Rosa Acevedo

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“FACING MOUNTAIN KENYA”: JOMO KENYATTA

FRENTE À ACADEMIA E ÀS POLÍTICAS DO SISTEMA


COLONIAL BRITÂNICO

Rosa Elizabeth Acevedo Marin 73

APRESENTAÇÃO

Publicada em 1938, a tese defendida por Jomo Kenyatta,


intitulada “Facing Mountain Kenya: The Tribal live of the Gikuyu”,
não podia passar despercebida na produção antropológica britânica.
A tese em questão havia sido orientada por Bronislaw Malinowski, que
fez a carta de recomendação para o seu ingresso na London School of
Economic, foi seu orientador e elaborou a introdução do livro, ainda
foi leitor de primeira mão o também antropólogo Raymond Firth
desse modo se conferem os efeitos de reconhecimento simbólico do
antropólogo queniano dentro da academia da sociedade colonizadora.
Todavia, as críticas às políticas colonialistas e, especialmente, a
defesa por parte de Kenyatta da questão das terras dos Gikuyu74e da
clitorectomia mobilizaram posições de seguidores, de apoiadores e de
adversários. No seu Prefácio Kenyatta interpela as visões e di-visões,
a autoridade, as hierarquias, os comportamentos no interior do campo
científico no qual seria realizada a leitura e crítica do livro, a par dos
questionamentos de suas posições políticas e social:

73. Graduada em Sociologia pela Universidad Central de Venezuela. Doutorado em História pela
École dês Hautes Études em Sciences Sociales. Professora da Universidade Federal do Pará vinculada
ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Professora
colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia da
Universidade Estadual do Maranhão. Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
74. Kenyatta, na primeira nota de rodapé destaca como um erro a grafia Kikuyu, que os europeus
divulgaram, em oposição àquela que afirma como própria do seu povo: “A forma europeia usual de
soletrar esta palavra Kikuyu é incorreta; deve ser Gikuyu, ou em ortografia fonética estrita Gekoyo,
referida ao próprio país. A Gikuyu pessoa é Mu-Gikuyu, plural, A-Gikuyu. Mas para não confundir
nossos leitores, usamos Gikuyu para todos os fins”. (Kenyatta, 1938, XV). A expressão Kikuyu segue
os textos escritos pelos britânicos e seguidores desta grafia. Neste texto opta-se por seguir a orientação
de Kenyatta.

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Eu sei que existem muitos cientistas e leitores em geral que irão ser
desinteressadamente felizes com a oportunidade de ouvir o ponto de vista dos africanos,
e para todos estou feliz por prestar serviço. Ao mesmo tempo, estou bem ciente de que
poderia não fazer justiça ao assunto sem ofender aqueles “amigos profissionais do
africano” que estão preparados para manter sua amizade pela eternidade como um
dever sagrado, desde que o africano continue a jogar a parte de um selvagem ignorante
para que eles possam monopolizar a função de interpretar sua mente e falar por ele.
Para tais pessoas, um africano que escreve um estudo deste tipo está se intrometendo
em suas reservas. Ele é um coelho que virou caçador furtivo.

Mas o africano não é cego. (KENYATTA, 1938, xviii)

Dentro da London School of Economics (LSE) havia espaço


para debate aberto de posições anticolonialistas, especialmente, se
elas partissem de um acadêmico nativo? Por ocasião dos 50 anos da
Independência do Quênia aquela renomada instituição publicou os
artigos de Grátis (2017) e Menil (2018) com observações sugestivas
sobre a passagem de Kenyatta na LSE. O primeiro argumenta que
o prestígio de ter estudado na LSE proporcionou a Kenyatta “maior
seriedade entre as pessoas na Grã-Bretanha e no Quênia”. Na época
a Escola “era amplamente considerada como “rosa’ e progressista”
(Berman e Lonsdale 1998: 30). Grátis (2017)75segue a Berman e Lonsdale
(1998) que atribuem ter essa trajetória escolar aumentado o “seu status
entre seus colegas estudantes, bem como no Quênia, capacitá-lo a tratar
como um igual com as autoridades coloniais, não mais um ‘nativo sem
educação’; e mostrar o racismo generalizado da época...”. Menil (2018)76
interpreta afirmações a propósito de Kenyatta; ele teria escrito uma
tese “supostamente despolitizada” e indagava sob o papel da LSE na
formação de líderes:

75. GRÁTIS, Alex. Jomo Kenyatta, LSE e a independência do Quênia. https://blogs.lse.ac.uk/lsehis-


tory/2017/10/03/jomo-kenyatta-lse-and-the-independence-of-kenya/
76. MENIL, Victoria de. Era uma vez ... quando Jomo Kenyatta era estudante da LSE.
https://blogs.lse.ac.uk/lsehistory/2018/08/15/once-upon-a-time-when-jomo-kenyatta-was-a-student-a-
t-lse/. O arquivo foi feito a partir de levantamento nos arquivos da LSE sobre o antropólogo.

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De Nkrumah a Limann, de Kibaki a Atta Mills, a LSE teve resultados
mistos na formação de líderes africanos. Como uma comunidade de alunos e professores,
incluindo africanos em ambas as posições, devemos nos perguntar quem é o LSE
moldando agora. E é papel do professor despolitizar seus alunos? Ou deveríamos
estar procurando alimentar as mentes políticas com fatos e éticas para moldar seu
raciocínio? Que o elefante de bronze que decora nossos passos não se torne um símbolo
do elefante que uma vez deixou um homem na chuva (MENIL, 2018).

Kenyatta na dedicatória do livro escreve em nome da sociedade


colonizada da qual participa e deseja reconstruir: Para Moigoi e Wamboi
e todos os jovens despossuídos de África: para a perpetuação da comunhão com
os ancestrais espíritos através da luta pela liberdade africana, e na fé firme de
que os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram unam-se para reconstruir os
santuários destruídos. O conjunto das relações existentes entre sociedade
colonizada e sociedade colonial exterioriza a dialética do colonizado e
o colonizador (BALANDIER, 2014).

Neste artigo realiza-se a leitura do livro de Jomo Kenyatta e busca-


se pontuar alguns embates dentro da academia, o que também é parte do
“complexo qualificado da situação colonial” (BALANDIER, 2014). O
antropólogo nativo estuda o seu povo, o Gikuyu, entretanto a identidade
e o pertencimento étnico parecem ter sido mantidos sob controle e
Malinowski elabora observaçoes elogiosas sobre as capacidades do seu
orientado. O antropólogo distingue o termo “Anthropolo gybe ginsat home”
ao escrever sobre o autor que forma parte da “elite dirigente nativa” e
recebeu formação em escolas da metrópole inglesa.

O sistema colonial europeu na Africa Oriental, a questão da


terra dos Gikuyu, o campo da antropologia e a trajetória do antropólogo
africano estão apresentados sumariamente à medida em que se priorizaram
alguns capítulos do Facing Mount Kenya e se produzem algumas conexões
com o Report of the Kenya Land Commission – RKLC (1934) ademais de fontes
e círculos outros de formação dos debates e de posições políticas coloniais
do governo britânico que se encontram nos Arquivos da Hansard.

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Sumariamente este modesto exercício de leitura indaga sobre as conexões
entre antropologia e colonialismos; expõe sobre os conflitos sociais,
as resistências e as lutas pela reconquista dos territórios e da autonomia
empreendidas pelos colonizados, gestos que são inimagináveis e sempre
histórias compartilhadas de indignação e expressões de resistência .

1. O SISTEMA COLONIAL EUROPEU NA AFRICA


ORIENTAL E OS PRINCÍPIOS DO DUAL MANDATE

Nas sociedades colonizadas pela Grã Bretanha na África


implantou-se o sistema de governo que Sir Fredrick Lugard denominou
de “Dual Mandate”, as ideias que estão contidas no livro “The Dual
Mandate in British Tropical Africain,” publicado em 1922, exerceu
profunda influência nos negócios coloniais no período entre as duas
guerras; este serviu à formação de jovens da administração colonial
(VIANNI, 2016, apud DOTY, 1996).

Lord Lugard serviu como administrador colonial entre 1888 e


1945 no Leste da África, África Ocidental e Hong Kong. Foi comissionado
na Nigéria e governador geral entre 1914 e 1919.Entre setembro de 1912
e janeiro de 1914 governara os Protetorados do Sul e do Norte da Nigéria.
Antecede sua carreira de administrador colonial a de ter organizado a
Companhia Imperial Britânica da África Oriental, que foi administradora
da África Oriental Britânica e precursora do Protetorado da África Oriental,
posteriormente Quênia; a companhia foi criada após o Tratado de Berlim
de 1885. (Wesseling, 1998:232). A trajetória de Lugard foi construída em
meio às campanhas militares, às habilidades como pacificador, unificador
e negociador de acordos, o que valeu a Lugard prestígio político notável77.
O reconhecimento como autoridade líder no governo colonial foi
ultrapassado com o livro Dual Mandate in British Tropical África.

77. Ver PERHAM, Margery. Frederick Lugard. Administrador Colonial Britânico. https://www.
britannica.com/biography/Frederick-Lugard. A escrita por Frederick John Dealtry Lugard, Barão
Lugard de Abinger do livro “The Dual Mandate in British Tropical Africa” (1922) o fez receber a me-
dalha de ouro da Royal Geographical Society e a menção de “pai do governo indireto”

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Na condição de administrador colonial Lugard dominava o
princípio do governo indireto78 que ele considerava inaplicáveis em
sociedades pouco organizadas do Igbo e outras tribos do sudeste da
Nigéria. Na sua concepção o império britânico precisava produzir a
justificativa teórica da ocupação colonial da África e das formas de
controle político efetivo, e Lugard no “ Dual Mandate” estabeleceu
os argumentos que justificaram as conquistas e o estilo administrativo.
Grã-Bretanha tinha uma responsabilidade dupla na África: realizar a
administração e obter benefícios econômicos para a metrópole, bem
como a elevação dos “nativos”. Fundamentava essa ação de governança
em três princípios: descentralização, continuidade e cooperação. Todos
os níveis de governo seriam descentralizados, todavia, com uma forte
autoridade de coordenação. Lugard interpretava que a continuidade era
fundamental, porque os africanos desconfiavam dos estrangeiros, por
isto recomendava a permanência sem interrupções dos oficiais britânicos.
Com base neste princípio havia exigências sobre substituição e formação
da equipe provincial e, ao mesmo tempo, sobre as cooperações entre os
funcionários provinciais e os governantes locais. Estabelecia a Regra
indireta, administração por chefes locais, subordinados aos oficiais
coloniais britânicos79. Lugard declamava o panegírico do governo
britânico que elevaria os “povos primitivos a civilizados” e no mesmo
grau o seu bem-estar.

78. Os britânicos introduziram o governo indireto como sistema de governo para controlar as suas
colônias, feita por meio de estruturas de poder nativas pré-existentes. Esse sistema era mais barato para
os impérios e suas bases teóricas foram elaboradas nas universidades. Henry James Summer Maine
escreveu o livro Ancien Law (1861) cujas proposições teóricas acerca do direito e as instituições jurídicas
se desenvolvem passando do “status ao contrato”. A teoria dos três estágios do desenvolvimento do
direito: uma fonte divina do direito; identificação do direito com o costume; identificação de uma
lei posta por uma autoridade. Esta teoria é verificada nos quadros do evolucionismo e deu suporte
ao “governo indireto”; ainda, e é vista como pilar da antropologia evolucionista do século XIX, e as
imbricações do saber dos antropólogos com a dominação colonial. (VILLAS BÓAS, 2011/2012). Os
debates sobre o “governo indireto” têm continuidade com acadêmicos entre eles Mahmood Mamdani
(1999) que interrogam de que forma o governo direto e indireto foram tentativas com objetivos idênticos
de implementar a dominação. No governo indireto surgiram tensões étnicas dentro das sociedades
colonizadas que manifestaram hostilidade e elaboraram “estratégias disfuncionais de governo”, o que o
autor descreveu como “despotismo descentralizado”. (MAMDANI; 1996, 37).
79. Ogechukwu EzekwemThe Dual Mandate in British Tropical África, de Frederick John Dealtry Lugard
(1965). https://notevenpast.org/the-dual-mandate-in-british-tropical-africa-by-frederick-john-deal-
try-lugard-1965/

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No livro de Lugard é exposta uma ontologia essencialista, que
“busca desumanizar o subalterno e elevar o status dos colonialistas
na África”(Bello, 2017). Significava “O duplo mandato do Império
Britânico” abrir a África para o mundo civilizado e, ao mesmo
tempo, abrir a mente africana para a civilização; trata-se de papéis
sociais binários envolvendo “um civilizador e outro a ser civilizado”.
O colonizado – subalterno é naturalizado e funda-se em natureza e
cultura. “Lugard vê a natureza física dos negros e seus tons e matizes
de cor em correlação direta com seu avanço intelectual e organizacional.
A mistura dos negros com os hamitas conota “poluição” e diluição que
possivelmente afeta sua natureza e cultura” (Bello, 2017, p. 82).

No Report Kenya Land Comission encontram-se citações


de Lord Lugard. Uma delas instrui sobre os Gikuyos, Lord Lugard
desaprovava o boma80 porque este lugar “estava situado no verdadeiro
coração dos povoados e dos campos dos Kikuyu”. (RKLC, 1934,p.
62). As conexões intrincadas entre os princípios do Dual Mandate e o
documento redigido pela Comissão de Terras do Kenya mostram as
rédeas de dominação dos povos nativos.

Malinowski na Introdução do livro de Kenyatta, refere-se ao


Dual Mandate, à Liga das Nações e à Abissínia. Lord Lugard foi
representante na Comissão de Mandatos Permanentes da Liga das
Nações (1922-1936) e vinculou-se à Comissão Temporária da
Escravidão (1926). O renomado antropólogo conecta os eventos e os
discursos com a razão que mobilizava a África (a maioria dos bantu
e negros) e os unia; o “mundo dos povos de cor contra a influência
ocidental”, que foi sacralizada pelo colonialismo,

É espantoso como, por exemplo, a aventura Abissínia organizou


a opinião pública em locais e entre nativos que nunca se suspeitaria que
tivessem qualquer visão complicada sobre a Liga das Nações, sobre a Dual
Mandate, sobre a Dignity of Labour, e sobre a Brotherhood of Man. Mas

80. A palavra “Boma” vem da África e está nas línguas faladas nos Grandes Lagos Africanos. Boma era
um recinto circular para a comunidade e seus anciãos se reunirem. Era um espaço sagrado para reuniões
comunitárias e discussões significativas, um espaço para tomar decisões e definir ações.

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sobre a Abissínia, a maioria dos bantu e negros têm os seus pontos de
vista. Eles foram organizados num clima de ódio da invasão europeia e de
desprezo pela debilidade desses poderes e movimentos que os colocavam
ora do lado da África e, logo depois, através da fraqueza e da incompetência,
abandonavam a causa da África e deixavam tudo de lado. Mais uma vez, a
má gestão do “incidente chinês” está unindo o mundo dos povos de cor
(“coloured peoples”) contra a influência ocidental e, principalmente, contra
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mesmo para aquela pessoa que é
preta, morena ou amarela, “noblesse oblige” (MALINOWSKI, 1938, p. x).

De forma mais incisiva Jomo Kenyatta escreveu sobre


possibilidades de rupturas com a condição colonial: “Mas o africano
não é cego. Ele pode reconhecer estes pretendentes à filantropia, e
em várias partes do continente, ele está acordando para a percepção
de uma corrida no rio que não pode ser represado para sempre sem
quebrar seus limites. Seu poder de expressão foi prejudicado, mas está
rompendo, e muito em breve varrerá o clientelismo e a repressão que o
cercam”.

2. TERRAS DOS NATIVOS NOS ATOS DA COMISSÃO


DE TERRAS NO KENYA

Desde ângulos diversos, a situação colonial resulta da


processualidade das ações coloniais forjadas em torno dos domínios
territoriais nas quais se estabeleceu a relação territórios sobrepostos e histórias
entrelaçadas como escreve Said, e os Impérios constroem a história e a
geografia; elas são “reordenadas e reescritas nas Metrópoles”, o que ocorre
também com a música, a poesia, a prosa e as ciências nos momentos de
recriação do espaço conquistado e a constituição do “duplo Colônia/
Colonizado portador de características justificadoras da dominação (Said,
2011). Os territórios físicos dos povos colonizados na África depois
da “Partilha” entram em disputas aceleradas e ininterruptas. Na África
Oriental, em Quênia o protetorado britânico de 1895 é demarcado na

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realidade concreta como a situação colonial advinda do “consenso político
do imperialismo europeu” (WESSELING, 1998).

A forma jurídica da colonização considera que os sistemas


jurídicos dos povos nativos eram obsoletos; dentro deles, os direitos de
propriedade sobre suas terras e manteriam os direitos de ocupar e usar
as terras com restrições. Shilaro (2002) indica que nas décadas de 1920
a 1930, a terra foi o centro da política elaborada para o Quênia. Nesse
intervalo se ampliaram as queixas e reações contra a alienação das
terras pelos colonos europeus, notadamente em 1931, o que obrigou
ao governo britânico a designar a Kenya Land Commission, em 1932.
Celeremente foi elaborado o Report of the Kenya Land Comission
(setembro, 1933) apresentado pelo Secretário de Estado para as
Colônias ao Parlamento pelo Comando de sua Majestade (maio 1934).
Este Report apoiou-se em três legislações: - Crow Land Ordinance81,
Native Lands Trust Ordinance82 (1930) e White Paper de 192383. O
RKLC foi dirigido a Sir P. Cunliffe-Lister. Secretário de Estado para as
Colônias.
81. O Regulamento de Terras da Coroa de 1902 autorizou o Comissário a vender propriedades livres em
terras da coroa de até 1.000 acres a qualquer pessoa ou conceder arrendamentos de 99 anos. O processo
de alienação dos africanos de suas terras os forçou a entrar nas reservas que logo ficaram superlotadas e
impróprias para o assentamento humano.
82. Nos debates sobre o Native Lands Trust Ordinance foram tratados os direitos da superfície. Sir
P. Cunliffe-Lister Conde de Winston, conservador britânico proeminente político dos anos 1920 até
1950 - argumentou: “O projeto de lei de alteração a que ele se refere foi apresentado com minha
aprovação como uma medida provisória para lidar com dificuldades práticas imediatas que poderiam
retardar o desenvolvimento de minerais valiosos, propriedade dos quais pertence à Coroa. As alterações
propostas à Portaria principal são duas. O primeiro estabelece que a terra pode ser temporariamente
excluída de uma Reserva para arrendamentos de mineração e que a compensação por tais exclusões
temporárias pode ser paga em dinheiro em vez de na forma de um acréscimo de terra. De acordo com
a segunda alteração, não será necessário que o Central Lands Trust Board apresente uma proposta de
exclusão temporária ao conhecimento do Conselho Local de nativos ou dos nativos em questão; mas
cada exclusão particular terá de ser considerada pelo Conselho Local, no qual os nativos da localidade
ou seção em questão devem ser representados. Além disso, o comissário-chefe nativo já distribuiu aos
nativos da província um memorando explicando em linguagem clara e simples o processo de licenças
de prospecção e arrendamentos de mineração e como os interesses dos nativos serão salvaguardados; e
o próprio governador encontrou os nativos e explicou o assunto a eles”. Arquivos da Hansard. (20 de
dezembro de 1932. https://api.parliament.uk/historic-hansard/commons/1932/dec/20/kenya-native-
land-trust-ordinance
No Norte de Kenya na área de Kakamenga foi aberta a mineração e embora houvesse um regulamento
que exigia fosse aberta uma notificação no Diário isto não ocorreu.
83. O denominado Livro Branco de 1923 (White Paper of 1923) estabeleceu a política do Governo
Conservador daquele ano (Governo do Sr. Baldwin) o qual rejeitou a ideia de conceder qualquer forma
de autogoverno ao Quênia dentro de qualquer período que precise ser levado em consideração.

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Neste documento, os primeiros parágrafos nomeiam e
classificam as situações, os “direitos” e os sujeitos de direito nele
contemplados no Report. Em vários itens aponta a preocupação com
a “população nativa presente e prospectiva”. As situações das terras
correspondiam: a. as terras já alienadas e b. terras a alienar no
futuro; definia a terra tribal e a propriedade individual. As terras
são classificadas em A, B, C e D. Sobre os sujeitos distingue: i. As
comunidades, órgãos ou nativos de pessoas reconhecidas nas tribos
e, ii. Nativos destribalizados, ou seja, nativos que não pertenciam a
nenhuma tribo ou que cortaram conexão.

Os membros da Comissão tinham uma trajetória no sistema


educacional inglês interessada em formar administradores coloniais e
esta exigência não se restringia às altas posições. Ranger (1984, p.
224) explica que o Comissário Distrital “precisava ser um homem bem
dotado para candidatar-se ao setor administrativo colonial”; “tinha de ser
bacharel em humanidades, graduado com distinção numa universidade
reconhecida... Melhor ainda se, além de boas notas, ele tivesse algum
recorde em atletismo. Ainda havia necessidade de acreditar que os
colonos brancos eram herdeiros reais ou potenciais das neotradições
do domínio’, pois “era o excedente do capital neotradicional que
estava sendo investido na África, juntamente como o envolvimento de
membros da alta sociedade na busca de um enriquecimento”.

Ranger (1984, p. 221) situa as transformações que ocorriam


entre 1880 e 1990 na vida dos africanos do Leste, Centro e Sul da África
que estavam tornando-se “lavradores’, os excedentes de sua produção
expropriado e explorado através de comércio, impostos, o arrendamento
e sua posição subordinada pelo cristianismo missionário”. Os
agricultores europeus não se viam como camponeses e se pensavam
como formando parte de uma aristocracia.

A Kenya Land Commission, também conhecida como Comissão


Morris Carter teve como “chairman” Sir William Morris Carter (1873–
1960) um advogado britânico, formado na Universidade de Oxford

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que ingressou na administração colonial britânica. Foi nomeado para
ser registrador e juiz no Quênia, Uganda e Tanganica entre 1902 e
1924. Como juiz sentenciou contra as reivindicações de terra dos
Massai em 1913. Ocupou o cargo de Secretário de Estado para as
Colônias. Presidiu a Comissão de Terras de Rodésia do Sul, de 192584
e a Comissão de Terras do Quênia de 1932-1933. Entre 1936-1937
integrou a Comissão Real sobre a Palestina. O segundo membro era Sir
Frank O’Brien Wilson (1876 -1962) oficial da Royal Navy, aposentado
estabeleceu-se como colono no Quênia. Foi voluntário na Campanha
da África Oriental da Primeira Guerra Mundial, Wilson tinha uma
grande propriedade (23.000 acres (93 km2) em Ulu, perto de Machakos
(Uganda), onde inicialmente criou avestruzes e depois criou gado.
Wilson foi um renomado jogador de críquete. Rupert Willian Hemsted
foi o terceiro membro da Comissão: “um distinto funcionário público
ex-colonial”.

A raiz da nomeação dessa Comissão pelo Conde Lorde Stanhope,


os debates no Parlamento frisavam que a investigação devia ser muito
conscienciosa e hábil, pois lidariam “com os difíceis problemas que
virão diante deles”. O parlamentar Sanderson85 pronunciou-se dizendo
que Morris Carter, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Território de
Tanganica, fez trabalho na Rodésia muito semelhante ao tipo de trabalho
que terá de fazer em relação à terra do Quênia. Contudo, desconfia se
eles assumiriam apenas o ponto de vista dos colonos brancos, “o capitão
F. O’B. Wilson está em uma categoria bem diferente. Ele é um colono
branco e proprietário de terras. Pode ser, pelo que eu sei, que ele esteja
realmente ocupando terras que a população africana, com ou sem razão,

84. De acordo com a Ordem do Conselho de Rodésia do Sul, de 1898, no artigo 83: O nativo podia
adquirir, manter, onerar e dispor de terras nas mesmas condições que uma pessoa que não é nativo.Vinte
e três anos depois, a resolução do Conselho Legislativo da Rodésia do Sul considerava indesejável: que
os nativos adquirissem terras indiscriminadamente devido ao atrito inevitável que surgirá com seus vizi-
nhos europeus. O juiz William Morris Carter foi nomeado para a Comissão de Terras com incumbência
de decidir como lidar com os africanos que viviam em terras da coroa não alienadas, em fazendas e mi-
nas e em cidades pertencentes a colonos brancos. A comissão tinha a missão de investigar e informar
sobre a definição de áreas onde somente os nativos poderiam possuir terras e áreas de terras destinadas
com exclusividade aos europeus.
85. COMISSÃO DE TERRAS DO QUÊNIA. HL Deb 04 de maio de 1932 vol 84 cc305-2.
https://api.parliament.uk/historic-hansard/lords/1932/may/04/kenya-land-commission

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considera como roubadas e alienadas pela Coroa. O parlamentar fez
as estatísticas primárias sobre a minoria branca e os africanos que não
seriam nomeados. O Capitão Wilson será considerado pela população branca
e negra como representante das opiniões dos 20.000 brancos no Quênia. Nessas
circunstâncias, como o capitão Wilson está nessa posição, acho que seria considerado
um ato de simples justiça que alguém fosse nomeado para representar o ponto de vista
dos 2.500.000 africanos.

Opinou Sanderson que o Governo de Sua Majestade devia


nomear homens que não tivessem nenhuma ligação com a posse de
terra no Quênia, sem interesses financeiros nesse Protetorado, ainda
fez a proposta de inserir na Comissão dois africanos, de modo a
aumentar a confiança e remover as suspeitas. Ainda porque os nativos
que comparecessem perante a comissão teriam menos dificuldade de
se expressar, afirmava. Tenho certeza de que, com alguns nativos na
Comissão, você obteria muitas evidências que não obteria de outra
forma, e que pode ser muito essencial para uma solução adequada desta
questão. Todavia duvidava de colocar “nativos” na Comissão.

A Comissão colidiu com os documentos, falas de testemunhas


que foram organizados e classificados de maneira a distinguir as situações
que evidenciavam os conflitos por territórios e, aparentemente, os
povos e os seus argumentos sobre a terra. As autoridades ignoraram
as tradições, vistas como obstáculos ao projeto de colonização, que
priorizou atribuir as terras dos povos nativos aos colonos britânicos.
A Comissão procedeu a visitar as províncias da Costa, no Planalto
Leroki e “várias partes dos Kikuyo”86.

No Report é frisado que os nativos Kikuyu haviam oficializado


mais de 400 cartas e outros documentos lidando com reivindicações
privadas por famílias ou grupos (RKLC, 1934, p. 8). Essa documentação
mostra a insistência dos Gikuyu pelo direito costumeiro. A Comissão
86. Os funcionários da Comissão com auxílio de Comissários locais, missionários procediam a
sistematizar memorandos, documentos e comentam brevemente. A excepção foi feita em relação
aos Kikuyu que por serem muito volumosas procederam a resumir. O Report contém arquivos
governamentais, mapas, dados demográficos. Na Introdução os relatores afirmam que a preocupação é
apresentar os méritos dos conflitos estabelecidos e as reivindicações.

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descrevia a prática de reunir as “evidence natives” em “barazas”
ou assembleias na qual os funcionários britânicos solicitavam a
concordância dos “nativos com as declarações feitas e entediam que
estas expressavam e representavam o sentimento geral da tribo”.

Na divisão do Report consta a parte referente à questão da


terra na “Province Kikuyu”; logo revisa as outras províncias87 e por
último situa os problemas da terra nativa como um todo, incluindo o
Highlands. O objetivo da Comissão foi definir os limites das Terras
Altas Brancas e das Reservas. Os Gikuyo são descritos como tendo
“um grau excepcional de individualismo”, que a “tribo tem nas suas
tradicionais concepções de posse da terra” e reconhecem que a resolução dos
problemas de terra dos Gikuyu é especialmente intrincada, o que
exigiria um exame detalhado.

Jomo Kenyatta dominava o conteúdo do RKLC e cita os de


1929 e 1934 que somado aos contatos pessoais com anciãos, chefes
das famílias lhes permitiram insistir sobre os mecanismos utilizados
pelos administradores colonias para retirarem as terras dos Gikuyu,
por esses motivos fez a jocosa apresentação da Comissão88. O “país
do Gikuyu” escreveu ocupa o centro de Quênia e estava dividido em
distritos administrativos Kiambu89, Fort Hall (Murang’a), Nyeri, Embu
e Meru onde viviam aproximadamente um milhão de pessoas, que
devido à alienação das terras agrícolas e pastoris viviam - cerca de
110.000 Gikuyu como invasores em fazenda, em terras tomadas pelos
europeus em vários distritos de Quênia. A posse da terra é questão
87. O Report relata o longo enfrentamento com o povo Massai tal como foi descrito pelo administrador
colonial Sir Charles Eliot, que tem sua trajetória vinculada à Somália; De pelo menos 1850 até o início
dos anos oitenta, os Massai foram uma potência formidável na África Oriental. Eles afirmaram com
sucesso contra os traficantes de escravos árabes, recebiam tributo de todos que passaram por seu país, e
trataram outras raças, seja africano ou não, com a maior arrogância. « (Report, 1934, p. 199).
88. The elephant, obeying the command of his master, got busy with other ministers to appoint the com-
mission of Enquiry. The following elders of the jungle were appointed to sit in the Commission: (I) Mr.
Rhinoceros; (2) Mr. Buffalo; (3) Mr. Alligator; (4) The Rt. Hon. Mr. Fox to act as chairman; and (5) Mr.
Leopard to act as Secretary to the Commission. On seeing the personnel, the man protested and asked if
it was not necessary to include in this Commission a member from his side. But he was told that it was
impossible, since no one from his side was well enough educated to understand the intricacy of jungle
law.(KENYATTA, 1938, p.49)
89. Ver a propósito CORAY, Michael S. The Kenya Land Comission and the Kikuyus of Kiambu. In.
História da Agricultura. Vol. 52, Nº 1. Janeiro, 1978, pp.179-193.

126
importante, vital para os Gikuyu e Kenyatta foi elevado à condição de
porta-voz das reclamações:

... perante mais de uma Comissão Real em matéria de terra. Uma foi a
Hilton Young Commission de 1928-29, e um segundo foi o Comitê Conjunto sobre a
União Mais Próxima de África Oriental, em 1931-32. Antes deste Comitê eu era
delegado para apresentar um memorando em nome da Associação Central de Gikuyu.
Em 1932. Dei depoimento em Londres perante a Comissão de Terras do Quênia
Morris Carter, que apresentou seu Relatório em 1934.

Mas, além disso, tenho sido um testemunha de muitas transações e disputas


de terras, tanto públicas e privadas, em várias partes de Gikuyu; por exemplo, eu
atuo como intérprete particular para o chefe Kioi em sua grande terra caso que, após
várias audiências perante o Kiama, foi levado ao Supremo Tribunal de Nairobi em
1921, eleito porta-voz da Associação Central de Gikuyu quando apresentamos
nosso caso perante a Hilton Young Commission em 1928; depois, quando o relatório
veio para discussão no Parlamento, fui delegado para apresentar o ponto de vista de
Gikuyu em relação à terra e outros assuntos ao Secretário de Estado das Colônias
em 1929, e continuou a fazê-lo quando surgiu a ocasião. Porque dessas experiências,
meu conhecimento da posse da terra Gikuyu não é apenas devido ao fato de eu ser
um Gikuyu, mas é o resultado de grande interesse e estudo especializado, ambos de
precedentes registrados e daquelas evidências tribais que são passados ​​de geração em
geração.

Kenyatta90 está se referindo às tensões entre administradores


coloniais e nativos que estavam crescendo face às decisões das
autoridades locais, insistentemente contrárias aos desejos dos nativos,
especialmente pela retirada das terras, o estabelecimento das reservas
e a definição da “propriedade tribal”. A cada “tribo” corresponderia
uma reserva. Todavia como escreve Parsons os problemas surgiram
90. Kenyatta refez no capítulo II algumas descrições do país dos Gikuyu. Da leitura do Blue Book
África, de 1893 transcreve o discurso público dos oficiais ingleses. Um deles escreveu que nesse país de
abundância, onde se podiam extrair milhares de livras não se podia comprar deles uma saca de grão e
foi preciso usar as armas para obter lenha e água (KENYATTA, 1938, p. 47). O anteriormente citado
Lord Lugard replicava que no “pais Gikuyu havia comida e era extraordinariamente abundante e barata”.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
127
quando os grupos étnicos mais populosos ultrapassaram suas reservas,
inclusive ultrapassando as reservas atribuídas e cobiçaram os territórios
dos colonos agricultores europeus nas “terras altas brancas” e os de
tribo menos populosas. Parsons (2011) mostra os esforços coloniais
em Quênia para determinar as fronteiras tribais físicas e imaginárias,
o que no final da era colonial mostraria que as identidades eram “mais
flexíveis, adaptáveis e informais do que as etnografias coloniais com
foco tribal ou a literatura acadêmica sobre a formação da identidade
sugeria”, assim, as contestações à “geografia étnica oficial do regime
imperial era quebrada por uma criativa e específica da comunidade”.
(PARSONS, 2011, p. 491).

No capítulo I. “Observações preliminares sobre os princípios e


fatores reguladores da matéria Reivindicações dos Kikuyu”

(1) Se uma tribo sofreu perda por alienação de parte do seu território, - tem
o direito a ser indenizada por patrimônio. Mas a compensação pode ser devidamente
avaliada de acordo com a extensão da verdadeira perda sofrida, isto é, de acordo com
o grau de uso que foi feito da terra e a finalidade a que serviu, seja no momento da
alienação ou como uma reserva razoável para expansão futura. Nós não podemosa
ceitar o princípio de que, porque uma tribo perdeu terras, é necessariamente e de
direito receber igual ou equivalente terra em outro lugar, independentemente dessas
considerações (RKLC, p. 18).

A terra é o mais importante fator no âmbito social, político,


religioso e na vida econômica do Gikuyu escreveu Kenyatta, e
interpretava que esses significados estavam registrados nas suas
memórias familiares, nos conhecimentos sobre a terra recebidos dos
avós, dos pais, dos membros da tribo, somados às experiências de
acompanhar as transações de terras e as disputas que ocorriam com os
povos nativos de Kenya. Malinowski alude que Kenyatta mostrou suas
credenciais de etnógrafo da mesma forma que conhecia as questões
administrativas e econômicas da política na África Oriental. A

128
etnografia descreve os Gikuyu - povo de agricultores que dependiam
inteiramente da terra para suas necessidades materiais, espirituais e
mentais. Essa importância da terra e do sistema de posse mostrava-se
cuidadosa e ceremonialmente estabelecida nos casamentos, nos rituais
de iniciação, que eram regidos pela lei costumeira sobre a posse da
terra. Cada unidade familiar tinha direito à terra e cada tribo defendia
coletivamente as fronteiras dos seus territórios. As melhores terras
foram retiradas dos Gikuyu; a administração decretou a obrigação de
pagar impostos, negou suas capacidades de cultivar a terra e foram
acusados de destruir as florestas.

O Borori wa Gi ou territorio dos Gikuyu representava a unidade


política de todas as terras e foi interpretada pelos administradores
como “propriedade tribal ou terras comunais”. Insistia Kenyatta
que o termo “propriedade comunal ou tribal da terra” é mal usado
para descrever a terra, como se toda ela pertencesse, coletivamente, a
todos os membros da comunidade”. Entre os Gikuyu havia indivíduos
(Mohoi, Mothoni) que trabalhavam em terras cedidas sem nenhum
pagamento, estes gozavam do direito de cultivo (KENYATTA, 1938, p.
22, 25). A descrição apresenta o sistema de fundação e de posse da terra
que os Gikuyu receberam de Mogai (o senhor da Natureza); a terra e a
formação de grupos familiares define os primeiros direitos de cultivo ou
o direito do trabalho sobre a posse. Explica-se a expansão dos Gikuyu
como necessidade diante a “terra densamente povoada” ; foi quando
sairam à procura de terras na direção do Sul e as compras dos Ndboro.
Esta primeira forma de adquirir terra por compra, o que dava o direito
de caça e de desmatamento das florestas originais. À medida que
realiza a descrição Kenttaya distingue duas regiões fora do movimento
de transação de terra - Nyeri e Fort Hall (Murang’a). Ressalta que
as transações eram intensas em Kiambu. Estas se realizavam entre
os Gikuyu e Ndorobo (coletores e caçadores). A leitura reitera a
explicação de que o sistema de posse nunca foi de posse tribal e não
houve lei consuetudinária que desse ao chefe particular qualquer poder
sobre outras terras além das que tinha seu próprio grupo familiar

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
129
(KENYATTA, 1938, p. 32). As relações familiares são ressaltadas a
partir dos atos de compartilhamento das terras ; a venda não podia
ser feita sem consulta e levava em mente as necessidades da famíia.
A passagem que ocorre na terra é de um homem para os seus filhos
que são investidos no nome do clá. “Portanto, não existe propriedade
tribal. Não se estabeleceu uma chefia particular e não contempla que
grupos de chefes tenham poder sobre outras terras, além das terras
dos seus próprios grupos familiares”. (KENYATTA, 1938, p. 34).
Nas disputas de terra a decisão não corresponde ao chefe, mas a um
conselho (Kiama) formado por anciãos que conduzem as transações,
em consonância com os princípios e decoro da ética Gikuyu.

Os estudiosos dos Gikuyu elaboram interpretações


convergentes com Kenyatta (LONSDALE, 1990; 1996; KERSHAW
(1997). A instalação de novos colonos e as secas ocorreram na década
de 1920. Araújo, (2007, p. 7) escreve sobre a presença da Missão
Consolata entre os Gikuyu no período do movimento guerrilheiro dos
Mau Mau91 e observa as transformações agrárias que limitaram aos
pequenos proprietários e aos sem-terra as possibilidades de recuperar a
posse das terras e de poder alcançar o status de Muramati ou o homem
que cultivou um pedaço de terra, teve um dos filhos circuncidado, teve
participação nos rituais e respeitou os anciãos e os interditos tradicionais.

3. OUTROS DEBATES DA ANTROPOLOGIA BRITÂNICA


NO FIM DA “ERA COLONIAL

Os antropólogos britânicos e um público difuso estavam


estarrecidos e comovidos com a prática da excisão clitoridiana nas
tradições africanas, entre elas, a prática entre os Gikuyu. Possivelmente
as questões da retirada das terras do povo Gikuyu eram irrelevantes,

91. Para um aprofundamento sobre a questão das lutas travadas por este movimento, classificado como
uma revolta camponesa, consulte-se: Barnett, Donald L. and Njama, Karari – Mau Mau from Within-
-Autobiography and Analysis of Kenya’s Peasantd Revolt. New York and London. Modern Reader
Paperbacks Edition/Monthly Review Press. 1970

130
pois admitia-se que as terras da Coroa no Protetorado de Kenya, o
regime de reservas e a ação missionária eram legítimas. O tema da
excisão clitoridiana, por sua vez, situava-se no campo minado da
cultura, da civilização e do primitivismo. Pensando nos problemas
abordados pela sociedade colonial é preciso citar Bourdieu (1989, p. 35)
que afirma que “cada sociedade, em cada momento, elabora um corpo
de problemas sociais tidos como legítimos, dignos de serem discutidos,
públicos, por vezes oficializados e, de certo modo, garantidos pelo
Estado”. O antropólogo africano e Gikuyu é conduzido para essa
discussão acadêmica, assim como necessitou produzir esclarecimentos
diante do público europeu e da igreja.

Em 1966, Ann Beck realizou o levantamento da vida pregressa


de Kenyatta antes do seu período doutoral, e escreveu o artigo ‘Some
Observations on Jomo Kenyatta in Britain. 1929-1930”. Na visita que
realizou Kenyatta92, com a idade de 32 anos, no intervalo de fevereiro
a setembro de 1929, manteve reuniões em Edimburgo com os
bispos da Igreja católica que manifestavam preocupação a respeito de
conflitos em torno da questão da circuncisão feminina e que teriam
levado à deterioração das relações entre os cristãos Gikuyu e a igreja.
Em anos anteriores as autoridades da igreja escocesa realizaram uma
campanha contra a circuncisão feminina, pois essa prática era contrária
ao cristianismo e em vários documentos recomendavam a abolição.
No entanto, a visita de Kenyatta estava movida por outros objetivos:
aspirava manter relações diretas com a Secretaria das Colônias, com
isto quebrando a regra da autoridade dos oficiais residentes em
Nairóbi. O jovem Kenyatta apresenta uma Petição com as reclamações
e reivindicações: segurança para os povoados; reconhecimento da
agricultura e garantia das terras que não podiam ser alienadas por ordem

92. Então Kenyatta era o Secretario da Associação Central dos Kikuyu que havia sido criada em 1925.
Beck referiu sobre o giro colonial discreto, o que tinha ilação com a presença de Kenyatta em Inglaterra.
Esse giro foi dado com a promulgação da doutrina da “ Supremacia do Nativo”, declarada pelo governo
britânico em 1923.
“It contained the famous statement that Primarily Keynesian African territory and His Government
think it necessary definitely to record their considered opinion that the interests of the African natives
must be paramount and that if and when those interests and the interest soft he immigrant races should
conflict the former should prevail. See Indians in Kenya Parliamentary Papers 1923) xvii

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
131
do governo, representação dos Gikuyu nos municípios, nos conselhos,
na administração Kikuyu. O assunto da circuncisão estava na pauta da
Associação Central dos Gikuyu, pois tinha implicações nas relações
com a igreja escocesa. O argumento trazido por Kenyatta aos membros
da igreja escocesa sobre a insistente questão de abolir o costume da
circuncisão feminina e fazer isto de uma vez, foi respondida por ele com
o argumento de que uma educação gradual podia parar com o costume
e não desejava romper as relações entre a Associação e as Missões. Aos
olhos da autoridade da igreja93 (Mr. Barlow) Kenyatta representou
uma surpresa pois foi muito “flexível” e se ajustou ao ambiente urbano
moderno, sem aparentar tensão e desconforto e ainda sua “fala era
suave, quase totalmente sem o sotaque africano”. (BECK, 1966, p.317).
Muito difícil entender que são os povos diretamente envolvidos que
podiam tomar posições e decisões sobre esse ponto espinhoso, ou
ainda sobre a poligamia. Os temas e problemas tinham enunciados
diferentes e os problemas da antropologia são políticos e polêmicos.
Kenyatta sobre esse campo de relação com os colonizadores teria dito:

Quando os missionários chegaram, os africanos tinham a terra e os


missionários tinham a Bíblia. Eles nos ensinaram a rezar de olhos fechados. Quando
nós os abrimos, eles tinham a terra e nós tínhamos a Bíblia.

Os temas clássicos abordados por Malinowski da antropologia


cultural que são o forte domínio de Malinoswki (1938, p. xi) são
objetos de comentário entusiasmado: “O capítulo sobre magia é
especialmente importante e valioso por causa da abundância de
textos, dos detalhes quanto ao ritual e os ingredientes empregados, e
as informações privilegiadas. Alguns antropólogos podem questionar
aqui a reinterpretação dos processos reais que fundamentam a magia”.
Malinowski oblitera o tema da circuncisão feminina. Kenyatta escreve
no capítulo VII sobre a Vida Sexual e descreve a iniciação feminina
e masculina. Classificar os autores é uma prática primária no campo
das ciências. Celarert (2010) frisa que o trabalho de Kenyatta segue o
93. Aqui se constata que Jomo Kenyatta (1894? – 1978) foi educado em uma missão da Igreja de Escócia.

132
modelo funcionalista do seu mestre. Celarent sinaliza que o livro de
Kenyatta é “na superfície um exercício operante no funcionalismo
de Malinowski, existem capítulos sobre parentesco, posse da terra,
economia, educação, iniciação, sexo, casamento, governo, religião,
nova religião e magia’.

No capítulo sobre iniciação, as ironias se multiplicam. Kenyatta


defendeu a prática de clitoridectomia de Gikuyu, realizada em meninas
e nas adolescentes com a sua iniciação completa (irua) na tribo, o
que os prepara para suas futuras responsabilidades como esposas,
mães e agricultores. Isso se tornou uma grande questão política para
o Gikuyu em 1930. Os colonizadores se opuseram uniformemente
à prática: os missionários o criticaram. Enquanto a administração
britânica estava discretamente tentando negociar sua redefinição para
um ritual mais limitado. Isso fez da clitoridectomia um ideal e questão
da política anticolonialista. A GCA começou a insistir. Os africanos,
no entanto, circuncidam suas filhas, particularmente incluindo, aqueles
chefes cristãos que se abstiveram de ter suas filhas circuncidadas. Os
líderes missionários responderam com um forte apelo público. A
GCA aproveitou a ocasião para tirar as Gikuyu da órbita temporária,
iniciando um sistema escolar inteiro independente de missão. Mas
outras evidências sugerem que o GCA pode ter visto que isso era uma
forma de retirar os africanos da tutela missionária e ficar livres.

Em 1930 esta prática tornou-se uma grande questão política. O


autor discute os detalhes práticos e sua justificação tribal. De acordo
com Menil (2018) Kenyatta defendeu a “prática em nome de apoiar o
princípio da ‘classificação por idade’ (a organização da sociedade em
torno das faixas etárias) e como uma ferramenta para a educação, em
particular o ensino de resistência. O contexto mais amplo em que essa
questão surgiu, no entanto, foi em torno dos direitos dos africanos
nativos de praticar suas tradições”. Sua posição sobre a circuncisão foi,
portanto, informada por uma lealdade política e uma posição contra o
domínio da Igreja e da Coroa.

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
133
Os missionários da Consolata no Quênia ascenderam conflitos
entre os Gikuyu. Araújo (2007) examina que nos textos escritos
pelos Missioni Consolata não evidenciam os conflitos e ao analisar
o período da guerrilha Mau Mau destaca que as missões deixaram de
ser frequentadas pelos Kikuyu e, após seu esmaecimento, houve uma
explosão do número de fiéis. (idem, p. 2).

A propósito da participação, ou não, de Jomo Kenyatta no


movimento Mau Mau apresentam-se duas vertentes. Araújo indica
trabalhos que argumentam o afastamento dos Mau-Mau: Kershaw
(1997) e Lonsdale (1987, 1990 e 1996) afirmam que Kenyatta jamais
chefiou o movimento Mau Mau, e salientam que se opôs aos seus
líderes94. As autoridades britânicas e boa parte da literatura que tratou
do assunto no calor da guerrilha divulgam o contrário. Apoiado em
Kershaw (1997) Araújo esclarece que a União Africana do Quênia
(KAU) presidida por Kenyatta na sua plataforma não incluía os
interesses dos Kikuyu empobrecida, mas ressaltava os interesses da elite
nativa, geralmente letrada.

Parte da elite letrada da África Oriental fez sua formação na


metrópole. Em Londres Kenyatta fez amizade com George Padmore e
esteve em Moscou em 1932 e 1933. Regressou a Londres e aprofundou
amizade com Banda (futuro presidente do Malawi) e Nkrumah (egresso
da LSE e futuro presidente de Gana). Eles foram os organizadores do
5º Congresso Pan-Africano em Manchester. O Pan-Africanismo, as
lutas pela descolonização se desenvolviam no coração dos Impérios,
com aprendizagens que se realizavam fora e dentro da academia.
Durante este periodo ele se aproximou de um grupo militante de
intelectuais africanos, caribenhos e norte-americanos (C.L.R. James,
Eric Williams, Paul Robeson, Ralph Bunche e W.A. Wallace Johnson)

94 A acusação de envolvimento de Kenyatta com o movimento Mau Mau


provocou o seu encarceramento de 1952 a 1959, obrigado a trabalho forçado.
Depois ficou exilado em Lodwa. A acusação foi de “comandar e integrar” a
Sociedade Mau Mau, junto com mais seis pessoas. A opinião geral da época o
ligava aos Mau Mau, porém investigações posteriores demonstraram o contrá-
rio.

134
que produziu relevantes interpretações críticas sobre o colonialismo e
a escravidão. Grátis (2017) o elevou a “campeão do anticolonialismo,
do nacionalismo africano, do pan-africanismo e da unidade de todos
os povos afrodescendentes ao redor do mundo. Junto com outros
líderes como Kwame Nkrumah (Gana), Patrice Lumumba (República
Democrática do Congo) e Julius Nyerere (Tanzânia).

Jomo Kenyatta fala em nome do povo Gikuyu, que viu na


“missão da Grã-Bretanha” o fato de não terem avançado a “um nível
intelectual, moral e econômico superior”. Pelo contrário identifica que
o “africano foi reduzido a um estado de servidão, sua iniciativa na área
social, econômica e política foi negada e foi submetido à posição mais
inferior de uma sociedade humana doente. Se ele se atreve a expressar
sua opinião sobre ponto diferente do que lhe é determinado, ele entra
na lista negra como “agitador” (KENYATA, 1938, p. 197). De diversas
maneiras as trajetórias e ações dos jovens intelectuais foram controladas
pelas autoridades e instituições da sociedade colonial.

Malinowski sabia dessa acusação de “agitador” do seu ex-


orientado e entra na sua defesa. Também realiza apontamentos críticos
do seu trabalho, as suas expressões que estavam fora do padrão de
reflexividade e criticou do livro: Talvez haja um pouco demais de
viés europeu em algumas passagens. Eu poderia ter sido tentado a
aconselhar que o escritor seja mais cuidadoso ao usar antíteses como
coletivo versus individual, ... Em muitos pontos desnecessários são
introduzidas comparações e expressões europeias como Igreja, Estado,
“sistema legal”, “economia”, etc. são usados com implicações um tanto
supérfluas! (MALINOWSKI, 1938, p. X).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As rupturas dentro do sistema colonial fizeram emergir as


novas nações com seus mitos e heróis, com seus significados
simbólicos, políticos avassaladores que Anderson denominou

ANTROPOLOGIA E COLONIALISMO:
Etnografias Periféricas em Moçambique, Quênia, Sudão e Brasil
135
de comunidade imaginada (ANDERSON, 2008). Kenyatta é o
símbolo, mito e herói da nova nação chamada Kenya. Em Facing
Mount Kenya recusa o domínio colonial e critica ferrenhamente a
interpretação dos europeus que estabeleceram o regime comunal ou
propriedade tribal nas reservas. Nesta tese e em outros livros ataca
“Essa nova terminologia da posse da terra que os britânicos impuseram
e afastou os proprietários originais da terra. Os Gikuyu perderam a
maior parte de suas terras através desse mandato”. Diferente de
outros povos, afirma Kenyatta, o “país Gikuyu nunca foi totalmente
conquistado pela força das armas, mas as pessoas foram colocadas sob
o domínio implacável da Europa imperialista através da malandragem
insidiosa da hipocrisia dos tratados.(KENYATTA, 1938, p. 47). Após
a independência a ordem politica, social e econômica dentro da nova
nação passou a ser controlada pela etnia Gikuyu. As relaçoes de
poder foram organizadas, de tal maneira que mostraram negligência
para reconhecer as terras reivindicadas pelos Mau Mau e de trabalhar
sistematicamente para promover o apagamento do referido grupo.
Políticas de reforma agrária não resolveram e no pós-descolonização as
políticas de distribuição de terras (e águas) foram limitadas. O ditado
popular citado por Kenyatta (1938, p. 46) que expressava o desejo dos
Gikuyu “Gotire ondo wandereri, nagowo Coomba no olainoka”, que significa
“que não existe coisa mortal ou ato que vive para a eternidade”, os
europeus, irão sem dúvida, eventualmente voltar ao seu próprio
país” não se cumpriu, pois a neocolonização assentou novas bases.
Nguguiwa Tiongo escreve em Gikuyu o livro
El Diablo en La Cruz no qual penetra na urdidura da colonização,
descolonização e neocolonização.

Esa humanidad es el fruto de muchas manos trabajando juntas, porque,


según el refrán gikuyu, un sólo dedo no puede matar un piojo; un simple tronco no
puede hacer un fuego que arda toda la noche; un hombre solo, aunque fuerte, no
puede construir un puente sobre un río; y muchas manos pueden levantar un fardo,
cualquiera que sea su peso. La unión de nuestros sudores es la que nos hace capaces

136
de cambiar las leyes de la naturaleza, lo que la doblega a las necesidades de nuestras
vidas, en lugar de permanecer esclavos de ellas. Es por esto por lo que en Gikuyu
también se sentencia: cambia, porque las semillas de una sola calabaza no son siempre
iguales. (pág.64)

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