Um Vida de Obediência

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Esforça-te para escolher, não o que é mais fácil,

e sim o que é mais difícil.


Não prive sua alma da agilidade
que é necessária para que ela escale até Ele.

São João da Cruz


Sumário

1 | Criação, cuidado, chamado


2 | Disciplina: a resposta ao chamado de Deus
3 | Como saber que somos chamados?
4 | Debaixo de ordens
5 | Graça, Livro, Espírito — e mais uma coisa
6 | Um Deus soberano e a escolha do homem
7 | A disciplina do corpo
8 | A disciplina da mente
9 | A disciplina da posição
10 | A disciplina do tempo
11 | A disciplina das posses
12 | A disciplina do trabalho
13 | A disciplina dos sentimentos
14 | Troca: minha vida pela dele
Elisabeth Elliot (1926-2015) foi uma das escritoras cristãs mais
perceptivas e populares do século passado. Autora de mais de vinte livros,
incluindo Paixão e pureza, Deixe-me ser mulher e O sofrimento nunca é em
vão, Elliot ofereceu orientação e incentivo a milhões de leitores em todo o
mundo.
1 | Criação, cuidado, chamado

C
edo pela manhã, sento-me em um assento de janela em uma bela
cabana de pedra no topo de uma colina remota no sul do Texas. É
primavera. Não há telefone ou televisão e nenhum ser humano à
vista ou no alcance do som, exceto meu marido, Lars, que está lendo no
sótão. O silêncio é total, exceto pela tagarelice dos esquilos e pelos apelos
dos pássaros — cardeais-do-norte, gaios-do-mato, um pintassilgo, um peru
selvagem e um chapim de crista —, alguns dos quais nos permitiram vê-los
no comedouro ou nos deram vislumbres enquanto passavam rapidamente
por entre os carvalhos vivos e zimbros nodosos que nos rodeiam
completamente.
Do bosque sombreado de árvores, sai uma ovelha solitária. Ela caminha
delicadamente entre pedras afiadas, mordiscando a grama nova, sem se
importar com a chuva suave, que é facilmente derramada por sua lã oleada.
Será que ela está perdida? Onde está o resto do rebanho? Ela parece estar
em paz. Depois de pouco tempo, ela desaparece sobre o cume.
A seguir, vem um porquinho selvagem, um caititu. Ele dá fungadas no
chão, encontrando petiscos aqui e ali, mesmo entre essas rochas. Eu noto
que ele coxeia levemente, favorecendo o casco dianteiro esquerdo, que
parece estar inchado. De repente, ele levanta seu nariz de botão, inclinando-
o como um disco de radar em direção ao comedouro de pássaros, de onde
recebe a notícia de algo comestível. Ele treme por um momento, cheirando
em êxtase, salta brotando do chão em um arco limpo, mas não alto o
suficiente, nem mesmo perto o suficiente do comedouro. Aterrissando
dolorosamente no pé machucado, ele não faz nenhum som de reclamação e
ziguezagueia para dentro das árvores novamente. Eu gostaria de poder
amarrar o casco, confortá-lo de alguma forma. Isso está além do meu poder,
mas eu recorro a outro tipo de socorro, melhor do que qualquer curativo. Eu
oro por ele. “Olha ali o seu porco, Senhor. Por favor, cure a pata dele”. É
possível que ele tenha sido trazido à minha janela essa manhã (o caititu
normalmente é uma criatura noturna tímida) precisamente para ser o objeto
de uma oração.
Quanto mais o indivíduo chega ao centro das coisas, mais capaz ele é de
observar as conexões. Tudo o que foi criado está conectado, pois tudo é
produzido pela mesma mente, pelo mesmo amor, e depende do mesmo
Criador. Aquele que idealizou o universo, o Senhor Deus Onipotente, é
aquele que chamou as estrelas à existência, que ordenou a luz, que falou a
Palavra que trouxe a existência do tempo e do espaço e toda forma de
matéria: sal e pedra, rosa e madeira vermelha, penas e peles, e barbatana e
carne. O chapim de crista e o peru respondem ao Criador. As ovelhas, o
porco e o tentilhão são dele, estão à disposição dele, possuídos e conhecidos
por ele.
Nós também somos criados, pertencemos, somos posse, somos
conhecidos. Somos dependentes, assim como o caititu é dependente.
Conforme olho para a ovelha, tranquila, dependente, encontrando seu
alimento provido pelo Senhor, eu penso em como ele provê para mim
também.
Meu pai foi um ornitólogo amador que, quando jovem, se interessava
pelas aves muito antes da observação de pássaros se tornar um passatempo
popular. Ele andava no bosque e imitava os chamados e os cantos dos
pássaros, muitas vezes os atraindo para perto, nos galhos sobre sua cabeça.
Ele dava palestras, ilustradas com slides coloridos, nas quais falava sobre os
hábitos dos pássaros e imitava lindamente seus cantos. Ele quase sempre
fechava sua palestra com estas palavras:

Disse o Tordo ao Pardal:


“Realmente gostaria de saber
por que os humanos ansiosos
preocupados, estão a correr”.

Disse o Pardal ao Tordo:


“Amigo, acho que isso deve ser
porque eles não têm Pai celeste
como o que cuida de mim e de você”. 1

Será que nós não temos um Pai amoroso assim? É claro que temos.

[...] Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. [...] Todos eles
dirigem seu olhar a ti, esperando que lhes dês o alimento no tempo certo; tu lhes dás, e eles
o recolhem [...]; quando lhes retiras o fôlego, morrem e voltam ao pó. Quando sopras o teu
fôlego, eles são criados [...]. 2

Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês. 3

Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo,
vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? 4

Estou de volta a Massachusetts agora.


Ontem à noite, quando o sol se punha, uma densa névoa se enrolava ao
largo do mar. Eu pude ver as formas escuras das gaivotas no meio do mar,
atirando-se para o oeste, sem dúvida para a Ilha de Kettle, onde elas se
empoleiram à noite, guiadas pelo que o mundo chama de “instinto”, que é
provavelmente a maneira dos cientistas dizerem que não fazem ideia do que
as guia. Eu acredito que Deus é quem as guia. Será que elas estão cientes
disso? Será que o tordo e o pardal sabem que são cuidados? Não sabemos.
Sabemos sim que há uma diferença profunda entre eles e nós.
Dizemos “livre como um pássaro”, mas a verdade é que Deus quis que
fôssemos mais livres do que os pássaros. Ele nos fez à sua imagem, o que
significa que ele nos deu coisas que não deu aos pássaros: razão, vontade e
poder de escolha.
Deus me chama. Em um sentido mais profundo do que qualquer outra
espécie de criatura ligada à terra, eu sou chamada. E, num sentido mais
profundo, sou livre, pois posso ignorar o chamado. Posso fazer ouvidos
surdos. Posso dizer que nenhum chamado veio. Posso negar que Deus me
chamou ou mesmo que Deus existe. Que dom de graça surpreendente – que
aquele que me fez me permite negar sua existência! Deus me criou com o
poder de desobedecer, pois a liberdade de obedecer não seria nada sem a
correspondente liberdade de desobedecer. Eu posso responder não ou posso
responder sim. Minha realização como ser humano depende da minha
resposta, pois é um Senhor amoroso que me chama por entre a névoa do
mundo para sua ilha de paz. Se eu confiar nele, lhe obedecerei de bom
grado.
Elizabeth Cheney, “Overheard in an Orchard”.
Salmos 104.24, 27-30, NVI.
1 Pedro 5.7, NVI.
Mateus 6.26.
2 | Disciplina: a resposta ao chamado de Deus

N
enhuma história na Bíblia me capturou mais poderosamente
quando eu era criança do que a história do profeta Eli e do menino
Samuel. Foi no tempo em que “a palavra do SENHOR era mui rara;
as visões não eram frequentes. [...] Samuel ainda não conhecia o SENHOR , e
ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do SENHOR ” 5 . A criança
estava dormindo sozinha no templo, perto da arca de Deus, quando ouviu o
que pensava ser a voz de Eli chamando seu nome. Três vezes ele correu
obedientemente ao seu mestre; três vezes foi-lhe dito que Eli não o havia
chamado. Finalmente, o velho profeta percebeu que era o Senhor e disse ao
menino o que dizer da próxima vez.
“Então, veio o SENHOR , e ali esteve, e chamou como das outras vezes:
Samuel, Samuel! Este respondeu: Fala, porque o teu servo ouve.’” 6
Eu acreditava, quando era muito pequena, que se o Senhor podia chamar
o menino Samuel, ele poderia me chamar. Muitas vezes, eu lhe dizia: “Fala,
Senhor”, esperando que ele viesse encontrar-me como havia feito com
Samuel. Claro que eu esperava uma voz audível, uma luz na sala, a mão do
Senhor pousando palpavelmente sobre a minha. O Senhor, no entanto, não
deu esse tipo de resposta, mas a Palavra dele veio até mim de mil maneiras,
começando com o fiel ensinamento bíblico que meus pais me deram e
continuando através dos anos, linha após linha, preceito após preceito, um
pouco aqui e um pouco ali.
Sempre há, nas grandes biografias da Bíblia, um senso do homem sendo
confrontado por Deus. A Bíblia é, de fato, um livro sobre Deus e os homens
— Deus conhecendo e chamando os homens, e os homens respondendo e
conhecendo a Deus.
Deus abençoou Adão e Eva e imediatamente deu-lhes a responsabilidade
de serem fiéis, de governarem a terra e tudo o que nela existe. Houve vários
intercâmbios entre Deus e Adão antes que ele e Eva decidissem
desobedecer-lhe. Quando o fizeram, mesmo que tenha sido ideia de Eva
comer o fruto proibido, foi Adão quem foi convocado: “Onde você está?”
Adão deu desculpas para si mesmo, mas Deus continuou a se dirigir a ele,
fazendo perguntas: “Quem lhe disse?”, “Você comeu?”, “O que você fez?”.
Deus exigia resposta porque ele havia feito uma criatura que era
responsável.
Deus confiou a Noé seu plano de destruir a terra. Ele disse a Noé como
ele e sua família poderiam escapar do julgamento — se eles obedecessem.
“Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança. [...] Assim fez Noé,
consoante a tudo o que Deus lhe ordenara”. 7
Abraão foi escolhido para ser o “pai de muitas nações”. Foi-lhe pedida
obediência estrita, obediência que implicaria o sacrifício de um homem de
75 anos: separação de tudo o que lhe era familiar, desenraizamento do
ambiente confortável, abandono de posses e segurança material. Mas ele
“partiu [...] como lho ordenara o SENHOR ”. 8
Moisés foi outro. Não poderia haver nenhuma dúvida em sua mente de
que ele estava sendo chamado divinamente quando uma voz (talvez a
primeira voz que ele ouvia depois de muito tempo, já que ele estava longe
no deserto, cuidando das ovelhas) falou seu nome de dentro do arbusto que
estava pegando fogo. Moisés respondeu “Eis-me aqui”.
Na vida de Samuel, de Davi, de Jeremias, de Mateus e de Saulo de Tarso,
bem como nas de muitos outros na Bíblia, há evidência de um forte senso
de ser conhecido, de ser adquirido, possuído, chamado, agido sobre. Eles
não foram homens que estavam especialmente preocupados com as
perguntas “Será que Deus está me chamando?” e “Como eu posso ser um
grande servo de Deus?”. Eles não estavam preocupados com o crédito, com
planos para a notoriedade ou o sucesso. Quaisquer que fossem os planos
que eles tivessem, Deus tinha a precedência.
Quando criança em um lar cristão, eu ainda não tinha uma compreensão
da palavra disciplina . Eu simplesmente sabia que eu pertencia a pessoas
que me amavam e cuidavam de mim. Isso é dependência. Eles falavam
comigo e eu respondia. Isso é responsabilidade. Eles me davam coisas para
fazer e eu as fazia. Isso é obediência. Isso se soma à disciplina. Em outras
palavras, a totalidade da resposta do crente é disciplina. Enquanto há casos
em que as duas palavras, disciplina e obediência , parecem ser
intercambiáveis, eu estou usando a primeira para compreender a segunda e
sempre pressupondo tanto a dependência quanto a responsabilidade.
Poderíamos dizer que a disciplina é a “carreira” do discípulo. Ela define a
própria forma da vida do discípulo. A obediência , por outro lado, refere-se
à ação específica.
A disciplina é a resposta do crente ao chamado de Deus. É o
reconhecimento não da solução de seus problemas ou do suprimento de
suas necessidades, mas de pertencer a um mestre . Deus se dirige a nós.
Nós somos responsáveis — isto é, devemos dar uma resposta. Podemos
escolher dizer “sim” e, assim, cumprir o glorioso propósito do Criador para
nós, ou podemos dizer “não” e violá-lo. Isso é o que se entende por
responsabilidade moral. Deus nos chama à liberdade, à satisfação e à alegria
— mas nós podemos recusar essas coisas. Em um profundo mistério,
escondido nos propósitos de Deus para o homem antes da fundação do
mundo, está a verdade do livre-arbítrio do homem e da soberania de Deus.
Disto nós sabemos: um Deus que é soberano escolheu criar um homem
capaz de desejar sua própria liberdade e, portanto, capaz de responder ao
chamado.
Jesus, em resposta à vontade do Pai, demonstrou o que significa ser
completamente humano quando tomou sobre si a forma de homem e, ao
fazê-lo, escolheu, de forma voluntária e contente, tanto a dependência
quanto a obediência. A humanidade para nós, assim como para Cristo,
significa tanto dependência quanto obediência.
A relutância por parte de homens e mulheres em reconhecer sua
dependência indefesa é uma violação da nossa “condição de criatura”. A
relutância em ser obediente é uma violação da nossa humanidade. Ambas
são declarações de independência e, sejam elas físicas ou morais, são
essencialmente ateístas. Em ambas, a resposta ao chamado é não.
O adorável hino do bispo Frank Houghton expressa a dependência e a
obediência do Filho ao Pai:
Tu que eras rico em todo o esplendor,
pobre nasceste e foi por amor;
trono trocaste pela manjedoura,
corte brilhante por estrebaria.

Tu que és Deus de todo louvor


nasceste homem e foi por amor;
rebaixou-se para levar ao lar celestial
o pecador por um plano eternal.

Tu que és amor além de qualquer palavra


rei e salvador, adoramos-te!
Emanuel, em nós habitando,
torna-nos aquilo o que queres que sejamos. 9

A disciplina é o “sim” de todo coração ao chamado de Deus. Quando me


conheço como alguém chamado, convocado, dirigido, tomado como posse,
conhecido, agido, eu ouvi o Mestre. Eu me coloco alegremente, plenamente
e para sempre à disposição dele, e diante de tudo o que ele diz, minha
resposta é “sim”.
1 Samuel 3.1, 7.
1 Samuel 3.10.
Gênesis 6.18, 22.
Gênesis 12.4.
“Thou Who Wast Rich”, Christian Praise (London: The Tyndale Press, 1957). Tradução livre.
3 | Como saber que somos chamados?

E
u sou puxada ou atraída pelo chamado de Cristo, assim como a
terra é puxada pela força da gravidade. É útil lembrar que a mesma
palavra usada para essa força misteriosa também é usada para
significar “seriedade” ou “severidade”. É uma força que atrai para um
centro. Ao responder a essa força e me mover de acordo com ela, não estou
mais sem peso. Eu sou séria, severa, “grave”. A mesma verdade se aplica
tanto ao mundo espiritual quanto ao físico. No espaço, os astronautas
experimentam a miséria de não ter nenhum ponto de referência, nenhuma
força que os atraia para o centro. O esforço de realizar atividades comuns
sem a ajuda dessa atração é, muitas vezes, muito maior do que seria em
condições normais (tente derramar um copo de água, comer um ovo frito ou
girar uma chave de fenda — a água não cairá, o ovo não ficará no garfo, a
chave de fenda não girará: você girará). Onde não há “gravidade moral” –
ou seja, nenhuma força que nos atraia para o centro – há ausência de peso
espiritual. Flutuamos nos sentimentos que nos levarão aonde nunca
quisemos ir; borbulhamos com experiências emocionais que muitas vezes
tomamos por espirituais; e ficamos cheios de orgulho. Em vez de seriedade,
há tolice. Em vez da gravidade, petulância. O sentimentalismo toma o lugar
da teologia. Nosso ponto de referência nunca servirá para manter nossos pés
sobre rochas sólidas, pois nosso ponto de referência, até que respondamos
ao chamado de Deus, somos apenas nós mesmos. Não podemos dizer qual é
o fim. Paulo os chama de tolos que “[medem-se] consigo mesmos e
[comparam-se] consigo mesmos.” 10
Como sabemos que somos chamados? Essa pergunta é feita repetidas
vezes, sendo as respostas muito variadas e confusas. O Novo Testamento
contém muitas expressões do chamado do cristão:

E vocês também estão entre os chamados para pertencerem a Jesus Cristo. 11

[...] fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor. 12

Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. 13

O chamado para ser um cristão. 14

Chamados à liberdade. 15

Chamados para serem homens livres. 16

Viver de maneira digna ao chamado. 17

[...] vocês foram chamados para viver em paz. 18

Quem foram essas pessoas a quem Paulo estava escrevendo em cada


uma dessas frases? Eram uma raça especial, marcada, talvez, por dons
notáveis e perfeição física? Sabemos que eram pessoas comuns, pessoas
que tinham sido, antes de crerem, todo tipo de pecadores. Como Paulo
poderia ter tanta certeza de que eles eram “chamados”? Ora, pela
obediência deles, é claro. A certeza vem com a obediência. É somente
através da ação que o chamado de Deus é conhecido. Os convites já foram
emitidos:

Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração. 19

Se alguém tem sede, venha a mim e beba. 20

“Ele chamou o povo a si, bem como seus discípulos, e lhes disse:
‘Qualquer um que deseja ser meu seguidor deve deixar o eu para trás; deve
tomar a sua cruz e vir após mim’”. 21 É importante notar que esse chamado
foi emitido tanto ao povo comum quanto aos discípulos. “Qualquer um que
deseja” poderia vir se aceitasse as condições.
Nunca precisamos fazer a pergunta: “Como sei que sou chamado?”.
Antes, devemos perguntar: “Como sei que não sou chamado?”. Somos
obrigados a arriscar, agir, confiar em Deus, fazer um começo. Isso é o que
Jesus sempre pediu àqueles que vinham a ele em busca de qualquer tipo de
ajuda. Às vezes, Jesus pedia que eles contassem seus casos (“O que você
quer que eu faça?”), que afirmassem seus desejos (“Você quer ser curado?”)
e, muitas vezes, que fizessem algo positivo (“Estenda sua mão”) antes que
ele pudesse fazer seu trabalho. Deveria haver evidência de fé, algum tipo de
começo da parte das pessoas. O primeiro passo de fé é seguido por uma
caminhada diária de obediência, e é enquanto continuamos com ele na
Palavra que temos a certeza de que fomos, de fato, chamados e não temos
nada a temer. O medo mais comum do verdadeiro discípulo, eu suponho, é
sua própria indignidade. Quando Paulo escreveu aos coríntios, um grupo de
cristãos que tinha feito algumas trapalhadas terríveis mesmo dentro da
própria igreja, ele, ainda assim, nunca duvidara do chamado daquelas
pessoas, pois elas estavam preparadas para ouvir a Palavra e para serem
guiadas e corrigidas. Não foi a perfeição da fé dos coríntios que convenceu
Paulo de que eles eram chamados. Eles tinham feito um começo. Naquele
início, Paulo encontrou provas de fé: “Tal é a confiança que temos diante de
Deus, por meio de Cristo. Não que possamos reivindicar qualquer coisa
com base em nossos próprios méritos, mas a nossa capacidade vem de
Deus”. 22
Algumas vezes, os jovens me dizem: “Eu simplesmente morrerei se
Deus me chamar para ser um missionário” ou coisas do tipo.
“Maravilhoso!”, eu digo. “Esse é o melhor modo possível de começar.
Você não será de muita utilidade em um campo missionário, a menos que
‘morra’ primeiro”. As condições para o discipulado começam com
“morrer”, e, se você der o primeiro passo, muito provavelmente descobrirá
que foi, de fato, “chamado”.
Tanto o desejo como a convicção desempenham um papel na vocação.
Muitas vezes o desejo vem em primeiro lugar. Pode haver uma inclinação
natural, ou um interesse despertado por informações, ou talvez um anseio
inexplicável. Se esses sentimentos, às vezes enganosos, são oferecidos ao
Mestre e submetidos ao teste da sua Palavra, eles serão confirmados por
vários meios e se tornarão uma convicção. Às vezes, a convicção vem
primeiro, acompanhada não sempre pelo desejo, mas pelo medo ou pavor,
como no caso dos profetas do Antigo Testamento, aos quais foram dadas
tarefas muito difíceis. A única coisa a ser feita então é levantar-se e partir.
No livro Príncipe Caspian , de C. S. Lewis, a criança Lúcia, tendo-se
perdido com seus irmãos e irmã, encontrou finalmente o grande Leão,
brilhando branco ao luar. Os outros não puderam vê-lo em outras ocasiões e
Lucy estava certa de que não acreditariam que ela o havia encontrado dessa
vez.

“Espero aqui por você”, disse Aslam. “Vá acordar os outros: eles devem segui-la. Se não
quiserem vir, você pelo menos terá de acompanhar-me”.
É desagradável ter de acordar quatro pessoas mais velhas, ainda por cima cansadas, para
dizer-lhes uma coisa na qual provavelmente elas não irão acreditar, e para convencê-las a
fazer aquilo que não querem. Lúcia disse para si mesma: “É melhor nem pensar! Tenho é de
ir em frente e topar o desafio!” 23

Ela o faz, e eventualmente eles a seguem. Quando encontram Aslam, ele


tinha o aspecto “tão majestoso que todos ficaram contentíssimos, tão
contentes quanto é possível a pessoas que sentem medo e tão cheios de
medo quanto é possível a pessoas que se sentem contentes”.
Para Lúcia, crer era ver. Os outros não podiam crer, a princípio, porque
não viam. É sempre assim. Só o crente será capaz de ouvir o chamado. Ele
vem de além de nós mesmos, além de nossa sociedade, além do clima de
opinião, preconceito, rebelião e ceticismo em que vivemos, além do nosso
tempo e do nosso gosto. O chamado atrai em direção ao centro de todas as
coisas, aquele lugar imóvel sobre o qual T. S. Eliot escreveu:

Contra a Palavra o mundo inquieto ainda girava


acerca do centro da Palavra silenciosa. 24
2 Coríntios 10.12.
Romanos 1.6, NVI.
1 Coríntios 1.9.
1 Coríntios 1.26, NVI.
1 Coríntios 7.22; tradução livre da New English Bible (NEB).
Gálatas ٥.١٣ .
Gálatas ٥.١٣; tradução livre da New English Bible (NEB).
Efésios 4.1; tradução livre da New English Bible (NEB).
Colossenses 3.15.
Mateus 11.28-29.
João 7.37.
Mateus 16.24; tradução direta da NEB.
2 Coríntios 3.4-5; NVI.
C. S. Lewis, O Príncipe e a Ilha Mágica (S ão Paulo : ABU Editora, 1984), 109-110, 116.
T. S. Eliot, “Ash Wednesday”, The Waste Land and Other Poems (New York: Harcourt Brace and
World, Inc., 1962).
4 | Debaixo de ordens

D
isciplina cristã significa colocar-se debaixo de ordens. Não é um
mero negócio de autoaperfeiçoamento, que pode ser listado com
leitura rápida, observação de peso, corrida, gerenciamento de
tempo, reparos domésticos ou com como ganhar amigos. Tais programas
têm um forte apelo que é, em grande parte, egocêntrico: o que há nessas
coisas para mim? Vou melhorar meu QI, minha aparência, minha forma,
minha eficiência, minha casa, minha conta bancária? Serei mais apreciado,
cortejado, levado mais a sério, promovido? Se esses são os objetivos,
certamente será útil persegui-los com encorajamento de outras pessoas e na
companhia de outros que tenham as mesmas ambições. A pressão social vai
longe, mas, no final de um programa tipo “faça você mesmo”, depende
apenas da força de vontade, o que não é suficiente para a maioria de nós.
O discípulo é alguém que tomou uma decisão muito simples. Jesus nos
convida a segui-lo e o discípulo aceita o convite. Eu não digo que essa é
uma decisão fácil e tenho descoberto que ela precisa ser renovada
diariamente. As condições não são tais a ponto de atrair multidões. Jesus
declarou-lhes 25 :
1. Ele deve deixar o eu para trás;
2. Ele deve tomar a sua cruz;
3. E vir comigo.
O resultado da decisão é garantido:
1. Quem se preocupa com sua própria segurança está perdido;
2. Mas se um homem se deixar perder por minha causa, ele encontrará
seu verdadeiro eu.
O discípulo não está por conta própria, deixado sozinho para buscar a
autoatualização , que é uma nova palavra para o velho egoísmo . Ele não
está “fazendo suas coisas” para encontrar sua própria vida, ou a liberdade,
ou a felicidade. Ele se entrega a um Mestre e, ao fazê-lo, deixa o eu para
trás. Qualquer vida ordinária em qualquer cidade ordinária oferece amplas
oportunidades para se fazer isso. Andando em um ônibus nova-iorquino
recentemente, vi uma mulher se aproximar e abrir uma pequena parte de
uma janela. O ônibus estava muito lotado e eu fiquei feliz por um pouco de
ar fresco. A janela, porém, foi raivosamente fechada por outra mulher.
“Não está frio”, disse a primeira. “Será que não podemos ter um pouco
de ar?”
“Não. Nas minhas costas você não pode”, veio a réplica, uma
perfeitamente natural.
O discípulo, entretanto, vive por uma regra diferente, uma regra não
natural para qualquer um que seja pecador. Ele se deixará “perder”. Esse é o
grande princípio da cruz que ele toma: de sua própria perda vem o ganho do
outro, do seu desconforto vem o conforto do outro. Quão facilmente
professamos uma vontade de seguir, imaginando algum trabalho notável
para Deus, algum grande martírio, mas nos esquecemos da primeira
condição no minuto em que há um pouco de ar frio na parte de trás do
nosso pescoço.
Quando eu estava na faculdade, ao sair o anuário, era costume pedir aos
amigos que o assinassem. Normalmente eles escreviam algumas palavras
além da assinatura, e quando uma garota pedia o autógrafo de um homem
que ela admirava de forma especial, ela esperava secretamente alguma pista
dos sentimentos dele em relação a ela nas palavras que ele escrevesse. Jim
Elliot assinou seu nome em meu anuário do Wheaton College, a Torre , e
acrescentou apenas uma referência das Escrituras: 2 Timóteo 2.4.
“Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque
o seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou”. 26 A mensagem
estava em alto em bom som. Quaisquer esperanças que eu pudesse ter
entretido, quaisquer sentimentos que o próprio Jim pudesse ter tido por
mim, os quais ele não expressou na época, deveriam dar precedência ao
princípio que guiava a vida dele. Ele não tinha a liberdade de fazer planos
para o futuro já que estava à disposição de outro alguém.
Qualquer “soldado”, qualquer candidato à disciplina cristã, deve
apresentar-se diariamente ao seu comandante para o serviço. Ao seu dispor,
Senhor. O que o soldado faz para o oficial não está na categoria de um
favor. O oficial pode pedir qualquer coisa. Ele dispõe do soldado como
quiser. O próprio pensamento é um horror para a mente moderna.
“Ninguém vai me dizer o que fazer. Ninguém tem o direito de dispor de
mim ”.
Esse padrão de pensamento tem seu poderoso efeito também sobre os
cristãos, de modo que chegamos a imaginar que o discipulado é, de certa
forma, um “extra”. Supomos que podemos ser cristãos, indo à igreja,
fazendo nossas orações, cantando aquelas doces canções de amor e
sentimento, compartilhando e louvando, sem assumir nossa parte de
dificuldade. Aqueles que desejam fazer uma oferta especial de santidade,
dizemos a nós mesmos, podem tentar a disciplina (“ela tem seu lugar”)
como se fosse um estilo de vida estranho ou fanático, e não uma coisa para
a maioria de nós.
É como se fôssemos cristãos sem sermos discípulos.
“Sim, eu quero ser cristão, mas não, eu não quero ser seu discípulo,
Senhor. Pelo menos, ainda não. Isso é esperar demais”.
“Sim, eu serei um discípulo, mas não, certamente não quero deixar meu
eu para trás”.
“Eu deixarei meu eu para trás se o Senhor assim o disser, mas não me
peça para pegar nenhuma cruz. Não tenho certeza se me sentiria confortável
com isso”.
“Seguir-te, Senhor? Bem, sim, claro — mas será que eu poderia ter uma
pequena informação sobre para onde estamos indo, por gentileza?”
Nada poderia estar mais longe do espírito do Evangelho. A própria razão
pela qual Cristo morreu foi “para que os que vivem não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. 27
Ser cristão, em termos do Novo Testamento, é ser um discípulo. Não há
duas maneiras de ser cristão. Temos um Salvador que nos perdoou e nos
salvou da penalidade do pecado. A maioria de nós ficaria feliz por isso, mas
ele morreu para nos salvar também de nossos pecados , muitos dos quais
amamos e odiaríamos ter que nos separar deles. Cristo não poderia ter feito
isso se ele não fosse Senhor sobre todos os poderes do mal. Jesus Cristo é
Salvador porque ele é Senhor. Ele é Senhor, porque ele é Salvador. Eu não
posso ser salva de meus pecados a menos que eu também seja salva de mim
mesma, então Cristo deve ser o “oficial comandante” em minha vida.
Referência a Mateus 16.24-25.
2 Timóteo 2.4.
2 Coríntios 5.15.
5 | Graça, Livro, Espírito — e mais uma coisa

U
ma mulher com excesso de peso me disse que havia orado durante
anos para que Deus lhe tirasse o apetite. Ele não o fez. Ela
continuou a ganhar peso até ficar descontente consigo mesma.
“Senhor, por que não respondes à minha oração e tiras o meu desejo de
comer?”, perguntou ela.
“Então o que você teria que fazer?”, ele lhe perguntou.
“Vi imediatamente que eu tinha uma responsabilidade. Eu não teria tido
nenhuma responsabilidade se eu não tivesse a tentação de comer. Percebi
que Deus não ia facilitar tanto para mim — eu tinha que começar a me
disciplinar e a confiar nele para me ajudar na minha decisão”.
Deus não faz todos os movimentos por nós. Ele nos dá os meios para a
disciplina. Será que a disciplina, então, nos salvará? Não, é Cristo quem nos
salva. Precisamos ser muito claros a esse respeito. Desde os primeiros dias
do cristianismo, as pessoas caíram no erro de pensar na disciplina como um
meio de salvação.
A salvação é um presente, puramente um presente, para sempre um
presente. É a graça, e nada além da graça, que a obtém para nós. A
disciplina não é minha reivindicação sobre Cristo, mas a prova da
reivindicação dele sobre mim. Eu não o “torno” Senhor, eu o reconheço
como Senhor. Fazer isso com honestidade envolve a plena intenção de fazer
a vontade dele, ou seja, de viver sob a disciplina da Palavra dele. Mas
mesmo isso não é algo que conseguimos sozinhos. Três coisas nos ajudam.
Se nós somos cristãos, estamos sob a graça . Somos disciplinados por
ela. “Porque a graça de Deus se manifestou [...] e por ela somos
disciplinados a renunciar a caminhos ímpios e a desejos mundanos, e a
viver uma vida de temperança, honestidade e piedade”. 28
Se nós somos cristãos, temos um livro de regras. Somos disciplinados
por ele. “Toda escritura é inspirada por Deus e útil [...] para a renovação dos
modos e para a disciplina no viver reto”. 29
Se nós somos cristãos, temos o Espírito de Deus. Somos disciplinados
por ele. “O espírito que Deus nos deu não é um espírito de covardia, mas
um que inspira autodisciplina ”. 30
Aí está. A graça torna isso possível; a Escritura aponta o caminho; o
Espírito inspira – mas há mais uma coisa. Ainda há algo que o homem pode
fazer, e essa é a maior coisa que qualquer homem pode fazer: depositar sua
plena confiança no Deus vivo. Fé é a única coisa exigida.
Há algo que finge ser cristianismo, mas que é, na maioria das vezes, um
humor. A medida de sua fé é apenas a medida do sentimento.
“Adoro o sentimento que tenho quando me encontro com o maravilhoso
povo de Deus” é uma canção que descreve tudo o que algumas pessoas
sabem sobre fé. Quando o sentimento está lá, eles tem fé. Quando o
sentimento foi embora, eles perderam a fé.
Tiago coloca isso de forma bem clara em sua epístola:

Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode,
acaso, semelhante fé salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e
necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-
vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?
Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta.
Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu,
com as obras, te mostrarei a minha fé. Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os
demônios creem e tremem. Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as
obras é inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando
ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as
suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou. 31

