MARCHETTI, V. - Reforma Política e A Justiça Eleitoral
MARCHETTI, V. - Reforma Política e A Justiça Eleitoral
MARCHETTI, V. - Reforma Política e A Justiça Eleitoral
Vitor Marchetti1
Resumo
O presente artigo joga luz sobre protagonismo da Justiça Eleitoral brasi-
leira na consolidação de nosso regime democrático, analisando algumas decisões
recentes da cúpula da Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e da
Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF). Ao estudar o modelo de
governança eleitoral adotado no Brasil o autor conclui que a judicialização da com-
petição político-partidária tornou-se possível devido ao modelo adotado no país.
Introdução
O crescente protagonismo da Justiça Eleitoral brasileira na consolidação
de nosso regime democrático tem chamado a atenção para uma instituição que
até então era muito pouco conhecida e debatida, especialmente quando decidiu
sobre temas centrais da tão debatida e desejada (pelo menos por grande parte da
opinião pública) reforma do sistema político.
Para tentarmos avançar nesse terreno ainda pouco explorado, serão ana-
lisadas aqui algumas decisões recentes da cúpula da Justiça Eleitoral, o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), e da Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal
(STF), que revelam vontade de fazer lei por meio de interpretações criativas e
arrojadas dos textos legais – principalmente da Constituição Federal.
A análise de cada uma dessas decisões será acompanhada do apontamento
de alguns problemas que entendemos centrais para esse debate. O primeiro é
dialogar com o diagnóstico de que a Justiça Eleitoral avançou de modo mais cria-
tivo apenas onde havia uma lacuna deixada pelo Legislativo (Sadek, 1995). A
disposição para fazer uma reforma política seria consequência da combinação da
inoperância do legislador com os níveis mais elevados de confiança e apoio popu-
lar da Justiça Eleitoral vis-à-vis às instituições políticas (Fleisher e Barreto, 2009).
1 Doutor em Ciência Política pela PUC-SP e Professor adjunto do Bacharelado em Políticas Públicas
da UFABC
Muito pouco mudou na Justiça Eleitoral brasileira desde que foi criada
em 1932. A Constituição de 1988 definiu em seu artigo 118 que os seus órgãos
são: 1) Tribunal Superior Eleitoral, 2) Tribunais Regionais Eleitorais, 3) Juízes
Eleitorais e 4) Juntas Eleitorais.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é o órgão superior para decisões sobre
a administração e a execução do processo eleitoral (rule application) e é a última
instância de recurso do contencioso eleitoral (rule adjudication).
O TSE é composto por sete membros: três dentre os ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF), dois dentre os ministros do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) e dois dentre cidadãos com notório saber jurídico e idoneidade moral
indicados pelo STF e selecionados pelo Presidente da República. Esses membros
externos são majoritariamente advogados que militam na área.
Os Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) têm sede na capital de todos os
Estados. Além de participar da administração e da execução do processo elei-
toral, é a segunda instância para o contencioso eleitoral. Cada TRE é composto
por sete membros: dois selecionados dentre os desembargadores do Tribunal de
Justiça estadual, dois juízes de direito selecionados pelo Tribunal de Justiça, um
dentre os juízes do Tribunal Regional Federal e dois cidadãos de notável saber
jurídico e idoneidade moral indicados pelo Tribunal de Justiça e selecionados
pelo Presidente da República.
O Juiz eleitoral é selecionado pelo TRE dentre os juízes de direito do
Estado. A sua jurisdição é a zona eleitoral. Participa também da administração
e da execução do processo eleitoral e funciona como primeira instância para o
contencioso eleitoral.
As Juntas eleitorais são órgãos temporários e servem apenas para a exe-
cução do processo eleitoral. Sessenta dias antes das eleições, o TRE seleciona um
juiz de direito e de dois a quatro cidadãos com notório saber jurídico e idonei-
dade moral. A Junta auxilia, assim, o Juiz eleitoral a executar os procedimentos
necessários para o processo eleitoral em determinada zona eleitoral.
Não há no OE brasileiro um órgão com corpo de direção próprio e exclu-
sivo. Apesar do TSE, dos TREs e dos Cartórios Eleitorais, onde atuam os juízes
eleitorais, serem permanentes e, portanto, contarem com um corpo funcional
próprio e estável, os juízes e ministros que se tornam membros da Justiça Eleitoral
não são obrigados a se desligar das outras atividades que desempenham nos
2 Essa permissão decorre da decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.127/94, inter-
pretando o estatuto da advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (lei 8.906/94). Nessa lei
há o impedimento para o exercício da advocacia a “membros de órgãos do Poder Judiciário, do
Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz,
juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de delibera-
ção coletiva da administração pública direta e indireta”. A interpretação do STF abriu uma exceção
para o caso da Justiça Eleitoral.
havia uma única decisão do TSE que tivesse sido reformada pelo STF. Foi ape-
nas após um intenso protagonismo da Justiça Eleitoral que o Supremo refor-
mou duas decisões, a primeira foi em 2010, quando adiou a entrada em vigor
da Lei da Ficha-limpa, e a outra foi quando declarou inconstitucional parte da
Resolução do TSE que tratava da fidelidade partidária3.
