Juliana Rodrigues - Meninas de Seda (Livro)

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Meninas de Seda
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Meninas de Seda
Livro 1- A sociedade Mascaradas
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Para minha mãe, que me acordou de um sonho

E me fez viver essa realidade

E todos aqueles que me apoiaram até aqui.


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Sumário:
Prólogo...................................................................................................... 06

1. Desastre na formatura...................................................................... 10
2. Uma noite no cemitério..................................................................... 20
3. A descoberta de um novo mundo...................................................... 32
4. A nova escola.................................................................................... 38
5. Nas alturas........................................................................................ 42
6. O covil da Dama............................................................................... 45
7. A volta ao mundo normal................................................................. 52
8. Nem toda brincadeira acaba bem..................................................... 58
9. O que vem após a morte................................................................... 64
10. Uma briga e um jogo........................................................................ 69
11. As Veux............................................................................................ 77
12. O Baile de Boas Vindas..................................................................... 87
13. Outro assassinato acontece.............................................................. 95
14. Um convite para a morte.................................................................. 99
15. Ela não é tão ruim........................................................................... 106
16. Outra mensagem é deixada.............................................................. 111
17. O inimigo me encontra..................................................................... 117
18. E então, ela desapareceu.................................................................. 127
19. Uma passagem................................................................................. 134
20. A ajuda da Mascarada....................................................................... 137
21. O crepitar do fogo............................................................................. 142
22. “Meninas de Seda”............................................................................ 145
23. A verdade é descoberta.................................................................... 149
24. A outra Dolman............................................................................... 155

Epílogo.................................................................................................... 161
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Prólogo
Um dia vazio em 1996

Nunca em toda minha curta vida me senti daquela maneira, mas nesse momento, em mim só
existia a certeza de que as coisas iriam piorar, e seria em breve.
Consultei meu relógio de pulso, o qual já se tornara minha marca registrada. Meu corpo
havia se fundido com a névoa intensa que cobria a enorme fachada da casa. Ela passava por
mim como uma brisa, e me enlaçava como uma mãe acolhe o filho recém-nascido. Senti por
instantes que poderia alcançar o paraíso.
Meu corpo estava tão leve que pensei que estivesse morta. Não estava. Sei disso. Aquilo
não passava de um sonho, que de tão nítido teimava em queimar em minha mente. Os
detalhes me vinham perfeitamente aos olhos. Parecia uma lembrança de um tempo muito
distante.
Mas eu sabia que não passava de um sonho.
Minhas pernas bambas caminharam em direção ao portão da casa. Uma enorme teia de
aranha o cobria a cada canto, seguidas por luminárias de brilho resplandecente em ambos os
lados, quase ofuscando minha visão. Num simples toque de meus dedos, atravessei todo o
portão, como se a névoa o tivesse transformado em nuvens de algodão.
A fachada anunciava que eu estava retornando às minhas origens, pois a casa pertencia à
minha linhagem:

Família Dolman
A entrada apresentava um caminho com uma antiga trilha, onde árvores secas e sem vida
cobriam a passagem, formando um grande emaranhado com aspecto sombrio. As folhas
jogadas ao chão, emitiam ruídos irritantes ao serem pisadas.
Arrumei o vestido, na inútil tentativa de tirar toda a poeira que estava em mim. Meu
corpo já começava a voltar ao normal. Podia finalmente sentir minhas pernas.
A trilha era estreita, mas eu tentava a todo custo não emitir sons muito altos. A lua
crescente me brindava com um enorme sorriso, à vista num céu sem estrelas. Cheguei ao fim
da caminhada e meu coração se apertou ao ver que outra garota já havia encontrado aquele
caminho antes.
Ela era uma jovem muito bela. Observei sua silhueta esguia e bem definida por seu
vestido roxo. Suas madeixas eram ruivas naturalmente, num brilho radiante. Sua pele clara
era sardenta, o que acentuava ainda mais o azul claro de seus enormes olhos. Sua feição me
apresentava preocupação. Ela estava procurando algo.
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Fui para perto de si, mas ela não pareceu notar minha presença. Subimos os três degraus
de madeira. Ela parou à frente da porta. Eu, apenas copiei seu gesto, passos atrás.
Ela puxou a maçaneta freneticamente, mas não teve resultado nenhum.
“Está trancada!”, praguejou para si mesma, precedendo um palavrão.
Um brilho travesso de repente lhe pendia no olhar. Decidida, ela fechou os olhos
durante alguns segundos. Parecia estar concentrada.
Me assustei e joguei meu corpo para trás quando vi o que estava acontecendo. A garota
estava se transformando bem na minha frente. A parte de trás de seu vestido roxo começou
a se rasgar. Ela se dobrou em sua barriga, contorcendo suas feições. Aquela dor deveria estar
terrível.
Corri até ela na tentativa de ajudá-la, mas minhas mãos passaram por seu corpo. Olhei
para mim mesma, a verdade se voltando novamente para mim: eu estava em um sonho. Não
me sentia dormindo, tudo aquilo acontecia em mim de forma tão clara e intensa...
Me afastei da garota. Em suas costas, duas asas pontudas e suaves como seda surgiram.
Elas me pareciam terem sido feitas sob medida para combinar com seu vestido, o qual lhe
delineava completamente o corpo.
Deu um passo atrás e tomou um leve impulso, mas suficiente para transportá-la até o
telhado da casa. Meu corpo inconscientemente começou a segui-la. Fui jogada para cima, a
acompanhando até o teto. As telhas eram vermelhas e brilhantemente organizadas, mas em
seu meio, um enorme orifício se encontrava.
- Alguém já passou por aqui! – exclamei alto, mas somente invadiu o vazio, sem nenhum
retorno pela garota.
Ela desceu suavemente, enquanto trovões irradiavam e raios formavam uma descarga
elétrica. Os ferros entrecruzados que sustentavam as paredes da casa abandonada pareciam
prestes a desabarem. O telhado estremeceu sob meus pés. Olhei para baixo, sabendo que
teria que pular.
“Vá Natalie!”, uma voz gritava dentro de mim. “Você não tem nada a perder!”.
Fechei meus olhos, e sem pensar novamente, saltei. Senti um frio na barriga que me
percorreu pelo estômago todo. Mas a sensação era boa.
Demorei para perceber que já havia atingido o chão. Abri os olhos e me deparei com a
garota sob a mesa, e um homem à sua frente.
-Acho que vai chover. Não entendo como nenhuma gota de água ainda não caiu do céu.
– um homem alto e loiro falou gravemente, aninhando um bebê em seu colo. Suas madeixas
eram cacheadas, o que lhe dava um certo aspecto angelical, mas seu semblante era severo. O
bebê dormia tranquilamente, como se em sua vida apenas houvesse paz.
- Jura que está preocupado com isso? – a jovem de cabelos rebeldes e ruivos disse. Suas
asas se encolheram, até desaparecerem completamente.
- Não precisa usar desse sarcasmo comigo. – o homem rebateu, levantando
charmosamente o canto direito do lábio.
- Quer que eu use de outro? – perguntou ela, fazendo uma careta e descendo da mesa.
Suas mãos seguravam sua cintura fina.
- Vamos parar com isso, Victoria. – ele disse, seu rosto assumindo uma postura séria.
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- Tudo bem. – Victoria respondeu, levantando as mãos em concordância. Seus olhos se
concentraram no bebê que ele segurava. Ela parecia maravilhada pelo simples fato de estar
tão perto da criança. – Você está se arriscando demais...
- Digo o mesmo a você! – ele respondeu, piscando suavemente um dos olhos para ela.
- Você sabe o que o Conselho faria caso soubessem que você está me ajudando. – ela
respondeu, com melancolia em sua voz.
- É isso que os amigos fazem. – ele respondeu, decidido. – Ajudam uns aos outros.
- Então você acredita na minha inocência? – ela perguntou, olhando-o desconfiada. Sua
sobrancelha esquerda se levantou.
- Mas é claro que sim! – ele respondeu, sem pestanejar. E olhando para o bebê em seu
colo, completou: - Eu sei que você não faria tal crueldade com sua família.
Ela fechou os olhos por um momento, apertando a barriga com as duas mãos. Ele olhou
para ela, e arregalou os olhos. Parecia ter compreendido tudo o que ela reprimira dizer.
- Você não... – ele mal pode completar seu pensamento, levando as pontas dos dedos ao
lábio, perplexo.
Senti uma inexplicável pontada no peito, como se estivesse deixando passar algo que eu
não notara.
- Eu jamais faria essa crueldade! – ela respondeu, permitindo lágrimas rolaram em seu
rosto. – Mas tive que fazer um sacrifício pelo bem da família. – sua última frase saiu em um
breve sussurro.
Me aproximei mais deles, confusa por não saber sobre o que estavam falando. Ou quem
seriam aquelas pessoas.
- Eu não acredito que você fez isso! – ele bradou, alterando seu tom de voz.
- Era a única forma que encontrei de tentar salvar minha família. Livrá-la da maldição. –
ela falou, enxugando as lágrimas. - Bem, eu posso ao menos segurá-lo? – ela disse, seus
olhos pousando em direção ao bebê.
O homem baixou os olhos para a criança. Ele sabia que não poderia, mas olhar para
aquela jovem de nome Victoria lhe dava um sentimento de compaixão.
- Você pode tentar. – ele respondeu, displicente. – Mas não garanto resultado nenhum.
Victoria assentiu, se aproximando dele e do bebê. Sua mão direita se levantou para tocar
a face da criança, quando um pequeno campo de força surgiu em torno do menino. Pequenas
faíscas brotaram nos dedos de Victoria.
- Sinto muito. – Paul tornou a dizer, notando o visível sofrimento dela. – Tudo ficará bem.
Você será in...