Essa fé não é nem um humor nem um sentimento, mas a obediência


prática é claramente vista quando Jesus coloca a responsabilidade de
perdoar diretamente sobre os apóstolos – sete vezes em um dia, disse-lhes
Jesus, eles devem perdoar o mesmo homem. Eles perceberam vagamente
que isso exigiria fé e que a fé deles não era grande coisa. O humor e o
sentimento não fariam muito para permitir que eles obedecessem a essa
ordem. “Senhor, aumenta-nos a fé!”, disseram eles, muito provavelmente se
refugiando da obediência, deixando implícito que não se poderia esperar
que eles obedecessem até que, por algum milagre especial da graça, lhes
fosse dada uma superabundância de fé. Superabundância de fato! Ora,
mesmo a fé não maior do que uma semente de mostarda poderia desarraigar
uma amoreira, disse-lhes Jesus. A maneira de aumentar a fé deles era
ficarem ocupados e fazerem o que deveriam fazer, e “depois de haverdes
feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos
apenas o que devíamos fazer”. 32
Não há muito desse espírito hoje em dia. Nós não reconhecemos o
senhorio. Não nos vemos como à disposição do Senhor. Esperamos apreço.
Gostaríamos de pelo menos um agradecimento, e talvez um pequeno
tapinha de aprovação nas costas.
“Se agradasse ainda a homens”, disse Paulo, “não seria servo de Cristo”.
33
É àquele que está no comando que devemos prestação de contas do que
fazemos, não aos expectadores. Quando um servo faz um serviço, isso é
meramente o que é esperado dele. Não há nada fora do ordinário sobre isso.
Um casal que eu conheço estava casado há apenas uma ou duas semanas
quando a esposa foi às compras. O marido se perguntava o que poderia
fazer por ela, enquanto ela estava fora, que lhe agradaria e a surpreenderia,
e lhe mostraria o quanto ele a amava. Veio-lhe à mente um plano brilhante.
Ele se ajoelhou e esfregou o chão da cozinha. Foi uma tarefa humilhante em
sua opinião, e ele se sentiu extremamente humilde ao realizá-la. Como Ann
ficaria espantada! Ele esperou ansioso pela volta dela, pensando que grande
bênção é o ato de dar.
Ela dirigiu pela entrada da garagem, desfilou pela cozinha, colocou as
sacolas de supermercado no balcão e olhou para o chão.
“Oh, o chão está limpo. Obrigada, querido!” foi tudo o que ela disse e foi
arrumar as coisas.
O homem me disse que ficou se sentindo para baixo durante três dias.
Ele ficou magoado; sentiu-se insultado; não foi devidamente apreciado; e a
bênção de dar foi drenada em um instante porque ele não tinha recebido o
tipo de agradecimento que esperava.
Ann não tinha ideia de qual era o problema. O que ela não sabia era que
seu marido nunca ouvira falar de um homem fazendo algo como esfregar
um chão para sua esposa, especialmente de forma voluntária, que tivesse
pensado nisso tudo sozinho. O que ele não sabia era que, na família de sua
esposa, nenhuma mulher jamais havia feito esse trabalho. O pai dela
considerava aquele um trabalho de homem e o fazia naturalmente.
Aquele jovem marido levou a lição a sério. Ele agora acredita que seria
sábio para todo cristão estabelecer como lema pessoal a lição que Jesus
ensinou: “Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos
fazer”. 34
Foi-nos dada uma tarefa. A fé é essa tarefa. Não nos deixemos iludir
pensando que estamos fazendo qualquer contribuição para nossa salvação
eterna, que estamos fazendo um favor a Deus ou que ele nos deve qualquer
coisa pela obra feita.
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de
obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para
boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. 35

Projetado para boas obras. É tão simples quanto isso. Foi uma ideia de
Deus. Ele fez o projeto. Ele espera que nós trabalhemos, assim como o
projetista de um instrumento de precisão; se ele entende os princípios
envolvidos e faz o projeto de acordo, ele espera que a coisa funcione. Não é
um grande crédito para o instrumento se ele funcionar.
Tito 2.11-12; Tradução livre da versão New English Bible (NEB); itálico adicionado.
2 Timóteo 3.16; Tradução livre da NEB; itálico adicionado.
2 Timóteo 1.7; Tradução livre da NEB; itálico adicionado.
Tiago 2.14-22.
Lucas 17.10.
Gálatas 1.10.
Lucas 17.10.
Efésios 2.8-10.
6 | Um Deus soberano e a escolha do homem

A
analogia do instrumento se rompe. Ela pode nos ajudar a
compreender a vontade do Criador e seu poder absoluto sobre o
que ele faz, mas deixa de fora a vontade do homem. Não seria
possível, no âmbito deste livro, lidar de forma adequada, ou mesmo boa,
com a questão da soberania de Deus, mesmo que eu estivesse equipada para
fazê-lo. Não estou tão equipada para isso. Mas talvez eu possa apontar
algumas coisas que me ajudaram a compreender certos aspectos desse
mistério teológico.
Se Deus está no controle das coisas grandes, ele também deve estar no
controle das pequenas. É um absurdo dizer que ele controla os ventos, as
tempestades e os oceanos, mas não as pressões que os movem, ou que ele
vê os limites do mar e faz as marés subirem e baixarem, mas não tem nada a
ver com cada onda, com as criaturas que nadam nelas ou com os meandros
das moléculas e átomos que compõem o todo.
Recentemente, tomei conhecimento de uma pequena criatura
maravilhosa chamada diatomácea. Trata-se de algas unicelulares, sendo a
maior diatomácea de apenas 1 milímetro de diâmetro. Elas têm sido
chamadas de as “plantas” mais vitais da Terra, embora, uma vez que elas
nadam e escavam, haja espaço para debate sobre se esse é um rótulo
acertado. Elas fornecem mais alimento do que qualquer outro ser vivo, mas
se tudo o que o projetista tinha em mente era forragem, ele não precisava tê-
las feito tão extravagantes. As diatomáceas existem em uma tremenda
variedade de formas, incluindo rodas de pino, espirais, discos, varetas,
ovais, triângulos e, até mesmo, estrelas e candelabros. Muitas criaturas
minúsculas as comem, incluindo copépodes e krills (sobre os quais eu
nunca ouvira falar até que aprendi sobre diatomáceas). Os peixes as comem,
assim como as baleias jubarte, que conseguem engolir várias centenas de
bilhões de diatomáceas a cada poucas horas. As baleias assassinas as
adoram, mas são necessárias cinco toneladas das pequenas estrelas e
candelabros para satisfazer 1 quilo de baleia assassina.
Quem construiu essa espantosa cadeia alimentar?
Albert Einstein escreveu: “Um espírito se manifesta nas leis do universo,
muito superior ao do homem, e um espírito em face do qual nós, com
nossos modestos poderes, devemos nos sentir humildes. A causalidade tem
que existir. O universo não poderia operar sobre o acaso. Deus não joga
dados”.
Deus, o causador de tudo isso, também “nos leva a causar”.
“O poder autodeterminante do indivíduo é parte da predestinação
ordenada de Deus e da necessidade sentida pelo seu amor de dotar o
homem de uma liberdade como a dele, e ele esperava que o homem
respondesse à liberdade dele”. 36
Conta-se a história de um pregador que saiu para ver uma fazenda de
trigo. Enquanto ele e o fazendeiro estavam olhando as belas ondas de grãos,
o pregador disse: “Bem, João, você e Deus certamente fizeram um bom
trabalho aqui”.
O fazendeiro empurrou seu chapéu de volta na cabeça, olhou
silenciosamente para o campo, e disse lentamente: “Você deveria ter visto
quando Deus o tinha só para si”.
Depois da Encarnação, não conheço uma verdade mais espantosa e
humilhante do que um Deus soberano ter ordenado minha participação.
Essa é a ordem do universo: cada criatura recebendo seu devido lugar, cada
um contribuindo com sua parte para o todo, o homem entre eles. No
entanto, o homem é singular em ter recebido sobre si uma tremenda
liberdade. O fazendeiro tomou a decisão de plantar trigo. O campo não teria
estado lá se ele não tivesse tomado a decisão e feito a prodigiosa quantidade
de trabalho necessária para produzir aquela plantação cintilante. Nem teria
estado lá se Deus não tivesse providenciado a terra em primeiro lugar,
ordenado que o sol brilhasse e que a chuva caísse, e acelerado a vida da
semente que João colocara no solo.
Dissemos que a disciplina cristã é um sim de todo o coração que uma
pessoa diz ao chamado de Deus. É da maior importância que entendamos a
necessidade de duas vontades, uma criada pela outra e ordenada
gratuitamente, ambas operando de acordo. Se esquecermos que existem
duas vontades e nos detivermos apenas na vontade soberana de Deus,
abdicaremos da nossa responsabilidade e cairemos no fatalismo do Islã, que
deixa tudo para o inescrutável e incognoscível. Se, por outro lado, nos
esquecermos da soberania de Deus e nos enxergamos como independentes,
tomaremos como nossa toda a responsabilidade e deixaremos Deus fora
dela — em outras palavras, nos tornaremos Deus. Em ambos os casos, não
fazemos a vontade dele e o resultado é a perda de nossa alegria e liberdade.
Deus organizou as coisas de tal forma que sua própria ação está ligada à
ação dos homens. A Bíblia está repleta de exemplos de um Deus amoroso e
poderoso escolhendo homens pecadores e fracos para realizar seus
propósitos, permitindo-lhes a dignidade de agir em liberdade e, assim, de
ter uma parte volitiva no que ele faz.
Quando o povo de Israel se encontrou “entre o diabo e o profundo mar
azul”, ou seja, entre os egípcios e o mar Vermelho, eles ficaram
desesperados. Eles ficaram furiosos com Moisés por tê-los metido naquela
confusão. Moisés prometeu que o Senhor os salvaria se eles apenas se
aquietassem. Ele estava correto. O Senhor os salvou, mas não sem
cooperação, ou seja, não sem os atos de obediência tanto da parte de Moisés
quanto da parte do povo.
“Diga ao povo para ir em frente”, disse Deus. Moisés tinha crer que
Deus quis dizer isso, e ele tinha que fazer o que Deus disse. Se tivesse
duvidado, tudo teria sido perdido. Moisés confiou em Deus e o povo
confiou em Moisés. Eles também tinham que obedecer.
“Levanta o teu bordão, estende a mão sobre o mar e divide-o”, disse
Deus. Moisés certamente deve ter pensado: Meu bordão? Minha mão?
Qual poderia ser a utilidade de qualquer um dos dois em uma situação
como essa? Ele ficou entre uma força irresistível e um objeto imóvel, e
como a vara ou a mão poderiam parar uma ou mover o outro era algo que
ele não podia imaginar. Mas ele obedeceu. E a soberania de Deus entrou em
ação. Um vento se levantou e fez a vontade do Senhor. O mar também
obedeceu e os egípcios se afogaram, enquanto os israelitas foram salvos.
Aqui está o poder soberano — sobre um homem, sobre um povo, sobre os
elementos da natureza, sobre um inimigo. Mas aqui também está um
homem agindo em liberdade.
“Resolvi dar cabo de toda carne”, disse Deus a um homem chamado
Noé, que caminhava com ele. “Faze uma arca. [...] Contigo [...]
estabelecerei a minha aliança”. 37 Noé o fez. Sua disposição em agir de
acordo com as instruções de Deus significou a salvação da raça humana e
de todas as espécies de animais. A ação voluntária de Noé e sua fé andaram
de mãos dadas. Vemos novamente que a fé está longe de ser um sentimento
ou um estado de espírito religioso. Ela não é vaga. Ela ouve a Palavra do
Senhor e age. “Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está
morta”. 38
Dizemos que Noé construiu a arca, que Noé salvou sua família e todos os
animais. Do ponto de vista espiritual, foi a fé que construiu a arca, a fé que
salvou a família, a fé que colocou o mundo inteiro no erro, e a fé que
colocou Noé em Hebreus 11 39 , aquela galeria de retratos mostrando como é
a fé. Noé conhecia seu soberano.
Quando a vontade do homem age de acordo com a vontade de Deus, isso
é fé. Quando a vontade do homem age em oposição à vontade de Deus, isso
é incredulidade.
Deus poderia ter escolhido ele mesmo fazer tudo, mas ao invés disso ele
concebeu o mundo de tal forma que as aves devem construir ninhos e
sentarem-se sobre ovos, micróbios devem decompor organismos, salmões
devem lutar rio acima para desovar, minhocas devem arejar o solo, abelhas
devem construir favos de mel e o homem deve ter vontade e deve trabalhar.
É a vontade que devemos enfatizar aqui. Nós oramos “Seja feita a vossa
vontade assim na terra como no céu ”. A vontade de Deus é sempre feita
voluntariamente e de bom grado no céu. A vontade de obedecer é uma
coisa muito diferente da coerção. Um decano universitário observou certa
vez que os estudantes mais felizes de qualquer campus são os músicos e os
atletas. “Por quê?”, eu perguntei. “Porque eles são disciplinados e se
voluntariaram para serem disciplinados”. As pessoas sentadas em palestras
obrigatórias estão sob disciplina, e as pessoas sentadas na sala de televisão
são “voluntárias”, mas atletas e músicos se colocam sob um treinador ou
diretor que lhes diz o que devem fazer. Eles têm o prazer de fazer a vontade
do treinador ou do diretor. Na realidade, eles estão se divertindo.
Deus não nos coage a segui-lo. Ele nos convida. A vontade dele é que
nós tenhamos vontade — isto é, ele deseja a nossa liberdade de recusar ou
de aceitar. Se nós queremos ser discípulos, nós nos colocamos, assim como
o jogador de futebol e o instrumentista, sob a direção de alguém. Ele nos
diz o que devemos fazer e nós encontramos nossa felicidade em fazê-lo.
Não encontraremos a felicidade em nenhum outro lugar. Não a
encontraremos fazendo apenas o que queremos fazer e não fazendo o que
não queremos fazer. Essa é a ideia popular do que é a liberdade, mas isso
não funciona. A liberdade reside no cumprimento das regras. A alegria
também está lá. (Se ao menos pudéssemos manter a alegria em vista!) O
violinista da orquestra submeteu-se primeiro ao instrutor. Ele obedece às
regras estabelecidas pelo instrutor e manuseia o seu instrumento em
conformidade. Ele, então, submete-se à música como escrita pelo
compositor, prestando atenção às marcações para dinâmica, bem como às
notas, às pausas e ao tempo. Finalmente, ele submete-se ao condutor. O
condutor lhe diz, seja por palavras ou por gestos, o que ele quer, e o
violinista faz exatamente isso.
Existe alguma imagem de liberdade e alegria mais estimulante do que
uma orquestra completa — todos serrando, trompetando, batendo,
palhetando, soprando, chocando e martelando sob a direção de uma imensa
energia e disciplina de um homem que conhece cada nota de cada
instrumento em cada concerto, e que sabe como conseguir essa nota
exatamente para que ela contribua mais plenamente para a glória da obra
como um todo? Compare essa imagem, por exemplo, com outras buscas de
“felicidade”: uma feira municipal em uma tarde quente de domingo,
pessoas à vontade na fila do algodão doce, na fila da montanha-russa, na
fila para comprar ingressos para o show do Blue Grass, misturadas e se
acotovelando entre as multidões suadas, bebês em carrinhos de passeio
chorando por sorvete, crianças gritando por mais voltas, pais exaustos,
adolescentes de aparência desocupada, cidadãos idosos entediados, todos
irritados pela multidão fervilhante, surdos pelo barulho (vendedores
ambulantes, galerias de tiroteio, música amplificada tocada no decibel mais
alto possível), à procura de diversão. Todos são “livres”, por assim dizer,
para fazer suas próprias coisas e o resultado é o caos e a cacofonia. A
primeira imagem, devo confessar — onde ninguém está fazendo o quer,
mas todos são livres porque obedecem — é, de alguma forma, muito mais
atrativa para mim.
É um grande alívio quando outro alguém está no comando. Ele sabe o
que está fazendo e tudo o que você precisa fazer é seguir instruções. Você
não se rebela quando ele lhe diz o que fazer. Você fica feliz em receber a
ordem. Ele sabe mais do que você, sabe a melhor maneira de realizar o que
você quer realizar, e você tem certeza de que estará melhor com ele do que
sem ele, mais feliz por obedecer do que por desobedecer.
Por termos aceitado um convite do bispo de Norwich, tivemos a
permissão de ir, guiados por um jovem verdugo, até a torre da Catedral de
Norwich, onde o público não era admitido. É útil conhecer alguém que está
no comando. Nós nos submetemos de bom grado à direção dele.
Não subimos a torre esperando ser trancados em um calabouço, mantidos
a pão e água, e finalmente mortos a machado. Tanto Lars quanto eu
queríamos ver de perto a vista da catedral, a cidade e a encantadora zona
rural de Norfolk. Havia outro prazer que eu procurava: o de entrar em
lugares secretos, sentindo o mistério das escadarias escondidas. Nenhum de
nós ficou decepcionado.
Deus nunca nos decepcionará. Ele nos ama e tem apenas um propósito
para nós: a santidade, que no reino dele equivale à alegria. Se Lars e eu
tivéssemos tido qualquer suspeita de que o bispo quisesse nos prejudicar ou
que o verdugo não soubesse para onde ia, certamente não o teríamos
seguido até as passagens escuras. Se no fundo de nossos corações
suspeitamos que Deus não nos ama e não pode administrar nossos assuntos
tão bem quanto nós podemos, certamente não nos submeteremos à
disciplina dele.
Nós sabemos que Ele nos ama. Jesus Cristo, pregado em uma cruz, é
uma prova irrefutável disso. Nunca pensemos que ele foi “martirizado” para
apaziguar um Deus irado, pois “Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo”. 40
A visão da torre seria uma comparação ruim com o que Deus nos
oferece. É na base de uma sólida convicção de que ele é soberano e
amoroso que nos comprometemos incondicionalmente com ele, acreditando
que o que deixamos para trás é menos do que nada comparado ao que
esperamos. Paulo declarou que tudo o que ele ganhou foi “refugo” 41 em
comparação com aprender a conhecer a Cristo. O homem que compra um
campo e encontra nele um tesouro, vende sem hesitação tudo o que possui
para poder comprar o campo. Assim é o Reino de Deus. A vista da torre fez
valer a pena a subida.
Mas pensemos na subida em si.
Há aqueles que não querem receber Cristo. Aqueles que querem, no
entanto, não recebem um reino instantâneo, mas o “direito de se tornarem
filhos de Deus”. 42 Aqui está a verdade da soberania divina e da
responsabilidade humana envolta em um único verso. Ele dá àqueles que
têm vontade . Há muitos níveis de significado aqui que não podemos
explorar. O versículo não diz que Deus os torna filhos instantâneos de Deus.
O versículo diz que Deus lhes dá o direito de se tornarem. Para aqueles que
o recebem, para aqueles que lhe cederam sua lealdade, ele lhes dá o direito
de se tornarem filhos de Deus. Pedro escreveu: “mediante a fé, [vocês] são
protegidos pelo poder de Deus até chegar a salvação prestes a ser revelada
no último tempo”. 43 O escritor aos hebreus se refere a algumas pessoas nas
quais a boa nova, “a palavra que ouviram não lhes aproveitou, visto não ter
sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram”. 44 Essas referências
mostram como é insensato supor que se pode ser cristão sem incluir o
problema do discipulado ou que se pode “chegar ao céu” sem se preocupar
em ser obediente. É minha obediência, então, aquilo que me abre a porta do
céu? É minha vontade, afinal de contas, que determina minha salvação?
Não. Os filhos de Deus “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem, mas de Deus”. 45 “Não depende de quem quer
ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia”. 46
Se reprimirmos nossa obediência até que tenhamos canalizado as
profundezas teológicas desse mistério, seremos desobedientes. Há verdades
que não podem ser conhecidas a não ser por fazê-las. Os Evangelhos
mostram muitos casos daqueles que quiseram compreender em vez de
obedecer. Jesus tinha palavras mordazes para eles. Em certa ocasião, ele se
voltou desses para aqueles que já haviam crido nele e disse: “Se vocês
permanecerdes dentro da revelação que eu lhes trouxe, vós são de fato meus
discípulos; e vós conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. 47
“Permanecer dentro da revelação” certamente significa viver de acordo
com o que nos foi mostrado. Significa ouvir e fazer.
Outro aspecto da escalada é o sofrimento.
Para o descrente, o sofrimento apenas o convence de que não se deve
confiar em Deus, de que Deus não nos ama. Ao crente, o oposto é
verdadeiro. “Bem sei, ó SENHOR , que os teus juízos são justos e que com
fidelidade me afligiste”. 48
Uma referência à perseguição dos cristãos de Tessalônica mostra
claramente como até mesmo a injustiça no nível humano serve à justiça de
Deus ao levar seus servos à santidade. Os crentes de Tessalônica haviam
respondido aos problemas com uma fé firme e um amor crescente. “Elas
[perseguições e tribulações] dão prova do justo juízo de Deus”, escreve
Paulo, “e mostram o seu desejo de que vocês sejam considerados dignos do
seu Reino, pelo qual vocês também estão sofrendo”. Ele prossegue para
assegurar-lhes de que um dia a conta seria equilibrada. Haveria punição
para aqueles que se recusassem a reconhecer a Deus, e glória para os
crentes. Paulo orou por eles, “para que o nosso Deus os faça dignos da
vocação e, com poder, cumpra todo bom propósito e toda obra que procede
da fé”. 49
Vemos aqui o fato claro de uma vontade soberana, operando algumas
vezes por meio dos crentes e descrentes e, às vezes, apesar dos crentes e
descrentes, tanto no presente como no futuro. O que os perseguidores
estavam fazendo aos crentes era maligno. No entanto, por amor de Cristo,
os crentes o suportaram e, assim, estavam se provando “dignos do reino de
Deus”. O Senhor não havia desistido deles. Nada podia separá-los de seu
amor. Sua soberania os sustentava. Eles, por sua vez, exerceram a vontade
de suportar, mantendo-se dispensáveis para aquele que se despendeu por
eles. Finalmente, as orações de Paulo também foram um elemento essencial
no pleno funcionamento do propósito de Deus, tendo ele estabelecido o
mundo de tal forma que a oração é necessária até mesmo para seus próprios
planos.
Alguns dos muitos versículos em que quase vemos a harmonia entre as
duas vontades em operação são:

E Gideão disse a Deus: “Quero saber se [tu ] vais libertar Israel por meu intermédio, como
prometeste. 50

Porém nós oramos ao nosso Deus e , como proteção, pusemos guarda contra eles, de dia e
de noite. 51

Ao contrário, eu mesmo me dediquei ao trabalho neste muro [...] essa obra havia sido
executada com a ajuda de nosso Deus . 52

Humilhai-vos , portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele , em tempo oportuno,
vos exalte. 53

Essas passagens falam apenas da vontade em harmonia com Deus, mas


não podemos ignorar a soberania de Deus também sobre a vontade oposta à
dele.
O rei, pois, não deu ouvidos ao povo, porque isto vinha de Deus, para que o SENHOR
confirmasse a palavra que tinha dito por intermédio de Aías, o silonita, a Jeroboão, filho de
Nebate. 54

Porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual
ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a
tua mão e o teu propósito predeterminaram. 55

Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem. 56

Talvez as palavras mais imensuráveis de todas são aquelas que mostram


o Senhor Soberano à mercê dos homens:

Pois o Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito; mas ai daquele por intermédio
de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido! 57

Sendo este [Jesus] entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o
matastes, crucificando-o por mãos de iníquos. 58

A Bíblia não explica tudo o que é necessário para nossa satisfação


intelectual, mas explica tudo o que é necessário para nossa obediência e,
portanto, para a satisfação de Deus.
Uma jovem mulher perguntou ao grande pregador Charles Spurgeon se
era possível conciliar a soberania de Deus e a responsabilidade do homem.
“Jovem mulher”, disse ele. “Você não reconcilia amigos”.
P. T. Forsyth, The Principle of Authority (London: Hodder & Stoughton, n.d.), 404, itálico
adicionado.
Gênesis 6. 13, 14, 18.
Tiago 2.17.
Hebreus 11.7.
2 Coríntios 5.19.
Filipenses 3.8.
João 1.12, NVI. Itálico adicionado.
1 Pedro 1.5, NVI.
Hebreus 4.2.
João 1.13.
Romanos 9.16.
João 8.31-32, itálico adicionado . Tradução livre da versão New English Bible (NEB) .
Salmos 119.75.
2 Tessalonicenses 1.5, 11, NVI.
Juízes 6.36, NVI. Itálicos adicionados.
Neemias 4.9, itálico adicionado.
Neemias 5.16; 6.16, NVI. Itálicos adicionados.
1 Pedro 5.6, itálico adicionado .
2 Crônicas 10.15.
Atos 4.27-28.
Gênesis 50.20.
Marcos 14.21.
Atos 2.23.
7 | A disciplina do corpo

U
m antigo comercial de televisão mostra um homem saindo
rapidamente da cama, correndo escada abaixo, engolindo o café de
uma xícara, pegando o casaco e a pasta, e explodindo pela porta
da frente. A mensagem: “O dia nunca começa cedo demais para um homem
compelido por um único objetivo na vida”. Ele é um corretor da Bache. Ele
mal pode esperar para chegar ao escritório para descobrir o que está
acontecendo no mercado, mas pega o telefone da cozinha e pergunta:
“Como abrimos hoje em Londres?”.
A cobiça por dinheiro e por poder move os homens quando uma
escavadeira não é capaz de fazê-lo. Eles vão punir seus corpos, passando a
maior parte das horas de vigília, sentados em uma cadeira de escritório,
depois exercitando-se furiosamente em uma academia ou em uma pista de
corrida, participando de pequenos cafés da manhã, almoços de “negócio”
tremendos e jantares de alta caloria, tudo isso para se anteciparem ao
mundo e desfrutarem alguns de seus prazeres por uma temporada.
A santidade nunca foi a força motriz da maioria. Ela, no entanto, é
obrigatória para qualquer pessoa que queira entrar no Reino. “Esforcem-se
[...] para serem santos; sem santidade ninguém verá o Senhor”. 59
“Porque estais inteirados de quantas instruções vos demos da parte do
Senhor Jesus”, escreveu Paulo aos tessalonicenses. “Pois esta é a vontade
de Deus: a vossa santificação, que vos abstenhais da prostituição; que cada
um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra, não com o
desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus [...]
Porquanto Deus não nos chamou para a impureza, e sim para a
santificação”. 60
A disciplina, para um cristão, começa com o corpo. Nós temos apenas
um. É esse corpo que é o principal material que nos é dado para o sacrifício.
Se não tivéssemos esse corpo, não teríamos nada. Devemos apresentá-lo,
oferecê-lo, entregá-lo incondicionalmente a Deus para os propósitos dele.
Isso, dizem-nos, é um “ato de adoração espiritual”. A doação desse corpo
físico, composto de sangue, osso e tecido, que vale alguns dólares em
produtos químicos, torna-se um ato espiritual, pois “é o vosso culto
racional”. 61
A Bíblia de Jerusalém a traduz da seguinte forma: “Pensai na
misericórdia de Deus, meus irmãos, e adorai-o, peço-vos, de uma forma
digna de seres pensantes, [isto é, uma nota nos diz, “‘de uma forma
espiritual’, em oposição aos sacrifícios rituais de judeus ou pagãos”],
oferecendo vossos corpos vivos como um sacrifício santo”. 62
Fracassos espirituais se devem, creio, mais a esta causa do que a
qualquer outra: o fracasso em reconhecer esse corpo vivo como tendo algo
a ver com adoração ou sacrifício santo. Esse corpo é, colocado de maneira
simples, o ponto de partida. Fracassar aqui é fracassar em todos os outros
lugares.
“Aquele que veria a face do Lutador mais poderoso, nosso Deus sem
limites”, escreveu São Alonso de Orozco, “deve primeiro ter lutado consigo
mesmo”.
Somente aquele que levou a sério a correlação entre o físico e o
espiritual e começou a luta pode apreciar a aptidão dessa palavra lutar . Os
hábitos, por exemplo, nos prendem. Essa amarra deve ser quebrada se
quisermos ser livres para o serviço do Senhor. Não podemos entregar nosso
coração a Deus e guardar nosso corpo para nós mesmos.
Que tipo de corpo é esse?
É um corpo mortal. Ele não irá durar. Ele foi feito de pó e depois da
morte retornará ao pó. Paulo o chamou de corpo “vil”, ou um corpo que
pertence ao nosso estado de “humilhação”, 63 um “corpo do pecado”, 64 um
corpo “morto” 65 por causa do pecado. Mas ele também é um templo ou um
santuário para o Espírito Santo; ele é um “membro” do corpo de Cristo. 66
Ele é, além do mais — e isso faz toda a diferença na forma como o tratamos
— completamente redimível, transfigurável, “ressuscitável”.
O corpo cristão não apenas abriga o próprio Espírito Santo, mas também
o coração, a vontade, a mente e as emoções do cristão — todos
desempenhando um papel em conhecermos a Deus e vivermos para ele.
No meu caso, a “casa” é alta, anglo-saxônica, de meia-idade e feminina.
Não me perguntaram sobre minhas preferências em nenhum desses fatores,
mas foi-me dada uma escolha sobre o uso que faço deles. Em outras
palavras, o corpo foi um presente para mim. Se vou agradecer a Deus por
ele e oferecê-lo como um sacrifício santo ou não cabe a mim decidir.
O que se entende por disciplinar o corpo?
Um corpo precisa de alimento. A alimentação é uma questão de
disciplina para nós que vivemos em países muito ricos, muito civilizados,
muito autoindulgentes. Para aqueles que não têm o vasto leque de escolhas
que nós temos, a alimentação é uma questão fundamental de subsistência e
não um grande impedimento à santidade.
A disciplina é evidente em todas as páginas da vida de Daniel. 67 A
história começa com ele sendo escolhido como um de um grupo de jovens
de famílias nobres e reais em Israel para servir no palácio de
Nabucodonosor, rei da Babilônia. A primeira coisa que distingue Daniel dos
outros é sua decisão de não comer a rica comida fornecida pela família real,
mas apenas vegetais e água. Ele não queria ser contaminado. Deve ter sido
Deus quem colocou essa ideia na cabeça dele. Certamente foi Deus quem
fez o chefe dos oficiais mostrar bondade e boa vontade para com Daniel,
concedendo-lhe seu pedido. Era o início da preparação do Senhor de um
homem cuja fibra espiritual seria rigorosamente testada posteriormente.
É significativo que apenas 10% dos altos executivos de nosso país
estejam acima do peso. Isso me parece indicar que poucos homens que não
conseguiram conter o apetite conseguirão chegar ao topo. A contenção
física é básica para o poder. Eles o fazem pelo poder neste mundo. Nós o
fazemos pelo poder em outro.
Os cristãos devem ter cuidado com o que comem. Não me refiro aqui
apenas a comer em excesso, o que é uma coisa ruim, mas a comer as coisas
erradas. Doces em demasia, coisas gordurosas em demasia, porcarias em
demasia. Passeie por qualquer supermercado e observe o espaço dado a
refrigerantes, doces, lanches empacotados, cereais secos. Poderíamos nos
sair muito bem sem nada disso. Experimente por uma semana. Você pode
ficar surpreso com a sua dependência desses alimentos. Você pode até
descobrir que é um viciado.
Como missionária, vivi a maior parte do tempo em regiões bastante
remotas da selva sul-americana, onde a comida que estava disponível era
toda “natural”. Comíamos muita mandioca, um tubérculo rico em amido
cultivado pelos índios, que fornecia o básico para a vida deles. Comíamos
arroz, feijão, abacaxi, mamão, ovos e qualquer carne que estivesse
disponível de tempos em tempos, o que não era frequente. Não havia
alimentos preparados para comermos novamente. Não havia petiscos entre
refeições. Comíamos açúcar, trazido de fora, que costumávamos usar para
fazer limonada onde quer que os limões fossem cultivados. Também
importávamos farinha de aveia, leite em pó, sal, farinha e, às vezes, luxos
como queijo e chocolate. Mas os menus eram relativamente simples e nossa
saúde era sempre excelente. É uma coisa boa, me parece, aprender a fazer
com menos.
Uma forma de começar a ver quão vastamente indulgente normalmente
somos é jejuar.
O jejum foi prescrito pela lei judaica e sempre fez parte da prática cristã.
Uma amiga minha relatou como ela estava martelando à porta do céu
para obter resposta a uma oração específica. Nada parecia estar
acontecendo. Ela começou a ficar brava com Deus porque ele não estava
fazendo nada. Então ele pareceu dizer calmamente. “Por que você não
jejua?”
“Então me ocorreu”, disse ela. “Eu realmente não me importava tanto
assim”.
Outra amiga disse que discordava completamente da noção de jejum,
porque não era mais do que uma tentativa de “fazer queda de braço com
Deus”. “Ele sabe do que eu preciso, e se ele quer me dar, ele pode. Não há
necessidade de eu me tornar uma ascética”.
Há pouco entendimento hoje sobre o verdadeiro propósito dos ermitãos e
dos anacoretas. Embora houvesse, sem dúvida, alguns que pensavam em
comprar seu caminho para o céu crucificando a carne, a verdadeira
efetividade baseava-se em sua vontade de servir, entregando-se totalmente à
oração e à contemplação. Isso envolve sacrifícios de uma ou outra espécie,
tanto hoje quanto antes. Ermitões e anacoretas escolheram a solidão, a
pobreza, a retirada do mundo, o jejum. Em algumas igrejas da Inglaterra
ainda existem ancoragens — celas nas quais os anacoretas ficavam entre
quatro paredes durante a vida. Uma delas ainda pode ser vista na Igreja
Paroquial de Chester-le-Street, no norte da Inglaterra. A comida era passada
para o anacoreta; às vezes as pessoas falavam com ele através de uma
abertura; e ele tinha uma abertura, ou “squint”, uma fenda na parede através
da qual era possível observar a missa na igreja. O povo da cidade se
alegrava em saber que alguém estava sempre em oração.
Conheço cristãos que jejuam regularmente — um dia por semana, uma
refeição por semana, uma refeição por mês, ou em certos dias do calendário
da igreja. Conheço outros que acharam muito útil jejuar quando têm algum
assunto especial sobre o qual orar — uma decisão difícil de tomar, um novo
projeto para começar, um amigo doente que querem ajudar.
Em Antioquia, Deus disse aos discípulos, enquanto eles jejuavam, para
separar Barnabé e Saulo. Então, “jejuando, e orando”, 68 os discípulos
impuseram suas mãos sobre eles e os enviaram para fazer o trabalho para o
qual Deus os havia chamado especialmente. Em Listra, Icônio e Antioquia,
Paulo nomeou anciãos e “tendo orado e jejuado, eles os encomendaram ao
Senhor, em quem haviam confiado”. 69
O bispo John Allen deu cinco boas razões para jejuar:
1. O jejum ajuda a nos identificarmos com os famintos, a quem nos é
ordenado servir. 70
2. Lembra-nos de orar.
3. Faz-nos abertos ao chamado de Deus.
4. Leva-nos a refletir sobre a realização de seu chamado.
5. É um instrumento misterioso da obra do Espírito Santo.
Há algumas coisas que o jejum não faz. Ele nunca me ajudou a esquecer
de comer. Na verdade, eu me pego pensando muito sobre isso. (Talvez eu
não jejue tempo suficiente.) É um dia longo que não é rompido com as três
refeições habituais. Descobre-se o tempo surpreendente que se gasta em
planejamento, compra, preparação, alimentação e limpeza das refeições. O
aspecto social do jejum é talvez a coisa mais embaraçosa. Jesus nos disse
para não deixar que as pessoas soubessem que estamos jejuando, mas para
nos arrumarmos como sempre, para que somente nosso Pai, “que [está] em
secreto” 71 , possa ver. Às vezes é bem impossível manter o jejum em
segredo. Conheço a mãe de uma grande família que jejua um dia por
semana, mas continua a cozinhar para sua família e se senta com eles à
mesa para tomar uma xícara de chá claro. A família dela está acostumada a
isso e não se importa. Algumas famílias talvez se importem. O Senhor
conhece as circunstâncias do indivíduo e o propósito do coração. No caso
de Daniel, Deus tornou possível que ele realizasse seu desejo.
O jejum não permitirá necessariamente que você se concentre. É
importante não ficar agitado consigo mesmo, ainda que sua mente vagueie.
Peça ao Senhor que o ajude a concentrar-se na oração, na leitura da Bíblia,
na meditação. Quando forem detectados sentimentos de orgulho espiritual,
confesse-os. Quando o telefone tocar, atenda-o somente se for necessário.
Quando os pensamentos da reunião da próxima semana se intrometerem,
mencione-os também a Deus e deixe-os com ele enquanto você volta aos
assuntos de suas orações. Não fique chocado com sua própria incapacidade
de “ser espiritual”. Os maiores santos conheciam sua pecaminosidade e
fraquezas.

