Epidemias

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edições makunaima

Coordenador
José Luís Jobim
Revisão
André Cabral de Almeida Cardoso, Claudete Daflon, Pedro Sasse
Diagramação e editoração
Casa Doze Projetos e Edições
EPIDEMIAS:
literatura, história e cultura

ORGANIZADORES

André Cabral de Almeida Cardoso


Claudete Daflon
Pedro Sasse

Rio de Janeiro

2021
Conselho Consultivo

Alcir Pécora (Universidade de Campinas, Brasil)


Alckmar Luiz dos Santos (NUPILL, Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil)
Amelia Sanz Cabrerizo (Universidade Complutense de Madrid, Espanha)
Benjamin Abdala Jr. (Universidade de São Paulo, Brasil)
Bethania Mariani (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Cristián Montes (Universidad de Chile, Facultad de Filosofía y Humanidades, Chile)
Eduardo Coutinho (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Guillermo Mariaca (Universidad Mayor de San Andrés, Bolívia)
Horst Nitschack (Universidad de Chile, Facultad de Filosofía y Humanidades, Chile)
Ítalo Moriconi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
João Cezar de Castro Rocha (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Jorge Fornet (Centro de Investigaciones Literárias – Casa de las Américas, Cuba)
Lívia Reis (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Luiz Gonzaga Marchezan (Universidade Estadual Paulista, Brasil)
Luisa Campuzano (Universidad de La Habana, Cuba)
Luiz Fernando Valente (Brown University, EUA)
Marcelo Villena Alvarado (Universidad Mayor de San Andrés, Bolívia)
Márcia Abreu (Universidade de Campinas, Brasil)
Maria da Glória Bordini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Maria Elizabeth Chaves de Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Marisa Lajolo (Universidade de Campinas/Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Brasil)
Marli de Oliveira Fantini Scarpelli (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Pablo Rocca (Universidad de la Republica, Uruguai)
Regina Zilberman (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Roberto Acízelo de Souza (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Roberto Fernández Retamar (Casa de las Américas, Cuba)
Salete de Almeida Cara (Universidade de São Paulo, Brasil)
Sandra Guardini Vasconcelos (Universidade de São Paulo, Brasil)
Silvano Peloso (Universidade de Roma La Sapienza, Itália)
Sonia Neto Salomão (Universidade de Roma La Sapienza, Itália)
Sumário

APRESENTAÇÃO 7

Parte I: Epidemia e imaginário

DE DOENÇAS REAIS A DOENÇAS FICCIONAIS: omissão, 16


atenuação e imunização nas epidemias literárias
Áureo Lustosa Guérios

O CINEMA-CATÁSTROFE E AS NARRATIVAS DE 45
EPIDEMIA
Marcio Markendorf

O PÓS-APOCALIPSE PANDÊMICO DE JACK LONDON 74


Pedro Sasse

O QUE O PÓS-APOCALIPSE ZUMBI TEM A NOS DIZER 106


SOBRE O “NOVO NORMAL”?
Valéria Sabrina Pereira

ESSA ESTRANHA DOENÇA: o imaginário da epidemia em 131


três histórias em quadrinhos contemporâneas
André Cabral de Almeida Cardoso

A PANDEMIA DE COVID-19 E O “IMAGINÁRIO 164


PANDÊMICO” NO ANTROPOCENO
André Felipe Cândido da Silva
ParteII: Epidemias e políticas da destruição

BRASIL NECROPOLÍTICO: segregação social, racismo e 203


eugenia ontem e hoje
Vanderlei Sebastião de Souza
Rodrigo Mello Campos

UM “ARQUIVO FEBRIL”: itinerário para as tramas entre 224


literatura e epidemia
Marcelo dos Santos

SAÚDE INDÍGENA, DESENVOLVIMENTO E 256


INVISIBILIDADE: breves capítulos do genocídio dos
povos originários no século XX
Rômulo de Paula Andrade

EPIDEMIAS E EXTRATIVISMO: a literatura indígena na 281


linha de frente
Claudete Daflon

O CANTO DO CORVO: ressignificando as epidemias 312


através da literatura indígena
Rubelise da Cunha

SOBRE OS AUTORES 329

ÍNDICE 332
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Apresentação

Este livro surgiu de um sentimento de perplexidade. Quando


ele começou a ser pensado, apenas quatro meses nos separavam do
primeiro caso de covid-19 no Brasil. No entanto, já contávamos com
mais de sessenta mil mortos pela doença, e era possível perceber
as primeiras indicações da mistura de omissão, incompetência e
interesses espúrios que em pouco tempo nos levaria à marca de mais
de meio milhão de vítimas. Longe de qualquer vacina, de qualquer
promessa de retorno à normalidade, estávamos, ainda, atônitos
diante das cenas surreais das cidades esvaziadas, da transformação
diária da morte em estatística, da incerteza de como se proteger,
mesmo em casa.
Ao mesmo tempo, a dúvida e a insegurança que vivíamos
alimentavam o desejo de pensar o que significava aquele momen-
to tão ímpar na experiência da maior parte de nós. Da medicina
7
à literatura, da economia à filosofia, o mundo intelectual não se
rendeu à imobilidade diante do horror, mas rapidamente buscou
os meios para adaptar a pesquisa à nova realidade e reunir-se na
tentativa de refletir sobre o chamado “novo normal”. Aqui no Bra-
sil, constantemente atacados pelo anti-intelectualismo do governo
federal, mostrar que a academia não havia parado era uma questão
de sobrevivência.
Pensando nisso, surgiu a ideia que serviu de fagulha para a
migração dos eventos do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Literatura da Universidade Federal Fluminense para a modalidade
online: uma série de lives a serem transmitidas no Canal Estudos
de Literatura UFF, na plataforma YouTube. Encabeçada pelo coor-
denador da pós-graduação, prof. Silvio Renato Jorge, uma equipe se
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

reuniu para fazer o primeiro experimento do programa no mundo


virtual pandêmico. O tema da primeira série de encontros virtuais foi
justamente a pandemia, numa tentativa de compreender, ainda num
contexto de urgência, a crise pela qual todos estávamos passando e
a que era tão importante dar um significado.
Surgia, assim, o programa Conversas sobre literatura e cultu-
ra, idealizado para ser uma atividade permanente do canal durante
a quarentena, convocando estudiosos de diversas áreas para debates
sobre temas variados. O primeiro ciclo de conversas – Epidemias:
literatura e cultura –, organizado pelos professores Silvio Renato
Jorge, André Cabral de Almeida Cardoso e Claudete Daflon, e pelo
pós-doutorando Pedro Sasse, deu, então, origem a este livro.
Nossa intenção, ao organizar o evento, era promover uma
ampla discussão em torno da questão da epidemia, encarada do
ponto de vista histórico, epistemológico e sociocultural. Buscáva-
mos, então, através de uma abordagem transdisciplinar, meios de
refletir sobre os efeitos que as epidemias tiveram no passado – e
continuavam a exercer no presente – sobre o nosso imaginário,
8
as nossas organizações políticas e nossa própria maneira de ver
o mundo. Mais do que encontrar respostas para os dilemas que a
pandemia nos impunha, pretendíamos que a situação de crise nos
desse a oportunidade de pensar sob uma nova perspectiva a nossa
relação com a doença, com a ciência e com a sociedade.
O evento contou, assim, com quatro debates sobre epidemia,
sempre agrupados em eixos temáticos mais específicos: necropo-
lítica, a situação dos povos originários, o imaginário em torno da
doença e sua representação no cinema e na literatura. Cada diálogo
foi composto por dois convidados de diferentes áreas do conheci-
mento, sendo mediado por um dos quatro organizadores. Ao fim,
cada um dos participantes, organizadores e convidados se propôs a
escrever um capítulo para compor este livro.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

A fim de realçar o diálogo e as conexões entre os diversos


textos, organizamos os capítulos em dois grandes blocos: um voltado
para o Epidemia e imaginário e outro voltado para as relações
entre as epidemias e as Políticas da destruição.
Abrindo a seção Epidemia e imaginário, em “De doenças
reais a doenças ficcionais: omissão, atenuação e imunização nas
epidemias literárias”, Áureo Lustosa Guérios, doutor pela Universi-
dade de Pádua e criador do podcast Literatura Viral, faz um extenso
panorama sobre a relação entre a literatura e as epidemias, passando
pelas literaturas clássica, inglesa, francesa, russa e brasileira. Com
um cuidadoso detalhamento histórico das epidemias que marcam
certos recortes históricos, Guérios nos permite ver como, em diversos
contextos, autores lidaram com o cenário de doença e morte que
os cercava, e como a própria natureza dessas epidemias alterava a
relação estabelecida com as obras literárias.
Panorama semelhante faz Márcio Markendorf, professor do
curso de cinema da UFSC, em “O cinema catástrofe e as narrativas
de epidemia”. Markendorf nos mostra que o gênero, já reconheci-
9
do por Susan Sontag no ensaio A imaginação da catástrofe, em
1965, apesar de ser tomado por muitos como puro entretenimento,
aponta para importantes questões sobre a sociedade e a consciência
humana, considerando-o como uma espécie de “dispositivo ritual
que mitiga as ansiedades sobre desastres ao oferecer a imolação de
vítimas fictícias e a destruição teatralizada de cidades inteiras na
cerimônia coletiva da sala de cinema”. Por meio da análise de filmes
como Epidemia (1994), Fim dos tempos (2008), Vírus (2009) e Os
últimos dias (2013), Markendorf mostra como, apesar de sua sim-
plicidade narrativa, essas obras podem suscitar debates expressivos,
nos ajudando a repensar desde o capitalismo de forma geral até
questões específicas sobre ecologia e necropolítica.
Parte dos filmes explorados por Markendorf em seu capítulo
podem também ser encaixados na categoria de ficção pós-apocalíp-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

tica, tema sobre o qual se debruça Pedro Sasse, pós-doutorando do


Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UERJ/FFP,
no texto “O pós-apocalipse pandêmico de Jack London”. Apesar de
focar especificamente no breve romance A praga escarlate (1912), de
Jack London, um dos primeiros textos pós-apocalípticos centrados
em uma pandemia, Sasse propõe uma estrutura narrativa recorrente
do gênero, analisando as funções e sentidos por trás de cada uma
das etapas envolvidas na recuperação da sociedade destruída por
um cataclismo.
O cinema também é o tema de “O que o pós-apocalipse zumbi
tem a nos dizer sobre o ‘novo normal’?”, de Valéria Sabrina Pereira,
professora adjunta da UFMG, que traça um breve histórico dos filmes
de zumbis a fim de mostrar como eles refletem não só ansiedades
relacionadas às epidemias, mas também diferentes atitudes em
relação ao racismo e a papéis sociais, além de se utilizar da visão
do apocalipse para expressar o desejo de um recomeço. Esse desejo
se manifesta, no contexto pandêmico da covid-19, através da noção
de um “novo normal”, “um acúmulo de projeções desejosas (ou,
10
ocasionalmente, temerosas) que fazemos enquanto aguardamos um
futuro ainda incerto”. Os filmes de zumbis, portanto, funcionariam
como uma importante ferramenta de problematização do real.
Impulso semelhante se faz notar nas três narrativas gráficas
discutidas por André Cabral de Almeida Cardoso, professor asso-
ciado de Literaturas em Língua Inglesa da Universidade Federal
Fluminense, em “Essa estranha doença: o imaginário da epidemia
em três histórias em quadrinhos contemporâneas”. Analisam-se aqui
as maneiras como Sweet Tooth, de Jeff Lemire, Y: The Last Man,
de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, e Black Hole, de Charles Burns,
abordam as epidemias como indícios de nosso imaginário cultural
em torno da doença. Nessas narrativas, a doença apresenta um ca-
ráter ambíguo de revelação e ocultamento, desordem e organização,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

colocando em questão nossa posição dentro do mundo, assim como


os mecanismos através dos quais buscamos dar sentido ao real.
Fechando a primeira seção, em “A pandemia de covid-19 e
o ‘imaginário pandêmico’ no Antropoceno”, André Felipe Cândido
da Silva, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, discute a
pandemia de covid-19 como uma expressão do Antropoceno, não
só por esta ser um efeito de fenômenos como a colonização de es-
paços antes afastados das atividades humanas e a maior circulação
dos indivíduos com os transportes modernos, mas também na sua
condição de símbolo de nossas relações complexas com o Sistema
Terra. Ao revelar as profundas inter-relações entre o humano e o
não-humano, a crise provocada pela covid nos força a uma reava-
liação ontológica da nossa posição no mundo, apontando para a
necessidade de reconhecermos a ausência de fronteiras claras entre
a humanidade e outras espécies.
Abre a seção Epidemias e políticas da destruição o
capítulo “Brasil necropolítico: segregação social, racismo e eugenia
ontem e hoje” de autoria de Vanderlei Sebastião de Souza e Rodrigo
11
Mello Campos. No texto, os cenários distópicos de romances do es-
critor Ignácio de Loyola Brandão funcionam como ponto de partida
para uma reflexão sobre eugenia, racismo e necropolítica no Brasil
atual. A perspectiva histórica dos autores possibilita a compreensão
de processos subjacentes a uma realidade marcada por profundas
desigualdades. Na reflexão que desenvolvem sobre a permanência
de práticas eugenistas no país, os pesquisadores observam que o
quadro de vítimas da covid-19 evidencia a gravidade da segregação
social e racial ainda vigente, bem como a sua participação na tragédia
social deflagrada em meio a uma crise sanitária.
Nesse contexto, a relevância da produção literária, em suas es-
treitas relações com a história, aparece claramente indicada em “Um
‘arquivo febril’: itinerário para as tramas entre literatura e epidemia”,
capítulo de Marcelo Santos. O professor da Unirio propõe uma refle-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

xão sobre a Gripe Espanhola no Rio de Janeiro do início do século


XX a partir da montagem do que chama de arquivo febril. Analisa
publicações de intelectuais e literatos em periódicos da época a fim
de flagrar contradições e desigualdades do projeto de modernidade
que se buscou implementar no país. Sem pretender uma redução do
presente ao passado, mas atento à formação histórica de modelos
sociais, o autor dá destaque à situação vivida por grupos vulneráveis,
como a população carcerária, negra e pobre da cidade. Para Marcelo
Santos, trata-se, na verdade, de uma necromodernidade.
Os dois primeiros capítulos da seção convergem ao refletir
sobre os modos como a segregação étnico-social aparece integrada
a ações modernizadoras e práticas médico-higienistas na história
do Brasil. Essas discussões colocam em xeque noções como pro-
gresso e desenvolvimento, principalmente por tornar evidente que
não se entrega o que é prometido, pelo menos não aos setores mais
desfavorecidos da sociedade. Ademais, as epidemias e pandemias
agudizam esse estado de coisas.
Quando se trata, contudo, de pensar a situação de grupos
12
representados pelos povos indígenas ou tradicionais como os qui-
lombolas, a situação representada pela pandemia de covid-19 evoca
uma história de invasões e massacres. De fato, o papel relevante das
doenças infecciosas nesse processo de destruição está relacionado
ao avanço das fronteiras “civilizatórias”. Nesse sentido, Rômulo de
Paula Andrade, em seu texto “Saúde indígena, desenvolvimento e
invisibilidade: breves capítulos do genocídio dos povos originários
no século XX”, assinala a premência de uma reflexão que explora a
noção de desenvolvimento e o impacto de políticas de Estado em sua
conexão a um discurso que encara os povos originários e a floresta
como obstáculos ao progresso. O historiador, ao tratar em especial
dos casos da construção das estradas Belém-Brasília (1958) e Tran-
samazônica (1970), bem como da usina hidrelétrica de Belo Monte
(2006), defende que a ideologia desenvolvimentista tem perdurado
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

e faz-se presente em governos democráticos e autoritários. Nesse


contexto, interessa ao pesquisador discutir como a relação entre o
Estado brasileiro e as comunidades indígenas tem sido marcada pela
precariedade de assistência de saúde e pela degradação das condições
de vida locais, algo que ainda mais se agrava em uma pandemia.
A esse debate se soma aqueles que têm considerado os efeitos
da expansão extrativista em regiões do mundo como a América La-
tina. Em “Epidemias e extrativismo: a literatura indígena na linha
de frente”, Claudete Daflon propõe uma leitura de duas publicações
da liderança indígena Ailton Krenak – Ideias para adiar o fim do
mundo (2019) e A vida não é útil (2020) – com a finalidade de, a
partir de uma perspectiva relacional tomada às cosmologias ame-
ríndias, discutir a necessidade de reconhecer conexões entre extra-
tivismo e epidemias, ou mesmo pandemias como a de covid-19. A
autora argumenta a favor de uma renovação epistêmico-discursiva
que favoreça práticas contrárias à destruição da vida. Diante disso,
a pesquisadora reconhece o valor contra-hegemônico da literatura
indígena, uma vez que em resposta à predação extrativista em seu
13
consórcio com a ideologia desenvolvimentista, a difusão de outras
cosmologias representa uma possibilidade de construção de outros
modelos de sociedade, economia e pensamento.
A aposta no conhecimento de povos originários das Amé-
ricas para a construção de alternativas representa uma forma de
disputa política e epistemológica. Nesse sentido, encerra a seção o
capítulo “O Canto do Corvo: ressignificando as epidemias através
da literatura indígena”, no qual Rubelise da Cunha discorre sobre o
valor estratégico das artes verbais indígenas, em sua possibilidade,
como literatura, de ressignificar o entendimento das epidemias e de
outras medidas genocidas. Como esclarece a autora, um romance
como Ravensong (O Canto do Corvo), escrito por Lee Maracle, do
povo Salish da Costa Oeste do Canadá, propõe outras concepções ao
recontar, pelo viés mítico do Corvo, a história da epidemia da gripe
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que assolou os Salish. Se a distribuição de objetos contaminados


por vírus como o do sarampo a populações não imunes se somava
a outros procedimentos de extermínio, a desconstrução narrativa
do discurso de dominação está amparada em premissas que se
diferenciam da que tem orientado a destruição do outro. Ou ainda,
como a pesquisadora observa, é necessário cruzar a ponte que separa
brancos e indígenas.
Tomados em seu conjunto, os artigos aqui reunidos mostram
a complexidade dos fenômenos epidemiológicos, tanto no que diz
respeito aos fatores que explicam o seu surgimento e o seu impacto
nos diferentes segmentos da população, quanto no impacto ideo-
lógico e cultural que produzem. Pensar sobre epidemias implica
justamente cruzar pontes, estabelecendo relações nem sempre óbvias
entre categorias díspares. Essa tentativa de investigação revela que
muitas dessas categorias – incluindo algumas tradicionalmente tidas
como fundamentais, como a do humano e não humano – na verdade
nunca foram distintas, mas são construções dotadas de história e
que se encontram em constante transformação. As epidemias são
14
eventos coletivos não só porque demonstram a fragilidade da sepa-
ração entre indivíduo e comunidade, mas também porque envolvem
as nossas concepções conjuntas de mundo, nossas relações sociais
mais amplas e nossas tentativas de criação de significado.

André Cardoso
Claudete Daflon
Pedro Sasse
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Parte I
Epidemia e imaginário
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

De doenças reais a doenças ficcionais: omissão,


atenuação e imunização nas epidemias literárias
Áureo Lustosa Guérios1

As doenças são parte inescapável da vida humana: todos já


ficamos doentes, todos ainda ficaremos. Em 2019, a Organização
Mundial da Saúde elencou as dez principais causas de morte no
mundo: todas são doenças.2 Cardiopatologias resultaram em 8,9
milhões de mortes em 2019 (16%), número quase sete vezes maior
do que os 1,35 milhões de óbitos ligados a acidentes de trânsito em
2018 (2,4%).3
As doenças ocupam espaço central na experiência humana –
ainda que não nos agrade olhá-las desta maneira –, da mesma forma
que outros fatores universais como o amor e o afeto, a alegria e a
16 tristeza, as dificuldades e conflitos, entre muitos outros. Assim sendo,
não é surpreendente que o adoecimento e a convalescência apareçam
constantemente na literatura e nas artes. Estes são temas fundamen-
tais de inúmeras obras que os discutem extensamente e sob as mais
variadas perspectivas. Nas próximas páginas, busco refletir sobre o
tópico, apontando para algumas diferenças entre a representação
da doença individual e da coletiva, bem como para alguns de seus
usos: entretenimento, escapismo, imunização psicológica.
Quando pensamos em doenças em relação à literatura, é natu-
ral e imediato que tenhamos a curiosidade de revisitar a biografia dos

1 Doutor em Literatura Comparada e Humanidades Médicas pela Univer-


sidade de Pádua, na Itália.
2 Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/
the-top-10-causes-of-death.
3 Disponível em:https://www.who.int/publications/item/9789241565684.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

respectivos autores. Como não lembrar da tuberculose de Bandeira


e Keats? Da epilepsia de Dostoievski e Machado? Da depressão de
Virginia Woolf e Sylvia Plath? Por vezes, nos concentramos na perda
de alguma das capacidades físicas de determinado artista, como a
loucura de Hölderlin e Nietzsche, ou a perda de visão de Monet e
Borges. Essa propensão ao biografismo se dá por diversos motivos.
Em primeiro lugar, pelo deslumbre e admiração que resultam da
vitória sobre o sofrimento. Se Frida Kahlo criou obras tão ricas e
fascinantes lutando contra todo tipo de problemas de saúde, o que
não teria feito caso gozasse de saúde inabalável? Ou seriam, jus-
tamente, as muitas dificuldades e sofrimentos a alimentarem sua
criatividade? Em outras palavras: suas obras existem não obstante
suas doenças, ou justamente por causa delas? As respostas serão
indubitavelmente longas e complexas, mas essas questões nos in-
teressam justamente porque a convalescência é algo com que todos
conseguimos nos relacionar.
Em segundo lugar, talvez devamos admitir que nosso interesse
biográfico no padecimento de artistas se nutre, ao menos em parte,
17
pelo desejo secreto de alentar mitos românticos. O melhor exemplo
dessa tendência talvez se encontre nas múltiplas anedotas sobre a
surdez de Beethoven. Como negar a genialidade do mestre que, de
forma enigmática, conduz impecavelmente a Nona Sinfonia, ainda
que surdo? De alguma forma, parece-nos que suas aptidões musicais
atingiram tal nível, que o fizeram transcender o humano, algo com-
provado por seu inexplicável domínio sobre a situação. Como se não
bastasse, sua glória aumenta ulteriormente ao final da performance,
pois Beethoven não escuta os estrondosos aplausos do público, per-
cebendo-os apenas após gestos alusivos dos membros da orquestra.
Deste modo, podemos admirar a dedicação absoluta do compositor
à religião da arte e seu descaso para com as efemeridades mundanas.
Meu objetivo aqui não é desmerecer Beethoven e suas aflições, mas
sim chamar a atenção para a ingenuidade de anedotas do gênero.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Doenças e limitações físicas são experiências complexas,


constituídas tanto por fatores biomédicos, quanto por fatores cul-
turais, sociais, econômicos, psicológicos, entre outros. Suas conse-
quências tocam as mais variadas esferas da vida, o que faz com que
as doenças sejam eminentemente narrativas. A convalescência de
um indivíduo nos convida, por exemplo, a explicar suas origens e
causas, a acompanhar seu desenrolar com atenção, e talvez a agir
em busca da cura. Assim, do ponto de vista discursivo, seja na arte
ou no cotidiano, a enfermidade encerra enorme potencial narrati-
vo – algo que escritoras e escritores compreendem muito bem. É
fácil imaginar a convalescência como uma batalha heroica entre o
doente e seus tormentos, cujo resultado oscilará entre dois polos: o
herói vitorioso recobra sua saúde afinal, ou, exaurido, tragicamente
se prostra diante da deficiência ou da morte.
É desta forma, por exemplo, que Domingos Caldas Barbosa
trata o seu próprio padecimento causado por um tumor em A do-
ença: poema offerecido à gratidão (1777). O texto relata as várias
etapas do adoecimento: as origens do mal, a perda progressiva da
18
saúde, as tentativas de cura, o desespero perante a morte iminente,
e, por fim, a recuperação milagrosa graças à generosa proteção de
um mecenas e à perícia de um cirurgião. O processo é descrito com
diversas matizes heroicas e, por este motivo, emprega as convenções
da poesia épica, que vão da adoção da forma de Os Lusíadas, às
invocações, dedicatórias, ferramentas retóricas, referências mito-
lógicas e mais.
Já em A morte de Ivan Ilitch (1886) nos deparamos com a
situação oposta. Há pouco de heroísmo no texto de Tolstói, pois o
tumor de Ivan Ilitch funciona na narrativa como um transformador,
um oráculo que revela ao herói que sua vida foi leviana e inócua.
Ao contrário do que pensava até então, Ilitch percebe que houve
pouco ou nada de grandeza em sua existência, uma descoberta que
chega tarde demais já que ele não terá uma segunda chance. O herói
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

bem sabe que tudo o que lhe resta é amargurar-se pelas escolhas do
passado e tentar resistir a seu martírio com estoicismo.
Independentemente de qual seja o resultado final, em ambos
os casos estamos diante de narrativas que tratam da doença de um
indivíduo e que estudam as inúmeras e idiossincráticas reações ao
adoecimento. Em literatura, os textos pertencentes a esta categoria
são numerosos e, com alguma frequência, recebem o nome do en-
fermo. Basta pensar em Dombey e filho (1848), de Charles Dickens,
Mastro-don Gesualdo (1889), de Giovanni Verga, A consciência de
Zeno (1923), de Italo Svevo ou Doutor Fausto (1947), de Thomas
Mann. Na literatura brasileira poderíamos lembrar da tuberculose
em Lucíola (1862), de José de Alencar, da loucura em Triste fim de
Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto, ou da AIDS em “Linda,
uma história horrível” (1988), de Caio Fernando Abreu. Por vezes, o
doente não é nomeado explicitamente, mas designado por algo que
o caracterize: O Alienista (1882) de Machado de Assis, A dama das
camélias (1852), de Dumas, “O bebê de tarlatana rosa” (1910), de
João do Rio, Diário de um pároco de aldeia (1936), de Bernanos.
19
A doença enquanto experiência de um indivíduo – seja o
enfermo o personagem principal ou secundário ou ainda o próprio
narrador – é certamente a forma mais comum de tratar do tema em
literatura, tanto que, em seu clássico estudo Antropologia da doença
(2010, 1993, p. 24), François Laplantine consulta nada menos do
que quatrocentas narrativas pertencentes a esse grupo.
Entretanto, o adoecer pode também ser retratado de forma
despersonalizada em narrativas em que a doença transforma-se no
personagem principal. Nesses casos, o texto procura retratar não
o adoecimento de um indivíduo em específico, mas sim a própria
doença, em terceira pessoa por assim dizer. Isto cria, porém, alguns
problemas para a representação literária já que as doenças não dei-
xam de ser abstrações teóricas sem existência real no mundo. A raiva
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

ou a tuberculose não existem enquanto tal: ambas resultam de uma


série de processos que ocorrem ao longo do tempo em decorrência
da ação do Lyssavirus e do Mycobacterium tuberculosis, respecti-
vamente. Embora esses patógenos causem a raiva ou a tuberculose,
eles não são essas doenças. Eles certamente existem materialmente,
mas até que se desenvolvam em um ser vivo não podemos aferir
que a doença efetivamente exista. Assim, toda enfermidade é, de
certa forma, uma abstração: na verdade, não existem doenças, o
que existem são indivíduos doentes.
Em arte, uma das formas de resolver esse problema ontológico
é representar as enfermidades como entidades mitológicas e perso-
nificadas. Petrarca, por exemplo, no Triunfo da morte (1351-1374),
retrata a peste como uma velha horrenda que marcha triunfalmente
pelo mundo e dialoga com Laura sobre a efêmera condição humana.
O poeta retrata-a sobrepondo símbolos e fundindo as personificações
da doença e da morte. A Peste apresenta-se da seguinte maneira na
ilustre tradução de Camões:

20
Eu sou a importuna acelerada,
Chamada de vós, gente surda e cega,
A quem morte vem antecipada.
Eu sou a que matei a gente grega
E troiana, e no último os romãos,
Que todos minha foice corta e cega.
Não deixo povos gentios nem cristãos,
Chego quando por mim menos se espera,
Atalho mil pensamentos, todos vãos.
(PETRARCA, 2006, I, 37-45)
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Estratégia idêntica é escolhida pelo pintor suíço Arnold


Böcklin que, em A peste (1898) (Figura 1), representa uma cidade
desolada por uma epidemia. A pintura é dominada pela colossal
personificação da Pestilência, que novamente funde-se com a da
Morte. Exatamente como Petrarca cinco séculos antes, Böcklin
imagina-a como uma mulher velha e enrugada, com vestes negras
e uma foice em punho. Ela também é cega – suas órbitas estão
vazias, ainda que não seja um esqueleto –, mas apresenta-se em
uma espécie de dragão ao invés de em um carro triunfal. Ao fundo,
vemos uma rua em uma cidade qualquer, já plenamente ocupada
por pessoas agonizantes e cadáveres. O traçado das vítimas é es-
quemático e pouco acabado, o que gera um contraste nítido com a
proeminência da peste e do monstro que a acompanha. O rosto das
vítimas tampouco é visível, uma vez que o pintor não busca criar
individualidades. Muito pelo contrário, Böcklin anula o destino
individual para transformar a calamidade em uma experiência
exclusivamente coletiva. As vítimas não são representadas aqui por
seu próprio mérito, mas funcionam como atributos que qualificam
21
a personificação da Peste. Ao contrário de um autorretrato de Frida
Kahlo, que busca nos confrontar com a saúde frágil de um doente
bem definido, Petrarca e Böcklin – e inúmeros outros artistas –
procuram representar simbolicamente a própria doença como se
ela pudesse existir materialmente na realidade.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

22
Figura 1: Arnold Böcklin, A peste, 1898, têmpera sobre madeira, 149.5 x 104.5 cm,
Museu das Belas Artes da Basileia

Ademais, nesse tipo de representação simbólica, a doença em


si é muitas vezes discutida em literatura sob a égide das enfermidades
contagiosas e dos surtos epidêmicos. Epidemias são, por definição,
experiências coletivas que tangem não apenas o corpo individual,
mas igualmente o corpo social. Elas afetam largas parcelas da po-
pulação de forma inesperada e abrupta, o que gera consequências
significativas que transcendem os limites da ciência e da medicina,
influenciando as mais variadas esferas da vida humana: o bem-estar
social, cultural, psicológico e assim por diante. Como bem sabemos
após 2020, surtos epidêmicos podem gerar restrições ao fluxo de
pessoas, problemas econômicos, crises políticas, desestruturação
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

do sistema educacional, paralisação diplomática, colapso do siste-


ma hospitalar, perturbação das práticas religiosas, ruptura de ritos
funerários, entre muitos outros percalços. Desta forma, enquanto
doenças do corpo social, as epidemias afetam a sociedade como
um todo: embora nem todos adoeçam, todos padecem em maior
ou menor grau. As doenças do indivíduo, por sua vez, podem cau-
sar mudanças profundas na existência do convalescente ou de seu
círculo imediato, mas sua ação sobre a coletividade é normalmente
mais difusa e, logo, menos evidente.
Assim sendo, condições como a loucura, o câncer, ou a tuber-
culose tendem a ser vistas culturalmente como doenças do indivíduo
e, em consequência, são usualmente retratadas na literatura de
forma personalizada.4 Em vista disso, a narrativa esforça-se para
estabelecer as origens do problema, suas etapas de desenvolvimento,
suas repercussões sobre o personagem em questão e aqueles que o
cercam. É este o caso de “Diário de um louco” (1918), um clássico
da literatura chinesa moderna, com que Lu Xun homenageia a obra
homônima de Nikolai Gogol. O texto relata a progressiva desconstru-
23
ção psíquica do personagem principal, que acredita ter descoberto
mensagens secretas nos textos de Confúcio a estimular os chineses
ao canibalismo. Para tal, é necessário que o texto trate – mesmo
que de forma esquemática – da individualidade da personagem
(seu passado, sua personalidade, seus sonhos), algo que resulta no
retrato de um doente, mas não especificamente da doença em si.

4 Na realidade, a hanseníase, a tuberculose e alguns tipos de câncer (como


aqueles causados pelo vírus do papiloma humano) são transmissíveis. Po-
rém, isto não as torna imediatamente em doenças do corpo social, uma vez
que são enfermidades que, em geral, apresentam contágio baixo e desen-
volvimento lento. Assim, as mazelas sociais geradas por eles são abstrusas,
o que faz com que sejam percebidas como doenças do indivíduo do ponto
de vista cultural. Normalmente as doenças entendidas como coletivas ten-
dem a ser altamente contagiosas e a matar em poucos dias, como é o caso
da peste, da cólera ou da varíola, entre outras.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Aplica-se aqui a mesma lógica narrativa a que alude Tolstói na


famosa frase de abertura de Anna Kariênina (1877): “Todas as famí-
lias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”
(TOLSTÓI, 2015, p. 25). Não é à toa que muitos dos textos perten-
centes à categoria de “doenças do indivíduo” são autobiográficos.
Lembremos de Cemitério dos vivos (1919-1920), obra inacabada de
Lima Barreto, produzida após sua internação no Hospício da Praia
Vermelha. Como apontado por Luciana Hidalgo (2008, p. 113), o
texto encontra-se em meio de caminho entre ficção romanesca e
diário pessoal do autor, o que revela uma vontade de autoanálise
e, portanto, de uma condição individualizada. Exemplos análogos
são encontrados em Patrimônio (1991), em que Philip Roth retrata
o declínio de seu pai em decorrência de um tumor cerebral, ou Uma
morte muito suave (1964), em que Simone de Beauvoir descreve a
luta de sua mãe contra um câncer no intestino.
Em contraste, as doenças transmissíveis raramente possuem
um rosto: justamente por afetar a todos, elas não se concentram
sobre ninguém em especial, e tornam-se, assim, o domínio da mul-
24
tiplicidade. É comum, portanto, encontrarmos narrativas sobre
epidemias em que a personagem principal é coletiva (um grupo,
uma seita, uma multidão) e, via de regra, é designada através de
referências geográficas ou cronológicas. Pense-se em “A peste em
Bérgamo” (1882), conto do influente autor dinamarquês Jens Peter
Jacobsen que descreve os sofrimentos da cidade italiana durante a
Peste Negra, ou ainda em Middlemarch (1872), romance de George
Eliot, que retrata a vida em uma vila fictícia que é atingida por um
surto de cólera. Já obras como Um diário do ano da peste (1722), de
Daniel Defoe, Um banquete nos tempos da peste (1830), de Alexan-
der Pushkin ou O mez da grippe (1988), de Valêncio Xavier, todas
optam por estabelecer balizas temporais que delimitam o tema, mas
que não designam um personagem especificamente.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Há ainda textos que adotam o nome do mal a ser analisado


e que, malgrado possuam personagens profundos, interessam-se,
acima de tudo, pela coletividade. Este é o caso de Ensaio sobre a
cegueira (1995), em que – não obstante as sofisticadas análises
psicológicas do narrador – os personagens sequer têm nomes e
são designados por suas funções e relações: o primeiro cego, a mu-
lher do médico, o velho da venda preta, e assim por diante. Casos
semelhantes podem ser encontrados ainda em Maleita (1934), de
Lúcio Cardoso, em A peste (1947), de Albert Camus, ou mesmo na
história da arte.
Em pintura, são numerosas as imagens das Danças Macabras
a apresentar alegoricamente a interação entre os vivos e os mortos.
Esse verdadeiro gênero artístico – que se estende, inclusive, à escul-
tura e à música – popularizou-se em meados do século XV como uma
resposta religiosa e cultural aos cíclicos surtos de peste bubônica. As
Danças Macabras apresentam, invariavelmente, grupos de indiví-
duos das mais variadas extrações sociais, de modo que a sociedade
em sua completude seja representada através de um microcosmo
25
simbólico. Assim, o espectador vê diante de si uma procissão de pares
complementares (clérigos e laicos, ricos e pobres, nobres e plebeus,
homens e mulheres, idosos e jovens) que, não raro, são identificados
também por escrito. O objetivo de tais obras é o de imbuir os surtos
de significado metafórico: a Peste passa a ser vista como um grande
equalizador que prova a inexistência de hierarquias econômicas e
sociais perante a morte. Em poucas palavras: todos são iguais aos
olhos de Deus.
Uma vez que vislumbram ter valor universal, tais imagens
sequer tentam engendrar personagens profundos e complexos, pelo
contrário, baseiam-se obrigatoriamente sobre personagens-tipo
facilmente identificáveis. Esta é, não sem motivo, precisamente a
forma de funcionamento dos Autos do teatro medieval. No Auto da
Lusitânia (1531), por exemplo, Gil Vicente emprega a mesma estra-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

tégia para apresentar-nos com o diálogo entre um pobre virtuoso


chamado Ninguém e um rico ganancioso chamado Todo o Mundo.
O debate é acompanhado pela presença ilustre de Belzebu e seu
servo que, incógnitos, ouvem com vivo interesse, tomando notas
ainda por cima:

TODO O MUNDO: Folgo muito d’enganar,


e mentir nasceo comigo.
NINGUÉM: Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
BERZEBU: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
DINATO: Quê?
BERZEBU: Que Todo o Mundo he mentiroso,
E Ninguém falla verdade. (VICENTE, 1852,
p. 288)

O autor intencionalmente confunde e sobrepõe as categorias


26
do individual e do coletivo com os objetivos claros de criar hilaridade
e, em especial, de fazer sátira social – e portanto doutrinar.
Poucas décadas após Gil Vicente, Pieter Bruegel empregará
estratégia análoga em sua celebrada pintura O triunfo da morte
(c. 1562) (Figura 2). O quadro não busca representar a tragédia de
alguém em especial, mas sim o destino inevitável de todo e qual-
quer ser humano. Contemplamos um vasto campo desolado por
exércitos de esqueletos. Pessoas são perseguidas e torturadas em
todas as direções e, novamente, espelham inteiras categorias socio-
culturais. Todavia, ao contrário das Danças Macabras, em que todos
participam alegremente, o quadro de Brueghel procura documentar
padrões de comportamento e, por conseguinte, transforma-se em um
complexo mosaico das reações diante da morte. São muitos os exem-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

plos de fuga, confronto, negação, hedonismo ou barganha. Porém, a


mensagem final é uma só: toda e qualquer tentativa de evasão é vã.
No quadro, muitos suplicam inutilmente por suas vidas, ou-
tros buscam esconder-se, outros ainda se levantam em armas para
combater os mortos-vivos. Ao centro, uma grande multidão escapa
em desespero por uma passagem que, na verdade, é uma armadilha
em forma de caixão. No canto inferior esquerdo, vemos um monarca
prostrado ao chão em suas vestes pomposas que busca corromper
dois esqueletos com barris de ouro. Um deles segura uma clepsidra
em suas mãos, demonstrando a futilidade da tentativa de suborno.
No canto oposto, à direita, assistimos a um músico e sua amante que,
procurando esquecer a destruição que os circunda, cantam absortos
ao som de um alaúde. Eles não percebem, contudo, que um dos
mortos-vivos participa sorrateiramente do recital com seu violino.

27

Figura 2: Pieter Bruegel, O triunfo da morte, c. 1562, pintura sobre painel, 117 x
162cm, Museu do Prado, Madri
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Não são poucos os textos literários que procuram criar o mes-


mo tipo de “compêndio de comportamentos”. O próprio Decamerão
(1348-1353) de Giovanni Boccaccio – obra fundadora da escritura
da peste – de certa forma parte deste pressuposto. O texto é um apa-
nhado de cem histórias narradas ao cabo de dez dias por dez jovens
(sete mulheres e três homens) que se encontram em isolamento
em uma mansão nos arredores de Florença. O hiato temporal já é
evocado no título cunhado pelos termos gregos δέκα déka (dez) e
ἡμέρα hēméra (dia). Sendo assim, o texto poderia intitular-se Dez
Dias, o que corresponde a mais uma das referências temporais de que
falamos anteriormente. O espaço em que as histórias são narradas
configura-se como um locus amoenus onde os jovens aristocratas
podem recitar poemas e canções, passear pelo jardim e deleitar-se
em banquetes enquanto o mundo rui ao seu redor. Assim, a despeito
da morte e da desolação, os dez dias transcorrem alegremente entre
uma história edificante e outra. Os próprios jovens perderam todos
os seus familiares, coisa que surpreendentemente não representa
um impedimento para a recreação – o fato é, ademais, mencionado
28
apenas de passagem.
Desta maneira, a obra de Boccaccio baseia-se sobre um desejo
de escapar ao presente, de esquecer a tragédia inevitável em modo
análogo aos musicistas de Bruegel, sem, apesar disso, empregar o
mesmo tom condenatório do pintor. Muito pelo contrário, o autor
serve-se da peste como um evento antagônico, um lúgubre contra-
ponto cuja obscuridade serve para enaltecer a serenidade do ócio
cultivado pelos jovens. Prova disso é que a peste não reaparece na
narrativa após o surto ser relatado no prólogo. O prazer de contar
e ouvir histórias é tal, que o próprio texto se olvida do flagelo após
as primeiras vinte ou trinta páginas.
O esquecimento de Boccaccio após o prólogo é análogo ao de
muitos outros escritores. Seu coetâneo, Petrarca, nunca fala direta-
mente do tema para além de módica aparição da pestilência em O
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

triunfo da morte. Geoffrey Chaucer, que era uma criança durante a


Peste Negra, tampouco discute abertamente o tema. Algo parecido
também pode ser dito sobre Shakespeare. O autor inglês nasceu em
1564, poucos meses antes de um surto de peste, e, até sua morte em
1616, testemunhou pelo menos outras cinco epidemias da doença. A
peste condicionou até mesmo sua carreira profissional: segundo os
cálculos de William Baker (2009, p. 15), entre 1603 e 1613 – quando
Shakespeare encontrava-se no ápice de sua produção –, os teatros de
Londres permaneceram fechados 65% do tempo (78 meses dentre
120). Por conseguinte, algumas das peças do autor foram possivel-
mente compostas durante surtos de peste. Este é, ainda que não
tenhamos certeza, potencialmente o caso de obras como Macbeth
(c. 1603-1606) ou Rei Lear (c. 1605-1606).
No entanto, ainda que o autor e seu público tivessem grande
intimidade com o tema, a peste nunca é discutida de fato no palco
shakespeariano. Em Legacies of Plague in Literature, Theory and
Film (2009, p. 46-48), Jennifer Cooke nota como nenhum de seus
personagens contrai a doença e como mesmo em Tímon de Atenas
29
(1607), a peça em que as palavras “peste” e “pestilência” mais apa-
recem, seu uso não é muito amplo. Há ainda dois comentários a
serem feitos sobre essa obra. O primeiro é que ela é ambientada na
Grécia Antiga e, assim sendo, serve como ilustração da tendência de
deslocar as epidemias no tempo e no espaço. A segunda é que seu uso
é nada específico e tende a sobrepor doenças: pestilência significa
em alguns casos peste bubônica, em outros lepra, e em outros ainda
sífilis. Em Suffering in Paradise, Rebecca Totaro complementa a
análise desse fenômeno de silenciamento afirmando que ele não se
aplica somente a Shakespeare, mas ao teatro Elisabetano de modo
geral: Christopher Marlowe – que também nasceu em 1564 – evita
igualmente o tema, e até mesmo Thomas Dekker nunca a representa
sobre o palco, embora reflita sobre a peste em diversos panfletos
como, por exemplo, o irônico O ano maravilhoso (1603). Aos olhos
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

da pesquisadora, o trauma causado pela doença no passado e o


medo de sua ação no futuro a transformam em um tabu, um tema
incômodo que as pessoas preferem evitar em seus momentos de
entretenimento. Totaro afirma que existe apenas uma exceção: a
peça O alquimista (1610), de Ben Jonson. Esta é, no entanto, uma
comédia que trata do tema de forma hílare, de tal modo que a peste
não aparece como um evento traumático e terrível, mas como o pano
de fundo que evidencia uma ampla sátira social. A peça revela-se,
então, como a anomalia que confirma a regra.
Há outro interessante caso que diz respeito aos surtos de
cólera – ou melhor, à falta deles – na obra de Balzac. Ao longo do
século XIX e início do XX, a Europa foi atingida por nada menos
que cinco pandemias de cólera que causaram um enorme impacto
político, social e cultural. A título de exemplo, a primeira reunião
da Liga das Nações foi organizada em 1851 justamente para discutir
estratégias sanitárias para combater a doença. O cólera é uma infec-
ção grave que, se não tratada, pode matar até 60% de suas vítimas
em uma questão de horas. Ao longo da maior parte do século, suas
30
causas eram desconhecidas e não existiam tratamentos eficazes.
Essa situação perdurou até o século XX, mesmo após o patógeno
causador da doença ter sido identificado. Portanto, em vista de sua
letalidade, não é surpreendente que o cólera causasse verdadeiro
terror entre a população.
A França sofreu pelo menos quatro surtos graves entre 1832
e 1884. No primeiro deles, o total de vítimas foi de pelo menos
20.000 em Paris e um mínimo de 100.000 no país como um todo.
O trauma coletivo dessas tragédias deixou traços tão profundos na
cultura francesa que ainda é possível observá-lo em expressões como
choisir entre la peste et le choléra (escolher entre a peste e o cólera)
e avoir une peur bleu (morrer de medo). A primeira expressão é
usada para enfatizar decisões em que todas as opções são ruins, ou
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

seja, “escolher o menor entre dois males”.5 Já a segunda pode ser


traduzida ao pé da letra como “ter um medo (da cólera) azul” e é
empregada para descrever o verdadeiro terror, um medo absoluto.
As décadas de 1830 e 1840 foram também um período de
frenética produção para Honoré de Balzac. O autor idealiza em 1833
um projeto de larga escala que visava entrelaçar diversos romances
para criar “um retrato da Sociedade”: trata-se da Comédia humana
(1829-1850), uma empreitada colossal constituída por quase cem
romances em que Balzac busca, nas palavras do Prólogo à Comé-
dia humana, “estudar a França” para explicá-la cientificamente
como “os gênios da História Natural”. Desta maneira, o autor vê
a si próprio como um sociólogo que, no conjunto de sua obra, cria
objetivamente um espelho ficcional – mas absolutamente verossímil
e fidedigno – da sociedade francesa de seu tempo. A intenção da
Comédia humana é inaudita na história da literatura, e o fascínio e
respeito que o projeto conquista para si resultará em uma pequena
revolução artística.
A despeito do cuidado e atenção com que se aproxima de
31
muitas das questões sociais, políticas e culturais da França de seu
tempo, Balzac – talvez intencionalmente – esquece-se de um grande
fenômeno: as pandemias de cólera. O autor certamente viu com os
próprios olhos as graves epidemias de 1832 e 1848 em Paris, além de
ter certamente ouvido relatos de surtos menores em outros períodos
e localidades. Heinrich Heine e Chateaubriand nos deixaram pito-
rescas descrições do primeiro dentre esses surtos. Balzac, contudo,
jamais menciona significativamente a doença em sua obra: nos mais
de noventa tomos da Comédia humana a palavra cólera aparece

5 É importante sublinhar aqui a relação de equivalência outorgada às duas


doenças pela cultura popular: o cólera e a peste são terríveis por igual. É
justamente essa sobreposição que é utilizada pelo autor contemporâneo
Patrick Deville em Peste e cólera (2012), uma premiada biografia do des-
cobridor do bacilo da peste, Alexandre Yersin.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

cerca de uma dúzia de vezes, quase sempre como uma imprecação


negativa, ou uma maldição, nunca com qualquer significado real.
Tal qual Shakespeare, Balzac parece fazer um esforço para calar
sobre o assunto, talvez por vê-lo como indigno de seu talento, talvez
por considerá-lo vulgar para seu público ou, talvez, por pensar que
os surtos não diziam de fato respeito à vida francesa. Poderíamos
levantar inúmeras hipóteses, mas o ponto aqui é o de mostrar como
o mesmo esforço em calar sobre um tema tabu identificado por
Rebeca Totaro aplica-se mesmo à obra de Balzac e à sua busca por
imortalizar em papel a França de seu tempo.6
Quando olhamos para o cânone literário em busca de narra-
tivas sobre epidemias, podemos acabar nos surpreendendo com a
quantidade de textos resultantes. Vejam que, somente neste artigo,
mencionei mais de uma dúzia de obras que versam sobre o tema e
esta é, no entanto, uma lista diminuta em relação à totalidade de
textos existentes. Porém, se considerarmos o papel absolutamente
fundamental que as epidemias ocuparam ao longo da história –
perpassando a evolução da espécie humana, a colonização do Novo
32
Mundo e a escravidão transatlântica, para citar apenas os casos
mais célebres –, o que nos salta aos olhos é o quão pouco o tema
aparece. Sim, há algumas obras canônicas a tratarem da peste bu-
bônica em literatura, mas seu número é irrisório se pensarmos no
impacto histórico sem precedentes causado pela doença em todos
os níveis da vida.
Em síntese, há um descompasso entre a presença das epide-
mias no mundo real e na literatura, o que convida a reflexões sobre
uma certa tendência cultural a falar pouco de traumas coletivos. Essa

6 Discuto o tabu e o silêncio ulteriormente em dois episódios de meu pod-


cast Literatura Viral, que trata da história das doenças e de seu legado
artístico. São eles: “A peste bubônica, Shakespeare e algumas chicotadas”
e “A-doença-que-não-deve-ser-nomeada: ‘Floradas na Serra’ de Dinah Sil-
veira de Queiroz”.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

inclinação não diz apenas respeito às doenças transmissíveis, mas


com efeito estende-se às catástrofes de modo geral. Em Tsunamis
and Earthquakes in Japanese Literature (2016), a crítica Yukiko
Dejima chama a atenção para a ausência de terremotos e tsunamis
na literatura japonesa clássica, ainda que o Japão fosse devastado
periodicamente por essas calamidades. Consequentemente, esta-
belece-se o desejo de suprimir um tema considerado transgressivo
– especialmente se sua memória traumática é ainda recente e viva.
Apesar disso, também é possível encontrar casos de uma
tendência oposta. Epidemias clamam por reflexão que lhes atribua
significado metafórico, caso contrário esses infortúnios seriam ape-
nas eventos fortuitos, aleatórios e gratuitos que colocam em xeque
diversas ideologias que justificam a ação humana. Desta maneira,
também é necessário ponderar ficcionalmente sobre o tema, muitas
vezes empregando estratégias de distanciamento: não mencionar
o nome da doença, discutir um mal ao invés de outro, deslocá-lo
no tempo e no espaço, esperar alguns anos para tocar no assunto.
Do ponto de vista psicológico, a vontade de buscar na literatu-
33
ra o que nos falta no presente é natural e compreensível. Epidemias
por definição geram uma enorme carga de medo e ansiedade, ainda
mais se causadas por doenças novas e misteriosas. Mesmo antes do
advento da imprensa de massa moderna, indivíduos certamente fala-
riam e pensariam no assunto pelo menos tanto quanto no presente.
Na verdade, sua aflição era provavelmente bastante maior, já que
antes da Revolução Bacteriológica, em torno de 1880, havia pouco ou
nada que a ciência e a medicina pudessem fazer a respeito. Isso para
não falar em problemas corriqueiros como comunicação, segurança
ou abastecimento de alimentos antes dos desenvolvimentos tecnoló-
gicos recentes. Nesse contexto, é fácil imaginar como a literatura, o
teatro e a arte em geral passam a servir como uma válvula de escape
que, por oferecer entretenimento, ajudem a controlar a angústia.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Consequentemente, uma das funções essenciais da ficção em


tempos de crise é justamente o de oferecer consolo, alívio ou, nas
palavras de Aristóteles, purificação (catarse). Prova disso é o gran-
de aumento nas vendas de obras como A peste ou Ensaio sobre a
cegueira (1995) durante a crise do coronavírus. Já em fevereiro de
2020 – antes mesmo que a OMS declarasse o início da pandemia –,
A peste passou da 71ª para a 3ª posição das obras mais vendidas na
Itália, de acordo com o jornal La Repubblica.7 No mesmo período,
na França, quando o país contava com somente 204 casos e quatro
mortes, o Le Figaro8 relatou que a obra vendeu 40% do total do
ano anterior em apenas dois meses. Na Inglaterra, segundo a BBC,9
suas vendas cresceram 252% por semana no período anterior ao
lockdown. Enquanto no Japão, também em fevereiro, a demanda
pelo texto aumentou “sete ou oito vezes”, de acordo com jornal ja-
ponês Mainichi Shimbun.10 Já no Brasil, em março, a revista Veja11
discutiu “a súbita ressurreição” de Ensaio sobre a cegueira em sua
lista de mais vendidos.
O fenômeno, na verdade, não se restringe apenas às duas
34
obras icônicas, mas parece relacionar-se à leitura de modo geral.
Segundo uma pesquisa conduzida pela organização The Reading
Agency,12 em maio de 2020, os leitores ingleses passaram a ler 31% a
mais após o início das restrições e do isolamento social. Certamente
7 Disponível em: https://www.repubblica.it/cronaca/2020/02/27/news/
libri_coronavirus_peste_camus_cecita_saramago-249694071/.
8 Disponível em: https://www.lefigaro.fr/livres/en-pleine-epidemie-de-
-coronavirus-les-ventes-de-la-peste-de-camus-s-envolent-20200303.
9 Disponível em: https://www.bbc.com/culture/article/20200506-the-
-books-that-might-flourish-in-this-time-of-crisis.
10 Disponível em: https://mainichi.jp/english/articles/20200306/
p2a/00m/0et/020000c.
11 Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/ensaio-sobre-a-ce-
gueira-dispara-em-vendas-durante-a-pandemia/.
12 Disponível em: https://readingagency.org.uk/news/media/new-sur-
vey-says-reading-connects-a-nation-in-lockdown.html.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

este é também um reflexo da maior disponibilidade de tempo em


um momento em que instituições ainda não teriam se adequado às
necessidades do trabalho e ensino à distância. Porém, o interesse
genuíno pela literatura revela-se através do aumento na venda de
obras poéticas – mercado notoriamente difícil –, fenômeno que
também ocorreu em 2001, após os Ataques de 11 de Setembro.
Como exemplo, as vendas de Ariel (1965), a extraordinária coleção
de poemas de Sylvia Plath, aumentaram em 59%. Paralelamente, as
vendas da categoria ficção ultrapassaram na Inglaterra as de não-
-ficção pela primeira vez em dois anos,13 com sete a cada dez leitores
preferindo esta modalidade sobre as outras.14
A intensificação da busca pela literatura no início da pandemia
é interessante justamente por ser paradoxal. De um lado, é possível
argumentar que existe um interesse ficcional sobre o tema que, du-
rante uma emergência sanitária, aumenta ao invés de diminuir. Sob
este ponto de vista, os leitores não só não se cansariam do assunto
em suas vidas cotidianas, mas o buscariam ativamente também nos
momentos de deleite estético. Dessa forma, a literatura serve como
um bastião de hipóteses e possibilidades, uma série de experimentos 35

mentais que ajudariam o leitor a refletir sobre o seu presente.


Por outro lado, também é possível sustentar a ideia oposta:
sim, os textos de Camus e Saramago tratam de epidemias, mas, visto
que nenhum desses males é uma ameaça de fato, o fazem de modo
difuso o bastante para proporcionar uma “fuga” ao tema. A peste
não desapareceu completamente após 1720, como dito amiúde. Essa
é uma perspectiva eurocêntrica que suprime da memória a terrível
Terceira Pandemia de Peste do século XIX, que resultou na morte
de 12 milhões de pessoas só na China e na Índia. Além disso, essa

13 Disponível em: https://www.bbc.com/culture/article/20200506-the-


-books-that-might-flourish-in-this-time-of-crisis.
14 Disponível em: https://readingagency.org.uk/news/media/new-sur-
vey-says-reading-connects-a-nation-in-lockdown.html.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

afirmação ignora diversos surtos de pequenas dimensões que ocorre-


ram na Europa até mesmo após a virada para o século XX. Dito isto,
é verdade que a última grande mortandade causada pela peste na
França tenha sido o surto de Marselha de 1720 a 1722. Assim sendo,
independentemente de sua carga simbólica no imaginário comum,
a peste enquanto tal deixou de ser uma ameaça aos conterrâneos
de Camus já no século XVIII e, mais ainda, após a descoberta e
popularização dos antibióticos a partir de 1940.
Em comparação, a Europa foi devastada por numerosas
outras epidemias após a trégua oferecida pela peste. Já mencionei
as devastações das pandemias de cólera no continente ao longo de
1800. Após a virada do século XX, a doença já estava a ponto de ser
controlada, ainda que o sul da Itália tenha sofrido um surto severo
em 1911, e ela tenha reaparecido com frequência durante a Primeira
Guerra. Não apenas isso, mas a Líbia, país fronteiriço à Argélia de
Camus, também foi infectada em 1911. Poucos anos mais tarde, de
1918 a 1920, uma nova pandemia circulou o globo, desta vez cau-
sada pelo vírus da influenza. Nesse momento, a população global
36
contava com cerca de 1,8 bilhões de indivíduos, dos quais um terço
contraiu a chamada Gripe Espanhola e, destes, 1 a 2% faleceram.
Com base nesses dados, historiadores demográficos calculam que o
número de vítimas foi de algo entre 50 e 120 milhões de indivíduos,
o que faria dessa pandemia o evento único mais mortal da história
da humanidade. Durante a pandemia, Camus tinha entre cinco e
sete anos de idade, mas, conquanto ainda fosse uma criança na
época, a monumentalidade da devastação indubitavelmente o levou
a revisitar o tema ao longo de sua vida. Se uma pessoa a cada três
contraiu a doença, Camus certamente teve amigos e familiares que
passaram por essa experiência.
Logo, sob certo ponto de vista, A peste poderia facilmente
tecer elucubrações idênticas mesmo chamando-se O cólera ou A
gripe. Vale lembrar que os filhos gêmeos de Camus, Catherine e
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Jean, eram carinhosamente apelidados pelo pai de “Peste” e “Cólera”,


respectivamente.15 Além disso, muitos críticos apontam que a obra
provavelmente inspirou-se na epidemia de cólera de 1849 em Oran
– a peste bubônica ocorrera na cidade somente nos séculos XVI
e XVII. Por que então o autor interessa-se em buscar um mal em
grande parte ausente (peste), sendo que ignora outros muito mais
palpáveis (cólera e gripe)? A motivação, a meu ver, deve-se, pelo
menos em parte, à vontade de distanciar-se de um tema alarmante
e genuinamente aterrorizador. Quando ainda são ameaças reais, as
epidemias acabam no geral revelando-se demasiado realistas para
atrair interesse ficcional. É esse o princípio que justifica a amnésia
cultural que reinou ao redor da Gripe Espanhola até o advento do
Coronavírus. A pandemia tardou décadas para aparecer de fato em
literatura: duas no caso de Cavalo pálido, pálido cavaleiro (1939),
de Katherine Anne Porter, e sete no caso de O mez da grippe (1988).
Podemos estender a mesma lógica ao Ensaio sobre a ceguei-
ra, que, sabidamente, retrata o surto de uma doença imaginária, a
cegueira branca. O mal ficcional funciona como um mecanismo para
37
demonstrar a fragilidade sistêmica do Estado moderno. O tema em si
é muito explorado na obra de Saramago, em que eventos fantásticos,
com alguma frequência, resultam no colapso das instituições: em
As intermitências da Morte (2005), a ruína deve-se à inesperada
imortalidade da população; em A jangada de pedra (1986), a um
terremoto que lança a Península Ibérica à deriva no oceano; em
Ensaio sobre a lucidez (2004), ao tácito acordo de todos os cida-
dãos de votar em branco. Essa comparação nos demonstra que o
interesse primordial de Ensaio sobre a cegueira não é documentar
ou interpretar traumas coletivos – como indubitavelmente o são a
descrição de Tucídides ou as imagens das Danças Macabras –, mas,
ao invés disso, o de expor a hipocrisia e as injustiças estruturais

15 Disponível em: https://gulfnews.com/entertainment/arts-culture/


albert-camus-daughter-on-the-impact-of-his-death-1.59508914.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

inerentes à sociedade. Nesse sentido, Saramago assemelha-se a Gil


Vicente, da mesma forma como seus personagens genéricos, o cego
da pistola ou a rapariga de óculos escuros, equivalem-se a Ninguém
e Todo-Mundo.
É essencial notar, porém, que Saramago escreveu e publicou a
obra no início da década de 1990, momento em que discursos sobre
a AIDS circulavam mais proeminentemente na sociedade. Ainda
que a Pandemia de AIDS já estivesse sendo discutida em discursos
científicos e midiáticos desde 1981, o assunto demorou alguns anos
para apresentar-se na literatura e no cinema. Susan Sontag foi uma
das primeiras a tratar do tema em “Assim vivemos agora” (1986),
texto publicado ainda nos anos oitenta. Em sua maioria, entretanto,
foram nos primeiros anos da década de noventa que vieram à luz
obras como Ao amigo que não me salvou a vida (1990), do escritor
francês Hervé Guibert, Onde andará Dulce Veiga? (1990), de Caio
Fernando Abreu, a premiada peça Angels in America (1991-1993), de
Tony Kushner, ou ainda Salón de belleza (1994), do escritor peruano-
-mexicano Mario Bellatin. Analogamente, Hollywood esquivou-se
38
de mencionar diretamente o sofrimento causado pela doença até
1993, ano em que são lançados os longa-metragens Filadélfia (dir.
Jonathan Demme), E a vida continua (dir. Roger Spottiswoode) e
Zero Patience (dir. John Greyson) – este produzido no Canadá e de
verve irreverente e iconoclasta. Filadélfia, em particular, desempe-
nhou grande papel na discussão sobre o tema ao apresentar Tom
Hanks como um advogado que luta por justiça após ser demitido
por viver com HIV.
Em vista disso, Saramago idealiza e escreve Ensaio sobre a
cegueira tanto no contexto de uma crise sanitária real, quanto no
momento em que a literatura começava a explorar o assunto com
maior afinco. Por isso, é possível argumentar que o romance também
é uma resposta à AIDS, ainda que esta seja de natureza elusiva e
simbólica. A cegueira branca funciona, afinal, como uma evidencia-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

dora das inconsistências e hipocrisias sociais, função essencialmente


idêntica à desempenhada pelo vírus do HIV no mundo real durante
o contexto de publicação.
Assim, em minha leitura, é possível defender a ideia de que Ca-
mus e Saramago esquivam-se das doenças mais ameaçadoras de seu
presente imediato para buscar alternativas menos desconfortáveis:
um retoma um perigo esmaecido, outro inventa desditas irreais. Esta
vontade de mitigação também é evidente, acima de tudo, na conclu-
são das narrativas: a despeito dos inúmeros revezes e sofrimentos,
ambas fecham-se com o desaparecimento do mal – apresentado,
como não poderia deixar de ser, com hesitação e cautela, pois ape-
nas o tempo dirá se esta trégua é permanente ou passageira. Ainda
assim, os textos concluem-se com um final feliz, um momento de
bonança após a tempestade ao qual seguirá a iminente reconstrução
da sociedade. Portanto, ambas as narrativas apresentam histórias
completas, algo que oferece uma impressão de controle ao leitor que
esteja vivendo um desastre similar.
A visão ampla que a literatura oferece é certamente recon-
39
fortadora quando os males do presente são inéditos, imprevisíveis
e inacabados. Por um lado, o leitor pode respirar de alívio, afinal a
pandemia de coronavírus é certamente menos calamitosa do que
muitos dos eventos narrados em o Ensaio sobre a cegueira. Por
outro, a conclusão auspiciosa da narrativa permite que o leitor pense
positivamente na esperança de que as semelhanças existentes entre
a ficção que lê e a realidade que vive – que até então foram em sua
maioria negativas – mantenham-se até o fim. Em outras palavras, o
leitor pode nutrir em si próprio – mesmo que parcialmente – uma
analogia ilusória: se a grave epidemia ficcional terminou bem, então
a mais moderada epidemia real provavelmente terminará bem.
Para além da conclusão esperançosa, o simples fato de que
ambas descrevem uma imagem completa, com início, meio e fim,
revela-se psicologicamente valiosa em momentos de incerteza e
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

ansiedade como as causadas pela pandemia do coronavírus. O


leitor não sabe qual será seu destino pessoal ou o da sociedade a
que pertence: ambos são por definição nebulosos e imprevisíveis.
De modo que visitar mundos ficcionais revela-se uma interessante
estratégia de imunização psicológica, dado que, em literatura, a
incerteza transforma-se em compreensão.
Nas duas narrativas, lidamos largamente com narradores
oniscientes que são capazes de apresentar um relato absoluto que
abarca o mundo ficcional.16 Uma vez que eles têm acesso ao passado
e ao futuro, ao âmago de cada personagem, ao que aconteceu e ao que
poderia ter acontecido, narradores oniscientes podem presentear seus
leitores com narrativas totais. Enquanto qualquer relato do mundo
real anunciará sempre apenas uma versão dos fatos, narradores
oniscientes enxergam pelos olhos de Deus e, assim, apresentam
potencialmente a realidade em si. O leitor tem plena consciência de
que narradores oniscientes são entidades hipotéticas que não existem
para além das fronteiras do mundo ficcional, mas isso não impede
que ele ou ela aceite seus conhecimentos absolutos enquanto lê. Desta
40
forma, a onisciência do narrador pode ser um dos benefícios com que
as narrativas sobre epidemias presenteiam o leitor: a visão expandida
e privilegiada cria uma impressão de controle, um devaneio que pode
pacificar parcialmente e oferecer algum consolo.17

16 Em A peste, a voz narrante se revela ser a do próprio médico Rieux que,


sendo uma pessoa, não pode assumir o olhar onisciente. Mas a revelação é
feita somente ao final da narrativa, justamente para brincar com esses pa-
râmetros epistemológicos e induzir o leitor a pensar que o narrador pode-
ria saber muito mais do que sabe efetivamente. O simples fato que Camus
se interesse em manipular a narração desta forma já ilustra meu argumen-
to. Não é sem motivo que Philip Roth repetirá a mesma estratégia em Nê-
mesis (2011), obra brilhante sobre um surto de pólio nos Estados Unidos.
17 Reflexões mais aprofundadas sobre o uso da literatura como forma de
imunização psicológica podem ser encontradas na obra de Olaf Briese An-
gst in den Zeiten der Cholera (2014) e em minha tese de doutoramento,
Cholera and the Literary Imagination in Europe, 1830 – 1930 (2021).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Claramente, esse sentimento de imunização é tênue e o leitor


certamente percebe suas inconsistências lógicas. Ele ou ela sabe que
não está protegido de fato, da mesma forma como nós não achamos
que é efetivamente possível evitar um grande infortúnio com três
batidinhas na madeira. A meu ver, essa ação supersticiosa justifica-se
mais pela vontade de afastar pensamentos negativos do que por uma
crença sólida e coerente de que esse gesto tem realmente o poder de
afastar tragédias. Caso questionada a respeito, imagino que a maior
parte das pessoas admita que três batidas na madeira não alteram
de fato as probabilidades de que algum infortúnio aconteça. Ainda
assim, me parece igualmente provável que os mesmos indivíduos
concluam sua reflexão de forma reticente com frases como: “nunca
se sabe”, “na dúvida...” ou “mal não faz”. Acredito que a mesma
lógica se estende a alguns textos literários em momentos de crise,
especialmente àqueles que tratam de desastres.
Em síntese, as doenças são lautamente exploradas pela litera-
tura enquanto temas universais. Porém, as enfermidades possuem
potenciais narrativos que diferem entre si, de modo que as doenças
41
do indivíduo tendem a despertar maior interesse do que as “doenças
do grupo”. Assim, narrativas de convalescência normalmente dedi-
cam-se aos sofrimentos de um personagem e seu círculo imediato,
enquanto narrativas sobre epidemias propendem ao anonimato, à
coletividade e à multiplicidade de perspectivas. Neste caso especi-
ficamente, há ainda uma forte tendência a evitar o assunto – pelo
menos na ficção – no momento em que ainda é uma ameaça. Mais
além, existe uma clara predisposição a deslocar as epidemias no
tempo e no espaço, estratégia que visa evitar o desconforto causado
por uma narrativa excessivamente familiar. Por fim, essas estratégias
de omissão e atenuação podem outorgar à literatura – pelo menos
em momentos de crise – uma função de salvaguarda e imunização
psicológica. Isto se dá graças a, pelo menos, três fatores: a visão
panorâmica (início, meio e fim) normalmente veiculada por tais
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

narrativas, às informações privilegiadas a que têm acesso narradores


oniscientes – quando presentes –, e, acima de tudo, à vontade por
parte do leitor de aceitar uma equivalência sobrenatural entre fic-
ção e realidade que permita que o texto literário o ajude a controlar
pensamentos negativos.

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The Books that Could Flourish in this Pandemic Era. BBC, 2020. Dispo-
nível em: <https://www.bbc.com/culture/article/20200506-the-books-
-that-might-flourish-in-this-time-o>.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

O cinema catástrofe e as narrativas de epidemia

Marcio Markendorf1

A narrativa-catástrofe: aspectos gerais


A representação da catástrofe no cinema acontece em dife-
rentes gêneros, sendo um componente transversal nas narrativas
uma vez que pode remeter a diversos tipos de destruição. Para
compreender a catástrofe como gênero narrativo per se é preciso,
em primeiro lugar, remeter ao sentido do termo que, de acordo com
a etimologia grega, καταστροφή (katastrophé), significa ruína, algo
que acometia, por exemplo, o destino das personagens nas tragédias
gregas. No campo do cinema, na configuração narratológica dos di-
saster movies, apresenta-se um tipo de ruína que produz malefícios 45

de ordem coletiva, tais como os representados por eventos naturais


(epidemias, vulcões, terremotos, maremotos, enchentes, furacões,
meteoros, desequilíbrio climático etc). Os roteiros, nesse sentido,
são estruturados para apresentar a catástrofe como um tipo de
força antagonista que necessita ser combatida, de modo a refrear,
impedir ou atenuar a desordem em curso. Cabe ressaltar que não
basta existir algum desastre natural para imediatamente haver um
filme-catástrofe, é necessário que haja uma demanda centralizada
de interesse sobre o evento desestabilizador. Ou seja: um disaster
movie é feito de catástrofe, mas nem toda catástrofe configura um
disaster movie.
1 Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina com
atuação no curso de Cinema e na Pós-graduação em Literatura.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

No caso de um filme como O impossível (Lo imposible, J.


A. Bayona, 2012), o roteiro apresenta como linha dramática con-
dutora o relato de uma família que, após ter o hotel atingido por
um tsunami, acaba se separando com a força de arrasto das águas.
A narrativa, baseada em fatos, foca-se na luta pela sobrevivência
frente a um desastre da magnitude do sismo e do tsunami ocorrido
no Oceano Índico em 2004. Na representação gráfica do enredo
tem-se o seguinte (figura 1):

46
Figura 1. Enredo de O impossível. Do autor, 2020.

Como é possível observar, a catástrofe toma lugar no pri-


meiro ato da história, de forma repentina, sem que haja qualquer
tipo de preparação para o incidente. Os atos seguintes exploram as
consequências do evento, a magnitude da devastação produzida,
os esforços das autoridades em prestar assistência às vítimas e, no
caso do ponto de foco do filme, o reencontro da família. O segundo
ato, o de confrontação, geralmente o que tem a maior fatia de um
filme, não está orientado para prevenção ou gerenciamento de um
desastre, mas para as medidas que possam garantir a sobrevivência
das personagens diante daquilo que irrompeu sem aviso prévio.
Logo, não se trata de uma narrativa que assume o desastre como
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

ponto clímax, para o qual todas as atenções estão voltadas desde o


princípio da história, como uma grande força antagonista. Não se
pode dizer, por isso, que O impossível represente um filme-catástrofe
exemplar: o ponto de foco está nos sobreviventes.
Não é o que acontece na narrativa de 2012 (2012, Roland
Emmerich, 2009), com roteiro livremente inspirado na cultura
maia e na suposta possibilidade de o mundo encontrar seu fim em
21 de dezembro de 2012. A perspectiva apocalíptica – ainda que
não exatamente de fundo religioso – faz parte da cultura ocidental
e empresta suas camadas de significação a eventos desastrosos, so-
bretudo aqueles em que o planeta pode sofrer uma convulsão total.
Roteirizado por Roland Emmerich e Harald Kloser, o filme explora
o caos extensivo produzido após a maior erupção solar da história,
com efeitos devastadores sobre a Terra. O primeiro ato explora a
descoberta da anomalia e a confirmação dela por vários indícios;
o segundo ato, tomando como linha dorsal a catástrofe iminente,
explora a destruição progressiva e o espetáculo do caos urbano; o
terceiro ato, por sua vez, explora a vitória dos sobreviventes. Este se-
47
ria o modelo típico de construção narratológica dos disaster movies,
com representação gráfica do enredo da seguinte forma (figura 2):

Figura 2. Enredo de 2012. Do autor, 2020


(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

O ensaio de Susan Sontag (1987), “A imaginação da catástro-


fe”, de 1965, é auxiliar na corroboração desse argumento quando a
pensadora sintetiza o que seria um roteiro típico de desastre. Muito
embora o foco da argumentação não seja a catástrofe produzida por
fenômenos naturais, mas sim, os desastres oriundos de eventos tec-
nológicos (mutações radioativas, invasões alienígenas, experiências
fora do controle) presentes na ficção científica, o modelo é perfeita-
mente aplicável nesta leitura do filme catástrofe. Aliás, o percurso
de Sontag permite depreender que a destruição – guardadas as
devidas proporções de sua manifestação – é a base comum de três
gêneros distintos: a ficção científica, o horror e o disaster movie.
Analisando filmes de ficção científica dos anos 1950 e 1960, Sontag
(1987) descreve o roteiro característico dessa leva de produções em
cinco momentos-chave: a) irrupção do evento ou chegada da Coisa;
b) relato do herói-cientista e posterior confirmação dele; c) confe-
rência de unidade nacional e/ou internacional diante do cenário
de emergência; d) novas atrocidades, com a destruição de centros
urbanos; e) confronto final (em geral, o extermínio da Coisa ou a
48
neutralização do evento com auxílio de tecnologia experimental).
Tal descrição encaixa-se com precisão no roteiro do já mencionado
2012 – vide as arcas altamente tecnológicas que salvam majoritaria-
mente os mais ricos do planeta, um artefato experimental de ponta.
O jornalista Paul Owen (2008), em breve matéria no The
Guardian, ao avaliar o remake de Roland Emmerich2 para O dia
em que a Terra parou, ironiza os clichês dos filmes que envolvem
desastres no artigo “How to Write the Perfect Disaster Movie”. Owen
(2008) elenca os articuladores genéricos de um filme de desastre

2 O diretor é reconhecido pelos altos valores de produção de seus filmes,


uma vez que recebeu a alcunha de rei dos desastres. Em sua filmografia es-
tariam, dentre outros: a invasão alienígena de Independence Day (1996),
a destruição de Nova Iorque com o ressurgimento de Godzilla (1998), o
colapso climático global em O dia depois de amanhã (2004).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

da seguinte forma: a) escolha um bom desastre, especialmente uma


anomalia incomum, não os desastres naturais (furacão, terremoto,
tsunami); b) você precisa de um cientista, pois é ele quem fará
a descoberta científica e alertará as autoridades competentes; c)
você precisa de um herói, alguém não necessariamente bonzinho,
mas que poderá encontrar sua redenção ao final; d) mande o seu
cientista para a Casa Branca,3 onde o alerta será emitido, mas sem
muita crença por parte dos políticos; e) destruição ao redor do globo,
principalmente de centros urbanos, incidentes que confirmam a te-
oria do cientista; f) destruição em Nova Iorque, considerada o ponto
crítico de uma produção audiovisual norte-americana; g) de volta à
Casa Branca, o cientista é finalmente ouvido pelos líderes mundiais;
h) o cientista reúne a sua equipe a fim de elaborar um plano que
contenha o desastre; i) contratempo de última hora na execução do
plano; j) a operação final, em que o plano de contenção funciona e
impede o espraiamento do evento catastrófico. Obviamente a su-
marização apresentada por Owen remete aos clichês presentes em
filmes blockbuster sobre grandes catástrofes, algo que poderia ter
49
como acompanhamento visual a tirinha4 de Adriano Kitani (2013)
abaixo (figura 3):

3 É preciso enfatizar que, no contexto das produções norte-americanas


de disaster movies, a Casa Branca cumpre invariavelmente o espaço polí-
tico mundial para tomada de decisões. Ainda que problemas planetários
possam ter sido descobertos em outras partes do globo, é para os Estados
Unidos que tudo aflui, o que lhe confere a imagem de salvador universal.
4 A tirinha de Kitani também chama atenção para outro lugar-comum do
filme-catástrofe: o herói da trama (e às vezes até outros personagens), no
início da história, enfrenta problemas familiares (pode estar se divorcian-
do ou divorciado, por exemplo) e, ao final, depois da luta pela sobrevivên-
cia, restaura o núcleo familiar (ou mesmo cria um novo).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

50

Figura 3. Filme genérico de catástrofe. Fonte: Pikiart de Adriano Kitani, 20 jan 2013.