- Não precisa dizer mais nada. – ela replicou, tocando os lábios dele, com suas unhas
compridas. – Já não tenho mais a certeza de que tudo ficará bem... – Ela fez uma breve
pausa, mas retomou em seguida. – Só me prometa uma coisa.
- O que você quiser. – ele prontamente respondeu.
- Você cuidará dele por mim. – Victoria abaixou os olhos fixando-os no bebê. –Você
conseguiu mantê-lo vivo, mas não posso garantir por quanto tempo. A maldição não tardará
a se realizar outra vez. – ela respirou fundo, e senti que ainda não tinha acabado. – Caso eu
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não viva por muito tempo, você terá que cuidar não apenas dele, mas das duas Dolman
sobreviventes também. Promete?
Levantei a sobrancelha espantada, ao ouvi-la proferindo meu sobrenome. Não sabia quem
era a outra Dolman, mas tive a certeza de que uma delas se referia à mim.
- Quando será o momento certo para eles saberem de tudo? – ele questionou, parecendo se
recuperar do choque que tivera momentos antes.
- Você saberá! Eu não sei o que acontecerá daqui para frente, mas saiba que pode contar
com a ajuda de Ana. – depois dessa explicação esclarecedora e firme, ela deu uma última
piscadela para o homem alto, e olhando para o bebê, seus olhos se perderam no vazio.
De repente, ela havia desaparecido, deixando apenas uma intensa névoa atrás de si.
Me senti sumindo, como se estivesse caindo em um poço sem fundo, e tentando me
agarrar ao que quer que aparecesse em meu caminho, para não me aprofundar mais. Mas o
poço estava se tornando cada vez mais frio e escuro.
Eu tentei lutar com todas as forças, mas senti um medo me percorrer cada centímetro de
meu corpo.
Acordei de um pulo em minha cama, meus olhos arregalados e um arrepio intenso em cada
pelo de meu corpo. Aquela era apenas a sensação de que o pior estava cada vez mais
próximo...
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1. Desastre na formatura
16 de dezembro, sábado

Em primeiro lugar, quero deixar bem claro que nunca fui o tipo de garota que se
estressasse com futilidades, mas naquele momento, minha vida estava infeliz, e o motivo era
banal.
Minha ‘infelicidade’ começara com aquela chuva no final da tarde, a qual viera no clima
certo, mas no dia totalmente errado. Era dia de formatura. Um momento tão bem esperado,
mas com a chuva que faria nossos saltos enormes deslizarem no piso.
Até aí não tenho do que reclamar. Em casa, tudo parecia correr muito bem. Eu comprara
um vestido lindo para o baile de formatura, o qual dava volume a meu corpo magro (ele não
sabia ainda que já havia chegado à puberdade). Minha tarefa era simples: me maquiar, para
ficar dentro do padrão aceitável, mas rápido para não me atrasar.
Sempre fui do tipo mais desleixada, e menos certinha. Ter que me arrumar fora tão
incessante e cansativo, que acabei dormindo, jogada em minha cama, de uma forma não
muito agradável para meu frágil corpo. Era pra ser apenas um cochilo, o sono da beleza
ajuda mais do que toda maquiagem que eu conseguiria passar em minha face.
Acordei tão lentamente que a vontade de pular de volta na cama era maior. Meu pescoço
doía muito. Sentei na beirada da cama, massageando-o com a ponta dos dedos. Olhei para
minhas mãos, franzindo o cenho. Eu tinha acabado de pintar as unhas quando peguei no
sono. Parte do esmalte estava grudado em minha camiseta do AC/DC, e meu coque se
desmanchava sob meu ombro.
Já havia passado da hora de ir para o salão onde a festa aconteceria, mas meus avós não
estavam em casa, tinham saído para um bingo no centro da cidade vizinha. Sim, eu moro
com meus avós maternos. Meus pais sumiram no mundo e até hoje não sei muito sobre eles.
Apenas algumas fotografias que, mesmo com tanto pesar, eu teimo em deixá-las penduradas
em minha escrivaninha.
Liguei para minha melhor amiga. Havíamos combinado de irmos juntas, mas a beldade
antes iria passar na casa do namorado. Ela é mais velha do que eu. Sempre me relacionei
com pessoas mais velhas. Talvez pelo fato de ser isolada e fechada, eu consiga me abrir mais
com quem já passou pelo início da adolescência.
O telefone tocou duas vezes antes da voz tremula de Catherine atender:
- Oi que... querida! – ela gaguejava, e me aparentava estar apressada.
- Que hora você vem me buscar? – perguntei, bocejando levemente.
- Te buscar? Mas você já não deveria estar no salão? – ela perguntou, e fez uma breve
pausa. – Eu estou na casa do Joe. Vou me atrasar pra chegar.
Olhei para o relógio que pendia na parede de meu quarto, meus olhos se arregalando com
a hora. A cerimônia começaria em 25 minutos.
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Joguei o telefone no gancho, e terminei às pressas de me arrumar. Prendi meu cabelo no
alto da cabeça em um coque mal feito. Corri até o quarto de minha avó, mas tropecei na
entrada. Aquele degrau ainda acabaria me matando.
O vestido estava na cama. Era de um vermelho sangue provocante. Abotoei-o e peguei
minha carteira. Não sabia o horário do ônibus, mas ele teria que passar logo. Peguei meu
sapato mais confortável.
Saí pela porta da cozinha, que dava acesso ao corredor da garagem. Agarrei o primeiro
guarda-chuva que vi, só desejando que tudo corresse bem antes de trancar o portão atrás de
mim. O ponto de ônibus fica exatamente na frente de casa, e o salão faz esquina com a
rodoviária. Então eu não iria me molhar muito.
O ônibus veio logo em seguida, mas para meu azar, estava lotado. Não tenho o costume
de andar em transporte público, e, naquele momento, só desejei saber dirigir um carro.
Nem precisaria de uma carteira. Só saber dirigir já estaria de bom tamanho. Tempos de
desespero, pedem medidas desesperadas.
A cada ponto que descia um, mais cinco subiam. Que vida! Tenho pena de quem vive isso
todos os dias.
Passei para a parte de trás, torcendo para que ninguém pisasse em meu vestido. A barra
estava toda suja pela chuva, e na parte de cima eu estava molhada... mas não pelas gotas que
caiam do céu, quem me dera. O que estava me molhando era o suor de um homem alto que
estava do meu lado. Chegar essa hora do serviço não deveria ser moleza não.
Desci do ônibus quase dando de cara com o chão. Meu vestido ficara enroscado. Tive por
um momento o ingênuo pensamento de que as coisas não poderiam piorar mais.
Mas acontece que a vida tem o poder de me surpreender, e o destino parecia querer me
castigar por todos os pecados que eu já cometi. Abri o guarda-chuva, mas à essa altura, meu
estado já era terrível e não havia mais nenhum ponto de meu corpo para proteger da água.
Atravessei a avenida correndo, com medo de ter perdido a cerimônia toda. Parei na calçada e
pude suspirar aliviada por um instante. Levantei a barra de meu vestido, e continuei a correr
pelo portão do salão.
A luz estava fraca e centrada no palco, onde os formandos recebiam o diploma e tiravam
foto. Ia até o banheiro feminino para dar um jeito na minha situação, mas acabei tropeçando
naquela barra gigantesca, caindo em uma pequena poça. Me molhou apenas nas coxas, mas
foi o suficiente para me fazer espirrar e desejar não ter saído de casa.
Agora, eu estou tremendo de frio, minha maquiagem está borrada, meu cabelo que
demorei tanto a fazer foi desfeito e meu vestido parecia que derreteria a qualquer
momento. Mas fora isso, estou bem, obrigada!
Entrei na sala onde os alunos se trocavam, e pedi toda trêmula que me arranjassem uma
beca. Seria melhor poder tirar aquele vestido, mas não seria agradável para os olhares
alheios verem mais do que deveriam.
Fui me sentar em uma das cadeiras que os pais estavam ocupando para verem seus filhos.
Por onde passava, as pessoas pareciam me olharem com pena. Ou quem sabe apenas
estavam se indagando o que uma louca estaria fazendo toda molhada na festa, em um dia
chuvoso.
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De qualquer forma, encontrei uma cadeira isolada e desocupada, onde eu poderia cochilar
em paz, e desejar que aquele dia não estivesse acontecendo. Joguei minha pequena bolsa no
assento do lado, e baixei a cabeça.
- Natalie! – ouço uma voz que conheço bem, atrás de mim. Seus braços esguios me
enlaçam pela cintura. – Você está... – ela olhou para mim por um instante, levantando minha
cabeça, depois concluiu. – Não fique brava comigo, mas você está horrível.
- Relaxa! – exclamei, coçando o nariz com a ponta do dedo indicador. - Você ganhou um
ponto pela sinceridade. – estreitei meus olhos. Acho que ela estava sendo generosa me
definindo como horrorosa, pois acredito que meu estado já ultrapassou esse nível.
- Demoramos? – outra loira alta que se mantivera atrás de minha amiga, perguntou,
olhando fixamente para mim.
- Não, não. Quase durmo aqui de tanto tédio, mas está tudo bem. - anunciei,
sarcástica. Minha cabeça estava explodindo, e meu senso de humor havia ido por água
abaixo, junto com toda a minha esperança de ter uma noite boa.
- Desculpem-nos minha querida! Sabe como é o trânsito aos sábados. Ainda mais por estar
chovendo, então tivemos que encontrar um bom lugar para estacionarmos. – Catherine
anunciou, parecendo penalizada pela minha situação. – Nós ainda podemos dar um jeito em
você. – ela falou para mim, e virando-se para seu namorado, disse: - Joe, querido, pegue
meu kit de emergência.
Eu conhecia muito bem aquele kit. Nada mais era do que uma nécessaire com muita
maquiagem e uma mini chapinha, para os momentos realmente mais ‘necessitados’.
Catherine, eu poderia dizer que é minha melhor amiga, mesmo com toda aquela
futilidade, ela sabia pensar em causas sociais e a considero inteligente. Suas madeixas
cacheadas, roçam-lhe os ombros. Seus olhos enormes possuem uma grande curiosidade.
Seu namorado, Joe, faz o tipo ‘nerd descolado’, ou como costumamos dizer, geek.
Simplesmente um crânio em qualquer assunto relacionado à computação, embora muito
arrogante.
Mas o que posso fazer? Quem deve aturá-lo é Catherine, não eu.
Nossa outra amiga é Cáthia. Acho que nossa relação está mais para ‘colegas’. Essa
situação poderia mudar se ela gostasse um pouco de mim. Acho que só me atura pela grande
amizade que tenho com Catherine. É uma garota bonita também, embora eu não tenha tido a
oportunidade de saber nada mais do que isso sobre ela. Seu namorado, David, me olhava
pasmo.
As duas terminaram de arrumar meu cabelo e tentaram 'dar um jeito' na minha
maquiagem, afastando-se de mim em sincronia.
- Você está bonita agora. Podemos ir para o baile? - Catherine perguntou, e lançou um
olhar de cumplicidade para Cáthia. - Temos uma surpresa para você.
Pelo tom delas podia muito bem imaginar qual era a surpresa, e eu tinha quase a absoluta
certeza de que não seria agradável... novamente.
***
Consultei meu pulso, mas tinha esquecido que não estava de relógio. Usar esse acessório
tão prático já tinha se tornado um grande hábito meu, embora tenha gerado uma discussão
13
em casa.
- Você não vai usar um relógio na sua festa de formatura. É anti ético. - Vovó bradava
comigo, enquanto eu terminava de passar blush na minha bochecha rosada naturalmente.
- Anti ético? Oh, vovó! Qual o problema? Ninguém ficará reparando nisso mesmo. - eu
disse, em uma voz fina, tentando convencê-la.
- Já disse que não, Natalie! - ela tornou a negar, virando-se completamente para mim. -
Você e suas manias estranhas! Onde já se viu, querer usar um relógio com vestido de baile.
Espero que tenha desistido também de querer usar aqueles seus tênis estranhos.
- All star, vovó. E não são estranhos. – respondi, franzindo o cenho.
- Para usar com um vestido de gala, são sim. - ela afirmou, imitando minha expressão.
- Mas vovó, meu vestido é comprido. - rebati, tentando inutilmente convencê-la. - Ninguém
perceberia se eu fosse de chinelo, imagine então um tênis.
- Mas o correto é usar um salto. – ela levantou a voz, e estava à porta de meu quarto
bagunçado.
- Eu não tenho saltos. - disse, revirando os olhos.
- Mas eu tenho, e posso te emprestar um par. - ela anunciou, e antes que eu pudesse
protestar, ela saiu e voltou com uma caixa. - Comprei para você semana passada.
Ela me passou a caixa, e pude perceber em seu semblante uma leve ansiedade. Abri a
caixa e me deparei com um par de saltos, com mais ou menos 12 centímetros, que para mim,
pareceram enormes. Eles até que eram bonitos, da cor da pele com a sola vermelha,
- Agora use-os, e seja a princesa da noite... – sua voz ficava mais fraca em minha mente,
enquanto eu parava de divagar.

