Um Vida de Obediência
Um Vida de Obediência
Um Vida de Obediência
C
edo pela manhã, sento-me em um assento de janela em uma bela
cabana de pedra no topo de uma colina remota no sul do Texas. É
primavera. Não há telefone ou televisão e nenhum ser humano à
vista ou no alcance do som, exceto meu marido, Lars, que está lendo no
sótão. O silêncio é total, exceto pela tagarelice dos esquilos e pelos apelos
dos pássaros — cardeais-do-norte, gaios-do-mato, um pintassilgo, um peru
selvagem e um chapim de crista —, alguns dos quais nos permitiram vê-los
no comedouro ou nos deram vislumbres enquanto passavam rapidamente
por entre os carvalhos vivos e zimbros nodosos que nos rodeiam
completamente.
Do bosque sombreado de árvores, sai uma ovelha solitária. Ela caminha
delicadamente entre pedras afiadas, mordiscando a grama nova, sem se
importar com a chuva suave, que é facilmente derramada por sua lã oleada.
Será que ela está perdida? Onde está o resto do rebanho? Ela parece estar
em paz. Depois de pouco tempo, ela desaparece sobre o cume.
A seguir, vem um porquinho selvagem, um caititu. Ele dá fungadas no
chão, encontrando petiscos aqui e ali, mesmo entre essas rochas. Eu noto
que ele coxeia levemente, favorecendo o casco dianteiro esquerdo, que
parece estar inchado. De repente, ele levanta seu nariz de botão, inclinando-
o como um disco de radar em direção ao comedouro de pássaros, de onde
recebe a notícia de algo comestível. Ele treme por um momento, cheirando
em êxtase, salta brotando do chão em um arco limpo, mas não alto o
suficiente, nem mesmo perto o suficiente do comedouro. Aterrissando
dolorosamente no pé machucado, ele não faz nenhum som de reclamação e
ziguezagueia para dentro das árvores novamente. Eu gostaria de poder
amarrar o casco, confortá-lo de alguma forma. Isso está além do meu poder,
mas eu recorro a outro tipo de socorro, melhor do que qualquer curativo. Eu
oro por ele. “Olha ali o seu porco, Senhor. Por favor, cure a pata dele”. É
possível que ele tenha sido trazido à minha janela essa manhã (o caititu
normalmente é uma criatura noturna tímida) precisamente para ser o objeto
de uma oração.
Quanto mais o indivíduo chega ao centro das coisas, mais capaz ele é de
observar as conexões. Tudo o que foi criado está conectado, pois tudo é
produzido pela mesma mente, pelo mesmo amor, e depende do mesmo
Criador. Aquele que idealizou o universo, o Senhor Deus Onipotente, é
aquele que chamou as estrelas à existência, que ordenou a luz, que falou a
Palavra que trouxe a existência do tempo e do espaço e toda forma de
matéria: sal e pedra, rosa e madeira vermelha, penas e peles, e barbatana e
carne. O chapim de crista e o peru respondem ao Criador. As ovelhas, o
porco e o tentilhão são dele, estão à disposição dele, possuídos e conhecidos
por ele.
Nós também somos criados, pertencemos, somos posse, somos
conhecidos. Somos dependentes, assim como o caititu é dependente.
Conforme olho para a ovelha, tranquila, dependente, encontrando seu
alimento provido pelo Senhor, eu penso em como ele provê para mim
também.
Meu pai foi um ornitólogo amador que, quando jovem, se interessava
pelas aves muito antes da observação de pássaros se tornar um passatempo
popular. Ele andava no bosque e imitava os chamados e os cantos dos
pássaros, muitas vezes os atraindo para perto, nos galhos sobre sua cabeça.
Ele dava palestras, ilustradas com slides coloridos, nas quais falava sobre os
hábitos dos pássaros e imitava lindamente seus cantos. Ele quase sempre
fechava sua palestra com estas palavras:
Será que nós não temos um Pai amoroso assim? É claro que temos.
[...] Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. [...] Todos eles
dirigem seu olhar a ti, esperando que lhes dês o alimento no tempo certo; tu lhes dás, e eles
o recolhem [...]; quando lhes retiras o fôlego, morrem e voltam ao pó. Quando sopras o teu
fôlego, eles são criados [...]. 2
Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês. 3
Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo,
vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? 4
N
enhuma história na Bíblia me capturou mais poderosamente
quando eu era criança do que a história do profeta Eli e do menino
Samuel. Foi no tempo em que “a palavra do SENHOR era mui rara;
as visões não eram frequentes. [...] Samuel ainda não conhecia o SENHOR , e
ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do SENHOR ” 5 . A criança
estava dormindo sozinha no templo, perto da arca de Deus, quando ouviu o
que pensava ser a voz de Eli chamando seu nome. Três vezes ele correu
obedientemente ao seu mestre; três vezes foi-lhe dito que Eli não o havia
chamado. Finalmente, o velho profeta percebeu que era o Senhor e disse ao
menino o que dizer da próxima vez.
“Então, veio o SENHOR , e ali esteve, e chamou como das outras vezes:
Samuel, Samuel! Este respondeu: Fala, porque o teu servo ouve.’” 6
Eu acreditava, quando era muito pequena, que se o Senhor podia chamar
o menino Samuel, ele poderia me chamar. Muitas vezes, eu lhe dizia: “Fala,
Senhor”, esperando que ele viesse encontrar-me como havia feito com
Samuel. Claro que eu esperava uma voz audível, uma luz na sala, a mão do
Senhor pousando palpavelmente sobre a minha. O Senhor, no entanto, não
deu esse tipo de resposta, mas a Palavra dele veio até mim de mil maneiras,
começando com o fiel ensinamento bíblico que meus pais me deram e
continuando através dos anos, linha após linha, preceito após preceito, um
pouco aqui e um pouco ali.
Sempre há, nas grandes biografias da Bíblia, um senso do homem sendo
confrontado por Deus. A Bíblia é, de fato, um livro sobre Deus e os homens
— Deus conhecendo e chamando os homens, e os homens respondendo e
conhecendo a Deus.
Deus abençoou Adão e Eva e imediatamente deu-lhes a responsabilidade
de serem fiéis, de governarem a terra e tudo o que nela existe. Houve vários
intercâmbios entre Deus e Adão antes que ele e Eva decidissem
desobedecer-lhe. Quando o fizeram, mesmo que tenha sido ideia de Eva
comer o fruto proibido, foi Adão quem foi convocado: “Onde você está?”
Adão deu desculpas para si mesmo, mas Deus continuou a se dirigir a ele,
fazendo perguntas: “Quem lhe disse?”, “Você comeu?”, “O que você fez?”.
Deus exigia resposta porque ele havia feito uma criatura que era
responsável.
Deus confiou a Noé seu plano de destruir a terra. Ele disse a Noé como
ele e sua família poderiam escapar do julgamento — se eles obedecessem.
“Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança. [...] Assim fez Noé,
consoante a tudo o que Deus lhe ordenara”. 7
Abraão foi escolhido para ser o “pai de muitas nações”. Foi-lhe pedida
obediência estrita, obediência que implicaria o sacrifício de um homem de
75 anos: separação de tudo o que lhe era familiar, desenraizamento do
ambiente confortável, abandono de posses e segurança material. Mas ele
“partiu [...] como lho ordenara o SENHOR ”. 8
Moisés foi outro. Não poderia haver nenhuma dúvida em sua mente de
que ele estava sendo chamado divinamente quando uma voz (talvez a
primeira voz que ele ouvia depois de muito tempo, já que ele estava longe
no deserto, cuidando das ovelhas) falou seu nome de dentro do arbusto que
estava pegando fogo. Moisés respondeu “Eis-me aqui”.
Na vida de Samuel, de Davi, de Jeremias, de Mateus e de Saulo de Tarso,
bem como nas de muitos outros na Bíblia, há evidência de um forte senso
de ser conhecido, de ser adquirido, possuído, chamado, agido sobre. Eles
não foram homens que estavam especialmente preocupados com as
perguntas “Será que Deus está me chamando?” e “Como eu posso ser um
grande servo de Deus?”. Eles não estavam preocupados com o crédito, com
planos para a notoriedade ou o sucesso. Quaisquer que fossem os planos
que eles tivessem, Deus tinha a precedência.
Quando criança em um lar cristão, eu ainda não tinha uma compreensão
da palavra disciplina . Eu simplesmente sabia que eu pertencia a pessoas
que me amavam e cuidavam de mim. Isso é dependência. Eles falavam
comigo e eu respondia. Isso é responsabilidade. Eles me davam coisas para
fazer e eu as fazia. Isso é obediência. Isso se soma à disciplina. Em outras
palavras, a totalidade da resposta do crente é disciplina. Enquanto há casos
em que as duas palavras, disciplina e obediência , parecem ser
intercambiáveis, eu estou usando a primeira para compreender a segunda e
sempre pressupondo tanto a dependência quanto a responsabilidade.
Poderíamos dizer que a disciplina é a “carreira” do discípulo. Ela define a
própria forma da vida do discípulo. A obediência , por outro lado, refere-se
à ação específica.
A disciplina é a resposta do crente ao chamado de Deus. É o
reconhecimento não da solução de seus problemas ou do suprimento de
suas necessidades, mas de pertencer a um mestre . Deus se dirige a nós.
Nós somos responsáveis — isto é, devemos dar uma resposta. Podemos
escolher dizer “sim” e, assim, cumprir o glorioso propósito do Criador para
nós, ou podemos dizer “não” e violá-lo. Isso é o que se entende por
responsabilidade moral. Deus nos chama à liberdade, à satisfação e à alegria
— mas nós podemos recusar essas coisas. Em um profundo mistério,
escondido nos propósitos de Deus para o homem antes da fundação do
mundo, está a verdade do livre-arbítrio do homem e da soberania de Deus.
Disto nós sabemos: um Deus que é soberano escolheu criar um homem
capaz de desejar sua própria liberdade e, portanto, capaz de responder ao
chamado.
Jesus, em resposta à vontade do Pai, demonstrou o que significa ser
completamente humano quando tomou sobre si a forma de homem e, ao
fazê-lo, escolheu, de forma voluntária e contente, tanto a dependência
quanto a obediência. A humanidade para nós, assim como para Cristo,
significa tanto dependência quanto obediência.
A relutância por parte de homens e mulheres em reconhecer sua
dependência indefesa é uma violação da nossa “condição de criatura”. A
relutância em ser obediente é uma violação da nossa humanidade. Ambas
são declarações de independência e, sejam elas físicas ou morais, são
essencialmente ateístas. Em ambas, a resposta ao chamado é não.
O adorável hino do bispo Frank Houghton expressa a dependência e a
obediência do Filho ao Pai:
Tu que eras rico em todo o esplendor,
pobre nasceste e foi por amor;
trono trocaste pela manjedoura,
corte brilhante por estrebaria.
E
u sou puxada ou atraída pelo chamado de Cristo, assim como a
terra é puxada pela força da gravidade. É útil lembrar que a mesma
palavra usada para essa força misteriosa também é usada para
significar “seriedade” ou “severidade”. É uma força que atrai para um
centro. Ao responder a essa força e me mover de acordo com ela, não estou
mais sem peso. Eu sou séria, severa, “grave”. A mesma verdade se aplica
tanto ao mundo espiritual quanto ao físico. No espaço, os astronautas
experimentam a miséria de não ter nenhum ponto de referência, nenhuma
força que os atraia para o centro. O esforço de realizar atividades comuns
sem a ajuda dessa atração é, muitas vezes, muito maior do que seria em
condições normais (tente derramar um copo de água, comer um ovo frito ou
girar uma chave de fenda — a água não cairá, o ovo não ficará no garfo, a
chave de fenda não girará: você girará). Onde não há “gravidade moral” –
ou seja, nenhuma força que nos atraia para o centro – há ausência de peso
espiritual. Flutuamos nos sentimentos que nos levarão aonde nunca
quisemos ir; borbulhamos com experiências emocionais que muitas vezes
tomamos por espirituais; e ficamos cheios de orgulho. Em vez de seriedade,
há tolice. Em vez da gravidade, petulância. O sentimentalismo toma o lugar
da teologia. Nosso ponto de referência nunca servirá para manter nossos pés
sobre rochas sólidas, pois nosso ponto de referência, até que respondamos
ao chamado de Deus, somos apenas nós mesmos. Não podemos dizer qual é
o fim. Paulo os chama de tolos que “[medem-se] consigo mesmos e
[comparam-se] consigo mesmos.” 10
Como sabemos que somos chamados? Essa pergunta é feita repetidas
vezes, sendo as respostas muito variadas e confusas. O Novo Testamento
contém muitas expressões do chamado do cristão:
[...] fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor. 12
Chamados à liberdade. 15
Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração. 19
“Ele chamou o povo a si, bem como seus discípulos, e lhes disse:
‘Qualquer um que deseja ser meu seguidor deve deixar o eu para trás; deve
tomar a sua cruz e vir após mim’”. 21 É importante notar que esse chamado
foi emitido tanto ao povo comum quanto aos discípulos. “Qualquer um que
deseja” poderia vir se aceitasse as condições.
Nunca precisamos fazer a pergunta: “Como sei que sou chamado?”.
Antes, devemos perguntar: “Como sei que não sou chamado?”. Somos
obrigados a arriscar, agir, confiar em Deus, fazer um começo. Isso é o que
Jesus sempre pediu àqueles que vinham a ele em busca de qualquer tipo de
ajuda. Às vezes, Jesus pedia que eles contassem seus casos (“O que você
quer que eu faça?”), que afirmassem seus desejos (“Você quer ser curado?”)
e, muitas vezes, que fizessem algo positivo (“Estenda sua mão”) antes que
ele pudesse fazer seu trabalho. Deveria haver evidência de fé, algum tipo de
começo da parte das pessoas. O primeiro passo de fé é seguido por uma
caminhada diária de obediência, e é enquanto continuamos com ele na
Palavra que temos a certeza de que fomos, de fato, chamados e não temos
nada a temer. O medo mais comum do verdadeiro discípulo, eu suponho, é
sua própria indignidade. Quando Paulo escreveu aos coríntios, um grupo de
cristãos que tinha feito algumas trapalhadas terríveis mesmo dentro da
própria igreja, ele, ainda assim, nunca duvidara do chamado daquelas
pessoas, pois elas estavam preparadas para ouvir a Palavra e para serem
guiadas e corrigidas. Não foi a perfeição da fé dos coríntios que convenceu
Paulo de que eles eram chamados. Eles tinham feito um começo. Naquele
início, Paulo encontrou provas de fé: “Tal é a confiança que temos diante de
Deus, por meio de Cristo. Não que possamos reivindicar qualquer coisa
com base em nossos próprios méritos, mas a nossa capacidade vem de
Deus”. 22
Algumas vezes, os jovens me dizem: “Eu simplesmente morrerei se
Deus me chamar para ser um missionário” ou coisas do tipo.
“Maravilhoso!”, eu digo. “Esse é o melhor modo possível de começar.
Você não será de muita utilidade em um campo missionário, a menos que
‘morra’ primeiro”. As condições para o discipulado começam com
“morrer”, e, se você der o primeiro passo, muito provavelmente descobrirá
que foi, de fato, “chamado”.
Tanto o desejo como a convicção desempenham um papel na vocação.
Muitas vezes o desejo vem em primeiro lugar. Pode haver uma inclinação
natural, ou um interesse despertado por informações, ou talvez um anseio
inexplicável. Se esses sentimentos, às vezes enganosos, são oferecidos ao
Mestre e submetidos ao teste da sua Palavra, eles serão confirmados por
vários meios e se tornarão uma convicção. Às vezes, a convicção vem
primeiro, acompanhada não sempre pelo desejo, mas pelo medo ou pavor,
como no caso dos profetas do Antigo Testamento, aos quais foram dadas
tarefas muito difíceis. A única coisa a ser feita então é levantar-se e partir.
No livro Príncipe Caspian , de C. S. Lewis, a criança Lúcia, tendo-se
perdido com seus irmãos e irmã, encontrou finalmente o grande Leão,
brilhando branco ao luar. Os outros não puderam vê-lo em outras ocasiões e
Lucy estava certa de que não acreditariam que ela o havia encontrado dessa
vez.
“Espero aqui por você”, disse Aslam. “Vá acordar os outros: eles devem segui-la. Se não
quiserem vir, você pelo menos terá de acompanhar-me”.
É desagradável ter de acordar quatro pessoas mais velhas, ainda por cima cansadas, para
dizer-lhes uma coisa na qual provavelmente elas não irão acreditar, e para convencê-las a
fazer aquilo que não querem. Lúcia disse para si mesma: “É melhor nem pensar! Tenho é de
ir em frente e topar o desafio!” 23
D
isciplina cristã significa colocar-se debaixo de ordens. Não é um
mero negócio de autoaperfeiçoamento, que pode ser listado com
leitura rápida, observação de peso, corrida, gerenciamento de
tempo, reparos domésticos ou com como ganhar amigos. Tais programas
têm um forte apelo que é, em grande parte, egocêntrico: o que há nessas
coisas para mim? Vou melhorar meu QI, minha aparência, minha forma,
minha eficiência, minha casa, minha conta bancária? Serei mais apreciado,
cortejado, levado mais a sério, promovido? Se esses são os objetivos,
certamente será útil persegui-los com encorajamento de outras pessoas e na
companhia de outros que tenham as mesmas ambições. A pressão social vai
longe, mas, no final de um programa tipo “faça você mesmo”, depende
apenas da força de vontade, o que não é suficiente para a maioria de nós.
