Marvin A Vida É Pra Valer Sérgio Elisandro

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SÉRGIO ELISANDRO SOUZA

MARVIN ,
A Vida é Pra Valer
Copyright © 2023 por Sérgio Elisandro Souza
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito dos editores.
Preparo de originais: Gabrielle Antunes
Revisão: Ana Clara Werneck
Diagramação: Danielle V. Cardoso
Capa: Fernanda Ferreira

Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
S729m
Souza, Sérgio Elisandro
Marvin, a vida é pra valer / Sérgio Elisandro Souza. – Rio de Janeiro: Ases da Literatura,
2023.
200 p.; 14 X 21 cm
1. Ficção. 2. Literatura brasileira. I. Souza, Sérgio Elisandro. II. Título.
CDD 869.93
Índice para catálogo sistemático
I. Ficção : Literatura brasileira

Todos os direitos reservados, no Brasil, países da Europa e


Estados Unidos, por Editora Ases da Literatura
www.asesdaliteratura.com
Dedico este livro aos meus queridos filhos, Taís e Leonardo, minhas
principais fontes de estímulo, carinho e amor. Dedico esta obra, ainda, aos
compositores Nando Reis e Sergio Britto, pois foi a partir do brilhantismo
deles que essa história pôde ser criada.
AGRADECIMENTOS

À
minha amada esposa, Aline, pelo companheirismo, dedicação e amor.
Bibliotecária de grande talento, além de leitora voraz, foi a primeira
pessoa a ler este livro na íntegra, e, fascinada com a história que
acabara de concluir (nas palavras dela), incentivou-me com todo
entusiasmo a publicá-la.
PREFÁCIO

M
arvin, a Vida é pra Valer narra a história de superação de um
personagem enigmático, que aos treze anos de idade, no leito de
morte do pai, foi incumbido de cuidar dos três irmãos e da mãe. A
missão recebida é enfrentada com imensa dificuldade, e Marvin, em
diversos momentos, acaba tomando decisões não tão honestas, porém
necessárias, para que os irmãos não morram de fome. A miséria encarada
por Marvin e compartilhada com a família o força a abdicar de atitudes
socialmente definidas como éticas em prol de atos voltados à sobrevivência.
Tal situação desencadeia uma série de acontecimentos intrigantes e
surpreendentes que moldam a vida dos personagens.
Os pontos altos a serem destacados nesta obra se traduzem na relação
de amor genuíno que Marvin mantêm com a irmã Ana Rebeca, a paixão
ardente por Verônica, as desavenças com a mãe, Maria de Lurdes, além do
enfretamento à desonestidade de Dom Miguel, principal antagonista da
história.
Todavia, o lendário Homem-Onça, uma espécie de assombração
materializado por Marvin, que, se inicialmente foi criado como um
instrumento útil para ajudar a saciar a fome da família, acabou por se tornar
uma forma de suavização das angústias que carregava, é um ponto de
extrema relevância da narrativa, que gera bastante reflexão sobre os
aspectos comportamentais, psicológicos e de caráter do personagem
principal.
De fato, a história contada sobre Marvin poderia perfeitamente
descrever a história de vida de tantos milhões de brasileiros que, como o
protagonista deste livro, frequentemente deparam com a miséria absoluta e
a necessidade de encará-la com coragem, fé e atitude.
APRESENTAÇÃO

Q
uando Nando Reis e Sérgio Britto lançaram a música “Marvin”
trouxeram ao público a intrigante história de um jovem camponês,
sofrido, que aos 13 anos de idade se depara com o pai no leito de
morte. As palavras derradeiras do progenitor imputam ao jovem Marvin a
responsabilidade sobre o sustento da família a partir daquele momento.
Eu, assim como muitos fãs, mantive uma intensa curiosidade sobre
a vida de Marvin e como aquele menino de apenas 13 anos lidou com a
incumbência recebida. Depois de muitos anos ouvindo a canção, entendi
que já era hora de sanar essa curiosidade – que eu compartilhava com
milhares de pessoas. Foi então que decidi escrever a história de Marvin
através de um texto narrativo.
Este livro descreve, portanto, como Marvin suportou as dificuldades,
enfrentou os momentos de desilusão e como foram seus raros, porém
intensos, momentos de glória.
Os altos e baixos, os temores, a bravura, o que o nosso protagonista
fez e como fez para superar as desgraças que a vida insistiu em lhe
estabelecer são os pontos altos desta narrativa.
Marvin, a vida é pra valer narra, pois, a história de superação de
um personagem enigmático que, contando apenas com a força dos braços
e com um senso de responsabilidade inabalável, enfrenta todas as agruras
que a vida insistentemente coloca em seu caminho. De fato, a história de
Marvin poderia perfeitamente descrever a vida de tantos milhões de
brasileiros que, como o protagonista deste livro, se deparam
frequentemente com a miséria absoluta e a necessidade de encará-la com
coragem, fé e atitude.
CAPÍTULO 1
No leito de morte

em pra casa agora, Marvin! Pare tudo que estiver fazendo, o pai está
V chamando!
Marvin, que havia demorado para escutar os berros do irmão, já que
estava um tanto distraído com o trabalho, jogou a enxada longe e saiu em
desembalada para casa apressadamente. Voltava da roça correndo o mais
rápido que podia. Empurrou a porta com toda força e ingressou no quarto
para ver o pai. A cena era deprimente: um homem de 52 anos de idade
aparentando mais de 60, corroído pela doença, deitado em uma cama,
agonizando.
Deixando escorrer uma lágrima pelo rosto, Marvin pediu a benção ao
seu pai. Sebastião, quase sem forças para falar, deu um último suspiro, fez
um esforço enorme, colocou a mão no ombro do filho e disse:
– Marvin, agora é só você e não vai adiantar. Chorar vai me fazer
sofrer. Meu filho, a vida é pra valer, eu fiz o meu melhor, e o seu destino eu
sei...
Foram as palavras derradeiras de Sebastião, antes de fechar os olhos
pela última vez.
Naquele inesquecível dia 12 de janeiro do ano de 1963, aos 13 anos
de idade, Marvin sentiu o peso do mundo em suas costas. De início, não
compreendera plenamente o que o pai desejava dizer com aquelas palavras.
Porém, ao ver os três irmãos pequenos, assustados e famintos, já que havia
dois meses que Sebastião não conseguia se aproximar da roça, entendeu o
motivo de tê-lo escolhido para proferir as últimas palavras em seu leito de
morte.
Não teve dúvida de que mesmo sendo um rapaz recém-chegado à
adolescência, sem nenhuma experiência de vida, teria que cumprir as
funções de provedor daquela família. Marvin era um garoto quieto, de
poucos sorrisos, magro, estatura um pouco acima da média para a sua idade.
Cabelos e olhos negros, pele abrumada, devido à exposição diária ao sol, e
que apresentava normalmente um semblante de tristeza.
Muitas pessoas compareceram ao velório. Algumas choravam, outras
se mantinham taciturnas, outras ainda pareciam não se importar com aquela
morte. Marvin percebera que a maioria dos olhares estavam focados em sua
direção. Como era astuto, sabia que se tratava de olhares piedosos.
Percebendo aquela tristeza vindo em sua direção, sentiu um desespero
enorme. Na verdade, era uma sensação que unia medo e angústia.
Maria de Lurdes se mantivera quieta durante a cerimônia, apenas
dando algumas orientações aos filhos, principalmente à pequena Ana
Rebecca, que pouco entendia o que estava acontecendo naquele dia e
passava a maior parte do tempo correndo ao redor do caixão. Mesmo
quando o Padre Bentolino tentou iniciar uma conversa, a recém-viúva
apenas respondia sim ou não, sem demonstrar nenhuma vontade de alongar
o diálogo.
Encerrado o velório, Maria de Lurdes e os quatro filhos voltaram à
casa e nenhum comentário foi feito pela mulher sobre o acontecimento.
Passados três dias e sem tecer uma única palavra, Marvin resolveu
comentar com a mãe sobre as palavras que o pai lhe dissera antes de morrer.
Maria de Lurdes, com os olhos fixos no chão e com tom de voz baixo,
respondeu-lhe:
– Seu pai deixou para um menino a responsabilidade que ele nunca
teve na vida. Ele morreu porque só pensava em beber cachaça.
Maria de Lurdes era uma mulher de poucas palavras, que raramente
esboçava um sorriso. Também não costumava demonstrar emoções. Quando
da morte de Sebastião estava com 48 anos. Havia saído de casa com apenas
17 anos para morar com um agricultor bem mais velho que ela chamado
Teobaldo.
Acabou por ficar viúva de Teobaldo doze anos depois do casório.
Sendo assim, com a morte de Sebastião estava passando pela segunda
viuvez. Não teve filhos no primeiro casamento, pois tudo indicava que o
marido era estéril, ainda que não se falasse abertamente sobre isso, visto
que não teve filhos com outras mulheres com quem se relacionara antes de
conhecê-la. Depois que Teobaldo faleceu Maria de Lurdes guardou luto de
um ano, respeitando a tradição.
Conhecera Sebastião por acaso em uma circunstância em que os dois
estavam procurando emprego numa fábrica de calçados, recém-instalada na
cidade em que viviam. Ambos foram contratados e, por coincidência,
selecionados para trabalhar no mesmo setor – colocação de solas nos
sapatos. Passavam os turnos alternando produção e conversas
descontraídas. Não tardou para que iniciassem um “chamego”. Depois de
alguns encontros decidiram namorar e, passados três meses, tornaram-se
noivos. No entanto, antes mesmo do casamento tiveram que sair do
emprego, pois a fábrica falira. Como não havia outras oportunidades de
emprego na cidade, decidiram trabalhar na lavoura, um desejo de Sebastião,
uma vez que, excetuados os dez meses na fábrica, dedicara sua vida ao
plantio e à colheita de produtos agrícolas.
Logo se casaram e foram morar na chácara que Maria de Lurdes
havia herdado do falecido marido.
Como não havia tido filhos com Teobaldo, a mulher imaginava que
talvez fosse estéril. Antes de se casar, atinou justo contar para Sebastião
sobre a possibilidade de não conseguir dar filhos ao futuro marido, o qual,
de pronto, devolveu em tom amistoso:
– Devia ser problema do falecido, já que as outras mulheres que ele
teve também não ficaram prenhas.
– Pode ser e pode não ser. De qualquer jeito, falo agora porque não
quero que fique reclamando nos meus ouvidos depois, dizendo que sou
“seca” – respondeu Maria de Lurdes, com bastante rigidez.
Sebastião ficou quieto por algum tempo. Sustentava, no íntimo, o
desejo de ser pai. Além do mais, quando estivesse mais velho iria necessitar
da ajuda de filhos na lavoura. Refletiu por alguns segundos e, com os olhos
fixos no chão e em tom de voz bastante melancólico, replicou:
– Se demorar para ficar prenha a gente pensa no que fazer.
– Não tem nada pra pensar, “homi”. Se eu não ficar prenha, a gente
vive sem bacuris por aqui, entendeu?
Sebastião olhou com seriedade para a mulher, porém não falou mais
nada. Serviu uma caneca de café e se sentou na cadeira de balanço.
De fato, Maria de Lurdes demorou para engravidar, mas o casal
nunca teve nenhuma conversa sobre a possível falta de fertilidade da
mulher. Quando Sebastião já estava quase conformado com a ideia de que
não teriam filhos, Maria de Lurdes anunciou que as “regras” estavam
atrasadas. Depois de algumas semanas, perceberam que a barriga estava
saliente, de modo que tiveram certeza sobre a gestação. Sebastião, eufórico,
exclamou:
– Se for menino vai se chamar Marvin, se for menina aí você escolhe.
A mulher sorriu brevemente e, com um sinal positivo feito com a
cabeça, aquiesceu.
◆ ◆ ◆

Maria de Lurdes, que naquele instante estava distraída recordando


dos primeiros anos em que vivera com Sebastião, ficou surpresa com a
rebeldia de Marvin, cujo comportamento sempre submisso acabou por dar
lugar a um temperamento explosivo no instante da morte do pai:
– A senhora está sendo injusta. Meu pai era um homem bom. Se
morreu, foi de tanto trabalhar.
Maria de Lurdes, nada afeita ao diálogo, virou as costas e continuou a
realizar seus afazeres.
Marvin queria continuar a discussão com a mãe, pois entendia aquela
frase como um desaforo à memória de um homem honrado e já falecido.
Porém, sabia que se insistisse com aquela conversa iria acabar levando uma
surra. Optou por permanecer calado.
Como não podia debater com a mãe sem sofrer uma “represália no
lombo”, resolveu dar o troco de outra maneira.
Discretamente, ao terminar o trabalho na roça, dirigiu-se ao galpão da
chácara em que viviam. Sabia que o pai guardava algumas garrafas de
bebidas alcoólicas em uma caixa de madeira. A tal caixa era guardada com
muita discrição, pois Sebastião não queria que os filhos se aproximassem
dela. Marvin, sorrateiramente, puxou a caixa de dentro de um armário,
pegou uma das garrafas, abriu-a com os dentes e, instantaneamente, ingeriu
todo o líquido em poucos minutos.
Sentiu uma sensação estranha. Aos poucos se via mais confiante,
mais adulto e menos triste com a morte do pai. Porém, à medida que
caminhava, sentia dificuldade de se manter equilibrado. Acabou caindo.
Quando tentou se levantar, não conseguiu. Ainda assim, estava contente. De
tão bêbado, acabou dormindo no chão no galpão. Acordou depois de quatro
horas, sentindo dores na cabeça que jamais havia experimentado. Cuidando
para não chamar a atenção, foi até a casa. Sua mãe perguntou o que havia
acontecido que não lhe permitira retornar a tempo para o jantar.
– Nada, não. Estava trabalhando na lavoura e não percebi a hora
passar – respondeu Marvin, com algum constrangimento.
Maria de Lurdes, sem perceber o ocorrido, disse ao filho que era para
voltar à escola no dia seguinte, pois já havia perdido muitos dias de aula.
O garoto, no entanto, não deu ouvidos à mãe. E, no outro dia, antes
das 6 horas da manhã, já estava com a enxada na mão, trabalhando firme,
mas sentindo os efeitos da primeira de muitas ressacas que ainda iria ter na
vida.
CAPÍTULO 2
O vendaval

H
avia decorrido seis meses desde a morte de Sebastião. Maria de
Lurdes pouco falava sobre o falecido marido. Os irmãos de Marvin
continuavam nas suas rotinas. Marvin, porém, sentia muita falta do
pai, sua angústia era latente.
Mesmo com os incessantes pedidos da mãe, o garoto não havia
retornado à escola. Ele não sabia ao certo o motivo, porém não tinha a
menor vontade de estudar. Sentia-se menos frustrado trabalhando na roça,
debaixo de sol ou sob chuvas intensas, do que dentro de uma sala de aula.
Sua mãe, percebendo que não havia jeito de fazer com que Marvin
retornasse à escola, resmungou:
– Desse jeito vai continuar burro pela vida inteira, igual ao seu pai.
Decidido a não mais admitir que a mãe desrespeitasse a memória de
Sebastião, respondeu:
– Meu pai era um homem muito inteligente, ele sabia ler, escrever e
fazer conta. Burra é a senhora, que só sabe escrever o próprio nome e mais
nada. É mais que burra, é uma jumenta!
Marvin acordou somente depois de nove dias, e sem lembrar o que
aconteceu após afrontar a mãe.
Maria de Lurdes jamais tocou no assunto. Marvin, por sua vez,
também nunca teve coragem de perguntar o que havia acontecido. Porém,
até o dia da morte da mãe, manteve a desconfiança de que fora atingido por
algum instrumento muito pesado, talvez uma pá, no meio na cabeça. Um
golpe desferido pela própria mãe. A pancada, de certa forma, marcou a vida
de Marvin.
Durante o período que Marvin esteve desacordado, seus irmãos Jessé
e Jeremias, que eram gêmeos e tinham apenas 9 anos de idade, tocaram a
lavoura. Receberam a ajuda de alguns vizinhos, que se solidarizaram com a
situação da família.
Restabelecida a condição física de Marvin, ele reassumiu as funções
da lavoura e voltou a comandar o plantio. Embora não entendesse muito
das técnicas de cultivo, seus irmãos preferiam a coordenação dele a
trabalhar com os vizinhos, pois estavam junto do irmão mais velho, que,
naquele momento, era como se fosse o pai deles.
Marvin sugerira aos irmãos que o ajudassem apenas em períodos de
grande quantidade de trabalho, como na época de colheita. Todavia, os
irmãos negaram a gentiliza e se mantiveram, mesmo com a pouca idade,
firmes e frequentes no plantio, independentemente do clima, dia da semana
ou de qualquer outro motivo. A única exceção aceita pelos gêmeos era
continuar indo à escola diariamente, algo que Marvin havia abdicado por
completo em sua vida.
◆ ◆ ◆

A falta de conhecimento de Marvin sobre plantio estava prejudicando


o cultivo na lavoura. Boa parte da plantação era detonada pelas pragas,
pelos extremos das temperaturas, pelos animais. Ainda assim, Marvin
continuava a trabalhar sem parar, na tentativa de recuperar as perdas.
Sebastião não costumava dar orientações a Marvin sobre técnicas
agrícolas. Apenas lhe dizia o que deveria fazer de forma prática, como arar
a terra, plantar, capinar, colher, mas sem nenhuma preocupação com as
questões didáticas sobre as atividades de cultivo. Tudo o que Marvin
aprendera foi fazendo observações.
Passado algum tempo, aprendeu algumas técnicas de plantio com
um ancião amigo de seu pai, de modo que o cultivo apresentou melhorias
significativas. Por algum tempo, Marvin conseguiu afastar a fome de sua
casa. Seus irmãos estavam alimentados e contentes.
Marvin aprendeu a fazer cálculos e já tinha um bom número de
compradores para os tubérculos quando, enfim, estivessem prontos para a
colheita. Dedicava-se dia e noite ao trabalho. Acordava às 5h30 da manhã e,
sem perda de tempo, corria para a roça. Quando a noite caía, ele voltava
para casa. Então ficava fazendo cálculos para prever quanto dinheiro iria
receber dos compradores pela venda dos insumos.
Concluiu que se nada saísse do planejado obteria dinheiro para
comprar comida suficiente até o final do ano – seria um bom tempo de
alívio. Assim, pretendia fazer estoques de arroz, feijão, farinha de milho,
farinha de trigo e outros alimentos a serem consumidos pela família.
Faltava pouco para tudo ser colhido, ensacado e vendido.
Provavelmente em duas semanas conseguiria iniciar a colheita. Marvin
estava empolgado e orgulhoso de si mesmo. Falava para os irmãos que a
vida seria feliz e farta assim que a colheita fosse realizada.
Entretanto, faltando três dias para começar a colheita, Marvin sentiu
novamente o peso do mundo em suas costas. Um vendaval descomunal
atingiu a roça. A lavoura, que estava repleta de tubérculos quase prontos
para serem colhidos, fruto de muitos meses de dedicação intensa, foi
devastada, não restando praticamente nada em condições de venda ou
consumo. Marvin não tinha nada para vender. Além disso, restou um
número ínfimo de itens em condições de serem consumidos pela família.
Marvin ficou horas olhando para a lavoura devastada. Por diversas
vezes berrou: “Merda de vida! Merda de vida!” Desesperadamente, tentou
se convencer de que aquilo não passava de um pesadelo, então fechava e
abria os olhos para acordar, mas era inútil.
Chorou por horas e horas até não resistir mais e adormecer.
Passada a tormenta, com os olhos vermelhos de tanto chorar,
perguntou para a mãe em tom de desespero:
– Por que Deus fez isso comigo? Desde que o pai morreu eu começo
a trabalhar na roça às 6 horas e só paro quando a escuridão não permite que
eu enxergue mais nada. Por que Deus é tão ruim comigo, mãe?
Maria de Lurdes permaneceu quieta por alguns instantes. Depois,
disse a Marvin que ele devia rezar mais:
– Deus castiga quem não reza e não obedece a seus mandamentos.
Você deve ter cometido pecados, Marvin. Acho que deve ir à igreja e se
confessar para o Padre Bentolino.
Marvin, com a ingenuidade típica de um menino do campo, acreditou
que estava sendo castigado por Deus por ter bebido cachaça alguns dias
depois da morte do pai. Porém, não comentou nada com a mãe sobre a
embriaguez.
O peso na consciência naquele momento era do mesmo tamanho da
dor de ter perdido a colheita do trabalho de quase um ano.
Maria de Lurdes, preocupada com os filhos pequenos, perguntou:
– Sobrou algo para fazer o jantar para as crianças?
Marvin, triste, respondeu:
– Praticamente nada. Apenas algumas batatas. Os poucos animais
morreram todos. Apenas a Gringa conseguiu escapar.
– Quem é Gringa, Marvin?
– Uma porquinha em quem a Ana Rebeca adora fazer carinho.
Maria de Lurdes virou as costas e disse que iria ver o que tinha na
cozinha para fazer nos próximos dias.
De fato, o vendaval havia sido devastador, porém os agricultores
vizinhos tiveram prejuízos bem menores, pois sabiam como lidar com as
tempestades.
Marvin acabou sendo mais prejudicado do que os outros
agricultores em virtude da inexperiência, pois foi pego totalmente de
surpresa e sem saber o que fazer para amenizar os efeitos do vendaval.
CAPÍTULO 3
Furtos

H
avia meses que Marvin não entrava na paróquia, mas como não
aguentava mais o peso na consciência, no domingo foi à igreja e se
confessou ao padre.
– Padre Bentolino, sinto dizer que pequei. Alguns meses atrás enchi a
cara de cachaça, pois estava com raiva da minha mãe. Então bebi para me
vingar dela.
O padre de imediato percebeu que aquela voz do outro lado do
confessionário era do jovem Marvin. Na verdade, Marvin era um rapaz
bastante conhecido na região, pois o fato de ter herdado a responsabilidade
de cuidar da família com apenas 13 anos de idade fora algo marcante.
No entanto, para ter certeza, questionou:
– É você, Marvin?
– Sim, sou eu, Padre Bentolino – respondeu o jovem camponês, com
um pouco de constrangimento.
O padre seguiu com a fala:
– Meu filho, você cometeu três pecados de uma só vez. Bebeu
álcool, sentiu raiva da própria mãe e cometeu vingança, mesmo que essa
vingança tenha prejudicado somente a você.
– Sim, eu sei, e Deus já me castigou. Acabou com a minha
lavoura.
– Deus sempre faz as coisas certas, meu filho. Se ele achou prudente
acabar com a sua plantação, então é porque isso era o melhor a ser feito.
Não fique zangado, Deus sabe o que faz, Deus sabe de tudo e de todos.
Marvin não sabia se ficava triste ou feliz com as palavras do padre,
então resolveu ser bem objetivo:
– Certo, Padre Bentolino. O que devo fazer agora?
– Para que tudo volte ao normal na sua vida, vou lhe dar uma
penitência, você deve rezar dez pai-nossos e vinte ave-marias.
– Tá bom, padre. Depois disso tudo ficará bem comigo e com minha
família?
– Sim, meu filho. Mas você não deve pecar mais, pois Deus está lhe
dando essa chance, mas não quer que você o desobedeça novamente.
– Prometo que não vou beber cachaça e nem pecar nunca mais –
respondeu, Marvin, com certa preocupação na fala.
Encerrada a confissão, Padre Bentolino ensinou ao jovem agricultor
que se ele fosse temente a Deus não iria mais acontecer vendavais nas suas
lavouras. Marvin, no entanto, temia, na verdade, acabar pecando sem
perceber e receber outro castigo ainda mais severo de Deus.
Marvin passou a rezar todos os dias. Nas orações pedia a Deus que a
situação melhorasse, pois seus irmãos estavam com fome. No entanto, nada
melhorava. Havia passado um mês desde o vendaval e as reservas de
comida tinham acabado. Os irmãos se queixavam de fome, mas Marvin não
sabia o que fazer para resolver o problema. Os gêmeos Jessé e Jeremias
estavam tão magros que era possível identificar cada osso existente nas
costas dos meninos. Jessé, no âmago da simplicidade de uma criança em
jejum, relatou o sonho que tivera na noite anterior:
– Sonhei que a gente estava em uma casa que tinha muita comida, e
então eu pude comer até um pedaço enorme de bolo de chocolate.
Ana Rebeca, sua irmã mais nova, de 4 anos, pediu um pouco de água.
Quando Maria de Lurdes foi alcançar a caneca, a menina desmaiou de
fome.
Nesse instante, Marvin, em desespero, foi correndo até a venda mais
próxima. Chegando ao armazém, pediu fiado um pão ao Seu Antônio. O
comerciante, que era muito avarento, só resolveu entregar a mercadoria
depois que Marvin puxou uma faca, colocou-a rente ao seu pescoço e disse
que só iria embora se recebesse o pão. Por um instante, o homem refutou,
mas quando percebeu que a faca começava a ferir seu pescoço decidiu
atender ao pedido. Marvin agradeceu e disse que pagaria pelo pão tão logo
obtivesse dinheiro.
Marvin chegou à casa com um pão que pesava em torno de 500
gramas. Dividiu-o em quatro pedaços (um naco para cada irmão e outro
para a mãe). Maria de Lurdes recusou, mas Marvin insistiu, então, mesmo
se sentindo culpada, a matriarca pegou aquele pedaço de pão e o devorou
com a fome de um leão. Marvin, que já estava havia cinco dias
sobrevivendo apenas de água, abdicou novamente da comida. Não ingeriu
sequer um farelo daquela iguaria feita de trigo. As crianças foram dormir,
ainda com fome, mas não tanto quanto estavam antes de provar daquele
pão.
Um outro dia começou, o pão havia sido devorado em questão de
minutos no dia anterior, e as crianças voltaram a sentir uma fome
desesperadora. A irmã de Marvin, que já estava com os olhos fundos,
debilitada, começara a ter alucinações. Maria de Lurdes, que raramente
demonstrava alguma preocupação, disse a Marvin que estava sofrendo
com aquilo tudo, mas que não podia resolver nada.
Sabendo que não havia nenhuma solução honesta que pudesse
resolver o problema da fome em sua casa, Marvin decidiu que iria agir de
forma ilícita.
No silêncio da noite, pedindo perdão a Deus e fazendo o sinal da cruz
sem parar, se deslocou até a chácara de um vizinho que criava porcos, patos
e galinhas. Aproximou-se do galinheiro e furtou três frangos. Estalou o
pescoço das aves de forma atabalhoada, o que lhe causou um certo
nervosismo. Ainda assim obteve êxito na iniciativa, de maneira que matou
as três aves sem chamar a atenção dos vizinhos. Colocou-as dentro de um
saco preto e as levou para casa.
No dia seguinte, avisou para a mãe que havia conseguido comida:
– Mãe, trouxe frango para a senhora preparar pra gente – disse em
voz baixa, com um sorriso tímido no rosto.
– Como conseguiu esses frangos, Marvin?
– Comprei fiado na venda.
Maria de Lurdes não fez mais perguntas. Depenou um dos frangos e
o cozinhou. Guardou os outros dois para comerem nos próximos dias.
Marvin, depois de uma semana de jejum forçado, pôde voltar a se
alimentar. Devorou as duas coxas do frango em poucos segundos, não usou
talheres, prato, nada. Parecia um animal selvagem diante de uma presa
encurralada. Também comeu as costas e toda a carcaça da ave. Apenas os
ossos, a cabeça e os pés foram preservados. Com as energias recuperadas,
trabalhou de uma forma que havia muito tempo não conseguia.
Uma semana se passou e os frangos acabaram. Novamente não
tinham mais o que comer. A chuva havia castigado o solo em demasia, e
estava muito difícil de conseguir eficiência no plantio. Alguns tubérculos
estavam se formando, mas ainda iria levar algum tempo até ser possível
colher alguma coisa para alimentar os irmãos.
Marvin lembrou da Gringa e resolveu conversar com Ana Rebeca,
sua irmãzinha, para falar sobre a situação e, portanto, comunicar que teria
que matar a porca para dar de comer a ela e aos irmãos.
Entretanto, Ana Rebeca não concordou com a ideia de transformar a
porquinha em refeição. Só de imaginar a cena ela começava a chorar. Disse
ao irmão que amava aquela porquinha e que não queria que ela morresse,
pois ficaria muito triste. Com os olhos cheios de lágrimas, implorou ao
irmão:
– Não mate a Gringuinha, Marvin, por favor. A gente pode comer as
folhas das árvores. Acho que vai ficar gostoso se a mamãe cozinhar.
Comovido com a súplica – e tentando disfarçar as lágrimas –, Marvin
prometeu à irmãzinha que ele iria poupar a vida da porquinha e que daria
um jeito de conseguir comida. Ana Rebeca sorriu e respondeu:
– É por isso que te amo tanto, maninho! Você é bom.
Marvin não queria furtar o vizinho novamente, pois havia se sentido
muito culpado da outra vez. Porém, diante da promessa que havia feito a
Ana Rebeca, era a única alternativa que lhe restava.
Na calada da noite, novamente pedindo perdão a Deus e fazendo o
sinal da cruz dezenas de vezes, Marvin repetiu o furto de uma semana antes.
Colocou-se à frente da chácara do Seu Antônio, olhou para os lados,
respirou fundo e entrou.
Percebera, todavia, que estava menos nervoso, mais confiante, mais à
vontade. Pensou em manter a quantidade furtada na semana anterior, três
frangos, mas lembrou que a comida durara apenas sete dias. Sabendo que
tinha condições de carregar o dobro sem ser notado e que poderia manter as
aves mortas em estoque por um bom tempo, já que possuíam uma geladeira
a querosene (que dispensava eletricidade) comprada havia muitos anos por
Sebastião, decidiu furtar seis frangos, entendendo ser o suficiente para ficar
algum tempo sem se preocupar com a fome.
Como estava menos ansioso que a primeira vez, escolheu
antecipadamente quais aves mataria. Não havia dificuldades para caçar
qualquer uma delas, então optou por pegar as que pareciam ser mais
graúdas. Assim, matou-as executando os golpes sem maiores dificuldades.
Usou uma técnica que ouvira de um criador conhecido, em que as aves
morriam de imediato, sem emitir nenhum som. A técnica deu certo e em
menos de vinte minutos estava com os seis frangos recolhidos no sacolão
preto, o qual fora escolhido criteriosamente.
Curiosamente se sentiu menos culpado, ainda que tivesse matado
mais animais. Conseguira dormir com menos dificuldade do que na
primeira vez.
Marvin chegou à casa com o sacolão cheio, e, como na semana
anterior, foi questionado por Maria de Lurdes. Disse-lhe a mesma coisa:
comprou fiado e que iria pagar quando vendesse as batatas aos mercadores.
Como de costume, Maria de Lurdes não fez questionamentos.
A prática do roubo de frangos perdurou por dois meses, de forma que
Marvin repetiu o ato por cinco vezes nesse período.
Para não dar na vista, Marvin furtou três propriedades diferentes.
Após esse período já havia tubérculos suficientes para a colheita. Não
existindo mais necessidade de furtar aves, o garoto permaneceu um breve
período sem chegar perto dos galinheiros vizinhos.
◆ ◆ ◆