A despeito de certo reducionismo de conteúdo que está


sinalizado na crítica de Owen e de Kitani, não se pode dizer que
narrativas sobre catástrofe sejam destituídas de significação e não
reverberem ansiedades profundas da sociedade. Sobretudo aquelas
acerca do fim da jornada humana ou, ainda, aquelas devotadas à
libertação da violência reprimida do corpo social contra o castrador
construto da civilização. Narrativas de gênero como essa – na visão
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

de certa vertente teórica – cumprem função ritual, incorporando a


dinâmica de experiências cerimoniais do mundo social em dramas
ritualizados, responsáveis por reafirmar (por reposição) valores
culturais existentes (ALTMAN, 2016; BORDWELL, THOMPSON,
2013). No entanto, não se pretende argumentar aqui de forma fa-
vorável à simplificação das formas narrativas como as contidas nos
filmes-catástrofe. Interessa destacar que, mais importante, talvez,
que apresentar a repetição do formato é problematizar a matéria
repetida contida nele. Para retomar uma possível origem comum de
três gêneros distintos – horror, ficção científica e filme-catástrofe
– caberia evocar a estrutura de Noël Carroll (1999) para filmes de
horror, denominada enredo de descobrimento complexo, composto
este por quatro etapas bem definidas: irrupção, descobrimento, con-
firmação e confrontação. No argumento de Carroll, o interesse pelo
desconhecido seria a base desse modelo de narrativa de descoberta, o
que tornaria o filme de horror um tipo peculiar de história científica,
uma vez que estaria permeada por coleta de provas, investigação e
comprovação. O preço a ser pago pela curiosidade sobre o desco-
51
nhecido seria de ordem emocional, isto é, o medo provocado pelas
criaturas ameaçadoras e repulsivas da trama. Nos filmes-catástrofe,
a meu ver, haveria operações análogas de descoberta frente a um
fenômeno de ordem natural.
Apesar de parecerem, à primeira vista, somente narrativas
de puro entretenimento (com enredos simplistas, personagens-
-tipo e devastação épica), os filmes-catástrofe apontam para
questões de fundo importantes para a consciência humana.
Nesse sentido, pode-se afirmar que há certo conteúdo ideológico
significativo que estrutura o formato do roteiro tal como ele é, de
modo que a matéria repetida, mais que a repetição per se, torna-se
mais interessante para o debate. Afinal, o que estaria por trás do
interesse por histórias nas quais os centros urbanos podem ser
destruídos por acidentes naturais ou similares?
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Uma primeira resposta poderia ser encontrada no terror do


anômalo, isto é, o medo da incidência do caos na ordem, pois, como ato
ignoto e misterioso, “a catástrofe é a irrupção de algo que não funciona
mais segundo as regras, ou então funciona segundo regras que não
conhecemos e talvez nunca venhamos a conhecer” (BAUDRILLARD,
2002, p. 24-25). A ansiedade quanto a um evento destrutivo, irruptivo
e não previsível afetaria os princípios sobre os quais a sociedade está
organizada: ordem, causalidade e completude. O medo da anomalia
expressaria, portanto, o horror ao desconhecido. A manifestação de
um evento imprevisível romperia com a ordem cósmica quando esta
desencadeia forças violentas e destrutivas não esperadas. Para o geó-
grafo Yi-Fu Tuan (2005), nas sociedades primitivas e de religiosidade
aflorada, os ciclos da natureza eram constantes, com uma alternância
orgânica entre as estações. Quando havia situações atípicas – tal qual
uma longa estiagem – significava que os deuses estavam furiosos
com os seres humanos e sua fúria deveria ser aplacada por meio de
sacrifícios e outros rituais – vale aqui recordar, por exemplo, a peste
que assola Tebas no mito de Édipo Rei. Há uma tendência a buscar-se
52
uma causa ou um significado para o evento anômalo, o que acaba por
configurar fantasias punitivas – o desastre é um castigo dos deuses
por algo que está funcionando mal – ou antropomorfizações do meio
ambiente, por meio dos quais a Natureza colocaria em movimento
sua vontade impetuosa. Na sociedade contemporânea, na qual os
valores religiosos perderam força frente ao caráter objetivo e ubíquo
do pensamento científico, a energia dos ritos foi transferida para
outros formatos lenitivos, tais como o cinema e a literatura, tornan-
do os sacrifícios meramente simbólicos. Sendo assim, a cada novo
filme-catástrofe, a sociedade é punida e restaurada novamente por
meio de um esforço coletivo – deriva daí parte da fantasia da união
interplanetária, da qual chama atenção Sontag (1987), com a qual as
barreiras de raça, classe, cultura, religião tornam-se insignificantes
frente à ameaça à vida humana como um todo.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

A partir dessa hipótese pode-se ler o filme-catástrofe como


um dispositivo ritual que mitiga as ansiedades sobre desastres ao
oferecer a imolação de vítimas fictícias e a destruição teatralizada
de cidades inteiras na cerimônia coletiva da sala de cinema. Nessa
fantasia projetada na tela, não são os deuses a serem aplacados, mas
o próprio ser humano. Para retomada da ordem, um conjunto de
saberes científicos e de defesas tecnológicas são postos em marcha
para confirmar o domínio humano sobre a Natureza e restaurar a
ilusão de controle total sobre o meio ambiente. É como se, por meio
de um tipo de doutrinação laica, o roteiro afirmasse que apenas os
artefatos da ciência podem nos salvar, e não as imolações e rezas
do pensamento mágico ou religioso – vistas como inúteis. Assim,
substituindo quase totalmente a ideia de punição divina, haveria a
atualização do imaginário na forma de uma revolta da Mãe Natureza,
pois esta, “reduzida a uma fonte de energia se vinga sob a forma de
catástrofes naturais” (BAUDRILLARD, 1999, p. 61). Vale destacar
que, conforme argumenta Sontag (1987, p. 250-251) são “coisas,
objetos, maquinaria” que desempenham papel importante nos fil-
53
mes de ficção científica devotados à catástrofe, pois estes tornam-se
uma fonte de poder ao mesmo tempo em que demonstram estar o
ser humano “nu sem seus artefatos”.
Outra justificativa possível para a sedução produzida pela ca-
tástrofe seria de ordem estética. De acordo com Susan Sontag (1987),
o tema principal da ficção científica dos anos 1950 e 1960 não seria
a tecnologia por si mesma, mas a catástrofe, representada sempre
de modo extensivo e grandioso, não apenas intensivo e pontual.
Relacionado a um tema antigo das artes, a exploração dramática
do desastre manteria ligação com o conceito de beleza sublime –
apreciação daquilo que é, a um só tempo, grandioso, ameaçador e/
ou devastador (o mar tormentoso, o abismo profundo, a violência
do vulcão, o ímpeto da nevasca etc.) – em vista do espetáculo da
desordem, do caos coletivo, do colapso urbano e da destruição
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

colossal produzida por agentes naturais. Sontag arremata (1987,


p. 248) ser “o espetáculo da catástrofe urbana”, algo ampliado em
escala colossal pelo cinema, uma experiência voltada à satisfação
de prazeres primitivos. Insinua-se aqui o paradoxo da catástrofe:
o medo da ruptura da ordem e da instauração do caos corre em
paralelo com o desejo de desordem absoluta.
Convergindo com o pensamento de Sontag, é possível con-
vocar os argumentos do ensaio “Sobre Why We Fight”, do crítico
de cinema André Bazin (2014), publicado originalmente em 1946.
Nesse texto, ao tratar da fricção entre história e cinema, bem como
da revalorização do documentário de guerra em seu tempo, Bazin
pontua o modo como a dimensão e a gravidade excepcional da
destruição estavam sendo retratadas pelo cinema. O crítico atri-
buiria a tal interesse o nome de complexo de Nero. Certamente a
denominação é inspirada na fantasia literária – inaugurada por Quo
vadis, de Henryk Sienkiewicz, publicado em 1900 – que caracteriza
o imperador romano como um tipo sanguinário e demente que ha-
via ordenado o incêndio de Roma a fim de buscar inspiração para
54
compor um poema épico, similar ao de Homero, A Ilíada. Enquanto
a cidade ardia em chamas, Nero contemplava o cenário tocando
harpa. A referência irônica ao imperador procuraria justificar – de
forma pessimista – o prazer despertado no público em ver cenas
de destruição em massa acompanhadas de trilha sonora solene
(BUTCHER, 2016).5 Da argumentação de Bazin (2014) ainda é
possível seccionar a seguinte comparação: a dimensão dramática
da guerra, por sua grandeza cósmica, só encontraria concorrência
com terremotos, erupções vulcânicas, enchentes, a bomba atômica
e o fim do mundo.
O complexo de Nero poderia ser deslocado para o cinema

5 A cena do naufrágio do Titanic, no filme de James Cameron, parece


uma representação exemplar do fato: os músicos do navio continuam to-
cando mesmo que o desespero reine ao redor.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

catástrofe e ressignificado, pois o espectador poderia apreciar con-


fortavelmente a destruição global enquanto come pipoca e bebe
refrigerante – feito um Nero contemplativo acima das chamas. Para
retomar a leitura de Sontag (1987), pode-se também dizer que os
disaster movies – da mesma forma que os filmes de ficção científica
analisados pela pensadora – permitem ao espectador fantasiar a so-
brevivência à morte individual e coletiva, dos sujeitos e dos grandes
centros urbanos. Na perspectiva de Sontag (1987), o ataque atômico
a Hiroshima e Nagazaki instaurou em definitivo na consciência
humana um trauma acerca da possibilidade real da destruição em
massa, terror que transformou o período da Guerra Fria em um
momento histórico particularmente sufocante, no qual se evocava
constantemente a possibilidade de um conflito bélico atômico e
definitivo para a humanidade. Algo apenas comparável, talvez, ao
evento astronômico responsável pela extinção dos dinossauros. O
cinema, nesse sentido, ao oferecer uma experiência vicária do de-
sastre em um ambiente controlado, sem perigo imediato, colabora
para a purgação de ansiedades profundas e violências reprimidas. A
55
experiência remete ao princípio do parque de diversão – é possível
experimentar parcialmente, por exemplo, a emoção de um elevador
em queda, em um ambiente simulado e de caráter lúdico. Disfarçado
de entretenimento, o cinema-catástrofe parece oferecer algo mais
que uma narrativa meramente inócua.
O prazer sádico do complexo de Nero teria um valor psica-
nalítico porque a destruição urbana seria algo que intimamente o
corpo social deseja – assim, a cidade simbolicamente sacrificada
no cinema funciona como um ritual para aplacar a fúria reprimida,
fonte do mal-estar da civilização. Por essa via explicativa, o fim do
mundo social expressaria – em um sentido freudiano – a vontade
de libertação dos deveres morais que a vida coletiva exige dos cida-
dãos para o funcionamento ordenado da vida social, obrigações que
limitariam a satisfação das pulsões, ou seja, cerceando a liberdade
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

total do indivíduo em benefício da vida em comunidade. Não é sem


razão que alguns filmes-catástrofe sejam dados a explorar certas
fantasias de retorno: em meio à metrópole em ruínas, ocupada agora
pela Natureza, há o regresso a um modo de vida pré-capitalista e
industrial – coletor, caçador, comunitário.
Para Rafael Argullol (2002), no ensaio O fim do mundo como
obra de arte, há um desejo quase sexual – e inconfessável – na ideia
de aniquilamento e destruição total dos corpos, sendo este um dos
nossos devaneios mais resplandecentes, expresso frequentemente
nas artes. Haveria um tipo de prazer apocalíptico na construção
do fim do mundo, configurado como uma “obra-prima do suspen-
se” (ARGULLOL, 2002, p. 34) e de contornos masoquistas, pois o
declínio súbito estaria esvaziado de significado: apenas a agonia e
a tortura crescentes dariam relevância ao momento crepuscular da
humanidade, finalmente punida e restaurada. O caráter extensivo
do roteiro típico de ficção-catástrofe parece estar inteiramente jus-
tificado por esse princípio do sofrimento, ainda que nem sempre o
aspecto punitivo, de fundo religioso, esteja presente.
56
Em um sentido antropológico, a vontade de ver cidades des-
truídas e a civilização arrasada parece denunciar a ideia de que os
valores sociais de hoje são insuportáveis ou não nos servem mais.
Sendo assim, nada poderia produzir mais prazer do que um cataclis-
mo que permitisse, ainda que apenas ficcionalmente, um recomeço
da humanidade, pois são nos momentos de crise que os valores que
nos guiam são colocados à prova. Esse parece ser o caso de filmes
que convocam a catástrofe como um agente antagonista transfor-
mador – dentre os quais está a seara dos filmes sobre epidemias,
tema a ser discutido mais adiante.
Da pandemia de covid-19: realidade vs ficção
Quando o novo coronavírus, o SARS-CoV-2, responsável pela
transmissão da covid-19, surgiu na cidade de Wuhan, na China,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

não se esperava que atingisse uma dimensão pandêmica. No início


de março de 2020, o cenário mundial confundia-se pouco a pouco
com o dos filmes-catástrofe: carros de som nas ruas orientavam
as pessoas a ficarem em suas casas; rondas policiais eram realiza-
das para garantir o fechamento de lojas e serviços não essenciais;
praias seguiam monitoradas pelo corpo de bombeiros para que não
fossem frequentadas; até segunda ordem, escolas e universidades
encontravam-se com as atividades presenciais suspensas; dos
supermercados, as pessoas procuravam estocar comida e itens de
higiene; farmácias tiveram os estoques de luvas de silicone, máscaras
cirúrgicas e álcool gel rapidamente esgotados; pessoas foram presas
por violarem decretos de isolamento social; a economia encolhia com
o fechamento de serviços; autônomos e desempregados esperavam
ansiosos pela liberação do auxílio emergencial disponibilizado
pelo governo; manifestantes de rua negavam a existência de uma
pandemia e posicionavam-se contrários à quarentena, ao uso de
máscaras e a outras orientações de órgãos de saúde. Em paralelo,
multiplicavam-se na mídia imagens de pessoas entubadas, leitos
57
abarrotados, enterros coletivos, sobreviventes da contaminação. Se
para o geógrafo Yi-Fu Tuan (2005, p. 13), “[a] paisagem de doença
é uma paisagem das consequências terríveis da doença: membros
deformados, cadáveres, hospitais e cemitérios cheios e os incan-
sáveis esforços das autoridades para combater uma epidemia”, a
iconografia da pandemia de covid-19 não escapou dessa descrição.
Muito se conjecturou sobre como esse momento poderia dei-
xar marcas profundas na sociedade global, pois, com o isolamento
social forçado, o imaginário da quarentena afetou os afetos, fosse
pelo distanciamento forçado dos entes mais queridos, fosse pela
desconfiança crescente em relação aos desconhecidos e ao espaço
público. Embora ainda seja impossível mensurar os danos – sociais,
econômicos, psicológicos, culturais, políticos – produzidos pela
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

pandemia na subjetividade, o esgotamento subjetivo provocado por


um longo período de isolamento e de cuidados sanitários parece ter
radicalizado o individualismo. Das apostas realizadas sobre o futuro,
a que sugeria que o mundo poderia inaugurar uma era pós-social,
marcada pelo aprofundamento do distanciamento empático e da
radicalização da sociedade de estranhos, parece ter ganhado mais
concretude.
A circulação viral de fake news pelas redes sociais e aplicati-
vos de comunicação teve inegável papel no estímulo de um pânico
pandêmico. Alertas de secretarias de saúde sobre casos identificados
de infectados por covid-19, situados em um raio de 200 metros da
residência do morador notificado, ou mensagens de planos de saúde
sobre o próximo período de pico de contaminação, para ficar em al-
guns exemplos, produziram – ao contrário do esperado – respostas
exageradas ou desnecessárias por parte da população. Ainda que
essas mensagens reforçassem a necessidade de isolamento social ou
de cuidados redobrados com a higienização, acabaram por tratar a
doença e o doente em si como formas metafóricas de monstruosidade
58
(MARKENDORF, 2016, p. 6-7). Os não infectados, nesse âmbito,
percebiam-se como vítimas passíveis de agressão por agentes des-
conhecidos (as pessoas infectadas) ou invisíveis (o vírus) – uma
mudança significativa que tornava as verdadeiras vítimas do novo
coronavírus, os infectados, em agressores potenciais e até mesmo
em possíveis contaminadores irresponsáveis. A saúde era o bem; a
doença e os doentes eram o mal.
Houve quem apostasse na possibilidade de uma mudança
mais acelerada na geopolítica global, resultante de um deslocamento
político e econômico que já estava em curso. Como opinou Oliver
Stuenkel (2020), a catástrofe biológica enfraqueceria a soberania
estadunidense a ponto de transferir o equilíbrio de poder para um
momento pós-ocidental, tendo a China como nova referência. A crise
da reputação de autoridade de Washington colocaria em xeque sua
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

liderança mundial, sobretudo com a resposta incoerente do governo


de Donald Trump frente à pandemia, a qual foram acrescentadas
denúncias de desvio de material protetivo já comprado por outros
países (BBC, 2020).
A partir de uma perspectiva cultural e simbólica, um contexto
de epidemia pode ser interpretado como a extensão de um corpo-
-Estado doente. Por esse viés, não é possível ignorar os debates
acerca da necessidade de repensar o capitalismo e a busca por um
novo modelo político-econômico, menos individualista e destruti-
vo, tão vigoroso foi o impacto social dessa nova pandemia. Ao lado
das apostas já mencionadas sobre como poderá ser o mundo com o
fim da pandemia de covid-19, acreditou-se na ascensão de relações
mais humanizadas e solidárias, o que remeteria à fantasia utópica
de unidade internacional, descrita por Sontag (1987), por meio da
qual se convoca a humanidade a assumir um discurso altruísta,
humanitário, familiar, populista.
Os conceitos de biopolítica (FOUCAULT, 2008) e de necro-
política (MBEMBE, 2018) receberam grande visibilidade desde o
59
início da pandemia em diversos debates, pois a função estatal do
controle do viver e do morrer tornaram-se mais do que evidentes.
Em Manaus, por exemplo, frente ao colapso do sistema de saúde,
orientou-se que idosos voltassem para as próprias casas para morrer
(MAISONNAVE, 2020), demonstração irrefutável de que os mais
velhos seriam corpos sacrificáveis. Nos Estados Unidos, na cidade
de Nova Iorque, uma gigantesca vala foi aberta para enterrar cor-
pos não reclamados, em sua maioria de pessoas em situação de rua
(LOBO, 2020), algo não incomum em outros países, como Equa-
dor e Irã. Negros e pardos, de acordo com dados do Ministério da
Saúde do Brasil, foram os grupos considerados mais vulneráveis à
covid-19 – e os que correram mais riscos a complicações –, fatores
que sublinharam ainda mais as questões de desigualdade social,
racismo estrutural e relações de classe (GLOBO, 2020). Para o
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

filósofo Roberto Esposito (2020), a pandemia do novo coronavírus


radicalizou a relação entre vida biológica e intervenções políticas a
ponto de tornar a biopolítica uma forma inegável de operação do
poder. Nesse contexto epidemiológico pôde-se observar que:
São muitas as camadas da população que necessitam de práti-
cas profiláticas, e ao mesmo tempo são protegidas e mantidas
à distância, consideradas em risco, mas também portadoras de
risco de contágio. Isso é também o resultado da verdadeira sín-
drome imunitária que há muito tempo caracteriza o novo regime
biopolítico. O que se teme, mais ainda que o mal em si, é a sua
circulação descontrolada num corpo social exposto a processos
de contaminação generalizados. (ESPOSITO, 2020)
Quando em países como a Itália – o primeiro epicentro da
covid-19 na Europa, tanto em decorrência do número de infectados
quanto pelo número de mortos –, a curva de contágio foi achatada e
a instituição do isolamento chegou ao limite suportável – segundo a
lógica capitalista – percebeu-se que a convivência social não poderia
mais ser a mesma, ainda que com uma reabertura gradual (VERDÚ,
60 2020). Conforme advertiu Walter Ricciardi, membro do comitê exe-
cutivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), a retomada de um
senso de normalidade somente poderia advir da existência de uma
vacina ou de uma terapia eficiente. Em 2020, como não havia nem
um nem outro, o isolamento social chegou a um ponto-limítrofe,
porque alguns setores precisavam continuar a funcionar, rompendo
a normativa de isolamento social para, ironicamente, sustentar o
próprio isolamento – sobretudo o das camadas mais privilegiadas.
Esse comparativo entre um real contexto de pandemia e a
ficção dos disaster movies pode ser bastante poderoso para os fins
argumentativos propostos neste texto. Em função da individuação
dos sujeitos personagens nos filmes-catástrofe, a projeção-identi-
ficação do espectador audiovisual com as protagonistas da trama
é de ordem simpática e o enredo melodramático frequentemente
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

suaviza o impacto da morte coletiva, retratada no plano de fundo.


Já o espectador midiático, frente a uma multidão anônima morta,
comunicada de forma fria e numérica pela pretensa objetividade
dos jornais, não consegue elaborar o mesmo tipo de simpatia uma
vez que lhe falta um rosto – salvo quando os óbitos são próximos a
ele. Por um lado, a fantasia destrutiva dos disaster movies poderia
distrair o terror humano em relação à morte coletiva ao propor um
final feliz em torno de um par romântico, com o qual ele se identi-
fica e se humaniza na ordem simbólica ao final da trama. Por outro
lado, o contraponto negativo à ficção pode naturalizar exatamente
aquilo que é insuportável na consciência humana e neutralizá-lo
(SONTAG, 1987). Que efeito se pode esperar quando fato (real) e
ficção (imaginário) borram-se? Nas redes sociais multiplicaram
relatos de internautas avaliando o acontecimento como se fosse o
enredo de um filme.
A pensadora Susan Sontag, sublinhando tal efeito de recepção
indistinta de fato e ficção, atribui aos filmes-catástrofe uma parcela
da responsabilidade pela naturalização da tragédia e teoriza sobre
61
a inversão do modo de perceber um evento real:
O atentado no World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001
foi classificado de “irreal”, “surreal”, “como um filme”, em muitos
dos depoimentos das pessoas que escaparam das torres ou viram
o desastre de perto. (Após quatro décadas de caríssimos filmes
de catástrofe produzidos em Hollywood, “como um filme” parece
haver substituído a maneira pela qual os sobreviventes de uma
catástrofe exprimiam o caráter a curto prazo inassimilável daquilo
que haviam sofrido: “Foi como um sonho”). (SONTAG, 2003, p. 23)
No parecer acima está implícita a ideia de que o realismo
dos efeitos especiais empregados pelo cinema aliado à frequência
com a qual símbolos arquitetônicos (Casa Branca, Monumento de
Washington, World Trade Center, Empire State Building etc.) são
deitados abaixo nesse gênero cinematográfico antecipou na tela a di-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

mensão de uma tragédia real. Assim, depois de oferecer ao espectador


inúmeras destruições simbólicas das mesmas metrópoles, a imagem
de um acontecimento real, que antes era apenas verossímil via si-
mulação, só poderia mesmo ser assimilada pela testemunha e pelo
espectador midiático como ficcional, algo que é impressionante, mas
não possível de ser elaborado pela consciência. E, nessa esteira, há de
se questionar se, ao mesmo tempo em que ritualizam simbolicamente
a destruição da cidade, aplacando perversos desejos individuais, não
é exatamente a farta repetição de imagens que pode produzir a sua
dessensibilização. Outra perspectiva poderia enquadrar a percepção
descrita por Sontag ao modo de um evento dissociativo: o indivíduo
experimentaria a situação como se fosse da ordem do fictício, ne-
gando a realidade, de forma a ver-se fora dela e proteger a própria
consciência de eventos potencialmente traumáticos. As pandemias
de H1N1 e H1N5 não tiveram as mesmas consequências sanitárias
do SARS-CoV-2, razão provável para que as estratégias de contenção
da curva de contágio do novo coronavírus pareceram às pessoas uma
reverberação do drama de disaster movies.
62
Na literatura há muitos exemplos do imaginário epidemio-
lógico, seja de doenças reais ou imaginárias, seja da doença em
primeiro plano ou em pano de fundo. Podem ser citadas as obras
de Daniel Defoe (Um diário do ano da peste, 1722), Mary Shelley
(O último homem, 1826), Albert Camus (A peste, 1947), Richard
Matheson (Eu sou a lenda, 1954), Valêncio Xavier (O mez da gri-
ppe, 1981), Gabriel Garcia Marquez (Amor nos tempos do cólera,
1985), José Saramago (Ensaio sobre a cegueira, 1995). O cinema
certamente se apoiou no imaginário literário, muitas vezes adap-
tando obras para a tela, e produzindo correlações interessantes.
Essa profusão de narrativas demonstra o quanto as epidemias
– e a doença em si mesma – são um objeto fóbico recorrente na
consciência, configurando o que o geógrafo Yi-Fu Tuan (2005)
classificaria como uma paisagem do medo.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Na ficção e fora dela podem ser identificadas diversas metáfo-


ras para o imaginário das doenças – um aparato simbólico bastante
discutido por Susan Sontag (2007) em A doença como metáfora,
ensaio de 1978. Dentre as principais estão: a metáfora miasmática
(remete aos miasmas e aos ambientes impuros), a metáfora militar
(a terminologia da invasão bélica aplicada na descrição de doenças),
a metáfora punitiva (leitura da enfermidade como flagelo), a me-
táfora pestífera (remetendo à deformação do próprio corpo social),
a metáfora alienígena (entendimento da doença como um mal que
vem do exterior, do outro). Podemos reconhecer algumas delas nas
narrativas audiovisuais que serão analisadas logo adiante.
Em produções cinematográficas sobre epidemias é pouco co-
mum a caracterização das doenças como pragas enviadas por deuses
enfurecidos, muito embora isso tenha ocorrido na história, como se
deu na disseminação do HIV nos anos 1980 (na qual homossexuais
foram responsabilizados pela enfermidade) e até mesmo em algum
grau no cenário pandêmico de SARS-CoV-2, em que os chineses
foram culpabilizados pela covid-19 em função de seus “hábitos gas-
63
tronômicos singulares” (de onde se desencavam leituras exotificadas
de contaminação e contágio desde a sopa de morcego ao cão assado).
Conforme argumenta Yi-Fu Tuan (2005), como não é possível diri-
gir nossa violência contra a própria Natureza – especialmente a um
agente invisível como certos patógenos – esta é canalizada para bodes
expiatórios, reação que tende a localizar um culpado pelas epidemias.
No caso do HIV foram os homossexuais responsabilizados; com o zika
vírus e o Ebola, os negros africanos; acerca do H1N1, os mexicanos ou
latinos; quanto à covid-19, um mal atribuído aos chineses. O que esses
exemplos parecem insinuar é que há um tipo de geopolítica na qual
se acentuam os poderes internacionais sobre tais territórios e suas
populações, pois curiosamente as doenças eclodem fora da Europa
ou dos Estados Unidos. Ilustrativo, portanto, será analisar algumas
representações da catástrofe epidêmica no cinema na próxima seção.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Epidemias no cinema
Desde que eclodiu pela primeira vez em 1976, o vírus Ebola
produziu outros surtos pelo continente africano, tendo sido o maior
deles registrado entre 2014-2016. O modo como a doença foi descrita
pela mídia – altamente contagiosa, sem cura e fatal – pode ter ins-
pirado o roteiro de Epidemia (Outbreak, Wolfgang Petersen, 1994),
no qual um novo vírus, oriundo do interior africano, ameaça a bios-
segurança dos EUA. Encabeçada por médicos militares, a narrativa
explora conflitos éticos e morais diante de surtos e epidemias, o que
revela outras instâncias de poder que remetem igualmente à biopo-
lítica e à necropolítica. Logo nos primeiros minutos, por exemplo, o
espectador acompanha a destruição de um campo de mercenários,6
situado no Vale do Rio Motaba,7 no Zaire, por um bombardeio aéreo
norte-americano, realizado com o intuito de conter a propagação
do vírus Motaba – responsável por uma febre hemorrágica letal
na região. Logo se percebe que o controle do vírus e sua ocultação
faziam parte de estratégias de guerra do governo norte-americano,
demonstrando que a presença dos EUA na área não estava a ser-
64
viço da biossegurança local ou internacional. Tratava-se da luta
pelo controle de uma potencial arma bélica, de natureza biológica.
No entanto, o esquema é descoberto quando, anos mais tarde, um
novo surto atinge o mesmo local no Zaire e, por meio do tráfico de
animais, acaba por ameaçar uma pequena cidade da Califórnia. A
fim de recuperar uma das metáforas de Sontag (2007), vale destacar
– embora a sequência narrativa não ganhe maior relevância para
a trama – que tenha sido levantada uma hipótese punitiva para a
doença, de ordem ecológica. A única pessoa não infectada em torno

6 O fato de terem sido caracterizados como mercenários parece dar cer-


to aval moral para seu extermínio pelo exército americano; afinal, seriam
vilões.
7 O vírus Ebola também recebeu o seu nome por ter sido localizado nas
proximidades do rio Ebola.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

do vale do Rio Motaba seria o xamã e curandeiro da aldeia, persona-


gem que atribui à doença a manifestação da fúria dos deuses: com
o desmatamento desenfreado – algo provocado pela construção de
uma estrada para Kinshasa – as entidades teriam acordado do sono.
A Natureza e sua vingança.
Em termos de roteiro, remetendo aos modelos já apresentados
anteriormente, há um escalonamento da ação: após a destruição
bélica do primeiro vilarejo e do morticínio viral do segundo, uma
cidade de cerca de 2600 habitantes, nos EUA, é ameaçada de sofrer
o mesmo tipo de contenção armamentista. Cria-se uma narrativa
contrarrelógio (ticking clock), bastante irrealista, na qual a busca
de uma cura concorre com a ordem para bombardear a cidade,
infectada e posta em quarentena rigorosa pelo Exército. Por sorte,
pouco antes de a bomba ser lançada, anticorpos para o patógeno
são descobertos e um soro é produzido para salvar a cidade – e o
país. No percurso há o sacrifício dos bons e a punição dos maus: um
dos médicos bonzinhos falece de febre hemorrágica, não sem antes
deixar uma mensagem de afeto ao par amoroso; e os militares-vilões
65
são responsabilizados por seus crimes. O par romântico da história,
formado por um casal de médicos recém-separados, frente à possibi-
lidade trágica da morte, individual e coletiva, reata o casamento sob
uma piada ambígua e de mau gosto: agora os dois têm anticorpos
um para o outro.
Exemplos como o de Epidemia confirmam que o gênero ca-
tástrofe, mesmo o de epidemias, está associado a um conjunto de
fantasias recorrentes, o que inclui o medo da aniquilação total, como
a destruição de uma cidade, o microcosmo da destruição do mundo.
Tais filmes costumam explorar também as políticas públicas volta-
das para a saúde, muitas vezes criticando a gestão governamental
frente a situações de crise – tais como o tratamento não preventivo,
a contenção de alertas, o acobertamento de informações para mídia,
a prepotência do poder. Em muitos filmes-catástrofe – o que é bas-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

tante preocupante – está presente um discurso bélico no subtexto


que torna aprovável o uso da bomba atômica – afinal, é este o último
recurso contra meteoros, fendas tectônicas e até mesmo, quem sabe,
epidemias. Por outro lado, em vista da platitude dos personagens,
há uma estrutura melodramática que sustenta a narrativa e permi-
te uma configuração maniqueísta do jogo de relações, servindo de
anteparo para o discurso altruísta, humanitário, familiar, populista.
O viés religioso, que assume o cataclismo como um evento
purificador, parece ter retrocedido em um espírito contemporâneo
mais laico, embora tenha aparecido com grande destaque em filmes
como São Francisco, a cidade do pecado (San Francisco, W. S. Van
Dyke, 1936), no qual se atribui o sismo e o incêndio da cidade ao
excesso de vícios de seus moradores. No campo das epidemias do
cinema, uma produção que acaba dando maior destaque a tal aspecto
é a narrativa de fundo ecocrítico e apocalíptico Fim dos tempos (The
Happening, M. Night Shyamalan, 2008). Novamente o espectador
depara-se com problemas pessoais e problemas globais, afinal as
situações de crise parecem provar que a família e o amor são valores
66
supremos. No roteiro, um professor de ciências, em crise conjugal,
defronta-se com um evento inusitado: uma neurotoxina liberada
no ar pelas plantas está levando as pessoas a voluntariamente co-
meterem suicídio. A princípio a mídia alardeia um possível ataque
bioterrorista, mas os indícios levam a outra leitura – o desapareci-
mento inexplicável das abelhas, a poluição excessiva, o aquecimento
global, em suma, o descaso com o meio ambiente teria levado a
uma vingança da Natureza. Por fim, exames de laboratório revelam
que a neurotoxina é um composto natural, não manipulado. Aqui
parece ecoar a visão de Baudrillard (1999), para quem catástrofes
assumiriam a forma de uma retaliação. O filme – no entanto – acaba
assumindo um aspecto tragicômico porque os personagens fogem
erraticamente do farfalhar do vento nas folhagens, da grama às
árvores. A figura didática do filme, o professor de ciências, explica
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

que plantas podem tanto comunicar-se entre as espécies quanto


mirarem alvos específicos, algo que estaria acontecendo naquele
acontecimento insólito – ou seja, as plantas orquestravam um ata-
que bioterrorista aos centros urbanos norte-americanos. Por fim, a
catástrofe cessa espontaneamente e os estudiosos afirmam tratar-
-se de algo similar à maré vermelha – embora o incidente diegético
tenha sido classificado como um fenômeno natural e irregular, sem
maior compreensão. Por sua vez, o professor julga ser um tipo de
aviso ou prelúdio, o que parece se confirmar no desfecho: em Paris,
plantas iniciam um novo ataque.
Seguindo por uma senda diferente da abordagem militar e
ecológica dos filmes anteriores, Os últimos dias (Los últimos dias,
Àlex Pastor, David Pastor, 2013) convoca uma perspectiva social para
a epidemia. O roteiro explora a eclosão da pandemia de Pânico, uma
nova doença cujo sintoma principal é o medo irracional de espaços
abertos, entendido por alguns como uma forma anômala de histeria
coletiva. O contato com o espaço aberto, entretanto, produz uma res-
posta severa, uma convulsão fatal. Propaga-se o medo paranoico de
67
que haja uma vacina, mas que seja apenas destinada à high society.
A origem do patógeno não é identificada, tornando a descoberta da
cura impossível na trama – o que dará vazão à fantasia de retorno ao
primitivismo, uma vez que o funcionamento da civilização entrará
em colapso progressivo com a limitação de deslocamento das pessoas
pelos ambientes. A mídia da diegese informa a descoberta de tribos
de nômades australianos imunes ao Pânico – o que sugere que o
modo de vida simplificado, de “tangas e bumerangues”, parece ser
uma resposta ao problema. Sem linhas de comunicação disponíveis
desde o início do incidente, o enredo acompanha dois personagens,
Marc e Enrique, e a busca para localizar em Barcelona a namorada
grávida do primeiro. Aliás, como se verá mais tarde, são os filhos dos
sobreviventes, imunes à doença, que se tornarão a esperança de um
novo mundo, possivelmente baseado em um sistema comunitário de
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

caça e coleta. O filme encerra com imagens da cidade tomada pela


Natureza, com vastos paredões verdes, sem deixar de demonstrar a
adaptação técnica pós-desastre que permitiu aos doentes crônicos
desenvolverem uma agricultura de subsistência e um sistema de
coleta de água no interior dos edifícios.
Em se tratando de metáforas alienígenas presentes na ficção
audiovisual, aquelas que localizam um culpado estrangeiro para do-
ença, pode-se remeter à narrativa de Vírus (Carriers, David Pastor,
Àlex Pastor, 2009), na qual os culpados pela pandemia global são os
“chinas” (descrição pejorativa para referir-se aos chineses) – inclusive
há uma cena em que uma pessoa de traços asiáticos aparece imolada
à beira da estrada, como um bode expiatório sacrificado. O modo
como os poucos não contaminados sobrevivem é a partir de uma
lógica permeada pela dessensibilização: os infectados pela doença,
não importa quem sejam, devem ser evitados a todo custo; tudo o que
tenha sido tocado deve ser devidamente desinfetado; os doentes são
o devir-morto, não merecem suporte. O roteiro escapa do filme típico
de catástrofe porque explora as consequências da vitória da pande-
68
mia – em geral, a narrativa do desastre exemplar é pré-apocalíptica
e não pós-apocalíptica como esta. Ao longo da diegese, o espectador
é informado que todas as novas propostas de vacina falharam e os
seres humanos que restaram tornam-se mutuamente desconfiados
e inimigos uns dos outros. Na transmissão de um pastor na rádio,
alega-se que os governos corruptos caíram e a epidemia é um flagelo
de Deus – discurso rebatido com ironia por um dos personagens, o que
acentua uma interpretação majoritariamente laica para tais eventos
nessas narrativas. Na trajetória dos protagonistas em busca de um
refúgio não infectado, descobre-se que o comportamento humano na
luta pela sobrevivência individual pode ser pior que as consequências
de um vírus. A violência brutal é o sintoma do homem acuado.
Por último, a fim de criar um laço entre a atual pandemia
de covid-19, merece ser mencionado o filme Contágio (Contagion,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Steven Soderbergh, 2011), produtor de um efeito curioso: do mesmo


modo que o romance A peste, de Albert Camus, publicado de 1947,
ganhou status de best seller no início de 2020 (G1, 2020), a produção
audiovisual tornou-se um hit (WILLMERSDORF, 2020) igualmente
tardio entre os espectadores. À primeira vista, pode-se supor que a
crise sanitária global tenha produzido um movimento coletivo de
busca por respostas via ficção, aprofundando uma contaminação
cruzada de percepções (noticiários/romance, noticiários/filme),
fenômeno que recupera (e aprofunda) a lógica de Sontag (2003):
se a realidade se parece com a ficção – “como um filme” – é preciso
ir à ficção para explicar a realidade (MARKENDORF apud BALBI,
2020). O efeito desse movimento pode ser bastante negativo: frente
à desestruturação do mundo social e ao colapso da sociedade, tal
como exploradas em narrativas ficcionais, os que vivenciam uma
pandemia real podem sofrer com um exagerado sentimento de ame-
aça: o que justificaria a corrida aos supermercados para estocagem
de água, comida e produtos de higiene pessoal; o comportamento
agressivo em relação a pessoas sem máscara; a publicação de de-
69
cretos municipais para limitar a circulação de pessoas, por meio de
dispositivos como quarentena, lockdown, toque de recolher, medidas
que, se transgredidas, podem levar à prisão; a existência de um clima
generalizado de suspeição em relação ao outro.
De todo modo, seria de se esperar que um filme como Contá-
gio assumisse um contorno profético – um alerta emitido, embora
ignorado – tendo em visto os pontos de contato: assim como o novo
coronavírus, o ficcional Mev-1 começou a se alastrar a partir da China
(mais especificamente em Hong Kong); ao patógeno SARS-CoV-2
atribuiu-se o morcego como hospedeiro, tal como na enfermidade
do filme; em ambas narrativas, a imaginada e a real, é a configuração
de uma aldeia global, bastante conectada, que facilitou a propagação
da doença ao redor do globo. Guardadas as devidas proporções, ana-
logamente às sequências narrativas do audiovisual, o cenário fatual
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

experimentou saques a supermercados, alardeamento de remédios


milagrosos (como ocorreu com a Ivermectina e a Cloroquina), pro-
pagação de fake news e de teorias conspiratórias.
Como se pôde acompanhar neste percurso argumentativo, os
filmes-catástrofe, a despeito da simplicidade narrativa contida em
sua sintaxe, incluem componentes semânticos bastante significati-
vos. Os roteiros podem suscitar debates expressivos, desde repensar
o capitalismo e o sistema de exploração do meio ambiente, até o
modo como biopolítica e necropolítica são articuladas pelo governo.
Com a pandemia de covid-19, questionaram-se os efeitos produzidos
por uma aldeia global, sobretudo aqueles que favorecem ampla cir-
culação de estrangeiros pelos territórios – uma vez que é o tráfego
intenso por ar, terra e mar que joga o jogo da propagação pandêmica.
E, como na narrativa de um filme de horror, o vírus e os doentes
tornaram-se ameaças assustadoras; assim como, ao modo da sci-fi,
acompanharam-se na mídia os fracassos e os sucessos da ciência na
criação de uma vacina efetiva. Não se pode deixar de lado, ainda,
o apelo melodramático que leva os personagens a realizar escolhas
70
morais, nas quais pode advir, até mesmo, o sacrifício altruísta (como
o capitão de um navio, o presidente da ficção, muitas vezes, “afunda”
com sua nação). Porém, acima de tudo, o cinema-catástrofe articula
um enredo ambíguo, de deleite estético e purgação ritualística, no
qual o espectador é confrontado vicariamente com o colapso de uma
sociedade altamente complexa e igualmente frágil. Uma civilização
para a qual, o amanhã, um dia, pode ser impossível.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

REFERÊNCIAS

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Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 41-46.
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Acesso em: 14 ago. 2020.

Filmografia

CONTÁGIO (Contagion). Direção de Steven Soderbergh. Roteiro de Scott


Z. Burns. Produção: Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos. 2011.
1h46min. Cor.
EPIDEMIA (Outbreak). Direção de Wolfgang Petersen. Roteiro de Lauren-
ce Dworet e Robert Roy Pool Produção: Estados Unidos. 1995. 2h07min.
Cor.
FIM dos tempos (The Happening). Direção de M. Night Shyamalan. Ro-
teiro de M. Night Shyamalan. Coprodução: Estados Unidos e Índia. 2008.
1h35min. Cor.
O IMPOSSÍVEL (Lo imposible). Direção de J.A. Bayona. Roteiro de Ser-
gio G. Sánchez e María Belón. Coprodução: Espanha, Tailândia e Estados
Unidos. 2012. 1h54min. Cor. 73
OS ÚLTIMOS dias (Los últimos días). Direção de David Pastor e Àlex Pas-
tor. Roteiro de David Pastor e Àlex Pastor. Coprodução: Espanha e França.
2013. 1h40min. Cor.
SÃO Francisco, a cidade do pecado (San Francisco). Direção de W.S. Van
Dyke. Roteiro de Anita Loos e Robert E. Hopkins. Produção: Estados Uni-
dos. 1936. 1h55min. P&B.
VÍRUS (Carriers). Direção de David Pastor e Àlex Pastor. Roteiro de David
Pastor e Àlex Pastor. Produção: Estados Unidos. 2009. 1h25min. Cor.
2012 (2012). Direção de Roland Emmerich. Roteiro de Roland Emmerich
e Harald Kloser. Produção: Estados Unidos. 2009. 2h38min. Cor.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

O pós-apocalipse pandêmico de Jack London

Pedro Sasse1

O recente cenário mundial, devido à crise da covid-19, deu


novo vigor à produção literária e cinematográfica da ficção pós-apo-
calíptica. Obras como o filme Vírus (2009), de Alex e David Pastor,
ou o romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago,
foram amplamente comentadas, menos como puras ficções que como
previsões negativas drásticas de nossa trajetória, apresentando à
população uma pequena parcela de um longo percurso de narrativas
que retratam o (quase) fim do mundo através de doenças e outras
calamidades.
Epidemias povoam o imaginário das civilizações desde a
antiguidade, seja na quinta e sexta praga lançada pelo deus judaico
contra o faraó Ramsés II no Livro do Êxodo, seja naquela lançada
74
por Apolo sobre os aqueus diante das súplicas de Crises na Ilíada.
Em ambos os casos, é importante ressaltar que as doenças, diferente
de como as encaramos hoje, são diretamente relacionadas às trans-
gressões do homem e à punição por uma figura divina, visão que
permanecerá em maior ou menor grau até a consolidação da teoria
dos microrganismos – que só encontrará consenso e validação social
generalizada no século XIX, através do trabalho de pesquisadores
como Louis Pasteur e Robert Koch, apesar de um pensamento nessa
direção começar a ser formado ainda na Idade Média pelos árabes.
A própria ideia de pandemia acompanha a evolução da teoria
dos microrganismos. O dicionário Merriam-Webster (2020) registra
a entrada do termo em língua inglesa como adjetivo – “a pandemic

1 Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminen-


se.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

disease” – em 1666, segundo ano da Grande Praga de Londres, úl-


tima grande epidemia de peste bubônica na Inglaterra. O adjetivo
se substantivaria apenas por volta de 1853, deixando de caracterizar
uma doença para se referir ele mesmo ao fenômeno. É o ano mais
letal da epidemia de febre amarela que tira mais de oito mil vidas em
Nova Orleans, tempo em que esta já havia se disseminado por outros
países, dentre os quais o Brasil, tornando o Rio de Janeiro vítima de
eventuais surtos até o período oswaldiano, já no começo do século
XX. É também o ano de chegada da terceira pandemia de cólera na
Inglaterra, quando, apenas em Londres, dez mil pessoas morreram.
Se a peste negra já havia, antes, chamado atenção para o po-
tencial destrutivo e a rápida disseminação de uma doença, a drástica
modernização pela qual os meios de transporte passam a partir da
revolução industrial estreita as fronteiras e eleva a outro patamar
a capacidade de disseminação de vírus e bactérias, que, cada vez
mais, se afastam da associação à vontade divina para serem vistos
como microrganismos, assassinos invisíveis a olho nu, capazes de
se disseminar, em alguns casos, mesmo através do ar.
75
Nesse sentido, a obra O último homem (1826), de Mary Shel-
ley, pode ser vista como um sintoma do imaginário pandêmico que
ganha força ao longo do século XIX, unindo a ele outra importante
mudança de visão de mundo: a secularização do apocalipse. Este já é
prenunciado no poema “Escuridão”, de Byron – na esteira do terror
sublime causado pelo inverno vulcânico de 1816 devido à erupção
do monte Tambora –, mas é apenas com Shelley que a mudança nas
noções de tempo que vem ocorrendo ao longo do século XIX2 abre
2 Penso aqui, sobretudo, na hipótese de Reinhart Koselleck (2006) de
que, a partir do séc. XVIII, as relações do homem com o tempo na socieda-
de ocidental começaram a mudar drasticamente devido a uma progressiva
incapacidade de utilizar as experiências do passado para fazer previsões
estáveis sobre o futuro, desvelando, por um lado, um horizonte cada vez
mais incerto e, por outro, um passado cada vez mais distanciado da reali-
dade presente. Tal mudança abre caminho para uma ideia de progresso,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

espaço para a imaginação de um futuro em que a humanidade não


se extingue pela vontade divina, mas pela própria força caótica da
natureza3 através de uma doença.
O último homem se passa nas décadas finais do século XXI
e mostra como a humanidade sucumbe diante de uma agressiva e
desconhecida doença até que, por fim, resta apenas Lionel, o último
homem, vagando em seu barco em busca de outro sobrevivente.
Pelas características da doença representada, Shelley parece ter se
inspirado na primeira pandemia de cólera que se inicia na Índia em
1817, se espalhando rapidamente pelo continente asiático.
A ficção apocalíptica, após a precursora obra de Shelley, per-
manece pouco alterada até finais do século XIX, quando uma onda
de narrativas pós-apocalípticas tem início, com destaque para The
Doom of the Great City4 (1880), de William Delisle Hay, e After Lon-
don (1885), de Richard Jeffreys. Profundamente influenciadas pela
situação da Londres industrial finissecular, tais obras representam
catástrofes ecológicas e não pandêmicas. O retorno do imaginário
apocalíptico especificamente relacionado a doenças só ocorreria no
76
começo do século XX.
Nesse sentido, The Doom of London, de Fred M. White, re-
presenta um bom meio termo, trazendo tanto a catástrofe ecológica
quanto a pandêmica, em uma coletânea de histórias em que cada

de futuro dissociado da temporalidade cristã de um amanhã marcado pela


cada vez mais próxima segunda volta de Cristo, logo, impossibilitado de
uma imaginação futurista a longo prazo.
3 O poema de Byron, ainda que apresente um fim do mundo secular, o
faz ainda com um forte diálogo com o texto bíblico. Podemos mencionar,
ainda, Le Dernier homme (1805), de Jean-Baptiste Cousin de Grainville,
homônimo francês do romance de Shelley com premissa semelhante, mas
fortemente influenciado pela visão bíblica, sobretudo através do Paraíso
Perdido (1667), de Milton.
4 Obras para as quais não foi encontrada uma tradução publicada em
português permanecerão com os títulos originais.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

conto representava uma diferente maneira de a capital inglesa su-


cumbir. Em duas das seis narrativas, a grande catástrofe é causada
pela doença: em “The Dust of Death”, um surto de uma mutação da
difteria rapidamente se espalha por Londres, causando desespero,
fuga em massa e desordem social; e em “The River of Death”, o rio
Tâmisa é contaminado por febre bubônica, cortando o acesso à água
de toda a população londrina.
Apesar de catastróficos, os incidentes narrados por White não
ganham as proporções que vemos no romance de Shelley: o colapso da
civilização necessário para se configurar um fim do mundo conhecido.
É apenas em A praga escarlate (1912), de Jack London, que encontra-
mos novamente um cenário futurista em que a sociedade sucumbiu
devido a uma pandemia; trata-se, desta vez, de uma obra de fato
preocupada com a representação de um mundo pós-apocalíptico
mais ou menos nos moldes que se consolidaram no gênero.
Dizemos isso tendo em mente que a obra de Shelley, assim
como o poema de Byron, estão preocupados com a narrativa do fim,
mas de forma alguma com um novo começo. Em Byron essa possi-
77
bilidade não existe. Em Shelley, é deixada a mando da imaginação
do leitor: Lionel, na cena final, reúne seus pertences e parte numa
pequena embarcação ao lado de seu cão, sem certezas sobre o que
o destino lhe reservaria.
Heather J. Hicks (2016, p. 3), parte de um conceito para
caracterizar e estudar o romance pós-apocalíptico: o resgate (no
original, salvage). A autora esboça um modelo narrativo arquetípi-
co que já existiria em germe em Robinson Crusoe de Daniel Defoe:
um sobrevivente de uma catástrofe deve vasculhar entre os restos
da civilização – restos imateriais, como memórias e ideais, assim
como restos materiais, os destroços, as ruínas –, para tentar uma
reconstrução da modernidade que entrou em colapso a partir da
própria catástrofe – ou perceber que tal modernidade está além
de qualquer resgate e partir para algo novo.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Compartilhando dessa visão de Hicks de que a narrativa pós-


-apocalíptica de fato precisa, em alguma medida, explorar não o
momento de queda, mas as tentativas – ainda que nem sempre bem
sucedidas – de resgate daquilo que foi perdido, acreditamos que A
praga escarlate não só é a primeira a fazê-lo através da temática
de um apocalipse pandêmico, como o faz através de uma detalhada
representação de cada etapa envolvida nesse processo de recons-
trução, apresentando uma arquiestrutura narrativa para o gênero
pós-apocalíptico, que havia começado a se delinear em After London
e que ainda permanece vigente nas produções contemporâneas.
Optamos pelo uso do termo arquiestrutura narrativa levan-
do em conta que a narrativa pós-apocalíptica se desdobra em duas
histórias – que muitas vezes se cruzam e sobrepõem: uma história
principal, em que o foco narrativo recai sobre um sobrevivente ou
um grupo de sobreviventes; e uma história de fundo, sobre a própria
civilização, seu colapso e resgate/transformação. Em muitos casos,
o sobrevivente é a testemunha viva da trajetória da civilização desde
sua queda e, assim, a experimenta em tempo real – como veremos
78
em Só a Terra permanece (1949), de George R. Stewart –, ou reme-
mora os eventos passados – caso de A praga escarlate. Em outros,
como é o caso de After London, o personagem nasce em uma época
posterior aos primeiros eventos, e a descoberta do passado se dá
por outras fontes – Jeffreys escolhe a peculiar forma de apresentar
a primeira parte de seu livro não na forma narrativa, mas como um
tratado descritivo apresentando fauna, flora, grupos sociais, política e
história, construindo previamente o espaço narrativo que surgirá na
segunda parte do livro. Chamamos, assim, de arquiestrutura narrativa
a trajetória da própria civilização que se constrói ora com maior pro-
tagonismo ora como sutil pano de fundo de um enredo centrado nos
próprios sobreviventes e seus desafios para garantir a subsistência.
Uma análise detida dos diversos espaços pós-apocalípticos
apresentados na trajetória do gênero, de After London aos romances
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

pós-apocalípticos mais recentes – a trilogia MaddAddam (2003-


2013), de Margaret Atwood, ou Estação onze (2014), de Emily St.
John Mandel, por exemplo –, nos leva a esboçar a arquiestrutura
do gênero a partir dos seguintes pontos:
1. Cataclismo:5 uma catástrofe de grandes proporções dá
início a um processo de dissolução da malha social que
culminará eventualmente no fim da sociedade civilizada.
2. Declínio: o declínio da civilização sucede o cataclismo – de
forma ora rápida ora lenta, a depender do tipo de cataclis-
mo –, apresentando uma sociedade em convulsão, tentan-
do em vão manter suas instituições em funcionamento.
3. Pilhagem:6 uma vez que a ordem social entra em total
colapso, os sobreviventes passam a resgatar os restos do
velho mundo, seja apenas para se manterem vivos, seja
para iniciarem uma reconstrução da civilização.
4. Neofeudalismo: com o esgotamento dos restos úteis do
velho mundo, é preciso estabelecer comunidades autos-
suficientes, capazes de sobreviver através de seus próprios
79

5 O uso do termo cataclismo se dá por ser mais preciso que apocalip-


se. Enquanto este é utilizado, em geral, para descrever o fim do mundo
bíblico, cataclismo, do grego κατακλυσμός, é utilizado para descrever o
dilúvio, episódio mais sintonizado aos eventos retratados na ficção pós-
-apocalíptica – ou pós-cataclísmica, se fôssemos ser mais precisos: um
evento de grandes proporções responsável por “lavar” (klyzein) a socieda-
de, deixando apenas um pequeno número de sobreviventes responsáveis
por sua reconstrução.
6 O termo inglês scavenge é o mais amplamente utilizado para caracte-
rizar o tipo de ação levada a cabo nessa etapa. Na ausência de um equiva-
lente mais próximo em português, opto por pilhagem, pensando no tipo
de ação levada a cabo por sobreviventes após um grande desastre, mas
perdendo sua conotação de roubo, saque, uma vez que a própria noção da
propriedade privada já não pode mais ser garantida por nenhuma ordem
social – diferente, assim, dos saques ocorridos na etapa anterior, de declí-
nio civilizacional.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

meios – nos melhores casos comunidades sustentáveis,


com caça e agricultura, nos piores roubo e canibalismo.
Nessa fase, vemos o ressurgimento de pequenas vilas, com
pouco contato com o mundo exterior e frequentemente
dominadas por déspotas.
5. Superação: ainda que raramente essa etapa seja, de fato,
concretizada em uma narrativa, a maioria delas ao menos
aponta em sua direção. A fase de superação seria aquela
em que a sociedade já não reconhece como precária ou
provisória a ordem social vigente, tendo, geralmente, já
superado o isolamento, violência e instabilidade política
dos grupos despóticos no neofeudalismo. Costuma ser
marcada ou pela morte dos últimos sobreviventes da
catástrofe, deixando o novo mundo nas mãos de uma
geração que nasce após a queda da civilização; ou pelo
bem-sucedido estabelecimento de instituições sólidas da
velha sociedade, tais como o sistema judiciário, a demo-
cracia ou o sistema educacional.
80
Muitas obras acabam concentrando o tempo narrativo em
um recorte dessas etapas, mencionando as demais através de frag-
mentos – seja em retalhos da história passada, seja em esperanças
para o futuro. Os filmes pós-apocalípticos, mais que os romances,
devido à limitação de tempo de tela, costumam priorizar tais re-
cortes. No entanto, mesmo os romances mais longos dificilmente
esboçam todas as etapas, e essa é uma das peculiaridades da obra
de London.
Dessa forma, iremos tentar, ao longo deste texto, desdobrar
como a ficção pandêmica lida com essa arquiestrutura, ou seja,
como se dá o colapso e reestruturação da civilização dizimada por
uma doença, dando especial atenção aos temas próprios de cada
uma dessas fases assim como alguns tropos gerais do gênero. Es-
peramos, com isso, tanto aprofundar a leitura de uma obra pouco
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

estudada no Brasil, como tecer algumas considerações teóricas


aplicáveis ao estudo da ficção pós-apocalíptica de forma geral.
A praga escarlate
Jack London foi uma figura de suma importância para os
primeiros passos da ficção distópica e pós-apocalíptica no começo
do século XX. Enquanto George Orwell e Aldous Huxley geralmente
são vistos como pais da distopia, London, mais de vinte anos antes do
lançamento de Admirável mundo novo (1932) e mais de uma década
mais cedo que Nós (1924), de Yevgeny Zamyatin, já apresentava ao
mundo, em seu O tacão de ferro (1907), uma distopia que em nada
perde para as posteriores. Nessa obra, vemos um mundo em que as
oligarquias assumem o poder político, formando uma brutal pluto-
cracia que afunda a antiga classe média e os mais pobres em uma
miséria completa, enquanto travam uma guerra sangrenta contra os
revolucionários remanescentes do movimento socialista.
Já no gênero da ficção pós-apocalíptica, London não é tanto
um precursor – sucedendo obras populares do gênero como A nuvem
púrpura (1901), de M. P. Shiel, além das outras que mencionamos 81
anteriormente –, mas um consolidador de sua estrutura.
Em A praga escarlate, London visualiza um fim do mundo
causado por um vírus mortal de rápida disseminação e ação sobre
os infectados, sendo facilmente espalhado pelo planeta graças aos
modernos meios de transporte. A obra, no entanto, não é a primei-
ra do autor a trabalhar o tema. Dois anos antes de sua publicação,
London já dava sinais de seu interesse pelo potencial destrutivo dos
microrganismos em “The Unparalleled Invasion” (1910).
O conto parte de uma crescente ansiedade do ocidente com o
chamado yellow peril – nome dado à ameaça de crescimento militar
e econômico da Ásia no começo do século XX –, e que já havia sido
abordado literariamente por Shiel em 1899, no controverso romance
seriado The Yellow Danger. O conto de London retrata, no modelo
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

de história futura,7 a ascensão da China como uma potência eco-


nômica mundial após um período de domínio japonês – projetando
uma sequência para os sucessos japoneses da primeira guerra sino-
-japonesa. Com a industrialização ampla do país por intermédio
dos japoneses, a China supera o problema da fome e, com isso,
experimenta uma explosão populacional que rapidamente a torna
uma ameaça para o ocidente. Prevendo uma conquista mundial da
China através da sua população, que já superava os demais países
da Europa e dos EUA somados, e diante da incapacidade de um
confronto militar direto com a nova potência, um cientista ameri-
cano propõe uma solução diferente: bombardear a china com tubos
contendo todas as doenças contagiosas que fosse possível cultivar.
O plano é levado a cabo e a situação final do país é pós-apocalíptica:
Houvesse o leitor estado em Pequim novamente, seis semanas
mais tarde, ele teria buscado em vão pelos onze milhões de habi-
tantes. Alguns poucos ele haveria encontrado, algumas centenas
de milhar, talvez, suas carcaças apodrecendo nas casas e nas
ruas desertas, e empilhadas aos montes nas caçambas de mortos
82 abandonadas.8 (LONDON, 1975, p. 212)

Durante todo o verão e outono de 1976 a China foi um inferno.


Não havia escapatória para os microscópicos projéteis que busca-

7 No inglês, future history, nome dado a um gênero textual popular na


ficção científica em que não há foco narrativo em personagens específicos
e uma trama, mas uma emulação do discurso historiográfico a partir de
um narrador situado em um futuro distante, tomando por passado, assim,
anos posteriores ao presente real.
8 No original: “Had the reader again been in Peking, six weeks later, he
would have looked in vain for the eleven million inhabitants. Some few of
them he would have found, a few hundred thousand, perhaps, their car-
casses festering in the houses and in the deserted streets, and piled high
on the abandoned death wagons”. As traduções de todos os trechos citados
em língua estrangeira são de responsabilidade do autor, a não ser quando
indicado.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

vam até os mais remotos esconderijos. As centenas de milhões de


mortos permaneciam sem enterro e os germes se multiplicavam,
e, perto do fim, milhões morriam diariamente de fome. Além
disso, a fome enfraqueceu as vítimas e reduziu suas defesas
contra as pragas. Canibalismo, assassinato e loucura reinaram.
E assim pereceu a China.9 (LONDON, 1975, p. 212)
A ameaça que, em “The Unparalleled Invasion”, é bem contro-
lada pelo ocidente – capaz de impedir a disseminação das mutações
do vírus criadas naturalmente durante o massacre –, em A praga
escarlate será a causa da ruína da civilização. A história é contada
também em retrospectiva, mas, dessa vez, London abdica do formato
impessoal da história futura pela subjetividade da memória – talvez
por serem as vítimas, agora, mais próximas da empatia do público
leitor. Dessa forma, a história é contada em moldura, por um idoso
– que parece ser o último sobrevivente do mundo anterior – a seus
netos, nova geração que já nada tem em comum com o mundo que
a antecede.
A escolha desse formato possibilita duas grandes vantagens
para a narrativa: primeiro, nos oferece uma visão panorâmica de 83
todo o percurso da civilização até aquele ponto, não ficando, assim,
distante da abrangência da história futura, mas, ao mesmo tempo,
dando a essa visão uma dimensão humana que aproxima o leitor
das vicissitudes desse processo; e, sendo os narratários pessoas
alheias ao mundo anterior, alcança-se um efeito de estranhamento
(defamiliarization, cf. BOOKER, 1994, p. 19) importante para se
construir um olhar crítico sobre o passado da narrativa – ou o pre-

9 “During all the summer and fall of 1976 China was an inferno. There
was no eluding the microscopic projectiles that sought out the remotest
hiding places. The hundreds of millions of dead remained unburied and
the germs multiplied themselves, and, toward the last, millions died daily
of starvation. Besides, starvation weakened the victims and destroyed their
natural defences against the plagues. Cannibalism, murder, and madness
reigned. And so perished China”.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

sente do contexto de produção da obra –, estratégias que já víamos


no epistolar The Doom of the Great City.
Já em sua abertura, a obra expõe os clichês visuais que ser-
vem de indicativo para o cenário pós-apocalíptico – que, talvez, se
inaugure com a Londres selvagem representada por Jeffreys em
After London:
O caminho conduzia ao que um dia foi o nivelamento de uma fer-
rovia. Mas trem algum havia corrido sobre ele há muitos anos. A
floresta, em ambos os lados, engolira os declives do nivelamento
e os havia murado com uma verde vaga de árvores e arbustos.10
(LONDON, 1916, p. 9)
O signo da natureza cobrindo as ruínas da civilização marca
os cenários pós-apocalípticos de abundância – em que, geralmente,
apenas os humanos são afetados, devolvendo o mundo a um estado
selvagem anterior à modernidade, em oposição aos de escassez, em
que o próprio ecossistema entra em colapso, levando aos populares
cenários de terras ermas ou wastelands.
O tempo, da mesma forma, também apresenta uma aborda-
84 gem típica das narrativas pós-apocalípticas, em que se ressalta o
caráter cíclico da história. Diferente das narrativas apocalípticas, a
ficção pós-apocalíptica cria, no processo de resgate apontado por Hi-
cks, uma visão de que a sociedade será capaz de se reerguer, mesmo
que seja apenas para cair novamente: “A raça humana está fadada
a retroceder cada vez mais distante na direção da noite primitiva
em que, novamente, começa sua sanguinária escalada na direção da
civilização”11 (LONDON, 1916, p. 30).

10 “The way led along upon what had once been the embankment of a rail-
road. But no train had run upon it for many years. The forest on either side
swelled up the slopes of the embankment and crested across it in a green
wave of trees and bushes”.
11 “The human race is doomed to sink back farther and farther into the
primitive night ere again it begins its bloody climb upward to civilization.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Nesse mundo, o protagonista, completamente despido dos


costumes de outrora, cruza atento aos perigos da floresta, trajando
pele de animais, e se reúne aos que descobrimos posteriormente
serem seus netos, crianças dotadas de habilidades típicas do mundo
animal, como olfato e audição aguçada, passos leves dos felinos, re-
flexos rápidos. Ao mesmo tempo, tais crianças – Edwin, Hoo-Hoo e
Hare-Lip – apresentam uma fala distorcida, um humor bruto e não
só incapacidade de leitura, mas completa descrença em sua função
para o mundo, sendo descritos pelo narrador como “verdadeiros
selvagens”12 (p. 19), uma audiência necessária para intensificar o
processo de estranhamento.
Antes de entrarem na narrativa em moldura que será feita pelo
velho, descrito como o último homem a viver que conheceu o mundo
que antecedia àquele, a narrativa já dá indícios do ponto em que
os personagens se encontram na arquiestrutura pós-apocalíptica.
Ainda que os traços selvagens dos meninos reforcem um signo de
atraso, não é raro que algumas narrativas do gênero vislumbrem
um novo mundo distante do formato civilizatório antigo baseado
85
em tecnologia e vida urbana – como é o caso de Só a Terra perma-
nece e, de alguma forma, a trilogia MaddAddam. A maior parte das
narrativas pós-apocalípticas, no entanto, se encerra nesse caminho
para a reorganização da sociedade, sem necessariamente alcançá-
-lo, uma vez que isso significaria a plena superação da condição
pós-apocalíptica.13
É importante frisar que o tempo de transição entre essas
etapas varia muito de narrativa para narrativa, havendo algumas

12 “True savages.”
13 Um dos poucos exemplos de narrativa que não só alcança essa supe-
ração como reinicia o ciclo destrutivo que Jack London já frisava em sua
obra é Um cântico para Leibowitz (1959), de Walter M. Miller Jr., dividido
em três partes que poderiam ser associadas, respectivamente, à transição
para a situação neofeudal, a transição para sua superação e, por fim, um
retorno à crise e um novo cataclismo.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

em que se alcança essa superação no período de uma geração, e per-


sonagens vivos no pré-apocalipse testemunham a concretização do
novo mundo – como Estação onze dá a entender com o retorno da
luz elétrica ao final – e outras em que a situação neofeudal dá sinais
de uma longa permanência, em que séculos serão necessários para
retomar a modernidade – como vemos tanto em A praga escarlate
como em seu antecessor, After London.
Geralmente, o que marca a velocidade de progressão dessas
etapas é a capacidade desse resgate da modernidade que se encontra
em ruínas. Narrativas em que esse passado é melhor preservado,
tanto pelo número de sobreviventes, quanto pelo tipo de cataclis-
mo, tendem a alcançar mais rápido o estágio civilizacional anterior
reerguendo as estruturas que foram destruídas. Narrativas em que
a ruptura com esse passado foi total ou quase total falham nesse res-
gate, logo, precisam traçar um caminho novo, que vai requerer tanto
ou mais tempo que foi necessário para que nossa própria civilização,
historicamente, tenha alcançado seu estágio atual.
Uma vez dada a organização inicial da narrativa no primeiro
86
capítulo, isto é, a construção da moldura em que se passará a história
do fim e novo começo da sociedade, London transfere progressiva-
mente a narração heterodiegética para a voz do até então chamado
Granser, o avô dos meninos. Nesse processo, o estranhamento dos
elementos cotidianos será tal que o narrador constantemente será
interrompido para esclarecer mesmo aspectos básicos como alga-
rismos superiores a dez ou a cor escarlate, uma vez que seus netos
desconhecem mesmo os rudimentos da cultura.14

14 Há, no entanto, certa variação entre eles. Edwin, cujo nome ainda
aponta para a velha civilização, recebe um mínimo de educação e é
capaz de absorver mais rápido as informações do velho, assim como é
o que demonstra maior sensibilidade, empatia e interesse pela história.
Justifica-se isso, na história, pelo grau educacional dos patriarcas de cada
clã, capazes de transmitir às gerações futuras apenas o que estava na
limitação de seu próprio conhecimento de mundo.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

No início da narrativa intradiegética, descobrimos alguns da-


dos importantes sobre Granser, como seu verdadeiro nome, James
Howard Smith, e sua profissão, professor de literatura inglesa na
Universidade da Califórnia. Vale aqui ressaltar a recorrência com que
protagonistas da ficção pós-apocalíptica estão ligados a profissões
do ramo intelectual, sobretudo artístico: o letrado Felix Aquila em
After London; os monges copistas de Um cântico para Leibowitz;
o ator de The Postman (1986), de David Brim; a companhia teatral
em Estação onze; o trabalho com linguagem de Jimmy em Oryx e
Crake (2003), de Margaret Atwood.
Tal escolha reflete a tensão fundamental do gênero entre sobre-
vivência e humanidade. Por um lado, o protagonista representa o pilar
de manutenção dos valores humanos em um cenário de progressiva
reificação do homem. Por outro, o antagonismo tende a recair naqueles
que optamos chamar sobrevivencialistas, grupos ou indivíduos que
colocarão a sobrevivência acima da moral e da ética, menosprezando
o valor da cultura e exaltando certo darwinismo social como única
lei – como veremos mais adiante na narrativa de Granser.
87
A primeira etapa a ser narrada pelo velho é, então, o cata-
clismo. Nesse ponto, as histórias do gênero tendem a reforçar cenas
que contrastam profundamente com o mundo que lhes sucederá,
representando consumo, brigas por futilidades, estresse com peque-
nos problemas cotidianos, reclamações de trabalho etc. Por mais que
algumas obras deem grandes panoramas sobre essa fase de crise,
como Estação onze e Oryx e Crake, ou, no cinema, O dia seguinte
(1983), de Nicholas Meyer e Threads (1984), de Mick Jackson, na
maior parte, sua aparição é limitada ao necessário para intensificar,
por contraste, o poder disruptivo da catástrofe.
Ainda que essas ideias de apocalipse tenham se afastado das
suas origens religiosas com o avançar da modernidade, sobretudo
a partir do século XIX, alguns tipos de cataclismos apontam para a
causa humana enquanto outros ainda retêm o encanto da manifes-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

tação sublime, além do controle do homem. Enquanto o apocalipse


ecológico, que já dá sinais no final do XIX, e o nuclear, que se conso-
lidará a partir de meados do século XX, apontam diretamente para
as consequências das ações humanas – como vemos em Um cântico
para Leibowitz – os apocalipses por desastres naturais ou cósmicos
representam o lado aterrorizante das forças desconhecidas e caóticas
da existência – como em A nuvem púrpura (1901), em que vemos
até referência a deidades primordiais que controlariam o universo.
Os apocalipses pandêmicos, no entanto, parecem se equilibrar
entre esses dois polos. A infecção por um vírus costuma ser asso-
ciada ao acaso, às forças naturais, como Granser frisa ao dizer que
“o mundo microrgânico permaneceu um mistério até o fim. Sabiam
que tal mundo existia, e que, de tempos em tempos, batalhões de
novos germes emergiam dele para matar os homens. E isso era tudo
que sabiam sobre isso”15 (LONDON, 1916, p. 48). Por outro lado,
a transformação dessa infecção em uma pandemia parece estar
diretamente associada não só a causas humanas, mas ao próprio
progresso da civilização, uma vez que:
88
Há muito, muito, muito tempo atrás, quando havia apenas
poucos homens no mundo, havia menos doenças. Mas conforme
os homens se multiplicaram e passaram a viver mais próximos
uns dos outros em grandes cidades e civilizações, novas doen-
ças surgiram, novos tipos de germes entraram em seus corpos.
Assim milhões e bilhões de humanos foram mortos. E quanto
mais próximos os homens se agrupavam, mais terríveis eram as
doenças que passavam a existir.16 (LONDON, 1916, p. 45)

15 “the micro-organic world remained a mystery to the end. They knew


there was such a world, and that from time to time armies of new germs
emerged from it to kill men. And that was all they knew about it.”
16 “Long and long and long ago, when there were only a few men in the
world, there were few diseases. But as men increased and lived closely to-
gether in great cities and civilizations, new diseases arose, new kinds of
germs entered their bodies. Thus were countless millions and billions of
human beings killed. And the more thickly men packed together, the more
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Não só a modernidade, com as progressivas aglomeração


urbana e globalização, parece diretamente relacionada ao apoca-
lipse pandêmico, como o homem em si é seu próprio agente de
disseminação, aumentando a ação humana no cataclismo. Se, como
veremos, a crise de confiança no homem já é um tema típico da
ficção pós-apocalíptica pela subtração da ordem social que garante
a cooperação e coíbe comportamentos agressivos, nos apocalipses
pandêmicos ela é acompanhada de um severo agravante: o fato de
que cada indivíduo é potencialmente a personificação da própria des-
truição do mundo, podendo carregar consigo a causa da catástrofe.
Um dado curioso sobre a narrativa de London é sua decisão
por situar o ponto zero da arquiestrutura pós-apocalíptica, o cata-
clismo, não do presente ou futuro imediato do autor, o que ocorre
na maior parte das obras do gênero,17 mas num futuro cem anos à
frente, em 2013. Assim como em O tacão de ferro, London utiliza
esse deslocamento para mostrar os sinais magnificados do capitalis-
mo a longo prazo, reforçando ainda mais o contraste entre o mundo
pré e pós-apocalíptico, principalmente através da personagem Vesta
89
Van Warden, esposa de um dos doze bilionários – na vida real, o
primeiro, John D. Rockfeller, só surgiria três anos depois da publi-
cação da obra – que controlavam os EUA à época da pandemia18 e

terrible were the new diseases that came to be.”