Aqueles que se alegram o servem melhor,


estão mais cônscios do mal interior. 72
Não tente sentar-se ou ajoelhar-se em uma posição por muito tempo.
Levante-se para orar, ande, saia de casa e ore enquanto caminha. Se não for
possível orar em voz alta sem chamar a atenção, ore em um sussurro. Isso
será melhor para a maioria de nós do que tentar orar apenas mentalmente,
um método que muitas vezes encoraja pouco mais do que o devaneio.
Nos antigos tempos judaicos, um filho teimoso que era glutão e beberrão
era apedrejado até a morte. 73 A gula, um dos pecados modernos mais
óbvios, é geralmente aceita tacitamente. Pouco se fala sobre isso a partir do
púlpito. É muito embaraçoso; chega muito perto de onde as pessoas, muitas
vezes incluindo o pregador, vivem. Ninguém que é gordo ousa pregar sobre
isso — ele não tem espaço para falar. Raramente alguém que não é gordo
terá a coragem de abordar o assunto, pois será dito a essa pessoa que ela
não tem o que falar, já que nunca “teve um problema com o peso”. (Como
alguém sabe? Talvez ele pratique o que prega). Quem, então, sobra para
falar?
Embora uma porcentagem muito pequena de pessoas esteja acima do
peso por razões fisiológicas, a grande maioria simplesmente come muita
coisa que não deveria. É isso mesmo. As calorias que não são queimadas
são armazenadas em gordura.
Jean Nidetch, que fundou o Vigilantes do Peso, disse que ela não
começou a resolver seu problema até estar disposta a nomeá-lo: GORDA.
Ela colocou pequenos sinais por toda a casa sobre os espelhos, no
refrigerador, sobre a pia — GORDA, GORDA, GORDA.
Uma vez escrevi um artigo sobre uma viagem de barco no qual descrevi
um dos meus companheiros de viagem como uma senhora gorda. Parece
que toquei em um nervo muito sensível. Raramente ouço dos leitores, mas
ainda estou recebendo cartas irritadas sobre esse artigo. Todas são de
mulheres, várias das quais tiveram o cuidado de explicar que elas mesmas
não são gordas. “Mas”, escreveu uma, “eu tenho alguns amigos
volumosos”. Eu me perguntava se esses amigos iriam gostar de ser
chamados de "volumosos". A Bíblia diz que Eglon era um homem muito
gordo. Não está tudo bem escrever sobre uma senhora gorda? Se nos vemos
nela e ficamos ofendidos, é hora de fazer algo a respeito.
Muitos cristãos encontraram a força dificilmente esperada do Senhor ao
trazer a ele uma necessidade física muito real, muito difícil. Se o peso se
tornou literalmente um “fardo”, por que não devemos levá-lo ao Senhor e
pedir a ajuda dele para vencê-lo? Será que a minha determinação não pode
cooperar com Deus nesse assunto assim como em assuntos espirituais? Para
alguns, o jejum pode ser o lugar onde a disciplina começa, mesmo que não
estejam com excesso de peso. Para outros, ele será o lugar, quer se trate de
eliminar os alimentos indesejáveis em prol de uma saúde mais saudável ou
de eliminar calorias em prol de um peso normal.
“Acaso, não sabeis […] que não sois de vós mesmos? Porque fostes
comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo”. 74
Dormir é outra necessidade. É preciso disciplina para ir para a cama
quando se deve, e é preciso disciplina para se levantar. Pense em seus
hábitos. Seja honesto com Deus a respeito deles, e se você souber que seus
hábitos não estão alinhados com uma vida disciplinada, ore pedindo ajuda
de Deus e comece a fazer algo.
Meu pai tinha uma resposta pronta para aqueles que expressavam
incredulidade em relação à “capacidade” dele de se levantar tão cedo pela
manhã: “Você tem que começar na noite anterior”.
Meu grande professor da Bíblia, L. E. Maxwell, foi questionado por um
amigo como tinha sido possível ter “obtido a vitória” que lhe permitia
levantar-se às quatro ou cinco da manhã. “Quanto tempo demorou? Você
tinha alguém orando com você sobre isso?”
“Não, eu me levanto”, foi a resposta dele.
Fazemos uma enorme piada sobre nossa autoindulgência e tratamos com
diversão nossa incapacidade de nos levantar da cama suficientemente cedo
para chegar ao trabalho sem uma correria agitada. Um hino do século XVIII
de Thomas Ken pareceria pitoresco hoje em dia:
Com o sol minh’alma, despertai.
O teu trabalho diário está por fazer:
Deixa a preguiça tediosa, com alegria levantai
para o sacrifício matutino oferecer. 75

A maioria de nós não se livra muito facilmente da preguiça monótona.


“Com alegria levantai”? Não é muito realista, não é? Isso não se dá
naturalmente para nós. Mas nunca foi natural para ninguém. Nós nos
esquecemos disso. A preguiça tediosa é natural. Os seres humanos não
mudaram muito em toda a história da humanidade. Então, em vez de
descartarmos o compositor de hinos como desesperadamente ultrapassado,
será que não poderíamos pedir a Deus sua ajuda para sermos alegres
oferecedores de sacrifícios?
“Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão” 76 , disse Paulo. Ele
colocou isso no contexto de competições atléticas para as quais o prêmio é
uma coroa de folhas desbotadas, mas lembrou aos coríntios que eles
estavam em um tipo diferente de disputa — por uma coroa eterna que não
pode desbotar.
O corpo precisa de exercício. “O exercício físico tem algum valor”. 77
O Papa João Paulo elogiou o atletismo como uma lição para lidar com a
vida:

Cada tipo de esporte traz em si um rico patrimônio de valores, que deve estar sempre
presente para que possa ser realizado.
O treinamento na reflexão, o próprio compromisso das energias do indivíduo, a educação
da vontade, o controle da sensibilidade, a preparação metódica, a perseverança, a
resistência, o suportar a fadiga e as feridas, o domínio das faculdades do indivíduo, o senso
de alegria, a aceitação de regras, o espírito de renúncia e solidariedade, a lealdade ao
compromisso, a generosidade para com os vencedores, a serenidade na derrota, a paciência
para com todos — são um complexo de realidades morais que exigem um verdadeiro
asceticismo e validamente contribuem à formação do ser humano e do cristão.

Apesar da enorme popularidade dos jogos organizados e profissionais,


bem como dos jogos de tênis e golfe, suponho que a maioria esmagadora
das pessoas com mais de 21 anos de idade não joga nada, pelo menos não
regularmente.
A corrida e outras formas de exercícios individuais violentos podem ser
adequados para alguns. Para outros, seriam atividades extremas. A coisa
mais importante é se mover de alguma forma. Não ande quando puder
caminhar, e caminhe com força. Quando você puder subir de escadas ao
invés de pegar um elevador, vá pelas escadas. Quando você fizer tarefas
domésticas, mova-se rapidamente. Se o trabalho de sua vida exige sentar-se
em uma mesa a maior parte do dia, você terá que se organizar para colocar
seu corpo em movimento. Um dispositivo muito legal para pessoas que
acham difícil fazer exercícios ao ar livre é uma pequena cama elástica com
cerca de um metro de diâmetro, que é suficientemente baixa para caber
debaixo de uma cama quando não está em uso e no qual você pode “correr”
sem o risco de precisar de caneleiras ou lesões nas articulações. Um amigo
médico nos deu uma dessas de presente de casamento — na esperança, eu
suspeito, de que se Lars se exercitasse, ele poderia viver mais do que meus
outros maridos.
Os corpos que nos são dados são corpos sexuais, equipados para as
relações sexuais. A publicidade moderna nunca nos permite esquecer disso.
As canções populares se referem a muito pouco além desse assunto. O
negócio da moda prospera na provocação sexual através do vestuário.
Contudo, estar equipado sexualmente não é uma licença para que possamos
usar o equipamento da maneira que escolhermos. Como todo bom presente
que vem do Pai das Luzes, o presente da atividade sexual destina-se a ser
usado como ele pretendeu: dentro dos limites claramente definidos de seu
propósito, que é o casamento. Se o casamento não está incluído na vontade
de Deus para um indivíduo, então a atividade sexual também não está
incluída.
“O que devo fazer, então, com tudo isso? Tenho tanto para dar — e se
ninguém aceitar?”
Dê a Deus.
“Vocês, contudo, não podem dizer que nosso corpo foi feito para a
imoralidade sexual. Ele foi feito para o Senhor, e o relacionamento que o
Senhor tem conosco inclui nosso corpo”, 78 escreveu Paulo.
Oferecer meu corpo ao Senhor como um sacrifício vivo inclui oferecer a
ele minha sexualidade e tudo o que isso implica, mesmo meus anseios não
realizados.
Hoje em dia, esse conselho será ridicularizado pela maioria dos tribunais.
O controle sexual é considerado como um desligamento do qual os
verdadeiramente maduros foram liberados. Há ainda aqueles, porém —
como tem havido em todas as épocas — que têm como sagrada a relação
íntima entre um homem e uma mulher, reconhecendo nela um tipo de amor
de Cristo por sua própria noiva, a igreja. Como tal, não é para ser
profanado.
Essa atitude pode ser mantida apenas pelo fato de a mente estar cativa a
Cristo. É um milagre da graça. Não imaginemos que seja nada menos que
isso.
Malcolm Muggeridge observa em seu diário que Tolstoi “tentou alcançar
a virtude, e particularmente a continência, por meio do exercício de sua
vontade; Santo Agostinho viu que, para o homem, não há virtude sem um
milagre. Assim, o asceticismo de Santo Agostinho lhe trouxe serenidade, e
a angústia de Tolstoi, o conflito e o colapso final de sua vida em trágica
bufonaria”. 79
Esse corpo, lembre-se, é para ser ressuscitado. Conforme John Donne 80
apontou há muito tempo, a imortalidade da alma é aceitável para a razão
natural do homem, mas a ressurreição do corpo deve ser uma questão de fé.

Onde estão todos os átomos da carne que a corrosão ou o consumo devoraram? Em que
sulco ou intestino da terra jazem todas as cinzas de um corpo queimado há mil anos? Em
que canto do mar jaz toda a geleia de um corpo afogado no dilúvio? Que coerência, que
simpatia, que dependência mantém qualquer relação ou correspondência entre aquele braço
que foi perdido na Europa e aquela perna que foi perdida na África ou na Ásia com dezenas
de anos de intervalo?
Um humor de nosso corpo morto produz vermes, e esses vermes esgotam todo o outro
humor, e depois todos morrem e secam e são moldados em pó, e esse pó é soprado para o
rio e a água cai no mar, que escorre e flui em infinitas revoluções.
Ainda assim, Deus sabe em que armário jaz cada pérola e em que parte do mundo jaz
cada grão do pó de cada homem, e (como seu profeta fala em outro caso) ele assobia para os
corpos de seus santos, e num piscar de olhos aquele corpo que estava espalhado por todos
os elementos, sentou-se à direita de Deus em uma gloriosa ressurreição. 81

O conhecimento de que seu corpo será um dia semeado como um corpo


natural e ressuscitado como corpo espiritual 82 deve dar uma pausa ao
discípulo, deve estimulá-lo a pensar no uso que ele faz dele neste mundo.
Mesmo que a carne e o sangue nunca possam ter o Reino, pense em suas
partículas sendo “chamadas” para um dia se sentarem com o Senhor.
Hebreus 12.14, NVI.
1 Tessalonicenses 4.2-5, 7.
Romanos 12.1.
Romanos 12.1; tradução livre da Bíblia de Jerusalém.
Filipenses 3.21.
Romanos 6.6.
Romanos 8.10.
1 Coríntios 6.15.
Ver Daniel 1.9.
Atos 13.3.
Atos 14.23, NVI.
Ver Mateus 25.31-46.
Mateus 6.18.
Henry Twells, “At Even, When the Sun Was Set,” Episcopal Hymnal (New York: Seabury Press,
1943).
Ver Deuteronômio 21.20-21.
1 Coríntios 6.19-20.
N. E.: Tradução livre de parte do hino Awake, My Soul, and with the Sun , por Thomas Ken.
1 Coríntios 9.27.
1 Timóteo 4.8, NVT.
1 Coríntios 6.13, NVT.
Malcom Muggeridge, entry for March 26, 27, 1951, Diaries (London: Collins, 1981).
John Donne, The John Donne Treasury , ed. Erwin P. Rudolph (Wheaton: Victor Books, 1978), 85.
“Whistled” for, Zacarias 1 0.8.
Ver 1 Coríntios 15.44.
8 | A disciplina da mente

E
m sua biografia do arcebispo francês do século XVII, François de
Fénelon, Katharine Day Little escreve: “A vida simples e ordenada
era o segredo de seu poder e eficiência, pois sua austeridade era, na
realidade, um gasto intencional e racional, mais do que uma mortificação
autoconsciente. Representava a beleza de uma mente ordenada e limpa que
naturalmente se afastava das futilidades espalhafatosas e da desordem do
desnecessário”.
Uma vida simples e ordenada representa uma mente limpa e ordenada. O
pensamento confuso resulta inevitavelmente em uma vida confusa. Uma
casa que está desordenada é normalmente habitada por pessoas cujas
mentes também estão desordenadas, que precisam simplificar suas vidas.
Isso começa com a simplificação e o esclarecimento de seu pensamento. A
mente e a vida precisam ser liberadas da “desordem do desnecessário”.
“Preparem sua mente para a ação e exercitem o autocontrole” 83 , é o que
Pedro diz que devemos fazer.
Jesus disse que o maior mandamento é “Ame o Senhor, seu Deus, de
todo o seu coração, de toda a sua alma e de toda a sua mente ” 84 .
Temos discutido fazer uma oferta do corpo, que é um ato de adoração
“oferecido pela mente e pelo coração” 85 . A próxima coisa que devemos
fazer é permitir que nossas mentes sejam “renovadas” e toda a nossa
natureza seja “transformada”. Não podemos fazer isso sozinhos. É o
Espírito Santo que deve fazer o trabalho. Contudo, devemos abrir nossas
mentes para esse trabalho, submeter-nos ao controle dele, pensar nas coisas
que importam, e não naquelas que no final não dão em nada. Aqui
novamente vemos tanto a necessidade de um Deus soberano trabalhando
em nós e por meio de nós, quanto a responsabilidade da pessoa discipular a
si mesma para adaptar-se ao que Deus quer fazer.
“Não há nenhum expediente a que um homem não recorra para evitar o
verdadeiro trabalho de pensar”, escreveu Sir Joshua Reynolds. Tente seguir
uma única ideia até sua conclusão. Quantos desvios você fez? Quantas
vezes você parou para passar o tempo do dia com outra ideia, totalmente
sem relação com a primeira? Quantas vezes você afundou na grama, por
assim dizer, à beira da estrada, e deixou sua mente flutuar com as nuvens?
Hoje, enquanto escrevo, tenho um ambiente perfeito para pensar. Estou
em um hytte norueguês (uma cabana) em um canal no interior de Sørland,
na Noruega. Até onde sei, não há nenhum ser humano por perto e, se
houvesse, não poderia dizer muito mais a ele do que o jeg snakker ikke
Norsk (eu não falo norueguês). Não há telefone, nem serviço de correio,
nem encanamento ou eletricidade. É quase como estar de volta à selva.
Quem poderia desejar uma situação mais propícia à escrita e ao
pensamento?
No entanto, encontro minha mente vagando por mil coisas que não têm
nada a ver com este capítulo. Pergunto-me se o tempo vai clarear, então vou
até lá para verificar o barômetro. Vou até a doca para ver se a marta que
vive no banco vai aparecer novamente. Escolho algumas flores silvestres
para colocar em um vaso — Lars estará aqui hoje mais tarde (ele tem
passado parte de seu tempo em sua cidade natal próxima, Kristiansand). Eu
leio um pouco dos diários de Malcolm Muggeridge. Arrumo um sanduíche
de pasta de amendoim e uma cenoura da Califórnia bem cara para o
almoço. Ouço as vozes das crianças e saio para ouvir mais de perto. (Para
mim, é maravilhoso ouvir crianças falando uma língua estrangeira!)
Antes mesmo de terminar este parágrafo, ouvi um assobio familiar. Lars.
Ele não deveria estar aqui pelas próximas três horas, porém é um desvio
bem-vindo do pensamento que eu pretendia ter, mas que sempre considero
como a parte mais difícil da escrita. Bebemos chá e lemos cartas de
Massachusetts, Inglaterra, Illinois e Idaho. Agora Lars está afiando a foice
antes de cortar a grama. Volto à minha máquina de escrever e ao meu
pensamento.
“Pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a
cada um” 86 . Faça o processo de pensar . Será que sabemos como fazer
isso?
Estávamos viajando de carro com amigos, discutindo sobre o nosso
grande amigo C. S. Lewis, o qual nenhum de nós jamais havia conhecido.
“Lewis pensava ”, disse o homem. “É incrível o que se pode conseguir
pensando de verdade!”
Nós concordamos. (Quem poderia discordar disso?) Houve uma longa
pausa. Então, sua esposa disse: “Sabe, acredito que é isso que está errado
comigo. Eu nunca penso . Não realmente”.
A maioria de nós não tem nem a capacidade mental nem a educação que
Lewis tinha, mas poderíamos ter a disciplina mental “se tivéssemos uma
mente para isso”.
“A incapacidade de cultivar o poder da concentração pacífica é a maior
causa do colapso mental”, disse o grande médico William Osler aos
estudantes de Yale, em um domingo à noite, há muitos anos. Ele os exortou
a obter poder sobre o mecanismo mental com algumas horas por dia de
concentração tranquila na rotina, na ordem e em um sistema. “A
concentração é uma arte de aquisição lenta, mas pouco a pouco a mente é
acostumada aos hábitos de alimentação lenta e digestão cuidadosa, através
da qual somente você escapa da “dispepsia mental'”.
Pegue as palavras de Romanos citadas anteriormente para fazer um
exercício inicial de pensamento. “Pense com moderação, segundo a medida
da fé que Deus repartiu a cada um”. O contexto é de autoavaliação. Será
que entendemos nossa tarefa individual dentro do Corpo de Cristo? Que
dons temos recebido, quais funções? Alguns de nós dizem que não sabem.
Outros darão uma resposta baseado na estimativa que outras pessoas fazem
de nós. Suponha que tivéssemos que separar meia hora para pensar
sobriamente sobre o que somos e não somos capazes de fazer pelo bem de
nossa igreja. Se começarmos submetendo tudo a Cristo e pedindo a ele que
mude nossas mentes e depois prosseguíssemos para nos concentrar
fielmente nessas palavras, poderíamos ficar surpresos ao ver que temos
desperdiçado energia ao fazer coisas que não somos aptos a fazer, que
estamos desperdiçando tempo fazendo coisas que não contribuem em nada
para ajudar a igreja, e que temos falhado em fazer coisas que poderíamos
fazer, coisas que o Espírito de Deus traz à mente que está direcionada a ele.
A arte Oriental da meditação não é, creio eu, semelhante à meditação
cristã, mas talvez pelo menos uma lição poderia ser aprendida com ela: a de
assumir uma postura especial. Não estou recomendando nenhuma em
particular, mas qualquer postura em que se possa ficar quieto e alerta seria
uma boa postura. Fechar os olhos tem sido geralmente considerado uma boa
maneira de orar, porque filtra algumas distrações.
Não tente não pensar em nada. “Mantenham o pensamento” 87 , diz Paulo,
e não “Esvazie sua mente”. Ponha-o em Cristo, não em coisas terrenas.
Uma frase da Palavra de Deus pode ser tomada e repetida silenciosamente,
pedindo que nos seja concedido “espírito de sabedoria e de revelação no
pleno conhecimento dele” 88 . Foi uma frase do primeiro capítulo de Efésios
em que pensei esta manhã: “exercido pela sua força” 89 . Para mim, é útil
começar com a Palavra, esperando que Deus dirija e controle meus
pensamentos dentro desse contexto, levando-me a outros à medida que ele
quiser. Haverá, é claro, espaços para escutar.
Aqueles que trabalham com alcoólatras às vezes lhes dizem para não
pensar. Esse é um bom conselho em algumas circunstâncias. A mente pode
ruminar assuntos que não ajudam, como eu sei muito bem, embora não no
contexto do alcoolismo. Ocasionalmente, me pego repassando muitas vezes
alguma coisa mentalmente nas primeiras horas da manhã, muito antes de
meu despertador tocar. Essa é uma má hora para pensar, primeiro porque é
hora de dormir e segundo porque, em todo o caso, não há nada que eu possa
fazer sobre o que quer que seja a essa hora. Alguém certamente fará uma
objeção neste ponto: “Mas eu executo meu pensamento mais criativo às
duas horas da manhã! Escrevo poesia, planejo menus, preparo uma palestra,
decido que investimentos vou fazer”. O tipo de pensamento a que me refiro
é o pensamento destrutivo — o pensamento que produz a ansiedade,
pensando no dia seguinte da maneira proibida por Jesus; ou o mais
mortífero de todos, o que rumina as más lembranças. Um alcoólatra está em
apuros no momento em que se permite pensar em uma bebida. Às vezes, é
perigoso para ele se permitir pensar, porque esse pensamento terá
precedência, por isso é aconselhável que ele se levante e faça algo ao invés
de pensar.
A transformação da mente produz uma visão transformada da realidade.
O que o mundo chama de “real” perderá sua clareza. O que ele chama de
“irreal” ganhará clareza e poder.
Lendo homens como o apóstolo João, São Francisco de Assis ou
François de Fénelon, a mente não renovada diz “Esse homem não pode ser
real”, esquecendo que a santidade é, de fato, muito real. A santidade é, de
fato, muito mais real, muito mais humana do que a não santidade, estando
muito mais próxima daquilo que Deus nos criou para ser.
O que o mundo vê como real é uma coisa. O que é real para o olho mais
claro da fé é outra coisa bem diferente. Aquilo que é chamado de realismo
na literatura geralmente trata o mal como se fosse a única realidade e o bem
como se fosse uma fantasia. Ele se concentra na lata de cinzas e na casa
anexa ao quintal, ignorando a roseira no jardim da frente, que certamente é
tão real quanto elas. É verdade que os personagens ruins nos romances
muitas vezes são mais críveis do que os bons. Satanás é o melhor desenho
dos personagens de Milton, diz C. S. Lewis. Sua explicação é a seguinte:

O céu entende o inferno e o inferno não entende o céu. [...] Para nos projetar um
personagem perverso, só temos que parar de fazer algo, e algo que já estamos cansados de
fazer; para nos projetarmos em um bom personagem, temos que fazer o que não
conseguimos e nos tornar o que não somos. 90

Cristo nos chama a fazer isso (o que não conseguimos) e a ser isso (o que
não somos). Ele nos pede que andemos sobre as águas. Pedro conseguiu
fazer isso, mas apenas por alguns passos, apenas durante aqueles segundos
em que seu olhar estava cravado em Cristo, sua mente fixa, por assim dizer,
nas “coisas do alto”. Porém, quando ele olhou em volta, afundou.
Isso nada mais é do que uma visão transformada da realidade que é
capaz de ver Cristo como mais real do que a tempestade, o amor mais real
do que o ódio, a mansidão mais real do que o orgulho, a longanimidade
mais real do que o aborrecimento, a santidade mais real do que o pecado.
João, São Francisco e Fénelon, homens santos no sentido mais forte,
estavam profundamente conscientes de seu próprio pecado.
“Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos, e a verdade não está em nós” 91 , escreveu o primeiro.
O jovem Francisco passou horas em oração, angustiado, em uma gruta
perto de sua cidade, confessando e lamentando seus pecados. Seu rosto
estaria exaurido de sofrimento, até que um dia ele saiu em paz, sabendo que
Deus o havia perdoado.
“Ficamos espantados com nossa cegueira anterior ao vermos emitir do
fundo de nosso coração todo um enxame de sentimentos vergonhosos,
como répteis imundos rastejando para fora de uma caverna escondida” 92 ,
escreveu Fénelon a uma senhora em 1690.
O homem que é mais realista sobre sua própria necessidade é aquele que
mais provavelmente dará as costas para ela e se voltará para a realidade
brilhante de um salvador. O mal nunca é uma realidade em si mesmo, o que
significa que ele não tem existência além do bem, do qual é uma corrupção.
O inferno não tem luz. É tenebroso. Portanto, quanto mais claramente
apreendemos a natureza do mal, maior é a nossa repulsa e mais
genuinamente damos as costas a ele e acolhemos a verdade. Isso é o que faz
verdadeiros homens e verdadeiras mulheres, não a pobre autoindulgência
que hoje se passa por honestidade quando as pessoas “compartilham” suas
piores atitudes a fim de obter, não perdão, mas meramente a simpatia e o
consentimento comuns.
Há uma admissão de imperfeição, culpa ou “problema”, que não é o
mesmo que uma confissão genuína de pecado. Em vez disso, ela cheira
mais ao desejo de ser um com a multidão do que um com Aquele que o
mundo odiava. Jesus falou repetidas vezes a seus discípulos sobre o ódio
que eles sentiriam se fossem fiéis a ele:

Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu
respeito de que as suas obras são más. 93

Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. Se vós
fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu. [...] Lembrai-vos da palavra que eu vos
disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também
perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa. 94

Precisamos ter cuidado para que a nossa ânsia de expor nossa escuridão
interior não se torne uma exibição ou até mesmo uma celebração que obterá
para nós aceitação junto àqueles que realmente amam as trevas ao invés da
luz. O homem que resolutamente dá as costas à escuridão e se volta para a
luz não terá muito apoio popular. O verdadeiro contador da verdade, como
Sócrates previu há muito tempo, terá seus olhos arrancados. Assim tem
sido. Assim sempre será. Nós não arrancamos os olhos hoje em dia, não na
sociedade civilizada. Simplesmente dizemos ao homem que sai do caminho
largo e vai para o estreito que ele está obcecado, que não está em contato
com seus sentimentos, que ele é um benfeitor, um desmancha-prazeres, um
santinho — qualquer rótulo que exonere o resto de nós da responsabilidade
de sermos como Cristo. Temos pena da sua ingenuidade, sua estreiteza, sua
irrealidade, nunca suspeitando que possa haver em nosso meio alguns
poucos cujas mentes estão fixas nas coisas do alto 95 porque suas vidas estão
escondidas com Cristo.

Quem por um momento o tem discernido,


de forma vaga e fraca, de longe e escondido,
não desprezes dele toda a excelência,
prazer e poderes que tem e não tem existência —
sim, em meio aos homens sempre lembrado Ele seja
atingido com solene e doce surpresa,
mudo aos escárnios, o riso a gerar
somente a dominância de sincero olhar? 96
Uma mente renovada tem uma concepção totalmente diferente, não
apenas da realidade, mas da possibilidade. Um afastamento do reino desse
mundo para o Reino de Deus fornece todo um conjunto de valores baseados
não na palavra humana, mas na palavra de Cristo. As impossibilidades se
tornam possibilidades.
A mente mundana diz: “Olha, eu sou humano. Não espere que eu ame
aquela mulher, não depois do que ela fez à minha família. Isso é
impossível”. Por sua vez, a palavra de Cristo é: “Ame seus inimigos. Faça o
bem àqueles que te odeiam”. Isso é realmente impossível, pois era
impossível para Pedro andar no mar, até que ele obedecesse à ordem. A
mente transformada de dentro começa a pensar os pensamentos de Cristo.
Algumas vezes, achei necessário recusar deliberadamente pensamentos
sobre o que alguém me fez e pedir ajuda para me deter no que Cristo fez
por essa pessoa e sobre o que ele quer fazer por ela e por mim, pois estou
certa de que o tratamento que dispenso às pessoas depende de como eu
penso sobre elas. Este hino é muitas vezes uma oração útil para se fazer:
Que a mente de Cristo, meu Salvador
viva em mim, dia após dia,
e tudo o que eu diga e tudo o que eu for
que Ele controle com poder e amor. 97