O discípulo é alguém que tomou uma decisão muito simples. Jesus nos
convida a segui-lo e o discípulo aceita o convite. Eu não digo que essa é
uma decisão fácil e tenho descoberto que ela precisa ser renovada
diariamente. As condições não são tais a ponto de atrair multidões. Jesus
declarou-lhes 25 :
1. Ele deve deixar o eu para trás;
2. Ele deve tomar a sua cruz;
3. E vir comigo.
O resultado da decisão é garantido:
1. Quem se preocupa com sua própria segurança está perdido;
2. Mas se um homem se deixar perder por minha causa, ele encontrará
seu verdadeiro eu.
O discípulo não está por conta própria, deixado sozinho para buscar a
autoatualização , que é uma nova palavra para o velho egoísmo . Ele não
está “fazendo suas coisas” para encontrar sua própria vida, ou a liberdade,
ou a felicidade. Ele se entrega a um Mestre e, ao fazê-lo, deixa o eu para
trás. Qualquer vida ordinária em qualquer cidade ordinária oferece amplas
oportunidades para se fazer isso. Andando em um ônibus nova-iorquino
recentemente, vi uma mulher se aproximar e abrir uma pequena parte de
uma janela. O ônibus estava muito lotado e eu fiquei feliz por um pouco de
ar fresco. A janela, porém, foi raivosamente fechada por outra mulher.
“Não está frio”, disse a primeira. “Será que não podemos ter um pouco
de ar?”
“Não. Nas minhas costas você não pode”, veio a réplica, uma
perfeitamente natural.
O discípulo, entretanto, vive por uma regra diferente, uma regra não
natural para qualquer um que seja pecador. Ele se deixará “perder”. Esse é o
grande princípio da cruz que ele toma: de sua própria perda vem o ganho do
outro, do seu desconforto vem o conforto do outro. Quão facilmente
professamos uma vontade de seguir, imaginando algum trabalho notável
para Deus, algum grande martírio, mas nos esquecemos da primeira
condição no minuto em que há um pouco de ar frio na parte de trás do
nosso pescoço.
Quando eu estava na faculdade, ao sair o anuário, era costume pedir aos
amigos que o assinassem. Normalmente eles escreviam algumas palavras
além da assinatura, e quando uma garota pedia o autógrafo de um homem
que ela admirava de forma especial, ela esperava secretamente alguma pista
dos sentimentos dele em relação a ela nas palavras que ele escrevesse. Jim
Elliot assinou seu nome em meu anuário do Wheaton College, a Torre , e
acrescentou apenas uma referência das Escrituras: 2 Timóteo 2.4.
“Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque
o seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou”. 26 A mensagem
estava em alto em bom som. Quaisquer esperanças que eu pudesse ter
entretido, quaisquer sentimentos que o próprio Jim pudesse ter tido por
mim, os quais ele não expressou na época, deveriam dar precedência ao
princípio que guiava a vida dele. Ele não tinha a liberdade de fazer planos
para o futuro já que estava à disposição de outro alguém.
Qualquer “soldado”, qualquer candidato à disciplina cristã, deve
apresentar-se diariamente ao seu comandante para o serviço. Ao seu dispor,
Senhor. O que o soldado faz para o oficial não está na categoria de um
favor. O oficial pode pedir qualquer coisa. Ele dispõe do soldado como
quiser. O próprio pensamento é um horror para a mente moderna.
“Ninguém vai me dizer o que fazer. Ninguém tem o direito de dispor de
mim ”.
Esse padrão de pensamento tem seu poderoso efeito também sobre os
cristãos, de modo que chegamos a imaginar que o discipulado é, de certa
forma, um “extra”. Supomos que podemos ser cristãos, indo à igreja,
fazendo nossas orações, cantando aquelas doces canções de amor e
sentimento, compartilhando e louvando, sem assumir nossa parte de
dificuldade. Aqueles que desejam fazer uma oferta especial de santidade,
dizemos a nós mesmos, podem tentar a disciplina (“ela tem seu lugar”)
como se fosse um estilo de vida estranho ou fanático, e não uma coisa para
a maioria de nós.
É como se fôssemos cristãos sem sermos discípulos.
“Sim, eu quero ser cristão, mas não, eu não quero ser seu discípulo,
Senhor. Pelo menos, ainda não. Isso é esperar demais”.
“Sim, eu serei um discípulo, mas não, certamente não quero deixar meu
eu para trás”.
“Eu deixarei meu eu para trás se o Senhor assim o disser, mas não me
peça para pegar nenhuma cruz. Não tenho certeza se me sentiria confortável
com isso”.
“Seguir-te, Senhor? Bem, sim, claro — mas será que eu poderia ter uma
pequena informação sobre para onde estamos indo, por gentileza?”
Nada poderia estar mais longe do espírito do Evangelho. A própria razão
pela qual Cristo morreu foi “para que os que vivem não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. 27
Ser cristão, em termos do Novo Testamento, é ser um discípulo. Não há
duas maneiras de ser cristão. Temos um Salvador que nos perdoou e nos
salvou da penalidade do pecado. A maioria de nós ficaria feliz por isso, mas
ele morreu para nos salvar também de nossos pecados , muitos dos quais
amamos e odiaríamos ter que nos separar deles. Cristo não poderia ter feito
isso se ele não fosse Senhor sobre todos os poderes do mal. Jesus Cristo é
Salvador porque ele é Senhor. Ele é Senhor, porque ele é Salvador. Eu não
posso ser salva de meus pecados a menos que eu também seja salva de mim
mesma, então Cristo deve ser o “oficial comandante” em minha vida.
Referência a Mateus 16.24-25.
2 Timóteo 2.4.
2 Coríntios 5.15.
5 | Graça, Livro, Espírito — e mais uma coisa
U
ma mulher com excesso de peso me disse que havia orado durante
anos para que Deus lhe tirasse o apetite. Ele não o fez. Ela
continuou a ganhar peso até ficar descontente consigo mesma.
“Senhor, por que não respondes à minha oração e tiras o meu desejo de
comer?”, perguntou ela.
“Então o que você teria que fazer?”, ele lhe perguntou.
“Vi imediatamente que eu tinha uma responsabilidade. Eu não teria tido
nenhuma responsabilidade se eu não tivesse a tentação de comer. Percebi
que Deus não ia facilitar tanto para mim — eu tinha que começar a me
disciplinar e a confiar nele para me ajudar na minha decisão”.
Deus não faz todos os movimentos por nós. Ele nos dá os meios para a
disciplina. Será que a disciplina, então, nos salvará? Não, é Cristo quem nos
salva. Precisamos ser muito claros a esse respeito. Desde os primeiros dias
do cristianismo, as pessoas caíram no erro de pensar na disciplina como um
meio de salvação.
A salvação é um presente, puramente um presente, para sempre um
presente. É a graça, e nada além da graça, que a obtém para nós. A
disciplina não é minha reivindicação sobre Cristo, mas a prova da
reivindicação dele sobre mim. Eu não o “torno” Senhor, eu o reconheço
como Senhor. Fazer isso com honestidade envolve a plena intenção de fazer
a vontade dele, ou seja, de viver sob a disciplina da Palavra dele. Mas
mesmo isso não é algo que conseguimos sozinhos. Três coisas nos ajudam.
Se nós somos cristãos, estamos sob a graça . Somos disciplinados por
ela. “Porque a graça de Deus se manifestou [...] e por ela somos
disciplinados a renunciar a caminhos ímpios e a desejos mundanos, e a
viver uma vida de temperança, honestidade e piedade”. 28
Se nós somos cristãos, temos um livro de regras. Somos disciplinados
por ele. “Toda escritura é inspirada por Deus e útil [...] para a renovação dos
modos e para a disciplina no viver reto”. 29
Se nós somos cristãos, temos o Espírito de Deus. Somos disciplinados
por ele. “O espírito que Deus nos deu não é um espírito de covardia, mas
um que inspira autodisciplina ”. 30
Aí está. A graça torna isso possível; a Escritura aponta o caminho; o
Espírito inspira – mas há mais uma coisa. Ainda há algo que o homem pode
fazer, e essa é a maior coisa que qualquer homem pode fazer: depositar sua
plena confiança no Deus vivo. Fé é a única coisa exigida.
Há algo que finge ser cristianismo, mas que é, na maioria das vezes, um
humor. A medida de sua fé é apenas a medida do sentimento.
“Adoro o sentimento que tenho quando me encontro com o maravilhoso
povo de Deus” é uma canção que descreve tudo o que algumas pessoas
sabem sobre fé. Quando o sentimento está lá, eles tem fé. Quando o
sentimento foi embora, eles perderam a fé.
Tiago coloca isso de forma bem clara em sua epístola:
Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode,
acaso, semelhante fé salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e
necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-
vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?
Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta.
Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu,
com as obras, te mostrarei a minha fé. Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os
demônios creem e tremem. Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as
obras é inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando
ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as
suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou. 31
Projetado para boas obras. É tão simples quanto isso. Foi uma ideia de
Deus. Ele fez o projeto. Ele espera que nós trabalhemos, assim como o
projetista de um instrumento de precisão; se ele entende os princípios
envolvidos e faz o projeto de acordo, ele espera que a coisa funcione. Não é
um grande crédito para o instrumento se ele funcionar.
Tito 2.11-12; Tradução livre da versão New English Bible (NEB); itálico adicionado.
2 Timóteo 3.16; Tradução livre da NEB; itálico adicionado.
2 Timóteo 1.7; Tradução livre da NEB; itálico adicionado.
Tiago 2.14-22.
Lucas 17.10.
Gálatas 1.10.
Lucas 17.10.
Efésios 2.8-10.
6 | Um Deus soberano e a escolha do homem
A
analogia do instrumento se rompe. Ela pode nos ajudar a
compreender a vontade do Criador e seu poder absoluto sobre o
que ele faz, mas deixa de fora a vontade do homem. Não seria
possível, no âmbito deste livro, lidar de forma adequada, ou mesmo boa,
com a questão da soberania de Deus, mesmo que eu estivesse equipada para
fazê-lo. Não estou tão equipada para isso. Mas talvez eu possa apontar
algumas coisas que me ajudaram a compreender certos aspectos desse
mistério teológico.
Se Deus está no controle das coisas grandes, ele também deve estar no
controle das pequenas. É um absurdo dizer que ele controla os ventos, as
tempestades e os oceanos, mas não as pressões que os movem, ou que ele
vê os limites do mar e faz as marés subirem e baixarem, mas não tem nada a
ver com cada onda, com as criaturas que nadam nelas ou com os meandros
das moléculas e átomos que compõem o todo.
Recentemente, tomei conhecimento de uma pequena criatura
maravilhosa chamada diatomácea. Trata-se de algas unicelulares, sendo a
maior diatomácea de apenas 1 milímetro de diâmetro. Elas têm sido
chamadas de as “plantas” mais vitais da Terra, embora, uma vez que elas
nadam e escavam, haja espaço para debate sobre se esse é um rótulo
acertado. Elas fornecem mais alimento do que qualquer outro ser vivo, mas
se tudo o que o projetista tinha em mente era forragem, ele não precisava tê-
las feito tão extravagantes. As diatomáceas existem em uma tremenda
variedade de formas, incluindo rodas de pino, espirais, discos, varetas,
ovais, triângulos e, até mesmo, estrelas e candelabros. Muitas criaturas
minúsculas as comem, incluindo copépodes e krills (sobre os quais eu
nunca ouvira falar até que aprendi sobre diatomáceas). Os peixes as comem,
assim como as baleias jubarte, que conseguem engolir várias centenas de
bilhões de diatomáceas a cada poucas horas. As baleias assassinas as
adoram, mas são necessárias cinco toneladas das pequenas estrelas e
candelabros para satisfazer 1 quilo de baleia assassina.
Quem construiu essa espantosa cadeia alimentar?
Albert Einstein escreveu: “Um espírito se manifesta nas leis do universo,
muito superior ao do homem, e um espírito em face do qual nós, com
nossos modestos poderes, devemos nos sentir humildes. A causalidade tem
que existir. O universo não poderia operar sobre o acaso. Deus não joga
dados”.
Deus, o causador de tudo isso, também “nos leva a causar”.
“O poder autodeterminante do indivíduo é parte da predestinação
ordenada de Deus e da necessidade sentida pelo seu amor de dotar o
homem de uma liberdade como a dele, e ele esperava que o homem
respondesse à liberdade dele”. 36
Conta-se a história de um pregador que saiu para ver uma fazenda de
trigo. Enquanto ele e o fazendeiro estavam olhando as belas ondas de grãos,
o pregador disse: “Bem, João, você e Deus certamente fizeram um bom
trabalho aqui”.
O fazendeiro empurrou seu chapéu de volta na cabeça, olhou
silenciosamente para o campo, e disse lentamente: “Você deveria ter visto
quando Deus o tinha só para si”.
Depois da Encarnação, não conheço uma verdade mais espantosa e
humilhante do que um Deus soberano ter ordenado minha participação.
Essa é a ordem do universo: cada criatura recebendo seu devido lugar, cada
um contribuindo com sua parte para o todo, o homem entre eles. No
entanto, o homem é singular em ter recebido sobre si uma tremenda
liberdade. O fazendeiro tomou a decisão de plantar trigo. O campo não teria
estado lá se ele não tivesse tomado a decisão e feito a prodigiosa quantidade
de trabalho necessária para produzir aquela plantação cintilante. Nem teria
estado lá se Deus não tivesse providenciado a terra em primeiro lugar,
ordenado que o sol brilhasse e que a chuva caísse, e acelerado a vida da
semente que João colocara no solo.
Dissemos que a disciplina cristã é um sim de todo o coração que uma
pessoa diz ao chamado de Deus. É da maior importância que entendamos a
necessidade de duas vontades, uma criada pela outra e ordenada
gratuitamente, ambas operando de acordo. Se esquecermos que existem
duas vontades e nos detivermos apenas na vontade soberana de Deus,
abdicaremos da nossa responsabilidade e cairemos no fatalismo do Islã, que
deixa tudo para o inescrutável e incognoscível. Se, por outro lado, nos
esquecermos da soberania de Deus e nos enxergamos como independentes,
tomaremos como nossa toda a responsabilidade e deixaremos Deus fora
dela — em outras palavras, nos tornaremos Deus. Em ambos os casos, não
fazemos a vontade dele e o resultado é a perda de nossa alegria e liberdade.
Deus organizou as coisas de tal forma que sua própria ação está ligada à
ação dos homens. A Bíblia está repleta de exemplos de um Deus amoroso e
poderoso escolhendo homens pecadores e fracos para realizar seus
propósitos, permitindo-lhes a dignidade de agir em liberdade e, assim, de
ter uma parte volitiva no que ele faz.
Quando o povo de Israel se encontrou “entre o diabo e o profundo mar
azul”, ou seja, entre os egípcios e o mar Vermelho, eles ficaram
desesperados. Eles ficaram furiosos com Moisés por tê-los metido naquela
confusão. Moisés prometeu que o Senhor os salvaria se eles apenas se
aquietassem. Ele estava correto. O Senhor os salvou, mas não sem
cooperação, ou seja, não sem os atos de obediência tanto da parte de Moisés
quanto da parte do povo.
“Diga ao povo para ir em frente”, disse Deus. Moisés tinha crer que
Deus quis dizer isso, e ele tinha que fazer o que Deus disse. Se tivesse
duvidado, tudo teria sido perdido. Moisés confiou em Deus e o povo
confiou em Moisés. Eles também tinham que obedecer.
“Levanta o teu bordão, estende a mão sobre o mar e divide-o”, disse
Deus. Moisés certamente deve ter pensado: Meu bordão? Minha mão?
Qual poderia ser a utilidade de qualquer um dos dois em uma situação
como essa? Ele ficou entre uma força irresistível e um objeto imóvel, e
como a vara ou a mão poderiam parar uma ou mover o outro era algo que
ele não podia imaginar. Mas ele obedeceu. E a soberania de Deus entrou em
ação. Um vento se levantou e fez a vontade do Senhor. O mar também
obedeceu e os egípcios se afogaram, enquanto os israelitas foram salvos.
Aqui está o poder soberano — sobre um homem, sobre um povo, sobre os
elementos da natureza, sobre um inimigo. Mas aqui também está um
homem agindo em liberdade.
“Resolvi dar cabo de toda carne”, disse Deus a um homem chamado
Noé, que caminhava com ele. “Faze uma arca. [...] Contigo [...]
estabelecerei a minha aliança”. 37 Noé o fez. Sua disposição em agir de
acordo com as instruções de Deus significou a salvação da raça humana e
de todas as espécies de animais. A ação voluntária de Noé e sua fé andaram
de mãos dadas. Vemos novamente que a fé está longe de ser um sentimento
ou um estado de espírito religioso. Ela não é vaga. Ela ouve a Palavra do
Senhor e age. “Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está
morta”. 38
Dizemos que Noé construiu a arca, que Noé salvou sua família e todos os
animais. Do ponto de vista espiritual, foi a fé que construiu a arca, a fé que
salvou a família, a fé que colocou o mundo inteiro no erro, e a fé que
colocou Noé em Hebreus 11 39 , aquela galeria de retratos mostrando como é
a fé. Noé conhecia seu soberano.
Quando a vontade do homem age de acordo com a vontade de Deus, isso
é fé. Quando a vontade do homem age em oposição à vontade de Deus, isso
é incredulidade.
Deus poderia ter escolhido ele mesmo fazer tudo, mas ao invés disso ele
concebeu o mundo de tal forma que as aves devem construir ninhos e
sentarem-se sobre ovos, micróbios devem decompor organismos, salmões
devem lutar rio acima para desovar, minhocas devem arejar o solo, abelhas
devem construir favos de mel e o homem deve ter vontade e deve trabalhar.