Alguns meses se passaram e Marvin começou a sentir um


aborrecimento, um tédio, uma sensação de inércia que ele não conseguia
entender o que era. Depois de muito refletir, percebeu que estava sentido
falta de roubar frangos nas propriedades dos vizinhos. Não entendia o
motivo de sentir falta de algo tão nefasto, injusto, cruel... Já não sabia
mais se os furtos haviam ocorrido apenas por necessidade ou se tinha um
pouco de desejo no meio daquilo tudo.
No fundo, o hábito de semanalmente invadir alguma propriedade e
levar animais que acabara de matar o fazia se sentir bem. A sensação era
diferente de todas as outras. Na verdade, Marvin sentia um prazer enorme
quando praticava os furtos.
O garoto irremediavelmente estava sentido falta da adrenalina que
seu corpo produzia toda vez que desafiava o mundo invadindo chácaras
alheias, mas é provável que jamais tivesse escutado a palavra “adrenalina”
na vida.
Sem saber direito o que se passava dentro de si, Marvin encontrou
uma justificativa excelente para voltar a roubar. Sua irmã, a quem ele
dedicava a maior parte do tempo livre, perguntou-lhe:
– Quando iremos comer frango novamente? Estou com saudades
daquela comida gostosa.
Marvin virou a cabeça em direção à irmã, olhou-a piedosamente e
pensou: “Preciso realizar o desejo da minha irmã, ela é apenas uma criança
que não aguenta mais comer batata e mandioca todos os dias.” Marvin
estava fazendo algo para satisfazer o próprio desejo, porém usou a irmã
como subterfúgio. Sem perceber, ou mesmo tapando os olhos para a
realidade, havia adquirido vício pelo furto. A grande diversão da sua vida se
manifestava em furtar e matar frangos. Sendo assim, unia-se o “útil ao
agradável”.
Sem pestanejar, naquela noite estava novamente se preparando para o
furto.
A noite chegou, Marvin colocou a roupa preta que herdara do pai e
que havia utilizado nas duas últimas vezes em que entrara nas propriedades
vizinhas e saiu em direção à chácara do Seu Antônio. Porém, para sua
surpresa, as galinhas estavam guardadas em uma gaiola segura, cheia de
correntes e com cadeado fechado, sendo impossível furtá-las.
Marvin ficou momentaneamente sem reação. De início estava
raivoso, sem capacidade de pensar em nada. Depois se acalmou e, então, se
sentou em uma pedra, onde ficou alguns minutos raciocinando. Planejou se
deslocar até a chácara do Seu Silvano, que era outro criador de aves da
cidade, mas concluiu que não seria possível, pois o lugar era um tanto
distante e, assim, chegaria muito tarde a casa e poderia ser descoberto pela
mãe. Sem alternativa, decidiu voltar para casa, ainda que não tivesse
realizado seus planos. Porém, quando estava pulando a cerca para sair da
propriedade, ouviu um som diferente. Focando a atenção, percebeu que se
tratava de um grunhido. Era um porco, que de longe não parecia ser tão
grande. Ao se aproximar, percebeu que se tratava de um leitão e que era
possível carregá-lo, já que ainda era jovem.
Não pensou duas vezes, iria levar aquele animal para casa de
qualquer jeito. Apressadamente, arrancou uma estaca da cerca, que, pesada
que era, poderia ser improvisada para atacar o suíno. Aproximou-se do
leitão e habilmente acertou uma paulada na cabeça do bicho, que estava
totalmente distraído. O animal morreu na hora, fazendo pouco alarde.
Marvin colocou o leitão dentro de um saco e o carregou para casa.
Deixou-o do lado da porta, ainda dentro do saco preto. Ao perceber
que a mãe estava acordada, perguntou se ela sabia preparar porco assado.
– Sei sim, Marvin. Mas de onde vamos tirar um porco para assar?
– É que ontem participei de uma competição de tiro na fazenda do
Seu Antônio. Venci e o prêmio era um leitão fresco – respondeu ele, já sem
nenhum receio em mentir sobre a obtenção dos animais.
– E desde quando você sabe atirar, Marvin? Não lembro de ver você
utilizando a espingarda que era do seu pai e que inclusive está debaixo da
minha cama desde que ele faleceu – questionou Maria de Lurdes, bastante
surpresa.
– Aprendi com o primo Juvêncio, naquele final de semana que passei
na casa do tio Leomar. – Inventou Marvin, sem maior preocupação, pois
sabia que a mãe não iria lembrar da história quando encontrasse o cunhado
ou o sobrinho.
Como de costume, Maria de Lurdes não esticou a conversa. Apenas
respondeu que iria assar o porco para o almoço no dia seguinte,
acompanhado de batatas e cenouras. Marvin, um tanto aliviado, tomou um
banho de bacia, frio. Deitou-se e dormiu com o pensamento leve, sentindo a
sensação de dever cumprido.
No dia seguinte, Maria de Lurdes avisou aos filhos que havia
novidade para o almoço. Além das batatas e cenouras, iriam comer leitão
assado. As crianças, que não sabiam o que era leitão, perguntaram se era o
marido da galinha.
Marvin explicou que leitão era um porco jovem e que a sua carne era
ainda mais gostosa que a de frango.
– Então a Gringa é uma “leitona”, Marvin? – perguntou Ana Rebeca.
– Não, Ana Rebeca. A Gringa já é adulta, então ela já é uma porca –
respondeu Marvin, achando engraçada a pergunta da irmã.
No dia seguinte, que era um domingo, Maria de Lurdes chamou
todos os filhos e avisou que o almoço estava pronto. As crianças comeram
tanto que chegaram a passar mal. Ana Rebeca, entusiasmada com a fartura,
disse para a mãe que aquele era o dia mais feliz de sua vida.
Marvin, que tinha um carinho especial pela irmã, afastou qualquer
sentimento de culpa por ter furtado aquele animal ao perceber a satisfação
da caçula.
CAPÍTULO 4
O homem-onça

M
arvin, de forma inesperada, passou a sentir dores frequentes na
cabeça. De imediato, associou as dores ao acidente que sofrera
quando teve a discussão com sua mãe, já que ficara desacordado por
diversos dias devido ao impacto que sofrera na cabeça. As dores estavam se
tornando cada vez mais insuportáveis.
Não ingeria bebidas alcoólicas desde a vez em que entrara no galpão
e tomara uma garrafa de cachaça em protesto à mãe, já que levou em
extrema consideração o que havia prometido ao Padre Bentolino. Porém,
em decorrência das dores, se viu obrigado a quebrar o juramento. Concluiu
que recorrer à bebida poderia amenizar a dor que o castigava dia e noite,
pois lembrava que na ocasião em que bebera todas as dores e sentimentos
ruins haviam se dissipado e, no lugar, uma sensação de euforia, de alegria.
Sem perda de tempo, voltou ao galpão e se dirigiu ao lugar em que as
bebidas estavam guardadas. Não pensou em mais nada a partir daquele
momento, pegou uma garrafa de cachaça, abriu-a e a levou apressadamente
até a boca.
Percebeu após os primeiros goles que milagrosamente a cachaça
aliviava a dor. Então, em poucos minutos, sorveu uma garrafa inteira. A
partir dessa “descoberta”, toda vez que sentia dores na cabeça recorria à
cachaça, de maneira que a bebida passou a ser usada por ele como um
eficiente anestésico.
Passado algum tempo, as dores começaram a ser menos frequentes,
porém a vontade de beber estava cada vez mais presente no seu organismo.
Torcia, pois, para que a dor voltasse, assim teria um motivo para beber sem
pensar que estava quebrando a promessa feita ao Padre Bentolino. O ato de
beber ocorria “apenas” para solucionar as insuportáveis dores. Esse foi o
subterfúgio encontrado por Marvin para consumir álcool sem a sensação de
estar cometendo pecado.
No entanto, não sentia dor alguma havia semanas e, sem dor, não
havia motivo para beber, o que estava deixando-o transtornado.
Certo dia, depois de trabalhar por doze horas seguidas, Marvin sentiu
terríveis dores lombares, então questionou a si mesmo se a cachaça
resolveria isso também. Era, na verdade, o pretexto perfeito para voltar a
beber. Sem maiores ponderações, abriu logo uma garrafa. As dores não
passaram, mas a sensação de beber foi o suficiente para que Marvin
suportasse aquela agonia sem lamúrias.
Curado naturalmente dos problemas lombares, dor alguma atacava
Marvin, o que o deixava muito frustrado, já que precisava disso para poder
beber sem quebrar a “promessa”. Percebendo que raramente sentia alguma
dor de forma espontânea, Marvin passou a se machucar propositalmente,
ainda que tentasse enganar a si mesmo que se tratava de acidentes.
Entretanto, no dia que estava completando 15 anos de idade bateu tão
forte com a enxada contra si mesmo que fraturou a perna. Teve que ser
socorrido às pressas e acabou por ficar três semanas sem trabalhar. Sua
mãe, que àquela altura já havia percebido o hábito de beber do filho,
advertiu-o:
– Está igual a seu pai, um bêbado vadio, que não presta nem pra
trabalhar. Eu disse que você iria ficar igual a ele.
Marvin sentiu naquele momento um ódio profundo da mãe, algo que
jamais sentira por ninguém. Tanto ele quanto o pai estavam sendo
ofendidos. Como podia chamá-lo de vadio se ele trabalhava de sol a sol,
debaixo de temporais, em épocas de forte frio ou de calor, tudo para
conseguir alimentar a ela e aos irmãos?
A mãe podia não saber, mas ele já havia arriscado a própria vida
roubando animais para que os irmãos não morressem de fome. Além disso,
como poderia chamar de vadio seu pai, que morrera doente de tanto
trabalhar?
Mesmo tendo inúmeros argumentos para contrariá-la, permaneceu
quieto. Não conseguia debater com a mãe. Sentia medo e, também,
vergonha de contestá-la.
No entanto, as palavras de Maria de Lurdes o deixaram ainda mais
revoltado com a vida, com o mundo, com Deus. Decidiu que a partir
daquele dia iria beber de qualquer jeito, sentindo ou não dores, pois era a
única distração que tinha na vida. Não iria mais procurar desculpas para
beber. Pensou que se Deus tivesse que castigar alguém, que fosse sua mãe,
que desrespeitava a lembrança dos mortos e não tinha a menor consideração
por quem colocava comida dentro de casa. Se antes bebia apenas quando
sentia dores, agora beberia em qualquer situação.
Curado completamente do acidente com a enxada, Marvin foi até o
galpão e devorou uma garrafa inteira de pinga; fez o mesmo durante os
quatro dias seguintes. Só parou porque as bebidas haviam acabado. Porém,
deu um jeito de conseguir mais e, assim, reabasteceu o estoque.
Quando atingia o auge da bebedeira, Marvin acabava refletindo sem
parar sobre palavras que sua mãe lhe dissera. Nos dias seguintes aos porres,
durante a ressaca, também lembrava das palavras da mãe, e, ao deitar-se
para dormir, mantinha o pensamento. A cólera estava tomando conta de
Marvin sem que ele percebesse.
◆ ◆ ◆

Em um dia frio de inverno, Marvin resolveu levar uma garrafa de


cachaça para beber durante o expediente na lavoura. No entanto, como não
estava habituado a ingerir álcool logo de manhã, sentiu-se mal. Uma
sonolência tomou conta dele, que acabou dormindo ao lado de uma pá. Teve
um terrível pesadelo, em que discutia com a mãe sobre o golpe que ela
desferira nele anos atrás. No sonho, Marvin ouvia de Maria de Lurdes:
– Você deveria ter morrido, mas falhei. Não podia ter falhado, pois
agora tenho que conviver com o desgosto de cruzar todo dia com um filho
fracassado.
Marvin acordou no exato momento em que a mãe o ofendia, sem que
pudesse emitir a réplica. Sentiu um susto tremendo e, mesmo que as
palavras tivessem sido ditas em um sonho, aquilo fez com que sentisse
ainda mais ódio. Seguiu trabalhando após o susto, mas a lembrança daquele
sonho não saía de sua cabeça.
Sentindo o ódio tomar conta de si, pensou em voltar para casa, entrar
no quarto da mãe e falar tudo o que sentia para ela. Porém, não teve
coragem. Decidiu, no entanto, que aquela noite iria retomar o ofício de
matador de animais.
Havia três meses que Marvin não roubava frangos nem porcos dos
vizinhos, e mesmo que vez ou outra sentisse vontade de cometer algum
furto nas propriedades alheias conseguia rapidamente tirar esse desejo da
cabeça.
Porém, lembrando do sonho que tivera, entendeu que voltar a atacar
animais iria frear um pouco aquele sentimento terrível que estava tendo,
pois assim colocaria a raiva para fora. Então falou para si mesmo que dessa
vez não iria roubar no intuito de saciar a fome dos irmãos, roubaria porque
dentro dele havia um desejo enorme de matar animais.
Marvin, de fato, carregava a certeza de que matando os animais iria
amenizar a raiva que estava sentindo.
Vestiu sua roupa preta habitual, subiu na bicicleta que havia recebido
em troca de três sacos de batata de um comerciante da capital, bebeu uma
garrafa inteira de cachaça misturada com suco de limão e foi até a chácara
do Seu Moacir, um vizinho que morava nas redondezas havia mais de trinta
anos.
Quando chegou à chácara, o álcool já estava fazendo efeito no seu
organismo. Porém, ainda tinha bastante discernimento para colocar em
prática seu plano. Dessa vez não pediu perdão para Deus, tampouco fez o
sinal da cruz. Optou por não entrar de imediato, pois sabia que os vizinhos a
essa altura estavam mais antenados, já que a notícia do furto de animais
havia se espalhado pela cidade. Ficou por alguns minutos observando o
lugar. Analisou bastante, lembrou os detalhes do plano que havia traçado.
Pegou a lanterna que havia comprado tempos atrás e examinou cada canto
que a luz do instrumento fosse capaz de alcançar. Finalizado todo o ritual,
arrebentou com uma pedra a corrente frágil que havia em volta do portão.
Entrou, tomou mais alguns goles da garrafa de cachaça que carregava no
bolso. Em tom de voz baixo, para não chamar a atenção dos moradores,
proferiu a frase: “Não terei piedade alguma.”
Pisou de leve no primeiro galinheiro que viu e, sutilmente, matou três
galos e os colocou no saco preto que levava consigo. Tomou mais um gole
de cachaça, respirou fundo, pegou uma galinha pelo pescoço e o torceu sem
a menor dificuldade. Fez o mesmo com outras cinco aves. Naquele
momento, se sentiu satisfeito. Colocou os animais mortos no saco preto e se
dirigiu até a bicicleta, que havia deixado do lado posterior ao portão.
No entanto, uma cólera ainda maior tomou conta de seu coração,
tornando-o irracional. Sem refletir sobre o que estava fazendo, voltou até o
galinheiro e, com um ódio profundo de tudo o que via pela frente, matou
todos os galos, galinhas e pintos que encontrou. Porém, não colocou
nenhum dos bichos no saco. Deixou-os no mesmo lugar em que os matara.
Também não quis levar as galinhas que havia matado anteriormente.
Marvin já estava se preparando para abandonar a propriedade quando
se deparou com um cachorro que não avançou nele, apenas soltou alguns
latidos. Marvin, em um primeiro instante, não deu maior atenção para o
animal, porém ele continuou latindo. O jovem agricultor, com algum receio
do cão, proferiu algumas palavras na tentativa de calá-lo. Não adiantou, o
animal latia sem parar e cada vez mais alto.
Os latidos começaram a irritar Marvin, além de deixá-lo ainda mais
preocupado. Então, sem piedade, se aproximou do cão, e quando este se
aproximou para atacá-lo – talvez na tentativa de se defender – Marvin
puxou uma faca da cintura e a enfiou no coração do animal, que morreu em
poucos minutos, depois de um último latido quase sem forças.
Por alguns minutos Marvin ficou inerte, sem entender o que havia
feito e por que havia cometido aquela barbárie. Ao cair em si, começou a
chorar copiosamente, sentindo uma terrível sensação de culpa. Sem
alternativa, deixou o saco no chão, com os animais mortos dentro, enrolou o
corpo do cachorro em um pano que encontrou na propriedade e foi para
casa, conduzindo a bicicleta sem entender direito se estava com remorso
pelo que tinha feito.
No dia seguinte, Seu Moacir, que era um homem viúvo e solitário, foi
arrecadar ovos para o desjejum. Quase desmaiou ao ver que praticamente
todas as suas aves, que eram sua fonte de sustento, estavam mortas. Ele
contabilizou 52 galinhas, 40 galos e 64 frangos degolados. Além do
Horácio, cachorro pelo qual ele tinha muito apreço, já que o havia recebido
da esposa como presente de aniversário, seis meses antes de ela morrer.
Os vizinhos custaram a crer no que havia acontecido. Os mais
experientes disseram que devia ser uma raposa ou algum outro predador o
responsável pela matança. Entretanto, Pereira, que era o delegado
responsável pelos casos daquela região, percebeu que havia marcas de botas
que só poderiam ser de homem, de modo que não havia nenhuma
possibilidade de atribuir as mortes a uma raposa ou outro animal qualquer.
Um menino de 10 anos que morava em uma chácara próxima disse
que havia visto no dia da matança dos animais, quando brincava de bola
com o seu gato, uma onça que se equilibrava sobre duas pernas. Disse,
ainda, que a onça vestia calças e botas pretas.
Um idoso corroborou a história, dizendo que em duas ocasiões no
mês anterior viu a mesma onça, com as mesmas características descritas
pelo menino, e que só não foi atacado porque afugentou a “aberração” com
tiros de espingarda. Outras pessoas disseram escutar “uivos” estranhos
durante a noite.
Diante dos testemunhos, criou-se a lenda popular na cidade do
“homem-onça” e a tese foi aceita e divulgada por praticamente todas as
pessoas daquela região. Até mesmo um jornal de repercussão estadual
noticiou o caso do homem-onça. As pessoas diziam que se tratava de um
ser sobrenatural, que era homem da cintura para baixo e onça da cintura
para cima. O homem-onça foi, naturalmente, responsabilizado pela
“chacina” na chácara do Seu Moacir, tornando-se a partir daquele dia um
mito da região.
A notícia logo se espalhou pela cidade. Dona Maria de Lurdes,
preocupada com a devassidão do homem-onça, avisou aos filhos para
tomarem muito cuidado, pois o Padre Bentolino havia falado na missa
que um demônio estava à solta na cidade matando animais e que logo,
logo iria começar a matar também as crianças.
Marvin permaneceu calado. Apenas disse a Ana Rebeca que nenhum
mal iria lhe acontecer, pois ele a protegeria de todos os “bichos-papões” do
mundo.
Ana Rebeca era a pessoa no mundo a quem Marvin mais amava.
Embora gostasse dos demais irmãos, seus carinhos, abraços, beijos,
conselhos eram dedicados exclusivamente à irmã.
Ao ser questionado pela irmã o motivo de o homem-onça ser tão mau
e matar animais indefesos, Marvin refletiu sobre o ato criminoso que
cometera. Não conseguia entender como tivera coragem de matar tantos
animais. Respondeu, sem conseguir olhar nos olhos da irmã, que o homem-
onça devia ter problemas na cabeça.
CAPÍTULO 5
A infância de Marvin

M
arvin seguidamente lembrava de Sebastião e de como era agradável
a época em que seu pai era o responsável por tudo. Lembrava com
mais exatidão que o pai chegava tão cansado da lida a ponto de se
atirar em uma cadeira de balanço – que devia ter no mínimo um século de
existência e era deixada propositalmente ao lado da porta – e dormir
profundamente.
Sua mãe fazia a comida enquanto o pai permanecia na cadeira. Após
o término da preparação da janta, Maria de Lurdes pedia a Marvin para
acordá-lo. Como sempre, seu pai falava: “Não estava dormindo não, filho.
Estava recuperando as forças um pouco.” Era uma forma carinhosa que
Marvin identificava no trato do seu pai em relação a ele.
Depois de certa idade, Marvin percebeu que o pai lhe mentia, pois
realmente estava dormindo. Entretanto, não entendia a razão para que ele
não falasse a verdade. Um dia resolveu perguntar:
– Papai, por que o senhor mente que não está dormindo?
– Olha, menino! Saiba que é muito feio chamar os mais velhos de
mentirosos.
O menino então se desculpou, mas ainda assim permaneceu com a
certeza de que o pai estava a dormir quando era chamado para jantar.
Sabendo que seu pai não iria contar a verdade, resolveu perguntar
para Maria de Lurdes:
– Mãe, por que o papai mente que não está dormindo quando eu vou
até ele?
– Ele sente sono porque bebe cachaça depois que termina o trabalho
na roça. Por isso prefere mentir que está acordado.
O menino continuou sem entender. Naquela época não sabia que
tomar bebida alcóolica causava sono. Mas preferiu encerrar o assunto,
mesmo sem compreender a resposta.
Marvin começou a trabalhar na roça quando tinha 9 anos. Como
primogênito, foi o primeiro dos filhos a ajudar nos trabalhos da lavoura. Os
gêmeos Jessé e Jeremias só ingressaram no roçado depois da morte de
Sebastião.
A caçula da família, Ana Rebeca, veio ao mundo quando Marvin
tinha 9 anos de idade. Não levou muito tempo para que Marvin se
afeiçoasse à menina como se fosse sua filha.
Jessé e Jeremias eram gêmeos univitelinos, talvez por isso fossem tão
unidos. Às vezes, pareciam ser a mesma pessoa, tamanha a semelhança
entre ambos, tanto fisicamente como na personalidade. Mantinham-se
juntos o tempo todo, protegiam-se, defendiam-se mutuamente. O amor que
sentiam um pelo outro era tão impressionante que, não raro, Marvin
surpreendia um deles abdicando da comida para permitir que o outro
pudesse se alimentar. Eram crianças tímidas, assustadas e extremamente
obedientes. Pouco se ouvia queixas sobre eles. Maria de Lurdes até
esquecia dos filhos gêmeos de tão calados que eram. Fisicamente se
pareciam muito com Sebastião: esguios, morenos, de olhos pequenos,
lábios médios e nariz arredondado, com enormes orelhas.
Ana Rebeca, a caçula, por sua vez, era o oposto dos gêmeos: muito
falante, decidida e questionadora. Talvez essa personalidade fosse a
principal razão para Marvin tanto admirá-la. Assim, à medida que crescia,
se aproximava cada vez mais de Marvin e pouco brincava com os gêmeos.
Certa vez, Sebastião disse: “Essa menina parece mais filha do Marvin
do que minha.” Ana Rebeca, que na ocasião tinha 3 anos incompletos,
respondeu: “Eu posso trocar de pai? Prefiro ser filha do Marvin, porque ele
conta histórias muito divertidas antes de eu dormir.”
Sebastião não ficou enciumado com a fala da menina. Ao contrário,
se sentiu feliz em perceber a harmonia entre o primogênito e a caçula.
Esperou um pouco e então respondeu para a filha:
– Depois que eu morrer, aí sim o Marvin pode virar seu pai, mas
agora ele é só irmão.
Marvin, por sua vez, ouvira atentamente o que dissera sua irmã, e
jamais esquecera aquela singela declaração de amor genuíno.
◆ ◆ ◆

Maria de Lurdes era uma mulher de quem pouco se escutava a voz.


No entanto, vivia entrando em conflito com Sebastião. Não reclamava da
vida humilde que levavam, mas detestava o hábito que Sebastião tinha de
beber cachaça, tanto em casa quanto nos botequins da cidade. Muitas vezes
Sebastião chegava em casa tarde da noite, errando as palavras e exigindo
comida na mesa. Embora ela tivesse sido criada em um ambiente
altamente patriarcal – em que seu pai até o último dia de vida tenha ditado
todas as regras, não aceitando o mínimo de contrariedade, seja dos filhos,
seja da esposa – nunca conseguira aceitar passivamente aquela situação. Em
decorrência da revolta que sentia pelo modo como que fora criada, acabou
agindo de forma um pouco diferente em seus dois casamentos. Assim,
algumas vezes atendia ao pedido de Sebastião, outras vezes dizia para ele se
virar, pois o jantar já havia sido servido muitas horas atrás e azar o dele se
não estava em casa no horário.
Sebastião ficava contrariado, reclamava, dizia que no tempo do pai
dele uma rebeldia daquelas era motivo para uma coça. Porém, depois de
algum tempo acabava arrumando o prato de comida dele e, em seguida,
deitava-se para dormir. No outro dia, nenhum dos dois tocava no assunto.
Marvin rumava para a escola de manhã diariamente. Andava por
quase seis quilômetros. Ao retornar, trocava de roupa e, em seguida,
almoçava. Depois se deslocava para a roça. Nessa época, estudar não lhe
parecia um sacrifício tão grande, embora, se pudesse escolher, teria optado
por ficar em casa.
Sebastião dizia a Marvin que ele deveria estudar bastante, pois queria
que seu filho mais velho um dia se tornasse um doutor.
Marvin, depois de pensar por um instante, perguntou:
– Pai, o que um doutor faz?
– O doutor cuida da saúde das pessoas. Mas também tem aqueles
doutores que andam de carro, com roupa bonita. Esses cuidam das firmas.
– E o que é firma, pai?
– É um lugar na cidade grande onde tem muitas pessoas trabalhando.
– E o trabalho nas firmas é igual ao nosso?
– Não, Marvin. Nas firmas eles não usam enxadas para trabalhar. Lá
eles usam umas máquinas. Tem máquina grande e máquina pequena. Eles
têm máquina até de escrever.
Marvin ficou pensativo. Idealizava como deveria ser legal trabalhar
em uma firma. Depois de imaginar bastante o trabalho das pessoas nas
firmas, disse ao pai que quando se tornasse adulto iria trabalhar em uma
firma na cidade grande usando uma máquina de escrever. Sebastião sorriu e
concordou com a cabeça. Mas no seu íntimo algo lhe dizia que o desejo do
filho não iria se concretizar.
CAPÍTULO 6
Dom Miguel e o cultivo de soja

A
lguns anos se passaram e Marvin estava às vésperas de completar 18
anos. Já havia decorrido cinco anos desde a morte de Sebastião.
Àquela altura, dominava o funcionamento do plantio e das colheitas.
Unindo o conhecimento ao trabalho árduo, havia conseguido obter bons
resultados nos últimos anos, sendo que na última colheita obtivera o maior
faturamento desde a morte de Sebastião. Conseguira inclusive comprar
roupas novas para os irmãos e um vestido rosa para Ana Rebeca, o que o
deixou muito satisfeito, já que sua irmã dissera que aquele fora o melhor
presente que havia recebido em toda a sua vida.
No dia de seu aniversário, Marvin saiu de casa e se deslocou até a
cantina próxima à chácara para comemorar o aniversário. Mesmo que não
admitisse, àquela altura já estava completamente dependente do álcool, e
suas idas aos bares e consequentes bebedeiras já eram conhecidas por todos
na cidade.
Entrando no bar, encontrou Dom Miguel, um espanhol que há pouco
tempo firmara residência na cidade. O forasteiro havia comprado algumas
pequenas fazendas na região. Era casado com Dona Anastácia e tinha uma
filha chamada Verônica, de 16 anos, e um filho chamado Cosme, de 8 anos.
O forasteiro falava um “portunhol” sofrível, mas que se compreendia
com um pouco de esforço. Usava chapéu longo, bigode largo e paletó
grande, que provavelmente havia sido de outra pessoa, pois percebia-se
uma numeração bem acima do que lhe seria a ideal. Era sorridente e estava
na faixa dos 50 anos. Seus sapatos, embora engraxados, eram
perceptivelmente velhos.
O espanhol, notando que muitas pessoas iam ao encontro de Marvin,
perguntou ao cantineiro quem era o rapaz, obtendo a seguinte resposta:
– Um jovem trabalhador, dono de uma chácara que herdou do pai.
Começou mal, mas pelo que se sabe está melhorando. Hoje está entrando na
maioridade, completa 18 anos. Por isso todas essas felicitações e abraços.
O espanhol se interessou pelo rapaz e, passadas as homenagens, foi
até Marvin e puxou assunto. Com sotaque carregadíssimo. Saudou-o:
– Boa noite, chico! Como estás?
– Boa noite, senhor! Nós nos conhecemos? – respondeu Marvin, um
tanto surpreso.
– Na verdade, não. Pero soube que estás de cumpleaños. Meus
parabéns!
– Obrigado, senhor, mas não sei o que quer dizer cumpleaños.
– Ah, sim. Desculpe-me, as vezes yo misturo português e espanhol.
Queria apenas desejar feliz aniversário.
– Imaginei que fosse alguma coisa assim. Obrigado, senhor –
respondeu Marvin, sorrindo.
– Eu me chamo Dom Miguel.
– Prazer, sou Marvin.
Permaneceram conversando por bastante tempo. Dom Miguel falou a
Marvin sobre as suas pretensões. Disse que havia comprado algumas
fazendas na cidade para produzir soja. Contou que era um produto muito
rentável e que muitas pessoas estavam ficando ricas com esse cultivo. Falou
tão bem sobre a soja que o jovem agricultor não conseguia tirar a ideia da
cabeça. O espanhol passou seu endereço a Marvin, solicitando uma visita.
Assim poderia falar mais sobre as maravilhas do cultivo de soja.
Passadas duas semanas, Marvin resolveu visitar Dom Miguel para
aprender mais sobre o assunto. Dona Anastácia, a esposa do espanhol, era
brasileira, e convidou Marvin para almoçar. De início o rapaz recusou, mas
quando viu Verônica, filha do casal, mudou de ideia e aceitou o convite. Na
verdade, a moça lhe pareceu tão bonita que ele desejava ficar a tarde toda
naquela casa para poder desfrutar da companhia da jovem.
Dom Miguel explicou em detalhes como funcionava o cultivo de
soja. Explicou sobre o plantio, a colheita, o tipo de solo adequado, a
irrigação, a temperatura, a qualidade das sementes, dos adubos, o controle
de pragas, o processo de produção, sobre o mercado, os valores financeiros
e, principalmente, sobre a possibilidade de ficar rico com aquela
monocultura.
Marvin de imediato se encantou com ideia da produção de soja.
Identificou que aquela era uma excelente oportunidade e que, enfim, teria
possibilidades de dar uma vida digna para os irmãos. Daria também uma
resposta para sua mãe, que mais o criticava do que o incentivava.
Depois de dois meses em tratativas com Dom Miguel, firmaram um
acordo para a produção de soja nas propriedades de Marvin. Na verdade, a
decisão já estava tomada havia bastante tempo, mas ele continuava em
negociações apenas para permanecer desfrutando da presença de Verônica,
já que ela se sentava à mesa nas ocasiões em que Marvin almoçava na casa
do espanhol para tratar dos pormenores da sociedade.
Na prática, Marvin não fez nenhum estudo sobre a soja, ouvia tudo
que Dom Miguel lhe falava sem contestação. Estava convicto de que era um
excelente negócio.
Assim, resolveu que iria alterar drasticamente o que plantava,
investindo todos os seus esforços nessa monocultura. Marvin estava ainda
mais confiante pois não teria preocupação alguma com negociações, já que
o amigo espanhol iria se responsabilizar por tudo. Sua tarefa seria apenas a
produção da soja.
Mesmo contra a vontade da mãe, que não achou nada adequado
alterar totalmente a lavoura para algo incerto, Marvin iniciou os trabalhos
para a modificação do solo e, em poucas semanas, estava plantando soja.
Marvin se dedicou como nunca ao plantio. Aprendeu sobre o cultivo,
contratou agricultores da região para ajudá-lo, os quais compartilhavam do
mesmo entusiasmo, já que ele havia convencido a todos de que era um
excelente negócio. Os camponeses contratados acreditavam que iriam
ganhar muito dinheiro dentro de algum tempo.
O recém-produtor de soja atentou para cada detalhe na plantação.
Não permitia o menor deslize em relação às técnicas a serem empregadas
na lavoura. Sentia que pela primeira vez na vida sua mãe iria valorizá-lo e,
talvez, até pedir desculpas por não tem acreditado nele quando comentara
sobre o projeto.
Executou tudo com perfeição e, em menos de seis meses, comunicou
a Dom Miguel que tinha a produção de soja finalizada para ser entregue e
que a quantidade era grande.
– Dom Miguel, meu amigo, trago boas novas. A produção de soja foi
um sucesso. O solo aceitou bem essa monocultura. A colheita superou todas
as expectativas – disse o jovem, radiante.
No entanto, para a decepção de Marvin, algo inesperado aconteceu.
Com uma expressão de profunda tristeza, disse Dom Miguel:
– Querido amigo Marvin, fico extremamente contente que tenha
obtido todo esse sucesso na produção de soja. Fico muito orgulhoso. Porém,
infelizmente, o que eu tenho para te comunicar não é nada animador.
– O que aconteceu, meu amigo? – perguntou Marvin, demonstrando
bastante preocupação.
– O mercado está alterado. O preço da soja despencou no mundo
todo. Há uma crise generalizada, que está ocasionado a redução dos preços
das exportações.
– Devo confessar, Dom Miguel, que não estou entendendo nada. O
senhor sabe que não tenho muito estudo. Pode ser mais claro, por favor?
– Marvin, com muita dor no coração, o que eu tenho pra falar é que
não vou conseguir pagar o que havíamos combinado quando fechamos o
negócio. Naquela época o mercado estava aquecido e o preço da soja estava
elevado. Porém, tudo mudou. O que eu vou conseguir pagar pela soja que
você produziu vai ser menos do que combinamos.
– Menos? Quanto a menos?
– Acredito que vou conseguir pagar um quarto do que havíamos
combinado.
– Quer me dizer que o dinheiro que eu iria receber por uma saca de
soja agora será o que vou receber por quatro sacas?
– Infelizmente é isso mesmo, Marvin.
– Está falando sério, Dom Miguel?
– Sério como nunca falei na vida.
Marvin sentiu-se muito decepcionado com a situação, mas acreditou
em Dom Miguel. Entregou no dia seguinte a produção e ficou com o
dinheiro, que não chegava nem perto do que ele imaginara no início das
atividades de monocultura.
Passadas duas semanas, Marvin decidiu que iria abandonar o cultivo
de soja e, mesmo com os pedidos de Dom Miguel para que continuasse, já
que acreditava que futuramente o produto agrícola voltaria a ter alta, foi
enfático na decisão, pois não queria mais correr riscos, tinha uma família
que dependia totalmente dele. Assim, retomou o cultivo dos tubérculos,
readaptando o solo para o plantio de batata, mandioca etc.
Maria de Lurdes, quando soube o que havia acontecido, questionou
Marvin:
– A soja não deu certo, Marvin?
– Não! – respondeu Marvin, com bastante secura.
– Eu bem que te avisei para não trocar o certo pelo duvidoso.
– Agora isso não interessa mais. Vou voltar a plantar as nada
arriscadas batatas.
– Faz muito bem, filho. Não adianta nada querer inventar a roda.
Você não estudou, não tem conhecimento algum sobre essas coisas que
envolvem dinheiro. Tem que trabalhar naquilo que sabe, sem se meter em
coisas mais difíceis.
As palavras que ouviu foram como uma facada no peito. Marvin
ficou quieto, não fez nenhum comentário. Saiu do alcance da mãe e, sem
perceber, começou a chorar. Estava decepcionado demais consigo mesmo.
Não entendia o motivo de suas escolhas sempre darem errado.
Maria de Lurdes voltou a falar com Marvin no dia seguinte:
– Marvin, será que aquele homem foi honesto com você?
– Sim, mãe. Dom Miguel é uma pessoa decente. Tinha que ver a
tristeza na cara daquele homem. Por pouco não chorou na minha frente. Ele
me explicou em detalhes o que aconteceu. É uma coisa que envolve
mercado externo, exportações e assuntos que eu não tenho conhecimento
suficiente para compreender. Mas é coisa séria. O mundo todo está
enfrentando problemas com dinheiro.
– Tá bom, então. Menos mal que seja isso, pois se fosse um golpe
acho que seria ainda mais doloroso para você.
Marvin não respondeu.
A frustação de Marvin era grande. Porém, compreendia que não
havia culpados, a não ser a tal da crise mundial que prejudicou a vida de
todas as pessoas no mundo.
Depois de alguns dias recluso, Marvin voltou ao bar que costumava
frequentar. Lá encontrou um amigo e resolveu contar todo o problema que
havia enfrentado com a soja. O amigo, que lia diariamente os jornais, disse-
lhe que era tudo culpa dos árabes, pois estavam se negando a vender
petróleo por um preço justo. Marvin, que nada entendia sobre economia
mundial, ficou instigado: “O que tem a ver o petróleo árabe com a venda de
soja para os compradores de Dom Miguel?” Resolveu não questionar o
amigo para não parecer um completo ignorante, e logo mudou de assunto:
– Pois é, esse tal de petróleo deve ser algo muito importante mesmo.
Mas como estava falando antes, chega de soja, vou voltar para as minhas
batatas, mandiocas...
– Faz muito bem, Marvin, faz muito bem! Esses árabes ainda vão
precisar da gente. Mas aí não vamos entregar uma mísera batata pra eles.
Caíram na risada e depois, um tanto ébrio, Marvin foi para casa.
◆ ◆ ◆