17 Tal escolha reflete o fato de que, em geral, a crítica gerada por esse
tipo de ficção funciona na comparação entre o presente narrativo – futuro
pós-apocalíptico – e o presente da produção da obra – passado narrativo
–, visto como um momento de crise que precisa ser solucionado a fim de
evitar, no mundo real, o mesmo destino visto na ficção (cf. SASSE, 2020,
p. 185).
18 Apesar do caráter preciso de muitas considerações de London sobre o
futuro, como a ascensão da China como potência mundial após um perío-
do de dominação japonesa, sua visão sobre os bilionários foi bem modesta
no começo do século. Van Warden, presidente do grupo de doze bilioná-
rios a controlar os EUA, tinha apenas um bilhão e oitocentos milhões de
dólares. Hoje, sete anos após o período vislumbrado por London, os EUA
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que, após a dissolução da ordem social, perde tudo para se tornar,


à força, mulher de seu próprio motorista.
Como na maior parte das ficções pós-apocalípticas pandêmicas,
a doença de A praga escarlate tem alta letalidade e um rápido período
de incubação, o que contraria as condições ideais para a disseminação
de uma pandemia – que precisa de tempo e portadores vivos para se
espalhar antes de ser devidamente contida. No entanto, sua frequência
no gênero se explica se levarmos em consideração o tipo de cenário
que se deseja construir: o da súbita supressão da humanidade no
mundo. Com isso, não só o choque de transição é intensificado – em
Só a Terra permanece e na trilogia MaddAddam, por exemplo, os
protagonistas estão isolados do mundo quando tudo ocorre, retor-
nando apenas após o fim do declínio da civilização –, como se alcança
um efeito de preservação maior do passado, criando cenários em que
o mundo parece ter sido interrompido em plena rotina – carros na
rua, pessoas trabalhando, amplos estoques de produtos etc. –, o que
favorece o resgate desse passado na fase da pilhagem.
A relação da fase do cataclismo com a fase de declínio depende
90
bastante do tipo de catástrofe em questão. Em alguns casos, o cataclis-
mo tem uma duração curta e é seguido de um declínio social causado
por seus efeitos colaterais ou simplesmente pela incapacidade da
manutenção da ordem diante do súbito abalo das estruturas sociais.
É o caso do apocalipse nuclear ou de um fenômeno cósmico imedia-
to – como nos filmes A noite do cometa (1984), de Thom Eberhardt,
e Terra tranquila (1985), de Geoff Murphy. Em outros, porém, o
cataclismo pode não só perdurar ao longo do declínio social – como
nos apocalipses pandêmicos, em que, no ponto zero da civilização, a
pandemia geralmente se encerra, deixando apenas os imunes – como
continuar se agravando após a queda da civilização, como nos cata-

têm 614 bilionários, dentre os quais Jeff Bezos, que pode se tornar o pri-
meiro trilionário do mundo até 2026.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

clismos ecológicos mais graves – em A estrada (2006), de Cormac


McCarthy, o cataclismo ecológico não parece ser reversível, tornando
a obra uma das mais pessimistas do gênero pós-apocalíptico.
Mesmo nos casos em que essas duas etapas se sobrepõem,
podemos dividi-las pelo tipo de tema central na construção de
suas cenas. Na fase de cataclismo, o choque costuma ser um eixo
temático, acompanhado, em muitos casos, do desespero, do pânico
em massa, das tentativas de fuga etc. É também uma fase em que
geralmente há um equilíbrio entre esperança de uma salvação que
anule a trajetória rumo ao apocalipse19 – em que as instituições
sociais, apesar da crise, estão em funcionamento e tentam manter
unida a frágil malha da civilidade – e a perspectiva de que talvez o
mundo de fato acabe.
No romance de London, a fase do cataclismo é marcada,
inicialmente, por um período de negação. Londres combate por
duas semanas a disseminação do vírus, controlando o vazamento
de informações pela imprensa, antes de ir a público indicar que a
pandemia se alastrava pelo país. A perspectiva do personagem, no
91
começo dessa primeira fase, ainda é de relativa tranquilidade apesar
da situação, como se o problema fosse algo distante da realidade vivida
por ele: “Parecia sério, mas nós na Califórnia, como todo mundo, não
estávamos alarmados. Estávamos seguros de que os bacteriologistas
encontrariam um meio de superar esse novo germe, da mesma forma
que superaram outros germes no passado”20 (LONDON, 1916, p. 51).
Apenas quando a universidade é rapidamente esvaziada, após
casos começarem a surgir em suas dependências, vemos a atitude

43 A maior parte do cinema-catástrofe trabalha nesse ponto, em que há,


também, um cataclismo, mas em que a tensão esperança-aniquilação ten-
de à salvação do mundo, não ao apocalipse (cf. SONTAG, 1965).
20 “It looked serious, but we in California, like everywhere else, were not
alarmed. We were sure that the bacteriologists would find a way to over-
come this new germ, just as they had overcome other germs in the past.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

do protagonista mudar da negação para uma estupefação diante do


poder destrutivo da doença. James, sendo filho de professor, cres-
ceu vendo o movimento do campus e, ao se deparar com um súbito
e total esvaziamento daquele espaço nos primeiros momentos da
pandemia, é tomado por um forte sentimento de depressão, que
culmina na concretização da consciência do apocalipse: “Era como
o fim do mundo para mim – do meu mundo”.21
O fato marca, na narrativa, o período de transição entre o
cataclismo e o começo da dissolução social. James, nesse momento,
se isola em casa enquanto o desespero ainda toma a cidade. Quando
as instituições começam a falhar na manutenção da ordem, vemos
surgir temas típicos da etapa de declínio da civilização como alta
criminalidade, saques e violência generalizada: “Todas as ferrovias
e embarcações carregando comida e coisas assim à cidade grande
cessaram suas atividades, e multidões de pobres famintos estavam
saqueando lojas e depósitos. Assassinato, roubo e embriaguez es-
tavam por toda parte”22 (LONDON, 1916, p. 60).
Marcada pelo fim da esperança de retorno, essa etapa repre-
92
senta a ruptura do contrato social. Por um lado, a fase tem um signo
positivo de libertação das massas de uma estrutura de opressão, em
que o povo viola os santuários do consumo e reconquista os bens
que lhe foram negados. Por outro, essa completa anarquia leva
também à violência, tornando o espaço urbano um ambiente hostil
e imprevisível, fato que geralmente perdura ao longo de todo esse
período. Essa ambivalência da libertação das massas é recorrente não
só na ficção pós-apocalíptica de forma geral, mas especificamente
na obra de London. Em The People of the Abyss (1903), espécie de
reportagem de campo sobre os bairros pobres de Londres, London

21 “It was like the end of the world to me – my world.”


22 “All railroads and vessels carrying food and such things into the great city
had ceased running, and mobs of the hungry poor were pillaging the stores
and warehouses. Murder and robbery and drunkenness were everywhere.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

já caracterizava uma parcela dessa população pobre como uma nova


raça de criaturas selvagens e violentas, despidas de qualquer valor
humano (cf. LONDON, 1903, p. 284-5). O autor volta a convocar
essa imagem ao denominar “pessoas do abismo” a massa que, ao
final de O tacão de ferro, se revolta e inicia um frenesi de destruição
urbana. E, em A praga escarlate, London reforça novamente o tema:
“No meio de nossa civilização, lá embaixo, nas favelas e guetos, nós
criamos uma raça de bárbaros, de brutos; e agora, no momento
de nossa calamidade, eles se voltaram contra nós como as bestas
selvagens que eram e nos destruíram”23 (LONDON, 1916, p. 71).
Quando centrada nos personagens aquartelados em suas
casas, a fase de cataclismo costuma ser frequentemente marcada
pelas transmissões de rádio, televisão ou internet. Conforme os
dias passam, ouvem-se as notícias sobre o avanço do cataclismo
em outras regiões, sobre o caos e a violência nas ruas, mensagens
do governo para tranquilizar o público etc. Aos poucos as notícias
vão se tornando escassas, até que o último meio de comunicação
deixa de funcionar, desconectando o homem do resto do mundo e
93
relembrando-o das distâncias agora intransponíveis que o separam
dos demais. Esse fato geralmente indica o ponto zero do declínio
civilizacional, que marca a transição para a fase da pilhagem, ou seja,
o fim das etapas de destruição para o começo das etapas de recons-
trução. Em A praga escarlate, com o cessar da última transmissão de
rádio, o narrador declara a dissolução da civilização: “Dez mil anos de
cultura e civilização passaram num piscar de olhos, ‘extinguiram-se
como espuma’”24 (LONDON, 1916, p. 63).

23 “In the midst of our civilization, down in our slums and labour ghettoes,
we had bred a race of barbarians, of savages; and now, in the time of our ca-
lamity, they turned upon us like the wild beasts they were and destroyed us.”
24 “Ten thousand years of culture and civilization passed in the twinkling
of an eye, ‘lapsed like foam.’” Esse trecho, parte de uma frase maior – os
sistemas efêmeros extinguiram-se como espuma –, é algo que Granser
murmura algumas vezes ao longo da obra, reforçando a ideia de fragilida-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Essa sociedade, no entanto, ainda dá seus últimos espasmos,


quando James resolve transferir-se para um lugar mais seguro,
após ver um homem sendo assassinado bem em frente a sua casa.
No caminho, testemunha o apogeu da violência, vendo assaltos e
assassinatos contra todo tipo de pessoa. Conseguindo, no entanto,
abrir caminho até o departamento de química da universidade,
em que um grupo havia construído uma espécie de bunker, com
provisões e isolamento, testemunhou, enfim, a quase extinção da
humanidade:
Enquanto o mundo se arruinava sobre eles e todo o ar estava car-
regado da fumaça de suas chamas, essas criaturas baixas deram
vazão a sua bestialidade e lutaram, beberam e morreram. Afinal,
que diferença fazia? Todo mundo morreu de qualquer forma, o
bom e o mau, os eficientes e os ineptos, aqueles que amavam
viver e aqueles que desprezavam a vida. Eles se foram. Tudo se
foi.25 (LONDON, 1916, p. 75)
Dois tipos de enredos costumam marcar a fase da pilhagem:
enredos de jornada e enredos de isolamento. Em um, os sobrevi-
94 ventes, após o colapso da sociedade, tentam encontrar um porto
seguro, seja porque ouviram algum rumor sobre um local que
resistiu ao cataclismo, seja porque têm a pura esperança de que
em algum lugar ainda pode haver uma comunidade – é o caso de
A estrada, em que pai e filho rumam para o sul em busca de locais
mais quentes ou Só a Terra permanece, em que o protagonista
empreende uma longa road trip em busca de outros sobreviventes.
Nesse tipo de enredo, predominam temas de luta pela sobrevivên-

de da civilização recorrente na ficção pós-apocalíptica.


25 “While the world crashed to ruin about them and all the air was filled
with the smoke of its burning, these low creatures gave a rein to their bes-
tiality and fought and drank and died. And after all, what did it matter?
Everybody died anyway, the good and the bad, the efficients and the weak-
lings, those that loved to live and those that scorned to live. They passed.
Everything passed.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

cia – fome, frio e doenças – e a constante paranoia em relação a


outros sobreviventes – em que todos os demais se tornam uma
potencial ameaça, também paranoicos sobre sua própria segu-
rança. No outro, os sobreviventes, atentos aos perigos exteriores,
optam por permanecer em um refúgio, enredo em que geralmente
se concentram as histórias pós-apocalípticas de bunker, focadas
no desgaste das relações humanas em confinamento por longos
períodos – chamado em inglês muitas vezes de cabin fever, “febre
da cabana”. Nesse caso, a sobrevivência abre espaço para dinâmicas
de poder – lideranças, divisão de suprimentos, direitos e deveres
–, para o constante dilema sobre partir – viver em uma prisão ou
arriscar a vida em busca da liberdade – e para os efeitos dessa cabin
fever sobre os sobreviventes – loucura, irritabilidade, violência.
Em alguns casos, no entanto, a narrativa consegue explorar
os dois enredos, iniciando um enredo de bunker que vai do período
de declínio até certo ponto da fase de pilhagem e, depois, passando
a um enredo de jornada devido à necessidade de abandonar o refú-
gio. Esse é o caso de A praga escarlate. De início, James opta pelo
95
isolamento, se unindo ao grupo aquartelado no prédio de química.
Ali, London explora temas como as duras decisões de sacrifício
dos possíveis infectados, as tentativas de invasão do prédio pelos
doentes do lado de fora e a difícil manutenção dos espaços de qua-
rentena conforme a doença avança pelo prédio. Por fim, tomando
a maior parte do bunker, a progressiva contaminação força os que
resistiram para as ruas, passando-se então ao enredo de jornada.
Aqui perdurará no grupo de sobreviventes uma dupla para-
noia não só pela possível violência de outros sobreviventes, mas
também pelas chances ainda reais de contágio com a doença: “A
praga já havia diminuído bastante seus números [dos bárbaros
que atacavam a cidade], mas os que sobreviveram eram suficien-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

tes para ser uma constante ameaça a nós”26 (LONDON, 1916, p.


85). Se antes a ameaça era ubíqua, nessa etapa há um jogo entre
ausência e presença. Em cenários majoritariamente ermos, a mera
possibilidade de sobreviventes hostis é uma preocupação constante
dos personagens, criando uma presença espectral do mal humano
durante essa jornada. Essa tensão intensifica a paranoia e se torna
uma ameaça para a capacidade de empatia dos sobreviventes – e,
assim, os empurra na direção da reificação.
Em cenários de epidemia, essa ameaça é duplicada: ao en-
contrar outro sobrevivente, há tanto uma chance de que ele seja
hostil e tente matar para garantir sua própria sobrevivência, quanto
uma chance de que ele esteja infectado e, assim, possa contami-
nar os demais. Na narrativa de James, vemos essa ameaça ainda
magnificada pelos problemas internos: tanto o roubo de provisões
quanto a dura necessidade de se livrarem daqueles que começam
a apresentar sintomas da doença. Esse perigo interno e externo
vai lentamente minando o grupo até que apenas James sobrevive,
encaminhando-se para o interior do país.
96
Em cenários pós-apocalípticos nos quais a natureza é pre-
servada, ela se torna um poder ambivalente. Por um lado será a
única fonte de sustento para os sobreviventes após o encerramento
da fase das pilhagens; por outro, ela perde progressivamente a
domesticação que lhe foi imposta pela civilização e assume um
aspecto de ameaça, corporificada sobretudo nos animais, seja nos
cães retornando ao estado selvagem, nos ratos e insetos se multi-
plicando até virar pragas ou mesmo em novas espécies inseridas
no ecossistema a partir de antigos zoológicos, centros de pesquisa
ou reservas – em After London, por exemplo, temos capítulos in-
teiros dedicados exclusivamente à descrição das novas relações e

26 “The plague had already well diminished their numbers, but enough
still lived to be a constant menace to us.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

comportamentos da fauna e flora pós-apocalíptica. Esse tema da


natureza reconquistando seu espaço cria uma das imagens mais
simbólicas da ficção pós-apocalíptica: a cidade em ruínas tomada
pelo verde, que cobre os prédios, racha o asfalto e toma as carcaças
dos carros.27
A princípio James vagará sozinho por bastante tempo,
questionando-se se ele é o último homem, reflexão que, como vi-
mos, acompanha o surgimento do próprio gênero e é recorrente em
sua trajetória. Esse isolamento profundo é, talvez, um dos poucos
elementos capazes de vencer o medo do outro que predomina nes-
se cenário: diante da ideia aterradora de jamais voltar a ver outro
humano, o signo da alteridade perde força em relação a uma união
superior, a união da espécie. É essa força que fará com que James
ignore os perigos e se aproxime do primeiro acampamento que
descobre após esse longo período de solidão.
Esse local marcará a transição para a fase neofeudal, em que
a escassez de recursos disponíveis para pilhagem impele os sobrevi-
ventes a abandonar o nomadismo (no caso dos enredos de jornada)
97
e a estabelecer formas sustentáveis de sobrevivência, como planta-
ções. Conforme esses acampamentos ganham força, vão se tornando
povoações, ainda predominantemente isoladas umas das outras e
geralmente administradas por meios autoritários – com exceção,
geralmente, do núcleo dos protagonistas, que tende a mostrar os va-
lores básicos da civilização em contraste com o mundo que os rodeia.
No caso de A praga escarlate, o acampamento é dominado
por um personagem conhecido apenas pela sua antiga profissão, o
Chofer. Esse personagem marcará a antítese dos valores humanos

27 Se observamos as capas dos livros de ficção pós-apocalíptica, a cidade


em ruínas é claramente a imagem simbólica do gênero. Essa cidade é ca-
racterizada, a depender do cataclismo, ou como essa imagem da natureza
em reconquista ou como uma wasteland, tomada pela areia da seca, as
cinzas de uma guerra nuclear ou pela neve de uma nova era do gelo.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

de James e representará, no romance, a figura do sobrevivencialis-


ta que antes apresentamos. É nesse momento que voltamos a ver
menção, também, a Vesta Van Warden, esposa de um dos maiores
magnatas dos EUA, agora reduzida a escrava doméstica do Chofer.
O papel feminino nas narrativas pós-apocalípticas costuma
oscilar entre dois extremos: por um lado, a queda da civilização
traz consigo a fantasia da liberação dos poderes pré-estabelecidos,
dentre os quais se encontra o patriarcado. Assim, não é raro ver nas
obras do gênero representações de mulheres libertas de imposições
de gênero, sejam estéticas, sociais ou profissionais – uma das mais
populares manifestações recentes desse arquétipo se encontra na
personagem Furiosa, de Mad Max: estrada da fúria (2015), de
George Miller. Por outro, poucas ameaças são mais recorrentes na
ficção pós-apocalíptica, independente de seu estágio, que a ameaça
do estupro/escravidão sexual, que costuma servir como um dos
signos – junto ao canibalismo – que frequentemente marcam o
comportamento desumanizado dos sobrevivencialistas.28
As fantasias de libertação dos velhos poderes de opressão são
98
também identificadas no confronto de classes, que o par Chofer e
Vesta volta a simbolizar. Como é recorrente em sua obra, London não
oferece na figura dos mais pobres uma representação maniqueísta.
Trazendo muito de suas visões socialistas de mundo para sua obra,
London ressalta sempre a condição de opressão e miséria das camadas
menos favorecidas da população. No entanto, tais pessoas não são em

28 Enquanto o canibalismo é uma marca exclusiva, logo mais caracterís-


tica, dos sobrevivencialistas, o estupro é mais recorrente, uma vez que,
se reforça a perda dos valores humanos, não é exclusivamente um sinal
daqueles que já os abandonaram de todo. Enquanto a violência sexual é
praticamente certa ao encontrar esses hostis sobreviventes, mesmo den-
tro dos grupos protagonistas, a ameaça do estupro permanece ainda que
como tensão. É comum, ainda, que seja mascarada de comércio sexual, em
que as sobreviventes, sem condições de sobrevivência, são obrigadas a se
vender em troca de alimentos ou proteção.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

absoluto idealizadas, como se a ausência da estrutura de exploração


capitalista fosse suficiente para resolver os problemas sociais. A lição
aprendida por eles é a lição da exploração e, sem a devida educação,
será esse o modelo a ser reproduzido. Nas palavras do próprio Chofer:
“‘Vocês tiveram seus dias antes da praga’, ele disse; ‘mas agora é o meu
dia, e que dia bom pra diabo ele é. Eu num trocaria ele pelos velhos
tempos por nada’”29 (LONDON, 1916, p. 106).
A reflexão do Chofer se repetirá com frequência em sobrevi-
vencialistas futuros, que veem na situação pós-apocalíptica a opor-
tunidade para inverter os papéis de poder. Em geral homens fortes
e violentos, com boas habilidades práticas, esses personagens, em
suas vidas prévias, estavam fadados a trabalhos subalternos por falta
de oportunidades, de estudos ou por inadequação social. Mas, na
nova organização do mundo, são justamente essas características e
habilidades – e não um diploma, capital cultural ou bons contatos
– que determinarão não só a sobrevivência como a organização da es-
trutura de poder. Assim, na ótica dos sobrevivencialistas, a situação
pós-apocalíptica é, geralmente, tida como majoritariamente positiva.
99
A tensão entre o lado sobrevivencialista e o lado humanista na
ficção pós-apocalíptica sempre se dá não só externamente, no con-
fronto entre os personagens e os sobreviventes hostis que encontram,
mas também internamente, no constante perigo de se deixar seduzir
pelas comodidades de ver-se livre dos – aparentemente – inúteis va-
lores humanos. No caso de James, essa tensão fica bem clara em sua
decisão de abandonar o acampamento do Chofer, onde, mesmo diante
das ameaças do bruto, havia comida, proteção e uma oferta para que
se casasse em um futuro próximo com a filha do déspota, que então
tinha um ano. Com medo de se tornar ele mesmo um homem como o
Chofer – e horrorizado com a ideia de desposar uma criança –, James

29 “‘You had your day before the plague’, he said; ‘but this is my day, and
a damned good day it is. I wouldn’t trade back to the old times for any-
thing.’”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

abandona Vesta à escravidão do déspota e continua sua jornada em


busca de mais sobreviventes, encontrando-os pouco tempo depois.
O segundo povoamento encontrado é composto por indiví-
duos de visão mais humanista, sem escravidão, estupro e pedofilia,
e James passa a integrar tal tribo, os Santa Rosas, marcando a con-
solidação da fase neofeudal. Granser conta aos netos como eventu-
almente os clãs se expandiram, encontrando novos sobreviventes e
gerando filhos, e como, posteriormente, as proles desses clãs casaram
com membros de outros clãs até chegar à geração dos meninos.
Nesse novo mundo, mantém-se uma estrutura bem patriar-
cal, em que as mulheres vão morar nas tribos dos maridos, fato que
acabará determinando a diferença sutil de comportamento entre
Hare-lip, Hoo-Hoo e Edwin. Os três são descendentes do Chofer,
mas, dos três, Hare-lip é claramente o mais bruto, ignorante e insen-
sível, sendo o único que descende do velho Granser pela linhagem
materna e, assim, havendo crescido entre os sobrevivencialistas.
Saímos, então, da narrativa em moldura para o presente
narrativo, em que vemos essa fase avançada do estágio neofeudal,
100
na qual gerações já cresceram e procriaram sem ter conhecido o
velho mundo – a irmã de Hare-lip, ainda que jovem, já tem quatro
filhos. Vemos, nesse momento, outro tema que será recorrente nas
narrativas que alcançam essa etapa da arquiestrutura, a figura do
último homem do mundo antigo, símbolo da própria narrativa pós-
-apocalíptica, tendo inscrito em seu corpo a memória e experiência
do declínio e reascensão da civilização.
O futuro que se delineia no horizonte, no entanto, não é de
rápido resgate da antiga modernidade, mas de lenta redescoberta de
sua trajetória. Como antes ressaltamos, quanto mais sobreviventes
e maior o grau de preservação dos elementos civilizacionais, mais
rápido uma narrativa pós-apocalíptica pode alcançar um resgate
efetivo do mundo antigo, podendo atingir a superação do estágio
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

neofeudal em uma geração ou menos. Nos casos, no entanto, em que


não é possível alcançar essa superação pelo resgate da antiga ordem
social, é preciso construir uma nova ordem a partir do zero, sendo
necessário refazer cada passo da humanidade. Vemos pela narrativa
de Granser que o novo mundo de A praga escarlate seguirá essa
trajetória mais longa:
Mas será lento, muito lento [o caminho de reconquista do
mundo]; nós ainda temos tanto para subir. Nós caímos tão
desesperançosamente fundo. Se ao menos um físico ou um
químico tivesse sobrevivido! Mas não era para ser assim, e nós
esquecemos tudo.30 (LONDON, 1916, p. 115)
Seja no resgate do mundo anterior, seja no caminho em di-
reção a um mundo novo, a superação da condição pós-apocalíptica
se tensiona em duas possibilidades: por um lado, a possibilidade de
ruptura de uma visão cíclica de mundo na direção de uma utopia,
em que a humanidade aprende – a duras penas – a lição ensinada
pelo cataclismo e corrige a crise do passado em direção a um mun-
do melhor; por outro, a alternativa mais comum, que aponta para
a manutenção do caráter cíclico do tempo, em que, por mais que a 101

situação pós-apocalíptica tenha suspendido o momento de crise, a


superação do cataclismo levará apenas a um eterno retorno a essa
situação, em uma espécie de determinismo que vincula indissocia-
velmente crise e progresso.
Em A praga escarlate, as reações dos netos à história esbo-
çam a possível trajetória das tribos na definição do poder no novo
mundo – que, como mencionado anteriormente, na visão de Granser
será cíclico: Hoo-Hoo, fascinado pelo misticismo que se forma após
a supressão da ciência, indica seu desejo de se tornar uma espécie
de xamã; Hare-lip, descendente da brutalidade do Chofer, afirma

30 “But it will be slow, very slow; we have so far to climb. We fell so hope-
lessly far. If only one physicist or one chemist had survived! But it was not
to be, and we have forgotten everything.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que obrigará, pela força, um dos irmãos a trabalhar para si; e Edwin,
herdeiro mais próximo da verve intelectual de seu avô, diz que apren-
derá muito com o velho, a ponto de conseguir reinventar as armas
de fogo e, assim, dominar os irmãos e todos os demais. Diante dessa
mistura de vislumbres dos poderes do passado e esboço de um futuro
de repetição, Granser, em uma das últimas reflexões do livro, conclui:
Apenas permanecem as forças cósmicas e a matéria, sempre em
movimento, sempre agindo e reagindo e concretizando os eternos
tipos do sacerdote, do soldado e do rei. Na boca dos pequenos
vem a sabedoria de todas as eras. Alguns vão lutar, alguns vão
reinar, alguns vão orar; e todos os demais labutarão e sofrerão
todo tipo de dor enquanto, sobre suas carcaças sangrando, serão
erguidas de novo e de novo, sem fim, a fantástica beleza e insupe-
rável maravilha do estado civilizado.31 (LONDON, 1916, p. 120)

Considerações finais
Percebemos, com uma análise detida nos tropos que formam
a ficção pós-apocalíptica, que o gênero mantém uma arquiestrutu-
ra muito semelhante, mesmo havendo passado mais de cem anos
102
desde sua consolidação. É claro que, conforme nos aproximamos
do presente, as narrativas tentarão subverter algumas estruturas e
convenções, comportamento comum não apenas na ficção pós-apo-
calíptica. O mundo submerso (1962), de J. G. Ballard, por exemplo,
seguindo a tendência da ficção científica new wave, trará para o
gênero questões do subconsciente, do sonho e das memórias atávicas
da humanidade, afastando-se da abordagem social tão marcada no
gênero; já Memórias de um sobrevivente (1974), de Doris Lessing,

31 “Only remain cosmic force and matter, ever in flux, ever acting and re-
acting and realizing the eternal types the priest, the soldier, and the king.
Out of the mouths of babes comes the wisdom of all the ages. Some will
fight, some will rule, some will pray; and all the rest will toil and suffer sore
while on their bleeding carcasses is reared again, and yet again, without
end, the amazing beauty and surpassing wonder of the civilized state.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

subverterá o foco na construção do espaço, centrando sua narrativa


em uma personagem que assiste, passiva, ao declínio da civilização
da janela de sua sala, misturando ao gênero longos mergulhos na
psique da personagem; e, na trilogia MaddAddam, Atwood mistura
o transumanismo à ficção pós-apocalíptica, indicando que talvez a
utopia do novo mundo resida além das fronteiras da humanidade.
No entanto, isso não significa que estruturas e temas sejam
abandonados. Não só estão presentes nas obras anteriormente
citadas – a pilhagem subaquática e o despotismo dos piratas so-
brevivencialistas em O mundo submerso; a anarquia do declínio
civilizacional e as gerações futuras reificadas pela condição pós-
-apocalíptica em Memórias de um sobrevivente; o novo misticismo,
a temática do último homem e o perigo da perda da humanidade,
entre muitos outros, na trilogia MaddAddam –, como aparecerão
em outras mídias, como os quadrinhos – Sweet Tooth (2009-2013),
de Jeff Lemire, The Walking Dead (2003-2019), de Robert Kirkman
e Tony Moore –, e as séries – a popular adaptação de The Walking
Dead (estreada em 2010) para a TV, ou outras mais recentes como
103
The Rain (2018) e Black Summer (2019). O cinema, mesmo que
tomado por uma grande quantidade de pós-apocalipses zumbi – que,
como os pós-apocalipses alien, envolvem algumas peculiaridades,
como a dinâmica de alteridade diante de um inimigo que ameaça
a espécie humana como um todo –, ainda mantém uma produção
pós-apocalíptica não fantástica bem intensa, trazendo uma extensa
produção de obras de baixo orçamento e, eventualmente, obras mais
ambiciosas, como a adaptação de A estrada para os cinemas em
2010, dirigida por John Hillcoat e contando com Viggo Mortensen
no papel principal.
Esperamos, assim, que essa breve análise de caso de A praga
escarlate ajude a ilustrar essa estrutura da narrativa pós-apocalíptica
assim como alguns de seus principais temas, auxiliando futuros
estudos sobre outras obras desse vasto e sempre atual gênero.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

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[1903-4]

105
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

O que o pós-apocalipse zumbi tem a nos dizer


sobre o “novo normal”?1

Valéria Sabrina Pereira2

Antes de iniciar a discussão proposta, seria de interesse


especificar o que se entende pela terminologia “zumbi”. Na atuali-
dade, os filmes de terror do gênero estão em voga de tal forma que
o conceito pode ser percebido como óbvio, mas ele evidentemente
carrega muito mais consigo do que apenas o histórico do terror.
O termo “zumbi” se refere a mais do que um monstro moderno,
é um termo importado da matriz africana que se refere a mortos
comandados por um xamã. Se, por um lado, partindo da perspec-
tiva brasileira, isso ainda pode parecer um exotismo estrangeiro,
uma vez que a religião vodu se desenvolveu com mais vitalidade no
106 Haiti – enquanto, no Brasil, temos uma presença mais marcada do
candomblé –, por outro, não devemos nos esquecer de que a figura
mais importante da história quilombola brasileira também carrega
esse nome: Zumbi dos Palmares.
A escolha do termo “zumbi” para tratar dessas figuras do
terror não foi aleatória, e tem, de fato, uma raiz racista. O gênero
em seu formato atual, entretanto, pode se relacionar com a questão
da raça de forma a não refletir o racismo da década de 1930 – o que
necessita ser tematizado neste artigo para que a compreensão das
obras tratadas seja plena. Neste artigo, contudo, o termo “zumbi”
1 Versão revisada e expandida de um texto que está no prelo para o livro
online Viver e morrer na peste (3): Epidemia na literatura & cinema, or-
ganizado por Daniele Gallindo Gonçalves Silva (UFPel) e Eduardo Marks
de Marques (UFPel).
2 Professora adjunta da UFMG.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

continuará a ser empregado, não apenas porque é a terminologia


mais disseminada e amplamente compreendida, mas também
porque a opção a ela, como será visto a seguir, não cobre todos os
casos: como falar de “mortos-vivos” em uma obra que segue todos
os preceitos do gênero atualmente denominado como “zumbi”, mas
onde os infectados não estão mortos? Assim, optarei por uma dis-
cussão das vertentes do gênero, que deve esclarecer em que terreno
estamos nos locomovendo, mais do que limitar o termo – pois ainda
não tenho respostas para essa questão de terminologia.
Os primeiros filmes sobre zumbis, de fato, partem de uma
apropriação da religião vodu. Eles apresentam xamãs com a habilida-
de de reanimar os mortos. A primeira obra do gênero se destaca por
seu nome sugestivo: White Zombie (1932). Passado no Haiti, o filme
apresenta Bela Lugosi como um xamã branco que traz os mortos à vida
para que sejam seus escravos, tornando inclusive seus inimigos em
zumbis. Na narrativa, ele envenena uma bela mulher para transformá-
-la em zumbi. Apesar de se tratar de um conhecimento caribenho/
africano, a presença de pretos é mínima, e boa parte dos zumbis são
107
brancos. O filme se assemelha em muito a outras obras de terror de
sua época, como Frankenstein (1931) ou Drácula (1931), não apenas
por também trabalhar com a ideia de reanimar os mortos (como o
monstro de Frankenstein ou as noivas de Drácula), mas até mesmo
estruturalmente: são todas obras que apresentam casais recém-ca-
sados ou noivos, onde a mocinha é posta em perigo e o marido deve
salvá-la, resguardando, assim, os laços matrimoniais. Desta forma, é
possível afirmar que essa primeira obra do gênero não passa de uma
releitura dos grandes sucessos de sua época, Frankenstein e Drácula,
e que a questão da religião africana corresponde ao exotismo típico do
terror da época – representado por Bavária e Transilvânia nas obras
anteriormente citadas –, exotismo esse que se limita a um detalhe da
narrativa, sem qualquer comprometimento com a apresentação de
uma realidade divergente da conhecida nos EUA da época.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Se esses primeiros filmes tiveram Bela Lugosi e Boris Karloff


em papéis principais, e foram obras de grande exibição, a temática
zumbi logo desaparece dos grandes estúdios, e os filmes passam a
ser produzidos apenas pelo que era então chamado de “poverty roll”,
ou seja, por estúdios com poucos meios, sendo exemplo daquilo que
convencionamos chamar de filmes B hoje em dia (INGUANZO, 2014,
p. 37). Nesse contexto, a origem africana não apenas é mais enfatizada
do que em um filme como White Zombie, mas o racismo é escancara-
do, como fica evidente no caso de King of the Zombies (1941), onde
o personagem preto é o criado do casal de protagonistas. O criado é
caricato, fala errado e com forte sotaque, e serve como alívio cômico. A
música africana é apresentada como instrumento de evocação demo-
níaca. A religião pode ter sido descrita em um trailer da época como
“the blackest art”, ou seja, a arte mais negra, mas quem a domina de
forma a evocar os mortos, novamente, é um homem branco: Doutor
Sangre, um alemão que está em Porto Rico para aprender essa magia
e obter ferramentas para “conquistar o mundo”.
Até os anos 1950, a figura do zumbi ainda é muito galgada no
108
ritual vodu e na figura do xamã. Zumbis são sempre controlados por
alguma figura xamânica. O primeiro filme que apresenta criaturas
mais semelhantes ao que veio a ser característico dos filmes atuais
data de 1957: Zombies of Mora Tau. Nele, um grupo de navegadores
deseja resgatar um tesouro de diamantes em um barco naufragado na
costa da África, mas esses diamantes são amaldiçoados e protegidos
pela equipe do barco, agora zumbis. Eles só são libertos do feitiço
quando os diamantes são destruídos. Os pontos de equivalência com
os zumbis modernos são: (1) eles não são guiados por um xamã, agem
de forma “independente”; e (2) o contato com eles é suficiente para
se tornar um deles, a moça sequestrada também passa a “defender”
os diamantes (INGUANZO, 2014, p. 63).
Quando George Romero lança A noite dos mortos-vivos (The
Night of the Living Dead), em 1968, a ideia de que mortos reanima-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

dos são zumbis já havia se cristalizado no imaginário da audiência de


terror da época. Dessa forma, não é difícil compreender que pessoas
habituadas aos “zumbis” da primeira metade do século tenham-nos
relacionado com as figuras de Romero. Mas as criaturas de Romero
apresentam características novas: elas comem carne humana e não
são comandadas por forças superiores. Todo o estilo de narrativa
que conhecemos hoje em dia, como, por exemplo, o fato de que essas
narrativas tratam mais de conflitos entre os vivos do que contra os
mortos, tem base no filme de 1968. Também não há mais um casal
apaixonado como protagonista. Embora o filme apresente a tentativa
de três casais de sobreviver, o principal é formado de pessoas que
se encontraram na noite e que não desenvolvem interesse afetivo.
O fato é que os filmes de zumbi como os conhecemos hoje têm
como obra prototípica A noite dos mortos-vivos, e não as filmagens
prévias. Também é relevante mencionar que Romero rechaçou o
termo “zumbi” inicialmente, convicto de que ele estava apresen-
tando algo novo, mas deu-se por vencido e adotou o termo em seu
segundo filme Despertar dos mortos (Dawn of the Dead), de 1978
109
(INGUANZO, 2014, p. 76-77). O fato é que, ao contrário do que seria
esperado, a popularização do nome na cultura pop não correspondeu
a uma inflação do termo em roteiros do gênero. O termo é tipica-
mente utilizado para definir as obras, mas não pelos personagens
para se referir às criaturas. Apenas para citar um exemplo, a famosa
série The Walking Dead fala massivamente em “walkers”, aqueles
que andam, mas também apresenta expressões como “biters” ou
“dead ones”, os que mordem, ou os mortos. Essa característica é
tão recorrente no gênero que ela chega a ser satirizada em Shaun
of the Dead (2004 – traduzido como Todo mundo quase morto),
onde um dos protagonistas é repreendido por utilizar a “palavra-z”,
considerada ridícula por seu interlocutor.
A sátira evidencia a contradição dessas regras. Nós, espec-
tadores, sabemos que essas figuras são popularmente tratadas por
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

zumbis. Como contraponto, podemos citar filmes de vampiros, onde


os monstros também são identificados pelo nome, de forma que até
mesmo Bella Swan, da saga Crepúsculo (2008), consegue identificar
que Edward é um vampiro com uma rápida busca na internet. Assim,
parece questionável que obras do gênero zumbi sejam tão enfáticas
em evitar o termo. Por outro lado, deve-se observar que a chegada
de mortos-vivos não é algo pontual como a de vampiros, que atinge
apenas um grupo de pessoas – tanto que não se costuma falar de
“apocalipse-vampiro”. Narrativas sobre mortos-vivos costumam
apresentar destruições amplas, em nível nacional ou global. Assim,
entendemos que a coerência preza por este ter que ser o primeiro
contato das personagens com as criaturas. Partindo do pressuposto
de que mortos-vivos não são figuras míticas clássicas, e que os filmes
não pretendem fazer menção ao aspecto ficcional do terror,3 para
conferir mais veracidade ao que é apresentado, é natural que não
se escolha a palavra “zumbi” para uso dos sobreviventes, pois ela
simplesmente não descreve o fenômeno retratado: não são mortos
reanimados por um xamã vodu.
110
Se George Romero se baseou em algo, não foi em conceitos
racistas sobre o vodu, mas no livro de Richard Matheson, Eu sou a
lenda (1954), que trata de uma peste que transforma as pessoas em
vampiros e apresenta a luta do último sobrevivente. Além disso, A
noite dos mortos-vivos é especialmente reconhecido pela questão
racial, mas não por um tratamento exótico ou demoníaco da mesma.
O “mocinho” do filme é Ben, interpretado por Duane Jones, um
homem preto. Além de ser a pessoa mais ponderada de todas, nas
3 O filme The Dead Don’t Die (2019), de Jim Jarmusch, apresenta uma
narrativa que brinca com a autorreferencialidade, com personagens que
fazem, mais de uma vez, referência ao fato de estarem em um filme. Nesta
obra, todos sabem, desde o primeiro contato, se tratar de zumbis, sendo
que outras obras do gênero chegam a ser mencionadas pelo personagem
nerd. O efeito de nomeá-los dessa forma apenas reafirma a estranheza des-
se conhecimento e o aspecto metanarrativo da obra.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

brigas e desentendimentos que ocorrem entre os sobreviventes, sua


cor nunca é mencionada. É como se o racismo, questão latente nos
EUA de 1968, simplesmente houvesse sido anulado pela catástrofe.
George Romero afirma que tudo foi apenas coincidência,
Duane Jones teria simplesmente sido o melhor ator nos testes, e
o roteiro não foi adaptado ao fato de ele ser preto (INGUANZO,
2014, p. 82). O efeito na obra final, como voltará a ser comentado
mais adiante, é inegável. Além disso, após A noite dos mortos-
-vivos, Romero tomou a questão racial como assinatura e dirigiu
vários outros filmes com protagonistas pretos, como Despertar dos
mortos (1978). Não é incomum que outros produtores do gênero
que desejem demonstrar reverência a George Romero apresentem
pretos em papel de destaque. Esse é o caso das obras apresentadas
neste artigo, mas também do seriado The Walking Dead, para citar
um exemplo mais popular.
Este artigo aborda, portanto, narrativas que derivam do
protótipo de mortos-vivos de Romero (e não as narrativas zumbis
colonialistas) – obras que, aparentemente, apresentam um efeito
111
colateral positivo da epidemia de mortos-vivos, que seria uma so-
ciedade sem racismo.
Além de discutir a questão do termo “zumbi”, é conveniente
que se aborde o termo “apocalipse”. Quando se fala sobre apocalip-
se – seja ele de mortos-vivos, ou não – a tendência é que se focalize
especialmente a questão da destruição, do fim. Contudo, tomando
a fonte original do termo, não é disso que tratam as revelações do
livro bíblico. Afinal de contas, os eventos ali descritos também são
conhecidos como “juízo final”. Ou seja, não se trata de um livro sobre
o fim pelo fim. Já em seu início, é anunciado que “[o]s que servem
a Deus serão preservados” (Apocalipse, 7). Assim, a Bíblia fala da
destruição e do julgamento dos injustos. O apocalipse marca o final
de uma vida de erros, e um novo, e mais belo, recomeço. Da mesma
forma, histórias pós-apocalípticas são histórias sobre recomeços e
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

sobre novas chances. Uma oportunidade de recomeçar do zero e


construir algo melhor. Quando, hoje em dia, falamos sobre o “novo
normal” há, evidentemente, ponderações sobre questões de caute-
la para evitar a contaminação pela covid-19, mas há também, em
muitos discursos, um quê de um desejo de um possível recomeço.
Uma possibilidade de que o vírus nos guie para uma estaca zero
da qual poderíamos reformular determinadas condutas que não
funcionaram até o presente momento. Não é exagero afirmar que o
discurso sobre o novo normal é, em muitos casos, imbuído de um
desejo pelo recomeço pós-apocalíptico.
Partindo desse princípio, não é totalmente estranho que,
quando buscamos referências ficcionais para como viver em uma
epidemia, elas não se limitem a exemplos mais realistas como o clás-
sico A Peste (1947), de Albert Camus, ou o filme Contágio (2011), de
Steven Soderbergh. Inspirados em doenças reais (a peste bubônica
e o surto de SARS de 2002, respectivamente), ambas as obras não
chegam a citar nominalmente essas enfermidades, mas são úteis
para se pensar nas consequências de epidemias, tanto no aspecto
112
social quanto em ações necessárias para a sua contenção.
Contudo, o fato é que as epidemias representadas não precisam
necessariamente ser baseadas em doenças reais ou serem realistas
para que a narrativa nos auxilie a pensar em nossa própria realidade.
Afinal, o que os leitores e espectadores estão buscando são muito mais
ponderações sobre o aspecto humano, questões de organização social
e convívio. Por isso, narrativas pouco realistas no que diz respeito à
epidemia em questão também podem trazer a sua contribuição. Jor-
dan S. Carroll (2012, p. 40), por outro lado, afirma que zumbis são
excelentes representações de desastres e contaminações de nossa era,
devido à rápida disseminação. De desastres nucleares a enfermidades,
a contaminação é muito mais rápida na atualidade.
Por esta razão, creio que não seja nenhuma surpresa que,
além de Contágio e Epidemia (1995 – o último baseado no surto
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

de ebola), outro filme muito baixado em março de 2020 tenha sido


um filme de zumbis: Extermínio (28 Days Later, 2002), de Danny
Boyle. A obra apresenta uma epidemia nos moldes de narrativas de
mortos-vivos, causada pela liberação por ativistas de um macaco
contaminado com um tipo de vírus da raiva trabalhado em labo-
ratório. Embora eu creia que a discussão sobre se tratar ou não de
uma obra do gênero seja infrutífera, o fato é que os infectados por
raiva ainda estão vivos e, eventualmente, morrerão de fome, o que
impossibilita se falar especificamente de “mortos-vivos”.
Quando se trata de pandemias, mortos-vivos são na atualidade
uma referência óbvia, uma vez que os exemplos de filmes, séries,
quadrinhos e videogames são abundantes. Um exemplo disso pode
ser observado em comentários de Twitter (muitas vezes copiados e
reproduzidos em outras mídias, como Facebook e WhatsApp). Já
no início da quarentena no Brasil, não era incomum se deparar com
comparações do desrespeito ao distanciamento social com alguém
que “esconderia uma mordida de zumbi”. A hipérbole visa ilustrar
as consequências de um ato que parece ser inocente.
113
Em narrativas de terror é comum que os papéis de bom e mau
sejam bem delimitados e fáceis de serem reconhecidos. Histórias
de zumbi, contudo, também contam com um tipo de personagem
recorrente que é aquele que esconde do grupo que foi infectado.
Esse personagem costuma ser uma parte integrante do grupo dos
bons, uma figura que pode ter levantado as suspeitas do expectador
sobre a sua idoneidade em alguns momentos, mas na qual ainda se
depositava certa confiança. O fato, contudo, é que a índole de um
personagem de filmes de zumbi é invariavelmente definida pelo
momento de sua morte. A remissão de vilões pelo autossacrifício é
comum em diferentes tipos de narrativas. Mas, ao serem infecta-
dos por um zumbi, também os bonzinhos podem apresentar uma
grande virada em seu arco narrativo. Uma vez que estão infectados
e a morte é certa, cabe-lhes informar ao grupo para que tomem as
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

devidas providências ou se afastem. A infecção urge que pensem no


coletivo. Ao privilegiar seu próprio bem-estar, lutar pelos últimos
minutos ou horas de vida em uma evidente negação da proximidade
da morte, esse personagem pode causar a morte daqueles que ele
mais ama, talvez, até mesmo, de todo o seu grupo. Esse mal não é
causado, como no caso do vilão, pela ação planejada e maléfica, mas
pela ausência de ação ou da capacidade de se responsabilizar por
pequenos atos. Para o espectador do filme zumbi, não pensar no
coletivo é condenável e justifica que esse tipo de personagem esteja
no degrau mais baixo em narrativas do gênero. Assim, a comparação
deve servir para alertar as pessoas – em especial aquelas que com-
preendem as regras desse subgênero do terror – que não há nada de
tão inocente em manter encontros sociais com grupos de amigos e
fazer pequenas festinhas: são ações pequenas e egoístas que podem
terminar com a morte de terceiros, muito possivelmente do próprio
grupo nuclear, como um pai ou um avô.
Este é apenas um exemplo de como narrativas sobre zumbis
podem ser utilizadas na prática cotidiana para entender como nos
114
relacionamos com a pandemia. Mas o súbito interesse por Extermí-
nio, já desde o início da pandemia, pode ser justificado por outras
razões. Lançado em 2002, antes mesmo da série de quadrinhos que
se tornou popular devido à série televisiva de mesmo nome, The
Walking Dead, o filme Extermínio pode ser considerado o marco
do ressurgimento das narrativas de zumbi – e foi o primeiro do gê-
nero com zumbis que correm. Também foi Extermínio que abriu as
portas para produções mais elaboradas e com maior investimento,
culminando no boom do gênero que testemunhamos na atualidade.
Um dos traços mais chamativos de Extermínio é a bela e tranqui-
la apresentação de uma Londres absolutamente vazia, quando o
protagonista Jim, sozinho e confuso, acorda de um coma 28 dias
após o início da epidemia. Apesar de haver um “quê” de suspense
conforme o personagem vaga pela cidade vazia, o crítico Mark Ker-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

mode acerta quando afirma que as imagens são de uma “ressonância


assombrosamente poética” (KERMODE, 2002, p. 60). A beleza e a
poeticidade refletem o que pode ser entendido como uma espécie
de hora zero da cidade de Londres, onde nada mais há, e a história
deve ser reconstruída: a tranquilidade após devastação.
Se, em 2002, essas cenas eram uma forte inovação para o
gênero de filmes de zumbi, adicionando introspecção e poeticidade
ao cenário de terror, elas certamente não pareciam mais tão dis-
tantes e incompreensíveis após algumas semanas de quarentena
em diferentes cidades do mundo. De um lado, a preocupação pelo
avanço do vírus, o temor pela possibilidade de se perder pessoas
queridas; de outro, a tranquilidade reestabelecida em grandes cen-
tros, a rápida diminuição da poluição. As tão divulgadas fotos dos
canais de Veneza que haviam se tornado mais uma vez cristalinos,
ou de cidades sendo ocupadas por animais silvestres que não tinham
mais por que temer o espaço urbano, uma vez que não havia mais
grandes concentrações de humanos: o terror poético apresentado
por Extermínio era agora reproduzido nos jornais e, por vezes, nas
115
janelas de nossas casas – com uma tranquilidade incomum.
Essas imagens reais de tranquilidade foram celebradas por
muitos. Seriam uma prova clara de que a natureza estaria se curando
rapidamente, de que o ser humano é capaz, sim, de fazer grandes
mudanças em sua forma de viver e salvar o planeta. Os ditos efeitos
positivos da pandemia já estavam sendo mencionados pelo soció-
logo Slavoj Žižek em março de 2020. Em um artigo publicado pelo
blog da editora Boitempo, ele menciona como “efeitos benéficos” o
transtorno que a quarentena causou a cruzeiros (empreendimentos
turísticos extremamente prejudiciais ao meio-ambiente) e as fortes
perdas sofridas pela indústria automobilística (ŽIŽEK, 2020). O
fato é que, quando falamos sobre o “novo normal”, é muito comum
que aquele que expressa suas ideias sobre o fato esteja refletindo
suas próprias esperanças, mais do que apresentando um retrato da
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

realidade próxima. O novo normal, enquanto discurso proferido


durante o desenvolvimento da epidemia, não passa de um acúmulo
de projeções desejosas (ou, ocasionalmente, temerosas) que fazemos
enquanto aguardamos um futuro ainda incerto.
Como já foi brevemente mencionado, isso não difere muito do
que se apresenta nas chamadas obras pós-apocalípticas – inclusive
aquelas que tratam de mortos-vivos. Marcos do Rio Teixeira (2013)
vê o mundo pós-apocalíptico como um “espaço para satisfação de
desejos”. Embora essa ideia de realizações de desejos só seja explí-
cita em poucas obras – tendencialmente as mais recentes –, como
Madrugada dos mortos (Dawn of the Dead, 2004) ou Zumbilândia
(Zombieland, 2009), algumas das afirmações de Teixeira valem para
qualquer filme do gênero:
[A] ideia de que pessoas comuns, cuja vida se divide entre o traba-
lho cansativo e a rotina entediante, encontram no fim do mundo
a chance de iniciar uma vida nova, diferente e emocionante. [...]
Afinal, onde aquele que se considera tolhido pelas convenções,
normas e instituições encontraria um melhor lugar para realizar
116 os seus desejos senão num mundo pós-apocalíptico, sem Estado,
sem lei e sem instituições? (TEIXEIRA, 2013, p. 14)
Johan Höglund (2017, p. 5) também se dedicou à temática,
concluindo que pandemias se apresentam como possibilidades de
desestabilização da classe média. De fato, narrativas sobre mortos-
-vivos apresentam o total colapso do Estado e o forte abalo das
estruturas sociais vigentes. De forma geral, elas tratam de como
essas estruturas serão recompostas. E as realizações de desejos vão
desde o acesso ilimitado a bens de consumo, quando não há mais
propriedade privada, como apresentado em Madrugada dos mortos,
que se desenvolve em um shopping center, até a autorrealização do
desajustado que, nessa nova sociedade, tem a chance de desenvolver
todo o seu potencial de herói. Um exemplo claro desse segundo caso é
o personagem Daryl, da série The Walking Dead, que de desajustado
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

e pária se desenvolve como herói arqueiro, capaz de sobreviver em


condições hostis e, ocasionalmente, lutar pela mocinha indefesa.
A ideia de que condições extremas permitiriam uma forte
e imediata reorganização social está, como vimos anteriormente,
presente no DNA do gênero, já na ideia de uma suposta suspensão
temporária do racismo ocasionada pela catástrofe. Extermínio, de
Danny Boyle, com roteiro de Alex Garland, está entre as obras que
apresentam um herói preto, mais especificamente, uma heroína – o
que pode ser traçado, entre outros aspectos do filme, como reverência
a Romero. Selena, rápida e feroz com seu machete, pode lembrar (ou
até mesmo ter servido de inspiração para) a personagem Michonne de
The Walking Dead, a diferença é que Extermínio não apresenta um
paralelo de força masculino. Em The Walking Dead, havia Michonne
e Rick, que se desenvolveram como uma dupla. Já em Extermínio,
o protagonista masculino, Jim, não tem habilidades com armas ou
espírito heroico. Devido ao seu coma, Jim é introduzido com atraso
a esse universo pós-apocalíptico; assim, ao contrário de Selena, ele
é lento, confuso, e sente falta de seus familiares. Após conseguir
117
proteção de Selena e mais um sobrevivente (que em breve se revelará
como alguém que “esconde mordida de zumbi”), Jim os convence a
seguir com ele até a casa de seus pais, porque desejava verificar como
estão. O que se segue é incomum para o gênero. O fato de seus pais
estarem de fato mortos (suicídio) não é algo rapidamente superado,
mas Jim ainda se dedicará a assistir antigas filmagens da família
como forma de trabalhar o luto. Jim se apresenta como personagem
emotivo, enquanto Selena é a figura protetora. A proteção feminina,
todavia, não é maternal, mas se dá por meios de violência. Além disso,
ela é reclusa e não está propensa a desenvolver laços afetivos, porque
estes somente serviriam para torná-los mais lentos e vulneráveis.
Se pensarmos em papéis de gênero típicos, Jim e Selena estão
ocupando posições trocadas. Selena é forte, assertiva e protege Jim
fisicamente. Jim é emotivo e mais fraco; é a figura que precisa de
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

cuidado e não esconde isso. A narrativa vai continuar se desenvol-


vendo de forma que os papéis parecem trocados quando se pensa
em representações padrão. Seguindo luzes de Natal que brilham no
topo de um prédio, um claro de sinal de que ali deve haver sobrevi-
ventes, Jim e Selena encontrarão Frank e sua filha Hannah. Embora
nenhuma dessas figuras apresente características que poderiam
ser consideradas chamativas na vida real, o fato é que, em filmes
do gênero, é comum que características pessoais sejam exaltadas,
e os traços apresentados continuam indo contra as prescrições de
gênero clássicas. Frank é, acima de tudo, bonachão e amável. Ele
rapidamente admite sua fragilidade ao grupo e afirma precisar deles
para conseguir deixar o apartamento e obter mantimentos. Sua filha,
uma moça jovem, se apressa em informar ao casal, sem a presença
do pai, que são eles que realmente precisam da ajuda. Como Selena,
Hannah é mais assertiva e tende ao confronto. Frank, como Jim, é
mais familiar. Em diversos momentos vamos ver os personagens de-
sempenhando papéis que estão prototipicamente trocados. Selena é
mais violenta e não deseja aproximação. Hannah é quem sabe trocar
118
pneus com mais destreza. Jim é desprotegido. Frank, paternal. Em
uma das cenas, Jim está tendo um pesadelo e é coberto por Frank,
que o acalma. Ainda dormindo, Jim responde “Obrigado, pai”, num
claro sinal de que ali está se formando uma nova família. Mas o tipo
de afeto e ternura dispensado por Frank ainda está simbolicamente
muito mais ligado à esfera maternal.
Após o encontro dos quatro, o que Extermínio nos apresen-
ta é um pequeno idílio. Como mencionado anteriormente, obras
apocalípticas têm a tendência de se apresentarem como narrações
sobre a realização de desejos. Como tantos outros filmes e séries
de mortos-vivos, Extermínio também tem a sua cena da ida ao su-
permercado, mas este não havia sido invadido, está intacto (exceto
por algumas frutas podres), e a recém-formada família vive nele um
momento de deleite, em que até mesmo Selena assume um outro
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

papel, menos combativo e mais propenso ao convívio familiar. Em


seguida, um piquenique no campo, onde observam uma família de
cavalos correndo livres. A epidemia é aqui uma oportunidade de
formar uma família não exclusivamente consanguínea, inclusiva,
onde cada um se apresenta através de suas melhores habilidades,
não através daquilo que lhe é socialmente imposto. Rüdiger Heinze
e Jochen Petzold (2007 p. 65), em um artigo que destaca tais mo-
mentos como utópicos, ainda apontam que o desmantelamento da
estrutura familiar é uma das características básicas de narrativas
distópicas. Enquanto isso, Extermínio se destaca por apresentar
recorrentes tentativas de reestruturação familiar.
A figura do Estado, contudo, não é completamente apaga-
da dessas obras. Como Höglund (2017, p. 8) bem aponta, a força
militar é muito presente em narrativas de zumbis. Nessas obras,
especialmente nas produzidas nos EUA,4 tende a imperar uma forte
confiança no poder armado. Por isso, não é de se estranhar que a
família rapidamente atenda ao chamado de rádio de militares que
afirmam ter encontrado a cura para a doença. Após perder a figura
119
paterna para o contágio, o grupo é encontrado pelos militares.
Neste ponto, creio que possamos retomar a pergunta feita no
título: o que o pós-apocalipse zumbi tem a nos dizer sobre o “novo
normal”? Retomando o caminho que percorremos até aqui, vimos
que pensadores como Žižek celebraram a esperança de atingirmos
um marco zero, com a possibilidade de uma profunda reestruturação
social. O chamado novo normal traria seus “efeitos benéficos”. Igual-
mente, vimos até o presente momento que obras sobre um possível
pós-apocalipse de mortos-vivos também tendem a apresentar, das
mais diversas formas, como uma epidemia/catástrofe poderia ter
efeitos positivos: fim da propriedade privada, acesso ilimitado a bens
de consumo (não perecíveis), a possibilidade de nos descobrirmos

4 George Romero é canadense, e Extermínio é um filme britânico.


(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

heróis de uma nova realidade, a potencialização do eu através da


queda de imposições sociais. A esperança de uma reestruturação
social profunda é a base de todas essas narrativas. Mas o que elas
nos dizem? Que as mudanças serão bem-sucedidas e perenes?
Desde o primeiro contato com os militares, fica muito claro
que a dinâmica do grupo só pôde funcionar como ocorreu até então
devido à ausência de uma figura reguladora que impusesse regras
pré-determinadas. E o exército certamente representa essa figura
reguladora. Assim que as moças são recepcionadas, logo são ques-
tionadas sobre seus dotes culinários – inexistentes. Além disso, os
militares determinam que elas usem vestidos. Jim, por sua vez, é
conduzido pelo major, que lhe apresenta a casa e seu funcionamento.
Há uma busca clara de reestabelecer os papéis: aos homens cabe
o poder e a ordem, às mulheres, a cozinha e a função reprodutiva.
Sim, porque o chamado anunciando uma cura era falso, a intenção
era atrair mulheres para darem “um sentido de vida” aos soldados:
escravas sexuais que também serviriam à reprodução. Como Carroll
(2012, p. 53) demonstra, isso não reflete uma destruição ou desman-
120
telamento da família, mas uma tentativa de uma nova reestruturação
que esteja de acordo com os princípios patriarcais.
Se a questão racial não chega a ser refletida aqui, quando Sele-
na é diminuída a simples escrava sexual, ela também não é completa-
mente esquecida. Há outros pretos na casa, um soldado – assustado,
que não será representado como parte ativa dos perpetradores – e
outro contaminado, preso por uma corrente como um cachorro no
quintal da casa. A intenção de manter o soldado assim é observar o
desenvolvimento da doença e quanto tempo é necessário para que
pessoas infectadas morram de fome. Tratando-se de uma infecção
de raiva, eles não são “mortos-vivos” de fato. Major West apresenta
o soldado acorrentado com deleite e sadismo. Levando-se em consi-
deração a intenção do major, é possível se afirmar que a cena é uma
referência ao Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee, ocorrido no
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Alabama de 1932 a 1979. Durante esse período, 399 homens pretos


sifilíticos e 201 saudáveis receberam um diagnóstico de “sangue
ruim” e a oferta de tratamento (que não houve), refeições gratuitas
e cobertura do funeral para participarem do programa.5 Nenhum
dos participantes foi tratado, todos foram apenas analisados para
que se pudesse observar de perto o desenvolvimento da doença sem
o tratamento por antibióticos que já era disponível na época. Não
é por acaso que o homem preso é preto. Nos desenvolvimentos de
Extermínio, vemos que o racismo não é anulado, ele continua pre-
sente e com requintes de crueldade.
Como é típico do gênero zumbi, o homem se revela como o
maior inimigo do homem; não o vírus. E, neste caso, é muito claro
que o perigo não está no simples instinto destruidor humano, mas
na manutenção de mecanismos de estruturação social falhos. A es-
perança dessas obras se baseia sempre na ideia inicial de que esses
mecanismos poderiam ser completamente destruídos pela epidemia.
Retomemos o filme inaugural de George Romero, A noite
dos mortos vivos, onde o fator utópico inicial seria a anulação do
121
racismo. Ben, protagonista e herói, é a única pessoa completamente
sensata do grupo de sobreviventes. Que não haja menções à cor
de sua pele em um filme de 1968 parece ser a esperança de uma
mudança positiva, mas isso não se reflete no final do filme. Ben é o
único sobrevivente do grupo. Após meses trancado na casa, ele avista
um grupo de civis armados se aproximando e abatendo os últimos
mortos-vivos. A epidemia foi vencida. Mas o alívio final é ilusório.
Quando Ben se aproxima da janela, é alvejado na cabeça. O letreiro
do filme sobe ao mesmo tempo em que vemos fotografias de homens
brancos armados levando o corpo de Ben para ser queimado em
uma fogueira. Impossível não pensar nas ações da Ku Klux Klan.
Se, durante o levante dos mortos, a regras do racismo pareciam ter
5 https://en.wikipedia.org/wiki/Tuskegee_Syphilis_Study. Acesso em
29/05/2021.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

sido anuladas, elas certamente voltam (simbolicamente) com força


total ao final da epidemia.
O que essas narrativas nos mostram é que muito dessa espe-
rança de uma nova sociedade através das catástrofes são esperanças
de mudanças que seriam autorregulatórias, ou seja, que seriam auto-
maticamente produzidas pelo evento sem que ações concretas sejam
efetivamente necessárias. Quando Žižek celebra o fato de que as
vendas da indústria automobilística estavam em queda, ele não leva
em conta o futuro, apenas os efeitos imediatos da quarentena e seus
desejos esperançosos de como as coisas se desenvolverão. Mas o mer-
cado não reage à esperança, e sim à demanda e a regulamentações.
Sabemos que o vírus não originou nenhuma regulamentação nesse
quesito. Quanto ao que diz respeito à demanda, já ao final de abril
era possível afirmar que as esperanças de Žižek eram vãs: uma vez
finda a quarentena na China, a pandemia serviu como impulso para
compra de carros individuais – mais seguros contra contaminações
por covid-19 do que se locomover com o transporte público. Ainda
pode ser cedo para se falar sobre o futuro dos cruzeiros marítimos,
122
mas já é possível afirmar que o efeito da epidemia sobre o turismo
não foi tão ecológico como inicialmente desejado. O primeiro efeito
que já se faz evidente no ramo do turismo é um aumento drástico
do uso de plástico por redes de hotéis que desejam, assim, causar a
sensação de segurança contra qualquer contaminação.
Um possível fortalecimento da ecologia não foi a única espe-
rança trazida pelo Corona. Em seu artigo, Žižek também menciona
o vice-ministro iraniano da saúde, Iraj Harirchi, que, após ter sido
contaminado, afirmou que “[e]ste vírus é democrático, e não dis-
cerne entre pobres e ricos ou entre políticos e cidadãos comuns”
(HARIRCHI apud ŽIŽEK, 2020, s/p). Essa fala remete ao artigo
de Höglund (2017) anteriormente citado, onde ele menciona que
narrativas de pandemias costumam se apresentar como possibi-
lidades de desestabilizar a classe média. Contudo, atualmente já
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

podemos afirmar que Harirchi estava equivocado. É verdade que


ministros como ele podem se contaminar, assim como políticos em
posição de mais poder como o primeiro-ministro da Grã-Bretanha,
ou o presidente do Brasil. Porém, o desenvolvimento da epidemia
tem-nos indicado que o vírus não é tão cego para questões sociais
como seria desejável. Primeiro, soubemos que o vírus matava mais
pessoas pretas e pobres nos EUA. Conforme a epidemia se alastrou
no Brasil, vimos situação semelhante. As estatísticas sobre a etnia
dos afetados são falhas e insuficientes, mas é mais do que claro
que também aqui é a população mais pobre que está sofrendo
mais. As razões para as discrepâncias são várias, das condições
de saneamento básico precárias à impossibilidade de respeitar a
quarentena em bairros pobres, seja pelas condições de moradia ou
pela necessidade de trabalhar.
Entre as esperanças trazidas por narrativas de epidemia, Tei-
xeira também mencionava a questão da desestabilização do Estado.
Evidente que esse não é o caso com a covid-19, cuja letalidade não
se aproxima à de uma pandemia de mortos-vivos. Mas a pandemia
123
tem, ao seu modo, exercido forte influência no cenário político,
sendo que, mais uma vez, seu efeito parcial está muito distante dos
desejos e esperanças elencados pelos artigos escritos a seu respei-
to: a tendência não é a desestabilização do Estado, mas sim que a
epidemia seja utilizada para concentração de poder, como foi visto
no caso da Hungria e Turquia.
De forma geral, é possível se afirmar que narrativas sobre
epidemias zumbis compartilham a capacidade de apresentar
parcialmente essa realização de desejos mencionada por Teixeira
(2013) e Höglund (2017), mas que também é sua característica
principal apresentar relações humanas de forma especialmente
complicada, impedindo que essa realização de desejos seja perma-
nente – como fica claro pelo exemplo da série The Walking Dead,
cujos personagens se estabelecem alternadamente em sociedades
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

utópicas e distópicas, cada uma delas sendo destruída de maneiras


distintas para dar espaço ao novo cenário.
O romance Zone One (Zona Um, 2011), escrito por Colson
Whitehead, é uma obra do gênero que não apresenta o momento
da erupção da pandemia. Mesmo que menos recorrente, esse traço
de apresentar a situação em um momento tardio da pandemia não
chega a ser raro, sendo presente até mesmo em obras de George
Romero, como Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005). Em vez
de apenas focalizar na realização de desejos, como em Zumbilândia
ou a série Daybreak (2019), ou problemáticas inesperadas dessa
segunda fase do contágio, como a aquisição de consciência dos
zumbis em Terra dos Mortos, Zone One apresenta a reestruturação
social que se dá no momento em que o contágio está controlado e se
ocupa mais de questões como o estresse pós-traumático que afeta
seus protagonistas. Em outras palavras, Zone One é um romance
sobre o “novo normal zumbi”.
Nesse romance, em uma sociedade profundamente militari-
zada, civis foram recrutados para fazer parte do processo final de
124
limpeza das grandes cidades, anulando zumbis ainda ativos e lim-
pando os locais dos corpos dos mortos. Os mortos-vivos de Zone One
são divididos em dois tipos: skels (uma abreviação para esqueletos)
e stragglers (uma expressão utilizada para designar pessoas que
sempre ficam para trás, que levam mais tempo para desenvolver
atividades do que outros). Enquanto os skels seriam o que podemos
descrever como mortos-vivos velozes típicos, os stragglers seriam
mortos-vivos lentos, com baixo potencial de ataque, que se ocupam
exclusivamente de atividades que lhes eram caras, ou recorrentes
em vida, como olhar para o celular. Esse tipo de zumbis não é uma
completa novidade; como Carl J. Swanson (2014, p. 395) aponta, é
um caso semelhante ao dos mortos-vivos de Despertar dos Mortos,
que acabam invadindo o shopping center simplesmente por estarem
condicionados a esse espaço de consumo. Este não é o único filme
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

de Romero que apresenta essa variante, Ilha dos Mortos (Survival


of the Dead, 2009) também apresenta mortos-vivos exatamente no
mesmo perfil que os stragglers de Whitehead. Além disso, todos os
personagens de Zone One sofrem em algum grau do que o romance
chama de PASD, ou seja, post-apocalyptic stress sydrome – sín-
drome de estresse pós-apocalíptico. Nesse contexto, as memórias
do protagonista Mark Spitz são descritas com as seguintes palavras:
A última vez que ele havia visto a casa onde passou a sua infância
foi na Última Noite. Também ela parecia normal vista de fora,
naquele novo significado de normal que queria dizer que apre-
sentava semelhanças com o tempo antes do dilúvio [forma como
se referem à catástrofe zumbi]. Normal queria dizer “o passado”.
Normal era o idílio imaculado da vida de antigamente. O presente
era uma série de intervalos diferenciados uns dos outros apenas
pelo grau de pavor que eles continham. O futuro? O futuro era
argila em suas mãos.6 (WHITEHEAD, 2011, p. 65)
Apesar de o momento ainda ser de terror, é possível identi-
ficar a fé de que o futuro pode ser muito melhor. Partindo do zero,
tudo seria possível. O futuro seria facilmente moldado por quem 125
estivesse disposto a fazê-lo. Mas o que o romance nos apresenta é
uma comunidade não em busca de novas alternativas, e sim de um
reestabelecimento desse passado perdido. E não se trata do passado
de idílio familiar descrito por Mark Spitz, mas de capitalismo, gen-
trificação, marketing e burocracias. Ao contrário do que se espera
de narrativas do gênero, em Zone One, não é apenas o militarismo

6 No original: “The last time he saw his childhood home was on Last
Night. It, too, had looked normal from the outside, in that new meaning
of normal that signified resemblance to the time before the flood. Normal
meant ‘the past’. Normal was the unbroken idyll of life before. The present
was a series of intervals differentiated from each other only by the degree
of dread they contained. The future? The future was clay in their hands.”
As traduções de todos os trechos citados em língua estrangeira são de res-
ponsabilidade do autor, a não ser quando indicado.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que triunfa no pós-apocalipse zumbi, mas também o assombroso


departamento de Recursos Humanos.
Toda vez que as unidades armadas adentram um prédio, não
devem apenas retirar os mortos e matar possíveis mortos-vivos, mas
também devem preencher relatórios com o número de mortos no
local e sua idade aproximada para fins de estatística. Como o número
de mortos é muito alto, não devem se ocupar da identificação dos
cadáveres. Ou seja, são papeladas inúteis, levantamentos estatísticos
que procuram simular uma suposta produtividade. Além disso, a
questão da propriedade privada é percebida como marco civilizató-
rio que deve ser protegido, como pode ser observado neste trecho:
Mark Spitz resolveu pegar algumas meias novas. Agora
que a regulamentação antissaques era efetiva, todos – sol-
dados, civis e varredores [equipes de limpeza de corpos]
de igual maneira – estavam proibidos de pilhar bens e
materiais pertencentes a qualquer um que não fosse um
patrocinador oficial, não importa se whiskey sulista ou
depilatórios naturais. A comida era isenta [...], mas, de
126
forma geral, não se pode mais roubar, gente. Uma vez hou-
ve leis; acatar seu suave murmúrio, apesar do interregno,
era acreditar em seu retorno. Acreditar na reconstrução.7
(WHITEHEAD, 2011, p. 38-39)
O que observamos aqui é que os trabalhadores – varredores,
como são definidos na obra – não têm direito de levar consigo bens
de consumo, a não ser que eles tenham sido definidos como material
“patrocinado”, o que quer dizer que o dono da antiga firma produtora
7 “Mark Spitz resolved to pick up some new socks. Now that the anti-
looting regs were in effect, everyone – soldier and civilian and sweeper
alike – was prohibited from foraging goods and materials belonging to
anyone other than an official sponsor, whether it was Southern whiskey
or all-natural depilatories. Food was exempt […] but for the most part, no
more stealing, people. There had been laws once; to abide by their faint
murmuring, despite the interregnum, was to believe in their return. To
believe in reconstruction.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

foi encontrado vivo e definiu quais produtos poderiam ser levados


pelos trabalhadores sem que fossem cobrados por isso. A questão
da manutenção de leis, a princípio, parece fazer sentido, mas não
o faz quando se leva em consideração que a maior parte desses
magnatas estava morta e desaparecida, resultando em um culto à
propriedade privada praticamente inexplicável diante da tragédia
instalada. Burocracia e capitalismo são ambos impostos de forma
ineficiente, em nome de um reestabelecimento da normalidade. O
desejo claro aqui não é moldar um novo futuro, como Mark Spitz
deu a entender quando mencionou que este seria “argila em nossas
mãos”, mas sim reinstaurar valores perdidos. O novo normal não
passa de uma busca pelo antigo normal.
É interessante notar que Colson Whitehead costuma escre-
ver livros dedicados a temáticas raciais, mas, neste caso específico,
a questão da cor está praticamente ausente. Praticamente. Como
conhecedor do gênero e da obra de George Romero, Whitehead
apresenta uma comunidade pós-apocalíptica onde a questão da cor
está aparentemente esquecida. Descobriremos que o protagonista
127
da história é preto apenas a poucas páginas do final do livro, quando
ele responde perguntas de um colega sobre seu apelido: Mark Spitz,
nome de um medalhista de natação branco. O protagonista explica
que o apelido é uma ironia que se deve a uma crença de que pretos
seriam maus nadadores (preconceito difundido nos EUA), ao que
seu colega responde nunca ter ouvido falar disso:

“Além do lance de que pessoas pretas não sabem nadar.”