É a vontade que devemos enfatizar aqui. Nós oramos “Seja feita a vossa
vontade assim na terra como no céu ”. A vontade de Deus é sempre feita
voluntariamente e de bom grado no céu. A vontade de obedecer é uma
coisa muito diferente da coerção. Um decano universitário observou certa
vez que os estudantes mais felizes de qualquer campus são os músicos e os
atletas. “Por quê?”, eu perguntei. “Porque eles são disciplinados e se
voluntariaram para serem disciplinados”. As pessoas sentadas em palestras
obrigatórias estão sob disciplina, e as pessoas sentadas na sala de televisão
são “voluntárias”, mas atletas e músicos se colocam sob um treinador ou
diretor que lhes diz o que devem fazer. Eles têm o prazer de fazer a vontade
do treinador ou do diretor. Na realidade, eles estão se divertindo.
Deus não nos coage a segui-lo. Ele nos convida. A vontade dele é que
nós tenhamos vontade — isto é, ele deseja a nossa liberdade de recusar ou
de aceitar. Se nós queremos ser discípulos, nós nos colocamos, assim como
o jogador de futebol e o instrumentista, sob a direção de alguém. Ele nos
diz o que devemos fazer e nós encontramos nossa felicidade em fazê-lo.
Não encontraremos a felicidade em nenhum outro lugar. Não a
encontraremos fazendo apenas o que queremos fazer e não fazendo o que
não queremos fazer. Essa é a ideia popular do que é a liberdade, mas isso
não funciona. A liberdade reside no cumprimento das regras. A alegria
também está lá. (Se ao menos pudéssemos manter a alegria em vista!) O
violinista da orquestra submeteu-se primeiro ao instrutor. Ele obedece às
regras estabelecidas pelo instrutor e manuseia o seu instrumento em
conformidade. Ele, então, submete-se à música como escrita pelo
compositor, prestando atenção às marcações para dinâmica, bem como às
notas, às pausas e ao tempo. Finalmente, ele submete-se ao condutor. O
condutor lhe diz, seja por palavras ou por gestos, o que ele quer, e o
violinista faz exatamente isso.
Existe alguma imagem de liberdade e alegria mais estimulante do que
uma orquestra completa — todos serrando, trompetando, batendo,
palhetando, soprando, chocando e martelando sob a direção de uma imensa
energia e disciplina de um homem que conhece cada nota de cada
instrumento em cada concerto, e que sabe como conseguir essa nota
exatamente para que ela contribua mais plenamente para a glória da obra
como um todo? Compare essa imagem, por exemplo, com outras buscas de
“felicidade”: uma feira municipal em uma tarde quente de domingo,
pessoas à vontade na fila do algodão doce, na fila da montanha-russa, na
fila para comprar ingressos para o show do Blue Grass, misturadas e se
acotovelando entre as multidões suadas, bebês em carrinhos de passeio
chorando por sorvete, crianças gritando por mais voltas, pais exaustos,
adolescentes de aparência desocupada, cidadãos idosos entediados, todos
irritados pela multidão fervilhante, surdos pelo barulho (vendedores
ambulantes, galerias de tiroteio, música amplificada tocada no decibel mais
alto possível), à procura de diversão. Todos são “livres”, por assim dizer,
para fazer suas próprias coisas e o resultado é o caos e a cacofonia. A
primeira imagem, devo confessar — onde ninguém está fazendo o quer,
mas todos são livres porque obedecem — é, de alguma forma, muito mais
atrativa para mim.
É um grande alívio quando outro alguém está no comando. Ele sabe o
que está fazendo e tudo o que você precisa fazer é seguir instruções. Você
não se rebela quando ele lhe diz o que fazer. Você fica feliz em receber a
ordem. Ele sabe mais do que você, sabe a melhor maneira de realizar o que
você quer realizar, e você tem certeza de que estará melhor com ele do que
sem ele, mais feliz por obedecer do que por desobedecer.
Por termos aceitado um convite do bispo de Norwich, tivemos a
permissão de ir, guiados por um jovem verdugo, até a torre da Catedral de
Norwich, onde o público não era admitido. É útil conhecer alguém que está
no comando. Nós nos submetemos de bom grado à direção dele.
Não subimos a torre esperando ser trancados em um calabouço, mantidos
a pão e água, e finalmente mortos a machado. Tanto Lars quanto eu
queríamos ver de perto a vista da catedral, a cidade e a encantadora zona
rural de Norfolk. Havia outro prazer que eu procurava: o de entrar em
lugares secretos, sentindo o mistério das escadarias escondidas. Nenhum de
nós ficou decepcionado.
Deus nunca nos decepcionará. Ele nos ama e tem apenas um propósito
para nós: a santidade, que no reino dele equivale à alegria. Se Lars e eu
tivéssemos tido qualquer suspeita de que o bispo quisesse nos prejudicar ou
que o verdugo não soubesse para onde ia, certamente não o teríamos
seguido até as passagens escuras. Se no fundo de nossos corações
suspeitamos que Deus não nos ama e não pode administrar nossos assuntos
tão bem quanto nós podemos, certamente não nos submeteremos à
disciplina dele.
Nós sabemos que Ele nos ama. Jesus Cristo, pregado em uma cruz, é
uma prova irrefutável disso. Nunca pensemos que ele foi “martirizado” para
apaziguar um Deus irado, pois “Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo”. 40
A visão da torre seria uma comparação ruim com o que Deus nos
oferece. É na base de uma sólida convicção de que ele é soberano e
amoroso que nos comprometemos incondicionalmente com ele, acreditando
que o que deixamos para trás é menos do que nada comparado ao que
esperamos. Paulo declarou que tudo o que ele ganhou foi “refugo” 41 em
comparação com aprender a conhecer a Cristo. O homem que compra um
campo e encontra nele um tesouro, vende sem hesitação tudo o que possui
para poder comprar o campo. Assim é o Reino de Deus. A vista da torre fez
valer a pena a subida.
Mas pensemos na subida em si.
Há aqueles que não querem receber Cristo. Aqueles que querem, no
entanto, não recebem um reino instantâneo, mas o “direito de se tornarem
filhos de Deus”. 42 Aqui está a verdade da soberania divina e da
responsabilidade humana envolta em um único verso. Ele dá àqueles que
têm vontade . Há muitos níveis de significado aqui que não podemos
explorar. O versículo não diz que Deus os torna filhos instantâneos de Deus.
O versículo diz que Deus lhes dá o direito de se tornarem. Para aqueles que
o recebem, para aqueles que lhe cederam sua lealdade, ele lhes dá o direito
de se tornarem filhos de Deus. Pedro escreveu: “mediante a fé, [vocês] são
protegidos pelo poder de Deus até chegar a salvação prestes a ser revelada
no último tempo”. 43 O escritor aos hebreus se refere a algumas pessoas nas
quais a boa nova, “a palavra que ouviram não lhes aproveitou, visto não ter
sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram”. 44 Essas referências
mostram como é insensato supor que se pode ser cristão sem incluir o
problema do discipulado ou que se pode “chegar ao céu” sem se preocupar
em ser obediente. É minha obediência, então, aquilo que me abre a porta do
céu? É minha vontade, afinal de contas, que determina minha salvação?
Não. Os filhos de Deus “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem, mas de Deus”. 45 “Não depende de quem quer
ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia”. 46
Se reprimirmos nossa obediência até que tenhamos canalizado as
profundezas teológicas desse mistério, seremos desobedientes. Há verdades
que não podem ser conhecidas a não ser por fazê-las. Os Evangelhos
mostram muitos casos daqueles que quiseram compreender em vez de
obedecer. Jesus tinha palavras mordazes para eles. Em certa ocasião, ele se
voltou desses para aqueles que já haviam crido nele e disse: “Se vocês
permanecerdes dentro da revelação que eu lhes trouxe, vós são de fato meus
discípulos; e vós conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. 47
“Permanecer dentro da revelação” certamente significa viver de acordo
com o que nos foi mostrado. Significa ouvir e fazer.
Outro aspecto da escalada é o sofrimento.
Para o descrente, o sofrimento apenas o convence de que não se deve
confiar em Deus, de que Deus não nos ama. Ao crente, o oposto é
verdadeiro. “Bem sei, ó SENHOR , que os teus juízos são justos e que com
fidelidade me afligiste”. 48
Uma referência à perseguição dos cristãos de Tessalônica mostra
claramente como até mesmo a injustiça no nível humano serve à justiça de
Deus ao levar seus servos à santidade. Os crentes de Tessalônica haviam
respondido aos problemas com uma fé firme e um amor crescente. “Elas
[perseguições e tribulações] dão prova do justo juízo de Deus”, escreve
Paulo, “e mostram o seu desejo de que vocês sejam considerados dignos do
seu Reino, pelo qual vocês também estão sofrendo”. Ele prossegue para
assegurar-lhes de que um dia a conta seria equilibrada. Haveria punição
para aqueles que se recusassem a reconhecer a Deus, e glória para os
crentes. Paulo orou por eles, “para que o nosso Deus os faça dignos da
vocação e, com poder, cumpra todo bom propósito e toda obra que procede
da fé”. 49
Vemos aqui o fato claro de uma vontade soberana, operando algumas
vezes por meio dos crentes e descrentes e, às vezes, apesar dos crentes e
descrentes, tanto no presente como no futuro. O que os perseguidores
estavam fazendo aos crentes era maligno. No entanto, por amor de Cristo,
os crentes o suportaram e, assim, estavam se provando “dignos do reino de
Deus”. O Senhor não havia desistido deles. Nada podia separá-los de seu
amor. Sua soberania os sustentava. Eles, por sua vez, exerceram a vontade
de suportar, mantendo-se dispensáveis para aquele que se despendeu por
eles. Finalmente, as orações de Paulo também foram um elemento essencial
no pleno funcionamento do propósito de Deus, tendo ele estabelecido o
mundo de tal forma que a oração é necessária até mesmo para seus próprios
planos.
Alguns dos muitos versículos em que quase vemos a harmonia entre as
duas vontades em operação são:
E Gideão disse a Deus: “Quero saber se [tu ] vais libertar Israel por meu intermédio, como
prometeste. 50
Porém nós oramos ao nosso Deus e , como proteção, pusemos guarda contra eles, de dia e
de noite. 51
Ao contrário, eu mesmo me dediquei ao trabalho neste muro [...] essa obra havia sido
executada com a ajuda de nosso Deus . 52
Humilhai-vos , portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele , em tempo oportuno,
vos exalte. 53
Porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual
ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a
tua mão e o teu propósito predeterminaram. 55
Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem. 56
Pois o Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito; mas ai daquele por intermédio
de quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido! 57
Sendo este [Jesus] entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o
matastes, crucificando-o por mãos de iníquos. 58
U
m antigo comercial de televisão mostra um homem saindo
rapidamente da cama, correndo escada abaixo, engolindo o café de
uma xícara, pegando o casaco e a pasta, e explodindo pela porta
da frente. A mensagem: “O dia nunca começa cedo demais para um homem
compelido por um único objetivo na vida”. Ele é um corretor da Bache. Ele
mal pode esperar para chegar ao escritório para descobrir o que está
acontecendo no mercado, mas pega o telefone da cozinha e pergunta:
“Como abrimos hoje em Londres?”.
A cobiça por dinheiro e por poder move os homens quando uma
escavadeira não é capaz de fazê-lo. Eles vão punir seus corpos, passando a
maior parte das horas de vigília, sentados em uma cadeira de escritório,
depois exercitando-se furiosamente em uma academia ou em uma pista de
corrida, participando de pequenos cafés da manhã, almoços de “negócio”
tremendos e jantares de alta caloria, tudo isso para se anteciparem ao
mundo e desfrutarem alguns de seus prazeres por uma temporada.
A santidade nunca foi a força motriz da maioria. Ela, no entanto, é
obrigatória para qualquer pessoa que queira entrar no Reino. “Esforcem-se
[...] para serem santos; sem santidade ninguém verá o Senhor”. 59
“Porque estais inteirados de quantas instruções vos demos da parte do
Senhor Jesus”, escreveu Paulo aos tessalonicenses. “Pois esta é a vontade
de Deus: a vossa santificação, que vos abstenhais da prostituição; que cada
um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra, não com o
desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus [...]
Porquanto Deus não nos chamou para a impureza, e sim para a
santificação”. 60
A disciplina, para um cristão, começa com o corpo. Nós temos apenas
um. É esse corpo que é o principal material que nos é dado para o sacrifício.
Se não tivéssemos esse corpo, não teríamos nada. Devemos apresentá-lo,
oferecê-lo, entregá-lo incondicionalmente a Deus para os propósitos dele.
Isso, dizem-nos, é um “ato de adoração espiritual”. A doação desse corpo
físico, composto de sangue, osso e tecido, que vale alguns dólares em
produtos químicos, torna-se um ato espiritual, pois “é o vosso culto
racional”. 61
A Bíblia de Jerusalém a traduz da seguinte forma: “Pensai na
misericórdia de Deus, meus irmãos, e adorai-o, peço-vos, de uma forma
digna de seres pensantes, [isto é, uma nota nos diz, “‘de uma forma
espiritual’, em oposição aos sacrifícios rituais de judeus ou pagãos”],
oferecendo vossos corpos vivos como um sacrifício santo”. 62
Fracassos espirituais se devem, creio, mais a esta causa do que a
qualquer outra: o fracasso em reconhecer esse corpo vivo como tendo algo
a ver com adoração ou sacrifício santo. Esse corpo é, colocado de maneira
simples, o ponto de partida. Fracassar aqui é fracassar em todos os outros
lugares.
“Aquele que veria a face do Lutador mais poderoso, nosso Deus sem
limites”, escreveu São Alonso de Orozco, “deve primeiro ter lutado consigo
mesmo”.
Somente aquele que levou a sério a correlação entre o físico e o
espiritual e começou a luta pode apreciar a aptidão dessa palavra lutar . Os
hábitos, por exemplo, nos prendem. Essa amarra deve ser quebrada se
quisermos ser livres para o serviço do Senhor. Não podemos entregar nosso
coração a Deus e guardar nosso corpo para nós mesmos.
Que tipo de corpo é esse?
É um corpo mortal. Ele não irá durar. Ele foi feito de pó e depois da
morte retornará ao pó. Paulo o chamou de corpo “vil”, ou um corpo que
pertence ao nosso estado de “humilhação”, 63 um “corpo do pecado”, 64 um
corpo “morto” 65 por causa do pecado. Mas ele também é um templo ou um
santuário para o Espírito Santo; ele é um “membro” do corpo de Cristo. 66
Ele é, além do mais — e isso faz toda a diferença na forma como o tratamos
— completamente redimível, transfigurável, “ressuscitável”.
O corpo cristão não apenas abriga o próprio Espírito Santo, mas também
o coração, a vontade, a mente e as emoções do cristão — todos
desempenhando um papel em conhecermos a Deus e vivermos para ele.
No meu caso, a “casa” é alta, anglo-saxônica, de meia-idade e feminina.
Não me perguntaram sobre minhas preferências em nenhum desses fatores,
mas foi-me dada uma escolha sobre o uso que faço deles. Em outras
palavras, o corpo foi um presente para mim. Se vou agradecer a Deus por
ele e oferecê-lo como um sacrifício santo ou não cabe a mim decidir.
O que se entende por disciplinar o corpo?
Um corpo precisa de alimento. A alimentação é uma questão de
disciplina para nós que vivemos em países muito ricos, muito civilizados,
muito autoindulgentes. Para aqueles que não têm o vasto leque de escolhas
que nós temos, a alimentação é uma questão fundamental de subsistência e
não um grande impedimento à santidade.
A disciplina é evidente em todas as páginas da vida de Daniel. 67 A
história começa com ele sendo escolhido como um de um grupo de jovens
de famílias nobres e reais em Israel para servir no palácio de
Nabucodonosor, rei da Babilônia. A primeira coisa que distingue Daniel dos
outros é sua decisão de não comer a rica comida fornecida pela família real,
mas apenas vegetais e água. Ele não queria ser contaminado. Deve ter sido
Deus quem colocou essa ideia na cabeça dele. Certamente foi Deus quem
fez o chefe dos oficiais mostrar bondade e boa vontade para com Daniel,
concedendo-lhe seu pedido. Era o início da preparação do Senhor de um
homem cuja fibra espiritual seria rigorosamente testada posteriormente.
É significativo que apenas 10% dos altos executivos de nosso país
estejam acima do peso. Isso me parece indicar que poucos homens que não
conseguiram conter o apetite conseguirão chegar ao topo. A contenção
física é básica para o poder. Eles o fazem pelo poder neste mundo. Nós o
fazemos pelo poder em outro.
Os cristãos devem ter cuidado com o que comem. Não me refiro aqui
apenas a comer em excesso, o que é uma coisa ruim, mas a comer as coisas
erradas. Doces em demasia, coisas gordurosas em demasia, porcarias em
demasia. Passeie por qualquer supermercado e observe o espaço dado a
refrigerantes, doces, lanches empacotados, cereais secos. Poderíamos nos
sair muito bem sem nada disso. Experimente por uma semana. Você pode
ficar surpreso com a sua dependência desses alimentos. Você pode até
descobrir que é um viciado.
Como missionária, vivi a maior parte do tempo em regiões bastante
remotas da selva sul-americana, onde a comida que estava disponível era
toda “natural”. Comíamos muita mandioca, um tubérculo rico em amido
cultivado pelos índios, que fornecia o básico para a vida deles. Comíamos
arroz, feijão, abacaxi, mamão, ovos e qualquer carne que estivesse
disponível de tempos em tempos, o que não era frequente. Não havia
alimentos preparados para comermos novamente. Não havia petiscos entre
refeições. Comíamos açúcar, trazido de fora, que costumávamos usar para
fazer limonada onde quer que os limões fossem cultivados. Também
importávamos farinha de aveia, leite em pó, sal, farinha e, às vezes, luxos
como queijo e chocolate. Mas os menus eram relativamente simples e nossa
saúde era sempre excelente. É uma coisa boa, me parece, aprender a fazer
com menos.