Quando Paulo foi visitar os Coríntios, uma igreja muito necessitada de


correção e purificação, ele foi “em fraqueza, temor e grande tremor”, mas
com uma determinação: “nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este
crucificado” 98 . Ao encarar um temido encontro com alguém, me ajudou
tremendamente assumir a determinação de Paulo, procurando ver aquela
pessoa apenas no contexto da cruz. Esse método simples coloca a
imaginação em jogo. A imaginação é um poder que certamente nos foi dado
para nos capacitar a participar da experiência de outrem. Cristo conhece e
ama a pessoa, e transformará minha mente para que eu a veja de uma forma
que não conseguia ver antes: amada, perdoada, redimida. Assim, ao
oferecer a mente e a imaginação, eu assumo minha posição sob a cruz de
Jesus. Lá as coisas parecem muito diferentes do modo como elas aparentam
ao eu solitário. Consequentemente, a única realidade que o eu seria capaz
de enxergar torna-se mais fraca à medida que a realidade brilhante que pode
ser vista pela fé se torna ainda mais brilhante.
Essa é uma nova visão. A decisão deliberada de pensar os pensamentos
de Cristo permitindo que ele remodele a mente leva a uma maneira
diferente de enxergar, que, por sua vez, leva a uma maneira diferente de se
comportar em relação aos outros.
“Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem
que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar,
a fim de que experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de Deus
para vocês” 99 .
Um dos grandes dons do meu marido é a simpatia. Ele conhece as
pessoas com facilidade e rapidez, o que as deixa à vontade. Eu não. Ele me
ajuda dando o exemplo, e eu estou aprendendo, mas também preciso da
palavra dele. Recentemente, ele me falou sobre eu não ter sido tão amigável
quanto eu deveria com uma estranha. Minha resposta imediata à sua
observação foi raiva. Aconteceu que aquela estranha em particular era uma
jovem que me parou em um hotel e se dirigiu a mim por um apelido usado
apenas por minha família e velhos amigos. Meu aborrecimento ficou
aparente, disse Lars, apesar de eu ter sorrido, saudado e expressado
interesse no que ela estava fazendo. Lars me deu um breve sermão. Nada
que eu já não soubesse. Por que ele deveria me dar um sermão? , eu estava
pensando. Ele revela impaciência com as pessoas, às vezes. E além disso —
aquela garota não tinha nada que ter...
Minha reação foi “real”. Foi honesta, ou seja, certamente foi o que me
veio à mente primeiro. Eu não disse em voz alta nada do que estava
pensando, mas o que eu estava pensando era no padrão antigo, não no novo,
não na mente de Cristo. A “realidade” é, muitas vezes, maligna. Há uma
crença comum de que uma expressão franca do que a pessoa naturalmente
sente e pensa é sempre uma coisa boa porque é “honesta”. Isso não é
verdade. Se os sentimentos e pensamentos são errados em si mesmos, de
que modo expressá-los verbalmente pode significar algo de bom? Parece-
me que eles adicionam três pecados: sentimento errado, pensamento errado
e ação errada.
Eu sabia que meus pensamentos para com aquela moça eram errados, e
meus pensamentos enquanto Lars estava me exortando eram muito piores.
Então, o Espírito Santo me lembrou da verdade: deixe que Deus remodele
sua mente. Ponha sua mente nas coisas celestiais.
Pense em Cristo foi o novo pensamento que veio. Mas de onde ele veio?
Não foi de mim. Não foi de uma mentalidade secular. O Espírito Santo
lembrou-me.
“O que rejeita a disciplina menospreza a sua alma, porém o que atende à
repreensão adquire entendimento”. 100
“Senhor, ajuda-me a encarar a verdade do que Lars está me dizendo, em
vez de bloqueá-la por autodefesa”, eu orei.
A mente natural prefere o argumento à obediência, as soluções à
verdade. Quando a verdade é apresentada, a resposta imediata da mente
natural é não. De jeito nenhum. Ela se recusa a ser exortada pela verdade.
Ao “pensar em Cristo”, senti dissipar minha resistência à verdade das
palavras de Lars. As réplicas que eu havia pensado em fazer morreram em
minha língua. A submissão à autoridade de Cristo traz autoridade sobre o
eu.
O anseio por unidade caracteriza a mente renovada. Nenhum cristão
pecador pode aceitar alegremente divisões no Corpo de Cristo. Quando elas
surgem por causa de inveja, ciúme, espírito partidário, competição,
ressentimento ou desejo de reconhecimento (e essas são as maiores causas
de separação), elas revelam o velho estado de espírito. Os autores das
epístolas incitam repetidamente os crentes a pensarem da mesma forma, a
serem uma única mente, da mesma mente, unidos em suas mentes. Como
podemos ser de outra forma se temos, de fato, a mente de Cristo?
É surpreendente a frequência com que as coisas que são chamadas de
discordância, após serem submetidas a um exame, provam ser simples
antipatia.
“Não concordo com você” muitas vezes não significa nada mais do que
“não gosto do que você diz”. Os fariseus, famosos pelo conhecimento que
tinham da lei, alegaram discordar de Jesus. Suas respostas revelavam suas
discordâncias como sendo ódio à verdade. Antes de abrirmos a boca para
protestar, podemos considerar cuidadosamente a possibilidade de
discordarmos apenas porque o acordo nos custará algo, nos incomodará,
será prejudicial aos nossos interesses particulares. Um caso em questão
enquanto escrevo é a recusa dos controladores aéreos do Canadá em
permitirem que os voos dos EUA utilizem o espaço aéreo canadense. A
demissão de nossos controladores, eles alegaram, tornou todos os voos dos
EUA “inseguros”. Isso durou dois dias e então, sem nenhuma mudança na
situação de nossas torres de controle, eles cederam e permitiram o uso de
seu espaço aéreo. A discordância deles, ostensivamente fundamentada em
uma razão real, tornou-se um acordo sem que o “motivo” tivesse mudado.
O processo democrático, quando se trata de votar na igreja (para um
novo pastor, a compra de um novo terreno, a renovação da cozinha da
igreja, ou a seleção de diáconos, presbíteros ou sacristia) tanto quanto no
âmbito político, provavelmente depende muito mais do gosto do que do
pensamento. As pessoas ou gostam das coisas ou não gostam delas e
preferem evitar o trabalho real de pensar. Elas tiveram tão pouca prática que
são incapazes de distinguir entre razão e preferência pessoal.
A falta de prática não é a única explicação para essa incapacidade. A
rejeição da autoridade reduz tudo a questões de gosto. Onde não há
absoluto, há apenas moda. Isso é algo sério e que os cristãos devem criticar
com a mente de Cristo. De que forma pensamos nas questões atuais: fome,
crises ambientais, as questões de armamento e os muitos processos criados
pela desumanização que resultam do que poderíamos chamar de
“tecnolatria” (questões como divórcio, aborto, dessexualização da
sociedade, homossexualidade, engenharia genética)?
A maioria de nós se sente totalmente indefesa diante de todos os horrores
que vemos sobre nós. Não percamos a perspectiva. É no contexto do mundo
conforme visto nas Escrituras — um mundo criado e sustentado por Deus,
um mundo corrompido, mas que ainda será redimido — que devemos olhar
para as notícias. Devemos ativar nossa compreensão dada por Deus de que
existem forças invisíveis em ação.
“Pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e
autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças
espirituais do mal nas regiões celestiais. Por isso, vistam toda a armadura de
Deus” 101 .
Não estamos limitados, no sentido comum, ao que uma pessoa pode
fazer. O Senhor e seus exércitos lutam por nós.
“Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne.
Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus,
para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante
contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à
obediência de Cristo” 102 .
Antes de mais nada, devemos aplicar essas palavras ao nosso próprio
pensamento. Em cada um de nós há sofismas — pretensões, argumentos
que soam bem, mas que são enganosos, e que Romano Guardini chama de
“aflições do coração que assumiram proporções intelectuais” 103 .
Dr. Charles Stanley, pastor da Primeira Igreja Batista em Atlanta, mostra
como se desenvolvem as fortalezas. Elas começam com um pensamento,
que se torna uma consideração. Uma consideração desenvolve-se em uma
atitude, que os leva à ação. A ação repetida se torna um hábito, e um hábito
estabelece uma “base de poder para o inimigo”, ou seja, uma fortaleza.
Quando nos perguntamos por que continuamos a fazer algo que
desprezamos, aqui está a explicação. O inimigo fez uso de uma área de
fraqueza e a transformou em sua base de poder, e ele nos atinge
repetidamente. As únicas armas adequadas para lidar com tais fortalezas são
aquelas que são poderosas por meio de Deus. Elas são armas espirituais.
Aquele que tem a mente de Cristo não necessariamente entende todos os
mistérios. Ele está disposto, de fato, a permanecer em forte oposição a
qualquer coisa que se levante contra o conhecimento de Deus, não importa
o que seus oponentes possam dizer, não importa se ele pode ou não refutar
com sucesso os argumentos dos seus opositores. Maturidade é a capacidade
de levar a questão não respondida com fé, mantendo-se fiel à Palavra pela
qual vivemos.
Uma mulher que tinha sido ferozmente atacada em público por algo que
havia escrito sobre uma verdade particularmente impopular me disse:
“Elisabeth, não posso responder àquelas pessoas. Não sei o que dizer a
alguns dos argumentos delas, mas não tenho medo deles porque sei que
estou certa”. 104 É um assunto delicado tomar essa posição, porque o perigo
do fanatismo espreita da esquina, mas o homem cujo olho se volta
unicamente para a glória de Outro é confiável.
Paulo deu ao jovem Timóteo instruções específicas sobre a ordem na
igreja: a conduta dos diáconos, das mulheres, dos mais velhos, das viúvas;
sem dúvida, essas foram questões explosivas nos dias dele, bem como são
nos nossos. Paulo sabia bem quão difícil seria para Timóteo se ele se
posicionasse com firmeza. No entanto, ele disse:
Ensina e recomenda estas coisas. Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as
sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado,
nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja,
provocação, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim, por homens cuja mente é
pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro. 105

O discípulo que tem a intenção de compelir cada um de seus


pensamentos para rendê-los em obediência a Cristo faria bem em testar a si
mesmo fazendo-se as seguintes perguntas:
1. Busco a glória de quem?
2. Isso vai a favor ou contra o conhecimento de Deus?
3. Tenho cedido minha mente às sãs palavras?
4. Tenho mania por questões verbais e contendas?
5. Para mim, mais importante é entender do que obedecer?
6. Para mim, mais importante é saber do que crer?
7. Um lado da questão será inconveniente para mim?
8. Eu rejeito uma verdade particular porque ela me será um
inconveniente?
Não há fim para os sofismas que somos capazes de substituir por um
pensamento claro. Pragmatismo (aquilo é certo se funciona para mim),
viabilidade técnica (a ciência encontrou uma maneira de fazer isso, então
vamos fazer), relevância (eu posso “me identificar” com isso), conforto (eu
me sinto confortável com isso), felicidade (eu me sinto feliz com isso),
moderação (eu certamente não quero ir a extremos), obrigação (eu devo
isso a mim mesmo), responsabilidade (a vida é minha ), e assim por diante.
Suponha que estejamos abordando uma questão de justiça, direitos
humanos, aborto, divórcio, masculinidade e feminilidade. Se primeiro
colocarmos no papel todas as opiniões populares atuais sobre esses assuntos
e depois fizermos as perguntas que eu sugeri, será que poderemos encontrar
nas Escrituras respostas que seriam relativamente revolucionárias?
Sobre a justiça: para o cristão, isso sempre significa igualdade? Jesus
contou a história de um homem que contratou trabalhadores em diferentes
momentos do dia e pagou o mesmo salário a todos ao final do dia. Aqueles
que tinham sido contratados primeiro resmungaram por causa do valor pago
(“Ei, como é que esses caras...?”), embora fosse exatamente o valor
acordado. O fazendeiro tinha o direito de ser generoso se escolhesse ser.
Jesus mostra nessa história o significado de “muitos primeiros serão
últimos; e os últimos, primeiros”. “É justo?”, nós perguntamos, mas
estamos fazendo a pergunta errada. Sua ênfase sempre foi na pureza do
coração e no amor, e não na lei. Ele penetrou os segredos dos corações que
faziam as perguntas e encontrou neles fortalezas de resistência à verdade.
Sobre os direitos humanos: quantos manifestantes estariam na marcha se
ela fosse limitada àqueles que primeiramente tivessem cedido seus direitos?
Sobre o aborto: que argumentos a favor do aborto continuariam de pé se
a coisa descartada fosse chamada de bebê em vez de “tecido” ou de
“produto da concepção”? Temos permissão para perguntar se trata-se de um
ser humano? Nossa resposta vem de Deus ou do homem?
Sobre o divórcio: quantos buscariam um divórcio se a felicidade do outro
fosse a coisa que a pessoa busca acima da sua própria?
Sobre a masculinidade e a feminilidade: quantas discussões sobre papéis,
igualdade e personalidade chegariam ao fim se a sexualidade fosse vista não
como uma questão biológica, mas como uma questão teológica, um
mistério glorioso de dois seres complementares que carregam a imagem do
Deus invisível?
Se levarmos cada pergunta, doutrina ou problema diretamente à presença
de Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida, e perguntarmos: “Qual
caminho para o reino dos céus?”, a resposta estará lá.
O discípulo que honestamente procura deixar Deus renovar sua mente irá
direcionar suas energias não para resolver as exceções, as lacunas ou os
pontos sensíveis da lei, mas para uma total rendição de amor obediente.
Então, com seu coração aberto ao Espírito de Deus, ele estará em condições
de aprender a sabedoria. A oração de tal homem ou mulher será:
Ensina-me, SENHOR , o caminho dos teus decretos,
e os seguirei até ao fim.
Dá-me entendimento, e guardarei a tua lei;
de todo o coração a cumprirei.
Guia-me pela vereda dos teus mandamentos,
pois nela me comprazo.
Inclina-me o coração aos teus testemunhos
e não à cobiça.
Desvia os meus olhos, para que não vejam a vaidade,
e vivifica-me no teu caminho. 106

O cristão disciplinado será muito cuidadoso com o tipo de conselho que


procura dos outros. O conselho que contradiz a Palavra escrita é um
conselho ímpio. Bem-aventurado o homem que não anda nesse conselho.
O poder de Deus não se manifesta na sabedoria dos sábios (o filósofo? o
cientista? o crítico? o psiquiatra?) nem na prudência dos prudentes (o
político? o homem de negócios bem-sucedido? o conselheiro fiscal?), mas
em Cristo — Cristo pregado na cruz. O que poderia parecer mais inútil e
tolo para o mundo do que isso? Quem poderia pedir sabedoria a um homem
em uma cruz? Veja onde isso o levou!
Mas foi a cruz que nos salvou. Cristo foi pregado na cruz para que
pudéssemos não mais viver para nós mesmos, mas para Deus. Não é bem
aqui, em nossa determinação para conseguir o que queremos quando
queremos, que começam tantos problemas para os quais procuramos ajuda
profissional? Não seria possível encontrar nossa resposta rapidamente se
nos curvássemos aqui primeiro? Eu encontrei. Eu sei que é verdade.
Também sei que há quem se oponha imediatamente dizendo que isso é
muito simplista. A essas pessoas eu responderia simplesmente que este é
um livro sobre disciplina cristã. Este é um livro sobre pontos de partida. Ele
é dirigido às pessoas que já reconheceram seu Mestre, e a Palavra dele é o
quadro de referência delas.
Paulo advertiu severamente Tito para ter cuidado com os homens que
viram as costas para a verdade: “Pois há muitos insubordinados, que não
passam de faladores e enganadores, especialmente os do grupo da
circuncisão. É necessário que eles sejam silenciados, pois estão arruinando
famílias inteiras, ensinando coisas que não devem, e tudo por ganância. [...]
Eles afirmam que conhecem a Deus, mas por seus atos o negam; são
detestáveis, desobedientes e desqualificados para qualquer boa obra”. 107
Muitas doenças — físicas, mentais e emocionais — certamente devem
vir da desobediência. Quando a alma é confrontada com uma alternativa de
certo ou errado e opta por embaçar a distinção, dando desculpas para sua
perplexidade e frustração, ela está exposta à infecção. O mal tem a
oportunidade de invadir a mente, o espírito e o corpo, e a pessoa doente vai
até um especialista que diagnosticará seu problema. Às vezes o paciente
sabe bem qual é seu problema e por isso mesmo não consultou o Senhor,
temendo o que ele vá dizer: Confesse. Dê a volta. Pare com essa
indulgência. Não tenha piedade de si mesmo. Perdoe aquela pessoa.
Devolva o que você deve. Peça desculpas. Diga a verdade. Negue a si
mesmo. Considere o bem-estar do outro. Dê sua vida.
É provável que a pessoa escolha um conselheiro que ouça “sem
julgamento” a sua história e talvez suavize ou descarte como injustificado
qualquer sentimento de culpa que venha à tona. Sua interpretação dos
segredos revelados pode ser mais palatável do que aquela que o paciente
teria encontrado para si mesmo nas páginas da Bíblia, pois a Palavra é
“mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao
ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os
pensamentos e propósitos do coração. E não há criatura que não seja
manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas
e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas” 108 .
Que conselheiro humano, mesmo com credenciais acadêmicas acima de
qualquer repreensão, pode, sem a ajuda da Palavra viva, perfurar até o lugar
onde a alma e o espírito se dividem?
Recorrer à ajuda de alguém qualificado para ajudar, cujo deleite está na
lei do Senhor, em cuja lei ele medita dia e noite, muitas vezes conduz para
fora da confusão e da escuridão. A necessidade de expor o caso a outro, o
esforço de ordenar todos os fatores, articulando-os, apresentando-os à luz
do dia a outra inteligência, e depois olhando-os razoavelmente juntos e
orando por cada detalhe do caso pode ser uma experiência
maravilhosamente esclarecedora.
Deus não é o autor da confusão. 109 A promessa dele é:
Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir;
e, sob as minhas vistas, te darei conselho.
Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento,
os quais com freios e cabrestos são dominados;
de outra sorte não te obedecem.
Muito sofrimento terá de curtir o ímpio,
mas o que confia no SENHOR , a misericórdia o assistirá.
Alegrai-vos no SENHOR e regozijai-vos, ó justos;
exultai, vós todos que sois retos de coração. 110

Muitos anos atrás, meu marido e eu estávamos diante de um negócio


muito complicado, de comprar uma casa, mudar para esse imóvel e alugar a
casa da qual estávamos saindo. O momento parecia totalmente impossível.
Não podíamos nos mudar até que a nova casa estivesse pronta; não
podíamos prometer a futuros inquilinos quando nossa casa antiga estivesse
disponível (e tínhamos uma família que precisava desesperadamente se
mudar para onde estávamos). O que fazer? Meus pensamentos tiveram que
ser levados cativos por causa disso. Levar cativos os pensamentos não é um
negócio gentil. Eles não querem vir. Mas Cristo é Mestre em nossas vidas, o
que incluiu dificuldades de moradia, então os pensamentos simplesmente
tiveram que ser encurralados. Não parecia haver saída para o emaranhado; e
no momento em que eu pensava que tinha os fugitivos capturados em
segurança, eles encontravam outra rota de fuga e iam embora.
Lars e eu colocamos tudo diante do Senhor o mais completamente que
pudemos. Oramos por todas as pessoas de quem dependíamos para tomar
nossas decisões e por aqueles que dependiam das nossas decisões, pedindo
ao Senhor que provesse tanto para elas quanto para nós e que nos deixasse
claro o que devíamos fazer. Então, começamos a fazer o que parecia
razoável e possível, um passo de cada vez, confiando em Deus para fazer o
que parecia estar além da razão e que parecia ser impossível (o que era a
maior parte!). Ele respondeu às nossas orações. Agora nos encontramos em
outra situação, semelhante, mas ainda mais complicada. Lars está longe, e
ontem, enquanto eu estava sozinha orando as mesmas palavras que oramos
juntos há dois anos, peguei uma Bíblia e a abri aleatoriamente. De imediato,
meu olho caiu em uma nota que eu havia escrito na margem do Salmo 18,
“Orando por inquilino”, e na data, que estava há uma semana de ser
exatamente dois anos atrás no dia de ontem: “o SENHOR , meu Deus,
derrama luz nas minhas trevas [...]. O caminho de Deus é perfeito; a palavra
do SENHOR é provada”. 111 Eu escrevi isso na margem, sob “Orando por
inquilino”, com uma nova data. Fui encorajada a confiar, levando cativos
meus pensamentos desobedientes — isto é, minhas dúvidas, meus temores.
(Nota posterior: encontramos um inquilino, exatamente na hora certa.)
Estamos ansiosos para ter uma mente disciplinada? Podemos testar
prontamente que tipo de mente temos, analisando as descrições bíblicas dos
dois tipos.
A mente carnal é:
entorpecida Lucas 21.34, NVT

reprovável Romanos 1.28

depravada Romanos 1.28, tradução livre da versão


NEB

controlada pela natureza humana Romanos 8.7, NTLH

inimiga de Deus Romanos 8.7, NVI

inevitavelmente oposta aos propósitos de Deus e não pode, nem irá Romanos 8.7, tradução livre da versão
seguir as leis do Senhor para viver Phillips

não enxerga nada além de coisas naturais Romanos 8.5, tradução livre da versão
Young Churches

uma mentalidade formada pela natureza baixa e que significa morte Romanos 8.5, tradução livre da versão
NEB

endurecida Efésios 4.18

insensível, cega em um mundo de ilusões Efésios 4.18, tradução livre da versão


Young Churches

se preocupa com as coisas terrenas Filipenses 3.19

fervilha com conceitos fúteis Colossenses 2.19, tradução livre da


versão NEB

inflada por imaginação não espiritual, se metendo em assuntos dos quais Colossenses 2.18, tradução livre da
nada sabe versão RSV

impura Tito 1.15

corrompida Tito 1.15


Por sua vez, a mente obediente a Cristo mostra um conjunto muito
diferente de características:
vigilante Lucas 21.36
mais aberta Atos 17.11, NVT
tem grande interesse Atos 17.11, NVI
ávida Atos 17.11, NAA
humilde Filipenses 2.5-9; Colossenses 3.12
espiritual Romanos 8.6, tradução livre da versão NEB
busca as coisas do espírito Romanos 8.6, tradução livre da versão YOUNG CHURCHES
vida Romanos 8.6, tradução livre da versão NEB
paz Romanos 8.6, tradução livre da versão NEB
justa Efésios 4.24
reta Efésios 4.24
fortaleza 2 Timóteo 1.7, ARC
tem autocontrole 2 Timóteo 1.7, NVT
mod é stia Tiago 3.13, tradução livre da versão NEB

Sobre a sabedoria que não vem do alto, Tiago diz que é “terrena, animal
e demoníaca”. Ela abriga o ciúme amargo e a ambição egoísta, com os
quais vêm a desordem e o mal de todo tipo.
A sabedoria do alto, por outro lado, “é, primeiramente, pura; depois,
pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos,
imparcial, sem fingimento”. 112
A mente semelhante a de Cristo não dá nenhum valor àquilo que o
mundo valoriza, e considera como sendo de suma importância aquilo para o
qual o mundo atribui nenhum valor. Sou cristã há quase meio século, mas
tenho um longo caminho a percorrer. Quando estou diante de uma decisão
de qualquer tipo, se examino meu coração e minha mente, quase sempre
encontro muitas características da mente não renovada e apenas sugestões
tênues das renovadas. Estou vigilante? Às vezes. Mas deixe-me apenas
tentar orar cedo pela manhã ou manter minha mente atenta quando outra
pessoa está liderando em oração. No momento em que acho que encontrei
um pouco de generosidade, vejo que isso se aplica apenas à minha atitude
em relação a certas pessoas, não em relação a qualquer pessoa que possa
estar tentando me matar. Se eu detecto, uma vez na vida outra na morte, o
que parece ser uma pequena pitada de humildade (e o que estou fazendo
“detectando” afinal?), alguém me envia uma resenha de um dos meus
livros, como a que acabou sugerindo que “alguns leitores diriam que este
livro é baseado em um olhar superficial sobre as Escrituras”. Ou ouço um
relato de uma palestra que supostamente eu deveria ter dado — mal
representada, mal citada, citada fora do contexto, mal compreendida ou
censurada com um leve elogio — e eu estou acabada. Eu vou atrás das
coisas do Espírito? Bem, às vezes. “Senhor, Tu conheces todas as coisas. Tu
sabes que eu te amo”. Meu coração está faminto e sedento de retidão. Paz
de espírito? Sim, quase sempre, exceto quando chego em casa após uma
longa viagem e encontro a pilha de trabalho na escrivaninha.
Se eu quiser amar o Senhor meu Deus com toda a minha mente, não
haverá lugar nela para a carnalidade, para o orgulho, para a ansiedade, para
o amor a mim mesma. Como a mente pode ser preenchida com o amor do
Senhor e ter espaço para coisas como essa?
Quando as descubro, só posso orar: “Senhor, me perdoa. Ofereço-te
novamente meu corpo como um sacrifício vivo, pedindo-te que o aceites
como um ato de adoração e que continues teu santo trabalho de
transformação da minha mente de dentro para fora, para que eu possa
glorificar-te mais dignamente. Em nome de Jesus”.
Ao longo de nossa vida terrena, é sempre no ponto de necessidade —
aquele momento de crise em que nos propomos a alguma solução ou
resposta, ou mesmo alguma fuga — que nos é oferecida a oportunidade de
escolher . Aceitaremos as soluções, respostas e fugas que o mundo oferece
(e há sempre muitas delas) ou a alternativa radical mostrada à mente
sintonizada com a de Cristo. Os caminhos do mundo se exaltam contra
Deus. Às vezes eles parecem racionais e atraentes para o discípulo mais
sincero, mas Cristo nos diz então o que disse aos seus discípulos há muito
tempo, quando muitos deles já haviam desistido com repulsa: “Porventura,
quereis também vós outros retirar-vos?” Se respondermos como Pedro
respondeu — “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida
eterna” 113 — nossos pensamentos rebeldes são capturados mais uma vez. O
caminho da santidade é novamente visível. O discípulo dá um passo adiante
através do portão estreito.
1 Pedro 1.13, NVT.
Mateus 22.37, NVT. Itálico adicionado .
Romanos 12.1, tradução livre da versão New English Bible (NEB). Itálico adicionado .
Romanos 12.3.
Colossenses 3.2, NVI.
Efésios 1.17.
Efésios 1.20; tradução livre da versão NEB.
C. S. Lewis, A Preface to Paradise Lost (New York: Oxford University Press, 1942).
١ João ١.٨.
François de Fénelon, Spiritual Letters to Women (New Canaan, CT: Keats Publishing Co., 1981).
João 7.7.
João 15.18-20.
Ver Colossenses 3.2.
F. W. H. Meyers, Saint Paul (London: H. R. Allenson, Ltd., n.d.).
Kate B. Wilkinson, “May the Mind of Christ, My Savior”, extraído de Andando nos passos de Jesus ,
de Larry Mccall (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009).
1 Coríntios 2.2-3.
Romanos 12.2, NVT.
Provérbios 15.32.
Efésios 6.12-13, NVI.
2 Coríntios 10.3-5.
Extraído de um sermão feito pelo dr. Charles Stanley, In Touch Ministries , Box 7900, Atlanta, GA
30357, #AQ031, usado com permissão.
Elisabeth Elliot, Deixe-me ser mulher (São José dos Campos: Editora Fiel, 2021); The Mark of a
Man (Old Tappan, NJ: Fleming H. Revell, 1981).
1 Timóteo 6.2-6. (N. T.: No inglês, o versículo 3 é iniciado com uma frase que, para nós no
português, aparece no final do versículo 2. Para preservar o original, foi incluído o versículo 2 na
referência.)
Salmos 119.33-37.
Tito 1.10-11, 16, NVI.
Hebreus 4.12-13.
Ver 1 Coríntios 14.33.
Salmos 32.8-11.
Salmos 18.28, 30.
Tiago 3.15, 17.
João 6.67-68.
9 | A disciplina da posição

C
erto dia, uma amiga me ligou e me perguntou algo que me fez
pensar de uma nova forma.
“Ron e eu não temos ficado muito felizes com os sermões que
temos recebido ultimamente. Eu mal sei o que dizer ao pastor quando
saímos da igreja e apertamos as mãos. Mas o que mais me incomoda é
como honrá-lo. A Bíblia não nos diz para honrarmos todos os homens?”
E é verdade. Mas que pergunta curiosa para uma jovem mulher moderna.
Honra? Quem pensa em honra hoje em dia? Somos todos iguais. Nós nos
apresentamos apenas pelos primeiros nomes; negligenciamos o uso de
títulos para pessoas que uma vez teriam sido consideradas nossos
superiores; e o sistema de honra nas escolas parece ter caído fortemente.
Não tenho mais certeza se os escoteiros ainda juram pela “palavra de
escoteiro”, mas todo o país foi abalado quando 13 mil controladores de
tráfego aéreo quebraram um juramento ao entrarem em greve em 1981.
Alguns dos grevistas podem ter tido momentos de apreensão, considerando
o que o juramento realmente significava, mas o fato é que eles o fizeram,
concordando que o desejo deles por uma semana de 32 horas e um mínimo
de $30.642 dólares por ano substituíam o juramento que haviam assinado.
A revista Time , em referência a esse fato, citou William Murray, solicitador
geral da Grã-Bretanha no século dezoito: “Nenhum país pode subsistir doze
meses onde um juramento não é considerado obrigatório, pois a falta dele
deve necessariamente dissolver a sociedade”.
A Bíblia nos diz para dar “a devida honra” 114 a todos. Devida significa
“que se deve, pagável”; isto é, não é algo acima e além do chamado do
dever, mas algo obrigatório, como as contas, os pedágios ou os impostos.
Significa também o mesmo que exigido, assim como “o devido cuidado”,
ou “no devido tempo”.
Não tem nada a ver com nossos sentimentos sobre nós mesmos ou sobre
os outros, a despeito dos controladores de tráfego aéreo.
“Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. A
ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor”. 115
Aqui devemos enfatizar fortemente que o discípulo está sozinho diante
do Senhor, enfrentando sua obrigação principalmente para com o próprio
Deus. Deus não lhe perguntará se a outra pessoa cumpriu a parte dela no
acordo. Ele pede apenas um coração puro. É suficientemente fácil nos
exonerarmos com base no fracasso da outra parte (de uma pessoa, de uma
instituição, de uma sociedade) em cumprir sua obrigação, mas a obediência
de um discípulo não é contingente. “A ninguém fiques devendo coisa
alguma” é a única preocupação do indivíduo. Não há nenhuma exigência de
que nós nos asseguremos de que outros nos paguem.
Honra significa “respeito, alta consideração, reconhecimento de valor”.
Um cristão enxerga todos os homens como feitos à imagem de Deus. Todos
são pecadores também, o que significa que a imagem é manchada, mas é
uma imagem divina, capaz de redenção e, portanto, de ser considerada
honrosa.
Uma fonte de confusão é a definição de respeito . Respeito significa
“reverência debaixo de Deus”, antes de mais nada; isto é, uma apreciação
adequada pela pessoa que Deus fez pelo mesmo motivo de Deus a ter feito.
Mas a Bíblia diz que Deus “não faz acepção e pessoas”, 116 o que significa
que ele não tem favoritos. No mesmo sentido, Tiago diz que somos
inconsistentes e que estamos julgando por padrões falsos se tratamos “com
deferência”, 117 ou seja, se jogamos com os favoritos, como quando
prestamos atenção especial ao homem que usa roupas finas.
Discriminar alguém por falsas razões é errado. Em um lugar de culto,
tanto o homem bem-vestido com anéis de ouro quanto o pobre homem com
roupas gastas devem ser bem-vindos. Essa é uma obrigação cristã. O
homem rico que vem com roupas gastas, porém, ilustra outro lado da
moeda do respeito. Jesus contou uma história sobre um homem que foi
jogado nas trevas, onde havia choro e ranger de dentes, porque apareceu em
um casamento vestido inadequadamente 118 . É claro que o ponto que Jesus
estava fazendo nessa história não era principalmente de respeito, mas a
verdade está ali. Recusar a roupa apropriada (que, segundo me disseram,
era habitualmente fornecida pelo anfitrião para aqueles que não podiam
pagar) foi uma ofensa. Os ricos que se vestem de forma surrada quando
podiam se vestir de maneira respeitável são culpados de outra forma de
favoritismo: o esnobismo inverso.
Sei que estou patinando sobre gelo muito fino ao levantar a questão do
vestuário, uma vez que, por várias décadas, isso tem sido considerado pela
maioria dos cristãos como de muito pouca ou absolutamente nenhuma
importância, uma vez que Deus olha o coração, mas acredito que vale a
pena reconsiderar isso em termos de respeito. Quando estou disposta a me
vestir bem — seja para uma entrevista de trabalho, por exemplo; para um
convidado especial que estou entretendo; para um evento social para o qual
me sinto honrada por ter sido convidada —, isso não é uma indicação do
meu respeito pelo valor da outra pessoa? Não é um sinal do respeito de um
ator pelo seu público e do público pela pessoa que se apresenta quando eles
se vestem para a ocasião? Isso pode ser ridicularizado como uma forma de
orgulho (“quem você está tentando impressionar?”), mas pode ser uma
humildade genuína do mesmo tipo que nos levaria a polir a prata, tirar a
bela toalha de mesa e colocar luz de velas e flores para alguém muito
amado. A atitude dos estudantes, tenho notado, é fortemente influenciada
pela vestimenta de um professor, assim como pelos modos dele.
Um segundo motivo de confusão em matéria de respeito, além da
confusão sobre a definição, é a noção atual de que todos merecem a
igualdade do tipo olho por olho. Esse é um dos excessos da democracia, que
não deve ser confundido com o cristianismo. A verdade é que nem todos
têm direito a tudo. Uma criança tem o direito de ser cuidada. Um adulto
não. Um adulto tem o direito de votar, de se casar, de ser tributado. Uma
criança não.
A palavra-chave, que nos ajudará a entender algumas distinções
extremamente importantes, é devido . Quando Pedro nos diz para dar a
devida honra a todos, ele passa a especificar três maneiras diferentes de
obedecer a essa ordem: “amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. 119 Já
observamos que o que é devido é o que se deve. É apropriado, próprio,
adequado a essa pessoa em particular. Diferentes tipos de honra e respeito
são adequados a diferentes pessoas e, ao discriminarmos, nós os honramos
de fato. Nada ilustra isso mais claramente do que o casamento do Príncipe
Charles com a Lady Diana. Em virtude de Charles ser um príncipe e
herdeiro do trono da Inglaterra, a pompa e o esplendor daquele casamento
lhe eram devidos. Era devido, adequado, próprio, tanto quanto era exigido e
esperado. O fato de que nossas expectativas foram cumpridas foi uma fonte
de grande alegria. Os rostos das multidões testificaram eloquentemente isso.
A honra é dada. Não é tomada. Se o próprio príncipe Charles tivesse
mandado realizar a elaborada cerimônia contra a vontade do monarca ou do
povo, não haveria alegria alguma. Ele não o exigiu — sua posição o exigiu.
Isso é essencial em nossa compreensão do dever de honrar uns aos outros.
Devemos considerar a posição do outro diante de Deus.
Dever é outra palavra útil. Significa simplesmente “o que é devido
(como nos direitos alfandegários que devem ser pagos), qualquer ação
necessária ou apropriada à própria ocupação ou posição, um senso de
obrigação”.
Centenas de milhares agitaram bandeiras, aplaudiram e torceram
enquanto o carro real passava. Cavaleiros elegantemente uniformizados
cavalgavam cavalos esplendidamente caparisionados. Assim, a honra
apropriada foi oferecida ao príncipe e à princesa, mas eles, por sua vez,
honraram a multidão acenando com a cabeça, sorrindo, acenando com as
mãos e aparecendo várias vezes na varanda do Palácio de Buckingham para
reconhecer a reivindicação de seus súditos. Essa resposta foi a forma de
homenagear a multidão.
A honra tem a ver com orgulho — no mais verdadeiro e nobre sentido de
reconhecimento da missão divina. “Deem orgulho de posição uns aos outros
em estima”, 120 diz Paulo aos romanos. Em sua obra Out of Africa 121 , Isak
Dinesen chega mais perto de expressar o que isso significa:

O bárbaro ama seu próprio orgulho e odeia, ou não acredita, no orgulho dos outros. Serei
um ser civilizado, amarei o orgulho de meus adversários, de meus servos e de minha
amante; e minha casa será, com toda a humildade, no deserto, um lugar civilizado.
Ame o orgulho de Deus além de todas as coisas, e o orgulho de seu próximo como seu
próprio orgulho. O orgulho dos leões: não os cale em zoológicos. O orgulho de seus cães:
não os deixe engordar. Ame o orgulho de seus companheiros partidários, e não lhes permita
nenhuma autopiedade.
Ame o orgulho das nações conquistadas, e deixe-os honrar seu pai e sua mãe.