Como havia feito muitas alterações no solo para produzir soja,


Marvin encontrou enormes dificuldades para conseguir plantar novamente
os tubérculos. Não tardou para que o fantasma da fome voltasse a
assombrar a família. Em menos de três meses a comida que havia comprado
com o dinheiro da venda da soja acabara e não havia nada na roça para
colher e levar para os irmãos. O desespero voltava ainda mais forte em sua
cabeça.
Maria de Lurdes disse a Marvin que ele deveria se confessar
novamente para o Padre Bentolino, pois o que estava acontecendo só podia
ser castigo de Deus mais uma vez.
Marvin, que já não carregava mais nenhuma crença religiosa,
permaneceu calado por algum tempo, refletindo. Depois, com lágrimas nos
olhos, replicou:
– Quem tem que se confessar ao padre é a senhora, que só sabe
maltratar as pessoas. Se Deus está fazendo essas coisas para a nossa família,
deve ser pra castigar a senhora.
Maria de Lurdes, que raramente era desrespeitada por Marvin, ficou
sem reação e nada falou. Porém, depois de algumas horas, quando Marvin
foi lhe pedir a benção antes de dormir, ela lhe disse que Deus castigava o
filho que respondia aos pais. Marvin olhou para ela com cara de desprezo, e
em seguida foi para o quarto tentar dormir.
Passadas mais duas semanas e percebendo a aflição dos irmãos,
Marvin decidiu pedir dinheiro emprestado para Dom Miguel, já que mesmo
que o ex-sócio não tivesse responsabilidade pelo acontecimento ele é que
havia convencido o rapaz a alterar totalmente a produção.
De início se sentiu constrangido, porém Ana Rebeca precisava
comer, era uma criança frágil, que já estava quase desnutrida, então ele
tinha o dever de enfrentar a vergonha e tentar obter alguma coisa.
Doeu-lhe saber que algumas horas antes de tomar a decisão de
procurar o espanhol tudo que os irmãos haviam comido fora um prato de
farinha de mandioca misturado com água.
Marvin subiu na carroça, encheu-se de coragem e foi até a fazenda de
Dom Miguel. Ficou o tempo todo pensando em como iria abordar o ex-
sócio. Estava convicto de que conseguiria algum dinheiro, pois era uma
situação muito grave.
Chegando à fazenda, Dom Miguel o recebeu com certa desconfiança,
mas convidou Marvin para entrar.
Sentados no pequeno escritório montando havia pouco tempo em um
dos cômodos da casa, o espanhol questionou:
Mas então me diga, o que traz você aqui, Marvin?
– Amigo Dom Miguel, sei que não tem culpa pelo que aconteceu,
mas preciso muito da sua ajuda. Minha colheita ainda vai demorar algumas
semanas pra acontecer e não tenho nada para dar para os meus irmãos
comerem. Preciso que me empreste algum dinheiro. Pago logo que
conseguir vender minha produção de tubérculos.
Dom Miguel, lamentando profundamente, respondeu:
– Fico realmente triste pela situação. Não devia ter colocado você
nessa. Mas infelizmente não tenho como ajudar neste momento. Também
estou passando por sérias dificuldades. Não consegui revender nem metade
da soja que comprei dos produtores, mesmo pedindo um valor muito baixo.
Maldita crise, Marvin! Maldita crise!
Marvin, sem saber muito o que falar e deixando escorrer algumas
lágrimas, continuou:
– Entendo, Dom Miguel. Mas a situação na minha casa é gravíssima.
Por acaso o senhor não teria então comida para me ofertar? Qualquer coisa
serve.
– Eu gostaria muito de ajudar, Marvin, mas não posso. Meu filho
Cosme, por exemplo, uma criança, passou o dia todo com apenas um prato
raso de arroz com feijão. Tudo que eu tinha já dei para os outros, que
chegaram antes de você para me pedir auxílio. Não sobrou nem pra mim.
Marvin agradeceu, pediu desculpas por incomodá-lo e foi embora.
Durante o trajeto que fazia para casa, de carroça, sentia muita pena de si
mesmo, porém mais ainda de Dom Miguel, um homem íntegro que por
culpa da ganância dos árabes estava sendo crucificado por todos, que nada
entendem de negócios.
◆ ◆ ◆

Chegando à casa, Jessé avisou Marvin que dois homens haviam


procurado por ele e que disseram que retornariam no dia seguinte. Marvin
não tinha ideia de quem eram as pessoas. Lembrava apenas que por sorte
não tinha dívidas com ninguém nem tinha nenhum inimigo, então pouco se
preocupou.
No dia seguinte bem cedo, antes de Marvin iniciar os trabalhos na
lavoura, os visitantes retornaram. Eram dois homens de meia-idade, bem-
vestidos, usavam terno e gravata. Um deles estava usando óculos de grau.
Marvin percebeu que o homem que aparentava ser mais jovem trazia uma
mala com muitos papéis.
O primeiro a se apresentar foi Diógenes, um homem extremamente
tímido, mas bastante eficiente com cálculos. Disse que era contador. O
outro se chamava Matias e era advogado.
Matias era um homem esclarecido, que demonstrava extrema
facilidade para se comunicar.
Apresentaram-se como investidores de commodities, termo que
Marvin não fazia a menor ideia do que significava.
Eram oriundos da capital e estavam havia quatro dias na cidade
negociando com agricultores locais.
Maria de Lurdes ofereceu-lhes café, que foi aceito por ambos.
Realizadas as formalidades, Matias falou:
– Caro Marvin, soube que o senhor produz soja. Estamos
interessados em negociar a compra da sua produção. Na verdade, temos um
contrato pronto. Como nos últimos tempos o valor da soja está em constante
alta, estamos nos antecipando nas negociações com todos os produtores da
região para termos uma vantagem.
Marvin o interrompeu:
– Desculpa, o senhor disse que o preço da soja está em alta? –
questionou Marvin, incrédulo.
– Sim, em alta – respondeu o investidor, sem entender o
questionamento.
Marvin pediu para o homem seguir com a conversa.
– Não sei por quanto vendeu sua última safra, mas temos condições
de cobrir qualquer proposta que lhe tenham feito.
Matias, então, apresentou o contrato, de modo que no documento
havia uma pré-proposta sobre o quanto iria ser pago por cada saca
produzida.
Marvin segurou o contrato com firmeza, olhou diversas vezes para o
valor que estava escrito, tanto por extenso quando em algarismos
numéricos.
Não restava dúvida: o valor oferecido (antes mesmo de qualquer
negociação) era cinco vezes superior ao que Dom Miguel lhe pagara.
Refletindo por alguns segundos, concluiu que havia sido enganado
pelo espanhol. De tanto ódio, sentiu vontade de chorar.
Segurando a cólera que tomava conta do seu coração, respondeu aos
homens:
– Senhores, eu parei de cultivar soja. Voltei a plantar tubérculos.
Infelizmente não posso fechar o negócio que estão me propondo.
Os homens insistiram, pois acharam que Marvin queria negociar por
valores mais altos. Matias sorriu, tirou os óculos lentamente, e então
retrucou:
– Se os valores que estão no contrato não lhe agradam diga quanto
quer. Faremos uma nova proposta que provavelmente vai agradá-lo.
Marvin olhou com firmeza nos olhos do negociador, mas não disse
nada. Matias continuou:
Não se preocupe, senhor Marvin. Pode ter certeza de que não
queremos explorá-lo, queremos uma negociação justa, em que ambas as
partes se sintam satisfeitas.
Diógenes, que até então se mantivera calado, deixando as funções de
negociador para Matias, interveio:
– Marvin, diga o quanto quer receber por sua produção de soja que
iremos fazer um contraproposta justa. Talvez a gente consiga até mesmo
chegar bem perto do que você quer receber.
Marvin respirou fundo, contou até dez em pensamento, e em seguida
replicou:
– Senhores, não estou negociando com vocês. Realmente abandonei
o cultivo de soja. Tive prejuízos enormes por conta de um negócio malfeito
e agora só quero meu sossego de volta. A plantação de soja está abolida
nesta propriedade.
– Esta é a sua última palavra? – questionou Diógenes.
– Sim! Mas não é desconfiança ou má-fé em relação aos senhores.
Vejo que sua intenção é boa. O problema é que estou tão decepcionado com
esse negócio de soja que não tenho vontade alguma de voltar a mexer com
esse cultivo.
Diógenes, tentando entender o que havia acontecido, perguntou:
– Você tem trauma do período em que cultivou soja?
– Não é trauma, senhor. Mas para cultivar soja agora teria que
preparar o solo novamente, isso dá muito trabalho. Talvez nem desse certo.
Além disso, teria que voltar a procurar pessoas pra trabalhar comigo que até
hoje estão frustradas com a soja. Provavelmente não encontraria pessoas
dispostas a trabalhar comigo novamente nesse cultivo.
– Entendo, mas a vida, Marvin, é feita de desafios – disse Diógenes,
tentando convencer Marvin através de um jargão popular.
Marvin pensou: “Se ele soubesse dos desafios que tenho enfrentado
desde os 13 anos de idade iria guardar para si esse conselho.” Depois
respondeu:
– Bom, senhores, como eu disse, não quero mais saber de soja.
Agradeço a oferta, mas vou seguir com as minhas batatinhas. Desejo bons
negócios.
Os negociadores voltaram a procurar o camponês nos dias seguintes,
a fim de convencê-lo a produzir soja novamente, mas Marvin estava
convicto. Não queria mais saber de soja, e, com alguma cordialidade, pediu
aos homens que não o procurassem mais.
Os tais homens, percebendo que de fato Marvin não tinha o menor
interesse em cultivar soja, encerram as propostas de vez. Porém,
informaram que caso mudasse de ideia era só procurá-los na capital. O
endereço estava no cartão que deixaram na mesa da cozinha, no dia
anterior. Marvin, por sua vez, disse que agradecia a gentileza, mas a decisão
era definitiva.
Matias e Diógenes, embora tenham dado por encerradas as tentativas
de negociação, nunca conseguiram entender o motivo de Marvin desistir de
um negócio tão promissor.
CAPÍTULO 7
Ana Rebeca

A
na Rebeca havia escutado a conversa que Marvin tivera com aqueles
homens. Como era muito inteligente, percebeu que o irmão havia sido
enganado por Dom Miguel. Com um leve sorriso, disse ao irmão:
– Não se preocupe, Marvin. Você vai dar a volta por cima. Ainda
teremos muitas colheitas fartas. Não fique triste.
– Não estou triste, Ana, estou é revoltado, com ódio mesmo. Não
consigo acreditar que aquele homem pode ter sido tão desonesto comigo.
– Esses sentimentos não são legais, Marvin. Eu li num dos livros que
você me deu no Natal que sentir raiva é a mesma coisa que tomar veneno
achando que vai matar outra pessoa. Esqueça isso. Não pense mais nesse
homem. Vai ser melhor assim.
Marvin, entretanto, não deu ouvidos à irmã. Pensou que como era
uma menina ingênua, sustentava a ilusão de que as pessoas eram boas. Algo
que para ele era um equívoco.
Ana Rebeca pediu licença ao irmão e foi brincar com suas bonecas.
Pensava que talvez não devesse mais brincar, já que não era mais uma
criança, mas a brincadeira era tão deleitosa que não conseguia abandoná-la.
Maria de Lurdes repreendia Ana Rebeca quando a via brincando.
Dizia que ela devia ajudar mais nas tarefas domésticas. Porém, a menina era
bastante prestativa. Só brincava quando não tinha mais nenhuma atividade
pra executar em casa.
Marvin, toda vez que percebia a mãe a admoestando, dizia que era
melhor brincar com as bonecas do que fazer besteiras por aí. Na verdade,
sempre que estava por perto, Marvin defendia a irmã independentemente do
que estivesse sendo debatido.
Ana Rebeca lembrava vagamente do rosto e da voz de Sebastião.
Porém, mesmo antes da morte do pai, sua referência era Marvin. Amava-o
mais do que à própria mãe, embora não revelasse isso para ninguém.
A predileta de Marvin havia aprendido a ler com 5 anos, antes
mesmo dos gêmeos. Na verdade ajudou os irmãos que, embora fossem
interessados, não tinham a mesma facilidade para aprender como ela.
A caçula ajudava a mãe nas tarefas domésticas, brincava e estudava.
À noite conversava com o irmão mais velho sobre diversos assuntos e
depois se dedicava à leitura dos livros que Marvin lhe trazia sempre que ia
até a capital.
Ana Rebeca, excetuados os períodos de crises que lhe fizeram passar
fome, sentia-se extremamente feliz e realizada com a vida que tinha. Era
muito sorridente e otimista. Marvin dizia que nunca havia escutado a irmã
reclamar, nem mesmo quando nada tinha para comer.
Maria de Lurdes não costumava mimar a filha, falar palavras mais
afetivas ou dedicar-lhe carinhos. Porém nada tinha contra a menina, era
uma característica dela, de modo que o comportamento era o mesmo com
todos os filhos.
Ana Rebeca dera início aos afazeres domésticos muito cedo, mas
nunca reclamara, dizia que se sentia feliz em ajudar. Em pouco tempo
estava executando mais atividades em casa do que a própria mãe, já que
Maria de Lurdes tinha um problema na mão direita que a impedia de fazer
muitas coisas.
A inteligência e a extrema bondade de Ana Rebeca foram pouco
notadas pelos gêmeos e por Maria de Lurdes, porém determinantes na vida
de Marvin.
Ele tinha plena consciência de que só conseguira manter a família em
ordem e superar as diversas crises que enfrentara, em grande parte, devido à
irmã.
As palavras sempre doces e otimistas de Ana Rebeca faziam diminuir
a raiva que sentia da vida que levava.
CAPÍTULO 8
A vingança

A
partir da descoberta do golpe que sofrera, Marvin abandonou de vez
qualquer convicção religiosa que pudesse ter e, assim, pensava dia e
noite em Dom Miguel e o que iria fazer com aquele homem sem
escrúpulos. Decidiu, depois de sorver um litro de cachaça pura, que iria
vingar-se da forma mais cruel que pudesse. Entretanto, primeiro precisaria
resolver a fome dos irmãos. Então, sem nenhum receio ou peso na
consciência, vestiu a roupa preta, que quase não lhe servia mais.
Entrou em três chácaras. Furtou dez galinhas, oito galos e três leitões,
mas deixou um número infinitamente maior de animais jogados pelo
caminho, que eliminou pela simples vontade de matar.
Levou os animais para casa. Dessa vez não deu explicação alguma
para a mãe de como os havia obtido, disse apenas que deu um jeito de
conseguir comida para todos. Maria de Lurdes estranhou, mas, como de
costume, não fez muitas perguntas. Separou as aves e os leitões na
geladeira. No dia seguinte, preparou frango para o almoço.
Na cidade, o comentário não era outro que não o retorno do “homem-
onça”, que havia havia muito tempo não dava as caras.
Marvin sentiu-se mais aliviado logo que matou os animais. Porém,
ainda assim não conseguia parar de pensar no golpe que sofrera de Dom
Miguel.
Durante o almoço, enquanto devorava um pedaço de frango,
começou a matutar a ideia para a vingança. Ficou o dia todo pensando no
assunto, mal conseguia trabalhar de tanto que se distraía com todas as
possibilidades que fervilhavam na sua cabeça para fazer com que aquele
homem pagasse pelo mal que lhe fizera.
Marvin passou a sair mais cedo da roça para vigiar os passos de Dom
Miguel. Descobriu que ele continuava frequentando o mesmo bar onde o
conhecera. Então, em um sexta-feira, próximo às 22 horas, entrou no bar e
lá encontrou o ex-sócio.
Dom Miguel não sabia que Marvin havia descoberto que fora
enganado. Quando o viu abriu um sorriso e sorrateiramente falou:
– Como está, Marvin? Como está a lavoura? Soube que voltou a
plantar batatas.
Marvin, segurando a raiva e sem deixar transparecer nenhum
sentimento negativo, respondeu:
– Sim, voltei para o cultivo que aprendi com o meu pai desde
pequeno. Essa tal de soja é uma enganação. Só serviu pra trazer fome e
tristeza para minha família.
– Lamento, Marvin, não queria que isso tivesse acontecido.
Infelizmente a soja deixou de ser um bom negócio. Eu mesmo estou
atravessando enormes dificuldades por causa dela. Estou seriamente
pensando em fazer o mesmo que você, plantar batata e mandioca. Acho que
vai ser melhor. Essa crise mundial prejudicou demais a exportação da soja.
O pior é que ainda vai durar muito tempo. Esses árabes não estão para
brincadeira.
Marvin ficou pensativo. Ainda que soubesse que a resposta seria uma
mentira deslavada, questionou:
– Dom Miguel, eu não estudei, abandonei a escola para trabalhar na
lavoura. Por isso eu ainda não consegui entender o que a minha soja tem
que ver com os tais árabes.
Dom Miguel ficou surpreso com a pergunta. Pensou por alguns
segundos e, respirando fundo, explanou:
– Eu explico, mas você tem que prestar bastante atenção, pois é um
assunto bem complexo.
– Não se preocupe. Vou prestar toda a atenção do mundo. Não sou
um homem burro, só tenho pouco conhecimento sobre esses assuntos.
Dom Miguel assentiu com a cabeça e então iniciou a explicação:
– Os árabes são os maiores produtores de petróleo do mundo. Se eles
decidem parar de vender petróleo o mundo todo diminui a produção das
manufaturas, pois as indústrias precisam de petróleo e dos derivados de
petróleo para conseguir fabricar os produtos que vendem. Assim, se o
petróleo estiver caro, como realmente está, já que o cartel da Opep resolveu
agir, não sobra muito dinheiro para que outros produtos, como a soja, sejam
comprados. Assim, o mundo todo fica em recessão. E como a soja é um
produto que depende muito de exportação, acabou por acontecer isso que
estamos vendo.
Marvin não conseguiu entender nada. Na verdade, nem acreditava
que existissem esses árabes produtores de petróleo. Para ele era tudo
invenção da cabeça do espanhol para levar vantagem em cima de pessoas
com pouco estudo como ele. Resolveu, no entanto, ser sarcástico:
– Você é um homem muito inteligente. Ainda bem que usa esse
conhecimento todo para o bem. Imagina se fosse do mal, ficaria muito rico.
O espanhol ficou intrigado com aquela fala. Então replicou:
– Não entendi, Marvin. Por que eu iria ficar muito rico se fosse do
mal?
– Ora, Dom Miguel, está claro. Inteligente do jeito que é poderia usar
isso para enganar as pessoas mais ingênuas e tirar dinheiro delas.
Dom Miguel ficou pensativo. Não sabia se aquilo era alguma indireta
ou uma simples coincidência. Porém, não deu maior importância para
aquele assunto. Respondeu de forma simples:
– Sim, certamente ficaria rico, mas de que adianta dinheiro se você
não tiver a consciência tranquila? Tem coisas que o dinheiro não compra,
Marvin. Uma delas se chama dignidade.
Marvin, fazendo um esforço enorme para não perder o controle, já
que isso iria prejudicar os planos de uma vingança, apenas sorriu e
concordou com um sinal de cabeça.
Depois daquela conversa, Marvin só conseguia pensar na vingança.
Sentiu vontade de agir naquela mesma noite, porém sabia que estava sob o
efeito do álcool e que naquela condição seria difícil conseguir se dar bem
em qualquer tentativa de atacar o espanhol. Julgou, portanto, que não era o
momento ideal para pôr em prática seu plano.
Decidiu, pois, que iria agir no dia seguinte, já que Dom Miguel havia
comentado um pouco antes que estava indo diariamente àquele bar para
tentar esquecer de todos os problemas que a soja estava causando em sua
vida.
O plano de vingança era simples: iria esperar o desonesto homem sair
do bar e, depois, iria segui-lo por alguns metros. Quando estivessem longe
de testemunhas, iria surpreendê-lo, dizer que sabia que havia sido
enganado, vítima de um golpe nojento, e que isso não iria ficar assim.
Quando Dom Miguel pensasse em fugir ou mesmo revidar, iria enfiar uma
faca em sua barriga e deixá-lo morrer lentamente, perdendo todo o sangue.
Imaginava que depois dessa vingança mortal voltaria a ter paz.
No caminho de regresso para casa continuou pensando sobre o plano.
Nesse instante, sua preocupação com o fato de ser descoberto e
posteriormente preso começou a ser maior, pois não queria deixar a irmã
desemparada. Compreendeu, portanto, que o plano carecia de mais análise e
estratégia.
Depois de alguns dias matutando, concluiu que talvez o trabalho
fosse mais bem executado pelo “homem-onça”, pois assim seria ainda mais
difícil ser descoberto. E, ainda que tivesse alguma testemunha, a culpa iria
recair sobre o “mito da cidade” e não sobre si.
Marvin sabia que às quartas-feiras Dom Miguel ficava sozinho em
casa, pois a esposa e os filhos tinham alguma atividade na igreja e voltavam
somente depois das 21 horas. Inexplicavelmente, nos dias em que a família
estava na igreja Dom Miguel não comparecia ao bar.
Possuidor dessa informação, Marvin decidiu que iria atacar o
espanhol na sua própria casa, de modo rápido e surpreendente, de maneira
que se tornasse impossível qualquer tentativa de revide.
Então, em uma quarta-feira, às 19 horas, com sua roupa preta e o
rosto coberto, deixando apenas os olhos de fora, Marvin entrou às
escondidas na casa de Dom Miguel, através de uma janela que nunca era
cerrada, e lá permaneceu por algum tempo.
Acabou se decepcionando quando percebeu que todas as pessoas
daquela família estavam em casa. Ninguém havia ido à igreja nesse dia, já
que estava chovendo com muita intensidade.
Marvin estava obstinado pela vingança e não desistiu da ideia de
colocá-la em prática naquela mesma noite. Manteve-se escondido em um
cômodo escuro, decidindo qual ação tomar.
Pensou: “Vou esperar mais um pouco, até que ele fique sozinho na
sala, aí eu o ataco.” Porém, imediatamente concluiu que talvez o espanhol
fosse o primeiro a se retirar, e assim o plano estaria fadado ao fracasso.
Refletiu mais um pouco, percebeu que o menino Cosme estava em
uma posição bem fácil de ser capturado, assim poderia puxá-lo para perto
de si e usá-lo como refém, deixando a faca encostada no pescoço do
menino. Iria negociar a troca de Cosme por Dom Miguel. Concluiu,
todavia, que a chance de o homem não se entregar em troca do filho era
enorme, pois estava diante de uma pessoa sem caráter. Como ele não tinha
interesse em praticar qualquer maldade contra aquele ser inocente, percebeu
que essa era, na verdade, uma péssima ideia, pois poderia acabar rendido.
Diversas outras ideias fervilhavam na cabeça de Marvin, mas nenhuma
parecia totalmente eficaz.
Marvin, ansioso, não aguentava mais esperar surgir a ideia perfeita
para atacar o espanhol. Então decidiu fazer do jeito mais simples, mesmo
que corresse riscos.
Sendo assim, enquanto a família jantava, Marvin, com uma destreza
fenomenal, se aproximou da mesa, sacou a faca da cintura, pontiaguda e
perfeitamente afiada, e a enfiou na barriga de Dom Miguel sem dizer uma
única palavra.
Anastácia, ao escutar o berro do marido e perceber a presença do
intruso, começou a gritar desesperadamente.
Verônica, chorando, perguntou:
– Quem é você? Por que fez isso ao meu pai?
O plano de Marvin era revelar para Dom Miguel quem era o seu
assassino e o motivo que o levava a matá-lo, mas não poderia fazer isso na
frente da família do espanhol, pois acabaria preso, já que havia três
testemunhas.
Decidiu, portanto, que não iria revelar sua identidade, mas que
deixaria bem claro para a família o quão cruel e desonesto era Dom
Miguel.
Olhando nos olhos da jovem, informou:
– Sou o homem-onça e seu pai merece essa facada. Crianças
inocentes passam fome todos os dias por causa de homens como ele. Esta é
uma morte justa.
Verônica ficou olhando para o homem-onça, incrédula. Depois de
alguns segundos tentando absorver o que acabara de ouvir, respondeu:
– Você não é Deus para decidir quem deve morrer e quem deve viver.
Você não tem esse direito, você é um assassino!
– Um dia você vai entender que se Deus existe mesmo ele está me
aplaudindo neste instante.
A moça, surpresa com a resposta, não conseguiu falar mais nada.
Marvin saiu da casa logo em seguida, caminhando tranquilamente.
Disse para ninguém segui-lo, pois se percebesse qualquer movimento atrás
dele iria matar a todos, inclusive o menino, que não parava de chorar.
Depois de andar por cerca de duzentos metros, distância entre a sala e
o lugar que havia escondido a bicicleta, subiu nela com inexplicável calma.
Olhando para dentro do recinto em que acabara de cometer o ato criminoso
deu as primeiras pedaladas, sentindo a agradável sensação de dever
cumprido.
Percebendo que o criminoso estava longe, Anastácia saiu correndo
em busca de ajuda. Encontrou um vizinho, que, por sorte tinha
conhecimentos básicos de enfermagem, já que havia trabalhado nessa área
na época do cumprimento do serviço militar.
O vizinho prestou os primeiros-socorros. Em seguida, com a ajuda de
outro vizinho, pegaram a caminhonete de Dom Miguel, cuja chave havia
sido entregue por Anastácia, e o levaram até o hospital mais próximo.
Verônica acompanhou os homens no deslocamento ao hospital.
Anastácia, por sua vez, ficou em casa cuidando do filho Cosme.
O vizinho dirigiu o veículo o mais rápido que conseguiu, mas ainda
assim levou cerca de 40 minutos para chegar ao hospital.
Por sorte, a facada não atingiu nenhum órgão vital. Apesar de perder
muito sangue e de poucos acreditarem que iria sobreviver, em seis semanas
Dom Miguel estava de volta à casa.
Mesmo a recuperação sendo lenta, não corria risco de morrer. No
entanto, ficou com algumas sequelas que o prejudicavam em muitas das
suas atividades.
Percebendo que sua vida nunca mais seria a mesma, devido às
sequelas ocasionadas pela facada, prometeu à família que iria descobrir
quem era o tal homem-onça e iria se vingar de quem fez aquilo com ele.
Sua missão de vida a partir daquele momento seria encontrar o homem-
onça e matá-lo a qualquer custo.
Marvin, que quando entrou na casa de Dom Miguel tinha a clara
intenção de matá-lo, acabou se sentindo aliviado quando soube que o
atentado do homem-onça não havia resultado em morte. Concluiu que a
bela Verônica não teria tantos traumas, já que o pai dela continuava vivo.
CAPÍTULO 9
Natal na roça

M
arvin se manteve bastante taciturno nos meses seguintes ao atentado.
De alguma forma conseguiu amenizar a raiva que sentia de Dom
Miguel, mesmo que não tivesse conseguido matá-lo. Era como se
errando tivesse acertado.
Passou então a se preocupar com o Natal que estava chegando.
Marvin não era uma pessoa muita afeita às comemorações de final de ano.
Porém, sempre organizava alguma festividade para agradar a irmã Ana
Rebeca.
Dezembro normalmente era um mês próspero, pois era época de
colheita e recebimento de dinheiro. Assim sendo, ele conseguia comprar
presentes para os irmãos.
Marvin, que quando criança nunca tinha escutado a história do Papai
Noel, havia alguns anos que estimulava a crença no imaginário fértil da
irmã. Ele percebera que Ana Rebeca demonstrava bastante entusiasmo com
a história do velhinho bondoso que entregava presentes para as crianças, e
assim resolvera criar histórias sobre aquele senhor idoso.
Certo dia, Marvin percebeu a irmã triste. Então perguntou:
– O que aconteceu, Ana Rebeca?
– Descobri que o Papai Noel não existe.
– É lógico que existe, todo ano ele aparece e deixa presentes para as
crianças. Até os seus irmãos recebem presentes, mesmo que já sejam
grandes.
– Mas o Jeremias me disse que ele não existe.
– Se ele não existe como você recebe os presentes no Natal, minha
irmãzinha?
– Ele disse que é você que compra os presentes e os coloca na mesa
da sala, escondido de mim, depois que eu pego no sono.
– É mentira dele. Ele só quer te deixar triste.
– E eu estou muito triste mesmo.
Marvin disse a Ana Rebeca que ela devia acreditar de coração no
Papai Noel, pois o Jeremias era um menino bobo, que não sabia nada sobre
o Natal. Ana Rebeca abraçou Marvin e foi para o quarto.
Marvin ficou muito irritado. Saiu para a frente da casa e chamou
Jeremias aos berros. Jessé, que estava mais próximo, perguntou:
– O que aconteceu, Marvin? Por que está gritando?
– Seu irmão disse para Ana Rebeca que a droga do Papai Noel não
existe e agora ela está chorando.
– Mas já está na hora de ela saber algumas verdades. Ela já está bem
grandinha para acreditar na história de um velhinho que entrega presentes
para crianças comportadas. Ninguém na idade dela acredita em Papai Noel.
– Quem é você para dizer isso? – refutou Marvin, completamente
enfurecido.
– Marvin, o problema é que você se preocupa demais com Ana
Rebeca e esquece de coisas mais importantes.
– Seu moleque atrevido, nada é mais importante do que Ana Rebeca.
O que pode ter de mais importante que a nossa irmã caçula, seu imbecil?
– Esquece, Marvin. Não há nada realmente mais importante –
respondeu Jessé, com um certo desânimo.
Marvin ficou ainda mais irritado com a resposta irônica do irmão.
Estava a ponto de pegar o menino pelo pescoço quando o outro irmão
apareceu.
– O que está acontecendo? – questionou Jeremias, surpreso ao
encontrar os irmãos naquele estado de nervos.
Marvin, que àquela altura já havia perdido totalmente o controle, aos
berros perguntou:
– Por que você disse para Ana Rebeca que o Papai Noel não existe?
– Ora, porque ele não existe mesmo.
Marvin puxou uma cinta de couro que estava usando e açoitou
violentamente as costas do irmão. O menino caiu no chão com o impacto e
imediatamente começou a chorar.
– O que você fez, Marvin? Você nunca nos bateu. O que está
acontecendo? – perguntou Jessé, pasmo ao ver que as costas do irmão
estavam sangrando.
– Devia ter feito isso há muito tempo. O próximo nessa casa que
disser que Papai Noel não existe vai sangrar desse mesmo jeito.
Anastácia, ouvindo o choro do filho, saiu para a frente da casa e
perguntou o que estava acontecendo. Marvin não se deu ao trabalho de
responder. Virou as costas e entrou em casa novamente, ainda sentindo
muita raiva.
Sentiu muito arrependimento, no entanto, quando, depois de duas
horas, flagrou Ana Rebeca, com suas pequenas e delicadas mãos, fazendo
curativos nas costas de Jeremias.
Quando percebeu que o irmão mais velho a observava, disse:
– Olha, Marvin, o Jeremias caiu e se machucou nas costas. Mas eu
vou cuidar dele porque ele é um irmão muito bonzinho.
– Mas ele mentiu pra você que o Papai Noel não existe. Esqueceu?
– Ele disse isso mesmo, mas eu já perdoei. Ele não falou pra me
deixar triste, é que ele não entende nada de Natal. O importante é que ele
me ama e eu o amo também – disse Ana Rebeca, sorrindo abraçada no
irmão enfermo.
Naquele momento Marvin pediu desculpas ao irmão. Baixou a
cabeça e disse que todos eles tinham muito a aprender sobre amor e perdão
com aquela doce menina.
No dia do Natal fizeram uma bela festa. Marvin disse que os
presentes só chegariam depois que todos estivessem dormindo. A ceia teve
muita fartura e o prato principal foi um leitão delicioso preparado por Maria
de Lurdes. O suíno dessa vez havia sido comprado no açougue por Marvin.
No dia seguinte, Ana Rebeca berrava de alegria com a boneca de
pano que havia recebido de presente do Papai Noel.
Marvin, com satisfação, repetia para os irmãos que o Papai Noel
existia e era um velhinho muito bom.
CAPÍTULO 10
Verônica, a bela

V
erônica era uma linda jovem que, na época da facada em Dom
Miguel, acabara de completar 16 anos. Havia morado na Espanha, na
casa de uma tia, por seis anos. Entretanto, voltara a viver com os pais
tinha pouco mais de dois anos. Tratava-se de uma menina de cabelos longos
bem lisos de cor escura, olhos esverdeados, magra, medindo em torno de
1,65 metro. Quando sorria, apresentava covinhas nas bochechas, que, para
muitos, era o segredo de sua beleza.
Verônica havia escrito em uma carta destinada ao pai que queria
voltar para o Brasil, pois sua tia era rude demais e estava tratando-a como
se fosse uma empregada. A tia não permitia que ela estudasse e nem que
saísse de casa. Amizades, quaisquer que fossem, também eram proibidas.
Encerrou a carta dizendo que trabalhava desde a hora que acordava até a
hora de dormir.
A princípio Dom Miguel discordou do regresso da filha, mas
Anastácia tentou convencer o marido a resgatá-la.
Depois de uma terceira carta, implorando ao pai que a buscasse, pois,
do contrário, iria se matar, Dom Miguel, enfim, decidiu escrever à irmã,
Madalena, para que conduzisse o regresso de Verônica ao Brasil. A mulher
se negou a devolvê-la, pois entendia que, como havia tido muitos gastos
com a educação da menina, agora era o momento de ter alguma
recompensa.
Verônica, conseguiu convencer a tia a mandá-la ao Brasil, pagando,
inclusive, todas as despesas da viagem. No entanto, ela não contou a
ninguém como conseguiu tamanho êxito.
A primeira vez que Verônica viu Marvin, na ocasião do almoço para
tratar do cultivo de soja, sentiu uma sensação diferente, pois até aquele
momento nenhum rapaz lhe havia despertado interesse. Desde então passou
a pensar diariamente no jovem camponês, chegando a fazer registros
frequentes sobre ele em seu diário.
Depois de quase um ano que se conheceram, Marvin encontrou
Verônica em uma quermesse da cidade. Conversaram por mais de duas
horas. Marvin mostrou a ela como funcionava a festividade e Verônica
ficou contente com a atenção que o rapaz lhe prestava.
O jovem agricultor reparou primeiro nos belos olhos de Verônica e
no seu sorriso angelical. Depois, o que mais lhe chamou a atenção foi o
calçado azul que ela usava. Ficou em dúvida sobre se comentava ou não,
mas, ansioso que era, disse-lhe:
– Que sapato diferente, nunca vi nada parecido por aqui. Nem na
capital eu vi alguém usando esse sapato.
Verônica sorriu e articulou:
– É moda na cidade onde eu morava na Espanha. É, na verdade, um
tênis e o chamam de All Star.
Marvin fez uma expressão de contentamento.
Verônica prosseguiu:
– Gostou dele?
– Sim, é muito bonito. Combina com você. Deve ser bem caro.
– Não é caro, não. Você conseguiria comprar um facilmente.
Marvin sorriu e se pôs a imaginar calçando um All Star e vestindo
suas roupas de “quermesse”.
Continuaram aquela conversa descontraída, leve e, até certo ponto,
ingênua. Marvin percebia uma moça muito diferente daquela apavorada no
dia em que quase matou Dom Miguel.
Verônica perguntou se ele sabia alguma coisa sobre o homem-onça.
Marvin ficou um tanto desconfortável com a pergunta.
– Tudo que sei é que é metade homem, metade onça. Que costuma
invadir chácaras e matar animais – respondeu Marvin, sem conseguir firmar
o olhar em Verônica.
Verônica, encarando Marvin, continuou:
– Eu o conheci, esteve na minha casa. Tentou matar meu pai. Mas ele
não é metade homem, metade onça. É somente homem. Ele não é nenhum
mito ou lenda, como um lobisomem, é uma pessoa como nós. Ele nos disse
que estava lá pra fazer justiça ou algo assim.
Marvin sustentou os olhos na direção de Verônica, mas não
conseguiu falar nada. Ela, então, seguiu com o desabafo:
– Que justiceiro é esse que ataca um homem trabalhador em sua casa,
na frente da família, e que mata animais indefesos?
Marvin não queria continuar falando sobre aquele assunto, mas para
não dar na vista que tinha relação com o homem-onça replicou, tentando
despistar:
– Talvez seja uma pessoa com problemas mentais, que nem sabe o
que está fazendo. Uma pessoa que fugiu de algum hospício.
– Não me pareceu nada disso. Ele tentou matar meu pai e sabia bem
o que estava fazendo. Disse que aquilo era um ato de justiça. Eu pude
perceber, observando seus olhos, que havia muito ódio nele.
– Mas só se o teu pai fez alguma coisa de errado para o homem-onça
– respondeu Marvin, na tentativa de defender a si mesmo.
– É isso que eu quero saber, mas meu pai disse que não tem e que
nunca teve inimigos. Ele está com muita raiva do homem-onça. Fala sobre
ele dia e noite. A hora que ele descobrir quem é a pessoa que dá vida ao
homem-onça vai matá-la sem pestanejar.
Marvin se manteve calado. Sabia que não havia a menor
possibilidade de ser descoberto, pois agiu com perfeição. Até mesmo a voz
ele havia modificado, tornando-a mais grossa, através de uma rouquidão
forçada, para que não o reconhecessem.
O jovem camponês fez uma pergunta que surpreendeu Verônica e que
a fez esboçar um sorriso bastante espontâneo:
– O que é pestanejar, Verônica?
Depois de rir e se desculpar, respondeu:
– Pestanejar é ficar em dúvida sobre fazer alguma coisa. Nesse caso,
sem pestanejar é fazer alguma coisa sem pensar duas vezes, agir de forma
imediata, sem avaliar as consequências do ato.
Marvin ficou admirado com a inteligência de Verônica, de maneira
que respondeu:
– Você é muito sabida. Deve ler bastante.
Verônica ficou contente com o elogio, respondendo com um sorriso
largo:
– Muito obrigada, Marvin. Você pensar isso sobre mim me alegra
muito.
Marvin sorriu, ficou contente de tê-la agradado, mas não achou
nenhuma palavra ou frase que pudesse dar continuidade ao assunto.
Verônica percebeu que o assunto sobre o homem-onça já não estava
sendo agradável para nenhum dos dois, então sugeriu falarem sobre outras
coisas. Marvin sorriu e concordou.
Permaneceram conversando sobre os mais variados assuntos. A
moça, que, além de ser bonita, tinha muito conhecimento, conseguiu
explicar para Marvin, de forma bem didática, o motivo de uma crise de
petróleo influenciar até mesmo na venda de soja em cidades do interior no
Brasil. Dessa vez ele conseguiu entender e, como não podia deixar de ser,
passou a admirar intensamente aquela moça.
Um dos diversos assuntos sobre os quais falaram foi como Verônica
se sentia morando novamente no Brasil. A jovem relatou que se sentia bem
no seu país natal, naquela cidade, mesmo sendo pequena e do interior, e,
também, em ter os pais por perto.
No final da conversa, com semblante de tristeza, disse que, no fundo,
qualquer coisa era melhor do que aturar a tia nefasta que tanto a maltratara
na Espanha.
Marvin, por sua vez, falou sobre todas as dificuldades que havia
enfrentado na vida, inclusive sobre o golpe financeiro que sofrera. Porém,
não disse o nome de quem o enganou, tampouco disse que o cultivo que
adotara ao ser lesado era de soja.
Verônica ficou sensibilizada com tudo o que ouviu. Percebeu que
Marvin era uma boa pessoa, mas que necessitava de ajuda.
CAPÍTULO 11
A picada de cobra

A
pós aquele dia na quermesse, Marvin não conseguia tirar a bela jovem
da cabeça. Pensava em Verônica dia e noite. Algumas vezes sonhava
que estava novamente com aquela moça formosa, de lindos olhos e
sorriso cativante.
Sem mais conseguir resistir à vontade de vê-la novamente, decidiu ir
até a escola em que a Verônica estudava e dizer a ela tudo o que se passava
com ele. Saiu mais cedo da roça e, para não desperdiçar tempo, sequer
almoçou. Vestiu a melhor roupa que tinha – a qual já havia deixado
separada – passou um um perfume que há anos estava guardado em uma
gaveta, tomou alguns goles de cachaça e foi ao encontro da jovem.
Chegou bem antes de tocar o sinal da escola. Ficou aguardando a
moça, num misto de medo e ansiedade, mas também de muita euforia.
No entanto, seus planos para aquele dia foram frustrados, pois
Verônica não apareceu. Logo pensou: “Deve ter saído mais cedo hoje. Esses
professores vivem faltando, então liberaram a turma.”
De qualquer sorte, Marvin não se abalou. Decidiu que voltaria no
outro dia, no mesmo horário e, então, iria falar o que pensava para aquela
linda estudante.
Todavia, novamente a moça não apareceu e assim foi a semana toda.
Então, na sexta-feira, quase em desespero, Marvin decidiu entrar na escola
e perguntar por Verônica. Deslocou-se até a secretaria e, um tanto acanhado,
questionou uma atendente, que parecia bastante solícita:
– Boa tarde! Gostaria de saber se a aluna Verônica Lopes Morientes
está frequentando as aulas normalmente.
Como havia assinado um contrato com Dom Miguel, Marvin sabia o
sobrenome do ex-sócio e da esposa dele. Assim fez uso da dedução lógica
para informar o nome da aluna.
– Boa tarde! O senhor é o que dela? – questionou a atendente, antes
de passar qualquer informação.
– Sou o irmão mais velho dela. Eu me chamo Antônio Lopes
Morientes. Estou desconfiado de que ela anda faltando às aulas sem motivo
para isso.
Marvin não havia pensado na resposta que daria caso fosse
questionado sobre o motivo de querer saber da jovem. Sendo assim, foi o
que conseguiu pensar no momento.
A atendente, para regozijo de Marvin, em momento algum
desconfiou da história inventada. Então de imediato pediu licença e disse
que voltaria com a resposta dentro de alguns instantes. Marvin agradeceu e
sentou-se. No entanto, estava apreensivo como jamais imaginou que
pudesse ficar.
Em seguida, a atendente retornou:
– Senhor Antônio!
– Sim? – devolveu Marvin, com o coração disparado.
– Temos uma informação não muito bacana para te passar. Na
segunda-feira sua irmã disse para a professora que estava se sentindo mal.
Ela foi liberada para ir para casa e desde então não retornou. O senhor acha
que ela estava mentindo naquele dia e tem ido para outros lugares em vez
de vir para a escola? – questionou a atendente, demonstrando bastante
preocupação.
– Minha irmã não é de mentir, não, moça, mas isso é muito
estranho. Não se preocupe, em casa vamos conversar com ela pra
descobrir o que está acontecendo. Fique tranquila, tudo será resolvido –
respondeu Marvin, sentindo alívio por não ter sido descoberto.
De fato Verônica estava doente. Havia contraído um resfriado que a
deixara muito debilitada. Como a escola era um tanto longe, Dona
Anastácia decidiu que a menina naquela semana iria ficar em casa de
repouso.
Marvin, por sua vez, entendeu o que estava acontecendo. A jovem
estava adoentada e por isso se afastara da escola. Ficou aliviado pois sabia
que provavelmente na semana seguinte ela regressaria às aulas.
Na segunda-feira seguinte, Marvin acordou no horário de sempre.
Tomou café preto, comeu um pão seco, pegou as ferramentas e foi para a
roça. Todavia, tratava-se de um início de semana totalmente diferente de
todos os outros, pois estava entusiasmado. Iria, se nada de errado
acontecesse, encontrar novamente a moça que lhe despertara algo diferente,
algo que ele ainda não sabia descrever o que era.
Partiu em direção à escola e, atendendo a uma sugestão de Ana
Rebeca, carregava nos braços um buquê de margaridas. A ideia era de
entregá-lo à Verônica antes mesmo de proferir qualquer palavra.
Faltando pouco mais de um quilômetro para chegar à escola, Marvin
se deparou com uma cobra cascavel de quase dois metros de comprimento.
Tentando manter a calma, respirou fundo e recuou. Entretanto, a cobra,
lentamente, começou a se arrastar em sua direção.
Marvin ficou nervoso e, de forma instintiva, passou a xingar a
cascavel, exigindo que ela se afastasse.
Não adiantou e a cobra começou a se arrastar em sua direção cada
vez mais rápido. No momento que o jovem agricultor percebeu que a
serpente estava cada vez mais próxima e que não iria desistir de atacá-lo,
saiu correndo o mais rápido que pôde.
No auge da corrida, movendo-se mais rápido que um leopardo,
Marvin sentiu uma leve fisgada na panturrilha, mas conseguiu continuar
correndo. Depois de alguns minutos, começou a perder as forças e sua visão
ficou embaralhada. Caiu no chão, completamente extenuado. Porém, por
sorte, a cobra já não estava mais ao seu alcance. Marvin ainda encontrou
forças para gritar por socorro antes de desmaiar.
Não se sabe por quanto tempo Marvin ficou desmaiado, estendido ao
solo, até a chegada de ajuda, mas foi por um período que permitiu que
pudesse ser salvo.
Talvez por simples acaso, ou, quem sabe, obra do destino, a pessoa
que encontrou Marvin foi Verônica, que imediatamente reconheceu o rapaz.
– Marvin, é você? O que aconteceu? Por que está caído no chão desse
jeito? – perguntou Verônica, demonstrando muita preocupação.
Naquele momento, ao escutar a voz doce de Verônica, Marvin
acordou. Sentiu uma alegria profunda em saber que estava nos braços
daquela linda moça que nas últimas semanas havia tomado conta dos seus
pensamentos.
– É bom te ver, Verônica. Que bom que está aqui! Fui picado por
uma cobra cascavel. Não sei se consigo resistir, mas estou feliz!
Verônica não entendeu nada, não sabia a razão de alguém que
estava em grave risco falar que estava feliz. Concluiu que devia ser
algum delírio provocado pelo veneno da cobra. Então respondeu:
– Fica calmo, Marvin. Estamos perto da escola. Vou correndo até lá
para pedir ajuda. Em poucos minutos estarei aqui, de volta, com outras
pessoas que vão ajudar a te salvar.
Marvin sorriu e aquiesceu com a cabeça. Como estava bastante
debilitado, fechou os olhos novamente e voltou à sonolência.
Passados dez minutos, Verônica voltou em um carro com mais duas
pessoas. De imediato localizaram o local da picada, lavaram-no e, tendo
certeza de que se tratava de cobra cascavel, já que o próprio atacado havia
confirmado que o animal era dessa espécie, aplicaram o antídoto.
Como ataques de cobra – principalmente cascavel – eram um tanto
frequentes naquela região, a escola possuía antídotos para a maioria dos
venenos.
Após o procedimento, carregaram o adoentado até um posto de saúde
para receber os devidos cuidados. Verônica permaneceu com Marvin o
tempo todo, não o deixando sozinho em momento algum.
Passadas algumas horas, Marvin recebeu alta médica. Foi um esforço
tremendo para conseguir transporte e voltar para casa.
Verônica e Marvin utilizaram o mesmo transporte, sendo cada um
deles deixado em casa. A jovem estudante, porém, estava preocupada,
pois já havia decorrido muito tempo além do horário que deveria estar em
casa e, portanto, seus pais poderiam ficar chateados com ela.
No entanto, Anastácia, quando chegou à escola angustiada com a
demora da filha, foi informada de que ela havia salvado um rapaz que fora
atacado por uma cobra. Sendo assim, a atitude da moça foi vista com bons
olhos pela mãe. Já Dom Miguel nem soube do ocorrido, pois nesse dia
havia chegado à casa tarde da noite e, como de costume, embriagado. Na
verdade, quando o espanhol chegou ao seio do lar, Verônica já estava
dormindo, de maneira que Anastácia optou por não comentar o que ocorrera
na escola naquele dia.
Durante o trajeto, Marvin não se sentiu em condições de falar para
Verônica o que estava fazendo próximo à escola no momento do ataque da
cobra, mesmo com a insistência da moça. Apenas disse que era algo muito
importante, mas que falaria em momento mais oportuno.
Verônica, percebendo a dificuldade de Marvin, questionou:
– Essa sua ida aos arredores da escola tem algo a ver comigo?
– Sim, tem tudo a ver com você – respondeu Marvin, um tanto
constrangido, mas bastante sincero.
– E por que não fala o que é? – questionou Verônica, tentando
encorajá-lo.
– Já disse, não é o momento – devolveu, Marvin, com bastante
seriedade.
– As flores que você carregava, que estavam ao seu lado quando te
encontrei, têm a ver com isso também? – insistiu Verônica, tentando
arrancar alguma informação mais contundente.
– Verônica, vou repetir, não é o momento de falar sobre isso.
– E quando vai esse momento?
– Pode ser amanhã, quando você sair da aula.
– Está certo, Marvin. Eu te aguardo amanhã então, mas toma cuidado
com as cobras – replicou Verônica, com um certo sarcasmo na fala.
– Tomarei todos os cuidados. Pode confiar em mim – respondeu
Marvin, sorridente.
No dia seguinte lá estava Marvin, aguardando a moça, disposto a
falar tudo o que estava sentindo. Novamente levou flores.
Verônica não demorou a sair. Logo que viu Marvin, sorriu.
Aproximou-se, cumprimentou-o e em seguida disse-lhe:
– Estou curiosa, Marvin. Conte tudo! Quase nem dormi esta noite de
tanta curiosidade – falou a bela jovem, com um sorriso leve no rosto.
– Não estou acostumado com isso, Verônica. Na verdade, estou um
pouco envergonhado – disse Marvin, com as bochechas totalmente
avermelhadas.
Após falar isso, entregou as flores à moça e prosseguiu:
– Estas flores são para você. Espero que goste.
– São lindas! Gostei muito.
– Não são tão lindas como você – respondeu Marvin, com uma certa
timidez no olhar.
– Obrigada – respondeu a moça, também demonstrando certa
timidez.
Verônica percebeu que Marvin estava bastante nervoso e que talvez
por isso havia se calado por completo. Então insistiu:
– Mas vamos ao que interessa. O que queria me dizer ontem e que
ficou de falar hoje? – Verônica instigou o rapaz, que, naquele momento, não
conseguia disfarçar o “tremelique” nas mãos e o suor na testa.
– Estou nervoso, confesso, mas vou falar. Não consigo parar de
pensar em você desde que conversamos naquela quermesse. Durmo e
acordo com você na minha cabeça. Fiquei a semana passada inteira
tentando te encontrar na saída escola, pois precisava muito te ver. Só na
sexta-feira descobri que você estava doente. Na verdade até sonhei com
você algumas vezes nesses últimos dias.
Após falar isso Marvin ficou aliviado, pois conseguiu colocar para
fora o sentimento que, àquela altura, já havia se tornado uma angústia.
Verônica sorriu, abraçou o rapaz e respondeu-lhe olhando fixamente
em seus olhos:
– Também tenho pensado muito em você nesses últimos dias. Fiquei
bastante cativada com as coisas que me falou naquele dia da quermesse.
Honestamente, tinha vontade de te ver novamente, mas não sabia como isso
iria ocorrer, pois as quermesses não têm ocorrido com muita frequência
ultimamente. Então, estou contente em saber que está interessado em mim e
que fez todo esse esforço para me encontrar.
Marvin percebeu que aquele era, sem dúvida, o melhor dia de sua
vida. Nesse momento, esqueceu todas as angústias, medos, todo o ódio e
toda a preocupação que carregava. Seu sentimento era de pura felicidade.
CAPÍTULO 12
O namoro

M
arvin e Verônica passaram a se encontrar quase que diariamente, de
maneira que o jovem camponês aguardava a moça na saída da aula.
O ritual era praticamente o mesmo em todos os dias: Marvin
esperava a estudante ao lado do portão da escola. Verônica, ao término da
aula, rumava ao encontro dele. O rapaz, por sua vez, esboçava um sorriso
largo e, em seguida, pegava-a pela mão. Depois, beijavam-se no rosto e
seguiam para uma praça próxima à escola que não costumava ter
movimento de pessoas.
Permaneciam juntos por cerca de meia hora. Conversavam,
beijavam-se e trocavam carícias. Passados trinta minutos, Verônica
anunciava que já estava ficando tarde. Marvin insistia moderadamente para
ficarem mais algum tempo, porém ela sempre recusava, pois sabia que se
demorasse mais tempo sua mãe iria desconfiar. Sendo assim, Verônica
retornava para casa e Marvin rumava para a roça.
O romance já estava no terceiro mês e muitas pessoas acabaram por
descobrir o envolvimento entre os jovens. Não tardou para a novidade
chegar aos ouvidos de Dom Miguel, que sentiu muita raiva ao saber.
Dom Miguel soube do envolvimento através de uma professora
conhecida por Teresinha, a qual tinha em torno de 60 anos e era bastante
conservadora.
A professora percebeu que Marvin diariamente ficava na frente da
escola e, após, saía de lá na companhia de Verônica. A curiosidade sobre o
que faziam aqueles jovens depois da aula estava tomando conta dos seus
pensamentos. Cada vez mais intrigada com aquela situação, resolveu um
dia segui-los. A mulher os surpreendeu sentados em um banco da praça
trocando beijos e carícias, o que a deixou extremamente perplexa.
Ela sabia que o rapaz que acompanhava Verônica era Marvin, pois já
havia sido professora de Jessé e de Jeremias, e algumas vezes ele havia
conversado com ela acerca do desempenho dos irmãos na escola.
Teresinha não disse nada aos jovens. Optou por se retirar da praça em
silêncio, cuidando para não ser vista por ninguém. Rumou de volta à escola
e ficou pensando no que iria fazer sobre aquela situação que a deixara
constrangida como havia muito tempo não se sentia.
Depois de refletir por algumas horas, decidiu ir até a casa de Dom
Miguel para contar aos pais de Verônica o que havia descoberto. Chegando
à casa da família, como já era esperado, não encontrou Dom Miguel, que
estava trabalhando no interior da fazenda. Acabou por conversar com Dona
Anastácia, contando a ela tudo que havia visto na praça naquele mesmo dia.
O relato durou cerca de dez minutos. Depois disso a professora se despediu,
desejando boa sorte à mãe de Verônica e que Deus a ajudasse na solução do
problema.
Verônica, que estava no quarto estudando, não percebeu a presença
da professora em sua casa.
Anastácia ficou sem saber o que fazer. Acabou por decidir que não
iria falar com a filha até que o marido chegasse à casa.
No entanto, Dom Miguel retornou tarde da noite, em um horário em
que os filhos já estavam dormindo e que Anastácia já havia se recolhido ao
aposentado do casal.
Somente no dia seguinte, quando o marido retornou do trabalho para
almoçar, Anastácia resolveu contar a ele o que a professora Teresinha havia
relatado no dia anterior.
– Miguel, tenho algo para falar com você.
Dom Miguel, acreditando que fosse um assunto sem maior
importância, respondeu:
– Agora não posso falar, quero comer sossegado e depois tirar meu
cochilo, pois tenho bastante trabalho à tarde.
Anastácia insistiu:
– É sobre a nossa filha, e envolve homem.
Dom Miguel imediatamente fechou a cara, largou o garfo sobre o
prato e olhou com bastante seriedade nos olhos da esposa. Em seguida
replicou:
– Então desembucha logo, mulher!
– Nossa filha está se encontrando com um rapaz depois da aula e fica
de agarramento com ele em uma praça perto da escola todos os dias.
Dom Miguel ficou enfurecido. Então respondeu:
– Não posso acreditar numa coisa dessas! O que essa menina está
pensando? Quer me fazer passar vexame na cidade inteira? Imagina só o
que não devem estar falando de mim por aí por deixar a minha filha ficar de
agarramento com macho...
Anastácia concordou com a cabeça e, após, continuou o relato:
– O rapaz, para piorar a situação, é aquele Marvin, que veio te pedir
dinheiro certa vez, aquele que todo mundo diz que é um bêbado. Quem me
contou foi a professora Teresinha, uma senhora de muito respeito e bastante
religiosa.
Ao ouvir da boca da própria esposa que o rapaz que estava se
encontrando com a Verônica era Marvin, Dom Miguel ficou ainda mais
indignado. Imediatamente foi até a escola buscar a filha. Mas ela já havia
saído. Como a esposa havia contado que os encontros se davam em uma
praça, perguntou ao porteiro onde ficava a praça mais próxima da escola.
Com a informação recebida, se deslocou apressadamente até a
famigerada praça.
Chegando ao local desejado, o espanhol, que já estava imaginando
com o que iria se deparar, surpreendeu Verônica e Marvin, que naquele
momento trocavam um beijo ardente.
De imediato, berrou aos quatro ventos:
– Verônica, sua vagabundinha ordinária! Solte agora mesmo esse
traste!
Verônica se desesperou ao perceber a presença do pai. Então
respondeu:
– Calma, pai, eu posso explicar – disse apavorada e chorando.
– Vai explicar isso em casa, depois do castigo que vai receber.
Marvin tentou conversar com Dom Miguel, porém o homem não
queria sequer olhar para ele, de modo que respondeu da seguinte forma:
– Saia já na minha frente, seu vagabundo sem futuro. Só não te dou
um tiro agora mesmo pois tem testemunhas aqui.
Marvin disse em tom de voz alto para o homem se acalmar. Dom
Miguel se enfureceu ainda mais. Então puxou o revólver calibre 38, que
estava alojado na cintura, e apontou na direção de Marvin, proferindo a
seguinte frase:
– A minha paciência está acabando. Se não calar essa boca agora e
sair da minha frente vou te encher de bala. E estou falando bem sério, seu
vadio!
Marvin, percebendo que de fato Dom Miguel poderia mesmo agir da
forma que estava anunciando, decidiu ficar calado.
Dom Miguel virou as costas para Marvin, em seguida puxou
Verônica pelos cabelos, continuou a dizer palavras bastante ofensivas para a
moça e a conduziu forçada para o carro, um Variant 1965, aos empurrões.
Chegando à casa, jogou-a violentamente sobre o sofá e açoitou-a por
alguns minutos com uma cinta de couro. Anastácia tentou intervir, mas
recebeu um tapa no rosto tão forte que caiu no chão, sem condições de
revidar.
Depois do açoite, o espanhol comunicou aos berros a Verônica que
aquele namoro estava proibido e que se a visse novamente com Marvin a
surra seria ainda mais pesada.
Verônica, mesmo se sentindo humilhada, pediu desculpas ao pai.
Dom Miguel, por sua vez, disse que iria pensar se a perdoava, mas que
ainda estava bastante decepcionado com ela. Falou até que se era para fazer
essas safadezas e ainda por cima com um garoto bêbado e vadio que ficasse
na Espanha com a tia, pois ele não tinha obrigação alguma de passar por um
vexame desses.
Verônica sentiu um misto de raiva e tristeza ao escutar as palavras tão
ofensivas do pai, porém, por medo, não contestou.
Depois de algumas horas, Dom Miguel aproximou-se de Verônica e
disse que ela estava desculpada, mas que não queria vê-la nunca mais se
esfregando em homens por aí, principalmente em Marvin.
A moça, envergonhada, disse que jamais iria voltar a namorar em
uma praça. O espanhol, com um sinal feito com a cabeça, concordou.
Percebendo que o pai estava menos arredio, Verônica tentou
convencê-lo a permitir o namoro:
– Pai, sei que o senhor ficou chocado ao me ver beijando um rapaz, e
que eu deveria ter contado que estava namorando. Peço desculpas mais uma
vez, mas, por favor, me deixe continuar vendo o Marvin. Ele é um moço
bom, trabalhador, honesto. A gente se gosta muito.
Dom Miguel instantaneamente fechou a cara e, gritando, respondeu:
– Não permito de jeito nenhum! Esse Marvin é um pobre esfomeado,
que vive bêbado por aí. Acredita que ele já teve coragem de me pedir
dinheiro pra dar comida pra família dele? Certamente gastou todo o
dinheiro da colheita com bebidas e farras. No final, são as crianças que
sofrem.
– Mas pai, ele não trabalhou com o senhor plantando soja?
– Sim. E eu paguei um bom dinheiro para ele, acima do que ele me
entregou de soja, que estava mal cultivada, por sinal. Mas o verme teve
coragem de me pedir mais dinheiro depois de ter jogado tudo fora nas
noitadas.
Verônica ficou pensativa. Aquela pessoa descrita pelo pai não se
parecia em nada com o rapaz com quem estava se relacionando nos últimos
meses.
No dia seguinte, antes de entrar na aula, Verônica encontrou Marvin,
que a esperava. Com lágrimas no rosto disse que não poderiam mais
namorar, pois o pai dela havia proibido o romance. Marvin se manteve
quieto por alguns segundos, depois sugeriu:
– Talvez se eu conversar com seu pai consiga fazer com que ele
mude de opinião.
– Não adianta. Ele não gosta mesmo de você. Inclusive disse coisas
horríveis a seu respeito, mas que eu não acreditei.
– Que coisas? – questionou, Marvin, bastante surpreso com o que
acabara de ouvir.
– Prefiro não falar, são coisas muito ruins.
Marvin optou por não insistir. Sabia que iria ficar ainda mais zangado
se soubesse das calúnias e que isso iria prejudicar ainda mais a
possibilidade de conseguir o consentimento de Dom Miguel. Então
continuou a conversa:
–Vou falar com o seu pai, sim. Tenho certeza de que ele vai mudar de
ideia.
– Se você quiser tentar, fique à vontade, mas acho que ele nem vai te
receber.
Marvin sabia que de fato Dom Miguel não iria recebê-lo. Teve, então,
a brilhante ideia de procurá-lo no bar.
Naquela mesma noite foi ao bar onde tempos atrás havia conhecido o
espanhol, quando da comemoração dos seus 18 anos.
Depois de algum tempo esperando, percebeu a chegada dele. Sem
perda de tempo, puxou assunto:
– Boa noite, Dom Miguel. Vim pedir autorização para namorar sua
filha.
Dom Miguel ficou incrédulo com aquele pedido, que para ele era
uma tremenda ofensa. Com as mãos tremendo e babando de tanta raiva,
respondeu:
– Não permito e, por favor, se afaste de mim. Não quero conversar
com você, rapaz. Você acha que pode desonrar a minha filha e depois ficar
de conversa mole comigo? – refutou Dom Miguel, sem nem mesmo olhar
nos olhos de Marvin.
Marvin sorriu, depois olhou fixamente nos olhos de Dom Miguel e
respondeu com uma fala relativamente serena:
– Vamos aos fatos, Dom Miguel. Eu sei que o senhor me enganou
quando me propôs o negócio da soja. Sei que é um canalha sem escrúpulos.
Então, se continuar com a ideia de não permitir meu namoro com Verônica
todos na cidade vão saber o que aconteceu.
Surpreso, Dom Miguel respondeu:
– Do que está falando? Está bêbado já? Eu sou um homem honrado e
de bons princípios. Um cidadão de bem.
– O senhor é um canalha da pior espécie. Não merece a filha que tem.
É mais nojento que os porcos que cria na sua fazenda.
– Olha, seu bêbado desaforado! Cale essa boca imediatamente,
senão...
– Senão o quê? – replicou, Marvin fechando o punho.
Dom Miguel respirou fundo e em seguida disse:
– Mesmo que eu tivesse enganado você, acha que alguém acreditaria
nisso?
– Conheço muitas pessoas que foram enganadas pelo senhor. Todas
estão dispostas a revelar quem é o senhor de verdade. Posso trazê-las para
esta cidade a qualquer momento. Essas pessoas estão dispostas a fazer
registro na delegacia e mostrar o contrato assinado e os valores recebidos
de pagamento, que foram muito abaixo do combinado. Não sou um
homem entendido de leis, mas tenho uma intuição de que o senhor vai
acabar preso. Quer arriscar?
Dom Miguel, percebendo que não tinha saída, questionou:
– Permitindo esse namoro você me deixa em paz?
– Na verdade, eu queria que o senhor reparasse sua dívida financeira
comigo e com todos os outros que foram enganados. Mas sei que isso é algo
que jamais vai fazer. O senhor é ganancioso demais para tomar uma atitude
dessas. Sendo assim, permitir o namoro com Verônica é o suficiente.
Dom Miguel, mesmo demonstrando descontentamento, acabou por
aceitar o relacionamento, mas exaltou que não poderiam se encontrar na
frente da escola. Além disso, Marvin estaria autorizado a frequentar a casa
dele para encontrar a sua filha Verônica duas vezes por semana, mas que
teria que ir embora antes das 21h.
Marvin respondeu:
– Está muito exigente pra quem está em dívida comigo, mas tudo
bem, por enquanto aceito as condições.
Dom Miguel ficou ofendido com a resposta recebida, mas não
retrucou.
No dia seguinte, Marvin deu a notícia para Verônica, que ficou
surpresa e feliz ao mesmo tempo. A jovem questionou como Marvin
conseguira algo tão difícil. Ele, com pouca segurança nas palavras,
respondeu:
– Seu pai não é assim tão rude. Ele estava irritado porque nos viu de
agarramento naquela praça. Todo pai que se preze perde a cabeça com
isso. Mas agora que expliquei que gosto de você de verdade e que
pretendemos nos casar um dia, ele entendeu que o mais correto é aceitar o
nosso namoro.
Verônica esboçou um largo sorriso e suas pupilas se dilataram
naquele instante, tamanha era sua felicidade. Passados alguns segundos,
respondeu:
– Estou tão feliz que você nem imagina, Marvin. Tenho vontade de
gritar de alegria.
– Eu me sinto tão contente quanto você, meu amor – respondeu
Marvin, percebendo, naquele momento, que tinha um sentimento genuíno
pela bela jovem.
◆ ◆ ◆
Por alguns meses, Marvin seguiu rigidamente as regras impostas por
Dom Miguel. Sendo assim, encontrava Verônica às quartas e sextas-feiras.
Ficava das 19h às 21h. Depois se despedia de toda a família e rumava para
casa, mas sempre sentindo vontade de continuar com a amada por mais
algumas horas.
Com o tempo, Marvin começou a aparecer na casa de Dom Miguel
em outros dias da semana e sempre sem avisar. Não queria descumprir o
acordo, mas a saudade que sentia de Verônica era enorme. O dia predileto
para Marvin “furar” o acordo era sábado, bem na hora do almoço. Muitas
vezes levava consigo a pequena Ana Rebeca.
Embora Verônica ficasse muito contente com as visitas, Anastácia
detestava aquela “invasão”. Saturada das visitas inesperadas, passou a
tratar Marvin com total apatia e sequer o convidava para almoçar. Dom
Miguel, que detestava Marvin cada vez mais, dizia que se ele não
cumprisse o acordo o namoro seria desfeito.
Marvin estava pouco preocupado com a opinião dos sogros, pois
sabia que, no fundo, Dom Miguel jamais teria coragem de proibir o namoro,
já que estava encurralado. Quanto ao fato de não o convidarem para o
almoço, ele não ligava. Pegava um prato, se servia assim mesmo e sentava à
mesa como se não tivesse percebido a desfeita.
Assim se manteve a vida deles por algum tempo, de modo que
Marvin conciliava o namoro com Verônica, o cuidado com a família,
principalmente com a irmã Ana Rebeca, e o trabalho na lavoura, que estava
em pleno equilíbrio.
CAPÍTULO 13
A cativante Lígia

E
m um dia comum, durante uma visita de Marvin, Verônica, após
terminar de almoçar, foi até seu quarto pegar um álbum de fotografias
para mostrar à cunhada Ana Rebeca que, naquele sábado, havia
acompanhado o irmão na visita à casa dos Morientes.
Ana Rebeca gostava de ir junto com Marvin a casa de Verônica, pois
assim podia brincar com Cosme, que era um menino muito dócil.
Quando Verônica retornou, percebeu uma discussão grave entre
Marvin e Anastácia. Ela não sabia o motivo, mas ainda assim pediu a
Marvin que se desculpasse com sua mãe, pois era um tremendo desrespeito
gritar com uma mulher que tinha idade para ser mãe dele. Marvin, fora de
si, retrucou:
– Quem deve pedir desculpas é sua mãe para a Ana Rebeca.
– O que aconteceu, Marvin? – questionou Verônica, perplexa com o
desequilíbrio emocional de Marvin.
– Sua mãe gritou com Ana Rebeca porque ela pegou um pedaço de
carne. Percebe o absurdo que acabou de acontecer?
Anastácia interrompeu:
– Essa menina meteu os dedos sujos na minha panela sem me pedir
permissão.
– E isso é motivo para gritar com ela, chamar de morta de fome? –
resignou-se Marvin, entendendo que o insulto continuava a acontecer.
Verônica continuou dizendo que mesmo assim ele não poderia ter
gritado com a mãe dela.
Nesse instante Dom Miguel chegou à casa, estava na rua negociando
com compradores de soja.
Marvin não o cumprimentou, pegou a irmã pelo braço e saiu
apressado, resmungando sem parar. O espanhol, que estava bastante
cansado, não fez questão de entender o que estava acontecendo.
Simplesmente subiu a escada, abriu a porta do quarto e se atirou na cama.
Ana Rebeca estava apavorada, nunca havia sido repreendida por uma
pessoa que não fosse sua mãe. Estava tão nervosa que não conseguia nem
falar. Somente depois, em casa, conseguiu explicar a Marvin o que havia
acontecido:
– A carne não era pra mim, mano, era para o Cosme. Ele me pediu
pra pegar, disse que sempre fazia isso e que a mãe dele não se importava.
Como ele estava sentado e eu estava de pé, fiz o favor pra ele – explicou
Ana Rebeca, nesse momento mais calma.
Ao ouvir a explicação, Marvin ficou ainda mais enfurecido, pois a
irmã era totalmente inocente, mas que ninguém se interessara em ouvi-la.
◆ ◆ ◆

Semanas antes da discussão, Marvin havia recebido um convite de


um amigo de quermesse para conhecer o Bordel de Dona Cátia. Embora
tivesse ficado curioso refutou o convite, pois não achava correto frequentar
esse tipo de ambiente estando comprometido com Verônica.
Porém, diante de tudo que acontecera, e principalmente pelo fato de
Ana Rebeca ser maltratada e Verônica, em seu entendimento, ficar a favor
de Dona Anastácia, sem se importar com a irmã, que era uma vítima da
situação, encontrou nisso um pretexto.
Chegando ao bordel, inicialmente se sentiu constrangido. Porém,
depois de meia hora estava mais à vontade que na própria casa. Divertiu-se
como nunca, conheceu muitas mulheres, para algumas deu conselhos sobre
a vida.
No dia seguinte refletiu sobre o que fizera, entendendo que fora
uma atitude incorreta, já que tinha compromisso sério com Verônica.
Prometeu a si mesmo que não iria mais voltar ao bordel, pois não era
lugar para um homem comprometido, sendo assim iria apagar da memória o
dia em que esteve naquele lugar.
Resolveu ir à casa de Verônica. Chegando lá, calmamente explicou a
situação que havia acontecido com Ana Rebeca e a injustiça cometida com
a menina.
Com tudo explicado e justificado os namorados pediram desculpas
recíprocas. Em pouco tempo, o namoro estava em alta novamente.
Anastácia, por sua vez, quando soube que a carne retirada da panela
havia sido solicitada pelo filho Cosme, e não uma deliberação própria de
Ana Rebeca, refletiu bastante. Não chegou a pedir desculpas, mas permitiu
que Marvin retornasse com as visitas.
Dom Miguel não deu importância para o ocorrido, pois estava muito
ocupado com a possibilidade de comprar algumas fazendas na região a
preço de banana.
No entanto, mesmo com a situação resolvida, Marvin tinha vontade
de retornar ao bordel. Havia se sentido tão bem naquele lugar que não
custava ir lá só mais uma vez. Então, um dia, depois de tomar meia garrafa
de vodca, entrou em um conflito interno, questionando a si mesmo se
deveria ou não retornar ao bordel, já que seria somente mais uma vez.
A tentação prevaleceu e ele acabou por ir ao prostíbulo. Foi de
carona com o mesmo amigo que o convidara na primeira vez. Esse amigo,
na verdade, costumava ir praticamente todos os dias ao lugar, de maneira
que, querendo ir ao bordel, era só passar na casa dele com alguma
antecedência.
Ao entrar novamente naquele bordel, Marvin sentiu uma sensação
de alegria que havia muito não experimentava. No dia seguinte, era capaz
de lembrar de cada momento passado na noite anterior, o que o fazia rir
sozinho enquanto plantava sementes no solo.
Cedendo às tentações que ele mesmo criava na cabeça, acabou
retornando diversas vezes àquele lugar.
Sem perceber, tornou-se frequentador assíduo do bordel. Nos dias
que não estava com Verônica, estava no bordel. Porém sempre prometia a si
mesmo que aquela era a última vez.
Embora tivesse se tornado frequentador assíduo do bordel de Dona
Cátia, suas visitas se resumiam a beber, conversar com os amigos e olhar as
garotas. Às vezes trocava meia dúzia de palavras com alguma delas, mas
nada além disso.
No entanto, depois de três meses nessa rotina alucinante conheceu
Lígia, uma garota recém-contratada do bordel e, como alguns diziam,
sobrinha de Dona Cátia.
Lígia era uma mulher de pele morena, olhos castanhos e cabelo
ruivo, que ela dizia ser natural. Seios fartos, traseiro grande e dona de uma
malícia no falar, no olhar e no andar que acabou por deixar Marvin
enfeitiçado.
A novata na casa observou Marvin sentado, bebendo e olhando para
o nada. Aproximou-se dele, mas nada disse, apenas acariciou o rosto do
sofrido agricultor.
Marvin, por sua vez, sorriu, mas também nada disse.
Ela discretamente pegou o copo que o jovem segurava e deu um leve
gole na bebida. Em ato contínuo, colocou o copo na boca de Marvin e
despejou suavemente a bebida na sua garganta. Ela largou o copo na mesa,
piscou o olho, sorriu e, de forma inesperada, tascou-lhe um beijo lascivo e
demorado.
Após o dilatado beijo, perguntou se Marvin a desejava. Ele balançou
a cabeça em sentido afirmativo, sem entender muito bem o que estava
respondendo.
Lígia rapidamente o conduziu para um lugar afastado e, então,
entraram num pequeno recinto. Sem falar mais nada, a moça fechou a porta
de madeira com uma tranca improvisada. Com os olhos fixados em Marvin,
despiu-o completamente. Marvin fez o mesmo com ela e a agarrou com
força, obedecendo a um desejo incontrolável, quase selvagem, que era
recíproco.
No dia seguinte, Marvin não entendia ao certo o que havia
acontecido. Nunca tivera sentido tanto desejo, tanto prazer, tanta vontade. E
pior, nunca havia estado em uma cama com outra mulher desde que se
envolvera com Verônica.
Decidiu visitar Verônica, mesmo que não fosse o dia acordado com
Dom Miguel. Tinha a intenção de contar tudo o que havia acontecido,
desculpar-se e seguir normalmente a vida.
No entanto, ao falar com ela, sentiu medo de não ser perdoado e
perder para sempre a mulher a quem amava.
Manteve-se, pois, taciturno a respeito do que havia acontecido na
noite anterior. Verônica, por sua vez, percebera algo de diferente no
comportamento do namorado, então resolveu perguntar se havia acontecido
alguma coisa. Ele, titubeando, respondeu:
– Não aconteceu nada. É que estou bastante cansado hoje.
– Mas então por que decidiu me visitar em um dia diferente do
combinado? – questionou Verônica, bastante confusa com a situação.
– Estava cansado, mas também com muita saudade. Porém, se estou
te incomodando eu vou embora agora mesmo.
– Não, não é nada disso. Eu gostei da sua visita, fiquei feliz. Só
estranhei um pouco.
Marvin sorriu e, em seguida, iniciou um assunto sobre os gêmeos
Jessé e Jeremias, visando se livrar daquela situação de desconforto.
Após refletir ainda mais sobre o caso, teve a convicção de que
Verônica não iria perdoá-lo se soubesse que teve uma noite de luxúria
com outra mulher. Decidiu, portanto, que não contaria a ela o que havia
acontecido, embora estivesse com peso na consciência.
Depois de algum tempo de arrependimento, Marvin passou a ter
lembranças agradáveis sobre a noite de prazer com Lígia. Os pensamentos
sobre aquela moça o deixavam cada vez mais empolgado. Havia um desejo
ardente dentro de si de encontrar novamente aquela mulher.
Sem mais resistir àquele desejo que estava acabando com a sua
racionalidade, acabou por voltar ao Bordel de Dona Cátia e se frustrou, pois
Lígia não estava lá. Acabou por ir mais três dias seguidos ao
estabelecimento, até que Lígia apareceu novamente. Sentiu uma alegria
imensa ao vê-la, algo que ele não sabia descrever.
De imediato ele puxou conversa. Então ela contou que teve que
voltar à sua cidade para buscar alguns pertences que havia esquecido, mas
que já estava de volta, e agora para ficar.
Depois de meia hora de conversa, Marvin se dirigiu com Lígia ao
mesmo recinto em que havia tido a primeira relação com a moça. Tiveram
novamente uma relação bastante lasciva, tão ardente quanto a primeira.
Sem perceber, Marvin havia se tornado um cliente assíduo da garota.
Lígia, por sua vez, afeiçoou-se a Marvin como jamais havia
acontecido com nenhum outro homem. Não levou muito tempo para que
passassem a ter uma relação mais íntima, com encontros em todos os
lugares, inclusive na casa de Marvin, quando os irmãos estavam na escola e
Maria de Lurdes dormia.
Sem ter planejado ou mesmo desejado, Marvin estava tendo uma
vida dupla, se dividia entre Verônica e Lígia.
Havia algum tempo que Marvin tinha rompido a virgindade de
Verônica, situação que se mantivera em segredo entre os dois.
Depois disso Verônica desejava Marvin o todo tempo, em todos os
momentos. Era só surgir qualquer oportunidade que logo ela estava se
despindo e tentando seduzir o namorado.
Lígia sabia da existência de Verônica e do seu “apetite”, já que
Marvin, sempre que abusava da bebida, acabava relatando como havia sido
a última relação com a namorada.
Os relatos de Marvin sobre Verônica acabaram fazendo com que
Lígia se sentisse incomodada. Assim, tornou-se mais incisiva no sentido de
pedir mais atenção do amante.
Não tardou para que ela passasse a exigir que Marvin abandonasse
Verônica para ficar exclusivamente com ela. Prometeu que se ele a
assumisse de maneira oficial, no mesmo dia sairia do bordel e trabalharia
até mesmo como empregada doméstica em uma casa de família, de babá ou
cuidadora de idosos.
Marvin, por seu turno, não tinha a menor vontade de assumir
qualquer compromisso com Lígia. Seu interesse era lascivo, não
sentimental.
Diante das investidas cada vez mais frequentes de Lígia, Marvin
acabou por romper a relação. Disse a ela que não mais queria vê-la e que
era para deixá-lo em paz, pois iria se casar com Verônica depois da próxima
colheita.
Lígia não aceitou o rompimento e disse que, caso Marvin a deixasse,
ela iria acabar com a vida dele, pois contaria tudo a sua namorada, que,
àquela altura, já havia se tornado noiva.
Marvin não lhe deu ouvidos. Mas, como ela permaneceu o
ameaçando, acabou por lhe desferir um tapa no rosto. Lígia caiu no chão.
Marvin, olhando-a de cima, disse:
– Sua puta de quinta categoria, se você contar alguma coisa para
minha noiva você morre!
Lígia, no entanto, não sentiu medo da ameaça, e sim muito ódio.
No dia seguinte, sem o menor receio, foi até a casa de Verônica a fim
de contar tudo que vivera até aquele momento com Marvin.
Verônica, por sua vez, foi até a casa de Marvin no mesmo dia da
conversa com Lígia. Disse que sabia tudo o que ele tinha feito e que tinha
pleno conhecimento do envolvimento dele com a prostituta. Assim, estava
terminando o noivado e jamais queria voltar a vê-lo.
Marvin respondeu:
– Desculpe, meu amor! Não era a minha intenção ter uma relação
com essa mulher. Eu não sei explicar, foi mais forte que eu. O desejo tomou
conta de mim.
Verônica não lhe deu ouvidos e foi embora.
Marvin se arrependeu da traição. Sentia uma falta enorme de
Verônica, ao mesmo tempo em que a sensação de culpa também o absorvia.
Sentia a mesma tristeza de quando sua irmãzinha chorava no seu colo por
causa da fome.
Decorreu-se um mês e as dores na cabeça retornaram. Eram mais
agudas e mais frequentes que na época de adolescência.
Marvin, desesperado por não ter Verônica, se entregou ainda mais à
bebida.
Inexplicavelmente, depois da conversa com Verônica, Lígia nunca
mais foi encontrada na cidade.
Dona Cátia, proprietária do bordel e tia da moça, quando questionada
pelos clientes, dizia que Lígia resolvera voltar para sua cidade natal já que
estava sentindo falta dos filhos, que ela havia deixado com a avó.
CAPÍTULO 14
Um pedido de perdão

M
arvin ficou três meses enviando cartas e mandando flores para
Verônica. Ana Rebeca, que tinha muita aptidão para a escrita,
ajudou Marvin a escrever as epístolas. A insistência foi tanta que
Verônica aceitou conversar novamente com ele. Entretanto, Dom Miguel já
sabia o que havia ocasionado a tristeza de sua filha e não permitiu que
tivessem essa conversa.
Todavia, Marvin, que guardava ainda muito rancor por aquele
homem, foi ao seu encontro no bar novamente. Sem papas na língua, disse-
lhe:
– O senhor não está em condições de negar que eu converse com a
Verônica. Esqueceu que eu sei dos seus golpes?
– Isso foi há muito tempo, Marvin.
– Sim, e nesse tempo que passou eu soube de outros golpes, como
aquele da compra de chácaras por preços que na verdade mais parecem
doações. Pensa que não vi o senhor negociando com jagunços para apavorar
as famílias que vivem nessas fazendas e, assim, entregar quase de graça as
suas propriedades para o primeiro interessado que aparecer?
– Você está blefando, eu nem sei ao certo o significado da palavra
jagunço.
– Bom, estou aqui para negociar. Se o senhor não permitir que eu
converse com a Verônica amanhã mesmo o senhor terá que lembrar na
frente de um delegado o significado da palavra jagunço.
Dom Miguel ficou quieto por alguns segundos, e então replicou:
– Mas, Marvin, você traiu a Verônica com uma prostituta. Como quer
que eu abençoe uma relação dessas?
– Dom Miguel, você pensa mesmo que eu não sei que você se
encontra com diversas prostitutas enquanto sua mulher está em casa
cuidado da família? Por que esse falso moralismo? Eu tive uma amante
durante um período, mas agora estou livre dela. E estou arrependido, do
fundo do meu coração. Não tenho caso com mais nenhuma mulher. O
senhor, por outro lado, certamente vai se encontrar com alguma prostituta
depois de terminar essa conversa comigo.
– Não sei do que está falando – respondeu Dom Miguel, com
extremo cinismo na fala.
– Ah, o senhor sabe sim. Inclusive boa parte do dinheiro que recebe
nos golpes é utilizado para financiar suas farras nos bordéis. Não é verdade?
– Ok, Marvin. Não quero mais desperdiçar tempo com você. Eu
autorizo que fale com a minha filha. Mas não é por medo de que faça
calúnias sobre a minha pessoa, é porque não aguento mais essa conversa e
sei que só vamos terminar isso se eu lhe disser sim.
– Excelente, Dom Miguel. Agiu com sabedoria. Seus segredos
sórdidos por ora não serão revelados.
No dia seguinte à conversa com Dom Miguel, Marvin encontrou-se
com Verônica e de joelhos lhe pediu perdão. Chorando copiosamente, jurou
que jamais iria traí-la novamente. Prometeu também que nunca mais iria
colocar os pés em bordéis.
Verônica permaneceu quieta, apenas o observava. Na verdade, estava
bastante surpresa com aquela atitude de Marvin.
Marvin segurou nas mãos de Verônica e, emocionado, disse:
– Eu amo você de verdade, aprendi a lição. Ficar longe de você todo
esse tempo serviu para mostrar que você é a mulher que quero comigo para
o resto da vida.
Verônica sorriu e chorou ao mesmo tempo. Ela aceitou os pedidos de
perdão, e imediatamente reataram o noivado. Pretendiam agora se casar o
mais rápido possível.
CAPÍTULO 15
O segundo leito de morte

M
aria de Lurdes passou a ter crises de tosse diariamente. Depois de
algum tempo, além da tosse apresentava dificuldades para se
levantar da cama. Não tardou para que ficasse completamente
incapacitada de andar.
Marvin observava aquela situação com muita dor, ainda que a relação
que mantivera com a mãe não fosse das melhores.
Muito anos haviam passado desde a morte de Sebastião. Na época,
Marvin era um adolescente assustado, inocente, que tinha medo de tudo.
Agora, já adulto, percebia que a morte da mãe estava se aproximando, ainda
mais que um exame realizado na capital confirmava que a progenitora
daquela família estava acometida de uma doença grave e que àquela altura
era irremediável.
Maria de Lurdes chamou Jessé. Ele imediatamente foi até o quarto
atender a mãe. Então, quase sem forças, ela solicitou:
– Chame o seu irmão Marvin, preciso falar com ele antes de partir.
Jessé entendeu o que a mãe quis dizer com partir. Chorou, deu um
abraço e um beijo na mãe e depois disse:
– Não vá embora, mãe. Precisamos de você.
– Não se preocupe, filho, vocês vão continuar sendo bem cuidados.
Agora vai lá chamar o seu irmão.
Jessé assentiu com a cabeça e às pressas foi ao encontro de Marvin,
comunicando-lhe que a mãe o chamava.
Marvin, que na ocasião que foi encontrar o pai no leito de morte
sentira uma tristeza profunda, novamente se deparava com a dor da perda,
mas os anos de desgraças que tanto vivenciou fizeram com que se tornasse
mais resistente naqueles momentos.
Recebido o comunicado do irmão, Marvin chegou até sua mãe,
sentou-se a beirada da cama, deu-lhe um beijo no rosto e disse:
– Anos atrás meu pai mandou me chamar e fez uma revelação:
falou que o meu destino ele sabia de cor. Em seguida, fechou os olhos e
não abriu mais. Minha vida tem sido tão desgraçada que posso dizer que
meu pai era um vidente, pois o olhar dele era tão pessimista que qualquer
um, até mesmo uma criança, podia perceber que se tratava exatamente de
dor e tristeza. Agora é a senhora que me chama no leito de morte. Vai me
dizer algo também, mãe?
– Meu filho, seu pai não era nenhum vidente. A vida na roça é difícil
mesmo. Era isso que ele estava querendo lhe dizer. Por isso a sua vida foi
exatamente como ele lhe anunciou com o olhar. Você apenas seguiu à risca
todo o pessimismo dele.
Marvin, que esperava palavras mais dóceis e até um pedido de
desculpas da mãe, não se conformou com aquela despedida. Então retrucou:
– Mas a senhora também me fez acreditar que o meu futuro seria uma
desgraça. Sempre me tratou como um caso perdido. Eu virei um alcoólatra
por sua causa. Depois de me bater na cabeça com a pá, eu passei a beber
cachaça para amenizar as dores insuportáveis que sentia. Acabei me
acostumando com a bebida e hoje não consigo fazer nada se não estiver
cheio de álcool na cara.
Maria de Lurdes, demonstrando incredulidade, reagiu:
– Filho, eu não bati em você com uma pá. No momento que você
falou aquelas coisas pra mim teve um desmaio e bateu com a cabeça em
uma pedra que estava atrás de você. Por isso ficou tanto tempo em coma,
entre a vida e a morte. Eu rezava dia e noite para que você não morresse.
Não consigo acreditar que pensou que a sua própria mãe faria uma coisa tão
maldosa para você.
Marvin permaneceu calado, mas era perceptível que estava
extremamente surpreso com as palavras que acabara de ouvir.
Depois de tossir por alguns minutos sem parar, Maria de Lurdes
continuou o diálogo:
– Estou indo encontrar seu pai. Diga aos seus irmãos que peço
desculpas pelas minhas falhas, mas que sempre amei meus filhos. E vou
continuar sempre amando todos vocês de onde estiver.
Marvin, ainda em choque, apenas aquiesceu com a cabeça.
Maria de Lurdes, quase sem forças e com um tom de voz muito
baixo, encerrou:
– Marvin, a vida é pra valer, siga o seu caminho, você pode, você
consegue, meu filho. Você é um menino bom!
Terminou a frase com um leve sorriso. Depois fechou os olhos pela
última vez. Tinha uma aparência de quem estava se sentindo em paz,
sossegada.
Marvin permanecia atônito, sem reação. Por todo tempo havia
culpado a mãe pelas terríveis dores na cabeça que sentira em diversos
momentos da sua vida. Também atribuíra à mãe o fato de ter se tornado
viciado em álcool, já que necessitava beber para amenizar as dores. E o
principal, durante toda a vida viu na mãe alguém que não o amava de
verdade, que não o queria como filho.
Passados dois dias, Marvin comentou com Ana Rebeca sobre o que a
mãe havia confidenciado a ele no leito de morte. A irmã segurou as mãos de
Marvin, deu-lhe um beijo e mansamente o acalentou com palavras doces:
– Você tem uma segunda chance, Marvin. A mamãe nunca teve
culpa, você também não. Faltou mais conversa entre vocês. Você e a
mamãe, enfim, se entenderam. Ela vai descansar em paz, com o nosso pai.
Você vai ser muito feliz, vai ser um vencedor. E eu estou aqui para ajudar.
Estamos todos tristes pela morte da mamãe, mas vamos superar isso tudo,
meu irmãozinho. Eu te amo e sempre vou te amar, até o fim dos meus dias.
Marvin sorriu e deu-lhe um abraço prolongado. Não entendia como
uma pessoa podia ser tão boa, doce e amável como Ana Rebeca. Era um
anjo em forma de menina. Naquele dia prometeu a si mesmo que iria
protegê-la por toda a vida e que enfrentaria qualquer desastre, fosse
terremoto, furação ou vendaval por ela, mesmo que tivesse que entregar a
própria vida.
Inesperadamente, naquele dia Marvin não sentiu dores na cabeça. Na
verdade, aquelas dores ficaram esquecidas por muitos anos.
CAPÍTULO 16
A volta por cima

A
presentando uma disposição enorme, Marvin decidiu que iria parar de
beber e que colocaria todos os seus planos em prática. Pôs um ponto
final nas discussões que travava com Anastácia, de modo que passou
a tratá-la de maneira gentil e carinhosa. Passou inclusive a fazer exercícios
diários de meditação para não sentir tanta raiva de Dom Miguel.
Após um incentivo de Verônica, reforçado por Ana Rebeca, começou
a estudar sobre técnicas de cultivo e novos sistemas de produção, tudo isso
para tornar a sua lavoura mais eficiente. E, pela primeira vez na vida,
iniciou a leitura de um livro, um clássico do autor Machado de Assis
chamado Dom Casmurro.
Seus estudos foram frutíferos e ele adquiriu conhecimentos que o
capacitaram para implementar novas técnicas de cultivo nas suas
plantações, as quais permitiriam a ele o triplo da produção dos produtos
agrícolas. Enfim, estava vivendo o melhor momento da sua vida.
Dando continuidade à execução dos planos, marcou a data de
casamento com Verônica. Sua noiva se sentia plenamente realizada naquele
momento.
Marvin se sentia ainda mais apaixonado por Verônica. Pretendia se
casar e viver com ela até seus últimos dias. Dizia para a noiva e para a irmã
que no seu coração havia espaço de sobra para ambas, pois eram os grandes
amores da sua vida.
No entanto, no seu íntimo nada superava o amor que sentia pela irmã.
Ela era sua grande companheira. Nos momentos de dificuldade era ela a
quem procurava primeiro para conversar, para chorar, para falar sobre tudo
o que o agradava e desagradava.
Ana Rebeca, por seu turno, mantinha uma relação amigável com os
gêmeos, mas nunca escondeu deles que tinha um amor especial por Marvin
e que o via como pai, já que Sebastião havia morrido quando ela era ainda
uma criança.
Os gêmeos, Jessé e Jeremias, comentaram com Ana Rebeca que a
morte da mãe surpreendentemente havia feito um bem enorme para Marvin,
e isso era muito intrigante.
Ela, sorrindo, respondeu:
– É que um grande mal-entendido foi desfeito. Marvin conseguiu
eliminar a mágoa que tinha dentro do peito. As dores de cabeça que ele
sentia, na verdade, eram dores que se formaram dentro do coração. Essa
mágoa, que ele carregou até o dia da morte da mamãe, era o motivador de
todos os problemas que Marvin teve na vida. Mas, felizmente, está tudo
superado. Agora nosso irmão será uma pessoa alegre, motivada, otimista.
Podem confiar.
Os gêmeos ficaram comovidos com as palavras da irmã mais nova.
Sentiam um orgulho enorme daquela menina que mesmo tão jovem
parecia ser uma pessoa experiente, vivida, que sempre tinha algo de bom a
ensinar para quem estivesse disposto a ouvi-la.
CAPÍTULO 17
A doença de Jessé

H
avia alguns meses que Jessé se queixava de dores de cabeça.
Marvin, de início, não demonstrou maiores preocupações.
Entretanto, como o menino passou a reclamar com mais frequência
daquelas dores, o primogênito passou a entender que talvez a situação
fosse mais complexa do que ele estava imaginando.
Decidiu chamar a esposa de um amigo plantador de fumo para
examinar o irmão, já que a tal mulher, alguns anos atrás, havia trabalhado
como auxiliar de enfermagem em um hospital da capital. Ela, então, fez
alguns questionamentos para o menino. Depois o examinou na cabeça. Em
seguida, olhou para Marvin como quem demonstrava preocupação.
Marvin, intrigado, perguntou o que o irmão tinha. Ela então
respondeu:
– Não sei ao certo, mas pelo que ele me relatou e pelo que senti
apalpando a cabeça, talvez seja algo que necessite de um atendimento mais
especializado.
– O que quer dizer com atendimento mais especializado, Dona
Sônia? – questionou Marvin, insatisfeito com a superficialidade da resposta.
– Quero dizer que deve levar esse garoto até algum hospital da
capital, pois lá ele poderá fazer exames mais precisos. Eu, infelizmente, não
tenho condições de dar um diagnóstico sobre o caso.
– Certo, entendi. Amanhã mesmo vamos pra capital. Jessé e eu
vamos tomar um ônibus logo cedo.
Jeremias, preocupado com o irmão, pediu para ir junto, mas Marvin
disse que ele precisava ficar para cuidar da roça durante o período em que
estivessem no hospital.
Jeremias chorou, mas acatou a decisão imposta por Marvin. No
entanto, durante o período em que os irmãos estiveram fora, não conseguia
comer nem dormir direito, tamanha era a preocupação com seu par.
Chegando à capital, Marvin se atrapalhou um pouco. Andou em
círculos por algum tempo na tentativa de localizar alguma placa que o
conduzisse ao lugar que desejava. Na verdade, não tinha ideia de onde era o
hospital. Tamanha foi a dificuldade para se localizar que resolveu, ainda
que tivesse pouco dinheiro disponível, tomar um táxi. Feito isso, o
motorista o deixou na porta do estabelecimento hospitalar, desejando
melhoras ao menino.
Marvin adentrou a emergência com o irmão, apresentou os
documentos de ambos e, depois, respondeu a diversas perguntas feitas por
um atendente.
Jessé foi conduzido às pressas para uma maca, mas Marvin não pôde
acompanhá-lo, pois disseram que somente o enfermo poderia ficar no setor
de emergência. O acompanhante deveria aguardar por informações na sala
de espera.
Depois de algum tempo, um atendente informou que Jessé estava
realizando alguns exames e que era necessário aguardar por mais algumas
horas.
Passado algum tempo, um médico foi até Marvin. Com bastante
seriedade informou que o caso era grave e que o garoto iria passar por um
processo de cirurgia. Marvin, sem entender o que de fato estava ocorrendo,
questionou:
– Doutor, pode ser mais claro? Não estou entendendo o que está
acontecendo. O que o meu irmão tem, afinal?
O médico, sem maiores firulas, respondeu:
– Seu irmão tem um tumor maligno na cabeça, que mede em torno de
dois centímetros.
– Meu Deus do céu! Ele corre risco de morrer, doutor? – questionou
Marvin, já bastante abalado e com lágrimas nos olhos.
– Infelizmente é uma cirurgia bastante arriscada, mas vamos fazer o
que estiver ao nosso alcance para que tudo ocorra bem – respondeu o
médico, sem maiores expectativas.
– E se der tudo certo na cirurgia, ele fica livre dessa doença? –
perguntou Marvin, torcendo por uma notícia afirmativa.
– Não sabemos. Pode ser que sim, pode ser que não. Alguns
pacientes depois da cirurgia de retirada de tumor nunca mais apresentam
problemas; já outros, depois de algum tempo voltam a desenvolver o
mesmo problema, que acaba aparecendo em outras partes do corpo.
Marvin ficou pensativo, olhou triste para o médico e aquiesceu com a
cabeça. O doutor, percebendo a tristeza daquele jovem do interior, falou de
forma branda:
– Mas o que realmente importa agora é operá-lo e torcer para que
tudo ocorra bem. Depois a gente se preocupa com o futuro, porém agora
não é o momento.
Marvin se manteve calado e, sem outra opção, começou a rezar.
A cirurgia foi realizada dois dias após a conversa de Marvin com o
médico. Para alívio da família, tudo ocorreu dentro do previsto e o tumor
foi retirado com êxito, sem causar nenhum prejuízo à saúde do menino.
Marvin teve de permanecer na capital por mais duas semanas, visto
que esse foi o período em que Jessé ficou em tratamento pós-operatório.
Como não tinha mais dinheiro para se hospedar em pousadas, passou a
dormir na recepção do hospital.
Um senhor que estava acompanhando a mãe no hospital ficou
sabendo da situação de Marvin e imediatamente ofereceu-lhe pouso e
refeições durante todo o período em que o irmão permanecesse
hospitalizado.
De início, Marvin, constrangido, recusou. Mas a insistência daquele
homem foi tão grande e comovente que ele acabou por aceitar o
acolhimento.
Marvin agradeceu profundamente e prometeu que assim que fosse
possível iria recompensá-lo pela atitude tão generosa. O homem respondeu
que só estava fazendo aquilo que gostaria que tivessem feito a ele quando
precisou enfrentar alguma dificuldade. Portanto, não era necessário nenhum
tipo de recompensa.
Passadas as duas semanas de recuperação, Jessé apresentava uma
aparência totalmente diferente de quando chegou ao hospital; estava com
um aspecto plenamente saudável, de alguém que se sentia alegre e
confiante.
Ao chegarem à casa os irmãos abraçaram Jessé e ficaram nesse
abraço por muito tempo. Marvin observava de longe, com um sorriso de
contentamento, tentando segurar a emoção. Na verdade, não resistiu por
muito tempo e logo se juntou aos irmãos para desfrutar daquele abraço
coletivo.
Por algum tempo Jessé precisou fazer acompanhamento médico e
ingerir medicações, porém nunca mais, em toda a sua vida, voltou a
desenvolver tumores. Aquela foi a única vez.
CAPÍTULO 18
O segundo vendaval

M
ais de um ano havia se passado desde a morte de Maria de Lurdes e
só se via sucesso e abundância na vida de Marvin: Estava de
casamento marcado, os projetos para a lavoura haviam dado certo e,
portanto, estava produzindo em escala enorme, algo que ele jamais
acreditou que pudesse ser possível.
Seus irmãos sentiam uma alegria enorme pela fartura. Jessé estava
plenamente recuperado do tumor que tanto o havia preocupado. Já os
vizinhos, que tempos atrás não davam a mínima para Marvin, definindo-o
muitas vezes como bêbado sem futuro, agora o tratavam como uma pessoa
altamente respeitável, um exemplo para os jovens da cidade.
Entretanto, algo terrível, impossível de se supor, aconteceu. E
justamente no melhor momento da vida de Marvin.
Um temporal jamais visto na cidade castigou todas as plantações da
região e Marvin perdeu aquela que seria a colheita de um ano inteiro, a
melhor de todas desde que começara a ser o responsável pelo cultivo. Pela
segunda vez na vida, Marvin se deparava com um temporal que destruíra
tudo que encontrara pela frente.
Porém, a agonia de perder a plantação era insignificante comparada à
dor que sentiu quando chegou a casa.
Abrindo o portão do pátio encontrou Ana Rebeca desacordada.
Correu para socorrê-la, mas era tarde. Um raio a apanhou de surpresa e não
lhe deu a menor chance.
Ana Rebeca, que naquela ocasião tinha apenas 17 anos, estava morta.
Marvin a pegou nos braços, fez tudo que podia para tentar reanimá-la, mas
foi em vão. Desesperou-se, e por 48 horas chorou sem parar.
Doía-lhe na alma pensar que havia quebrado a promessa de que iria
protegê-la até o fim dos seus dias. Não conseguia parar de se culpar. O
remorso era terrível e por dias não conseguiu dormir.
Depois do velório da irmã, Marvin pediu a Deus, se ele existisse
realmente, que o levasse, pois nada mais lhe fazia sentido.
O pedido de morte foi em vão. Percebendo que por obra divina não
iria morrer, tentou o suicídio – também em vão. Além de não conseguir se
matar, acabou machucando por acidente um dos irmãos na tentativa.
Marvin, percebendo que não iria conseguir dar cabo da vida, desistiu
de tentar se matar, porém desistiu de viver.
Por dez meses ininterruptos permaneceu recluso dentro de casa. Não
plantava, não colhia, não estudava. Só saía do quarto para ir ao banheiro.
Comia quando os irmãos lhe levavam algo, pois, do contrário, mantinha-se
sentado em uma cadeira, dentro do quarto, olhando para o teto e para o
chão, de maneira desordenada. Não cortava o cabelo, não fazia a barba,
raramente tomava banho e não pronunciava uma única palavra.
Os irmãos tomaram conta da casa e da lavoura. Mantiveram tudo
funcionando e não deixaram nada faltar para Marvin no seu período de
clausura.
Nos primeiros três meses de reclusão, Verônica comparecia quase
que diariamente à casa de Marvin, porém ele não conversou com ela
nenhuma vez. Apenas a olhava, mas não respondia nenhuma pergunta.
Estava em estado quase vegetativo.
Verônica, atendendo ao pedido da mãe, deixou de visitar Marvin e
seguiu a vida, mesmo com toda a tristeza que sentia por tudo que havia
acontecido.
Quando os irmãos imaginavam que Marvin iria morrer de desgosto a
qualquer momento, ele apareceu na sala da casa, com a barba aparada,
cabelos penteados e banho recém-tomado. Os irmãos o abraçaram e em
seguida entraram em festejo.
Jessé perguntou o que havia acontecido e, então, Marvin respondeu:
– Ana Rebeca conversou comigo no meu sonho. Eu estava há mais
de 300 dias esperando uma resposta dela. Quando tentei me matar – e não
consegui – falei que só iria voltar a me comunicar com esse mundo quando
ela me desse uma resposta de que estava bem. Esta noite ela apareceu no
meu sonho, conversou comigo, disse que estava bem, em um lugar lindo,
calmo e feliz. Mas que estava preocupada comigo. E que queria me ver de
cabeça erguida. Então estou de volta!
Os irmãos sorriram, mais uma vez abraçaram Marvin e, naquele dia,
prepararam um jantar especial para comemorar o regresso do primogênito
da família.
No dia seguinte Marvin tomou um banho prolongado e pediu a
Jeremias que lhe aparasse o cabelo. Vestiu a melhor roupa que possuía e foi
até a casa de Verônica.
Dom Miguel, após levar um susto, decidiu recebê-lo. Após alguns
minutos de conversa e percebendo a situação calamitosa, permitiu que
Marvin conversasse com Verônica, ainda que a contragosto.
Como se não tivesse percebido o passar do tempo, Marvin disse para
sua pretendente que queria retomar os preparativos para o casamento. A
moça, constrangida, desconversou:
– Marvin, você está bem? O que aconteceu nesses últimos dez
meses?
– Simplesmente nada. Eu deixei de existir. Mas agora estou de volta.
Quero recuperar a minha vida, já perdemos muito tempo, não é? –
respondeu sorrindo, imaginando que estava tudo bem.
Nesse instante, apareceu um jovem fardado, alto, bem barbeado,
cabelos curtos e claros e olhos azulados. Chamava-se Breno Marques. Era
um jovem oficial do exército, ocupava o posto de capitão. Ao ver Marvin,
perguntou:
– Quem é esse homem?
Marvin, antecipando-se à Verônica, exclamou:
– Sou Marvin, futuro marido de Verônica! E você quem é?
Breno Marques sorriu timidamente. E olhando para Verônica,
questionou:
– Que brincadeira é essa? Sabe que sou avesso a esse tipo de
sarcasmo.
Verônica, sem saber o que fazer, pediu a Marvin que se retirasse, pois
as coisas haviam mudado bastante nos últimos meses. Marvin insistiu.
Queria uma resposta objetiva.
– Marvin, você se trancou em um quarto por dez meses. Eu o
procurava diariamente, mas você sequer olhava para mim, não trocamos
uma palavra. Pensei que estivesse louco. O Breno apareceu na minha vida e
estamos bem. Por favor, não retorne mais aqui.
– Mas eu estou de volta. Sou eu, Marvin, seu noivo – respondeu ele,
incrédulo com o que estava acontecendo.
– Não insista, Marvin. Acabou! – respondeu Verônica, com tom de
voz ríspido.
Breno Marques entrou na conversa e disse:
– Esse rapaz não é o tal que seu pai disse que ficou louco de tanto
beber cachaça?
Marvin o segurou pelo pescoço e disse:
– Não sei quem você é, mas se não calar essa boca agora vai morrer
sem que eu descubra.
– Solte-o, Marvin. Por favor! – suplicou Verônica, com receio de que
Marvin realmente matasse o rapaz.
Breno Marques não refutou. Apenas passou um lenço no rosto logo
que Marvin o soltou. Em seguida perguntou o que Verônica pretendia fazer.
Ela então, com a voz alterada, exclamou:
– Vá embora, Marvin! Não quero mais saber de você. Nosso noivado
acabou desde que você resolveu se trancar naquele quarto.
Marvin sentiu novamente uma dor profunda. Mais uma vez estava
diante de uma perda. Já havia perdido o pai, a mãe, a irmã e, por duas
vezes, o trabalho de um ano inteiro. Não era justo perder Verônica e ainda
mais para um ser repugnante como aquele tal Breno Marques.
Marvin resolveu se retirar e por alguns dias ficou refletindo sobre o
que fazer para resolver aquela situação.
Sem conseguir encontrar nenhuma opção melhor, resolveu
chantagear Dom Miguel.
Saiu à noite para o bar que Dom Miguel frequentava. Como era de se
esperar, seu ex-futuro sogro estava lá.
Respirou fundo, esperou o espanhol ficar sozinho e, então, foi ao seu
encontro:
– Boa noite, Dom Miguel! – disse Marvin, em tom amistoso.
Dom Miguel, assustado, respondeu:
– O que é isso? O que você quer comigo, rapaz?
– Preciso que resolva a situação. Quero me casar com a sua filha. O
senhor deve dar um fim a esse namoro, noivado, sei lá o que é, que a
Verônica tem como aquele oficial almofadinha, e dizer que estou de
casamento marcado com ela.
Dom Miguel sorriu e em seguida perguntou:
– Se eu discordar disso você vai fazer o quê, garoto?
Marvin já imaginava que a resposta não seria agradável, portanto,
tinha a réplica na ponta da língua. Logo refutou:
– Vou contar dos seus golpes e trazer a esta cidade todas as pessoas
que foram enganadas pelo senhor.
– Marvin, você não tem moral alguma nesta cidade e em lugar algum.
Está com fama de louco. Acha que alguém iria acreditar nessa sua história?
Para todas as pessoas dessa cidade esse boato seria entendido como um
delírio de um maluco que permaneceu por dez meses vegetando, como se
fosse uma planta em um vaso. Essas tais pessoas que você diz que
testemunhariam contra mim será que querem realmente se unir a um
perturbado mental?
Marvin Ficou pensativo. O espanhol seguiu com as palavras:
– Elas seriam vistas como malucas, tal qual você. Duvido que se
tiverem algum juízo vão dar qualquer testemunho contra mim. Então lhe
digo pra esquecer tudo isso, rapaz! Volte para seu quarto e para sua solidão.
Permaneça sozinho lá aguardando a morte, mas pare de perturbar os outros.
Você nunca foi e nunca será ninguém. É um bêbado que enlouqueceu.
Somente isso. Aceite a sua realidade, meu jovem.
Marvin ficou sem resposta naquele instante. Sentiu uma dor profunda
e vergonha de si mesmo. Virou as costas e não disse uma única palavra para
Dom Miguel. No entanto, de alguma forma concordou com o espanhol. De
fato aquela não era uma alternativa adequada para ter Verônica novamente
ao seu lado. Deveria pensar em outra coisa, e, se possível, deixar o espanhol
de fora.
Dom Miguel pediu mais uma dose de bebida, tomou de um único
gole, sorriu, e falou em voz alta:
– Acho que estou livre desse louco de uma vez por todas. Deus é
justo!
Ao chegar à casa, os irmãos tentaram conversar com Marvin. Mas ele
se manteve quieto. E assim foi por mais de um mês, novamente recluso no
quarto.
Jeremias, muito triste ao ver que o retorno do irmão à normalidade
durou pouquíssimo tempo, perguntou a Jessé o que poderiam fazer:
– Não vejo alternativas. Nosso irmão está louco mesmo. Acho que
vai continuar assim até morrer. Vamos continuar cuidando dele enquanto
estiver vivo.
No entanto, dessa vez a reclusão de Marvin era estratégica. Constatou
que chantagear Dom Miguel era inviável, então passou a pensar em outras
soluções. Lembrou que a maior raiva que já havia sentido fora amenizada
quando matara mais de cem animais pertencentes ao Seu Moacir ou quando
deu uma resposta à altura para Dom Miguel através de uma facada.
Concluiu que colocar o “homem-onça” em ação iria lhe fazer bem. E se
sentiria ainda melhor se a vítima do homem-onça fosse aquele panaca de
uniforme militar, cuja arrogância o fazia sentir vontade de vomitar.
Então, por um mês inteiro ficou planejando a morte de Breno
Marques e que essa seria, portanto, uma tarefa para o “homem-onça”. Na
verdade, a última e mais importante tarefa a ser realizada pela lenda da
cidade.
Porém, a roupa preta que utilizara em diversas ocasiões não mais lhe
servia. Por conta própria, confeccionou outra vestimenta.
Dessa vez, colocou feixes dourados e bordou uma frase nas costas:
“O homem-onça está de volta.” Incluiu na vestimenta uma máscara que
lembrava o rosto de uma onça, além de luvas negras adornadas com pelos.
Permaneceu por trinta e cinco dias dentro do quarto, onde dedicava
todo o seu tempo a planejar o retorno do homem-onça e a consequente
morte do oficial. Seu plano era matar o rival e, depois, dar duas alternativas
para Verônica: casar-se com ele e fugir da cidade ou então ir com ele em
uma fuga forçada, que, na verdade, ainda que não tivesse consciência disso,
seria um sequestro.
Saiu do quarto na manhã de um sábado, sem ter dado nenhuma pista
de que estivesse se recuperando.
Jessé e Jeremias estranharam, mas ficaram contentes em ver o irmão
voltando à vida cotidiana.
Marvin cumprimentou os irmãos, mas não falou nada sobre o que
estava pensando ou sentindo, e saiu.
Foi ao encontro de um rapaz, conhecido na cidade por se envolver
em delitos, e pediu que lhe conseguisse um revólver, pois necessitava caçar
o homem-onça. Sabendo da recente fama de louco de Marvin, o rapaz não
lhe deu ouvidos.
Marvin, então, puxou um cordão de ouro, que havia comprado para
presentear Ana Rebeca, e que não conseguira entregar – pois ela morrera
antes de fazer aniversário – e o ofereceu em troca de um revólver.
Assim sendo, Santiago, animado com a oferta, se comprometeu a
conseguir a arma. Disse que em três dias entregaria a encomenda.
Marvin, que naquele instante só conseguia pensar no assassinato de
Breno Marques, aceitou o prazo, mas disse que não poderia demorar mais
do que três dias.
Na noite em que fez a encomenda do revólver, Marvin decidiu vestir
pela primeira vez a nova vestimenta do homem-onça. Gostou da sensação
que ela lhe causou, então pegou a bicicleta, que ainda funcionava muito
bem, e se deslocou para uma chácara onde muito tempo antes havia entrado
para furtar frangos.
Quando entrou na chácara, percebeu a mesma raiva tomando conta
de seu coração como acontecia na época em que era um adolescente. Então,
dessa vez com uma faca, matou três porcos, trinta galinhas, vinte galos e
um gato, que, por puro azar, apareceu na sua frente e o arranhou no rosto
quando ele já pensava em encerrar a matança.
No dia seguinte a cidade estava estarrecida. Falava-se no retorno do
homem-onça e que agora ele estava ainda mais cruel. Marvin, em quase
delírio, deixou escrito no chão: “O homem-onça está de volta.”
Dessa vez, a polícia foi mais cética e compreendeu que se tratava de
um criminoso, provavelmente alguém com distúrbios mentais, e não
propriamente um ser sobrenatural.
A polícia vasculhou a cidade, interrogou diversas pessoas, mas não
descobriu nenhuma pista, nenhum indício sobre o matador de animais.
Marvin voltou para casa e, com todo cuidado, tirou a roupa de
“homem-onça” antes que os irmãos lhe vissem. Colocou as roupas usuais
novamente e entrou na casa. Como já era tarde, os irmãos perguntaram a
Marvin onde ele estava e o que aconteceu para que, depois de um mês
encerrado no quarto, voltasse a sair de casa e retornasse tarde da noite.
Com a cara de quem não estava nada preocupado com os
questionamentos, disse que estava apenas tentando se divertir um pouco.
Os irmãos não entenderam a resposta, mas sabendo da condição
instável de Marvin, optaram por encerrar o assunto.
CAPÍTULO 19
Outra vingança do homem-onça

O
s três dias se passaram. Santiago, no horário marcado, encontrou
Marvin na entrada da chácara. Entregou o revólver e recebeu o
cordão de ouro. Como o cordão era muito mais valioso que aquele
revólver clandestino, o fornecedor ofereceu mais algum dinheiro além da
arma. Marvin disse que não queria, pois dinheiro, naquele momento, era
algo totalmente desnecessário para ele.
Como nunca havia tido contato com um revólver, no máximo com a
espingarda que herdara de Sebastião, Marvin pediu orientações. Santiago
mostrou a ele todo o funcionamento do revólver ,alertando-o, entretanto,
que só o usasse se realmente fosse necessário.
Por último, disse que entre ferir alguém e matar, melhor era matar,
pois todo tiro disparado que acerta alguém, mas que não tira a vida leva a
um desejo incontrolável de vingança de quem foi ferido.
O aconselhado respondeu:
– Não se preocupe, o tiro que vai sair desse instrumento vai ser fatal.
Santiago, que já havia cometido dois assassinatos, não quis perder
tempo com aquela conversa. Na verdade, pensava que a arma seria usada
para suicídio, mas ele não tinha nada a ver com isso. Estava apenas fazendo
negócios.
Marvin, sem medo ou remorso, fez os testes demonstrados por
Santiago. Sentindo-se seguro no manuseio, pegou a arma e a guardou
dentro das calças. Foi para casa e começou a imaginar como se daria aquele
assassinato.
Esperou o dia seguinte para agir, pois sabia que quinta-feira era o dia
que o capitão visitava Verônica. Vestiu-se e saiu ao encontro de Breno
Marques.
Ele sabia que às 21 horas o capitão Breno Marques entrava no corcel
e pegava o caminho de casa. Sendo assim, a execução do plano não seria
nada difícil. Esperaria o oficial sair de dentro da casa e, quando estivesse
abrindo o carro, seria surpreendido com a arma. Marvin mandaria sua
vítima se deslocar até um lugar em que não pudessem ser vistos por
ninguém, de preferência próximo a um banhado, e lá o mataria.
Realizado esse trabalho, ficaria com o corcel do morto para a
execução do plano seguinte. Deixaria o carro escondido em um lugar que
ninguém pudesse encontrá-lo.
Depois iria até a casa de Verônica para propor casamento. Se ela
aceitasse, iria fugir com ela para qualquer lugar, usando o carro de Breno
Marques para a fuga. Porém, se ela não aceitasse de imediato, iria colocar o
revólver na cabeça dela, até que dissesse sim.
Marvin, ao chegar à casa de Verônica, percebeu que o carro estava
aberto, o que facilitava muito seu plano. Entrou no carro e ficou escondido
no banco de trás.
Breno Lopes, a alguns metros de distância e sem perceber a chegada
de Marvin, conversava efusivamente com a noiva:
– Então pegamos os comunistas e mostramos para eles como devem
se portar na frente de brasileiros honrados.
Verônica questionou:
– E como os comunistas devem se portar na frente dos militares?
Ele completou:
– Com medo e obediência.
Após falar isso, começou a rir com extravagância.
Verônica, por seu turno, não achou graça naquilo.
Depois dessa última fala, Breno Lopes olhou para o relógio.
Percebendo que já era tarde, avisou que estava de saída.
Verônica, sem maiores cerimônias, se despediu imediatamente:
– Tá bem! Que Deus lhe acompanhe no retorno até sua casa.
– Amém, minha preciosidade. Que Deus esteja com você e nesta
casa.
Despediu-se de Dom Miguel e de Anastácia e rumou para o carro.
Sacou a chave e abriu o carro, sem nem perceber que havia deixado a
porta aberta.
Marvin parou de respirar para não chamar a atenção do oficial.
Breno Marques não percebeu que havia uma pessoa no carro e deu
partida no veículo. Disse para si mesmo enquanto dirigia, imaginando estar
sozinho no carro:
– Que garota gostosinha. Deve ser virgem. Aquele demente não deve
ter feito nada íntimo com ela, pois é um louco.
Ouvindo aquele homem, Marvin pensou: “Ele que fala sozinho e o
maluco sou eu.”
O oficial continuou:
– Eu que não vou esperar pelo casamento para poder levar esse broto
para a cama. Não consigo resistir. Ela é uma tentação. As prostitutas não
são como ela, não têm aquele rosto angelical e aquela delicadeza. Só de
imaginá-la peladinha fico excitado.
Terminado o monólogo, soltou uma risada e acelerou o carro com
bastante intensidade.
Depois que se distanciaram da casa, Marvin serenamente colocou o
revólver encostado na cabeça do oficial e fez o anúncio:
– Acho que não vai ter o que busca. Primeiro porque ela não é
virgem. Eu já fiz isso. Pode ter certeza de que ela sentiu muito prazer com
esse “louco” aqui. Segundo, mesmo que ela fosse virgem você não teria a
honra de mudar a “mocidade” dela, pois iria morrer antes de ter essa
oportunidade.
Breno Marques levou um susto e quase bateu o carro. Em seguida,
tremendo e gaguejando, perguntou:
– É você, Marvin?
Marvin respondeu:
– Pensou que iria roubar minha noiva, por quem lutei a vida toda, e
ficaria por isso mesmo? Está muito enganado, seu mau-caráter!
– Marvin, por favor, não faça nenhuma besteira. Você está alterado.
Não me mate. – Respondeu o jovem oficial, tremendo de medo.
– Apenas me obedeça. Não faça nada diferente do que eu mandar,
senão vai morrer agora mesmo. Ah, e dirija bem devagar, não tente bancar o
herói.
Quando chegaram ao local planejado, Marvin ordenou que Breno
Marques saísse do carro.
Em frente a um banhado, com o revólver colado na nuca do oficial,
perguntou se ele tinha algum pedido a fazer antes de morrer:
Breno Marques se manteve quieto por alguns segundos, depois
respondeu:
– Quanto desgosto para sua irmã Ana Rebeca. Ela está triste, não
queria que você se tornasse um assassino.
Marvin se surpreendeu com a resposta. Então, aos gritos,
perguntou:
– De onde você conhece minha irmã, seu miserável?
– Conheci-a alguns minutos atrás, quando ela apareceu para mim e
me disse para falar isso para você caso eu tivesse alguma oportunidade.
– Você está mentindo, seu desgraçado! Por isso vou descarregar a
arma em você. Se não tivesse falado essas asneiras iria morrer com um tiro
apenas.
– Não faz diferença alguma morrer com um tiro ou com vinte. Vá em
frente. Eu já não tenho nada mais para falar, tampouco quero fazer algum
pedido antes de morrer – respondeu Breno Marques, a essa altura já
conformado com a morte.
Marvin, com o dedo no gatilho para puxá-lo, enxergou uma luz e
dentro dela viu o olhar triste da irmã, como ele jamais tinha visto. Concluiu
que o oficial não estava mentindo. Sem pensar em nada, jogou o revólver
no chão e saiu andando.
Breno Marques supôs que havia sido salvo por alguma intervenção
divina. Por isso não tentou nenhum revide naquele momento. Entrou no
carro e, em sentido oposto ao de Marvin, seguiu o caminho para casa.
Marvin, por sua vez, rumou para casa, andando muitos quilômetros a
pé, porém não se sentia cansado, não sentia dores, não sentia sede nem
fome, era como se tivesse perdido a capacidade de sentir as fadigas do
corpo. Na verdade, estava perplexo com a situação. Sabia que a irmã, onde
quer que estivesse, estava decepcionada, e isso lhe causava muita tristeza.
Uma semana depois, Marvin recebeu notícias de que o oficial Breno
Marques estava morto. Havia sofrido um acidente de carro fatal. Marvin,
que estava realmente arrependido por planejar a morte do oficial, deparou-
se com um remorso profundo. Não sabia se a morte fora acidental ou se
ocorrera devido ao trauma sofrido naquela noite.
CAPÍTULO 20
Confissões de Marvin

M
arvin foi até o cemitério onde a irmã estava sepultada. Suplicou a
Ana Rebeca que retornasse mais uma vez e lhe dissesse o que fazer,
pois estava angustiado. Tinha vergonha de ter planejado a morte
daquele homem e ele de fato ter morrido, mesmo que não tivesse sido o
responsável direto por aquilo. Ana Rebeca, no entanto, não lhe deu nenhum
sinal.
Entendeu que sua irmã estava muito decepcionada, e por isso tinha
receio de que ela jamais voltasse a se comunicar com ele.
Marvin mais uma vez entrou em reclusão no quarto. Dessa vez ele
não aceitava comida e só estava bebendo água porque não aguentava a sede.
Na cidade, todos entendiam que Marvin havia enlouquecido de uma
vez por todas. Alguns diziam que a loucura era consequência da queda
sofrida na infância. Outros diziam que ele havia sido atacado pelo homem-
onça, que matava animais e enlouquecia os homens. Outros afirmavam que
havia enlouquecido porque perdeu as três pessoas que mais amava na vida.
Outros ainda falavam que enlouquecera de tanto trabalhar na infância.
Entretanto, a verdade é que Marvin estava tomado por tristeza e
remorso profundos. Todos os dias pedia para que Ana Rebeca falasse com
ele, emitisse qualquer sinal que fosse, que conversasse com ele em sonho,
mas nada acontecia. Ela havia sumido de vez.
Marvin, àquela altura, já não nutria esperanças de reencontrar
Verônica, pois não tinha mais capacidade mental nem motivação para lutar
por ela. Tudo o que desejava era que a morte chegasse o mais rápido
possível.
Jessé e Jeremias, que nada sabiam do plano frustrado de Marvin de
matar Breno Marques e de resgatar o relacionamento com Verônica,
continuavam cuidando do irmão com a mesma dedicação de sempre.
Algumas vezes choravam por ver o irmão naquele estado deplorável,
outras vezes imaginavam que ele poderia melhorar, havia dias em que
entendiam que o melhor era mesmo a morte de Marvin, para que toda
aquela tristeza que ele sentia acabasse.
Sabiam apenas que Verônica teve um outro noivo e imaginavam que
esse era o motivo de Marvin ter tido uma recaída, já que dias atrás ele
parecia recuperado.
Mais dois meses se passaram e Marvin agora já estava comendo e
vez ou outra falava com os irmãos, porém não saía do quarto de jeito
nenhum. Os irmãos estavam contentes, pois percebiam que havia uma
evolução em seu estado de ânimo.
Jessé anunciou a Marvin que ele tinha uma visita. Ele respondeu
dizendo que não queria ver ninguém.
– Essa pessoa tenho certeza de que você quer ver, sim. É a Verônica –
respondeu Jessé, com satisfação.
Marvin ficou surpreso com aquela visita inesperada.
– Deixe que ela entre, Jessé, por favor.
Verônica entrou no quarto e Marvin a esperava sentado na cama.
Sorriu, deu-lhe um beijo no rosto e, em seguida, questionou:
– Marvin, por que você nunca me falou nada?
– Nunca falei nada sobre o quê, Verônica? – questionou, sem
entender a pergunta.
– Eu sei que você tentou matar o Breno, mas não teve coragem.
Marvin não pensou em se defender ou negar. Apenas permaneceu
quieto.
Ela prosseguiu:
– São duas coisas que quero saber, na verdade. Por que queria matá-
lo e por que desistiu?
– Respondo se me disser como descobriu que eu queria matá-lo –
devolveu Marvin, olhando firme nos olhos da ex-noiva.
– Ele me contou do atentado. Disse tudo que havia acontecido e que
você no último instante jogou a arma no chão e saiu andando.
– Sim, foi isso que aconteceu. Ele não mentiu. Eu queria matá-lo
porque não estava conseguindo aceitar que você iria se casar com outro
homem. Desisti de atirar nele porque minha irmã me fez mudar de ideia.
– Sua irmã? Essa eu não entendi – questionou Verônica, um tanto
perplexa.
– Sim, ou talvez o espírito dela – devolveu, Marvin, com um pouco
de constrangimento na resposta.
Verônica percebeu que Marvin falava com honestidade. Por um
instante acreditou que o rapaz havia enlouquecido de vez, mas ainda assim
decidiu prosseguir com a conversa.
– Marvin, você poderia estar morto a essa hora. Na verdade, o Breno
me falou que iria matá-lo, pois estava convicto de que você iria tentar
assassiná-lo novamente e antes você morto do que ele. No dia que você
desistiu de matá-lo, ele só foi embora sem revidar porque pensou que tinha
alguma divindade naquele lugar que não queria sangue derramado.
– Isso seria uma dádiva para mim. Não tenho vontade de continuar
vivo. Pena que ele morreu sem ter me matado antes – respondeu Marvin,
sem demonstrar nenhuma satisfação em ter escapado do provável
assassinato.
Verônica permaneceu calada por alguns minutos, observando Marvin.
Ele, por sua vez, também se manteve taciturno, se bem que vez ou outra
pensava em falar alguma coisa sobre o passado e todas as alegrias que
tinham vivido em outra época. Entretanto, o desânimo não permitiu que
iniciasse esse tipo de conversa.
– Bom, era apenas isso que eu queria te falar. Estava com isso na
cabeça. Agora me sinto mais aliviada – encerrou Verônica.
– Está bem. Fico contente em ver você novamente, ainda que meu
estado seja esse deplorável que você está observando.
– Faço votos de que melhore e que se encontre novamente, Marvin.
– Obrigado, mas meus votos são de que eu morra logo.
Verônica olhou para Marvin com um olhar de tristeza e
incredulidade, deixou escorrer algumas lágrimas e depois foi embora.
CAPÍTULO 21
Confissões de Verônica

D
ois meses se passaram desde a visita de Verônica. Marvin continuava
dentro do quarto, sem esboçar nenhuma reação. Entretanto, em um
dia comum ouviu um grito dentro de casa, ao mesmo tempo em que
escutou um estampido de tiro.
Saiu correndo para ver o que tinha acontecido. Era seu irmão caído
no chão. Havia levado um tiro e estava ferido no braço. Marvin, sem
alternativa, teve que sair da reclusão para saber o que acontecia. Então
questionou Jessé sobre o motivo de ter levado um tiro.
O irmão respondeu:
– Me confundiram com o homem-onça. Mas não sou eu. Juro pela
nossa mãe, Marvin.
– Eu sei que você não é o homem-onça, fica calmo. Mas quem fez
isso com você?
– Dom Miguel. Ele disse que eu estava usando a jaqueta que o
homem-onça usava no dia em que lhe deram a facada na barriga.
– Ele disse mais alguma coisa?
– Sim, que voltaria para terminar o serviço. Na verdade, acho que
não me matou porque a arma falhou quando tentou dar o segundo tiro.
Quando ia disparar mais uma vez, surgiu o barulho de um carro. Então saiu
correndo, dizendo que voltaria.
Marvin recordou que havia dado a roupa preta – velha
“companheira” de furtos – para seu irmão quando mandou confeccionar a
nova. Porém, não lembrava que na roupa havia o desenho de um trevo de
quatro folhas alaranjado. Isso tornava a roupa facilmente identificável para
quem tivesse conseguido enxergar a gravura – que, por sinal, ficava ao lado
do bolso esquerdo.
Como Dom Miguel havia prometido que iria matar Jessé, Marvin
decidiu agir antes. Assim, terminaria o trabalho que anos atrás ficara pela
metade.
Passadas duas semanas, Marvin novamente vestiu sua roupa preta
para cometer mais um crime. Já havia perdido as contas de quantos animais
havia matado, mas seria a primeira vez que mataria um homem, já que nas
outras vezes que tentou não conseguiu obter seu intento.
Quando estava abrindo a porta para executar o planejado, escutou os
irmãos conversando:
– Dom Miguel está morto! – disse aos berros Jessé.
– Como assim? – questionou Jeremias, intrigado.
– Acabei de ouvir diretamente da boca do Seu Manoel quando fui à
venda comprar comida. Dizem que foi um acidente. Ele caiu da escada, pois
estava completamente bêbado, e errou o degrau quando estava subindo o
último lance. Mas há suspeitas que foi ataque do homem-onça.
– Caramba, que morte estúpida, mas melhor assim, pois acabaria
voltando aqui mais cedo ou mais tarde! – intrometeu-se Marvin, com um
raro sorriso no rosto.
Jessé, por seu turno, se sentia aliviado, pois morto Dom Miguel não
poderia cumprir o prometido.
Marvin também sentiu um grande alívio, pois não decidira matar
Dom Miguel por ódio, estava apenas querendo proteger o irmão de ser
assassinado injustamente.
Verônica, que pouco meses atrás havia perdido o noivo, perdera
também o pai.
Depois do enterro, decidiu procurar Marvin.
Ela entrou no quarto sem avisar ninguém. Marvin levou um susto e,
antes de qualquer cumprimento, falou de imediato:
– Não matei seu pai, por mais que eu tivesse motivos pra isso – disse
antes mesmo de Verônica falar qualquer coisa, supondo que seria acusado.
– Não desconfio de você, não vim aqui por esse motivo.
– Então o que traz você?
A moça fez um sinal de quem pede silêncio e perguntou:
– Sabia que depois da morte de Breno Marques eu falei ao meu pai
que queria voltar a namorar você e ele não permitiu?
– Eu não sabia disso. Fico surpreso que mesmo depois de tudo o que
aconteceu você ainda tenha vontade de ficar comigo – respondeu Marvin,
com um olhar de surpresa e contentamento ao mesmo tempo.
– Marvin, eu tentei te esquecer, mas não consegui. Eu sempre te quis!
Mesmo quando você permaneceu recluso neste quarto por dez meses eu não
conseguia parar de pensar em você.
Marvin, surpreso com o que acontecia dentro de si, percebeu que
estava sentindo uma alegria que ele não experimentava havia muitos anos.
Por um momento toda tristeza, angústia e vontade de morrer se
dissiparam.
Chorou.
Abraçou Verônica e não a soltou por alguns minutos.
– Mas o que você quer me dizer com isso, Verônica?
– Que estou disposta a retomar nosso namoro, noivado, qualquer
coisa...
– Estou feliz, na verdade não consigo acreditar no que está me
dizendo.
– É a pura verdade. Quero ficar com você e, dessa vez vamos superar
tudo, Marvin. Não há tantos obstáculos assim, depende só de nós.
– Então está decidido. Vamos retomar nossas vidas, com todo amor
que sempre tivemos um pelo outro – replicou Marvin, percebendo que a
vontade de viver havia retornado com toda força.
◆ ◆ ◆

Verônica decidiu consultar a mãe sobre o retorno do noivado.


Anastácia, como se pode presumir, se opôs, mas Verônica não lhe deu
ouvidos. Disse que aturou o pai por muito tempo e que agora nada iria lhe
impedir de ter a vida que sempre quis ao lado do único homem que amou de
verdade.
Anastácia, que estava em outro momento da vida, entregue a uma
nova paixão, decidiu que não tentaria impedir a filha de seguir com aquela
ideia, embora acreditasse que a relação entre eles não tinha a menor
possibilidade de prosperar.
Passados alguns meses desde que reataram, Marvin resolveu pedir
Verônica em casamento. Ela, demonstrando uma alegria estonteante, disse
que sim, mas que precisava contar-lhe, primeiro, algumas coisas muito
importantes.
Se Marvin, depois de ouvi-la, ainda quisesse sustentar o pedido,
poderiam naquele mesmo dia marcar a data do casório junto ao Padre
Bentolino.
Marvin disse que estava disposto a ouvi-la e que nada iria fazer com
que mudasse de ideia sobre o casamento.
Verônica ficou um pouco mais aliviada. Bebeu um copo de água,
respirou fundo e começou a falar:
– Fui eu que matei Dom Miguel, meu pai.
Marvin, incrédulo, quis saber o motivo:
– Por que razão você matou o seu próprio pai?
– Porque ele iria matar você. Meu pai descobriu que você era o
homem-onça.
Marvin olhou sério nos olhos de Verônica, mas não a contrariou.
Pensou que ninguém no mundo soubesse que ele era o lendário homem-
onça. Como não tinha muito o que fazer, seguiu ouvindo o que ela dizia.
– Ele descobriu através de mim que seu irmão havia recebido de você
a roupa preta. Então ligou tudo. No entendimento dele você era maluco, e
um maluco que tinha motivos pra matá-lo.
– Realmente eu sempre tive motivos para matá-lo, ele não estava
errado quanto a isso – interrompeu Marvin.
– Antes de eu revelar a verdade, ele chegou à casa aos berros,
dizendo que a arma tinha falhado, mas que já estava voltando com outra
espingarda para terminar o serviço. Eu então perguntei quem ele iria matar,
e ele respondeu que tinha descoberto quem era o homem-onça.
– E você disse o que a ele? – perguntou Marvin, com um tom de voz
surpreendentemente sereno.
– Perguntei quem era o homem-onça, e ele me falou nestas palavras:
“O Jessé, irmão daquele maluco do Marvin. Aliás, são todos malucos
naquela família, até aquela menina que morreu com o raio devia ser biruta
das ideias.”
Marvin olhou com ar de incredulidade para Verônica quando a ouviu
repetir as palavras cruéis com que Dom Miguel se referira a Ana Rebeca.
A confidente seguiu com o relato:
– Eu me senti na obrigação de contar a ele que o homem-onça era
você e que seu irmão havia apenas ficado com a sua roupa, que
provavelmente não te servia mais.
– E ele não questionou como você sabia que eu era o homem-onça?
– Eu disse que você havia me contado quando éramos noivos, mas
que eu não falei nada, pois não queria que acontecesse uma tragédia entre
sogro e genro. Meu pai disse que iria te matar, mas ele tinha consciência de
que você era mais esperto, mais malicioso e mais resistente que seus
irmãos, e, por causa disso, precisaria de um tempo para organizar uma
emboscada. Então nesse meio-tempo eu decidi matá-lo antes que ele viesse
a fazer isso com você.
– E ninguém desconfiou que foi você que o matou? – perguntou
Marvin.
– Não, pois supostamente foi um acidente doméstico. Caiu da escada
em uma bela noite que chegou bêbado em casa. Bêbados vivem cometendo
acidentes, pois se arriscam, perdem a noção das coisas... E ninguém precisa
saber que eu ajudei nessa queda, não é? – relatou Verônica, deixando
escapar uma risada um tanto sombria.
– Mas ele morreu fácil assim na queda da escada?
– Olha, não sei se foi com a queda da escada ou com as três
marretadas que desferi na cabeça dele quando estava caído no chão.
– Você deu três marretadas nele?
– Sim, pois ele caiu da escada, mas estava com os olhos abertos,
consciente. Sabe aquele ditado: “vaso ruim não quebra?” Pois é, se encaixa
perfeitamente a ele. As marretadas serviram pra confirmar que eu não teria
surpresas com aquele desgraçado.
Marvin concordou com a cabeça. Em seguida fez outra pergunta:
– E desde quando você sabe que eu sou o homem-onça?
Eu sempre soube, desde aquela conversa que tivemos logo que nos
conhecemos. Notei que falava olhando para o chão sobre o tal homem-onça,
como se denunciasse a si mesmo.
– Mas isso não confirma nada, Verônica. Eu simplesmente poderia
estar sem vontade de falar sobre atentados.
– Eu sei disso, mas tem outra coisa. Eu percebi que a sua voz era
praticamente igual à do homem-onça, quando ele me disse o motivo de ter
dado uma facada no meu pai. A voz era mais grossa um pouco, mas era a
sua voz.
Nesse instante, Marvin percebeu que o homem-onça não era tão
infalível quando ele equivocadamente supusera. Mas agora isso não tinha
nenhuma relevância. Então continuou perguntando:
– E por que não me denunciou?
– Porque o homem-onça nunca matou pessoas, apenas alguns
animais. Sempre foi inofensivo. O homem-onça é apenas uma pessoa triste,
que só viveu desgraças. Trata-se de alguém que alivia suas dores
exterminando galinhas e porcos, mas que nunca teve coragem de matar uma
pessoa.
– O homem-onça teve coragem de matar seu pai, só que errou a
facada – disse Marvin, com uma certa ironia na fala.
Verônica fez que não ouviu o comentário e prosseguiu:
– O homem-onça é apenas um rapaz sofrido, que fica meses e meses
escondido dentro de um quarto, pois não tem coragem de enfrentar seus
problemas.
Marvin pensou em se defender sobre aquela última consideração,
mas percebeu que, no fundo, era verdade. Decidiu sair daquele assunto e fez
um breve comentário:
– Você optou por mim e não pelo seu pai. Estou surpreso.
– Você, embora problemático, é uma pessoa boa. Meu pai era um
homem desonesto, ganancioso, violento... Ele me entregou para uma tia
tirana quando eu era apenas uma menina indefesa. Ele me entregou porque
ela prometeu que iria lhe pagar 500.000 pesetas por ano pra ficar comigo.
Eu acabei sendo uma escrava daquela mulher. Minha infância foi uma
época perdida por causa da ganância do meu pai.
– Isso explica a escolha – disse Marvin, com tom sarcástico.
Verônica olhou com bastante seriedade nos olhos de Marvin e
continuou:
– Você merecia viver, ele não. Acha que eu não sei também que ele
foi o responsável pelo golpe que você levou? Eu sei de tudo. Quando você
me contou sobre a desonestidade da qual foi vítima eu sabia que meu pai
era o causador daquilo tudo.
– Até hoje essa história me deixa revoltado – replicou Marvin, com
tristeza.
– O pior de tudo foi você ter pedido dinheiro a ele pra dar de comer a
sua família e não levar nenhum centavo.
Marvin concordou com a cabeça, lançando um olhar triste em direção
a Verônica.
A moça seguiu falando:
– Ele ainda teve a safadeza de falar que havia saldado tudo que lhe
devia, uma quantia muito alta, mas que você havia perdido tudo nas
noitadas.
– Eu imagino o quanto deve ter sido difícil pra você ouvir essas
coisas sabendo o que tinha acontecido de verdade.
Verônica fez um sinal de positivo com a cabeça e seguiu:
– Quer saber o que aconteceu com o capitão Breno Marques?
Marvin fez uma expressão de surpresa, passou a mão na testa, que
estava suada, e respondeu:
– Sim, estou muito curioso.
– Ele era tão repugnante quanto meu pai. Tive que matá-lo também.
Marvin ficou perplexo. Pediu que ela relatasse o assassinato.
– Bom, você não teve coragem e eu tive que fazer o serviço por você.
Eu sabia que você estava lá e armado. Vi você escondido dentro do carro,
imaginei o que pretendia fazer e, por isso, o acobertei. Por duas vezes
Breno quis ir até o carro pegar alguma coisa, mas eu insisti que ficasse lá
comigo.
Marvin ficou extremamente surpreso. Então replicou com doçura na
voz:
– Percebo que você esteve comigo esse tempo todo.
– Sim, mas me deixa continuar.
– Desculpe. Continue.
– Pensei que dessa vez o homem-onça iria ter coragem, mas nada
aconteceu. Não aguentava mais aquele oficial. Ele era um inútil e, por
vezes, tentou me violentar. Era um homem que, caso casasse comigo,
tornaria minha vida um inferno para sempre. Não queria me casar com ele,
mas sabia que meu pai não iria aceitar minha recusa.
– Eu sabia que ele era uma pessoa sem caráter, mas ainda assim não
me arrependo por não tê-lo matado.
– Você iria resolver tudo pra mim, mas foi medroso. Então tive que
resolver por conta própria. Foi simples. Arrumei um veneno com a esposa
de um outro militar, um colega do Breno. É um veneno que eles utilizam
para matar os opositores fazendo parecer que foi morte natural.
– Que opositores? – interrompeu Marvin.
– Não sei se você está sabendo, mas desde o ano de 1964 o Brasil
está vivendo sob uma ditadura militar e todas as pessoas que se opõem a
esse regime acabam sofrendo represálias, como tortura e, em alguns casos,
a morte. A situação dos opositores já foi bem pior, mas ainda tem gente
morrendo nas mãos desses bárbaros.
– Eu sei disso, sim. Não faz muito, na capital, um homem de farda
me chamou de vagabundo, arruaceiro, pois eu estava saindo de um bar que
dizem ser de encontro de comunistas. Eu não tinha a menor ideia do que era
“comunista” e menos ainda que o bar era frequentado por comunistas. Só
havia entrado no lugar pois precisava comer e lá havia sanduíches por
preços mais modestos.
– Confundiram você com um comunista? – perguntou Verônica,
curiosa com aquele relato.
– Sim, e me chamaram de vagabundo. Eu, que trabalho sem parar
desde os 6 anos de idade.
– Realmente inacreditável, Marvin. Mas o que você estava fazendo
na capital?
– Estava passando uns dias no hospital, pois meu irmão estava se
recuperando de uma cirurgia.
– Ah sim, eu recordo dessa época. Foi muito difícil. Mas o que
aconteceu depois que a polícia o confundiu com um comunista?
– Acabei sendo levado para uma delegacia e somente depois de quase
dezoito horas me liberaram.
– Dezoito horas, Marvin? Que absurdo.
– Sim. Ele me liberaram depois de perceber que eu não fazia parte de
movimento revolucionário algum, porém ainda assim levei algumas
cacetadas nas costas e nas pernas.
– Que covardia desses hipócritas. Fico revoltada com isso.
– Sim, mas continue com o relato sobre o envenenamento, por favor.
– Eu disse a essa mulher que conhecia uma professora que liderava
um grupo de comunistas que pretendia tomar a capital do estado e depois a
capital do Brasil, e que essa mulher era muito perigosa. Mas que, por sorte,
ela confiava em mim, então poderia resolver a situação, desde que tivesse
algo eficaz pra dar a ela. A esposa do militar então me ofereceu o veneno e
me explicou como usá-lo.
– Interessante. Creio que inventou essa história pra ter com o que
matar seu pretendente.
– Sim, exatamente isso. Planejei tudo, detalhe por detalhe. Então,
minutos antes de o Breno partir, ofereci um café e ele inocentemente
aceitou. Coloquei uma quantidade generosa de veneno nesse café. Ele
tomou tudo e poucos minutos depois entrou no carro e saiu.
– Não teve medo ou remorso?
– Nada, nem medo nem remorso. Queria apenas saber se ele morreu
do veneno ou do acidente, mas obviamente quando o carro bateu no muro
ele já estava inconsciente.
– Mas as averiguações não descobriram nada sobre o fato de ele ter
sido envenenado?
– Não. Por sorte as perícias no Brasil são muito superficiais.
Provavelmente não fizeram nenhuma autópsia eficiente. Não há tecnologia
pra isso.
– Torço para que um dia esses assassinatos possam ser desvendados
com mais facilidade. Imagina o que deve ter de assassino por aí que a gente
nem imagina...
– Sim, um dia vamos ter técnicas mais eficazes pra colocar os
bandidos na cadeia. Espero que esses militares sejam condenados, pois
matam as pessoas do jeito que bem entendem e ninguém fica sabendo de
nada.
– Sim, mas por favor siga com o relato sobre o oficial – solicitou
Marvin, educadamente.
Verônica, como quem tentava justificar o ocorrido, falou:
– Mais uma vez tive que me adiantar, pois ele iria matar você logo,
logo. Breno estava com medo de que você fizesse isso antes e, então, o seu
assassinato iria acontecer em duas ou três semanas, no máximo. No final,
como sempre, sobrou pra mim.
Marvin ficou sem reação, suspirou, mas não teve forças para falar
qualquer coisa. Verônica, com um ar sarcástico, continuou o relato:
– Ah, lembra da prostituta que você, bêbado, andava pra cima e pra
baixo?
– Vai me dizer que...
– Pois então, eu adiantei a ida dela para o inferno. Na verdade não era
a minha intenção, mas acabou acontecendo.
– Como assim?
– Ela foi até a minha casa. Primeiro contou toda a história do caso
que vocês estavam tendo. Ela disse que era pra eu sumir da sua vida, pois
eu não era o tipo de mulher que você queria. Disse que o “Marvinho”
gostava de mulher fogosa, como ela.
– Ela teve a coragem de falar isso na sua cara?
Sim, e eu respondi que se não ficasse com você ela também não
ficaria. Ela, com desleixo total, disse que a única forma pra afastá-la de
você seria encomendando a morte dela. Aquilo mexeu comigo. Não
demorou para que eu a agarrasse pelos cabelos e lhe enchesse de tapas na
cara.
Marvin ficou imaginando o ocorrido e achou graça, deixando escapar
um breve sorriso de canto de boca. Verônica, por sua vez, continuou o
relato:
– Mas ela, Marvin, revidou. Então puxei uma faca que havia alguns
dias carregava comigo e enfiei na barriga dela, exatamente como você fez
com meu pai, com a diferença de que eu não fracassei. A morte dela se
consumou em poucos minutos.
– Foi por isso que ela sumiu do nada. Agora consigo entender.
– Sim. Quando percebi que ela estava morta, dei um jeito de escondê-
la em um lugar que ninguém pudesse encontrá-la. Depois peguei o carro do
meu pai escondido, por sorte eu havia aprendido a dirigir na Espanha com
um amigo, e levei o corpo da prostituta para bem longe. Joguei-o em um
banhado e saí de lá sem que ninguém me visse.
– Você falou sobre isso com a Dona Cátia?
– Não. Acredito que a dona do bordel deve ter desconfiado que
alguém acabou com a vida da “funcionária” dela. Então, para não se
incomodar, inventou essa história de que a tal Lígia voltou para sua cidade
natal para cuidar dos filhos.
– Provavelmente a Lígia foi encontrada e enterrada como indigente –
disse Marvin, refletindo.
– Não tenho dúvidas disso, já que eu queimei todos os documentos
dela.
– Verônica, você é realmente uma mulher surpreendente. Jamais eu
iria imaginar que pudesse ter feito isso tudo. Mas o que ganhou cometendo
todos esses crimes?
– Marvin, você não é nenhum tolo, acabou de ouvir tudo o que eu
disse. Sabe que para todos esses casos eu tive meus motivos. Não matei
nenhum inocente. De qualquer forma, não posso negar que senti uma
sensação agradável quando eliminei essas pessoas. Talvez tenha sentido o
mesmo prazer que você sentia quando matava galinhas e porcos.
Marvin ficou muito surpreso com tudo que ouvira. Estava perplexo.
Mas não sentia medo ou revolta, pelo contrário, o sentimento por Verônica
parecia que havia florescido ainda mais. Pela primeira vez ele percebia que
Verônica o amava de verdade. E que fora capaz de matar três pessoas por
causa dele.
Em posse de todos os acontecimentos mais instigantes sobre
Verônica, resolveu fazer o último questionamento:
– Tem mais alguma coisa confidencial para me contar?
– Lembra que eu morava com uma tia na Espanha que me
maltratava?
– Sim, você comentou sobre ela comigo.
– Essa tia não queria deixar eu voltar para o Brasil de jeito nenhum.
Queria que eu continuasse a ser a “escrava” dela por toda a minha vida.
Então, um dia, com ajuda de uma amiga, peguei-a pelos cabelos e coloquei
a cabeça dela dentro de um tanque. Baixava a cabeça dela por alguns
minutos e, quando percebia que a velha estava quase morrendo sufocada,
trazia-a de volta. Fiz isso por algumas horas seguidas. Depois deixei a
velhota amarrada na própria cama, sem comida e sem água por dois dias.
Durante esse período dei algumas surras nela de chicote, nada que ela não
tivesse feito comigo antes também.
– Mas isso é o mesmo que tortura, não?
– Sim, e essa tortura tinha como objetivo fazer com que ela me
mandasse de volta para o Brasil.
– Funcionou?
– Sim. Eu disse que aquilo que ela estava passando só teria um fim
quando ela morresse ou quando me mandasse de volta para os meus pais.
Ela não quis medir forças, até porque já estava bastante debilitada. Então
resolveu ceder. Liberta das cordas, me deu dinheiro para comprar a
passagem e mais um extra para despesas com a viagem.
– Alguém soube do ocorrido?
– Acredito que não, pois a velha durou apenas seis meses depois
disso. Morreu sozinha. Dizem que foi um derrame cerebral, sem que
ninguém chegasse à casa dela a tempo de socorrê-la.
Marvin ficou ainda mais perplexo, porém concordou com a atitude da
moça, pois entendeu que aquela era a única forma de conseguir se livrar da
“escravidão” imposta pela tia.
Depois de toda a conversa, decidiram que iriam se casar o mais breve
possível.
CAPÍTULO 22
A gestação

M
arvin e Verônica se casaram três meses após as revelações. Como
Verônica havia herdado uma pequena fazenda de Dom Miguel,
resolveram morar lá. A mãe de Verônica se casou novamente seis
meses depois da morte de Dom Miguel e continuou morando na mesma
casa com o filho e o novo marido.
Jessé e Jeremias continuaram morando na chácara. Entretanto,
Marvin raramente os visitava. Assim, acabou perdendo quase por completo
o contato com os irmãos.
Marvin inicialmente pensou que Verônica fosse acabar causando
problemas, já que ela havia matado três pessoas, sendo que uma delas era o
próprio pai. No entanto, o tempo passou e nada de ruim aconteceu. O
casamento se consumava e eles tinham uma vida normal. Marvin, talvez por
tudo que já tinha vivido, foi se tornando cada vez mais pacato e silencioso.