Uma forma de começar a ver quão vastamente indulgente normalmente
somos é jejuar.
O jejum foi prescrito pela lei judaica e sempre fez parte da prática cristã.
Uma amiga minha relatou como ela estava martelando à porta do céu
para obter resposta a uma oração específica. Nada parecia estar
acontecendo. Ela começou a ficar brava com Deus porque ele não estava
fazendo nada. Então ele pareceu dizer calmamente. “Por que você não
jejua?”
“Então me ocorreu”, disse ela. “Eu realmente não me importava tanto
assim”.
Outra amiga disse que discordava completamente da noção de jejum,
porque não era mais do que uma tentativa de “fazer queda de braço com
Deus”. “Ele sabe do que eu preciso, e se ele quer me dar, ele pode. Não há
necessidade de eu me tornar uma ascética”.
Há pouco entendimento hoje sobre o verdadeiro propósito dos ermitãos e
dos anacoretas. Embora houvesse, sem dúvida, alguns que pensavam em
comprar seu caminho para o céu crucificando a carne, a verdadeira
efetividade baseava-se em sua vontade de servir, entregando-se totalmente à
oração e à contemplação. Isso envolve sacrifícios de uma ou outra espécie,
tanto hoje quanto antes. Ermitões e anacoretas escolheram a solidão, a
pobreza, a retirada do mundo, o jejum. Em algumas igrejas da Inglaterra
ainda existem ancoragens — celas nas quais os anacoretas ficavam entre
quatro paredes durante a vida. Uma delas ainda pode ser vista na Igreja
Paroquial de Chester-le-Street, no norte da Inglaterra. A comida era passada
para o anacoreta; às vezes as pessoas falavam com ele através de uma
abertura; e ele tinha uma abertura, ou “squint”, uma fenda na parede através
da qual era possível observar a missa na igreja. O povo da cidade se
alegrava em saber que alguém estava sempre em oração.
Conheço cristãos que jejuam regularmente — um dia por semana, uma
refeição por semana, uma refeição por mês, ou em certos dias do calendário
da igreja. Conheço outros que acharam muito útil jejuar quando têm algum
assunto especial sobre o qual orar — uma decisão difícil de tomar, um novo
projeto para começar, um amigo doente que querem ajudar.
Em Antioquia, Deus disse aos discípulos, enquanto eles jejuavam, para
separar Barnabé e Saulo. Então, “jejuando, e orando”, 68 os discípulos
impuseram suas mãos sobre eles e os enviaram para fazer o trabalho para o
qual Deus os havia chamado especialmente. Em Listra, Icônio e Antioquia,
Paulo nomeou anciãos e “tendo orado e jejuado, eles os encomendaram ao
Senhor, em quem haviam confiado”. 69
O bispo John Allen deu cinco boas razões para jejuar:
1. O jejum ajuda a nos identificarmos com os famintos, a quem nos é
ordenado servir. 70
2. Lembra-nos de orar.
3. Faz-nos abertos ao chamado de Deus.
4. Leva-nos a refletir sobre a realização de seu chamado.
5. É um instrumento misterioso da obra do Espírito Santo.
Há algumas coisas que o jejum não faz. Ele nunca me ajudou a esquecer
de comer. Na verdade, eu me pego pensando muito sobre isso. (Talvez eu
não jejue tempo suficiente.) É um dia longo que não é rompido com as três
refeições habituais. Descobre-se o tempo surpreendente que se gasta em
planejamento, compra, preparação, alimentação e limpeza das refeições. O
aspecto social do jejum é talvez a coisa mais embaraçosa. Jesus nos disse
para não deixar que as pessoas soubessem que estamos jejuando, mas para
nos arrumarmos como sempre, para que somente nosso Pai, “que [está] em
secreto” 71 , possa ver. Às vezes é bem impossível manter o jejum em
segredo. Conheço a mãe de uma grande família que jejua um dia por
semana, mas continua a cozinhar para sua família e se senta com eles à
mesa para tomar uma xícara de chá claro. A família dela está acostumada a
isso e não se importa. Algumas famílias talvez se importem. O Senhor
conhece as circunstâncias do indivíduo e o propósito do coração. No caso
de Daniel, Deus tornou possível que ele realizasse seu desejo.
O jejum não permitirá necessariamente que você se concentre. É
importante não ficar agitado consigo mesmo, ainda que sua mente vagueie.
Peça ao Senhor que o ajude a concentrar-se na oração, na leitura da Bíblia,
na meditação. Quando forem detectados sentimentos de orgulho espiritual,
confesse-os. Quando o telefone tocar, atenda-o somente se for necessário.
Quando os pensamentos da reunião da próxima semana se intrometerem,
mencione-os também a Deus e deixe-os com ele enquanto você volta aos
assuntos de suas orações. Não fique chocado com sua própria incapacidade
de “ser espiritual”. Os maiores santos conheciam sua pecaminosidade e
fraquezas.
Cada tipo de esporte traz em si um rico patrimônio de valores, que deve estar sempre
presente para que possa ser realizado.
O treinamento na reflexão, o próprio compromisso das energias do indivíduo, a educação
da vontade, o controle da sensibilidade, a preparação metódica, a perseverança, a
resistência, o suportar a fadiga e as feridas, o domínio das faculdades do indivíduo, o senso
de alegria, a aceitação de regras, o espírito de renúncia e solidariedade, a lealdade ao
compromisso, a generosidade para com os vencedores, a serenidade na derrota, a paciência
para com todos — são um complexo de realidades morais que exigem um verdadeiro
asceticismo e validamente contribuem à formação do ser humano e do cristão.
Onde estão todos os átomos da carne que a corrosão ou o consumo devoraram? Em que
sulco ou intestino da terra jazem todas as cinzas de um corpo queimado há mil anos? Em
que canto do mar jaz toda a geleia de um corpo afogado no dilúvio? Que coerência, que
simpatia, que dependência mantém qualquer relação ou correspondência entre aquele braço
que foi perdido na Europa e aquela perna que foi perdida na África ou na Ásia com dezenas
de anos de intervalo?
Um humor de nosso corpo morto produz vermes, e esses vermes esgotam todo o outro
humor, e depois todos morrem e secam e são moldados em pó, e esse pó é soprado para o
rio e a água cai no mar, que escorre e flui em infinitas revoluções.
Ainda assim, Deus sabe em que armário jaz cada pérola e em que parte do mundo jaz
cada grão do pó de cada homem, e (como seu profeta fala em outro caso) ele assobia para os
corpos de seus santos, e num piscar de olhos aquele corpo que estava espalhado por todos
os elementos, sentou-se à direita de Deus em uma gloriosa ressurreição. 81
E
m sua biografia do arcebispo francês do século XVII, François de
Fénelon, Katharine Day Little escreve: “A vida simples e ordenada
era o segredo de seu poder e eficiência, pois sua austeridade era, na
realidade, um gasto intencional e racional, mais do que uma mortificação
autoconsciente. Representava a beleza de uma mente ordenada e limpa que
naturalmente se afastava das futilidades espalhafatosas e da desordem do
desnecessário”.
Uma vida simples e ordenada representa uma mente limpa e ordenada. O
pensamento confuso resulta inevitavelmente em uma vida confusa. Uma
casa que está desordenada é normalmente habitada por pessoas cujas
mentes também estão desordenadas, que precisam simplificar suas vidas.
Isso começa com a simplificação e o esclarecimento de seu pensamento. A
mente e a vida precisam ser liberadas da “desordem do desnecessário”.
“Preparem sua mente para a ação e exercitem o autocontrole” 83 , é o que
Pedro diz que devemos fazer.
Jesus disse que o maior mandamento é “Ame o Senhor, seu Deus, de
todo o seu coração, de toda a sua alma e de toda a sua mente ” 84 .
Temos discutido fazer uma oferta do corpo, que é um ato de adoração
“oferecido pela mente e pelo coração” 85 . A próxima coisa que devemos
fazer é permitir que nossas mentes sejam “renovadas” e toda a nossa
natureza seja “transformada”. Não podemos fazer isso sozinhos. É o
Espírito Santo que deve fazer o trabalho. Contudo, devemos abrir nossas
mentes para esse trabalho, submeter-nos ao controle dele, pensar nas coisas
que importam, e não naquelas que no final não dão em nada. Aqui
novamente vemos tanto a necessidade de um Deus soberano trabalhando
em nós e por meio de nós, quanto a responsabilidade da pessoa discipular a
si mesma para adaptar-se ao que Deus quer fazer.
“Não há nenhum expediente a que um homem não recorra para evitar o
verdadeiro trabalho de pensar”, escreveu Sir Joshua Reynolds. Tente seguir
uma única ideia até sua conclusão. Quantos desvios você fez? Quantas
vezes você parou para passar o tempo do dia com outra ideia, totalmente
sem relação com a primeira? Quantas vezes você afundou na grama, por
assim dizer, à beira da estrada, e deixou sua mente flutuar com as nuvens?
Hoje, enquanto escrevo, tenho um ambiente perfeito para pensar. Estou
em um hytte norueguês (uma cabana) em um canal no interior de Sørland,
na Noruega. Até onde sei, não há nenhum ser humano por perto e, se
houvesse, não poderia dizer muito mais a ele do que o jeg snakker ikke
Norsk (eu não falo norueguês). Não há telefone, nem serviço de correio,
nem encanamento ou eletricidade. É quase como estar de volta à selva.
Quem poderia desejar uma situação mais propícia à escrita e ao
pensamento?
No entanto, encontro minha mente vagando por mil coisas que não têm
nada a ver com este capítulo. Pergunto-me se o tempo vai clarear, então vou
até lá para verificar o barômetro. Vou até a doca para ver se a marta que
vive no banco vai aparecer novamente. Escolho algumas flores silvestres
para colocar em um vaso — Lars estará aqui hoje mais tarde (ele tem
passado parte de seu tempo em sua cidade natal próxima, Kristiansand). Eu
leio um pouco dos diários de Malcolm Muggeridge. Arrumo um sanduíche
de pasta de amendoim e uma cenoura da Califórnia bem cara para o
almoço. Ouço as vozes das crianças e saio para ouvir mais de perto. (Para
mim, é maravilhoso ouvir crianças falando uma língua estrangeira!)
Antes mesmo de terminar este parágrafo, ouvi um assobio familiar. Lars.
Ele não deveria estar aqui pelas próximas três horas, porém é um desvio
bem-vindo do pensamento que eu pretendia ter, mas que sempre considero
como a parte mais difícil da escrita. Bebemos chá e lemos cartas de
Massachusetts, Inglaterra, Illinois e Idaho. Agora Lars está afiando a foice
antes de cortar a grama. Volto à minha máquina de escrever e ao meu
pensamento.
“Pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a
cada um” 86 . Faça o processo de pensar . Será que sabemos como fazer
isso?
Estávamos viajando de carro com amigos, discutindo sobre o nosso
grande amigo C. S. Lewis, o qual nenhum de nós jamais havia conhecido.
“Lewis pensava ”, disse o homem. “É incrível o que se pode conseguir
pensando de verdade!”
Nós concordamos. (Quem poderia discordar disso?) Houve uma longa
pausa. Então, sua esposa disse: “Sabe, acredito que é isso que está errado
comigo. Eu nunca penso . Não realmente”.
A maioria de nós não tem nem a capacidade mental nem a educação que
Lewis tinha, mas poderíamos ter a disciplina mental “se tivéssemos uma
mente para isso”.
“A incapacidade de cultivar o poder da concentração pacífica é a maior
causa do colapso mental”, disse o grande médico William Osler aos
estudantes de Yale, em um domingo à noite, há muitos anos. Ele os exortou
a obter poder sobre o mecanismo mental com algumas horas por dia de
concentração tranquila na rotina, na ordem e em um sistema. “A
concentração é uma arte de aquisição lenta, mas pouco a pouco a mente é
acostumada aos hábitos de alimentação lenta e digestão cuidadosa, através
da qual somente você escapa da “dispepsia mental'”.
Pegue as palavras de Romanos citadas anteriormente para fazer um
exercício inicial de pensamento. “Pense com moderação, segundo a medida
da fé que Deus repartiu a cada um”. O contexto é de autoavaliação. Será
que entendemos nossa tarefa individual dentro do Corpo de Cristo? Que
dons temos recebido, quais funções? Alguns de nós dizem que não sabem.
Outros darão uma resposta baseado na estimativa que outras pessoas fazem
de nós. Suponha que tivéssemos que separar meia hora para pensar
sobriamente sobre o que somos e não somos capazes de fazer pelo bem de
nossa igreja. Se começarmos submetendo tudo a Cristo e pedindo a ele que
mude nossas mentes e depois prosseguíssemos para nos concentrar
fielmente nessas palavras, poderíamos ficar surpresos ao ver que temos
desperdiçado energia ao fazer coisas que não somos aptos a fazer, que
estamos desperdiçando tempo fazendo coisas que não contribuem em nada
para ajudar a igreja, e que temos falhado em fazer coisas que poderíamos
fazer, coisas que o Espírito de Deus traz à mente que está direcionada a ele.
A arte Oriental da meditação não é, creio eu, semelhante à meditação
cristã, mas talvez pelo menos uma lição poderia ser aprendida com ela: a de
assumir uma postura especial. Não estou recomendando nenhuma em
particular, mas qualquer postura em que se possa ficar quieto e alerta seria
uma boa postura. Fechar os olhos tem sido geralmente considerado uma boa
maneira de orar, porque filtra algumas distrações.
Não tente não pensar em nada. “Mantenham o pensamento” 87 , diz Paulo,
e não “Esvazie sua mente”. Ponha-o em Cristo, não em coisas terrenas.
Uma frase da Palavra de Deus pode ser tomada e repetida silenciosamente,
pedindo que nos seja concedido “espírito de sabedoria e de revelação no
pleno conhecimento dele” 88 . Foi uma frase do primeiro capítulo de Efésios
em que pensei esta manhã: “exercido pela sua força” 89 . Para mim, é útil
começar com a Palavra, esperando que Deus dirija e controle meus
pensamentos dentro desse contexto, levando-me a outros à medida que ele
quiser. Haverá, é claro, espaços para escutar.
Aqueles que trabalham com alcoólatras às vezes lhes dizem para não
pensar. Esse é um bom conselho em algumas circunstâncias. A mente pode
ruminar assuntos que não ajudam, como eu sei muito bem, embora não no
contexto do alcoolismo. Ocasionalmente, me pego repassando muitas vezes
alguma coisa mentalmente nas primeiras horas da manhã, muito antes de
meu despertador tocar. Essa é uma má hora para pensar, primeiro porque é
hora de dormir e segundo porque, em todo o caso, não há nada que eu possa
fazer sobre o que quer que seja a essa hora. Alguém certamente fará uma
objeção neste ponto: “Mas eu executo meu pensamento mais criativo às
duas horas da manhã! Escrevo poesia, planejo menus, preparo uma palestra,
decido que investimentos vou fazer”. O tipo de pensamento a que me refiro
é o pensamento destrutivo — o pensamento que produz a ansiedade,
pensando no dia seguinte da maneira proibida por Jesus; ou o mais
mortífero de todos, o que rumina as más lembranças. Um alcoólatra está em
apuros no momento em que se permite pensar em uma bebida. Às vezes, é
perigoso para ele se permitir pensar, porque esse pensamento terá
precedência, por isso é aconselhável que ele se levante e faça algo ao invés
de pensar.
A transformação da mente produz uma visão transformada da realidade.
O que o mundo chama de “real” perderá sua clareza. O que ele chama de
“irreal” ganhará clareza e poder.
Lendo homens como o apóstolo João, São Francisco de Assis ou
François de Fénelon, a mente não renovada diz “Esse homem não pode ser
real”, esquecendo que a santidade é, de fato, muito real. A santidade é, de
fato, muito mais real, muito mais humana do que a não santidade, estando
muito mais próxima daquilo que Deus nos criou para ser.
O que o mundo vê como real é uma coisa. O que é real para o olho mais
claro da fé é outra coisa bem diferente. Aquilo que é chamado de realismo
na literatura geralmente trata o mal como se fosse a única realidade e o bem
como se fosse uma fantasia. Ele se concentra na lata de cinzas e na casa
anexa ao quintal, ignorando a roseira no jardim da frente, que certamente é
tão real quanto elas. É verdade que os personagens ruins nos romances
muitas vezes são mais críveis do que os bons. Satanás é o melhor desenho
dos personagens de Milton, diz C. S. Lewis. Sua explicação é a seguinte:
O céu entende o inferno e o inferno não entende o céu. [...] Para nos projetar um
personagem perverso, só temos que parar de fazer algo, e algo que já estamos cansados de
fazer; para nos projetarmos em um bom personagem, temos que fazer o que não
conseguimos e nos tornar o que não somos. 90
Cristo nos chama a fazer isso (o que não conseguimos) e a ser isso (o que
não somos). Ele nos pede que andemos sobre as águas. Pedro conseguiu
fazer isso, mas apenas por alguns passos, apenas durante aqueles segundos
em que seu olhar estava cravado em Cristo, sua mente fixa, por assim dizer,
nas “coisas do alto”. Porém, quando ele olhou em volta, afundou.
Isso nada mais é do que uma visão transformada da realidade que é
capaz de ver Cristo como mais real do que a tempestade, o amor mais real
do que o ódio, a mansidão mais real do que o orgulho, a longanimidade
mais real do que o aborrecimento, a santidade mais real do que o pecado.
João, São Francisco e Fénelon, homens santos no sentido mais forte,
estavam profundamente conscientes de seu próprio pecado.
“Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos, e a verdade não está em nós” 91 , escreveu o primeiro.