Amar o orgulho dos outros requer um espírito generoso. Um homem de


espírito pequeno não estará disposto a ver outro receber crédito, honra ou
posição. Todos nós, suponho, às vezes resmungamos interiormente ao ver
alguém receber um lugar que aquela pessoa não merecia. “Isso não é justo,
ele não é qualificado. De quem foi a ideia de nomeá-lo? Como ele entrou na
diretoria? Como foi que eu não entrei?” A última pergunta é a que toca a
raiz mais profunda de nossa falta de vontade de honrar o outro: nosso
próprio orgulho, um tipo perverso que realmente dá origem ao ciúme. Sem
dúvida, Deus deve, às vezes, permitir que a pessoa “errada” receba crédito
para que nós, os “certos”, descubramos quão cheios de orgulho somos.
O cristianismo ensina a justiça, não os direitos. Ele enfatiza a honra, não
a igualdade. A preocupação de um cristão é o que se deve ao outro, não o
que se deve a si mesmo.
“Amem os seus inimigos, façam o bem aos que odeiam vocês.
Abençoem aqueles que os amaldiçoam, orem pelos que maltratam vocês
[...]. Dê a todo o que lhe pedir alguma coisa; e, se alguém levar o que é seu,
não exija que seja devolvido”. 122
Isso está muito longe da velha lei da igualdade de direitos de olho por
olho. No entanto, estranhamente, hoje, quando a igualdade é o suposto
ideal, muitas vezes há discriminação inversa, onde é dada uma vantagem
injusta àqueles que antes estavam em desvantagem, por exemplo, os
criminosos, os pobres, os grupos étnicos ou as mulheres. Nos tempos do
Antigo Testamento, dizia-se aos israelitas que ser parcial ou favorecer os
pobres era uma perversão da justiça, tanto quanto era subserviência aos
grandes.
“Não farás injustiça no juízo [...]; com justiça julgarás o teu próximo
[...]. Eu sou o SENHOR ” 123 .
Eu sou o Senhor . Isso já era motivo suficiente para o povo de Israel.
Temos ainda mais razão, tendo visto a glória de Deus no rosto de Jesus
Cristo, que se tornou o Filho do Homem. Ao nos lembrarmos dele,
honramos todos os homens.
Aqueles a quem nos é especificamente ordenado honrar por terem sido
colocados sobre nós são autoridades civis, pais, professores, mestres e
presbíteros. Os presbíteros são dignos de uma dupla honra, ou de dobrados
honorários. 124 Aqueles que sofrem por nós e trabalham para nós merecem
honra.
Falando de Epafrodito, seu colega de trabalho e companheiro, Paulo
disse aos filipenses para o receberem com todo o prazer e para o honrarem,
pois “por causa da obra de Cristo, chegou ele às portas da morte e se dispôs
a dar a própria vida, para suprir a vossa carência de socorro para comigo”.
125

Aos tessalonicenses, ele escreveu: “Agora, vos rogamos, irmãos, que


acateis com apreço os que trabalham entre vós e os que vos presidem no
Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com amor em máxima
consideração, por causa do trabalho que realizam”. 126
Madre Teresa de Calcutá honrou os indigentes e moribundos que jaziam
nas ruas da cidade. Ela viu Cristo nas mais tristes migalhas da humanidade,
e com humildade e amor os reuniu para serem atendidos. Ninguém que não
reconhecesse neles a imagem divina faria tal trabalho.
O respeito parece ser uma coisa difícil em nossa sociedade atual. Muitos
alunos do seminário onde eu costumava ensinar eram residentes — situação
em que, em troca de trabalhos domésticos ou de trabalho no jardim, o
estudante recebe um lugar para viver sem precisar pagar aluguel. Ao
conversar com alguns deles, descobri que se sentiam ofendidos ao serem
tratados como servos. Eles sentiam que deveriam ter recebido um lugar de
igual para igual na família. Quando eu salientei que a condição em que lhes
foi permitido viver lá (alguns dos lugares são verdadeiramente luxuosos, em
grandes propriedades à beira-mar) era que eles deveriam servir, eles
pareciam perplexos, não tendo nenhuma concepção da posição de um servo.
Um senso de saber o seu lugar é importante para um cristão. Não
podemos dar honra devida — onde ela é devida — sem um senso de
posição. Quem é essa pessoa, quem sou eu em relação a ela? Somos pessoas
que estão debaixo de autoridade a todo momento, devendo honra e respeito
a um rei ou a um presidente, aos pais, ao mestre, ao professor, ao marido ou
ao chefe, aos ministros e anciãos e bispos e, naturalmente, sempre e mais
importante, a Cristo.
Outro estudante do seminário criticou um certo professor como sendo
“indisponível”. Quando questionado, ele admitiu que o professor proferia
suas palestras conforme agendado e que poderia ser encontrado em seu
escritório durante as horas indicadas. Porém, ele deixava a sala de aula
imediatamente após as palestras e geralmente não era visto no refeitório,
tomando café com os alunos.
“Mas isso é tão errado”, disse o estudante.
“Errado?”
“Ele não se relaciona. Quero dizer, para começar, ele é o único professor
que tenho que não chamo pelo primeiro nome”.
O jovem não tinha a menor noção de honra ou de dar orgulho de posição.
O conselho de Paulo aos escravos ilustra um princípio que nenhum de
nós deveria deixar de entender:
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio
senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam difamados.
Também os que têm senhor crente não o tratem com desrespeito, porque é irmão; pelo
contrário, trabalhem ainda mais, pois ele, que partilha do seu bom serviço, é crente e
amado. 127

Ser um só na fé e no amor não significa ser amigo, quer estejamos


falando de escravos e mestres ou de estudantes e professores. Eu tentei
ajudar o estudante a ver que ele precisava se preocupar mais em honrar o
professor, preservando uma distância respeitosa, do que em permanecer
com uma ideia mal concebida dos direitos de estudante que lhe permitiam
uma intimidade. Ele tinha o “direito” a ser ensinado, o qual, como qualquer
outro, tem suas limitações. O direito de ser um estudante não é o direito de
ser um amigo. Se ele se tornar o amigo do professor, isso seria um
privilégio.
Honrar aqueles que são nossos superiores legítimos em virtude de ocupar
cargos de autoridade sobre nós toma a forma de obediência. O servo não é
maior que seu senhor, o aluno não é maior do que seu professor, a criança
não é maior do que seus pais. Em cada caso, quando a obediência é
oferecida primeiro a Cristo, a obediência ao superior humano se tornará
muito mais fácil. O padrão de serviço também deve ser amplamente
melhorado.
“Quanto a vocês, servos, obedeçam a seus senhores aqui na terra com
temor e tremor, com sinceridade de coração, como a Cristo, não servindo
apenas quando estão sendo vigiados, somente para agradar pessoas, mas
como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus. Sirvam de
boa vontade, como se estivessem trabalhando para o Senhor e não para
pessoas,
sabendo que cada um, se fizer alguma coisa boa, receberá isso outra vez do
Senhor, seja servo, seja livre”. ( Efésios 6:5-8 ) 128
Gert Behanna, em seu apelo “Mulheres, Sejam Mulheres!” (uma palestra
dada muito antes do início do movimento de libertação das mulheres),
pergunta às mulheres que odeiam o trabalho doméstico se elas estariam
dispostas a passar uma camisa ou a cozinhar uma refeição para Jesus.
Tornar qualquer tipo de serviço, não importa o quanto seja doméstico, em
uma oferta a Jesus lança uma luz totalmente nova sobre aquela atividade.
A submissão de uma esposa a seu marido é a forma apropriada de honra
que ela lhe paga. Ela a oferece da mesma forma que a ofereceria a Cristo.
Ao respeitar seu marido, ela respeita a Cristo — isto é, respeita quem ele é
em Cristo. Argumenta-se frequentemente que ela não lhe deve nada se ele
não estiver cumprindo a ordem especial dada aos maridos: amem suas
esposas. Essa atitude, porém, produz um impasse permanente. Enquanto ela
se recusar a se submeter porque ele não merece o respeito dela, o marido,
pela mesma lógica, pode recusar-lhe seu amor, já que ela não se submete e,
portanto, não merece o respeito. A cada um foi dado um mandamento
particular e uma força particular para cumprir seu papel mais do que
somente pela metade. No caso da esposa, sua força é o que Pedro chama de
“incorruptível trajo de um espírito manso e tranquilo”. 129 Não há cálculo
para o poder de tal submissão. É até mesmo possível que um marido
descrente seja conquistado sem uma palavra dita quando vê o
“comportamento honesto e cheio de temor” de sua esposa.
É possível pagar honras, como pedágio ou impostos, a um homem cruel
e descrente? É possível fazê-lo mesmo se tudo na esposa recua em relação à
injustiça ou ao ódio de seu marido? E se ela teme o sofrimento ou outras
consequências assustadoras? A graça de Deus tem provido através dos
séculos para ser suficiente em incontáveis circunstâncias humanas
consideradas “impossíveis”. Ela pode, através dessa graça, prestar-lhe honra
e respeito como ao Senhor, certa de que, embora seja imerecido e
aparentemente se perderá no marido, a honra e o respeito não se perdem em
Jesus. E Cristo pode atrair o marido à fé por causa do comportamento
reverente dela. A fé, e não o medo, deve governá-la. Dê uma chance a
Deus! Eu daria.
Para aqueles que estão em autoridade, a honra toma uma forma diferente
daquela prestada aos que estão sob autoridade. É necessária uma humildade
ainda maior, como a de Cristo, que apesar de rico além de tudo o que se
pode contar, para o bem dos pobres pecadores, tornou-se pobre. Ele
aniquilou a si mesmo e desceu à morte por nós.
“Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja”. 130
Que missão! Que honra — para ele, de amá-la tanto, para ela, de ser tão
amada. O marido deve honrar o corpo da esposa especificamente porque ele
é mais fraco e porque eles são herdeiros juntos; ambos compartilham a
graça da vida. Assim, honra significa não apenas respeito pela
superioridade, mas reverência debaixo de Deus pelo inferior , o que
significa “o que está colocado abaixo”. Aqui não há lugar para a tirania, não
há nada de intimidação, domínio, imposição. É uma humildade graciosa que
honra o mais fraco.
Voltando ao casamento do príncipe, ninguém fica surpreso ao ver o
entusiasmo das multidões que aplaudem. É claro que eles vão aplaudir. É
claro que milhares de pessoas passarão de bom grado a noite na calçada, a
fim de vislumbrar o carro e seus resplandecentes ocupantes. Mas quando o
próprio príncipe retribui a honra com um sorriso gracioso, aqueles que estão
por perto, que se sentem seguros de que é para eles, ficam “surpresos de
alegria”, e seus corações estão cheios de orgulho humilde. O maior honrou
o menor. Não é apenas uma obrigação real (nobre obrigação); ela é
ordenada por Deus.
Os mestres são ordenados a tratar os escravos com respeito: “E vós,
senhores, de igual modo procedei para com eles, deixando as ameaças,
sabendo que o Senhor, tanto deles como vosso, está nos céus e que para
com ele não há acepção de pessoas”. 131
Honra especial é devida aos “fracos” que, assim como os escravos, não
estão em posições de poder. Viúvas que não tiveram filhos ou netos,
receberam status especial ou honra. 132
Os filhos também devem receber a devida honra: “E vós, pais, não
provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação
do Senhor” 133 . Isso é justo. Os direitos dos filhos incluem serem cuidados
física, espiritual e mentalmente, mas certamente não incluem o direito de
serem ouvidos em assuntos sobre os quais nada sabem ou de serem tratados
como iguais aos pais e professores. Conceder-lhes esse direito é enganá-los.
É uma desonra, pois os priva de liberdade — a liberdade de serem filhos —
e de justiça — o tratamento justo dos filhos. Honrá-los, portanto, é
conceder-lhes quaisquer privilégios e responsabilidades que sejam justos e
que possam ser exercidos adequadamente.
Nosso grande modelo disso, como em todos os outros aspectos da vida
disciplinada, é Jesus. A honra foi seu próprio modo de existência. Pouco
antes de ser crucificado, ele orou a seu Pai, referindo-se à conclusão de tudo
o que o Pai lhe havia dado para fazer como sendo a forma pela qual ele,
Cristo, o havia honrado. Ele pediu ao Pai para honrá-lo também na presença
do próprio Pai, e ele fala sobre crentes que o honraram. Embora Jesus
realmente tenha usado a palavra honra ao se referir às três maneiras pelas
quais ela se deu — ele honrando seu Pai, o Pai o honrando e os crentes
honrando Jesus –,
há também uma quarta maneira: Jesus honrando os crentes. Ela está
implícita durante toda a oração, em frases como:
Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo.

[...] porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste.

É por eles que eu rogo [...]; por aqueles que me deste.

Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. 134

Há alguma honra a ser comparada, do nosso ponto de vista, ao fato de o


Senhor dos senhores e Rei dos reis ter parado para elevar-nos, os homens, à
Trindade?
A medida da humilhação de Cristo é a medida da honra que nos foi
conferida.
Notas da Bíblia de Jerusalém sobre Filipenses 2 dão a seguinte
explanação:
Cristo, sendo Deus, tinha todas as prerrogativas divinas por direito. Ele não considerava
estar em igualdade com Deus como algo a se agarrar ou se segurar. Isso se refere não à sua
igualdade por natureza “subsistindo em forma de Deus”, a qual Cristo não poderia ter se
rendido, mas a esse ser tratado e honrado publicamente como igual a Deus, o que era uma
coisa da qual Jesus (ao contrário de Adão, Gn 3:5, 22, que queria ser visto como Deus)
poderia abrir mão e de fato o fez em sua vida humana.
“Ele se esvaziou”: isso não é tanto uma referência ao fato da encarnação, mas ao modo
como ela ocorreu. Aquilo do qual Jesus abriu mão livremente não foi de sua natureza
divina, mas da glória a que sua natureza divina lhe deu direito, e que tinha sido dele antes
da encarnação (João 17.5) e que normalmente teria sido observável em seu corpo humano.
[...] Ele se privou voluntariamente disso para que pudesse ser-lhe devolvido pelo Pai (cf.
João 8.50, 54) depois de seu sacrifício. 135

Não é de admirar que Paulo, então, escreva:


Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os
outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão
também cada qual o que é dos outros.
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele,
subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus [margem: ele
não valorizou sua igualdade com Deus]; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma
de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si
mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. 136

Sua renúncia à glória a que sua natureza divina lhe dava direito me
parece talvez a parte mais incrível de sua humilhação. Sua obediência o
capacitou a fazer qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que
agradasse ao Pai, sem pensar em “como seria”. Aquele que tinha conhecido
a adoração incessante dos anjos veio a ser um escravo dos homens. Pregar,
ensinar, curar os doentes e ressuscitar os mortos eram partes de seu
ministério, é claro, e as partes que poderíamos nos considerar dispostos a
fazer por Deus se fosse isso que ele pedisse. Ele podia ser visto como Deus
neles. Mas Jesus também caminhava quilômetros no calor poeirento. Ele
curou e as pessoas se esqueceram de agradecer-lhe. Foi pressionado e
acossado por multidões de pessoas exigentes, ficou cansado, sedento e
faminto, foi “seguido”, assistido e assediado por líderes religiosos
suspeitos, invejosos e farisaicos, e no final foi açoitado, cuspido e
despojado, e teve pregos martelados em suas mãos. Ele renunciou ao direito
(ou à honra) de ser tratado publicamente como igual a Deus.
Se eu e você fôssemos solicitados a escrever a descrição do trabalho de
um salvador, o que constaria da lista? Um olhar cuidadoso sobre o que a
vontade do Pai incluiu para o Salvador do mundo nos dará uma pista sobre
o que um seguidor dele poderia fazer. Dificilmente esperaríamos que ele
tivesse de ir a um casamento de aldeia, que fosse um convidado para o
jantar em muitos tipos diferentes de lares, que tomasse em seus braços
filhinhos que não passavam de um incômodo para os discípulos ou que
curasse uma mulher que não fosse uma das “ovelhas perdidas” de Israel.
Penso na descrição do trabalho, por exemplo, de um missionário. Meu
irmão Dave (Howard) e eu estávamos discutindo a qualificação número um.
Dave esteve ligado a missões e a missionários de uma forma ou de outra
durante toda sua vida, e ele não teve problemas em ver a flexibilidade no
topo da lista. Humildade era o que eu havia pensado, mas enquanto
falávamos sobre isso vi que essas duas características realmente se
resumem à mesma coisa.
Um missionário deve ser humilde o suficiente para ser flexível. Hoje em
dia, os jovens candidatos são muitas vezes tão altamente treinados que se
sentem superqualificados para os trabalhos que precisam ser feitos. A
maioria dos postos de missão precisa desesperadamente de pessoas que
estejam dispostas a fazer qualquer coisa que precise ser feita. É bom
oferecer-se para o serviço, mas a forma de serviço não deve ser definida de
forma muito restrita. É para ministrar, e não para sermos ministrados, que
somos enviados.
Fui ao Equador para fazer um trabalho de tradução da Bíblia; um
trabalho que, certamente, precisa ser feito. Porém, para fazer isso, tive que
começar aprendendo línguas não escritas — o que significava passar muito
tempo com pessoas que falavam a língua e que não estavam nem um pouco
interessadas na tradução da Bíblia. Para passar tempo com eles, tive que
fazer o que eles faziam, sentar-me onde eles se sentavam, comer o que
comiam, esforçar-me para pensar o que eles pensavam (até certo ponto!).
Eu também tive que viver. Viver levava muito tempo, sob o que eram para
mim, às vezes, condições difíceis. Eu precisava de uma lâmpada de
gasolina, por isso gastei preciosos minutos alargando os geradores,
substituindo as mantas ou enchendo essas lâmpadas. Trabalho
“missionário”? Sim, necessariamente.
Eu não fui treinada para fazer trabalho médico, mas quando você
descobre que é a única pessoa em um raio de quilômetros que está disposta
a ter sangue em suas mãos e às vezes em suas roupas, que sabe como dar
uma injeção ou administrar remédios contra vermes, você acaba fazendo
exatamente isso. Se vai ter alguma aparência de eficiência civilizada em sua
vida, você introduz coisas como lençóis de cama, pistas de pouso, janelas
com tela e talvez um refrigerador de querosene. Logo você vê que não está
sentada à uma mesa, preenchendo cartões de línguas diferentes ou tentando
descobrir como escrever “No princípio era o Verbo” em Quichua, mas você
está no chão, de barriga para baixo, olhando para o pavio fumegante da
geladeira, tentando descobrir o que fazer antes que tudo apodreça no calor
tropical. Ou você está lavando lençóis à mão ou ensinando outra pessoa
como fazê-lo. Você é o capataz na pista de pouso, esperando manter 25
homens e mulheres balançando machetes alegremente durante quatro horas
debaixo do sol quente (o sol incomoda você , não eles) e esperando que o
resultado seja uma pista de pouso que atenda às especificações do piloto
missionário.
A questão que surge bastante cedo na carreira de um missionário (a
mesma questão que surge em qualquer discípulo) é: “Afinal, qual é a minha
‘posição’?”
Qual era a posição de Jesus? Um servo. Um escravo. A minha conduta
em relação aos outros surge da minha vida nele.
À princípio, a posição do missionário pode ser a de honrar aqueles que
habitam o lugar aonde ele vai, assim como o mais forte honra o mais fraco,
ou o benfeitor honra o beneficiário. Mas isso logo mudará. Eu estava
profundamente consciente de minha posição como estrangeira, aberração e
desvantagem para com os índios. Incapaz de saber como lidar com a selva
em si, totalmente ignorante e aparentemente atrasada no que diz respeito à
língua, além de não ter nada de muito útil para eles, eu certamente não
estava em posição de poder. Quando começamos a lhes dar as Escrituras em
sua própria língua e eles passaram a crer nelas e obedecer a elas, os índios
começaram a reconhecer nossas razões para estarmos lá e a nos procurar
para nos orientar. Essa foi uma mudança para uma posição de autoridade,
logo seguida por outra, onde entregamos as rédeas e aprendemos a honrar
aquelas pessoas não mais como mais fracas, mas como espiritualmente
responsáveis perante Deus. Graciosamente renunciar a uma posição e
ocupar outra, continuar trabalhando com a igreja em crescimento, mas sob
sua autoridade, requer uma avaliação verdadeira e afiada da sua própria
posição, bem como um olhar único para a glória de Deus.
O que me ajudou a chegar nesse entendimento foi perceber que eu era
um vaso de barro. Vi um bom número de panelas de barro em casas
indígenas. Elas eram muito comuns, feitas de coisas que se encontravam em
quase todos os riachos e facilmente substituíveis. O que havia nelas era
muito mais interessante do que as panelas em si, e era isso que eu era: coisa
comum, substituível, mas que contém um “grande tesouro” 137 , que é a vida
de Jesus. Somente quando vivesse essa vida eu seria capaz de preferir os
outros em honra.
Certamente uma das alegrias do céu será a aceitação de todo o coração e
a ação de graças pela posição que foi dada a outros, pois nossa preocupação
não será mais posição, honra ou direitos para nós mesmos, mas bênção,
honra, glória e poder para o Cordeiro que está sentado no trono.
Ver 1 Pedro 2.17; a expressão devida honra aparece na versão New English Bible (NEB).
Romanos 13.7-8.
Atos 10.34.
Tiago 2.3.
Ver Mateus 22.11-14, NAA.
1 Pedro 2.17.
Romanos 12.10, tradução livre da versão NEB. (N. T.: A maioria das versões em português trazem a
tradução “preferir em honra uns aos outros”. Nesse caso, a versão utilizada pela autora traz a ideia
de conceder o orgulho de posição a outra pessoa.)
Isak Dinesen, Out of Africa (New York: Random House, 1972), 261.
Lucas 6.27-28, 30, NAA.
Levítico 19.15-16.
Ver 1 Timóteo 5.17.
Filipenses 2.30.
1 Tessalonicenses 5.12-13.
1 Timóteo 6.1-2, NAA.
Efésios 6.5-8, NAA.
1 Pedro 3.4.
Efésios 5.25.
Efésios 6.9.
Ver 1 Timóteo 5.3-4.
Efésios 6.4.
João 17.6, 8-9, 18.
N. T.: Tradução livre.
Filipenses 2.3-8.
2 Coríntios 4.7, NVT.
10 | A disciplina do tempo
Tu que a todos ama, estou firmada em ti,
Governante do tempo, Rei da Eternidade
em ti não há grande ou pequeno,
pois tu és tudo, e a tudo enche.

O mundo recente ao teu comando avança,


as gotas de orvalho caem em tuas mãos
Deus dos misteriosos poderes do firmamento
vejo-o os minutos de minhas horas entrelaçar. 138

A
my Carmichael uniu lindamente em seu poema os dois conceitos
antigos do tempo. Um, expresso pela palavra grega chronos ,
refere-se aos “minutos de nossas horas” ou à noção de duração e
sucessão. O outro, kairós , é o que o dr. James Houston chama de “tempo
avaliado”, que significa instrumentação e propósito. “O homem precisa ver-
se significativo, à luz dos acontecimentos, de kairós , vendo-se a si mesmo
esperançosamente no contexto de uma realidade maior do que sua própria
temporalidade, de chronos. ” 139
“Estou firmada em ti, Governante do tempo, Rei da Eternidade” é a
expressão de fé de que a minha temporalidade é compreendida apenas no
contexto infinito da eternidade. Nem mesmo a pequena gota de orvalho fica
sem o cuidado e a atenção daquele que a todos ama. Devo, então, pensar
que algum detalhe de minha vida terrena, mesmo tão pequena como um
minuto de uma das minhas horas, não tenha sentido? Como devo dar conta
do meu tempo ao meu mestre?
Fui educada para acreditar que é pecado chegar atrasada. Fazer os outros
esperarem por você, meus pais nos ensinaram, é roubar deles um de seus
bens mais preciosos. O tempo é uma criatura — uma coisa criada — e um
presente. Não podemos fazer mais tempo. Só podemos recebê-lo e ser fiéis
mordomos no uso dele.
“Eu não tenho tempo” é provavelmente uma mentira mais comum do
que imaginamos, que acoberta o “Eu não quero”. Nós temos tempo — 24
horas em um dia, sete dias em uma semana. Todos nós temos a mesma
parcela. “Se o presidente pode governar o país em 24 horas por dia, você
deve ser capaz de limpar seu quarto”, foi o que uma mãe disse a seu filho
adolescente. As exigências de nosso tempo diferem, é claro, e é aqui que o
discípulo deve consultar seu mestre. O que o Senhor quer que eu faça?
Haverá tempo, tenha certeza absoluta, para tudo o que Deus quer que
façamos.
Quando estamos no meio de um grande negócio, dificilmente pensamos
no kairós e vemos o chronos apenas como horas que voam mais rápido do
que podemos contar. É quando as coisas estão calmas que nos damos conta
de minutos que passam lentamente. Então temos a oportunidade, talvez, de
pensar no significado mais profundo dessas duas palavras à luz da
eternidade.
Este capítulo está sendo escrito em tranquilidade. Isso é especialmente
maravilhoso, pois acontece depois de três semanas bastante rigorosas de
viagem pela Inglaterra — duas mil milhas de viagem, muitas reuniões,
muitas camas diferentes, incontáveis xícaras de chá. Eu não tinha certeza de
onde estava quando acordei pela manhã. “Vamos ver: é terça-feira? Aqui
deve ser Sheffield”.
Sonhei ontem à noite que estava novamente em uma reunião, ouvindo os
dois ou três oradores que me precederiam, revisando nervosamente em
minha cabeça o que eu ia dizer. Ocorreu-me, então, em meu sonho, que eu
não precisava dar nenhuma palestra. Eu poderia acordar se escolhesse, o
que fiz, para meu imenso alívio, não encontrando nada além de um longo e
tranquilo dia diante de mim, em que eu não daria palestra alguma.
Na verdade, eu nem sequer falaria. Estou sozinha no hytte . Nenhum
telefone tocará, nenhum correio chegará. Há longos períodos de tempo não
marcados — não há despertador, não há notícias da manhã para ouvir, não
há hora especificada para as refeições, já que, nos dias em que Lars está
aqui, ele pesca. Nunca tenho certeza se o cardápio incluirá peixe ou a que
horas podemos sentar-nos à mesa. Lars sai, às vezes durante a noite, para
visitar parentes e ver os lugares onde ele cresceu, enquanto eu fico sozinha.
Quase não é necessário limpar ou cozinhar. Tenho poucas opções de roupas
para usar. É uma felicidade “ter tempo”.
A sensação do tempo é estranhamente alterada aqui por causa da duração
da luz do dia. Estamos em junho, e o sol parece relutante em se pôr. Ele
pende alto no céu ocidental sobre as águas, e quando a noite deveria estar
sobre nós, o sol escorregou apenas um pouco abaixo do horizonte, onde ele
rola paralelamente à linha de colinas baixas. Acordo à meia-noite e vou
ficar ao lado da janela, olhando para o fiorde. O céu é iluminado por um
brilho sinistro, como a luminosidade de uma tarde escurecida pela
tempestade. Nem uma vez tive que acender uma lâmpada, portanto não há
“pontuação” para a noite e para a manhã.
Nascer do sol, meio-dia, pôr-do-sol, meia-noite. Domingo, segunda-
feira, terça-feira e quarta-feira. Janeiro, maio e setembro. Inverno,
primavera, verão, outono. Páscoa, Ação de Graças, Natal. Esses são os
sinais de pontuação do tempo, e que maravilhosa misericórdia Deus ter
separado a luz das trevas — “e houve tarde e manhã, o primeiro dia”. Seis
dias, depois um dia de descanso. Luas que crescem e minguam. Estações
que vêm e vão.
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito
debaixo do céu”, escreveu Kohelet, o pregador do livro de Eclesiastes. Para
nascer, morrer, plantar e arrancar o que se plantou, matar e curar, derribar e
edificar, chorar e rir, prantear e dançar, espalhar pedras e ajuntá-las, abraçar
e afastar-se, buscar e perder, guardar e deitar fora, rasgar e coser. Há
momentos para o silêncio e para a fala, para o amor e o ódio, para a guerra e
a paz. 140
“Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os
afligir. Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a
eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que
Deus fez desde o princípio até ao fim”. 141
Aqui está uma receita para o tédio e o cinismo. Se a vida nada mais é do
que uma sequência de minutos sem sentido, enfiada em horas, sem
compreensão da obra de Deus do começo ao fim, a canção de um caipira
diz tudo:
Abra as portas e as moscas entram,
feche as portas e estou suando de novo.
A vida fica tediosa, não fica?

Para o cristão, o tempo é transfigurado à medida que o vemos seguro no


amor de Deus, criado por e para Jesus Cristo, a quem pertence a primazia
sobre todas as coisas criadas e o qual existiu antes de tudo e que a tudo
sustenta. Vemos o passado como a ação contínua de Deus na história do
homem, dando-lhe liberdade para agir, e o futuro como pertencendo
também ao Senhor e mantendo para nós a esperança de redenção. É-nos
dado o presente dentro do qual escolhemos a quem vamos servir, sabendo
que esse momento afeta o próximo e que somos responsáveis por ele.
O nonagésimo salmo expressa o sentido humano do tempo e sua incrível
rapidez e seriedade, mas olha com esperança a atemporalidade de Deus e a
promessa de alegria futura.

Antes que os montes nascessem [...] tu és Deus.


Para ti, mil anos são como um dia que passa [...]
são como sonhos que desaparecem [...]
e terminamos nossos dias com um gemido [...].
Recebemos setenta anos, alguns chegam aos oitenta.
Mas até os melhores anos são cheios de dor e desgosto;
logo desaparecem, e nós voamos [...].
Ajuda-nos a entender como a vida é breve,
para que vivamos com sabedoria [...].
Satisfaze-nos a cada manhã com o teu amor,
para que cantemos de alegria até o final da vida.
Dá-nos alegria proporcional aos dias de aflição;
compensa-nos pelos anos em que sofremos. 142

