A Língua e o Enem - 05.10 - Comp
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A LÍNGUA E
O ENEM
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado em 1998 com o propósito de avaliar o desempenho
do estudante ao fim da escolaridade básica. A partir de 2009, passou a ser utilizado como critério de
seleção para diversas universidades brasileiras (e também portuguesas). As notas do Enem podem
ser usadas tanto para acesso ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu) quanto para acesso ao Programa
Universidade para Todos (ProUni). Os participantes do Enem podem, ainda, pleitear financiamento
estudantil em programas do governo, tais como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Os
resultados do Enem também propiciam o desenvolvimento de estudos e indicadores educacionais.
Pode realizar a prova do Enem quem já concluiu o Ensino Médio ou está concluindo essa etapa da
escolarização para acesso à educação superior. Os participantes que ainda não concluíram o Ensino
Médio também podem participar, mas apenas como “treineiros”. Nesse caso, seus resultados servem
somente para autoavaliação de conhecimentos.
Nos textos produzidos pelos participantes, o avaliador se depara com ricas e numerosas variações
linguísticas, entretanto deve ter clareza de que a Competência I, de acordo com a Matriz de Referência
para Redação do Enem, avalia o domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, no que
se diz respeito a aspectos gramaticais, escolha de registro e convenção da escrita.
1 Simone Silveira de Alcântara, professora de Língua Portuguesa e Literatura no Colégio Militar de Brasília. Mestra e
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
Artigos e E-Book
Cabe inicialmente apontar que, ao observar esses aspectos (que serão detalhados mais
adiante), o avaliador deve ser capaz de diferenciar a língua escrita da falada e os registros
formal e informal, bem como de graduar a avaliação do texto (de 0 a 5), de acordo com
o que se espera da escrita de um aluno que finaliza o Ensino Médio quanto à seleção
vocabular adequada ao tema, ao funcionamento de categorias gramaticais, aos padrões e
à estruturação sintática, demonstrando clareza na organização das frases, dos períodos e
dos parágrafos que apresentam suas ideias, além de um bom domínio no que diz respeito
às convenções da escrita.
De acordo com Marcuschi (2008), sob orientação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), o ensino da língua deve “dar-se através de textos (p. 51)”. Com essa orientação, um
dos objetivos da escola é “levar o aluno a bem se desempenhar na escrita, capacitando-o
a desenvolver textos em que os aspectos formal e comunicativo estejam bem conjugados”
(p. 53). Assim, o texto, “como forma natural de acesso à língua” (p. 54), deve ser considerado
“tanto em seu aspecto organizacional interno como seu funcionamento sob o ponto de
vista enunciativo” (p. 61).
É importante, também, que o avaliador tenha ciência do que afirma este documento ao
tratar dos conhecimentos de língua portuguesa:
Após alguns anos de aprendizagem escolar, o indivíduo terá não só aprendido a ler e
escrever, mas também a fazer uso da leitura e da escrita, verifica-se uma progressiva,
embora cautelosa, extensão do conceito de alfabetização em direção ao conceito
de letramento: do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura
e da escrita. (Soares, 2004, p. 7)
Para tanto, cita-se novamente o artigo Alcântara, Sandoval e Zandomênico, 2016a), no qual
se destaca que o ensino da língua, de uma forma geral, pretende ampliar a competência
do estudante para o exercício cada vez mais fluente da fala e da escrita, incluindo-se nessa
prática a escuta e a leitura. Assim, acredita-se que a redação do Enem é resultado de aulas
de português que se caracterizam como aulas de falar, ouvir, ler e escrever textos em
uma complexidade gradativa, com atividades que promovam, entre outras habilidades,
a compreensão das relações sintáticas, semânticas e pragmáticas que caracterizam textos
orais e escritos estruturados de forma clara e coerente.
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A escrita tem regras próprias (cf. Marcuschi, 2008). Em razão disso, para cumprir bem a
sua função, o texto necessita empregar adequadamente os recursos de que a língua/
linguagem dispõe para produção textual nessa modalidade. As inadequações observadas
configuram o que a Matriz de Referência do Enem denomina de “desvios”. As ocorrências
desses desvios – em termos de qualidade e quantidade – são balizadoras para o avaliador
apontar o nível de domínio de modalidade escrita formal da língua portuguesa em que o
texto se apresenta.