O jovem Francisco passou horas em oração, angustiado, em uma gruta
perto de sua cidade, confessando e lamentando seus pecados. Seu rosto
estaria exaurido de sofrimento, até que um dia ele saiu em paz, sabendo que
Deus o havia perdoado.
“Ficamos espantados com nossa cegueira anterior ao vermos emitir do
fundo de nosso coração todo um enxame de sentimentos vergonhosos,
como répteis imundos rastejando para fora de uma caverna escondida” 92 ,
escreveu Fénelon a uma senhora em 1690.
O homem que é mais realista sobre sua própria necessidade é aquele que
mais provavelmente dará as costas para ela e se voltará para a realidade
brilhante de um salvador. O mal nunca é uma realidade em si mesmo, o que
significa que ele não tem existência além do bem, do qual é uma corrupção.
O inferno não tem luz. É tenebroso. Portanto, quanto mais claramente
apreendemos a natureza do mal, maior é a nossa repulsa e mais
genuinamente damos as costas a ele e acolhemos a verdade. Isso é o que faz
verdadeiros homens e verdadeiras mulheres, não a pobre autoindulgência
que hoje se passa por honestidade quando as pessoas “compartilham” suas
piores atitudes a fim de obter, não perdão, mas meramente a simpatia e o
consentimento comuns.
Há uma admissão de imperfeição, culpa ou “problema”, que não é o
mesmo que uma confissão genuína de pecado. Em vez disso, ela cheira
mais ao desejo de ser um com a multidão do que um com Aquele que o
mundo odiava. Jesus falou repetidas vezes a seus discípulos sobre o ódio
que eles sentiriam se fossem fiéis a ele:
Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu
respeito de que as suas obras são más. 93
Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. Se vós
fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu. [...] Lembrai-vos da palavra que eu vos
disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também
perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa. 94
Precisamos ter cuidado para que a nossa ânsia de expor nossa escuridão
interior não se torne uma exibição ou até mesmo uma celebração que obterá
para nós aceitação junto àqueles que realmente amam as trevas ao invés da
luz. O homem que resolutamente dá as costas à escuridão e se volta para a
luz não terá muito apoio popular. O verdadeiro contador da verdade, como
Sócrates previu há muito tempo, terá seus olhos arrancados. Assim tem
sido. Assim sempre será. Nós não arrancamos os olhos hoje em dia, não na
sociedade civilizada. Simplesmente dizemos ao homem que sai do caminho
largo e vai para o estreito que ele está obcecado, que não está em contato
com seus sentimentos, que ele é um benfeitor, um desmancha-prazeres, um
santinho — qualquer rótulo que exonere o resto de nós da responsabilidade
de sermos como Cristo. Temos pena da sua ingenuidade, sua estreiteza, sua
irrealidade, nunca suspeitando que possa haver em nosso meio alguns
poucos cujas mentes estão fixas nas coisas do alto 95 porque suas vidas estão
escondidas com Cristo.
inevitavelmente oposta aos propósitos de Deus e não pode, nem irá Romanos 8.7, tradução livre da versão
seguir as leis do Senhor para viver Phillips
não enxerga nada além de coisas naturais Romanos 8.5, tradução livre da versão
Young Churches
uma mentalidade formada pela natureza baixa e que significa morte Romanos 8.5, tradução livre da versão
NEB
inflada por imaginação não espiritual, se metendo em assuntos dos quais Colossenses 2.18, tradução livre da
nada sabe versão RSV
Sobre a sabedoria que não vem do alto, Tiago diz que é “terrena, animal
e demoníaca”. Ela abriga o ciúme amargo e a ambição egoísta, com os
quais vêm a desordem e o mal de todo tipo.
A sabedoria do alto, por outro lado, “é, primeiramente, pura; depois,
pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos,
imparcial, sem fingimento”. 112
A mente semelhante a de Cristo não dá nenhum valor àquilo que o
mundo valoriza, e considera como sendo de suma importância aquilo para o
qual o mundo atribui nenhum valor. Sou cristã há quase meio século, mas
tenho um longo caminho a percorrer. Quando estou diante de uma decisão
de qualquer tipo, se examino meu coração e minha mente, quase sempre
encontro muitas características da mente não renovada e apenas sugestões
tênues das renovadas. Estou vigilante? Às vezes. Mas deixe-me apenas
tentar orar cedo pela manhã ou manter minha mente atenta quando outra
pessoa está liderando em oração. No momento em que acho que encontrei
um pouco de generosidade, vejo que isso se aplica apenas à minha atitude
em relação a certas pessoas, não em relação a qualquer pessoa que possa
estar tentando me matar. Se eu detecto, uma vez na vida outra na morte, o
que parece ser uma pequena pitada de humildade (e o que estou fazendo
“detectando” afinal?), alguém me envia uma resenha de um dos meus
livros, como a que acabou sugerindo que “alguns leitores diriam que este
livro é baseado em um olhar superficial sobre as Escrituras”. Ou ouço um
relato de uma palestra que supostamente eu deveria ter dado — mal
representada, mal citada, citada fora do contexto, mal compreendida ou
censurada com um leve elogio — e eu estou acabada. Eu vou atrás das
coisas do Espírito? Bem, às vezes. “Senhor, Tu conheces todas as coisas. Tu
sabes que eu te amo”. Meu coração está faminto e sedento de retidão. Paz
de espírito? Sim, quase sempre, exceto quando chego em casa após uma
longa viagem e encontro a pilha de trabalho na escrivaninha.
Se eu quiser amar o Senhor meu Deus com toda a minha mente, não
haverá lugar nela para a carnalidade, para o orgulho, para a ansiedade, para
o amor a mim mesma. Como a mente pode ser preenchida com o amor do
Senhor e ter espaço para coisas como essa?
Quando as descubro, só posso orar: “Senhor, me perdoa. Ofereço-te
novamente meu corpo como um sacrifício vivo, pedindo-te que o aceites
como um ato de adoração e que continues teu santo trabalho de
transformação da minha mente de dentro para fora, para que eu possa
glorificar-te mais dignamente. Em nome de Jesus”.
Ao longo de nossa vida terrena, é sempre no ponto de necessidade —
aquele momento de crise em que nos propomos a alguma solução ou
resposta, ou mesmo alguma fuga — que nos é oferecida a oportunidade de
escolher . Aceitaremos as soluções, respostas e fugas que o mundo oferece
(e há sempre muitas delas) ou a alternativa radical mostrada à mente
sintonizada com a de Cristo. Os caminhos do mundo se exaltam contra
Deus. Às vezes eles parecem racionais e atraentes para o discípulo mais
sincero, mas Cristo nos diz então o que disse aos seus discípulos há muito
tempo, quando muitos deles já haviam desistido com repulsa: “Porventura,
quereis também vós outros retirar-vos?” Se respondermos como Pedro
respondeu — “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida
eterna” 113 — nossos pensamentos rebeldes são capturados mais uma vez. O
caminho da santidade é novamente visível. O discípulo dá um passo adiante
através do portão estreito.
1 Pedro 1.13, NVT.
Mateus 22.37, NVT. Itálico adicionado .
Romanos 12.1, tradução livre da versão New English Bible (NEB). Itálico adicionado .
Romanos 12.3.
Colossenses 3.2, NVI.
Efésios 1.17.
Efésios 1.20; tradução livre da versão NEB.
C. S. Lewis, A Preface to Paradise Lost (New York: Oxford University Press, 1942).
١ João ١.٨.
François de Fénelon, Spiritual Letters to Women (New Canaan, CT: Keats Publishing Co., 1981).
João 7.7.
João 15.18-20.
Ver Colossenses 3.2.
F. W. H. Meyers, Saint Paul (London: H. R. Allenson, Ltd., n.d.).
Kate B. Wilkinson, “May the Mind of Christ, My Savior”, extraído de Andando nos passos de Jesus ,
de Larry Mccall (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009).
1 Coríntios 2.2-3.
Romanos 12.2, NVT.
Provérbios 15.32.
Efésios 6.12-13, NVI.
2 Coríntios 10.3-5.
Extraído de um sermão feito pelo dr. Charles Stanley, In Touch Ministries , Box 7900, Atlanta, GA
30357, #AQ031, usado com permissão.
Elisabeth Elliot, Deixe-me ser mulher (São José dos Campos: Editora Fiel, 2021); The Mark of a
Man (Old Tappan, NJ: Fleming H. Revell, 1981).
1 Timóteo 6.2-6. (N. T.: No inglês, o versículo 3 é iniciado com uma frase que, para nós no
português, aparece no final do versículo 2. Para preservar o original, foi incluído o versículo 2 na
referência.)
Salmos 119.33-37.
Tito 1.10-11, 16, NVI.
Hebreus 4.12-13.
Ver 1 Coríntios 14.33.
Salmos 32.8-11.
Salmos 18.28, 30.
Tiago 3.15, 17.
João 6.67-68.
9 | A disciplina da posição
C
erto dia, uma amiga me ligou e me perguntou algo que me fez
pensar de uma nova forma.
“Ron e eu não temos ficado muito felizes com os sermões que
temos recebido ultimamente. Eu mal sei o que dizer ao pastor quando
saímos da igreja e apertamos as mãos. Mas o que mais me incomoda é
como honrá-lo. A Bíblia não nos diz para honrarmos todos os homens?”
E é verdade. Mas que pergunta curiosa para uma jovem mulher moderna.
Honra? Quem pensa em honra hoje em dia? Somos todos iguais. Nós nos
apresentamos apenas pelos primeiros nomes; negligenciamos o uso de
títulos para pessoas que uma vez teriam sido consideradas nossos
superiores; e o sistema de honra nas escolas parece ter caído fortemente.
Não tenho mais certeza se os escoteiros ainda juram pela “palavra de
escoteiro”, mas todo o país foi abalado quando 13 mil controladores de
tráfego aéreo quebraram um juramento ao entrarem em greve em 1981.
Alguns dos grevistas podem ter tido momentos de apreensão, considerando
o que o juramento realmente significava, mas o fato é que eles o fizeram,
concordando que o desejo deles por uma semana de 32 horas e um mínimo
de $30.642 dólares por ano substituíam o juramento que haviam assinado.
A revista Time , em referência a esse fato, citou William Murray, solicitador
geral da Grã-Bretanha no século dezoito: “Nenhum país pode subsistir doze
meses onde um juramento não é considerado obrigatório, pois a falta dele
deve necessariamente dissolver a sociedade”.
A Bíblia nos diz para dar “a devida honra” 114 a todos. Devida significa
“que se deve, pagável”; isto é, não é algo acima e além do chamado do
dever, mas algo obrigatório, como as contas, os pedágios ou os impostos.
Significa também o mesmo que exigido, assim como “o devido cuidado”,
ou “no devido tempo”.
Não tem nada a ver com nossos sentimentos sobre nós mesmos ou sobre
os outros, a despeito dos controladores de tráfego aéreo.
“Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. A
ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor”. 115
Aqui devemos enfatizar fortemente que o discípulo está sozinho diante
do Senhor, enfrentando sua obrigação principalmente para com o próprio
Deus. Deus não lhe perguntará se a outra pessoa cumpriu a parte dela no
acordo. Ele pede apenas um coração puro. É suficientemente fácil nos
exonerarmos com base no fracasso da outra parte (de uma pessoa, de uma
instituição, de uma sociedade) em cumprir sua obrigação, mas a obediência
de um discípulo não é contingente. “A ninguém fiques devendo coisa
alguma” é a única preocupação do indivíduo. Não há nenhuma exigência de
que nós nos asseguremos de que outros nos paguem.
Honra significa “respeito, alta consideração, reconhecimento de valor”.
Um cristão enxerga todos os homens como feitos à imagem de Deus. Todos
são pecadores também, o que significa que a imagem é manchada, mas é
uma imagem divina, capaz de redenção e, portanto, de ser considerada
honrosa.
Uma fonte de confusão é a definição de respeito . Respeito significa
“reverência debaixo de Deus”, antes de mais nada; isto é, uma apreciação
adequada pela pessoa que Deus fez pelo mesmo motivo de Deus a ter feito.
Mas a Bíblia diz que Deus “não faz acepção e pessoas”, 116 o que significa
que ele não tem favoritos. No mesmo sentido, Tiago diz que somos
inconsistentes e que estamos julgando por padrões falsos se tratamos “com
deferência”, 117 ou seja, se jogamos com os favoritos, como quando
prestamos atenção especial ao homem que usa roupas finas.
Discriminar alguém por falsas razões é errado. Em um lugar de culto,
tanto o homem bem-vestido com anéis de ouro quanto o pobre homem com
roupas gastas devem ser bem-vindos. Essa é uma obrigação cristã. O
homem rico que vem com roupas gastas, porém, ilustra outro lado da
moeda do respeito. Jesus contou uma história sobre um homem que foi
jogado nas trevas, onde havia choro e ranger de dentes, porque apareceu em
um casamento vestido inadequadamente 118 . É claro que o ponto que Jesus
estava fazendo nessa história não era principalmente de respeito, mas a
verdade está ali. Recusar a roupa apropriada (que, segundo me disseram,
era habitualmente fornecida pelo anfitrião para aqueles que não podiam
pagar) foi uma ofensa. Os ricos que se vestem de forma surrada quando
podiam se vestir de maneira respeitável são culpados de outra forma de
favoritismo: o esnobismo inverso.
Sei que estou patinando sobre gelo muito fino ao levantar a questão do
vestuário, uma vez que, por várias décadas, isso tem sido considerado pela
maioria dos cristãos como de muito pouca ou absolutamente nenhuma
importância, uma vez que Deus olha o coração, mas acredito que vale a
pena reconsiderar isso em termos de respeito. Quando estou disposta a me
vestir bem — seja para uma entrevista de trabalho, por exemplo; para um
convidado especial que estou entretendo; para um evento social para o qual
me sinto honrada por ter sido convidada —, isso não é uma indicação do
meu respeito pelo valor da outra pessoa? Não é um sinal do respeito de um
ator pelo seu público e do público pela pessoa que se apresenta quando eles
se vestem para a ocasião? Isso pode ser ridicularizado como uma forma de
orgulho (“quem você está tentando impressionar?”), mas pode ser uma
humildade genuína do mesmo tipo que nos levaria a polir a prata, tirar a
bela toalha de mesa e colocar luz de velas e flores para alguém muito
amado. A atitude dos estudantes, tenho notado, é fortemente influenciada
pela vestimenta de um professor, assim como pelos modos dele.
Um segundo motivo de confusão em matéria de respeito, além da
confusão sobre a definição, é a noção atual de que todos merecem a
igualdade do tipo olho por olho. Esse é um dos excessos da democracia, que
não deve ser confundido com o cristianismo. A verdade é que nem todos
têm direito a tudo. Uma criança tem o direito de ser cuidada. Um adulto
não. Um adulto tem o direito de votar, de se casar, de ser tributado. Uma
criança não.
A palavra-chave, que nos ajudará a entender algumas distinções
extremamente importantes, é devido . Quando Pedro nos diz para dar a
devida honra a todos, ele passa a especificar três maneiras diferentes de
obedecer a essa ordem: “amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. 119 Já
observamos que o que é devido é o que se deve. É apropriado, próprio,
adequado a essa pessoa em particular. Diferentes tipos de honra e respeito
são adequados a diferentes pessoas e, ao discriminarmos, nós os honramos
de fato. Nada ilustra isso mais claramente do que o casamento do Príncipe
Charles com a Lady Diana. Em virtude de Charles ser um príncipe e
herdeiro do trono da Inglaterra, a pompa e o esplendor daquele casamento
lhe eram devidos. Era devido, adequado, próprio, tanto quanto era exigido e
esperado. O fato de que nossas expectativas foram cumpridas foi uma fonte
de grande alegria. Os rostos das multidões testificaram eloquentemente isso.
A honra é dada. Não é tomada. Se o próprio príncipe Charles tivesse
mandado realizar a elaborada cerimônia contra a vontade do monarca ou do
povo, não haveria alegria alguma. Ele não o exigiu — sua posição o exigiu.
Isso é essencial em nossa compreensão do dever de honrar uns aos outros.
Devemos considerar a posição do outro diante de Deus.
Dever é outra palavra útil. Significa simplesmente “o que é devido
(como nos direitos alfandegários que devem ser pagos), qualquer ação
necessária ou apropriada à própria ocupação ou posição, um senso de
obrigação”.
Centenas de milhares agitaram bandeiras, aplaudiram e torceram
enquanto o carro real passava. Cavaleiros elegantemente uniformizados
cavalgavam cavalos esplendidamente caparisionados. Assim, a honra
apropriada foi oferecida ao príncipe e à princesa, mas eles, por sua vez,
honraram a multidão acenando com a cabeça, sorrindo, acenando com as
mãos e aparecendo várias vezes na varanda do Palácio de Buckingham para
reconhecer a reivindicação de seus súditos. Essa resposta foi a forma de
homenagear a multidão.
A honra tem a ver com orgulho — no mais verdadeiro e nobre sentido de
reconhecimento da missão divina. “Deem orgulho de posição uns aos outros
em estima”, 120 diz Paulo aos romanos. Em sua obra Out of Africa 121 , Isak
Dinesen chega mais perto de expressar o que isso significa:
O bárbaro ama seu próprio orgulho e odeia, ou não acredita, no orgulho dos outros. Serei
um ser civilizado, amarei o orgulho de meus adversários, de meus servos e de minha
amante; e minha casa será, com toda a humildade, no deserto, um lugar civilizado.
Ame o orgulho de Deus além de todas as coisas, e o orgulho de seu próximo como seu
próprio orgulho. O orgulho dos leões: não os cale em zoológicos. O orgulho de seus cães:
não os deixe engordar. Ame o orgulho de seus companheiros partidários, e não lhes permita
nenhuma autopiedade.