É maravilhosamente estabilizador e calmante recordar algumas das


maneiras pelas quais o tempo de Deus é visto nas grandes histórias bíblicas.
Acontecimentos que o mundo descartaria como mera coincidência acabam
sendo sincronizados com a máxima precisão pelo Governante do tempo.
Quando o servo de Abraão foi procurar uma esposa para Isaque, ele fez os
camelos ajoelharem-se junto ao poço fora da cidade e estava orando por
orientação para encontrar a moça certa. Antes de ele terminar de orar, lá
estava ela.
Quando Rute foi colher nos campos depois dos ceifeiros, “aconteceu”
que ela estava na faixa que pertencia a Boás, e ela apareceu lá exatamente
quando ele veio de Belém. Ele se tornou seu “parente-resgatador”.
O rapaz Davi, enviado com provisões para seus irmãos que eram
soldados, chegou ao acampamento enquanto a hoste dos filisteus gritava o
grito de guerra. Davi correu para as fileiras e chegou bem a tempo de ouvir
o gigante de Gate, Golias, trovejar seu desafio: “Hoje, afronto as tropas de
Israel. Dai-me um homem, para que ambos pelejemos”. 143 E Davi, embora
apenas um jovem, “ruivo e bonito”, o desafiou em nome do Senhor dos
Exércitos e cravou uma pedra de sua funda na testa de Golias.
Um versículo no segundo livro de Reis fala de um estranho e
surpreendente golpe de “sorte”: “Ora, bandos dos moabitas costumavam
invadir a terra, à entrada do ano. Sucedeu que, enquanto alguns enterravam
um homem, eis que viram um bando; então, lançaram o homem na
sepultura de Eliseu; e, logo que o cadáver tocou os ossos de Eliseu, reviveu
o homem e se levantou sobre os pés”. 144
Quando Jesus disse a Pedro e a João para irem preparar a Páscoa, eles
deveriam encontrar a casa onde ele desejava celebrá-la, seguindo um
homem que carregava um jarro de água, que eles encontrariam ao entrarem
na cidade. Eles encontraram o local exatamente como Jesus dissera.
O encontro de Filipe com o etíope ministro do tesouro foi marcado pelo
anjo do Senhor, que chegou a Filipe a tempo de enviá-lo à estrada
Jerusalém-Gaza para se reunir com uma certa carruagem na qual um
homem estava lendo uma certa passagem de um certo livro que Filipe, por
acaso, conseguiu explicar a ele. O homem se tornou um crente.
“Nas tuas mãos, estão os meus dias” 145 tornou-se parte de minha vida.
Quando o Senhor me deixou na agonia de esperar por alguma decisão, essas
palavras me colocaram em repouso. O tempo é sempre perfeito, embora
raramente me pareça assim, pois meu temperamento anseia por previsões de
atrações vindouras.
“Espera pelo SENHOR , tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração;
espera, pois, pelo SENHOR” 146 é a palavra de que preciso muitas vezes.
Após uma reunião noturna na qual eu havia falado sobre o aspecto do
tempo da orientação de Deus, uma mulher me disse: “Sei exatamente o que
você quer dizer. Tem sido minha experiência também. Quando me ofereci
para o serviço missionário, eu esperava que Deus me mostrasse
imediatamente onde ele me queria, mas ele não me mostrou. Eu esperei e
orei, orei e esperei, desesperada para saber. Por que ele não me disse? Por
que devo esperar? Eu havia sido treinada como dietista, mas não podia
imaginar que isso seria de grande utilidade no campo missionário. Foi
dezoito meses depois de ter me voluntariado, dezoito meses de oração
importunadora, quando uma missionária veio à escola bíblica para falar. No
final de sua palestra, ela disse: ‘E nós pedimos suas orações para que o
Senhor nos envie um dietista para a Índia’. Imediatamente o Senhor disse:
‘É você, Gwen. Vá!’, e em seis meses eu estava na Índia”.
“Nas tuas mãos, estão os meus dias”. Muitas vezes eles parecem estar
nas mãos das pessoas. Quando desejo solidão e nenhuma interrupção, o
telefone toca, as pessoas vêm, chega uma correspondência que exige ação
imediata. Será que imagino que as interrupções vêm como uma surpresa
para o Senhor? Não são elas, tanto quanto as coisas planejadas, uma parte
do padrão de coisas que cooperam para o bem?
Voando em um pequeno avião sobre o vasto país agrícola de Manitoba
em uma noite de primavera, fiquei fascinada com a beleza dos padrões
criados pelo contorno das lavouras. Havia listras em vários tons de terra e
verde, círculos e faixas e curvas por quilômetros e quilômetros em todos os
lados. Mas os desenhos mais bonitos surgiam das interrupções — uma
árvore aqui, um lago ali, uma colina, uma rocha, um rio. O lavrador tinha
que dobrar a linha cada vez que passava por uma interrupção.
“Senhor, onde há interrupções, parece que o arranjo do tempo que eu
havia planejado tão bem escapou de minhas mãos. Ajuda-me, então, a me
lembrar de que ele não escapou das suas. Em suas mãos, essas coisas
inesperadas serão transformadas em um desenho inesperadamente belo”.
A suma de nosso trabalho aqui na terra é glorificar a Deus. Essa era
também a suma da tarefa de Jesus. Como ele o fez? Pouco antes de ser
crucificado, ele disse ao seu Pai: “Eu te glorifiquei na terra, consumando a
obra que me confiaste para fazer”. 147
Havia infinitas exigências sobre o tempo de Jesus. As pessoas o
pressionavam com suas necessidades para que ele e seus discípulos não
tivessem descanso sequer para comer, e ele iria para as colinas para orar e
ficar sozinho. Às vezes os discípulos vinham a ele com reprovação porque
ele não estava disponível quando necessário. Deve ter havido, sempre e
onde ele foi, aqueles que queriam ser curados que não podiam chegar até
ele por causa das multidões, ou que souberam tarde demais que Jesus de
Nazaré estava passando, ou que não tinham ninguém para levá-los até Jesus
ou para enviá-los a pedir-lhe que viesse até eles. Quantos “se apenas” ele
deve ter deixado para trás, e tantos outros que ele “poderia ter” feito. Deve
ter havido coisas, também, que o próprio Jesus gostaria de ter feito durante
aqueles três anos lotados de seu ministério público, mas ele era um homem,
com as limitações de tempo e espaço de um homem. No entanto, ele tirou
tempo para descansar, retirando-se para as colinas para orar sozinho e às
vezes levando seus discípulos a lugares solitários, onde estivessem livres
das multidões. Ainda assim, ele foi capaz de fazer aquela afirmação
surpreendente: “Consumei a obra que me confiaste para fazer”. Isso não foi
o mesmo que dizer que ele havia terminado tudo o que podia pensar em
fazer ou que ele tivesse feito tudo o que outros lhe haviam pedido. Ele não
fez nenhuma reivindicação de ter feito o que queria fazer. A afirmação era
que ele fizera o que lhe havia sido dado .
Essa é uma pista importante para nós. A obra de Deus é designada. O
que foi dado ao Filho para fazer foi a vontade do Pai. O que nos é dado
fazer também é a vontade do Pai.
Sempre há tempo suficiente para fazer a vontade de Deus . Para isso
nunca podemos dizer: “Eu não tenho tempo”. Quando nos sentimos
agitados e frustrados, atormentados e transtornados, é um sinal de que
estamos correndo em nosso próprio horário, não no de Deus.
Escrevi a uma amiga contando-lhe as coisas da minha lista para as quais
eu precisava de suas orações. Era uma longa lista, mais do que eu sentia que
poderia realizar.
“‘Que a lista do Senhor seja feita’, é o que estou orando por você nesses
dias”, escreveu ela de volta. É uma boa oração a ser orada por um discípulo.
Sou totalmente a favor de fazer listas daquilo que precisa ser feito (e fico
entusiasmada ao ticar as atividades quando completadas!). Mas as listas
devem ser revistas diariamente com o Senhor, pedindo-lhe que apague o
que não está na lista que ele tem para nós, para que antes de irmos deitar-
nos seja possível dizer: “Consumei a obra que me confiaste para fazer”.
“Meu fardo é leve”, disse Jesus. O que nos pesa é o acréscimo de fardos
que Deus nunca quis que carregássemos. Aprenda a dizer não. Muitos
cristãos ocupados acham que devem agendar um tempo “livre” para ficarem
quietos, para lerem livros, para estarem com a família. Se eles não fizerem
isso, o tempo é facilmente preenchido com as exigências que os outros
fazem. Não há nada de desonesto em dizer a alguém: “Sinto muito. Essa
noite não está disponível”. Se aquela noite foi reservada para a
tranquilidade ou para a família, ela não está aberta a outras atividades.
“Meus dias”, que estão nas mãos de Deus, agora incluem para mim uma
quantidade relativamente grande de viagens. Lars e eu oramos sobre o
horário, pedindo ao Senhor que nos dê sabedoria para organizarmos a
viagem e o tempo em casa. Não é fácil saber o que dizer a um convite para
um compromisso daqui a dezoito meses ou mais. Somos lançados ao
Senhor, que vê o fim desde o início, e só podemos confiar nele para nos
guiar em nossas respostas. Cada ano me esforço um pouco mais para ser
sensata, para deixar espaço entre as viagens para as outras coisas que eu
deveria fazer, e a cada ano parece mais difícil resolver os compromissos.
Quando voltamos para casa após uma viagem, muitas vezes é tarde da
noite. Desfazemos as malas e vamos para a cama, resistindo à tentação de
fazer telefonemas ou abrir o correio. Pela manhã, a rotina começa: abrir a
correspondência, arrancar todos os selos para a caixa missionária iraniana
da igreja, ler a correspondência, organizá-la em pilhas — resposta imediata
(cartas comerciais, convites, contas etc.), resposta atrasada (cartas de
amigos). Organizar a escrivaninha, lavar a roupa, limpar a casa, comprar
mantimentos, responder às correspondências, assar pão, lavar o cabelo,
visitar a mãe, fazer telefonemas. Tentar escrever, pensar, ler e orar — antes
de fazer outra mala.
Frustração não é a vontade de Deus. Disso nós podemos ter bastante
certeza. Há tempo para fazer toda e qualquer coisa que Deus quer que
façamos. A obediência se encaixa perfeitamente na estrutura dada por ele.
Uma coisa que certamente não vai caber nela é a preocupação. Eis seis
razões para isso:
1. A preocupação é totalmente infrutífera . Você já conseguiu acrescentar
um centímetro onde você queria, ou subtrair um onde você não queria,
apenas por estar ansioso? Se você não consegue fazer isso se
preocupando, o que você consegue fazer?
2. A preocupação é pior do que ser infrutífera . Observe esses
mandamentos:
• Não temais.
• Nem te espantes.
• Não se turbe o vosso coração.
• Não se atemorize.
• Tende bom ânimo.
3. A preocupação é pegar o que não foi dado — por exemplo, o amanhã.
O dia de amanhã não é nosso motivo de preocupação. Temos permissão
para planejá-lo, mas não temos permissão para nos preocuparmos com
ele. Os problemas de hoje já são um fardo suficiente. Jesus sabia
exatamente do que estava falando quando disse isso.
4. Preocupação é recusar o que é dado . O cuidado de hoje, não o de
amanhã, é a responsabilidade que nos é dada, repartida sob a sabedoria
de Deus. Muitas vezes, negligenciamos o que nos foi atribuído no
momento porque estamos preocupados com algo que não é da nossa
conta agora. Como é fácil dar apenas a metade de nossa dedicação a
alguém que precisa de nós — uma amiga, o marido ou um filho
pequeno — porque a outra metade está concentrada em uma
preocupação futura!
5. A preocupação é a antítese da confiança . Você simplesmente não
pode fazer as duas coisas. Elas são mutuamente excludentes.
6. A preocupação é um perverso desperdício de tempo (bem como de
energia).
Direcione seu tempo e sua energia para a preocupação e você será
deficiente em coisas como cantar com graça em seu coração, orar com ação
de graças, ouvir o relato de uma criança sobre seu dia de escola, convidar
uma pessoa solitária para jantar, sentar-se para conversar sem pressa com a
esposa ou o marido, escrever um bilhete para alguém que precise.
As pessoas desejam ter mais tempo livre. O problema não é ter
pouquíssimo tempo, mas ter muito tempo mal gasto . Os jornais de
domingo, quase todas as revistas e quase todos os programas de televisão
são uma perda de tempo irracional.
Jesus nos chama: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei
de mim, porque sou manso e humilde de coração”. 148
Como devemos chegar a ele? Em fé em primeiro lugar, para nossa
salvação. Nenhum outro passo pode preceder esse. Mas aquele que
depositou sua confiança no Senhor deve continuar a vir diariamente para
aprender dele como ser gentil e humilde de coração. A administração do
tempo, uma ciência altamente desenvolvida hoje, começa, para o cristão,
com o tempo reservado para Deus. Outras coisas não podem cair em uma
ordem pacífica se isso for omitido.
A vida de Daniel ilustra a disciplina do tempo. Ele tinha um horário
regular para a oração. O rei Dario emitiu uma ordem para que qualquer um
que nos trinta dias seguintes oferecesse uma petição a qualquer deus ou
homem que não fosse ele mesmo, fosse jogado em uma cova de leões.
Podemos imaginar a perplexidade de Daniel. Será que ele deveria alterar
seu tempo de oração? Reduzir a frequência? Eliminar completamente a
oração? Escolher um lugar menos visível? Uma postura casual?
Seus inimigos estavam procurando uma maneira de pegá-lo e, claro, não
tiveram problemas para encontrá-lo.
“Daniel, pois, quando soube que a escritura estava assinada, entrou em
sua casa e, em cima, no seu quarto, onde havia janelas abertas do lado de
Jerusalém, três vezes por dia, se punha de joelhos, e orava, e dava graças,
diante do seu Deus, como costumava fazer”. 149
Ele era um alvo fácil, mas salvar sua pele não era tão importante para ele
quanto servir a seu Deus. A oração era indispensável para isso, então ele
estava disposto a deixar-se apanhar.
Apenas algumas palavras sobre o momento mais importante do dia:
aquele gasto sozinho com o Senhor.
1. Que seja um horário regular . Pelo menos cinco dias por semana
tenha um tempo especial para a solitude e o silêncio. Se você nunca o
fez antes, comece com dez minutos. Você ficará surpreso com a rapidez
com que esse tempo passa e logo precisará planejar mais.
2. Tenha um lugar especial . Qualquer lugar onde você possa estar
sozinho, mesmo que tenha que ser no armário, no banheiro ou dentro
do carro na garagem.
3. Deixe sua oração incluir adoração, ação de graças, confissão de
pecado, petição (inclusive uma pedindo a Deus que fale com você
durante seu tempo de solitude) e intercessão (orações pelos outros).
Listas de nomes de pessoas pelas quais orar são uma grande ajuda para
a maioria de nós. Quando as pessoas me pedem especialmente para orar
por elas, preciso anotar os nomes para não esquecer.
4. Mantenha um diário espiritual , anotando as lições aprendidas, os
versículos aplicados a uma necessidade particular, as orações
respondidas. Isso é um grande encorajamento à fé.
5. Leia uma parte da Bíblia em alguma sequência ordenada . Três
capítulos por dia e cinco aos domingos o levarão ao longo de toda a
Bíblia em um ano. Algumas pessoas gostam de ler dois capítulos do
Antigo Testamento e um do Novo a cada dia. Durante sua vida, Billy
Graham lia diariamente tanto Salmos como Provérbios, junto com
qualquer outra porção da Bíblia em que ele estava.
A melhor hora para a maioria das pessoas é cedo pela manhã — não
porque a maioria de nós adora pular da cama, mas porque é a única hora do
dia em que podemos ter certeza de não sermos interrompidos, e porque é
melhor ter comunhão com Deus antes de ter comunhão com as pessoas. Sua
atitude em relação a elas surgirá então de sua vida nele. Oferecer a Deus a
primeira hora do dia é um sinal de consagração de todo o nosso tempo.
Amy Carmichael, “God of the Nebulae”. Tradução livre.
James Houston, I Believe in the Creator (London: Hodder & Stoughton, 1979), 238.
Ver Eclesiastes 3.1-8.
Eclesiastes 3.10-11.
Salmos 90.2, 4, 5, 9, 10, 12, 14, 15; NVT.
1 Samuel 17.10.
2 Reis 13.20-21.
Salmos 31.15.
Salmos 27.14.
João 17.4.
Mateus 11.28-29.
Daniel 6.10.
11 | A disciplina das posses

R
osalind Goforth, em sua história de vida que ela e seu marido
levaram como missionários na China, contou sobre terem sido
roubados por bandidos e terem perdido tudo o que tinham. Ela
chorou.
“Mas, minha querida”, seu marido, Jonathan, chamou-lhe a atenção:
“São apenas coisas ”.
“Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem
não pode ser meu discípulo”, 150 foi o que Jesus disse sobre as coisas.
Essa é uma condição severa. Poucos de nós a cumprimos literalmente.
Eu gosto de coisas materiais. No hytte , por mais primitivo que pareça
para muitas pessoas, tínhamos muito conforto. Havia uma pia de aço
inoxidável na minúscula cozinha, que só não tinha torneiras. Ela tinha um
ralo que corria para um recipiente plástico que Lars esvaziava a cada
poucos dias. Tínhamos um fogão a gás no qual cozinhávamos e aquecíamos
água em uma grande chaleira laranja; toda nossa água quente vinha dessa
fonte, para ser usada tanto para lavar louça quanto para tomar banho. A
água era coletada em um grande tanque do telhado e levada para dentro de
casa em um balde. A casa anexa era de primeira-classe — cortinas de renda
na janela, quadros nas paredes.
No entanto, estou de volta à minha casa agora e aprecio mais do que
nunca um banheiro com azulejos e uma pia de cozinha com torneiras. A
água quente é um luxo extravagante, e muitas vezes agradeço a Deus por
isso.
Geralmente é preciso perda ou privação em alguma medida para que a
maioria de nós conte as bênçãos que tão prontamente tomamos como
garantidas. A perda de coisas materiais não deve ser comparada à perda de
pessoas que amamos, mas a maioria de nós já experimentou ambas, e são as
coisas que estamos considerando agora.
Eu perdi 1 ano de trabalho linguístico no final do meu primeiro ano
como missionária.
Vários anos depois que meu primeiro marido, Jim, morreu, eu assisti a
uma formatura no Lincoln Center, em Nova York. Quando tirei minhas
luvas de pelica, mais tarde, vi que havia perdido o anel de noivado de
diamantes que ele me dera. Voltei imediatamente e procurei nas filas de
assentos com um policial e sua lanterna, mas a equipe de limpeza já tinha
feito a aspiração.
Na Costa Rica, minha carteira foi roubada quando a coloquei no balcão
por um segundo para procurar meu passaporte em minha bolsa. O ágil
agente de viagem do outro lado do balcão (não havia mais ninguém perto de
nós) não sabia nada sobre o ocorrido e muito solenemente me ajudou a
procurá-la.
Eu perdi um Novo Testamento com dezenove anos de anotações nele.
Minha casa foi assaltada duas vezes. Na primeira vez, eles levaram não
só os itens substituíveis, como a televisão, um rádio e um gravador de fita,
mas toda a prataria de herança. Quando ocorreu o segundo assalto, eu me
perguntei por que não havia colocado um aviso mais cedo: “Este lugar foi
limpo das coisas que você está procurando — dificilmente valerá a pena o
risco de invadir”. Minha amiga Harriet Payson teve uma ideia melhor. Ela
colocou um pequeno letreiro em seu armário que guardava a prata: “Deus
ama você”.
Poucos de nós conhecem tão bem os extremos que o apóstolo Paulo
conheceu: “Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e
em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de
fome; assim de abundância como de escassez”. 151 Seja qual for a medida na
qual tenhamos experimentado isso, o Senhor nos deu a oportunidade de
aprender as disciplinas vitais da posse.
A primeira lição é que as coisas são dadas por Deus .
“Não vos enganeis, meus amados irmãos. Toda boa dádiva e todo dom
perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes”. 152
Vejo com frequência, brilhando no azul profundo do céu pouco antes do
amanhecer, a estrela da manhã. Ao crepúsculo, o mar às vezes reflete as
cores do rosa pálido e as tonalidades do pôr-do-sol. À noite, acordo para
encontrar o quarto inundado pelo luar refletido do mar, no tampo de vidro
da minha mesa junto à janela e no espelho da penteadeira. Voando a 30 mil
pés, vi uma luz gloriosa brilhando sobre as torres e os castelos das nuvens
cúmulo-nimbo. Que presente são essas luzes do céu! O mesmo Pai que as
dá também nos dá todas as outras coisas boas e perfeitas.
É da natureza de Deus dar. Ele não pode evitar dar, assim como não pode
evitar amar. Podemos contar absolutamente que ele nos dará tudo o que é
bom para nós, isto é, tudo aquilo que pode nos ajudar a ser e fazer o que ele
quer. Como ele não poderia fazer isso?
“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o
entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?”
153

A segunda lição é que as coisas nos são dadas para serem recebidas com
ação de graças .
Deus nos dá. Nós recebemos. Os animais também fazem isso, mas de
forma mais direta e simples do que nós:

Cheia está a terra das tuas riquezas [...]


animais pequenos e grandes [...].
Todos esperam de ti
que lhes dês de comer a seu tempo.
Se lhes dás, eles o recolhem;
se abres a mão, eles se fartam de bens. 154

Porque Deus nos dá as coisas indiretamente, permitindo-nos fazê-las


com nossas próprias mãos (com as coisas que Ele fez, é claro), ou ganhar
dinheiro para comprá-las, ou recebê-las através da doação de alguém,
estamos propensos a esquecer que foi ele quem nos deu.
“Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas
recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras
recebido?” 155
A tomada de crédito se torna um absurdo quando nos lembramos de que
não apenas os cérebros, as habilidades e as oportunidades de realização são
presentes, mas também o próprio ar que respiramos e a capacidade de atraí-
lo para os nossos pulmões.
Devemos ser gratos. A ação de graça exige o reconhecimento da Fonte.
Isso implica contentamento com o que é dado, não reclamação sobre o que
não é dado. Ela exclui a cobiça. A bondade e o amor de Deus escolhem os
dons, e dizemos “obrigado”, reconhecendo o pensamento por detrás, assim
como a própria coisa. A cobiça envolve suspeita sobre a bondade e o amor
de Deus, e até mesmo sobre a justiça dele. “Ele não me deu o que ele deu a
outra pessoa”. “Ele não percebe a minha necessidade”. “Ele não me ama
tanto quanto ama o fulano”. “Ele não é justo”.
A fé olha para cima com as mãos abertas. “Você está me dando isso,
Senhor? Obrigado, Senhor. Isso é bom, aceitável e perfeito”.
A terceira lição é que as coisas podem ser materiais para sacrifício. Isso
é o que é chamado de vida eucarística. O Pai derrama suas bênçãos sobre
nós; nós, criaturas dele, recebemos as bênçãos de mãos abertas, damos
graças e as elevamos como uma oferta de volta a ele, completando, assim, o
ciclo.
Quando o templo de Salomão estava prestes a ser construído, o rei Davi
perguntou quem estava disposto a dar de mãos abertas ao Senhor. O povo
respondeu e deu ouro, prata, bronze, ferro e pedras preciosas. Então, Davi
derramou seu louvor e suas ações de graça:

Teu, SENHOR , é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque teu é tudo
quanto há nos céus e na terra [...] Porque quem sou eu, e quem é o meu povo para que
pudéssemos dar voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to
damos. 156
O povo se juntou ao louvor de Davi, prostrando-se diante do Senhor e do
rei e, no dia seguinte, eles celebraram com o sacrifício de bois, carneiros,
cordeiros e ofertas de libações, “com grande regozijo”.
“Cada um deve decidir em seu coração quanto dar. Não contribuam com
relutância ou por obrigação. ‘Pois Deus ama quem dá com alegria.’ Deus é
capaz de lhes conceder todo tipo de bênçãos, para que, em todo tempo,
vocês tenham tudo de que precisam, e muito mais ainda, para repartir com
outros”. 157
Diz-se que Hudson Taylor, fundador da China Inland Mission, uma vez
por ano verificava o que tinha. Coisas que ele não usava há um ano eram
doadas. Ele acreditava que seria responsabilizado pelo que retivesse e não
havia razão para reter coisas que outra pessoa pudesse usar enquanto ele
mesmo não tivesse precisado delas durante o período de 1 ano.
Alguns de nós somos acumuladores. Frugalidade é uma coisa, acumular
é outra. Ter vivido em um país onde um frasco comum de maionese valia
cinquenta centavos sem a maionese me faz extremamente cuidadosa com o
que eu jogo fora. Eu costumo guardar o maior número possível de sacolas
plásticas e os arames que as fecham, pois posso usá-los sempre que
necessário. Minha mesquinhez no uso de papel manteiga e toalhas de papel
é quase uma obsessão. Sou conhecida por secar as toalhas de papel usadas
para secar folhas de alface — mas vivi por onze anos em um lugar onde não
havia tais coisas, por isso, para mim, elas ainda são luxos.
No entanto, conheço uma senhora que tem armários cheios de pratos
rachados e lascados, folhas de papel alumínio de comidas que foram
congeladas, recipientes de plástico de queijo cottage e sorvete, e garfos e
colheres descartáveis — em quantidade para durar até o milênio. A maioria
de nós tem alguma área de nossas vidas que está desordenada e precisa ser
liberada para dar espaço a coisas úteis. Por que nos apegamos às coisas
desnecessárias? Seria por que nossa segurança reside na acumulação de
bens materiais? Existe um sentimento de satisfação ao abrir um armário e
ver 59 pares de sapatos, 42 blusas ou camisas? Será que uma pessoa pode
fazer um uso razoável de seis conjuntos diferentes de pratos? (Estou muito
grata a uma mulher da minha classe bíblica que, quando descobriu que
algumas das outras mulheres estavam planejando ir juntas comprar um
conjunto de louças para mim, lembrou-se de um conjunto não usado de
porcelana Lenox que ela havia recebido como presente de casamento e me
deu).

Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua
esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente
para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar
e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o
futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. 158

Naturalmente, essa lição leva à quarta, que as coisas nos são dadas para
que as desfrutemos por um tempo .
Nada prejudicou mais a visão cristã da vida do que a hedionda noção de
que aqueles que são verdadeiramente espirituais perderam todo o interesse
por este mundo e por suas belezas. A Bíblia diz: “Deus [...] tudo nos
proporciona ricamente para nosso aprazimento”. Ela também diz: “Não
ameis o mundo nem as coisas que há no mundo”. 159 É totalmente adequado
e apropriado que desfrutemos as coisas feitas para esse fim. O que não é
nada adequado ou apropriado é que coloquemos nosso coração nelas. As
coisas temporais devem ser tratadas como coisas temporais — que foram
recebidas, pelas quais somos gratos, que são oferecidas de volta, mas
desfrutadas . Elas não devem ser tratadas como coisas eternas.
Jesus disse: “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza;
porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele
possui”. 160 Ele continuou contando a história de um homem cujas colheitas
renderam tanto que ele teve que derrubar seus celeiros para construir
celeiros maiores. Então, ele se sentou e disse a si mesmo com confiança:
“Descansa, come, bebe e regala-te”.
“Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que
tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e
não é rico para com Deus”. 161
“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a
ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós
outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não
escavam, nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o
teu coração”. 162
Devo confessar que houve um sentimento de libertação quando minha
prata se foi. Eu me sentia inquieta cada vez que saíamos de casa. Tinha
havido uma série de assaltos em nosso bairro, e sabíamos que
provavelmente estávamos na lista. A polícia estava bastante certa de que
sabia quem estava fazendo isso, mas parecia impotente para fazer qualquer
coisa antes ou depois. Quando aconteceu, fiquei chocada, mas muito
rapidamente fui capaz de dizer: “Bem, lá se foi isso. Obrigada, Senhor”.
Meu coração estava mais leve. Gastamos parte do dinheiro do seguro em
um conjunto de prata platinada que suponho que ninguém vai querer tanto
assim.
O jovem Francisco de Assis, acreditando que deveria casar-se com a
“Senhora Pobreza”, despiu suas roupas e as jogou no chão.
“De agora em diante”, disse ele à multidão em frente ao palácio do
bispo, “posso avançar nu diante do Senhor, verdadeiramente não mais
dizendo: meu pai, Peter Bernardone, mas: nosso Pai que está nos céus!” 163
O jardineiro do bispo lhe deu um pequeno casaco, cheio de buracos,
sobre o qual ele desenhou uma cruz de giz. Em seguida, partiu pelo bosque,
cantando os louvores do Senhor com toda a força de seus pulmões.
Nem todos os cristãos são obrigados a se despir e a ir cantar no bosque,
mas todos são obrigados a ter a mesma atitude de total liberdade da
ansiedade que permitiu que São Francisco cantasse.
O coração que está relutante em receber alegremente todos os bons dons
de Deus também está relutante em se separar de qualquer um deles.
Um homem que tinha grandes posses veio perguntar a Jesus o que ele
deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus disse que ele deveria guardar
os mandamentos. Ele o tinha feito, disse o homem. O que mais era
necessário?
“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, [...] depois, vem e segue-
me.” 164
A atitude do homem em relação aos seus bens é revelada quando ele vai
embora com o coração pesado. Ele não poderia conhecer a liberdade
enquanto se agarrasse aos seus bens. Ele veio a Jesus com o fardo das
riquezas. Ele foi embora igualmente carregado quando Jesus quis dar-lhe
descanso.
Entre minhas menores posses está uma que parece ser um grande
presente da civilização — um cobertor elétrico. Aqui na Nova Inglaterra,
onde nossos esforços para conservar o combustível nos obrigam a manter a
casa um pouco mais fria do que um iglu, é delicioso entrar em uma cama
pré-aquecida. Também sou grata pelos lençóis limpos secos pelo sol e pelo
vento; pelo creme no cereal de flocos de uva e nozes; pelos supermercados
e pelo carro que me faz chegar até eles; pelo telefone, pela eletricidade e
pelo encanamento. Sei muito bem que todas essas coisas são presentes,
totalmente imerecidos, cada um deles passíveis de serem movidos muito
rapidamente e ainda assim destinados ao desfrute se forem dados.
“Mas as coisas materiais não são inimigas das espirituais?”, você
pergunta.
A resposta é não. É uma heresia de origem antiga, mas comum em todas
as épocas, imaginar que existe uma dicotomia entre o que é visto e o que
não é. O que se vê procede do invisível.
“Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus,
de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” 165 .
O dualismo sustenta que escapar, reprimir ou ignorar o material é bom.
O corpo é, em si mesmo, uma prisão da qual a alma deve escapar. O
cristianismo não é dualismo. O corpo não é o mal. Jesus Cristo desceu do
céu, foi encarnado pelo Espírito Santo e feito homem, santificando assim
para sempre as coisas visíveis. Deus não está procurando homens e
mulheres que irão aprender a odiar o que ele fez, mas está procurando
aqueles que aprenderão a amar as coisas da forma que ele ama, como coisas
que procedem dele e voltam para ele.
“Deus vai me tirar os bens?”, você pergunta.
Se essa é a única maneira que ele pode chamar sua atenção, pode ser que
ele realmente o faça. Se a perda ajudará a mudar sua perspectiva sobre o
valor relativo das coisas vistas e não vistas, ele pode fazer isso de fato. O
apóstolo Paulo afirmou ter sofrido a perda de tudo por causa de Cristo. “Eu
as considero como esterco para poder ganhar Cristo e ser encontrado nele
[...] Quero conhecer Cristo”. 166
De fato, as perdas mais esmagadoras da minha vida, aquelas que eu mais
temia, foram “de longe compensadas pelo ganho de conhecer Cristo Jesus,
meu Senhor”. 167 Nunca poderei provar isso a ninguém. Não posso
demonstrá-lo logicamente ou cientificamente. Só sei que é verdade e o diria
com todo o meu coração a outros que, desejando conhecer Cristo em toda
sua plenitude — no poder de sua ressurreição — e na comunhão de seu
sofrimento — ainda temem a perda. Não tenham medo. Não tenham medo.
Não tenham medo. O ganho será maior do que tudo.
“Pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para
nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles [...] pois o que se vê
é transitório, mas o que não se vê é eterno”. 168
Mas ainda permanece um medo.
“Suponhamos que Deus não me tire os meus bens. Será que ele me pede
para desistir deles?”
George MacDonald tem aqui um pouco de “consolo mórbido”:
Você está tão satisfeito com o que você é, que nunca procurou a vida eterna, nunca teve
fome e sede da justiça de Deus, da perfeição de seu ser? Se essa última declaração for sua
condição, então seja consolado; o Mestre não exige de você que venda o que tem e dê aos
pobres. Você o segue! Você vai com ele para pregar boas novas! — Você, que não se
importa com a justiça! Você não é aquele cuja companhia é desejável para o Mestre. Sede
consolados, digo eu: ele não quer você; ele não lhe pedirá que você abra sua bolsa para ele;
você pode dar ou reter: isso não significa nada para ele [...] Vá e observe os mandamento s.
Isso ainda não chegou ao seu dinheiro. Os mandamentos são suficientes para você. Você
ainda não é um filho no reino. Você não se importa com os braços de seu Pai; você valoriza
apenas o abrigo do teto dele. Quanto ao seu dinheiro, deixe que os mandamentos lhe
orientem como utilizá-lo. É uma presunção lamentável se perguntar se é exigido de vocês
que vendam tudo o que têm [...] Para o Jovem, ter vendido tudo e seguir Jesus teria sido
aceitar a patente de paridade de Deus: a vocês isso não é oferecido.
Isso o conforta? Então, ai de você! [...] Seu alívio é saber que o Senhor não precisa de
você — não requer que você se separe de seu dinheiro, não oferece a si mesmo a você. Você
de fato não o vende por trinta moedas de prata, mas está feliz por não comprá-lo com tudo o
que você tem. 169

“Mas”, diz você, “eu realmente busco a vida eterna”. Eu tenho muita
fome e sede de justiça. Eu me preocupo com os braços do Pai. Devo então
abandonar tudo o que possuo, hoje, literalmente?”
Só posso dizer o seguinte: Deus pode um dia lhe pedir isso. Se ele o
fizer, creio que primeiro ele o preparará para isso e testará a validade de sua
reivindicação de boa vontade por meio de compromissos menores.
Você dá o dízimo? O dinheiro é um bom lugar para começar, pois é o que
nos toca mais. Conheço uma igreja batista do Sul onde todos os domingos
de manhã a congregação se levanta e diz: “A Bíblia ensina. Eu acredito
nisso. Dê o dízimo”. A oferta é, então, recolhida, em média cerca de 30 mil
dólares por semana.
Um dízimo é um décimo. Nos tempos do Antigo Testamento, o povo de
Israel dava um décimo de tudo o que tinha — rebanhos, frutos, colheitas,
dinheiro. Devemos nós, que vivemos “sob a graça”, fazer menos do que era
exigido por lei? Devemos deixar que nossas ofertas sejam uma “primeira
carga” ao Senhor?
“Honra ao SENHOR com os teus bens e com as primícias de toda a tua
renda; e se encherão fartamente os teus celeiros, e transbordarão de vinho
os teus lagares”. 170
“Devo dar um décimo da renda bruta ou um décimo da renda depois dos
impostos?” Se você achar difícil fazer qualquer um dos dois, não é provável
que Deus ainda esteja convidando você a abandonar tudo para segui-lo.
Outro teste possível: como você reage quando suas posses são
danificadas, destruídas, roubadas?
Você está disposto a ser defraudado? Você exige pagamento?
Você está chateado com alguma infração ao seu “direito” de possuir?
Está preocupado com o que lhe pertence? Seus punhos estão cerrados ou
suas palmas estão abertas? Quem é seu mestre, Deus ou dinheiro? Atrás do
que você tem corrido?
Roupas, comida, dinheiro: “Porque os gentios é que procuram todas estas
coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas” 171 . Ponha
sua mente no Reino de Deus e em sua justiça antes de tudo, e todo o resto
virá até você também. “Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã,
pois o amanhã trará os seus cuidados.”
Portanto, estamos de volta à primeira lição: as coisas são dadas por Deus.
Podemos confiar nele para nos dar. Meu cachorrinho, MacDuff, me ensinou
muitas lições. Como a vida era simples para ele! Ele confiava em mim. Ele
viveu sua vida um dia de cada vez, vestindo seu único casaco preto,
fornecido por um Pai celestial, apropriado a todas as ocasiões, o ano inteiro.
O jantar estava lá no pote — ração Ken L., Gaines-Burgers, restos da mesa,
o que quer que fosse. Nenhuma decisão sobre o cardápio o perturbava. Ele
tinha uma casa e um tremendo quintal, e alguns esquilos e coelhos que ele
se sentia responsável por perseguir e para os quais latir, mas não tinha
impostos ou pagamentos de hipoteca. Todas as coisas eram resolvidas para
ele. O que ele fez de forma natural é uma dura lição, a qual nós, seres
humanos, temos que desenvolver.
C. S. Lewis escreveu à Senhora Americana, quando ela teve uma crise
financeira: “Suponho que viver no dia a dia (“não andeis ansiosos pelo dia
de amanhã”) é exatamente o que temos que aprender — embora o velho
Adão em mim às vezes murmure que se Deus quisesse que eu vivesse como
os lírios do campo, se ele não me daria a mesma falta de nervosismo e
imaginação que eles desfrutam!” 172
Quatro lições, então:
1. As coisas são dadas por Deus.
2. As coisas devem ser recebidas com ações de graça.
3. As coisas são materiais para sacrifício.
4. As coisas nos são dadas para que as desfrutemos por um tempo.
E há um quinto item: tudo o que pertence a Cristo é nosso . Portanto,
como escreveu Amy Carmichael: “Tudo o que sempre foi nosso é nosso
para sempre”.
Dizemos muitas vezes que o que é nosso pertence a Cristo. Será que nos
lembramos do oposto: que o que é dele é nosso? Isso me parece uma
verdade maravilhosa, quase uma verdade incrível. Se assim o é, como
podemos realmente “perder” alguma coisa? Como podemos sequer falar
que ele tem “direito” aos nossos bens?
“Portanto, ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso: seja
Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam
as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e
Cristo, de Deus”. 173
“Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que eu tenho é teu”, diz-nos o
Pai. Isso é riqueza.
Lucas 14.33.
Filipenses 4.12.
Tiago 1.16-17.
Romanos 8.32.
Salmos 104.24, 25, 27, 28.
1 Coríntios 4.7.
1 Crônicas 29.11, 14.
2 Coríntios 9.7-8, NVT.
1 Timóteo 6.17-19.
1 João 2.15.
Lucas 12.15.
Lucas 12.20-21.
Mateus 6.19-21.
Omer Englebert, Saint Francis of Assisi: A Biography (Ann Arbor, MI: Servant, 1979), 36-37.
Mateus 19.21.
Hebreus 11.3.
Filipenses 3.8, 10, NVI.
Filipenses 3.8, tradução livre da versão New English Bible (NEB).
2 Coríntios 4.17,18, NVI.
George MacDonald, “The Hardness of the Way”, Anthology of George MacDonald , ed. C. S.
Lewis (New York: Macmillan, 1947). 113-14.
Provérbios 3.9-10.
Mateus 6.32-34.
C. S. Lewis, Letters to an American Lady , ed. Clyde S. Kilby (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), 76.
1 Coríntios 3.21-23.
12 | A disciplina do trabalho

N
ão existe um trabalho cristão. Ou seja, não existe trabalho no
mundo que seja, em si mesmo, cristão. O trabalho cristão é
qualquer tipo de trabalho, desde limpar um esgoto até pregar um
sermão, que é feito por um cristão e oferecido a Deus.
Isso significa que ninguém é excluído de servir a Deus. Significa que
nenhum trabalho está “abaixo” de um cristão. Significa que não há trabalho
no mundo que precise ser entediante ou inútil. Um cristão encontra
realização não no tipo particular de trabalho que ele faz, mas na forma
como o faz. O trabalho feito para Cristo o tempo todo deve ser “trabalho
cristão em tempo integral”.
Os coletores de impostos e soldados estavam entre aqueles que saíram
para o deserto para serem batizados por João. Quando perguntaram o que
deveriam fazer para provar seu arrependimento, João não lhes disse para
desistirem de seus trabalhos e começarem a fazer o que ele fazia. Aos
coletores de impostos ele disse: “Não cobreis mais do que o estipulado”.
Aos soldados, disse: “A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e
contentai-vos com o vosso soldo”. 174 Essa forma de fazer o trabalho
específico deles certamente seria uma direção radicalmente nova. Um
cobrador de impostos que não recebesse mais do que o exigido por lei ou
um soldado que nunca intimidasse, nunca chantageasse, nunca protestasse
por salários mais altos, seria um não conformista da melhor qualidade.
Cada um de nós tem um cumprimento do dever marcado por Deus. Para
a maioria dos seres humanos, durante a maior parte da história, tem havido
pouca escolha disponível. Tendemos a esquecer isso numa época em que as
opções parecem ilimitadas e quando, em geral, “o que a pessoa faz”
significa especificamente a capacidade que ela tem de ganhar dinheiro. O
dever, porém, inclui tudo o que devemos fazer pelos outros: arrumar uma
cama, dar carona a alguém para a igreja, cortar um gramado, limpar uma
garagem, pintar uma casa. Muitas vezes, é possível “sair do” trabalho dessa
maneira. Ninguém está nos pagando. É preciso simplesmente fazer aquilo, e
se não o fizermos, ninguém o fará. Mas a natureza do trabalho muda
quando vemos que é Deus quem marca esse cumprimento do dever. É um
serviço para ele. Quando o vemos, podemos dizer: “Senhor, quando foi que
eu cortei o teu gramado? Quando foi que passei tua roupa?” Ele responderá:
“Quando você o fez por um dos menores de meus filhos, você o fez por
mim”.
O irmão Lawrence praticou a presença de Deus na cozinha de um
mosteiro. Sophie, a esfregadora, limpava pisos para Jesus. Dag
Hammarskjöld, como secretário-geral das Nações Unidas, ofereceu seu
trabalho a Deus, encontrando nos escritos dos grandes místicos medievais a
explicação de como um homem deve viver uma vida de serviço social
ativo:
Para quem a “autoentrega” tinha sido o caminho para a autorrealização, e que na “singeleza
da mente” e na “interioridade” tinham encontrado forças para dizer sim a cada exigência
que as necessidades de seus vizinhos os fazia enfrentar, e para dizer sim também a cada
destino que a vida tinha reservado para eles. Amor — essa palavra muito mal-usada e mal-
interpretada —, para eles significava simplesmente um transbordamento da força com que
se sentiam preenchidos quando viviam em verdadeiro autoesquecimento. E esse amor
encontrou expressão natural no cumprimento sem hesitação do dever e na aceitação sem
reservas da vida, o que quer que fosse que os trouxesse pessoalmente de trabalho,
sofrimento ou felicidade.