***

Levantei a barra de meu vestido quando acordei de meu devaneio. Que vovó me perdoe, mas
eu não iria para o baile com aquele salto enorme, e, como eu previra, ninguém tinha notado
que eu estava de All star.
- Desculpe-nos querida! Estávamos procurando... uma pessoa. – Catherine falou, assim que
adentramos todos pelo salão principal.
Elas haviam me deixado alguns minutos sozinha, como já era de costume, para resolverem
um assunto particular, que, pelo visto, era da minha conta, mas eu não podia saber.
- Oh, não! - exclamei, revirando os olhos para as duas. - Não me digam que vocês estão
pensando em fazer o que eu estou pensando que vocês estão pensando.
As duas se entreolharam por um instante, e depois Catherine exclamou para mim:
- Ahñ?! Poderia repetir, acho que não entendi! - ela disse, franzindo o cenho.
- Vocês sabem do que eu estou falando! - respondi ríspida. As duas sorriram no canto dos
lábios e compreendi que elas realmente lembravam.
- Ah, você se refere àquele dia em que tentamos arrumar um encontro para você, e, como
sempre, você estragou tudo. - Cáthia disse, friamente.
Foi muito insensível da parte dela me tratar daquele modo, mas eu retruquei.
- Vocês me jogaram em cima de uma garoto qualquer...
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- Irmão do Joe. – a voz de Catherine afirmou.
- ... enquanto eu estava tomando um suco de uva. - continuei, como se não tivesse havido
interrupção nenhuma. - Eu manchei a camiseta do garoto que deve estar horrorizado comigo
até hoje.
- E depois dessa declaração, você estragou tudo. - Joe completou, falando pela primeira
vez aquela noite. Sua voz era rouca e parecia seca.
- Se vocês não tivessem me jogado em cima dele enquanto eu estava tomando um suco,
nada disso teria acontecido. - rebati, estreitando os olhos.
- Ora querida, isso é passado! - Catherine falou, antes que iniciássemos uma discussão. -
Mas a surpresa que temos para você é outra. Considere como um presente de formatura.
Ela estendeu o braço em minha direção com uma sacola de compras. Já estava tão
acostumada com o fato de minha amiga carregar uma sacola por onde quer que ela fosse,
que nem estranhei desta vez.
Abri o pacote e me deparei com um presente que me tirou o fôlego.
- EU NÃO ACREDITO! - gritei, pulando de empolgação no pescoço de Catherine.
- Nossa! Eu sabia que você iria ficar animada, só não imaginei que seria tanto. - ela
exclamou rindo e eu não pude deixar de sorrir mais ainda.
- Muito obrigada mesmo, Catherine! - exclamei, ainda rindo feito uma boba.
- Ei, não se esqueça de que o presente foi meu também. - Cáthia falou, parecendo
enciumada.
- Claro, claro. - respondi, simpática. - Vocês são demais. Eu não acredito que vocês
lembraram disso.
- Promessa é dívida! – disse Cáthia, abraçando o namorado. – Nós tivemos que comprar essa
varinha doida pra você. Embora já tenha passado da idade de brincar de contos de fadas.
- Agora você é uma bruxa, em todos os sentidos possíveis. – Disse David, ainda me olhando
daquela forma estranha.
Eu sabia que ele estava se referindo à minha terrível aparência, mas eu pouco me importava
naquele momento.