Ame o orgulho das nações conquistadas, e deixe-os honrar seu pai e sua mãe.
Sua renúncia à glória a que sua natureza divina lhe dava direito me
parece talvez a parte mais incrível de sua humilhação. Sua obediência o
capacitou a fazer qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que
agradasse ao Pai, sem pensar em “como seria”. Aquele que tinha conhecido
a adoração incessante dos anjos veio a ser um escravo dos homens. Pregar,
ensinar, curar os doentes e ressuscitar os mortos eram partes de seu
ministério, é claro, e as partes que poderíamos nos considerar dispostos a
fazer por Deus se fosse isso que ele pedisse. Ele podia ser visto como Deus
neles. Mas Jesus também caminhava quilômetros no calor poeirento. Ele
curou e as pessoas se esqueceram de agradecer-lhe. Foi pressionado e
acossado por multidões de pessoas exigentes, ficou cansado, sedento e
faminto, foi “seguido”, assistido e assediado por líderes religiosos
suspeitos, invejosos e farisaicos, e no final foi açoitado, cuspido e
despojado, e teve pregos martelados em suas mãos. Ele renunciou ao direito
(ou à honra) de ser tratado publicamente como igual a Deus.
Se eu e você fôssemos solicitados a escrever a descrição do trabalho de
um salvador, o que constaria da lista? Um olhar cuidadoso sobre o que a
vontade do Pai incluiu para o Salvador do mundo nos dará uma pista sobre
o que um seguidor dele poderia fazer. Dificilmente esperaríamos que ele
tivesse de ir a um casamento de aldeia, que fosse um convidado para o
jantar em muitos tipos diferentes de lares, que tomasse em seus braços
filhinhos que não passavam de um incômodo para os discípulos ou que
curasse uma mulher que não fosse uma das “ovelhas perdidas” de Israel.
Penso na descrição do trabalho, por exemplo, de um missionário. Meu
irmão Dave (Howard) e eu estávamos discutindo a qualificação número um.
Dave esteve ligado a missões e a missionários de uma forma ou de outra
durante toda sua vida, e ele não teve problemas em ver a flexibilidade no
topo da lista. Humildade era o que eu havia pensado, mas enquanto
falávamos sobre isso vi que essas duas características realmente se
resumem à mesma coisa.
Um missionário deve ser humilde o suficiente para ser flexível. Hoje em
dia, os jovens candidatos são muitas vezes tão altamente treinados que se
sentem superqualificados para os trabalhos que precisam ser feitos. A
maioria dos postos de missão precisa desesperadamente de pessoas que
estejam dispostas a fazer qualquer coisa que precise ser feita. É bom
oferecer-se para o serviço, mas a forma de serviço não deve ser definida de
forma muito restrita. É para ministrar, e não para sermos ministrados, que
somos enviados.
Fui ao Equador para fazer um trabalho de tradução da Bíblia; um
trabalho que, certamente, precisa ser feito. Porém, para fazer isso, tive que
começar aprendendo línguas não escritas — o que significava passar muito
tempo com pessoas que falavam a língua e que não estavam nem um pouco
interessadas na tradução da Bíblia. Para passar tempo com eles, tive que
fazer o que eles faziam, sentar-me onde eles se sentavam, comer o que
comiam, esforçar-me para pensar o que eles pensavam (até certo ponto!).
Eu também tive que viver. Viver levava muito tempo, sob o que eram para
mim, às vezes, condições difíceis. Eu precisava de uma lâmpada de
gasolina, por isso gastei preciosos minutos alargando os geradores,
substituindo as mantas ou enchendo essas lâmpadas. Trabalho
“missionário”? Sim, necessariamente.
Eu não fui treinada para fazer trabalho médico, mas quando você
descobre que é a única pessoa em um raio de quilômetros que está disposta
a ter sangue em suas mãos e às vezes em suas roupas, que sabe como dar
uma injeção ou administrar remédios contra vermes, você acaba fazendo
exatamente isso. Se vai ter alguma aparência de eficiência civilizada em sua
vida, você introduz coisas como lençóis de cama, pistas de pouso, janelas
com tela e talvez um refrigerador de querosene. Logo você vê que não está
sentada à uma mesa, preenchendo cartões de línguas diferentes ou tentando
descobrir como escrever “No princípio era o Verbo” em Quichua, mas você
está no chão, de barriga para baixo, olhando para o pavio fumegante da
geladeira, tentando descobrir o que fazer antes que tudo apodreça no calor
tropical. Ou você está lavando lençóis à mão ou ensinando outra pessoa
como fazê-lo. Você é o capataz na pista de pouso, esperando manter 25
homens e mulheres balançando machetes alegremente durante quatro horas
debaixo do sol quente (o sol incomoda você , não eles) e esperando que o
resultado seja uma pista de pouso que atenda às especificações do piloto
missionário.
A questão que surge bastante cedo na carreira de um missionário (a
mesma questão que surge em qualquer discípulo) é: “Afinal, qual é a minha
‘posição’?”
Qual era a posição de Jesus? Um servo. Um escravo. A minha conduta
em relação aos outros surge da minha vida nele.
À princípio, a posição do missionário pode ser a de honrar aqueles que
habitam o lugar aonde ele vai, assim como o mais forte honra o mais fraco,
ou o benfeitor honra o beneficiário. Mas isso logo mudará. Eu estava
profundamente consciente de minha posição como estrangeira, aberração e
desvantagem para com os índios. Incapaz de saber como lidar com a selva
em si, totalmente ignorante e aparentemente atrasada no que diz respeito à
língua, além de não ter nada de muito útil para eles, eu certamente não
estava em posição de poder. Quando começamos a lhes dar as Escrituras em
sua própria língua e eles passaram a crer nelas e obedecer a elas, os índios
começaram a reconhecer nossas razões para estarmos lá e a nos procurar
para nos orientar. Essa foi uma mudança para uma posição de autoridade,
logo seguida por outra, onde entregamos as rédeas e aprendemos a honrar
aquelas pessoas não mais como mais fracas, mas como espiritualmente
responsáveis perante Deus. Graciosamente renunciar a uma posição e
ocupar outra, continuar trabalhando com a igreja em crescimento, mas sob
sua autoridade, requer uma avaliação verdadeira e afiada da sua própria
posição, bem como um olhar único para a glória de Deus.
O que me ajudou a chegar nesse entendimento foi perceber que eu era
um vaso de barro. Vi um bom número de panelas de barro em casas
indígenas. Elas eram muito comuns, feitas de coisas que se encontravam em
quase todos os riachos e facilmente substituíveis. O que havia nelas era
muito mais interessante do que as panelas em si, e era isso que eu era: coisa
comum, substituível, mas que contém um “grande tesouro” 137 , que é a vida
de Jesus. Somente quando vivesse essa vida eu seria capaz de preferir os
outros em honra.
Certamente uma das alegrias do céu será a aceitação de todo o coração e
a ação de graças pela posição que foi dada a outros, pois nossa preocupação
não será mais posição, honra ou direitos para nós mesmos, mas bênção,
honra, glória e poder para o Cordeiro que está sentado no trono.
Ver 1 Pedro 2.17; a expressão devida honra aparece na versão New English Bible (NEB).
Romanos 13.7-8.
Atos 10.34.
Tiago 2.3.
Ver Mateus 22.11-14, NAA.
1 Pedro 2.17.
Romanos 12.10, tradução livre da versão NEB. (N. T.: A maioria das versões em português trazem a
tradução “preferir em honra uns aos outros”. Nesse caso, a versão utilizada pela autora traz a ideia
de conceder o orgulho de posição a outra pessoa.)
Isak Dinesen, Out of Africa (New York: Random House, 1972), 261.
Lucas 6.27-28, 30, NAA.
Levítico 19.15-16.
Ver 1 Timóteo 5.17.
Filipenses 2.30.
1 Tessalonicenses 5.12-13.
1 Timóteo 6.1-2, NAA.
Efésios 6.5-8, NAA.
1 Pedro 3.4.
Efésios 5.25.
Efésios 6.9.
Ver 1 Timóteo 5.3-4.
Efésios 6.4.
João 17.6, 8-9, 18.
N. T.: Tradução livre.
Filipenses 2.3-8.
2 Coríntios 4.7, NVT.
10 | A disciplina do tempo
Tu que a todos ama, estou firmada em ti,
Governante do tempo, Rei da Eternidade
em ti não há grande ou pequeno,
pois tu és tudo, e a tudo enche.
A
my Carmichael uniu lindamente em seu poema os dois conceitos
antigos do tempo. Um, expresso pela palavra grega chronos ,
refere-se aos “minutos de nossas horas” ou à noção de duração e
sucessão. O outro, kairós , é o que o dr. James Houston chama de “tempo
avaliado”, que significa instrumentação e propósito. “O homem precisa ver-
se significativo, à luz dos acontecimentos, de kairós , vendo-se a si mesmo
esperançosamente no contexto de uma realidade maior do que sua própria
temporalidade, de chronos. ” 139
“Estou firmada em ti, Governante do tempo, Rei da Eternidade” é a
expressão de fé de que a minha temporalidade é compreendida apenas no
contexto infinito da eternidade. Nem mesmo a pequena gota de orvalho fica
sem o cuidado e a atenção daquele que a todos ama. Devo, então, pensar
que algum detalhe de minha vida terrena, mesmo tão pequena como um
minuto de uma das minhas horas, não tenha sentido? Como devo dar conta
do meu tempo ao meu mestre?
Fui educada para acreditar que é pecado chegar atrasada. Fazer os outros
esperarem por você, meus pais nos ensinaram, é roubar deles um de seus
bens mais preciosos. O tempo é uma criatura — uma coisa criada — e um
presente. Não podemos fazer mais tempo. Só podemos recebê-lo e ser fiéis
mordomos no uso dele.
“Eu não tenho tempo” é provavelmente uma mentira mais comum do
que imaginamos, que acoberta o “Eu não quero”. Nós temos tempo — 24
horas em um dia, sete dias em uma semana. Todos nós temos a mesma
parcela. “Se o presidente pode governar o país em 24 horas por dia, você
deve ser capaz de limpar seu quarto”, foi o que uma mãe disse a seu filho
adolescente. As exigências de nosso tempo diferem, é claro, e é aqui que o
discípulo deve consultar seu mestre. O que o Senhor quer que eu faça?
Haverá tempo, tenha certeza absoluta, para tudo o que Deus quer que
façamos.
Quando estamos no meio de um grande negócio, dificilmente pensamos
no kairós e vemos o chronos apenas como horas que voam mais rápido do
que podemos contar. É quando as coisas estão calmas que nos damos conta
de minutos que passam lentamente. Então temos a oportunidade, talvez, de
pensar no significado mais profundo dessas duas palavras à luz da
eternidade.
Este capítulo está sendo escrito em tranquilidade. Isso é especialmente
maravilhoso, pois acontece depois de três semanas bastante rigorosas de
viagem pela Inglaterra — duas mil milhas de viagem, muitas reuniões,
muitas camas diferentes, incontáveis xícaras de chá. Eu não tinha certeza de
onde estava quando acordei pela manhã. “Vamos ver: é terça-feira? Aqui
deve ser Sheffield”.
Sonhei ontem à noite que estava novamente em uma reunião, ouvindo os
dois ou três oradores que me precederiam, revisando nervosamente em
minha cabeça o que eu ia dizer. Ocorreu-me, então, em meu sonho, que eu
não precisava dar nenhuma palestra. Eu poderia acordar se escolhesse, o
que fiz, para meu imenso alívio, não encontrando nada além de um longo e
tranquilo dia diante de mim, em que eu não daria palestra alguma.
Na verdade, eu nem sequer falaria. Estou sozinha no hytte . Nenhum
telefone tocará, nenhum correio chegará. Há longos períodos de tempo não
marcados — não há despertador, não há notícias da manhã para ouvir, não
há hora especificada para as refeições, já que, nos dias em que Lars está
aqui, ele pesca. Nunca tenho certeza se o cardápio incluirá peixe ou a que
horas podemos sentar-nos à mesa. Lars sai, às vezes durante a noite, para
visitar parentes e ver os lugares onde ele cresceu, enquanto eu fico sozinha.
Quase não é necessário limpar ou cozinhar. Tenho poucas opções de roupas
para usar. É uma felicidade “ter tempo”.
A sensação do tempo é estranhamente alterada aqui por causa da duração
da luz do dia. Estamos em junho, e o sol parece relutante em se pôr. Ele
pende alto no céu ocidental sobre as águas, e quando a noite deveria estar
sobre nós, o sol escorregou apenas um pouco abaixo do horizonte, onde ele
rola paralelamente à linha de colinas baixas. Acordo à meia-noite e vou
ficar ao lado da janela, olhando para o fiorde. O céu é iluminado por um
brilho sinistro, como a luminosidade de uma tarde escurecida pela
tempestade. Nem uma vez tive que acender uma lâmpada, portanto não há
“pontuação” para a noite e para a manhã.
Nascer do sol, meio-dia, pôr-do-sol, meia-noite. Domingo, segunda-
feira, terça-feira e quarta-feira. Janeiro, maio e setembro. Inverno,
primavera, verão, outono. Páscoa, Ação de Graças, Natal. Esses são os
sinais de pontuação do tempo, e que maravilhosa misericórdia Deus ter
separado a luz das trevas — “e houve tarde e manhã, o primeiro dia”. Seis
dias, depois um dia de descanso. Luas que crescem e minguam. Estações
que vêm e vão.
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito
debaixo do céu”, escreveu Kohelet, o pregador do livro de Eclesiastes. Para
nascer, morrer, plantar e arrancar o que se plantou, matar e curar, derribar e
edificar, chorar e rir, prantear e dançar, espalhar pedras e ajuntá-las, abraçar
e afastar-se, buscar e perder, guardar e deitar fora, rasgar e coser. Há
momentos para o silêncio e para a fala, para o amor e o ódio, para a guerra e
a paz. 140
“Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os
afligir. Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a
eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que
Deus fez desde o princípio até ao fim”. 141
Aqui está uma receita para o tédio e o cinismo. Se a vida nada mais é do
que uma sequência de minutos sem sentido, enfiada em horas, sem
compreensão da obra de Deus do começo ao fim, a canção de um caipira
diz tudo:
Abra as portas e as moscas entram,
feche as portas e estou suando de novo.
A vida fica tediosa, não fica?
R
osalind Goforth, em sua história de vida que ela e seu marido
levaram como missionários na China, contou sobre terem sido
roubados por bandidos e terem perdido tudo o que tinham. Ela
chorou.
“Mas, minha querida”, seu marido, Jonathan, chamou-lhe a atenção:
“São apenas coisas ”.
“Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem
não pode ser meu discípulo”, 150 foi o que Jesus disse sobre as coisas.
Essa é uma condição severa. Poucos de nós a cumprimos literalmente.
Eu gosto de coisas materiais. No hytte , por mais primitivo que pareça
para muitas pessoas, tínhamos muito conforto. Havia uma pia de aço
inoxidável na minúscula cozinha, que só não tinha torneiras. Ela tinha um
ralo que corria para um recipiente plástico que Lars esvaziava a cada
poucos dias. Tínhamos um fogão a gás no qual cozinhávamos e aquecíamos
água em uma grande chaleira laranja; toda nossa água quente vinha dessa
fonte, para ser usada tanto para lavar louça quanto para tomar banho. A
água era coletada em um grande tanque do telhado e levada para dentro de
casa em um balde. A casa anexa era de primeira-classe — cortinas de renda
na janela, quadros nas paredes.
No entanto, estou de volta à minha casa agora e aprecio mais do que
nunca um banheiro com azulejos e uma pia de cozinha com torneiras. A
água quente é um luxo extravagante, e muitas vezes agradeço a Deus por
isso.
Geralmente é preciso perda ou privação em alguma medida para que a
maioria de nós conte as bênçãos que tão prontamente tomamos como
garantidas. A perda de coisas materiais não deve ser comparada à perda de
pessoas que amamos, mas a maioria de nós já experimentou ambas, e são as
coisas que estamos considerando agora.
Eu perdi 1 ano de trabalho linguístico no final do meu primeiro ano
como missionária.
Vários anos depois que meu primeiro marido, Jim, morreu, eu assisti a
uma formatura no Lincoln Center, em Nova York. Quando tirei minhas
luvas de pelica, mais tarde, vi que havia perdido o anel de noivado de
diamantes que ele me dera. Voltei imediatamente e procurei nas filas de
assentos com um policial e sua lanterna, mas a equipe de limpeza já tinha
feito a aspiração.
Na Costa Rica, minha carteira foi roubada quando a coloquei no balcão
por um segundo para procurar meu passaporte em minha bolsa. O ágil
agente de viagem do outro lado do balcão (não havia mais ninguém perto de
nós) não sabia nada sobre o ocorrido e muito solenemente me ajudou a
procurá-la.
Eu perdi um Novo Testamento com dezenove anos de anotações nele.
Minha casa foi assaltada duas vezes. Na primeira vez, eles levaram não
só os itens substituíveis, como a televisão, um rádio e um gravador de fita,
mas toda a prataria de herança. Quando ocorreu o segundo assalto, eu me
perguntei por que não havia colocado um aviso mais cedo: “Este lugar foi
limpo das coisas que você está procurando — dificilmente valerá a pena o
risco de invadir”. Minha amiga Harriet Payson teve uma ideia melhor. Ela
colocou um pequeno letreiro em seu armário que guardava a prata: “Deus
ama você”.
Poucos de nós conhecem tão bem os extremos que o apóstolo Paulo
conheceu: “Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e
em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de
fome; assim de abundância como de escassez”. 151 Seja qual for a medida na
qual tenhamos experimentado isso, o Senhor nos deu a oportunidade de
aprender as disciplinas vitais da posse.