As primeiras palavras de um diário em 1956, lê-se:

Diante de ti, Pai,


em retidão e humildade,

contigo , Irmão,
na fé e na coragem,
em ti, Espírito,
em quietude.

Vosso , pois vossa vontade é o meu destino,


Dedicado — pois meu destino é ser usado, e usado de acordo com a tua vontade. 175

Quais são as exigências que nos são impostas pelas necessidades de


nossas famílias ou de nossos vizinhos? Esse é o cumprimento do dever que
Deus nos estabeleceu. Para mim, quando eu era uma observadora próxima
da vida dos índios da selva, ficou bastante claro que todos eles faziam o que
tinham que fazer para sobreviver, desde a menor criança, que podia
caminhar até a velha avó que ainda pegava sua cesta e saía para plantar
mandioca na clareira da família. Havia poucas escolhas de fato. Eles não se
parabenizavam por cumprir seus deveres. Certamente nunca lhes passou
pela cabeça que fossem virtuosos por fazer isso. O dever é bom . Quando o
fazemos, estamos fazendo o bem, mas não estamos ganhando mérito por
isso.
É errado fazer tantas distinções entre aquilo do qual não podemos
“escapar” de fazer — ou seja, o que é necessário para a sobrevivência — e
o que escolhemos fazer. O trabalho diário de oito horas pelo qual estamos
sendo pagos é um dever, bem como uma necessidade física. Muitas coisas
que fazemos “depois do trabalho”, a menos que sejamos pessoas
demoniacamente egoístas, são trabalho também, muitas vezes para os
outros. Os dois são tão diferentes assim aos olhos de Deus? Eu duvido. O
trabalho que me foi designado inclui escrever e falar, formas de serviço
muitas vezes rotuladas como “cristão em tempo integral”, mas meu serviço
a Deus também inclui tarefas domésticas e de correspondência, e estar
disponível para ajudar a família e os amigos a fazerem coisas que precisam
ser feitas. Se meu marido precisa de um corte de cabelo ou que uma carta
seja digitada, eu estou disponível.
“Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida”, escreveu Paulo aos
coríntios, “mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos
demarcou e que se estende até vós. Porque não ultrapassamos os nossos
limites como se não devêssemos chegar até vós, posto que já chegamos até
vós com o evangelho de Cristo; não nos gloriando fora de medida nos
trabalhos alheios e tendo esperança de que, crescendo a vossa fé, seremos
sobremaneira engrandecidos entre vós, dentro da nossa esfera de ação”. 176
O que é a nossa “esfera de ação”? Não podemos descartar o fato da vida
moderna: na realidade, existem muitas escolhas quando se trata de discernir
essa esfera. Estejamos certos de que Deus sabe como mostrar a vontade
dele a quem está disposto a fazê-la. O lugar para começar a descobrir a
esfera maior é na esfera menor — na disposição de dizer sim a toda
exigência que a necessidade do próximo nos faz enfrentar.
Um jovem casal veio me pedir conselhos sobre o trabalho da esposa. O
homem estava estudando ainda, então era necessário que ela trabalhasse
para pagar as contas. Essa é uma das duras realidades atuais e coloca uma
tensão em qualquer casamento. Acredito que esse possa ser um acordo
viável desde que seja visto, por ambas as partes, como um expediente
temporário até que seja possível para o marido assumir a responsabilidade
que recai sobre os maridos: cuidar de suas esposas, possibilitar-lhes ter uma
família e, em seguida, sustentar essa família. Essa, porém, não foi a maior
dificuldade do jovem casal. Ambos viam a situação como temporária, não
ideal. O problema era que ela não estava achando seu trabalho muito
“gratificante”. Será que ela deveria correr o risco de deixar um trabalho
chato e esperar que o Senhor a levasse a um melhor? Claro que era uma
pergunta que eu não podia responder por eles, mas tentei ajudá-los a
enxergar a coisa toda de uma maneira diferente.
Primeiro, o trabalho dela era uma necessidade econômica, uma vez que
ele não podia trabalhar. Qualquer trabalho era melhor do que nenhum
trabalho. Em segundo lugar, era um trabalho temporário. Ela não precisava
pensar nele como uma carreira. Ela queria ser mãe. Terceiro — e eles não
tinham pensado nisso —, “realização” não se encontra em nenhum emprego
no mundo. Ela estava enganada em buscar realização ali. Ela achava que o
trabalho estava “abaixo” dela, o que a fazia se sentir “superqualificada”,
uma vez que tinha um diploma que não tinha nada a ver com o tipo de
trabalho que fazia e que, portanto, ia ser desperdiçado. Será que ela estava
disposta a fazer qualquer coisa que a necessidade atual deles exigisse —
para o bem de seu marido — como para o Senhor? Será que ela estava
disposta a renunciar a todo o pensamento de satisfação pessoal no trabalho
e, em vez disso, procurar satisfazer o Mestre? (Como eu poderia convencê-
la de que a satisfação de fazer um trabalho para Deus seria infinitamente
maior do que as recompensas que o uso de suas chamadas qualificações
poderia trazer?)
Eu não sei o que aconteceu com eles. Talvez Deus tenha proporcionado
uma posição interessante e desafiadora para ela. Caso contrário, espero que
tenham aprendido a lição essencial: interesse e desafio sempre podem ser
encontrados em qualquer tarefa feita para Deus. Se nosso trabalho parece
estar abaixo de nós, se ele se torna entediante e sem sentido, uma mera
labuta, ele pode ser uma forma de ganhar a vida, mas isso não é viver. Não
é a vida de liberdade e plenitude que a vida de um discípulo é projetada
para ser.
Será que Deus nos pede para fazer o que está abaixo de nós? Essa
pergunta nunca mais nos incomodará se considerarmos o Senhor do céu
pegando uma toalha e lavando pés.
Na época do início da igreja, quando os Doze precisavam de alguém para
cuidar da distribuição diária às viúvas, eles disseram que seria um grave
erro negligenciarem a Palavra de Deus para “servir às mesas”. Que eles não
queriam dizer que o trabalho estava abaixo deles está claro pelo tipo de
homens que eles procuravam para preencher o cargo: “de boa reputação,
cheios do Espírito e de sabedoria”. 177 Os próprios apóstolos, lembre-se,
eram leigos sem formação, mas tinham sido claramente chamados ao
ministério da Palavra. Homens diferentes têm dons diferentes,
responsabilidades diferentes, e até mesmo servir às mesas requer o Espírito
e a sabedoria. Ambos os tipos de trabalho precisavam ser feitos na igreja, e
eles procuraram o Senhor para que ele fizesse as nomeações. É
especialmente interessante que um dos homens nomeados foi Estêvão,
“cheio de fé e do Espírito Santo”, cuja aceitação da responsabilidade pelas
viúvas gregas logo o levou a fazer grandes milagres e sinais (quem sabe se
ele foi o primeiro a conciliá-las, e isso em si mesmo foi visto como um
milagre...) e a falar com tanta sabedoria inspirada que ele despertou o
extremo ciúme e ódio irracional da elite religiosa. Ele deve ter sido um
homem verdadeiramente humilde para ter aceitado essa primeira tarefa e
um homem muito brilhante para ter causado tamanha impressão como
orador. Deus o preparou para o martírio, dando-lhe um trabalho ordinário.
Muitas noções tolas sobre o que faz um grande mártir se dissolveriam se
traçássemos a história do primeiro mártir da igreja.
Capítulo 1: Uma disputa entre gregos e judeus sobre o trabalho das
viúvas.
Capítulo 2: Estêvão nomeado para uma comissão que atendia mesas.
Capítulo 3: Estêvão começa a fazer milagres.
Capítulo 4: Chamado pela Sinagoga dos Libertos.
Capítulo 5: A defesa e visão de Estêvão do Filho do Homem.
Capítulo 6: Apedrejado até a morte.
O que constitui uma “grande obra para Deus”? Por onde ela começa?
Sempre com humildade. Não em ser servido, mas em servir. Não na
autoatualização, mas na autoentrega.
Certa vez, ouvi uma fórmula que garantia prevenir o tédio. Ela deve
conter:
1. algo para fazer;
2. alguém para amar;
3. algo pelo qual esperar.
O cristão tem tudo isso em Cristo: um trabalho, um Mestre e uma
esperança. No entanto, com que facilidade nos esquecemos disso. Um dos
resultados da queda é que perdemos de vista o significado das coisas e
começamos a ver o mundo como monótono e opaco, em vez de enxergá-lo
como carregado de glória. O que as outras pessoas estão fazendo parece
muito mais interessante e emocionante do que o que temos que fazer. Não
há “magia” em minha rotina, nós pensamos — mas a dela parece invejável.
Se Estêvão tivesse colocado seu coração no trabalho de milagres e sinais,
ou em tornar-se um brilhante apologeta, dificilmente estaria disposto a
aceitar uma nomeação no conselho do bem-estar. Isso, no entanto, foi o que
aconteceu para ele naquele momento. Havia uma necessidade e ele foi
chamado para preenchê-la. Ele disse sim. Seu coração estava fixado em
uma coisa: na obediência a Deus. Ele foi considerado digno de sofrer
porque estava disposto a servir. Estêvão não elevou sua alma à vaidade,
sonhando em alcançar um lugar de alta distinção na história da igreja.
“Quem subirá ao monte do SENHOR ? Quem há de permanecer no seu
santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração”. 178
Ofereçamos o nosso trabalho como oferecemos nossas mãos, nossos
corações, nossos corpos — um sacrifício aceitável, porque é ofertado
àquele que é o único que pode purificar. Sem essa oferta, a coisa morre. A
morte, a falta de vida, o tédio são inevitáveis.
Mesmo o trabalho de escrever (livros “cristãos”!) pode tornar-se
monótono. Para muitos, parece maravilhosamente empolgante. Eu sei,
porque eles vêm até mim com olhos brilhantes e falam sobre como deve ser
maravilhoso. “Espero escrever um livro algum dia”, dizem eles, “quando
tiver tempo... quando as crianças estiverem maiores... quando eu me
aposentar...”.
Eu os encorajo a fazer isso, com toda a certeza. Mas se eles perguntarem
se eu amo escrever, se é puro prazer, se alguma vez eu acho difícil, devo
admitir que para mim o processo é sempre difícil. Devo me obrigar a
enfrentá-lo, dia após dia.
Ontem, por exemplo, foi ruim. Tive o dia todo para mim em um lugar
tranquilo. Não havia a menor chance, salvo alguma emergência, de
qualquer interrupção. Eu sabia o que tinha que fazer. Tinha as anotações
preparadas. Eu tinha a máquina de escrever, o papel, o lugar para trabalhar.
Estou em excelente saúde. A temperatura estava perfeita — não muito
quente, não muito fria. Se você não consegue trabalhar em condições como
essas, não se pode trabalhar de forma alguma. Eu estava sempre dizendo
isso a mim mesma.
Mas eu não tinha vontade de trabalhar. Tudo se resumia a isso. Eu estava
inquieta, distraída e desgostosa comigo mesma. Eu me perguntava se eu
tinha “chegado ao meu limite”, como dizem os ingleses. 179 Talvez eu
realmente não tivesse nada a dizer, afinal de contas. Tudo tinha sido dito, é
claro, e talvez tudo tivesse sido dito por mim. Eu estava me repetindo. Ai de
mim. Além disso, se não tivesse sido dito, o que eu sabia sobre o assunto,
afinal? Os pensamentos de que provavelmente ainda havia alguns leitores
por aí que gostariam do que eu escrevi e que eu tinha acabado de receber
outra carta de uma amável editora expressando interesse no que eu poderia
escrever não ajudaram muito. “Não há limite para fazer livros, e o muito
estudar é enfado da carne” 180 foi o único versículo que falou alto e claro
para mim. Pensei em todas aquelas livrarias cristãs, cheias com a avalanche
de livros brilhantes que são despejados diariamente das prensas; nas
brochuras coloridas e anúncios de página inteira para o mais novo
blockbuster. Lembrei-me de algumas estatísticas deprimentes que eu havia
lido: aos dezesseis anos, a maioria das crianças já passou de 10 a 15 mil
horas assistindo à televisão. Setenta e quatro por cento dos adultos
americanos não leem um único livro de um ano para o outro. Somos o país
com mais “não leitores” no mundo industrializado.
Imaginei a gigantesca convenção de livrarias à qual comparecerei dentro
de algumas semanas. Novamente digo: “Ah... Por que acrescentar mais um
livro à pilha?”
O trabalho que certamente é um dos mais agradáveis do mundo nem
sempre tem muito apelo para aquele cuja profissão é o trabalho em questão.
Esse é exatamente o ponto ao qual precisamos nos ater — o inimigo tem
muitos meios de entorpecer o brilho, nos distraindo, nos deixando
entediados com o que nos é dado para realizar, fazendo com que pareça não
ter valor algum. É difícil ter em mente o caráter espiritual do nosso trabalho
(pois há caráter espiritual em todo trabalho que Deus nos dá). Isso requer
proteção espiritual. “Potestades e forças espirituais” estão contra nós, para
nos arrastar para baixo, para o desencorajamento, à repugnância e ao
desespero.
“Seja sobre nós a graça do SENHOR , nosso Deus; confirma sobre nós as
obras das nossas mãos, sim, confirma a obra das nossas mãos” 181 deve ser
nossa oração. Precisamos de ajuda. Podemos escrever o livro, vender a
apólice, cozinhar a refeição, fazer o trabalho, o que quer que seja, mas
haverá dias em que o faremos sem entusiasmo e outros em que o faremos
desanimadamente. Se o trabalho estiver ensopado em oração, a beleza
estará lá, o trabalho será estabelecido.
O trabalho é uma bênção. Deus arranjou o mundo de tal forma que o
trabalho seja necessário, e ele nos dá mãos e força para fazê-lo. O gozo do
lazer não seria nada se tivéssemos apenas lazer. É a alegria do trabalho
bem-feito que nos permite desfrutar o descanso, assim como são as
experiências de fome e sede que fazem da comida e da bebida tão
prazerosas.
Nunca apreciei o tremendo valor terapêutico do trabalho até que perdi
meu primeiro marido. Desde então, me perguntaram dezenas de vezes:
“Como você conseguiu se obrigar a voltar para a selva?”
Duvido que eu pudesse ter me obrigado a voltar. Eu não “voltei”. Eu
fiquei. Havia trabalho a ser feito, muito trabalho, e não havia mais ninguém
para fazê-lo. Todos os dias, desde o primeiro dia após a notícia final de que
cinco homens estavam mortos, eu estava lotada de afazeres. Meu bebê,
minha casa, uma pista de aterrissagem para manter, índios para ensinar, e
empregar, e para visitar, e aplicar injeção, e aconselhar, e ajudar, trabalho de
tradução e correspondência preenchiam o tempo que eu poderia ter usado
para sentir pena de mim mesma.
A morte do meu segundo marido, um longo e agonizante processo, me
fez indizivelmente grata a Deus pelo simples e comum trabalho doméstico.
Somente cozinhar para Addison — e ocupar meu cérebro com cardápios
que ele seria capaz de desfrutar pelo menos um pouco — e limpar a casa,
lavar seus pratos, roupas e lençóis, carregar bandejas, monitorar seus
remédios e responder a suas cartas que me fizeram passar por aquele
processo. Eu me encontrava agradecendo a Deus por uma pilha de pratos ou
de roupas para lavar.
É aquele para quem um trabalho é feito que dá significado ao trabalho.
Claro que eu não estava pensando em frigideiras ou em detergentes para
lavar roupa quando estava fritando um ovo ou lavando a louça. Eu estava
pensando em Add. No entanto, conforme a doença avançava, ele ficava
extremamente deprimido e não queria mais comer, ou ter alguém lendo para
ele, ou ser banhado, vestido ou cuidado de qualquer forma. Para ele, eu era
como o “perturbador de Israel”, e ele mesmo me disse isso. No entanto, o
trabalho ainda tinha que ser feito. Mesmo quando ele estava no seu pior
momento e eu mal conseguia passar um dia, o trabalho estava lá, e pela
graça de Deus eu o fiz. Quando me lembrei de olhar para cima ao invés de
olhar ao meu redor, e oferecer o trabalho ao Senhor, foi muito mais fácil e
mais agradável.
Há muitas pessoas que não têm ninguém na terra para quem fazer seu
trabalho. O patrão é uma mulher difícil, de ser evitada a todo custo; não há
família em casa esperando o pagamento; ninguém realmente se importa se
gostam de seu trabalho; ninguém lhes agradece. O que a disciplina do
trabalho significa para essas pessoas?
O que Paulo tinha a dizer aos escravos na igreja de Colossos deve nos
ajudar aqui. “Escravos, em tudo obedeçam a seus senhores terrenos.
Procurem agradá-los sempre, e não apenas quando eles estiverem
observando. Sirvam-nos com sinceridade, por causa de seu temor ao
Senhor. Em tudo que fizerem, trabalhem de bom ânimo, como se fosse para
o Senhor, e não para os homens. Lembrem-se de que o Senhor lhes dará
uma herança como recompensa e de que o Senhor a quem servem é Cristo”.
182

Tento imaginar como seria ser um escravo durante o tempo do Império


Romano. Nós, que vivemos em um país livre no presente século, trazemos à
nossa imaginação muitos fatores que provavelmente não os incomodavam
na época. Poucos, suponho, pensaram muito sobre a questão moral da
escravidão. Muitos estavam contentes de ter outra pessoa no comando de
suas vidas, como muitos hoje estão contentes, mesmo que não queiram o
rótulo de escravos. No entanto, estou bastante segura de que dar toda a
obediência a um mestre terreno não foi mais fácil para os escravos do
primeiro século do que o é para os empregados e/ou discípulos do século
XXI. Sem dúvida, foi muito mais difícil. Trabalhar com uma mente única,
por reverência ao Senhor, sempre foi difícil se, por nenhuma outra razão, o
inimigo de nossas almas preferisse que tivéssemos uma mente dupla e
víssemos apenas o chefe humano, com todos os seus fracassos. Se houvesse
um feitor agitando um chicote durante quatorze horas por dia, imagine
colocar todo o seu coração nisso.
A atitude cristã em relação ao trabalho é verdadeiramente revolucionária.
Pense no impacto que faria à economia e a todo o tecido da vida se a
pergunta fosse feita diariamente, na cozinha, no escritório, na sala de aula,
na fábrica: “Quem é seu mestre?” e a resposta dada fosse: “Cristo é meu
mestre, de quem eu sou escravo”. Isso transformaria em um golpe não só a
atitude do trabalhador em relação ao patrão, mas sua atitude em relação
àqueles que trabalham com ele. Ele não mais estaria planejando maneiras
de superá-los, enganá-los, ganhar preferência sobre eles aos olhos do
patrão. O trabalhador não estaria procurando maneiras de escapar do
trabalho do qual não gosta, deixando para o outro fazer. Isso mudaria a
atitude dele em relação ao trabalho em si porque ele o faria não para
mostrar, não para ganhar promoções, ou bônus, ou elogios, ou pela viagem
gratuita a Las Vegas, mas o faria com uma única mente: por Cristo. Isso
mudaria a qualidade do trabalho, pois ele tem um mestre que vê o que
nenhum outro supervisor poderia detectar: não apenas cada detalhe do
trabalho feito, mas as intenções do coração. O artífice saberia que o
trabalho, por mais degradante que fosse, por mais rotineiro, humilde que
fosse, realmente importa. Ele será notado.
Quando Lars e eu subimos a torre da Catedral de Norwich, descobrimos,
bem acima na escadaria mais estreita e escura, algumas pequenas faces
esculpidas na pedra. Quem foi o artífice que as esculpiu? Para quem? Será
que ele esperava que o público reconhecesse seu trabalho em um lugar tão
obscuro? Ele deve ter feito isso para Deus.
Pense no brilho que haverá no lugar onde o trabalho é feito por Deus.
Pense na paz dentro do coração do trabalhador que eleva o trabalho até
Deus.
O trabalho em si não é apenas uma bênção. A capacidade de trabalhar é
um dom. Pergunte a Joni Eareckson Tada. Ela está paralisada. Ela não pode
mais fazer o trabalho normal dado ao resto de nós, mas aprendeu, através da
prática e da disciplina excruciante, a fazer as coisas de maneira
extraordinária. Ela pinta, segurando o pincel em sua boca. Ela dirige uma
van especialmente adaptada às suas necessidades. Ela escreve livros, viaja,
fala, trabalha para os deficientes físicos. Vê-la fazer essas coisas contra tais
adversidades me torna consciente de bênçãos que eu tomava como
garantidas. Minhas pernas me levam para onde quero ir, minhas mãos
seguram um aspirador, meus dedos trabalham — todos os dez — para
arrumar meu cabelo, amassar o pão, tocar piano, digitar.
Cada habilidade separada é um dom. Moisés foi um grande homem,
muito dotado, escolhido para tirar o povo de Israel da escravidão, a quem o
padrão do tabernáculo foi mostrado no Monte Sinai: faça-me um santuário.
Faça uma arca. Faça uma mesa. Faça um candelabro. Faça os pendentes.
Faça um véu.
Quem executaria as intrincadas instruções?

“Disse Moisés aos filhos de Israel: Eis que o SENHOR chamou pelo nome a Bezalel, filho de
Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, e o Espírito de Deus o encheu de habilidade, inteligência
e conhecimento em todo artifício, e para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata,
em bronze, e para lapidação de pedras de engaste, e para entalho de madeira, e para toda
sorte de lavores. Também lhe dispôs o coração para ensinar a outrem, a ele e a Aoliabe [...]
para fazer toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bordador em estofo azul, em
púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão, sim, toda sorte de obra e a elaborar
desenhos. Assim, trabalharam Bezalel e Aoliabe [...] segundo tudo o que o SENHOR havia
ordenado”. 183

A Regra de São Bento para os monastérios afirma que o primeiro grau de


humildade é a obediência sem demora.
Mas essa mesma obediência só será aceitável a Deus e agradável aos homens se o que é
ordenado for feito sem hesitação, sem demora, sem tibieza, sem murmuração ou sem
objeção. Pois a obediência dada aos superiores é dada a Deus, pois ele mesmo disse: “Quem
vos ouve, ouve a mim”. E os discípulos devem oferecer sua obediência com boa vontade,
pois “Deus ama quem dá com alegria”. Pois se o discípulo obedece com má vontade e
murmura, não necessariamente com seus lábios, mas simplesmente em seu coração, então
mesmo que ele cumpra a ordem, seu trabalho não será aceitável para Deus, que vê seu
coração murmurar. 184

O Padre Judas do Priorado de São Gregório escreve:

A benção à mesa em nossa refeição do meio-dia aos domingos é diferente da refeição


diária. Os dois monges que estiveram servindo mesas durante a semana acabam de terminá-
la dizendo juntos um versículo do Salmo 86: “Abençoado sejais, SENHOR Deus, porque me
ajudastes e me fortalecestes”. [...] Acho que esse momento é solene e afetuoso. Ele tipifica
o tipo de vida a qual nós nos entregamos, uma vida que investe em ações ordinárias,
cotidianas com significado espiritual. É um conforto saber que quando ministramos às
necessidades dos outros, mesmo que o ministério seja apenas a busca de alimentos para eles
comerem e tirar seus pratos usados, estamos nos apropriando da graça de Deus ao fazê-lo
[...].
É um luxo legitimamente agradável vir almoçar ou jantar, sentar-se e comer, e sair sem
ter que fazer mais nada a respeito. No devido tempo, chegará o momento em que será sua
vez de ser o que serve, mas isso não precisa tornar o descanso presente menos agradável. É
útil aprender a ter a devida facilidade, tanto no corpo quanto no espírito.
Os versos do salmo na bênção dominical não são um pouco exagerados? (“Ó Deus,
apressa-te para me salvar, ó SENHOR, apressa-te para me ajudar!” Parece um
empreendimento arriscado. “Abençoado sejas, ó SENHOR Deus, porque me ajudaste e me
fortaleceste!” Nós conseguimos! Passamos por isso!) Mas talvez não, se lembrarmos que
ministramos com o poder do próprio Deus. Realizar um ministério em qualquer nível é um
passo audacioso. Quase nunca é preciso mais humildade do que quando se está sendo útil. O
corpo que eu estou ajudando a manter vivo está destinado a uma gloriosa ressurreição. A
pessoa a quem estou levando um prato de comida é alguém a quem é uma honra servir, pois
ele foi convidado a comer e beber na mesa de um rei. 185

Um cristão é caracterizado por uma vontade de trabalhar. A preguiça era


uma ofensa tão grave que Paulo disse aos tessalonicenses para se
distanciassem de qualquer um que caísse em hábitos ociosos. Ele próprio
nunca havia aceitado pensão ou alojamento de ninguém sem pagar por isso.
Nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e fadiga, de noite e
de dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós [...] vos ordenamos isto:
se alguém não quer trabalhar, também não coma. Pois, de fato, estamos informados de que,
entre vós, há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando; antes, se intrometem
na vida alheia. A elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que,
trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão. 186

Não muito tempo atrás, uma jovem me pediu para orar para que ela
encontrasse um emprego. Enquanto conversávamos, soube que ela, que
estava no seguro-desemprego há dois anos, queria muito trabalhar no rádio
e na televisão, mas até o momento não tinha encontrado nada nessa área.
Sugeri que ela provavelmente poderia encontrar um trabalho de limpeza.
Ela ficou chocada e ofendida. “Mas eu tenho um mestrado!”.
“Se alguém não quer trabalhar, também não coma”. Foi a palavra de
Paulo, não minha, e presumo que se aplicaria a uma mulher que não tem
ninguém para alimentá-la, a não ser o governo federal. O caso da jovem
mulher não era de incapacidade de trabalhar por causa da saúde precária ou
do cuidado de crianças pequenas. Ela simplesmente não estava disposta a
trabalhar — a não ser que ela gostasse do trabalho. Nunca digamos: “Deus
não me deu nada para fazer”. Ele deu. Ele está à sua porta. Faça-o, e ele lhe
mostrará outra coisa.
“Desejamos [...] que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles
que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas”. 187
Quando eu estava na sexta série, um dos nossos exercícios de caligrafia
foi esse verso, que tem tocado em minha mente desde então:
Se uma tarefa for iniciada,
nunca a deixe até que esteja completada.
Quer seja grande ou pequena a ocupação,
faça-a somente de todo o coração.
Terminaremos nosso curso com alegria se nos mantivermos fiéis à tarefa.
Poderemos dizer como Jesus disse: “Consumei a obra que me confiaste para
fazer”.
Lucas 3.13-14.
Dag Hammarskjöld, Markings (London: Faber & Faber, 1975), 109.
2 Coríntios 10.13-15.
Atos 6.3.
Salmos 24.3-4.
N. T.: A expressão utilizada pela autora é “shoot my bolt ”, que significa já ter atingido tudo aquilo
para o qual você tem poder, habilidade e força para fazer, e ser incapaz de fazer mais.
Eclesiastes 12.12.
Salmos 90.17.
Colossenses 3.22-24, NVT.
Êxodo 35.30-36.1.
Fonte não citada pela autora.
Fonte não citada pela autora.
2 Tessalonicenses 3.8-12.
Hebreus 6.11-12.
13 | A disciplina dos sentimentos