***

Fomos para a parte onde estava ocorrendo a “balada”. Devo confessar que o ambiente até
pareceu “bonito” com as luzes apagadas, apenas globos oculares brilhando no teto.
Tocava uma música eletrônica bem agitada.
- Oh, ali está ele. - disse Cáthia, apontando com o dedo indicador para alguém que eu não
conseguira identificar. - Nat, quero que conheça um amigo nosso...
Aposto que era outro encontro que queriam arrumar para mim.
Ok, você pode estar pensando: “Por que você acha que suas amigas querem lhe arrumar
um namorado?”
É óbvio! Estou em uma festa com dois casais de namorados. E a frase “quero que conheça
um amigo meu” é um pretexto para “não quero que fique no vácuo enquanto estou beijando
meu namorado, então, fique com esse cara que é de minha confiança.”
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Pelas minhas contas, elas já fizeram isso 7 vezes esse ano. Talvez estivessem tentando
uma oitava, pois é como dizem, se nada der certo na primeira vez, tente mais uma vez. Se
nada der certo na segunda, continue tentando, pelo menos na oitava tem que dar certo.
Não que eu fosse totalmente solitária. Tenho o que chamo de “enroscos”, mas
relacionamentos sérios eu dispenso, e deixo para um futuro em que eu aprenda primeiro a
lidar comigo mesma.
- Desculpe-me pessoal, a fila no banheiro estava enorme. - anunciou um moreno alto, de
olhos verdes que chegara por trás de mim.
Ah, não! Era ele. Marc, o irmão de Joe, o qual eu tinha derramado suco de uva em sua
camiseta branca.
- E essa é nossa segunda surpresa. - disse Cáthia, olhando maliciosamente para Marc.
- Como assim segunda surpresa? - perguntei, pasma, sentindo minha pele enrubescer.
Minha face parecia querer queimar sob minha pele frágil.
- Nós só achamos que vocês não tiveram a oportunidade de se conhecerem bem. - David
justificou, falando comigo como se eu fosse um ser de outro mundo.
Eu já tinha entendido tudo. Acho que essa deveria ser a parte mais chata de se ter amigos
mais velhos, e que namoram.
Não de que isso tenha importância para mim, quero deixar bem claro. É só que é muito
chato sair com um casal e ficar sozinha. É estar “forever alone” e de “vela”. Ou “forever
velone”, então, eles faziam tudo para arranjarem alguém para mim, assim eu não ficaria
sozinha enquanto estava na companhia dos casais.
Talvez Catherine insistisse no Marc, assim ficaria tudo em 'família', já que ele era irmão
do namorado dela. Fiquei cabisbaixa por alguns segundos, provavelmente com as bochechas
em vermelho fogo.
- Olha, não estou afim de um relacionamento. - falei sem pestanejar.
- Quem foi que disse em relacionamento? – Cáthia interferiu, curvando os lábios para a
direita. – Nós só não queremos que fique sozinha na sua festa de formatura. Você precisará
de uma companhia para conversar...
Antes que eu pudesse responder alguma coisa, eles saíram e não me restou escolha, a não
ser ficar ali na companhia de Marc.
- Então... quer dançar? – perguntou ele, um pouco tímido.
Pensei em dizer não, mas eu seria má educada se fizesse isso. Além do mais, o que eu
teria a perder?
- Eu adoraria! – respondi, exibindo um belo sorriso.
- Não precisa fazer isso se for contra a sua vontade. – respondeu ele, abaixando o olhar
para algum ponto que eu não consegui identificar.
Meu sorriso logo se dissipou de meu rosto. Como ele tinha a audácia de dizer que EU
faria algo contra a minha vontade?
- Eu não faria nada que não fosse do meu agrado. – respondi, esperando parecer o mais
confiante possível.
Ele pareceu refletir durante alguns segundos o que eu disse, e finalmente se decidiu.
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- É, tem razão. – ele respondeu, dando de ombros. – É que eles meio que te obrigaram a
ficar aqui.
- Ninguém me obriga a nada. Estou aqui porque quero. – exclamei, contraindo minhas
sobrancelhas. – Vamos?
Ofereci minha mão esquerda para ele, que a tomou me conduzindo para a pista de dança.
Era um desastre para meus olhos verem garotas empinando o ‘’bumbum” com as mãos nas
coxas quando estava tocando “Don’t you worry child”. Não sei como conseguiam.
Eu e Marc fomos para o meio da pista, pelo menos ali o som não estava naquela altura
exorbitante. Dançávamos um na frente do outro, não muito juntos, mas também nem tão
separados.
Eu não sou boa dançarina, como a maioria poderia pensar sobre si mesmo, mas até que eu
estava começando a me divertir, quando...
- Own, não! – exclamei quando a música Walks like Rihanna, da banda The Wanted parou
de tocar e o DJ anunciou que iria desacelerar o ritmo.
Começou a tocar More than Words, da Banda Extreme.
Não que eu não gostasse desse clássico, mas é que isso significava que eu teria que ficar
mais próxima do Marc. Eu odeio contato físico, e ele pareceu compreender.
Se aproximou de mim, mas continuou dançando, como se estivesse sozinho. Quando essa
música acabou, outra iniciou no lugar, e desta vez, era I Will be rigth here waiting for you.
Essa música era muito lenta, então não tinha outro jeito, nós teríamos que dançar com nosso
corpos juntos. O DJ estava ficando a cada segundo mais romântico e deprimente.
Marc me olhou, como se esperasse um consentimento de minha parte. Eu assenti e senti
seus dedos me pegarem respeitosamente no centro e costas. Meus braços automaticamente
enlaçaram-no pelo pescoço. Tentei desviar meu olhar por alguns segundos, mas meus olhos
imediatamente reencontraram aqueles incríveis olhos verdes.
Ele me virou em um ângulo de aproximados 45°. Desviei novamente meu olhar, e dessa
vez algo me chamou atenção... Era uma garota que tinha cabelos enrolados e usava uma
grande máscara em seu rosto. Seus olhos gélidos estavam fixos em mim, e, por um breve
momento tive a sensação de que ela poderia ver minha alma.
Sua estatura física era bem similar à minha. Seus cabelos cacheados estavam bagunçados
e lhe caiam sob o ombro. A máscara lhe cobria boa parte de suas sobrancelhas, mas ainda
assim era possível ver o brilho em seus olhos e uma cicatriz enorme, que ia da testa, passava
dentro da máscara, e continuava até as maçãs rosadas de seu rosto. Ela estava a poucos
passos de mim, e senti em seu olhar uma certa aflição, como se ela quisesse me contar algo.
Quando notou que eu a observava, ela virou-se. Eu não sabia ao certo para onde ela
estaria indo, mas segui-la naquele momento me pareceu a coisa certa a fazer.
- Ahñ, desculpe-me, Marc. Tenho que ir ali. Falar com... com uma amiga. – gaguejei
para ele. Não sabia se aquela desculpa daria certo, mas eu teria que tentar. - Já volto. –
completei, olhando nervosamente para ele, esperando alguma reação de sua parte.
- Claro, estarei esperando na nossa mesa. - disse ele, indo em direção à mesa onde minhas
amigas e seus namorados estavam sentados.
17
Saí apressada para não perder a garota de vista. Ainda não sabia para onde ela estava indo.
Seu vestido estava violentamente rasgado e ela passava pelas pessoas como se fosse uma
leve brisa do vento, ou um fio de seda roçando delicadamente a pele das pessoas.
Não posso dizer que comigo ocorreu o mesmo. Eu atrapalhara pessoas dançando, pisei
nos pés de alguns.
- Aiiiiii! – dramatizou um garoto baixo.
- Não reclame! Sorte sua que é All Star! – exclamei para ele, nem me dando ao trabalho
de me desculpar.
Ela parou abruptamente na porta do banheiro, como se não fosse nenhuma surpresa que
eu estivesse a seguindo até ali.
Quando ela me viu aproximando-me, continuou entrando no banheiro. Entrei ofegante,
me encostando na parede para tomar fôlego.
- Ei, você! - chamei-a, mas ela nada respondeu. - Qual é o seu nome?
Por incrível que parecesse, o banheiro feminino estava praticamente deserto, se não fosse
por nossa presença ali.
Ela contraiu o lábio, e olhou fixamente para mim. Ela tocou com as pontas dos dedos na
máscara, como se considerasse a hipótese de tirá-la. Não sabia como deveria reagir. Aquele
silêncio, e mistério que ela expelia não me eram nada agradáveis.
Ela mudou o rumo de seu olhar, concentrando-se em um compartimento do banheiro. Eu a
acompanhei. Era apenas uma porta normal, como qualquer outra. Virei-me para perguntar
para ela, mas ela tinha sumido. No lugar onde estava, eu encontrei um lenço de seda azul-
claro. Peguei-o. Estava todo bordado e em seu centro escrito: Meninas de Seda.
Franzi o cenho. Eu não entendia o que aquilo queria dizer, mas enrolei o lenço e guardei-o
comigo.
Minha cabeça estava confusa. Me encostei na pia do banheiro, olhando meu reflexo pelo
espelho. Eu não estava tão mal quanto imaginava. Realmente, Catherine e Cáthia sabiam
fazer milagres.
Tentei refrescar minha mente, e uma lembrança súbita me veio.
Eu tivera um sonho. Uma garota ruiva entrava na antiga casa da parte materna de minha
família, a linhagem Dolman. Ela se encontrara com um homem. O homem estava segurando
um bebê. Fora um sonho bastante real, como se eu realmente estivesse na cena.
Mas do que eu realmente lembrara, era da garota ruiva, que em muito parecia com aquela
mascarada que me apareceu na festa.
Coloquei a mão direita em minha testa e fechei meus olhos por um instante. Tive a
sensação de que eu deixara passar algo.
Quando abri meus olhos, percebi o que a Mascarada tentara me mostrar. O espelho
refletia o piso do compartimento de banheiro que ela tinha apontado para mim e aquela
visão não me agradou nem um pouco.
Enchi meu peito de coragem, e resolvi empurrar aquela porta. Meu coração estava
sobressaltado no peito, e quando ela estava totalmente aberta, me arrependi totalmente
daquele gesto.
18
- AAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!!! – meu grito não pode ser contido em minha
garganta. Senti algo terrível se mexendo dentro de mim. A tontura me tomou, mas tive que
me aguentar em pé. Seria muito drama se eu desmaiasse ali. Naquele lugar. Na pior hora
possível.
- O que foi? O que aconteceu? – um casal adentrou apressadamente o banheiro. A moça
que viera à frente me perguntou, mas me sentia incapaz de responder. Apontei com meu
dedo indicador para a porta aberta. A garota desviou o olhar de mim e olhou para dentro do
compartimento.
Ela revirou os olhos e desmaiou.
- Oh, não! Era só o que faltava. – exclamei, vendo-a inconsciente no chão. – Tire-a daqui. –
anunciei para seu parceiro, que provavelmente era seu namorado. – E chame alguém.
Rápido! – exclamei para ele, que logo me obedeceu.
O bom de se tratar com homens em situações como essa é que eles são mais obedientes.
- Natalie! Você está bem? – Perguntou Marc, se aproximando sorrateiramente de mim.
- Marc? O que faz aqui? – Não sei se aquele momento era ideal para esse tipo de pergunta,
mas não pude evitá-la.
- Eu estava te esperando próximo ao banheiro. Ouvi você gritar, mas não sabia se eu deveria
entrar. Quando aquele casal saiu, perguntei ao rapaz o motivo de sua namorada estar
desacordada, e ele me falou que...
Assenti, sentindo lágrimas roçarem meu rosto.
- Me tire daqui. – pedi, suplicante. – Chame algum professor...
Ele me acolheu em seus braços, como se pudesse me proteger de toda a dor do mundo. Ia me
conduzir para fora, mas algo atrapalhara.
- O que está acontecendo? – antes que eu pudesse concluir o que estava dizendo, uma voz
que se aproximava a uma taquara rachada soou atrás de nós.
Era minha professora de português. Ela não me deu tempo de concluir e já estava me
empurrando e se colocando a frente, onde estava o compartimento de banheiro. Onde tudo
ocorrera.
- Oh, Santo Deus! – ela exclamou, levando as mãos a boca horrorizada. – O que vocês
fizeram? – ela perguntou, virando-se para mim e Marc.
- Na...na...da...nós...só...en...con...tra...mos...ela...aí. – eu comecei a gaguejar, sentindo um
suor frio escorrer por meu rosto.
Ótimo! A situação já não estava muito boa para o meu lado, e o impressionante é que eu
conseguira encontrar uma forma de piorá-la.
Minha professora analisava o corpo de longe, e franzia o cenho. Ela encontrara algo errado.
Algo que eu muito provavelmente não havia notado.
- Sei! – ela exclamou, desconfiada. – Vou chamar a polícia local. Vocês prestarão
depoimento. Me acompanhem. – dizendo isso, ela fez um gesto com a mão para que a
seguíssemos. Tentei me recompor, mas aquilo seria praticamente impossível.
- Por que nós devemos acompanhá-la? Quando encontrei-a, ela já estava assim. – tentei
argumentar, mas acho que só piorara minha situação.
- Senhorita Dolman, já olhou direito o corpo da moça?
19
Balancei a cabeça em negativa. Me aproximei do compartimento, para dar uma olhada
melhor.
Ali encontrava-se o corpo de uma garota. Seu vestido de festa era lilás. Ela usava uma faixa
no meio da testa que parecia lhe esmagar o crânio.
Seu corpo estava atirado no chão, com o pescoço torcido. Eu poderia jurar que ela fora
agredida violentamente antes de morrer, mas não havia nenhuma mancha roxa em parte
alguma de seu corpo, e, por mais incrível que parecesse, também não havia nenhuma gota de
sangue derramada.
- Ela está... morta! – anunciei. Marc deve ter me olhado como se eu tivesse o quociente de
inteligência de uma batata cozida, pois aquilo era óbvio.
- Eu já havia chegado a essa conclusão sozinha, senhorita Dolman! – anunciou Martha,
minha professora. – Quero que consulte o pulso dela.
Franzi o cenho, estranhando aquilo. Me aproximei mais ainda da garota morta. Seu pulso
estava torcido, então pude ver uma mancha nele. Algo havia sido escrito ali. Mas não a
caneta, e sim rasgado a estilete, de uma forma que o sangue escorria por seu pulso. Não sei
como não havia percebido antes.
Minhas mãos se levaram a minha boca, na tentativa de conter um grito agonizado. Não
acreditei no que meus olhos viram, mas a pergunta que se formava em minha mente, era
uma só: Por que?
- Poderia ler o que está escrito para nós? – Martha pediu, me acordando de meu breve
devaneio. Senti minhas pernas estremecerem.
- Na...Na... – fechei os olhos por um instante e me afastei do corpo. Não queria estar ali. Só
desejava que meus avós estivessem comigo, me incentivassem e dissessem que tudo ficaria
bem, e que aquela noite não passava de um terrível pesadelo.
- Diga-nos. O que estava escrito? – um rapaz disse, aguçando a curiosidade dos demais.
Quando olhei para trás, o banheiro estava começando a lotar. Acho que daquele modo o
banheiro ficaria mais cheio do que a pista de dança.
Respirei fundo, como se o ar pudesse me dar coragem, e de uma única vez, anunciei para as
pessoas:
- Está escrito Natalie Dolman. – disse de uma só vez. – Meu nome. – completei, fungando.
Meus olhos marejados de lágrimas apenas me diziam que aquilo não era um sonho. Era a
temível realidade, que teimava em ser pior do que meus pesadelos mais malignos.
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2. Uma noite no cemitério