A primeira lição é que as coisas são dadas por Deus .
“Não vos enganeis, meus amados irmãos. Toda boa dádiva e todo dom
perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes”. 152
Vejo com frequência, brilhando no azul profundo do céu pouco antes do
amanhecer, a estrela da manhã. Ao crepúsculo, o mar às vezes reflete as
cores do rosa pálido e as tonalidades do pôr-do-sol. À noite, acordo para
encontrar o quarto inundado pelo luar refletido do mar, no tampo de vidro
da minha mesa junto à janela e no espelho da penteadeira. Voando a 30 mil
pés, vi uma luz gloriosa brilhando sobre as torres e os castelos das nuvens
cúmulo-nimbo. Que presente são essas luzes do céu! O mesmo Pai que as
dá também nos dá todas as outras coisas boas e perfeitas.
É da natureza de Deus dar. Ele não pode evitar dar, assim como não pode
evitar amar. Podemos contar absolutamente que ele nos dará tudo o que é
bom para nós, isto é, tudo aquilo que pode nos ajudar a ser e fazer o que ele
quer. Como ele não poderia fazer isso?
“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o
entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?”
153
A segunda lição é que as coisas nos são dadas para serem recebidas com
ação de graças .
Deus nos dá. Nós recebemos. Os animais também fazem isso, mas de
forma mais direta e simples do que nós:
Teu, SENHOR , é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque teu é tudo
quanto há nos céus e na terra [...] Porque quem sou eu, e quem é o meu povo para que
pudéssemos dar voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to
damos. 156
O povo se juntou ao louvor de Davi, prostrando-se diante do Senhor e do
rei e, no dia seguinte, eles celebraram com o sacrifício de bois, carneiros,
cordeiros e ofertas de libações, “com grande regozijo”.
“Cada um deve decidir em seu coração quanto dar. Não contribuam com
relutância ou por obrigação. ‘Pois Deus ama quem dá com alegria.’ Deus é
capaz de lhes conceder todo tipo de bênçãos, para que, em todo tempo,
vocês tenham tudo de que precisam, e muito mais ainda, para repartir com
outros”. 157
Diz-se que Hudson Taylor, fundador da China Inland Mission, uma vez
por ano verificava o que tinha. Coisas que ele não usava há um ano eram
doadas. Ele acreditava que seria responsabilizado pelo que retivesse e não
havia razão para reter coisas que outra pessoa pudesse usar enquanto ele
mesmo não tivesse precisado delas durante o período de 1 ano.
Alguns de nós somos acumuladores. Frugalidade é uma coisa, acumular
é outra. Ter vivido em um país onde um frasco comum de maionese valia
cinquenta centavos sem a maionese me faz extremamente cuidadosa com o
que eu jogo fora. Eu costumo guardar o maior número possível de sacolas
plásticas e os arames que as fecham, pois posso usá-los sempre que
necessário. Minha mesquinhez no uso de papel manteiga e toalhas de papel
é quase uma obsessão. Sou conhecida por secar as toalhas de papel usadas
para secar folhas de alface — mas vivi por onze anos em um lugar onde não
havia tais coisas, por isso, para mim, elas ainda são luxos.
No entanto, conheço uma senhora que tem armários cheios de pratos
rachados e lascados, folhas de papel alumínio de comidas que foram
congeladas, recipientes de plástico de queijo cottage e sorvete, e garfos e
colheres descartáveis — em quantidade para durar até o milênio. A maioria
de nós tem alguma área de nossas vidas que está desordenada e precisa ser
liberada para dar espaço a coisas úteis. Por que nos apegamos às coisas
desnecessárias? Seria por que nossa segurança reside na acumulação de
bens materiais? Existe um sentimento de satisfação ao abrir um armário e
ver 59 pares de sapatos, 42 blusas ou camisas? Será que uma pessoa pode
fazer um uso razoável de seis conjuntos diferentes de pratos? (Estou muito
grata a uma mulher da minha classe bíblica que, quando descobriu que
algumas das outras mulheres estavam planejando ir juntas comprar um
conjunto de louças para mim, lembrou-se de um conjunto não usado de
porcelana Lenox que ela havia recebido como presente de casamento e me
deu).
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua
esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente
para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar
e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o
futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. 158
Naturalmente, essa lição leva à quarta, que as coisas nos são dadas para
que as desfrutemos por um tempo .
Nada prejudicou mais a visão cristã da vida do que a hedionda noção de
que aqueles que são verdadeiramente espirituais perderam todo o interesse
por este mundo e por suas belezas. A Bíblia diz: “Deus [...] tudo nos
proporciona ricamente para nosso aprazimento”. Ela também diz: “Não
ameis o mundo nem as coisas que há no mundo”. 159 É totalmente adequado
e apropriado que desfrutemos as coisas feitas para esse fim. O que não é
nada adequado ou apropriado é que coloquemos nosso coração nelas. As
coisas temporais devem ser tratadas como coisas temporais — que foram
recebidas, pelas quais somos gratos, que são oferecidas de volta, mas
desfrutadas . Elas não devem ser tratadas como coisas eternas.
Jesus disse: “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza;
porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele
possui”. 160 Ele continuou contando a história de um homem cujas colheitas
renderam tanto que ele teve que derrubar seus celeiros para construir
celeiros maiores. Então, ele se sentou e disse a si mesmo com confiança:
“Descansa, come, bebe e regala-te”.
“Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que
tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e
não é rico para com Deus”. 161
“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a
ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós
outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não
escavam, nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o
teu coração”. 162
Devo confessar que houve um sentimento de libertação quando minha
prata se foi. Eu me sentia inquieta cada vez que saíamos de casa. Tinha
havido uma série de assaltos em nosso bairro, e sabíamos que
provavelmente estávamos na lista. A polícia estava bastante certa de que
sabia quem estava fazendo isso, mas parecia impotente para fazer qualquer
coisa antes ou depois. Quando aconteceu, fiquei chocada, mas muito
rapidamente fui capaz de dizer: “Bem, lá se foi isso. Obrigada, Senhor”.
Meu coração estava mais leve. Gastamos parte do dinheiro do seguro em
um conjunto de prata platinada que suponho que ninguém vai querer tanto
assim.
O jovem Francisco de Assis, acreditando que deveria casar-se com a
“Senhora Pobreza”, despiu suas roupas e as jogou no chão.
“De agora em diante”, disse ele à multidão em frente ao palácio do
bispo, “posso avançar nu diante do Senhor, verdadeiramente não mais
dizendo: meu pai, Peter Bernardone, mas: nosso Pai que está nos céus!” 163
O jardineiro do bispo lhe deu um pequeno casaco, cheio de buracos,
sobre o qual ele desenhou uma cruz de giz. Em seguida, partiu pelo bosque,
cantando os louvores do Senhor com toda a força de seus pulmões.
Nem todos os cristãos são obrigados a se despir e a ir cantar no bosque,
mas todos são obrigados a ter a mesma atitude de total liberdade da
ansiedade que permitiu que São Francisco cantasse.
O coração que está relutante em receber alegremente todos os bons dons
de Deus também está relutante em se separar de qualquer um deles.
Um homem que tinha grandes posses veio perguntar a Jesus o que ele
deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus disse que ele deveria guardar
os mandamentos. Ele o tinha feito, disse o homem. O que mais era
necessário?
“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, [...] depois, vem e segue-
me.” 164
A atitude do homem em relação aos seus bens é revelada quando ele vai
embora com o coração pesado. Ele não poderia conhecer a liberdade
enquanto se agarrasse aos seus bens. Ele veio a Jesus com o fardo das
riquezas. Ele foi embora igualmente carregado quando Jesus quis dar-lhe
descanso.
Entre minhas menores posses está uma que parece ser um grande
presente da civilização — um cobertor elétrico. Aqui na Nova Inglaterra,
onde nossos esforços para conservar o combustível nos obrigam a manter a
casa um pouco mais fria do que um iglu, é delicioso entrar em uma cama
pré-aquecida. Também sou grata pelos lençóis limpos secos pelo sol e pelo
vento; pelo creme no cereal de flocos de uva e nozes; pelos supermercados
e pelo carro que me faz chegar até eles; pelo telefone, pela eletricidade e
pelo encanamento. Sei muito bem que todas essas coisas são presentes,
totalmente imerecidos, cada um deles passíveis de serem movidos muito
rapidamente e ainda assim destinados ao desfrute se forem dados.
“Mas as coisas materiais não são inimigas das espirituais?”, você
pergunta.
A resposta é não. É uma heresia de origem antiga, mas comum em todas
as épocas, imaginar que existe uma dicotomia entre o que é visto e o que
não é. O que se vê procede do invisível.
“Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus,
de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” 165 .
O dualismo sustenta que escapar, reprimir ou ignorar o material é bom.
O corpo é, em si mesmo, uma prisão da qual a alma deve escapar. O
cristianismo não é dualismo. O corpo não é o mal. Jesus Cristo desceu do
céu, foi encarnado pelo Espírito Santo e feito homem, santificando assim
para sempre as coisas visíveis. Deus não está procurando homens e
mulheres que irão aprender a odiar o que ele fez, mas está procurando
aqueles que aprenderão a amar as coisas da forma que ele ama, como coisas
que procedem dele e voltam para ele.
“Deus vai me tirar os bens?”, você pergunta.
Se essa é a única maneira que ele pode chamar sua atenção, pode ser que
ele realmente o faça. Se a perda ajudará a mudar sua perspectiva sobre o
valor relativo das coisas vistas e não vistas, ele pode fazer isso de fato. O
apóstolo Paulo afirmou ter sofrido a perda de tudo por causa de Cristo. “Eu
as considero como esterco para poder ganhar Cristo e ser encontrado nele
[...] Quero conhecer Cristo”. 166
De fato, as perdas mais esmagadoras da minha vida, aquelas que eu mais
temia, foram “de longe compensadas pelo ganho de conhecer Cristo Jesus,
meu Senhor”. 167 Nunca poderei provar isso a ninguém. Não posso
demonstrá-lo logicamente ou cientificamente. Só sei que é verdade e o diria
com todo o meu coração a outros que, desejando conhecer Cristo em toda
sua plenitude — no poder de sua ressurreição — e na comunhão de seu
sofrimento — ainda temem a perda. Não tenham medo. Não tenham medo.
Não tenham medo. O ganho será maior do que tudo.
“Pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para
nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles [...] pois o que se vê
é transitório, mas o que não se vê é eterno”. 168
Mas ainda permanece um medo.
“Suponhamos que Deus não me tire os meus bens. Será que ele me pede
para desistir deles?”
George MacDonald tem aqui um pouco de “consolo mórbido”:
Você está tão satisfeito com o que você é, que nunca procurou a vida eterna, nunca teve
fome e sede da justiça de Deus, da perfeição de seu ser? Se essa última declaração for sua
condição, então seja consolado; o Mestre não exige de você que venda o que tem e dê aos
pobres. Você o segue! Você vai com ele para pregar boas novas! — Você, que não se
importa com a justiça! Você não é aquele cuja companhia é desejável para o Mestre. Sede
consolados, digo eu: ele não quer você; ele não lhe pedirá que você abra sua bolsa para ele;
você pode dar ou reter: isso não significa nada para ele [...] Vá e observe os mandamento s.
Isso ainda não chegou ao seu dinheiro. Os mandamentos são suficientes para você. Você
ainda não é um filho no reino. Você não se importa com os braços de seu Pai; você valoriza
apenas o abrigo do teto dele. Quanto ao seu dinheiro, deixe que os mandamentos lhe
orientem como utilizá-lo. É uma presunção lamentável se perguntar se é exigido de vocês
que vendam tudo o que têm [...] Para o Jovem, ter vendido tudo e seguir Jesus teria sido
aceitar a patente de paridade de Deus: a vocês isso não é oferecido.
Isso o conforta? Então, ai de você! [...] Seu alívio é saber que o Senhor não precisa de
você — não requer que você se separe de seu dinheiro, não oferece a si mesmo a você. Você
de fato não o vende por trinta moedas de prata, mas está feliz por não comprá-lo com tudo o
que você tem. 169
“Mas”, diz você, “eu realmente busco a vida eterna”. Eu tenho muita
fome e sede de justiça. Eu me preocupo com os braços do Pai. Devo então
abandonar tudo o que possuo, hoje, literalmente?”
Só posso dizer o seguinte: Deus pode um dia lhe pedir isso. Se ele o
fizer, creio que primeiro ele o preparará para isso e testará a validade de sua
reivindicação de boa vontade por meio de compromissos menores.
Você dá o dízimo? O dinheiro é um bom lugar para começar, pois é o que
nos toca mais. Conheço uma igreja batista do Sul onde todos os domingos
de manhã a congregação se levanta e diz: “A Bíblia ensina. Eu acredito
nisso. Dê o dízimo”. A oferta é, então, recolhida, em média cerca de 30 mil
dólares por semana.
Um dízimo é um décimo. Nos tempos do Antigo Testamento, o povo de
Israel dava um décimo de tudo o que tinha — rebanhos, frutos, colheitas,
dinheiro. Devemos nós, que vivemos “sob a graça”, fazer menos do que era
exigido por lei? Devemos deixar que nossas ofertas sejam uma “primeira
carga” ao Senhor?
“Honra ao SENHOR com os teus bens e com as primícias de toda a tua
renda; e se encherão fartamente os teus celeiros, e transbordarão de vinho
os teus lagares”. 170
“Devo dar um décimo da renda bruta ou um décimo da renda depois dos
impostos?” Se você achar difícil fazer qualquer um dos dois, não é provável
que Deus ainda esteja convidando você a abandonar tudo para segui-lo.
Outro teste possível: como você reage quando suas posses são
danificadas, destruídas, roubadas?
Você está disposto a ser defraudado? Você exige pagamento?
Você está chateado com alguma infração ao seu “direito” de possuir?
Está preocupado com o que lhe pertence? Seus punhos estão cerrados ou
suas palmas estão abertas? Quem é seu mestre, Deus ou dinheiro? Atrás do
que você tem corrido?
Roupas, comida, dinheiro: “Porque os gentios é que procuram todas estas
coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas” 171 . Ponha
sua mente no Reino de Deus e em sua justiça antes de tudo, e todo o resto
virá até você também. “Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã,
pois o amanhã trará os seus cuidados.”
Portanto, estamos de volta à primeira lição: as coisas são dadas por Deus.
Podemos confiar nele para nos dar. Meu cachorrinho, MacDuff, me ensinou
muitas lições. Como a vida era simples para ele! Ele confiava em mim. Ele
viveu sua vida um dia de cada vez, vestindo seu único casaco preto,
fornecido por um Pai celestial, apropriado a todas as ocasiões, o ano inteiro.
O jantar estava lá no pote — ração Ken L., Gaines-Burgers, restos da mesa,
o que quer que fosse. Nenhuma decisão sobre o cardápio o perturbava. Ele
tinha uma casa e um tremendo quintal, e alguns esquilos e coelhos que ele
se sentia responsável por perseguir e para os quais latir, mas não tinha
impostos ou pagamentos de hipoteca. Todas as coisas eram resolvidas para
ele. O que ele fez de forma natural é uma dura lição, a qual nós, seres
humanos, temos que desenvolver.
C. S. Lewis escreveu à Senhora Americana, quando ela teve uma crise
financeira: “Suponho que viver no dia a dia (“não andeis ansiosos pelo dia
de amanhã”) é exatamente o que temos que aprender — embora o velho
Adão em mim às vezes murmure que se Deus quisesse que eu vivesse como
os lírios do campo, se ele não me daria a mesma falta de nervosismo e
imaginação que eles desfrutam!” 172
Quatro lições, então:
1. As coisas são dadas por Deus.
2. As coisas devem ser recebidas com ações de graça.
3. As coisas são materiais para sacrifício.
4. As coisas nos são dadas para que as desfrutemos por um tempo.
E há um quinto item: tudo o que pertence a Cristo é nosso . Portanto,
como escreveu Amy Carmichael: “Tudo o que sempre foi nosso é nosso
para sempre”.
Dizemos muitas vezes que o que é nosso pertence a Cristo. Será que nos
lembramos do oposto: que o que é dele é nosso? Isso me parece uma
verdade maravilhosa, quase uma verdade incrível. Se assim o é, como
podemos realmente “perder” alguma coisa? Como podemos sequer falar
que ele tem “direito” aos nossos bens?
“Portanto, ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso: seja
Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam
as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e
Cristo, de Deus”. 173
“Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que eu tenho é teu”, diz-nos o
Pai. Isso é riqueza.
Lucas 14.33.
Filipenses 4.12.
Tiago 1.16-17.
Romanos 8.32.
Salmos 104.24, 25, 27, 28.
1 Coríntios 4.7.
1 Crônicas 29.11, 14.
2 Coríntios 9.7-8, NVT.
1 Timóteo 6.17-19.
1 João 2.15.
Lucas 12.15.
Lucas 12.20-21.
Mateus 6.19-21.
Omer Englebert, Saint Francis of Assisi: A Biography (Ann Arbor, MI: Servant, 1979), 36-37.
Mateus 19.21.
Hebreus 11.3.
Filipenses 3.8, 10, NVI.
Filipenses 3.8, tradução livre da versão New English Bible (NEB).
2 Coríntios 4.17,18, NVI.
George MacDonald, “The Hardness of the Way”, Anthology of George MacDonald , ed. C. S.
Lewis (New York: Macmillan, 1947). 113-14.
Provérbios 3.9-10.
Mateus 6.32-34.
C. S. Lewis, Letters to an American Lady , ed. Clyde S. Kilby (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), 76.