5 Sobre boa parte deles cf Marchetti (2013a) e sobre o Ficha Limpa cf Marchetti (2011).
6 Foram duas as eleições para os Legislativos municipais sob os critérios aplicados pelo OE, 2004
e 2008. Para as eleições municipais de 2012 o legislador federal reformou o texto constitucional
superando a decisão judicial e permitindo o resgate das quase 8 mil vagas suprimidas em 2004.
7 Sobre o tema indica-se Diniz, 2000; Desposato, 2006; Melo, 2000, 2003 e 2007 e Roma, 2007.
Considerações finais
É fato que o ambiente da competição político-partidária desde a rede-
mocratização produziu na opinião pública e em parte da literatura a convicção
de que reformas eram necessárias e urgentes. A liberalização ocorrida com a
redemocratização teria produzido regras “ultraconsociativas” (Couto, 1997),
dificultando a formação de governos estáveis e eficientes para a implementação
de uma agenda de governo.
Tem-se debatido a reforma política desde o término da Constituição de
1988 e pouco foi aprovado de mudanças substantivas na competição político-par-
tidária. Desses longos anos de debate sem profundas transformações nas regras
do jogo veio a conclusão de que ou o Legislativo era inoperante ou não havia
disposição concreta para realizar as mudanças que ele próprio debatia.
Nesse cenário emergem um TSE e um STF dispostos a aprovar mudan-
ças substanciais. Se há inoperância no Legislativo, a presença de um agente
externo poderia contribuir para tirá-lo da inércia. Se não há disposição concreta
no plano político, que o Judiciário então realizasse as mudanças necessárias
para corrigir as deficiências do jogo político; deficiências essas, muitas vezes,
identificadas pelo próprio Judiciário.
Assim, a partir de 2002, os ministros do TSE e do STF assumiram o papel
de protagonistas das reformas políticas valendo-se de uma posição institucional
capaz de alterar até mesmo as regras constitucionais.
Uma rápida análise no perfil dos ministros do TSE revela que o modelo
adotado para distanciá-los dos interesses políticos e partidários não redundou
necessariamente em um sistema com caráter mais técnico do que político.
34%
Experiência anterior na JE
66%
Sem experiência anterior na JE
Fonte: Sadek, 1995 (para o período de 1932 a 1995) e elaboração própria (para o período de 1995 a 2015).
Atividades Políticas
74%
Fonte: Sadek, 1995 (para o período de 1932 a 1995) e elaboração própria (para o período de 1995 a 2010).
45,0%
32,5%
11,7%
Fonte: Sadek, 1995 (para o período de 1932 a 1995) e elaboração própria (para o período de 1995 a 2015).
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
Fonte: Sadek, 1995 (para o período de 1932 a 1995) e elaboração própria (para o período de 1995 a 2015).
Dentre os 45% dos ministros com experiência política anterior, entre 1932
e 1967 havia uma distribuição mais equilibrada entre as três categorias (38,9%,
38,9% e 22,2%). O equilíbrio parece ter se mantido entre 1967 e 1988, mas agora
apenas entre os ministros vindos do STF e STJ (53,8% e 46,2%, respectivamente).
A principal mudança se dá a partir de 1988. A presença de ministros com experi-
ência política anterior se deu basicamente apenas dentre os ministros vindos do
STF (75% do total de ministros com experiência anterior).
A conclusão é que, apesar do forte declínio da participação de ministros no
TSE com experiência política anterior após 1988, a vivência política ainda perma-
neceu forte no TSE dado que ela não decresceu dentre os membros vindos do STF.
E como são esses os ministros que detêm o poder central na instituição,
como já argumentamos anteriormente, é possível afirmar que as vinculações
políticas anteriores auxiliam na explicação do avanço reformista do TSE. Assim,
o modelo institucional que fundiu nosso organismo eleitoral às instâncias judi-
ciais pode ter sido eficiente para afastar os interesses partidários da governança
eleitoral. Não foram tão eficientes, entretanto, para preservar apenas os critérios
técnicos na formação da decisão.
A importante presença de experiência política anterior dentre os ministros
do STF que chegaram ao TSE pode ter contribuído para alimentar a vontade de
fazer uma reforma política por meio de decisões judiciais.
Diante de tudo o que foi dito nesta conclusão, podemos então afirmar que
a judicialização da competição político-partidária tornou-se possível por causa do
modelo de governança eleitoral adotado, pois transforma a última instância de nosso
organismo eleitoral em um organismo da Corte Constitucional em matéria eleitoral;
deu-se em função de uma disposição política dos ministros em reformar a prática
da competição política fazendo leis por meio de interpretações judiciais criativas (e
não por que a legislação é vaga ou inconstante) e para tanto se valeu da experiência
política anterior dos ministros com maior peso no OE – os ministros do STF.
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