- Tem mais alguma coisa que desejaria nos contar, senhorita Dolman? - o delegado
perguntou, juntando suas mãos e lançando a mim um olhar ameaçador.
- Não! Nada. – respondi secamente, sentindo minha língua prender em minha boca.
Estávamos no gabinete do delegado em pleno sábado à noite. Não sei o que ele estava
fazendo nesse horário, mas aposto que não estava trabalhando.
Professora Martha tentou expulsar todos os alunos que tinham entrado no banheiro do salão
de festas, mas ela sozinha não conseguiria, por isso precisou da ajuda de todos os outros
professores.
Alguns pais ficaram tão horrorizados, que disseram que não deixariam seus filhos fazerem o
Ensino Médio na nossa escola. Algumas meninas desmaiaram, outras vomitaram, mas eu
não via motivos para isso, afinal, a garota só estava ferida no pulso. Deveria ter sido
envenenada, ou algo do tipo, mas isso só saberemos quando a autópsia for feita.
Agora estávamos na delegacia, esperando alguma decisão ser tomada.
O lugar cheirava a mofo, como se há muito tempo aquela sala não fosse usada. Minha cidade
é pacata, então é bem provável que algo não aconteça há anos.
Eu acabara de dar meu depoimento. Contei exatamente tudo o que vira, exceto sobre a
garota mascarada, claro, afinal, não acreditariam em mim e poderiam me chamar de louca,
ou algo pior.
Professora Martha estava conosco na sala do delegado, e parecia prestes a explodir.
- Todas as provas indicam que ELA é a culpada. - professora Martha falou ferozmente,
apontando o dedo indicador na minha direção.
Que ela não gostava de mim, bem, isso não era novidade alguma para ninguém, afinal, era
difícil encontrar pessoas que realmente simpatizassem comigo. Diziam que eu sou o tipo de
pessoa 'difícil de lidar', seja lá o que isso signifique, mas me acusar injustamente não era
uma atitude sensata.
- Ei! - exclamei, alterando meu tom de voz. - Que provas são essas, hein?
- Todas. – ela respondeu, bufando pelas narinas. – Não acha muita coincidência você ser a
primeira a encontrar o corpo de uma garota com seu nome gravado no pulso dela e...
- Talvez eu não tenha sido a primeira. - defendi, tentando pensar racionalmente. - Outras
garotas podem ter visto só não falaram, ou...
- COMO se aquele banheiro estava interditado? – ela rebateu, alterando seu tom de voz.
- Interditado? Como assim? - perguntei, tentando me lembrar de alguma faixa que impedisse
que eu entrasse, mas não lembrei de nenhuma.
- Ora, vai me dizer que não reparou que não tinha ninguém no banheiro quando entrou? - ela
retornou, desta vez seu tom de voz estava tão elevado que ela se encontrava gritando.
21
- Que baixaria! – exclamou um policial que estava passando por perto.
É claro que eu tinha reparado no banheiro, mas eu não poderia deixar transparecer isso, caso
contrário, estaria mais encrencada ainda.
- Bem, mas por que estava interditado?
- Mau funcionamento das descargas... Não queira mudar de assunto. - ela bradou,
balançando freneticamente seu dedo indicador para mim. – E essa não é a única evidência. A
garota encontrada é Brittany.
Meus lábios se entreabriram. Quase não acreditei no que acabara de ouvir.
“A garota encontrada é Brittany.”
Sim. Minha maior rival, a garota perfeitinha, grande puxa saco dos professores. Não do tipo
CDF, ela está... ou estava, mais para a popular e extremamente arrogante.
- Então foi Brittany que encontraram morta? - perguntei, demonstrando em meu tom de voz
surpresa, meus olhos ainda arregalados. Não conseguia fechar meus lábios, tamanha a
surpresa.
- E quem mais seria? - ela respondeu, ríspida.
- Eu não sei! – exclamei, levantando minhas mãos, e dando de ombros em seguida.
- Ah, sabe sim sua criaturinha... – ela pestanejou, apontando freneticamente seu dedo
indicador em minha direção.
- Se contenha, minha senhora. - o delegado interviu. - Não pode acusar assim a senhorita
Dolman. O corpo deve ser encaminhado para um médico legista, para que ele faça a
autópsia. Enquanto o exame não for realizado, não poderemos fazer nada contra a moça.
- Então é isso? Deixará essa pequena criminosa a solta, liberta por aí? - ela disse, expelindo
saliva no rosto do delegado.
- E o que ela pode fazer? - o delegado retrucou, limpando a saliva que atingira em cheio sua
face. - Fugir do país?
Ele soltou uma gargalhada, mas por um breve instante, considerei aquela hipótese.
- Posso sair então? – perguntei, louca para que ele me liberasse logo, e eu não precisasse
ficar ali ouvindo um sermão desnecessário.
- A senhorita está liberada. Mas fique sabendo que enquanto não descobrirmos quem matou
a garota, a senhorita não poderá sair do país, nem do estado. Acho bom ficar na cidade
também. – ele disse, tomando uma postura autoritária.
Assenti levemente com a cabeça e saí. Minha cabeça doía por tudo o que acontecera.
Olheiras enormes e roxas pendiam sob meus olhos.
Empurrei a porta com a pouca força que ainda me restava. Meus amigos estavam me
esperando do outro lado.
- Você está bem? - Catherine perguntou, assim que me viu saindo do gabinete do delegado.
- Claro. Nem completei 16 anos ainda e já tenho ficha criminal. Melhor impossível. –
respondi, entre sarcástica e cansada.
- Estamos falando sério. - retrucou David, mais rígido do que o normal. - O que ficou
resolvido?
- Por enquanto, nada. - respondi, tentando colocar minhas mãos no bolso, mas logo desisti,
lembrando que estava de vestido.
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- Ficamos sabendo que a garota encontrada morta era Brittany. - falou Cáthia, fazendo um
biquinho ao terminar.
- Sim. - respondi, inclinando minha cabeça para baixo. Meu vestido estava todo sujo, meu
tênis encharcado, mas esse era o menor de meus problemas. Nem era um problema, para
falar a verdade, em comparação a todo o resto.
- Puxa, você está ferrada. - disse Joe, enlaçando Catherine por sua fina cintura.
Levantei meus olhos e fixei-os nele.
- Por que, exatamente? - perguntei, franzindo o cenho. Minha sobrancelhas se contraíram, e
senti meu pescoço pesar.
- Todos sabem que vocês se odiavam. - ele respondeu, dando de ombros.
- E fora aquela ameaça de morte que você fizera a ela algum tempo atrás. - completou
David, como sempre, para ajudar.
- Ah, mas vocês sabem perfeitamente que aquilo não foi sério. Além do mais, eu passei a
noite toda dançando com Marc. Isso seria improvável. - exclamei, esperando que Marc
afirmasse, mas ele estava olhando fixamente para a porta.
- Claro, claro! - Catherine olhou bem em meus olhos, deu-me um leve tapa nas costas e
tentou me consolar.
- Após fazerem a autópsia, você será inocentada. – declarou Cáthia, pela primeira vez
simpática comigo.
Seu tom de voz ficou cada vez mais suave e distante. De repente, lembrei-me novamente do
sonho mais recente que eu tivera. A garota ruiva que estava sendo acusada de algo. Mas eu
não sabia o que era. Sua vida parecia bem similar à minha sob aquele aspecto.
Eu estava sendo acusada, e injustamente.
- Natalie, você está bem? – perguntou vovó, aproximando-se e me tirando daquele breve
devaneio.
Gesticulei um gesto de afirmativa com a cabeça. Ela analisou-me minuciosamente, e, após
constatar que eu estava bem, suas feições mudaram.
Seu olhar se tornou rude, seus lábios contraíram-se ameaçadoramente e ela bufava pela
narinas, como se estivesse a ponto de soltar fogo.
- Que história é essa de que você está sendo acusada de assassinato? Essa foi a educação que
eu te dei?
A cada palavra que ela falava, aumentava seu tom de voz e expelia saliva em mim.
- Calma querida! – Vovô tentou amansá-la, mas ela estava muito furiosa.
- Calma um ova. – ela disse, se desvencilhando da mão dele, que tocava seu ombro. – Você
mocinha, me decepcionou muito. Eu não te criei sua vida inteira para que em uma única
noite você conseguisse estragar o meu Bingo!
- A senhora está mais preocupada com esse seu Bingo idiota do que meu bem-estar?
- NÃO FALE ASSIM COMIGO! Eu não te criei para você virar uma assassina, assim como
a sua mãe. – ela apontava para mim, mas parou subitamente ao dizer aquilo, levando a posta
dos dedos ao lábio, como se arrependesse pela revelação feita, de uma forma tão dura.
Silêncio total.
23
Eu senti minhas cordas vocais darem um nó em minha garganta. Então o motivo pelo qual
vovó nunca falava de minha mãe... é porque ela era uma assassina.
- Este não é o momento adequado para contar tudo para ela. – meu avô falou em tom baixo,
mas minha audição era mais apurada do que a das outras pessoas.
- Contar o que? – senti alívio por ainda conseguir falar, embora estivesse decepcionada que
o som tivesse saído tão meloso.
Eles se entreolharam novamente. Dessa vez foi vovô que falou:
- Nós te contaremos, meu bem. No tempo certo. – suas madeixas grisalhas pareciam brilhar
mais fortemente em sua cabeça levemente calva. Ele tinha um brilho jovial no olhar.
- Por que vocês insistem tanto em esconderem de mim? Acham que eu sou fraca, para não
aguentar a verdade, seja ela qual for? – eles ficaram mudos, como se estivessem sido
intimidados. Mas eu poderia ponderar. Inconscientemente, eu alterara meu tom de voz e
estava gritando com os dois. Quando me deparei, tentei reparar meu erro: - Desculpem-me.
- Tudo bem, querida. – Vovô falou, engolindo em seco. – Vamos para casa, você precisará
descansar.
Dei um leve aceno com a cabeça em concordância, embora ainda não tinha me dado por
vencida. Vovó tivera a sorte de que eu estava exausta demais para discutir, mas amanhã eu
tiraria essa história a limpo, e descobriria a verdade de uma vez por todas.
Amanhã...
***
17 de dezembro, domingo

O dia já amanhecera. Eu senti minha cabeça doer. Era uma dor aguda e terrível. Havia
sonhado novamente com a casa abandonada da família Dolman.
A linhagem Dolman era minha parte materna. Não sabia nada sobre eles, e tampouco já
havia ouvido falar naquela casa. Talvez meu subquociente tenha criado aquele lugar, não sei.
Eu vi aquela garota, a tal da mascarada. Ela me guiara pela entrada, e abria a porta para
mim. Ela sentia minha presença, e parecia precisar de minha ajuda.
A sala era de uma dimensão quase inacreditável. Embora os móveis estivessem gastos pelo
tempo, ainda apresentavam uma beleza indiscutível. Os cantos das paredes apresentavam
teias de aranha, que desciam do teto até metade das paredes. Os móveis estavam
empoeirados. Havia um pequeno sofá no centro, de cor vermelho desbotado.
Alguns quadros na parede, mostravam meninas bonitas e sorridentes. Um espelho enorme se
encontrava próximo à lareira.
A menina me mostrava uma porta que ficava ao lado de uma longa escadaria.
- Abra! – ela ordenou para mim, com sua voz suave e fina.
Me aproximei da porta, mas não consegui abri-la.
- Está trancada! – anunciei, mas quando olhei para trás, a garota tinha desaparecido, como da
última vez.
Eu sabia que algo importante estava do lado da porta, embora não fizesse ideia do que
poderia ser.
***
24
- Natalie, venha tomar café da manhã! – vovó anunciou da cozinha, ligando o liquidificador.
- Já estou indo. – gritei de volta, mas acho que ela não me ouviu.
Prendi minhas madeixas rapidamente com um laço que encontrei sob a escrivaninha. Abri a
primeira gaveta do criado-mudo e tomei em minhas mãos o lenço que encontrara na noite
anterior.
Como eu sabia que ele poderia ser importante, eu amarrara o lenço na minha canela
esquerda antes mesmo de descobrir o corpo de Brittany, pelo menos assim ninguém o
encontraria, e eu poderia analisá-lo melhor.
“Meninas de Seda”.
Era o que estava escrito nele. Tive uma sensação ruim de déjà vu. Meus braços
estremeceram e senti meu sangue fervendo em minhas veias. Minha cabeça começou a pesar
sob meu ombro e senti que desmaiaria.
- Preciso de um remédio para dor de cabeça! – falei, me apoiando à parede.
Fui para fora de meu quarto. Segui em direção ao banheiro, acho que é lá onde vovó guarda
os remédios ainda. Uma mão estava sob a parede, a outra em minha testa, como se eu
pudesse conter a tontura.
Ouvi passos atrás de mim. Virei-me, mas não encontrei ninguém, apenas um vazio
incólume, me arrepiando em cada pelo de meu corpo.
- Natalie! - uma voz fina e suave chamou meu nome, mas quando olhei novamente para o
local, não vi ninguém.
- Natalie! - a mesma voz me chamou novamente, mas antes que eu pudesse me virar, uma
loira alta apareceu na minha frente.
- Catherine! – exclamei, assim que adentrei a cozinha, fixando o olhar em minha amiga. – O
que faz aqui tão cedo?
- Eu dormi aqui, bobinha. – respondeu ela, levantando-se em um salto para me abraçar.
- Dormiu aqui? Mas como? – perguntei, estreitando os olhos, ainda confusa.
- Não lembra que tínhamos combinado? – ela levantou levemente a sobrancelha direita, na
expectativa.
Agora que ela citara, eu realmente me lembrava de ter dito algo do tipo. Nós tínhamos
combinado que ficaríamos juntas no domingo, pra fazermos coisas “normais” de
adolescentes, como ir ao Shopping, visitar diversas lojas de roupas e joias e não comprar
nada, e assistir mais um filme clichê que retrate alguma coisa fútil do cotidiano. Tais coisas
que eu não fazia há muito tempo.
- Verdade. Agora me lembro. – falei, esfregando os olhos e bocejando em seguida. - Pensei
que não viria mais.
- E o que lhe fez pensar nisso? – ela perguntou, levando as mãos para o alto. - Não vai me
dizer que pensou que eu me afastaria de você só por...
- Não, não. Não foi isso que eu quis dizer. – falei, tentando me retratar. – É que eu pensei
que tivesse esquecido.
- Eu jamais poderia esquecer disso. – seus olhos brilhavam ainda mais na órbita ao dizer
essas palavras. - Afinal, é nesse momento que você mais precisa de mim.
- Obrigada. – sussurrei, dando um leve sorriso de canto.
25
- Imagina. Amigos são iguais a facebook. Servimos para curtir momentos felizes juntas, e
compartilhamos momentos tristes. – sua voz apresentava uma leve animação, e ela sorria
amavelmente para mim.
Sorri em agradecimento. Era muito bom ter com quem contar. Ainda mais alguém como ela.
- Você teve notícias dos pais de Brittany? – disse eu. Embora fosse difícil tocar naquele
assunto, não pude evitar a pergunta.
- Sim, Cáthia me ligou há pouco. – respondeu, apagando o sorriso de seus lábios. - Ela disse
que o enterro foi marcado para hoje, às 16h00. O velório, bem, acho que já está
acontecendo. – ela revirou os olhos, como se fizesse pouco caso daquela informação que
estava concedendo.
Respirei fundo, e anunciei sem pestanejar.
- Eu quero ir! – minha voz saiu mais frouxa do que imaginara. Todos se voltaram para mim,
com expressões no rosto contraídas. Acho que eles pensam que eu fiquei louca.
- Você sabe que não será bem recebida. – Cath finalmente falou, mais ainda parecida
perplexa.
- Eu sei. – respondi, revirando os olhos. Peguei um copo, e o enchi com suco natural que
minha avós tinha acabado de fazer. - Mas eu sinto... que devo fazer isso.
- Você sente? - ela arqueou a sobrancelha, olhando desconfiada para mim. Ela parecia
confusa com o que eu estava dizendo.
- Sim. No meu íntimo eu sei que é uma ideia ruim e precipitada, mas eu preciso fazer isso. –
disse eu, desviando meu olhar para o azulejo da cozinha. - Preciso vem Brittany uma última
vez. Mesmo que ela tenha sido tão ruim comigo.
- Você tem certeza de que deseja mesmo fazer isso? – Catherine perguntou, franzindo o
cenho para mim.
Eu acabara com as perspectivas dela estragando o nosso dia de “dupla dinâmica”, sem
namorado, ou qualquer outra amiga, mas eu tinha que fazer aquilo.
Assenti para ela, e dei uma olhada no relógio. Havia passado das 9h, e meu café da manhã já
tinha terminado.
Fui para meu quarto e separei a primeira roupa que encontrei para usar. Havia esquecido
completamente de minha dor na cabeça. Peguei minha toalha, a qual estava cuidadosamente
jogada na cadeira de minha escrivaninha, e fui para o banheiro, tomar um breve banho.
Deixei a água escorrer por meu corpo. Senti uma pontada em minhas costas. Algo estava
acontecendo dentro de mim, eu deveria descobrir o que era. Ou seria melhor se eu não
descobrisse?
***
Nós adentramos o cemitério. Do lado esquerdo, várias árvores secas formavam um trilha,
mas eu ainda podia ver túmulos infantis e várias pessoas levando vasos de flores para seus
parentes.
Até que o lugar estava bem cheio para uma manhã de domingo. O ponteiro de meu relógio
de pulso apontava 11h32. Nós demoramos um pouco para chegarmos.
- Fique sempre ao meu lado, ok? – Catherine pediu, como uma mãe querendo proteger o
filho pequeno.
- Claro, onde mais eu iria? – respondi, levantando meus ombros, em sinal de deboche.
Ela nada respondeu, e continuamos caminhando em direção à pequena capela, onde o corpo
estava sendo velado. Havia sido decorada com flores brancas, que me pareciam bem
murchas. Duas lamparinas com velas quase ao fim pendiam na entrada.
26
A família inteira dela estava ali, pelo menos foi o que me pareceu. Amigas da escola e o
namorado dela estavam sentados em banquinhos, desconsolados.Os pais dela estavam com
as cabeças baixas, parecendo admirar o piso, e abraçados um ao outro.
- Ei, o que ELA está fazendo aqui? – gritou Emma, uma das amigas da patricinha,
apontando com o dedo indicador em minha direção.
Os pais de Brittany levantaram suas cabeças e fixaram os olhos em mim, tal gesto repetido
por todos os presentes que ali estavam.
- Algum problema, Emma? – perguntou o pai de Brittany, cujo nome sempre me fugia da
mente.
- Foi ELA que matou sua filha. – ela gritou em minha direção, do mesmo modo como minha
professora fizera.
- Você não pode acusar assim, Emma! – exclamou Catherine, proferindo aquele nome como
se tivesse nojo. – Natalie passou a noite toda ao lado de meu cunhado. Ela não poderia ter
feito isso.
- Mas nós temos provas. – ela rebateu, arregalando os olhos sarcasticamente para minha
amiga.
- E que “provas” são essas? – perguntei, não contendo minha curiosidade.
- Todos os banheiros têm câmeras. Claro que não dentro das cabines, isso seria nojento. –
disse Emma, franzindo o lábio pra o canto esquerdo. – Mas o fato é que tudo o que
aconteceu nós veremos. – ela continuou, fazendo gestos com os dedos.
- Que ótimo! – exclamei, mas senti que aquela não era uma boa ideia.
"E se descobrirem sobre a mascarada?" Não pude conter esse pensamento em minha mente.
- Com medo, Natalie? – perguntou outra amiga de Brittany.
- Nem um pouco. Aliás, será um grande alívio quando eu puder ser inocentada. - Dizendo
isso, me virei em direção à saída.
- Onde você vai? – Catherine perguntou, segurando em meu braço direito com uma força
que não era dela.
- Preciso andar um pouco! – exclamei, desvencilhando-me de sua mão de macho.
- Quer que eu vá com você? – ela olhou para mim desconfiada, seu tom de voz quase
suplicando que eu não a deixasse ali.
- Não! Eu preciso de um momento sozinha. – respondi, e sai andando sem olhar para trás.
Sei que ela não queria estar ali, mas eu necessitava de ar puro.
Perto da capela tinha uma pequena trilha, toda decorada com orquídeas amarelas, em ambos
os lados. Percebia que quanto mais eu adentrava-a, mais os tons das orquídeas se
intensificavam. Seria romântico se não fosse dentro de um cemitério.
Segui pelo caminho, onde alguns casais passeavam de mãos dadas e outras pessoas chorosas
sentadas em bancos eram amparadas por algum parente ou amigo. Eu sabia muito bem como
era aquela dor da perda.
Um cruzeiro enorme onde algumas pessoas acendiam velas para algum parente ou amigo.
Parei ali por um segundo, refletindo nas perdas que minha vida já sofrera, e o recente choque
em saber que minha mãe era uma assassina. Tudo aquilo era tão estranho e confuso, mas eu
teimava em repetir a mim mesma que vovó só poderia estar enganada.
Enxuguei uma lágrima que escorreu por meu olho, retomando minha caminhada. Mudei de
posição e fui para o lugar mais mal iluminado que consegui encontrar.
Aquela trilha parecia não ser cuidada há muito tempo, os galhos estavam secos e muitas
folhas estavam jogadas no chão, algo não muito normal para a época do ano que estamos.
Senti um som de folha se quebrando e parei abruptamente, olhando para meus pés.
Me virei, mas não encontrei ninguém, nenhuma alma pecaminosa.
Virei meu corpo para a frente novamente, e ele deu um estalo. Já estava quase chegando ao
fim. Árvores imensas cobriam o restante da estrada, fui impedida de prosseguir.
Ia embora, mas quando olhei para trás, meu coração quase salta pela goela. Eu estava sendo
observada. Timidamente, duas mãos femininas começaram a surgir por detrás de uma árvore
estrondosa. Seu rosto curioso, me olhava fixamente. Sua face apresentava uma cicatriz que
27
lhe cobria quase totalmente, a região de seus olhos, era coberta por uma grande máscara
dourada.
Era ela novamente. Que perseguição.

***

- Ei, você! – chamei-a, na intenção de que dessa vez ela falasse comigo. – Você entende a
minha língua?
Eu percebi um leve assentimento em sua cabeça e suspirei aliviada. Pelo menos ela poderia
conversar comigo. Isso, é claro, se um gato não tivesse comido sua língua.
- Venha para cá! – exclamei, fazendo um gesto de acolhimento com as mãos.
Ela continuou olhando-me fixamente, mas não se manifestou.
- Você tem medo? – perguntei, com a sobrancelha esquerda levemente levantada.
Ela nada me respondeu, apenas estava paralisada a minha frente. Uma mecha ruiva lhe caiu
sob o olho direito, e ela me encarou efusivamente, o vento a bater-lhe na face.
Já estava começando a ficar entediada e brava com sua falta de atenção, mas quando cogitei
ir embora, ela disse em uma voz tão fina e distante, que pensei por um segundo estar em um
sonho:
- Volte às 20h00 de hoje. Nesse mesmo lugar. Sozinha. – senti a brisa do vento passar mais
rapidamente por mim. Ela havia sumido.
Sei que não é nada confiável acreditar em uma garota que se encontra duas vezes e se recusa
a dizer o próprio nome, mas ela não me parece ser do tipo trapaceira.
Sai pelo mesmo caminho que tinha entrado. Segundo meu relógio, já passava do meio-dia.

***

Depois que eu encontrara Catherine, pedi a ela que me levasse de volta para casa. Estar na
presença da Mascarada fazia com que eu me sentisse péssima e, de alguma forma, fraca.
No caminho de volta, liguei o som num volume que eu não pudesse escutar mais meus
pensamentos.
- Coloca uma música decente! – gritou Catherine, abrindo o porta luvas. – Escolhe um CD
aí. – sua voz falhou ao dizer a última palavra.
Dei uma breve olhada no material que ela tinha, e escolhi um CD com o melhor dos anos 80.
Música antiga sempre foi um atrativo para mim.
- Você está bem? – Cath perguntou, desviando por um breve segundo sua atenção da
estrada. Suas mãos delicadas pareciam aconchegadas ao duro volante, mas seu olhar estava
perdido. – Você ficou quieta desde que voltou.
- Estou. – respondi, brevemente. – Só estou com fome. – completei, recostando minha
cabeça no estofamento do carro.
Ela me olhou de esguelha, não parecendo muito convicta. Apoiei minha cabeça no vidro, e
fechei meus olhos, sonolenta.
Minha mente ansiava por descobrir quem era a mascarada, mas, desta vez, eu não tive sonho
nenhum.