1 Coríntios 3.21-23.
12 | A disciplina do trabalho
N
ão existe um trabalho cristão. Ou seja, não existe trabalho no
mundo que seja, em si mesmo, cristão. O trabalho cristão é
qualquer tipo de trabalho, desde limpar um esgoto até pregar um
sermão, que é feito por um cristão e oferecido a Deus.
Isso significa que ninguém é excluído de servir a Deus. Significa que
nenhum trabalho está “abaixo” de um cristão. Significa que não há trabalho
no mundo que precise ser entediante ou inútil. Um cristão encontra
realização não no tipo particular de trabalho que ele faz, mas na forma
como o faz. O trabalho feito para Cristo o tempo todo deve ser “trabalho
cristão em tempo integral”.
Os coletores de impostos e soldados estavam entre aqueles que saíram
para o deserto para serem batizados por João. Quando perguntaram o que
deveriam fazer para provar seu arrependimento, João não lhes disse para
desistirem de seus trabalhos e começarem a fazer o que ele fazia. Aos
coletores de impostos ele disse: “Não cobreis mais do que o estipulado”.
Aos soldados, disse: “A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e
contentai-vos com o vosso soldo”. 174 Essa forma de fazer o trabalho
específico deles certamente seria uma direção radicalmente nova. Um
cobrador de impostos que não recebesse mais do que o exigido por lei ou
um soldado que nunca intimidasse, nunca chantageasse, nunca protestasse
por salários mais altos, seria um não conformista da melhor qualidade.
Cada um de nós tem um cumprimento do dever marcado por Deus. Para
a maioria dos seres humanos, durante a maior parte da história, tem havido
pouca escolha disponível. Tendemos a esquecer isso numa época em que as
opções parecem ilimitadas e quando, em geral, “o que a pessoa faz”
significa especificamente a capacidade que ela tem de ganhar dinheiro. O
dever, porém, inclui tudo o que devemos fazer pelos outros: arrumar uma
cama, dar carona a alguém para a igreja, cortar um gramado, limpar uma
garagem, pintar uma casa. Muitas vezes, é possível “sair do” trabalho dessa
maneira. Ninguém está nos pagando. É preciso simplesmente fazer aquilo, e
se não o fizermos, ninguém o fará. Mas a natureza do trabalho muda
quando vemos que é Deus quem marca esse cumprimento do dever. É um
serviço para ele. Quando o vemos, podemos dizer: “Senhor, quando foi que
eu cortei o teu gramado? Quando foi que passei tua roupa?” Ele responderá:
“Quando você o fez por um dos menores de meus filhos, você o fez por
mim”.
O irmão Lawrence praticou a presença de Deus na cozinha de um
mosteiro. Sophie, a esfregadora, limpava pisos para Jesus. Dag
Hammarskjöld, como secretário-geral das Nações Unidas, ofereceu seu
trabalho a Deus, encontrando nos escritos dos grandes místicos medievais a
explicação de como um homem deve viver uma vida de serviço social
ativo:
Para quem a “autoentrega” tinha sido o caminho para a autorrealização, e que na “singeleza
da mente” e na “interioridade” tinham encontrado forças para dizer sim a cada exigência
que as necessidades de seus vizinhos os fazia enfrentar, e para dizer sim também a cada
destino que a vida tinha reservado para eles. Amor — essa palavra muito mal-usada e mal-
interpretada —, para eles significava simplesmente um transbordamento da força com que
se sentiam preenchidos quando viviam em verdadeiro autoesquecimento. E esse amor
encontrou expressão natural no cumprimento sem hesitação do dever e na aceitação sem
reservas da vida, o que quer que fosse que os trouxesse pessoalmente de trabalho,
sofrimento ou felicidade.
contigo , Irmão,
na fé e na coragem,
em ti, Espírito,
em quietude.
“Disse Moisés aos filhos de Israel: Eis que o SENHOR chamou pelo nome a Bezalel, filho de
Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, e o Espírito de Deus o encheu de habilidade, inteligência
e conhecimento em todo artifício, e para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata,
em bronze, e para lapidação de pedras de engaste, e para entalho de madeira, e para toda
sorte de lavores. Também lhe dispôs o coração para ensinar a outrem, a ele e a Aoliabe [...]
para fazer toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bordador em estofo azul, em
púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão, sim, toda sorte de obra e a elaborar
desenhos. Assim, trabalharam Bezalel e Aoliabe [...] segundo tudo o que o SENHOR havia
ordenado”. 183
Não muito tempo atrás, uma jovem me pediu para orar para que ela
encontrasse um emprego. Enquanto conversávamos, soube que ela, que
estava no seguro-desemprego há dois anos, queria muito trabalhar no rádio
e na televisão, mas até o momento não tinha encontrado nada nessa área.
Sugeri que ela provavelmente poderia encontrar um trabalho de limpeza.
Ela ficou chocada e ofendida. “Mas eu tenho um mestrado!”.
“Se alguém não quer trabalhar, também não coma”. Foi a palavra de
Paulo, não minha, e presumo que se aplicaria a uma mulher que não tem
ninguém para alimentá-la, a não ser o governo federal. O caso da jovem
mulher não era de incapacidade de trabalhar por causa da saúde precária ou
do cuidado de crianças pequenas. Ela simplesmente não estava disposta a
trabalhar — a não ser que ela gostasse do trabalho. Nunca digamos: “Deus
não me deu nada para fazer”. Ele deu. Ele está à sua porta. Faça-o, e ele lhe
mostrará outra coisa.
“Desejamos [...] que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles
que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas”. 187
Quando eu estava na sexta série, um dos nossos exercícios de caligrafia
foi esse verso, que tem tocado em minha mente desde então:
Se uma tarefa for iniciada,
nunca a deixe até que esteja completada.
Quer seja grande ou pequena a ocupação,
faça-a somente de todo o coração.
Terminaremos nosso curso com alegria se nos mantivermos fiéis à tarefa.
Poderemos dizer como Jesus disse: “Consumei a obra que me confiaste para
fazer”.
Lucas 3.13-14.
Dag Hammarskjöld, Markings (London: Faber & Faber, 1975), 109.
2 Coríntios 10.13-15.
Atos 6.3.
Salmos 24.3-4.
N. T.: A expressão utilizada pela autora é “shoot my bolt ”, que significa já ter atingido tudo aquilo
para o qual você tem poder, habilidade e força para fazer, e ser incapaz de fazer mais.
Eclesiastes 12.12.
Salmos 90.17.
Colossenses 3.22-24, NVT.
Êxodo 35.30-36.1.
Fonte não citada pela autora.
Fonte não citada pela autora.
2 Tessalonicenses 3.8-12.
Hebreus 6.11-12.
13 | A disciplina dos sentimentos
E
“ u tenho muita dificuldade com isso”, disse o aluno. “Quer dizer, eu
simplesmente não tenho certeza sobre como resolver isso de forma
confortável”.
“Resolver isso de forma confortável?”, perguntou o professor de Bíblia.
“O que isso tem a ver com a vontade de Deus?”
A fraseologia pode ser nova (“sentir-se confortável” tornou-se
terrivelmente importante), mas não há nada de novo sobre a relutância.
Jesus tornou-a viva em sua parábola do homem que deu um grande jantar.
Quando os convites saíram, as desculpas começaram a chegar: “Eu comprei
algumas terras”. “Estou a caminho para experimentar o meu novo jugo de
bois”. “Acabei de me casar”. 188 Incapazes de resolver as coisas
confortavelmente, eles recusaram o convite.
Os sentimentos, assim como os pensamentos, devem ser levados cativos.
Ninguém cuja primeira preocupação é sentir-se bem pode ser um discípulo.
Somos chamados a carregar uma cruz e a glorificar a Deus. P. T. Forsyth
observa que a fraqueza de muita religião popular se deve ao fato de termos
virado ao contrário um dos princípios básicos de nossa fé, fazendo com que
“o fim principal de Deus seja glorificar o homem”. As pessoas estão agindo
por sugestão, e não por autoridade. Anos atrás, sete homens de Oxford
escreveram um livro chamado Foundations [Fundamentos], que era uma
tentativa de permitir que todo cristão acreditasse naquilo de que gostasse.
Ronald Knox disse: “Eles corrigiram o ‘eu creio’ para ‘eu sinto que’”.
A história de Daniel fornece uma forte lição sobre a vitória de uma
vontade dirigida por Deus sobre as emoções naturais. Daniel recebeu visão,
percepção e profecia, mas sua compreensão veio a um tremendo custo. Ele
teve de ser humilhado. O processo começou, como notamos anteriormente,
por sua própria determinação de não se contaminar com a rica dieta do rei.
Uma determinação não é um humor. A palavra não descreve os efeitos das
circunstâncias sobre a psique. Não tem nada a ver com sentir-se
confortável. É uma decisão da vontade, realizada sem levar em conta as
emoções. Em jejum, segundo um hino latino do século VI, “Daniel treinou
sua visão mística”.
Por causa do desempenho superior do dever, Daniel foi objeto de grande
ódio e inveja. Seus rivais traçaram um plano para que ele fosse morto.
Podemos adivinhar os sentimentos que ele experimentou enquanto sentia o
ódio daqueles homens, enfrentava as possíveis consequências, tomava a
decisão de vida ou morte de continuar suas orações ao seu Deus (“Não
espere pelo desejo antes de realizar um ato virtuoso, pois razão e
compreensão são suficientes”, escreveu São João da Cruz), era apreendido,
levado perante o rei e sentenciado. Imagine aquela noite com os leões.
Imagine ouvir a voz do rei aterrorizado enquanto ele chegava, tremendo, à
cova na manhã seguinte e gritava: “Daniel, servo do Deus vivo! Dar-se-ia o
caso que o teu Deus, a quem tu continuamente serves, tenha podido livrar-te
dos leões?”
“Assim, foi tirado Daniel da cova, e nenhum dano se achou nele, porque
crera no seu Deus”. 189
Daniel pagou um alto preço pelas revelações divinas que lhe foram
dadas. Não foi um alto nível emocional que ele experimentou. Na verdade,
ele escreveu que o espírito dentro de si estava “alarmado” e perturbado pela
visão; “os meus pensamentos muito me perturbaram, e o meu rosto se
empalideceu” [...]. “Havendo eu, Daniel, tido a visão, procurei entendê-la
[...], “fiquei amedrontado [...], enfraqueci e estive enfermo alguns dias;
então, me levantei e tratei dos negócios do rei”. 190
“Alma perturbada, tu não és obrigada a sentir, mas és obrigada a se
levantar”, escreveu George MacDonald. 191
O relato prossegue. Quando uma profecia a respeito dos reis da Pérsia foi
dada a ele:
Custou-lhe muito trabalho entender a visão [...] Fiquei, pois, eu só [...] e não restou força
em mim; o meu rosto mudou de cor e se desfigurou, e não retive força alguma [...]caí sem
sentidos, rosto em terra. Eis que certa mão me tocou, sacudiu-me e me pôs sobre os meus
joelhos e as palmas das minhas mãos. Ele me disse: “Daniel, homem muito amado, está
atento às palavras que te vou dizer; levanta-te sobre os pés, porque eis que te sou enviado”
[...] eu me pus em pé, tremendo [...] dirigi o olhar para a terra e calei. 192
Daniel abriu a boca para falar, mas a força lhe faltou; não ficou nenhum
fôlego dentro dele.
“Não tenha medo, homem muito amado; tudo ficará bem com você. Sê
forte, sê forte”, foi a palavra do anjo para ele.
Existe um quadro mais vívido e poderoso em toda a Escritura de um
homem, completamente humano, atormentado por paixões e medos; um
homem de emoções profundas e perturbadoras que ainda se apegou
fielmente a seu Deus e agiu por ele apesar da inclinação natural? Somente a
imagem do próprio Cristo, o servo perfeito, supera a de Daniel. Está claro
na história de Daniel que a compreensão não é barata e que as respostas à
oração devem ser processadas, muitas vezes durante um longo período de
tempo, exigindo uma resistência firme. Vale a pena parar um momento para
refletir sobre o que o anjo disse. Não foi “eu sei como você se sente”, ou
“você realmente teve uma vida dura, meu velho”, mas “não tenha medo.
Seja forte”. O anjo o lembrou de duas coisas que são verdadeiras para o
resto de nós: ele era muito amado e tudo ficaria bem. Da próxima vez que
nossos sentimentos parecerem estar prestes a nos afogar, podemos pensar
nessas coisas e ser fortes.
Minha amiga Katherine Morgan, de Pasto, Colômbia, escreveu:
Quando se pensa e usa o braço da fé para apoiar o próprio pensamento, então as obras de fé
são produzidas. Concordo com você que os sentimentos não são confiáveis. O pensamento
humano também não é digno de confiança, mas a fé, que nos faz pensar em direção ao céu,
é produtiva, assim como a experiência de Ezequiel quando Deus lhe disse que sua esposa
iria morrer. Ele fez o que lhe foi ordenado. Eu acho que você e eu tivemos essa experiência.
Nossos sentimentos eram propícios à dúvida quanto às razões pelas quais nossos maridos
foram levados, mas sabíamos, por dentro, que tínhamos que fazer o que o Senhor nos
ordenara. Em minha opinião, não havia nenhuma virtude particular no que fizemos.
Tínhamos recebido nossas ordens, e tínhamos que nos agarrar a elas e levar nossos
sentimentos no bolso. Muitas vezes, meus sentimentos teriam me levado a jogar a toalha
aqui em Pasto. Eu “sentia” que as pessoas não eram responsivas e estavam desinteressadas,
e que o esforço era infrutífero. Eu “senti” tudo, menos o desejo de ficar aqui e trabalhar. No
entanto, o plano de Deus tem que ser realizado. Essa é uma lição difícil de aprender, e
muitas vezes leva uma vida inteira. Mas é preciso ter a convicção de que Deus falou e
depois é preciso se ocupar e executar o comando.
“Missões” sempre significou, pelo menos na conotação cristã desse termo, não apenas o
esforço para converter alguém à verdadeira fé, mas também a disposição espiritual do
missionário: sua caridade ativa e sua doação ao “objeto” de sua tarefa missionária. De São
Paulo a São Nicolau do Japão, não houve missão sem autoidentificação do missionário com
aqueles a quem Deus os enviou, sem sacrifício de seus apegos pessoais e de seus valores
naturais. 193
Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que
vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo. Como filhos da obediência, não vos
amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância; pelo contrário, segundo
é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso
procedimento. 213
É
meu grande prazer nesses dias observar o crescimento e a
aprendizagem de um menino de quatro anos e de sua irmã de dois.
O clima do lar deles é de amor, o que significa que às vezes o sol
brilha e às vezes o tempo está nublado. Há muita risada, leitura de histórias,
jogos, pipoca junto ao fogo, carinho, cadeira de balanço e canto de hinos.
Há também disciplinas físicas ocasionais. Uma mãe e um pai que amam
seus filhos não podem permitir que eles sigam seus próprios caminhos. Eles
desejam para seus filhos liberdade e alegria, coisas que nenhum ser humano
caído pode encontrar sem instrução, exemplo e correção (“Bem-
aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o
coração” 214 ). Quando os filhos se rendem de bom grado às instruções dos
pais, o clima é ensolarado para todos. Quando eles se recusam, as nuvens de
tempestade se acumulam. O mesmo menino e a mesma menina avidamente
consentem à sugestão de uma história ou de um pouco de pipoca. Eles não
estão tão ansiosos para recolher os brinquedos ou comer brócolis. Se ao
menos os pais pudessem fazê-los ver que o propósito em todas essas coisas
é a felicidade final e a plenitude dos filhos... Eles os amam o suficiente para
dizer não à maioria dos programas de televisão, não para ficarem acordados
até tarde, como alguns de seus amigos, não para comer porcarias. Seus pais
os amam o suficiente para exigir uma hora de solitude e tranquilidade para
cada criança a cada tarde. Eles os amam o suficiente para ficarem de braços
cruzados enquanto as crianças aprendem a fazer coisas sozinhas; coisas que
os pais são fortemente tentados a fazer por eles. Eles os amam o suficiente
para permitir que, quando o crescimento em sabedoria e a independência o
exigem, os filhos sejam feridos, tenham dificuldade e, às vezes, até mesmo
falhem.
“Disciplina é o mesmo que punição?”, perguntou-me uma jovem mulher.
Ela ficou perturbada com a ideia de que Deus queria “vingar-se”. Eu lhe dei
1 Coríntios 11:32: “Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo
Senhor, para não sermos condenados com o mundo”. A “punição” de Deus
sobre seus filhos nunca é uma retribuição, mas sim uma correção. Sabemos
que somos realmente seus amados filhos e filhas, compartilhando a
disciplina da qual todos compartilhamos — para um alto propósito, a saber,
que um dia possamos compartilhar da santidade dele, “obter vida”. 215
A história de Jonas ilustra poderosamente a tolice de dizer não ao nosso
Pai que está nos céus. Ele pensou que poderia escapar de fazer o que Deus
pediu. Em vez de ir para Nínive como ordenado, pegou um navio para
Tarsis, pensando que estava “fora do alcance do Senhor”. Uma decisão
como essa está fadada a resultar em uma tempestade de uma espécie ou de
outra, e no caso de Jonas foi um furacão, literalmente. Pense nos problemas
dos quais ele poderia ter sido salvo se tivesse obedecido — a tempestade, o
horror de ser jogado para fora do barco, as mandíbulas do grande peixe que
se aproximava, vindo do fundo escuro do mar, o trauma de ver-se de fato
engolido, e três dias inimaginavelmente terríveis dentro do estômago da
criatura. Mas foi o Amor Inexorável que o seguiu, mesmo naquela
escuridão. Foi, de fato, o amor de Deus que ordenou aquele estranho meio
de salvamento para seu profeta voluntarioso, o que o próprio profeta veio a
reconhecer na oração que fez de dentro da barriga do peixe: