Fernando Pessoa para Crianças

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POEMAS DE FERNANDO PESSOA PARA CRIANÇAS

O Poeta aos 10 anos.


POEMA PIAL
Toda gente que tem as mãos frias

Deve metê-las dentro das pias.

Pia número UM,

Para quem mexe as orelhas em jejum.

Pia número DOIS

Para quem bebe bifes de bois.

Pia número TRÊS,

Para quem espirra só meia vez.

Pia número QUATRO,

Para quem manda as ventas ao teatro.

Pia número CINCO,

Para quem come a chave do trinco.

Pia número SEIS,

Para quem se penteia com bolos-reis.

Pia número SETE,

Para quem canta até que o telhado se derrete.

Pia número OITO,

Para quem parte nozes quando é afoito.

Pia número NOVE,

Para quem se parece com uma couve.

Pia número DEZ,

Para quem cola selos nas unhas dos pés.

E, como as mãos já não estão frias,

Tampa nas pias!


A criança que fui chora na estrada.

A criança que fui chora na estrada.


Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou


A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar


Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,


E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

Olha-me rindo uma criança

Olha-me rindo uma criança


E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.

Bem sei. Tudo isto é um sorriso


Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.

Breve momento em que um olhar


Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.
CRIANÇA DESCONHECIDA

por Alberto Caeiro

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,


Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras
estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta

Quando as crianças brincam

Quando as crianças brincam


E eu as ouço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância


Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,


E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.

05/09/1933

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