“Não sabem? Você não sabe?”
“Eu sei. A maioria de nós sabe. Sabia. É um estereótipo.”
“Eu não tinha ouvido falar sobre isso. Mas você tem que aprender
a nadar em algum momento.”
“Eu me viro na água perfeitamente.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Ele achou improvável que Gary não tivesse domínio de uma


lista de estereótipos de raça, gênero e religião, indexados com
uma lista correspondente de piadas [...], mas não pressionou o
seu amigo. [...] Agora havia um único Nós injuriando um único
Eles. Será que as antigas intolerâncias também seriam reani-
madas, quando eles limpassem a Zona...? Ou será que havia
um espinheiro particular de animosidades, medos e invejas
que eram impossíveis de recriar? Se eles puderam trazer de
volta burocracia, pensou Mark Spitz, eles certamente poderiam
reanimar preconceito, multas de estacionamento e reprises.8
(WHITEHEAD, 2011, p. 231)
Agora que o tema é racismo, os pensamentos do narrador
sobre o futuro não parecem mais tão otimistas, nem as possibilida-
des tão amplas. Sua experiência de vida lhe indica que a repetição
de erros é uma tendência muito mais provável. Passado o problema
maior, há uma forte possibilidade de que maus velhos hábitos sejam
retomados. É, inclusive, questionável se a comunidade apresentada
em Zone One vai mesmo conseguir prevalecer. Com os humanos
perdidos em esforços capitalistas e burocráticos, cada vez mais
128
atentos a questões que não são os zumbis, não é impossível que os
mortos-vivos ainda perseverem. Ao que tudo indica, não são apenas

8 “‘Plus the black-people-can’t swim thing.’


‘They can’t? You can’t?’
‘I can. A lot of us can. Could. It’s a stereotype.’
‘I hadn’t heard that. But you have to learn how to swim sometime.’
‘I tread water perfectly.’
He found it unlikely that Gary was not in ownership of a master lister of ra-
cial, gender, and religious stereotypes, cross-indexed with corresponding
punch lines […], but he did not press his friend. […] There was a single Us
now, reviling a single Them. Would the old bigotries be reborn as well,
when they cleared out this Zone….? Or was that particular bramble of ani-
mosities, fears, and envies impossible to recreate? If they could bring back
paperwork, Mark Spitz thought, they could certainly reanimate prejudice,
parking tickets, and reruns.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

os mortos-vivos stragglers que estão presos a velhos hábitos, inca-


pazes de seguir em frente com sua nova realidade. Os sobreviventes
sofrem do mesmo problema, inicialmente representado por burocra-
cias e repetição de padrões capitalistas, tudo indicando um retorno
próximo das questões raciais – que só poderia ser completamente
evitado pela total aniquilação dos sobreviventes.
Se as narrativas de mortos-vivos têm uma mensagem a nos
trazer é que acreditar em um vírus como nêmesis, como retaliação
divina que pode corrigir os erros dos homens, é um erro. Não há
soluções fáceis como uma catástrofe enviada por Deus ou pela Na-
tureza que obrigue o ser humano a seguir o caminho do bom e do
justo. Mudanças devem ser implementadas por nós mesmos.

REFERÊNCIAS

Apocalipse. In: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus Editora, 2002.


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Days Later. Journal of the Fantastic in the Arts, v. 23, n. 1, p. 40-59, 2012. 129
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Moments in the Dystopia of 28 Days Later. ZAA – Zeitschrift für Anglistik
und Amerikanistik, v. 55, n.1, p. 53-68, 2007.
HÖGLUND, Johan. Eat the Rich: Pandemic Horror Cinema. Journal of
Global Cultural Studies, v. 12, p. 1-14, 2017.
INGUANZO, Ozzy. Zombies on Film: The Definitive Story of Undead Cin-
ema. Nova York: Universe Publishing, 2014.
KERMODE, Mark. 28 Days Later… Sight & Sound, v. 12, n. 12, p. 59-60,
2002.
SWANSON, Carl Joseph. “The Only Metaphor Left”: Colson Whitehead’s
Zone One and Zombie Narrative Form. Genre, v. 47, n. 3, p. 379-405, 2014.
TEIXEIRA, Marcos do Rio. Por que será que gostamos tanto dos filmes de
zumbi?. Cógito, n. 14, p. 12-15, 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.
org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792013000100003#2.
Acesso em: 16/06/2020.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

WHITEHEAD, Colson. Zone One. Nova York: Doubleday, 2011.


ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do viral! Coronavírus e a reinvenção do
comunismo. BLOG DA BOITEMPO. 13 dez. 2020. Disponível em: https://
blogdaboitempo.com.br/2020/03/12/zizek-bem-vindo-ao-deserto-do-vi-
ral-coronavirus-e-a-reinvencao-do-comunismo/. Acesso em: 16 jun. 2020.

Filmografia:

28 DAYS LATER. Dir.: Danny Boyle. Roteiro: Alex Garland. Inglaterra.


Twentieth Century Fox, 2002.
DAYBREAK. Produtores: Aaron Eli Coleite; Brad Peyton. EUA. Netflix,
2019.
DAWN OF THE DEAD. Dir. e roteiro: George Romero. Canadá. Laurel
Group, 1978.
DAWN OF THE DEAD. Dir.: Zack Snyder. Roteiro: James Gunn. EUA.
Universal Pictures, 2004.
KING OF THE ZOMBIES. Dir.: Jean Yarbrough. Roteiro: Edmond Kelso.
EUA. Monogram Pictures Corporation, 1941.
LAND OF THE DEAD. Dir. e roteiro: George Romero. EUA, Canadá. Uni-
versal Pictures, 2004.
130 SHAUN OF THE DEAD. Dir.: Edgar Wright. Roteiro: Edgar Wright; Si-
mon Pegg. EUA. Universal Pictures, 2004.
SURVIVAL OF THE DEAD. Dir. e roteiro: George Romero. Canadá. En-
tertainment One, 2009.
THE DEAD DON’T DIE. Dir. e roteiro: Jim Jarmusch. EUA. Focus Fea-
tures, 2019.
THE NIGHT OF THE LIVING DEAD. Dir.: George Romero. Roteiro: John
Russo; George Romero. Canadá. Continental Distribution, 1968.
THE WALKING DEAD. Produtores: Frank Darabont; Angela Kang. EUA.
AMC; Fox, 2010-2022.
WHITE ZOMBIE. Dir.: Victor Halperin. Roteiro: Garnett Weston. EUA.
Halperin Productions, 1932.
ZOMBIELAND. Dir.: Ruben Fleischer. Roteiro: Rhett Reese; Paul Harrel-
son. EUA. Sony Pictures, 2009.
ZOMBIES OF MORA TAU. Dir. Edward L. Cahn. Roteiro: George H.
Plympton. EUA. Columbia Pictures, 1957.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Essa estranha doença: o imaginário da epidemia


em três histórias em quadrinhos contemporâneas

André Cabral de Almeida Cardoso1

Impressões da pandemia
Em um texto publicado no jornal Folha de S. Paulo em 28 de
setembro de 2020, quando o número de mortos pela covid-19 em
todo o mundo chegava à marca de um milhão, Junot Díaz ressaltou
a dificuldade de compreendermos esse número, de darmos conta
de sua enormidade, para depois frisar que a atual pandemia é um
apocalipse, não pela destruição que causa, mas porque “nos mostra
o que estava escondido ou não era assumido no mundo; ele [o apo-
calipse] fala de nós como países, como sociedades, como planeta, 131
e nos traz notícias, o tipo de notícia mais arraigada que muitos de
nós não querem ouvir ou absorver” (DÍAZ, 2020, s/p). A doença
provoca, então, uma oscilação entre a perplexidade, causada por um
choque que ameaça apagar qualquer tipo de sentido, e a clareza da
revelação apocalíptica, que põe à mostra aquilo que de outra forma
permaneceria oculto ou percebido apenas de modo parcial. O horror
da covid-19 estaria em parte no fato de a pandemia escancarar o que
não conseguíamos ou não queríamos ver, o que talvez intuíssemos,
mas preferíamos recalcar por ser desagradável demais.
Há um tom enfático na argumentação de Díaz. A covid-19 é
superlativa não só devido ao gigantesco número de vítimas fatais

1 Professor associado de Literaturas em Língua Inglesa da Universidade


Federal Fluminense.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que provoca, mas também por atravessar o local e o global: ela nos
fala ao mesmo tempo “como países” e “como planeta”. Mais ainda,
nos interpela como indivíduos, obrigados a dar conta da noção de
um milhão de mortos decorrentes de um evento que se desenrolava
há menos de um ano, mas dotados de um coração que “sente mes-
mo sem entender” (DÍAZ, 2020, s/p) – ou seja, é na nossa emoção
mais íntima que encontramos a reação mais adequada, ou pelo
menos mais imediata e espontânea, para a doença (por outro lado,
permanecemos assombrados por esse um milhão de mortos, que
não apresentam nenhuma distinção entre si, que não pertencem a
nenhum grupo específico, e que, portanto constituem uma massa
indiferenciada à qual qualquer um de nós poderá se juntar um dia).
A doença nos mostra as nossas verdades mais arraigadas, aquilo que
temos de mais profundo e essencial.
A pandemia surge, assim, como fenômeno que nos envolve por
inteiro, estando intimamente ligada à imagem que formamos de nós
mesmos. Espera-se que nossas reações diante dela definam quem
somos, ao mesmo tempo em que as reações de nossas instituições
132
definiriam a natureza das nossas relações de poder. Contudo, o mais
significativo na maneira como Junot Díaz se refere à covid-19 em seu
pequeno artigo é que ela nos fala. Figurativamente, ela se constitui
como entidade geradora de sentido que nos interpela diretamente,
quase como se fosse dotada de uma consciência própria, não só no
sentido de sua capacidade de articular significado, mas também
no de nos ensinar (ao menos potencialmente) um comportamento
ético. Para Díaz, a única esperança que a covid-19 pode trazer é a de
que ela nos ensine a ter mais solidariedade e compaixão e nos leve
a lidar com a verdade de forma efetiva (2020, s/p).
É significativo que Junot Díaz abra seu texto com uma alusão
à experiência de ensinar narrativas apocalípticas a seus alunos, já
que muito do que ele tem a dizer sobre a covid-19 é um reflexo do
imaginário relacionado às epidemias na ficção apocalíptica. Não é o
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

caso, porém, de acusar Díaz de sucumbir à deformação profissional,


pois sua visão não se desvia significativamente da maneira como a
pandemia vem sendo tratada na imprensa e nas nossas conversas
particulares desde que ela surgiu.2 A questão da nossa responsabi-
lidade, a confiança de que poderíamos controlar melhor a pandemia
se agíssemos de modo mais racional, a ambiguidade de ver na doença
uma manifestação do insondável e, ao mesmo tempo, um evento
dotado de um significado capaz de nos ensinar lições imprescindíveis
são todos elementos correntes dos nossos discursos sobre a covid-19
que encontram seus equivalentes em nossas fantasias sobre o apo-
calipse. Podemos ver aqui um indício de como a nossa visão sobre
uma pandemia real está de tal forma imbricada na ficção apocalíptica
que fica difícil distinguir uma da outra. Na verdade, o depoimento
de Díaz (e também o de Žižek) aponta para a possibilidade de que a
maneira como encaramos a covid-19 depende da nossa imaginação
apocalíptica, dos medos e anseios expressos pelas nossas ficções
sobre o fim do mundo.
É importante frisar que, ao contrário do que possa parecer
133
à primeira vista, essas ficções não dão conta apenas de nossos
temores, mas articulam também muitos de nossos desejos, ainda
que de forma velada, pois trata-se frequentemente de desejos que

2 Um passeio pelo dossiê “Coronavírus e sociedade” publicado no blog da


editora Boitempo, que reúne artigos breves de vários pensadores sobre a
covid-19, confirma essa impressão. Para Žižek, por exemplo, a pandemia
deixou às claras uma série de “vírus ideológicos que se encontravam em
estado dormente em nossas sociedades” – algumas linhas adiante, aliás,
Žižek estabelece uma relação direta entre a atual crise epidêmica e o ima-
ginário pop dos filmes de catástrofe (2020, s/p.). Judith Butler também
chama atenção para a força reveladora da pandemia ao afirmar que ela nos
obrigou a reconhecer a nossa interdependência global, ao mesmo tempo
em que, paradoxalmente, nos forçou a nos isolarmos em nosso espaço do-
méstico privado (2020, s/p.); ou seja, ela impõe uma continuidade entre
os planos individual e coletivo que normalmente somos treinados a man-
ter rigorosamente separados.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

custamos a admitir para nós próprios e que entram nas narrativas


apocalípticas pela porta dos fundos, por assim dizer, mascarados
pela ansiedade diante da aniquilação total. Seria possível, talvez,
nos perguntarmos até que ponto esses desejos surgem de modo
consciente ou penetram nessas narrativas quase inconscientemen-
te, estando ligados às convenções do próprio gênero apocalíptico.
Que o desejo é parte integrante do gênero é fácil de perceber já no
texto que o funda no ocidente, o livro bíblico do Apocalipse, que
celebra a queda de um império mundano e a instalação do reino
divino na terra, agora libertada de toda opressão. Em um nível
mais amplo, como nos aponta Frank Kermode, o imaginário apo-
calíptico atende ao desejo humano por um fim, por uma conclusão
que dê sentido ao todo, estabelecendo uma concatenação coerente
entre início, meio e fim que nos permita impor uma ordem à nossa
condição, uma vez que sempre nascemos e morremos in media res
(1968, p. 6-8).
Naquilo que Elana Gomel chama de “erotismo da catástrofe”,
a doença desempenha um papel proeminente ao estabelecer uma
134
ligação direta entre o corpo do indivíduo e o corpo político, partindo
do padecimento do indivíduo para a devastação da comunidade como
um todo. Além disso, se por um lado a imagem da doença apocalíp-
tica traz à tona uma esperança de purificação e do estabelecimento
de uma nova ordem social através do sofrimento, ela leva também
ao reconhecimento da precariedade e da desordem inerentes à
corporalidade, que resistem à harmonização milenarista (GOMEL,
2000, p. 405-406). Para Gomel, o corpo adoecido é a modalidade
mais característica da corporalidade apocalíptica, justamente por ser
instável e maleável, dotado de uma sexualidade grotesca e excessiva
que, no entanto, vai dar numa assexualidade angelical, assim como
sua enfermidade é a condição para o estabelecimento de uma saúde
duradoura (2000, p. 405-406). A doença se investe, portanto, de
uma carga simbólica que aponta para a perda de distinção, para a
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

mistura de categorias, para o deslizamento entre opostos – o que a


aproxima das noções de monstruosidade e abjeção.
Em estudos que já se tornaram clássicos, tanto Jeffrey Cohen
(1996) quanto Noël Carroll (1990) definem o monstro como aquele
que se constitui através de uma fusão de categorias que deveriam
se manter distintas. Ambos são profundamente influenciados pela
noção proposta por Julia Kristeva (1982) da abjeção como uma perda
de distinções, principalmente aquelas entre o interior e o exterior e
entre o indivíduo e o mundo externo. Todos os três se apoiam, em
maior ou menor grau, na conceitualização de Mary Douglas (2002) a
respeito da impureza como uma mistura das categorias estabelecidas
por uma cultura. Apesar de não chegarem a se sobrepor, esses três
conceitos – monstruosidade, abjeção e impureza – giram em torno
da ideia de indistinção. A doença ameaça apagar distinções que
julgamos essenciais para a preservação da nossa identidade, e por
isso causa uma profunda ansiedade cultural. Afinal, ela nos afeta no
território mais íntimo do nosso corpo, do qual se apropria ou ao qual
se funde, ao mesmo tempo em que é encarada como fruto da ação
135
de um agente externo que permanece invisível, pelo menos a olho
nu. Essa ansiedade se intensifica em contextos epidêmicos, em que
desejamos garantir nossa diferença em relação ao grupo dos enfer-
mos, ao qual, no entanto, podemos nos juntar a qualquer momento.
No entanto, essa ansiedade pode tornar-se sintoma de outras
mais específicas. Aris Mousoutzanis observa que, no final dos séculos
XIX e XX, o tema do contágio viral se tornou um elemento comum
na produção cultural apocalíptica, apresentando-se como reflexo
de uma crescente interconectividade, ligada primeiro a uma maior
complexidade das relações globais no contexto do imperialismo e
depois à fragilização das fronteiras dos Estados-nação provocada
pela globalização, que traria profundas transformações econômi-
cas, sociais e políticas (2014, p. 172-177). Desse modo, “as ficções
contemporâneas encenaram o prospecto de um apocalipse iminente
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

devido à disseminação de vírus e epidemias através dessas redes”


(MOUSOUTZANIS, 2014, p. 177).3 A fantasia de que a rede 5G co-
laboraria para a propagação da covid-19 deixa clara a ligação entre
o medo do contágio e as tecnologias que permitem (e simbolizam)
uma conectividade global.
Trata-se, também, de um indício de como a doença oferece
um campo particularmente fértil para a criação de sentidos e repre-
sentações simbólicas. Como Susan Sontag (1978, p. 3-4) observa
no início de seu famoso ensaio sobre a doença como metáfora, é
praticamente impossível pensar na enfermidade sem recorrer ao
repertório de metáforas construído em torno dela. O objetivo de
Sontag ao investigar as metáforas relacionadas à tuberculose e ao
câncer é despir a doença de seu investimento simbólico a fim de que
ela seja encarada de forma mais objetiva e verdadeira. Essa é uma
tarefa bastante difícil, não só porque nossas concepções a respeito
da doença são moldadas em grande parte pelo nosso imaginário,
mas também porque a carga simbólica associada a ela diz respeito
a anseios e temores difusos na nossa sociedade, estando relacionada
136
aos nossos esforços de dar sentido ao mundo.
Não é de surpreender, então, que algumas narrativas percor-
ram um caminho inverso àquele traçado por Sontag, intensificando
a metaforização da doença e recusando a ela uma existência que não
abarque também o seu caráter simbólico. Estudar essas narrativas
pode nos fornecer pistas a respeito das maneiras como nos defron-
tamos com uma epidemia real, mostrando como esta pode se tornar
o locus de disputas em torno de preocupações sociais, culturais e
políticas que muitas vezes têm pouco a ver com a enfermidade em
si. Um evento como a pandemia da covid-19 traz à tona questões

3 No original: “contemporary fictions staged the prospect of an impend-


ing apocalypse due to the spread of viruses and epidemics through these
networks”. A tradução de todos os trechos originalmente em inglês é de
responsabilidade do autor.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

relacionadas não só a contextos socioculturais específicos, mas


também à modernidade de forma mais ampla e às nossas próprias
modalidades de inserção no mundo.
A fim de discutir algumas dessas questões, irei analisar bre-
vemente, nas páginas que se seguem, três histórias em quadrinhos
publicadas entre as décadas de 1990 e 2010 que têm como seu tema
central uma epidemia de efeitos dramáticos. Duas delas – Y: The
Last Man, com roteiro de Brian K. Vaughn e arte de Pia Guerra, e
Sweet Tooth, escrita e desenhada por Jeff Lemire – são narrativas
pós-apocalípticas em que uma pandemia provoca uma catástrofe de
proporções mundiais. Por sua vez, Black Hole, de Charles Burns, gira
em torno de uma epidemia que aparentemente se limita aos jovens
de uma comunidade suburbana nos arredores de Seattle. Apesar
dessa diferença de escopo, nos três casos a enfermidade se apresenta
como uma ameaça à manutenção da estrutura social e institui uma
crise radical que desafia os personagens em praticamente todos
os aspectos de sua existência. Trata-se também de uma doença de
caráter fantástico e que, por isso mesmo, se reveste de um conteúdo
137
altamente simbólico.
Ao propor um caso extremo, as três narrativas oferecem uma
boa oportunidade de delinear alguns dos elementos que dão forma
ao nosso imaginário sobre a doença, principalmente no que se refere
às maneiras como este se relaciona a nossas tentativas de impor um
sentido ao mundo. Assim, minha análise irá focar, primeiro, no po-
tencial que a doença apresenta de revelar aquilo que de outra forma
permaneceria em latência. Em seguida, irá examinar o movimento
oposto, isto é, a maneira como a doença é apresentada como sendo
essencialmente misteriosa, através de mecanismos narrativos que a
associam ao ocultamento. Finalmente, a título de conclusão, discuti-
rei como essas duas tendências se articulam numa representação da
epidemia como meio de impor uma organização ao mundo, embora
represente também o perigo da mais extrema desestruturação.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Revelação
Para Susan Sontag (1978, p. 5), as doenças consideradas mais
mortais e misteriosas são também aquelas que agem de forma mais
potente no nosso imaginário. A própria análise que Sontag conduz
das metáforas relacionadas à tuberculose, ao câncer e à AIDS,
porém, indica que a atribuição de uma carga simbólica à doença
atende também a necessidades específicas do contexto em que
elas surgem – em seus primórdios, a AIDS era vista, por exemplo,
como uma doença que revelava um tipo de identidade que ficaria
oculta de vizinhos, amigos, familiares e colegas de trabalho, além
de reforçar a tendência bastante antiga de associar a enfermidade
a uma espécie de punição moral (SONTAG, 1989, p. 25, 57), o que
adquiria uma relevância particular em um momento de crescente
conservadorismo em todo o mundo.
Já vimos como a covid-19 foi ligada a um tipo de revelação
que se dá em vários níveis, além de escancarar disputas políticas
que continuam a se desenrolar a perder de vista. Entretanto, no que
diz respeito à doença em si, ela se apresenta de maneira diferente
138
da tuberculose e do câncer e, de certa forma, também da AIDS. Ao
contrário do que houve com essas doenças, a causa da covid-19
tornou-se pública desde cedo, praticamente ao mesmo tempo em
que a epidemia começava a chamar a atenção do ocidente. Nesse
sentido, não se tratava de uma enfermidade misteriosa, uma vez
que já existia um padrão de epidemias semelhantes e outros vírus
aparentados ao SARS-CoV-2 eram conhecidos. A suposta trans-
parência da covid-19 iria se consolidar no nosso imaginário com a
popularização de imagens do vírus que a causa. Por outro lado, o
caráter misterioso da doença volta a se reafirmar na nebulosidade de
seus sintomas, frequentemente impossíveis de distinguir de outras
síndromes respiratórias, e, de modo mais dramático, na aparente
aleatoriedade com que às vezes se mostra letal e às vezes sequer
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

chega a manifestar qualquer sintoma. Por mais que haja grupos


de risco para a covid-19, a inclusão em um desses grupos não é
garantia de que a doença se desenvolverá em sua modalidade mais
grave, assim como há pacientes sem comorbidades que vieram a
desenvolver casos graves da enfermidade, chegando a morrer – fato
que é salientado com insistência pela mídia. Mais recentemente,
as incertezas em torno da covid-19 se intensificaram com o surgi-
mento de novas cepas do vírus que o tornariam mais imprevisível,
mais contagioso ou mais mortal, ameaçando inclusive a eficácia das
vacinas desenvolvidas até aqui.
Essa tensão entre mistério e revelação parece ser um fator cen-
tral das nossas concepções sobre as doenças, pelo menos aquelas que
nos afetam mais intensamente, como é o caso de epidemias em larga
escala. No campo ficcional, trata-se de um elemento fundamental na
representação da epidemia, do qual derivam vários outros. Isso pode
ser percebido nas três narrativas que vou discutir aqui. Y: The Last
Man retoma o mote bastante comum na ficção científica da praga que
aniquila toda a população masculina, deixando atrás de si um mundo
139
povoado apenas por mulheres.4 Na série escrita por Brian K. Vaughn,
porém, a aniquilação se estende para além da espécie humana, afetan-
do todos os seres vivos portadores do cromossomo Y, com a exceção
de Yorick, o último homem do título, e seu macaco de estimação,
Ampersand. Outra particularidade da pandemia representada em Y:
The Last Man é que ela atinge todas as suas vítimas simultaneamente,
provocando a morte de forma quase instantânea, via uma hemorragia

4 Essa é a premissa, por exemplo, das narrativas de Joanna Russ sobre o


planeta Whileway, publicadas na década de 1970, que tiveram um enorme
impacto na literatura de ficção científica feminista, e, mais recentemen-
te, do romance Ammonite (2002), de Nicola Griffith. O tema de uma so-
ciedade formada apenas por mulheres já aparece em Herland (1915), de
Charlotte Perkins Gilman, e em ficções pulp como o conto “The Conquest
of Gola”, de Leslie F. Stone, publicado originalmente na revista Wonder
Stories em 1931.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

incontrolável. Em Sweet Tooth, a doença que vai exterminando toda


a humanidade se manifesta através do surgimento de pústulas e de
uma progressiva emaciação que dão às suas vítimas o aspecto de um
cadáver em putrefação. Além disso, todas as crianças nascidas a partir
do início da pandemia são híbridos de humanos com animais (Gus,
o protagonista da série, por exemplo, é uma mistura de menino com
cervo).5 Já em Black Hole, ao contrário do que ocorre nas outras duas
narrativas, a epidemia não é letal, estando relacionada a uma doença
sexualmente transmissível que causa deformações físicas de maior ou
menor severidade naqueles que a contraem.
O que essa breve descrição das enfermidades representadas
nessas três histórias em quadrinhos deixa claro – para além de seu
caráter escancaradamente ficcional, quase absurdo – é que todas
elas se caracterizam por uma extrema visibilidade. Elas se revelam
de maneira espetacular na superfície dos corpos, a ponto de eclipsar
outros sintomas, mais relacionados ao funcionamento interno do
organismo. É quase como se a imposição de uma marca ao corpo
resumisse a doença em si. Em Y: The Last Man, o jorro de sangue
140
que escapa dos homens no instante fulminante da morte é ao mesmo
tempo uma representação visual da doença – parte, portanto, da
codificação visual dos quadrinhos – e a doença em sua totalidade.
Além disso, ele literalmente coloca para fora aquilo que deveria
estar dentro do corpo, e ainda fornece uma imagem concreta para a
ideia do contágio ao se apresentar como impureza, como aquilo que
respinga sobre os outros e escorre pelos objetos. Em Sweet Tooth, os
sinais físicos da doença já deixam ver o seu resultado final, ou seja, a
dissolução do próprio corpo, sendo esse o tipo de deformidade que

5 Em 2021, tanto Sweet Tooth quanto Y: The Last Man ganharam adap-
tações para o formato de série televisiva. Sweet Tooth está disponível no
serviço de streaming Netflix, enquanto Y: The Last Man é transmitida
pelo canal FX. Meus comentários aqui se limitam às versões em quadri-
nhos das duas obras, das quais as séries se afastam em vários pontos.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

mais causa repúdio, segundo Susan Sontag (1989, p. 41). Finalmente,


em Black Hole, a doença é a deformidade, não apresentando nenhum
outro sintoma. Sua única função é impor uma marca externa aos
adolescentes que tiveram uma experiência sexual.
Essa visibilidade espetacular da doença revela, antes de mais
nada, a presença do corpo em si, em toda a sua materialidade – o
corpo como lugar absoluto, do qual não se pode escapar, e, por-
tanto, o oposto da utopia, que é sempre um não-lugar, conforme
a formulação de Michel Foucault (2009, p. 9). Para Sontag (1978,
p. 12-13), uma doença como a tuberculose está associada a uma
maior transparência do corpo, pois provoca sintomas claramente
observáveis e faz com que o interior do organismo seja revelado
através de radiografias (não à toa, a praga apocalíptica de Sweet
Tooth se manifesta inicialmente pela tosse e depois pela emaciação,
ecoando as imagens ligadas à tuberculose, mas também à AIDS em
seus estágios mais visíveis e à varíola; a praga de Y: The Last Man
também lembra a tuberculose via a expulsão de sangue pela boca).
A doença nos lembra que o corpo tem um funcionamento interno
141
do qual normalmente não nos damos conta; ela dá a motivação para
perscrutá-lo, mapeá-lo e, quem sabe, controlá-lo, nos fornecendo a
base para imaginar o que se esconde por baixo da pele.
Para além disso, a doença, e particularmente as epidemias,
com seu contágio em larga escala, nos revela não só a ligação entre
os diversos corpos individuais, mas também sua conexão com uma
dimensão biológica mais ampla. A contaminação escancara a inter-
penetração do corpo com toda uma gama de microrganismos que
põem em xeque qualquer ilusão de nossa autonomia em relação a
outras formas de vida. Em Sweet Tooth, essa interdependência é
marcada pelo embaralhamento entre o humano e o animal trazi-
do pela figura dos híbridos. Y: The Last Man, por sua vez, aponta
para uma continuidade entre o humano e outras espécies dotadas
dos pares cromossômicos XX e XY. Em Black Hole, características
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

físicas animais, como caudas, membranas entre os dedos, pelos fa-


ciais e focinhos se superpõem à figura humana. A representação da
doença como monstruosidade nessas narrativas coloca em questão
o humano como categoria à parte, revelando a fragilidade de sua
identidade e pondo em jogo ansiedades culturais que dizem respeito
à suposta posição privilegiada que a humanidade ocupa na ordem
das coisas.6 À ideia da impureza da contaminação, inerente à própria
noção de epidemia, se soma uma espécie de impureza ontológica
que está diretamente relacionada à forte carga moral atribuída à
enfermidade: “[p]or trás de parte do julgamento moral ligado à do-
ença há julgamentos estéticos a respeito do belo e do feio, do puro
e do impuro, do familiar e do estranho ou inquietante” (SONTAG,
1989, p. 40-41).7
Essa interconexão entre o moral e o estético é exaustivamente
explorada tanto em Y: The Last Man quanto em Black Hole e Sweet
Tooth, ainda que seja mais proeminente nos dois últimos casos, em
que a doença pode facilmente ser interpretada como uma punição,
seja à iniciação sexual, como em Black Hole, ou ao desequilíbrio
142
ecológico provocado pela civilização moderna, como em Sweet
Tooth.8 Em Y: The Last Man, se a morte de todos os portadores do

6 Nesse sentido, ver Cohen (1996, p. 4-12). Quanto à animalização atra-


vés da doença em Black Hole, ver Chaney (2011, p. 134-135). Para Chaney,
porém, se por um lado Black Hole promove a indeterminação trazida pela
incorporação do animal, a narrativa acaba por reafirmar a primazia do hu-
mano como sujeito do conhecimento.
7 No original: “Underlying some of the moral judgments attached to dis-
ease are aesthetic judgments about the beautiful and the ugly, the clean
and the unclean, the familiar and the alien or uncanny”.
8 Para Sontag (1978, p. 6), qualquer doença que seja suficientemente te-
mida e misteriosa não só tende a gerar um processo de metaforização, mas
também tende a ser encarada como fonte de um contágio moral. Gomel
(2000, p. 406-407, 419) argumenta que a visão da doença como punição
está por trás das fantasias milenaristas da peste como uma forma de puri-
ficação apocalíptica.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

cromossomo Y não chega a se configurar de forma tão explícita como


uma punição (ainda que essa leitura não possa ser descartada), ela
não deixa de ser colocada como uma questão moral, relacionada
às estruturas de poder abusivas do patriarcalismo e sua potencial
perpetuação mesmo num mundo sem homens.9
De qualquer forma, quer a epidemia seja apresentada como
uma punição ou não, sua correlação com uma questão de ordem
moral aponta para a possibilidade de propô-la como a representação
resumida e estilizada de um problema que, em princípio, não tem
relação com a doença em si. Nas três narrativas discutidas aqui,
as epidemias possuem um caráter escancaradamente fantástico
justamente porque estão imbuídas de um conteúdo simbólico que
extrapola qualquer representação realista do adoecer, funcionando
como um signo que coloca em evidência um dilema social ou cultural.
Ao atribuir uma posição central a um problema como a relação entre
civilização e natureza (como em Sweet Tooth) ou os conflitos entre
os gêneros (como em Y: The Last Man), essas narrativas atendem
ao impulso de simplificação que Robert Tally Jr. identifica como
143
um dos elementos centrais das ficções pós-apocalípticas. Esse tipo
de ficção não só costuma apresentar um tipo de sociedade menos
complexa, muitas vezes efetuando um retorno imaginário a comuni-
dades tribais, como também expõe de forma mais básica alguns dos
problemas que afligem o sistema altamente complexo do capitalismo
tardio. Isolados do emaranhado de outras questões subsidiárias que
formam o seu contexto mais amplo e, portanto, da complexidade
desnorteadora da vida contemporânea, esses problemas parecem
mais compreensíveis (TALLY JR., 2019, p. 278-279). A crise esta-

9 Quanto à permanência de uma estrutura de poder patriarcal em Y: The


Last Man, ver Khng (2016, p. 167-170) e Santos (2017, p. 112). Hill (p. 84)
observa que a reação negativa das mulheres diante da aparente fraqueza
física de Yorick mostra como as personagens da série ainda se prendem a
noções tradicionais de masculinidade.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

belecida pela epidemia torna-se, assim, o significante de uma crise


latente na sociedade, ou de uma crise já presente, mas que agora se
mostra de modo mais claro e premente.
Espera-se, portanto, que a epidemia revele. Esse aspecto da
doença é representado de forma explícita em Black Hole, onde os
sonhos dos personagens se interpenetram numa espécie de tele-
patia e muitas vezes assumem um caráter premonitório, como se
a enfermidade lhes conferisse uma maior sensibilidade psíquica.
Significativamente, a deformidade de um desses personagens é
uma segunda boca localizada em seu pescoço que fala quando ele
dorme, expondo aquilo que ele pensa consciente ou inconsciente-
mente, mas não chega a dizer (LOWTHER, 2011, p. 20). Em Sweet
Tooth, a corrupção do corpo pela doença é símbolo transparente da
corrupção da civilização humana, e a decomposição dos cadáveres é
capaz de representar a crueldade do mundo em uma única imagem
onde se confundem o contágio moral e o contágio físico, pondo em
risco, através do contato, a pureza infantil do personagem principal.
Ou, nas palavras niilistas do vilão de Sweet Tooth: “O que
144
aconteceu foi a praga. E ela arrancou todo o resto… Nos mostrou
quem nós realmente somos” (v. 6, p. 29).10
Ocultamento
Essas narrativas são um indício de que há um forte trabalho
de construção de significado atrelado às nossas representações
imaginárias e dos discursos que construímos acerca das epidemias.
Vários personagens de Y: The Last Man e de Sweet Tooth apontam
para esse esforço ao propor diversas explicações para a doença que
vão além de seus mecanismos biológicos e que abrangem desde o
desenvolvimento desenfreado da tecnologia até a intervenção divina.
Como já vimos, a metaforização da doença se torna mais intensa

10 “The plague happened. And it stripped everything else away… Showed


us all who we really are.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

à medida que esta é vista como misteriosa (SONTAG, 1978, p. 6).


Podemos estender essa observação para a construção simbólica
em torno das epidemias de modo mais amplo, de tal maneira que
se estabelece uma relação paradoxal entre o potencial revelador da
enfermidade e sua tendência ao ocultamento, ao seu surgimento
como uma crise que causa perplexidade ao mesmo tempo que exige
uma resposta, ou seja, como uma crise de significado.
A profusão de discursos a respeito do que a epidemia afinal de
contas representa pode ser exemplificada de maneira bastante clara
na narrativa de Sweet Tooth. A possibilidade de que a praga seria um
castigo divino vem à tona logo nas primeiras páginas, com a tentativa
do pai de Gus de escrever uma nova bíblia a partir das revelações que
julga estar recebendo de deus. Mais adiante, esse texto cai nas mãos
do Dr. Singh, médico encarregado de estudar as mutações ocorridas
nas crianças nascidas a partir do início da pandemia. Apesar de repre-
sentar a figura do cientista na narrativa, o Dr. Singh acaba por adotar
a “nova bíblia” como um texto sagrado. A princípio, o deus punitivo
dessa bíblia é explicitamente o deus judaico-cristão, mas os escritos
145
cada vez mais incoerentes do pai de Gus o substituem gradualmente
por Tekkeitserktok, uma divindade inuíte. As suposições dos dois
personagens acabam recebendo uma confirmação externa através de
outro texto: o relato de um naturalista sobre uma primeira irrupção da
epidemia numa aldeia inuíte ainda no início do século XX. Esse surto
teria sido causado pelo fato de outro explorador, chegado ao povoado
poucos anos antes, ter penetrado no recinto sagrado onde estavam
depositados os corpos dos deuses, que haviam abandonado o plano
físico ao transcender para o plano espiritual. A doença, assim, seria
fruto da quebra de um tabu, que seria repetido quase um século depois,
quando cientistas americanos encontram o mesmo recinto no Alasca
e tentam clonar os deuses a partir de seus esqueletos. Nos últimos
números da série em quadrinhos, a revelação dos restos corporais
dos deuses fornece uma outra confirmação, desta vez mais concreta,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

para a hipótese de uma interferência divina, enquanto o próprio Dr.


Singh declara que não há “um grande plano. Nenhuma revelação final.
Só existe a morte agora” – afirmação que vem logo depois de outro
dos personagens observar que não havia nenhuma explicação para a
peste nem para o surgimento dos híbridos (LEMIRE; KINDT et al.,
2010-2013, v. 6, p. 110-117).11
Esse resumo dá uma ideia da maneira tortuosa como se mon-
ta uma interpretação coerente para a pandemia, ao mesmo tempo
em que a própria narrativa de Sweet Tooth mostra – ou procura
mostrar – que qualquer tentativa de interpretação seria duvidosa.
A explicação religiosa é associada ao delírio e ao fanatismo desde o
início e é sempre intermediada pela voz dos personagens – a ação
dos deuses em si, naturalmente, permanece inacessível. Além disso,
ela se desenvolve concomitantemente à exploração de elementos
relacionados à pesquisa científica, como a busca de provas objetivas,
a centralidade do trabalho em laboratório, a referência a processos
biológicos e o confronto de fontes independentes, aliados a feti-
ches da ficção científica, como a clonagem, o poder aparentemente
146
ilimitado da tecnologia e a prática da dissecação. As instâncias da
ciência e da religião são colocadas em contraponto, de tal forma
que é impossível determinar a qual das duas caberia a primazia da
autoridade, estabelecendo-se um estado de permanente indetermi-
nação epistemológica. Desse modo, o hibridismo em Sweet Tooth se
estende para os discursos e as estruturas de conhecimento (KELP-
-STEBBINS, 2012, p. 338).
Em Y: The Last Man, também há uma explicação para a
pandemia que se mostra dominante na lógica interna da narrativa,
mas neste caso há uma maior variedade de hipóteses sugeridas pelos
personagens, quase todas francamente absurdas e quase sempre
relativizadas pelo tom sarcástico da narrativa. Essas hipóteses

11 “[...] no greater plan. No final revelation. There is only death now.”


EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

assumem o aspecto de tentativas mais ou menos desesperadas de


dar sentido a uma perda avassaladora.12 Tanto em Y: The Last Man
quanto em Sweet Tooth, essa indeterminação das causas primordiais
da doença é refletida pelo caráter obscuro do desenrolar da epidemia
em si. Por um lado, a lógica do contágio é reafirmada; por outro,
ela é negada. Assim, em Sweet Tooth nos é relatado que depois de
um surto que exterminou de uma só vez a maioria da população
mundial, a doença ficou mais ou menos dormente, atacando suas
vítimas de forma esporádica ao longo de vários anos. A contaminação
parece aleatória, independente do contato físico, de modo que uma
das personagens principais adoece sem ter estado na presença de
nenhum outro enfermo, o que a faz pensar que a doença já estava
dentro de todos desde o início (LEMIRE; KINDT et al., 2010-2013,
v. 5, p. 78). É interessante notar que nessa passagem Lemire em-
prega o adjetivo sick (doente) de forma substantivada para se referir
à doença – não é um vírus ou outro micróbio que está dentro das
pessoas, mas o adoecer em si. Em Sweet Tooth, não há menção a
um agente transmissor da enfermidade, e a base física do contágio
147
permanece oculta, assim como o mecanismo que provoca o nasci-
mento das crianças híbridas. Desse modo, a doença como um todo
é uma impossibilidade biológica.
É também o mecanismo do contágio que se mostra misterioso
em Y: The Last Man. Aqui a doença não se desenvolve em estágios,
mas mata instantaneamente e atinge o mundo inteiro simultane-
amente. Como uma das personagens comenta, ela não tem um
comportamento viral, pois se espalha mais rápido até do que um
vírus de computador (VAUGHN et al., 2003-2008, v. 5, p. 132) –
mais uma vez, portanto, estamos diante de uma impossibilidade

12 Khng (2016, p. 175-176) também chama atenção para a multiplicidade


de discursos sobre a pandemia em Y: The Last Man; para ela, todas essas
explicações são mecanismos para lidar com a vida depois do desastre, que
permaneceria sem significado.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

biológica. A personagem em questão fala com autoridade, já que,


como o Dr. Singh em Sweet Tooth, representa a figura da cientista
e, metonimicamente, da ciência como um todo. Por outro lado, é a
mesma personagem, a Dra. Mann, que acompanha Yorick na busca
de uma possível cura e descobre que a imunidade do protagonista
se deve aos anticorpos que ele havia adquirido ao entrar em contato
com as fezes de seu macaco de estimação. A doença em Y: The Last
Man, portanto, assume uma lógica contraditória, viral e não viral
ao mesmo tempo. A situação se complica pela possibilidade de a en-
fermidade ter sido causada pela interferência direta do ser humano,
não através da criação artificial de um novo microrganismo, mas do
desenvolvimento do primeiro clone humano. Segundo uma hipótese
colocada pelo Dr. Matsumori, pai da Dra. Mann, que concorria com
ela na tentativa de reproduzir seres humanos através da clonagem, a
praga se manifestou no exato momento em que sua amante, a Dra.
Ming, dava à luz um clone da própria Dra. Mann. Matsumori se
baseia numa teoria aventada pela Dra. Ming, segundo a qual haveria
uma “ressonância mórfica” ligando todos os seres vivos da terra, uma
148
transmissão inconsciente de dados em nível genético que explicaria
grandes saltos na ciência, na tecnologia e na evolução (desse modo,
quando uma população de macacos aprende a usar uma ferramenta
para quebrar nozes, por exemplo, outro grupo da mesma espécie
adquire a mesma habilidade a quilômetros de distância, sem que os
dois tenham tido nenhum tipo de contato). A praga seria um salto
evolutivo desse tipo: a clonagem teria tornado os homens dispen-
sáveis para a reprodução, e por isso a natureza os teria eliminado
imediatamente. O contágio, portanto, não se daria através de um
vírus, mas da informação em si, descorporificada (VAUGHN et al.,
2003-2008, v. 9, p. 32-69).
A plausibilidade dessa hipótese (bastante frágil, aliás, já que
não justifica o desaparecimento de todos os animais dotados de
um cromossomo Y) se apoia menos em seu tom pseudocientífico
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

do que nas associações simbólicas que ela estabelece. Há aqui uma


óbvia correlação com a interconectividade criada pela internet e o
surgimento de uma cultura global calcada no fluxo constante de
informações cuja totalidade não é mais compreensível por um in-
divíduo ou um grupo – por mais que se intua uma intencionalidade
por trás desse fluxo, não se trata de uma intencionalidade pessoal ou
mesmo de um grupo de interesses específico, mas de algo que toma
forma no espaço virtual da troca.13 Assim, é curioso que a hipótese
efetue também uma conciliação entre uma explicação humana e
outra de caráter religioso para a pandemia – não à toa, o próprio
Dr. Matsumori destaca que a praga une a ciência e os ensinamentos
do Buda, que mostram que tudo está interligado (VAUGHN et al.,
2003-2008, v. 9, p. 64). Ao refletir a ideia de uma rede de comuni-
cação descentrada cujo sentido final é por definição inalcançável, a
pandemia de Y: The Last Man associa a doença ao mistério, à ma-
nifestação no mundo de uma entidade cujos desígnios não podem
ser desvendados e, por conseguinte, a uma lógica por trás do real
que permanece oculta.
149
Em Black Hole, temos a mesma insistência em associar a
doença ao mistério, desta vez nem tanto através do mecanismo do
contágio, mas sim de uma desestabilização da própria categoria do
símbolo. Publicada entre 1995 e 2005, a narrativa pode ser vista
como uma alegoria bastante óbvia da AIDS.14 Nessa leitura, a de-
formação dos infectados seria uma marca visível do estigma social
associado às doenças sexualmente transmissíveis e à AIDS em
particular, mas essa mesma deformidade, à qual não está atrelado
o medo da morte, também pode surgir como signo da experiência
ou mesmo como um fator de atração sexual. Desse modo, a alegoria
se abre e se torna menos definida, podendo representar o sexo em
si (WOLK, 2007, p. 337), a adolescência (WOLK, 2007, p. 340; BU-
13 Ver Berardi (2019), principalmente o capítulo 3.
14 Ver Zeigler (2008, s.p.) e Butler (2010, p. 62).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

TLER, 2010, p. 65), o isolamento social (LOWTHER, 2011, p. 11) ou


o amadurecimento. A pista para essa última interpretação surge nas
imagens incluídas nos elementos paratextuais da edição que coleta os
números da série original. A contracapa, a folha de rosto e a última
página dessa edição reproduzem o anuário de uma escola de Ensino
Médio americana, mostrando as fotos de adolescentes antes e depois
do contágio; a primeira orelha do livro, porém, exibe um autorretrato
de Charles Burns ainda jovem, enquanto a segunda orelha apresenta
um outro autorretrato do desenhista já na meia-idade, de modo que
a deformação passa a ser associada ao envelhecimento.
Em Black Hole, a tensão entre revelação e ocultamento, que
é um dos aspectos centrais do imaginário da doença, se manifesta
no tratamento dado às imagens na narrativa, sejam elas alegorias
textuais ou desenhos, o qual oscila entre a obviedade e a incerteza,
entre uma sobrecarga de sentido do símbolo e seu esvaziamento. A
imagem central, como seria de esperar, é a do buraco negro do título.
Logo de início, o buraco é uma abertura que nos introduz ao relato,
surgindo na forma de uma fenda na primeira página da narrativa
150
propriamente dita. A fenda se abre e pouco depois se converte no
corte na barriga de um sapo que está sendo dissecado por Keith, um
dos protagonistas, durante uma aula de biologia. Nessa sequência de
poucas páginas, o buraco se apresenta primeiro como um portal que
abre o caminho para a ficção, depois como uma forma evocativa de
uma vagina (de modo que a entrada no mundo ficcional lembra tam-
bém um parto), e finalmente como a marca da violência perpetrada
contra um corpo. À medida que o olhar do leitor vai acompanhando
o desdobramento dessas imagens, ele acaba espelhando o olhar do
próprio Keith, que descreve uma espécie de vertigem do significado:
Congelei. Não consigo explicar o que aconteceu. Era parecido com
um déjà vu ou uma coisa assim... uma premonição. Eu me sentia
como se estivesse olhando para o futuro... e o futuro parecia todo
ferrado. Eu estava olhando para um buraco... um buraco negro,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

e enquanto eu olhava, o buraco se abriu... ...e eu senti que estava


caindo para a frente, mergulhando no nada. (BURNS, 2005, p.
4-5 da seção “Biology 101”; ênfase no original)15
Keith experimenta uma ampliação ou potencialização da visão
que se traduz na sensação de enxergar o futuro. A intensidade des-
sa vivência faz com que ele se sinta puxado para dentro do buraco
negro, mas deságua na percepção de uma ausência de sentido por
trás do mundo sensível. Para Butler (2010, p. 64-65), o buraco ne-
gro faz referência à noção astronômica de um corpo no espaço que
não pode ser observado diretamente e que, portanto, não pode ser
explicado, mas do qual é impossível escapar – ao mesmo tempo, ele
é a imagem mais acabada da doença que ataca os adolescentes de
Black Hole. O buraco negro representaria um colapso na ordem do
simbólico, na nossa capacidade de trazer nossas experiências para
o domínio da linguagem, atribuindo-lhes um sentido; quando isso
acontece, restam apenas os dados imediatos dos sentidos, o real em
si, sem qualquer elaboração (BUTLER, 2010, p. 65; ver também
LOWTHER, 2011, p. 23). Protic e Finlayson (2016, p. 3-4) também
argumentam que Black Hole trata da crise ou suspensão da ordem 151

do simbólico através de uma eclosão do real, de modo que a doença


aponta para a ininteligibilidade ética do mundo e a falta de sentido
da existência – ou seja, o que a doença revela é a própria ausência
do significado.
Protic e Finlayson (2016, p. 5) acrescentam que essa crise
do sentido nos revela a nossa condição como objetos materiais no

15 “I froze. I can’t explain what happened. It was like a déjà vu trip or


something… A premonition. I felt like I was looking into the future… and
the future looked really messed up. I was looking at a hole… A black hole
and as I looked, the hole opened up… …and I could feel myself falling for-
ward, tumbling down into nothingness.” As páginas da edição em formato
de livro de Black Hole não são numeradas; a fim de facilitar a localização
dos trechos citados, indico o número das páginas dentro de cada seção de
acordo com uma contagem pessoal.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

meio da materialidade do mundo, o que é marcado pela redução do


corpo a seu aspecto mais concreto através da deformidade. A própria
abertura do real é representada de forma concreta na narrativa,
por meio da repetição insistente de imagens de cortes e buracos
(PROTIC; FINLAYSON, 2016, p. 12), incluindo, significativamente,
a fenda que surge nas costas de uma das protagonistas depois que
ela é contaminada. Há, em Black Hole, uma proliferação de imagens,
a maioria delas de teor claramente sexual, em que determinados
objetos aparecem isolados, destacados de um contexto específico.
No entanto, mesmo quando a referência a órgãos genitais é explícita,
ocorre um deslocamento que desestabiliza essa correlação. Assim,
em um dos delírios de Keith, a fenda nas costas de Chris é transpos-
ta para uma abertura na vegetação da mata onde os adolescentes
costumam se encontrar (BURNS, 2005, p. 9 da seção “Bag Action”).
Numa sequência de pesadelo, um corte no pé lembra uma vagina,
mas dele sai uma espécie de pergaminho com a imagem de uma
serpente marinha (BURNS, 2005, p. 4 da seção “SSSSSSSSSS”),
numa concatenação em que os órgãos genitais são ao mesmo tempo
152
fetichizados e convertidos em meros objetos esvaziados de sentido
justamente porque a elaboração simbólica dá lugar à exibição do
conteúdo sexual em si – ou, por outro lado, porque em vez de termos
um objeto que simboliza o órgão genital, temos um órgão genital
que simboliza alguma outra coisa.
Em sua análise de Black Hole, Laura Perna associa esse efei-
to de incerteza ao conceito freudiano do inquietante, calcado numa
oscilação entre o familiar e o estranho.16 Segundo Perna (2009, p.
7-9), o inquietante é um elemento fundamental da narrativa criada

16 Para Freud (2010), o inquietante se estabelece quando um conteúdo


psíquico é reprimido, mas retorna à consciência de forma incompleta. Daí
o objeto que provoca esse efeito ser ao mesmo tempo familiar, pois já era
conhecido de forma inconsciente pelo indivíduo, e estranho, pois ressurge
de outra forma depois de ter sido submetido à repressão.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

por Charles Burns, se manifestando tanto no nível do enredo, quanto


na própria experiência de leitura. Perna lista diversas instâncias em
que Burns se utiliza de mecanismos apresentados por Freud como
aqueles capazes de gerar o efeito do inquietante, incluindo a apa-
rente duplicação de personagens, que são muitas vezes difíceis de
distinguir uns dos outros, a permeabilidade de processos mentais
e a criação de uma sensação de déjà vu, principalmente através da
repetição de imagens. Dessa forma, a própria narrativa de Black
Hole reproduz a experiência que leva Keith a se confrontar com a
crise do colapso do sentido. A representação gráfica desse colapso
vivido por Keith se dá justamente num redemoinho formado por
essas imagens que vão se repetindo.
Esses desenhos em torvelinho se somam a outras imagens
que surgem de forma recorrente nas diferentes seções, sem que
haja a princípio uma conexão lógica entre elas, e que, além disso,
perpassam os sonhos e pensamentos de diversos personagens, como
se contaminassem os seus processos mentais. Na verdade, o que
dá coerência à narrativa é, em grande parte, a concatenação dessas
153
imagens, a maneira como elas vão se reproduzindo com pequenas
variações, seguindo a lógica do contágio. A doença funciona, então,
de forma ambígua em relação à construção de significado: por um
lado, desestabiliza o sentido, introduzindo a indecisão, o apagamento
de identidades e a vertigem de um real que se manifesta na superfí-
cie opaca dos objetos; por outro, serve de elemento organizador da
própria estrutura narrativa e lhe impõe uma ordem.
Ordenação
Nas três narrativas que venho discutindo aqui, a epidemia
é totalizante. Em Sweet Tooth e Y: The Last Man, ela afeta toda a
humanidade, transbordando também para outras espécies no caso
de Y: The Last Man e provocando uma aproximação com o animal
em Sweet Tooth. Já em Black Hole, o contágio parece limitado a uma
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

comunidade, mas a totalização se manifesta de outra forma: todos os


adolescentes que têm relações sexuais se contaminam com a doença.
Na verdade, nos outros dois exemplos a contaminação também é
plena: a humanidade inteira sucumbe à pandemia em Sweet Tooth,
e todos os portadores do cromossomo Y são aniquilados pela peste
em Y: The Last Man. Ao contrário do que ocorre nas epidemias
reais, não há indivíduos que escapam ao contágio: absolutamente
todos os membros de um determinado grupo são contaminados pela
enfermidade, que tem o mesmo resultado em todos os casos (todos
os homens morrem, todos os que têm relações sexuais se deformam,
todas as crianças nascem híbridas).17 Assim, se por um lado a doença
é um elemento desestruturador, por outro ela abre a possibilidade
para que se imagine uma ordem completamente abrangente, ser-
vindo de base para um mapeamento imaginário do mundo.
Como Jesse Cohn (2001, s.p.) observa, o vírus pode servir
como uma metáfora para as novas dinâmicas de poder e identidade
que surgiram no mundo pós-industrial nas últimas décadas. Ele é
ambíguo, não estando nem vivo nem morto, e está no entrecruza-
154
mento da biologia com a informática, do material com o etéreo,
do natural com o artificial; dessa forma, ele seria uma maneira de
dar expressão às contradições da nossa época (COHN, 2001, s.p.).
Seguindo esse raciocínio, a utilização da imagem do vírus nas três
narrativas que abordo aqui, mesmo nos casos em que ela entra em
conflito com a lógica da enfermidade que elas delineiam, seria uma
representação do contexto atual como uma organização totalizante
de alcance global, mas formada por componentes discrepantes e de
17 As únicas exceções, obviamente, são Yorick, Ampersand e o Dr. Matsu-
mori em Y: The Last Man, cuja sobrevivência é marcada como excepcional
na narrativa e serve para apontar para a inexorabilidade da doença em
todos os outros casos. Esses três personagens, juntamente com o primeiro
menino a nascer depois da pandemia, só permanecem saudáveis porque
foram expostos aos anticorpos criados pelo Dr. Matsumori em seu labo-
ratório.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

configuração indefinida. Para Cohn (2001, s.p.), o vírus serve como


uma representação das condições em que vivemos, mas que não
conseguimos mais compreender. Se em Sweet Tooth, Y: The Last
Man e Black Hole, a doença oferece a oportunidade de imaginar
uma ordem mundial abrangente, sua associação ao apagamento
de distinções e ao ocultamento indicam que essa ordem pode ser
intuída, mas não representada de forma satisfatória, mostrando-se
assustadora e, por que não dizer, monstruosa.
Há, portanto, uma afinidade especial entre as nossas ficções
sobre a doença e as maneiras como concebemos o mundo na con-
temporaneidade; o modo como encaramos uma pandemia real, por
sua vez, é influenciado pelas nossas ficções sobre as epidemias, prin-
cipalmente aquelas de caráter apocalíptico. Como Kermode (1968)
e Tally Jr. (2019) observam, as narrativas apocalípticas nos ajudam
a organizar a nossa vivência do real. Os discursos recentes sobre a
covid-19, por exemplo, ecoam não só as ansiedades relacionadas a
um mundo articulado em rede, mas também as tensões entre o local
e o global, que já são postas em jogo em obras como Y: The Last
155
Man, Sweet Tooth e Black Hole. Ainda que a pandemia de Y: The
Last Man tenha um caráter universalizante, o foco principal de seus
primeiros capítulos se divide entre a tentativa de manter a estrutura
do governo estadunidense e a exploração da paisagem cultural do
país, enquanto os personagens se deslocam numa longa viagem do
leste para o oeste. À medida que essa viagem se expande para outras
regiões, como a Austrália, o Japão, a França e a África, há uma cres-
cente preocupação com as articulações de poder entre os Estados
Unidos e o resto do mundo, culminando num deslocamento final
para Paris como um novo núcleo político de uma sociedade interna-
cionalizada. Em Sweet Tooth, os personagens também fazem uma
peregrinação, que tem um ponto de partida e outro de chegada bem
definidos na geografia americana – uma reserva natural em Nebraska
e o Alasca. No entanto, a paisagem que percorrem se generaliza,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

sendo despojada de traços locais específicos e se se constituindo de


cidades e florestas que poderiam estar em quase qualquer lugar no
hemisfério norte. Por fim, há um retorno ao ponto de origem, onde
os híbridos fundam uma comunidade utópica, em harmonia com
a natureza. O resto do mundo parece vazio, como se a nova ordem
social que substitui a civilização ocidental moderna se concentras-
se em um único local, que funciona metonimicamente como uma
representação do todo. Finalmente, em Black Hole, apesar de a
epidemia aparentemente se limitar a uma comunidade específica,
ela levanta questões relacionadas ao comportamento adolescente,
ao desejo sexual e à própria criação de significado que apontam
para um fundamento psíquico de alcance mais ou menos universal.
Além disso, alguns dos jovens afetados pela doença em Black
Hole abandonam a comunidade de origem, entregando-se a novas
formas de identidade ou à busca da plenitude pessoal através do
deslocamento sem rumo pelo interior dos Estados Unidos.18 Já vimos
como a pandemia de Sweet Tooth leva à criação de uma comunidade
utópica depois que a antiga civilização humana é destruída, enquanto
156
Y: The Last Man acena com a possibilidade de uma renovação social
apoiada no desenvolvimento tecnológico necessário para superar o
desaparecimento dos homens. Nas três narrativas, portanto, a epide-
mia é um fator radical de cancelamento da ordem vigente, de modo
a permitir a realização de impulsos utópicos de diferentes naturezas.
A doença, então, exerce uma função organizadora de outro tipo ao
criar as condições para o estabelecimento de uma nova ordem, mais
justa ou mais satisfatória. Esse resíduo de expectativas milenaristas
absorvido pelo nosso imaginário a respeito da doença se manifesta
também nas nossas esperanças de que o trauma de uma pandemia
venha a instituir um “novo normal”, em que alguns dos problemas pos-

18 Para a deserção como forma de resistência à estrutura de poder cons-


tituída e como a abertura de novas possibilidades de relações sociais de
forte caráter utópico, ver Torres (2021, p. 564-565; 574-579).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

tos em evidência pela própria crise epidêmica – como a desigualdade


social, a falta de empatia e a ameaça de um colapso ambiental – serão
finalmente encarados e, se não solucionados, pelo menos atenuados.
Essas esperanças dependem, em grande parte, da percepção
de que as epidemias não são um fenômeno puramente natural, in-
dependente da vontade humana, mas são condicionadas também
for fatores sociais, políticos, econômicos e tecnológicos. Elas seriam
uma prova do imbricamento entre o natural e o artificial, um sinal
da influência cada vez maior da nossa espécie sobre o planeta, que,
cada vez mais afetado pela nossa ação, absorve nossos próprios
atributos, surgindo como um ser dotado de vontade, um sujeito
histórico ou uma pessoa moral (DANOWSKI; CASTRO, 2015, p.
25-26). Esse imbricamento é fonte de angústia e culpa, mas não
deixa de oferecer as suas consolações. Se nós temos um forte grau
de responsabilidade pela catástrofe provocada por uma pandemia,
tudo poderia ser diferente se agíssemos de outra forma – ou seja,
depende de nós a dimensão do desastre, já que “nós, seres humanos,
somos os que ‘causaram isso’” (DÍAZ, 2020, s/p).
157
Para Eugene Thacker (2015, p. 3-6), tendemos a ter uma visão
de mundo antropocêntrica, como se vivêssemos em um mundo feito
para nós, apreensível pelo nosso conhecimento e regido pela nossa
lógica. No entanto, há ainda fenômenos, como os desastres naturais,
que parecem fugir ao nosso controle e que são manifestações do
mundo físico já dado – aquilo que Thacker chama de mundo-em-si.
À medida que estudamos esses fenômenos, porém, eles se tornam
parte do nosso esforço de conhecimento e acabam sendo absorvidos
pela esfera humana. Esse mundo-em-si é uma espécie de horizonte
do pensamento, apontando sempre para algo que permanece para
além da nossa compreensão, inacessível às nossas tentativas de dar
inteligibilidade ao real – nos termos de Thacker, um mundo-sem-
-nós, aquilo que resta depois da subtração do humano. Arrisco a
hipótese de que as epidemias exercem uma força peculiar sobre o
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

nosso imaginário e derivam muito de seu fascínio justamente por


representarem um entrecruzamento do mundo humano com o
mundo-em-si e o mundo-sem-nós.
A crise do significado em Black Hole, a sugestão de um real
para além do domínio do simbólico que se faz intuir através da
doença, é uma irrupção do mundo-sem-nós. “O mundo oculto,
que não revela nada além de seu ocultamento, é um mundo vazio e
anônimo que é indiferente ao conhecimento humano, e mais ainda
às nossas necessidades e desejos tão humanos” – e, por isso mesmo,
é um mundo terrível (THACKER, 2015, p. 53).19 Resquícios desse
mundo-sem-nós também se fazem perceber em Sweet Tooth e Y:
The Last Man através da associação da doença com o mistério e de
seu surgimento como fenômeno que testa os limites do humano.
Entretanto, ao redor dessa reserva de vazio, constroem-se hipóteses
que explicam a epidemia e que acabam por ser confirmadas pelo
próprio desenvolvimento da narrativa: a doença tinha sido causada
pela intervenção divina, pelo desrespeito humano ao meio ambiente
e pela húbris da ciência, como em Sweet Tooth; ou então por uma
158
lógica implacável da própria natureza, regida por um princípio eco-
nômico que elimina tudo aquilo que perde sua função, como em Y:
The Last Man. Não se trata, aqui, apenas de uma penetração do real
por meio da investigação analítica, mas de uma colonização mais
profunda do mundo-sem-nós, a que se atribui desde sempre uma
intencionalidade, numa projeção da racionalidade humana. Assim,
o nosso controle sobre o real, que a princípio parecia ameaçado, se
restabelece justamente através da presença de uma lógica oculta por
trás da doença. A essa forma de controle imaginário se somam for-
mas de controle mais objetivas que impõem de fato uma organização
humana sobre o real: o domínio tecnológico sobre a natureza em Y:

82 “The hidden world, which reveals nothing other than its hiddenness, is
a blank, anonymous world that is indifferent to human knowledge, much
less to our all-too-human wants and desires.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

The Last Man e a instituição de uma nova ordem orientada pelos


princípios da ética e da compaixão em Sweet Tooth, que integra a
natureza à própria cultura humana através da figura dos híbridos.20
A tensão entre o humano e o não humano, entre um mundo-
-para-nós e o mundo-em-si, ou, no seu limite, o mundo-sem-nós,
parece se resolver, portanto, num restabelecimento do controle do
humano sobre aquilo que lhe é alheio. Mais ainda, a crise social e
epistemológica trazida pela epidemia desembocaria numa expansão
do humano sobre o território do real que resiste à sua lógica. No
entanto, a articulação entre revelação e ocultamento deve se man-
ter. Algo do incognoscível permanece atrelado ao nosso imaginário
sobre a doença como uma de suas condições essenciais. Em primeiro
lugar, por que ele é inevitável: o próprio surgimento de epidemias,
principalmente de uma pandemia das dimensões da covid-19, é uma
indicação de que algo sempre foge ao nosso controle, exigindo uma
constante reafirmação da configuração humana do mundo. Além dis-
so, como Thacker (2015, p. 5, 8) indica, o incognoscível desempenha
um papel importante ao marcar os limites do pensamento humano
159
e ao nos ajudar a refletir sobre o que somos. Finalmente, de forma
paradoxal, a doença precisa se manter sem sentido justamente para
que possa significar: só assim ela pode servir como uma tela sobre a
qual projetar nossas concepções sobre o real, como um espaço vazio
a ser preenchido, ou então (o que é igualmente importante), como

20 Concordo, portanto, com a avaliação de Mark Heimermann (2016, p.


62-63) de que Sweet Tooth termina por reafirmar valores humanos, uma
vez que a sociedade dos híbridos é formada por aqueles que, apesar de
aceitar o animalesco, mantêm um contato maior com seu aspecto humano.
Por outro lado, Maggiulli argumenta que o hibridismo em Sweet Tooth
não elimina a diferença entre o humano e o animal (2016, p. 76), apesar
de apontar para uma continuidade do humano ao propor que a narrativa
sugere, num plano alegórico, não a eliminação física da espécie humana,
mas uma alteração da consciência e a criação de uma nova concepção do
humano conectada com a natureza (2016, p. 87-88).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

um meio para discutirmos essas concepções como uma construção


que permite a nossa inserção no mundo.
Nas três narrativas discutidas aqui, o contágio adquire uma
dimensão metafórica que diz respeito a essa inserção, figurando
uma permeabilidade entre nós e aquilo que parece externo a nós.
Por isso mesmo, ele assume um caráter problemático. A aparente
arbitrariedade da contaminação lança o mecanismo do contágio na
obscuridade, à qual se contrapõe a proposição de explicações pseu-
docientíficas ou calcadas na ação misteriosa, mas lógica, de alguma
divindade ou de uma natureza dotada de racionalidade. A mistura
desses dois princípios em Sweet Tooth e Y: The Last Man, criando
incoerências na representação da enfermidade nas duas narrativas,
é uma indicação de uma repulsa à própria ideia de contágio, como se
houvesse uma relutância em aceitá-la como um fenômeno destituído
de uma significação moral. A sombra de uma origem divina para a
pandemia pode ser vista, então, como um resquício de religiosidade
na estrutura de pensamento da modernidade.
Em Black Hole, a doença literalmente dá nova forma ao cor-
160
po daqueles que contagia, sem, no entanto, ameaçá-lo ou mesmo
fragilizá-lo. Seu único efeito, portanto, é alterar alguns dos elementos
básicos que constituem a identidade do indivíduo: sua imagem, a
representação que faz de si mesmo e sua relação com a comunidade.
Em Sweet Tooth, a espécie humana é insistentemente comparada a
uma praga que ataca de forma agressiva o planeta e que põe em risco
o seu funcionamento. No último número de Y: The Last Man, ao ser
informado de que estavam desenvolvendo novas linhagens de seu
DNA, que estava sendo usado para gerar várias gerações de clones
(solucionando, assim, o problema da reprodução depois da extinção
dos outros homens), Yorick se compara a uma doença. Em todos esses
casos, há, de uma forma ou de outra, uma identificação da doença
com o ser humano, que a incorpora. Estabelece-se, então, uma relação
metonímica entre os dois; porém, se a humanidade é uma doença, a
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

doença também é humanidade. O que essas narrativas nos mostram,


com suas epidemias tão inusitadas, é que a doença faz parte do que
somos, expressa o que pensamos e nos desafia com a nossa própria
imagem. Talvez por isso ela nos cause tanto estranhamento.

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(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

A pandemia de covid-19 e o “imaginário


pandêmico” no Antropoceno

André Felipe Cândido da Silva1

A origem zoonótica da covid-19 tem feito com que esta emer-


gência sanitária venha sendo associada a processos ecológicos, como
desmatamento para exploração de madeira, mineração e extrativis-
mo; avanço da fronteira agrícola sobre áreas pouco antropizadas;
urbanização desenfreada e consequente proximidade com nichos
de animais silvestres; comércio ilegal desses animais e expansão
do confinamento animal para consumo humano, entre outras dinâ-
micas (ADAMS, 2020; BROWN, 2020; FRUMKIN; MYERS, 2020;
MARQUES, 2020; QUAMMEN, 2020). Proveniente de uma espécie
164 de coronavírus de morcegos selvagens, o SARS-CoV-2 alcançou os
humanos depois de passar por um intermediário mamífero que tudo
indica ser o pangolim. A dimensão ecológica desta pandemia tem
motivado a correlação com o conceito de uma nova época geológica
conformada pelas ações humanas no Sistema Terra – o Antropoceno
(SILVA; LOPES, 2020). Dois dos processos articulados ao Antro-
poceno têm sido particularmente ressaltados na crise sanitária: as
mudanças climáticas globais de natureza antropogênica e a perda
massiva de biodiversidade, referida como Sexta Extinção, por apre-
sentar magnitude similar às outras cinco grandes aniquilações de
espécies da história geológica, ainda que em intervalo muito menor
de tempo e provocada pela ação humana (KOLBERT, 2014).

1 Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz e professor do Pro-


grama de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz – Fiocruz.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

A associação com as mudanças climáticas tem sido feita não


por relações de causalidade, mas por analogias. Desse ponto de vista,
a pandemia de coronavírus seria um ensaio dos desastres ambientais
previstos para ocorrerem no futuro próximo e dos efeitos sociais,
econômicos e culturais que tais desastres acarretarão. A extensão
desses efeitos é diretamente relacionada com os cenários projetados
pelos especialistas de acordo com o grau de aumento da temperatura
planetária. Segundo Elizabeth Sawin (2020, s/p), a “COVID-19 é
como uma versão acelerada da mudança climática, em que passa-
remos do reconhecimento do problema para uma ação sobre ele, a
fim de buscar por lições aprendidas no intervalo de alguns meses,
e não de décadas”.2
A intenção do presente capítulo é analisar a pandemia de co-
vid-19 como expressão do Antropoceno, por esse caráter de “ensaio”
das transformações e processos decorrentes do impacto humano
sobre o Sistema Terra e por evidenciar uma dimensão dramática do
novo regime geológico – a crise da biodiversidade manifestada pela
Sexta Extinção, decorrente de uma série de ações antrópicas sobre a
165
biosfera. Também aproximo a pandemia do Antropoceno por consi-
derar que ela precipita as ansiedades, projeções e contradições que
este estabelece no que se refere aos sensos de futuro. Por designar
a ameaça que as intervenções antrópicas representam ao sistema de
manutenção da vida no planeta, o Antropoceno, assim como as epi-
demias, incita o imaginário de extinção da espécie humana da Terra.
Em exercício especulativo de como seria o planeta sem os humanos,
Alan Weisman imagina um vírus específico que aniquilaria apenas

2 No original: “In that sense, COVID-19 is like an accelerated version of


climate change, where we will move from recognizing the problem to act-
ing on it to looking for lessons learned over a span of months rather than
decades. What might this speeded-up version of climate change teach us
about dealing with an existential threat that is growing exponentially?” As
traduções de todos os trechos citados em língua estrangeira são de respon-
sabilidade do autor, a não ser quando indicado.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

o Homo sapiens, deixando tudo o mais intacto (WEISMAN, 2007).


Nesse sentido, a covid-19 adequa-se ao que o antropólogo Christos
Lynteris (2020) chama de “imaginário pandêmico”, radicado na
projeção da extinção humana por epidemias zoonóticas globais. Tal
imaginário problematiza os fundamentos ontológicos do humano
por implicar uma reelaboração dos mitos de origem em função da
própria maneira como a gênese animal da doença embaralha as
fronteiras entre humanos e não-humanos.
Segundo o filósofo Eugene Thacker (2011), essa ideia de um
“mundo-sem-nós” designa o próprio planeta, distinguindo-se do
“mundo-para-nós” – o mundo em sua expressão fenomenológica –
e do “mundo-em-si” – a Terra. O planeta é o resíduo incognoscível
daquilo com que nos deparamos, mas que nos permanece inaces-
sível; aquilo que se revela, mas que não se revela em sua inteireza.
Por serem os agentes que potencialmente deslindam essa condição
limítrofe, além de potenciais causadores da possível extinção huma-
na, vírus como o agente da covid-19 – o SARS-Cov-2 – podem ser
tomados como os “demônios ontológicos” tematizados por Thacker.
166
Segundo Thacker (2011, p. 31), a figura do demônio constitui manei-
ras de pensar a relação entre humanos e não-humanos, represen-
tando “uma forma de falar sobre a perspectiva do não-humano”. O
vírus “é uma entidade movida por uma ontologia instável, capaz de
transgredir as fronteiras entre a morte e a vida”, define Freitas (2020,
p. 2). Por essa razão, está entre as figuras mais radicais “que abrem
uma mutação no imaginário social, científico e filosófico” (Freitas,
2020, p. 3). Nesse potencial de mutação dos imaginários e em sua
transgressão ontológica como vírus, o SARS-CoV-2 catalisa as re-
flexões sobre os fundamentos ontológicos do humano em sincronia
com as problematizações inauguradas pelo Antropoceno. A origem
animal desse vírus e as sinergias que acenam para as interdepen-
dências dos humanos com a rede da vida instituem novas formas
de pensar tanto os vírus quanto os humanos. A ontologia dualista
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

que alicerça as concepções da modernidade ocidental é abalada com


desastres sanitários como a covid-19, pois estes apontam os intrinca-
dos entrelaçamentos multiespecíficos que constituem as paisagens e
ecologias, da mesma forma como a época geológica conformada pela
ação humana abala os fundamentos dessa mesma modernidade. A
covid-19 também problematiza os padrões narrativos e abordagens
sobre as doenças e a saúde, ao questionar as “utopias sanitárias” que
estão na base do discurso biomédico da saúde pública (LYNTERIS,
2020) e o que Priscilla Wald (2008) chama de “narrativas do surto”.
Fundada na segregação de espaços, arbitramento de contatos e ex-
termínio de supostos “invasores”, a “utopia sanitária” referenda uma
abordagem verticalizada de saúde. Traduz-se no repertório político
no reforço das fronteiras e do ideal de soberania que elas encerram,
com decorrente reafirmação de discursos nativistas, acompanhados
de expressões xenófobas que associam o vírus “invasor” ao outro, ao
estrangeiro. Em contrapartida, o reforço dos heterogêneos entrela-
çamentos de humanos e mais-que-humanos ratifica o paradigma da
convivência e da comunidade, baseados em uma ética do cuidado.
167
Novamente como o “demônio ontológico” que descortina o planeta,
vírus de origem animal como o SARS-CoV-2 convocam à sedimenta-
ção de uma nova forma de saúde – uma saúde planetária, focada nos
acoplamentos entre o bem-estar humano e dos demais seres vivos e
dos ecossistemas. Distingue-se, assim, da saúde global, associada a
essa história humana e antropocêntrica de interconexões forjadas
pelo capitalismo e colonialismo, já que a mesma ontologia dualista
que ampara a utopia sanitária “possibilitou a empresa modernista
e capitalista e sua invenção da máquina de conquista do mundo,
capturado em suas engrenagens até as mais resistentes minorias
humanas e não-humanas que tentam sobreviver às suas margens”,
lembra-nos Els Lagrou (2020, s/p.). A dominação dessas minorias
pela modernidade capitalista e patriarcal foi acompanhada da se-
gregação da mulher no espaço doméstico, de etnias subalternizadas,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

dos espaços e do cultivo extensivo e monoespecífico da agricultura e


pecuária, uma das forças motrizes de aniquilação da biodiversidade.
Nesse sentido, a saúde planetária pode ser enquadrada como uma
perspectiva decolonial da saúde global.
Na linha argumentativa aqui exposta, vou primeiro tratar do
coronavírus como expressão das dinâmicas do Antropoceno e do
imaginário pandêmico, tal como desenvolvido por Christos Lynteris
(2020). Em seguida, abordarei os vírus como os “demônios onto-
lógicos” de Thacker, que trazem à cena o planeta, em sintonia com
a “intrusão de Gaia” no Antropoceno. Confrontarei depois a utopia
sanitária com a perspectiva multiespécies de entrelaçamentos entre
humanos e não-humanos, associando essas duas abordagens com
a emergência da saúde planetária. Desta forma, tenciono mostrar
que a covid-19, como as demais pandemias zoonóticas, atua como
expressão metonímica do Antropoceno, por designar a complexidade
dos efeitos das ações humanas na biosfera, os dilemas epistemológi-
cos e políticos no seu enfrentamento, a problematização do estatuto
ontológico do humano e das formas de enredamento com os “mais-
168
-que-humanos”, bem como a manifestação dessa problematização
nos imaginários políticos e de saúde.
Vírus, morcegos, humanos e o “mundo-sem-nós”:
a covid-19 e o imaginário pandêmico no Antropoceno3
Em termos gerais, o Antropoceno é a proposta de uma nova
época geológica caracterizada pelo impacto global das ações huma-
nas no planeta. Foi apresentada pelo climatologista holandês Paul
Crutzen e pelo limnologista Eugen Stoermer em 2002. Apesar de ter
sido aceita no Congresso Internacional de Geologia que se reuniu
na África do Sul em 2016, carece de formalização pela Comissão
Internacional de Estratigrafia, ocupada em definir um marco nas

3 Tomo de empréstimo o título “A vingança dos morcegos” do excelente


texto de Els Lagrou (s.d).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

camadas de sedimentos geológicos que assinale o início da nova


época. Existem diferentes propostas de datas indicadas como esse
início: Crutzen e Stoermer sugerem o ano de 1783 como marco por
ser o ano da invenção da máquina a vapor, sinalizando o papel dos
combustíveis fósseis e da industrialização como principais vetores
das transformações planetárias (CRUTZEN, STOERMER, 2002). No
entanto, o marco que parece se encaminhar para maior aceitação é
o da Grande Aceleração, que estabelece o ano de 1950 como início
da nova época, por marcar a escalada exponencial de processos
como industrialização, crescimento populacional e econômico; uso
de recursos como óleo, água e energia primária; consumo de fertili-
zantes químicos e pesticidas; aumento da circulação de automóveis,
das telecomunicações e do turismo internacional; todos esses pro-
cessos com decorrentes transformações nas dinâmicas do Sistema
Terra, como aumento da emissão de gases-estufa, da temperatura
terrestre, da acidificação dos oceanos, do uso do solo, da perda de
cobertura vegetal das florestas tropicais, da degradação da biosfera
etc. (STEFFEN et. al., 2011; MCNEILL; ENGELKE, 2014).
169
Certamente as mudanças climáticas são as transformações
mais emblemáticas do Antropoceno, inclusive com protestos de
pesquisadores incomodados com a centralidade que assumem no
debate público, deixando à sombra outros aspectos da emergência
ecológica. Como afirmado anteriormente, a covid-19 tem sido reitera-
damente associada a elas, por representar uma antessala dos desafios
e impasses que elas apresentam, e por compartilharem da mesma
origem – crescimento populacional e aumento do consumo, com
decorrentes impactos ambientais, defende David Quammen (2020).
Alguns autores situam esta pandemia na convergência de três crises:
a crise sanitária, climática e de perda da biodiversidade (ARTAXO,
2020; JOLY; QUEIROZ, 2020). Para Bruno Latour (2020, s/p), a
covid-19 talvez possa servir “como um ensaio geral para a próxima
crise, aquela em que a reorientação das condições de vida será posta
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

como um desafio para todos nós, assim como todos os detalhes da


existência cotidiana, que teremos que aprender a resolver cuidado-
samente.” Ele aposta na hipótese de que a crise sanitária “prepara,
induz, nos incita a nos preparar para as mudanças climáticas”.
O’Callaghan-Gordo e Antó (2020, p. 2) denominam a covid-19
“a doença do Antropoceno”, uma vez que segue “a complexa
sequência que envolve a perturbação de sistemas naturais, sociais,
econômicos e de governança”.4 Para Thomas Heyd (2020, p. 9), “há
razão para pensar esta epidemia como uma das manifestações mais
evidentes da ‘época humana’ ou Antropoceno”.5 Comparando os
dois fenômenos, o autor conclui que a maior rapidez da pandemia
estabelece maior sentido de urgência e de vulnerabilidade, ao mesmo
tempo em que encontra justificativas mais fáceis de investimento
para remediar o problema. No caso das mudanças climáticas, as
transformações são mais lentas e, portanto, as ações são vistas como
menos imediatas, além de conferirem menor solidariedade global
e de serem mais difíceis de legitimar investimentos. No entanto,
ambos compartilham de um mesmo padrão que ele considera típico
170
do Antropoceno: são fenômenos de escala local que dependem da
mediação humana, que os amplifica, tornando-os rapidamente
difundidos por grandes distâncias. Assumem proporção global,
muito embora atinjam de forma diferenciada populações mais
vulneráveis, nas quais geram maiores morbidades e fatalidades.
Em linha semelhante a Latour, Heyd (2020) defende que a covid-19
representa um momento particularmente oportuno para iniciativas
destinadas a mitigar as mudanças climáticas. A pandemia mostra

4 “It [covid-19] follows a complex sequence involving disruption of the


natural, social, economic and governance systems.”
5 “Returning to the question posed at the beginning of this essay, how
we can think the present state of the world, there is reason to think of this
pandemic as one of the more evident manifestations of ‘the human epoch’
or Anthropocene” (ênfase no original).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

que ações preventivas e antecipadas compensam muito mais que o


enfrentamento depois do problema instaurado, em termos de vida
como também de recursos. Diferentemente da emergência sanitária
– prossegue o autor – a climática guarda a vantagem de poder ser
amenizada se medidas preventivas forem tomadas desde já.
As correlações da covid-19 com a crise da biodiversidade
obedecem a um padrão diferente da comparação com a questão
climática. São relações causais, ainda que não sejam de causalidade
direta, além de mais concretas e orgânicas. Como as demais pan-
demias de origem zoonótica que se sucederam desde a emergência
do Ebola, em 1994, a covid-19 deriva dos padrões de relação com
as demais espécies, os quais são responsáveis pela aniquilação da
biodiversidade. O contato com reservatórios silvestres de novos ví-
rus é propiciado pela incursão crescente de atividades humanas em
zonas de baixa ação antrópica, nas fímbrias de zonas urbanas ou em
áreas limítrofes a formações florestais (LAGROU, 2020). A origem
atribuída ao mercado de Wuhan e ao consumo de animais silvestres e
exóticos (o pangolim é o provável elo da “transferência” do vírus dos
171
morcegos para os humanos) tem feito com que o novo coronavírus
seja correlacionado com o confinamento animal em larga escala e o
comércio ilegal de animais silvestres. Desde as pandemias de gripe
aviária, suína e do SARS-CoV-1, o padrão industrial e intensivo de
criação de rebanhos para atender à demanda crescente de proteína
da população humana tem sido reiteradamente incriminado como
fator que predispõe ao surgimento e à difusão de novas doenças de
origem zoonótica (ADAMS, 2020; WALLACE, 2020). A população
de rebanhos mantida pelos humanos ultrapassa a população huma-
na mundial; perfaz 67% da biomassa animal do planeta, enquanto
a biomassa humana soma 32%, e de animais silvestres apenas 1%.
Estudo publicado na revista Nature em dezembro de 2020 mostra
que pela primeira vez a biomassa produzida por ação antrópica,
composta por concreto, asfalto, metal, madeira, vidro, tijolo e outros
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

materiais como plástico, ultrapassou o montante produzido por


processos naturais (ELHACHAM et. al., 2020)
Os criadouros representam cenários ideais para o surgimento
de novas epidemias, por concentrarem animais em espaços limita-
dos, em proximidade com os humanos. Os rebanhos são compostos
por indivíduos geneticamente homogêneos, o que facilita a suscep-
tibilidade a patógenos e a difusão dos mesmos. Ademais, são man-
tidos com uso indiscriminado de antibióticos, hormônios e outros
produtos sintéticos. Em análise das interdependências que levaram
à deflagração da gripe aviária, Mike Davis (2006) considerou as
granjas incubadoras perfeitas para novas zoonoses. Se àquela altura
“o monstro batia à porta”, como intitulou seu livro, com a covid-19
ele reeditou a obra, revista e acrescida de exame sobre a emergência
da nova pandemia, a despeito de várias advertências que alertavam
para essa possibilidade (Davis, 2020).
Mas o principal fator que está na base da perda da biodiver-
sidade e da extinção de espécies é a agricultura, considerada por
isso uma causa essencial da pandemia de coronavírus (WORSTER,
172
2020). Como processo fundamentado na seleção e rejeição de espé-
cies, a atividade agrícola faz com que vírus “antigos, relativamente
indenes”, de perfil generalista, se transformem em agentes espe-
cializados em uma faixa estreita do espectro biótico com potencial
letal. Segundo Donald Worster (2020, p. 86), essa aniquilação da
biodiversidade pela intensificação da agricultura leva ao paradoxo de
que tal processo “converte os humanos em uma nova força disrup-
tiva, que, ironicamente, torna as pessoas mais seguras na obtenção
de alimentos e mais incertas em relação à sua saúde”. O movimento
de simplificação ecológica pela prática agrícola aprofundou-se sob
o capitalismo, argumenta Worster (2003, p. 38), com a generali-
zação das monoculturas que apresentam maiores vulnerabilidades
em termos de pragas e doenças; degradação dos agrossistemas e
dependência crescente de sucedâneos tecnológicos, capital e in-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

sumos químicos, estabelecendo uma “tendência em apostar alto


contra a natureza”. A agricultura provoca uma série de processos
que configuram o Antropoceno, como aumento na erosão terrestre
e transporte de sedimentos; mudanças no perfil do uso do solo;
aumento da antropização da superfície terrestre; perturbações dos
ciclos biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo, em função do uso
extensivo de fertilizantes químicos; alterações no ciclo da água, com
interferências no curso dos rios para irrigação e escassez hídrica;
sem contar a já mencionada extinção massiva de espécies ocasionada
sobretudo pelo desmatamento realizado para dar lugar aos cultivos.
Além da convergência com essas dinâmicas materiais, a
covid-19 também se liga ao Antropoceno em termos simbólicos. O
Antropoceno tem ganhado repercussão como conceito científico e
cultural (TRISCHLER, 2016) por conferir inteligibilidade ao pre-
sente (CHARBONNIER, 2017, p. 202), designando um conjunto
heterogêneo e difuso de processos, desafios e compreensões, mas
é infundido de afetos decorrentes principalmente das expectativas
de futuro que institui. Ao projetar o colapso das condições que as-
173
seguram a manutenção da rede da vida no planeta, o Antropoceno
acentua “os sentimentos contemporâneos de ansiedade e preocu-
pação em relação à finitude da humanidade”, assinala o historiador
indiano Dipesh Chakrabarty (2009, p. 197).6 Em função disso, o
imaginário de extinção humana desafia os fundamentos da consci-
ência e condição históricas por “precipitar um senso de presente que
separa o futuro do passado ao colocar tal futuro além do alcance da
sensibilidade histórica” (CHAKRABARTY, 2009, p. 197).7

6 Chakrabarty refere-se especificamente às especulações de Alan Weis-


man de “um mundo sem nós”, sintomáticas do ânimo que caracteriza o
Antropoceno: “Weisman’s thought experiment illustrates the historicist
paradox that inhabits contemporary moods of anxiety and concern about
the finitude of humanity” (Chakrabarty, 2009, p. 197).
7 “[…] the current crisis can precipitate a sense of the present that dis-
connects the future from the past by putting such a future beyond the
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

A covid-19 somou-se a uma sequência de epidemias de origem


zoonótica deflagrada com o surgimento do Ebola, em 1994, seguido
da gripe aviária, do vírus Nipah, doença de Lyme, Febre do Nilo,
Hantavírus, Vírus Hendra, Vírus Marburg, Síndrome Respiratória
Aguda, gripe suína, MERS etc. Estima-se que nos últimos trinta
anos surgiram cerca de 200 zoonoses, origem de aproximadamente
65% das patologias que afetam as populações humanas. Nos anos
1990, tais pandemias geraram um padrão narrativo que se precipi-
tou em produção cultural de ampla circulação, articulada de forma
sistemática a imaginários políticos e científicos. Estruturante desse
padrão narrativo é a ideia de “próxima peste”, título do best-seller
de Laurie Garret (1995), publicado em 1994, no mesmo ano em que
veio a lume outro livro de grande sucesso, de Richard Preston, The
Hot Zone, que inspirou o filme Contágio, de Steven Soderbergh, de
2011. Tal como Epidemia, de 1995, Contágio integrou o conjunto de
filmes de temática apocalíptica em que patógenos altamente conta-
giosos se somam a catástrofes como tsunamis, terremotos, furacões e
invasões alienígenas. O leitmotiv da “próxima pandemia” preconiza a
174
incidência, no futuro próximo, de um evento de extinção humana por
pandemia provocada por um desses patógenos “emergentes”. Apesar
de previsível, ela é inevitável. Segundo Priscilla Wald (2008, p. 10-
20), a sequência dessas “doenças emergentes” nos anos 1990 instituiu
uma “narrativa do surto”, que prevê quatro estágios: a identificação
do agente causador pelas ferramentas da ciência biomédica; a difusão
desse agente pelas redes globais de transporte; o trabalho epidemio-
lógico de reconstrução das vias de contágio e, por fim, a contenção
da doença por medidas de saúde pública e pelo “arsenal científico”.
O mote da previsibilidade e ao mesmo tempo inevitabilidade
da “próxima pandemia” tem estado muito presente nos discursos
sobre a covid-19, encarada como um alerta das consequências da

grasp of historical sensibility.”


EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

devastação ecológica (MARQUES, 2020). Esta prenuncia novas


emergências sanitárias de magnitude semelhante ou mais severa
caso essa devastação tenha continuidade, sobretudo no caso de
práticas que implicam em perda da biodiversidade.
O antropólogo Christos Lynteris (2020) examina o enredo
da “próxima peste” como alicerce do que denomina “imaginário
pandêmico” – a ideia de extinção humana por uma pandemia de
origem zoonótica. Essa ideia adensa o caldo das “variações míticas
do fim do mundo” (Lynteris, 2020, p. 1) analisadas por Danowski
e Viveiros de Castro (2014), compondo um “imaginário antropo-
lógico”; segundo Lynteris (2020, p. 5), “um domínio onde o que é
humano, o que é não-humano e o que se coloca entre os dois é ne-
gociado, forjado e desafiado, de maneira a operar como uma esfera
relativamente autônoma de repertórios simbólicos e performativos
de humanidade”.8 As “variações míticas do fim do mundo” vêm
ganhando corpo com os sensos de futuro instaurados pelo Antro-
poceno. No entanto, Lynteris (2020, p. 9) identifica no “imaginário
pandêmico” a particularidade de implicar o fim da humanidade
175
como domínio sobre o mundo natural e sobre os “não-humanos”,
muito mais do que o fim da existência humana propriamente dita.
A origem animal das pandemias que pressagiam esse fim proble-
matiza as concepções de gênese e existência humana. Trata-se de
um fim sempre adiado, desprovido de redenção – um “apocalipse
sem apocalipse, sem visão, sem verdade, sem revelação, sem envios”
(Derrida apud Lynteris, 2020, p. 26) – que destitui a espécie humana
de humanidade. A repetição desses ciclos de fins sempre adiados é
o próprio inferno, caracterizado por humanos itinerantes em paisa-

8 “Yet more than that, this book would like to argue, they are mythic
registers of anthropogenesis: visions of an end that immerse us into an
anthropological imaginary – a realm where what is human, what is not
human, and what lies between the two is negotiated, forged, and challen-
ged, so as to function as a relatively autonomous sphere of symbolic and
performative repertoires of humanity.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

gens devastadas; “a humanidade vagando sem rumo pela terra; seres


apáticos, desprovidos de qualquer propósito, objetivo ou destino;
uma espécie esvaziada de seu ser, inadequada para simplesmente
viver no mundo ou para moldá-lo às suas necessidades e desejos”
(LYNTERIS, 2020, p. 29).9
Ao transgredirem as fronteiras de espécies pelo “spillover”, os
vírus causadores dessas pandemias ocasionam rupturas biopolíticas e
ontológicas, borrando os limites entre humano e não-humano. Nessa
transgressão, essas “entidades indeterminadas” (LYNTERIS 2020,
p. 57) convocam a um repensar da compreensão que temos de vírus
e de humanos e desvelam os limites da potencialidade de conheci-
mento e controle do que seria a natureza, trazendo à cena o planeta
– Gaia – que se expressa em toda a força de sua agência ancestral,
arredia e esquiva aos esquemas de previsibilidade dos dispositivos
de vigilância, saber e poder estruturados pelas tecnociências.
Os vírus como demônio ontológico, o desvelamento
do planeta e as entidades simbiônticas
Assim como uma guerra nuclear ou desastres naturais, pan-
176
demias globais instauram a possibilidade do “mundo-sem-nós”
projetado no experimento mental de Alan Weisman. Em função
disso, nos confrontam com um pensamento-limite, do nada absoluto.
Para Eugene Thacker (2011), isso instaura um sentimento de horror,
por apresentar os limites do humano quando confrontado com um
mundo que não é apenas o mundo, no sentido fenomenológico, e
não é apenas a Terra, mas aquilo que se situa na lacuna entre essas
duas dimensões, que é o planeta. Como essa categoria residual e
negativa – como aquilo que se revela, mas não se revela por completo
– o planeta representa aquilo que permanece “depois” do humano.

9 “[...] humankind aimlessly roaming the earth; listless beings emptied of


any purpose, goal, or destiny; a species hollowed out of its being, neither fit
to simply live in the world nor fit to shape it to its needs or desires.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Como potenciais agentes desse cenário de extinção e de


horror, vírus de origem animal como o SARS-CoV-2 podem ser
enquadrados como os “demônios ontológicos” de Thacker (2011),
para quem eles representam uma forma de pensar a relação entre
humanos e não-humanos. Tal como o planeta, o “não-humano” atua
como um limite, como aquilo com o qual nos colocamos em relação,
mas que se mantém inacessível. Como limite e como desconhecido,
o não-humano é fonte de pavor. Tal como o demônio, é um desafio à
ordem do divino por se recusar a se apresentar de forma organizada.
Ele é “completamente imanente, mas nunca plenamente presente”
(Thacker, 2011, p. 35).10 Os vírus patogênicos se adequam a essa
alegoria, por serem esses agentes ubíquos, mas invisíveis; contagio-
sos e difusos, situados nas fronteiras entre o vivo e o não-vivo. Uma
partícula inerte, que ao alcançar seu hospedeiro segue o imperativo
de se reproduzir às custas dos metabólitos alheios, provocando
disfunções fisiológicas que podem levar à morte ou invalidez dos
organismos afetados.
Thacker (2011, p. 38) nos lembra que as possessões demoní-
177
acas foram associadas ao contágio miasmático. Individualizados em
suas partículas, os vírus se expressam de forma tão difusa quanto
aqueles agentes etiológicos do pensamento médico oitocentista.
Podem se transportar pelos ares, águas e corpos acumulados, como
os eflúvios mefíticos que se desprendiam dos pântanos, tumbas,
dejetos e turbas. Como o contágio, argumenta Thacker (2011, p.
39), o demônio se apresenta “como uma manifestação paradoxal
do que é, em si mesmo, ‘nada’ ou um ‘não-ser’”.11 Os vírus atuam

10 “Arguably, this last scene puts forth the most difficult view of the de-
mon – not a transcendent, governing cause, and not an emanating, radia-
ting flow – but a concept of the demonic that is fully immanent, and yet
never fully present” (grifos meus).
11 “In this pre-modern understanding of contagion, the demon is concep-
tualized in much the same way we saw earlier – as a paradoxical manifes-
tation that is, in itself, ‘nothing’ or ‘non-being’.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

como esses “monstros ontológicos” que embaralham os limites do


vivo e do não-vivo, do organismo e do “não-organismo”. Não pos-
suem autonomia, ou seja, não são entes capazes de sustentar em si
mesmos os processos reprodutivos que asseguram sua existência e
perpetuação. Mas ao mesmo tempo obedecem às pressões evolutivas:
se transformam e se adaptam, na interação com os mecanismos de
defesa dos hospedeiros e com os fatores ecológicos.
Como metonímia do Antropoceno, o SARS-CoV-2 desempe-
nha seu papel de demônio ontológico e põe à vista o planeta como
essa instância que se apresenta sem ser plenamente cognoscível:
esse mundo anônimo “indiferente ao conhecimento humano, e mais
ainda aos desejos de potência e vontade dos humanos” (THACKER,
2011, p. 44).12 Thacker, aliás, aponta o paradoxo que se evidencia
nas circunstâncias das mudanças climáticas, nas quais nós, huma-
nos, somos o problema, ainda que no nível planetário e do tempo
profundo da Terra permaneçamos insignificantes. O planeta que se
define a partir das Ciências do Sistema Terra se mostra igualmente
esquivo às ambições de conhecimento e controle pelos humanos
178
(CHAKRABARTY, 2019, p. 4). Diferentemente do globo, criado pe-
las instituições e tecnologias humanas e com o qual estabelecemos
relações de comunicação direta, com o planeta não é possível essa
relação comunicativa. Trata-se de uma entidade que é condição da
existência humana e ao mesmo tempo indiferente a ela. Sua emer-
gência no horizonte de reflexões existenciais dos humanos estabelece
um novo regime de historicidade, categoria de François Hartog
(2013) que designa o caráter histórico e situado das experiências do
tempo como arranjos específicos da relação entre presente, passado
e futuro. Em distinção ao globo, que se constitui a partir da história
da globalização capitalista, portanto restrita às escalas temporais da

12 “The hidden world, which reveals nothing other than its hiddenness, is
a blank, anonymous world that is indifferent to human knowledge, much
less to our all-too-human wants and desires.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

história humana, o planeta traz à cena o sistema de suporte à vida,


sem que o homem esteja no centro da narrativa, até por termos
chegado “tarde” nessa trajetória de maneira a sermos muito mais
“visitas temporárias do que hóspedes definitivos” (CHAKRABARTY,
2014, p. 23).13 Assim, o globo e o planeta definem “dois modos de
pensar que representam dois diferentes tipos de conhecimento e,
para os humanos, duas formas diferentes de comportamento perante
o mundo em que se encontram”, argumenta Chakrabarty (2019,
p. 24).14 Neutro e indiferente às expectativas, valores e projeções
humanas, o planeta não comporta recurso a formas ideais nem a
noções como justiça, além de ser protagonista de uma história na
qual não há estatuto de imperativo moral. Ele estabelece com os
humanos um plano de relações e temporalidades que escapam ao
horizonte de experiências e expectativas humanas, de maneira que
não é possível transpor princípios de ética e moral próprios do regime
de historicidade global para o planetário (Chakrabarty 2019, p. 28).
Como essa entidade que “irrompe” em forças geobiológicas
ancestrais, o planeta não é um todo que se deduz da soma de suas
179
partes. É um sistema complexo, dotado de vida e de agência. Mas,
conforme advertem Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 120)
“não se trata, porém, de um mundo harmonioso equilibrado, e muito
menos dependente, para sua persistência, da exclusão da humanida-
de, como se esta fosse um invasor terrestre, chegado para estragar
um idílio pastoril”. O planeta não se enquadra nos parâmetros de
previsibilidade propostos pela ciência, nem em correlações e cau-

13 “The realization that humans – all humans, rich or poor – come late
in the planet’s life and dwell more in the position of passing guests than
possessive hosts has to be an integral part of the perspective from which
we pursue our all-too-human but legitimate quest for justice on issues to
do with the iniquitous impact of anthropogenic climate change.”
14 “The two modes of thinking represent two different kinds of knowled-
ge and, for humans, two different ways of comporting themselves to the
world within which they find themselves.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

salidades lineares. “Gaia é antes de mais nada feita de história, ela


é história materializada, uma sequência contingente e tumultuária
de eventos antes que o desenrolar de uma causalidade ‘supralunar’
obediente às leis intemporais”, observam Danowski e Viveiros de
Castro (2014, p. 120).
Chakrabarty (2019) confronta a ideia de sustentabilidade,
radicada na ideia de finitude da Terra referida ao regime de his-
toricidade global – portanto, antropocêntrica – com a noção de
habitabilidade, que remete aos entrelaçamentos dos humanos com
os demais seres que compõem a rede da vida e cujas condições de
existência estão sendo ameaçadas pelas intervenções dos primeiros
no planeta. A interdependência com a rede da vida também é drama-
tizada na crise do coronavírus, que conclama a repensar o estatuto
ontológico dos humanos, pondo em xeque o antropocentrismo e a
concepção de natureza como domínio externo e autônomo à ação
humana. Como essas entidades ontologicamente instáveis que
trafegam de morcegos para pangolins e humanos, os vírus abalam
a ideia de espécies como organismos individuais autodelimitados
180
e cerrados em si mesmos. Problematiza ainda o excepcionalismo
humano, ou seja, a ideia de que somos animais superiores ou dis-
tintos por possuirmos qualidades diferenciadas dos demais seres ou
dotados de um estatuto intrínseco que nos emancipa da condição de
animalidade. Assim como os vírus zoonóticos, para o SARS-Cov-2
somos um hospedeiro multicelular tal qual os demais animais, que
eles colonizam para se reproduzirem. Como todas as espécies, a
espécie humana também se constituiu em sua história evolutiva
nesses entrelaçamentos com os demais organismos. Não só a luta
e competição formam as espécies, mas também a cooperação e a
simbiose. Da mesma forma que a evolução da diversidade da vida
na Terra dependeu da transformação da atmosfera pela liberação
de oxigênio operada em milhões de anos pelas cianobactérias, nosso
desenvolvimento não teria ocorrido sem o concurso de microrganis-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

mos que colonizam nosso trato digestivo, por exemplo. Somos, desta
forma, uma “nuvem multiespécie orgânica, que conjuga bactérias,
vírus e elementos não-orgânicos”; “identidades genéticas de uma
bricolagem específica” (COCCIA, 2020, s.p.).
Se no discurso biomédico canônico os vírus sobressaíram
como agentes patogênicos, em uma perspectiva ecológica e mul-
tiespécies eles despontam como componentes de constelações
biológicas e interdependentes, nas quais também estão submetidos
às pressões evolutivas. São os seres mais abundantes do planeta.
Surgiram há 3,5 bilhões de anos e participaram da evolução dos
outros organismos que os sucederam, inclusive do homem. Cerca
de 8% do nosso DNA é de origem viral. É graças a essa incorporação
do material genético de vírus que parasitaram nossos ancestrais que
se forma a placenta; ou seja, o vírus participa de uma etapa crucial
da reprodução e desenvolvimento humano. O mesmo é válido para
outras espécies. Além da sua função na evolução e desenvolvimento
de organismos, reconhece-se hoje o papel ecológico dos vírus nos
ecossistemas. Os vírus participam dos mecanismos de defesa de
181
seus hospedeiros, podendo ajudar na proteção contra a invasão
por outros organismos; regulam a biodiversidade pelo extermínio
de bactérias e outros seres que se reproduzem em excesso em um
ecossistema; integram as cadeias alimentares, como se tem notado
com frequência em ambientes marinhos; ajudam no controle do
ciclo biogeoquímico de nutrientes como carbono, fósforo e nitrogê-
nio; e podem auxiliar seus hospedeiros na capacidade de colonizar
novos territórios (O’MALLEY, 2016; PRADEU, 2016; PRADEU;
KOSTYRKA; DUPRÉ, 2016).
Conforme nos lembra Tobias Rees (2020, s.p.), toda a rede
da vida que se desenvolveu na Terra envolveu a participação dos
micróbios; todos os organismos, inclusive os humanos, emergiram
a partir de bactérias e vírus e, em função disso, “estão insepara-
velmente associados a eles e deles dependentes”. Os vírus nos
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

lembram o papel central da interconectividade nessa teia da vida,


o profundo entrelaçamento entre os organismos, seus ambientes e
toda a biosfera. Os contornos dos indivíduos são imprecisos. Eles
se estendem ao ambiente circundante, aos quais são permeáveis.
As formas de vida resultam de cooperações multiespécies tramadas
na temporalidade profunda das histórias evolutivas; cooperações
que envolveram bactérias e vírus, como outros seres de diferentes
naturezas. A constatação dessa onipresença da simbiose desafia a
ideia de vida como marcada por entidades autônomas, individuali-
zadas por fronteiras bem definidas. As dinâmicas que governam os
organismos individuais são as mesmas que operam nos ecossistemas
e na biosfera. Epidemias como a covid-19 evidenciam as diferentes
escalas evolutivas que vão dos vírus e micróbios ao planeta, passan-
do pelos humanos, animais e demais organismos. Conforme coloca
Els Lagrou (2020, s/p), “somos entidades compostas de relações,
entrecruzadas por outras agências e habitadas por subjetividades
diferentes. Somos múltiplos e divíduos em vez de indivíduos; somos
fractais. Somos habitados por bactérias e vírus saudáveis e nocivos
182
que travam batalhas intermináveis”. Ou como diz Emanuele Coccia
(2020, s/p), “[n]ão somos um ser vivo só, mas uma população, uma
espécie de zoológico itinerante, uma casa de feras”.
As profundas interdependências que atrelam nossa existência
aos microrganismos e demais seres golpeiam o excepcionalismo
humano, conforme argumenta Rees (2020, s/p.): “O que significa
possuir razão, quando a razão é inseparável de um cérebro ou de
neurônios, cuja emergência evolutiva e desenvolvimento foram
impossíveis sem os vírus e os 8% de nosso DNA viral?”15 A razão
e a consciência, brandidos como os distintivos da suposta particu-

15 “What does it mean to have reason, when reason is not separable from
a brain or from neurons, when the evolutionary and developmental emer-
gence of brains and neurons was impossible without viruses and our 8%
viral DNA?”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

laridade dos humanos em relação aos outros animais, tampouco


prescindem dessas interdependências, como novamente provoca
Rees (2020, s/p): “O que significa ter uma mente, quando a mente
não pode ser separada dos neurotransmissores, que são produzidos
por bactérias em nossos intestinos? E essa flora intestinal que é, por
sua vez, variável segundo o tipo de comida que ingerimos e da forma
como esta é produzida?”16
Assim como o Antropoceno convoca à fusão da história
humana e da história natural (CHAKRABARTY, 2009, p. 201), a
covid-19 e os vírus de uma forma geral apontam para uma filosofia
da história em que esta não pode mais ser encarada como restrita à
esfera humana, autônoma e separada do domínio da natureza (REES,
2020, s/p.). Ambos “eventos” tornam insustentável a noção de natu-
reza como reino externo à esfera humana. O reconhecimento dessa
interdependência com os demais seres e componentes da biosfera
implica igualmente uma mudança nas concepções de política. Para os
fundadores do pensamento político moderno, a política emergiu pela
emancipação do estado de natureza; como libertação da condição de
183
animalidade, marcada pelos instintos básicos e paixões. O contrato
social define-se em negação à natureza. Funda a comunidade política
como forma de regular os impulsos egoístas responsáveis por um
estado perpétuo de guerra de todos contra todos.
A ênfase trazida pela covid-19 nesses entrelaçamentos mul-
tiespecíficos entre humanos, não-humanos e vírus, em mais uma
sinergia com as problematizações instituídas pelo Antropoceno, não
se restringe à reflexão teórica. Os vírus e as mudanças ecológicas
que trazem à cena o planeta também o posicionam no campo do
discurso médico e da saúde. O regime planetário em distinção ao

16 “What does it mean to have a mind, when the mind is not separable
from neurotransmitters — neurotransmitters that are produced by bacte-
ria in our guts? And that this gut flora is in turn contingent on what food
we eat and where and how this food is produced?”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

global tem representado uma maneira de repensar as abordagens


de saúde em termos menos antropocêntricos e mais consoantes
com essas perspectivas multiespécies de agenciamentos múltiplos
entre entidades que se constituem na interconectividade de redes
de interdependência. Se a saúde planetária surgiu antes da covid-19,
esta confere a ela nova projeção e senso de urgência, em grande
medida porque esta emergência sanitária evidencia claramente as
tendências, perspectivas e desafios que marcam o Antropoceno,
como venho argumentando até aqui.
Utopia sanitária e perspectiva multiespécies: da
saúde global para a saúde planetária
Conforme Christos Lynteris (2020, p. 58), o imaginário pan-
dêmico como questionamento do domínio humano sobre as relações
com os não-humanos baseia-se em uma mudança epistemológica
na forma de compreender e enquadrar as zoonoses como fontes de
patologias humanas. Tal mudança implicou no questionamento da
“utopia sanitária” caracterizada pelo anseio de separação rígida entre
o humano e não-humano a partir do controle sobre o contato físico
184
e os espaços por meio de dispositivos de desinfecção, profilaxia,
terapêutica e diagnóstico (Lynteris, 2020, p. 16). Se essa “utopia
sanitária” apoia-se no horizonte de expectativas instaurado pela
bacteriologia, de espécies como entidades individualizadas e encerra-
das nos limites de seus organismos, as pandemias de origem animal
como aquela causada pelo coronavírus e os desafios ecológicos do
Antropoceno convocam novas maneiras de concebê-las.
Segundo essa utopia sanitária, as doenças animais só atingi-
riam os humanos pela falta de observância de protocolos higiênicos
e falhas nas estruturas de separação entre as espécies. As doenças
emergentes, no entanto, evidenciaram que processos ecológicos
generalizados desencadeiam a “transferência” – o spillover – dos
vírus dos animais para os humanos. Conforme já mencionado, a
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

sequência de pandemias de origem zoonótica a partir dos anos 1990


instaurou uma “narrativa do surto” baseada em um enredo que se
inicia com a identificação do foco e do causador da nova infecção,
seguida da investigação de sua trajetória pelas redes globais de
contato e contágio, do trabalho epidemiológico e das estratégias de
controle sanitário (Wald, 2008).
No imaginário biomédico que se sedimentou no século
XX, o diagnóstico, prevenção e controle das doenças infecciosas
envolvem os protocolos laboratoriais estabelecidos pela medicina
experimental, bem como os métodos sanitários da bacteriologia,
como vacinas, soros e antibióticos, ou ainda, inseticidas para com-
bate aos vetores alados. Esse padrão de respostas compõe o que o
historiador Marcos Cueto (2020, p. 246) denomina de “cultura da
sobrevivência”, fundamentada “no pressuposto de que o controle
das enfermidades epidêmicas era, sobretudo, um assunto tecnoló-
gico; cujo cumprimento dependia de poucos especialistas e uma boa
administração”. Vacinas, soros, quimioterápicos, antimicrobianos
e inseticidas seriam as “balas mágicas” – as soluções tecnológicas
185
que prescindiriam de reformas das condições sociais da população.
Além disso, seriam implementadas através de medidas autoritá-
rias, paliativas e campanhas verticalizadas (Cueto 2020, p. 247).
Essa abordagem precipitou-se em regimes visuais e discursivos.
A linguagem empregada pelas autoridades de saúde traduziu o
imaginário bélico presente desde o surgimento da bacteriologia. As
“campanhas” focaram o “combate” aos “invasores” que “atacam”
os organismos e driblam suas “defesas”, cabendo o uso de “balas
mágicas” e “estratégias” capazes de neutralizá-los. Este imaginário
bélico traduziu ainda a ideia dos organismos como entidades indi-
vidualizadas, com corpos claramente delimitados, cujas “fronteiras”
são ocasionalmente transgredidas por “inimigos invasores”.
O otimismo quanto à capacidade de domínio sobre as doenças
infecciosas ganhou fôlego no período após a Segunda Guerra Mun-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

dial, com a disponibilidade de ferramentas eficientes no controle de


micróbios e vetores, como os antimicrobianos, que permitiram lidar
com infecções milenares como a sífilis e a tuberculose; e dos inseti-
cidas de efeito residual, como o DDT, que possibilitou o controle de
doenças como o tifo e a malária. Essas ferramentas sedimentaram
as “utopias sanitárias”, representadas pela ambição de controle do
contágio físico, segregação espacial e arbitramento de fronteiras e
desinfecção. Emblema desse otimismo a respeito do triunfo sobre
as doenças infecciosas foi o ideal de erradicação, que embalou
campanhas internacionais contra varíola, poliomielite e malária. As
instituições multilaterais que embasaram a arquitetura da ordem
internacional do pós-Segunda Guerra foram os esteios desse ima-
ginário e as arenas de negociação e viabilização de tais campanhas.
A Organização Mundial de Saúde, criada em 1948, representou
a crença em ideais de governança da saúde baseadas no modelo
tecnocrático de gestão e abordagem. Esse modelo de governança
multilateral típico daquele contexto caracterizava-se pela triangu-
lação diplomática na negociação de acordos, respeitando o ideal de
186
soberania nacional. Em situações de surtos pandêmicos, os Estados
nacionais acionaram os tradicionais dispositivos de saúde pública
destinados a resguardar a salubridade de seus territórios – cordões
sanitários, quarentenas e controle dos afluxos de pessoas e bens.
As chamadas doenças emergentes incidentes a partir dos
anos 1990 puseram em xeque a crença no triunfo sobre as doenças
infecciosas, já abalado com o surgimento do HIV-AIDS na década
anterior. As doenças emergentes legitimaram seu caráter peculiar
por afirmarem o fato de que as mudanças evolutivas não poderiam
ser previstas, mas as variações virais e as transferências entre es-
pécies poderiam. Bastaria apenas o estabelecimento de modelos
avançados e sofisticados de vigilância epidemiológica, atentos às
zoonoses e capazes de se anteciparem à difusão global de patógenos
de potencial pandêmico. Mas a complexidade dos fatores ecológicos
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

envolvidos nessas pandemias tem mostrado que as incertezas que


introduzem não cabem nos modelos epidemiológicos focados na
predição do número de casos e de mortos.
A origem em patologias animais e a interconectividade provi-
da pela aceleração dos transportes e da comunicação evidenciaram
as interdependências globais e ecológicas, confrontando não só a
“utopia sanitária”, mas a crença no domínio sobre o contato com
os não-humanos. A tentativa de assegurar os ideais de controle,
pureza e sanidade dessa utopia expressou-se em dispositivos de
vigilância e de preparação para se anteciparem ao que seria uma
“próxima pandemia”.
O isolamento doméstico, mas também os cordões sanitários
e quarentenas implementados durante a covid-19 exprimem tal
ideário de manter as fronteiras corporais, domésticas e nacionais
isentas do contato com esse outro “invasor”: o vírus patogênico, o
estrangeiro, os animais reservatórios; em suma, o Outro, que no
caso do homem como abstração universalizada é a própria natureza.
As “comunidades imaginadas” dos Estados nacionais tomaram de
187
empréstimo a linguagem organicista segundo a qual perfilam corpos
autônomos e delimitados a partir de atos de diferenciação do “self”
e do “não-self”. A própria experiência de estar doente contribuiu
para a constituição dessas comunidades. O reconhecimento da
interdependência da doença e do contágio forjou laços de coesão e
solidariedade que em muitos casos desaguaram na montagem de
aparatos estatais de saúde, além do senso de pertencimento comum
essencial para a “imaginação da nação”, mas que em contrapartida
envolve a exclusão dos que não integram essa comunidade. A inci-
dência da doença “dramatiza o dilema que inspira a mais básica das
narrativas humanas: a necessidade e o perigo do contato humano”,
afirma Priscilla Wald (2008, p. 2).17

17 “Disease emergence dramatizes the dilemma that inspires the most


basic of human narratives: the necessity and danger of human contact.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

A sucessão de pandemias de origem zoonótica em decor-


rência de processos ecológicos e da interconectividade global dos
transportes abalou esta “imuno-política” dos Estados. Segundo
Rees (2020, s/p.): “Ela é baseada em uma compreensão errada dos
organismos, assumindo que eles são entidades autônomas e indepen-
dentes – e que bactérias e vírus são o ‘não-self’; não pertencem aos
indivíduos”.18 Peter Sloterdijk (2020, s/p.) vê a história como uma
batalha de sistemas imunes de cidades, nações e grupos focados no
protecionismo deles próprios e na externalização de qualquer dano
a um ambiente que não é responsabilidade de ninguém. No entanto,
a emergência climática e sanitária como sintoma da degradação pla-
netária mostra que essa externalização atingiu seu limite. Conforme
Sloterdijk (2020, s/p), a “razão imunitária” deve ceder lugar a uma
nova consciência e hábitos de cooperação e solidariedade necessá-
rios para a civilização no que ele chama de co-imunismo. Para ele, a
covid-19 acena para a chegada desse imperativo do “co-imunismo”.
O vírus ignorou as fronteiras de nacionalidade, os muros, os limites
de propriedades privadas, mostrando a necessidade de estender os
188
meios de proteção aos membros mais distantes das nossas famí-
lias, assim como promoveu forte colaboração entre comunidades
médicas, científicas e de saúde pública em nível internacional. Tal
tendência, para Sloterdijk (2020, s/p), deve ser aprofundada em
direção a uma “razão imunitária global”.
A proposta de Sloterdijk (2020) reverbera a distinção de
Roberto Esposito (2013) entre communitas e imunitas, opostos
que se baseiam no mesmo radical – munus – a obrigação ou o tri-
buto da vida em comunidade. Como contrário ao comum, a figura
do imune alude ao indivíduo moderno das democracias liberais e

18 “It is grounded in false conceptions of organisms and immune syste-


ms. It is grounded in a false understanding of organisms, assuming that
organisms are free-standing and discrete things – and that bacteria and
viruses, as not-self, do not belong to organisms.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

do patriarcado colonialista, delimitado e liberado desse tributo de


obrigação com o outro. Em sinergia com a orientação de Sloterdijk e
a distinção de Esposito, Patricia Manrique (2020, p. 156) advoga que
a “síndrome imunitária” que aciona a retórica imunológica moderna
abandone a retórica belicista em favor de uma “imunidade virtuosa,
comunitária” – um discurso de identidade que se baseia em uma
compreensão aberta e não-excludente, engajado pela saúde como
responsabilidade compartilhada. Esta “imunidade comunitária”
opõe-se à “utopia sanitária”. Convida a visões de corpo e indivíduo
menos atomizadas e mais como entidades porosas, “abertas ao
contágio e à mestiçagem” (MANRIQUE, 2020, p. 157).
Também baseado na distinção analítica de Esposito, Paul B.
Preciado (2020, s/p.) mostra como a gestão biopolítica se funda no
paradigma imunitário ao estabelecer hierarquias que segregam os
corpos “isentos” dos corpos “perigosos”. Isso institui o paradoxo
da biopolítica de proteção da comunidade às custas da exclusão
desses corpos que ameaçam sua integridade e soberania. Conforme
Preciado (2020, s/p), a imunidade ganhou estatuto político pela
189
medicalização da sociedade e politização da medicina, insinuando-
-se em medidas que excluem as minorias racializadas e que se
constrói por meio de parâmetros sociais e políticos “que produzem
alternativamente soberania e exclusão; proteção ou estigma; vida ou
morte”. O vírus, dessa forma, “atua à nossa imagem e semelhança,
e não faz mais do que replicar, materializar, intensificar e estender
à toda a população as formas dominantes de gestão biopolítica e
necropolítica que já estavam trabalhando sobre o território nacional
e seus limites”.
Nesse paradigma de gestão imunitária, a associação de germes
e doenças com grupos e nacionalidades foi recorrente na história da
medicina e da saúde pública. Em muitos casos, estrangeiros foram
estigmatizados por características e hábitos culturais em analogia
com patógenos que invadem corpos nacionais supostamente coesos
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

e puros, aos quais ameaçam “poluir”, sobretudo por não observarem


padrões convencionados de higiene, modernidade e civilidade. Para
o historiador Alan Kraut (1994, p. 3), isso configura um “nativismo
medicalizado”, em que estrangeiros imigrantes são estigmatizados
pelo vínculo com doenças infecciosas e por práticas e comportamen-
tos tidos como incivilizados e perigosos à saúde do “corpo nacional”.
Na covid-19, esse aspecto se fez presente na sinofobia que atribuiu
a origem da doença à manipulação deliberada do vírus pelos chine-
ses ou por estes cultivarem hábitos alimentares que os ocidentais
enquadram como exóticos, na melhor das hipóteses, ou bárbaros.
Em um ambiente de descrédito das agências multilaterais,
sobretudo por governos de extrema direita, e de negação apriorística
e ideologicamente orientada da capacidade da ciência em respon-
der aos desafios sanitários, a covid-19 elevou o tom dos discursos
por uma abordagem de saúde mais atenta aos consórcios multies-
pecíficos que interconectam as sociedades humanas com a rede
da vida. Como comentado anteriormente, a emergência sanitária
tem sido enquadrada como consequência de processos ecológicos
190
como a perda da biodiversidade e o padrão de relação com os ani-
mais, criados sob condições aviltantes e exterminados em massa
para consumo humano (ADAMS, 2020). Para Maristela Svampa
(2020, s/p), “[é] necessário abandonar o discurso bélico e assumir
as causas ambientais da pandemia, juntamente com as sanitárias,
e colocá-las na agenda política, o que nos ajudaria a nos preparar
positivamente para responder ao grande desafio da humanidade: a
crise climática”.19
A insatisfação com os discursos e abordagens tradicionais da
saúde pública em nível nacional e global confluiu em iniciativas como

19 “Es necesario abandonar el discurso bélico y asumir las causas am-


bientales de la pandemia, junto con las sanitarias, y colocarlas también
en la agenda política. Esto nos ayudaría a prepararnos positivamente para
responder al gran desafío de la humanidad, la crisis climática.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

a One Health, apoiada na ideia de que a saúde humana deve estar


associada à saúde animal, dos ecossistemas e do planeta. Ganhou
corpo a partir de um consórcio de organizações que promoveram
a ideia, partindo da Fundação Rockefeller e envolvendo agências
multilaterais, como OMS, FAO, Unicef e Banco Mundial. Articulada
a essa ideia formulou-se a noção de “saúde planetária”, divulgada e
apoiada pela revista médica The Lancet, pela Fundação Rockefeller
e pela Wellcome Trust. Da mesma forma que as mudanças climáti-
cas e o Antropoceno, evidenciados pelas redes epistêmicas globais
dedicadas às Ciências do Sistema Terra, trouxeram à cena o planeta
(CHAKRABARTY, 2019), a covid-19 impulsionou a abordagem da
saúde planetária. Marcada pela transdisciplinaridade e pela com-
plexidade do pensamento sistêmico, a saúde planetária apoia-se no
pressuposto da profunda interconexão entre o bem-estar das popu-
lações humanas e das dinâmicas que constituem o Sistema Terra.
Ela reconhece a articulação entre a saúde humana e a saúde dos
ecossistemas por meio de evidências ambientais e epidemiológicas
reunidas em modelos complexos (DUNK; ANDERSON, 2020, p. 20).
191
A saúde planetária distingue-se da saúde global por esse
enfoque sistêmico e articulado entre as dimensões propriamente
sanitárias e ecológicas, reconhecendo que a degradação da biosfera
afeta o bem-estar humano. Conforme mostram Dunk e Anderson
(2020, p. 24), a expressão saúde planetária surgiu nos anos 1970
para designar a saúde do próprio planeta, mas a partir dos anos
1990 passou a ser utilizada por epidemiologistas para se referir às
consequências da devastação ambiental e mudanças climáticas nas
populações humanas. Porém, ganhou força bem mais recentemente
quando a revista The Lancet e a Fundação Rockefeller constituíram
uma comissão para examinar os efeitos das mudanças ecológicas
globais na saúde humana. O relatório da comissão veio a lume em
2014 sob o título Safeguarding Human Health in the Anthropocene
Epoch; no ano seguinte, a Wellcome Trust lançou edital de amplo
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

programa de financiamento para pesquisas sobre as consequências


para a saúde das mudanças climáticas (DUNK; ANDERSON, 2020,
p. 29). Na genealogia que fazem da saúde planetária, Dunk e Ander-
son (2020, p. 31) correlacionam essa história mais recente com uma
trajetória mais longa, concernente “a uma longa tradição de saúde
ambiental, combinada com ecologia dos sistemas e pensamento
sistêmico radical de amplitude planetária”.20 Segundo eles, essa
genealogia diferencia a saúde planetária da saúde global. Embora
seja relacionada a esta em termos de similitudes, escala de análise
e afiliações compartilhadas, não é um mero suplemento dela, já que
aborda a perturbação dos ecossistemas muito mais do que as inci-
dências de doenças infecciosas (DUNK; ANDERSON, 2020, p. 31).
A saúde global delimitou-se a partir das doenças emergentes
nos anos 1990, quando ficaram evidentes os limites dos dispositivos
sanitários nacionais e internacionais para lidarem com elas. Por meio
de programas apoiados por agências filantrópicas e multilaterais,
destaca-se por ações focadas em doenças específicas, executadas por
meio de intervenções verticalizadas, idealizadas e dominadas por
192
experts, além de baseadas em tecnologias médicas (CUETO, 2015).
Esses traços levaram críticos a denunciarem o caráter colonialista
da saúde global. Nesse sentido, a saúde planetária também se afirma
como postura crítica em relação a tais aspectos colonialistas da saúde
global e como reação ao “lado sombrio” das narrativas do progresso
e do desenvolvimento, inclusive problematizando a persistência do
fetiche do crescimento econômico infindável. Também se coloca
criticamente perante os parâmetros economicistas implícitos nos
indicadores de saúde e no discurso do desenvolvimento sustentável.

20 “The origins of planetary health, as we have seen, can be traced rather


to a long tradition of environmental health, combined with systems eco-
logy and radical postwar planetary thinking – a genealogy separate from
that of global health, despite occasional family resemblances and conve-
nient affiliations.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Dunk e Anderson (2020, p. 31) indicam o potencial transformador


da saúde planetária caso haja disposição de incorporar as contribui-
ções do Sul Global, dos intelectuais indígenas e maior participação
feminina. Pode ser lida, portanto, como uma forma de integrar a
crítica decolonial ao campo da saúde, na medida em que promove
uma perspectiva multiespécies em que os domínios do humano
e do não-humano emergem como profundamente entrelaçados,
mais do que como categorias estanques e dicotômicas. Para Maria
Lugones (2019, p. 358), o discurso colonizador moderno funda-se a
partir da dicotomia humano e não-humano, que relega ao segundo
plano não só os animais, como também os povos “não-ocidentais”
enquadrados como “primitivos”. Na crítica feminista decolonial, o
estabelecimento do sistema capitalista, as classificações raciais e
as visões duais de gênero integram o mesmo dispositivo destinado
a formular, manter e legitimar a dominação masculina, colonial e
capitalista. O discurso colonizador desumaniza o outro na mesma
extensão em que separa o humano do não-humano. O “Homem”
emerge como abstração separada do mundo da natureza, substrato
193
ideológico no qual o capitalismo legitima “um modo extrativo de ver,
fazer e ser, dentro de um sistema global de raça” (GÓMEZ-BARRIS,
2019, s/p.).21 Inspirada em Sylvia Winter e Anibal Quijano, Maca-
rena Gómez-Barris (2019, s/p) preconiza: “O capitalismo racial e
extrativista coloca em alta conta a monocultura que em seu rastro
deixa comunidades humanas e não-humanas despossuídas”.22 Por
isso ela considera o Antropoceno uma nomenclatura inadequada,

21 “Producing distinction from his biodiverse environs, “Man” began to


see himself as separate from the natural world, facilitating an extractive
mode of seeing, doing and being within a global system of race.”
22 “Racial and extractive capitalism puts a high premium on monoculture
that leaves human and nonhuman communities de-resourced in its wake.
In all of these ways, the nomenclature of the Anthropocene is inadequate
and it reproduces the problem it names, both by universalizing its effects
and by hiding the history and ongoing consequences of colonialism.”
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

por reproduzir a lógica colonialista implícita na dinâmica que o


engendra, escamoteando-a pela universalização de seus efeitos.
Uma abordagem multiespécies que reconheça humanos,
animais e patógenos não como entidades autônomas, mas como
integrantes de uma rede interconectada de processos biossociais
possibilita neutralizar o tópos antropocêntrico que permeia a
“narrativa do surto” (SALM, 2020, s/p). Segundo Mel Salm (2020,
s/p), essa narrativa de emergência de doenças em consequência
de perturbações em ecossistemas provocadas por ações antrópicas
pressupõe a ideia de um equilíbrio ecológico. Além disso, implica
em uma visão dos humanos separados da natureza, sem levar em
conta que humanos e não-humanos se transformam mutuamente
por meio de processos que os enredam. Tal abordagem não resulta
em compreensões apropriadas da heterogeneidade, dinamismo e
complexidade das ecologias e das formas pelas quais os humanos
as integram em ecossistemas biossociais.
A saúde planetária amplia a envergadura da noção de ética e
interdependência, exigindo que concepções de afeto, cuidado, res-
194
ponsabilidade, justiça e reciprocidade não se restrinjam ao domínio
humano, mas abarquem toda a rede da vida. A covid-19 como “ques-
tão de caráter essencial da saúde planetária” (FRUMKIN; MYERS,
2020, p. 489)23 lembra-nos de forma cabal esse entrelaçamento
entre vírus, humanos e não-humanos. Para Hernán Borisonik (2020,
s/p), o “corona sin cabeza” “nos recorda que a materialidade da vida
não está garantida e depende do equilíbrio de uma série infindável
de processos que não se reduzem aos indivíduos [...]”.24

23 “In fact, Covid-19 is a quintessential planetary health problem.”


24 “Esta corona sin cabeza – pura corona protectora de un ARN poten-
cialmente mortal – nos recuerda que la materialidad de la vida no está
garantizada y que depende del equilibrio de una serie inabarcable de pro-
cesos que no se reducen a los individuos y de los que no podemos hacernos
cargo conscientemente, ni mucho menos virtualmente.”
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Como o demônio ontológico que desvela o domínio do não-


-humano e aquilo que extrapola os limites e domínio dos humanos,
o SARS-CoV-2 descortina o planeta. Ao fazê-lo, estabelece novas
formas de abordar a saúde que contemplem essa entidade cuja
história se entrelaça à história humana no novo regime geológi-
co do Antropoceno. Aciona o imaginário pandêmico que alude à
possibilidade de um fim sempre adiado, de uma humanidade que
projeta o fim não como extinção material, mas do domínio sobre os
não-humanos. Tal como o demônio de Thacker, o contato com esse
limite instaura o terror, “uma condição na qual o imaginário domina
a imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as
imagens que a experiência nela depositou, a limitação do imaginável.
A imaginação é a energia renovável e desprezada. Não a utopia, se
não recombinação dos possíveis” (BERARDI, 2020, s/p.).

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200
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Parte II
Epidemias e políticas da destruição
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Brasil necropolítico: segregação social, racismo


e eugenia ontem e hoje

Vanderlei Sebastião de Souza1


Rodrigo Mello Campos2

– Como [vivemos em uma ficção científica] ridícula?

– Lembra-se de quando líamos os livros de Clark, Asimov, Bra-


dbury, Vogt, Vonnegut, Wul, Miller, Wyndham, Heinlein? Eram
supercivilizações, tecnocracia, sistemas computadorizados,
relativo – ainda que monótono – bem-estar. E, aqui, o que há?
Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica.
Sempre fomos um país incoerente, paradoxal. Mas não pensei
que chegássemos a tanto. O que há em volta de São Paulo? Um
amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes, gente
esfomeada, doentes, molambentos que vão terminar invadindo
a cidade. Eles não se aguentam além das cercas limites. Não
há o que comer!

202
(BRANDÃO, 2012 [1981],
p. 88).

O livro Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão,


publicado em 1981, é uma ficção científica de um futuro de recursos
escassos e difíceis condições de vida. Nele, o Brasil entrega territórios
aos estrangeiros ocasionando massas de refugiados. Além disso, as
condições climáticas são muito perigosas, vive-se em forte autori-
tarismo e segregação social. Curiosamente, a obra de Brandão não

1 Doutor em História das Ciências e da Saúde e Professor do Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste –
Unicentro.
2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universida-
de Estadual do Centro-Oeste – Unicentro.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

foca em tecnologia de ponta, visto que a essência fica na comparação


do discurso oficial dos representantes governamentais e seus legi-
timadores, os militecnos. Estes impõem uma vontade de verdade
em contraste com a realidade vivida pela população sob os efeitos
da exploração imperialista e de eventos de forte impacto nos anos
1980, quando o país vivia o fim lento da ditadura. Ao mesmo tempo
se assistia ao abandono das pessoas dirigido pelo neoliberalismo,
que ganhara cada vez mais fôlego. Não se trata, portanto, somente
do colapso ambiental, mas de como as condições sociais dos países
com menor poder aquisitivo, aliadas a uma forte vigilância governa-
mental sobre a liberdade de expressão, tornam ainda mais precários
os meios para a sobrevivência.
Temática semelhante é exibida por Ignácio de Loyola Brandão
no romance Zero (1975) e, recentemente, na obra Desta terra nada
vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018). No que diz
respeito a este último livro, em palestra para a rádio USP, o romancista
afirma que sua maior inspiração são os eventos cotidianos que, para
ele, estão cada vez mais surreais, tanto que descreve ao longo do livro
203
várias manchetes de notícias que ainda estão na memória coletiva
recente, misturadas no desenrolar das páginas (BITTENCOURT,
9 out. 2018). O livro é uma distopia política que trata de um futuro
incerto e perigoso, um país governado por políticos autoritários, ines-
crupulosos e ineptos, no qual a política se tornou líquida e os partidos
perderam suas funções públicas e sua capacidade de governar. Nesse
mundo, os direitos humanos são extinguidos e as pessoas duramente
vigiadas, seguidas, fiscalizadas e torturadas; as escolas são fechadas e
a ciência negada em nome de ideias irracionais e violentas; as doenças
tornam-se epidêmicas e dissolvem os corpos, ao mesmo tempo em que
a eutanásia para idosos é legalizada e a morte de “velhos” desejada
como política de Estado (BRANDÃO, 2018).
Lendo os noticiários sobre o Brasil na pandemia de 2020,
temos a impressão de que a ficção de Brandão narra eventos atuais.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Como no enredo do livro, a vida humana em países como o Brasil


vale pouco, e a desigualdade social é desejada como uma marca que
estrutura e hierarquiza as relações. Paralelamente, as mais comezi-
nhas recomendações científicas e humanitárias são ignoradas por go-
vernantes e parcela considerável da sociedade. Há uma preocupação
gigantesca com a não interrupção do labor em prol de uma ordem
econômica quase sacralizada. Pouco importam os hospitais lotados,
a asfixia generalizada e as mortes causadas pela pandemia. Importa
mesmo é o trabalho, o mercado e a produção. Provavelmente essas
pessoas acreditam que a covid-19 não existe ou não é tão prejudi-
cial e que o país está predestinado a ser uma potência econômica
no futuro se todos trabalharem sem cessar, tendo em vista que os
laboriosos estão conseguindo exercer seu direito ao ofício para sua
“sobrevivência”, independente das circunstâncias a que estejam
submetidos. O descaso com as milhares de vítimas da pandemia, a
maioria constituída por idosos, pessoas com doenças preexistentes,
indígenas, negros e a população mais pobre das grandes periferias
brasileiras, também denota pouco apreço de setores da sociedade
204
com a tragédia dos mais vulneráveis e dos excluídos da história.
Diante desse cenário, fica-se com a sensação de que estamos
mergulhados numa das maiores crises da experiência coletiva bra-
sileira, da ausência de solidariedade humana e respeito à vida do
outro. Em tempos de pandemia, a tragédia dos vulneráveis sociais,
traduzida pela morte ou abandono de parte da população à própria
sorte, denuncia uma história cujo enredo é bastante conhecido. Nos-
so drama, nesse sentido, reveste-se menos dos efeitos da covid-19
do que das consequências históricas que subsistem no país desde a
trágica experiência colonial, cujos traços ganham cores ainda mais
fortes em governos comprometidos com as agendas neoliberais e
autoritárias. A persistência dessa lógica necropolítica, que, nos di-
zeres do filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe (2018),
submete uma parcela da sociedade a condições de vida que lhe
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

conferem o estatuto de “mortos-vivos”, não pode ser compreendida


fora da história em que o Brasil foi forjado.
Logicamente, a segregação social não é um fenômeno exclusi-
vo da terra brasilis. Como destaca o próprio Achille Mbembe (2018),
a política de morte e a violenta exclusão social e racial é um fenôme-
no que resulta da tradição colonialista, que submeteu os povos do
hemisfério sul aos interesses imperiais do norte, ao eurocentrismo.
Mais recentemente, nos tempos de globalização e de expansão do
capitalismo neoliberal, conforme podemos perceber com o sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, a exclusão social é um fenômeno mundial
e envolve todos aqueles que estão fora do mercado de produção e
consumo, formando uma legião de “refugos humanos” cujas vidas
são tratadas como lixo descartável (BAUMAN, 1998; 2005). Con-
forme explica Luis Carlos Friedman em diálogo com Bauman, esses
“refugos humanos” podem ser compreendidos como
[...] gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com
nada, apenas tiram o dinheiro do contribuinte para financiar
políticas sociais que não diminuem o incômodo de vê-los “po-
luindo” a visão da classe média e dos ricos. Esses “consumidores 205
falhos” não serão reabilitados para o mundo do trabalho porque
a sociedade não precisa deles. O refugo global está nas ruas das
cidades brasileiras, nas gangues de adolescentes que queimam
carros nos subúrbios de Paris, nos soldados das redes de distri-
buição de drogas na América, nos refugiados albaneses na Itália
ou nos massacres em Ruanda (FRIEDMAN, 1999, p. 217).
Na compreensão de Bauman, esses “refugos humanos” seriam
resultado direto da globalização e do neoliberalismo, tendo em vista
o interesse na intensa e rápida migração de recursos concomitante
a restrições à globalização dos direitos sociais. Em outras palavras,
a economia global capitalista implica, necessariamente, a formação
dessas massas incapazes de produzir e consumir, por se tratar de
um processo voltado para o acúmulo de capital (BAUMAN, 2005).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

O Brasil, desde sua formação como América portuguesa, estaria


dentro desse processo maior de segregação social e descaso com
a vida humana, conforme veremos a seguir. Com o capitalismo,
as desigualdades coloniais foram amplificadas sem precedentes,
sustentando e naturalizando a necropolítica como forma de gerir
a sociedade e a economia. Ao olhar para a história do Brasil, nosso
objetivo é compreender como as distintas formas de segregação,
o racismo e a tradição autoritária brasileira têm raízes profundas
que estruturam as relações e as desigualdades sociais ontem e hoje.
Ao mesmo tempo, procuramos compreender como a violência
produzida por essas raízes históricas são escamoteadas, ignoradas
e ressignificadas a partir de narrativas e mitologias nacionais que
inventam uma história homogênea e sempre harmoniosa, avessa aos
conflitos que marcaram/marcam a formação do Brasil.
O mundo colonial entre o passado e o presente
Por muito tempo o pensamento social brasileiro discutiu se o
Brasil colonial e imperial seria capitalista – mercantilista, nos mol-
206
des da Europa da época – ou uma espécie de feudalismo moderno.
Alguns teóricos argumentavam que a base era feudal por causa da
escravidão e da presença da sociedade aristocrática (de privilégios
concedidos aos nobres próximos da corte). A escravidão seria um
impeditivo para classificar a sociedade brasileira como capitalista,
uma vez que aos escravizados não eram possíveis salário e consumo.
Simultaneamente, argumentava-se que a existência de uma socieda-
de aristocrática seria outro fator de impedimento, na medida em que
prejudicaria a livre-concorrência e o fortalecimento dos mercados.
Prevaleceu o argumento mais evidente: a América Portuguesa
sempre foi um empreendimento integrado à lógica da modernidade,
típico do seu tempo, assim como a Europa ocidental. O Brasil colonial
nunca foi feudal. O historiador Alfredo Bosi (1988) há anos discutiu
que o liberalismo e a escravidão andavam juntos, seja no Brasil, seja
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

nos Estados Unidos. Por mais que ferisse direitos já tutelados pelas
sensibilidades do iluminismo, não impedia que sociedade e economia
fossem consideradas modernas porque complementavam a economia
europeia (BOSI, 1998). Essa visão pode parecer estranha na medida
em que, para a socióloga e historiadora Angela Alonso (2015), as
maiores correntes do movimento abolicionista no Brasil também se
julgavam liberais, no sentido político, e que os conservadores seriam
antiliberais tanto em termos políticos quanto econômicos.
De fato, no contexto de mudanças da Idade Média para a
Modernidade, há um processo de controle e normalização das pes-
soas com modificações na lógica de atuação dos Estados modernos.
Para o filósofo Michel Foucault (1999), antes da modernidade, os
governos não se preocupavam em gerir vidas, apenas em deixar viver
ou fazer morrer, conforme os interesses do poder soberano. Já na
modernidade o foco voltou-se para a criação de um biopoder capaz
de fazer viver, de regular a vida e o corpo, uma anátomo-política de
controle sobre a reprodução da espécie, a vitalidade racial, a natali-
dade, a saúde e a longevidade. Para Foucault, uma das bases dessa
207
biopolítica, que foi elemento indispensável ao desenvolvimento do
capitalismo, consistiu em tornar os corpos úteis, eficientes, disci-
plinados e adequados às normas produtivas. O consumo, por sua
vez, passou a funcionar como recompensa que gera um conforto
para esse corpo que se deixa disciplinar, docilizar ou normalizar
(FOUCAULT, 1999; 2012).
Contudo, parece que nas colônias esse investimento e mudan-
ça da gestão da vida nunca existiram porque a preocupação teria sido
exclusivamente o enriquecimento da metrópole, baseado no trabalho
escravo e na pura espoliação. O Estado adaptado às colônias é dife-
rente do Estado das metrópoles. Grosso modo, esse pensamento é
um dos princípios da necropolítica definida por Achille Mbembe para
compreender a ação do ocidente europeu sobre suas colônias. Aqui,
uma ex-colônia formal, a preocupação foi exercer o controle para
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

que as massas não prejudicassem o empreendimento mercantilista.


Se na metrópole vigorava a gestão da vida e de suas forças vitais,
na colônia a gestão era para controlar o inimigo interno, com ações
para imobilizá-lo, escravizá-lo e dominá-lo, ou simplesmente para
fazer morrer ou deixar viver.
Desde as navegações portuguesas, predominou a mentalidade
de que os europeus buscavam um novo mundo. Algo que, nos dize-
res de Marilena Chauí (2000a), já estava nas profecias lidas pelos
europeus católicos. Assim, para essa autora, o nosso mito fundador
é o do paraíso na terra via natureza, região em que se plantando tudo
dá, e de que as pessoas que aqui viviam eram ingênuas e pacíficas,
como os “bons selvagens”. Em certa medida, aderimos a esse ideal
estrangeiro, nos glorificamos dos nossos recursos naturais como se
isso significasse certeza de sucesso econômico ou mesmo social –
como esse país pode “fracassar”?
Além disso, diante da noção de que o poder é divino, os atos
são feitos de “cima para baixo”, cabendo à população pacificamente
obedecer. Cria-se, assim, uma sociedade resignada e submetida a
208
uma força onipotente. Os governantes governam porque Deus per-
mite, cabe à população submeter-se a essa autoridade. Para Chauí, a
história oficial do Brasil, por anos, foi contada no sentido de ser um
país sem guerras ou divisões, e cada ato violento era tratado como
revolta regional, motivada por conspirações ou fanatismo popular,
uma vez que todos os atos políticos narrados não viriam da sociedade
e suas lutas, “mas diretamente do Estado, sob decretos: capitanias
hereditárias, governos gerais, Independência, Abolição, República”
(CHAUÍ, 26 março 2000b).
Em recente obra Sobre o autoritarismo brasileiro, Lilia
Schwarcz (2019) faz uma longa análise da nossa tradição autoritá-
ria e destaca como a escravidão, racismo, mandonismo, corrupção,
desigualdade social, violência e, por fim, intolerância são raízes pro-
fundas que ligam o passado e o presente e formam o imaginário da
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

sociedade brasileira contemporânea. Sobre raça e racismo, a autora


pontua que, desde as primeiras narrativas oficiais sobre o Brasil, a
integração de indígenas e africanos na formação nacional sempre
foi caracterizada como harmônica, mas em posição de inferiorida-
de, naturalizando as estruturas autoritárias e as hierarquias sociais
estabelecidas. Não é por acaso que, posteriormente, o Brasil foi
vendido como um país sem segregação racial, sem racismo, a ponto
de a Unesco, no pós-Segunda Guerra, contratar pesquisadores para
confirmar essa tese.
Contudo, a tão propalada democracia racial acabaria denun-
ciada, como fez, por exemplo, o sociólogo Florestan Fernandes ao
apontar a desigualdade brasileira como resultado de um racismo
amplo e estrutural. Longe de sermos o país da democracia racial e
da harmonia social, o Éden tropical, Florestan mostrou que somos
o país da exclusão, da violência racial e dos ataques ao direito de
viver. Conforme veremos a seguir, a narrativa oficial sobre esse pa-
raíso tropical criou mitos, escondeu as desigualdades e naturalizou a
violência e o racismo, como podemos perceber tanto no pensamento
209
social e na literatura brasileira quanto no pensamento eugênico.
O Brasil entre mitologias raciais e a eugenia
Pelo menos desde meados do século XIX, a imagem idílica
sobre a harmonia racial brasileira foi construída a partir de uma lei-
tura mítica sobre a proximidade e a cordialidade entre o colonizador
português, os africanos e os indígenas. A própria invenção da nação
brasileira depois da independência, em 1822, foi forjada justamen-
te a partir dessas mitologias oficiais, narrativas que buscavam na
invenção do passado a construção futura de uma unidade nacional
harmoniosa e homogênea (GUIMARÃES, 1988). Essa qualidade de
narrativa já estava presente, por exemplo, no texto que o viajante e
naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius escreveu ao
concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

ro, em 1844, sobre como deveria ser escrita a história do Brasil. Na


compreensão de von Martius,
Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país
que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os ele-
mentos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem.
São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo
para a formação do homem convergido de um modo particular
três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca
Caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla
das relações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se
a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho
muito particular (MARTIUS, 1956 [1844], p. 441-442).
Essa narrativa sobre a integração das três raças não apenas
fundou uma interpretação oficial sobre o Brasil, amplamente pro-
movida pelo Império e pelas elites políticas e econômicas, como
influenciou gerações de intelectuais. Não à toa, essa imagem modelou
os retratos do Brasil produzidos por historiadores, literatos e pen-
sadores sociais até pelo menos meados do século XX. Essas leituras
210
do Brasil estavam presentes desde o romantismo e o indigenismo
do século XIX, passando pelo IHGB e a geração de 1870, até o mo-
vimento modernista e a sociologia de Gilberto Freyre.
Como efeito, essa narrativa fundou o mito da democracia
racial e, ao mesmo tempo, suavizou as explicações sobre a violência
que o colonialismo, o racismo e a escravidão representaram para
a formação das desigualdades brasileiras, ignorando a existência
do preconceito e da segregação racial. Não é por acaso que muitos
intelectuais saudavam o empreendimento colonial português como
responsável pela formação de uma moderna civilização nos trópicos,
haja vista a força que a mitologia encravou no pensamento brasileiro.
Entre esses escritores estão, por exemplo, o próprio Gilberto Freyre,
autor de Casa-Grande & Senzala, obra emblemática publicada em
1933 e que atribuía a ampla miscigenação racial brasileira à misci-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

bilidade do colonizador português. Embora a obra de Freire seja um


elogio ao Brasil mestiço, destacando a diversidade racial como um
elemento positivo e distintivo da identidade brasileira, seu traba-
lho não deixou de alimentar o mito da integração das três raças e o
protagonismo dos portugueses na formação do Brasil.
Ainda no início do século XX, mesmo entre os intelectuais
adeptos do racismo científico, o processo de mestiçagem era come-
morado, visto como um caminho para o branqueamento e europeiza-
ção do país. Teorias do branqueamento, alimentadas pelas ideologias
social-darwinistas e amplamente difundidas entre as elites brasilei-
ras, partiam do princípio de que a suposta superioridade do sangue
europeu iria predominar nos cruzamentos raciais, arianizando a
nação, conforme expressão utilizada por Oliveira Vianna, um dos
mais entusiastas divulgadores da ideologia do branqueamento. Essa
crença era também sustentada pelo aumento da imigração europeia
nas primeiras décadas do século XX, que paulatinamente deveria
substituir os mestiços brasileiros por europeus. Muitos autores
chegaram a profetizar que o Brasil expurgaria o sangue mestiço e se
211
tornaria uma nação branca em menos de um século. Previsão como
essa foi realizada, por exemplo, pelo antropólogo João Baptista de
Lacerda em trabalho apresentado em Londres, em 1911, durante o
Primeiro Congresso Universal de Raças (LACERDA, 1911).
A preocupação com a questão racial e a formação biológica da
nação foi tão emblemática na história do Brasil que a eugenia teve
ampla repercussão entre os brasileiros. Nascida na Europa ainda no
final do século XIX como resultado das teorias evolutivas, do racismo
científico e do imperialismo europeu, a eugenia emergiu no Brasil
no final dos anos 1910 como símbolo de modernidade e progresso
científico (STEPAN, 2005). Assim como ocorreu na Europa, nos
Estados Unidos ou mesmo em outros países do hemisfério sul, a
eugenia foi apropriada no Brasil como uma ferramenta que prome-
tia aperfeiçoar a “raça nacional”, tornar os corpos mais saudáveis
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

e eficientes e eliminar os elementos que supostamente ameaçavam


degenerar as futuras gerações. Pode-se dizer que a eugenia foi, por
excelência, uma ferramenta biopolítica, uma prática voltada para o
controle do corpo, a regulação da natalidade, da reprodução humana
e da vitalidade da espécie e das nações.
Embora os eugenistas brasileiros estivessem em sintonia com
as teorias europeias e os movimentos eugênicos internacionais, aqui
a eugenia foi adaptada às ideologias e tradições científicas particu-
lares do país. Inicialmente, as ideias eugênicas foram incorporadas
pelo movimento sanitarista, voltando-se especialmente para uma
agenda reformista que pensava a regeneração racial a partir da saúde
pública, da higiene e da educação. A própria Sociedade Eugênica de
São Paulo, fundada em 1918, foi constituída sobretudo por médicos,
intelectuais e autoridades públicas que militavam no campo da hi-
giene e do saneamento, como Belisário Penna, Arthur Neiva, Afrânio
Peixoto, Vital Brazil, Arnaldo Vieira de Carvalho e Monteiro Lobato,
para citar apenas alguns nomes mais emblemáticos. Como muitos
médicos e eugenistas brasileiros partilhavam dos pressupostos
212
evolutivos oriundos do chamado neolamarckismo, que postulava a
herança dos caracteres adquiridos, parte dos eugenistas acreditavam
que as reformas do ambiente, como o saneamento e a educação,
também deveriam ser vistas como medidas eugênicas eficientes
para aprimorar as futuras gerações (STEPAN, 2004; SOUZA, 2019).
De outro lado, a eugenia brasileira também incorporou o
racismo científico e aderiu às medidas de cunho mais radical, em-
pregando medidas eugênicas para selecionar as raças consideradas
“aptas” e “superiores” e segregar os “indesejáveis”, “inferiores” e
“degenerados”. Isso ocorreu especialmente a partir do final dos anos
1920 e incorporou discussões sobre seleção imigratória, esterilização
eugênica compulsória, controle matrimonial e da reprodução huma-
na. Um dos nomes representativos desse movimento mais radical
foi o eugenista Renato Kehl, incansável propagandista da eugenia
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

no Brasil e uma das principais lideranças do movimento eugênico.


Entre os anos 1920 e 1930, Kehl publicou mais de duas dezenas de
livros sobre eugenia, fundou sociedades eugênicas e foi editor do
Boletim de Eugenia, periódico criado para promover a eugenia entre
os brasileiros (SOUZA, 2019). Além de defender medidas mais duras
de controle da reprodução humana, como a esterilização eugênica,
Renato Kehl condenava a miscigenação racial como o grande pro-
blema nacional, identificando o mestiço como um “tipo instável,
inferior e degenerado” (KEHL, 1929; 1933).
O auge dessa eugenia mais radical ocorreu entre o final dos
anos 1920 e início da década de 1930, reflexo da expansão do racismo
científico e das ideologias autoritárias ligadas ao fascismo, sobretudo
do arianismo nazista. Aliás, entre os brasileiros, Renato Kehl não foi
o único a elogiar as medidas eugênicas impostas pela Alemanha de
Adolf Hitler já em 1933. Em inquérito produzido em 1934 pelo jornal
O Globo, sobre o lançamento das “Leis de Esterilização Eugênica”
do governo nazista, a maioria dos eugenistas consultados, entre
eles Renato Kehl, Leonídio Ribeiro e Pacheco e Silva, elogiavam a
213
iniciativa do governo alemão e demonstraram-se entusiasmados
com a possibilidade de aplicação dessas medidas também no Brasil
(WEGNER & SOUZA, 2013; SOUZA, 2017).
Ainda nos anos 1930, quando parte dos intelectuais celebrava
a ideologia de um Brasil mestiço, estimulada, por exemplo, pela
publicação de Casa-Grande & Senzala, esse radicalismo eugênico
se fortalecia com as discussões sobre seleção imigratória, conforme
debate promovido pela Assembleia Constituinte de 1933-34, durante
o governo de Getúlio Vargas. As medidas de seleção imigratória
eram uma demanda antiga dos eugenistas em diferentes lugares do
mundo, sobretudo em países como os Estados Unidos, Argentina
e Brasil. Entre os brasileiros, esse debate ganhou força a partir do
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, quan-
do o tema da seleção eugênica dos imigrantes ocupou um espaço
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

privilegiado. Embora o tema dividisse opiniões, a pauta eugênica


foi incorporada na constituição de 1934, impondo medidas rígidas
de seleção imigratória. Na prática, a constituição contemplava a
imigração de europeus e vetava ou limitava a entrada de imigrantes
que não fossem de origem europeia (SOUZA, 2017).
Depois da Segunda Guerra Mundial, a eugenia foi duramente
condenada e diretamente associada aos horrores nazistas. Estimu-
lado pelos estudos promovidos pela Unesco, organização criada em
1945 para promover a paz e a integração mundial, o próprio debate
sobre raça passou por uma ampla revisão, tanto no campo das ci-
ências sociais quanto da medicina e da genética, o que permitiu um
esforço de reflexão sobre as mazelas do racismo (REARDON, 2005).
Apesar disso, nem a eugenia nem o racismo desapareceram do cená-
rio internacional. No caso do Brasil, embora o movimento eugênico
tenha deixado de existir e o racismo científico tenha arrefecido, os
princípios eugênicos não cessaram de estruturar as relações raciais
e produzir estereótipos, desigualdades e exclusões.
O fardo da história e a persistência do racismo em
214
tempos de pandemia
Nessa sociedade marcada pela desigualdade e pelo passado es-
cravocrata, o controle sobre os corpos, a vida e a morte dos cidadãos
não pode ser visto, portanto, fora do processo de racialização das
diferenças. O resultado é a construção de uma sociedade estruturada
sobre a segregação, as distinções e os privilégios. Não é à toa que as
políticas de morte – de ontem e de hoje – são dirigidas exatamente
contra as populações pobres e negras das periferias brasileiras, assim
como contra os povos indígenas, atacados em seus direitos funda-
mentais e encarados como inimigos do desenvolvimento nacional.
Aliás, os genocídios históricos cometidos no Brasil contra essas po-
pulações não são episódios comuns apenas nos capítulos do Brasil
colonial e escravocrata. Ao contrário, são eventos contemporâneos
cotidianos, corporificados tanto em racismos estruturais, em dife-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

rentes formas de eugenia, em chacinas policiais, na militarização da


força e em ataques aos direitos humanos, quanto na exploração do
capitalismo neoliberal, em duros ajustes fiscais e no descaso com a
pobreza e a exclusão.
É possível focar nos diversos elementos que envolvem o ra-
cismo no Brasil – sejam os que dizem respeito às desigualdades no
mercado de trabalho e na renda, no acesso à educação, moradia,
saneamento e saúde pública; sejam os relativos à dificuldade de
acesso aos cargos públicos e à representação política. A violência
produzida por essa desigualdade é ainda mais marcante quando
analisados os dados da segurança pública e o tratamento policial
contra a população negra. A partir do levantamento realizado pela
Rede de Observatórios da Segurança, Silvia Ramos e colaboradores
(2020) destacam que a violência policial contra negros funciona de
maneira sistêmica, desde o número e a forma de abordagens – de
modo que essa população vive em estado semelhante ao de sítio – até
o tratamento conferido posteriormente. Mesmo assim, em sentido
contrário, o modo como o Estado lida com os agentes policiais, que
215
comprovadamente cometeram assassinatos, é o de justificar essas
ações como casos isolados.
Além da violência policial, os homicídios em geral também
recaem mais sobre esse perfil de vítima. De acordo com o relatório
analisado por Silvia Ramos e colaboradores:
Embora as secretarias de Segurança Pública nem sempre tragam
a informação sobre raça das vítimas de forma discriminada em
suas estatísticas, o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou
Raça no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), aponta que negros têm 2,7 mais chances de serem víti-
mas de um homicídio do que os brancos. Em dez anos (de 2007
a 2017), a taxa de letalidade das pessoas negras aumentou 33%.
A pesquisa tomou como base o Sistema de Informações sobre
Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. O Atlas da Violência
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

de 2019, por sua vez, revela que 75,5% das vítimas de assassinato
eram indivíduos negros. Como se pode perceber, a violência letal
não ocorre de forma aleatória, mas atinge alvos específicos, os
quais não se alteram, ainda que haja flutuações nos índices de
letalidade (RAMOS et al., 2020, p. 32).
Outro dado interessante sobre os homicídios (lembrar que o
perfil de vítima mais comum é de pessoas negras e menos favorecidas
economicamente) é que “no Brasil a situação se agravou com as medi-
das adotadas para impedir o avanço do novo coronavírus”, diferente do
que ocorreu em alguns países latino-americanos, “onde os indicadores
decresceram com o isolamento social”. Sobre a violência letal, Ramos
e colaboradores (2020) destacam o caso do Estado do Ceará, porque
os números de homicídios na pandemia dobraram se comparados com
os mesmos meses de 2019, sendo que já vinham em curva ascendente
graças a motim da Polícia Militar ocorrido meses antes.
A necropolítica brasileira também tem sido caracterizada por
um forte genocídio dos povos indígenas, que historicamente vêm
sofrendo distintas formas de violências e ataques aos seus direitos
216 básicos, mas que resistem de diversas maneiras, lutando cotidia-
namente contra invasões em suas reservas demarcadas. Durante
a pandemia da covid-19 a situação tem se agravado ainda mais,
conforme a imprensa nacional e internacional tem denunciado:
A invasão de terras indígenas não é um problema que começou
na pandemia. Invasores, muitas vezes motivados por negócios
ilegais de grilagem, mineração e do setor madeireiro, se insta-
lam há décadas em áreas de terra indígena. Ali criam conflitos e
degradam o meio ambiente, impunes por causa da ausência de
fiscalização em muitos territórios.

A diferença é que, agora, a invasão a terras protegidas virou um


problema não só social, mas de saúde. [...]

As invasões a terras indígenas estão aumentando a cada ano e


bateram recorde em 2019. Uma análise parcial do Cimi (Conselho
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Indigenista Missionário), organização que registra esses casos


desde 2009, apontou 160 ocorrências de invasões e exploração
ilegal de terras indígenas entre janeiro e setembro de 2019. Ao
todo, 153 áreas foram atingidas em 19 estados. A alta foi de 40%
em relação ao ano de 2018, quando houve 109 casos do tipo em
12 meses. (VICK, 18 abril 2020)
Vivemos um momento de recrudescimento dos ataques aos
direitos indígenas, ao passo que os argumentos para esse vilipen-
diamento apoiam-se, em boa medida, na função econômica da terra,
sob a justificativa de que os indígenas supostamente “não adminis-
trariam” seus territórios nem sobre ele produziriam. Mais uma vez a
realidade lembra a distopia de Ignácio de Loyola Brandão da década
de 1980, saltando aos olhos essa estrutura do capitalismo e de um ra-
cismo estrutural que segrega, agride e faz morrer permanentemente.
A própria omissão do governo federal no enfrentamento
da pandemia da covid-19 tem sido denunciada por especialistas
como um verdadeiro genocídio humano (CHADE, 26 julho 2020).
A inépcia do governo, o desrespeito às recomendações da OMS
e o desmonte do pacto federativo que sustentava o SUS têm sido 217
internacionalmente denunciados como responsáveis pela extensão
da pandemia no país. De acordo com o Relatório Mundial produ-
zido pela ONG internacional Human Rights Watch, a atuação do
governo Bolsonaro não apenas foi desastrosa no enfrentamento da
pandemia como disseminou informações equivocadas e teria atuado
para sabotar os esforços dos estados para tomar medidas contra a
covid-19 (PORTAL G1, 13 jan. 2021).
De acordo com especialistas, além de idosos e portadores de
comorbidades, as principais vítimas desse descaso do governo com
a pandemia seriam justamente os povos indígenas e a população
negra das periferias brasileiras. A atitude do governo brasileiro tem
inclusive estimulado debates a respeito da existência de um suposto
projeto eugênico que estaria em curso nas práticas e discursos de
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

autoridades públicas, entre elas o próprio presidente Jair Bolsonaro.


Essa denúncia foi feita, por exemplo, pelo médico Arnaldo Lichtens-
tein durante entrevista ao jornal da TV Cultura, quando definiu a
forma de atuar defendida pelo próprio chefe do executivo como uma
deliberada política eugênica. Lichtenstein referia-se especialmente
à defesa que o governo vinha fazendo da imunidade de rebanho,
segundo a qual a morte dos mais vulneráveis era necessária como
forma de imunização coletiva e de proteção aos mais fortes (FRA-
GÃO, 12 maio 2020).
Nesse contexto, o descaso com a população mais vulnerável
também pode ser compreendido como um disfarçado darwinismo
social, que estaria, em tempos de governos neoliberais, de fascismo
galopante e pouco apreço humanitário, subjacente à atenção dada à
sobrevivência do mercado e aos interesses do capital em detrimento
da vida da população. Obviamente que não se trata de um deliberado
projeto eugênico, nem mesmo de ideias eugênicas articuladas de
acordo com os princípios conhecidos no início do século XX, confor-
me denuncia Lichtenstein ao comparar a inépcia governamental à
218
eugenia nazista (FRAGÃO, 12 maio 2020). Como sabemos, a eugenia
e o darwinismo social são conceitos que possuem uma historicidade
própria, resultado de um contexto histórico muito particular. De
qualquer forma, é importante perceber como o racismo estrutural e
os pressupostos eugênicos ainda permanecem difusos na sociedade
brasileira, informando autoridades públicas e governos reacionários
sobre o modo como lidam com a população negra, os povos indígenas
e os que vivem em condições de vulnerabilidade social.
O filósofo Silvio Almeida (2018) amplia a discussão sobre o
racismo estrutural colocando-o, em diálogo com Foucault e Mbembe,
como elemento que permitiu a mudança da gestão da vida nas socie-
dades modernas (saneamento básico, educação, saúde e segurança
públicas, transporte e abastecimento) para a gestão da morte dos
que seriam considerados indignos desses direitos, o que envolve a
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

morte física, a exposição aos riscos de morte, a morte política, bem


como processos de expulsão e rejeição. De acordo com Almeida,
as políticas neoliberais de “austeridade e encurtamento das redes
de proteção social mergulham o mundo no permanente pesadelo
do desamparo e da desesperança” (ALMEIDA, 2018, p. 76). Nesse
contexto, continua o autor, “resta ao Estado, como balizador das
relações de conflito, adaptar-se a esta lógica em que a continuidade
das normas essenciais da vida socioeconômica depende da morte e
do encarceramento. Sob as condições objetivas e subjetivas proje-
tadas no horizonte neoliberal, o estado de exceção torna-se a forma
política vigente” (ALMEIDA, 2018, p. 76).
A instituição da escravidão moderna deixou feridas expostas
que o capitalismo não deixa cicatrizar porque as usou como pilar.
Almeida entende que o racismo estrutural não é tão somente uma
herança mental do período escravista, mas algo intrínseco à estrutura
do capitalismo (como as fronteiras) e que permite a acumulação para
alguns. Nesse sentido, o sociólogo Jessé Souza (2009, p. 20) entende
que os brasileiros construíram um país ancorado em privilégios de
219
cor e classe, mas que na atual fase a própria exposição dessas con-
dições cruéis são silenciadas, pois ofenderia a ideologia do mérito.
Essa ideologia leva a população a enxergar a falta de acesso a serviços
públicos básicos, e também direitos humanos, como culpa individual.
Para Souza, a cegueira coletiva é tão grande que a solução mais co-
mum cogitada no senso comum para a resolução de nossas mazelas
seria a escola, tão somente, como se a educação sozinha fosse capaz
de resolver as condições materiais de vida. A lógica é que os merece-
dores podem ter mais oportunidades porque batalharam para isso,
enquanto as massas, “não merecedoras”, porque sem méritos, podem
perecer. Por incrível que pareça, Ignácio de Loyola Brandão pouco
discrimina cor/raça da grande maioria dos personagens excluídos do
sistema naquela distopia dos anos 1980, mas, com base na História e
Sociologia, podemos deduzir a existência de diferenças dessa natureza.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Note-se que as condições sociais brasileiras se agravam em


situação de pandemia e podem se acentuar ainda mais com o colapso
ambiental. Esses problemas reforçam a estrutura autoritária do Estado
brasileiro e das elites em relação ao trato com a população, que tende
a não participar da política formal por se ocupar da sobrevivência
imediata e de sua defesa contra as variadas formas de necropolíticas.
O próprio movimento abolicionista, que seria nosso primeiro movi-
mento social a englobar grandes massas, possui características elitistas
que não reconhecem o escravizado como agente da sua libertação,
que seria uma dádiva dos letrados que militavam formalmente. Aliás,
ao longo da história brasileira, as elites nacionais não apenas viam o
povo como incapaz ou bestializado, conforme lembra José Murilo de
Carvalho (2011), mas também como seres incivilizados, vagabundos,
feios, criminosos e responsáveis pelas mazelas do país.
Embora Achille Mbembe não tenha estudado os detalhes da
estrutura social brasileira, não resta dúvida de que suas referências
às estruturas coloniais necropolíticas ajudam-nos a compreender o
peso da desigualdade social e da persistência da segregação racial
220
na história do Brasil. Isso explica, em grande medida, a falta de
empatia, de solidariedade e sensibilidade de parcela da sociedade
brasileira diante da tragédia que a pandemia da covid-19 nos im-
põe. É como se as enormes fronteiras sociais, raciais e econômicas
historicamente existentes no país impedissem o mínimo de coesão
social e de capacidade humana para compreender a tragédia coleti-
va em que estamos envolvidos. De outro lado, a recente conciliação
entre autoritarismo e neoliberalismo no Brasil tem estimulado
esse complexo e violento apartheid brasileiro, esse fardo históri-
co responsável pela institucionalização da indiferença social, da
segregação e da necropolítica governamental.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

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(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Um “arquivo febril”: itinerário para as tramas


entre literatura e epidemia
Marcelo dos Santos1

A literatura é, pois, arquivo de esquecimentos.

Joel Rufino dos Santos2

Com todo o respeito às vítimas de covid-19 e a seus familiares.

Em 16 de março de 2020, foram decretadas medidas go-


vernamentais a fim de manter, no Estado do Rio de Janeiro, o
distanciamento social como impedimento para a propagação do
coronavírus causador da doença covid-19. No decreto estadual de
n. 46.973,3 a restrição considerava, nos seus artigos 4 e 5, a circula-
ção da população, e dava atenção especial aos espaços destinados à
224 população carcerária:
Art. 4º – De forma excepcional, com o único objetivo de res-
guardar o interesse da coletividade na prevenção do contágio e
no combate da propagação do coronavírus, (COVID-19), deter-
mino a suspensão, pelo prazo de 15 (quinze) dias, das seguintes
atividades:

1 Professor adjunto de literatura brasileira, ensino e teoria da literatura na


Escola de Letras da UNIRIO.
2 SANTOS, Joel Rufino dos Santos. Épuras do social. São Paulo: Global,
2004. p. 36.
3 O decreto pode ser conferido na íntegra em: <https://pge.rj.gov.br/co-
mum/code/MostrarArquivo.php?C=MTAyMTk%2C>. Acesso em: 20 set.
2020. Esse decreto foi precedido de outros dois, publicados nos dias 12 e
13 de março, que implantavam, respectivamente, o gabinete de crise do
governo do estado e as primeiras medidas temporárias de prevenção ao
contágio pelo coronavírus.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

III – visitação às unidades prisionais, inclusive aquelas de na-


tureza íntima;

IV – transporte de detentos para realização de audiências de


qualquer natureza, em cada caso, o Secretário de Estado de
Administração Penitenciária deverá apresentar justificativa ao
órgão jurisdicional competente;

[...]

VIII – circulação de linha interestadual de ônibus com origem


em estado com circulação do vírus confirmada ou situação de
emergência decretada.
Destaco a circulação e a menção ao espaço prisional como
índices de uma nova espacialização que a pandemia e o decreto im-
puseram à população mais vulnerabilizada: a suspensão das visitas
às unidades prisionais significa a suspensão da sociabilidade dos
custodiados, o que agrava as condições já complexas do sistema car-
cerário, sobretudo no Rio de Janeiro. Em outra instância, a restrição
às linhas interestaduais afetou o fluxo de trabalhadores e demais
usuários que residem na Baixada Fluminense e outras cercanias da 225
cidade do Rio de Janeiro, e que se utilizam da capital do estado ou
do centro da cidade para suas atividades socioeconômicas, utiliza-
ção marcada pela já problemática relação entre moradia e locais de
trabalho e estudo.
Sem poder analisar a eficácia das medidas do decreto, fina-
lidade que transcende os limites da proposta deste texto, recortei
as duas medidas a fim de evidenciar como a pandemia e a posição
oficial do governo causam impacto nos espaços da cidade em que se
encontra a população mais vulnerável às condições econômicas do
nosso tempo. Após o decreto, muitas reportagens4 foram veiculadas,
4 Dentre elas, remeto o leitor para: “Presídios do RJ têm 48 mortes duran-
te quarentena, aponta Defensoria”, O Dia, 20 maio 2020, disponível em:
<https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2020/05/5919964-presidios-do-
-rj-tem-48-mortes-durante-quarentena--aponta-defensoria.html>, aces-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

assinalando os isolamentos para além do isolamento que a quarente-


na já impunha: a falta de assistência médica nas unidades prisionais,
causando um aumento da precariedade da população custodiada
pelo Estado, precariedade estendida à população que reside longe do
centro do Rio de Janeiro, nas favelas, morros e comunidades, que,
em variados graus, já sofre com a ausência de políticas públicas em
diversas esferas. Nesses espaços, a crise sanitária representou, du-
rante a pandemia, uma face mais visível – porque relacionada a uma
circunstância – das diversas crises provocadas pela espacialização
da cidade e a relação dela com a governança do Estado.
O recorte acima serve para estabelecer como ponto de partida
a relação entre uma ideia de espaço urbano diante da epidemia,
implícita nas medidas oficiais de isolamento, e a espacialização efeti-
vamente experimentada por seus moradores, especialmente os mais
pobres, relação tensa que repercute, na trágica situação pandêmica,
uma divisão geográfica performada pelo legado colonial, pelo avanço
do capitalismo e pela divisão do trabalho na contemporaneidade.
Embora eu não tenha, no escopo deste capítulo, o objetivo de analisar
226
as situações geradas por essa relação, utilizo-me dela como vetor para
compreender como a cultura e a arte, destacadamente a literatura,
mostram uma dimensão discursiva e sensível do momento epidê-
mico. Faço isso retornando a um outro episódio que pode servir de
referência para nossa atualidade: a epidemia de Gripe Espanhola

so: 14 set. 2020; “Sem circulação de ônibus intermunicipais e restrições


nos outros transportes, moradores da Baixada falam sobre as medidas”,
O Globo, 20 mar. 2020, disponível em: <https://oglobo.globo.com/so-
ciedade/coronavirus-servico/sem-circulacao-de-onibus-intermunicipais-
-restricoes-nos-outros-transportes-moradores-da-baixada-falam-sobre-
-as-medidas-24318677>, acesso: 14 set. 2020; “Sem ações específicas,
86% dos moradores de favelas vão passar fome por causa do coronavírus”,
El País, 28 mar. 2020, disponível em: <https://brasil.elpais.com/socie-
dade/2020-03-28/sem-acoes-especificas-86-dos-moradores-de-favelas-
-vao-passar-fome-por-causa-do-coronavirus.html>, acesso: 14 set. 2020.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

que assolou a cidade do Rio de Janeiro a partir de 1918. Deixarei,


adiante, a proposta de trabalho mais evidente, mas já anuncio que
interessará a este esforço uma possibilidade de perceber, no sensível
propagado pela escrita jornalística e literária do início do século XX,
um olhar para além do factual: esses discursos podem apresentar
uma visão lateral, e por vezes crítica, de uma modernidade ainda por
se cumprir. Essa visão se tornaria mais explícita, talvez, se fizéssemos
o movimento de ir em busca de uma coleção de outras maneiras de
olhar a cidade na epidemia, conforme proponho a partir de um tra-
balho de arquivo em processo, ao qual denominei “arquivo febril”.
Para traçar o que entendo como o sensível da escrita,
conforme mencionei acima, devo aludir ao conceito de Jacques
Rancière. O sensível, para o filósofo francês, constitui-se no pro-
cesso (social e histórico) de fazer parte do que se define como
artístico, nas maneiras de fazer e no que se representa na arte, o
que podemos, segundo o autor, compreender como partilha. Do
realismo oitocentista em diante, contudo, o filósofo localiza um
novo regime em que a partilha do sensível se dá: o regime esté-
227
tico. Neste, o lugar singular que a arte ocupa acaba por implodir
a própria especificidade do literário. O escritor exemplar desse
novo regime seria Gustave Flaubert, que professa a dignidade de
todos os temas, tornando-os visíveis na literatura. Participar do
sensível, da ficção, e por extensão da escrita do sensível, é partici-
par do visível. Consequentemente, fazer parte do sensível, tomar
seu lugar na partilha, é garantir o lugar da visibilidade na política
como dimensão do real, uma vez que, segundo o filósofo, no regime
estético, “[o]s enunciados políticos ou literários fazem efeito no
real” (RANCIÈRE, 2005, p. 59). É possível, portanto, sugerir que
ser narrável significa ser visível e audível, ou seja, o campo da arte é
um campo de ressonância política em que se devem dar as lutas por
representação, representatividade, autoridade e efetividade da voz.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Apresento, a partir de agora, os limiares da proposta da


montagem do que chamarei de “arquivo febril”, limiares teóricos
e de investigação que dizem um pouco da minha perspectiva de
pesquisa, dos meus interesses de ação intelectual como professor
de literatura, e das repercussões do tema deste capítulo para a lite-
ratura feita no Brasil, em especial aquela dos anos 1930 em diante.
Como primeiro limiar, a perspectiva dos arquivos literários,
esclareço que tenho estudado tais arquivos, entendendo que estes
guardam uma relação ambivalente e flexível diante da função e da
materialidade dos arquivos histórico-documentais. Os arquivos
literários pessoais, para além do registro pessoal, dizem respeito
a uma poética dos escritores e dialogam com as criações (obras,
textos), ao mesmo tempo em que já guardam materializações da
criação, que, por diversos motivos, nem sempre ganham publici-
dade. Dentre os diversos gêneros textuais em que se manifestam
os bastidores de uma obra e o registro de uma vida literária, a cor-
respondência de escritores é um campo importante para perceber
a intersecção dessas duas instâncias. Especificamente, me detenho
228
na correspondência de escritores da Primeira República e percebo
nela um exercício do olhar cosmopolita, moderno, no sentido que
esse termo pode ter naquele momento, e da mundaneidade, um
sentimento de estar no mundo em sua projeção moderna. O primeiro
autor que pesquisei, dentro dessa perspectiva, foi o escritor mara-
nhense Aluísio Azevedo. Uma das suas primeiras cartas ao amigo
Graça Aranha tensiona a saída do escritor para o mundo (o posto di-
plomático em Vigo, na Espanha) e a entrada na Europa pelo lazareto,
a fim de se livrar das doenças provavelmente adquiridas na viagem:
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Lazareto de Lisboa, 28 de fevereiro de 1896

Aranha

Acho-me há cinco dias no lazareto, cumprindo uma quarentena


de sete, porque a bordo do Chili morreram quatro passageiros e
seguiram para Bordeaux mais três atacados de febres do Brasil.
A viagem que até Dakar me parecia tão bem, foi dai em diante
perturbada por múltiplas contrariedades. De dous em dous dias
atirava-se um cadáver ao mar, e dous dias antes de chegar a
Lisboa encontramos tamanho temporal, que durante 26 horas
o navio esteve lavado pelas ondas, a tremer lutando contra o
pampeiro e a jogar como uma garrafa. Felizmente nem assim
enjoei, nem perdi o apetite como aconteceu com a maior parte
dos passageiros. Alem dos doentes de febre, havia outros a bor-
do e a enfermaria não chegava para todos. Um pobre cardíaco
e tuberculoso teve um ataque de delírio, quiz atirar-se ao mar
e foi amarrado no beliche. Morreu o enfermeiro, e dizem que
foi por excesso de trabalho. Na véspera da chegada, depois da 229
famosa borrasca, uma senhora teve um aborto e esteve em risco
de morte. Essa pobre senhora vinha inteiramente só na viagem.
As companheiras de bordo fizeram-na descer em padiola ao
lazareto, e aqui está entre nós quasi restabelecida já. Não me
convinha seguir para Bordeaux, porque aí o Chili teria igualmente
quarentena, ainda em peiores condições, sem contar com o fato
de ter de atravessar a baía de Biscaia, que devia estar perigosa
com os ventos terríveis que nos contrariaram a viagem desde a
saída do Rio.5

5 A transcrição foi feita com base na transcrição presente no arquivo, ao


que tudo indica realizada por Plínio Doyle. A carta encontra-se depositada
no Arquivo de Graça Aranha, pertencente ao Arquivo-Museu de Literatura
Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

A citação grande da carta serve para percebermos como o es-


critor se expressa diante das condições de viagem no final do século
XIX e do flagrante contexto de doenças e tratamentos que marcam
a viagem ao exterior. Além disso, estão aqui também registradas
as condições de partida, no Rio, cidade em que as epidemias das
“febres” se manifestam.
O segundo limiar tem a ver com as narrativas da experiência
da morte presentes nos escritores que crescem entre os anos 1910-
1930, marcados pela epidemia de Gripe Espanhola que atingiu o
Brasil, especialmente no Distrito Federal do começo da nossa Repú-
blica. Os textos que agora voltaram a ser comentados: as memórias
de Nelson Rodrigues do livro A menina sem estrela,6 o depoimento
melancólico de Nelson Cavaquinho (NELSON CAVAQUINHO, 1969)
no documentário de Leon Hirszman, que sugere a relação entre a
melancolia dos sambas do compositor e a memória do amontoado
de corpos mortos vitimado pela doença – e podemos supor que esses
corpos eram negros –, a rememoração de Pedro Nava no volume
Chão de Ferro.7 Tais manifestações são a outra baliza para pensar, de
230
um lado, a experiência da morte e sua gestão realizada por políticas
públicas, o que é marcante na modernidade no Brasil – já não pode

6 “Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa.


E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a mor-
rer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a
cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou,
nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos”
(RODRIGUES, 1993, p. 51).
7 “Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noti-
ciavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário.
As funerárias não davam vazão – havia falta de caixões. Até de madeira
para fabricá-los, ao ponto dum carpinteiro do subúrbio atender encomen-
das fazendo os envelopes com tábuas do teto e do soalho de sua casa. Alças
de corda. Ganhou fortuna. Quanto ataúde havia, não tinha quem os trans-
portasse e eles iam para o cemitério a mão, de burro-sem-rabo, arrastados,
ou atravessados nos táxis” (NAVA, 2001, p. 211).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

ser mais surpreendente associarmos modernidade à necropolítica


(MBEMBE, 2018) –, e, de outro, a visibilidade que a arte pode criar
a partir dos processos de necropolitização do social: banimento das
populações pobres da sociabilidade urbana, encarceramento, mortes
físicas, genocídios e também epistemicídios, como a eliminação e
a delimitação de espaços de sociabilidade, de trocas culturais que
minariam a linha que separa corpos e saberes.
Na necropolítica, ocorre também a eliminação da porosidade
social pela higienização social – sua contrapartida médica pode ser
mesmo uma face desse desejo da necropolítica. Uma outra face de tal
política é a generalização da “limpeza” do corpo: pomadas, xaropes,
loções, unguentos anunciados ostensivamente nos periódicos e na
cidade para higiene dos corpos brancos, o que simboliza a associação
entre saúde e branquitude. Quero com isso sugerir que alguns textos
e escritores deixam ver uma preocupação que se aproxima daquela
do filósofo camaronês Achille Mbembe no ensaio “Necropolítica”:
“Minha preocupação é com aquelas formas de soberania cujo pro-
jeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização
231
generalizada da existência humana e a destruição material de corpos
humanos e populações’” (2018, p. 10-11).
A literatura, desse modo, não se reduz aqui a um reflexo dos
fatos, já que pode nos provocar chamando atenção para os processos
de destruição pelas vias da captura e da produção de instâncias do
sensível que prenunciam e repercutem a necropolítica, a epidemia e
a pandemia antes da tragédia ou em suas consequências nem sempre
visíveis. Eis alguns exemplos: as contradições de uma sociedade
forjada pelo colonialismo e pela escravidão estão pairando nas sen-
sibilidades das narrativas de José do Patrocínio – a criminalização, a
criação de espaços de exceção não deveriam ser lidas como situações
pitorescas nesse escritor –; nos textos de Lima Barreto, a circulação
de tipos no subúrbio carioca de um romance como Clara dos Anjos
(1948) não pode ser descolada da circunscrição dessa sociabilidade
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

a um espaço periférico urbano; e no diário de Carolina Maria de


Jesus, Quarto de despejo (1960), vemos uma arquivista-catadora
dos fragmentos da história das necropolíticas. Poderia estender os
exemplos, mas fico nesses que têm, contemporaneamente, ganhado
cada vez mais espaço nos debates culturais.
A partir desses limiares, montei um arquivo, a que dei o nome
de “arquivo febril”, em parte por associação a um sintoma, um dos
primeiros da Gripe Espanhola, mas também das febres bastante
comuns na cidade do Rio de Janeiro, e em parte por aproximação à
tradução para o inglês do livro do filósofo Jacques Derrida (2001),
Mal de arquivo, “Archive Fever”, livro fundamental para entender
aberturas e fechamentos da produção e política dos arquivos. Esse
arquivo pessoal em construção, aberto e circunstancial, ainda sem
materialidade publicável, acumula textos de alguns periódicos do Rio
de Janeiro, de setembro de 1918 a fevereiro de 1919, no ápice da Gripe
Espanhola e antes da catarse do carnaval de 1919. Fui selecionando,
a partir das palavras-chave “pobre”, “pobreza”, “crime”, “detenção” e
a mais geral “grippe”, na Hemeroteca digital da BN, textos literários
232
e informativos – e naquele período a escrita dos escritores está em-
penhada na informação, na experiência de escrever para periódicos
ancorada na comunicabilidade do texto para os leitores.
Interessou-me nesse contexto, que respira as reformas da cida-
de e sua nova espacialização, a necropolítica em processo. A “grippe”
segue o pontilhado de um desenho já aniquilador por excelência. Tal-
vez como hoje, a epidemia ali vai desempenhar um papel gestado na
política de uma necromodernidade: atinge a favela, a periferia, o asilo,
a prisão, aprofundando a precariedade. Como arquivo em construção,
não pude ainda dar conta de um maior número de textos que falam
diretamente dos espaços de pobreza, e convido o leitor a ampliá-lo
para tornar mais completa e complexa a discussão que sugiro.
A fim de forjar um pensamento que direciona a montagem
do arquivo, são fundamentais alguns estudos que voltam a ser lidos
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

menos para entender causas para o que enfrentamos agora, e mais


para descortinar processos de marginalização, políticas da morte e
da vida e suas consequências, que a pandemia de coronavírus, em
2020, tornou novamente mais explícitos.
Uma importante referência para lermos o arquivo é o tra-
balho do historiador Nicolau Sevcenko (1989), Literatura como
missão, publicado originalmente em 1983. Para o meu propósito,
a obra de Sevcenko delineia o campo de atuação dos intelectuais
– especificamente os de Euclides da Cunha e Lima Barreto, aos
quais Sevcenko dedica sua análise – movidos pela dupla vontade
de uma cultura moderna urbana (e europeizada) e de uma atenção
à realidade pós-República: “O dilema entre o impulso de colaborar
para a composição de um acervo literário universal e o anseio de
interferir na ordenação da sua comunidade de origem assinalou a
crise de consciência maior desses intelectuais” (p. 22). Quero crer
que o “dilema” dos dois autores marque, de formas mais ou menos
indeléveis, a vontade de escritores e jornalistas que compartilham
a escrita onde a literatura e a escrita pública não literária muitas
233
vezes se interpenetram: os periódicos.
Sendo assim, é possível percorrer na obra de Sevcenko a ambi-
guidade de um projeto de modernidade que esbarra na estruturação
da cidade do Rio. Segundo o historiador, a desejada modernidade,
que se consagraria com as reformas da cidade no começo do XX,
marcadamente aquelas realizadas por Francisco Pereira Passos,
prefeito do Distrito Federal (1902-1906), eliminaria o “inferno
social” (expressão referida por Sevcenko) de uma cidade marcada
por epidemias constantes de febre tifoide, disputas do espaço social,
contatos frequentes entre as classes sociais. Para sanar tudo isso, a
nova face “moderna” da cidade visava acertar os ponteiros da cidade
com a modernidade universal, à imitação da Europa.
Fruto de uma modernidade realizada a fórceps, a aura mo-
dernizante, como demonstra Sevcenko, vai ser incentivada por
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

jornalistas, escritores, personalidades, em nome de uma entrada da


República no novo século. Contudo, tal movimento não se fez sem a
criação de uma nova espacialização que, a despeito de modernizar a
urbanidade, produz margens precárias com o afastamento da popu-
lação pobre, negra, para morros e subúrbios, dificultando, assim, a
disputa social que ocorria no centro da cidade e do governo.
De acordo com Sevcenko, a modernidade cultural e arquite-
tônica precisava ser realizada para garantir uma face confiável ao
investimento do capital financeiro, mesmo que isso significasse o
estado de exceção para a população negra, pobre e trabalhadora:
Era preciso pois findar com a imagem da cidade insalubre e
insegura, com uma enorme população de gente rude plantada
bem no seu âmago, vivendo no maior desconforto, imundície
e promiscuidade e pronta para armar em barricadas as vielas
estreitas do centro ao som do primeiro grito de ordem.

Somente oferecendo ao mundo uma imagem de plena credibilida-


de era possível drenar para o Brasil uma parcela proporcional da
fartura, conforto e prosperidade em que já chafurdava o mundo
234 civilizado. (1989, p. 29)
A literatura de Euclides da Cunha, Lima Barreto e outros
escritores menos alinhados a uma literatura moderna – no sentido
reformista que o termo moderno assume na capital federal – pode
flagrar a contradição desse projeto de extinção da população
marginalizada, que integra a modernidade. A minha perspectiva
é que, também nos periódicos, a presença da morte e as críticas
contundentes da escrita jornalística vão desenhar outros espaços
e sensibilidades que a epidemia de Gripe Espanhola vai expor ao
manchar a modernidade higienista.
Com Cidade febril (1996), do historiador Sidney Chalhoub,
temos um marco historiográfico no que diz respeito à figuração ge-
nealógica das políticas de eliminação da população negra e pobre,
da higienização como manutenção de espaços limpos e saudáveis
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

para a elite econômica e a branquitude. Chalhoub nos apresenta


como a medicalização da cidade se presta a manter saudáveis os
privilegiados sem combater as doenças da população pobre. Nesse
estudo, a relação entre a economia, a política e os projetos higienistas
e eugenistas ficam bastante demarcados. Assim, pode-se inferir que
o projeto reformista moderno no século XX responde também a essa
vontade higienista presente desde o final do século XIX.
Mapeando as epidemias da cidade, o historiador percebe que
As explicações médicas para o aparecimento e expansão das
epidemias de febre amarela na Corte em dois momentos di-
ferentes – na década de 1850, quando a doença apareceu pela
primeira vez, e no início dos anos 1870, quando ela retornou
após ausência relativamente prolongada durante os anos 1860
– demonstram a contínua interdependência entre pensamento
médico e ideologias políticas e raciais. Na verdade, a crise nas
relações de trabalho no Brasil da segunda metade do século
passado foi fator decisivo na elaboração e na transformação das
percepções de médicos e autoridades públicas sobre a doença.
Em outras palavras, ao lidar com o problema da febre amarela
235
num momento histórico particular, as autoridades de saúde
pública dos governos do Segundo Reinado inventaram alguns
dos fundamentos essenciais ao chamado “ideal de embranqueci-
mento” – ou seja, a configuração de uma ideologia racial pautada
na expectativa de eliminação da herança africana presente na
sociedade brasileira. (2017, p. 71-2, grifo nosso)
Eliminação, extinção, êxodo, exceção: embora não eviden-
ciadas no discurso das políticas públicas sanitárias na contenção de
doenças, essas palavras são de fato aquelas que melhor definem o que
essas políticas realizam, em especial quando destinadas à população
marginalizada. O painel histórico que Chalhoub erige serve para a
leitura do impacto da Gripe Espanhola, no ano de 1918, quando a
cidade já havia implantado e experimentado suas políticas públicas
de saúde, políticas aliançadas, nesse mesmo ano, com o novo espaço
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

urbano construído pela modernização. Entendendo que a moderni-


zação se alinha aos acontecimentos que aquelas palavras realizam,
prefiro pensar, apropriando-me do conceito de necropolítica do
filósofo Achille Mbembe, numa necromodernidade que se instala
na capital da República, percebendo que esse termo pode significar
uma modernidade de fato não realizada – uma vez que ela não se
distribuiu em todas as classes e para todos os indivíduos, não teve
como projeto a formação de cidadãos, mas de exilados – e também
uma modernidade que visa extinguir a presença de corpos e indi-
víduos que ameaçam a ordem estabelecida pelas elites e governo.
Nesse sentido, o trabalho seminal do historiador José Murilo
de Carvalho, Os bestializados (1987), nos auxilia a compreender o
que de fato significa, no âmbito da contenção de qualquer oposição
ou resistência popular ao centro do governo, as modernizações que
expulsam indivíduos dos espaços de decisão. Na análise que faz do
primeiro momento republicano, e especificamente da Revolta da
Vacina (Rio de Janeiro, 1904), movimento contrário à vacinação
obrigatória, José Murilo descortina a motivação da revolta popular:
236
A justificação [da mobilização popular] baseava-se tanto em
valores modernos como tradicionais. Para os membros da elite,
os valores eram princípios liberais da liberdade individual [...]. A
retórica liberal, originalmente difundida por positivistas e liberais
ortodoxos, chegou mesmo a atingir setores da classe operária [...].
Para o povo, os valores ameaçados pela interferência do Estado
eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do
chefe de família, a inviolabilidade do lar [...]. O inimigo não era a
vacina em si mas o governo, em particular as forças de repressão
do governo. (2014, p. 136)
Não será possível aqui a devida análise do trecho acima e do
que este significa no projeto analítico de José Murilo: essa análise
pode nos levar a compreender a complexa relação entre classe tra-
balhadora e elites na resistência ao governo em contextos de maior
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

ou menor distanciamento e circulação de ideias. Aproveito parcial-


mente o destaque para indicar que, se levamos em consideração a
justificativa do historiador, podemos pensar que, ao ler a escrita da
Gripe Espanhola, praticada por jornalistas, intelectuais e escritores,
esta flagra um momento em que tornar visível a população à mercê
da epidemia significa dar visibilidade às políticas de governo e às
divisões do espaço urbano, uma vez que este se constitui como um
espaço de menor contato entre as classes, por conta das reformas
que provocam o êxodo da população mais vulnerável.
Essas análises decisivas sobre as epidemias e suas consequên-
cias fomentam a possibilidade de percorrer os periódicos em busca
do mapeamento de uma sensibilidade veiculada pelo exercício da
escrita, e devem servir para o leitor, amparado por elas, consignar
seu próprio arquivo. Penso que montar esse arquivo, considerando
o espaço da escrita dos periódicos, pode também incentivar o exer-
cício de análise do que ata ou reata a relação entre o intelectual e
as classes pobres.
Ao acompanhar as notícias sobre a Gripe Espanhola, o leitor
237
de hoje talvez perceba, nos momentos em que a escrita jornalística
tenta se aproximar mais intimamente das personagens e situações
que sofrem as consequências da disseminação da doença, uma in-
flexão literária que o aproxima das vidas e situações que o jornalista
medeia, para que alcancem a sensibilidade do leitor moderno. O
literário – no sentido que o crítico Roland Barthes (1970) delineia no
ensaio “Estrutura da notícia” – cria elos com as narrativas ficcionais
que compartilham o espaço do jornal, no começo do século XX, nos
folhetins e colunas dedicadas à literatura. Mesmo as ocorrências
policiais, os fait divers e demais gêneros presentes nos periódicos
daquele contexto atraem o leitor por conta de uma manipulação do
aprendizado do folhetim e dos recursos disponíveis da literatura
mais ao alcance dos leitores. É, necessário, contudo, compreender
a posição barthesiana para além de uma suposta indiscernibilidade
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

entre fato e ficção: deve-se entender que a situação da escrita do


literário no periódico pôde contrastar com os outros modos de dis-
seminação da literatura que se cerca de balizas do estético: livros e
vida literária. O que devemos considerar é a discussão que Barthes
promove. De acordo com o crítico,
Estamos aqui [no espaço da escrita do fait divers], se se quiser,
não num mundo do sentido, mas num mundo da significação;
esse estatuto é provavelmente o da literatura, ordem formal na
qual o sentido é ao mesmo tempo posto e desiludido; é verdade
que o fait divers é literatura, mesmo se essa literatura é consi-
derada má. (p. 66-67)
Portanto, a aproximação que Barthes realiza, ampliando o
campo da literatura com a inclusão da escrita do fait divers,8 não se
dissocia da compreensão do crítico de uma partilha e contaminação
de manejos da linguagem que tensionam a relação entre sentido do
puro fato e abertura à significação, o que confere à notícia, quando ela
se configura na gramática dos faits divers, aquilo que Barthes assinala
como a preservação da “ambiguidade do racional e do irracional” (p.
238 67). Sobre o manejo da linguagem, compartilhado pela literatura e
pelos faits divers, Barthes consigna a explicação numa nota que visa
esclarecer o trecho que citei acima: “Entendo por sentido o conteúdo
(o significado) de um sistema significante; e por significação o pro-
cesso sistemático que une um sentido e uma forma, um significante
e um significado” (p. 66). Essa nota é fundamental porque restringe a
sugestão do literário à forma própria com que os faits divers se ma-
nifestam ao leitor, o que Barthes delineia como estrutura da notícia.
É possível, ainda, aproximar esse espaço da escrita, realizada

8 Embora o fait divers guarde sua especificidade no escopo da cultura


francesa, acredito que a discussão barthesiana nos aproxime de certo for-
mato que a notícia assumirá no início do século XIX nos periódicos bra-
sileiros, quando a escrita jornalística se faz com o fluxo do narrativo, do
ficcional e a relevância da presença dos escritores-jornalistas.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

por jornalistas, do espaço do literário, uma vez que o trânsito de


escritores-jornalistas nos periódicos do início do século, de certa
forma, dissemina uma escrita que por vezes hibridiza o fato e os
recursos próprios da ficcionalidade.9
Por outro viés, pode-se pensar esse momento da imprensa
como aquele analisado pelo antropólogo e teórico da comunicação
Jesús Martín-Barbero, momento em que o campo da cultura se rea-
liza por meio de mediadores. Nesse sentido, a escrita dos periódicos,
que por vezes pende para a ficcionalidade, é um vetor de mediação
que relaciona a cultura, a arte e a recepção por meio dos setores da
comunicação. Segundo Martín-Barbero (2003), a presença da lite-
ratura na modernidade não se faria sem uma mediação do campo
comunicacional. O sociólogo mapeia a situação do seguinte modo:
Metodologicamente a possibilidade de situar o literário no espaço
da cultura passa por uma inclusão no espaço dos processos e das
práticas de comunicação. [...] A perspectiva de trabalho poderia
ser sintetizada da seguinte maneira: busca-se analisar o processo
de escritura enquanto processo de enunciação no âmbito de um
meio de comunicação, que não tem a estrutura fechada do livro, 239
e sim a estrutura aberta do jornal ou dos fascículos de entrega
semanal, que por sua vez implica um modo de escrever marcado
pela periocidade e da pressão salarial [...]. O estatuto da comuni-
cação literária sofre com o folhetim um duplo deslocamento: do
âmbito do livro para o da imprensa – o que implica a mediação
das técnicas de escritura jornalística e da técnica do aparato
tecnológico na composição e na diagramação de um formato
específico – e do âmbito do escritor-autor, que agora só entra
com a “matéria-prima” e que por vezes, mais do que escrever,
reescreve, para o do editor-produtor, que é quem muitas vezes
“tem o projeto” e dirige sua realização. (p. 185)
O importante do quadro analítico de Martín-Barbero é a ob-

9 Para um quadro mais completo, indico ao leitor o estudo da pesquisado-


ra Cristiane Costa (2005).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

servação de uma contaminação entre escritas – literária e jornalística


– que inevitavelmente altera a relação do leitor e dos autores com os
códigos do literário que predominavam antes do advento do folhetim
e da convivência da literatura com a “matéria” jornalística. Mais
adiante, o autor percebe os alcances desse impacto: concordando
com o Barthes de Mitologias, é a própria relação entre fato e ficção
que o impulso da comunicação no campo do literário vai afetar.
O arquivo que inicio deve, portanto, sugerir uma narrativa
da epidemia, especialmente porque dirigi meu interesse para uma
narrativa que pretendesse dar visibilidade à população vulnerável.
Com isso, tal narrativa, ainda que consideremos as inclinações
políticas e ideológicas dos periódicos, que os diferenciam e mui-
tas vezes os opõem, poderia também provocar um contraste com
a inclinação do literário a uma literatura “sorriso da sociedade”,
segundo expressão do escritor e médico Afrânio Peixoto.10 Nos
jornais, precisamente nesse momento, a presença do flagelo parece
evidenciar os limites da modernidade, mostrando suas fraturas e
avessos, e impor uma escrita trágica.
240
O arquivo febril
O mês de setembro de 1918 é marcado pelo avanço da epi-
demia da Gripe Espanhola, que acaba por dividir o espaço das
notícias nos jornais com as informações sobre a Primeira Guerra.
A manchete “A ‘influenza hespanhola’ já atacou 700 pessoas na
Bahia?”,11 indagativa, seguida da lide “Não ha informações officiaes,
parecendo-se tratar de uma exploração política”, parece dar conta
de uma desconfiança diante da ameaça estrangeira nesse contexto

10 A definição do autor para sua expressão pode ser encontrada em: <ht-
tps://www.academia.org.br/academicos/afranio-peixoto/textos-escolhi-
dos>. Acesso em: 14 de set. 2020.
11 A Rua, Rio de Janeiro, 28 set. de 1918, Rio de Janeiro: 2. A partir de
agora utilizarei as notas para referenciar as fontes dos periódicos, o que
deve oferecer ao leitor o itinerário do arquivo que apresento.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

de guerra e de consolidação das soberanias nacionais, no caso da


República brasileira, de histórico tão curto.
A especulação, em A Rua, vai cedendo espaço para o temor e
o crescimento de casos na cidade, como estampa a reportagem de
título “A cidade nas malhas da ‘hespanhola’”, com a seguinte lide:
“Pelos hospitaes e delegacias – na Santa Casa da Misericórdia –
outras notas”.12 Essa reportagem pretende fazer um panorama da
situação, oferecendo o espaço para pequenas narrativas particulares,
como podemos notar aqui:
Uma das causas que mais concorrem para panico estabelecido
nesta capital é não haver medicos para socorrer os doentes. [...]
Nos subúrbios, onde os “bons medicos” são poucos, a crise desses
profissionaes é mais acentuada.

[...]

O Dr. Tamanqueira havia tres noites que não conciliava o somno,


tendo hontem resolvido pedir um armistício: – foi para casa, à
noite, e não estava para ninguem.

Assim mesmo os clientes não lhe deixaram a porta até pela ma- 241
nhã, quando S. S. cahiu novamente nos braços do povo...

E os outros médicos? Os sub-paredros13 e os que ainda não “têm


nome” – onde se metteram elles?

Estão quasi todos doentes...


Nos exemplares do mês de novembro de 1918 da revista Fon-
-Fon!, encontramos uma série de reportagens fotográficas sobre a
situação da epidemia. Intitulada de “A grippe em Campos”,14 as ima-

12 A Rua, Rio de Janeiro, 15 out. de 1918, Rio de Janeiro: 2.


13 Termo usado para diretor, chefe, usado pejorativamente.
14 Fon-Fon!, 23 nov. 1918, Rio de Janeiro: 40. Refiro-me ao semanário
ilustrado com circulação de 1907 a 1958. A publicação sintetiza as trans-
formações da urbanidade no começo do século XIX, acompanhando os
comportamentos, sensibilidades, modos de expressão cultural que seguem
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

gens dessa matéria mostram o auxílio médico e alimentar destinado


à população. Numa das legendas, a inscrição “Grupo de pobres” nos
remete a uma imagem de dez mulheres sentadas em bancos de praça,
parecendo esperar atendimento para conseguir alimentação. As dez
são mulheres negras, o que já evidencia a racialização da pobreza
visibilizada na imagem produzida por conta do contexto imposto
pela epidemia.
Em número anterior do semanário, a série de imagens intitu-
lada “A epidemia reinante” tenta capturar o Rio de Janeiro à mercê
da gripe, incorporando a tragicidade da situação. A cidade parece,
na captura de rostos desesperançados e do tom lúgubre do editorial
que abre esse número de semanário – “A quinzena trágica” –, tomada
por uma sensibilidade fúnebre.
Na sequência de imagens, figuram a distribuição e a venda
de comida aos pobres, os espaços de tratamento e leitos de doentes.
Fechando a seção, as imagens de covas abertas, as valas comuns,
que receberiam os corpos trazidos por caminhões, como aparece em
uma das fotos,15 remete à memória de Nelson Cavaquinho relatada
242
no filme de Leon Hirszman, como assinalei acima.
O clima fúnebre é reiterado pela imagem que mostra o cemi-
tério de S. João Batista,16 detalhando seu cruzeiro, completamente
esvaziado. A imagem e o texto se reenviam uma vez que confirmam
que, nesse dia de finados de 1918, não haveria circulação de pesso-
as no cemitério. O vazio acentua, evidentemente, a sensibilidade
compartilhada que as imagens e os textos consignam ao seu leitor.
É ainda nesse número que a literatura presente respira o mesmo
ar lúgubre. O poeta Solfieri de Albuquerque17 publica um soneto,

a proclamada modernização. Seu espectro de escritas, que vão das notícias


sociais e políticas à visão humorística, constitui uma amostra importante
das mediações culturais do período. Cf. Zanon (2009).
15 Fon-Fon!, 02 nov. 1918, Rio de Janeiro: 27.
16 Fon-Fon!, 02 nov. 1918, Rio de Janeiro: 38.
17 Solfieri Cavalcante de Albuquerque, poeta e prosador nascido em Reci-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

intitulado “Finis Culpae?”,18 tendo como paratextos uma imagem


feminina alegórica, que parece lamentar a morte, e o depoimento
que precede o poema:
Meus caros amigos do FON FON.

É da cama que lhes escrevo. Aproxima-se o dia de finados, e no


meio de tanta dôr e de tantas lagrimas o coração soffre e os olhos
choram, neste momento, lembrei-me de lhes enviar esta pagina
inedita do nosso saudoso Tarquino,19 hoje na grande guerra, illus-
trando este soneto oportuno, de minha emoção: Finis Culpae?

Si approvarem a minha ideia sinto-me feliz por tel-a. Saude a


todos do seu att.o obbr.o cr.o

Solfieri de Albuquerque

22-10-918

Finis Culpae?

“Mors ultima linea rerum est”

Horácio

Ah! quem foi que morreu que o sino tanto chóra? 243

Gemendo pelo espaço o pranto da Agonia?

Que profundo pezar nesse mysterio móra

Derramando-nos n’Alma o luar da nostalgia.

Talvez um Coração de creança inda na aurora,

Talvez um Coração de noiva em claro dia,

Talvez um Coração senil na exicia hora,

Talvez um Coração devasso em plena orgia.

fe, Pernambuco, em 1880.


18 Fon-Fon!, 02 nov. 1918, Rio de Janeiro: 39.
19 Menção ao artista italiano Tarquino, colaborador do semanário, que
partiu para a Itália para participar da Guerra. Sua viagem é referida em
Fon-Fon!, 15 jun. 1918, Rio de Janeiro: 26.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Ah! mas fosse qual fosse a existencia colhida,

Fosse à creança, à noiva, ao mísero roubada,

Foi um tumulo aberto – aberta uma ferida

E é no teu seio, ó Terra, em communhão com a poeira

Que nos vamos deixar a ultima rizada

Na tragica expressão da tábida caveira...


O poema, que circula no contexto produzido para os leitores
do periódico, tem como um dos motivos a maneira indistinta que a
morte acomete a população. Além disso, figura a morte imagetica-
mente pela abertura do túmulo, o que pode indicar um diálogo com
a imagem das covas abertas na seção de fotografias desse número
de Fon Fon!
O assunto também vai ocupar os espaços mais descontraídos
do semanário, como é o caso da coluna “Gatafunhos” da edição de
9 de novembro de 1918:
– Com os theatros e cinemas fechados, todas as casas de diversão
244 às moscas e a cidade quase vazia, nos dias lutuosos da hespa-
nhola, que fizeste, Marcos Silveira, tu, que és rico e desocupado,
e só pensas sempre em te divertires?

– Filho, é o pouco que desta vida se frúe. De repente, a morte vem


e carrega a gente para o outro mundo sem dizer agua-vai! Por isso
é que sempre, eu, que não tenho familia nem responsabilidades,
procurei diversões e alegrias.

– Conheço já as tuas opiniões, meu caro. Portanto, pergunto


que diversões arranjaste nestes dias passados, em que a cidade
ficou vasia,

– Não tive grippe!

– Sei disso. Mas desejo saber o que fizeste.

– Li os jornaes...
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

– Olhaste a porta dos hospitaes, visitaste os necroterios, fôste ao


Cajú, espiaste as filas seguidas de enterros e o movimento das
casas de flores...

– Não, filho. Isso tudo não diverte. Prezo-me de ter bom coração,
de não ser tão egoista quanto pareço. Isso tudo não me divertiria.
Arranjei outra coisa e essa de truz. Adivinhas?

– Não. Conta.

– Lêr as providências do governo e ri a valer.

– Eu tambem.
O diálogo, representando o humor que ocupou as páginas
de Fon-Fon!, desliza entre a crítica ao comportamento elitista, ao
cobrar uma sensibilidade do solteiro rico diante das mazelas, e a
concordância entre os atores, a princípio, marcados na enuncia-
ção por uma distância de posições – o interlocutor que interpela
a personagem rica parece não concordar com sua propensão ao
divertimento – que acabam por se encontrar na crítica às atitudes
do governo durante a epidemia.
Marcando uma posição bastante crítica ao governo, as re- 245

portagens da Gazeta de Notícias, durante a Gripe Espanhola, são


produtivas para se discutir como a epidemia agravou os problemas
sociais da capital da República. Tendo como herança, entre outros
exemplos, a hoje reconhecida reportagem sobre os morros cariocas
como espaços de exceção, realizada por Paulo Barreto, o João do
Rio,20 a Gazeta se tornou um espaço fundamental de visibilidade dos
territórios, sociabilidades e indivíduos marginalizados em desacordo
com a pretendida modernidade urbana do Rio de Janeiro da belle
époque. Essa visibilidade pode não significar necessariamente uma
defesa das classes marginalizadas, mas, a despeito das complexas
relações entre imprensa, população e governo, o periódico mencio-

20 Trata-se da reportagem Na favela, publicada em 1903 na Gazeta.


(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

nado pode ser lido a partir de uma motivação do leitor atual, ao se


impor a tarefa de procurar os registros das classes subalternizadas
nas primeiras décadas do século XX.
A tônica da Gazeta, que apresenta manchetes mais alarmantes
no mês de outubro de 1918, pode ser representada na convivência
de duas escritas que compartilham a mesma página: os versos
satíricos, encimados pelo título “Salpicos...”, disputam o olhar do
leitor com a seção “Cartas e...”,21 que afirma a fratura na cidade que
se modernizou sem cuidar de problemas estruturais, mesmo em
bairros vizinhos ao centro da cidade, como é o caso do bairro de São
Cristóvão, no Rio de Janeiro:

Salpicos...
Se um sujeito sorridente
por um mal que lhe aconteça
tem uma dor de cabeça
ou quebra um caco de um dente,
– diz o povinho pachola:
246
– “Coitado!
daquelle pobre grippado!
É a hespanhola!”
[...]
Isto agora em qualquer roda
é a mesma melodia:
é a doença da moda
é a molestia do dia.
Se um Fulano que bebia
bebe mais limão com soda
e tudo bebe à vontade

21 Gazeta de Notícias, 15 out. 1918, Rio de Janeiro: 2.


EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

e só não bebe agua-fria


(que isso não espanta magua)
e andando, as pernas engrola
pelas ruas da cidade
– não se diz que ele é pão d’agua
está sofrendo de... hespanhola.
Se paredro em plena lide
da política, por sério,
quer entrar para o ministerio
mas não acha quem convide
e allegando o seu civismo
fica triste e jururu
como crista de peru
que cahiu nesta graçola:
– que tem ele? traumatismo?
– Não senhor. Tem hespanhola.
Cartas e... 247
A “grippe” na rua General Bruce

Assiduo leitor da “Gazeta” escreve-nos detalhada missiva, pedin-


do-nos que chamemos a attenção da Saúde Publica, pelo desleixo
em que se acha a rua General Bruce, entre a rua Bella de S. João
e a rua Senador Alencar, onde se encontra até agua pôdre, accu-
mulada em frente ao predio n. 91, sahida deste mesmo predio.

[...]

Nessa mesma rua está grassando assustadoramente a grippe,


havendo seguramente uns 15 casos [...] e não se sabe até onde
iremos passar e ainda mais com essa falta de asseio ha tanto
tempo reclamada.
A Gazeta assume publicamente a contestação ao administra-
dor da Saúde Pública, Carlos Seidl, informando aos seus leitores a
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

inocuidade das políticas governamentais para contenção da epide-


mia e resolução dos problemas já recorrentes que se agravam com
o flagelo: fome, violência policial e colapso no atendimento médico.
Denominada pelo jornal de “O mal de Seidl”, a epidemia ganha
contornos políticos bem definidos na imprensa. Nesse momento,
torna-se mais presente a inclinação do periódico em mostrar como
a ineficiência política abateu a cidade, como é o caso da edição de 23
de outubro de 1918, dominada por uma radiografia da cidade com o
título “Os sofrimentos da cidade”, na sua página 4. Com o subtítulo
de “A epidemia e os pobres”, o jornal se manifesta:
Nas estalagens, nas moradias collectivas, nas sordidas baiucas e
nas miseras palhoças, os seus habitantes numa suprema reunião
de esforços auxiliam-se mutuamente como se uma só família
fossem. Emquanto assim eles procedem, que fazem os ricos, que
fazem os grandes “profiteurs” da guerra, enriquecidos da noite
para o dia à custa do trabalho pertinaz dos pequeninos?

[...]

Os ricos de nossa terra não terão entranhas? Serão eles, porven-


248
tura, peores que o actual governo, cujo auxilio ainda não se fez
sentir nem para enterrar os mortos?
O jornal vai produzir, a partir do mês de outubro de 1918,
diversos panoramas em que é assumida, nos enunciados, a função
de porta-voz do povo. Seguindo nessa direção, o espaço das notícias
abre-se a crônicas da epidemia que pretendem mostrar como o des-
caso do governo afeta a população desassistida, vulnerabilizando os
trabalhadores pobres e negros, como é o caso desse perfil intitulado
“Doloroso!”:
Modestamente habita uma velha casinha na Estação de Honório
Gurgel o lavrador José Francisco, de 50 annos, preto, que é chefe
de numerosa familia.

Devido à situação precaria em que as classes trabalhadoras se


EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

encontram, o pobre vinha lutando com mil dificuldades para


conseguir um emprego que garantisse a manutenção da sua prole.
Cada dia que se passava, porem, aumentavam as suas aperturas.

– Pão, queremos pão, bradava-lhe no ouvido a voz dos filhos.

– Não temos o que comer, acrescentava em lágrimas a sua


companheira.

[...]

Hontem porém toda aquela resignação que a custo ele vinha


mantendo, mao grado toda a miséria, desapareceu por completo
e José Francisco tomou uma resolução: suicidar-se-ia.22
No jornal A Noite, encontraremos manifestações veementes
contra o descaso para com os espaços habitados pela população
pobre. Utilizando-se do designativo “povo”, o jornal dedica, na sua
primeira página da edição de 25 de outubro de 1918, uma seção
com o título “O mal e o povo” para mostrar as mazelas sociais. Em
linhas que seguem o subtítulo “A calamidade nos subúrbios”, a
reportagem oferece ao leitor uma visão de como a epidemia atinge
as classes pobres: 249

Os subúrbios servem de theatro, neste momento, ao mais dolo-


roso dos espectaculos. É difficil ao habitante da cidade imaginar
o que se está passando nessas zonas onde tudo falta: medico,
phamarcia, alimentação!

[...]

A NOITE fez uma hoje uma larga inspecção pelos suburbios e a


impressão colhida foi simplesmente deplorável. Tivemos ensejo
de penetrar em dezenas e dezenas de casebres onde jaziam, sem
recursos de especie alguma, familias inteiras:

– Já veiu aqui o medico?

– Qual medico, meu senhor! Nós não podemos pagar e elles

22 Gazeta de Notícias, 03 dez. 1918, Rio de Janeiro: 4.


(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

não vêm cá.

– Já foram à polícia?

– Um visinho foi falar com o commissario e elle respondeu que


não pode fazer nada.

[...]

Fomos entrando na casa n. 2 da rua D. Clara 55-A. Uma pobre


senhora, atirada ao leito, inteiramente só, clamava por socorro.

– Moço, exclamou ela ao avistar-nos, pelo amor de Deus, mande-


-me para a Santa Casa. Eu morro aqui.

[...]

Mas, nos suburbios não existem médicos? Existem, mas allegam


doença ou soccorrem só os doentes ricos.

[...]

O Dr. Fernando Dantas, que está enfermo, montou na residencia


de seu sogro, à rua Olivia Maia, 126, um consultorio onde dá
consultas.
250
– Muitos doentes?

– Uma cousa fantastica. O senhor não imagina o que vae por


aqui. Fiquei sabendo que ha gente morrendo de fome! Eu tenho
attendido já para mais de 300 doentes, todos com a grippe pneu-
monica, pois a molestia já encontrou os organismos debilitados
e predispostos. Tem sido uma lastima.

– A molestia tem augmentado?

– Aqui tem.23
Escolhi essa reportagem para encerrar a pequena amostra
do que chamei de “arquivo febril”, que pode ser continuado pelos
leitores, de acordo com as balizas que apresentei neste texto, ou

23 A Noite, 25 out. 1918, Rio de Janeiro: 1.


EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

seguindo outros caminhos que, como é o propósito de uma leitura


crítica à modernidade e a como ela se realizou na cidade do Rio de
Janeiro, podem demonstrar as fraturas sociais aprofundadas pela
Gripe Espanhola.
O trecho acima sintetiza muitos caminhos que a escrita nos
jornais, nesse período, vão trilhar: engajamento na visualização
da população marginalizada, disposição de recursos narrativos
ficcionais, mesmo que retóricos, para construir perfis de sujeitos
subalternizados e acometidos pelas consequências da epidemia, e
apelo aos recursos da descrição para evidenciar, no final da década
da proclamada modernidade, os espaços da pobreza e da marginali-
zação, quando estes se tornam enclaves socioeconômicos por ocasião
do flagelo: morros, subúrbios, hospitais, prisões. A abertura desse
trecho, usando o expediente caro à sociabilidade carioca da belle
époque – a presença do teatro, que também evoca a ideia de uma
sociedade como grande teatro da vida –, não me parece metáfora
retórica, uma vez que ela serve para provocar a sensibilidade de um
leitor/espectador moderno, cujos olhos se acostumaram aos acepipes
251
da sociedade sorridente, para enfim encarar a tragédia da cidade que
o palco e os cartazes podiam muitas vezes ocultar.
A arquitetura de um arquivo conforme propus tem, a meu
ver, propósito se ele pretende contestar ou oferecer modos de ler
e considerar momentos culturais, históricos e de participação no
sensível que se cumpriram sem garantir a formação plena de uma
cidadania consciente e as possibilidades de que todos participem
de uma proclamada modernidade. O filósofo Jacques Rancière, ao
propor o conceito de partilha do sensível, nos alerta para o que essa
partilha deixa evidente: “A partilha do sensível faz ver quem pode
tomar parte do comum em função daquilo que faz, do tempo e do
espaço em que essa atividade se exerce” (2005, p. 16). Nesse sen-
tido, a literatura, a arte, seus modos de fazer e de ser, que tramam
o campo do sensível, são cruciais, uma vez que participam efetiva-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

mente na política da arte: quem pode ser visto e ter sua visibilização
considerada? Quem pode ser não somente ouvido, mas ter o lugar
garantido e validado de sua voz nas decisões da cidade, dos espaços
e das políticas da vida?
A hipótese que um arquivo como esse teria de se alinhar a
um pensamento que considera que a intelectualidade e, no caso, a
escrita intelectual e sua participação no campo cultural são decisivas
na construção de uma sociedade em que as classes subalternizadas
ou, como quer o historiador Joel Rufino dos Santos (2004), os
sem-classe, possam contar com intelectuais que trabalhem para os
pobres, como uma etapa para que os intelectuais do pobre possam
assumir seu espaço no campo cultural e político. A literatura, com
Lima Barreto e Graciliano Ramos, de acordo com Rufino, deu mos-
tras de que é possível pavimentar esse caminho de aberturas – desde
que os intelectuais-para-os-pobres deixem o lugar de representar
o pobre por meio da ludicidade, o que só acontecerá quando estes
acabarem por “realizar sua máxima potência e finalidade: desparecer
enquanto tal” (p. 242), ou seja, abrirem o espaço do aparecimento
252
do intelectual dos pobres, quando a mediação não se fará mais ne-
cessária ou deixar de ser exclusiva.
A minha sugestão com esta proposta é que os jornais, da ma-
neira como vão constituir uma escrita que transita entre os recursos
da estruturação escrita do fato e aqueles da literatura, puderam, no
caso aqui discutido – marcado por uma epidemia que, de certa forma,
suspende a sociabilidade naturalizada –, abrir-se à visibilização dos
marginalizados e a vozes que contestam os espaços destinados aos
pobres, constituindo, no coração do cotidiano das classes sociais
(auto)constituídas, mediações para o pensamento e as posições
vindas de outro lugar, do lugar dos sem-classe, ainda que, como
mediações, não confiram espaço para que os sujeitos da experiência
partilhem das técnicas de narratividade da imprensa. Ainda: essa
escrita poderia alinhar-se a uma das formas que o sensível, segundo
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

define Rancière, assume quando é mobilizado para veicular outras


visibilidades diferentes daquelas que têm condições propícias de
figurar no campo do sensível.
Mesmo com seus limites, essas aberturas que a literatura,
a escrita jornalística, os arquivos e documentos realizam podem
permitir a contestação de uma ideia de modernidade associada a
uma civilidade dada como terminada. Essas fissuras mostram, pelo
contrário, que, se houve uma modernidade, ela foi realizada com as
mãos dadas a uma necropolítica, conforme o conceito do filósofo
Achille Mbembe. A necropolítica, que o pensador vai discutir no
amplo espectro dos projetos de soberania e de formas políticas de
Estado, também se estende a uma espacialização, nas “topografias
recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular)”
(2018, p. 75), e, aqui acrescento, no desdobramento desses espaços
marcados pela colonialidade. Tal política sustenta, a meu ver, uma
necromodernidade que projeta epistemicídios, como aqueles que
eliminaram a porosidade cultural do espaço urbano do Rio de Ja-
neiro, que, em nome da modernização, expulsou a população negra
253
e trabalhadora para espaços de exceção, onde o governo e a elite se
fariam cada vez menos presentes e responsabilizáveis.
Abrir um “arquivo febril” pode significar também abrir uma
porta para uma efetiva compreensão da modernidade? Numa leitura
decolonial, é possível perceber que o que chamamos de moderni-
dade não pode ser dissociada da colonialidade. O apagamento do
colonialismo e da colonialidade normatizam e naturalizam a invi-
sibilização de subjetividades e as estratégias de desumanização. Tal
neutralização do conceito de modernidade é apontada pelo filósofo
Nelson Maldonado-Torres (2019):
A razão para isso é que o significado e a estrutura de institui-
ções, práticas, representações simbólicas ocidentais modernas
já pressupõem conceitos de progresso, soberania, sociedade,
subjetividade, gênero e razão, entre outras ideias-chave que têm
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

sido definidas como pressuposto de uma distinção fundamental


entre o moderno e o selvagem ou primitivo, hierarquicamente
entendidas ou não. (p. 30)
Uma das apostas que um “arquivo febril” faz é rever, olhando
para os abismos da modernidade, no específico caso da carioca, uma
outra modernidade ou uma além-modernidade a se cumprir, que
terá de se fazer crítica à luz da decolonialidade, quando esta nos faz
perceber como as epidemias, pandemias, doenças revelam a colonia-
lidade que atinge determinados sujeitos excluindo-os da validação de
suas existências, arrastando-os para espaços e estados de exceção,
negando suas vozes e sofrimentos, uma vez que os movimentos da
necropolítica e da necromodernidade se propõem programaticamen-
te como exterminadores das vozes, corpos e sujeitos que desafiam
o pretenso sucesso de sua consolidação.

REFERÊNCIAS

254 BARTHES, Roland. Estrutura da notícia. In: BARTHES, Roland. Crítica e


verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repú-
blica que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte impe-
rial. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: Escritores jornalistas no Brasil 1904-
2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolo-
nialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze
et al. (orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019. p. 27-53.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cul-
tura e hegemonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2003.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018.


NAVA, Pedro. Chão de Ferro. São Paulo: Ateliê Editorial/Giordano, 2001.
NELSON CAVAQUINHO. Direção: Leon Hirszman. Produção de Saga Fil-
mes Ltda. Rio de Janeiro: Saga Filmes, 1969.
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo:
Ed. 34, 2005.
RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela: Memórias. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1993.
SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais
trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação
cultural na Primeira República. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
ZANON, Maria Cecilia. A sociedade carioca da belle époque nas páginas
do Fon-Fon!. Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 4, n.
2, p. 217-235, jun. 2009.

255
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Saúde indígena, desenvolvimento e invisibilidade:


breves capítulos do genocídio dos povos
originários no século XX
Rômulo de Paula Andrade1

A proposta de escrita deste texto veio do rico encontro pro-


movido pelo Instituto de Letras da UFF no dia 15 de julho de 2020,
onde discutimos o impacto da epidemia sobre os povos originários.
Mais que compreender o estado sanitário per se, chegou-se a um
entendimento, entre debates e trocas de ideias, que a saúde indígena
e os problemas decorrentes de uma nova doença no quadro epide-
miológico global não se limitavam a uma discussão sobre assistência
médica: a pandemia da covid-19 significa mais um dos capítulos do
massacre que vem sofrendo essa população e do forçado apagamento
de sua cultura. Este é o argumento central deste texto: discutir os
256 cuidados do Estado brasileiro na assistência aos povos originários
é debater mais um dos capítulos da longa história do genocídio
indígena, que se iniciou desde as invasões europeias.
Nos séculos XX e XXI, em especial, essa questão veio a rebo-
que das constantes intervenções estatais em regiões anteriormente
habitadas pelos povos originários. Nesse sentido, afirmamos aqui
que o Desenvolvimento e as políticas derivadas desta ideologia
foram relevantes fatores para a morte dessa população, através da
construção de estradas e de hidrelétricas. Para este texto, escolhemos
três capítulos dessa trajetória: as estradas Belém-Brasília (1958) e
Transamazônica (1970) e a usina hidrelétrica de Belo Monte (2006).
Esse argumento será desenvolvido neste texto, a partir de um breve

1 Pesquisador da Fiocruz e professor do Programa de Pós-Graduação em


História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

debate inicial sobre o conceito de Desenvolvimento, bem como um


panorama sobre a saúde indígena do século XX. Para tanto, lançamos
mão de fontes secundárias relevantes para a historiografia sobre os
indígenas no século XX, como teses e livros, bem como reportagens
sobre a situação atual.
Assistência médica entre estradas, hidrelétricas
e pandemias
Mesmo estando presentes em relatos, registros e fotografias
de médicos da saúde pública ao longo da primeira metade do século
XX, os indígenas estavam sob tutela de outras instituições estatais,
sendo “incorporados” à saúde pública somente a partir de políticas
específicas nas décadas de 1950. Hochman e Silva argumentam que
uma das principais marcas dos cuidados aos indígenas é justamente
a “invisibilidade”, por não serem considerados parte do escopo da
incipiente saúde pública no início do século XX (HOCHMAN; SIL-
VA, 2014). O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910,
é um exemplo disso. A saúde dessa população ficava a cargo desse
órgão, que era subordinado ao Ministério da Agricultura, Indústria
257
e Comércio. O objetivo do SPI era reconhecer e proteger os Índios,
assegurar a implementação de uma estratégia de ocupação territorial
do país e “integrá-los”. A saúde, assim, fugiria da órbita dos órgãos
responsáveis, à época, sob a jurisdição do então Ministério da Jus-
tiça e Negócios Interiores. O órgão desenvolveu ações pontuais de
assistência sanitária aos indígenas, como a construção de postos de
saúde, assistência de enfermeiros ou de levantamentos sanitários
(BRITO, 2020). O paradigma integracionista manteve-se nos anos
posteriores, porém alguns marcos foram significativos para uma
maior atenção para a assistência de saúde aos povos indígenas:
as constituições de 1934, 1937 e 1946, que davam aos indígenas a
posse da terra por eles ocupada, ainda que se calassem quanto aos
outros direitos. Outro registro da “invisibilidade” indígena para os
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

órgãos de saúde está nos relatórios do Serviço Especial de Saúde


Pública (SESP), órgão fruto da cooperação bilateral entre o Office of
Interamerican Affairs e o governo brasileiro da época. Responsável
pela assistência aos seringueiros da Amazônia no esforço de guerra
dos anos 1940, a agência teve vida longa na administração pública
brasileira, sendo extinta em 1990 (CAMPOS, 2006).
Na maior parte dos relatórios do SESP analisados, não foram
encontradas referências específicas à saúde indígena, tampouco
fotos que representam esse grupo social. O paradoxal é que, em
diversos depoimentos de profissionais que trabalhavam no órgão,
os índios são apontados como público-alvo das ações de saúde
e saneamento dos chamados “sespianos”. Júlio Schweickardt e
Amandia Sousa entrevistaram técnicos de saúde que trabalharam
no SESP e, de forma geral, concordaram que, por mais que a agência
não tivesse um setor específico de saúde indígena, era a que mais
lidava com esse público na região amazônica. Uma saída dos auto-
res para apontar o porquê dessa “invisibilidade” residia no fato de
que, ainda que os indígenas recebessem cuidados, eles não eram
258
o objeto principal do órgão. O público-alvo inicial do Serviço era
formado apenas pelos seringueiros que participavam da extração
para o esforço de guerra nas zonas produtoras. Ao longo do tempo,
o escopo da atuação foi aumentando, pois a orientação do Serviço
determinava o atendimento às populações rurais circunvizinhas dos
municípios, tanto as aglomeradas quanto as dispersas. Assim, ine-
vitavelmente atendiam os indígenas, que não recebiam tratamento
diferenciado do restante da população local. Os autores destacam
que, apesar do avanço da saúde pública para o interior do Brasil a
partir dos anos 1940, esse processo não incluiu os indígenas como
segmento prioritário a ser trabalhado. Essa negligência trouxe pro-
blemas para as visitadoras e técnicas de saúde que atuavam junto
a eles (SOUSA; SCHWEICKARDT, 2013).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

A criação da Fundação Brasil Central e as expedições por ela


realizadas foram outro marco no projeto “integracionista” do Esta-
do brasileiro. A de maior impacto para a população indígena foi a
Expedição Roncador-Xingu, de 1943. Organizada pela Comissão de
Mobilização Econômica, através da participação do tisiologista Noel
Nutels, foi um elemento significativo para a necessidade de maior
atenção à assistência médica a populações do interior, em especial às
que habitavam áreas sem comunicação por terra (HOCHMAN; SIL-
VA, 2014). Dessa forma, anos depois, em 1956, foi criado o Serviço
de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa). Os anos 1950 representaram,
para além disso, mudanças nas concepções relacionadas à saúde dos
povos, em especial os periféricos, que tiveram impacto nos debates
acerca das intervenções e cobertura médicas em populações indí-
genas. No âmbito do SPI, a diminuição demográfica indígena era
debatida em relatórios do órgão, centrados, no geral, nas críticas
aos povos originários, em especial na recusa destes de tomarem
os medicamentos da “civilização” (BRITO, 2017). Além disso, os
relatórios criticavam o “pouco apreço” no cumprimento de regras
259
sociais e higiênicas dos “civilizados”, como a assepsia das mãos e
a recusa das mães em levar os filhos aos médicos. Ademais, as epi-
demias de gripe, sarampo e as verminoses resultantes dos contatos
com os brancos ocasionavam graves desestruturações sociais dos
grupos atingidos (BRITO, 2017). Mesmo a questão sanitária sendo
periférica no órgão, corriam debates sobre a institucionalização
de um serviço médico sanitário, idealizado e sugerido pelo médico
Herbert Serpa, profissional do órgão.
O projeto estabelecia, de forma pioneira, a estruturação de
uma assistência que respeitasse as especificidades culturais e de-
mandas sanitárias da população-alvo do SPI. Assim, seria possível
minimizar os conflitos entre as práticas de cura locais e a “medicina
oficial”. Não à toa, foi o período em que antropólogos e cientistas
sociais passaram a atuar de forma mais numerosa e relevante no
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

órgão. Um dos quadros da Seção de Estudos do Serviço de Proteção


aos Índios foi o então recém-formado antropólogo Darcy Ribeiro,
que teceu, em publicações posteriores, comentários sobre a saúde
indígena. O SPI contava, em sua maior parte, com uma perspectiva
integracionista, que compreendia as necessidades sanitárias indíge-
nas de forma transitória, já que iriam ser absorvidos pela “sociedade
nacional” (BRITO, 2020). Ou seja, essa população adotaria novas
práticas sanitárias, assemelhando-se aos “civilizados” (BRITO,
2020). Ainda assim, sob o paradigma desenvolvimentista daqueles
anos, grandes transformações viriam para os povos originários. A fim
de compreender essa ideologia que se tornou um paradigma tanto
em governos democráticos (construção da estrada Belém-Brasília)
quanto ditatoriais (construção da Transamazônica), bem como em
governos de esquerda (construção de Belo Monte), é necessário um
breve voo pela conjuntura internacional da época.
No âmbito internacional, essa época foi chamada de a Era do
Desenvolvimento, quando a crença sobre o avanço tecnológico das
instituições científicas deu origem a um discurso que se pretendia
260
hegemônico e que criava parâmetros de “desenvolvimento” e “sub-
desenvolvimento”, a partir dos padrões estabelecidos pelos países
ricos (SACHS, 1999; ESCOBAR, 1997). Conceito pertinente aos inte-
resses das disputas geopolíticas resultantes da Guerra Fria, a criação
dos “subdesenvolvidos” seria uma forma de afastar esses países da
influência soviética. Além do discurso, o desenvolvimento resultou
em ações que buscavam atender a uma demanda histórica para as re-
giões consideradas periféricas. Existiu um desafio lançado pelas po-
tências ocidentais sobre o desenvolvimento de regiões pobres; estas,
por sua vez, reconfiguraram o conceito e o apropriaram segundo suas
necessidades (LOVE, 1998). Desenvolvimento e sua contraparte, o
subdesenvolvimento, estiveram em constante discussão em nível
internacional e local, no curso dos anos 1950 e 1960, tendo reflexo
decisivo nos debates sobre os rumos e escolhas da “recuperação
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

econômica” de regiões então consideradas subdesenvolvidas. Sob


essa égide, os povos originários e a floresta amazônica passam a ser
vistos como impedimentos a um progresso idealizado, que levaria a
região a elevados patamares de desenvolvimento, entendido aqui a
partir de padrões urbano-industriais (ANDRADE, 2015). Sob esse
prisma, várias ações voltadas para uma maior atenção aos indígenas
foram tomadas.
A principal obra feita no período na região foi a construção
da estrada Belém-Brasília, de 1960, idealizada para compor o “cru-
zeiro rodoviário” do então presidente Juscelino Kubitschek, cuja
propaganda política reafirmava a necessidade da obra para o “fim
do isolamento” da região (SILVA, 2017; ANDRADE, 2018). Junto a
isso, havia o imaginário da região amazônica como uma fronteira,
ou seja, uma região “pronta a ser conquistada” (ANDRADE, 2018).
Como afirma Pádua (2000), a Amazônia, no século XX, foi o espectro
geográfico do Brasil, com diversos projetos de governos republicanos
que se utilizavam da retórica do “vazio demográfico” e do “destino
histórico” da região. O segundo governo Vargas, interrompido com
261
o dramático suicídio do presidente, redimensionou os projetos para
a região a partir da centralização deles em uma superintendência
específica, materializando uma questão que vinha se arrastando
desde a constituinte de 1946. Mas com Juscelino Kubitschek, a
partir de 1956, ocorre uma adaptação de discursos antigos sobre a
Amazônia, tendo como culminância a construção da Belém-Brasília.
Essa estrada representa nesses escritos o próprio desenvolvimento
e suas características, ao levar para a região o fim das lendas e o
início de uma era urbana, caracterizada pelo padrão industrialista
ocidental. Se nos anos 1940 a Marcha para o Oeste se caracterizava
pela busca de uma “brasilidade”, nos anos 1950, concentrava-se no
sistema simbólico do desenvolvimentismo (SILVA, 2009). Do ponto
de vista institucional, a ideia de uma região “vazia” e “selvagem”
limitava-se à retórica, pois instituições já atuavam na região, como
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

o Museu Paraense (este, desde o XIX), o SESP, o Instituto Nacional


de Pesquisas da Amazônia e o Instituto Evandro Chagas.
Em relação à assistência médica, o supracitado Susa teve um
papel importante em estender os cuidados de saúde às populações
indígenas, e também de influenciar e se associar com outras áreas do
Ministério da Saúde e com o próprio SPI. O então recém-inaugurado
Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), criado em
1956, também proveu assistência a esses povos, em especial devido
ao contexto de agressivos projetos de interiorização, que represen-
tavam perigo real à existência dessa população. Institucionalmente,
esse modelo de assistência não se alteraria até os anos da ditadura
militar brasileira, quando o SPI foi transformado em Fundação
Nacional do Índio, em 1967, e o Susa, transformado em Unidade de
Atendimento Especial, no âmbito do Ministério da Saúde (HOCH-
MAN; SILVA, 2014). Junto a isso, os povos originários foram alvos
de campanhas globais de erradicação de doenças, como a malária.
No relatório do Comitê de Erradicação de Malária do setor Roraima,
é possível perceber a forma pela qual os indígenas eram tratados
262
pelos funcionários de saúde. As críticas se davam pela resistência
aos medicamentos ministrados pelos técnicos da campanha:
Os índios são e serão ainda por muito tempo um dos fatores
mais decisivos na persistência da transmissão [da malária]. [...]
Além de não ingerirem as drogas, quando o fazem é a troco de
terçados, machados, etc. e só ingerem uma dose, internando-se
no mano onde não mais podemos alcançá-los. No rio Apiaú,
reside a nossa maior área-problema [...] eles descem aos grupos
de 40 a 50 índios, se aproximam de uma habitação, ali ficam 8
dias e se retiram quando nem sequer chegamos a medicá-los.
Como quase todos são portadores de malária, já introduziram a
mesma em dois os habitantes das casas sem paredes e se retiram
deixando um grupo de moradores infectados. [...] Não temos
lei como na Guiana Britânica, onde é obrigatório o uso do sal
cloroquinado e a retirada de lâminas do sangue e ingestão do
comprimido de cloroquina. (BRASIL, 1965, p. 30)
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Entraves para o Desenvolvimento? Ditadura e


povos originários
Depois da estrada, a doença não saiu. A doença ficou no lugar da
[empreiteira] Camargo Corrêa. Até hoje o governo federal não
assumiu a responsabilidade de cuidar da saúde que ele estragou,
deixou espalhar doença nas aldeias. As doenças mais frequentes
são pneumonia, malária, tuberculose. Não tinha nada disso aqui
antes da estrada. (BRASIL, 2014, p. 231)
A criação das Equipes Volantes de Saúde, na década de
1970, representou um avanço no alcance da assistência sanitária
aos indígenas, porém sem a estrutura e a regularidade necessárias
para atender as demandas das diferentes regiões do país. Porém,
o saldo para as ações de saúde voltadas para os povos originários
durante a ditadura militar é muito negativo: tratou-se de um geno-
cídio. De forma violenta, indígenas foram alvo de atentados e uso
de doenças como arma biológica para dar lugar às grandes obras do
regime militar, em especial na região amazônica. A partir de 1966,
durante o governo Castelo Branco, leis federais e incentivos fiscais
transformaram a região em alvo prioritário das ações do governo. 263

A “Operação Amazônia”, divulgada em 1966, dava as diretrizes do


que seriam os objetivos para a região, a partir de uma perspectiva
autoritária: a “posse” definitiva da região (um jargão utilizado desde
o início do século XX), a partir da exploração de recursos minerais,
vegetais e animais. Como reflexo dessas propostas, a então reformu-
lada Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM,
em substituição da SPVEA) teria papel central nos programas que
visavam à “integração efetiva” da região: a Transamazônica, em 1970;
o Polamazônia, em 1974; e o II Plano Nacional de Desenvolvimento,
no mesmo ano (COELHO, 2020). Além disso, existia uma particu-
laridade em relação à FUNAI: diferente do SPI, que era um órgão
do Ministério da Agricultura, a nova agência foi criada como órgão
do Ministério do Interior, “coincidentemente”, o mesmo ministério
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

encarregado da abertura de estradas e das políticas desenvolvimen-


tistas em geral. Doenças, deslocamento forçado, aliciamento e se-
questro de crianças para fins de aculturação: o relatório da Comissão
Nacional da Verdade (CNV) é absolutamente claro ao trazer detalhes
do genocídio indígena ocorrido nos anos da ditadura militar, todos
justificados pela necessidade de “integração nacional” e pelo uso de
repetidos clichês acerca da Amazônia (“Hileia”, “terra sem homens”)
e dos indígenas (“selvagens”, “arredios”, “preguiçosos”). A seguir,
vamos destacar alguns exemplos retirados do relatório.
A ideia de “integração” da ditadura militar apoiou-se princi-
palmente na abertura de estradas, em especial a Transamazônica
e a BR-163, de Cuiabá a Santarém, além das BR-174, 210 e 374. A
Transamazônica cortaria 29 etnias indígenas, sendo 11 grupos iso-
lados e nove de contato intermitente. A FUNAI, então dirigida pelo
general Bandeira de Mello, assinou um convênio com a SUDAM
para a “pacificação de 30 grupos indígenas arredios” e ficou respon-
sável pelo contato, atração e remoção dos índios de seus territórios
para a construção de estradas, assim como para os programas de
264
colonização dirigida. Além das estradas de rodagem, a década de
1970 presenciou o início da exploração de minério no que viria a
ser, em 1980, o Projeto Grande Carajás. De igual maneira, foi o
início da construção da estrada de Ferro de Carajás e a Hidrelétrica
de Tucuruí. Um exemplo dado pelo relatório da CNV é o caso dos
Parakanã, que, para possibilitar a construção da Transamazônica,
seriam deslocados cinco vezes entre 1971 e 1977 (BRASIL, 2014).
Além do mais, houve negligência na assistência médica: durante a
construção da rodovia Perimetral Norte, uma campanha de vaci-
nação de três semanas foi reduzida a dois dias, enquanto a Divisão
de Saúde da FUNAI foi acusada de se negar a vacinar os índios da
região de Surucucus, o que resultou na imunização de apenas 230
indígenas dentro de um universo de mais de 5.000 (BRASIL, 2014).
Durante a construção da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém, a
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

determinação geral era “atrair e pacificar” o mais rápido possível a


fim de que as tribos fossem deslocadas com celeridade do trajeto
das estradas. Uma consequência dessa política foi a transferência
compulsória, entre 1971 e 1977, do povo Parakanã, bem como a morte
de 59% de sua população em consequência de doenças trazidas pelas
frentes da FUNAI, como poliomielite, malária e doenças venéreas
(BRASIL, 2014). Para completar o massacre, o ditador Emílio Gar-
rastazu Médici assinou decreto demarcando a reserva dos Parakanã,
à beira do acampamento dos trabalhadores que construíram a Tran-
samazônica. De acordo com depoimentos e registros escritos como
os disponibilizados em Vítimas do Milagre, de Shelton Davis (1978),
os trabalhadores da estrada presenteavam os homens e violentavam
as mulheres, ocasionando uma explosão de doenças venéreas entre
a tribo. Outro episódio foi o massacre, entre os anos 1960 e 1980,
dos grupos Waimiri Atroari, para abrir espaço em suas terras para
a abertura da BR-174, a construção da hidrelétrica de Balbina e a
atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as
jazidas do território. De 3 mil Waimiri Atroari em 1972, restaram
265
350 em 1983 (BRASIL, 2014).
Conforme ressalta Brito (2020), durante as décadas de 1970
e 1980, a sociedade civil, movimentos sociais organizados, pes-
quisadores e intelectuais de diferentes áreas passaram a discutir a
fórmula de uma política de assistência aos povos indígenas do Brasil,
tendo como pilares a ampliação de assistência sanitária e do acesso
à terra. Exemplos dessas organizações são o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), e a União das Nações Indígenas (UNI). Esta última
foi a primeira entidade indígena criada para reunir as lideranças das
comunidades e defender seus interesses no âmbito nacional (BRITO,
2020). Uma consequência desses movimentos foi a realização das
Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas, no contexto
das reformas sanitárias dos anos 1980 que culminariam na cons-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

trução do Sistema Único de Saúde (SUS). Na política indigenista


anterior à Constituição de 1988, o acesso às ações de saúde era ex-
clusividade dos grupos sob a guarda do órgão indigenista e, portanto,
considerados juridicamente incapazes (GARNELO, 2014). Para ter
acesso às políticas públicas, seria necessária, assim, a comprovação
da identidade étnica pelos representantes do Estado. Esse modelo, de
acordo com Garnelo (2014), instituiria uma permanente situação de
carência e de incapacidade, que passaria a ser associada à condição
étnica. A Constituição de 1988 mudou radicalmente esse conceito,
ao instituir o reconhecimento do direito dos indígenas, não por uma
condição de tutelados vulneráveis, mas sim pela ancestralidade de
sua presença no território hoje ocupado. Por isso, a mudança no
estatuto jurídico foi a condição necessária para alicerçar a criação do
Subsistema de Saúde indígena, regido pelo modelo da seguridade que
garante ao índio o direito de receber um atendimento diferenciado
(GARNELO, 2014). Por essa razão também, após a Constituição, os
povos indígenas passaram a ser vetores políticos importantes, se não
de proposições, pelo menos de reivindicações e de poder de veto a
266
certas iniciativas do governo federal.
Dessa forma, ficou instituído no Brasil o Subsistema de
Saúde Indígena que rege, até hoje, os rumos da saúde dos povos
indígenas, o que seria regulamentado por outra lei, a chamada lei
Arouca, aprovada em 1999. A partir daí, a responsabilidade for-
mal e de toda a estrutura de Estado relacionada ao atendimento à
saúde indígena, incluindo as unidades de saúde, os funcionários,
as funções de confiança e os recursos orçamentários, passaram a
ser da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), órgão executivo
do Ministério da Saúde (BRASIL, 2009). De fato, a lei apresentou
avanços gigantescos em relação ao quadro anterior de assistência,
pois previa a obrigatoriedade de levar em consideração a realidade
local, bem como as especificidades da cultura dos povos indígenas.
Além disso, a abordagem deveria ser global, contemplando todos
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

os aspectos da assistência à saúde, saneamento básico, nutrição,


habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária
e integração institucional (BRASIL, 2009). Para dar funcionalidade
a essa lei, foi criado o Departamento de Saúde Indígena (Desai),
responsável pela gestão central do Subsistema de Saúde Indígena
e que tem a função de promover, proteger e recuperar a saúde dos
povos indígenas e propor políticas de saúde, vigilância e educação
em saúde para essas populações (BRASIL, 2009). Por fim, para
melhor organizar as ações e promoções em saúde, foram criados
os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que compre-
endem modelos de organização de serviços orientados para serem
espaços etnoculturais dinâmicos, de acordo com as especificidades
dos povos originários (BRASIL, 2009). Em um artigo de avaliação
sobre o subsistema de saúde indígena, Garnelo (2014) ressalta que,
mesmo após mais de dez anos de sua implantação, o subsistema não
parece ter sido absorvido dentro da estrutura do SUS, tendo como
consequência uma crônica carência de meios técnicos para efetivar
as ações previstas nos dispositivos legais que o criaram, agravada
267
pela falta de recursos humanos. Por mais incipientes que fossem,
os governos pós-reabertura, entre perspectivas liberais e/ou key-
nesianas, desenvolveram, aos poucos, o aparato da saúde indígena.
Mas nada disso impediria que o desenvolvimentismo, agora com
cores democráticas e oriundas de um governo progressista, não
interferisse de forma violenta sobre a vida indígena na região onde
a usina hidrelétrica de Belo Monte seria construída.
De Belo Monte à covid-19, ou do novo
desenvolvimentismo ao liberalismo genocida
Idealizada como mais uma das obras faraônicas do período
militar, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte só teve plenas condições
de construção em meio aos governos do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e, posteriormente, ao da presidenta Dilma Rousseff. Como
mais uma das obras o Plano de Aceleração de Crescimento (PAC),
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

os projetos para a edificação da usina vinham sofrendo resistência


desde a década de 1980, quando se realizou o 1° Encontro dos
Povos Indígenas do Xingu (1989), em Altamira, no Pará, cujo ob-
jetivo era protestar contra a construção do Complexo Hidrelétrico.
Entre medidas provisórias polêmicas e processos de licenciamento
ambiental mais controversos ainda, ficou aprovada a construção
da hidrelétrica pelo consórcio Norte Energia, vencedor do leilão.
Em junho de 2015, iniciou-se a operação da usina, mas com um
gigantesco lastro de protestos e desacordos com povos originários e
ambientalistas, que foram ignorados durante o curso da construção.
Líderes indígenas, biólogos, antropólogos, engenheiros, juristas e
membros de populações ribeirinhas previram as consequências de
Belo Monte: a seca na Volta Grande do rio Xingu, extinções de es-
pécies, mortalidade massiva de peixes e, por fim, o empobrecimento
de populações indígenas e ribeirinhas que passariam a morar na
periferia de Altamira (AVELAR; NETO, 2020). Um dos principais
opositores à construção da hidrelétrica foi o Procurador da República
no Pará Felício Pontes Jr. Em entrevista, ele ressaltou os custos de
268
se realizar uma obra como essa:
O MPF (Ministério Público Federal) cobra na Justiça o custo de
100 quilômetros do Xingu morto; o custo pelo desaparecimento
de 270 espécies de peixes na Volta Grande, alguns que só existem
lá; o custo do desmatamento para a formação dos reservatórios;
o custo do desmatamento associado; o custo pela perda do lençol
freático. Do ponto de vista social, temos o custo causado pelo
impacto sobre indígenas e ribeirinhos, como o fim da navegação,
a proliferação de mosquitos e de doenças como malária e dengue,
que deverão levar à necessidade de remoção, o que é proibido
pela Constituição, no caso dos indígenas. Não há nada de limpo
nisso, a não ser que estejam falando de limpeza étnica. (PONTES
Jr apud AVELAR; NETO, 2020, p. 64)
A jornalista Eliane Brum fez uma série de reportagens para
o jornal El Pais mostrando os impactos de Belo Monte na vida
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

dos habitantes locais. A também procuradora Thais Santi afirmou


que “o Xingu vai morrer [...] se o mundo da lei funcionasse, Belo
Monte teria que ser fechada” (BRUM, 2019, s/p). Além da malária
e dengue, outras doenças, causadas pelas mudanças decorrentes de
hábitos, passaram a assombrar os indígenas. A partir de 2010, com
a construção da hidrelétrica e a diminuição dos peixes, o consumo
de alimentos industrializados causou um “boom” de doenças como
hipertensão e diabetes (BRUM, 2019). No mesmo ano, o Distrito
Sanitário Especial Indígena, subordinado ao Ministério da Saúde,
redigiu um relatório sobre o impacto da usina na vida dos povos
originários. Com a construção de Belo Monte, os indígenas passa-
ram a receber cestas de alimentos não perecíveis e industrializados,
fazendo com que as tribos deixassem de fazer suas roças, de plantar
e de produzir seus próprios alimentos. Dois anos depois, o benefício
foi cortado e os indígenas ficaram sem alimentos e produção de in-
sumos (BRUM, 2015). Diante desse problema, aumentou o número
de casos de crianças com peso baixo ou peso muito baixo para a
idade. Além disso, o relatório do DSEI aponta que a mudança da
269
dieta alimentar ocasionou muitos casos de doença diarreica aguda,
mais um fator para o aumento da desnutrição infantil em 127% en-
tre 2010 e 2012. A situação agravou-se de tal forma que, em 2014,
técnicos da FUNAI recomendaram a aquisição de cestas básicas para
enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades (BRUM,
2015). Em depoimento a Eliane Brum em 2017, Alice Juruna, uma
então ascendente liderança indígena, reafirmou o impacto na vida
dos indígenas na dieta:
Eu fui criada pelo meu pai comendo peixe com farinha. E estava
criando meus filhos assim. A gente não precisava de muito dinhei-
ro. Agora, que não tem mais peixe, a gente precisa de dinheiro.
E as crianças estão comendo carne de boi e frango que a gente
compra na cidade, enlatados, salsichinhas e miojo, que é o que
mais tem por aqui. E estão adoecendo (BRUM, 2017, s/p).
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Outro ponto dramático ocorreu em relação à assistência médi-


ca: a realocação desordenada de mais de oito mil famílias (incluídos
aí os indígenas) para novos bairros trouxe impacto aos Programas
de Saúde da Família (PSF), já que a transferência dos agentes co-
munitários de saúde não acompanhou a mudança das famílias que
eles antes atendiam, gerando interrupção no acompanhamento e
prevenção de doenças (ISA-INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2015).
Com a dificuldade de acesso, muitas pessoas deixaram de ir à cidade
para fazer os devidos acompanhamentos médicos. Em 2014, apenas
na reserva Resex Rio Iriri, houve quatro casos de acidente vascular
cerebral (AVC), um quadro que decorre da hipertensão arterial e
também da falta de acompanhamento médico (ISA-INSTITUTO SO-
CIOAMBIENTAL, 2015). Outro quadro agravado pelos deslocamentos
e demais questões oriundas da construção da usina foi a epidemia
de doenças mentais na população indígena e ribeirinha, com mais
foco nos segundos. Os psicanalistas Christian Dunker, Ilana Katz e a
jornalista Eliane Brum criaram o projeto Refugiados de Belo Monte,
que, por meio de financiamento coletivo, buscou construir um mo-
270
delo de saúde mental junto à população ribeirinha atingida por Belo
Monte. Essa proposta foi chamada pelos proponentes de “Clínica de
Cuidado”, que seria um dispositivo de atenção ao sofrimento psíquico
para atender aqueles que, em curto espaço de tempo, perderam as
referências fundamentais de organização e funcionamento da própria
vida.2 Grisotti (2016) destaca um “mal de origem” na discussão sobre
saúde da hidrelétrica: o relatório de impacto social e ambiental da
usina deu pouca atenção aos aspectos ligados à saúde, como a relação
entre migração forçada e doenças, sífilis em gestantes, homicídios e
morte no trânsito no contexto de Belo Monte.

2 Parte desse processo pode ser conferido no documentário dirigido


por Eliane Brum, chamado Eu + 1: uma jornada de saúde mental na
Amazônia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IG_
DdW4znCE&feature=youtu.be. Último acesso: 18/09/2020.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

De acordo com a autora, as medidas compensatórias rela-


cionadas à saúde ficaram reduzidas à instalação (em muitos casos,
incompleta) de equipamentos médico-sanitários, como a construção
de unidades de saúde e de saneamento básico, sem o estabelecimento
de indicadores de saúde para acompanhamento do projeto de forma
contínua e sistêmica no período de construção da usina. Decisões e
omissões políticas durante o processo de instalação e implantação
de Belo Monte, as incertezas em relação aos danos e as consequentes
dificuldades nas suas correlações de causalidades criaram indefini-
ção em relação às possíveis medidas mitigatórias na assistência à
população atingida (GRISOTTI, 2016). Em 30 de novembro de 2020,
André Villas-Boas, conselheiro diretor do Instituto Socioambiental,
e Carolina Piwowarczyk, secretária executiva da Rede Xingu +, fi-
zeram um balanço sobre os cinco anos do licenciamento ambiental
para a construção de Belo Monte. Em artigo à Folha de São Paulo
intitulado “Belo Monte: sonho acabou e pesadelo continua”, os
autores reafirmam questões pontuadas desde o início da existência
da hidrelétrica, destacando que não havia possibilidade de come-
271
morar uma obra com legado de violações aos direitos humanos e ao
meio ambiente, tornando-se assim, um “símbolo de inadimplência
socioambiental” (VILLAS-BÔAS et al., 2020, s/p):
As populações mais vulneráveis pagaram a conta dos impactos
mais nefastos. O legado de Belo Monte é a expulsão de centenas
de famílias ribeirinhas de suas casas, ainda à espera de reassen-
tamento na beira do rio, no território ribeirinho. É a invasão de
Terras Indígenas e Unidades de Conservação, que estão entre as
mais desmatadas na Amazônia. É a transformação de Altamira
(PA) em uma das cidades mais violentas do país. São os impasses
na gestão do sistema de saneamento básico. É a despedida ao rio
Xingu como conhecíamos.
Após o conturbado processo envolvendo o impeachment de
Dilma Rousseff e o subsequente e impopular governo de Michel Te-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

mer, os eleitores brasileiros elegeram Jair Messias Bolsonaro presi-


dente da república. Político de longa carreira, sempre apresentou-se
defendendo os interesses de militares e de seus herdeiros. De caráter
ultraconservador e religioso, o governo Bolsonaro também arrogou
para si, por meio do ministro Paulo Guedes (antigo colaborador do
governo Pinochet), um perfil ultraliberal, no qual os interesses de
empresas privadas de apoiadores do governo teriam prioridade em
assuntos relacionados a demarcação de terras, turismo e exploração
de áreas ocupadas por indígenas. Nesse sentido, a pandemia de co-
vid-19 e as questões envolvendo a saúde dessa população em 2020
sofrem também reflexo da linha de atuação do governo e da forma
como as agências e empresas públicas foram colocadas à disposição
dos projetos que envolvem também o ministro do meio ambiente,
Ricardo Salles. Defensor da exploração mineral em territórios in-
dígenas, Salles afirmou em entrevistas que “lideranças indígenas
consultadas por ele são favoráveis [a esses projetos em terras indí-
genas]” e que associações como a Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (APIB) são “ONGs e grupos que usam os indígenas para a
272
sustentação de suas propostas” (BBC, 2020). Uma amostra da políti-
ca governamental para as tribos está nos vetos que o poder executivo
impôs ao projeto de lei 14.021, que previa medidas de proteção para
comunidades indígenas. O texto criou o Plano Emergencial para
Enfrentamento à covid-19 para essa população, com medidas de
vigilância sanitária e epidemiológica para a prevenção de contágio
e disseminação da doença.
Além das aldeias isoladas ou de recente contato, a lei se aplicou
a indivíduos que vivessem fora das terras demarcadas e a povos in-
dígenas e de outros países que se encontravam no Brasil em situação
de migração provisória (BRASIL, 2020). O projeto também garantia
assistência aos quilombolas, pescadores artesanais e demais povos
tradicionais, assim, todos passariam a ser considerados “grupos
em situação de extrema vulnerabilidade” e “de alto risco” (BRASIL,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

2020). Entre os pontos vetados pelo poder executivo estão os que


previam o acesso das aldeias à água potável, materiais de higiene,
leitos hospitalares e respiradores mecânicos, além de pontos de
internet locais e a distribuição de materiais informativos sobre a
covid-19. Não à toa, profissionais de saúde têm sentido dificuldade
no combate à pandemia, como relatou Valmir Farias, enfermeiro
indígena que atua no Mato Grosso do Sul. De acordo com Farias,
muito do trabalho com essas populações na pandemia envolve
impedir mudanças de aldeias, evitar visitas e orientar em relação
aos cuidados (QUARENTENA, 2020), atividade dificultada pelas
constantes incertezas e por cortes de verba por parte do governo
federal. Dois meses depois da discussão do projeto-lei, o ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou
que o governo apresentasse uma nova versão do Plano de Enfren-
tamento e Monitoramento da COVID-19 para os povos indígenas
brasileiros, em diálogo com a Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB), o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH),
a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Grupo de Trabalho de Saúde
273
Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).
Pesquisadores como Ana Lúcia de Moura Pontes, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), criticaram a abor-
dagem do governo federal pela parca objetividade ou pelas condições
dadas ao combate à pandemia, em especial pela pouca disposição
de escutar os povos indígenas na construção do plano (EVANGE-
LISTA, 2020). A covid-19 tornou-se, assim, mais preocupante nas
aldeias porque os indígenas são grupos de múltiplas vulnerabilidades
(EVANGELISTA, 2020). Em suma, os povos originários têm dificul-
dade de acessar as políticas públicas, o serviço de saúde é precário
e não existe assistência médica para remoções de doentes. Dessa
forma, quando enfermos, já chegavam às cidades em estado mais
grave e com pouca possibilidade de cura (COVID-19, 2020), o que
ocasionava uma mortalidade maior que a média para o restante da
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

população. De acordo com o Instituto Socioambiental, os modos de


vida de muitos povos criaram uma exposição a doenças infecciosas à
qual as pessoas nas cidades não estão submetidas, pois grande parte
deles vive em casas coletivas, onde é comum o compartilhamento
de utensílios, como cuias, tigelas e outros objetos, o que favorece as
situações de contágio (ISA, 2020). Em busca de um melhor acompa-
nhamento sobre a incidência de covid-19 entre as tribos, foi criada,
pela mesma instituição, uma plataforma de monitoramento da si-
tuação indígena do novo coronavírus no Brasil. Em conjunto com a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a plataforma tenta
dar conta da dificuldade em dimensionar o impacto da doença nesses
povos.3 Conforme é destacado, os números oficiais não refletem
necessariamente a extensão da pandemia. Além disso, a dispersão
dos dados dificulta o reconhecimento das regiões e dos povos mais
afetados. Por fim, mais um problema é a ausência de informações
sobre indígenas que vivem fora das terras homologadas, incluindo
aí os que habitam as cidades, bem como populações que aguardam
a finalização do processo de demarcação de terras.
274
Conclusão
Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos
brancos, o rastro de vocês na terra.
A frase acima, dita por Davi Kopenawa (ISA, 2020), porta-
-voz e líder Yanomami, ajuda a compreender um aspecto que tem
sido recorrente nas intervenções estatais arroladas neste texto, bem
como as consequências sanitárias do ideário que representam: o
genocídio dos povos indígenas e sua relação com o paradigma desen-
volvimentista na política brasileira ao longo dos séculos XX e XXI.
Em instigante artigo que discute a invisibilização do racismo contra

3 Ver https://covid19.socioambiental.org/?gclid=Cj0KCQiA2uH-BRC-
CARIsAEeef3lSATNYFI6TB6H8rQFDEOIkED9lF4uaWvdlDmar_728wq
UZsL2xp0UaAq4HEALw_wcB.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

indígenas, Milanez e outros autores afirmam que um mito conside-


ravelmente difundido pelo senso comum é o do “desconhecimento”
da realidade indígena, de modo que juristas e legisladores decidiriam
de forma contrária aos direitos dos povos originários por conta de
uma suposta falta de conhecimento (MILANEZ et al, 2019). Segundo
os autores, alegar falta de conhecimento é desconsiderar o efeito do
racismo em regular a ideologia e a estrutura econômica. Tal situação
contribui consideravelmente para o apagamento do protagonismo
indígena como elemento fundamental para a elaboração de políti-
cas de saúde voltadas para eles mesmos, tendo como consequência
momentos de extrema violência cultural. O sepultamento de povos
em cemitérios de cidades e não nos territórios tradicionais tem sido
uma das questões enfrentadas recentemente. Com a ausência de
diálogo, ocorrem episódios como a morte de um jovem Yanomami,
enterrado em Boa Vista (Roraima). Ao seguir de forma rígida o
protocolo de sepultamento para vítimas de covid-19, a Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI) desrespeitou a cultura dos
Yanomamis que, ao invés de enterros, promovem rituais funerá-
275
rios de seus mortos com cremação de ossos e ingestões de cinzas.
Mediações são necessárias e urgentes entre as partes, mas não é o
que tem acontecido (CORONAVÍRUS, 2020). Um dos campos que
mais têm oferecido reflexões pertinentes e inovadoras é a História do
Tempo Presente, cuja marca central – além da sua imbricação com
a política – decorre do fato de sujeito e objeto estarem mergulhados
em uma temporalidade “que não terminou”, trazendo importantes
consequências epistemológicas para o conhecimento que se deseja
construir (FICO, 2012, p. 45). Este é justamente o ponto central
deste texto: questões nem terminadas, nem tampouco superadas
na relação entre Estado brasileiro e povos indígenas colaboram
para a gravidade do tempo que vivemos e da continuidade do ge-
nocídio dos povos indígenas em contexto de pandemia. Neste exato
momento (15/12/2020), contabilizamos mais de 181 mil mortos no
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

país, dentre eles, 501 óbitos indígenas em terras indígenas (APIB,


2020). Que casos como o de Messias Kokama, o “cacique de muitos
povos” (RIBEIRO, 2020), que sucumbiu à covid-19, e de muitos
outros não sejam em vão.

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280
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Epidemias e extrativismo: A literatura indígena


na linha de frente

Claudete Daflon1

A situação representada pela pandemia de covid-19 tem co-


locado em cena a já conhecida vulnerabilidade das populações indí-
genas a doenças infecciosas originadas fora de suas comunidades. A
escala para aplicação das vacinas, ao priorizar num primeiro momen-
to profissionais da saúde da linha de frente e aqueles que estariam
sujeitos aos efeitos mais nefastos da infecção – idosos e indígenas
–, corrobora a condição de suscetibilidade desses povos. Ao mesmo
tempo, a deficiência e inoperância para a realização da vacinação de
povos originários coexistem nefastamente com o avanço acelerado
de garimpeiros, do agronegócio e madeireiros pelas terras indíge-
nas demarcadas. A seriedade da situação está na origem do dossiê 281
“Pandemia da Covid-19 na vida dos Povos Indígenas”, organizado
pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em parceria
com a Revista Terena Vukápanavo. As condições encontradas em
terras indígenas localizadas no estado de Roraima são um exemplo
do retrato dos efeitos de políticas que oscilam entre o abandono e o
ataque a essas populações:
Além do número de indígenas vítimas do Covid-19 na região
aumentar a cada dia contabilizando 92 (noventa e dois) óbitos
até o dia 09 de novembro de 2020 (CIR/COIAB, 2020), registra-
mos ainda as invasões de terras indígenas tanto por garimpeiros
em busca de minérios (o caso das terras indígenas Yanomami e
Raposa/Serra do Sol) como também empresários que passaram

1 Professora Associada de Literatura Brasileira da Universidade Federal


Fluminense.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

a se autointitular donos de determinadas áreas tradicionalmente


ocupadas pelas comunidades. (ALEIXO; LIMA; AURELIANO,
2020, p. 14)
A situação como se apresenta remete à espoliação histórica
por que passaram povos nativos das Américas. Agentes infecciosos
como vírus e bactérias foram muitas vezes aliados importantes dos
colonizadores no extermínio de povos ameríndios, por meio de trans-
missão involuntária ou mesmo deliberada. Relatos como o do xamã
yanomami Davi Kopenawa exemplificam como a memória coletiva
desses grupos nos informa sobre modos de ação e procedimentos que
se repetiram como estratégia de extermínio ao longo da história e que
vigoram ainda hoje por meio de investidas de organizações e indivídu-
os interessados nos territórios ocupados por sociedades tradicionais:
Naquela época os brancos também distribuíam grandes quan-
tidades de cortes de tecido vermelho. Os homens faziam tangas
com ele. Mas esse tecido de algodão também era muito perigoso.
Pouco depois de receber um corte dele, as pessoas começavam
a tossir e seus olhos infeccionavam. Por isso os tecidos foram
282 chamados de thoko kiki, coisas da tosse. São bens de troca malé-
ficos, produzidos pelos antigos brancos em terras afastadas, com
o algodão de árvores de epidemia xawara hi. [...] Hoje, usamos
bermudas e outras roupas. Mas ainda desconfiamos das peças
de algodão vermelho. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 247)
O relato do xamã aponta para o que a pesquisadora Manuela
Carneiro da Cunha já havia observado sobre o contato mediatizado
por “objetos, achados, miçangas, capazes de percorrerem imensas
extensões, mediante comércio e guerra [...]” (2012, p. 12). É preciso,
portanto, ver com cautela a existência de isolamentos efetivos de
grupos indígenas, ao mesmo tempo em que se deve ter em mente que
o fluxo dos objetos se faz acompanhar da expansão de microrganis-
mos. A partir dessa constatação, a antropóloga lembra a velocidade
com que patógenos invadiram o Novo Mundo: “muito superior à dos
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

homens que os trouxeram” (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 12).


Os efeitos dessa difusão se fizeram sentir também de forma rápida:
Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como
consequência do que hoje se chama, num eufemismo envergo-
nhado, “o encontro” de sociedades do Antigo e do Novo Mundo.
Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo complexo
cujos agentes foram homens e micro-organismos, mas cujos mo-
tores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição,
formas culturais da expansão do que se convencionou chamar
o capitalismo mercantil. (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 12)
A antropóloga deixa evidente que as circunstâncias em que se
deu a mortandade de populações não podem ser limitadas aos vírus
e às bactérias. Se os microrganismos tiveram um papel importante
“na catástrofe demográfica da América”, isso não pode ser disso-
ciado de uma política interessada na apropriação de povos como
escravos. As guerras de conquista e os aldeamentos se somaram à
fome, à migração compulsória e à consequente desestruturação das
sociedades indígenas (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p.15). Esses
fatores contribuíram em conjunto para a dizimação dos índios, de 283
modo que as epidemias não podem ser compreendidas como eventos
isolados desconectados de uma realidade marcada pela espoliação,
exploração e violência. As políticas indigenistas devem ser levadas
em consideração enquanto expressão de disputas e interesses, daí
Carneiro da Cunha observar que a cobiça se desloca do trabalho para
as terras indígenas no século XIX e, no XX, se volta para o subsolo.
Para a pesquisadora, o isolamento e a falta de imunidade não seriam
suficientes para explicar o número de mortos e, nesse sentido, mostra-
-se relevante perceber que os microrganismos incidiram num mundo
socialmente ordenado, onde a concentração da população indígena
movida por missionários religiosos e órgãos oficiais foi altamente
favorável à disseminação e à letalidade de doenças infecciosas.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Nesses termos, fica evidente a conexão entre doença e práticas


extrativistas historicamente estabelecidas. Por esse viés, a reflexão
acerca das epidemias e seus efeitos sobre populações indígenas exige
um esforço de articulação que as entenda como parte de um processo
que tem suas bases no capitalismo e no colonialismo. O vírus não
joga esse jogo sozinho. José Correa Leite, em texto de apresentação
à edição brasileira do livro As fronteiras do neoextrativismo na
América Latina (2019), da socióloga argentina Maristella Svampa,
usa o plural “Brasis” para indicar diferentes momentos da história
do país em que se observam conexões entre extrativismo e escra-
vismo. O diagnóstico de Leite indica a possibilidade de identificar,
a partir da revisão de um modelo social pautado na colonialidade,
relações entre, por exemplo, doenças e práticas extrativistas. Parece
plausível atrelar as epidemias que, ao longo da história, assolaram
povos indígenas, a uma prática predatória desenvolvida no seio da
colonização. Em outras palavras, do mesmo modo que se propõe
considerar a relação entre escravismo no Brasil e a destruição sis-
temática de biomas, é razoável cogitar, ainda que a partir de outros
284
referentes, como a difusão de doenças contagiosas e seus efeitos em
comunidades ameríndias fazem parte de um sistema socioeconômico
fundado no extrativismo.
Maristella Svampa alerta para a associação existente entre
conquista, genocídio e extrativismo. As regiões colonizadas são
convertidas “em áreas de sacrifício” (SVAMPA, 2019, p. 26) ao as-
sumirem a função de fornecedoras de matéria-prima na economia
mundial. Não espanta que Svampa conceba o extrativismo, dada sua
dimensão histórico-estrutural e centralidade no desenvolvimento
do capitalismo, como categoria analítica privilegiada para descrever
e explicar a realidade latino-americana. Ao se tornar uma região
exportadora da natureza, o continente se caracterizou pela explo-
ração de bens naturais não renováveis e a consequente expansão
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

das fronteiras extrativistas. Isso, na perspectiva da socióloga, se


consolida com o que nomeia como neoextrativismo, isto é, modelo
sociopolítico que pressupõe megaprojetos de exploração de bens
primários (hidrocarbonetos, minérios, produtos agrários...) em
grande escala para fins de exportação.
Como alerta a socióloga, há alguns aspectos que não podem
ser negligenciados. O primeiro deles é o fato de o extrativismo es-
tar no cerne do capitalismo e remeter obrigatoriamente às raízes
coloniais da acumulação do capital. Ou melhor, a persistência de
modelos extrativistas tem por baliza o mito do Eldorado sobre o qual
se constrói a crença na infinitude de recursos e na vocação regional
para as riquezas naturais. O segundo deles é a dimensão sociopolítica
e territorial do extrativismo que se reflete na contínua expansão de
fronteiras, gerando disputas associadas à territorialidade. O grau
conflitivo inerente à lógica extrativista gera violência significativa.
Os projetos extrativistas impõem, ademais, uma visão única de ter-
ritorialidade marcada pelo seu caráter utilitário, e as comunidades
locais são invisibilizadas graças a processos de “esvaziamento” que
285
justificam o avanço da ocupação de áreas cobiçadas por setores
econômicos diversos. O “discurso eficientista” mostra-se um aliado
importante para o avanço do extrativismo:
Em suma, a afirmação de que existem regiões marcadas historica-
mente pela pobreza e vulnerabilidade social, com baixa densidade
populacional, que contam com grandes extensões de territórios
“improdutivos”, facilita a instalação de um discurso eficientista
e excludente em nome das dinâmicas globais do capital. Seja por
concebê-los como territórios socialmente esvaziados, ociosos
ou desérticos, o resultado é similar: a desvalorização de outras
formas produtivas e das economias regionais, e a obstrução de
outras linguagens de valorização do território [...]. (SVAMPA,
2019, p. 58)
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Nesse contexto caracterizado pela desqualificação e invisi-


bilização de populações que ocupam territórios cobiçados, povos
indígenas têm sofrido de perto o avanço das fronteiras extrativistas
sob a justificativa, muitas vezes, de que se está levando o progresso,
a modernização e a civilização a regiões atrasadas. Esse discurso,
não raramente, vem acompanhado da noção de que os indígenas são
inimigos da pátria, pois representam obstáculo ao seu desenvolvi-
mento. Este, convertido em uma verdadeira mitologia, justifica a des-
truição ambiental acelerada sob a alegação de que, de outro modo,
não haveria geração de riquezas. A crença desenvolvimentista, tal
como instada no capitalismo, passa a ser objeto de questionamento
e problematização à proporção que se expõe sua face destrutiva e se
reconhece a falácia dos recursos inesgotáveis. Exemplos avultam e,
sem dúvida, episódios mais agudos e marcantes por sua amplitude
têm se tornado cada vez mais frequentes, como o rompimento da
barragem de rejeitos da Samarco na cidade de Mariana, em Minas
Gerais, em 2015, com efeitos perniciosos para um rio tão importante
quanto o rio Doce – parente dos Krenak, como esclarece Ailton Kre-
286
nak em depoimento à equipe Povos Indígenas no Brasil do Instituto
Socioambiental (ISA): “Watu, que é como nós chamamos aquele rio,
é uma entidade; tem personalidade” (2016).2 Ou o posterior rompi-
mento da barragem da Mina do Córrego do Feijão em 2019, na cidade
de Brumadinho, também em Minas Gerais, com 240 vítimas fatais.
Ambos eventos, não por acaso, se deram sob a responsabilidade de
uma companhia de mineração: a Vale do Rio Doce. Por outro lado,
se casos de envergadura maior ganham visibilidade, há de se notar
a relevância de processos destrutivos rotinizados e que produzem

2 Na apresentação à entrevista, é informado que: “No dia 7 de setembro


de 2016, pesquisadores do tema Povos Indígenas no Brasil, do ISA, entre-
vistaram o líder Ailton Krenak sobre os impactos no território krenak do
desastre de Mariana (MG), o maior crime socioambiental já registrado no
Brasil e que completou um ano no último dia 5/11”.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

resultados perturbadores. A arena de embates instaurada dramatiza


o que Horacio Aráoz (2016) chamou de “necroeconomia de frontei-
ra” – povos e biomas pagam com suas vidas o preço do progresso.
Nas noções de territorialidade de povos originários, é recor-
rente a vinculação entre território e corpo, de maneira que o viés de
identificação homem-natureza, a contrapelo do pensamento ociden-
tal moderno, revela o extrativismo como uma política de extermínio.
Aráoz ressalta a convergência corpo-território: “Entender e sentir
até que ponto a exploração da Terra é, em si mesma, a exploração
dos corpos é algo crucial para os que estamos situados em uma
perspectiva epistêmico-política do sul” (2016, p. 459). A referência
ao Sul global evoca a discussão já bastante difundida pelo sociólo-
go português Boaventura de Sousa Santos (2010) e permite situar
a questão dos povos originários numa episteme do sul enquanto
expressão das “zonas de sacrifício”.
Em outras palavras, encarar o extrativismo como um proces-
so histórico de implementação de práticas que expropriam vidas e
destroem ambientes e populações a serviço da acumulação capita-
287
lista permite deduzir que o avanço de fronteiras para uma ocupação
“eficiente” mantém relação com o desenvolvimento de epidemias em
grupos como os indígenas e mesmo de pandemias como a de covid-19.
Em relação à vulnerabilidade de comunidades, Manuela Car-
neiro da Cunha observa que, na expansão europeia:
A barreira epidemiológica era, com efeito, favorável aos euro-
peus na América, e era-lhes desfavorável na África. Na África,
os europeus morriam como moscas; aqui eram os índios que
morriam: agentes patogênicos da varíola, do sarampo, da co-
queluche, da catapora, do tifo, da difteria, da gripe, da peste
bubônica, e possivelmente da malária, provocaram no Novo
Mundo o que Dobyns chamou de “um dos maiores cataclismas
biológicos do mundo”. (2012, p. 14)
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

No entanto, como já dito, a mortandade não seria resultado


apenas dos aspectos imunológicos das etnias. Como afinal dissociar
a doença e seus efeitos das circunstâncias em que se desenvolve? E
como creditar à resposta imunológica o valor de explicação única
para um processo complexo e diverso? Como ignorar, nesse contexto,
mudanças de hábitos alimentares que se somam a outros fatores que
afetam negativamente o estado nutricional dos indivíduos de uma
comunidade, as transformações ambientais favoráveis à transmis-
são de doenças, a contaminação da água, do ar, da flora e da fauna
por agentes químicos de alta toxicidade, bem como o crescimento
expressivo do alcoolismo em populações indígenas?
Parece razoável, portanto, abordar a ocorrência de epidemias
entre povos originários em sua relação com práticas extrativistas
e neoextrativistas. Trata-se, em suma, de discutir as doenças in-
fecciosas desde o interior de processos de exploração impostos a
determinadas regiões e grupos sociais. Essa perspectiva se mostra
não apenas válida, mas também necessária diante do contexto em
que se dá, por exemplo, o avanço da covid-19 entre grupos indíge-
288
nas da Amazônia. O garimpo ilegal, a grilagem de terras e a ação de
madeireiras avançam junto com o SARS-Cov-2 e suas variantes, sem
que se possa esquecer a situação particularmente sensível da região
com o estabelecimento de megaempreendimentos e a expansão do
agronegócio. Convém lembrar que o desmatamento e as queimadas
têm alcançado patamares preocupantes nos últimos anos.3

3 Em matéria de Hector Escobar publicada em 07/08/2020 no Jornal


da USP: “A destruição da floresta amazônica segue em ritmo acelerado no
Brasil. Dados de monitoramento por satélite divulgados nesta sexta, dia
7, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que a
taxa de desmatamento na Amazônia aumentou 34% nos últimos 12 meses,
em comparação com o mesmo período do ano anterior. É a segunda alta
consecutiva nos primeiros dois anos de gestão do presidente Jair Bolso-
naro”. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/desmatamento-da-
-amazonia-dispara-de-novo-em-2020/.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Uma abordagem que considere os impactos da entrada de um


novo patógeno em uma determinada comunidade não pode, de fato,
prescindir de um entendimento mais amplo do que efetivamente
a nova situação sanitária representa. O vírus como invasor expõe,
por sua vez, as diversas invasões que estiveram ou ainda estão em
andamento quando se trata de pensar em povos ameríndios. Essa
noção é ratificada quando se compreende que “[i]ntroduzido nas
comunidades indígenas por indivíduos externos a elas, o novo
coronavírus repetiu de modo similar o contexto colonial, sendo
percebida ali, após o início da contaminação dos povos originários,
uma nova oportunidade para o ideal eugênico de nação prevalecer”
(MODESTO; NEVES, 2020, p. 218). As epidemias aparecem assim
como parte de processos de dominação e exploração que se perpe-
tuam, não apenas pela reincidência de determinadas práticas, mas
pelos impactos que produzem entre aqueles que sobreviveram, de
maneira que os que resistiram (e resistem), inclusive por meio das
narrativas, precisam lidar com ameaças constantes.
Esse encaminhamento da discussão abre a possibilidade de
289
uma leitura de publicações de autoria indígena no contexto amplo e
heterogêneo em que se multiplicam expressões de uma produção lite-
rária que se constrói como ativismo voltado à afirmação de modos de
viver insistentemente ameaçados. A territorialidade envolvida nesse
debate, por sua vez, assinala a inserção da literatura indígena na
disputa pelo território, que é também discursivo. Nessa conjuntura,
convém refletir sobre a publicação de livros como Ideias para adiar
o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020) do líder indígena
Ailton Krenak, tendo em vista, principalmente, o alcance de público
que essas duas obras obtiveram. Um sucesso, sem dúvida, chance-
lado pelo selo de uma editora de grande porte como a Companhia
das Letras, mas também resultado do crescente questionamento
que envolve questões ambientais e identidades culturais. Por outro
lado, não se deve subestimar o fato de que publicações de lideranças
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

como Ailton Krenak, na convergência entre ativismo, pensamento


e discurso, desempenham papel importante no reconhecimento da
contribuição desses povos.
Frente a experiências de publicização de escritos de autores
indígenas como Krenak, entende-se que cosmovisões originárias
contribuem significativamente para perspectivas mais relacionais
que tornam evidente a epidemia como parte de políticas de invasão
cuja base é o extrativismo. Na contramão de tendências dissociativas
que compartimentalizam e tratam os eventos de forma isolada, a
visibilidade assumida por cosmologias ameríndias tem respondido à
demanda pelo restabelecimento de um olhar mais integrador capaz
de contemplar a complexidade dos contextos em que se desenvol-
vem doenças infecciosas. Uma abordagem crítica da questão exige
articular diferentes aspectos envolvidos no desenvolvimento da
patologia, bem como as suas consequências no âmbito das comu-
nidades humanas. Sobre essas bases, se propõe pensar a epidemia
como parte do problema extrativista.
A difusão deliberada ou não de microrganismos para os quais
290
determinados povos são particularmente suscetíveis expõe bem como
práticas socioculturais, interesses econômicos e aspectos biológicos
não se encontram separados em estantes. Então, num primeiro mo-
mento, se mostra necessário reconhecer o desafio de uma realidade
múltipla que resiste à organização disciplinar do conhecimento.
Os livros embaralhados na estante
Da leitura do jornal parte Bruno Latour em Jamais fomos
modernos para mostrar o quanto a organização do periódico em
seções é desmentida pelo teor de seus conteúdos. Um entrecruza-
mento incrível de assuntos contrasta com a tentativa de depuração
de temas e áreas de conhecimento, o que, na percepção do ensaísta,
expõe uma realidade profundamente heterogênea, ou melhor, hí-
brida que se busca domesticar por meio de definições disciplinares:
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações po-


líticas. Um mesmo fio conecta a mais esotérica das ciências e a
mais baixa política, o céu mais longínquo e uma certa usina no
subúrbio de Lyon, o perigo mais global e as próximas eleições
ou o próximo conselho administrativo. (LATOUR, 2009, p. 7)
Na introdução ao livro, que teve sua primeira edição em
francês em 1991, o percurso da leitura do jornal representa o desafio
cotidiano do que autor vai denominar “proliferação de híbridos”. Se
o fio é o vírus da AIDS, a rede que se constrói atravessa as páginas
tanto de Política, quanto de Cultura e Ciência, num processo de com-
partimentalização que insiste em ignorar a interconexão inerente
ao tema. Como diz Latour, o fio é cortado em diversos segmentos
na medida das “disciplinas puras”, consolidando a recusa de um
conhecimento que se mistura inclusive com as esferas de poder. O
caráter impositivo e problemático dessa purificação disciplinar se
coloca de fato como um obstáculo quando se está diante de uma rea-
lidade que reiteradamente desmente a segmentação. A Constituição
moderna, como nomeou Latour, se caracterizaria nesses termos pela
insistente tentativa de negar os híbridos, convertê-los em categorias 291
puras, num processo infindável de purificação que só faz gerar ainda
mais híbridos... Diante disso, o pensador francês assinala que, se a
antropologia já vinha se debruçando sobre o “tecido inteiriço das
naturezas-culturas” de modo a construir “uma mesma narrativa
relacionando o céu, os ancestrais, a forma das casas, as culturas de
inhame, de mandioca ou de arroz, os ritos de iniciação, as formas
de governo e as cosmologias. Nem um só elemento que não seja
ao mesmo tempo real, social e narrado” (LATOUR, 2009, p. 12), a
situação é bem outra quando se volta para as sociedades modernas
cujo “tecido não é mais inteiriço” (LATOUR, 2009, p. 13).
A problemática enfrentada pelo ensaio de Bruno Latour
diz respeito à separação entre natureza e cultura, ou ainda, entre
humanos e não-humanos. Essa distinção tornada modernamente
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

constitucional encerra a contradição de um modelo que produz


híbridos à medida que os nega: “Quanto menos os modernos se
pensam misturados, mais se misturam. Quanto mais a ciência é
absolutamente pura, mais se encontra intimamente ligada à cons-
trução da sociedade” (LATOUR, 2009, p. 47). Além disso, a alusão
a uma distinção pautada na lei desconstrói o valor ontológico que
se atribuiu à separação.
Ainda para o autor, caberia à antropologia descrever e explicar
as ramificações modernas, o que significa, por fim, compreender a
modernidade como uma cosmologia entre outras. Tal constatação
permite igualmente deduzir como estratificações estão pautadas num
processo no qual, graças à concepção de tempo linear e progressi-
vo, a Constituição moderna converte a assimetria entre natureza
e cultura em uma assimetria entre passado e futuro, de maneira
que “[o] passado era a confusão entre as coisas e os homens; o fu-
turo, aquilo que não os confundirá mais” (LATOUR, 2009, p. 70).
Simplificadamente, a perspectiva apresentada pelo ensaísta leva a
considerar que o regramento de uma separação entre natureza e
292
cultura, enquanto manifestação de uma cosmologia que se assumiu
como única e universal, se apresenta aos modernos como evolutiva-
mente superior à realidade das sociedades que não se fundam nessa
distinção. No entanto, concomitantemente, esses mesmos modernos
se veem confrontados com o dilema de lidar com o incessante sur-
gimento de híbridos que não se submetem às distinções propostas,
nem poderiam ser simplesmente enquadrados como uma condição
mediana aos dois polos.
O debate conduzido por Latour se desdobra sobre a confor-
mação das ciências como saberes alheios à política. A afirmação de
um caráter constitucional aponta para a impropriedade da natura-
lização desse tipo de distinção e um questionamento que afirma as
redes recalcadas pelo pensamento moderno. Trata-se, no final, de
enfrentar questões embaraçosas: “Mas como classificar o buraco
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

de ozônio, o aquecimento global do planeta? Onde colocar estes


híbridos? Eles são humanos? Sim, humanos pois são nossa obra.
São naturais? Sim, naturais porque não foram feitos por nós. São
locais ou globais? Os dois” (LATOUR, 2009, p. 54).
A revisão das compartimentalizações vai ao encontro do
que pensa Rob Wallace, quando pergunta a respeito da origem do
SARS-CoV-2: “Como explicar a mudança de morcegos para pango-
lins e, talvez, para outras espécies intermediárias, como do porco
para o homem, sem fazer menção à agropecuária (ou à extração
de madeira ou à mineração)?” (WALLACE, 2020, p. 544).4 Para
responder a essa pergunta, o biólogo propõe algumas explicações
como: a expansão e interiorização do setor de alimentos silvestres
e da produção industrial de animais até encontrar reservatórios
de morcegos; a ampliação de círculos periurbanos e o aumento
da “interface (e o transbordamento) entre populações de animais
selvagens e humanos das áreas rurais recentemente urbanizadas”;
e a redução da “complexidade ambiental com a qual as florestas po-
dem interromper a transmissão de vírus mortais [...]” (WALLACE,
293
2020, p. 544-545). Desse modo, o pesquisador reputa a um circuito
regional de produção, que constitui um modelo produtivo que está se
expandindo globalmente, a provável origem da covid-19. A conclusão
cabal desse tipo de análise é que “as doenças infecciosas não dizem
respeito apenas ao próprio vírus, mas também ao contexto do qual
emergem” (WALLACE, 2020, p. 545).
O biólogo evolutivo e filogeógrafo vai apontar então possíveis
soluções frente aos desafios representados por um modelo de produ-
4 O texto em questão se intitula “A origem controversa do SARS-Cov-2”,
de 2020, e foi incluído na edição brasileira de uma coletânea de escritos
de Rob Wallace que incluem material disponibilizado originalmente no
blog Farming Pathogens, assim como em revistas diversas. Essa reunião
de textos se deu originalmente em 2016 sob o título Big Farms Make Big
Flu: Dispatches on Influenza, Agribusiness, and the Nature of Science. A
edição brasileira veio a público em 2020 pela editora Elefante.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

ção implementado pelo agronegócio e que nos coloca em permanente


risco sanitário: reconstruir as economias das cidades; abandonar
ideologias coloniais; recuperar paisagens rurais e florestais, bem
como recursos hídricos locais; derrotar o agronegócio; e “aprender
com os povos indígenas como tratar uma paisagem tanto em relação
ao seu éthos quanto como fonte de alimento” (WALLACE, 2020, p.
546). Está em foco uma percepção que alinha questões ambientais
e debates sobre modelos extrativistas de produção a um problema
sanitário. E, na medida em que se consideram formatos de criação
de animais e a relação com a terra e com o cultivo tais como são
desenvolvidos por indígenas e pequenos produtores, não será difícil
concluir a favor da existência de uma inter-relação entre problemas
ambientais, neoliberalismo, distribuição internacional desigual
de riquezas, modelos de exploração colonial, extrativismo e lutas
identitárias-territoriais realizadas por povos originários. A figura 1
é uma tentativa de conferir visualidade a esse conjunto de relações
apontadas por Wallace sem a pretensão de reproduzir com exatidão
as conexões e aspectos apresentados pelo autor.
294
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

295

Fig. 1

Rob Wallace propõe ainda, em referência aos zapatistas, a


necessidade de “um mundo onde caibam muitos mundos” (2020,
p. 547). Ao apontar a monocultura (de espécies e modos de existir)
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

imposta pelo agronegócio como fator decisivo para a criação de situ-


ações favoráveis ao surgimento de novas doenças, o cientista afirma
a diversidade, avaliada positivamente como alternativa necessária
a um mundo que se quer cada vez mais uniformizado.
Ao mesmo tempo, Wallace é bastante assertivo quando se
trata de considerar que os estudos de virologia, genética e epide-
miologia devem ser comunicantes com aqueles dedicados à política,
economia, geografia, história... Essa perspectiva transdisciplinar visa
contemplar visões mais integradas da realidade que não tratem, por
exemplo, a virologia como uma ciência encerrada em si mesma e,
portanto, isolada dos demais elementos envolvidos no desenvolvi-
mento de novas doenças. Ao assinalar a convergência de mecanismos
patogênicos e socioculturais, Rob Wallace recupera a demanda por
perspectivas de estudos interdisciplinares enquanto exigência para
lidar com a difusão de doenças provocadas por vírus como o HIV
ou o influenza (e, para atualizar a discussão, o coronavírus). Num
posicionamento contrário à figura do especialista que atende aos
interesses de grandes empresas e corporações mais do que à produ-
296
ção de conhecimento, o biólogo reconhece o desafio epistemológico
representado por seus posicionamentos: “Ao longo do caminho,
enfrento também questões epistemológicas. Ao combinar saberes
disciplinares, busco uma virologia evolutiva que integre o impacto
da humanidade na evolução de patógenos como ponto de partida
para qualquer investigação” (WALLACE, 2020, p. 88).
O cientista chama a atenção ainda para a tendência de se
construir uma narrativa focada nos aspectos relacionados à micro-
biologia e aos estudos genéticos deixando de lado os contextos em
que as doenças virais e os patógenos se inserem e dos quais derivam.
Diante disso, ao refletir sobretudo sobre as chances de o vírus in-
fluenza vir a ser responsável por uma pandemia, o autor vai afirmar
que a discussão sobre o surgimento de doenças virais e epidemias
exige considerar com seriedade a participação humana:
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

No processo de colonização dos habitats naturais do nosso


planeta – cerca de 40% da terra utilizável do mundo agora é
voltada para uso agrícola –, podemos ter ampliado sem querer a
interface entre aves migratórias e aves domésticas. Claramente, o
agronegócio, o ajuste estrutural, as finanças globais, a destruição
ambiental, as mudanças climáticas e o surgimento de influenza
patogênico estão mais fortemente integrados do que se pensava
anteriormente. (WALLACE, 2020, p. 121)
Pressupor que práticas extrativistas em andamento estão re-
lacionadas ao surgimento e à gravidade de epidemias ou pandemias
permite considerar que o enfrentamento desse tipo de crise sanitária
vai muito além da vacina e exige uma revisão estrutural dos atuais
modelos econômicos de exploração da natureza e da agricultura.
Isso inclui, decerto, uma série de iniciativas que vêm questionando
noções como desenvolvimento, crescimento e progresso.
Articular epidemia e extrativismo representa assim um passo
na direção de uma perspectiva mais integrada. Do mesmo modo,
considerar as cosmologias indígenas não apenas como formas vá-
lidas de conhecimento, mas também particularmente importantes 297
no contexto atual, faz parte dessa mudança de posição. Movimentos
associados ao pensamento ameríndio podem impactar fortemente a
relação das sociedades humanas com o planeta e a vida.
O que precisamos aprender / Da necessidade de
aprender
Se o SARS-CoV-2 representa uma ameaça às sociedades
indígenas, isso se dá na medida mesma em que políticas de Estado
favorecem os avanços de atividades extrativistas – dos minérios, da
madeira, das águas... – que terminam por promover contextos hostis
à sobrevivência. A violência da ação armada e da tomada de terras
se associa à investida do vírus fomentada pela circulação desorde-
nada de pessoas por reservas demarcadas ou áreas de preservação
ambiental. No Brasil, a força econômica e política do agronegócio,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

bem como o estímulo à exploração mineradora, a derrubada de flo-


restas e os incêndios criminosos fazem parte de um conjunto lesivo
à sobrevivência de povos originários, quilombolas e pequenos agri-
cultores. O extrativismo predatório se apresenta assim como a outra
face das epidemias ao promover a desconfiguração de ecossistemas
e, desse modo, afetar os modos de vida de populações que, apartadas
muitas vezes de práticas tradicionais mais protetivas, se veem atra-
vessadas por uma realidade que conjuga precariedade de recursos e
desassistência (inclusive de saúde). Nessa conjuntura, se encontram
mais expostos ao contato com doenças levadas por não-indígenas
envolvidos em atividades como o garimpo. Extrativismo e epidemias
podem ser ainda inter-relacionados quando se considera o papel da
difusão de modelos de criação animal implementados pelo agrone-
gócio no surgimento de cepas mais virulentas de microrganismos.
Por outro lado, a vulnerabilidade de povos originários torna
ainda mais tangível sua capacidade de sobrevivência. Em vez da
imagem de povos do passado, eternamente situados como à beira
da extinção, lideranças indígenas vêm pleiteando o reconhecimen-
298
to de suas existências e sua capacidade de reagir às agressões que
lhes são infligidas. Nem personagens de tempos idos, nem vítimas
condenadas ao desaparecimento: trazidos para o tempo presente,
são realidades a serem consideradas e agentes de conhecimento,
práticas e políticas.
Logo, o que se compreende é que o enfrentamento de crises
sanitárias como a que se tem vivido desde o início da pandemia de
covid-19 passa também pela produção e difusão de narrativas, uma
vez que se reconheça que confrontar esse tipo de situação exige o
aprendizado de outras formas de compreender o mundo. Outros
rumos exigem saberes aptos a problematizar princípios como a di-
visão entre natureza e cultura, fundamento de uma cosmovisão que,
em sua hegemonia, autoriza o extrativismo intensivo e extensivo. O
combate ao vírus também é discursivo, epistemológico e ideológico.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

O Bem Viver5 é um exemplo importante do que podemos


aprender com culturas historicamente desprezadas e desquali-
ficadas. O Buen Vivir ou Vivir Bien se apresenta como proposta
derivada do sumak kawsay (Kíchwa) e suma qamaña (Ayamara),
e seu reconhecimento está relacionado ao estabelecimento de um
estado plurinacional que incorpore códigos culturais de povos e
nacionalidades indígenas (ACOSTA, 2016, p. 34).6 No âmbito do
Bem Viver, as utopias são percebidas positivamente enquanto força
impulsionadora de processos de transição, e defende-se a relevância
da contribuição de práticas que promovam o exercício horizontal do
poder, ou seja: “a defesa da vida contra esquemas antropocêntricos
de organização produtiva” (ACOSTA, 2016, p. 35), a superação do
divórcio entre humano e natureza a favor de uma postura biocên-
trica, assim como “uma transformação radical das concepções e
linguagens convencionais do desenvolvimento e, sobretudo, do

5 Tadeu Breda, um dos editores da Editora Elefante, assinou a tradução


do livro O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos
(2016) de Alberto Acosta, cuja publicação original em espanhol ocorreu
em 2012. Em relação à designação Bem Viver, na apresentação à edição 299
brasileira, Breda explica as suas opções como tradutor, ao preferir, por
exemplo, Bem Viver em vez de Bom Viver, construção em língua portugue-
sa mais aproximada de sumak kawsay, termo da língua kíchwa do qual
nasceu o conceito em sua versão equatoriana (BREDA, 2016, p. 11). Toda-
via, o tradutor considerou o fato de que os movimentos sociais no Brasil já
vinham empregando “bem viver”. Daí concluir: “Afinal, assim como Buen
Vivir é usado no Equador e Vivir Bien, na Bolívia, Bem Viver é a expressão
em uso no Brasil” (BREDA, 2016: p. 12). Como o próprio Alberto Acosta,
em capítulo do livro, irá afirmar, ainda que existam diferentes enfoques e
visões em torno desses termos, “o núcleo de debates encerra a dimensão
holística de ver a vida e a Pacha Mama em relação e complementariedade
com uns e outros” (ACOSTA, 2016, p. 87).
6 Alberto Acosta é economista de formação e esteve na condução da As-
sembleia Constituinte do Equador que reconheceu os direitos de Pacha
Mama ou Mãe Terra. Chegou a ser ministro de Energia e Minas do governo
Rafael Correa, com o qual veio a romper posteriormente.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

progresso” (ACOSTA, 2016, p. 37). Há uma mudança significativa


de chave, uma vez que os homens, de produtores, conquistadores
e transformadores da natureza, passam a lidadores, cultivadores e
facilitadores (SOLÓN, 2019).
A questão do desenvolvimento como uma lógica perversa
que está fortemente disseminada em termos globais ganha centra-
lidade na discussão que envolve, inclusive, a avaliação dos avanços
e limites de processos políticos como os que se deram no Equador
e na Bolívia, com a inclusão de direitos da natureza na constituição
ou o reconhecimento de um Estado plurinacional. De fato, não há
como ignorar a potência e os efeitos práticos que o Bem Viver teve
na América Latina nas últimas décadas, ainda que haja esbarrado em
deturpações.7 Junto com outras propostas associadas à afirmação de
alternativas que possam assegurar um futuro à humanidade e à vida
no planeta, cosmovisões ameríndias têm representado uma contri-
buição relevante para o entendimento e a crítica da realidade con-
temporânea. Proposições como teko kavi e nhandereko (Guarani),
shiir waras (Shuar), e o küme mongen (Mapuche), convivem com
300
os Direitos da Mãe Terra do ecoteólogo Thomas Berry, os comuns
e o ecofeminismo (SOLÓN, 2019), para citar alguns exemplos. Sem

7 Acosta observa que na constituinte do Equador a ideia de alternativa


ao desenvolvimento estava presente, mas que a seu ver “o governo equa-
toriano utilizou o Buen Vivir como um slogan para propiciar uma espécie
de retorno ao desenvolvimentismo” (2016, p. 83). Apesar das promessas
representadas por governos como o do Equador de Rafael Correa e da Bo-
lívia de Evo Morales, tendo em vista os avanços que fizeram ao incorpo-
rar premissas do Bem Viver em seus programas, houve um esvaziamento
dessas propostas. Recentemente, tem se consolidado a avaliação de que os
governos progressistas latino-americanos em países como Equador, Bolí-
via, Argentina e Brasil aderiram à lógica extrativista e, ainda que tenham
promovido distribuição de renda durante sua gestão, terminaram por con-
solidar o papel da região como fornecedora de commodities no mercado
mundial. Em consequência, se deram impactos socioeconômicos negati-
vos e regressão de conquistas (SVAMPA, 2019).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

dúvida, esse processo faz parte da consolidação do reconhecimento


de saberes desprestigiados.
Diante do valor estratégico do conhecimento no campo das
disputas sociais, não surpreende que autores e autoras indígenas
tenham cada vez mais compreendido a escrita como parte de seu
ativismo, uma forma de se fazer valer de recursos próprios ao mundo
branco, a exemplo da literatura, sem necessariamente se submeter
aos modelos ocidentais. O que se observa são experiências escritas
que não se acomodam em gêneros e incorporam a narrativa como
modalidade reflexiva. O cruzamento do oral, do narrativo e do debate
crítico favorece tanto a abordagem de práticas extrativistas e seus
efeitos quanto representa uma contribuição das culturas indígenas
à construção de formas discursivas.
Ainda sob essa óptica, a literatura indígena pode ser vista
como expressão de um ativismo antiextrativista graças à defesa de
povos e à difusão de cosmovisões alinhadas à urgência de se repen-
sar e reverter o extrativismo preponderante. O custo das vidas, que
se reflete entre essas populações, mas não se restringe a elas, surge
301
como denúncia e apelo a novos posicionamentos, distintos dos que
vêm balizando as invasões devastadoras de corpos e sociedades.
No texto que serve de introdução ao número três da revista
Vukápanavo, é declarada a importância de “demarcar espaço no
mundo acadêmico com a escrita” (BANIWA et al., 2020, p. 7). Essa
questão é colocada nesses termos:
Enquadrados na chave “povos tradicionais” desde os anos oitenta
do século passado, os povos indígenas têm ocupado lugares espe-
cíficos nos imaginários dos brasileiros, por meio de símbolos e de
referências que fazem menção a um passado distante e estático.
Com anulada autonomia e reduzida visibilidade nos espaços
institucionais de produção e circulação de memórias, como é o
caso das universidades, museus, arquivos e com, sobretudo, a
ausência de suas participações nos espaços de gestão pública e
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

de tomadas de decisões, os povos indígenas têm sido narrados na


terceira pessoa, numa perspectiva marcadamente silenciadora e
colonial, tanto nas pesquisas acadêmicas quanto nas instituições
que geram uma variada forma de registro de suas vidas e mortes.
(BANIWA et al., 2020, p. 7)
O letramento e o aperfeiçoamento em determinadas áreas
de conhecimento do mundo não-indígena aparecem como fatores
importantes num processo crescente de autodeterminação e au-
tonomia. Nesse sentido, mais do que permanecer como objeto de
estudo, essas populações se posicionam como agentes de saberes,
tanto aqueles vinculados às suas tradições quanto os que são pro-
duzidos nas esferas científicas. A escrita, por sua vez, é estratégica
no estabelecimento de novas relações de convívio que desmentem
estereótipos tornados habituais na forma como se concebem socie-
dades tradicionais. Há, portanto, uma força política incontestável em
uma publicação que propõe que os indígenas assumam os discursos
em torno da pandemia e dos seus efeitos em suas comunidades.
Essa é uma discussão que, por sua vez, envolve novas terri-
302 torialidades, que incluem não apenas a demarcação de terras, mas
também a redefinição dos espaços de enunciação do conhecimento
e de construção de narrativas. A contraposição à tutela, que se confi-
gurou historicamente muitas vezes como forma de espoliação sob o
discurso da proteção, se reflete na afirmação da autonomia dos povos
indígenas, a exemplo das medidas que as próprias comunidades vêm
tomando para seu cuidado durante a pandemia de covid-19, como
a determinação de isolamento total na Serra da Lua em 31 de maio
de 2020 pelas lideranças indígenas dos povos Wapichana e Macuxi
(ALEIXO; LIMA; AURELIANO, 2020, p. 18).
A autodeterminação também está no desenvolvimento de
uma Literatura Indígena. Ely Ribeiro de Souza, escritor da etnia
Macuxi, encara a apropriação da escrita como um passo impor-
tante para o que chama de “poesia-práxis”, isto é, uma literatura
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

“usada para confrontar e reagir às ações regionais: grileiros, mi-


neradores, pecuaristas invasores de seus territórios” e que “tem
possibilitado atualização de nossos códigos culturais, construindo
novas apreensões e novos enredos” (2018, p. 51-52). O resultado
seria uma literatura que apresenta a cultura indígena como “viva,
perene, criadora, transformadora e impulsionadora para os novos
desafios que o mundo hoje impõe aos povos indígenas” (SOUZA,
2018, p. 52).
No lugar do obituário a que com frequência se reduzem os
povos originários, vistos como extintos ou em vias de extinção, se
exibem culturas diversas e vivas. Há, portanto, um efeito de visibi-
lização a ser considerado e que passa seguramente pelo crescente
acesso de jovens indígenas ao ensino em seus diversos níveis. Ao
assumirem o desenvolvimento de pesquisas e atividades especiali-
zadas, sem que isso se traduza em apagamento e negação das suas
relações culturais originais, abre-se caminho para, no contexto
do Estado nacional, se afirmarem como existências particulares
e subjetividades produtoras de conhecimento, ratificando seus
303
modos de vida e saberes.
Ely Ribeiro recorda a diversidade das populações indígenas
e da literatura feita por esses povos, afirmando ainda a contempo-
raneidade de sua existência, visto que os povos originários foram
congelados no imaginário nacional numa “temporalidade anacrô-
nica e irreal” (2018, p. 57). No jogo tenso com o mercado editorial,
que reduz muitas vezes a literatura indígena a lendas ou histórias
para crianças (numa perspectiva também reducionista da literatura
infanto-juvenil), a possibilidade de difusão não pode significar a
conformidade a estereótipos:
Como dito, agora repetido, nossa cultura é rica e tem muito que
dizer sobre as relações humanas; são filosofias e ciências que
permitiram aos homens viver de forma equilibrada entre si e a
natureza ao longo de séculos. Por isso, a boa literatura tem que
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

ir além dos estereótipos, do simbolismo e dos fins ideológicos


produzidos em determinado período da história da literatura
brasileira. (SOUZA, 2018, p. 57)
O ponto de vista defendido pelo autor macuxi revela as
dimensões epistemológicas e políticas do fazer literário. A perícia
escrita, sua elaboração e desdobramentos no contexto ocidental
ganham novos matizes a partir da apropriação e interferência de
culturas que agregam outras modalidades de conhecimento, como
por exemplo a indissociabilidade entre teoria e prática: “teorias que
não orientam e não se aplicam para a melhoria da vida de nossos
povos são como as canoas sem quilhas, sem direção, apenas seguem
a correnteza dos rios” (SOUZA, 2018, p. 66). No avesso de separações
que sustentaram o desenvolvimento da sociedade contemporânea
ocidental, escritores indígenas vêm colaborando para uma escrita
que não seja tratada como o oposto da oralidade.
Esse re-situar do literário enfatiza ainda a conexão entre texto
escrito e conhecimento, na medida em que reforça a indissociabili-
dade entre forma e conteúdo. O saldo seriam “pensadores indígenas
304 que propõem uma nova leitura das ciências, dos métodos e das
epistemologias vigentes na academia, numa composição de saberes
que pretende ajudar a superar os obstáculos da inovação científica
da sociedade moderno-contemporânea” (SOUZA, 2018, p. 64).
Diante disso, merecem atenção publicações de autores como
Ailton Krenak ao expor o potencial político de uma literatura que
se constrói em consonância com o ativismo indígena. O título
provocativo do livro de 2019 – Ideias para adiar o fim do mundo
– atende às aflições de um público às voltas com crises políticas,
sociais, econômicas e ambientais. A expectativa de um cataclisma
e o medo, tornado moeda corrente, favoreceram sem dúvida o in-
teresse pela publicação. No entanto, o atravessamento da fluência
própria ao oral nessa escrita balizou um texto que não se rende aos
discursos escatológicos, mas se apresenta simultaneamente como
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

propositivo e crítico para assim situar a importância da narrativa: “a


minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre
poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos
adiando o fim” (KRENAK, 2019, p. 27). Manter os vínculos comu-
nicativos, produzir histórias e estabelecer trocas é o que alimenta
a vida. O compartilhamento de éticas, que pressupõe a afirmação
do diverso em vez do homogêneo, se realiza na renovação de uma
performance discursiva.
Em sua brevidade (algo que pode ser convidativo a um leitor
casual), a edição comporta três seções correspondentes, respectiva-
mente, a duas palestras proferidas em Lisboa e um texto produzido
inicialmente para um catálogo e transcrito a partir de uma entrevista:
“Ideias para adiar o fim do mundo”, “Do sonho e da terra” e “A hu-
manidade que pensamos ser”. Esse modus operandi da confecção
do livro, sem dúvida, enfatiza a oralidade, especialmente porque a
transcrição preserva estruturas linguísticas como “não botar ela”
numa clara opção pela manutenção de formatos da transmissão oral.
Isso por si só favorece uma maior aproximação com o cotidiano do
305
sujeito que lê, algo acentuado pelo tom de conversa que diminui o
distanciamento habitual entre o escritor, reconhecido como uma
autoridade, e seu leitor. A situação de escuta recuperada também é a
do encontro, das presenças e coletividades recalcadas na experiência
solitária da leitura. Em certa medida, reinstitui-se o contexto da nar-
rativa tal como a pensou Walter Benjamin (1994): compartilhamento
de experiências diretamente associadas aos fazeres e necessidades de
uma comunidade. Há, portanto, via valorização da situação oral de
comunicação, uma proposta comunicativa que aponta para sentidos
coletivos ratificados pela temática central do livro: a sobrevivência
das populações humanas e do planeta.
Krenak parece acercar-se do protagonismo do ancião que
tem muito que ensinar, aquele que pode oferecer à sua comunidade
conselhos que sejam úteis. Certamente, isso situa em outro patamar
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

o pensamento indígena, pois não apenas o reconhece enquanto tal,


mas também lhe confere importância. Nesse contexto, que vai ao
encontro da proposta de Ely Ribeiro de se afastar de estereotipias
consolidadas pelo mercado editorial, o exercício da escrita vinculado
à oralidade permite o desenvolvimento de uma forma que não se
enquadra bem nos parâmetros de classificação de gêneros no campo
da literatura. Como reflexão e aconselhamento, o texto flui à maneira
de uma conversa, e, ao passo que sua descaracterização, por assim
dizer, não suprime sua potência comunicativa nem sua utilidade,
como “poesia-práxis” indica a necessidade de renovação do modo
de conceber o mundo para que este continue a existir.
A estratégia argumentativa de Krenak parte da afirmação
de uma contribuição inescapável: daqueles que vêm há séculos
lidando com “fins de mundo”. Diante da inegável capacidade de
sobreviver que garantiu a diferentes etnias persistirem apesar dos
ataques sistemáticos que sofreram e continuam a sofrer, torna-se
improvável negar a esses povos saberes relevantes para o enfrenta-
mento de ameaças. A esse respeito, o líder indígena lembra o modo
306
como as doenças infecciosas foram espalhadas e produziram fins
de mundos ainda que não em decorrência necessariamente de uma
orquestração:
O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez
com que essa parte da população desaparecesse por um fenô-
meno que depois se chamou de epidemia, uma mortandade de
milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e
descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde
passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante,
uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo;
tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. (KRE-
NAK, 2019, p. 71)
Assinala, assim, que os desastres vêm ocorrendo e que
mundos vêm morrendo há algum tempo. Decerto, sua ponderação
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

realça o fato de que a mobilização e a aflição pública que se vêm


experimentando estão associadas ao risco que paira sobre o modo
de vida capitalista. Em outras palavras, se tem convivido bem com
o fim de outros mundos... A ameaça à sociedade ocidental contem-
porânea está representada, no caso, pelos limites do planeta e pelas
consequências severas da exploração desmedida em sua coexistência
com um modelo desenvolvimentista predatório e não inclusivo.
Essas considerações de Ailton Krenak se deram num momento pré-
-pandemia, mas é perceptível que a experiência representada pela
expansão em escala mundial da covid-19 vem acentuar a percepção
de que se está diante de uma situação insustentável.
Por esse prisma, o autor irá ainda propor um conjunto de
reflexões que dialogam de perto com o que diferentes estudiosos
e pesquisadores do mundo branco vêm propondo, como Eduardo
Viveiros de Castro, Eduardo Galeano e Boaventura de Sousa Santos.
A reflexão de Krenak se encaminha, por conseguinte, para colocar a
própria noção de humanidade em debate, visto que sua naturalização
esconde um processo de classificação e hierarquização das socieda-
307
des que funcionou como chancela à brutalidade da colonização. A
tendência à unificação, subjacente à categoria de humano, estaria
na base de um processo civilizatório violento: “Esse chamado para o
seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um
jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção
de verdade” (KRENAK, 2019, p. 11).
A ênfase nos efeitos funestos da exteriorização da natureza,
isto é, da cisão entre homem e mundo natural, sustenta a urgência
de uma reintegração implicada em uma mudança epistemológica im-
portante: “Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão
de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo”
(KRENAK, 2019, p. 69). Esse viés argumentativo explora precisa-
mente a relação que, apontada pela antropologia e por pensadores
como Bruno Latour, vai legitimar a criação de sub-humanidades
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

num contexto predominantemente antropocêntrico.


O sucesso de vendas de Ideias para adiar o fim do mundo
viabilizou nova publicação de Ailton Krenak pela Companhia das
Letras, também em formato de livro de bolso, com proposta bem
semelhante ao livro de 2019. Confirma-se em A vida não é útil a força
da oralidade na constituição do texto, que segue ao fluxo de mudan-
ças de ritmo e da espontaneidade com que as ideias se sucedem. Se
esse formato expressa um modo de construir e comunicar o pensa-
mento, no volume de 2020, Krenak avança na sua reflexão sobre a
humanidade buscando apresentá-la em termos mais próximos do
que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2018) definiu como
personitude.8 Em outras palavras, a humanidade não é exclusiva
da espécie humana. Radicaliza-se assim a percepção integrada do
mundo a partir da contribuição do pensamento ameríndio. A negação
do corpo e a redução da matéria a objeto aparecem como resultado
da dissociação cartesiana que justifica, por fim, a desqualificação do
físico. A favor de um sentido de coletividade que se contrapõe ao
individualismo e à sua radicalização nas sociedades contemporâne-
308
as, o autor vai propor uma visão integrada também no conjunto da
espécie humana, a partir da consideração de vínculos que movem
os sujeitos ainda quando acreditam fazê-lo de forma independente.
Não se trata, pois, somente de pensar aquilo que Latour chamou de
naturezas-culturas, mas também de compreender que essas relações
estão dadas entre os indivíduos e que o coletivo se expressa ainda por

8 A esse respeito, observa o antropólogo brasileiro que no pensamento


dos povos ameríndios da Amazônia: “Todos os animais e demais compo-
nentes do cosmos são intensivamente pessoas, virtualmente pessoas, por-
que qualquer um deles pode se revelar (se transformar em) uma pessoa.
Não se trata de uma mera possibilidade lógica, mas de potencialidade on-
tológica. A ‘personitude’ e a ‘perspectividade’ – a capacidade de ocupar
um ponto de vista – são uma questão de grau, de contexto e de posição,
antes que uma propriedade distintiva de tal ou qual espécie” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2018, p. 45-46).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

meio de formatos que são habitualmente tratados como insignifican-


tes. A esse respeito, merecem destaque os sonhos. A experiência de
sonhar e de relatar o que se sonhou aparece como forma de conexão,
transmissão de conhecimento e de transformação do cotidiano:
Invadindo. Na época eu ouvia os velhos como um espectador.
Até que comecei a ter os mesmos sonhos premonitórios ao olhar
as estradas, os tratores e as motosserras chegando; o barulho
delas derrubando as árvores, a revolta dos rios. Passei a ouvir
os rios falando, ora com raiva, ora ofendidos. Nós acabamos
nos constituindo como um terminal nervoso do que chamam de
natureza. E a ciência daquele pajé, alertando toda uma geração
que hoje está com cinquenta anos de que seu território ficaria
devastado e sem caça, se cumpriu de maneira absolutamente
correta. (KRENAK, 2020, p. 36)
Num cenário em que ganham espaço estratégias discursivas
que apresentam e performam cosmovisões de povos originários,
parece provável que, em algum grau, haja interferência nas pautas
normalmente ditadas pelo mercado e pelo pensamento hegemônico.
Por se aliar a processos de transformação que visam ao bloqueio do 309
ímpeto extrativista encarado como ameaça concreta à vida, inclu-
sive (ou principalmente) à humana, a atividade literária de autoria
indígena assume valor contra-invasivo – contra a invasão do vírus,
da doença e das epidemias que tornam agudas as diferenças sociais,
o abandono e a injustiça já existentes.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

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EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

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mo e ciência. Trad. Allan Rodrigo de Campos Silva. São Paulo: Elefante,
2020.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

O Canto do Corvo: ressignificando as epidemias


através da literatura indígena

Rubelise da Cunha1

“Be patient,” Raven repeated. “There isn’t much time. The-


se people are heading for the kind of disaster they may not
survive (…).”

Lee Maracle, Ravensong

A epidemia colonial
Neste momento tão singular que estamos vivenciando devido
à pandemia de covid-19, meu intuito é, a partir de minha experiên-
cia com o estudo das literaturas dos povos originários da América
do Norte, em especial do Canadá, fazer uma ponte de conexão com
os saberes dos povos originários do Brasil e com a experiência
histórica que nos conecta como “americanos”: a colonização e as
312
epidemias. Epidemias de sarampo, varíola, difteria e gripes fizeram
parte da vida dos povos originários desde a chegada dos europeus
nas Américas. Se, por um lado, estas poderiam ser vistas como
o trágico e inevitável preço pago pelo contato com o Outro (leia-
-se aqui o Outro a partir da perspectiva dos povos originários, ou
seja, como o colonizador, o diferente que veio de fora e se impôs),
os relatos históricos de estratégias coloniais genocidas, como a
entrega de cobertores contaminados com o vírus do sarampo para
os indígenas enfrentarem o inverno no Canadá, apenas reafirmam
o quanto a presença do homem branco nas Américas é pautada
por uma política de apagamento dos povos originários (CUNHA,

1 Doutora em Teoria Literária (PUCRS) e Professora Associada de Litera-


turas de Língua Inglesa na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

2005, p. 22). Em Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak


também menciona as epidemias da colonização, que causaram o
desaparecimento de populações inteiras, sinalizando que, “para os
povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi
no século XVI” (2019, p. 71). Essa perspectiva dos saberes indígenas
que reverte o ponto de vista, e faz também com que reconheçamos
nosso lugar no espelho colonial, funciona estrategicamente como
uma fonte de conhecimento para ressignificarmos tanto o momento
presente quanto nossos binarismos, os quais sempre nos colocam
na posição de vítimas ou salvadores.
Episódios da história colonial marcados pelo efeito destrui-
dor de doenças também são relembrados pela escritora indígena
canadense Lee Maracle (Salish) em seu romance Daughters Are
Forever (2002), mas através de uma percepção para além do hu-
mano, sinalizando o quanto a interferência do homem europeu, do
humano, causa o desequilíbrio do todo que engloba os humanos e os
não humanos. Ao presenciar a violência colonial, que compreende
a disseminação das doenças e os recorrentes estupros das mulheres
313
indígenas, a própria natureza reage no romance: “Vento Oeste grita
em desespero, lançando-se de um lado para o outro, tocando cada
cadáver ensanguentado de mulher” (MARACLE, 2002, p. 18).2
Neste momento em que nos encontramos do outro lado,
pois nos juntamos aos povos originários e à população mundial ao
vivenciarmos nossa fragilidade e os limites da ciência moderna para
evitar as mortes e descobrir a cura para a pandemia de covid-19, é
possível que sejamos capazes de humildemente recorrer aos povos
ancestrais que aqui habitam desde muito tempo, muito antes da
chegada dos invasores europeus, em busca de seu conhecimento.
No entanto, como bem nos lembra a antropóloga canadense Julie
Cruikshank, corremos o risco de repetir a prática de muitos estu-
2 As traduções de todos os trechos citados em língua estrangeira são de
responsabilidade da autora, a não ser quando indicado.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

diosos em suas abordagens aplicadas à análise das tradições orais,


esperando que “as tradições indígenas apresentem respostas para
problemas criados pelos Estados modernos em termos que sejam
convenientes para os Estados modernos” (1998, p. 152).
Minha intervenção aqui é justamente para convidá-los a
fazermos, através das artes e da literatura, um exercício de des-
centramento a fim de entender a experiência da epidemia, ou das
epidemias, a doença e a cura, para além da lógica eurocêntrica do
pensamento da ciência moderna. Por isso faço referência aqui à frase
com a qual Raoni Metuktire, líder indígena Kayapó, encerra sua fala
direcionada ao Presidente da República Jair Bolsonaro, publicada
no Jornal The Guardian em 2 de setembro de 2019. O texto foi
escrito antes do ataque desferido por Bolsonaro contra Raoni e o
povo indígena em sua estreia na Assembleia Geral da Organização
das Nações Unidas (ONU), em Nova York, mas ressoa de forma
profética como uma advertência a ele e a todos nós: “Você sentirá o
medo que nós sentimos”. Neste texto, Raoni faz alusão à união de
todos os povos indígenas contra um inimigo comum: o presidente
314
e sua política de destruição, e lembra que: “Por muitos anos, nós,
os líderes indígenas e os povos da Amazônia, temos avisado vocês,
nossos irmãos que causaram tantos danos às nossas florestas. O que
você está fazendo mudará o mundo inteiro e destruirá nossa casa – e
destruirá sua casa também” (s/n). Raoni clama ao presidente para
que entenda a lógica que rege a comunhão do homem com a floresta
e com o planeta Terra a partir de sua perspectiva Kayapó:
Pedimos que você pare o que está fazendo, pare a destruição, pare
o seu ataque aos espíritos da Terra. Quando você corta as árvores,
agride os espíritos de nossos ancestrais. Quando você procura
minerais, empala o coração da Terra. E quando você derrama
venenos na terra e nos rios – produtos químicos da agricultura
e mercúrio das minas de ouro – você enfraquece os espíritos, as
plantas, os animais e a própria terra. Quando você enfraquece
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

a terra assim, ela começa a morrer. Se a terra morrer, se nossa


Terra morrer, nenhum de nós será capaz de viver, e todos nós
também morreremos (s/n).
Esse entendimento de Raoni sobre o adoecimento e a des-
truição da Terra também está presente na obra de Davi Kopenawa
e Bruce Albert A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami
(2015). Kopenawa nos fala da floresta como um ser inteligente, que
possui um pensamento igual ao nosso, e do equilíbrio que é mantido
pela ação dos xamãs que ainda fazem dançar seus espíritos para
protegê-la. Lembra-nos da importância de prestarmos atenção à voz
dos espíritos da floresta, e de que a morte dos xamãs, dos detentores
do conhecimento que conecta o visível e o não visível, os humanos e
os não humanos, é emblemática da queda do céu. Trago uma citação
de Kopenawa que ressoa as palavras de Raoni:
Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a
da terra inteira, que corre o risco de entrar em caos. Os brancos
não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas
um dia talvez tenham tanto medo quanto nós! Os xamãs sabem
das coisas más que ameaçam os humanos. Só existe um céu e é 315
preciso cuidar dele, porque, se ficar doente, tudo vai se acabar.
Talvez não aconteça agora, mas pode acontecer mais tarde. En-
tão, vão ser nossos filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos a
morrer (2015, p. 498).
Esse clamor também está presente na voz das lideranças,
escritores e artistas indígenas do Canadá, em sua leitura da amea-
ça representada pelo projeto de desenvolvimento da modernidade
tão bem representado pela ação dos colonizadores europeus nas
Américas. O quadro do artista plástico do povo Anishinaabe Norval
Morrisseau, que se chama The Land (A Terra), retrata esse encontro
entre os europeus e os povos originários do Canadá; e também foi
traduzido em poema pelo escritor e crítico literário Anishinaabe
Armand Garnet Ruffo, professor da Queen’s University, em sua obra
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

The Thunderbird Poems (2015), sendo intitulado “The Land (Land


Rights), 1976”. O poema descreve como o quadro de Morrisseau
retrata o encontro colonial através de uma separação de dois lados:
“Um lado azul para o oceano./ Um lado vermelho para o pôr-do-sol./
Um lado para o Índio./ Um lado para o Homem Branco” (RUFFO,
2015, p. 50). No lado que representa o povo Anishinaabe, a presença
do humano integrado aos não humanos é marca da cosmogonia e
dos valores ameríndios, e assim como no romance de Maracle, os
animais e os fenômenos da natureza reagem à chegada dos invasores:

No lado índio, um homem, a geração antiga,


está sentado com um bebê chorando em seu colo.
Um castor falante balança em sua cabeça como um totem.
Embaixo de seus pés pássaros e peixes o sustentam.
Todo o mundo natural em seu interior.
Atrás dele, as faces dos ancestrais
de costas para os tratados. (RUFFO, 2015, p. 50)
O poema dá voz às imagens do quadro de Morrisseau, e ao
316
final a voz dos animais ecoam o que Raoni e Kopenawa nos dizem
sobre a ameaça de destruição planetária trazida pelos colonizadores
europeus, aqui descritos como “colonos”:

Os animais também protestam contra a destruição


que os colonos trouxeram com eles.
Juntos eles dizem quando a terra morre
nós todos morremos. Algo que o
artista quer que você veja. Claramente,
como um copo de água potável. (RUFFO, 2015, p. 51)
Ao aproximarmos as vozes ameríndias de Krenak, Raoni,
Kopenawa (Brasil) e Maracle, Morrisseau e Ruffo (Canadá) em seu
entendimento sobre os efeitos destrutivos da colonização e de seu
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

projeto de desenvolvimento e progresso (aqui no Brasil muito bem


representado pelo discurso transparente do governo atual), algumas
ideias dos saberes indígenas tradicionais se aliam com a ciência
contemporânea no reconhecimento da importância de preservação
do Planeta, mas o viés de abordagem nos traz elementos distintos:
os Espíritos da Floresta, os Xamãs, a Terra como um ser feminino,
inteligente, criador e transcendente – a Mãe Terra. Nesse tripé, são
os Xamãs os detentores de um conhecimento único sobre a interação
dos seres vivos com a Mãe Terra, do mundo visível com o invisível.
A perspectiva que os saberes indígenas nos trazem se opõe à visão
antropocêntrica de mundo da modernidade e percebe todos os seres,
humanos e não humanos, visíveis e invisíveis, como parte de um
todo com a mesma importância e valor. Krenak nos diz que deve-
ríamos “admitir a natureza como uma imensa multidão de formas,
incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% água
e um monte de outros materiais que nos compõem”, o que implica
“escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que
ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda
317
se confunde com ela” (2019, p. 69-70).
O Canto do Corvo
Na literatura indígena do Canadá, o romance Ravensong
(O Canto do Corvo) exemplifica como o conhecimento indígena
ressignifica o entendimento das epidemias através da literatura.
Publicado em 1993, Ravensong é um dos romances da escritora Lee
Maracle, pertencente ao povo Salish da Costa Oeste do Canadá. Lee
Maracle é considerada um dos nomes fundacionais da literatura e da
teoria crítica indígenas no Canadá e atua como professora da Uni-
versidade de Toronto. No entanto, a posição que ocupa hoje deriva
de uma história de superação e resiliência, sendo sua trajetória de
vida emblemática da política de exclusão e destruição dos povos
originários nas Américas. Após vivenciar a pobreza, a exclusão, a
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

violência colonial e sexista, Maracle se engajou nos movimentos


de resistência indígena na América do Norte e participou do Red
Power Movement. Sua escrita literária nasceu no ativismo, assim
como a literatura indígena no Brasil também nasceu no Movimento
Indígena Brasileiro.
Ravensong inicia com a seguinte frase: “Das profundezas
do som o Corvo cantou uma canção profunda do vento, melanco-
licamente” (MARACLE, 1993, p. 9). Ao marcar a incorporação das
histórias tradicionais desta figura mítica desde o início da narra-
tiva, o romance reforça algo que Maracle cunhou como “estrutura
espiral”, a qual mantém a conexão entre as histórias do Corvo, a
participação da natureza, a revisão da história da colonização e
a situação contemporânea vivenciada pelas Primeiras Nações do
Canadá (CUNHA, 2005, p. 90). O cenário desse romance é a cidade
de Maillardville, perto de Vancouver, durante a epidemia do vírus
Influenza que ocorreu em 1951. A cidade é dividida por um rio,
vivendo a população indígena Salish de um lado e a população euro-
-canadense de outro. Stacey é uma garota Salish de dezessete anos
318
que tenta equilibrar o conhecimento tradicional de sua família com
os valores intrusivos da sociedade branca, sabendo que seu futuro
depende de ambos. Apesar de ter uma função de protagonista do
romance, o eixo central da narrativa é a figura mítica de Raven (o
Corvo), que planeja a vinda da epidemia a fim de forçar as comuni-
dades branca e Salish a compartilhar conhecimento numa espécie
de ritual de cura. No ano 2000, a pesquisadora Judith Leggatt
publicou um artigo que se intitulou “A praga do Corvo: poluição
e doença em Ravensong, de Lee Maracle”, e fez uma leitura do
romance a partir de uma perspectiva antropológica sobre doença e
cura, cujas ideias embasarão também meu argumento neste texto.
O Corvo, figura mítica e metáfora de transformação no roman-
ce, é uma figura da contação de histórias na Costa Oeste do Canadá,
uma espécie de trickster, que sofre metamorfoses e age como uma
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

força criadora, mas em uma lógica que não pode ser traduzida em
nossos conceitos binários de bem em mal, portanto seus planos
podem não funcionar e causar estragos. No entanto, como a própria
Maracle enfatiza, o objetivo é que os membros de sua comunidade
percebam a vida como um constante crescimento espiritual e uma
transformação social. Esse Corvo Fêmea sabe que a epidemia tam-
bém deixará os Salish fisicamente doentes, mas seu objetivo é que
essa doença ensine os colonos (os brancos) novas formas de existir
e os transforme de “organismos parasitas” a “simbióticos”. Em seu
artigo, Leggatt enfatiza justamente que a ação do Corvo é para que
as duas culturas compartilhem seus conhecimentos medicinais não
somente para se curarem da epidemia, mas também para curarem
a Terra, a qual Maracle descreve como “um paciente cuja saúde de-
pende do equilíbrio dos diferentes micro-organismos que habitam
seu corpo” (1993, p. 164). Sendo assim, o romance expande a ideia
de patologia e apresenta a doença física não necessariamente como
má e a morte como uma parte natural da regeneração. A voz do
Corvo no romance nos diz:
319
A mudança é um assunto sério [...]. Com os humanos, é impor-
tante que venha com grande intensidade. Fortes tempestades
alteram a terra, amadurecem a vida, limpam o mundo do velho,
trazendo o novo. Os humanos chamam isso de catástrofe. Apenas
nascimento, canta o Corvo. A catástrofe humana é acompanhada
por lágrimas e dor, exatamente como a da terra, apenas a terra
é menos inclinada a ficar amargurada por causa da dor. (1993,
p. 14)
Apesar da motivação do Corvo ser a aproximação entre os
lados opostos, os tabus culturais e o medo de contaminação enfa-
tizam a separação de brancos e indígenas durante a epidemia. Os
brancos culpam os indígenas pela doença e dizem que resulta de suas
péssimas condições sanitárias, enquanto os indígenas acreditam
que os europeus trazem uma forma de doença psíquica que infecta
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

o planeta, representada pelo sexismo, racismo, a desconexão das


raízes culturais e o suicídio, o que sinaliza a presença de dois tipos
de doença: a doença do corpo e a do espírito.
Dividido em 15 capítulos mais um epílogo, o romance possui
quatro narradoras que contam como o Corvo assiste desesperada-
mente à morte do povo Salish e à destruição dos seus valores. O ve-
lório da personagem Nora no primeiro capítulo sinaliza a sequência
de funerais ao longo do romance em virtude da epidemia, e a voz do
Corvo continua sendo ouvida até o sexto capítulo, quando o ancião
Dominic morre. Sua morte é simbólica e traz consequências negati-
vas, já que, como xamã e ancião da comunidade, ele era responsável
pela medicina e pela filosofia indígenas, bem como preservava os
valores espirituais e tradicionais. Como Kopenawa explica no mito
da Queda do Céu, o grande fim é exatamente a perda daqueles que
são os mantenedores do conhecimento na comunidade. Sendo assim,
após sua morte, a partir do capítulo 7, a responsabilidade de Stacey
em ouvir e resgatar a canção do Corvo torna-se maior, quando uma
canção vem em seu sono: “Parecia vir de um lugar distante, mesmo
320
assim preenchia o quarto. Murmurava coisas do passado. Memorava
a ela a certeza de que deveria se preparar para um grande despertar”
(MARACLE, 1993, p. 95).
A ponte que separa a aldeia indígena da cidade dos brancos
é simbolicamente também uma forma de conexão, e Stacey é a pro-
tagonista que estuda na escola dos brancos e representa esse ponto
de contato. Seu entendimento sobre a conexão existente entre as
doenças físicas que afetam seu povo e as doenças sociais e espirituais
que afetam os brancos e, finalmente, sua própria comunidade, com
o caso do suicídio de seu sobrinho Jimmy, traz alguma esperança
no romance, a qual será explorada no romance de 2014 que dá se-
quência a essa história – Celia’s Song. Celia é a irmã de Stacey que,
em Ravensong, consegue ver a figura mítica de Raven e também
ter visões e memórias de seus ancestrais, e é esse conhecimento
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

que se quer preservado. A intenção do Corvo é que, ao atravessar


a ponte e interagir com os brancos, o povo Salish compartilhe seu
conhecimento e consiga, na comunhão com o conhecimento cien-
tífico dos brancos, a cura para a epidemia do corpo e as doenças
do espírito (CUNHA, 2005). No entanto, a perspectiva do Corvo é
sempre ambivalente e sinaliza que o povo Salish também necessita
do auxílio dos brancos para curar as doenças que não são oriundas
de sua própria cultura. Essas são as palavras de Dominic a Stacey,
as quais enfatizam a necessidade de integração a fim de apoiá-la em
sua decisão de estudar na universidade: “o mundo precisa de uma
sabedoria combinada, não apenas um conhecimento ou outro, e sim
todos os conhecimentos unidos. Unidade humana, este é o nosso
caminho” (MARACLE, 1993, p. 67).
No entanto, no final do romance, as mudanças parecem ter
acontecido mais de um dos lados da ponte. Não somente os indígenas
morrem muito mais pela doença física dos brancos, já que possuem
um acesso mais precário à saúde pública, mas também são conta-
minados pela doença do vazio espiritual que afeta os brancos – o
321
suicídio. Em sua prática xamânica, Dominic continuava fazendo suas
cerimônias todas as noites na esperança de afastar a doença, mas via
a ineficácia na cura não por estar utilizando os métodos errados, mas
justamente pela dificuldade de comunicação. Ele dizia não conseguir
conversar com o vírus porque “Hong Kong estava muito longe para
ele conseguir ouvir as palavras certas” (MARACLE, 1993, p. 94), o
que aponta que apenas no compartilhamento do conhecimento e,
ao atravessar as pontes físicas e metafóricas que separam as duas
comunidades, cada sociedade poderá tornar-se saudável.
As histórias de alcoolismo, desemprego e violência sexual são
parte das influências negativas da cultura branca no romance, mas
é o suicídio o ato mais drástico que confirma a perda dos valores
indígenas. No epílogo, sabemos que o sobrinho de Stacey, o pequeno
Jimmy, cometeu suicídio, algo impensável para os indígenas em
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

outros tempos. O que percebemos, então, é que a integração resultou


na aquisição de valores brancos, como a falta de sentido na vida,
em virtude da desconexão com os valores espirituais, já que Jimmy
não mais considera sua vida e seu corpo como sagrados. Stacey está
consciente dessa mudança e afirma que agora eles sofrem de uma
epidemia produzida por eles mesmos, mas não sabem como lutar
contra ela (MARACLE, 1993, p. 197).
O epílogo do romance apresenta as consequências dos planos
do Corvo vinte e cinco anos mais tarde, através das vozes das quatro
narradoras que contam a história: Stacey, sua irmã Celia, sua mãe
e Rena. Dessa forma, é exposto que o romance é uma história que
essas quatro mulheres Salish estão contando ao filho de Stacey,
Jacob, a fim de explicar o motivo do suicídio de seu primo Jimmy.
A função do epílogo não é apenas apresentar o texto em flashba-
ck, mas principalmente enfatizar que o romance pode apenas ser
compreendido no limiar de duas formas de discurso: o romance e
as narrativas míticas do Corvo. Nessa estrutura em espiral, Jacob é
personagem e ouvinte, o qual necessita aprender, através da força
322
transformadora do Corvo, a importância de continuar a busca por
um espaço possível para a comunhão entre indígenas e não indíge-
nas (CUNHA, 2005, p. 92). No entanto, a partir da perspectiva do
Corvo, é preciso que os indígenas comecem a sentir-se “tão feios
por dentro como os outros” para que algo possa desfazer a doença
que enraizou os outros em sua própria feiura (MARACLE, 1993, p.
191). A partir de uma perspectiva Salish, os “outros” são os euro-
-canadenses, os quais necessitam do conhecimento indígena para
curar suas doenças espirituais.
Embora a história seja contada pelas quatro narradoras, a
perspectiva do Corvo é central na narrativa. Esse ponto de vista não
é estabelecido através de uma oposição binária “Indígena versus
Branco”. Ao contrário, o Corvo desvela como os euro-canadenses
ignoram os indígenas, tanto quanto como os sentimentos dos indíge-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

nas em relação aos brancos não contribuem para a continuidade do


povo Salish e de seus valores. Sendo assim, Stacey é escolhida pelo
Corvo para a missão de, literal e figurativamente, atravessar a ponte
que separa os euro-canadenses e o povo Salish. Ela atravessa a ponte
diariamente para ir à escola e, como traz um novo conhecimento para
a aldeia, é reconhecida como uma possível substituta para os anciãos,
os quais estão morrendo devido à epidemia da gripe. Stacey passa a
ter a função que, de acordo com Kelly (1994, p. 75), Maracle define
como a missão indígena nos dias de hoje, quando afirma que a sua
função na vida é retornar aos ancestrais com alguma compreensão
nova para o mundo espiritual (apud CUNHA, 2005, p. 93).
Ao longo da narrativa, a Corvo fêmea confirma que Stacey faz
parte de seus planos para expandir as relações entre as duas cultu-
ras, já que ela é uma agente de transformação em sua comunidade.
Seu desejo de estudar na universidade para retornar e ensinar as
crianças indígenas reforça seu importante papel na comunidade. Ela
consegue ingressar na Faculdade de Educação da Universidade de
British Columbia, no entanto o epílogo nos explica que o governo
323
acabou não deixando os indígenas construírem sua própria escola,
tampouco Stacey conseguiu uma oportunidade de trabalho para
lecionar na cidade.
O final do romance de Maracle nos apresenta talvez aquele
que seja o maior sentimento de angústia que enfrentamos quan-
do nos deparamos com os efeitos de uma epidemia em contextos
de desigualdade social, como aquele em que vivemos no Brasil
atualmente. Assim como é retratado na realidade do povo Salish
diante da epidemia do vírus Influenza, os povos indígenas e outros
grupos marginalizados no Brasil, como as populações mais pobres
das periferias, os quilombolas e os moradores de rua, são os mais
afetados pela pandemia de covid-19 em virtude da falta de acesso
à saúde pública e aos meios de sobrevivência. Por isso mesmo, o
exercício de sairmos de nossa posição eurocêntrica de pensamento
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

e tornarmo-nos “ouvintes e aprendizes” dos saberes ancestrais dos


povos ameríndios pode proporcionar um entendimento do caos
ora apresentado como necessário para que, finalmente, aceitemos
a falência de nosso projeto de modernidade que gera a exclusão e
destrói o Planeta.
Nessa perspectiva indígena que reconta a história da epide-
mia no Canadá, a presença da figura mítica também traz um novo
significado à versão oficial, já que o evento histórico é referido como
parte da contação de histórias. Essa contação de histórias e a história
oficial se tornam apenas um texto quando o Corvo interfere no dis-
curso e percebe a oposição binária que separa brancos e indígenas
ou colonizadores e colonizados como a grande causa da doença que
afeta a aldeia indígena. O viés do Corvo, ao recontar a epidemia da
gripe, resiste ao discurso colonial quando mostra a necessidade de
cruzar a ponte que separa brancos e indígenas. Em seu discurso
subversivo, a oposição “vilão versus vítima” é substituída por uma
abordagem híbrida que defende a troca de saberes ocidentais e
indígenas (CUNHA, 2005).
324
Na tradição da contação de histórias, as histórias do Corvo
frequentemente não apresentam finais felizes, mas sempre trazem
um ensinamento. No epílogo, observamos que o objetivo do Corvo
de alcançar uma unidade que proporcionaria uma transformação
positiva nas relações entre os indígenas e os euro-canadenses ainda
não foi atingido. Além disso, Stacey não consegue lecionar em uma
escola indígena na aldeia e continua testemunhando a destruição da
cultura do seu povo e de seu sentido de coletividade pelos valores do
mundo branco, representados fortemente pela prática do suicídio
entre indígenas. No entendimento de Stacey, tudo isso ainda ocorre
por “não haver Corvo o suficiente”, em inglês “not enough Raven”
(MARACLE, 1993, p. 198). Tal expressão no romance se torna
simbólica do momento em que Stacey passa a reconhecer a neces-
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

sidade de resgatar o conhecimento indígena, portanto há um tom


de esperança e de comprometimento com a missão de continuidade
dos saberes do povo Salish.
O Corvo é uma figura transgressora, disruptiva e clama por
transformação, por isso ela se torna central na obra de Lee Maracle.
A autora defende a ideia de que a agência não é só exercida através
do trabalho literário, mas também através da ação do próprio texto
ao converter os leitores em agentes de transformação. O posicio-
namento ideológico anticolonialista de seus romances aponta para
o entendimento da literatura como um veículo capaz de tornar
os leitores conscientes dos problemas políticos a fim de que eles
operem a mudança na sociedade. O discurso do trickster é baseado
numa realidade muito próxima do leitor, atualizando o mito atra-
vés da contação de um evento histórico de um tempo mais recente,
fazendo com que o leitor indígena recupere a função das histórias
tradicionais, narradas para ensinar-lhes como deveriam agir em seu
cotidiano. O Corvo também consegue metamorfosear-se no discurso
ocidental para atingir o público leitor não indígena, o qual é chamado
325
a pensar sobre e aprender através de uma perspectiva diferente de
mundo, a qual está presente no território americano desde tempos
imemoriais, muito anteriores à chegada dos colonizadores europeus
(CUNHA, 2005, p. 207).
O Canto do Corvo, assim como outras obras literárias de Lee
Maracle, ressalta esse aspecto feminino da Mãe Terra, corpo que
nos acolhe e associa a ação da colonização, bem como o projeto
moderno de desenvolvimento e progresso, a uma violência típica do
patriarcado, representada pelas marcas de violência contra a mulher
indígena e contra o organismo vivo e criador que é a Terra. O Corvo
e sua estratégia de criar uma epidemia aponta para a necessidade de
revisão dos parâmetros que guiam nosso projeto de sociedade mo-
derna, revisão essa que só poderá ser empreendida quando estiver-
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

mos abertos a ouvir o conhecimento milenar dos povos originários


das Américas, daqueles que se comunicam com esse território de
uma forma antagônica ao sistema imposto pelo colonizador europeu.
Afinal, sua filosofia de vida é pautada na harmonia entre os seres
humanos e não humanos, visíveis e invisíveis, e não na dominação
e subjugação daquele que é diferente ou desconhecido. É por isso
que o Corvo lembra Stacey das palavras de sua avó: “Nós [indígenas]
não nos livraremos da doença até aprendermos a viver com essas
pessoas [os brancos]. Sempre morreremos até o mistério de sua
existência ser alterado” (MARACLE, 1993, p. 192).

REFERÊNCIAS

CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas ques-


tões. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
p. 149-164.
326
CUNHA, Rubelise da. Decolonizing Tricks: Storytelling Figures of Resis-
tance in Lee Maracle, Thomas King and Tomson Highway. 2005. Tese de
Doutorado (Teoria Literária) – PUCRS, Porto Alegre.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2019.
LEGGATT, Judith. Raven’s plague: pollution and disease in Lee Maracle’s
Ravensong. Mosaic: A Journal for the Interdisciplinary Study of Literatu-
re, v. 33, n. 4, p. 163-178, 2000.
MARACLE, Lee. Ravensong: A Novel. Vancouver: Press Gang, 1993.
MARACLE, Lee. Daughters Are Forever. Vancouver: Polestar, 2002.
MARACLE, Lee. Celia’s Song. Toronto: Cormorant Books, 2014.
METUKTIRE, Raoni. “Você sentirá o medo que nós sentimos”. Mídia 4P/
Carta Capital. 25/09/2019. Disponível em: https://midia4p.cartacapital.
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

com.br/voce-sentira-o-medo-que-nos-sentimos-diz-raoni-metuktire-li-
der-indigena-kayapo-a-bolsonaro/. Acesso em: 02/01/2021.
RUFFO, Armand Garnet. The Thunderbird Poems. Madeira Park: Har-
bour, 2015.

327
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Sobre os autores

André Cabral de Almeida Cardoso possui doutorado


em Literatura Comparada pela New York University e mestrado em
Literatura Brasileira pela PUC-Rio. É professor associado de Litera-
turas em Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense, onde
também atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Lite-
ratura. É membro dos grupos de pesquisa (CNPq) “Interferências:
Literatura e Ciência”, “Estudos do Gótico” e “Literatura Brasileira e
Outras Literaturas Contemporâneas”, e do GT da ANPOLL “Verten-
tes do Insólito Ficcional”. Seus interesses de pesquisa são as relações
entre o gótico, a ficção distópica e narrativas apocalípticas.
E-mail: [email protected].

André Felipe Cândido da Silva é historiador, pesquisador


da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz e professor do Programa de
Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde na mesma
instituição. Atua na área de história das ciências da vida, da medicina
e do ambiente no século XX, com foco em estudos sobre a história
328 das relações científicas transnacionais envolvendo Brasil, Europa
e Estados Unidos, sobre os saberes ecológicos, sobre a Amazônia e
sobre o conceito do Antropoceno nas humanidades.
E-mail: [email protected].

Áureo Lustosa Guérios é doutor em Literatura Comparada


e Humanidades Médicas pela Universidade de Pádua, mestre em
Cultura Literária Europeia pela Universidade de Bolonha, e bacharel
em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Sua
tese intitula-se Cholera and the Literary Imagination in Europe,
1830-1930 e trata da representação literária das pandemias de
cólera. Áureo ministra cursos sobre medicina narrativa ou história
da saúde e é o criador do Literatura Viral, um podcast contagiante
sobre história, arte e doenças.
E-mail: [email protected].
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Claudete Daflon é Doutora em Letras/Estudos de Literatu-


ra pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2002),
Professora Associada de Literatura Brasileira da Universidade
Federal Fluminense (UFF) desde 2011 com atuação na graduação
e no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura. Líder
do Grupo de Pesquisa Interferências: literatura e ciência (CNPq).
Possui trabalhos desenvolvidos sobre literatura, artes visuais e
cinema, com ênfase na América Latina, a partir de temas como:
literatura e ciência, natureza, decolonialidade, extrativismo, viagem
e interdisciplinaridade.
E-mail: [email protected].

Marcelo dos Santos é professor adjunto de literatura bra-


sileira, ensino e teoria da literatura na Escola de Letras da UNIRIO.
Fez sua formação na UERJ, na área de Letras. É pesquisador de ar-
quivos literários e, atualmente, desenvolve pesquisa sobre cartas de
escritores e produção de subjetividades. O docente coordena, ainda,
o projeto Remição de pena pela leitura, realizado nos presídios do 329
Estado do Rio de Janeiro, e estuda as escritas e as experiências do
encarceramento e da liberdade.

Marcio Markendorf possui Graduação em Letras pela


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Doutorado Direto em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente
é Professor Associado I do Departamento de Artes da Universidade
Federal de Santa Catarina e leciona no Curso de Bacharelado em
Cinema e no Programa de Pós-graduação em Literatura. Tem ex-
periência na área de Letras e Cinema, com ênfase em Teoria da Li-
teratura, Escrita Criativa, Estudos de Gênero e Estudos Culturais.
E-mail: [email protected].
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Pedro Sasse tem doutorado e pós-doutorado em Estudos de


Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestrado
em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É membro dos Grupos de
Pesquisa (CNPq) “Escritos Suspeitos: estudos sobre a narrativa cri-
minal”, “Estudos do Gótico” e “Interferências: literatura e ciência”.
Possui experiência na área de Literatura Brasileira, Teoria Literária e
Literatura Comparada, com ênfase em: literatura criminal, literatura
distópica, gótico, violência e terror.
E-mail: [email protected].

Rodrigo Mello Campos é Professor da Educação Básica e


Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em His-
tória da Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro, Pr.

Rômulo de Paula Andrade é professor. Desde 2014 é


pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e leciona e orienta estu-
330 dantes no Programa de Pós Graduação em História das Ciências e
da Saúde.
E-mail: [email protected].

Rubelise da Cunha é Doutora em Teoria da Literatura


(PUCRS) e Professora Associada de Literaturas de Língua Ingle-
sa na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Atuou como
Pesquisadora Visitante nas universidades canadenses Laurentian
University (Sudbury, ON) e University of Ottawa (Ottawa, ON) e
atualmente coordena o Núcleo de Estudos Canadenses (NEC-FURG).
Suas publicações abordam as Literaturas Indígenas do Canadá e do
Brasil, as teorias sobre os gêneros literários e os estudos decoloniais.
E-mail: [email protected].
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Valéria Pereira é formada em Letras pela USP. Na mesma


instituição, defendeu seu mestrado sobre as personagens femininas
em narrativas medievais e seu doutorado sobre Das Echolot, de Wal-
ter Kempowski, um “diário coletivo” sobre a Segunda Guerra. Desde
2018 é Professora de Língua Alemã na graduação de Faculdade de
Letras da UFMG, e é credenciada na pós-graduação de Literatura da
mesma faculdade. Atualmente pesquisa aspectos da ficção científica
e da cultura pop em diálogo com a literatura contemporânea.
E-mail: [email protected].

Vanderlei Sebastião de Souza é Doutor em História das


Ciências e da Saúde e Professor do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro, Pr.

331
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Índice

A
Agronegócio: 281, 288, 293-294, 295-298
AIDS: 19, 38, 138, 141, 149, 186, 291
Amazônia: 12, 256, 258, 260-262, 263-264, 265, 270, 271, 288,
308, 314
Animal: 64, 85, 96, 115, 140, 141-142, 148, 153, 159, 164, 166, 167,
171, 172, 175, 177, 180, 182-184, 187, 190, 191, 193, 194, 263, 293,
294, 298, 308, 314, 316
Antropoceno: 11, 164, 165-168, 169-170, 173, 175, 178, 183-184, 191,
193, 195
Antropologia: 19, 56, 175, 291-292, 307, 318
Antropocentrismo: 157, 167, 180, 184, 194, 299, 303-308, 317
Apocalipse: 10, 47, 56, 66, 75, 76, 78, 79, 84, 86, 87-92, 110, 111,
118, 131, 132-134, 135, 141, 142, 155, 174, 175
B
332 Bactéria: 33, 75, 91, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 188, 282, 283, 306
Biodiversidade: 164, 165, 168, 169, 171, 172, 175, 181, 190
Biopolítica: 59-60, 64, 70, 176, 189, 207, 212
Brasil: 7, 9, 11, 12-13, 19, 34, 59, 75, 81, 106, 113, 123, 202-220, 228-
230, 234-235, 238, 241, 256, 258, 259-262, 263-267, 271-276, 281,
284, 286, 288, 293, 297-298, 299, 300, 301, 303-304, 308, 312,
316-317, 318, 323
Bubônica, peste: 25, 29, 32, 37, 75, 77, 112, 287
C
Capitalismo: 9, 56, 59, 60, 70, 89, 99, 125, 127, 128-129, 143, 167,
172, 178, 193, 205, 206, 207, 215, 217-219, 226, 234, 283, 284, 285,
286, 287, 307
Cataclismo: 10, 56, 66, 79, 85, 86, 87, 89-91, 92-93, 94, 97, 101,
287, 304
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Catástrofe: 9, 33, 45-46, 47-48, 49, 50, 52, 53-56, 58, 61, 63, 65-67,
76-77, 79, 80, 87, 89, 90, 111, 117, 119, 122, 125, 129, 133, 134, 137,
157, 174, 283, 319
Ciência: 8, 22, 33, 38, 48, 49, 51-53, 66-67, 70, 82, 101, 145-146,
148-149, 158, 166, 173, 174, 176, 178, 179, 190, 191, 203, 211-214,
259, 291-292, 296, 303-304, 309, 313-314, 317, 321
Cinema: 8, 9, 10, 38, 45-70, 74, 80, 87, 90, 103, 106-129, 174, 242,
244
Civilização: 50, 55-56, 67, 70, 74, 77, 78, 79, 80, 83, 84-86, 88, 90,
92, 93-94, 96, 97, 98, 100, 102, 103, 126, 142, 143, 144, 156, 188,
210, 234, 259, 286, 307
Cólera: 23, 24, 30-31, 36-37, 62, 75, 76
Colonialismo: 11, 32, 111, 158, 167-168, 189, 192-194, 204, 205,
206, 209-211, 214, 220, 226, 231, 253-254, 264, 282, 284, 285,
289, 294, 302, 307, 312-313, 315-316, 318, 324-326
Conhecimento: 13, 40, 51-52, 86, 88, 107, 142, 146, 152, 157-158,
176-179, 275, 290-291, 296, 297, 298, 301-304, 309, 313, 315, 317-
321, 322-323, 324-326
Contágio: 22, 23, 60, 62, 63, 64, 82, 95, 119, 124, 135-136, 139, 140,
141, 142, 144, 147-149, 150, 153-154, 160, 174, 177, 185-187, 189, 333
224, 272, 274, 284, 306
Contaminação: 14, 57-58, 60, 63, 68-69, 77, 95-96, 112-113, 120,
122-123, 141-142, 147, 152, 154, 160, 238, 240, 288-289, 306, 312,
319, 321
Contemporaneidade: 52, 66, 78, 135-136, 143, 155, 173, 209, 214-
215, 226, 300, 303-304, 307, 308, 317, 318
Coronavírus: 34, 37, 39-40, 56, 58, 60, 62, 69, 133, 164, 165, 168,
171, 172, 180, 184, 216, 224, 226, 233, 274, 289, 296
Corpo: 22-23, 56, 59-60, 63, 88, 96, 100, 124, 126, 134, 135, 140-
141, 144, 145, 148, 150, 152, 160, 177, 185, 187, 189, 190, 203, 207,
211-212, 214, 230-231, 236, 254, 287, 301, 308, 319-320, 321, 322,
325
Covid-19: 7, 10, 11, 12, 13, 56-60, 63, 68, 70, 74, 112, 122, 123, 131-
133, 136, 138-139, 155, 159, 164-168, 169-174, 182-184, 187-188,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

190-191, 194, 204, 216-217, 220, 224, 256, 272-274, 275-276, 281,
287-288, 293, 295, 298, 302, 307, 312, 313, 323
Cultura: 8, 10, 14, 18, 22-24, 26, 30, 31, 32, 37, 47, 51, 52, 57, 59,
86, 87, 93, 99, 109, 135-137, 142, 143, 149, 155, 159, 165, 173, 174,
185, 189, 226, 231-234, 238, 239, 241-242, 251-252-253, 256, 259,
266, 267, 275, 283, 289-292, 296, 298-304, 308, 319-321, 323-324
Cura: 18, 64, 65, 67, 115, 119, 120, 148, 259, 273, 313, 314, 318-322
D
Decolonial: 168, 193, 253-254
Desastre: 9, 39, 41, 45, 46, 47, 48-49, 52, 53, 55, 61, 68, 79, 88, 112,
147, 157, 165, 167, 176, 286, 306
Desenvolvimento: 12-13, 33, 144, 156, 180-181, 182, 192-193, 207,
210, 214, 256-257, 260-261, 263-264, 267, 274, 284, 286-287, 297,
299-300, 304, 307, 315-317, 325
Disaster movies: 45, 47, 48, 49, 55, 60, 61, 62
Distopia: 11, 81, 119, 124, 203, 217, 219
Doença: 7, 8, 9, 10, 12, 16-17, 19-24, 29-30, 31-33, 36-39, 41, 57,
58-59, 62-63, 64-65, 67-70, 74-77, 80, 82, 88, 90, 92, 95-96, 112,
334 119, 120, 121, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138-144, 145, 147-
148, 149-150, 151, 153, 154-156, 158-161, 166-167, 170, 171, 172, 174,
184, 185, 186-187, 189-190, 192, 194, 203, 204, 224, 228-230, 235,
237, 241-242, 246, 250, 254, 256, 262, 263-265, 268-270, 272-274,
281, 283-284, 288, 290, 293, 296, 298, 306, 309, 313, 314-315,
318-322, 324, 326
E
Enfermidade: 18-20, 22, 23, 41, 63, 69, 112, 134, 135, 136, 137, 138-
140, 142, 144-145, 147-148, 154, 160, 185, 250, 273
Epidemia: 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 21-23, 24, 29, 31-33, 35-37, 38,
39-40, 41, 45, 56, 57, 59-60, 62, 63, 64, 65-66, 67, 68, 74-75, 96,
111-114, 116, 119, 121-123, 132, 133, 135-137, 138-140, 141-142, 143-
145, 147, 153-154, 155-157, 158-159, 161, 165-166, 170, 172, 174, 182,
185, 186-187, 191, 203, 226-227, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 237,
240-242, 245, 248-251, 252, 254, 256, 259, 270, 272, 282-284,
287-290, 296-297, 298, 306, 309, 312-314, 317-324, 325
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

Escravidão: 32, 98, 100, 107, 120, 206, 207-208, 210, 214, 219-
220, 231, 283-284
Espécie: 9, 11, 21, 32, 67, 92, 96, 97, 103, 139, 141, 148, 153, 157, 159,
160, 164, 165, 168, 171, 172-173, 175-176, 180-182, 184, 186, 193,
194, 207, 212, 268, 293, 295, 308
Estado: 12-13, 37, 59, 116, 119, 123, 135, 186, 187-188, 203, 207,
208, 215, 219, 220, 226, 236, 253, 256, 259, 266, 275, 297, 299,
300, 303, 314
Eugenia: 11, 209-214, 215, 217-218, 235, 289
Extermínio: 14, 48, 64, 140, 147, 167, 181, 190, 254, 282, 287
Extinção: 55, 76, 93-94, 160, 164-166, 172-173, 174, 175, 177, 195,
203, 234, 235-236, 258, 268, 298, 303
Extrativismo: 13, 164, 193, 284-288, 290, 294, 297-298, 300, 301,
309
F
Ficção científica: 48, 51, 53, 55, 82, 102, 139, 146, 202
Filme-catástrofe: 45-56, 57, 60-61, 63, 65-70, 91
G 335
Genocídio: 12, 13, 214, 216-217, 231, 256, 263, 264, 267, 274, 275,
284, 312
Gripe: 13, 36, 37, 171, 172, 174, 259, 287, 312, 323, 324
Gripe Espanhola: 12, 36, 37, 226, 230, 232, 234-235, 237, 240-242,
244-251
H
História: 8, 9, 11-12, 13, 14, 25, 31, 32, 36, 54, 55, 63, 82-83, 84,
86, 106, 115, 157, 164, 167, 173, 178-180, 182, 183, 188, 189, 192,
193, 195, 204-205-206, 208, 209-210, 211, 214, 216, 218, 219, 220,
227, 228, 232, 234, 235, 241, 251, 256-257, 260, 261, 275, 282, 284,
286, 287, 296, 299, 302, 304, 312-313, 318, 324-325
HIV: 38, 39, 63, 186, 296
Horror: 7, 48, 51, 52, 70, 131, 176, 177, 214
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

Humanidade: 11, 36, 55, 56, 59, 76, 87, 90, 94, 101, 102, 103, 140,
142, 153-154, 160-161, 173, 175-176, 190, 296, 300, 305, 307-308
Humanismo: 99-100
Humano(a): 9, 11, 14, 16, 17, 20, 22, 23, 26, 32, 33, 50, 51, 52, 53,
55, 61, 68, 83, 84, 87-88, 89, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 103, 109, 112,
115, 121, 123, 128, 129, 134, 139, 140, 141, 142, 144, 148, 149, 156,
157-159, 160, 164, 165-168, 170-171, 172, 173, 174-177, 178-180, 181,
182-183, 184, 187, 190-191, 193-195, 203-204, 205-206, 212, 213,
215, 217, 219, 220, 231, 267, 271, 273, 290, 291, 293, 296, 297, 299,
303, 305, 306, 307, 308-309, 313, 315-316, 317, 319, 321, 326
I
Ideologia: 12, 13, 14, 33, 51, 133, 190, 193, 211, 212, 213, 219, 235,
240, 256, 260, 275, 294, 298, 304, 325
Imaginário: 8, 10, 11, 36, 53, 57, 61, 62-63, 74-75, 76, 109, 132, 133,
134, 136, 137, 138, 143, 144, 150, 154, 156, 158, 159, 165-168, 173,
174, 175, 184, 185, 186, 195, 208, 261, 301, 303
Indígena: 12-14, 193, 204, 209, 210, 214, 216-218, 256-261, 262,
263-267, 268-276, 281-284, 286-290, 294, 297-299, 301-304,
306, 309, 312-315, 317-320, 321-326; índio: 257-258, 262, 264,
336 266, 283, 287, 316
Infecção: 12, 30, 36, 58, 60, 64, 65, 68, 81, 88, 95, 96, 107, 113-114,
120, 149, 184-186, 190, 192, 262, 274, 281-283, 288, 290, 293, 306,
319
Isolamento: 28, 34, 57-58, 60, 80, 90, 92, 94, 95, 97, 133, 150, 187,
216, 226, 261, 264, 272, 282, 283, 302
L
Literatura: 7, 8, 9, 11-12, 13, 16, 19, 22-23, 28, 31-33, 35, 37, 38, 39-
42, 52, 54, 62, 74, 87, 139, 209, 210, 224, 226-228, 231, 232, 233,
234, 237-240, 242, 251, 252, 253, 289, 301, 302-304, 306, 309,
312, 314, 315, 317-318, 325, 330, 331, 332
M
Malária: 186, 262, 263, 265, 268-269, 287
Medicina: 7, 12, 18, 22, 25, 33, 64, 65, 167, 174, 177, 181, 183, 185,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

188, 189, 190, 191, 192, 212, 214, 226, 230, 231, 235, 241, 242, 248,
249, 250, 256, 257, 259, 262, 264, 270, 271, 273, 319, 320
Meio ambiente: 52, 53, 66, 67, 70, 115, 157, 158, 165, 169, 181, 182,
188, 190, 191-192, 203, 212, 216, 220, 267-268, 270, 271, 272, 276,
286, 287, 288, 289, 293-294, 304
Memória: 33, 35, 83, 100, 203, 230, 242, 282
Microrganismo: 74-75, 81, 88, 141, 147, 148, 180-182, 185-186,
282-283, 290, 296, 298, 319
Modernidade: 11, 12, 23, 33, 37, 75, 77, 81, 84, 86, 87, 89, 100, 106,
108, 137, 142, 156, 160, 167, 183, 188-189, 190, 193, 206-207, 210,
211, 218, 219, 227, 228, 230-231, 232-236, 237, 239, 240, 242, 245,
246, 251, 253-254, 286, 287, 291-292, 304, 313, 314, 315, 317, 324,
325
Morte: 7, 9, 16, 18, 20, 21, 25, 26, 28, 34, 35, 36, 37, 55, 60-61, 65,
68, 80, 81, 82-83, 88, 106-107, 108-109, 113-114, 117, 124, 126, 127,
131, 132, 138, 139, 140, 142, 146, 149, 154, 166, 177, 187, 189, 194,
203-204, 205, 214, 215, 218-219, 225, 229, 230-231, 233, 234, 243-
244, 248, 256, 265, 268, 270, 273, 275, 283, 288, 293, 302, 306,
313, 315, 319, 320
Mortos-vivos: 27, 107, 108-111, 113, 116, 118, 119, 120, 121, 123, 124- 337
125, 126, 128-129, 205
Mudanças climáticas: 45, 48, 164-165, 169-171, 178, 188, 190, 191,
192, 202, 297
N
Não-humano: 11, 14, 159, 166, 167, 168, 175, 176, 177, 183, 184, 187,
193, 194-195, 291, 313, 315-316, 317, 326
Narrativa: 9, 10, 14, 18, 19, 23, 24, 32, 40, 41-42, 45, 50-51, 55, 62,
63, 66, 68, 69, 70, 74, 76, 77-80, 82, 83-84, 85, 86, 89, 95, 98, 100,
101, 103, 109, 110, 111, 112-113, 114, 116, 119, 120, 122, 123, 125, 129,
132, 134, 136, 137, 153, 155, 167, 174, 179, 185, 187, 192, 194, 206,
209-210, 230, 237, 238, 240, 241, 251, 252, 289, 291, 296, 298,
301, 302, 305, 322
Natureza: 31, 45, 48, 49, 51, 52-54, 56, 63, 65, 66, 67, 68, 76, 84,
88, 96-97, 115, 129, 143, 148, 154, 155-156, 157, 158-159, 160, 170,
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

172, 175-176, 180, 183, 187, 193-194, 208, 284-285, 287, 291, 292-
293, 297, 298, 299, 300, 303, 307, 308-309, 313, 316, 317, 318
Necropolítica: 8, 9, 11, 59, 64, 70, 189, 204, 206, 207, 216, 220,
231-232, 236, 253-254
Neoliberalismo: 203, 205, 215, 219, 220, 294
Novo normal: 7, 10, 112, 115-116, 119, 124, 127, 15
O
Organismo: 74, 75, 81, 140, 141, 148, 177, 178, 180, 181, 182, 184,
185, 188, 250, 282, 283, 290, 298, 319, 325.
Originários, povos: 256, 259, 260, 261, 262, 263, 267, 268, 269,
273, 275, 281, 287, 288, 289, 294, 298, 303, 309, 312, 313, 315,
317, 326.
P
Pandemia: 30, 31, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 56, 57, 58, 59, 60, 62,
67, 68, 69, 70, 74, 75, 76, 77, 88, 89, 90, 91, 92, 113, 114, 115, 116,
122, 123, 124, 131, 132, 133, 136, 137, 139, 140, 145, 146, 147, 149,
154, 155, 156, 157, 159, 160, 164, 165, 168, 169, 170, 171, 172, 174,
175, 175, 176, 184, 185, 187, 188, 190, 203, 204, 214, 216, 217, 220,
338 225, 226, 231, 233, 254, 256, 257, 272, 273, 274, 275, 281, 287, 296,
297, 298, 302, 307, 312, 313, 323.
Pandêmico: 58, 63, 75, 78, 88, 89, 90, 166, 168, 175, 184, 186, 195.
Patógeno: 20, 30, 63, 65, 67, 69, 172, 174, 186, 189, 194, 282, 289,
296.
Peste: 20, 21, 22, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 35, 36, 37, 52, 75,
110, 112, 142, 146, 154, 174, 175, 230, 287, 306.
Poder: 41, 53, 58, 60, 63, 64, 65, 81, 87, 92, 95, 96, 98, 99, 101, 102,
119, 120, 123, 132, 143, 146, 154, 155, 156, 171, 176, 203, 207, 208,
225, 266, 272, 273, 291, 299, 305.
Pós-apocalíptica: 68, 74, 76, 78, 81, 82, 84, 85, 87, 89, 90, 92, 94,
95, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 111, 116, 127, 137, 143.
Pós-apocalíptico: 77, 78, 79, 80, 84, 89, 91, 96, 112, 116, 117, 125.
Povos indígenas: 214, 216, 217, 218, 257, 265, 266, 267, 268, 272,
EPIDEMIAS: LITERATURA, HISTÓRIA E CULTURA

273, 274, 275, 281, 283, 284, 286, 294, 301, 302, 303, 314, 323.
Praga: 63, 74, 75, 83, 95, 96, 99, 139, 141, 144, 145, 148, 149, 160,
172, 318.
Q
Quadrinhos: 103, 113, 114, 137, 140, 145.
Quarentena: 57, 65, 69, 95, 113, 115, 122, 123, 186, 187, 225, 226,
229.
R
Raça: 52, 84, 93, 106, 128, 193, 209, 210, 211, 212, 214, 215.
Racial: 110, 111, 120, 189, 193, 205, 207, 209, 210, 211, 212, 213,
214, 220, 235, 242.
Racismo: 59, 106, 108, 111, 117, 121, 128, 206, 208, 209, 210, 211,
212, 213, 214, 215, 217, 218, 219, 274, 275, 320.
Razão: 56, 62, 170, 182, 188, 253.
S
SARS-cov-2: 56, 62, 63, 69, 138, 164, 166, 167, 177, 178, 180, 195,
288, 293, 297.
339
Saúde: 12, 13, 16, 17, 18, 21, 57, 58, 59, 60, 65, 122, 134, 164, 167,
168, 172, 174, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193,
194, 195, 207, 212, 215, 216, 218, 231, 235, 243, 247, 256, 257, 258,
259, 260, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 269, 270, 271, 272, 273,
275, 281, 298, 319, 321, 323.
Saúde coletiva: 273.
Sociedade: 12, 13, 23, 25, 31, 38, 39, 40, 50, 52, 57, 58, 69, 70, 75,
77, 79, 80, 84, 85, 86, 94, 111, 116, 122, 123, 124, 131, 133, 136, 139,
143, 144, 155, 159, 189, 190, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 212, 213,
214, 218, 220, 231, 235, 240, 251, 252, 253, 260, 265, 282, 283,
291, 292, 297, 301, 302, 304, 307, 308, 318, 321, 325.
Surto: 22, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 36, 37, 40, 64, 75, 77, 112, 145,
147, 167, 174, 185, 186, 194.
(Orgs.) André Cabral de Almeida Cardoso . Claudete Daflon . Pedro Sasse .

T
Tempo: 20, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 39, 41, 53, 54, 60, 62, 75, 78, 80,
83, 84, 85, 86, 88, 90, 97, 99, 100, 101, 120, 121, 124, 125, 132, 133,
135, 138, 140, 145, 146, 148, 151, 152, 164, 170, 174, 178, 203, 204,
205, 206, 210, 214, 218, 225, 228, 238, 247, 251, 258, 262, 270,
275, 281, 282, 291, 292, 296, 298, 306, 313, 322, 325.
Terra: 47, 134, 148, 164, 165, 166, 169, 176, 178, 180, 181, 191, 208,
217, 244, 248, 287, 299, 300, 307, 314, 315, 317, 319, 325.
Tuberculose: 17, 19, 20, 23, 136, 138, 141, 186, 263.
V
Vacina: 60, 67, 68, 70, 139, 185, 236, 264, 281, 297.
Vida: 13, 16, 18, 22, 24, 27, 32, 35, 36, 52, 55, 56, 60, 67, 75, 85, 89,
94, 95, 99, 107, 111, 114, 116, 118, 120, 124, 125, 128, 141, 143, 147,
165, 166, 169, 171, 173, 179, 180, 181, 182, 188, 189, 190, 194, 202,
204, 205, 206, 207, 208, 214, 218, 219, 228, 233, 237, 238, 244,
251, 252, 258, 267, 268, 269, 270, 274, 281, 287, 297, 298, 299,
300, 301, 302, 303, 304, 305, 307, 309, 312, 315, 317, 319, 322,
323, 326.
Violência: 50, 53, 55, 63, 68, 80, 92, 93, 94, 95, 98, 117, 150, 206,
340 208, 209, 210, 215, 216, 248, 275, 283, 285, 297, 313, 318, 321, 325.
Viral: 58, 65, 135, 147, 148, 181, 182.
Vírus: 14, 20, 23, 36, 39, 58, 63, 64, 68, 70, 75, 81, 83, 88, 91, 112,
113, 115, 121, 122, 123, 129, 133, 136, 138, 139, 147, 148, 154, 155,
165, 166, 167, 168, 171, 172, 174, 176, 177, 180, 181, 182, 183, 184,
187, 188, 189, 190, 194, 225, 282, 283, 284, 289, 291, 293, 296,
297, 298, 309, 312, 318, 321, 323.
X
Xamã: 65, 101, 106, 107, 108, 110, 282, 315, 317, 320, 321.
Z
Zumbi: 10, 103, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 117,
119, 121, 123, 124, 125, 126, 128.

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