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HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO
História da educação
Caroline Silveira Bauer

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar o contexto histórico, cultural e social da educação brasileira.


> Relacionar educação e ideologia.
> Reconhecer o papel social da escola.

Introdução
A educação brasileira é um direito de todos os cidadãos, sendo obrigatória para
crianças e jovens. Na prática, esse direito e essa obrigação são atravessados por
muitas outras questões. Em algum período histórico a educação não foi reconhe-
cida como um direito e, portanto, o Estado se eximiu de sua responsabilidade? A
educação esteve acessível a todos os habitantes da América portuguesa ou do
Império do Brasil? Durante quase 400 anos, a escola foi um espaço destinado a
pequenos grupos pertencentes às elites econômicas e políticas, e a massificação
do ensino ocorreu há menos de 100 anos, na década de 1930.
Essas informações demonstram a relevância do aprendizado da história da
educação, estudando as continuidades e as rupturas ao longo do tempo, os projetos
ideológicos e políticos e os beneficiários das políticas educacionais. Por meio
desse estudo, conseguimos evidenciar a relação da educação com a ideologia,
compreendendo a escola como um espaço político que está em disputa por
diferentes visões de mundo. Além disso, podemos compreender os papéis sociais
da escola em relação à formação de identidades e subjetividades.
Neste capítulo, você vai conhecer um panorama sobre a história da educação no
Brasil em seus diferentes períodos históricos. Além disso, vai ver qual é a relação
entre a ideologia e a escola e como as visões de mundo impactam diretamente
nas concepções de ensino. Por fim, vai estudar o papel que a escola desempenha
2 História da educação

não somente no aprendizado formal, mas também na construção das identidades


e de redes de sociabilidade.

História da educação no Brasil


É possível justificar a aprendizagem da história da educação no Brasil pelo
reconhecimento das mudanças e das permanências ao longo do tempo e do
espaço do que chamamos de “educação”. As dinâmicas culturais, econômicas,
políticas e sociais influenciam diretamente nos processos educativos, então
identificar essas continuidades e rupturas possibilita compreender de que
forma certas conjunturas resultam em concepções específicas de educação
e de políticas educacionais.
Ao afirmamos que as esferas cultural, econômica, política e social rela-
cionam-se diretamente com a definição e as características da educação em
um determinado tempo e espaço, considerando a história do Brasil, devemos
considerar três períodos distintos: colonial, imperial e republicano. Essa
periodização, no entanto, tem alguns problemas. O primeiro deles é que
sabemos que a história do Brasil se inicia muito antes de 1500 com a chegada
dos colonizadores europeus. Afinal, essas terras eram ocupadas por diversos
povos indígenas, que contribuíram para nossa formação cultural, histórica
e social. Da mesma forma, somente nos tornamos “Brasil” a partir de nossa
experiência atlântica, ou seja, nas relações triangulares estabelecidas com
as metrópoles europeias, mas, principalmente, com a experiência do escra-
vismo. Assim, quando falamos em história da educação no Brasil, podemos
iniciar nosso panorama nos referindo às práticas educativas dos indígenas
que ocupavam essas terras ou às formas de aprendizado trazidas com os
africanos que vieram para a América escravizados.
Quando dividimos a história do Brasil nos períodos colonial, imperial e
republicano, estamos utilizando um critério vinculado à história do Estado-
-nação, o que, para muitos temas, não é a melhor escolha para se pensar em
periodizações. Por exemplo, muitos aspectos culturais do período imperial
seguiram vigentes no republicano. Isso acontece porque as transformações
na estrutura do Estado têm temporalidades distintas das mudanças que
ocorrem no âmbito da cultura. Além disso, a periodização baseada na história
do Estado-nação pressupõe que existe um Brasil durante o período colonial,
quando, na verdade, tratava-se de um território cujas fronteiras não estavam
definidas (estavam em constante disputa) e que fazia parte de um território
mais amplo: o Império Português.
História da educação 3

Neste capítulo, vamos adotar a periodização da história da educação


brasileira proposta por José Claudinei Lombardi (2008) e pelos pesquisadores
do grupo de estudos e pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil
(HISTEDBR), vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa
periodização explicita melhor a inter-relação entre aspectos culturais, econô-
micos, políticos e sociais e as transformações educacionais no Brasil. Assim,
superamos a divisão da história da educação brasileira baseada unicamente
nas mudanças ocorridas no âmbito do Estado-nação.

