociais, com variados níveis de escolaridade e faixas etárias.
O conhecimento da vida dessas mulheres negras nos possibilita apro-
fundar a reflexão sobre a (des)construção de estereótipos racistas e sexistas,
ainda presentes na sociedade brasileira. Durante a leitura surgirão, de forma
incisiva, questões como: Como é possível uma mulher com pouca escola-
ridade deter tantos conhecimentos? De onde vem sua noção de comparti-
lhamento, solidariedade, respeito aos demais entes da natureza, respeito às
diferentes gerações, sobre temas como filosofia, psicologia etc. De onde vêm
as variadas formas de se pôr no mundo?
As lições oferecidas pelas mulheres negras brasileiras mostram a gran-
deza do respeito e do acolhimento ao outro. A circularidade da família negra,
comandada muitas vezes pelas mulheres, apresenta uma estrutura familiar
mais ampla, difícil de se amoldar a sistemas mais individualistas.
Através desse livro serão conhecidas histórias de mulheres negras que
valorizam a importância da educação formal, mas com dificuldades de aces-
so a ela. São, por exemplo, empregadas domésticas que trabalharam horas
a fio para possibilitar que crianças e jovens da família estudem, se formem,
para que possam ter uma vida com menos dificuldades. Para que essa nova
geração não necessite silenciar diante de situações vivenciadas em uma socie-
dade racista, sexista e lesbofóbica, onde residem ainda, de forma latente ou
explícita, o sentimento escravista insepulto, que tem incentivado a perenidade
do racismo, do preconceito, da discriminação racial e do sexismo patriarcal,
presentes no tecido social brasileiro.
Essa obra também registra a história de jovens negras que, amparadas
pelos exemplos e esforços das mulheres mais velhas – que fizeram e fazem
parte de seu círculo de vida –, estão hoje em cursos de nível superior, tanto
de graduação como de pós-graduação, trabalham na sua área de formação e
militam em movimentos sociais. São mulheres de diferentes faixas etárias que
tiveram a oportunidade de sonhar e realizar seus sonhos e se tornaram pes-
soas vitoriosas. Essas vitórias estão intimamente ligadas às histórias de vida de
milhões de mulheres negras, que se entregam de corpo e alma, durante anos,
para construírem a verdadeira abolição e a sonhada liberdade, que somente
acontece quando se rompem os grilhões materiais e imateriais, que buscam
acorrentar a população negra ao imobilismo social e cultural.
Conhecer, pois, histórias de mulheres negras dos diferentes quadran-
tes desse país é abrir-se para o novo. Significa colocar-se à disposição para
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INTRODUÇÃO
Este livro poderia ser uma compilação de más notícias. Afinal, ser mu-
lher, negra, indígena, lésbica, pobre, migrante, é viver de diferentes modos
as assimetrias de gênero e raça que caracterizam a sociedade organizada
sob as regras do racismo patriarcal. Em sociedades deste tipo, exatamente
como a nossa, mulheres negras, em especial, são expostas a situações de
grave subordinação e discriminação, que se traduzem em pobreza, violên-
cias e vulnerabilidades, sendo empurradas para as camadas inferiores, na
base da pirâmide social.
Somos a maioria (49,9%) da população feminina brasileira, compondo
o contingente negro que equivale a 51% da população total do país. Dados
reunidos no Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça (na quarta edição,
em 2011), publicado periodicamente pelo governo brasileiro, e no Anuário
das Mulheres Brasileiras de 2011, publicado pelo Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos, em parceria com o governo do
Brasil, ao lado de outras bases de dados oficiais disponíveis na saúde, previ-
dência, entre outras, apontam nossa condição de maioria também entre as
iniquidades sociais. Pobreza, indigência, morte precoce e evitável, violências,
violação de direitos, restrições à livre expressão sexual, incidência crescente
de infecção por HIV/AIDS, baixo acesso a terra e à moradia adequada – urba-
na e rural –, estão entre os desafios enfrentados por nós, mulheres negras, na
maior parte das vezes, em isolamento.
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As organizadoras
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A minha avó nos criou, criou a mim fazendo doces pra fora. Naquela
época se lavava, passava pra fora e a mãe também, depois casou. Casou mui-
to nova, tinha catorze pra quinze anos, uma guria. Aí teve um filho atrás do
outro, né? Depois se separou do meu pai, mas ela também trabalhava muito.
Ela trabalhava na polícia civil, sabe? Fazia cafezinho e depois saía de lá e ia
cozinhar nas casas fim de semana, pra poder suprir as necessidades. Porque
uma coisa que o homem negro ainda tem é aquela coisa de que ele sai e não
precisa abastecer os filhos. E ainda tem isso, as minhas separações também,
fizeram os filhos, também foram embora e também não abasteceram os fi-
lhos. Agora o pai da Laura ainda está, porque talvez agora seja mais fácil de
conseguir ajuda, auxílio-alimento, né?
Na primeira vez em que eu casei eu tinha dezoito anos, mas eu tive a
Luanda com vinte e três anos. Mas não casei de papel passado não, a gente foi
morar junto. E depois, em seguida, ele também foi embora, porque arrumou
outra, né? Então a gente sempre... é uma luta, né? Na época eu trabalhava em
um consultório médico de tarde, depois fui trabalhar na tevê Guaíba, trabalhei
cinco anos. Depois fui pro Jóquei, trabalhei mais doze anos lá, trabalhava em
terminal de aposta e era telefonista. E trabalhei também de doméstica, eu
fazia sempre fins de semana e nos meus dias de folga: fazia faxina, cozinhava.
Agora eu cozinho também numa casa, é uma casa e uma loja junto. Eu cozinho
para todos, isso já faz vinte e quatro anos.
Eu criei as gurias, sempre foi naquelas correrias, porque tinha que pa-
gar creche pra ficar ali, depois veio o colégio. Tinha que pagar creche, Kombi
e colégio não, porque eu tinha botado no colégio estadual para não ficar tão
pesado. E também para elas ficarem entrosadas, à vontade. E a Luanda então,
ela estudava na frente da casa da minha mãe. Eu a levava e depois a mãe tra-
zia. A gente sempre exigiu que estudasse, nunca deixei que faltasse o colégio,
nem com chuva nem nada. Esses dias a Laura estava rindo “mãe eu lembro
que eu ia buscar as gurias em casa e as gurias não iam ao colégio porque não
tinham sombrinha, porque estava chovendo e tu não deixavas a gente ficar em
casa”. Eu digo não, porque não adianta: a gente tem que sair pra trabalhar e
a elas tem que aprender que a gente também tem que trabalhar quando cho-
ve. Então não estudaram também mais, não fizeram mais curso porque não
quiseram. Porque a gente sempre fez fazer cursinho, mas aí já acharam muita
coisa. Mas elas estudam, são esforçadas.
Eu sempre estudei e trabalhava. Eu estudava e trabalhava e, uma épo-
ca, tive que parar porque, a partir da quinta série tudo era pago. Tinha que
pagar e eu tinha que trabalhar pra pagar, mas era difícil porque se ganhava
tão pouco, porque tinha que ajudar em casa, mais colégio e passagem. Então
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
eu estudei até o primeiro grau. Depois, para fazer o segundo grau ficou mais
complicado porque o dinheiro era mais curto. Eu parei uma época e depois
voltei a estudar de novo. E não consegui, terminei o terceiro ano e parei.
Agora eu até o fiz o ENEM para dar uma abertura, ver se abria minha cabeça
um pouco. Foi tudo bem... Então eu não estudei mais, e nem é depois por
dificuldade: era por deixar as gurias, eu não queria. A gente já passava o dia no
trabalho e depois sair pra estudar... Deixar as gurias, nem nas mãos da minha
mãe, até porque a mãe não tem muita paciência com criança, nunca teve, nem
conosco, e não ia ter paciência com as gurias. E depois eu comecei a trabalhar
nessa casa, cozinhando, e fim de semana eu trabalhava no Jóquei, de telefonis-
ta e nos terminais de aposta. Depois eu tive que sair, aí eu tive a Laura e tinha
mais uma pra dar atenção.
Só uma vez, no trabalho, eu sofri racismo diretamente: eu fui procurar
um serviço e a moça disse que eu não era o perfil do trabalho, porque a em-
presa exigia uma pessoa loira. Mas, indiretamente, eu sempre soube e brigo
muito, porque a gente ainda sente muito essa dor nos negros. Eu sempre digo
pras gurias desde pequenas, que a única coisa que tem diferença, isso eu sem-
pre digo pra elas, é do pobre e rico é dinheiro, e do branco e negro é a cor.
São pessoas, né? E a gente tem que lutar pelo lugar da gente. Assim eu vejo
muito nos negros que a gente lida no dia a dia, no trabalho, que eles têm essa
coisa de se sentir menos. Então eu brigo muito, até tem umas colegas minhas
que ficam bravas porque falam do tal de cabelo ruim e eu digo: vocês tem que
parar de falar de pessoas de cabelo ruim, ‘fulana tem cabelo ruim’. Porque
cabelo, cada um tem o cabelo dentro da sua etnia. Aí foi que elas disseram
que nunca ouviram falar que negro não tinha cabelo ruim. Aí eu digo: como a
gente está atrasada. Porque a gente mesmo faz essa diferença.
Eu acho que a minha vida hoje é mais organizada. Eu procuro orga-
nizar tudo de maneira que eu não sinta pesado. E também sempre mantive
as coisas mais fáceis pras meninas, quer dizer, não precisar ajudar em casa,
não precisar deixar de estudar pra ficar em casa ou de trabalhar. Eu organizei
a minha vida toda de maneira que não pesasse pra ninguém. Quando Laura
nasceu eu botei gente pra cuidar, sem a Luanda ter que ficar cuidando dela
e deixar de estudar. Então, as gurias organizaram a vida desde cedo, porque
desde os dezesseis anos foram saindo pra trabalhar. Até a Laura. Mexi com
ela: “com dezesseis anos, tu vais trabalhar”, porque tem um SINE na frente
do colégio dela, “tu vai sair direto pro SINE”. Eu acho que uma das coisas que
a gente tem que fazer é botar as crianças desde cedo a trabalhar. Eu vi isso
com a família do meu irmão, que os guris estavam estudando e não precisa-
vam trabalhar. Então, imagina: hoje eles não fazem nem uma coisa nem outra,
ainda mais guri. E eu disse pra eles: bota cedo esses guris para trabalhar e eles
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
me diziam que tem que deixar estudar. Depois eles largam os estudos. Então,
não adianta, eles tem que ter esse compromisso com eles mesmos. As gurias
diziam: “ah, porque tu não nos dá presente? Todo mundo ganha...” Eu digo:
“Não. Todo mundo estuda pra si, tu não estás estudando pra mim e não estás
me dando nada. Foi pra ti”. E sempre briguei com elas com isso, porque “ah,
todo mundo ganha presente porque passa”, isso tira a obrigação delas estu-
darem. Eles pensam que tudo que eles fazem é pra gente, todo esforço para
nós. É para nós mesmos, os outros pegam as sobras.
Eu fico feliz porque elas não entortaram, mas também foi tudo com
muita briga, tem horário pra estar dentro de casa. Até tinha uma vizinha mi-
nha, que já faleceu, que brigava muito comigo, porque a Luanda ia pra lá e
ela tem uns cinco ou seis filhos e ela e as meninas ficavam na frente, sentadas
o dia todo. E a Luanda ia pra lá. Ah, eu chegava e ia lá buscar a Luanda. Ela
dizia: “o que ela vai fazer aqui, não vai acontecer nada com ela”. Sim, não vai
acontecer nada, mas também não vai acrescentar nada na vida dela, sentada
conversando fiado o dia todo, ou a tarde toda, que seja. Então, eu sempre a
buscava, eu nunca deixei. Isso de ter que ter horário sempre é a construção,
tanto que hoje elas têm: hoje, se tem que acordar as cinco, elas acordam; às
seis..., elas organizam a vida delas com horário. Tem que ter disciplina, isso
elas que tem de organizar.
Por aqui, os nossos vizinhos, aqueles que são negros, são tudo evan-
gélico. Eles já têm os filhos assim, mais na rédea curta. A maioria é formada,
tudo estuda e aqui também a gurizada, a maioria, já se formou, já casaram.
Elas também não conviveram com gente que não tem nada com nada, porque
eu sempre disse pra elas que isso é uma coisa que pega, contagia. A pessoa
parada, no ócio, isso aí contagia. E isso era uma briga, eu não deixava elas sos-
segarem nunca, nem fim de semana. Mas a vizinhança aqui mudou, no sentido
de que todo mundo trabalha e estuda. Tem um grupinho que é apegado em
função de droga. Mas a maioria da vizinhança aqui..., aqui na frente têm vários
becos e tem muitas casas, mas todo mundo estuda e trabalha, e os pais são
esforçados. Eu acho que o fato de serem evangélicos influenciou sim, não tem
aquela coisa de ter a gurizada tudo solta.
As pessoas mudaram porque a vida mudou, não é mais a mesma coisa.
Como eu vou dizer? O trabalho... As pessoas trabalham muito mais agora; não
tinha aquela coisa de, à tarde, estar todo mundo em casa, não tem. Ninguém
tem horário, as pessoas trabalham de manhã, de tarde, de noite, só não tra-
balham de madrugada. E pouco se vêem. Aqui a gente não vê quase ninguém
e quase ninguém nos vê, porque eu também saio de manhã e chego só tarde.
Então não se tem quase contato com a vizinha, como antigamente. No meu
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
tempo, a gente tinha muito contato com a vizinhança, a gente brincava de tar-
de, aquela coisa toda, hoje todo mundo enche as crianças de compromissos
e os adultos também.
Olha, eu acho que não piorou nada. Acho que está melhorando. Eu
acho que a população está muito grande e tem um descontrole, as coisas
estão bem descontroladas. Mas não que esteja pior. Eu acho que antigamen-
te tudo era pior: financeiramente, a saúde, tudo era pior. Agora, apesar de
parecer que está pior, não está: é que a população está imensa, em alguns
lugares tem muita gente, e eles estão meio perdidos. Acho que em função de
desvio de dinheiro está tudo pior, saúde, educação e trabalho. E não tendo
educação, não tendo formação, as pessoas não podem trabalhar. Então isso aí
é só perdido, descontrolado, porque o crescimento é muito rápido. Mas não
é que esteja pior.
Em relação às mulheres negras, acho que mudou os hábitos de traba-
lho, as condições. Porque as mulheres negras sempre foram mulheres muito
esforçadas e eu acho que continuam. Só mudou o número de pessoas, o núme-
ro de mulheres. E as condições de trabalho estão bem melhores, a formação
delas, mais batalhadoras, são mais esclarecidas também pra abrir os caminhos.
Antigamente a gente tinha muito medo, insegurança. Por exemplo:
eu jamais sairia daqui pra São Paulo, sozinha. Se eu não fui nem com o pai da
Luanda..., não quis ir. Ele fez um concurso na época, acho que de fiscal, ele
passou e eu não fui junto de jeito nenhum, pra não sair de perto da minha
mãe. Isso tudo é insegurança e medo. Foi o que eu não deixei passar pras gu-
rias, eu sempre disse pras gurias que o mundo é muito grande e a gente tem
que enfrentar, de repente lá eu estaria melhor. E até questões de trabalho, se
a gente ficar num lugar só, de repente perde muitas oportunidades. E o mun-
do é nosso todinho. Nós temos que sair cavando oportunidades em qualquer
lugar. E as gurias estão aí, soltas. A Laura, desde novinha, se tiver que ir pra
qualquer lugar, ela vai e, quando eu era guria, eu tinha muito medo. Eu tinha
muito medo de sair fora assim, a gente não tinha esclarecimento nenhum.
Porque quanto mais tu ficavas em casa, mais achavam que estava certo.
E depois eu fui morar com a minha avó paterna: era eu de guria e eram
oito homens com o meu pai. Eu ficava tomando conta da casa, lavando e pas-
sando a roupa deles, aquela coisa. Acho que a gente vai pegando aquela coisa
de dona de casa e não consegue sair dali, eu tinha nove, dez, onze anos, até os
catorze eu fiquei assim. Meu pai não incomodava, minha mãe saía de manhã e
voltava tarde da noite. Então eu tinha que cuidar da roupa deles. O meu primo
ainda tinha que deixar a calça bem frisada, que antigamente usavam; outros
tinham que ter friso na manga da camisa. Mas hoje as pessoas não são mais
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
exigentes nem pra roupa, então é tudo mais fácil, as pessoas são práticas. É
por isso que as pessoas não passam tanto trabalho. A gente se acostumava,
ficava dentro da casa, não é aquela coisa que as gurias têm hoje de não querer
fazer nada dentro de casa. Não sei também se já não nasceram pra não ficar
só dentro de casa, porque a gente ficava. O chão tinha que esfregar de escova
e esfregão de aço, pra passar no chão e ficar bem branquinho, aquelas coisas
todas. Tinha que passar cera todos os finais de semana, era um trabalho que es-
cravizava a gente um monte. Bom, mas aí já não era mais escravo, como eu vou
dizer?... de fazenda, mas de casa. E isso vocês, hoje em dia, já não têm mais. A
gente tinha que se acostumar a trabalhar em casa, se a gente sair vai fazer falta.
Se liberta quando casa, mas depois vê que é a mesma coisa. E hoje ninguém é
preso a nada disso, mudaram as cabeças, hoje se tem a cabeça mais aberta.
Eu espero me aposentar e fazer uns cursos, abrir a minha cabeça pra
outras coisas, sair um pouco daquela mesmice. Porque a gente quando têm
filhos que dependem só da gente, fica sempre naquela sistemática. Tu organi-
zas a tua vida do jeito que eles não precisam se prejudicar em nada, possam
cuidar da vida deles. E tu ficas ali na casa cuidando do sustento, organizando
as coisas da casa e trabalha em função disso. Mas agora a Luanda já está lá pra
São Paulo, e eu não sei se ela já não fica por lá. E a Laura também, já tem vinte
anos, já está querendo arrumar a casa dela. Então, pra mim, é mais fácil de
pensar só em mim, elas já sabem o que querem, já sabem onde buscar dinhei-
ro, trabalhar pra se sustentar. Eu não preciso ficar tão preocupada em função
delas, eu tenho outros tipos de preocupação com elas, mas de sustento já não
mais, porque o fator econômico é o que prende e porque a gente não quer
que falte nada pra eles. Eu sempre trabalhei, trabalhava feriado, trabalhava
domingo, porque a gente foi criada assim. Eu tinha um outro tipo de serviço,
fins de semana fazia outras coisas. Até há pouco, eu fazia ainda jantar pra fora
e faço, quando tem. Mas a maioria do pessoal eu também já dispensei, já não
faço tanto. Fim de semana era chá de panela, era chá de fralda, era jantar pra
isso, era jantar pra aquilo. Eu dei uma parada, porque era muito trabalho,
muita coisa. Então é diminuir, não preciso ficar tão apegada à busca da parte
financeira. Já é mais calmo tudo, graças a Deus.
A mensagem que eu deixo é que se deve lutar para vencer os obs-
táculos. A gente consegue. Nós somos os únicos seres capazes de superar
todas as dificuldades e temos forças pra lutar contra tudo, é só querer. Tem
que ter vontade. Tudo o que a gente quer, a gente consegue, mas tem que
querer. Tem que ter força de vontade. A gente não pode amarrar a felicidade
da gente nos outros; tem que fazer pela gente. Pra ser feliz, tem que acreditar
na gente e não nos outros.
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
“Acho que o mais importante na minha trajetória foi ter mulheres negras
que foram referências para mim, e toda vez que fui buscar essas referências, elas
estavam sempre presentes”.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
tro. E que conta com uma história de marginalização de uma população que
vivia na região central e foi movida para aquele local, bem extremo ao centro.
Meu pai tinha alguns problemas com alcoolismo e, nessa época, eu
lembro que as nossas relações eram bem difíceis em casa, porque ele era
uma pessoa bastante violenta, não só verbalmente, mas fisicamente também.
Depois de algum tempo, meus irmãos saíram de casa, casaram; minha irmã foi
morar sozinha, e ficamos eu, minha mãe e meu pai em casa e mais uma prima
que minha mãe criava. Foi um período bem difícil porque a minha mãe traba-
lhava, o meu pai bebia, chegava bêbado em casa e, muitas vezes, brigava com
a gente, que era pequena. Depois de algum tempo ele foi ficando muito doen-
te, teve Alzheimer e esse período foi bem conturbado, porque ele esquecia o
caminho de casa, se perdia na rua. Meus irmãos andavam no Instituto Médico
Legal, nos hospitais, nas ruas, procurando por ele. Até o momento em que
minha mãe decidiu colocá-lo numa clínica, porque não tinha condições dele
ficar sozinho, junto com duas meninas de dez anos cada uma.
Minha mãe continuou trabalhando e eu ficava muito sozinha. Foi um
período bem complicado para mim, porque eu estava entrando na adolescên-
cia. Ela sempre foi batalhadora e me incentivou a buscar, através da educação,
uma melhor posição, melhor salário, melhores possibilidades. Ela sempre tra-
zia a questão racial para dentro de casa e isso era muito interessante, porque
muitas vezes a gente achava que ela era racista, mas na verdade, não. Ela
sempre tentou colocar essa questão como uma preparação para a gente não
se assustar lá fora; falava da questão nas relações de trabalho, nas relações
escolares, no mundo.
Meu pai ficou muito doente e veio a falecer em 1997. Eu tinha 13 anos
e, um mês depois de sua morte, minha mãe teve um acidente vascular cere-
bral (AVC). Esse foi um período bem difícil porque eu, que já ficava bastante
sozinha, me senti totalmente sem chão. Porém, a minha mãe conseguiu se
recuperar bem desse AVC, não ficou com sequela nenhuma.
Nesse período fui estudar na região central, eu estudava no Colégio
Inácio Montanha que ficava bem no centro. Nesses três anos de ensino médio
fui bastante incentivada a não desistir de estudar, pela minha mãe, por profes-
soras. Após três tentativas, em 2005, passei no vestibular e entrei na UFRGS,
no curso de Enfermagem. Apesar de meu sonho em fazer medicina, fiquei
feliz com essa vitória.
Chegando à universidade, senti um baque grande, porque todas as
pessoas eram de classe média, classe média alta, brancos, descendentes de
europeus. Na minha turma éramos umas 45 pessoas, e dessas, apenas três ne-
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
gros – duas mulheres e um colega homem. Dentro desse meu susto, fui pro-
curar na universidade formas de me manter lá. Entrei no programa Conexões
de Saberes, que tinha foco na permanência na universidade de estudantes de
origem popular, em que eram considerados, entre vários quesitos, a questão
de raça e gênero. Éramos 25 bolsistas desse programa, todos de origem po-
pular, com concepções bem diferentes de sociedade. O projeto se constituiu
num espaço de trocas e debates e, também foi o lugar onde eu consegui me
sentir em casa dentro da universidade.
Em 2005, incentivados por um professor de Cabo Verde, formamos
um grupo que se reunia para discutir vários temas e, entre eles, a questão
étnico-racial dentro da universidade, as ações afirmativas e as cotas. Esse gru-
po passou a se chamar “Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas” e passou a
trabalhar com a questão das cotas dentro da universidade.
Dentro desse Grupo de Trabalho constituímos um núcleo de mulhe-
res, formado principalmente de mulheres negras, mas tínhamos também mu-
lheres brancas.
Inicialmente a gente trabalhou junto com o pessoal do DCE para
constituir uma “calourada” sobre ações afirmativas. A gente trouxe várias
vertentes, trouxe os indígenas pra falar da religiosidade, da cosmovisão das
comunidades indígenas. Da população negra a gente trouxe a questão da re-
ligiosidade, da educação, da saúde. Foi bem legal porque a gente conseguiu
fechar com um debate sobre o sistema de cotas e teve bastante público. Teve
os prós e contra as cotas e foi bastante interessante. A partir daí eu acho que
o grupo teve um fôlego maior, começou a fazer vários atos reivindicatórios
junto às entidades do movimento negro, conseguiu de alguma forma dialo-
gar e ser um interlocutor do movimento negro dentro da universidade. E
num desses atos a gente conseguiu com que o reitor se comprometesse a
constituir um programa de ações afirmativas. Ele se comprometeu, junto às
entidades do movimento negro que estavam ali presentes nesse ato, a discutir
isso dentro da universidade. Nesse contexto, o Grupo de Trabalho de Ações
Afirmativas formulou uma proposta de ações afirmativas e essa proposta tinha
um recorte étnico-racial, entendendo que a questão social vinha junto com a
questão racial, como sempre vem. Então, se constituiu na universidade uma
comissão que ia formular a proposta de ações afirmativas, que utilizou a nossa
proposta como base para construir a dela. Também conseguimos discutir e
compreender essa vivência da população negra, das mulheres negras. Até a
metade do curso de graduação eu vivi na Restinga. Na rua em que eu morava,
e que a minha família ainda mora, tem três pontos de tráfico de drogas. A nos-
sa relação com eles sempre foi tranquila, mas as relações que eles tinham com
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
um professor de história que era muito legal, muito parceiro. Ele perguntava
pra gente o que esperávamos do futuro. Eu estava na 7º série e na aula disse
que queria ser médica, que eu gostaria de fazer uma universidade. Então um
colega de classe, negro, me disse que eu nunca ia conseguir isso porque o
negro jamais conseguiria chegar à universidade. Respondi a ele: “mas eu vou
conseguir!”. Acho que aquilo ali foi um divisor de águas, pois eu já tinha toda a
fala da minha mãe sobre a questão racial e ao ouvir a fala do colega pensei que
não seria isso que me faria desistir. Pelo contrário, me daria mais força para
seguir em frente. Porque uma coisa que a minha mãe sempre dizia é que só
conseguiríamos melhorar a nossa condição socioeconômica através do estu-
do, não havia outra maneira lícita pra fazer isso.
Eu ingressei faz mais ou menos dois anos na instituição em que eu tra-
balho atualmente. É uma instituição publica de saúde, que tem uma história
dos trabalhadores se organizarem em torno das questões sociais dentro do
hospital. E lá tem uma Comissão Especial de Promoção da Igualdade Racial, a
CEPPIR, que conseguiu, há alguns anos, implementar as ações afirmativas para
o ingresso na instituição. Tem cotas no concurso público, na seleção pública
que é feita. Eu ingressei nesta instituição por meio das cotas, eu sou cotista,
inicialmente como temporária. Fiquei uns três meses nessa vaga, passando por
várias especialidades. Quando veio a minha vaga definitiva, fui para a Unidade de
Tratamento Intensivo (UTI). Foi um susto bastante grande porque se eu fosse
imaginar um lugar em que eu nunca trabalharia seria na UTI. Eu mudei de setor
faz uns dois anos mais ou menos. Quando fui anunciar para minha chefe que
mudaria de setor, ela me disse que eu fui uma “surpresa muito boa”. Mas aí eu
fiquei pensando: “porque eu fui uma surpresa muito boa?”. Seria porque eu sou
uma mulher negra e sou cotista? Por que uma surpresa boa? E em toda a carga
simbólica que tinha essa frase. São nessas relações, por mais sutis que sejam es-
sas falas, onde fica explícito que eu sou uma mulher negra. E, também, onde fica
embutida toda carga de racismo velado. Eu me senti totalmente racializada. Lá
era um ambiente em que nós éramos cinquenta e nove enfermeiros e, destes,
éramos apenas quatro negros. Mesmo sendo uma instituição que tem cotas no
seu processo seletivo. Então essa frase me fez pensar várias coisas, tanto que
eu comentei com as minhas amigas que são mulheres negras também e elas
concordaram comigo com essa questão da “surpresa boa”.
Hoje acho que as coisas já mudaram muito. Tenho uma irmã que é
mãe solteira e tem uma filha, a Natália, que me vê como uma referência e isso
é muito importante. Porque ela consegue se enxergar em mim e de alguma
forma, posso incentivar essa menina para que ela continue. A Natália tem
onze anos. E, mesmo estando num bairro que tem todo esse nível de vio-
lência, que as pessoas são marginalizadas, desacreditadas, desde o jardim de
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
infância até onde ela conseguir chegar, até onde ela conseguir aguentar, é uma
coisa bem importante que ela me tenha como referência, mesmo que resulte
em uma carga bem pesada dentro da família. Os meus irmãos e a minha irmã
não quiseram continuar estudando e por essa razão é importante que a Natá-
lia tenha outras visões de mundo.
No plano pessoal, acho que venci várias batalhas, mas ainda têm mui-
tas conquistas a se concretizar. E ainda tenho que me esforçar bastante em
nível profissional. Quero desenvolver trabalhos em alguns lugares, mas eu
preciso ter uma formação que me ajude, além de um ambiente de trabalho
que permita que eu possa me desenvolver melhor.
Hoje em dia estou bem feliz porque consegui comprar meu aparta-
mento, ainda esta semana. É uma coisa que eu nunca imaginei. Eu estou com-
prando sozinha, sem ajuda de ninguém. Tenho o meu trabalho que valorizo
muito e consegui entrar no mestrado em uma universidade pública. São coisas
que, para mim, contam muito. Porque são coisas pelas quais me esforcei e
não desisti, mesmo com todas as adversidades que teve nesse processo. Por
exemplo, a minha entrada no mestrado foi bem complicada, porque eu fiz
uma seleção na Fundação Oswaldo Cruz, que trabalha com a questão da saú-
de, e o meu projeto era sobre saúde da população negra. Fui muito bem na
prova, passei pra entrevista, apresentei meu projeto, meu curriculum e nessa
etapa de projeto, curriculum e entrevista, eu fui totalmente eliminada. Eu
tirei 20% do que valia. No outro ano, tentei a seleção aqui em Porto Alegre,
na UFRGS, e com o mesmo curriculum, com o mesmo projeto, só mudei a
data do meu projeto e no meu curriculum eu acrescentei eventos, esse tipo
de coisa. Não tinha nenhuma publicação a mais e eu passei aqui, numa área
totalmente diferente da minha que foi a sociologia. Eram 20 vagas e eu fiquei
em 7º lugar. Quando eu saí da FIOCRUZ e vi a minha nota, fiquei bastante
chateada e sabia porque eu estava sendo reprovada. Não era pela competên-
cia que eu tinha em fazer a prova, a entrevista, o projeto. Nada disso foi ana-
lisado, apenas olharam o meu fenótipo que vem carregado de toda a questão
racial. E eu só não me deprimi mais porque tinham pessoas que diziam: “não,
tu não tem que desistir”, mulheres negras que são referências pra mim, que
conversaram comigo. A minha mãe também, que disse: “minha filha, vai ser
difícil, ainda mais com esse teu tema, mas continua tentando, tu vai conse-
guir; tu tens capacidade pra isso”. Essas sutilezas muitas vezes fazem algumas
pessoas pararem no meio do caminho, porque com o baque que eu tive, me
deu vontade de desistir, eu fiquei revoltadíssima, porque estudei, me esforcei
para fazer o projeto e a prova, gastei dinheiro para ir ao Rio de Janeiro fazer
prova. Depois disso eu disse que não ia fazer mais pós-graduação. E daí as
minhas amigas do Grupo de Trabalho me incentivaram muito e hoje estou na
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
incomoda bastante. Porque nós não somos aquilo! Eu gostaria muito de ver na
novela uma mulher negra exitosa, que ela tivesse família, que a trajetória dela
fosse mostrada, que ela tivesse um nome, que ela tivesse um emprego ou que
ela estivesse buscando um emprego. E que mostrasse as mulheres que são tam-
bém exitosas. Porque eu acho que toda essa questão de como nós somos vistas
socialmente, acaba influenciando aquelas menininhas. Por exemplo: um dia a
Natália, minha sobrinha, me ligou chorando por causa da Dança dos Famosos.
Era a edição da Sheron Menezes e ficou evidente que aquilo ali foi uma coisa
manipulada, e ela me ligou chorando: “Dinda, a Sheron perdeu!”. Eu fiquei pen-
sando na questão da violência simbólica com aquela menina negra, que é uma
criança e que está vendo que ela não vai ganhar nem um concurso de dança em
que ela foi do início ao fim a melhor. Que nem sendo a melhor ela iria conseguir.
Essa violência simbólica que nós sofremos, e que muitas vezes o homem negro
– nem sei porque –, mas ele não consegue. Acho que é uma questão de admi-
nistrar essa questão. Mulher eu acho que consegue administrar melhor, porque
ela acaba sofrendo mais com o machismo e com o racismo.
Eu espero que no futuro a gente possa viver num mundo que não
tenha racismo. Eu tenho certeza de que eu não vou viver isso, que meus fi-
lhos não vão ver e, talvez, meus netos não vão ver. Mas eu fico pensando no
quanto as pessoas que vieram, me antecederam, trabalharam pra isso e que
eu tenho também essa obrigação, de continuar essa luta, essa reivindicação.
Nesse momento a gente conseguiu que se tornasse um direito, mas ainda
tem um desafio que é o exercício desse direito pela população negra. Eu vejo
o futuro com bons olhos. Acho que no momento em que tivermos pessoas
comprometidas nas instâncias decisórias, vamos conseguir que essas políticas
sejam implementadas, sejam gozadas plenamente pela população. Eu espero
que a gente um dia consiga isso, acho que esse é o grande desafio.
A menina negra que nasce agora... que essa menina negra sempre
continue, por mais adversa que seja a sua trajetória, que se cerque de pessoas
que tenham sintonia com essa trajetória e que possam dar força para ela nes-
se momento. Porque acho que o mais importante na minha trajetória foi ter
mulheres negras que foram referências para mim, e toda vez que fui buscar
essas referências, elas estavam sempre presentes. Por exemplo: a Conceição,
pra mim, é uma das maiores referências, ali, dentro da UFRGS, que sempre
esteve com a gente. Então, são pessoas que eu me vejo nelas, que são minhas
companheiras e que são muito importantes pra mim. Porque eu acho que,
sozinhas, a gente não vai conseguir. A gente tem que discutir com as mulheres
negras, a gente tem que continuar na luta, porque só assim a gente vai conse-
guir melhorar as condições de vida da mulher negra.
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BAMIDELÊ
Paraíba
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savós paternos e maternos também foram negros. A gente sempre teve cons-
ciência da condição de nossa negritude por conta de nossos pais. Minha mãe
sempre disse, deixou isso pra gente bem nítido na nossa criação, na formação
que a gente teve enquanto pessoa, enquanto cidadãos.
Me descobri muito nessa questão da negritude, como mulher negra,
principalmente diante dos movimentos sociais em que eu comecei a partici-
par, dentro dos trabalhos de igreja. Trabalhei muito tempo na minha adoles-
cência na questão das Comunidades Eclesiais de Base / CEBs. Era um órgão
muito bem articulado e perto da questão dos movimentos sociais e, dentro
das CEBs, comecei a participar da Pastoral da Criança, depois na Pastoral do
Menor. Foi na Pastoral do Menor onde eu comecei a me identificar muito com
essa questão da mulher negra, porque tinham algumas temáticas que falavam
da questão do racismo. Foi onde eu procurei me apropriar mais desse tema
e, me apropriando, me identificando enquanto pessoa negra. Depois do mo-
vimento na Pastoral do Menor, passei realmente para a Pastoral de Mulheres,
para o movimento de mulheres. Então foi daí que partiu essa conscientização
enquanto mulher negra, de trabalhar com mulheres negras e fazer com que
essas mulheres, que nós, enquanto pessoas negras, fôssemos mais reconhe-
cidas, mais vistas, mais valorizadas. Até por conta, também, do dia a dia, das
questões discriminatórias que a gente tem, né?
Tive grande dificuldade na questão do trabalho no início da minha
vida, da questão profissional, por conta dos estudos precários que eu tive,
por conta da grande família, e que minha mãe não pode dar os estudos que
esperava. Tive um estudo muito precário. Tanto que hoje, com 44 anos, é que
eu estou concluindo a questão do ensino superior, estou me formando agora
esse ano em Pedagogia. Foi por conta dessa trajetória difícil, do aprendizado,
do acesso à educação, pela questão também econômica que os meus pais
tinham, que a gente não pôde ter mais do que se teve.
Diante da minha trajetória de vida, do que eu passei, vejo muitas mu-
danças hoje. Principalmente dentro desse mundo social que a gente luta tanto
e pede tanto por transformações. Há, vamos dizer assim, há vinte anos, eu
não distinguia, eu não via muito essa questão de políticas públicas direciona-
das para a população negra. Não se tinha isso, não se falava isso, não se falava
nem na questão de políticas públicas, quanto mais direcionadas para a popu-
lação negra. Essa é uma das modificações de que eu me sinto protagonista da
história. Eu me sinto participante dessa história de mudança, de reivindicar
essas políticas públicas, de reivindicar essas coisas, diante do que eu já pude
participar. A partir do momento em que eu participei de uma palestra, de uma
formação. Hoje eu participo de seminários, de conferências, onde a gente vê
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e sabe que é a partir de lá que surgem as leis, que surgem as propostas, que
surgem as demandas e que é a partir daí que a gente pode fazer as mudanças.
Então as mudanças que eu vejo, do que se passou há vinte, trinta anos atrás
para hoje no mundo atual. Nesse mundo, a gente pode dizer assim, que houve
crueldade com a questão da negritude, e até hoje se tem essa imagem da cor
negra, da questão escrava, da questão de submissão, mas teve evolução re-
almente na história. E foram lentas e está sendo lento, mas a gente já vê hoje
nitidamente essas mudanças, resultado dessa reivindicação, desses aconteci-
mentos que estão ocorrendo dentro das políticas públicas que a gente lutou,
há vinte anos, para se ter hoje. E que a gente vai continuar lutando para se
ter no amanhã, para nossos filhos e filhas. A gente, com certeza, planta hoje
para colher amanhã. E com certeza não é a gente que vai colher, é a pessoa
que vai vir atrás da gente, como a gente está colhendo frutos de pessoas que
plantaram. Então é por aí que eu vejo essas mudanças sociais, essas mudanças
de vida que se tem.
Uma das coisas que eu deixo, com muito prazer, com muito orgulho
hoje, até num âmbito particular, pessoal, é, por exemplo, uma das coisas que
eu vou deixar pro futuro: a minha filha. Ela que hoje se diz uma menina su-
perpolitizada, bem formada, esclarecida quanto à questão da sua cor, no que
quer, no que se planeja, as suas metas de vida enquanto mulher negra. Eu
deixo essa luta de hoje, por uma Secretaria de Políticas Públicas para ques-
tão da mulher negra, da população negra, por aqui. Hoje a gente tem uma
Coordenadoria, mas com certeza daqui há dois ou três anos a gente vai ter
secretaria, secretarias, nos municípios. E outras lutas também que a gente
tem que ver hoje lá, pro meu município, é a coordenadoria para mulheres.
Que lá não tem.
Então são coisas que a gente está lutando hoje no dia a dia para gente
ter amanhã, no futuro. É esse futuro que a gente pretende deixar aí, essas
reivindicações, essas lutas escritas, realmente leis, para que sejam cumpridas.
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a sociedade, negar que nós sofremos por nossas especificidades: além de ser
negra, ser mulher. E há, ainda, aquela ideia da mulher universal, ainda só da
mulher, de gênero. Mas também tem a dimensão racial. Eu acho que a mulher
negra tem que estar sempre provando, ainda sofre muito. Eu digo por mim:
a questão dos padrões. Teve um evento agora, na televisão, da “Garota Fan-
tástica” e o cara disse: estamos à procura de um padrão clássico de beleza.
Na verdade, ele disse de beleza clássica e depois pegou algumas meninas e
mostrou, “isso aqui é uma beleza clássica”: mulheres magras e nariz afilado.
Eu disse: mas como procurar uma beleza clássica no Brasil, um país tão misci-
genado, em que a nossa beleza é diferenciada? Porque a gente consegue, nas
nossas características, trazer heranças de várias raças. E, aí, a gente não é ma-
gra não, a gente tem perna, a gente tem bunda, nosso nariz é diferente, nosso
cabelo não é liso, é encaracolado, é crespo. Ver isso ainda posto na televisão,
na mídia, é uma opressão muito grande para as mulheres negras. Os padrões
de beleza são tão perversos que a gente tem que estar realmente nos em-
branquecendo para nos inserirmos em alguns espaços, sermos aceitas e nos
sentirmos bonitas. Quando a gente sai com meninas brancas, a gente percebe
as diferenças: a atenção dos rapazes não vem pra nós, meninas negras, em-
bora nós sejamos negras lindas. Temos que estar provando que somos muito
competentes, que a gente é linda; a gente tem que se embranquecer.
Tem o plano objetivo, de acesso, das desigualdades raciais, das desi-
gualdades sociais, de acesso às condições de renda e tal. Mas o plano subjetivo
dificulta muito a conquista da gente, as conquistas sociais para a gente, porque
a sociedade acaba nos convencendo de que a gente é inferior, de que a gente
é feia e isso, às vezes, cria obstáculos na construção do nosso ser, na hora da
gente galgar outros espaços, outras oportunidades.
Eu tenho um sentimento muito assim, um desejo amplo, não só para
minha vida pessoal: desejo muito, muito mesmo, estar no mestrado e encon-
trar mais pessoas negras, estar na Secretaria de Saúde atuando na gestão e en-
contrar pessoas negras. Porque eu me sinto muito isolada em alguns espaços.
Eu queria muito ter a oportunidade de ver meu povo negro ocupando outros
espaços, eu sonho muito com isso. Acho que as cotas são uma conquista so-
cial, acredito muito nessa política afirmativa. Quero muito ter a oportunidade
de ver o meu o povo acessando esse bem da humanidade que é a universida-
de, que é a produção de conhecimento. Então meu futuro é esse, ver pessoas
negras ascendendo socialmente, e a sociedade brasileira não tendo mais que
nos tolerar, mas convivendo com nossas diferenças. Porque o acontece mui-
tas vezes quando um negro ascende na sociedade é que ele fica tolerável. Que
ele não seja tolerado, mas que seja reconhecido enquanto negro, enquanto
sujeito político, sujeito social, com sua dignidade humana nessa sociedade.
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Para a menina que nasce agora eu desejo que essa negra possa cres-
cer e se desenvolver. E construir sua identidade tendo como referência não
padrões estéticos de beleza, mas reconhecer a sua essência que está na sua
história, na sua ancestralidade. E espero que ela tenha a oportunidade de
crescer num ambiente... Porque eu sei que o ambiente é desfavorável demais
pra construção da nossa identidade negra. Mas que ela pudesse crescer em
um ambiente pelo menos familiar e escolar em que a história do seu povo pu-
desse ser contada com outra versão, que é a versão do povo que a construiu,
que é a versão do povo negro. Que pudesse ter a oportunidade de estar numa
escola, de ouvir a história do seu povo, não narrada do ponto de vista do bran-
co, do europeu, da princesa Isabel, que aboliu a escravidão. Que ela tenha a
oportunidade de estudar e estar em um ambiente em que esteja bem, que
aceite seu cabelo, que se ache linda. Que em sua casa seus pais, sua família,
valorizem sua beleza, como o meu pai dizia que eu era negra, que eu era linda,
que eu era princesa, isso me ajudou muito na construção da minha identidade.
Espero que crianças que estão nascendo agora possam ser amadas e se sentir
especiais por aquilo que são, nada de imposição racista e opressora de nossa
sociedade.
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CASA LAUDELINA
São Paulo
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questão racial e de gênero. Estamos em várias frentes e com esta vigília per-
severante, temos conseguido dar muitas respostas em relação às demandas
colocadas na questão do racismo e sexismo.
Hoje temos a SEPPIR – Secretaria de Promoção de Políticas de Igual-
dade Racial, a SPM -Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, a Po-
lítica Nacional de Saúde da População Negra no Sistema Único de Saúde/
SUS, a experiências do Programa de Combate ao Racismo Institucional/PCRI,
a Lei 10.639/2003, as ONGs racialmente feministas que têm tido um papel
fundamental de se colocar sempre nas agendas para estarem à frente das dis-
cussões e cobrar dos governos políticas mais efetivas e fornecerem subsídios
para a operacionalização dos programas propostos; a aprovação das cotas
nas universidades federais. Porém, alguns retrocessos devem ser observa-
dos, como por exemplo, quando o legislativo federal retalhou o Estatuto da
Igualdade Racial, nas dificuldades de implantação e implementação de algumas
ações como: o Comitê Técnico de Saúde da População Negra nos Municípios,
a História de África e Afro-brasileira nas escolas, a nossa própria invisibilidade
no Estado em função do racismo institucional. Estes fatos acabam sendo en-
traves para o desenvolvimento das políticas de igualdade da população negra.
E precisamos de mais orçamento público.
Eu avalio que este movimento precisa se intensificar, pois tem sido
tímido e pontual em algumas localidades. Localmente é necessário for-
talecer esta luta. O desafio é em relação às jovens negras, elas precisam
participar efetivamente deste movimento, pois existe uma mistificação da
questão racial nesta faixa etária. E, apesar de haver um avanço na questão
dos estereótipos negros (cabelos crespos, por exemplo), ainda falta empo-
deramento identitário racial, pois elas não conseguem fazer uma discussão
mais profunda na questão de raça. Acredito que o processo é de formação
contínua e de cidadania pra que se apoderem do saber e se crie de fato a
identidade negra.
Acredito que, se conseguirmos ampliar este debate localmente, auto-
maticamente estaremos ampliando regionalmente e nacionalmente. Sei que é
um grande desafio, mas temos que pautar as questões desta juventude negra
e mobilizá-las para o enfrentamento deste processo.
Acredito que, nestas últimas décadas, foram sendo construídas pela
sociedade civil (ONGS e movimentos feministas), várias ações que geraram
políticas públicas que necessitam ser implementadas. Acredito que a invisibili-
dade das mulheres negras hoje é menor, por podermos pautar as nossas ques-
tões. Porém, é preciso que, de fato, as ações sejam efetivadas no tocante ao
combate do racismo, sexismo, lesbofobia, na questão do acesso à educação, à
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CEDENPA
Pará
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Mas eu não estou somente pra aquilo ali. Eu faço outras coisas também. Faço
coisas que qualquer mulher pode fazer.
Eu tenho uma irmã que está desenvolvendo uma pesquisa nos quilom-
bos. A pesquisa procura identificar o que as mulheres estão fazendo nos seus
quilombos, se ainda estão nas cozinhas, se estão pescando. Nos quilombos
é totalmente diferente. Lá nos quilombos, o que acontece é que as pessoas
dizem assim: “ah, a Jaqueline foi para Belém, ela está trabalhando, por isso ela
tem mais conhecimento que nós”. Eu acho que não. Eu posso obter mais in-
formação, mas eles lá também são capazes de muitas coisas. Até mais do que
eu. Têm jovens lá, que se tiverem mais oportunidades, elas vão muito longe.
Eu acho que a gente não deveria ter que sair do quilombo pra estudar.
Mas a gente ainda está indo para fora da comunidade para estudar e isso é
ruim. Porque na cidade a gente aprende muita coisa boa, mas também apren-
de muita coisa ruim.
Quando a gente sai, fica muito mais fácil perder os laços. Por exemplo,
se eu chegar na cidade falando uma palavra como “égua, tu já vai?”, se vou
para a cidade e digo isso, eles vão caçoar de mim. Eles dizem que essa palavra
está errada. Quando eu for pra comunidade, eu já vou tirando essa palavra. Já
vou trazendo algumas palavras da cidade.
Nos dias de hoje é muito pouco o resgate da história da minha comu-
nidade. Os jovens quase não se interessam por isso. Se você for ver, poucos
jovens se interessam por isso. A nossa cultura lá é o carimbó. Isso a gente
nunca perde. Mas nós já perdemos muita coisa. Por exemplo, antigamente nas
nossas festas de tradições – mas agora a igreja católica está tirando da gente
– que era confraternizar não somente pela música, mas quando chegava no
final da festa, tocar dentro do carimbó, até bebendo a nossa cerveja e até a
tiborna, a cachaça era coisa normal. A cachaça, ela vem de muito tempo. Os
nossos mastros. Quando a gente dançava, no final, a gente tombava nossos
mastros e dançávamos a noite toda. Isso está acabando. Não porque nós es-
tamos acabando, mas porque as igrejas estão acabando com isso. A igreja está
proibindo a gente de colocar nas festas os nomes dos santos. Agora temos
que, ao invés de dizer, mastro de Nossa Senhora da Conceição, temos que
anunciar “Festa dos Agricultores”. Tinha o mastro das mulheres, agora isso
está se acabando.
O movimento dos quilombolas no Brasil, em nível nacional, está bom,
mas ainda precisa melhorar. Na questão da preservação do meio ambiente,
nós estamos trabalhando muito. Pena que o Estado ainda não está fazendo a
parte dele. Porque não adianta a gente não querer desmatar, mas aí, quando
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a gente pede o trator, eles (o governo) não dão. Então a gente tem que des-
matar, tem que queimar. Aí não temos alternativa. Mas nossas comunidades
ainda têm muita mata bonita e mata boa.
O processo é lento, mas a gente está conseguindo. Acho que as co-
munidades estão melhor que antes.
Eu acho que esta melhora, este avanço, se deve a nós mesmos. Nós
estamos conseguindo por nós mesmos fazer os nossos caminhos. Por exem-
plo, nós mesmos estamos dizendo como é que a gente quer que a nossa co-
munidade comece a trabalhar, quais são os projetos que queremos para nos-
sas comunidades. Não é mais imposto. As pessoas da cidade não estão mais
impondo para gente. Nós é que estamos dizendo como a gente quer. Está
sendo bom por isso. Porque nós estamos começando a ver as coisas da forma
como a gente quer. Realmente eu tenho conversado com algumas pessoas e
me perguntado o que a gente realmente quer, entendeu? Começar a trabalhar
isso nas nossas comunidades. Será que a gente queria realmente a luz?
É difícil para uma pessoa jovem como eu manter as tradições, a cultura,
a raiz. Eu me pergunto: será que nós queremos que esta globalização tecnoló-
gica chegue até nossas comunidades? É muito difícil pra gente, porque muda
muito a nossa cultura, lutar contra essa cultura que estão impondo pra gente.
Eu penso em retornar para minha comunidade. Eu quero. Eu falei que
eu vou me formar, que eu quero dar aula, passar para meus alunos um pouco
do que eu conheci na cidade, um pouco da minha história. Eu acho que seria
muito bom a gente fazer essa análise de como viviam nossos antepassados.
Tudo bem que a gente não tinha energia, a gente não tinha como ver uma te-
levisão. Mas nessa época havia mais solidariedade. Um vizinho colaborava com
o outro, quando chegava na hora da pesca, dividia o peixe. Agora mudou. Hoje
tem como a pessoa vender o peixe. Mudou tanto, que se hoje tu for para comu-
nidade é capaz de não encontrar mais peixe. Porque, como é vendido o peixe
na cidade, não fica nada para a comunidade. Já pensou nossa situação? Até onde
nós chegamos. Quando eu vou de Belém, cansada de comer carne ou frango,
chego na minha comunidade, procuro peixe e não encontro. Eu fico perguntan-
do: cadê meu peixe? Cadê minha galinha caipira? Eu quero comer peixe.
Sempre que tem feriado prolongado eu vou para lá, para minha co-
munidade. Às vezes minha mãe diz que eu chego na casa dela, em Salvaterra,
tomo bênção e vou direto para o quilombo.
Eu vivo com a minha tia que veio pra cá desde criança. Eu prefiro estar
trabalhando diretamente com os quilombos do que ficar na sede da Malungu,
atendendo telefone.
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da nossa beleza. Nenhuma mulher negra é feia. Nós todas somos bonitas.
Temos que correr atrás. Correr atrás, não, buscar nossos direitos. Nós já
corremos muito, quando nossos antepassados foram escravos e fugiam para
os quilombos. Eu acho a gente não deve mais correr. Eu digo assim, que a
gente não deve dizer que no quilombo vivia gente refugiada, não. Nós fomos
lutadores. Quilombolas lutadores, não quilombolas refugiados. Mulheres qui-
lombolas lutadoras e somos remanescentes destas lutas.
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Sou Antônia Lopes dos Santos. Tenho 62 anos, nasci em Goiás e cresci
em Marabá, a segunda cidade mais populosa do Pará depois da capital. Hoje
vivo em Ananindeua. Sou filha de nordestinos: meu pai era do Piauí e minha
mãe do Maranhão, ambos trabalhadores rurais.
Minha mãe, apesar de não saber ler nem escrever, tinha o sonho de
que seus filhos estudassem. Éramos oito irmãos. Vivendo em Marabá estudei
em escola pública, trabalhei em casa de família como doméstica. Quando mi-
nha mãe faleceu, eu trabalhei no comércio e no que desse. Na minha busca
em estudar, fiz um teste na Escola Agrotécnica de Castanhal. Depois vim para
estudar em Belém, na Escola Técnica Federal, cursando Saneamento. Eu tinha
acabado o ginásio.
Comecei a trabalhar em escritório e depois em vários lugares. Mas
sempre perseguindo um lugar mais seguro, pois de certa forma eu era arrimo
de família, porque naquela época eu já tinha perdido minha mãe. Eu buscava
cuidar dos meus irmãos mais novos. Morei na casa de uma amiga da família,
aqui em Belém, até terminar o curso de Saneamento. Quando acabou o cur-
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
so, fiz vestibular no Colégio Moderno para Ciências Contábeis. Neste tempo
eu já trabalhava na Emater, sendo funcionária concursada desta instituição.
De Ciências Contábeis, eu passei no concurso do Banco do Brasil e fui traba-
lhar na sede de Marabá. Trabalhei como escriturária, depois como caixa. No
Banco do Brasil atendi muitos trabalhadores rurais, que era a linha mais forte
do Banco nos anos 80. Vim para Belém em 73, fiquei 10 anos, estudei, me
formei, voltei para Marabá em 83. Voltei outra vez para Belém no final de 88.
Ainda trabalho no Banco do Brasil, sou analista. De 2004 a 2012 coor-
denei um programa de inclusão digital do Banco. Minha função era levar salas
de informática para as camadas mais carentes da população. Eu coordenei
este programa nos estados do Pará e Amapá, que era uma extensão do Pro-
grama Fome Zero, lançado pelo governo Lula. Eu saí em março deste ano,
porque o programa sofreu reformulações.
Não tenho filhos biológicos. Criei meus irmãos e minhas irmãs. Sabe
como é a vida de uma mulher quando não tem família direta. Cabe a nós
assumirmos a família indireta. Eu, pelo fato de ter tido sempre empregos for-
mais, acabei sendo responsável, em parte, pelo sustento da família. Dos oito
irmãos, somente eu e outra, cursamos uma universidade.
Até hoje ajudo. Minha casa é um verdadeiro albergue. É o local onde
meus irmãos vêm se tratar, onde os sobrinhos vêm estudar. Tenho um sobri-
nho que, com apoio da família, foi fazer medicina em Cuba. Muitos sobrinhos
moraram comigo.
As pessoas sempre me dizem que eu não penso em mim. Às vezes eu
acho que isso é verdade. Eu e minha família somos muito grudados. Eu tenho
tido na minha casa todos os filhos de todos os meus irmãos. Tenho a satisfação
de ter bastantes sobrinhos formados, mesmo vindos de uma família de traba-
lhadores rurais analfabetos. Num certo momento da vida, eu e meus irmãos
nos reunimos e pensamos como melhorar o nível de vida da nossa família.
E o instrumento escolhido para mudar essa realidade foi a educação. Com
esse processo tenho sobrinhos médico, advogado, engenheiro, enfermeira,
professores, sociólogos e até um padre. Temos problemas, mas conseguimos
muitos avanços familiares.
Minha atuação nos sindicatos começou quando vim em 88 pra Belém.
Tive contato com os sindicalistas dentro do Banco. Eu me integrei ao movi-
mento de democratização dos bancários em Belém. Já o Movimento Negro e
a questão da negritude, primeiro você deve tomar consciência. Teve momen-
tos em que eu não tive tanta consciência como tenho hoje. A gente sente as
coisas diferentes, mas não sabe explicar bem. Eu lembro que quando eu vivia
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
em Marabá, sempre fui uma boa aluna e tirava boas notas na escola. Certa
vez, fui chamada para trabalhar numa farmácia; o dono não me disse, mas eu
soube depois que não fiquei no posto porque ele achava que não daria certo
uma pessoa negra trabalhando no atendimento. Outra vez, foi quando eu fiz
um concurso na Fundação SESP em Marabá. O concurso era para preencher
apenas uma vaga. O cargo era bem remunerado e tinha uma certa relevância,
porque era do Governo Federal. Por acaso, a primeira colocada fui eu e a
segunda, uma outra pessoa negra. No terceiro lugar ficou uma pessoa branca,
de família tradicional. Cancelaram o concurso para poderem chamar a pessoa
branca. No momento foi complicado, porque como eu fui aprovada, existia
toda uma perspectiva. Eu deixei o emprego pensando que ia assumir o cargo
e acabei ficando desempregada. Um professor meu me chamou a atenção
para isso, inclusive queria mover processo e tal. Daí foi que veio a história de
eu vir para Belém. Depois quando eu tive mais conhecimentos, eu fiz uma
viagem, tive contato com muitas pessoas negras do movimento. Estive no Rio
de Janeiro, em Brasília. E aí, assim, eu comecei a notar muita diferença entre
você ser negra nestes lugares e não ser. Eu entendi que mesmo você tendo di-
nheiro, você seria discriminado. Naquela época dos anos 80 era muito difícil.
Como eu sempre gostei de viajar, comecei a me dar mais conta desta realida-
de. Eu descobri a dimensão de um mundo, entre ser branco e ser negro, que
mesmo tendo dinheiro, nós negros não temos o poder real.
Pensando na origem da minha família, eu me considero uma mulher
negra de êxito, com certeza. Eu agradeço a Deus porque eu sei que mesmo
com tanto sofrimento, podemos sim nos considerar uma família de sucesso.
Eu vejo que a nova camada da família não tem mais aquela junção como nós
irmãos, mas eles se reúnem para alguma coisa. Talvez não como militantes,
buscando direitos para os outros, mas eles fazem muitas coisas juntos. Sou
muito família. Olhando para trás eu me sinto, de certa forma, vitoriosa. Fiz
dois cursos universitários, fui professora, passei em vários concursos públicos,
fiz uma pós- graduação, assumi cargos dentro do Banco do Brasil, onde tra-
balho. Às vezes a gente somente fala dos aspectos negativos, Mas veja só: eu,
uma mulher negra, ainda sindicalista, quando eu fui da direção do sindicato,
coordenei uma pesquisa para identificar os cargos dos negros nos bancos,
aqui na região metropolitana de Belém. Identificamos que nos bancos priva-
dos, praticamente os negros não entram. Você pode olhar que dificilmente
verá negros nestes bancos. No Banco do Brasil, Caixa, Banco da Amazônia
e Banco do Estado do Pará, que são instituições públicas, nós comprovamos
que as pessoas entram, mas que elas não crescem. Mesmo entrando por con-
curso, dificilmente uma pessoa negra galga cargos nestas empresas. Na época,
para fazer a pesquisa, nossos entrevistadores encontram barreiras fortíssimas.
63
Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
Os diretores acharam um absurdo tratar sobre o tema nos bancos. São coisas
que a gente se depara. A sociedade ainda reserva os melhores cargos para os
homens brancos, depois para as mulheres brancas, os homens negros e, no
final da fila, estamos nós, mulheres negras.
Atuar no sindicato me deu a oportunidade de ter contato com os
movimentos sociais, que antes eu não tinha. Porque quando a gente luta pela
sobrevivência, praticamente não tem tempo para estas coisas. Foi através do
sindicato que conheci o movimento de mulheres na época de Beijin. Fui di-
rigente do Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense. Fui dirigente da Ar-
ticulação de Mulheres Brasileiras por muito tempo, representando a região
norte. E neste espaço, incluímos a discussão das mulheres negras. Fui muito
feliz em participar do movimento de mulheres. Foi uma luta difícil, mas com
muitas conquistas.
Pautar a questão da mulher negra nos espaços onde eu atuo é um
processo muito difícil, porque quase todos os movimentos têm, nos seus es-
tatutos, a questão da diversidade. Tem homossexual, tem negro. Então o que
acontece? Você pauta isso, discute isso, mas na hora da prática sempre tem
dificuldades. No meu caso, eu sou mulher e sou negra, então eu estou pre-
enchendo uma cota de mulher e de negro, seja no partido ou no sindicato.
Muitas vezes a pessoa se sente muito só, porque eles pensam que basta
colocar você lá que está tudo resolvido. Falta realmente um investimento
nesta questão.
Neste ano de 2012 eu concorri a cargo de vereadora pelo Partido dos
Trabalhadores. Foi a terceira vez que concorri. A primeira vez foi em Marabá
em 1988. Concorri ao cargo de vereadora. A segunda vez foi em 2008, aqui
em Belém, no mesmo cargo. Muitas vezes dizem que as mulheres não que-
rem se candidatar. E a gente se pergunta, mas por quê? O que acontece é que
quando uma mulher vai para uma candidatura, ela não tem retaguarda. Ela
tem que fazer tudo. Quando é um candidato homem, nós mulheres prepara-
mos todos os espaços para eles. Quando somos nós mulheres, nós não temos
espaços preparados por eles.
Minha candidatura teve uma grande aceitação, mas como eu falei, não
teve estrutura nenhuma. Têm candidatos que inauguraram vários comitês.
Aluguei uma casa de apoio, uma casa pequena onde eu coloquei minhas coi-
sas. Contei com a ajuda da família. Tive também grandes companheiros me
ajudando. Mas realmente não foi nada fácil.
O que representa a candidatura de uma mulher negra? Pensa só: Be-
lém já tem um volume muito grande de habitantes. Cerca de cinquenta e qua-
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
CRIOLA
Rio de Janeiro
Escolhemos estas três mulheres porque elas são exemplares. Cada uma
delas tem sido nossa parceira de trabalho ao longo dos vinte anos de história de
nossa organização, emprestando sua força, sua energia, sua visão de futuro para
que possamos, juntas, seguir lutando as lutas que nossas antepassadas nos dei-
xaram como herança.
Dona Zica, Fézinha e Jéssica são parte de uma rede de mulheres negras
de diferentes histórias e inserções. Atuam no estado do Rio de Janeiro para
romper as barreiras que o racismo coloca na vida das mulheres negras e de toda
a população negra. Elas, junto com tantas outras que caminham conosco, nos
ensinam que o futuro pode ser melhor, como já tem sido, mas somente a partir
da força e da capacidade de superação que carregamos conosco.
A elas e a todas nossas parceiras, nosso agradecimento. Axé!
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
“Eu acredito que a luta vai ser muito grande, mas tem que acreditar que
um dia vai ser melhor.”
Meu nome é Anazir Maria de Oliveira, mas sou conhecida por Zica.
Tenho 79 anos, moro em Vila Aliança, aqui em Bangu, Rio de Janeiro, e tra-
balho no Centro Comunitário de Cidadania, que é um setor do Estado, da
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Olha só: eu nasci em Ma-
nhomirim, Minas Gerais, fica bem na Zona da Mata, bem distante daqui, onde
vivi até os quinze anos. Vim para o Rio de Janeiro com quinze anos de idade e
minha mãe trabalhava no campo e depois na cidade, de trabalhadora domés-
tica. Eu também fui trabalhadora doméstica desde os nove anos de idade na
minha cidade e dei continuidade aqui no Rio de Janeiro. Aos dezessete anos
me casei. Tenho seis filhos, tenho vinte netos e tenho vinte e dois bisnetos.
Eu acho que não só enfrentei o racismo, como a gente enfrenta até
hoje. Ele acontece até de forma sutil, mas continua acontecendo. Na minha
infância não deu nem para, por falta de informação e tudo mais, perceber
naquele momento que era racismo. Foi na forma da continuidade dos meus
estudos do posto fundamental, que na época era o primário, e na minha ci-
dade só tinha duas escolas, que era o ginásio na época e era da igreja. Era um
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
setor dos meninos e outro setor das meninas. E eu não tive a oportunidade
de estudar, porque neste setor não aceitavam negros. Na cidade, todas nós
só tínhamos uma menina negra na escola normal, porque era filha de negros
– vamos dizer – bem-sucedidos. Então, este foi o primeiro processo de ra-
cismo pelo qual eu vivi, mas eu não entendia, não deu pra compreender. No
decorrer do tempo, a partir do momento em que fui tendo uma noção maior,
uma visão maior dessa relação, foi que pude entender o primeiro processo de
racismo pelo qual eu passei.
Quando olho para minha vida hoje, vejo que, em relação ao racismo,
não mudou muito. Mudaram algumas coisas a partir das lutas que se vêm
tendo contra o racismo, a partir de instituições, de grupos raciais que vêm lu-
tando contra esse preconceito. Criola é um desses exemplos. Eu vejo que ele
hoje acontece de uma forma às vezes oculta, às vezes opressiva, mas ele está
aí. Ele está aí na relação da educação, ele esta aí na relação da saúde, ele esta aí
na relação da moradia, porque a gente percebe onde moram os negros, onde
está a população mais pobre, mais desrespeitada pelo poder público. Onde
estão? Nas favelas, nas comunidades mais carentes. Quais são as assistências
que essas famílias têm? A mínima possível. Aí vem a questão da violência, o
negro está inserido, ele é o causador. Então, vem a questão da saúde, nós te-
mos tantas mulheres que morrem por falta de atendimento médico, por falta
de toda uma assistência que dê a ela a possibilidade de manter a sua saúde.
Então, eu vejo as cotas, a questão escolar, as cotas hoje são motivo de discus-
são, tem os prós e tem os contras. E você vê a questão social, a luta que se
fez e a luta que se continua tendo para que o negro tenha inserção ao curso
superior, ao passo que esse espaço deveria ser dele por direito e não por luta.
Outra coisa que eu vejo, em relação ao serviço doméstico, por conta
da dificuldade. Hoje a gente vê várias categorias profissionais lutando contra
a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Nós, trabalhadoras domésticas –
eu venho da origem de trabalhadora doméstica – lutando para entrar na CLT.
Não temos os direitos na lei como deveríamos ter. Fazendo uma avaliação:
quem são os patrões? Quem formula as leis? São eles que formulam as leis.
Eu lembro quando atuava no sindicato, era presidente do sindicato. Foi um
momento muito forte de luta pra gente. Não tínhamos direito nenhum, era
só a carteira assinada e a Previdência. Nós estávamos lutando por conquis-
tas maiores para a categoria, na época da Constituinte. Depois do nosso 5º
Congresso, elaboramos um projeto de lei e fiquei indicada para percorrer,
para acompanhar a tramitação desse projeto em Brasília. E nós íamos assim,
de gabinete em gabinete. Teve um deputado federal daqui do Rio de Janeiro,
Amaral Neto, nós chegamos ao gabinete dele e ele disse: “vejam vocês se
eu vou votar a favor do descanso semanal pra empregada doméstica. Se eu
70
Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Minha vida mudou muito. No contexto familiar mudou muito pelo se-
guinte: como estou dizendo pra você, eu tenho seis filhos, tenho vinte netos e
vinte e dois bisnetos. A educação dos meus filhos foi difícil. Mas no momento
que a educação era de qualidade, a educação pública era de qualidade, por
exemplo, eu tenho dois filhos mais velhos que foram funcionários do BANERJ
por vinte e poucos anos e entraram para o banco somente com o ginásio.
Hoje é uma dificuldade muito grande passar pelos concursos. Tive a oportu-
nidade de ter muitos cursos profissionalizantes, foi à época em que o SESI e
o SENAI eram considerados a faculdade do pobre. Então meus filhos foram
capacitados através do SESI, pelo SENAI, até pela LBA. Foi um momento que
eles não tinham tempo vago, começaram a trabalhar muito cedo. Eu tenho
um filho de cinquenta e quatro anos que se aposentou agora. Mas, já com os
meus netos, passei por algumas outras dificuldades. O ensino público foi mu-
dando e toda essa forma de capacitação foi mudando. É difícil. Se você colocar
hoje um menino no SENAI vai ter que ter um bom salário pra poder pagar,
para que eles estudem no SENAI. Hoje para os meus bisnetos, eu acredito
que seja ainda mais difícil. Se não mudar esse sistema, esse processo que nós
temos hoje, educacional, esse processo de saúde, todo esse processo que nós
temos hoje de investimento na possibilidade das melhorias de vida, eu acho
que os meus bisnetos vão passar pior que os meus netos.
Na minha comunidade o sistema é muito brutal. E ele faz com que as
pessoas muitas vezes não enxerguem a realidade da vida. Por exemplo: eu
moro em uma comunidade que uma parte é considerada bairro, urbanizada.
Ela é originada da remoção de favelas, eu sou uma pessoa que fui removida
duas vezes de favela. Ao lado, só atravessando a rua, tem um espaço consi-
derado favela. Onde eu moro é Vila Aliança e o outro espaço é Nova Aliança,
onde começou com uma ocupação. Ocupação até pelos nossos próprios fi-
lhos: eles foram casando, foram construindo. É um espaço verde, um espaço
até bonito, mas por falta de condições de moradia e também por condições
de não pagamento das casas das quais as pessoas foram removidas, com o
compromisso grande de despesas – que enquanto na favela ele não tinha –,
foram também ocupando esse espaço, vendendo a sua casa e ocupando esse
espaço. Então, transformou-se em uma comunidade, comunidade de Nova
Aliança. O que acontece é que existe um preconceito imenso de quem mora
na Vila Aliança contra Nova Aliança, porque é um espaço em que não há ur-
banização, entrou no programa Favela-bairro da prefeitura, mas fizeram uma
obra que não correspondeu à realidade de bairro. E é um espaço também
onde a questão que nós temos hoje, de não produzir a marginalidade, eu
quero dizer outro termo, é onde está mais explicito certo, só que as pessoas
não percebem que as pessoas que atuam ali dentro, dentro dessa realidade,
72
Mulheres Negras na Primeira Pessoa
recido é um homem vencedor. Porque, seja ele qual for, depois que a gente
começa a adquirir esclarecimento, analisa “isso pra mim não é bom, eu tenho
que lutar por isso, por aquilo”.
Eu acredito que a luta vai ser muito grande, mas tem que acreditar
que um dia vai ser melhor.
Uma menina negra nascendo agora está nascendo em um momen-
to muito difícil. Mas a mensagem que eu deixaria para ela é o seguinte: no
momento em que for crescendo e olhando em torno, perceba que é um ser
capaz, é um ser que tem inteligência, é um ser que tem condições e direito
de vida, é um ser que tem o direito de ser uma cidadã como qualquer outra
mulher no mundo. Que cresça dentro de uma cultura, de uma informação,
de que ela é capaz, que a cor da pele não é o que importa. O que importa é
o que eu sou, o que eu faço e o que eu pretendo fazer.
74
Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Meu nome é Maria da Fé da Silva Viana, tenho 67 anos e tenho dois filhos.
Sou aposentada do Estado e trabalho comissionada na Prefeitura de São João do
Meriti, na Superintendência de Política de Promoção da Igualdade Racial.
Nasci em Carangola, Minas Gerais, onde fiquei até os oito anos e estu-
dei até a segunda série. Já começando a falar sobre racismo, eu tenho uma dor
com Carangola. Porque eu tentava sempre ser a melhor aluna da classe, já eu
era muito levada e todo mundo fazia queixa de mim pra minha mãe. Então em
alguma coisa eu tinha que superar, e as professoras, no final do ano, sempre
me premiavam, me festejavam muito e tal. Mas diziam sempre assim: espero
que você, quando crescer, seja tão boa lavadeira quanto sua mãe é e passe
roupa tão bem quanto ela. Ou, seja cozinheira como suas tias. E eu ficava feliz
com aquilo, achava que aquilo era maravilhoso.
Depois que eu cresci e entendi as coisas, pensei: porque que elas não
diziam que eu podia ser uma boa professora como elas? Mas não, eu tinha que
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
seguir a trilha, tinha que ser lavadeira ou cozinheira. Então essa é a questão
racial que eu trago de Carangola.
E tem também a questão da coroação de Nossa Senhora. Porque a
minha mãe era católica – nasci em um lar ecumênico, meu pai era evangélico,
presbiteriano, e minha mãe católica. Só que quando minha mãe casou com
meu pai, ela perdeu o direito de frequentar a igreja, ela foi excomungada, não
pôde mais participar da comunhão. Mas a minha avó, que era uma das beatas
da cidade, conseguiu o direito de nos batizar, de fazer a primeira comunhão e
todos os direitos da Igreja. Eu era louca pra coroar Nossa Senhora, não faltava
uma coroação, achava a coisa mais linda. Mas preto não podia coroar, então,
não podia nem ser anjo. Menina preta não podia nada, nem anjo, nem virgem,
nem a que coroava. E aí eu tinha muita tristeza por isso. Só fui saber também
depois de grande. As moças negras de Carangola não podiam ser Filhas de
Maria, elas tinham que ser da irmandade de Santa Efigênia; as brancas eram
Filhas de Maria ou da Irmandade de Santa Terezinha. Todas essas coisas eu
só fui saber depois que eu conheci a questão racial, até então não conhecia;
sabia, mas não conhecia o fundamento dessas coisas.
Já morando no Rio de Janeiro, eu fiz terceira e a quarta séries com
a Dona Nena, que era uma mulher sem nenhuma formação. Mas como não
tinha outra escola, ela sabia ler e escrever muito bem, então ensinava e nos
seriava. Quando terminei a quarta série, com dez anos, por conta de ser mui-
to, muito levada – ao contrário do meu irmão, que era um santo, era o filho
modelo; e eu era a pimenta – meus pais não me deixaram estudar. Diziam
que se me colocassem num colégio lá em São João, eu nem voltava mais pra
casa. Então eu fiquei sem estudar até depois de adulta. Aos doze anos o meu
pai me colocou para aprender bordado, fiz um curso de bordado, ponto de
cruz, bordei muito enxoval. Para a maioria das crianças que nasceram aqui,
nesse lugar, eu fiz e bordei os enxovais. Hoje não sei mais dar um ponto, mas
eu fiz muita coisa. No dia em que eu completei quinze anos, o meu presente
foi ser matriculada num curso de corte e costura. Eu comecei a costurar pra
fora antes dos dezesseis anos. Comecei a costurar em agosto e em dezembro
eu já estava costurando, fazendo roupa pra todo mundo aqui. Mas não deu
certo, a minha profissão como costureira não funcionou. E eu fui aprendendo,
na marra, a fazer e confeitar bolo. Afinal, eu sempre gostei muito de festa.
Comecei a fazer bolo e salgado para fora e pegava para fazer a festa toda: a
roupa, o salgado, o bolo, o doce. Isso significava que, de alguma coisa, eu não
dava conta. Então era briga, o povo vinha aqui na porta reclamar. E assim foi
durante bastante tempo. Trabalhei muitos anos com isso e nos salgados, nos
doces e no bolo. Eu me saía muito bem.
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
mim, eu caí fora da igreja e fui pro mundão como dizem os crentes. Só que
não me dei bem também lá, lá também não era o meu lugar e aí eu voltei pra
igreja de dentro da escola de samba. Teve um incidente quando fui buscar
minha fantasia na escola de samba, uma coisa muito triste. E eu, já não tendo
mais por onde apelar, comecei a falar com Deus e prometi, se ele me tirasse
daquela situação, eu voltaria para a igreja no dia seguinte. Então me reconci-
liei com a minha igreja e depois disso foram acontecendo todas estas outras
coisas que eu já mencionei.
Meu marido falava na época que não queria filho dele na igreja, que
homem de igreja é tudo mariquinha, tudo bobo. Mas os meninos foram e aí
começaram a frequentar.
Eu fui escolhida para ser conselheira dos juvenis e os meninos che-
garam até a presidência da federação, da confederação de juvenis. E foi a
partir daí que eles pegaram esse pique de estudar, de se formar, de ir para a
universidade e de participar das mudanças do País. Participamos das Diretas
Já e de todas as candidaturas do Lula. E no final o Lula acabou sendo padrinho
de formatura do meu filho mais velho.
Hoje sou uma teóloga, ganhei uma bolsa integral para fazer Teologia
no Instituto Benett. Porque, pelo meu trabalho de combate ao racismo, a
igreja metodista tem uma pastoral e fui escolhida para ser coordenadora na-
cional. Por sete anos coordenei – no Brasil todo – a pastoral de combate ao
racismo e nessa função eu fui convidada pela Presidência da Republica para
um encontro “A contribuição das Igrejas para os Direitos Humanos”. Foram
apresentados trabalhos de várias igrejas e o meu foi o trabalho vencedor e
fiquei com o meu nome conhecido e no ano 2000 eu já tinha me lançado
candidata a vereadora, já estava bem conhecida na cidade. E depois emendou
com o conhecimento no Brasil todo, porque foi divulgado na mídia e então
por todas essas coisas eu acho que vale a pena a vida.
Posso dizer que eu sou uma mulher realizada. Porque meus filhos que
eram a minha maior preocupação, graças a Deus, o mais velho é engenheiro
agrônomo, trabalha na Prefeitura do Rio, casou também com uma mulher
agrônoma, tem uma filha maravilhosa. Esse mais novo eu não pude segurar na
faculdade como eu segurei o mais velho, porque eu ganhava salário mínimo.
Mas ele foi para Policia Militar e foi para escola de formação de oficiais e com
trinta e dois anos já era capitão. Eu creio que isso é uma grande conquista
minha, eles não tiveram o apoio do pai.
As minhas netas que estão uma com dezoito e a outra com quinze anos,
inteligentes estão se encaminhando para a vida. E têm o maior orgulho de mim.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Jéssica de Castro
Magé / RJ
“Não é isso que eu quero, eu não posso aceitar isso do jeito que vivo,
como sou descartada como se eu fosse um objeto.”
Meu nome é Jéssica de Castro, tenho 21 anos, sou de Magé, sou estu-
dante e atualmente não trabalho formalmente.
Eu nasci em Magé, que fica localizado na Baixada Fluminense, venho
de uma família muito humilde que vivia abaixo da linha da extrema pobreza.
Passei muitas dificuldades ao longo da minha vida toda, principalmente na mi-
nha infância, porque a minha mãe era mãe solteira, com três filhos e tinha que
deixar a gente em casa para poder trabalhar. Ela não tinha emprego formal,
era catadora, trabalhava catando materiais recicláveis no lixão de Bongaba, no
lixão de Duque de Caxias e foi assim que ela conseguiu nos sustentar. Muitas
vezes comemos coisas que eram descartadas por supermercados, que eram
inúteis para eles. Minha mãe levava para casa e a gente reaproveitava, então
foi muito difícil.
Eu enfrentei uma dificuldade grande com a família do meu pai, que são
descendentes de portugueses e não me aceitavam por eu ser a mais escura
da família. Sempre sofri muito preconceito, porque na família do meu pai era
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
todo mundo branco de olhos azuis e eu era a única que era o contrário deles,
eu vinha no sentido contrário do que eles eram. E por a minha mãe ser negra,
ser afrodescendente, sofreu muito preconceito porque, além de sofrer por
parte da família, sofria diariamente no trabalho, na rua. Com a gente não foi
diferente, comigo e com meus irmãos.
Desde muito cedo a gente vem enfrentando e combatendo este pre-
conceito que a gente sofria. Desde que a gente chegava na escola éramos os
menos atendidos, porque o coleguinha era branco e dele a professora gostava
mais, agradava mais, dava beijinho nele e não dava na gente, nem em mim,
nem em meus irmãos. Até o momento em que a gente se tornou adolescente
e começou a buscar por nossos interesses, a estudar, a trabalhar.
Tivemos que trabalhar muito cedo para poder ajudar a minha mãe,
porque era ela sozinha em casa. Vivíamos em uma casa que era horrível, que
não tinha porta, não tinha janela e quando chovia molhava tudo. Quando dava
enchente nós ficávamos desabrigados – e todo o ano dava enchente. Em 1977
a nossa casa pegou fogo e passamos por mais dificuldades ainda, porque não
tínhamos para onde ir e o Estado, que deveria ter compromisso conosco,
não nos protegeu, não nos ajudou. Então fomos sozinhos, com a cara e com
a coragem, e novamente minha mãe começa tudo de novo, pois perdemos o
que tínhamos conquistado.
Diariamente a gente vem lutando contra o preconceito, ouvindo as
pessoas dizerem para minha mãe: “ah, a sua filha vai ser prostituta, seu filho
vai ser traficante, porque você não tem condições de dar uma boa educação
para eles e vão ser tudo o que não presta”. Isso porque as pessoas têm esse
pensamento equivocado de, por sermos negros, afrodescendentes, sermos
pobres, da classe mais desfavorecida, que vamos sempre dar para o lado er-
rado, que vamos sempre ao contrário, que não podemos ser doutores, que
não podemos ser nada de bom na vida. E a gente sempre enfrentou isso e
sempre lutou contra isso.
Quando eu olho lá pra trás, eu digo, hoje não temos ainda uma vida
maravilhosa, ainda estamos lutando muito para conquistar muitos direitos que
ainda não são garantidos, que só estão no papel e que não saem do papel
efetivamente. Como estávamos muito atrasados, conseguimos dar um passo,
mas ainda faltam muitos outros. Ainda temos que andar muito para gente che-
gar efetivamente no lugar que nós queremos e sermos reconhecidos como
protagonistas de uma história, reconhecidos como cidadãos de direitos. Hoje
ainda temos dificuldades, mas com muitas lutas, de muitas pessoas, de muitos
militantes, de muita gente, já conseguimos avançar um pouco.
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Antes era muito pior porque eu não conhecia meus direitos. Era difícil
brigar por eles e conseguir a chegar em certos espaços que hoje chego.
Eu comecei a lutar muito cedo, militando. Quando tinha quinze anos
e conheci o Criola, eu olhei para minha vida toda e disse: “não é isso que eu
quero, eu não posso aceitar isso do jeito que vivo, como sou descartada como
se eu fosse um objeto”, por eu ser de uma classe social mais desfavorecida,
por eu ser afrodescendente. A partir do momento que eu enxerguei isso, fui
para o Criola e aprendi mais sobre a minha cultura, mais sobre a minha raça,
lá que fui perceber que o que eu vivia não era vida, que não era o correto para
um cidadão viver. E que eu tinha que brigar para mudar.
Eu não aceito ser humilhada, que nós sejamos – por causa da cor, raça
ou por religião –, inferiores a ninguém. Acho que nós somos iguais. Diferen-
tes sim, na forma de pensar, de agir, mas, enquanto cidadãos e cidadãs somos
iguais. Comecei a me questionar, também, porque eu estava naquela situação,
porque o meu irmão não conseguia um emprego bom, porque muitas pessoas
da minha família também não. Se vamos numa loja procurar emprego, eles
só aceitam nosso currículo se levarmos foto. Então significa que a foto vai
mostrar a estética, e se você não tiver uma cor que eles acham que é ideal,
você não vai ter emprego e aí é que começamos a ver o racismo. Antes eu
não percebia isso. Depois que comecei a me abrir para aprender mais fui
perceber que eu sofria racismo em vários lugares, em diferentes momentos
da minha vida, independente de ser com a família ou não, na escola, na rua,
ou no trabalho, e comecei a me questionar. Tem que ter uma forma de lutar e
de combater esse racismo, e foi assim que começou. Hoje eu considero que a
minha vida melhorou um pouco, quero que melhore muito mais, não só para
mim, porque quando eu brigo, eu luto, eu vou para rua, eu não luto somente
para mim eu luto para todos. Para que nós, cidadãos afrodescendentes, seja-
mos valorizados pelo que nós somos, independentes da nossa cor. E continuo
lutando porque eu acho que temos muito que avançar ainda no Brasil.
As mulheres negras do Brasil inteiro sofrem, porque na maioria das
vezes são pobres, não têm acesso a uma educação de qualidade, moram em
zonas periféricas, sem cultura, sem saúde, sem educação, sem segurança, sem
nenhuma política que é garantida pela lei, por nossa Constituição. Então as
mulheres negras vivem num círculo vicioso, porque nascem em uma situação
de extrema pobreza e muitas não conseguem sair dessa situação. Por falta de
uma saúde de qualidade é que vemos os grandes índices de mulheres negras
que morrem com trinta anos de idade, no período fértil da vida. São as mulhe-
res negras as que mais criam filhos sem pais, porque hoje a gente vê o genocí-
dio da juventude negra, os jovens e homens negros são os que mais morrem
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
no nosso país. E com esse agravo dos jovens negros pobres morrerem, as
mulheres ficam viúvas, ficam mães solteiras muito cedo, porque perdem o
companheiro em decorrência da violência, vem aquele agravo dela ter que
criar os filhos sozinha, ter que trabalhar e ser mãe e pai ao mesmo tempo.
Algumas coisas já mudaram. Hoje nós temos leis que nos amparam,
mas não tem, infelizmente, a garantia efetiva dessas leis, porque muitas vezes
elas não funcionam, muitas vezes elas não saem do papel. Quando conhe-
cemos nossos direitos, quando lutamos para que todos conheçam os seus
direitos, quando vamos para as comunidades, para as escolas, para trabalhar
com as pessoas carentes, para as pessoas que são de baixa renda, para os
afrodescendentes que moram nas periferias, nós queremos levar para elas o
conhecimento dos seus direitos, para que elas possam brigar por eles, já que
estão na lei, já que nós lutamos para conseguir colocá-los na lei.
Mas a gente avançou na questão de chegar em vários espaços que a
gente não conseguia, de chegar, brigando e lutando por direitos. Porque hoje
a gente tem um presidente de um país, negro, tem presidentes de empresas,
mas é com muita luta, porque nenhum negro conseguiu espaço de poder do
nada. Eu não conheço nenhum negro que tenha ganhado este espaço de mão
beijada. Ele teve que lutar muito, diferentemente se ele fosse um homem
branco talvez, ele não teria esse fardo todo, o trabalho dele seria mais leve.
Mas por as pessoas olharem para a gente e nos acharem inferiores, pela nossa
cor, pela nossa ascendência, então a gente acaba tendo que fazer o dobro do
que outra pessoa faria. A gente vem brigando com isso, junto com várias leis,
com a lei Maria da Penha, que dá amparo à mulher. Hoje a mulher tem direi-
tos reconhecidos na lei, mas os índices de mortalidade, de violência contra a
mulher ainda são altos com relação às mulheres negras, com as mulheres mais
pobres. Então a gente avançou na criação dessas leis, na criação dos centros
de referencias, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, a gente avan-
çou neste sentido.
Pessoalmente eu ainda não avancei tanto assim, eu adquiri muito co-
nhecimento ao longo desse tempo, mas quero adquirir muito mais ainda,
porque temos que aprender cada dia mais. Eu comecei a universidade faz
pouco tempo e as pessoas ainda se assustam por eu ter terminado o ensino
médio. O pai de uma colega falou admirado: “Nossa! Você conseguiu termi-
nar o ensino médio!” Quando ele disse isso, na hora eu percebi o racismo
saindo de dentro dele, porque a intenção dele era dizer: “você é pobre, sua
mãe é catadora de lixo, você sem pai, foi criada só com a sua mãe e com seus
irmãos, sua mãe negra, favelada”, foi isso tudo que ele queria me dizer. Ele
não usou essas palavras, mas eu entendi muito bem. E eu respondi: “consegui
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Eu diria para uma menina negra que está nascendo agora que estou
lutando muito, que eu vou continuar lutando e eu espero que ela também lute
para que de fato um dia nós sejamos reconhecidos como cidadãos de direitos,
como cidadãos que nós merecemos. Então eu diria a ela que lute sempre e
que tenha muita esperança de dias melhores.
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Meu nome é Edilara Lima Pacheco, tenho 57 anos, mas sou conhecida
como Lara Dee, meu primeiro nome invertido. O nome Lara Dee foi criado
pela cantora Edith Veiga, logo que comecei a dançar no Chacrinha, pois meu
primeiro nome era muito pesado para o mundo artístico. Nasci em Itabuna,
Bahia, e cedo comecei a perceber que eu era muito pobre e minha mãe in-
sistia em mostrar que os pobres não tinham direito a nada. Aos nove anos
nós morávamos em um cortiço em Itabuna e meu pai era muito ausente. Eu
lembro que ele tinha de duas a três mulheres e aparecia em casa uma vez por
semana. Minha mãe sempre me disse que “era um homem cheio de nós pelas
costas”, até hoje não sei o que isso significa, mas reconheço essa situação em
pessoas muito próximas de mim. Já naquela época eu ficava irritada ao vê-la
aceitar as idas e vindas do marido. Minha mãe acolhia, lavava e cozinhava para
o homem que vivia mais na casa de outras que em sua própria casa.
Nesta época minha mãe passou por uma cirurgia de vesícula urgente e
não tínhamos ninguém que cuidasse dela. Então, aos nove anos, eu fui para o
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hospital cuidar dela e me disseram que eu não podia entrar porque era proi-
bida a entrada de crianças. Arrumei uma confusão tão grande neste hospital
público em Itabuna que não só me deixaram cuidar dela, como me deixaram
cuidar também dos outros pacientes e acabei organizando a ala que ela estava
internada. Hoje sei que minha liderança comunitária e busca por justiça social
começou ali.
Aos 11 anos já estava claro para mim que eu não toleraria aquela vida
de miséria, de humilhações e de ver a submissão de minha mãe diante das
adversidades da vida. Mamãe era branca, meu pai era negro e eu sou a mis-
tura dos dois, a “famosa mulata”. Então convenci minha mãe que deveríamos
vir embora para São Paulo. Após muitos enfrentamentos e lutas para que
ela vencesse seus medos, consegui convencê-la a vender o único bem que
tínhamos: uma velha máquina de costura, e viemos rumo a São Paulo no velho
pau de arara, para nos hospedarmos na casa de uma amiga que havia enviado
uma carta. Mas como não sabíamos ler, nem eu e nem minha mãe, carreguei
durante toda a viagem, em minhas mãos, o envelope da carta, mostrando para
todos o endereço para onde iríamos em São Paulo. Quando chegamos aqui,
após quatro dias de viagem, depois de muito sol e muita chuva, é claro que
este papel havia se desmantelado. Por este motivo acabamos ficando por uma
semana dormindo na rua, sem dinheiro, passando frio e fome e eu procuran-
do lembrar qual era o endereço.
Após uma semana, consegui chegar a Santo André, na casa da Dona
Antônia, e então eu tive a minha primeira grande experiência de cidade gran-
de, ver tantas lâmpadas e luzes. Aí descobri que o local em que estávamos
era pior que o cortiço que vivia em Itabuna. E passei a me perguntar, será que
estava errada, como minha mãe dizia? Naquele momento coloquei as mãos
pro céu e pensei: é aqui que eu vou viver e é aqui que vou vencer. E eu só
tinha 12 anos!
Dona Antônia arrumou emprego para minha mãe e para mim, de
empregadas domésticas (ela, de assistente de cozinha e eu, como babá), na
casa de uma francesa chamada “Madame Bruel”, casada com um executivo
da multinacional francesa Rhodia. A madame era socialista e cooperativista
e, através dela, fui para uma escola pública me alfabetizar. Ela também me
inscreveu num concurso que elegeria a mais bela empregada doméstica do
Brasil, e ganhei o concurso. A partir daí ganhei fama e me tornei dançarina
do programa do Chacrinha e, anos depois, comecei a dançar no Oba Oba
do Sargentelli e em todos os programas de TV que havia em São Paulo. O
detalhe interessante é que, na época, eu não sabia sambar e nunca tinha visto
um tamborim.
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que todos os dias pela manhã eram acordados com um mantra: “estudar para
vencer”. Deu tão certo que hoje meus filhos são excelentes seres humanos,
cursaram excelentes faculdades e são pessoas e profissionais bem sucedidos.
Sair da miséria era, para mim, uma situação definitiva. E minha angús-
tia pela falta de autoestima da minha mãe e das mulheres que viviam no meu
entorno era tão grande que, definitivamente, autoestima acabou sendo sem-
pre o primeiro item e a primeira preocupação no meu trabalho. Com toda
minha história e com as experiências que fui adquirindo na vida, descobri que
a beleza pode ser um grande instrumento de empoderamento e transforma-
ção das pessoas.
Então resolvi investir em cursos de cabeleireiro, manicure e maquia-
gem. Em 2002, convenci um amigo – dono de uma revista sobre cosméticos
–, a me dar duas páginas para buscar patrocinadores. Em seguida fui à Escola
de Samba Rosas de Ouro, para divulgar a notícia de que havia um curso de
beleza gratuito. A ideia era transformar as quadras da escola de samba, geral-
mente ocupadas apenas durante o carnaval, em espaços com um papel ativo
junto às comunidades locais e montar lá uma escola, em parceria com empre-
sas de cosméticos que fizessem os diversos produtos que seriam utilizados
ao longo da formação das profissionais. Nasceu aí a Beleza & Cidadania, que
profissionaliza mulheres nas regiões pobres de São Paulo e que mais tarde
se tornou uma ONG. Em geral, quem procura o curso são mulheres negras,
desempregadas e com a autoestima arrastando no chão. Eu não quero ensinar
a elas apenas a trabalhar, quero incutir confiança, para que elas sejam donas
de sua própria vida. E o curso tem atraído muitas mulheres para dentro das
escolas de samba, minhas salas de aula preferidas.
Em 10 anos capacitamos 39 mil pessoas, sendo 95% de mulheres e
5% de homens. E, deste universo capacitado por nós, do Instituto Beleza &
Cidadania, acreditamos que 70% estão incluídas no mercado de trabalho, de
várias formas, desde a empreendedora individual, as que montaram seus pró-
prios negócios e as que foram trabalhar em empresas. Temos vários cases de
sucesso. Neste momento estamos lançando o Portal Beleza & Cidadania, que
tem como visão e missão gerar um impacto muito maior por este mundão a
fora, capacitando mulheres via web, para que mais pessoas possam ter acesso
às nossas metodologias de resgate humano, autoestima e profissionalização. É
uma ferramenta que, ao melhorar a vida de mulheres e homens, possa tam-
bém proporcionar melhoria da qualidade de vida de diversas comunidades.
Em 2007 me tornei uma integrante da Ashoka, sou uma fellow, e tam-
bém sou integrante do comitê curador do Programa Acolher, da Natura, o
que me orgulha profundamente.
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Meu nome é Maria Aparecida da Silva Trajano, mas sou mais conhe-
cida como Tia Cida, porque trabalhei a vida toda com serviço social em uma
paróquia de São Mateus e também em creche locais. Foi nesses lugares que
recebi o apelido carinhoso, daqueles com quem eu convivia e ajudava. Nasci
no dia 26 de novembro de 1940, mas no meu registro consta 31 de maio de
1941, em São Paulo, num ensaio na quadra da Escola de Samba Vai-Vai. Quase
não deu tempo de chegar ao hospital, acho que é por isso que eu gosto tanto
de samba. Tenho três filhos: o Gil, com 47 anos, o Marcelo, com 42 e a Car-
mem Silvia, com 48; oito netos e dois bisnetos.
Meus avós por parte de mãe eram agricultores em Piracicaba, tinham
uma chacarazinha, faziam dessa chácara o seu sustento, e minha avó ajudava.
Ela era chamada de Nhá Dina. Era gorda, forte e eu me lembro dela sorriden-
te. Ela fazia muito doce pra vender, colhia, plantava mandioca, abóbora. Tudo
que plantavam eles vendiam no povoado em Piracicaba. Tiveram dez filhos:
seis mulheres e quatro homens e o sustento era para família toda.
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Não fui à minha formatura e quase não chego à minha colação de grau, por-
que não tinha dinheiro para o ônibus.
Eu sempre militei a partir da Igreja Católica, mas sempre tive uma
posição muito crítica em relação a ela, pois sei que a Igreja nunca foi santa. É
muito fácil falar de fome com a barriga cheia, e eu nunca tive medo de enfren-
tar as autoridades religiosas. Essa cabeça crítica eu devo a grandes pessoas
com quem convivi, como Paulo Freire, Leonardo Boff e aos livros que li, prin-
cipalmente Capitães de Areia e Subterrâneos da Liberdade, do Jorge Amado.
Só recentemente descobri que Lima Barreto era negro e me emocionei com
as poesias do Cruz e Souza.
Fundei a catequese de São Matheus, que abrangia dezesseis bairros,
dirigi um grupo de noivos, e as mulheres adoravam minhas palestras. Mas fui
afastada porque algumas pessoas consideraram que “eu não tinha moral para
isso”, porque era separada do marido e me aposentei como diretora de creche.
Nunca quis parar de estudar, para ter conhecimento. Aí conheci o
curso das PLPs – Promotoras Legais Populares do Geledés e no ano e meio
que durou o curso foi um resgate dos meus tempos de faculdade, conviven-
do com juízes, médicos, advogados, militantes feministas, lésbicas, jornalistas,
que estiveram junto com a gente, dividindo conhecimento deles. E o mais im-
portante desse curso foi que me deu condição de discutir com outras mulhe-
res e convencê-las a se olhar, se valorizar, aprender a dizer não para o marido
e, o mais importante, se saber livre e se sentir livre. Até fazer o curso de PLPs
eu não sabia que tinha uma luta específica da mulher negra, eu só conhecia a
luta do movimento negro pela sua raça, e isso ajudou muito no meu trabalho
com as mulheres da comunidade.
Eu também tenho uma relação muito forte com a música, mas meu
envolvimento mais direto começou porque, para manter meus filhos dentro
de casa enquanto trabalhava - eu entregava os filhos pra Deus quando saía e
agradecia quando voltava – deixava que eles reunissem os amigos da vizinhan-
ça para “fazer música”. E, apesar de ter muitas panelas estragadas pelas expe-
riências deles com a percussão, acabaram por transformar minha casa numa
espécie de reduto do samba. Na casa, nunca faltava uma panelona de comida,
um abraço e muita música. Muitos grupo de samba e pagode, que hoje estão
fazendo sucesso, nasceram na casa da Tia Cida. Atualmente, além do meu
trabalho social, faço parte de um grupo, o Berço de Samba de São Matheus,
formado lá em casa e que se apresenta em vários lugares. Até gravei um CD
de samba com compositores famosos e muitos do bairro, muito bons. O CD
ainda não está pronto e, de verdade, foi sem intenção, tudo que eu queria era
manter meus filhos em segurança dentro de casa.
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Apesar dos meus esforços, nenhum dos meus filhos quis fazer facul-
dade, mas estão encaminhados na vida. Eu tenho orgulho da minha história e
da nossa luta para construir um mundo melhor.
Tem uma geração nascendo agora e eu diria a essas meninas, primei-
ro, que o conhecimento é fundamental. Que ela deve se aprofundar, para
valorizar sua luta. E que nunca se deixe abater, qualquer que seja a dificuldade.
Mas, principalmente, que nunca tenha vergonha de sua raça e de sua história,
que são lindas.
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Meu nome é Maria Ignez Neves Viana, sou advogada, estou aposenta-
da pela Prefeitura de São Paulo, tenho dois filhos, quatro netos, e isso resume
a minha família no momento. Sou viúva recente. Até dois anos atrás cuidava
de meu marido, que tinha Alzheimer, e agora estou sozinha.
Minha mãe tinha 17 anos quando ficou com meu pai, que tinha sua
vida, era casado, morava em Lagoinha, no sul de Minas. Ele ficou doente, com
tuberculose na época, então tinha que se afastar. Fomos encaminhados, eu e
meu irmão: ele, com dois anos, foi para o Educandário; e eu, com 11 meses,
para a Liga das Senhoras Católicas. Depois, com dois ou três anos, fui para
um colégio em Bragança Paulista, interior de São Paulo, que tinha lugar sepa-
rado para meninos e meninas. Minha mãe visitava a gente regularmente, num
domingo um, e noutro domingo o outro. Meu pai estava internado em um
Sanatório para tuberculosos e só vinha quando autorizavam. Mesmo assim eu
era obrigada a receber a visita no jardim do colégio, por causa da doença dele.
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mãe voltou ao colégio com sua patroa e uma benfeitora do colégio, da Liga
das Senhoras Católicas. Quando me viram ficaram chocadas com meu es-
tado e me levaram embora. Me encaminharam para o Colégio Santa Marta,
que preparava meninas para serem domésticas, babás e começávamos a
trabalhar com 16 anos.
Quando eu saí daquele Colégio, a primeira coisa que eu fiz foi cortar
Deus. Não queria mais ir à missa, não queria confessar, me afastei da igreja
dando graças a Deus. Eu só não estou cometendo pecado mortal, mas eu não
ia missa, perdi aquela ligação com a religião.
Quando saí do Colégio Santa Marta, eu estudava e trabalhava. A primei-
ra coisa que fiz foi me matricular em curso de francês. Fiz o ginásio e o técnico
de contabilidade. Minha mãe se matava de trabalhar para eu poder estudar.
Com 16 anos consegui minha emancipação com o juiz e, já dona do
meu nariz, aluguei uma casa para minha mãe e tirei meu irmão do colégio.
Meu irmão era mais velho e respondi judicialmente pela minha irmã, que tinha
ainda apenas oito anos e que estava internada na creche, também do juizado.
Eu tive muita dificuldade para conseguir emprego por causa da minha
cor. Eu ia nas empresas e fazia os testes. Na época, já falava inglês e francês
fluente, sabia que tinha feito um teste maravilhoso e então, quando desco-
briam que eu era negra, me dispensavam antes mesmo da entrevista. Sempre
arrumavam uma desculpa, e eu saía chorando.
Uma vez eu buscava emprego no Banco Comércio e Indústria e fui
rejeitada porque alegaram que eu não passara nos testes. Passei na sala onde
uma amiga branca estava fazendo o teste, fiz rapidamente a prova pra ela. Ela
foi admitida e eu fui embora para casa.
Meu primeiro emprego foi na Phillips. Trabalhei lá durante cinco anos.
Apesar de receber salário menor que as outras que faziam o mesmo trabalho,
eu lutava com muita dificuldade, porque pagava pensionato e os estudos.
Aí eu casei e prestei concurso público na prefeitura e entrei. O traba-
lho público era importante, porque não viam a questão da cor. Não podiam
mandar a gente embora e eu já estava cansada de bater de porta em porta,
mandar carta solicitando emprego.
Já estava grávida e trabalhava em dois empregos, porque meu marido
bebia muito e não dava conta de sustentar a casa. Então voltei a estudar. Foi aí
que eu fui fazer Direito. Assim que comecei a fazer o curso, fiz um concurso
pra Oficial de Justiça, acho que eu fui a 13º classificada. Eu continuava respon-
sável pela casa.
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IMENA
Amapá
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mas voltou novamente a sofrer a tuberculose. Ele não veio mais pra cá foi pra
lá, e caiu na rede. Minha mãe cuidava dos quatro filhos, que ela já tinha os dois
mais velhos, teve essa barrigada de casal, e o meu pai doente. Logo o meu pai
morreu e aí a minha mãe achou a necessidade de me dar pra irmã dela, minha
tia, madrinha, eu já fui criada com ela.
A minha mãe casou com um homem e logo a primeira barrigada da
minha mãe foi outro casal de filhos gêmeos. Minha mãe ia pra roça grávida dos
dois, o meu irmão que ele demorou seis anos pra andar, o par da minha irmã,
a menina no paneiro, nas costas, o menino nos braços e já grávida de outro,
e nós atrás. Um bocado de coisa pra gente fazer na casa do forno. Ficava na
roça, minha mãe atava a rede de um pé pra outro da maniva, pra menor ficar
embalançando enquanto ela trabalhava. Nós, pelo menos, já dávamos conta de
carregar um lixo, carregava uma mandioca pra botar no monte, ia se fazendo
esse serviço. Aí carregava tudo de novo pra casa do forno, amarrava de novo a
rede. Assim foi a minha existência da minha primeira vida e trabalhando na roça.
Depois eu passava tempo na casa com a minha mãe, tempo com a
minha madrinha, tempo com a minha mãe, tempo com a minha madrinha.
Quando eu estava com treze anos, conheci um juiz de direito. Nesse tempo
Macapá tinha um juiz pra cinco comarcas. Eu estava com treze anos e o Dr.
Mário ficou cuidando de mim, me trouxe pra cá, pra Macapá. Nós morávamos
ali atrás da Igreja de São José, a casa que eu morava com eles. De lá nós fomos
pra Brasília, passei sete anos em Brasília com eles. Pra minha infelicidade ou
felicidade, não sei, eu fiquei grávida dum filho dele. Tive a filha, ainda passei
dois anos em Brasília com a filha. A minha mãe perdeu o filho mais velho, aí
ficou doida porque ela não soube mais notícias minha. Porque ela pensava em
já ter perdido também eu. Mandou escrever pra lá, lá chegou essa carta. E o
Dr. Mario perguntou: “tu vai querer ir pra Mazagão, Piedade?” “Minha mãe
mandou me chamar e eu vou Doutor”. “Mas, e a menina, vai largar?” E eu
digo: “não deixo a minha filha”. “Não, tu podia deixar ela conosco, tu levas
todo o endereço, passa lá uns tempos e volta pra cá”. “Não doutor, eu tenho
certeza de que a minha mãe tá sofrendo por causa da minha existência lá”.
Assim eu vim. Foi só chegar em Mazagão e, em pouco tempo, eu peguei a
vida de empregada doméstica. E vim por aqui em Macapá, trabalhei por umas
quantas casas de empregada. Voltei depois que eu consegui comprar uma casa
pra mim, pra morar em Mazagão. E sempre trabalhando na roça, com um e
com outro, com um e com outro, até que criaram o assentamento do Pique-
azal. Eu batalhei até que consegui um lote pra mim. Lá nesse lote eu estou
trabalhando. Agora recente, tem uns dois ou três anos, eu sofri um derrame,
mas já estive pior do que estou. Hoje eu já estou muito melhor, graças a Deus
e estou levando a vida.
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tem sentido assim. Chega lá: “bença tia Olga”, ela diz: “quem és tu?”. Eu
digo: “eu sou a Piedade, a filha da sua comadre, assim, assim, assim”. E ela
diz: “quem?” Aí ela fica assim, sabe?, Ela não tem mais aquela coisa de prestar
a atenção. Mas a gente, eu fico orgulhosa de ter uma pessoa daquela idade
na minha comunidade e que foi muito responsável pelo o que eu sei hoje de
Mazagão. Capinando na roça dela, ela contava as histórias, o marido dela, o
velho Acidino também, antes de morrer trabalhava. O Lucas Siqueira, eu tra-
balhei com ele, ele contava também, e assim sucessivamente. Tem vários: seu
Agostinho Maciel, que era o representante da comunidade, conversava muito
com a gente, o Seu Osto Elias; o Seu Vavá Santos, era um ex-combatente da
polícia, guerreiro né?, Ele foi pro campo de batalha, ele chegou lá, ainda viu
muita coisa por lá, mas não sujou as mãos dele com sangue de ninguém. Então
essas pessoas eu conheci, tenho o prazer de conversar muito com elas e o
pouco que eu sei foram eles que me passaram. E muito mais mesmo com a
minha madrinha e mãe de criação que eu tinha, a Olina Queiróz. Aquilo era
um arquivo vivo e que contava de tudo. A minha mãe não abria a boca pra
dizer: minha filha, aconteceu isso, isso, no tempo passado, não, mas minha tia
, ela contava de um por um os casos tudinho.
Agora graças a Deus tem mais da nossa cor. Mazagão sempre teve
uma metade de negro, uma metade de branco. Ali sempre teve uma mistura
de branco com preto. Aí graças a Deus foram se acabando os brancos, ficando
sempre os pretos. Por isso que nós temos a festa do Espírito Santo. Lá pra nós
é em agosto. Porque quando Mazagão era Mazagão, tinha a festa do Espírito
Santo, que na época era no segundo domingo de junho, parece. Era nessa
época a festa do Espírito Santo dos brancos lá em Mazagão. Os negros faziam
em agosto. E os brancos se acabaram e os negros ficaram e ficaram fazendo
sempre em agosto. É por isso que a festa do Espírito Santo em Mazagão é dia
24 de agosto.
Ser mulher hoje é como qualquer pessoa, até um homem. Mais do
que um homem, porque a mulher tem a tarefa da casa e faz a tarefa de em-
pregada. Hoje é uma deputada, uma senadora, até uma presidente já, né? Nós
temos mulher. Então, uma mulher tem um papel muito grande na vida.
Do futuro, pra mim eu já não quero mais muita coisa. Ó, quero mes-
mo é o silêncio, porque esse derrame mexeu muito com o meu juízo. Então
eu prefiro ficar lá no meu terreno, porque lá vivo só eu e o cantar dos bichos,
da natureza, o vento, o barulho do vento, o cantar do galo, o mugir dos bois.
E assim, eu quero só essa parte, por causa do derrame que me deu. Já para os
meus filhos eu quero dar pra eles aquilo que eu não tive, não tive a oportuni-
dade de ter. Eu tenho o meu mais criança, lá na escola Família Paguí. Agradeço
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a Deus, à Cristina, até à Durica, o Orlando, tudo foi interventor dele estar
estudando. Graças a Deus, está estudando o terceiro ano lá. E eu sempre digo
pra ele: “meu filho, estude, porque é o futuro seu; porque eu, o que vou lhe
dar pra por em prática é o seu futuro”.
Hoje o mais importante são os meus filhos, eu querer ver meus filhos
bem, uns homens de bem, umas pessoas de bem.
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Meu nome é Estefânia Cabral de Souza, tenho trinta e oito anos, nasci
na Comunidade Quilombola do Mel da Pedreira e atualmente moro na cidade
de Macapá.
Minha infância na minha comunidade do Mel da Pedreira foi muito
simples, tive uma vida bastante humilde. Sou filha de agricultores, minha mãe
e meu pai sempre trabalharam no cultivo de roça, plantavam mandioca, e
tiveram bastante dificuldade para criar os nove filhos. Eu sempre gostei mui-
to de estudar, mas na minha comunidade tem uma escola que só oferece
as séries iniciais do ensino fundamental. Então, durante a minha infância, eu
pude fazer apenas esse ensino básico de primeira a quarta série, como era
chamado na época. Da minha comunidade tenho um cenário muito bonito,
que eu guardo, que é o lago. Eu fui criada na beira de um lago, que no inverno
enche. Lá não tem maré, tem o período chuvoso que a gente chama de verão.
No inverno enche o lago, fica cheio, a gente tomava muito banho e brincava
muito. Da infância a gente guarda muito essa questão da brincadeira naquele
lago, e quando chegava o verão e secava, a gente brincava de bola no mesmo
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
local que a gente tomava banho no inverno. É uma imagem muito forte que
eu tenho guardada da minha infância, uma boa lembrança.
A minha comunidade é originada a partir do meu avô. Aquele espaço
foi ocupado pela minha família: o meu avô, a minha avó e os filhos, na época
pequenos, e a partir dali tudo começou, isso em 1954. O meu avô se chamava
Antonio Bráulio de Souza e a minha avó Alta Augusta Bráulio de Souza, ambos
já são falecidos, e os filhos hoje comandam a comunidade, que tem cada um
seus núcleos familiares. O meu tio mais velho é o Seu Benedito, Benedito
Ramos de Souza, ele é uma pessoa que sabe muito a respeito tanto da história
da comunidade quanto dos seus antepassados. Já o meu pai é aquela pessoa
que dá bastante informação e eu acho que sabemos um pouco por causa dele.
Ele é uma pessoa cheia de informações, que contribui inclusive com os aca-
dêmicos, quando vão lá. O nome dele é Manoel Alexandre Ramos de Souza.
Hoje nós temos um presidente na nossa associação que é o Eliseu, é ele quem
comanda os trabalhos na nossa associação hoje. Mas eu destacaria sim essas
duas pessoas lá, que são o meu tio Benedito e o meu pai Manoel Alexandre.
Nós temos ainda na comunidade a Dona Varomilda, em especial. Ela
é a minha mãe e, junto com meu pai, ajudou nesse processo todo. Quando
o pessoal foi fazer o relatório antropológico, ela foi uma das que mais deu
informação a respeito da comunidade, da vida da comunidade, do dia a dia.
Estou falando do meu pai e da minha mãe porque tem um período em
que somente a nossa família morou na comunidade, todo mundo foi embora
porque não tinha condições de sobrevivência. E o meu pai, muito apegado ao
lugar, se recusou a sair. Ficamos lá morando, só tinha a nossa casa, só os pais e
os filhos, vivemos alguns anos sozinhos e só depois alguns outros começaram
a retornar para povoar a comunidade. Por isso temos uma história muito for-
te lá dentro, porque nunca nos afastamos de lá, os outros não, os membros da
família sempre iam e viam de acordo com as suas necessidades e só o nosso
núcleo familiar nunca se afastou de lá, então temos muita história pra contar.
Em casa tínhamos uma relação muito boa. Meus pais eram evangéli-
cos. Meu pai era aquela pessoa líder da igreja e tinha o hábito de ensinar, e
trabalhou muito conosco a questão da integridade, do ser correto na socie-
dade. Minha mãe era aquela pessoa que segurava tudo, todos os problemas
terminavam nela. Meu pai era muito pacífico e minha mãe era mais de resol-
ver e sempre tivemos uma relação muito aberta, muito diálogo. Eu fui criada
sempre discutindo os problemas e resolvendo com diálogo.
Como viemos de uma comunidade quilombola e também por termos
sido criados na religião evangélica, tínhamos um perfil meio diferenciado das
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
outras pessoas. Meu pai fazia o que se chamava de culto doméstico. De ma-
nhã ele chamava os filhos em volta da mesa na hora do café e falava um pouco
da religião para nós e só depois desse ritual cada um ia para os seus destinos:
os filhos para escola e eles iam para roça. No final do dia tínhamos aquele mo-
mento em volta da mesa durante o jantar, com mais conversa, como se fosse
um balanço do dia, de como foi a vida de cada um. Se fazíamos alguma coisa
errada, era a hora de prestar contas.
Hoje eu não estou frequentando nenhuma igreja, não sei nem como é
que eu definiria o meu status religioso. Mas digo que sou evangélica porque fui
nascida e criada nessa religião e não vou renegar. Mas não estou participando
ativamente de nenhuma igreja ultimamente, eu tenho feito a minha vida meio
separada, meio isolada desta questão.
Na infância, quase adolescência, tive um problema de racismo com
um professor da minha antiga escola. Como eu terminei a quarta série, fiquei
ainda um tempo na comunidade sem estudar, então passei a participar ativa-
mente da escola porque o meu sonho era ser professora. Eu gostava muito de
estar no ambiente escolar contribuindo, ajudando em todos os eventos. Uma
vez tivemos uma discussão na escola, eu discordei de uma atividade e me im-
pus naquela situação, e o professor usou algumas palavras que me ofenderam
relacionada à minha raça, que não ia perder para preto. Isso realmente mexeu
com a minha autoestima, me deixou bem pra baixo. Primeiro porque eu era
uma menina, tinha por volta de doze, treze anos e aquilo pra mim foi o fim do
mundo, me senti como se a minha condição racial me fizesse menor do que
a outra pessoa que não era negra como eu. Era como se ele tivesse deixado
bem claro que ele era superior a mim naquela situação, e não porque era pro-
fessor, mas porque era branco. Apesar de ter me sentido mal eu reagi, porque
fui uma adolescente questionadora. Apesar de não ter tido contato com a
continuidade da escola, eu sempre questionei. Naquele momento eu fui para
o embate, me defendi. Fiquei triste, sofri por conta daquela situação, mas não
me abati na frente dele e fui bem atrevida até na minha defesa. Depois disso,
como os meus pais procuravam sempre a questão da paz, me aconselharam
a largar de mão, que era assim mesmo, que as pessoas faziam isso conosco,
que tínhamos que saber nos defender, mas que eu não deveria estar brigando.
Então veio a religião e apaziguou toda aquela situação.
Percebi que precisava fazer alguma coisa por mim, porque estava pa-
rada, eu gostaria de estudar, mas não tinha oportunidade. Apesar de ter pa-
rentes morando na cidade, naquele momento ninguém estendeu a mão pra
mim. Tenho duas irmãs mais velhas que vieram morar com familiares para
estudar e elas voltaram grávidas, adolescentes grávidas, e eu era a ultima filha.
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Então o meu pai não deixava de jeito nenhum eu sair de lá, porque achava que
eu viria estudar e voltaria com um neto pra ele criar. Sofri durante seis anos
esse problema. Quando eu completei dezessete anos eu disse para minha
mãe que iria embora, mesmo sem a permissão do meu pai, porque eu já tinha
irmãos que moravam aqui e podia ficar com eles. Como eu participava das ati-
vidades da igreja, vinha muito para a cidade e ele me permitia vir nos períodos
festivos. Então, numa festa de final de ano, eu vim para as festividades com
todas as minhas coisas, sem avisar meu pai, só a minha mãe sabia, nesse ponto
ela foi minha cúmplice. Ele esperou que eu voltasse no inicio de janeiro e eu
não voltei mais, já fui me matricular e comecei a estudar e a correr atrás do
prejuízo. Porque eu entendi que se eu não viesse estudar o meu futuro estaria
comprometido. Foi preciso cometer essa rebeldia para poder ir atrás do meu
sonho, que era ser professora.
Hoje a Estefânia é uma mulher que já vive há vinte anos na cidade,
mas continua se sentindo um peixinho fora d’água, porque sou literalmente
interiorana e me sinto eu mesma, na essência, quando estou na minha comu-
nidade. Mas tenho uma vida social e profissional aqui.
Depois desse período todo estudei, fiz concurso público, sou profes-
sora da rede estadual e muito consciente dos meus direitos, luto muito pela
nossa causa, da nossa condição de sermos negros, mas com muita responsa-
bilidade, sem agressividade, Acho que dá para conquistar tudo perseguindo
nossos sonhos, mas de maneira coerente. Eu digo que sou muito moderada,
assumo 100% a minha condição de ser negra, quilombola, nunca neguei mi-
nha raiz, não posso fazer isso; pelo contrário, eu me sinto muito orgulhosa.
Quando eu posso, falo disso nos espaços onde trabalho, vivo. Diria que a
Estefânia hoje é uma mulher forte, transformada e que não tem nenhum trau-
ma de infância, apesar de alguns eventos relacionados ao racismo. Porque
fui aprendendo que há formas de a gente se defender e existem legislações
que nos amparam, apesar das atrocidades que acontecem com relação ao
racismo.
É evidente que quando estamos num espaço onde há uma mescla de
pessoas de diversas raças, sempre tem algum momento que sentimos, por
mais que as pessoas não falem com clareza, deixam escapar alguns aspectos.
Mas eu procuro sempre contornar. Por exemplo: as pessoas não me aceitam
como chefe; acham estranho serem chefiadas por uma negra, eu vivi isso há
pouquíssimo tempo. Assumi um cargo onde chefiava uma equipe de quinze
pessoas e eu sentia, às vezes, que algumas pessoas se sentiam incomodadas
por estarem chefiadas por mim. Até porque a chefe anterior, por um acaso,
era branca, loira. Então veio alguém para substituí-la que era o contraste e
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
soou estranho, espantoso, eu estar assumindo aquele espaço que por muitos
anos foi de pessoas brancas, mas nada assim que fosse muito explícito. Quan-
do fui apresentada ao setor, senti que as pessoas não aprovavam, um olhar
meio de desprezo. E só com o tempo eles foram vendo as minhas atitudes,
foram vendo a forma como eu tratava pessoas do setor. Disseram que eu era
realmente o contraste da anterior, porque “apesar dela ser branca, era muito
arrogante e você é negra e é dócil, é uma pessoa cordata, trata a gente com
respeito”. Que bom que essa comparação foi dessa forma, mas num primeiro
momento que cheguei, percebi o impacto, pelo fato de eu ser negra e estar
ocupando aquele espaço naquele momento.
Eu sou casada há vinte anos. Assim que eu cheguei da minha comuni-
dade, um ano mais ou menos depois, eu me casei. Tenho quatro filhos: a mi-
nha filha mais velha vai completar vinte anos, tem um de dezoito, um de treze
e a caçula tem dez anos. Eu procuro ensinar pra eles que a melhor forma que
temos para driblar o racismo é estudando, aprendendo sobre a temática, nos
fazendo respeitar pelo o que nós somos. Eu incentivo muito eles a estudarem
e terem um comportamento social adequado para que sejam respeitados,
não pela cor da pele ou algo parecido, mas pelo o que podem contribuir. Eu
tento passar para eles um pouco da minha lição de vida, as dificuldades que
eu tive para estudar. Eu ainda sou estudante até hoje, não paro nunca de es-
tudar para dar o exemplo. Digo para eles aproveitarem a oportunidade, que
procuro dar o que eu não tive. Passei seis anos sem estudar porque não tinha
chance, não teve jeito e digo que a vida foi meio madrasta comigo. Por isso
procuro colocar ao máximo o que posso à disposição deles, para que possam
se desenvolver dentro do período correto. Eles precisam estar prontos numa
determinada idade para ser um agente social e aí fazer a coisa acontecer.
Eu sou professora do Estado, mas neste momento estou prestando
serviço dentro da Secretaria de Educação. Desde 2011, trabalho com o Cen-
so Escolar e é uma atividade que ampliou muito os meus conhecimentos na
área educacional, ter contato com os dados, saber a quantas anda a qualidade
do ensino do Estado, dos municípios, saber quantos alunos nós temos nas
redes, ter uma ideia de quantos nós temos fora da rede, são muitos os dados
estatísticos que trabalhamos. Neste momento da minha vida, eu tenho feito
isso né. Já contribuí bastante em sala de aula, mas agora estou em uma área
técnica, aprendendo coisas novas e está sendo muito legal. Estou concluindo
um curso de licenciatura na UNIFABI e tenho outra graduação, mas na área
de tecnologia, fiz informática educativa, curso de tecnologia. Ah! E eu estou
aguardando o mestrado na área de Letras, estou ansiosa, aguardando. Minha
pretensão é fazer o mestrado e o doutorado.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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INEGRA
Ceará
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Tive seis filhas sem um marido e Deus ajudou a criar as minhas filhas.
Como uma mãe sozinha, tentei dar o melhor exemplo para elas. E se alguma
delas não seguiu o melhor caminho, eu não me sinto culpada. O que eu pude
fazer por elas eu fiz.
Nós mulheres, em Águas Pretas, trabalhamos na roça com os maridos
e criamos galinhas, porcos; também plantamos canteiros na época do inverno.
Nesse ano não, pois não teve inverno. Mas tentamos ajudar na alimentação
da família.
Estou à frente da primeira Associação de Remanescentes Quilombo-
las de Águas Pretas, e tenho enfrentado muitas resistências e preconceitos
localmente, em função do processo de criação da Associação e da represen-
tatividade que uma mulher assume na tomada de decisões na comunidade.
Na comunidade tem duas Associações: uma dos moradores de Águas Pretas
e outra dos remanescentes quilombolas de Águas Pretas. A Associação dos
Moradores de Águas Pretas é, desde a sua fundação até hoje, presidida por
um homem não quilombola que não reside na comunidade, e por aí dá pra
entender as dificuldades.
A Associação foi criada porque a comunidade considerou importante
manter os seus interesses sob a gestão dos próprios quilombolas. Mas algu-
mas pessoas ainda apoiam a outra Associação e validam o papel do outro pre-
sidente. Quando assumi a presidência da Associação dos Remanescentes Qui-
lombolas de Águas Pretas, ouvi muitas críticas, sobretudo de pessoas brancas
que moram no município Tururu. Um dos comentários que mais marcaram
a minha atuação na criação da Associação foi: “Águas Pretas é muito bom de
dominar as pessoas. Basta botar e balançar milho em uma cuia, pois o povo
é que nem cabra ou galinha”. Isso me doeu muito, principalmente porque
sempre tive a consciência de que é importante valorizar a minha comunidade
e sua história. Sofri muito com a resistência de algumas mulheres negras qui-
lombolas em me aceitar na presidência da Associação. Diziam que eu não sa-
bia falar; questionavam-me sobre a minha participação na Associação e quais
eram os meus interesses. Então eu ficava refletindo sobre os significados dis-
so e por muitas vezes me perguntei o que era preciso fazer para convencer
essas pessoas de que os meus interesses se confundiam com os interesses
da comunidade. Queria que entendessem que eu quero desenvolver um
trabalho junto com eles, onde eles possam se reconhecer como negros,
assim como eu, que tenho orgulho de ser negra. Quero trabalhar pela mi-
nha comunidade negra, mas eu preciso ter o apoio da minha comunidade
para dar continuidade a esse trabalho que, com certeza só vai beneficiar a
comunidade.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
MALUNGA
Goiás
A gente escolheu dona Sérgia por ser uma mulher que não é do movi-
mento, mas que a tem a questão racial muito grande no dia a dia. Ela começou a
levantar essa questão lá na sua comunidade, independentemente do movimento
e trouxe demandas para o Malunga, de que a gente tinha que trabalhar mais a
questão da base, com as mulheres negras da base. Ela toma conta de algumas
crianças negras e faz todo um trabalho de autoestima, de estética. É uma lideran-
ça importante, mas, por muitas vezes, não é reconhecida.
E Cíntia foi escolhida porque é jovem, lésbica e começou no movimento de
LGBT e por todo o seu processo de construção de identidade. Percebeu o precon-
ceito mais forte em relação a sua cor do que pela orientação sexual.
A escolha de Nailde se deu devido a sua trajetória de vida. Mulher negra,
quilombola e que nunca saiu de sua comunidade, vivendo até hoje lá, e também
por ter sido a primeira mulher negra e quilombola a presidir o Conselho Estadual
de Igualdade Racial do Estado de Goiás.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
roupas, eu chegava em casa e ia cuidar do marido, da minha filha. Até que ele
sarou, pagaram os benefícios do INSS e, graças a Deus, foi melhorando a situ-
ação. Ele toda a vida trabalhou, e eu trabalhando e cuidando das minhas filhas,
conseguimos formar todas as duas. Vencemos. Eu sou umbandista e tivemos
muito apoio, na época, porque a casa nos ajudou muito financeiramente, es-
piritual e financeiramente.
Hoje eu falo para as minhas filhas que, por sermos negras, tudo que
fizermos temos que fazer o melhor possível. Porque a discriminação está aí e
o branco sempre tem razão. O branco tem o melhor salário, tem o melhor
emprego, então a gente tem que competir de igual para igual, a gente não
pode ter medo. Por exemplo, se a gente faz bom e se o fulano que faz bom é
branco, nós temos que fazer ótimo, para podermos nos destacar.
O que mudou hoje é que se o negro quiser competir no mercado de
trabalho, dando o sangue, ele consegue e antigamente ele não chegava nem
na porta. Então acho que nesse ponto melhorou um pouco.
Espero que no futuro essa diferença seja acabada porque nós somos
todos iguais; o que muda é só a nossa cor. Nós somos filhas do mesmo Pai,
estamos aqui para conquistar o mesmo espaço e ninguém quer tirar nada de
ninguém, apenas aquilo que é seu, do seu merecer. Então espero que no futu-
ro as pessoas reconheçam isso.
Quero deixar um recado para as mulheres negras: nunca tenha vergo-
nha da sua cor porque é uma cor muito bonita, muito digna.
Eu conheço uma passagem, e não sei se é verdade ou não, que diz que
quando o menino Jesus nasceu, ele estava fazendo uma porção de bonequi-
nhos. Diz que ele colocou a água, pegava o barro e ia fazendo os bonequinhos
e lavando. Então aqueles bonequinhos ficavam todos branquinhos. Ele fez um
punhado de bonequinho branco, mas aí vinham pessoas e passavam em cima
dos bonequinhos dele. Então para o pessoal não desmanchar os seus bone-
quinhos, diz que ele lavou só as mãos e os pés dos bonequinhos e foi pondo
eles lá. Ai diz que foi aonde nasceu o negro, porque ele não tinha lavado os
bonequinhos porque o pessoal vinha e ia desmanchar os bonequinhos, passar
por cima. Então, quer dizer, é uma história que desde o começo já houve a
discriminação. Não pela parte do Nosso Senhor, mas pelo povo que ia passar
em cima dos bonequinhos. É uma lenda que eu sempre guardo comigo e falo
como Deus cuidou desses bonequinhos para que ninguém os desmanchasse.
A mesma coisa somos nós, negros: nós temos que cuidar de nós, pra não
sermos massacrados, pisados. E mostrar que nós somos capazes, da mesma
forma que o branco.
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
Eu quero que a nova criança que está nascendo agora venha nesse
mundo com toda a força de Deus, Oxalá. Que ela venha com essa iluminação,
para expandir, para mostrar que o negro é filho de Deus, que nós estamos
aqui para conquistar, para adquirir as coisas boas, para semear a paz. E não o
que dizem o tempo todo de ruim do negro, que é o marginal, é o maconheiro,
é o ladrão, é tudo de ruim, é sempre nele que recai todo o preconceito. Por
isso eu quero que essa menina negra venha pra mostrar a nossa dignidade,
que venha mostrar que o negro é acima de tudo um ser humano como qual-
quer outro.
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
Sou Luana Cristina Vieira dos Santos, tenho 24 anos, sou graduada em
Pedagogia. Sou professora, sou educadora, atualmente trabalho na IFG – Ins-
tituto Federal de Goiás e também sou militante do movimento feminista, do
movimento LGBTT. Participo de algumas redes como a Articulação Brasileira
de Lésbicas; do CANDACES, que é uma rede de lésbicas negras; sou presi-
denta da ALEGO – Associação das Lésbicas de Goiás e atualmente também
estou presidenta da Federação das Mulheres de Goiás. Transito muito nos
movimentos sociais e busco conhecimento sobre vários conteúdos. Não é
porque eu estou em uma associação de lésbicas e na Federação das mulheres
de Goiás, que eu não posso participar de movimentos que lutam pela questão
da acessibilidade, pela questão de prédios, de estrutura física mesmo, pelo
Estado laico. Eu luto por aquilo que eu acredito e no momento em que dei-
xarmos de acreditar em algo, eu penso que não tem sentido você lutar.
Eu sempre tive alternância de casas, nunca tive residência fixa. O últi-
mo local que eu estou morando agora é com a minha mãe. Eu sempre morei
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
ou com meu pai, ou com a minha mãe ou com a minha avó, com a minha
outra avó por parte de pai, por parte de mãe, ou com outro parente. Ou
então eu morava sozinha. Já morei em vários lugares, mas sempre dentro de
Goiânia, o único lugar fora era no bairro Cardoso II, quando morei com minha
companheira.
Minha infância foi meio diferente, por que eu sempre me vesti mascu-
linizada. Agora eu me visto mais feminina, mas eu sempre me vesti masculini-
zada, de bermudão, boné, calça. E as pessoas – e toda minha família – critica-
vam, principalmente minha tia, que é professora de dança.
Minha mãe e meu pai moravam em um barracão nos fundos da casa
da minha avó, onde morava também minha tia. Diziam que eu estava andan-
do igual a um homem e me colocavam para andar, para rebolar. Falavam do
jeito que eu deveria me vestir, fazer maquiagem, e eu nunca gostei muito
dessas coisas. Gostava mesmo de ir para rua, jogar bola, jogar videogame,
jogar “bete”. No colégio, enquanto as meninas brincavam de boneca eu e
outros meninos pegávamos os taz e ficávamos batendo bafo. Quando vinham
as professoras ou alguma outra pessoa querendo roubar os nossos taz, eu
corria com eles para o banheiro feminino, porque que eu era a única mulher
que estava jogando e os meninos não podiam entrar no banheiro feminino. Eu
tinha umas atitudes masculinas de acordo com as normas hoje, com a norma
atual, de cultura. E eu penso que não deveria ter essa separação se é de me-
nina, se é de menino. Então, eu sempre tive essas atitudes, nas questões de
vestimentas, de estereótipos, de brincadeira mesmo, desde a minha infância.
Outro dia uma amiga me disse que eu tinha virado lésbica e eu disse
que não se vira lésbica, que você nasce lésbica. E são algumas atitudes do
meio que fazem com que você não goste de homem. No meu caso desde a
minha infância, desde que eu me conheço por gente, que eu sou lésbica. Eu
não virei lésbica nem alterei minhas atitudes.
Eu preferi me assumir por minha própria conta ou eu não seria feliz.
Porque tentei ficar com homem, inclusive na cama, mas não gostava, não
rolava nada, não sentia atração. Então, decidi: ou eu vestia roupas femininas,
namorava um homem e seria como a sociedade e a minha família queriam
e seria infeliz; ou eu permanecia da forma que me sentia bem, ficava com
mulheres e levava minha vida, que de certa forma eu teria momentos felizes.
Eu sempre fui muito tímida, muito recuada, não conversava muito,
focava mais em estudar. As amizades que eu tinha eram das pessoas que se
aproximavam de mim, pois eu não me aproximava de ninguém. Porque tinha
muitas situações que eu não entendia o porquê de sentir atração por profes-
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
soras, por meninas; porque os meninos queriam ficar comigo e eu, às vezes,
batia neles, não queria, me afastava. E por conta disso eu optei em não ter
amizade com menino nem com menina, porque eu não entendia o que acon-
tecia. Então eu focava em estudar. Ficava na casa da minha avó estudando,
lendo e ia para o centro espírita. Porque a minha avó é kardecista e eu prati-
camente nasci no centro espírita. Quando eu descobri que gostava de mulher,
eu tive uma confusão enorme, porque por mais que os kardecistas preguem
que as pessoas têm livre arbítrio, que podem fazer o que quiserem, mas tem
que arcar com as consequências; também dizem que se você nasceu mulher,
você tem que gostar de homem. Então entrei num conflito interno e não sabia
se eu ficava com um, se ficava com outro, se eu contava para minha avó. Por
mais que o espiritismo seja essa questão de abertura, eu sabia que quando me
assumisse eu teria aqueles impasses na questão do trabalho, na questão da so-
ciedade, ter que enfrentar a escola, ter que enfrentar a família. E para piorar,
além de lésbica, eu sou negra e aí já sofreria o preconceito triplicado. Porque
mulher já sofre preconceito e discriminação, aí você é negra e ainda é lésbica.
E teve alguns momentos da minha vida que eu fiquei doente e fiquei
careca. Aí eu era lésbica, negra, mulher, careca e algumas pessoas não se
aproximavam porque pensavam que eu tinha alguma doença contagiosa, por-
que eu não tinha cabelo nenhum. Eu passei por todas essas fases de vivenciar
o preconceito das pessoas em todos esses âmbitos.
Na família eles ficaram sabendo da minha lesbianidade através de uma
menina com quem eu tive um relacionamento, mas estávamos separadas. Ela
enviou uma carta para minha avó contando da nossa condição. Essa carta caiu
como uma bomba. Quando eu cheguei em casa, estava a minha família – com
exceção da minha mãe e do meu pai – minhas tias, meu avô, todos reunidos
na sala me esperando. Então eu disse: “sou lésbica”. Falei sobre o fim do rela-
cionamento com a autora da carta e aí a minha avó, aparentemente, aceitou.
Minha tia, que é lésbica, mas não é assumida, disse que eu tinha que tomar
cuidado, meu pai também. Mas minha mãe me ameaçou de morte, que ia me
matar, comer a minha carne crua, que queria saber quem era a menina que eu
tinha ficado pela primeira vez, que tinha me levado para o mau caminho. Se
afastou de mim, me deserdou, ligou para minha avó, que é mãe dela, e disse
que não era pra minha avó me deixar entrar em sua casa. Que não me con-
siderava mais sua filha, mas a minha avó disse que independente de qualquer
situação, eu continuava sendo sua neta, que isso não ia mudar minha índole,
a pessoa que eu sou.
Faz uns dois anos mais ou menos que minha mãe passou a aceitar
minha decisão. Conversamos sobre o assunto, minha companheira vai lá em
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Werneck, Iraci & Cruz (Orgs.)
casa, dorme, conversa com a minha mãe. Mas isso aconteceu quando ela des-
cobriu que eu tinha câncer, que tinha que fazer cirurgia, que quase morri
mesmo, aí ela repensou.
Algumas pessoas chegaram nela e conversaram. Algumas pessoas
acusaram-na de que o câncer que eu tenho é culpa dela, e alguns estudos
que falam que câncer é desenvolvido a partir de ódio, de raiva e mágoa que
você guarda.
Atualmente se eu tenho raiva de alguém eu vou falar. Se eu tiver que
esmurrar, eu esmurro. Eu aprendi que não adianta guardar as coisas pra mim,
não adianta eu não manifestar. Dessa doença que eu tive pra cá, eu penso
que me tornei outra pessoa. Porque eu não falava, não me manifestava, se
você falasse que aquilo é assim ou assado, eu: “beleza”, por mais que eu não
concordasse. Então desde que eu fiquei doente pra cá, eu mudei. Até ter essa
doença novamente, né? Eu acho que há males que vem para bem. A partir
do momento que eu fiquei doente, minha mãe parece que aceitou a minha
orientação sexual.
Atualmente eu não frequento mais assiduamente o kardecismo, como
há tempos atrás. Eu trabalhava há seis anos em um colégio kardecista e os cur-
sos ministrados também eram voltados para o kardecismo. Eu era professora
de informática básica, informática avançada, cidadania e temas transversais.
Quando me casei com a minha companheira, um mês após ter entregue a de-
claração de união estável, eles me demitiram. Para mim, ficou caracterizado
como homofobia. Eles não tinham justificativa para me mandar embora, mas
alegaram que o salário que me pagavam era pouco, por causa da minha qua-
lificação, já que eu tinha terminado meu curso de graduação em pedagogia.
E a minha companheira foi aluna desse colégio, só que eu não ministrava aula
pra ela e, na época que nós casamos, ela não estudava mais lá. Quando isso
aconteceu eu parei realmente para raciocinar sobre o kardecismo praticado
naquela instituição. Não se pode culpar a religião, mas as pessoas que estão
naquele local. Eu realmente parei pra pensar se aquele local era adequado
pra mim, se eu deveria continuar ali, não mais como funcionária, mas como
membro daquela instituição.
Eu me afastei daquela instituição e atualmente frequento um outro
centro espírita, onde existem alguns casais homossexuais, embora essa ques-
tão não seja citada.
Em relação ao racismo e preconceito racial, eu acho que ele existe
mais velado. Porque as pessoas sabem que, se ofenderem, podem ser proces-
sadas, então não fazem isso visivelmente. Mas eu trabalhei em alguns lugares
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é nas festas, nas rezas, na família, na tristeza. Aprendi e trago da minha infância
que a gente tem que lutar, respeitar as pessoas e seguir em frente por mais que
as coisas sejam difíceis. E foi isso que me incentivou a buscar a melhoria e até
hoje eu repasso pros meus filhos também. Eles estão crescendo aprendendo a
respeitar, aprendendo a lutar e aprendendo a sonhar não só pra gente, mas pra
nossa comunidade, pra nossa região, e até pro Brasil desenvolver.
Eu estudei na maior parte do tempo na comunidade mesmo, em uma
escolinha daqui e, com dezesseis anos, antes mesmo de terminar o magisté-
rio, fui trabalhar, fui ser professora na comunidade. Fiz o magistério e com
muita luta, depois que eu me casei, depois de ter meus três filhos, fiz a facul-
dade, terminei Pedagogia. E assim que terminei Pedagogia fiz Psicopedagogia
Clínico-Institucional. Mas não saía da comunidade, ia para a faculdade de ôni-
bus, andando de caçamba, também à noite, andando da placa até a comunida-
de a pé, porque não tinha carro. Mas nós vencemos, não só eu, mas as minhas
colegas também da comunidade, quilombolas. Nós vencemos, terminamos e
estamos aí na luta, estou aí, estou feliz e vou estudar mais.
A distância de Goiânia até a comunidade é de uns duzentos e qua-
renta quilômetros. É uma comunidade que antes era difícil acesso, até mais
ou menos 1976 não tinha estrada, não tinha ponte, as casas eram de pau a
pique. Mas hoje já não é tão difícil o acesso à comunidade, com os trabalhos
sociais que a gente vem desenvolvendo, hoje a comunidade tem casas, tem
poço artesiano, tem conforto, tem energia, e se compararmos com antes
melhoramos bastante.
Hoje, com os projetos, nós estamos trabalhando a questão da auto-
estima com o produtor e a produtora rural. E conseguimos muito desenvol-
vimento na comunidade, porque temos vários parceiros que estão apoiando
a questão da agricultura familiar. Antes as pessoas viam os membros da co-
munidade como coitados, pensavam que não conseguiam se desenvolver. E
tinha até racismo: chamavam as pessoas de nêgo papudo do Pombal, nêgo do
pombal, e hoje estão vendo a comunidade com outros olhos graças ao traba-
lho que a gente vem desenvolvendo.
Lá na nossa comunidade tem os grupos culturais, a cultura tradicional
permanece até hoje, as rezas, as folias, a culinária, os cantos, as danças do
Catira, dança do tambor. E o ponto de cultura está apoiando, pra que es-
sas atividades da cultura tradicional, que aprendemos com nossos ancestrais,
nunca desapareçam.
A gente ainda mantém a casa de farinha, temos a fábrica, só que não
queremos produzir em escala industrial, queremos manter a questão artesa-
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nal. Mesmo com as máquinas vamos manter essa cultura de fazer a farinha
como era feita antes e que fica mais gostosa. A maioria do trabalho na comu-
nidade é trabalho comunitário e mantemos ainda trabalho em grupo, trabalho
em mutirão, pra fortalecer o vinculo familiar que vinha desde antes. Nessa
questão cultural, ainda nos casamentos, nas festas onde todo mundo ajuda o
outro, todo mundo vai para a casa do outro para ajudar e mesmo as pessoas
evangélicas também nos ajudam. E ajudamos a eles, na medida do possível.
Antes era mais difícil na comunidade. As mulheres muitas vezes não
tinham coragem de assumir, pensavam que tinham que ficar ali só cuidando
de casa, cuidando dos filhos. Mas hoje as mulheres têm trabalho, saem para
trabalhar fora. Antes as pessoas faziam alguma coisa, bem pouco, e isso não
dava para viver, não tinham máquinas para que o agricultor familiar pudesse
desenvolver o seu trabalho, o transporte era a cavalo, a pé. E hoje, nós temos
o desenvolvimento na comunidade. Trabalhamos projetos com a agricultura
familiar, temos máquinas pra desenvolver o trabalho tanto para o agricultor
quanto para agricultora rural. E temos transporte para os jovens irem à esco-
la, a escola da comunidade fechou, mas as crianças estudam em um povoado.
A maioria, 80% dos jovens já está terminando o 2º grau, mais ou menos uns
5% já estão fazendo faculdade. Aqueles que não estão fazendo estão sonhan-
do em fazer, mas devido aos cursos que eles querem fazer ficarem distantes
da comunidade, estão lutando para conseguir transporte. E vamos conseguir
não apenas para que eles possam ir à faculdade, mas também aos cursos téc-
nicos, pois muitos desses jovens vão trabalhar na comunidade, ligado à admi-
nistração, à terra, ligada a outros trabalhos. A prioridade é que eles possam
estudar e morar na zona rural e viver bem.
Muitas das mulheres negras que conheço têm coragem de falar, de
lutar e de não pensar assim: “eu não posso” e vão à luta, às vezes são várias
mulheres negras. Às vezes, também, tem mulheres negras que não têm cora-
gem de enfrentar a questão racial, acho que não é só no estado de Goiás, mas
no Brasil. E falta também muita política pública para atender a mulher negra
no Brasil. Se fala de política pública, se fala de projeto, se fala de desenvolvi-
mento, se fala da questão racial, mas muito pouco ainda é feito para apoiar a
questão da mulher negra. Eu vejo que falta mais coragem das mulheres, de
enfrentar e mostrar que a gente pode e pode fazer também.
Então eu espero que a própria mulher negra possa ter coragem de
realmente assumir, enfrentar e mostrar que a gente é capaz. E posso falar
por mim: eu sonhava em fazer as coisas para a comunidade e ajudar as outras
comunidades. Mas eu não pensava que chegaria a tanto. E não apenas eu; tem
lá outras mulheres que têm coragem de enfrentar e vencer.
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eles ficassem ali, no meio assim né? Compõem uma das cinco colônias de
descendentes europeus.
Na colônia onde a gente morava tinha um colégio estadual que era
onde eu estudava, ficava na vila dos brasileiros; e tinha o colégio dos ale-
mães, que ficava do lado dos alemães. No colégio dos alemães tinha línguas e
tudo mais e era uma escola completamente preparada pra desenvolver todo
o potencial de um aluno. E na escola dos brasileiros, era uma escola estadual.
Dentro disso, nós éramos o grupo dos sem terra, dos negros, que estavam ali
acampados na Colônia Socorro.
Então haviam , muitas, muitas situações assim, desapontamentos. Ti-
nha uma colega que era chamada de fuscão. Ela era agredida verbalmente,
fisicamente, na escola e ela não baixava a bola, ela era uma pessoa comple-
tamente empoderada. Mas eu vi o quanto aquilo agredia ela, todos os dias.
Então eu posso não ter sofrido algo completamente que tenha me ofendido
por toda essa construção que eu já tinha, que eu acho que eu já tinha de casa.
Mas via o quanto os meus primos, os meus irmãos, toda a minha galera ali era
ofendida diariamente por ser negro.
No natal de 2011 a gente estava na sede da comunidade e estávamos
eu, meu irmão, meu compadre, um amigo, mais um casal, e a gente e estava
ali todo mundo conversando, brincando e estávamos com o som do carro
ligado. Isso era no dia 26 de dezembro, um dia depois do Natal. Eu já tinha
vindo pra Curitiba, então estava todo mundo conversando e chegou uma via-
tura policial e eles mandaram a gente encostar o carro. Já desceram gritando
e mandaram todo mundo encostar. Não se identificaram, chegaram gritando
e agredindo todo mundo. Encostamos as mãos no carro e ficamos parados. O
meu cachorro veio, estava por ali e veio e deitou do meu lado. Eu olhei pro
meu cachorro e balancei a cabeça. Aí o policial, um dos policiais, eles estavam
em dois, virou pra mim e já começou a me agredir verbalmente: “vaca, vaga-
bunda, o que você está se abrindo?”. Eu fui tratada completamente sem qual-
quer respeito que se possa dar a qualquer ser humano, de tentar no mínimo
conversar. Ele já veio me agredindo e tal e disse que era pra eu calar a minha
boca, que vagabunda não tinha direito a falar nada. Pra eu ficar quieta porque
se não eu seria presa. Que se eu estava achando porque eu era mulher eu
não ia apanhar, que eu ia apanhar do mesmo jeito. E aí eu falei pra ele que eu
não calaria minha boca, porque eu iria acompanhá-lo até a delegacia, porque
eu ia prestar queixa pela forma como ele estava falando comigo. Ele apontou
a arma pra mim e me arrastou, mandou eu calar a boca, me arrastou pro
porta-malas do carro, me bateu, me chutou na altura das costelas, bateu com
a porta na minha perna, me agrediu verbalmente, enfim, e bateu a porta do
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carro. Quando meu irmão veio de lá, ele deu ordem para que se meu irmão
agitasse qualquer coisa, era pra ele meter bala. E meu irmão não tinha nada e
aí eles pegaram o carro e me levaram pro posto, que ficava na Colônia Vitória.
Nesse caminho, completamente transtornados, acelerados, em alta veloci-
dade e dizendo que era pra eu ir me batendo, me batendo mesmo, porque
vagabunda ia se batendo. Chegando no posto eu falei: “eu posso fazer uma
pergunta?” e ele disse que vagabunda não pergunta, só espera resposta. E me
deixaram sentada. Um dos outros policiais veio fazer o boletim e perguntou
meu nome, idade, onde eu morava e tal e eu fui falando. Quando eu falei que
no quesito raça/cor, eu disse “pode colocar negra”. Ele olhou pra mim e disse
assim: “tem certeza?”. Eu falei: “sim, eu tenho certeza”. Ele perguntou o grau
de escolaridade e eu falei: “ensino superior completo”. Aí ele me olhou e
disse: “educadinha a moça, né?” Dentre tudo isso, dentre todas essas ironias,
eu não entendi o porquê, pelo fato de eu ser negra eu não posso ter o ensino
superior; por ser mulher eu não posso ter ensino superior? Pelo fato de estar
em uma comunidade conversando com meu irmão e meus amigos com o
rádio do carro deles ligado a gente tinha que ter drogas? A gente tinha que ter
arma? Ou a gente tinha que estar fazendo sexo explícito, por ser de uma co-
munidade rural? Eles chegam na minha comunidade, derrubam todas as latas
de comida das pessoas, isso foi um caso. E chegam com uma ideia formada na
minha comunidade e eu que sou a vagabunda, a puta, a mulher que merece
apanhar? Se isso não é racismo, se isso não é machismo, isso é o que?
Quando olho pra minha vida hoje, eu acho que uma das maiores con-
quistas, pra mim, pra minha família, conquista mesmo pra minha comunidade,
foi o fato de eu ter lutado muito pra eu me formar. Porque, quando eu pas-
sei no vestibular, já havia quilombolas que tinham passado no vestibular, em
faculdades particulares, e estavam ralando há muito tempo, inclusive eu me
espelhei muito neles. Quando eu passei na universidade estadual, cheguei em
casa, o meu pai estava me esperando de braços abertos assim, e ali eu vi que
muita gente da comunidade me olhava tipo assim: “nossa, ela passou”. Nós
fizemos o vestibular acho que umas oito pessoas pela universidade estadual e
só eu passei, o índice não estava tão concorrido. Mas eu passei e a partir daí
eu vi que a galera passou a olhar tipo assim: nossa! Faculdade! Dá pra fazer
faculdade. Não as pessoas me admirando por isso, mas pessoas me olhando e
se espelhando e pensando: porque não? Dá pra fazer.
Eu entrei em 2007 e assim, nesse mesmo ano, estava a galera que
a gente fez vestibular, os nossos amigos, todos os nossos amigos, e todo
mundo foi pra uma faculdade, com bolsa aqui, incentivo ali. E começaram a
correr. Então eu acho que, sem dúvida, uma das maiores conquistas que a
minha comunidade tem, hoje, é que tem muitos filhos e sobrinhos e netos
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Mulheres Negras na Primeira Pessoa
fazendo faculdade. Isso é uma conquista porque pra quem ia pra escola
de Kombi, toda a galera ia de Kombi, a Kombi encalhava, a gente descia,
andava quilômetros no barro, voltava a pé pra casa com chuva, os pais iam
buscar no meio do caminho, outros iam de caminhão, outros de trator.
Aquelas crianças todas indo no meio da soja, porque a gente atravessava
uma lavoura de soja pra chegar na comunidade, tipo chuva, barro, frio, de
qualquer forma. Então, olhar e ver: ‘Ah a minha colega, amor da minha vida,
a Dandara, ela terminou a faculdade de educação física, passou no concurso
público, está fazendo pós-graduação e ela está sendo agente comunitária de
saúde’. A comunidade hoje já tem uma agente de saúde formada, que pode
estar lá dentro, atendendo a própria comunidade ou não, mas é fruto isso,
é conquista, então eu vejo dessa forma.
Acho que a minha liberdade também é conquista. Eu reconheço que
fazer a faculdade, a minha formação, foi um momento fantástico pra eu me
libertar enquanto pessoa. Poder ter essa visão que eu tenho hoje da minha
comunidade é uma conquista, o meu trabalho hoje é uma conquista muito
grande, o meu trabalho com as pessoas, com as comunidades. E é uma con-
quista diária.
Eu estava ouvindo uma música, ou era uma entrevista, não lembro
bem, que dizia assim: “tudo que acontece no Brasil, ele consegue se estra-
gar”. Ele consegue ser um lugar ruim pra morar. O maior reflexo disso pra
mim é onde eu estou inserida, das pessoas que estão em volta de mim. Morar
em Curitiba não é fácil, você precisa ter uma determinação muito grande, um
empenho muito grande. Porque você precisa lidar com muitas coisas ao mes-
mo tempo. O custo de vida é muito alto, a pressão urbana é muito grande, o
barulho é intenso. Então tudo isso acaba afetando a maneira como você leva a
sua própria vida, se você dorme bem, se você está com a mente tranquila, se
está bem de saúde. Isso acaba gerando, talvez, a forma de vida que eu esteja
levando, acaba gerando uma série de coisas. Mas olhar pra população em
geral, sobretudo pra população negra, sobretudo pros índices de mortalidade
materna, não está bom não; olhar pro índice de jovens, negras e negros que
estão morrendo.
Eu vejo que os índices de violência contra as mulheres negras, contra
as mulheres, estão grandes. Enquanto que as mulheres negras, a gente sabe,
são a camada mais pobre da população. Você imagina as condições de vida,
você vê as condições de vida. Eu não sei como podem não ser priorizadas
essas questões e aí a gente entra até em assunto como as cotas, por exemplo.
As pessoas dizem: “todo mundo tem a mesma oportunidade”. Não, não tem:
a grande maioria das pessoas não tem uma casa decente pra morar, não tem
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uma escola decente pra estudar. E como você trata isso? Uma pessoa que
estudou a vida inteira, uma pessoa que teve uma família acolhedora, uma co-
munidade, uma casa e diz que essas pessoas têm as mesmas condições? Que
elas vão se desenvolver da mesma forma? Não dá. Se as mulheres negras são
a camada mais pobre da população, são as que mais sofrem violência, são as
que mais necessitam de atendimento médico, por uma serie de especificida-
des que a mulher negra tem, inclusive no parto. O índice de mulheres negras
que morrem no parto também é altíssimo. São ações que precisam ser prio-
rizadas. Por quê? Porque ainda não estão, não são suficientes nem de longe,
as pessoas estão morrendo. E quando a gente fala “pessoas estão morrendo”,
a gente tem que falar que a maioria das pessoas são negras. E o que é isso? É
normal? Esse é o problema: quando a gente começa achar que é normal olhar
pra uma pessoa na rua deitada e ela ser negra e a gente achar que é normal;
não é normal, não pode ser.
Futuro? O futuro eu acho que é muito longe! Sabe, pra esperar que
algo seja de determinada forma lá, tem que ser já. O futuro não vai estar lá
construído sozinho, eu não posso idealizá-lo, porque ele nunca vai ser dessa
forma. Mas nós precisamos de questões urgentes, não dá pra fazer tudo, não
dá, eu já percebi isso. Por exemplo, quando eu me refiro à comunidade, são
muitas questões que precisam ser resolvidas. O que eu espero de um futuro
é equidade social, porque não dá pra olhar pra um determinado grupo e ver
que se esbanja muito dinheiro e olhar pra outro lado e ver que tem crianças
morrendo de fome assim do teu lado, porque não tem um acompanhamento
adequado. Estas crianças estão realmente morrendo, elas estão definhando.
Quando você olha é muita coisa, não dá pra resolver tudo, mas dá pra ir re-
solvendo aos poucos, em partes. Precisa ser feito em partes, e precisa que as
pessoas se mobilizem pra fazer também, tipo, as pessoas gritam por justiça
social, gritam por honestidade, mas nas ações mínimas acho que não se im-
portam muito.
Deixo uma mensagem para a menina negra que está nascendo agora:
já foi muito pior, mas tem muita gente que lutou mesmo, tem muita gente
que está lutando em todos os campos. Eu falo assim pro meu irmão, que o
militante que está na rua, o ativista que está na rua, ou que está dentro de um
gabinete em reunião com gestores públicos, discutindo racismo, ele tem tan-
to valor quanto o menino negro que está na universidade, quanto o menino
negro que faz capoeira, quanto aquele artista que faz um espetáculo, que fala
sobre isso e apresenta, quanto a professora que vai pra uma aula e diz: “olha,
vamos falar hoje sobre a revolução dos malês? São várias formas de se fazer,
e tem muita gente lutando. Então que ela venha, linda e arrasadora. Que ela
solte os cachos dela, que ela solte o cabelo black dela, porque os cabelos são
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símbolo de muita coisa. Que ela não tenha vergonha, de forma alguma, dos
lábios, do nariz, dos seios ou das formas arredondadas, ou das formas magras
que ela venha ter. Quando ela olhar pro tanto de mulher negra que tem nesse
mundo aqui e ver que essas mulheres são guerreiras, que elas são coletivas, e
que essa é uma Era das Mulheres, ela vai se sentir em casa. E ela vai saber que
tem muita gente também aqui, e que ela pode se integrar e mudar também
muita coisa.
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