E
“ u tenho muita dificuldade com isso”, disse o aluno. “Quer dizer, eu
simplesmente não tenho certeza sobre como resolver isso de forma
confortável”.
“Resolver isso de forma confortável?”, perguntou o professor de Bíblia.
“O que isso tem a ver com a vontade de Deus?”
A fraseologia pode ser nova (“sentir-se confortável” tornou-se
terrivelmente importante), mas não há nada de novo sobre a relutância.
Jesus tornou-a viva em sua parábola do homem que deu um grande jantar.
Quando os convites saíram, as desculpas começaram a chegar: “Eu comprei
algumas terras”. “Estou a caminho para experimentar o meu novo jugo de
bois”. “Acabei de me casar”. 188 Incapazes de resolver as coisas
confortavelmente, eles recusaram o convite.
Os sentimentos, assim como os pensamentos, devem ser levados cativos.
Ninguém cuja primeira preocupação é sentir-se bem pode ser um discípulo.
Somos chamados a carregar uma cruz e a glorificar a Deus. P. T. Forsyth
observa que a fraqueza de muita religião popular se deve ao fato de termos
virado ao contrário um dos princípios básicos de nossa fé, fazendo com que
“o fim principal de Deus seja glorificar o homem”. As pessoas estão agindo
por sugestão, e não por autoridade. Anos atrás, sete homens de Oxford
escreveram um livro chamado Foundations [Fundamentos], que era uma
tentativa de permitir que todo cristão acreditasse naquilo de que gostasse.
Ronald Knox disse: “Eles corrigiram o ‘eu creio’ para ‘eu sinto que’”.
A história de Daniel fornece uma forte lição sobre a vitória de uma
vontade dirigida por Deus sobre as emoções naturais. Daniel recebeu visão,
percepção e profecia, mas sua compreensão veio a um tremendo custo. Ele
teve de ser humilhado. O processo começou, como notamos anteriormente,
por sua própria determinação de não se contaminar com a rica dieta do rei.
Uma determinação não é um humor. A palavra não descreve os efeitos das
circunstâncias sobre a psique. Não tem nada a ver com sentir-se
confortável. É uma decisão da vontade, realizada sem levar em conta as
emoções. Em jejum, segundo um hino latino do século VI, “Daniel treinou
sua visão mística”.
Por causa do desempenho superior do dever, Daniel foi objeto de grande
ódio e inveja. Seus rivais traçaram um plano para que ele fosse morto.
Podemos adivinhar os sentimentos que ele experimentou enquanto sentia o
ódio daqueles homens, enfrentava as possíveis consequências, tomava a
decisão de vida ou morte de continuar suas orações ao seu Deus (“Não
espere pelo desejo antes de realizar um ato virtuoso, pois razão e
compreensão são suficientes”, escreveu São João da Cruz), era apreendido,
levado perante o rei e sentenciado. Imagine aquela noite com os leões.
Imagine ouvir a voz do rei aterrorizado enquanto ele chegava, tremendo, à
cova na manhã seguinte e gritava: “Daniel, servo do Deus vivo! Dar-se-ia o
caso que o teu Deus, a quem tu continuamente serves, tenha podido livrar-te
dos leões?”
“Assim, foi tirado Daniel da cova, e nenhum dano se achou nele, porque
crera no seu Deus”. 189
Daniel pagou um alto preço pelas revelações divinas que lhe foram
dadas. Não foi um alto nível emocional que ele experimentou. Na verdade,
ele escreveu que o espírito dentro de si estava “alarmado” e perturbado pela
visão; “os meus pensamentos muito me perturbaram, e o meu rosto se
empalideceu” [...]. “Havendo eu, Daniel, tido a visão, procurei entendê-la
[...], “fiquei amedrontado [...], enfraqueci e estive enfermo alguns dias;
então, me levantei e tratei dos negócios do rei”. 190
“Alma perturbada, tu não és obrigada a sentir, mas és obrigada a se
levantar”, escreveu George MacDonald. 191
O relato prossegue. Quando uma profecia a respeito dos reis da Pérsia foi
dada a ele:
Custou-lhe muito trabalho entender a visão [...] Fiquei, pois, eu só [...] e não restou força
em mim; o meu rosto mudou de cor e se desfigurou, e não retive força alguma [...]caí sem
sentidos, rosto em terra. Eis que certa mão me tocou, sacudiu-me e me pôs sobre os meus
joelhos e as palmas das minhas mãos. Ele me disse: “Daniel, homem muito amado, está
atento às palavras que te vou dizer; levanta-te sobre os pés, porque eis que te sou enviado”
[...] eu me pus em pé, tremendo [...] dirigi o olhar para a terra e calei. 192

Daniel abriu a boca para falar, mas a força lhe faltou; não ficou nenhum
fôlego dentro dele.
“Não tenha medo, homem muito amado; tudo ficará bem com você. Sê
forte, sê forte”, foi a palavra do anjo para ele.
Existe um quadro mais vívido e poderoso em toda a Escritura de um
homem, completamente humano, atormentado por paixões e medos; um
homem de emoções profundas e perturbadoras que ainda se apegou
fielmente a seu Deus e agiu por ele apesar da inclinação natural? Somente a
imagem do próprio Cristo, o servo perfeito, supera a de Daniel. Está claro
na história de Daniel que a compreensão não é barata e que as respostas à
oração devem ser processadas, muitas vezes durante um longo período de
tempo, exigindo uma resistência firme. Vale a pena parar um momento para
refletir sobre o que o anjo disse. Não foi “eu sei como você se sente”, ou
“você realmente teve uma vida dura, meu velho”, mas “não tenha medo.
Seja forte”. O anjo o lembrou de duas coisas que são verdadeiras para o
resto de nós: ele era muito amado e tudo ficaria bem. Da próxima vez que
nossos sentimentos parecerem estar prestes a nos afogar, podemos pensar
nessas coisas e ser fortes.
Minha amiga Katherine Morgan, de Pasto, Colômbia, escreveu:

Quando se pensa e usa o braço da fé para apoiar o próprio pensamento, então as obras de fé
são produzidas. Concordo com você que os sentimentos não são confiáveis. O pensamento
humano também não é digno de confiança, mas a fé, que nos faz pensar em direção ao céu,
é produtiva, assim como a experiência de Ezequiel quando Deus lhe disse que sua esposa
iria morrer. Ele fez o que lhe foi ordenado. Eu acho que você e eu tivemos essa experiência.
Nossos sentimentos eram propícios à dúvida quanto às razões pelas quais nossos maridos
foram levados, mas sabíamos, por dentro, que tínhamos que fazer o que o Senhor nos
ordenara. Em minha opinião, não havia nenhuma virtude particular no que fizemos.
Tínhamos recebido nossas ordens, e tínhamos que nos agarrar a elas e levar nossos
sentimentos no bolso. Muitas vezes, meus sentimentos teriam me levado a jogar a toalha
aqui em Pasto. Eu “sentia” que as pessoas não eram responsivas e estavam desinteressadas,
e que o esforço era infrutífero. Eu “senti” tudo, menos o desejo de ficar aqui e trabalhar. No
entanto, o plano de Deus tem que ser realizado. Essa é uma lição difícil de aprender, e
muitas vezes leva uma vida inteira. Mas é preciso ter a convicção de que Deus falou e
depois é preciso se ocupar e executar o comando.

Eu vi como Katherine faz isso. Sua casa é um refúgio para uma


surpreendente variedade de pessoas. Nunca há um momento em que ela não
esteja dando abrigo, ajuda, comida, cuidados, conselhos, atenção, dinheiro,
roupas e o que mais for necessário para doentes, loucos, pobres e até
mesmo criminosos. Eles percorrem um caminho batido até a porta dela.
Todos em Pasto conhecem a Señora Catalina. Todos que não sabem para
onde mais recorrer, recorrem a ela.

“Missões” sempre significou, pelo menos na conotação cristã desse termo, não apenas o
esforço para converter alguém à verdadeira fé, mas também a disposição espiritual do
missionário: sua caridade ativa e sua doação ao “objeto” de sua tarefa missionária. De São
Paulo a São Nicolau do Japão, não houve missão sem autoidentificação do missionário com
aqueles a quem Deus os enviou, sem sacrifício de seus apegos pessoais e de seus valores
naturais. 193

Tenho certeza de que Katherine Morgan valoriza tanto a privacidade e o


sossego quanto eu. Elas estão entre as muitas coisas das quais Katherine
renunciou alegremente. Digo isso porque ela nunca fala sobre essa renúncia
como um sacrifício, nunca faz muito caso disso, o faz como uma questão
natural, dia após dia, ano extenuante após ano extenuante. Ela não se
preocupa em consultar seus sentimentos sobre o assunto.
As pessoas que fazem o trabalho real para Deus são, no entanto, pessoas
com sentimentos reais. Em certa ocasião, durante a reconstrução do muro
de Jerusalém, o povo comum levantou um grande alvoroço contra seus
companheiros judeus sobre seus métodos de levantar dinheiro para comprar
comida e pagar impostos. “Fiquei muito irritado quando ouvi o clamor
deles e a história que eles contaram”, disse Neemias. “Eu dominei meus
sentimentos e raciocinei com os nobres e magistrados. Eu disse: ‘O que
vocês estão fazendo é errado’”. 194 Note que dominar seus sentimentos não
significava sorrir docemente e dizer “Está tudo bem. Vocês estão bem”.
De fato, o povo tinha feito mal em aceitar pessoas como penhoras de
dívidas, e a ira de Neemias era justificada. Mas o calor gerado não
contribuiria em nada para sua edificação. A ira precisava ser resfriada antes
que ele pudesse raciocinar com os nobres e magistrados. Ele viu claramente
qual era a questão, apesar dos argumentos a favor da prática, e declarou que
ela estava errada.
A mente moderna confunde facilmente emoções e fatos. Se isso lhe
trouxer uma sensação boa, faça-o! O que é bom, geralmente se supõe, deve
nos fazer sentir bem. Por exemplo, se for a vontade de Deus, nós nos
sentiremos bem com isso. Esse, porém, nem sempre é o caso. Jonas não
tinha bons sentimentos em relação a ir a Nínive. Ele preferiu Jope e
começou a ir nessa direção, para sua própria tristeza e a de seus
companheiros de navio.
O apóstolo Paulo, que parece para muitos de nós o homem da Bíblia que
mais controla seus sentimentos, teve que lembrar à multidão que ele ainda
tinha sentimentos. Foi em Listra, quando ele havia ordenado a um aleijado
que ficasse de pé, e o homem o fez. Isso convenceu as multidões de que os
deuses tinham descido em forma humana. Eles chamaram Paulo e Barnabé
de Mercúrio e Júpiter e estavam preparados para oferecer sacrifícios a eles.
“Senhores, por que fazeis isto?”, gritou o apóstolo. “Nós também somos
homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos”. 195
Elias era um homem com sentimentos, assim como todos nós, mas
quando ele orou sinceramente para que não chovesse, “não choveu sobre a
terra durante três anos e meio”. 196
Não há nada na Bíblia que sugira que as pessoas verdadeiramente santas
são aquelas sem sentimentos. O contrário é verdadeiro. Jesus era
plenamente homem e totalmente sujeito às tentações humanas. Ele mostrou
sentimentos profundos e ternos (tomando bebês em seus braços, chorando
por Jerusalém e por seu amigo Lázaro), ira poderosa (quando virou as
mesas dos cambistas de cabeça para baixo e os expulsou do templo com um
chicote), e antes de seu verdadeiro sofrimento físico no momento da
crucificação, ele estava em angústia de alma tanto na mesa da ceia quanto
mais tarde, no Getsêmani. No entanto, ele seguiu a rota. Seu rosto estava
“como uma dura rocha” 197 para fazer a vontade de seu Pai, e nenhum
sentimento humano, por mais esmagador que tenha sido, o dissuadiu.
Thomas Merton escreveu que em Jesus vemos “uma suprema harmonia
entre os sentimentos humanos bem ordenados e as exigências de uma
natureza e personalidade divinas”. 198
Devemos ser meras vítimas de nossos sentimentos, como barcos à deriva
sem vela, sem leme ou âncora? Será que realmente estamos à mercê deles?
Se nos sentimos bem, nós o fazemos; se não, nós não o fazemos. É assim
que o discípulo está destinado a viver? Isso é disciplina?
A carta de Judas fala de pessoas que vivem de acordo com seus
sentimentos. Judas encoraja os verdadeiros cristãos a lutarem de verdade
contra o que essas pessoas, as quais entraram furtivamente na igreja,
representam: “Homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça
de nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”. 199
A carta pinta um quadro de pessoas que vivem da fantasia e do apetite,
mostrando desprezo pela autoridade e prontas para zombar de qualquer
coisa que não venha naturalmente. Vivem por instinto, como bestas
irracionais, como nuvens impulsionadas por um vento, árvores sem frutos,
ondas furiosas do mar, produzindo apenas “a espuma de seus próprios atos
vergonhosos”, como estrelas que não seguem nenhuma órbita, sempre
tentando moldar a vida por seus próprios desejos. Elas são guiadas pela
emoção e nunca pelo Espírito de Deus.
Isso aponta para o contraste diametral entre os dois reinos: aquele onde é
feita a minha vontade e aquele onde é feita a vontade de Deus. Um que é a
escuridão e o outro que é a luz. E isso aponta para uma escolha. Se eu
insisto em moldar minha vida de acordo com meu próprio desejo, para que
eu possa sempre me sentir confortável, eu estou, por essa insistência,
negando o Senhor. Não estou reconhecendo o único mestre, Jesus Cristo,
meu Senhor.
Paulo explica exatamente o que é a natureza inferior. É tudo o que é
contra Deus. “A mentalidade da natureza humana é sempre inimiga de
Deus”. 200 “Porque a carne milita contra o Espírito”. 201 Ela é caracterizada
por coisas como fornicação, impureza e indecência, idolatria e feitiçaria,
brigas, um temperamento contencioso, inveja, acessos de ira, ambições
egoístas, dissensões, intrigas partidárias e ciúmes. Podemos afirmar, com
toda razão, que certamente não somos culpados dos três primeiros, até nos
lembrarmos das palavras de Jesus que dizem que se alguém apenas olhar
cobiçosamente já cometeu adultério em seu coração. Podemos descartar os
dois próximos da lista, até lembrarmos das palavras de Samuel:

Porque a rebelião [contra Deus] é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a


idolatria. 202

A maioria de nós admitirá que não há dúvida de que somos culpados do


resto dos pecados da lista. Os sentimentos desempenham um forte papel em
cada um deles. “Pois nós também, outrora, éramos [...] escravos de toda
sorte de paixões e prazeres”, 203 é a descrição de Paulo de como todos nós
éramos.
O que devemos fazer? Aceitar a ideia atual de que devemos “seguir
nossos sentimentos” e se não o fizermos não estaremos sendo “honestos”?
Quantos divórcios são “justificados” por esse motivo? Quantos
comentários desagradáveis?
Como em todas as outras perguntas, levemos esse pensamento às
Escrituras. Não temos nenhuma outra norma. Se há uma palavra dita,
devemos ouvi-la e fazê-la.
“Portanto, irmãos, vocês não têm de fazer o que sua natureza humana
lhes pede, porque, se viverem de acordo com as exigências dela, morrerão.
Se, contudo, pelo poder do Espírito, fizerem morrer as obras do corpo,
viverão”. 204
O mundo diz: “Siga seus sentimentos e seja honesto”. A Bíblia diz:
“Siga seus sentimentos e morra”.
O mundo diz: “Negue seus sentimentos e você está morto”. A Bíblia diz:
“Se, contudo, pelo poder do Espírito, fizerem morrer as obras do corpo,
viverão”.
“Não deveis deixar-vos afligir”, disse Jesus a seus discípulos quando ele
estava prestes a deixá-los. Certamente, seria muito natural sentir uma
profunda angústia em relação à partida dele. “Não se deixem ceder”, disse-
lhes Jesus.
“Alegrai-vos no Senhor [...] é segurança para vós outros”, 205 escreveu
Paulo de suas correntes da prisão.
“Quem ajuda os outros, que ajude com alegria”. 206
De Ezequias, que se tornou rei de Judá aos 25 anos de idade, diz-se que
ele colocou sua confiança no Senhor. Isso soa bastante deliberado. Como
resultado dessa escolha, não havia ninguém como ele entre todos os reis de
Judá; ele permaneceu leal ao Senhor; ele não falhou em sua vassalagem a
Deus; ele guardou os mandamentos: “Assim, o SENHOR estava com ele, e ele
teve êxito em todos os seus empreendimentos”. 207 Se houvesse algum
repórter por perto para empurrar um microfone em seu rosto e perguntar
como ele se sentia sobre seu papel, duvido que Ezequias tivesse tido uma
resposta pronta. Sua preocupação estava em outro lugar.
Mozart, ao contrário de muitos músicos modernos, nunca usou a música
para falar de si mesmo, de sua situação ou de seu humor. Em 1781, ele
escreveu: “As emoções, fortes ou não, nunca devem ser expressas ad
nauseam , e a música nunca deve ofender os ouvidos, mas deve agradá-los”.
Que tipo de coisas caracterizará a vida de quem obedece ao Espírito?
“Amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio”. 208
Observe que o domínio próprio é um dos frutos do Espírito. Eis aqui
novamente a evidência da responsabilidade do homem de cooperar com
Deus na obra dele. Não é tudo “controle do Espírito”. O domínio próprio é
essencial. O homem que aceitou o governo do Espírito em sua vida, aceitará
a disciplina espiritual. Ao aceitar a disciplina de seu Mestre, ele se
disciplinará voluntariamente. Isso é tanto um sinal de maturidade espiritual
quanto um sinal de maturidade emocional. Tanto pais quanto filhos devem
sofrer no processo de treinamento do filho, porque a punição algumas vezes
torna-se uma parte necessária desse processo. Portanto, é uma grande
alegria e uma grande libertação quando o pai vê o filho finalmente
aceitando a responsabilidade e disciplinando a si mesmo. Ele está
começando a amadurecer. Nosso Pai do céu deve ficar contente quando seu
filho aprende a se controlar e a não ter que ser contido com mordaça e freio.
É a vontade que deve lidar com os sentimentos. A vontade deve triunfar
sobre eles, mas somente a vontade que se rende a Cristo é capaz de fazer
isso.
Uma jovem mulher se aproximou de mim após uma palestra que eu
havia dado sobre a disciplina dos sentimentos. Ela estava muito intrigada.
“Sra. Elliot, parece que você realmente entendeu tudo. Quero dizer, você
é forte e tudo mais, sabe? Mas você deve ter tido alguns sentimentos
realmente profundos algum dia, não é mesmo? O que eu não entendo é,
como você se livrou deles?”
Ai de mim. Teria eu falhado em explicar que não estava falando em me
livrar dos sentimentos? Será que ela pensou que eu havia alcançado algum
plano espiritual elevado, onde apenas a mente e o espírito operavam e os
sentimentos estavam extintos? Voltei a repetir: enquanto vivermos no
“corpo desta morte”, lutaremos contra a natureza humana, contra aquilo que
está sempre em guerra com Deus. O “mal que eu não quero” ainda está lá.
Os sentimentos são fortes, sejam eles bons ou maus. Às vezes, eles ajudam;
às vezes, dificultam. É a disciplina que estamos discutindo. Se estamos
falando de disciplinar um cavalo de corrida ou um filho, não estamos
falando de nos livrarmos de nenhum dos dois, mas sim de colocá-los sob
controle.
As escolhas serão continuamente necessárias e — não nos esqueçamos
— possíveis . A obediência a Deus é sempre possível. É um erro mortal cair
na noção de que quando os sentimentos são extremamente fortes, nós não
podemos agir sobre eles.
Foi a vontade de Jesus que triunfou no Getsêmani e depois na cruz.
Vemos evidências dos sentimentos quase dominadores que ele
experimentou como ser humano quando seu suor caiu como grandes gotas
de sangue e ele bradou: “Se possível, passe de mim este cálice”; depois,
quando ele estava com sede na cruz; e, finalmente, quando ele deu um
grande grito. A força da vontade de Jesus é provada na vontade dele contra
si mesmo, ou seja, em sua oração “Não seja feita a minha vontade, mas a
tua”. Havia uma tremenda batalha sendo travada entre sua resposta humana
natural ao que estava acontecendo e seu desejo absoluto de fazer a vontade
do Pai. Ele tinha vindo à terra expressamente para fazer essa vontade. Seu
propósito era simples. Entretanto, realizá-lo não foi fácil. Ele não podia
“sentir-se confortável” com isso. Mas ele o fez. Isso é o que importa. Ele
fez. Ele foi “entregue por causa das nossas transgressões”. 209
É uma grande tentação olhar para experiências espirituais especiais como
um teste de santidade. Sentir-se levado pelo Espírito, exibir certas
manifestações incomuns ou ficar entusiasmado com a súbita exaltação na
oração ou o sucesso em algum esforço particular feito para Deus são,
muitas vezes, tomados como prova positiva de que estamos, finalmente, na
perspectiva correta.
Hannah Whitall Smith, em seu livro Religious Fanaticism [Fanatismo
religioso], escreve: “Um apego contínuo e tranquilo da vontade humana à
vontade de Deus e um descanso pacífico em seu amor e cuidado têm um
valor infinitamente maior na vida religiosa do que as emoções mais intensas
ou as experiências mais maravilhosas que já foram conhecidas pelo maior
místico de todos”.
Aqueles que insistem em tais sinais invariavelmente dividem
comunidades e chamam a atenção para si mesmos, não para Cristo 210 . É ele
quem deve ser exaltado, não os nossos sentimentos. Nós o conheceremos
pela obediência, e não pelas emoções. Nosso amor será demonstrado pela
obediência, e não pelo quanto nos sentimos bem sobre Deus em um dado
momento. “E o amor é este: que andemos segundo os seus mandamentos”.
211

“Você me ama?”, Jesus perguntou a Pedro. “Apascente os meus


cordeiros”. Ele não perguntou: “O que você sente por mim?”, pois o amor
não é um sentimento. Ele estava pedindo ação.
Temos a opção, dia após dia, de escolher o bem e recusar o mal. Os
sentimentos, em geral, não nos ajudarão muito. Embora o impulso não seja
invariavelmente mau, a escolha, na maioria das vezes, será entre o princípio
e o impulso. O que eu deveria fazer e o que eu sinto vontade de fazer
raramente são a mesma coisa. “Porque não faço o bem que eu quero, mas o
mal que não quero, esse faço”, 212 escreveu Paulo. Essa é uma descrição
desarmadoramente precisa do que cada cristão experimenta. Paulo não
ficou satisfeito com isso, mas foi honesto acerca do assunto — honesto o
suficiente para registrá-lo em uma carta. Enquanto estivermos nessa espiral
mortal, experimentaremos o fracasso, faremos escolhas erradas. Mas o
mandamento permanece. “Sede santos”. Sejamos honestos em reconhecer
os sentimentos e honestos o suficiente para rejeitá-los quando eles
estiverem errados.

Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que
vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo. Como filhos da obediência, não vos
amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância; pelo contrário, segundo
é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso
procedimento. 213

Mais à frente na mesma epístola, Pedro é extremamente direto em nos


dizer exatamente o tipo de ação que é necessária se quisermos exercitar o
domínio próprio e ser santos:
• Abstenham-se das paixões carnais;
• Sujeitem-se a toda instituição humana por causa do Senhor;
• Aceitem a autoridade;
• Sejam um em pensamento e em sentimentos (impossível se ambos não
forem trazidos à obediência);
• Sejam fraternalmente amigos (mesmo se eu não sentir vontade?);
• Sejam misericordiosos e humildes;
• Retribuam com bênção.
Não muito tempo atrás, uma jovem em um retiro contou uma longa
história de como ela tinha vindo a conhecer o Senhor, se rebelado contra
ele, ido para longe, havia sido trazida de volta, se rebelado novamente e,
então, em misericórdia e graça, o Senhor a perdoou, dando-lhe um marido
cristão e felicidade. Ele era um patrulheiro de estrada e, certo dia,
atendendo a um acidente de trânsito, foi atingido por um carro que passava
e ficou gravemente ferido. A própria Gwenn estava de cama na época, com
uma ameaça de aborto espontâneo. Três dias depois, ele morreu. Nessa
mesma tarde, o pai dela morreu e, seis dias depois, ela perdeu seu bebê.
Gwenn contou sua história tranquilamente, sem lágrimas, embora todas as
outras pessoas estivessem chorando. Ela terminou dizendo que encontrou,
no leito de morte de seu marido, o que ela procurava há tanto tempo: a
presença graciosa do próprio Cristo.
Em uma carta enviada a mim, ela escreveu:
Cerca de uma semana após o retiro, meu telefone tocou. Foi a esposa do homem que
atropelou meu marido. Ela disse que teve que ligar porque sua cunhada acabara de ligar
para ela, tendo chegado em casa de um estudo bíblico onde uma mulher compartilhou um
pouco do que eu disse naquela manhã no retiro. Ela literalmente me implorou, se houvesse
qualquer inclinação para isso, para que, de alguma forma, eu comunicasse ao marido dela as
coisas que eu havia dito, porque ele se sentia muito culpado e incapaz de perdoar a si
mesmo. Quando desliguei o telefone, eu estava tremendo e corri para dentro, caí ao lado da
minha cama e chorei, sabendo, acho eu, que tal coisa só pode ser realizada por Deus dentro
de mim — pois é como ser esticada muito além de quem sou. Agarrar-se à minha dor,
desprezando sua fonte, é muito mais fácil, porque é muito mais natural. Mas, como disse
um amigo, meu perdão e a expressão desse perdão diretamente por meio de uma carta ou de
uma visita poderia, muito possivelmente, conter a chave, a única chave, capaz libertar
aquele homem de sua prisão [...]. E essa pode muito bem ser a única área com a qual não
lidei e que pode resultar na conclusão da cura dentro de mim. Meu amigo salientou que,
como filha de Deus, eu realmente não tenho escolha. A pergunta irritante — “Por que,
Deus, é requerido de mim que eu perdoe tanto?” — não precisa ser respondida [...].
Louvado seja Deus por sua maravilhosa graça que nos leva aonde nunca pensamos que
poderíamos ir!

Algumas palavras finais de advertência:


Não ridicularize os sentimentos como só sentimentos. Lembre-se de que
eles nos são dados como parte de nossa humanidade. Não tente se fortificar
contra as emoções. Reconheça-as; nomeie-as, se isso ajudar; e depois as
deposite diante do Senhor para que ele treine suas reações. A disciplina das
emoções é o treinamento das reações.
Nenhum argumento a favor da disciplina fornecerá o poder para
disciplinar. Aquele que convoca é Aquele que dá poder. Ele é o Mestre. Ao
nos entregarmos ao seu governo, ele nos dá a graça de governar.
São Francisco de Sales coloca isso da seguinte maneira: “Não somos
mestres do nosso próprio sentimento, mas, pela graça de Deus, somos
mestres de nosso consentimento”.
Tente. Quando, diante da poderosa tentação de fazer o mal, houver a
rápida e dura renúncia — eu não vou —, ela será seguida pela súbita perda
dos laços do eu, pelo sim a Deus que deixa entrar a luz do sol e que nos põe
a cantar, e que coloca todos os sinos da liberdade ressoando de alegria.
Ver Lucas 14.16-20.
Daniel 6.20, 23.
Daniel 7.15, 28; 8.15, 17, 27.
George MacDonald, Unspoken Sermons (London: Longman’s, Green & Co., 1906).
Daniel 10.1, tradução livre da versão New English Bible (NEB); 8-12, 15.
Alexander Schmemann, Church, World, Mission (Crestwood, NY: St. Vladimir’s, 1979), 124.
Neemias 5.6-7,9; tradução livre da versão NEB.
Atos 14.15.
Tiago 5.17, NVI.
Isaías 50.7.
Thomas Merton, Introdução de Councils of Light and Love, por Saint John of the Cross . New
York: Paulist Press, 1977.
Judas 4.
Romanos 8.7, NVT.
Gálatas 5.17.
1 Samuel 15.23.
Tito 3.3.
Romanos 8.12-13, NVT.
Filipenses 3.1.
Romanos 12.8, NTLH.
2 Reis 18.7, NAA.
Gálatas 5.22.
Romanos 4.25.
Ver Judas 19.
2 João 6.
Romanos 7.19, NAA.
1 Pedro 1.13-15.
14 | Troca: minha vida pela dele

É
meu grande prazer nesses dias observar o crescimento e a
aprendizagem de um menino de quatro anos e de sua irmã de dois.
O clima do lar deles é de amor, o que significa que às vezes o sol
brilha e às vezes o tempo está nublado. Há muita risada, leitura de histórias,
jogos, pipoca junto ao fogo, carinho, cadeira de balanço e canto de hinos.
Há também disciplinas físicas ocasionais. Uma mãe e um pai que amam
seus filhos não podem permitir que eles sigam seus próprios caminhos. Eles
desejam para seus filhos liberdade e alegria, coisas que nenhum ser humano
caído pode encontrar sem instrução, exemplo e correção (“Bem-
aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o
coração” 214 ). Quando os filhos se rendem de bom grado às instruções dos
pais, o clima é ensolarado para todos. Quando eles se recusam, as nuvens de
tempestade se acumulam. O mesmo menino e a mesma menina avidamente
consentem à sugestão de uma história ou de um pouco de pipoca. Eles não
estão tão ansiosos para recolher os brinquedos ou comer brócolis. Se ao
menos os pais pudessem fazê-los ver que o propósito em todas essas coisas
é a felicidade final e a plenitude dos filhos... Eles os amam o suficiente para
dizer não à maioria dos programas de televisão, não para ficarem acordados
até tarde, como alguns de seus amigos, não para comer porcarias. Seus pais
os amam o suficiente para exigir uma hora de solitude e tranquilidade para
cada criança a cada tarde. Eles os amam o suficiente para ficarem de braços
cruzados enquanto as crianças aprendem a fazer coisas sozinhas; coisas que
os pais são fortemente tentados a fazer por eles. Eles os amam o suficiente
para permitir que, quando o crescimento em sabedoria e a independência o
exigem, os filhos sejam feridos, tenham dificuldade e, às vezes, até mesmo
falhem.
“Disciplina é o mesmo que punição?”, perguntou-me uma jovem mulher.
Ela ficou perturbada com a ideia de que Deus queria “vingar-se”. Eu lhe dei
1 Coríntios 11:32: “Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo
Senhor, para não sermos condenados com o mundo”. A “punição” de Deus
sobre seus filhos nunca é uma retribuição, mas sim uma correção. Sabemos
que somos realmente seus amados filhos e filhas, compartilhando a
disciplina da qual todos compartilhamos — para um alto propósito, a saber,
que um dia possamos compartilhar da santidade dele, “obter vida”. 215
A história de Jonas ilustra poderosamente a tolice de dizer não ao nosso
Pai que está nos céus. Ele pensou que poderia escapar de fazer o que Deus
pediu. Em vez de ir para Nínive como ordenado, pegou um navio para
Tarsis, pensando que estava “fora do alcance do Senhor”. Uma decisão
como essa está fadada a resultar em uma tempestade de uma espécie ou de
outra, e no caso de Jonas foi um furacão, literalmente. Pense nos problemas
dos quais ele poderia ter sido salvo se tivesse obedecido — a tempestade, o
horror de ser jogado para fora do barco, as mandíbulas do grande peixe que
se aproximava, vindo do fundo escuro do mar, o trauma de ver-se de fato
engolido, e três dias inimaginavelmente terríveis dentro do estômago da
criatura. Mas foi o Amor Inexorável que o seguiu, mesmo naquela
escuridão. Foi, de fato, o amor de Deus que ordenou aquele estranho meio
de salvamento para seu profeta voluntarioso, o que o próprio profeta veio a
reconhecer na oração que fez de dentro da barriga do peixe:

As águas me cercaram até à alma,


o abismo me rodeou;
e as algas se enrolaram na minha cabeça [...].
Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma,
eu me lembrei do SENHOR ;
e subiu a ti a minha oração,
no teu santo templo. 216
Então o Senhor falou com os peixes, os peixes vomitaram Jonas e ele foi
salvo. Quando Deus lhe deu uma segunda chance, ele não perdeu tempo.
“Vá para Nínive”. Jonas foi imediatamente. Certamente ele foi mais sábio
agora. Quanto mais feliz ele poderia ter ficado se sua primeira resposta
tivesse sido a do salmista: “Admiráveis são os teus testemunhos; por isso, a
minha alma os observa”. 217
O objetivo de todo verdadeiro discípulo é agradar o seu Deus. A Bíblia é
o nosso guia, mostrando-nos como fazer isso.
Cozinhar é um grande prazer para mim. Eu adoro cozinhar boa comida
para pessoas com bom apetite. A maior parte do que cozinho, faço sem
receitas, porque são coisas simples que já fiz muitas vezes. Mas, de vez em
quando, tenho tempo para fazer algo maravilhoso, e fico feliz em recorrer a
uma autoridade que possa me dizer como fazer. Se é uma massa choux que
eu preciso para os profiteroles, eu não invento a receita à medida que vou
avançando, escolhendo jogar duas xícaras de farinha em água fervente antes
de adicionar a manteiga. Não seria uma massa choux afinal. Seria uma
bagunça.
O objetivo da cozinheira — uma sobremesa perfeita — não será
alcançado sem que ela primeiro desista de seu “direito” de fazê-lo à sua
maneira, depois estude o livro e faça exatamente o que ele diz. Quando sou
a cozinheira, eu me rendo fácil e felizmente a uma receita de massas de M.
F. K. Fisher. Acredito na palavra dela de que, se eu fizer isso, terei aquilo.
Por que então, em vez de tomar como certa a palavra de Cristo,
preferimos argumentar (“é muito difícil, muito restritivo, isso não é coisa
pra mim”), para reivindicarmos nossos “direitos”, para nos viramos por
conta própria? Dessa forma, o paraíso se perdeu. É o mesmo inimigo que
vem até nós hoje com a mesma mentira (“você não morrerá, mas viverá”).
No entanto, Jesus ainda chama fielmente à vida e para dar felicidade
àqueles que seguirem seu caminho. É verdade, é o caminho da cruz, mas
somente esse caminho leva à ressurreição. Ele oferece uma troca: a vida
dele pela nossa. Ele nos mostrou o que quis dizer ao se doar. O fato
avassalador da obediência do Filho ao Pai — o próprio inferno atormentado
pela Infinita Majestade — não nos chama muito mais para longe de nós
mesmos, muito além da busca lamentável, calculista, covarde, egoísta,
autointeressada daquilo que o mundo chama de felicidade?
Ele nos oferece amor, aceitação, perdão, um peso de glória, plenitude de
alegria. É tão difícil oferecer de volta os presentes que, em primeiro lugar,
vieram das mãos feridas — corpo, mente, posição, tempo, posses, trabalho,
sentimentos?
É claro que não esgotamos a lista de coisas que devem se render.
Incluímos apenas uma amostra como forma de ajudar a perceber o princípio
da auto-oferta que funciona da seguinte forma:
• Se sofrermos com Cristo, reinaremos com ele;
• Se um grão de trigo morre, ele produz frutos;
• Se renunciarmos ao nosso luto, Deus nos dá uma veste de louvor;
• Se trouxermos nossos pecados, ele os substitui por um manto de justiça;
• A alegria não vem apesar da tristeza, mas por causa dela.
Quando a disciplina se torna uma rendição alegre, “pelo sofrimento,
nosso corpo continua a participar da morte de Jesus, para que a vida de
Jesus também se manifeste em nosso corpo”. 218
Salmos 119.2.
Hebreus 12.9, NVT.
Jonas 2.5,7.
Salmos 119.129.
2 Coríntios 4.10, NVT.
O Ministério Fiel visa apoiar a igreja de Deus, fornecendo conteúdo fiel
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