Tiveram grandes evoluções na lavoura e, assim, a vida deles era


próspera e com bastante fartura.
Um dia após o jantar Verônica questionou Marvin se ele pensava em
ser pai. Marvin disse que que não tinha essa pretensão. Havia sido uma
espécie de pai dos três irmãos e se saíra muito mal, tinha vergonha da
maneira como lidara com a incumbência.
Verônica refutou:
– Você se saiu bem na criação dos seus irmãos. Não teve culpa pelas
coisas que se sucederam. Além disso, quando recebeu a missão do seu pai
tinha apenas 13 anos de idade.
– Pode ser, mas não quero essa responsabilidade de novo. Foi muito
difícil aquela época.
Verônica tinha algo pra revelar ao marido, mas diante do desânimo
apresentado se sentiu desencorajada.
– Por que você falou sobre esse assunto?
– Nada não, só por curiosidade.
– Tá certo, então. Mas se tiver alguma coisa que queira me falar,
estou disposto a ouvir.
– Tá bem, Marvin. Quando eu tiver alguma coisa pra falar eu te
aviso.
A conversa terminou nesse momento e Marvin ligou a TV para
assistir às notícias.
Passaram-se alguns meses e Marvin surpreendeu a esposa vomitando
no banheiro. Então questionou:
– Você está bem? Posso ajudar?
– Estou um pouco enjoada.
– Enjoada? Nunca vi você sentir enjoos. Tem alguma coisa que você
quer me dizer e está me escondendo?
Verônica olhou firme nos olhos de Marvin e respondeu:
– Sim, mas acho que você não vai gostar de saber.
– Diga, Verônica. Nessa minha vida eu já tive tantas notícias ruins
que provavelmente essa será mel na chupeta comparada às outras.
Verônica não gostou daquelas palavras e respondeu:
– Se você fosse uma pessoa normal essa notícia deixaria você feliz,
não seria algo que comparado aos seus traumas é menos doloroso.
Marvin refletiu. Percebeu que havia sido insensível.
– Desculpe, não quis ser duro com você. Às vezes as lembranças do
meu passado me fazem falar o que não devia.
– Tudo bem. Eu entendo, mas tente não ser tão negativo. Nós
superamos muitas coisas. O que aconteceu, passou, Marvin. Deixe os
fantasmas no passado.
– Tá bem. Mas o que você tem pra me falar?
– Estou grávida, vamos ter um filho.
Marvin já imaginava que a notícia seria aquela. Então sorriu e
respondeu:
– Parabéns. Espero que esse menino ou menina tenha uma vida bem
diferente da minha. Vou fazer o que estiver ao meu alcance pra que ele
tenha uma vida boa.
– Nós vamos dar uma vida que não tivemos pra ele. Será uma criança
muito feliz.
Ao final do diálogo, se abraçaram. Verônica deixou escorrer
algumas lágrimas. Marvin, por sua vez, manteve a expressão costumeira.
Com o tempo o homem começou a se sentir mais confortável com a
ideia de ser pai. No oitavo mês de gravidez disse que estava contente com o
fato de ter um filho e que isso iria ajudá-lo, quem sabe, a se tornar uma
pessoa menos desanimada.
Mais um mês se passou e Verônica entrou em trabalho de parto. Foi
levada por Marvin – que àquela altura já havia adquirido um carro, um
chevette 1979 – à maternidade mais próxima.
Verônica não teve problemas com o parto. Nasceu um menino
saudável, bonito, pesando quase quatro quilos, esboçando um choro contido
no instante em que foi retirado do ventre da mãe.
Marvin, quando foi informado pelo médico de que o seu filho havia
nascido, sorriu e agradeceu.
No mesmo dia foram para casa. Estavam bastante alegres com aquela
pessoa que se integrava à vida de ambos.
– Marvin, você tem ideia de nome para o nosso filho?
– Eu não. Pensei que você já tivesse escolhido o nome do
moleque.
– E eu pensei que você tivesse alguma ideia.
Marvin pensou por um instante, depois propôs:
– Ele pode se chamar Sebastião...
– Sebastião? – questionou Verônica, surpresa com aquele nome, já
em desuso para a época.
– Era o nome do meu pai.
– Verdade. Seria uma justa homenagem. Então que se chame
Sebastião.
– Sebastião dos Reis.
– Sebastião dos Reis Neto.
CAPÍTULO 23
A lenda do homem-onça

S
em que percebessem, seis anos se passaram desde o casamento e,
nesse período, Marvin e Verônica tiveram mais dois filhos:
Fernando, o filho do meio, e Maria Rebeca, a caçula, cujo nome
escolhido foi em homenagem à falecida tia Ana Rebeca.
Em um momento de distração, o filho mais velho, Sebastião,
perguntou a Marvin:
– Pai, você acredita que existe o homem-onça?
Marvin, surpreso com a pergunta, respondeu:
– Não, filho, isso é crendice popular.
Sebastião continuou:
– Mas o pai do Pedro, meu colega da escola, disse que o homem-
onça foi visto por centenas de pessoas.
– O que mais disseram sobre o homem-onça? – perguntou Marvin,
sem demonstrar muito interesse no assunto.
– O Pedro disse que o homem-onça matou milhares de animais e até
algumas pessoas. Falou que ele tem poder para causar grandes vendavais
também, se quiser.
Marvin, que não gostava muito de conversar sobre assuntos que
lembravam o passado, respondeu:
– Não existe esse tal de homem-onça. Isso é conversa de quem não
tem o que fazer. E chega de conversa por hoje.
O filho ficou quieto, mas tinha convicção de que o pai estava
enganado. Pensava que o homem-onça existia e que um dia retornaria para
assombrar as pessoas da cidade, exatamente como na época em que seu pai
era jovem.
No entanto, o homem-onça havia se aposentado de vez e nunca mais
retornara à cidade. Ninguém, com exceção de Verônica, jamais soube quem
era o ser lendário.
Chama a atenção o fato de que alguns filmes e até mesmo uma
minissérie foram produzidos tendo como protagonista o homem-onça. Um
escritor de renome acabou por escrever um livro cujo título era: Homem-
onça, mito ou realidade? O livro, no entanto, não tirou essa dúvida, ainda
que seu título implicitamente desse a impressão de que tal dúvida seria
sanada. A resposta, conforme explanação pelo autor no último Capítulo,
ficava a critério da crença de cada pessoa.
Marvin, no entanto, nunca assistiu a nenhumas das produções,
tampouco leu o livro.
Certa vez, ao ser questionado pela esposa se queria ir ao cinema
assistir ao filme A lenda do homem-onça, respondeu que a história do
homem-onça jamais seria contada da maneira certa, pois nenhuma pessoa
tinha elementos suficientes para descrevê-la corretamente, e, por outro lado,
se a contassem da maneira como o povo da cidade aprendeu a acreditar,
seria uma história tão interessante quanto a história do lobisomem. Sendo
assim, não enxergava motivos para assistir ao filme. Verônica pensou por
alguns instantes, mas acabou por concordar com o marido.
CAPÍTULO 24
Os anos de estabilidade

O
período do casamento foi totalmente diferente para Marvin se
comparado a tudo que já tinha vivido até então. Se antes se deparava
o tempo todo com a fome, com desgraças, mortes inesperadas e
confissões reveladoras, agora sua vida era estável. Nada de ruim nem de
bom chegava até ele.
Não ocorreram mais tragédias. Ele não perdeu ninguém próximo, não
aconteceram vendavais e suas colheitas eram perenes e abundantes. A fome
nunca mais havia chegado perto. Marvin não aventava mais a possibilidade
de se manter recluso no quarto ou sair matando animais para amenizar a dor
ou o ódio.
No entanto, ele desejava profundamente que Ana Rebeca aparecesse
para conversar, falar como estava e dizer se estava satisfeita com a vida que
ele estava levando.
Um dia, antes de Marvin sair para trabalhar, Verônica comentou que
no dia seguinte iriam completar oito anos de casamento. Marvin respondeu:
– Legal.
Verônica apenas sorriu, mas não disse nada.
Marvin não estava fazendo pouco caso da data, apenas adquirira o
hábito de falar pouco nos últimos anos. Não interagia a menos que fosse
consultado. Não reclamava de nada, mas também não demonstrava
qualquer satisfação.
Verônica se acostumou com o jeito de Marvin. Jamais reclamou, até
mesmo quando os filhos questionavam o motivo de o pai ser tão calado.
Marvin continuava com a hábito de acordar às 5h30 da manhã.
Tomava café preto sem açúcar, comia um pedaço de pão sem manteiga e se
dirigia apressadamente para a roça. Executava as tarefas na lavoura e
retornava à casa para almoçar. Descansava na rede por meia hora e depois
voltava para a roça. Quando chegava a noite, regressava para casa.
Passava o tempo que não estava na roça em frente à TV, assistindo a
telejornais e novelas até o horário de jantar. Depois disso se deitava para
dormir.
Ainda que estivesse vivendo uma situação confortável, desfrutando
de uma família constituída e mesa sempre farta, Marvin não se sentia tão
melhor do que na época da miséria. Mesmo com o passar dos anos, não
havia conseguido superar a dor da perda de Ana Rebeca. Todas as noites
lembrava da irmã e ficava por horas suplicando, em voz baixa, para ela
retornar e conversar com ele.
Marvin não bebia mais. Não que estivesse preocupado com os efeitos
da bebida, mas não sentia vontade. Sua roupa preta de homem-onça fora
incinerada por ele mesmo um pouco antes do casamento. Era praticamente
impossível atribuir àquele homem pacato três planejamentos de assassinato
de inimigos.
Marvin acreditava que até a chegada da morte a sua vida seria aquela.
Que as surpresas haviam passado e que a vida iria seguir um caminho
trivial. Uma vida sem altos nem baixos. E estava conformado com a ideia
de que Ana Rebeca não regressaria mais para conversar com ele.
No entanto, de forma inesperada, Marvin mais uma vez se deparou
com um revés. Verônica contraiu um vírus grave. No início parecia que não
era nada preocupante, mas a doença começou a se agravar.
Havia sete dias que que Verônica não conseguia levantar da cama.
Quando concluíram que a situação era de fato grave, correram para o
hospital mais próximo. Entretanto, foram orientados, depois de um
atendimento breve, para que Verônica se tratasse em casa, pois a moléstia
iria embora depois de alguns dias.
Marvin, em meio às atividades na lavoura, foi surpreendido pelo
filho, que exclamou:
– Papai, venha ver a mamãe, ela está passando muito mal.
Marvin entrou no quarto e uma imagem familiar surgiu diante dos
seus olhos: Verônica estava pálida, magra, com olhos inertes e quase sem
forças para se mexer. Exatamente igual ao pai e a mãe em seus leitos de
morte.
Verônica, trêmula, disse:
– Marvin, posso sentir, esse é o meu fim. Eu dei o meu melhor.
Infelizmente, agora novamente é só você.
– Não, Verônica, isso não é verdade. Você vai se recuperar. Não faz
sentido você, tão jovem, partir assim.
– Meu amor, eu sei que vou morrer. Sinto a presença da morte. Estou
fazendo um esforço enorme para aguentar mais alguns minutos. Então, por
favor, me ouça.
Marvin encheu os olhos de lágrimas, esboçou uma expressão triste e
pediu à esposa que continuasse a falar:
– Eu amei você a vida toda, desde o primeiro dia que te vi. Não teve
um único dia que não pensei em você com carinho, amor e ternura.
Marvin, com lágrimas nos olhos, disse que sentia o mesmo por ela.
Verônica continuou:
– Preciso que me prometa que vai cuidar dos nossos filhos da mesma
forma que cuidou dos seus irmãos. Com o mesmo amor, dedicação e afeto.
Você me promete?
Marvin, soluçando e com o rosto tomado de lágrimas, respondeu:
– Eu prometo, Verônica. Eu prometo.
– E você sabe como vai fazer para cuidar dos nossos meninos?
– Vou fazer o que eu sempre fiz na vida, primeiro sobreviver pra
então poder cuidar daqueles que dependem de mim.
Despediram-se com um beijo leve, e em seguida Verônica fechou os
olhos para nunca mais abri-los.
Marvin chorou mais uma vez. Não entendia por que razão todas as
pessoas que ele amava o deixavam tão cedo.
Superadas as dores pela morte da esposa, deparou-se com a triste
realidade de que mais uma vez teria a responsabilidade de cuidar de três
crianças sem que tivesse se preparado para tal situação.
Pensou então que a vida rodava, rodava, mas sempre voltava para o
mesmo lugar.
No velório, se despediu da esposa. Disse que a amava e que a amaria
por toda a vida. Depois iniciou seu período de reflexão.
CAPÍTULO 25
O peso do mundo sobre as costas

M
arvin estava arrasado. Lembrou do que fez nas outras vezes para
lidar com as perdas. No entanto, nenhuma das soluções fazia sentido
nesse momento, pois já não tinha idade para sair por aí matando
galinhas e porcos vestindo uma roupa preta. Também não poderia ficar
meses e meses recluso no quarto, pois tinha filhos que dependiam
exclusivamente dele. Não poderia beber, já que havia abandonado o vício
havia muito tempo e não tinha a menor vontade de retomá-lo.
Na verdade Marvin não sabia o que fazer.
Percebeu nesse instante que amava Verônica de uma maneira que
nem ele sabia. A falta que sentia dela era semelhante à falta que sentia de
Ana Rebeca.
Lembrou que Verônica cuidava da casa e dos filhos praticamente
sozinha, já que ele não sabia nem mesmo abotoar roupa de criança.
Quase três décadas depois da morte do pai, novamente sentia o peso
do mundo em suas costas.
Marvin fechou os olhos e se esforçou para lembrar do passado: de
quando ainda era uma criança e podia contar com o protagonismo do pai.
Voltou ao momento exato em que seu pai o chamava no leito de morte.
Lembrou das palavras de Sebastião, que lhe confiou o cuidado da família.
Sem entender se era uma ilusão que estava tendo ou se era realmente
era o pai, percebeu a presença de Sebastião, com um sorriso leve e a mão
em seu ombro. Então Marvin falou:
– Pai, eu fiz tudo errado. A vida de todos foi terrível, inclusive a
minha. Não tivemos paz, só fome, desgraça e dor, o tempo todo. Perdão por
falhar tanto.
– Não havia jeito de não ser assim, filho. Você deu o seu melhor.
Infelizmente você não podia evitar o sofrimento, era somente um menino,
quase uma criança cuidando de outras crianças. Siga sua vida e continue
lutando, continue dando o seu melhor.
Sebastião sumiu e nunca mais retornou. Marvin ficou sem saber se
foi um sonho, se teve um lapso de esquizofrenia ou se, de fato, seu pai
esteve mesmo conversando com ele. De qualquer sorte, sentiu-se aliviado
com as palavras que ouvira.
CAPÍTULO 26
O diálogo com Maria Rebeca

P
assados três anos desde a morte de Verônica, Marvin havia conseguido
manter a jornada dupla: o cultivo da lavoura e o cuidado dos filhos.
Uma senhora idosa, viúva e com cinco filhos já criados se
colocou à disposição de Marvin para ajudá-lo com as crianças. Marvin a
contratou.
Dona Mirtes ficava o dia todo cuidando das crianças. Só ia embora
quando o patrão retornava do trabalho. Marvin, a partir do momento em que
colocava os pés dentro de casa, cuidava dos três filhos e os ajudava nas
tarefas escolares, dava conselhos e ensinava a eles o que sabia.
– Essa é certo que a sua tia saberia de primeira – disse Marvin,
quando sua filha perguntou se a palavra riacho se escrevia com x ou ch.
– Minha tia Ana Rebeca gostava de nadar?
– Sim, mas eu falei que ela acertaria essa de primeira porque sabia
escrever todas as palavras que existiam.
Sempre que recordava da irmã, Marvin sentia um misto de alegria e
saudade. Era uma sensação que ele não sabia explicar.
– Mas papai, é com qual letra que se escreve essa palavra? –
questionou a pequena Maria Rebeca, um tanto ansiosa pela resposta.
– Com ch. Essa eu sei, filha. Respondeu confiante, depois de fazer
um esforço para lembrar.
– Papai, você é muito sabido – respondeu a filha, demonstrando
bastante orgulho.
Marvin ficou contente com o elogio da filha. Lembrou que a única
pessoa que costumava elogiá-lo era Ana Rebeca.
Maria Rebeca, olhando fixamente nos olhos de Marvin, perguntou:
– Papai, você não vai se casar de novo?
– Vou sim, filha. Mas quando você estiver bem grande.
– Por que quando eu estiver bem grande?
– Porque se a minha esposa for uma madrasta má e quiser te bater,
você vai conseguir se defender.
– Não, papai. Você é um homem bonito e bom. Vai arrumar uma
esposa boazinha.
Marvin sorriu. Percebia na filha a mesma ternura da irmã.
– Será que a mamãe lá no céu vai sentir ciúmes?
– Acho que sim, filha. Sua mãe sempre foi muito ciumenta. Melhor
eu continuar sozinho então – disse Marvin, em tom amistoso.
– Papai, a mamãe era boazinha?
– Sim, filha. Era uma pessoa muito boa. Você sentiria muito orgulho
se ela ainda estivesse com a gente.
– Eu sinto orgulho mesmo assim. Eu sei que ela lá no céu está me
cuidando. Ela me cuida no céu e você me cuida aqui embaixo.
Marvin sorriu novamente e deixou uma lágrima escorrer.
CAPÍTULO 27
A carta

M
arvin tentou procurar os irmãos diversas vezes depois da morte de
Verônica. Embora não sustentasse pelos irmãos o mesmo amor que
sentia por Ana Rebeca, pensou que era hora de retomar a
convivência com eles. Todavia, não obteve sucesso. Seus irmãos haviam
sumido da cidade havia mais de um ano e não disseram seu destino para
ninguém.
Depois de algum tempo, Marvin recebeu uma carta de Jessé, cujo
texto era:
Querido Marvin, estamos muito longe da nossa chácara. Estamos
muito longe do Brasil, na verdade.
Recebemos alguns anos atrás uma oportunidade de trabalho na
Suécia. Saímos às pressas, sem avisar ninguém, pois fomos pegos de
surpresa, então não tivemos tempo para despedidas. A Suécia é um
excelente país para se viver e criar os filhos, embora seja bastante frio. Eu,
Jessé, estou casado com uma moça nascida na Índia, mas que já está aqui
na Suécia há muitos anos. Ela está grávida, você vai ser tio dentro de três
meses.
O Jeremias está noivo, também de uma moça indiana, amiga da
minha esposa. Vamos ficar aqui para sempre, se Deus nos permitir.
Lembra de uma “gerigonça” que você encontrou no nosso quarto
uma vez e ficou curioso? Pois então, aquela coisa se chama computador.
Aprendemos tudo sobre ela. Mas fomos além, passamos a estudar sobre
uma tal de internet. Poucas pessoas no mundo têm conhecimento sobre
isso, mas podemos garantir que é algo que vai revolucionar o planeta.
A internet, irmão, vai mudar tudo o que a gente entende sobre
comunicação, entretenimento, relacionamentos, sobre distância. Pode
acreditar no que vou te dizer agora: esse tipo de comunicação que estamos
tendo nesse momento, através de uma carta, se tornará algo obsoleto, que
as próximas gerações sequer vão acreditar que existiu, pois haverá uma
coisa muito mais prática: serão as mensagens instantâneas, através do uso
de um computador conectado à internet. Os especialistas em tecnologia
dizem que as comunicações dentro de 40, 30 – ou, para os mais otimistas,
20 anos – será realizada através de telefone, que as pessoas vão carregar
dentro do bolso das calças. Impressionante, não?
Voltando ao assunto anterior, tivemos que sair às pressas pois fomos
selecionados para trabalhar em um projeto de desenvolvimento de
tecnologia, depois de uma carta que enviamos para uma empresa da
Suécia. Sendo assim, deixamos a chácara do jeito que estava, não tivemos
tempo para comunicar ninguém. Saímos correndo em direção à capital e de
lá pegamos um avião. Depois de muitas horas chegamos a Estocolmo,
capital do país que estamos vivendo. Não temos interesse nenhum na
chácara. Portanto, você pode ficar com ela ou vendê-la. Se optar por
vender, pode ficar com o dinheiro para você, não necessitamos de nada,
pois estamos recebendo um excelente salário e temos uma vida muito
próspera.
Estamos com saudades, Marvin. Você sempre foi um excelente irmão.
Na verdade, foi um pai para nós. Não fosse a sua coragem, sua força, seu
amor, nós não estaríamos aqui hoje. Você nos salvou. Sacrificou-se ao
extremo para que a nossa família superasse a fome e sobrevivesse. Você é
um homem bom; um homem digno e honrado. Se as coisas não foram do
jeito que todos nós desejávamos pode ter certeza de que não foi por culpa
sua.
Sobre nós, descobrimos que esse país é o nosso lugar. Somos felizes
aqui. Nosso trabalho nos realiza. Portanto, não voltaremos ao Brasil.
Estamos muito satisfeitos com o que temos e com o que nos espera no
futuro.
Pegue as crianças e venha nos visitar quando puder, Marvin. Fique
com Deus.
Do seu irmão Jessé.

Marvin ficou feliz pelos irmãos. Nunca imaginou que aqueles dois
moleques tímidos, que viviam tirando nota baixa na escola e cuja irmã mais
nova tivera que ensinar a ler e escrever um dia estariam morando no
estrangeiro.
Ficou impressionado com o que eles escreveram sobre tecnologia e a
tal da internet, que ele nunca tinha ouvido falar. Porém, acreditou nas
previsões otimistas dos irmãos. Se uma empresa sediada do outro lado do
oceano fez um esforço para contratar dois jovens do interior do Brasil é
porque eles sabiam o que estavam fazendo. Ficou imaginando o dia em que
iria assistir aos irmãos na televisão falando diretamente ao repórter do
Jornal Nacional sobre tecnologia e essas modernidades todas,
principalmente sobre a internet.
Raciocinou, todavia, que não teria com quem contar caso precisasse
de ajuda, já que os irmãos estavam distantes. Entretanto, estava convicto de
que não tinha mais com o que se preocupar, pois o que tinha de ruim para
acontecer havia ficado no passado.
CAPÍTULO 28
O derradeiro leito de morte

M
arvin abandonara de vez a postura calada que o caracterizara na
época de casado. Na verdade, quando estava se relacionando com os
filhos, fosse conversando, fosse ajudando nas tarefas escolares,
fosse organizando alguma brincadeira, conseguia amenizar as dores e a
saudade que sentia das pessoas que já haviam partido.
O filho mais velho havia completado 13 anos. Era um rapaz alegre,
inteligente, que adorava a escola. Amava seu pai e dizia que queria ser igual
a ele quando fosse adulto.
O filho do meio, Fernando, estava perto de completar 10 anos. Era
um menino tímido, mas bastante dedicado aos estudos. De certa forma,
lembrava os gêmeos Jessé e Jeremias.
A filha mais nova, Maria Rebeca, estava com 7 anos. Se tratava de
uma menina doce, alegre e muito espontânea. Marvin dizia que ela
lembrava muito a tia Ana Rebeca.
Marvin conseguia ter com os filhos a tranquilidade e a paz que jamais
tivera na vida. Percebia que conseguira se aproximar mais dos filhos depois
da morte de Verônica.
Fazia as funções de pai e mãe, mas não se sentia chateado por isso.
Pelo contrário, enquanto trabalhava na roça ficava bolando brincadeiras
para fazer com os filhos assim que chegasse à casa.
Marvin chegou a pensar que aquele talvez fosse o melhor momento
da sua vida. Ainda que novamente estivesse com a incumbência de ser o
responsável por três crianças, dessa vez era diferente.
Ele agora era um homem experiente. Tinha conhecimento para
manter a lavoura sempre em excelentes condições de cultivo e havia
tecnologia suficiente na fazenda para não se preocupar com possíveis
vendavais. Na verdade, os vendavais a essa altura eram possíveis de serem
previstos e, assim, ele poderia se precaver. Também tinha esperteza
suficiente para não entrar em nenhum negócio de golpistas.
Sabia que os filhos não iriam passar fome e tampouco enfrentariam
as mesmas desgraças que ele e seus irmãos enfrentaram no passado.
Durante uma brincadeira, Marvin voltou a sentir as dores de cabeça
que tanto o atormentaram na juventude. Estranhou, pois havia mais de duas
décadas que não sentia aquelas dores.
Assim, tomou remédios para enxaqueca que mantinha em casa para
emergências. Tomou os medicamentos por semanas, mas as dores não
passaram.
Influenciado por Dona Mirtes, foi até a capital se consultar com um
médico especialista.
O doutor solicitou diversos exames. Sendo assim, Marvin pegou as
economias da última venda de tubérculos e se estabeleceu na capital para
realizar os procedimentos necessários.
Quando voltou para casa, não teve coragem de falar para os filhos o
que estava acontecendo. Mirtes resolveu questioná-lo:
– O que o senhor tem, Seu Marvin? Parece tão abatido, tão triste.
Está até mais magro.
Marvin, sabendo que não fazia sentido manter segredo, falou em tom
de voz baixo, porém bastante profundo:
– Tenho um tumor na cabeça, e é irreversível – disse com lágrimas no
rosto.
– O que é tumor irreversível, Seu Marvin? – perguntou Dona Mirtes,
mas já imaginando que se tratava de algo grave.
– É um caroço que está alojado na minha cabeça que cresce sem
parar e vai me matar. Talvez demore pouco tempo, talvez eu dure um ano,
quem sabe dois, mas vou morrer.
Dona Mirtes, sem conseguir esconder a preocupação, questionou
novamente:
– Isso é doença de família, Seu Marvin? Se for, talvez tenha uma
cura.
Marvin respondeu com quase nenhuma esperança na fala:
Meu irmão teve isso quando era adolescente e se curou. Eu, no
entanto, levando em consideração tudo o que o médico disse, não devo ter a
mesma sorte.
– Mas Seu Marvin, o senhor pode se curar, sim. Deus é maior que
qualquer doença. Deus resolve tudo através de milagres. Vamos rezar
bastante, todos nós. Os meninos, eu e o senhor.
Marvin agradeceu, porém não era um homem de muita fé religiosa.
Ainda assim, aquiesceu, segurou a mão direita da empregada e iniciou uma
reza.
Ficaram rezando diariamente por duas semanas, sempre após o jantar.
Marvin seguia esse ritual mais para agradar os filhos do que por pensar que
de fato as orações pudessem mudar o quadro de saúde que apresentava.
Durante uma oração Marvin se sentiu mal e, de mãos dados com os
filhos Fernando e Maria Rebeca, caiu no chão, desmaiado.
Passadas algumas horas, Marvin, ao acordar, percebeu que estava no
posto de saúde da cidade.
Marvin foi atendido rapidamente, mas como não havia muito o que
fazer, mandaram-no de volta para casa.
Permaneceu por dois meses trancado no quarto, só saindo de lá para
ir ao banheiro. Dessa vez, sua reclusão não foi voluntária como na época
em que era jovem, já que agora queria continuar vivendo. Era uma
imposição ocasionada pela sua debilidade.
A cada dia que passava se sentia mais frágil, mais fraco e com menos
forças para falar e se movimentar.
Com o passar dos dias, sequer conseguia se alimentar. Percebeu que
sua vida estava muito perto do fim, talvez estivesse vivendo suas últimas
horas.
Quando teve certeza de que a morte chegaria em instantes, pediu a
Dona Mirtes que chamasse seu filho mais velho, Sebastião.
Era estranho para ele, pois estava na posição de passar a mensagem
no leito de morte – ao contrário das outras vezes, em que fora ele a pessoa a
quem chamaram.
– Olá, pai. Dona Mirtes disse que o senhor mandou me chamar. Vim
o mais rápido que pude. Estou à disposição.
Seguindo um ritual que mesmo não querendo se tornou uma triste
tônica em todas as fases da sua vida, olhou nos olhos do filho e disse:
– Sebastião, meu filho, décadas atrás passei por essa mesma situação,
eu tinha a sua idade. Meu pai me deu conselhos que só consegui
compreender depois de muito tempo. Agora é a sua vez de ouvir, e eu vou
tentar ser melhor do que meu pai foi, se é que isso é possível.
O menino, mesmo sem entender direito o que pai estava tentando lhe
dizer, aquiesceu com a cabeça.
Marvin continuou:
– Meu querido filho, a vida é pra valer, eu fiz o meu melhor.
Infelizmente, agora é só você. É, na verdade, a sua vez. Mas, o seu destino
eu não sei. Apenas peço que dê o seu melhor.
Marvin colocou as mãos nos ombros do filho, esboçou um leve
sorriso e, então, fechou os olhos para o descanso eterno.
Sebastião Neto sabia pouco sobre as agruras que seu pai enfrentara
na vida, já que Marvin, quando se tornara viúvo, tentou demonstrar alegria
e prazer em viver, deixando as recordações tristes para os momentos em que
estava sozinho. Ainda assim, sempre fez um esforço para que as lembranças
tristes não permanecessem por muito tempo em sua cabeça.
Após ouvir atentamente as palavras do pai e, mesmo sabendo pouco
sobre a vida sofrida que Marvin teve, respondeu:
– Eu prometo, pai, que darei o meu melhor. O senhor, do lugar que
estiver, vai sentir orgulho de mim e dos meus irmãos. Descanse em paz,
meu querido pai.
CAPÍTULO 29
A recompensa

S
entido um aroma agradável de flores aliado a uma sensação de paz,
Marvin abriu os olhos novamente. Na sua frente estava Ana Rebeca,
com toda sua meiguice e otimismo característicos.
Ela, então, com um leve e agradável sorriso, falou:
– Você foi bem, meu irmão. Sua vida foi pra valer e você deu o seu
melhor. Cuidou de todos. Agora é hora de descansar. Aqui você se sentirá
muito bem. Dessa vez você é que receberá todos os cuidados.
Marvin sentiu uma felicidade que em vida jamais tinha
experimentado. Abraçou a irmã com todas as forças. Chorou de alegria. De
longe viu um senhor de bigodes, uma senhora de chapéu de palha e uma
moça com lindos olhos e sorriso estonteante, cujas covinhas nas bochechas
mais uma vez lhe encantavam.
Estavam todos alegres.
Marvin perguntou:
– Isso é real, Ana Rebeca?
– Escute o que eles têm pra falar, meu irmão.
Marvin, sorridente, prestou atenção naquelas pessoas. Elas, em
uníssono, falaram:
– Vem, Marvin, estamos com saudades de você!
Ana Rebeca respondeu aos ansiosos:
– Ele já vai, seus apressadinhos, tenham calma!
Marvin correu o mais rápido que conseguiu e abraçou Verônica.
Sebastião e Maria de Lurdes foram ao encontro dos dois para reforçar o
abraço. Por último, Ana Rebeca se juntou a eles.
Marvin, depois de superada a euforia, perguntou:
– E meus filhos, Ana Rebeca, o que vai acontecer com eles?
Ana Rebeca sorriu e segurou nas mãos de Marvin. Com ternura
respondeu:
– Ficarão bem, o destino deles, embora você não tivesse essa resposta
para dar na sua última recomendação ao pequeno Sebastião, é de paz e
prosperidade. Nosso garotinho vai dar conta do recado. E o melhor, você
vai poder ajudá-lo.
Marvin sorriu.
SOBRE O AUTOR
Sérgio Elisandro Souza é graduado em Administração e
Contabilidade, além de ser mestre em Economia. No entanto, sua grande
paixão é a literatura clássica brasileira, de forma que busca inspiração em
gênios como Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Érico
Veríssimo, dentre outros. Poucos anos atrás, depois de enfrentar uma grave
doença (saindo vencedor), decidiu ingressar na carreira literária, de maneira
que há mais dois livros sendo preparados, cujos títulos são Um Intelectual
no Cárcere e Um juiz fabricado. O autor deste livro demonstra também
profundo fascínio pela música tradicional brasileira, sendo que um dos
clássicos do Rock Nacional, a música Marvin, acabou por desenvolver o
entusiasmo necessário para a escrita desta narrativa literária.
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