Primeira etapa: Portugal e Brasil na transição do


feudalismo para o capitalismo
Nessa primeira etapa, temos dois períodos distintos: um primeiro período,
de 1500 a 1759, que vai da conquista e colonização à expulsão dos jesuítas
do Brasil; e um segundo período, de 1759 a 1827, que compreende a crise do
Antigo Regime em Portugal e suas consequências no Brasil (LOMBARDI, 2008).
O primeiro período se subdivide em duas fases: a da pedagogia do padre
jesuíta Manuel da Nóbrega, também conhecido como período heroico (1549-
1570); e a da institucionalização da pedagogia jesuítica, ou ratio studiorum
(1570-1759) (LOMBARDI, 2008). A chegada dos jesuítas na colônia marcou o
início da educação formal no Brasil.

Instituindo colégios e seminários, os jesuítas exerceram o monopólio do ensino


até sua expulsão, o que confere um caráter orgânico a todo esse período marcado
pelo pleno domínio das ideias pedagógicas classificadas no âmbito da concepção
tradicional em sua vertente religiosa (SAVIANI, 2013, p. 15).

O segundo período também teve duas fases distintas. Na primeira, cha-


mada de pedagogia pombalina (1759-1808), houve mudanças educacionais
instituídas pelas reformas realizadas pelo Marquês de Pombal, coexistindo
as vertentes leiga e religiosa da pedagogia tradicional, e a adoção das aulas
régias. A segunda fase é a da educação da fase joanina (1808-1822), referente
às alterações ocorridas no campo educacional em razão da transferência da
corte portuguesa para o Brasil (LOMBARDI, 2008). As reformas pombalinas
no âmbito da instrução pública abriram espaço para a circulação de ideias
pedagógicas inspiradas em ideias iluministas e no laicismo (SAVIANI, 2013).
4 História da educação

Segunda etapa: capitalismo concorrencial e


economia mercantil-escravista
Nessa segunda etapa, de 1822 a 1889, temos as primeiras tentativas de orga-
nização de algo que podemos chamar de educação nacional, em decorrência
do processo de emancipação política e formação do Império do Brasil. Nesse
momento, foram realizadas as primeiras tentativas de organizar a educação
como uma responsabilidade do Estado, tanto em nível do governo imperial
quanto dos governos provinciais (LOMBARDI, 2008).
A Constituição de 1824 estabeleceu que todo cidadão brasileiro teria acesso
à escola pública elementar. Tratava-se, segundo a historiadora Cynthia Veiga
(2008, p. 502), de uma “necessidade de instruir e civilizar o povo”. Como uma
invenção imperial, em grande parte dos discursos a aprendizagem da leitura,
da escrita e das contas e a frequência à escola eram um fator condicional de
edificação de uma nova sociedade (VEIGA, 2008).
É importante ressaltar quem era considerado cidadão e, consequente-
mente, tinha acesso à escola pública elementar. Pessoas escravizadas eram
impedidas legalmente de frequentar as escolas públicas em várias provín-
cias do Império. Essa determinação legal não impedia que pessoas negras
livres frequentassem a escola pública, por isso, mesmo em uma sociedade
escravista, havia negros que sabiam ler, escrever e/ou contar (VEIGA, 2008).
Ainda que a escola pública fosse franqueada às pessoas livres, isso não
significa que as pessoas brancas, seu maior contingente, eram massivamente
alfabetizadas. De acordo com Lilia Schwarcz, citada por Veiga (2008, p. 503),
“o recenseamento de 1872 indicou que 84% da população brasileira era de
analfabetos; portanto, é possível especular que também muitos brancos,
inclusive abastados, não sabiam ler”. Assim, devemos nos perguntar qual
era o sentido da educação durante o período imperial e qual era o lugar da
leitura e do letramento naquela sociedade. Isso pode ser feito a partir de
três constatações: “a presença reiterada do discurso da missão civilizadora
da escola por parte das elites governamentais; as precárias condições de
funcionamento das escolas públicas de maneira geral; e o alto índice de
analfabetismo em fins do século XIX” (VEIGA, 2008, p. 503).
A partir de suas pesquisas, Veiga (2008) afirma que a escola pública do
século XIX foi essencialmente destinada a crianças pobres, negras e mestiças,
já que o discurso civilizador se destinava a esse grupo que, segundo as elites,
era carente de civilização. As crianças das famílias abastadas brancas eram
educadas por outros meios. “Dessa maneira, é possível também verificar
que a experiência da vivência da discriminação étnica e racial nas salas de
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aulas possui uma significativa longevidade histórica, não é recente e vem-se