A maneira correta de empregar as letras e as notações léxicas, em geral, pode ser atestada
em uma simples consulta ao dicionário. Já o emprego de iniciais maiúsculas e minúsculas,
além de estar relacionado a nomes comuns e próprios, também depende de outras variáveis,
tais como o início de períodos e títulos e a singularização de certos nomes. A segmentação
das palavras, por sua vez, é feita a partir de processos próprios, predeterminados, que se
baseiam essencialmente na pronúncia das sílabas das palavras.
(4) “Mu-itos que moram na comunidade não tem condições de pagar hospitais
particulares”
(5) “O desmatamento almentou consideravelmente nas últimas décadas.”
(6) “(...) convivência que está passível à criação progressiva de estigmas, esteriótipos e
preconceitos sobre estes grupos.”
(7) “O sofocamento social brasileiro cresce exponencialmente a cada ano, diminuindo
nossa cultura primaria.”
Em (8), há erro devido à ausência de sinal indicativo de crase na expressão às vezes. Trata-
se de expressão adverbial com nome feminino, assim como ocorre em à noite, à tarde, às
pressas, à vista. Em casos assim, o emprego do acento grave é uma convenção, e não uma
exigência sintática. Sua ausência consiste em desvio de convenção da escrita.
Por outro lado, em (9), observa-se ausência de sinal indicativo de crase no “as”, que deveria
receber acento grave em razão da regência da palavra junto. Nesse caso, é importante
observar que a necessidade de emprego do acento grave, embora se deva à regência de
um nome, será tratada, assim como em (8), como desvio de convenção da escrita, uma vez
que envolve o emprego de um acento gráfico.
Da mesma forma, em (10), em que se verifica o não emprego do acento grave no “a” após
a forma verbal vincula, também consideramos como desvio de convenção da escrita, uma
vez que esse caso de regência verbal envolve a ocorrência de crase.
Enfim, todos os desvios apresentados acima serão entendidos, na correção das redações
18 do Enem, como desvios de convenção da escrita. A ocorrência simultânea de mais de dois
dos desvios apresentados será suficiente para impedir a atribuição de nota máxima na
Competência I em uma redação do Enem.
Ao elaborar sua redação, o participante deve atentar para a escolha do registro a ser
usado em seu texto, uma vez que o comando da proposta de redação requer que se use a
modalidade escrita formal da língua portuguesa.
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Então, o papel da escola, no que se refere ao ensino de língua portuguesa, embora não
seja apenas ensinar a língua padrão, mas ampliar a competência linguística dos alunos,
sem desconsiderar o seu conhecimento linguístico e sem que tal norma seja considerada
superior às demais variedades linguísticas, na prova de redação do Enem, essa variedade
tem de ser preponderante, dada pela estrutura potencial do gênero textual e pela tipologia
textual proposta.
Pela natureza linguística de sua composição — aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais,
relações lógicas, estilo —, o gênero textual redação do Enem se materializa em textos em
que devem predominar as ocorrências de sequências textuais dissertativo-argumentativas,
que compreendem os tipos textuais argumentação, descrição e exposição, nessa ordem.
(11) “Com o tempo está nossa população está sendo esquecida, imagine as consequência
fora do normal do problema”
(12) “Os indígenas e os quilombos, eis um tema bem interessante. Estes dias estava
conversando com um amigo sobre isso.”
(13) “Como utilizá o trabalho de pescadores sem prejudicá as nossa natureza e crianças e
o adolescente de forma bem família, com programas de inclusão.”
também pode ser caracterizada como informal. Em (12), o emprego da estrutura de tópico
e o período que introduz trecho narrativo em destaque são típicos da oralidade, o que
revela a escolha de registro informal. A expressão “de forma bem família” em (13) também
é característica da oralidade e acarreta informalidade ao texto.
(17) “(...) entre as partes do Peru e Bolívia, suas histórias foram mortas através principalmente
da chegada dos colonizadores que cometeram suicídio cultural, para que seus
costumes fossem primários.”
(18) “Segundo a pesquisa do IBGE estimula-se que antes da chegada dos portugueses
existiam mais de mil línguas faladas só no território brasileiro”.
Em (17) e (18), o problema de registro deve-se à seleção lexical inadequada dos termos
suicídio cultural, primários e estimula-se.
(19) “Bem, existem muitos povos brasileiros que não são reconhecidos e encontrados na
legislação.
(20) “Quem sabe daqui uns dias o Brasil tome o exemplo do Canada e da Noruega para
acabá com o desmatamento e valorizar os povos tradicionais.”
De forma semelhante, em (19) e (20), as expressões “Bem” e “daqui uns dias”, típicas da
oralidade, conferem informalidade ao trecho.
Passemos, por fim, à definição e à análise das falhas gramaticais (de estruturação sintática).
3 FALHAS GRAMATICAIS
(DE ESTRUTURAÇÃO SINTÁTICA)
Em geral, os livros especializados dividem a gramática em três grandes partes: a fonética,
que estuda os vários sons ou fonemas linguísticos; a morfológica, que estuda a palavra
em si; e a sintática, que estuda a relação que as palavras estabelecem umas com as outras
quando se unem para exprimir o pensamento. As duas últimas partes, a morfologia e a
sintaxe, estão de tal forma relacionadas que costumamos empregar um único termo para
nos referirmos a elas: morfossintaxe. São questões relativas à morfossintaxe o emprego das
classes de palavras e aspectos relacionados à estrutura das frases, tais como pontuação, 21
concordância, regência, colocação pronominal. Quando avaliamos as estruturas que
(21) “O Brasil, tem aproximadamente 26 povos nativos (comunidades), que ainda não
estão inclusos na legislação. Esses povos que são trabalhadores nos quais utilizaram a
natureza como meio de vida e trabalho.”
(22) “No Brasil as comunidades ribeirinhas estão em situação precária pelo fato de não
existir leis que proíba a utilização dessas regiões para criar gado (...)”
(23) “Quando não damos a atenção necessária a natureza e aos povos
tradicionais, estamos expondo eles em muitas situações perigosas.”
Em (21), há emprego indevido de vírgula logo após o sujeito “O Brasil”. A vírgula separa
termos essenciais, sujeito e predicado, o que vai de encontro às regras gramaticais. Além
disso, a expressão “nos quais” foi mal-empregada — o contexto sequer exige a presença
da preposição.
Em (22), os verbos existir e proibir deveriam ter sido flexionados no plural (existirem e
proíbam), uma vez que se referem ao nome “leis”.
Em (23), o emprego do pronome pessoal reto “eles” não condiz com o que se espera de um
texto escrito na modalidade formal da língua, em que os complementos verbais diretos,
quando representados por pronomes pessoais, são representados por pronomes pessoais
oblíquos. Observa-se, ainda, problema de regência verbal. O verbo “expor”, quando
transitivo indireto, apresenta complemento introduzido pela preposição “a”, e não pela
preposição “em”.
(24) “Como sabemos as comunidades nunca foram valorizadas pela sociedade, assim
como os brasileiros não são, muitos brasileiros estão saindo do país para construir
suas vidas fora do país e muitos deles são de comunidade, a comunidade não tem
valor pela vida simples que levam e, por não se importarem com a simplicidade
que vivem, eles corre atrás dos seus sonhos todos os dias a partir do momento que
acordam para ir trabalhar.”
(25) “No filme ‘Avatar’, conta a história de um povo das matas, de cor azul e originário
daquela terra, onde tem se vivenciado diversos ataques de colonizadores em busca
de um metal caro que ali existe.”
No exemplo (24), a oração adverbial conformativa que inicia o período (“Como sabemos”)
deveria ter sido isolada por vírgula, uma vez que está deslocada de sua posição tradicional.
22 Além disso, a vírgula é utilizada em final de declaração em lugar do ponto depois de
“brasileiros não são” e de “são de comunidade”. Ainda nesse excerto, há erro de regência,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, avaliado na Competência
I, deve, então, tomar como primazia a adequação (ou não) dos aspectos gramaticais de
estruturação da produção, uma vez que estes aspectos interferem, de maneira mais
significativa, na fluidez da leitura do texto e na compreensão das ideias nele apresentadas.
Destacamos que é esperado que um aluno participante do Enem seja capaz, minimamente,
de elaborar um texto cujos períodos sejam bem estruturados e cujas ideias sejam
apresentadas e discutidas com desenvoltura e clareza. Um texto cuja compreensão seja
dificultada em virtude de uma estruturação insatisfatória não atende a essa expectativa,
uma vez que, em casos assim, a dificuldade de compreensão das ideias do texto reflete
problemas mais sérios de estruturação sintática. É possível que o texto que corresponde
à expectativa mínima de domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa
apresente alguns problemas na construção dos períodos (como uma ou outra oração
incompleta), mas, de maneira geral, os períodos do texto devem ser bem estruturados e as
ideias transmitidas com clareza.
1 É importante destacar que uma falha gramatical é considerada como tal apenas quando há respaldo na
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literatura para tanto. Situações não pacificadas entre os estudiosos ou em transição na língua, tais como a
regência de certos verbos, não acarretam subtração de nota na redação do participante.