acumulando há quase duzentos anos” (VEIGA, 2008, p. 504).
No período imperial, a educação pública era extremamente precária. Ela
tinha como objetivo instruir e civilizar, promovendo a coesão social, os valores
da civilização (na concepção das elites imperiais) e a homogeneização cultural
da população. Segundo Veiga (2008, p. 504), “a propagação da concepção da
importância da escola da organização da sociedade é uma invenção imperial,
associada à difusão da Constituição”.
Considerada um fracasso durante o período imperial, em parte pelos
limites das condições de vida de seu público, a escola pública foi refundada
no início do período republicano como uma escola de alunos brancos de “boa
procedência” (VEIGA, 2008).

Terceira etapa: passagem do capitalismo


concorrencial para o monopolista
Nessa terceira etapa, observamos grandes transformações na cultura, na
economia, na política e, portanto, no âmbito da educação. A complexificação
da sociedade fez com que se elaborassem diferentes políticas educativas
desde a Proclamação da República em 1889. Dessa forma, a terceira etapa
conta com um número maior de períodos.
O primeiro período (1889-1930) corresponde ao momento que os histo-
riadores chamaram de Primeira República. As políticas educacionais eram
baseadas no ideário iluminista republicano, e foi realizada a implantação
progressiva de escolas primárias graduadas nos estados, paralelamente à
formação de professores por meio das “escolas normais” (LOMBARDI, 2008).
O segundo período (1930-1964) corresponde à regulamentação nacional do
ensino com as escolas primárias, secundárias e superiores, além de um ideário
pedagógico renovador, por meio das reformas educacionais implementadas
por Francisco Campos e Gustavo Capanema. Em 1930, ocorreu a Revolução de
1930, que foi uma revolta armada organizada pelas oligarquias dissidentes
pertencentes aos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul. Essa
revolta se organizou após o tumultuoso processo eleitoral para presidente,
mas trazia outras reivindicações de cunho político e social. A Revolução de
1930 foi o evento responsável pela chegada de Getúlio Vargas no cargo de
presidente da República (LOMBARDI, 2008).
Após a posse de Getúlio Vargas, foi realizada uma grande reforma admi-
nistrativa. Um dos atos foi a criação do Ministério dos Negócios da Educação
e Saúde Pública, por meio do Decreto nº 19.402, de 14 de novembro de 1930
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(SAVIANI, 2013). Além das áreas de educação e saúde, o ministério era res-
ponsável por temas relativos ao esporte e ao meio ambiente.

Em 1932, foi divulgado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.


Para compreender sua importância, é necessário contextualizar
rapidamente a proposta. Com a fundação da Associação Brasileira de Educação
(ABE) em 1924, ganhou força o movimento renovador, que defendia a superação
de uma pedagogia tradicional em prol de uma pedagogia nova. De acordo com
Saviani (2013, p. 15):
[...] a divulgação do ‘Manifesto’ de 1932 é o marco indicador da disposição do grupo
renovador de exercer a hegemonia do campo pedagógico. Entretanto, a disputa com
o grupo católico revela-se acirrada, expressando um rigoroso equilíbrio de forças
até meados da década de 1940.

Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), também sob a presidência


de Getúlio Vargas, foram editadas as Leis Orgânicas do Ensino, também
chamadas de reforma Capanema. Segundo Bittar e Bittar (2012, p. 159):

Esse conjunto das Leis Orgânicas do Ensino, editadas de 1942 a 1946, estabeleceram
o ensino técnico-profissional (industrial, comercial, agrícola); mantiveram o caráter
elitista do ensino secundário e incorporaram um sistema paralelo oficial (Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial [Senai] e Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial [Senac]). A Reforma Capanema incorporou também algumas reivindi-
cações contidas no Manifesto de 1932, a saber: a) gratuidade e obrigatoriedade
do ensino primário; b) planejamento educacional (Estados, territórios e Distrito
Federal deveriam organizar seus sistemas de ensino); c) recursos para o ensino
primário (Fundo Nacional do Ensino Primário) estipulando a contribuição dos
Estados, Distrito Federal e dos municípios; d) referências à carreira, remuneração,
formação e normas para preenchimento de cargos do magistério e na administração.

Posteriormente, essas transformações no âmbito da educação culminaram


na promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), a Lei nº 4.024, de 1961 (BITTAR; BITTAR, 2012). Esse segundo período
se dividiu em duas fases distintas: a de 1932 a 1947, que correspondeu aos
governos do presidente Getúlio Vargas e explicitou o equilíbrio entre a pe-
dagogia tradicional e a pedagogia nova; e a fase de 1947 a 1964, caracterizada
pelo nacional-desenvolvimentismo e pela predominância da pedagogia nova
(LOMBARDI, 2008).
O terceiro período (1964-1984) correspondeu ao período da ditadura civil-
-militar implementada com o golpe de 1964, quando houve uma reorganização
da cultura, da economia, da política e da sociedade em função da gestão dos
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militares no poder. Esse terceiro período se divide em dias fases distintas: a


de 1964 a 1969, que corresponde à crise da pedagogia nova e a articulação da
ditadura para consecução de uma pedagogia tecnicista; e a fase de 1969 a 1984,
caracterizada pelo confronto entre as pedagogias críticas e as pedagogias
baseadas em uma concepção produtivista da educação (LOMBARDI, 2008).
Na ditadura civil-militar implementada com o golpe de 1964, com a Lei nº
5.692, de 1971, houve a divisão da educação básica em 1º e 2º graus (BITTAR;
BITTAR, 2012). Foi também nesse período autoritário que se incluiu no currículo
escolar as disciplinas de estudos sociais e de educação moral e cívica. De
acordo com Bittar e Bittar (2012, p. 163), esta última era “de caráter doutrinário,
que além de justificar a existência dos governos militares, veiculava ideias
preconceituosas sobre a formação histórica brasileira, e na qual o ensino da
Língua Portuguesa, da História, da Geografia e das Artes ficou desvalorizado”.
O quarto e último período, que se inicia em 1984 e se estende até a atua-
lidade, corresponde ao período de transição democrática, reorganização do
Estado com a promulgação da Constituição de 1988 e inserção do Brasil nos
quadros de globalização e neoliberalismo, também chamados de nova ordem
mundial. Esse período foi marcado por uma série de reformas educacionais,
ainda explicitando o confronto entre perspectivas críticas e neoliberais de
educação, e pela aprovação e implementação da nova LDB (Lei nº 9.394, de
1996) (LOMBARDI, 2008).
A essa periodização proposta por Lombardi (2008), devemos acrescentar
dois eventos muito importantes. Eles não necessariamente configuram um
novo período, mas têm grandes repercussões no âmbito do ensino. Segundo
Bittar e Bittar (2012, p. 164):

[...] a nova Carta Magna brasileira define em seu artigo 208 que o dever do Esta-
do com a educação será efetivado mediante a garantia de ‘ensino fundamental
obrigatório e gratuito’, considerado ‘direito público subjetivo’. A efetivação desse
direito, um avanço em termos de políticas públicas educacionais, proporcionou
mudanças importantes na educação pública brasileira.

As alterações realizadas no texto da LDB por meio das leis nº 10.639, de


2003 (BRASIL, 2003), e nº 11.645, de 2008 (BRASIL, 2008), instituíram a obriga-
toriedade do ensino das culturas e das histórias africana, afro-brasileira e
indígena em todos os níveis de ensino. Essas mudanças são resultado da luta
e mobilização do movimento indígena e do movimento negro desde meados
dos anos 1970. Ambos reivindicavam a importância e o reconhecimento de
suas culturas e histórias para compreender a formação do Brasil.
8 História da educação

Desde a promulgação da LDB, o Conselho Nacional de Educação tem es-


tabelecido Diretrizes Curriculares Nacionais para todos os níveis de ensino.
Essas diretrizes também foram alteradas ao longo do tempo, de acordo com
as demandas que cada momento histórico representou para a educação. Por
exemplo, com a Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006 (BRASIL, 2006), que
instituiu o ensino fundamental de 9 anos, foi necessária uma reformulação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino fundamental.
Em 2015, foi lançada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um do-
cumento que definiu as aprendizagens fundamentais de conteúdos e habi-
lidades durante a educação básica. O lançamento da BNCC deu início a um
amplo debate que envolveu mais do que somente especialistas, e posições
muito antagônicas foram marcadas. Essas posições refletiam concepções de
currículo, de ensino e de visões de mundo diferentes. Dois anos depois, por
meio da Portaria nº 1.570, de 20 de dezembro de 2017, a BNCC foi homologada
(HISTÓRICO da BNCC, c2022).
No ano seguinte, foi lançado o Programa de Apoio à Implementação da
Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC), a fim de apoiar os municípios
e os estados na implementação de currículos escolares que estivessem de
acordo com a BNCC. Ainda em 2018, em 14 de dezembro, foi homologado o
documento da BNCC para o ensino médio (HISTÓRICO da BNCC, c2022).

Para saber mais sobre as versões e implementações da BNCC, acesse


o site da BNCC (HISTÓRICO da BNCC, c2022). Para conferir algumas
críticas e outras questões referentes à BNCC, acesse o material “ANPEd e a
BNCC: luta, resistência e negação”, disponível no site da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPed) (ANPED e a BNCC, c2022).

Nesta seção, estudamos uma periodização da história da educação no


Brasil, assinalando alguns episódios fundamentais para a compreensão de
como a educação se relaciona com os aspectos culturais, econômicos, políticos
e sociais. Para aprofundar os conhecimentos sobre essa inter-relação, vamos
discutir a seguir a indissociabilidade da escola e da ideologia.

Relações entre educação e ideologia


Existem muitas formas de explicitarmos as relações entre a educação e a
ideologia. Nesta seção, trabalharemos com duas delas: a escola enquanto
instituição e as concepções que pautam as políticas e práticas educativas.
História da educação 9

O filósofo Louis Althusser, em sua obra Ideologia e aparelhos ideológicos


do Estado (1970), afirmou que a escola se tratava de um “aparelho ideológico”
responsável pela imposição e reprodução da ideologia das classes dominan-
tes, fazendo com que sua visão de mundo fosse assimilada e naturalizada por
seus frequentadores. Segundo Althusser (1970), a escola transmitia qualifi-
cações necessárias para o mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, de forma
muitas vezes explícita, para os lugares em que cada um pertence em uma
sociedade de classes. Para isso, a escola agia justificando e legitimando o
status quo, relativizando as diferenças e os conflitos de classe. Esse, sem
dúvidas, é um ato ideológico.
Paradoxalmente, se a escola tem o poder de inculcar uma visão de mundo
das classes dominantes e, de certa forma, alienar os indivíduos da situação de
exploração e subjugação em que se encontram, ela também pode se transfor-
mar em um espaço de geração de uma força contrária, uma contraideologia.
É no âmbito dessa contradição que podemos observar a ideologia atuando
por meio das concepções que pautam as políticas e práticas educativas. Para
explicitá-la, vamos recorrer ao pensamento e aos estudos de Paulo Freire.
Paulo Freire formulou um método, uma prática pedagógica que se opunha
diretamente à educação meramente como reprodução. Foi um entusiasta
de uma prática progressista, favorável à autonomia dos educandos. Para
tanto, ele acreditava que o processo de aprendizado se dava mediante uma
postura crítica do educador consigo mesmo (por meio de uma autorreflexão
de suas práticas), em um diálogo com o meio (problematizando sua realidade
e as circunstâncias que a conformam) e com os outros sujeitos do processo
educativo (outros educadores e educandos). Para Freire, uma pedagogia da
autonomia seria uma forma de ensino que possibilitaria às pessoas “ser no
mundo”, no sentido de viver suas vidas de acordo com suas crenças e seus
valores, e “estar no mundo”, agindo nele e com ele e, assim, construir suas
identidades (FREIRE, 2015).

Para saber mais sobre a vida de Paulo Freire, acesse o site Memórias
da Ditadura e pesquise pela biografia do educador.

Em sua obra Pedagogia da autonomia, publicada em 1996, Paulo Freire


explicita que alguns professores tinham, na época, uma perspectiva fatalista
da educação, conformando-se com a sensação de imobilidade fornecida por
uma perspectiva ideológica (“A realidade é assim mesma, o que podemos
fazer?”). Como resposta, Freire estimulava os docentes a se liberarem dessa
10 História da educação

visão de mundo neoliberal em que mudanças não parecem possíveis. O


objetivo era despertar o espírito crítico dos alunos, ensinando-os a pensar
certo, por meio de uma educação que instigue a cooperação, a curiosidade
e o diálogo entre educadores e educandos (FREIRE, 2015).
Freire inovou no âmbito pedagógico, oferecendo uma possibilidade de
romper com a concepção da escola e da educação como reprodutoras da
ideologia e do status quo das classes dominantes, um ensino autoritário e
elitista. Para isso, ele propunha que os professores partissem da realidade de
seus alunos, acolhendo e respeitando todas as diversidades e, assim, trans-
formando o ato de educar de uma ação de transferência de conhecimentos
para um ato de solidariedade política e social (FREIRE, 2015).
Para exemplificarmos o progressismo da teoria freiriana, Freire condenava
a supressão da curiosidade do aluno em prol de uma memorização mecânica
dos conteúdos (a famosa “decoreba”), argumentando que isso cerceia a liber-
dade do educando. A autonomia, a dignidade e a identidade dos educandos
devem ser respeitadas.

Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e,


na prática, procurar a coerência com este saber, me leva inapelavelmente à criação
de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira inautêntico,
palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a não ser para irritar o educando e
desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade,
mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre (FREIRE, 2015, p. 61).

O ensino enquanto qualidade humana é visto como dádiva para Freire.


O ser humano é o único ser capaz de aprender com alegria e esperança, na
convicção de que a mudança é possível. Aprender é uma descoberta criadora,
com abertura ao risco e à aventura do ser, pois ensinando se aprende e
aprendendo se ensina. Nesse sentido, Freire afirma que qualquer iniciativa
de alfabetização só toma dimensão humana quando se realiza a expulsão
do opressor de dentro do oprimido (FREIRE, 2015). É aqui que identificamos
a possibilidade de a escola e a educação serem forças contraideológicas.
É importante ressaltar que não existe escola ou educação “desideolo-
gizada”. Existem diferentes ideologias que configuram visões de mundo e,
portanto, influenciam nas concepções de escola e educação. A obra de Paulo
Freire não é “desideologizada”, assim como não são “desideologizadas” a
escola e a pedagogia a que ele se contrapõe. Diferentemente da ideologia
neoliberal, caracterizada pela hierarquização dos indivíduos, pelos valo-
res meritocráticos, pela individualização, pelo fatalismo e pela pretensa
neutralidade, Freire propõe uma pedagogia fundada na ética, no respeito à
História da educação 11

autonomia e à dignidade do educando, liberta de concepções desumanizantes


e opressoras (FREIRE, 2015).
Uma prática pedagógica freiriana exige dos educadores mais que uma
formação profissional, mas o domínio de saberes que possibilitem a pro-
moção da autonomia, aliados à esperança e ao otimismo na possibilidade
da mudança (FREIRE, 2015).
Nesta seção, vimos a inter-relação da educação com outras dimensões
da realidade, explicitando a indissociabilidade entre a escola e a ideologia.
Como não existe um mundo “desideologizado”, as instituições reproduzirão
as concepções ideológicas que permeiam a elaboração de políticas públicas
e, ao mesmo tempo, criarão espaços para as contraideologias. Na próxima
seção, vamos ver como é possível a existência de uma escola comprometida
com a diversidade.

Papel social da escola


O primeiro papel social que a escola tem diz respeito à dimensão do coletivo,
da vivência em sociedade e das sociabilidades que o espaço escolar propor-
ciona. Para compreender essa faceta da escola, iniciaremos com uma reflexão
presente em um texto da filósofa alemã Hannah Arendt, chamado A crise na
educação, publicado em 1957. Nele, Arendt fala que a escola é responsável
por introduzir a criança no mundo, ou, em suas palavras, “a instituição que
interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com
que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo”
(ARENDT, 1997, p. 238).
A escola, portanto, seria a dimensão pública da existência, em contrapo-
sição ao domínio privado da família e do lar. Atualmente, observamos que
as esferas pública e privada têm se confundido no âmbito do ensino, com
disputas sobre autoridade entre famílias e professores (como representantes
do Estado). O texto de Arendt, do final dos anos 1950, já identificava traços
desse problema na sociedade estadunidense (ARENDT, 1997).
Partindo das considerações da autora, a escola é vista como o reduto
público da existência, onde crianças e jovens contrapõem suas experiências
individuais com a coletividade e vivem a sociabilidade familiar de forma mais
ampla, em sociedade, com suas diferenças e diversidades.
É a partir dessas diferenças e diversidades descobertas pela escola que
ocorrerão processos de construção de identidades e subjetividades. Essas
identidades e esses sujeitos serão formados de diferentes formas, por vários
discursos (SEPULVEDA, 2015). Tais discursos estão presentes no ambiente
12 História da educação

escolar em práticas de inclusão e respeito, mas também de exclusão e dis-


criminação. Como em qualquer outro processo de formação identitária e
subjetiva, na escola isso ocorre por meio do contato com o outro.

Em algumas escolas, é possível ocorrer situações de exclusão em


razão das orientações sexuais dos discentes. Essa exclusão faz com
que os estudantes se sintam pouco à vontade ou se considerem anormais. Isso
ocorre porque os modelos identitários feminino e masculino interferem de
forma negativa na formação e na expressão identitária dessas pessoas. Nos
processos de construção da identidade, é necessário um reconhecimento do
outro. Em muitos casos, esse reconhecimento se dá por meio da discriminação
e da estigmatização, o que torna a escola ainda mais importante, sendo um
espaço diverso e plural (SEPULVEDA, 2015).

A construção das identidades e subjetividades não ocorre apenas na


interação entre os alunos e entre alunos e professores, mas também entre os
materiais didáticos e as práticas pedagógicas. Identidades e subjetividades
estão representadas em livros didáticos, circulam nas redes sociais virtuais,
aparecem em comentários e falas dos integrantes da comunidade escolar, etc.
Esses processos identitários e subjetivos, que demonstram como as
pessoas percebem a si e o mundo ao seu redor, são permeados pelas carac-
terísticas e pelas relações de poder das sociedades em questão. Portanto:

[...] o processo de formação dos sujeitos, as visões de mundo, não é construído


somente ao longo do processo de escolarização, mas por um conjunto complexo
de relações e de experiências que ocorrem ao longo de sua existência. [...] Assim,
as visões de mundo, tanto do educando como do educador, inseridas no processo
ensino-aprendizagem são construídas a partir de um movimento dialético, en-
gendrado numa rede de relações, decorrentes das condições de vida, num dado
espaço e num dado tempo (LIMA, 2013, p. 238).

Da mesma forma que a ideologia expressa pela organização da educação


e do ensino abre possibilidades para contraideologias, os processos de
formação das identidades e das subjetividades nas escolas não devem ser
compreendidos de forma fatalista, sem a possibilidade de enfrentamentos. O
educador Elicio Gomes Lima (2013, p. 239) afirma que “essa visão encobre os
embates, as superações, as legitimações, as conquistas individuais e coletivas,
bem como os limites e condicionantes das relações de poder, existentes no
interior das classes e nas interações humanas historicamente dadas”.
Isso significa que, no desempenho de suas funções sociais, a escola pode
ser um ambiente em que as pessoas, embora inseridas em determinadas
História da educação 13

condições culturais, econômicas, políticas e sociais, possam pensar e refletir


sobre o mundo, construindo possibilidades de intervenção e transformação
da realidade que as cercam (LIMA, 2013).
Lima (2013, p. 240) torna ainda mais explícito esse papel social da escola
e sua relação com a construção de identidades e subjetividades:

[...] os seres humanos reúnem a possibilidade de fazer escolhas, de fazer opções,


de julgar, o que implica, necessariamente, comparar e valorar objetos e situações
contextuais. Logo, essas escolhas, opções e julgamentos definem-se por um ou mais
posicionamentos diante de um conjunto de valores, que não foram estabelecidos
por um único indivíduo, mas no contexto das relações com outros seres humanos.
Assim, nesse amálgama social, tecendo relações com grupos e classes sociais nas
quais estão inseridos, os sujeitos desenvolvem potencialidades. Por esse viés, os
sujeitos desempenham papéis ativos e essenciais na construção de sua própria
história e na definição de sua própria identidade cultural.

Voltamos, portanto, à dimensão de uma pedagogia freiriana, direcionada


para a autonomia. Apenas de uma forma autônoma e livre os alunos poderão
ser criativos e buscar soluções para a resolução de seus problemas:

Assim, o pensar, o refletir a ação desenvolve gradativamente a capacidade de


“autonomia”, ou seja, pode construir sujeitos que problematizam as circunstâncias
pessoais e coletivas das comunidades nas quais se inserem, e na sociedade global.
O sentido de sua ressignificação não se dá por meio de parâmetros preestabele-
cidos, mas do entendimento de que a história que se conta, da qual se fala e se é
condicionado a aprender é a sua própria, daí o chamamento para sua tomada de
lugar como ator social (LIMA, 2013, p. 241).

Assim, cabe ao professor estimular essa dimensão crítica e contribuir na


função social da escola, desnaturalizando e problematizando os conteúdos
escolares, as discriminações e os preconceitos e levantando, juntamente
com os alunos, hipóteses que comparam certas posturas com outros pontos
de vista.
Neste capítulo, vimos que as mudanças conjunturais na cultura, na eco-
nomia, na política e na sociedade influenciaram diretamente os aspectos
educacionais, já que a educação não é uma esfera apartada da sociedade. Além
disso, estudamos que essas influências mútuas são mais bem compreendidas
se as percebemos através das ideologias, visões de mundo que orientam a
elaboração de políticas para a educação e o próprio sistema educacional. Por
fim, trabalhamos com o papel social da escola, ressaltando sua importância
em apresentar o mundo para as crianças e os adolescentes. Tal mundo é
mais amplo e diverso do que os universos privados de suas famílias e lares.
14 História da educação

Referências
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11274.htm.htm. Acesso em:
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BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
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diretrizes e bases da educação nacional... Brasília: Presidência da República, 2008.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.
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acerca da pesquisa sobre o livro didático de história. Revista Brasileira de Estudos
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LOMBARDI, J. C. Periodização na história da educação brasileira: aspecto polêmico e
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SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados,
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SEPULVEDA, D. Formação de identidades e processos de subjetivação na escola. Revista
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VEIGA, C. G. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial.
Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 39, p. 502-516, 2008.

Leitura recomendada
ANPED e a BNCC: luta, resistência e negação. Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação (Anped), c2022. Disponível em: https://www.anped.org.br/
content/anped-e-bncc-luta-resistencia-e-negacao. Acesso em: 8 jun. 2022.
História da educação 15

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