***

- Algum problema, meu bem? – perguntou vovô, assim que o carro de Cath saiu buzinando
atrás de mim. Vovô estava ao portão, conversando com a vizinha sobre o terrível desastre da
noite anterior.
- Não, nada. – respondi, respirando fundo e caminhando portão adentro. Não estava com
ânimo para o interrogatório que viria da vizinha. Sei disso. Aquela velha fofoqueira não
pedia uma oportunidade de me jogar no fundo do poço.
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Passei pelo corredor, e entre pela porta da cozinha. Vovó estava batendo um bolo. Seu
cabelo grisalho estava preso no alto de sua cabeça, em um elegante coque. Suas mãos,
enluvadas pela grossa massa.
- Oi querida! – ela anunciou, alegre ao me ver. – Estou preparando um bolo para você. Está
muito abatida pelo ocorrido. – ela virou as costas para mim, colocando a fôrma sob o fogão.
- Não precisava. – eu disse, tirando meu relógio e colocando-o sob o armário. – Vou sair
com as meninas hoje. Catherine e Cáthia. Elas vêm me buscar lá pelas oito horas da noite.
- Ah! – vovó exclamou, parecendo pensativa. – Onde vão? Não vá chegar muito tarde.
- Cinema. – disse, vagamente. – Apenas para me distrair dessa tensão toda. – completando,
terminei. – Voltaremos cedo, eu prometo.
Saí em direção ao meu quarto. Tranquei a porta ao chegar. Não queria ser incomodada por
ninguém, enquanto pensava na melhor maneira de enrolar meus avós. Eles não poderiam
descobrir. Não era nada arriscado encontrar uma pessoas misteriosa, que poderia muito bem
ser uma assassina, no meio de um cemitério, à noite, mas eles se preocupam tanto que
duvido que me deixariam sair de casa nessas circunstâncias.
Peguei o telefone ao lado da cabeceira de minha cama, e disquei o número da casa de
Catherine. Funguei, apreensiva. Soltei o ar de meu peito em uma baforada. Cocei meu olho
direito com a ponta dos dedos. Ela atendeu.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntou, apreensiva.
- Não. – respondi e, após uma breve pausa, tomei uma firme decisão. – Só quero avisar que
não posso ir no cinema com vocês hoje. Não estou me sentindo muito bem.
- Eu posso marcar outro dia então. – Cath disse, e emitiu um som baixo, como quando se
amassa um embrulho de presente. – Sem problemas para mim.
- Seu namorado ficará bravo se desmarcar isso. Já não passou o dia com ele... – falei,
tentando persuadi-la. – Podem ir, estou bem. É só uma dor de cabeça, mas ficarei em casa
repousando.
Ela pareceu pensar durante alguns segundos, soltou um grunhido e completou:
- Tem certeza? – sua voz parecia desanimada.
- Absoluta. – disse eu, firme com minha decisão. – Podem ir e se divirtam por mim. Haverão
outras oportunidades.
Desliguei o telefone, colocando-o novamente sobre o criado-mudo.
Eu estava mentindo para meus avós e mais ainda para minha melhor amiga, apenas para
encontrar uma garota misteriosa em um cemitério no meio da noite.
Nada fora do comum, mas eu deveria ter cuidado.
***
Os ponteiros do relógio marcavam 19h00, exatamente. Eu já havia me arrumado, de uma
forma meiga e provocante, para meus avós não desconfiarem, mas também confortável, para
o caso de precisar pular algum muro. Nunca se sabe.
- Que hora Catherine vem buscá-la? – vovô perguntou, ajeitando os cabelos grisalhos em
uma boina de algodão.
- Eu vou descer até a casa dela, é duas ruas depois daqui. – falei, chacoalhando minha
pequena bolsa para caber meu celular. – E depois vamos passar na casa de Cáthia, já que ela
mora longe. – evitei manter contato visual com eles enquanto falava. Eles sempre sabiam
que eu estava mentindo quando olhavam em meus olhos. – Será mais fácil quando as duas
forem comprar a casa juntas.
- Quando elas se mudam? – vovó perguntou, ainda parecendo receosa. Cath e Cáthia tinham
idade suficiente – e dinheiro – para comprarem uma casa juntas, que ficasse perto da
faculdade.
- Em duas semanas, no máximo. – respondi, já dando as costas.
- Tome cuidado querida! – vovó especulou, parecendo insegura. - E avise quando estiver
voltando. Se precisar que a gente busque...
- Não vejo necessidade disso, vovó. – apressei-me em responder. Coloquei a alça da bolsa
sob meu ombro esquerdo, e tirei um fio de cabelo pendurado em minha blusa. Esta era
29
branca, com spikes nas mangas. Minha calça jeans cós alto era agarrada, mas meu tênis all
star dava o conforto necessário para uma fuga.
Aquela noite prometia muita coisa, e estava a fim de cumprir tudo com afinco.
- Tenho que ir. – anunciei, me virando para a porta da cozinha. – Vejo vocês mais tarde.
- Se cuide. – disse vovô, grunhindo. Ele se aproximou de mim, e me deu um beijo na testa,
sussurrando em meu ouvido. – Amamos você.
- Também amo vocês, vovô. – respondi seca, apressada para sair. Não estava muito boa para
sentimentalismos. – Vou de bicicleta até a casa de Cath. – disse, pegando a magrela que eu
havia deixado no corredor para a garagem. – Prometo que vou tomar cuidado. – empurrei-a
até o portão, fechando-o atrás de mim.
***
Desci a rua de casa. Fazia tempo que não andava de bicicleta, mas essa é uma coisa que
nunca esquecemos. Você sabe disso.
Virei a esquina, pois sabia que meus avós ainda estavam me observando. Já passara das
19h00, mas eu não precisaria de uma hora completa para chegar até o cemitério.
Ele fica logo após do centro da cidade. Minha casa, muito antes. Chegaria suada e cansada,
mas tudo o que importava naquele momento, era saber o que a tal da garota queria comigo.
Por que justo à noite, e no cemitério? Não tenho medo dos mortos... só receio de que eles se
levantem e me matem. Apenas.
Peguei a estrada quase vazia. O caminho era asfaltado e tranqüilo de se andar. Poucos carros
passavam por ali. Estranho. Hoje é domingo, deveria estar mais movimentado.
Meus pensamentos me distraíram muito, mas, não sei como, cheguei logo no cemitério.
Olhei meu relógio. Nem eram oito horas ainda. O lugar era bem iluminado. Alguns corpos
eram velados e vários parentes sentavam-se em bancos, na mesma estrada de terra a qual eu
passara. Entrei respirando fundo no cemitério, como se esperasse que o ar me acudisse e não
me permitisse desmaiar.
Algumas pessoas olhavam curiosas para mim, como se imaginassem o que uma garota como
eu estava fazendo ali, desacompanhada, num horário não muito conveniente como aquele.
Olhei ao redor, em busca da trilha que eu havia ido. Não tinha muita certeza. Encontrei um
matinho raso e algumas flores ao redor, formando uma passagem. Deveria ser ali mesmo.
Me arrependi de não ter trazido minha lanterna. Estava muito escuro, mas eu não poderia
inventar uma desculpa pra levar um objeto deste porte para um cinema. Não saberia ser
convincente.
Meu corpo estremeceu totalmente, quanto mais eu avançava. Vi um pequeno ponto de luz,
bem ao longe. Já era um começo. O ponto começou a se aproximar de mim, e, num lampejo,
ele irradiou pela minha face, iluminando a trilha completamente.
Minha mão direita tapou meu rosto, meu ombro se deslocou para trás. Que susto!
Parei ali mesmo, esperando a Mascarada aparecer. Achei que o ponto de luz havia sido um
sinal.
- Ôh, coisinha! Aparece. – chamei ela, embora acreditasse que “coisinha” não fosse um
apelido muito carinhoso.
Ouvi um pisar de folhas. Alguma coisa estava se mexendo atrás de mim. Olhei ao redor,
percebendo cada pelo de meus braços se arrepiarem. Ouvi um baque fraco vindo da direção
da árvore central. Caminhei trêmula até ela. Um caderno havia sido jogado no meio das
folhas. Agachei-me, segurando o cós da minha calça (se alguém estivesse me observando,
não precisaria ver meu cofrinho), e o apanhei com minha mão direita.
Levantei-me em um pulo só, e assoprei o pó que estava em sua capa. Parecia um diário, não
havia cadeado, mas quando puxei suas partes tentando abri-lo, não consegui. Parecia colado.
A parte de trás um nome estava escrito, em uma bela caligrafia feminina.

Sarah Dolman
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- Pensei que fosse a única Dolman na face da terra! – exclamei, ao ver meu sobrenome junto
ao nome daquela tal de Sarah. Não poderia ser coincidência...
Tomei o diário nas duas mãos, e me virei para analisá-lo melhor. Meus olhos estavam fixos
no conteúdo da capa.
- Ficaria mais fácil se iluminasse... – soltei um grito de susto ao ouvir uma voz, que vinha na
minha frente. Ela havia aparecido, e carregava consigo um ponto de luz, nas pontas de seus
dedos.
- Você me assustou. – disse eu, arregalando os olhos.
- Percebi quando gritou. – seus olhos apresentavam um ar travesso, de menina levada.
- Quem é você? Que é Sarah? Você é ela? Ela é você? – comecei meu interrogatório, como
um policial interroga o suspeito de um crime.
- Cada coisa a seu tempo. – sua voz misteriosa me irritava. Ela passou por mim, seu vestido
rasgado lhe delineava o corpo magricelo.
- Fale logo! – exclamei, com a paciência se esgotando.
- Não somos a mesma pessoa. – ela disse, eliminando duas de minhas perguntas. – Você é a
única que pode me ajudar. Nossas vidas estão em perigo, não há muito tempo para agir.
- Mas quem é v...
- Não há tempo para isso. Você saberá muito sobre mim, quando aprender a olhar para si
mesma. – ela olhou para trás, como se tivesse medo de que alguém pudesse chegar. – Escute
com atenção. E não me interrompa.
Assenti afirmativamente e engoli em seco. Ela parecia apreensiva, e isso lhe dava uma
atitude autoritária.
- Você corre um grande perigo. Ele está à solta. Está de volta, e fará de tudo para acabar com
você antes que a maldição se concretize.
- Do que está falan...
- Não interrompa. Só precisa saber que Paul e Anna ajudarão você. Não tenho muito tempo.
Pergunte a eles sobre Sarah, o diário deverá ficar sob sua vigilância. Não o perca. Há apenas
uma forma de abri-lo, mas você não está pronta para isso. – ela falava tudo muito depressa,
fiquei com medo de me perder naquele emaranhado de informações. – E mais importante,
tome muito cuidado com ele.
- Quem é...
- Ele... é o filho de Callum. – ela sussurrou em frente à minha face. – De nome, Andrew, só
sabemos de seus temíveis poderes. Tenha muito cuidado, Natalie. Ele não pode pegá-la
desprevenida...
Ela me encarou durante alguns segundos, e depois deu dois passos para trás.
- Sei que se sairá bem. – e desapareceu, me deixando com um grande ponto de interrogação
na mente, e o diário entre as mãos.
***
Peguei a bicicleta e comecei a empurrá-la para fora do cemitério. Não sabia o quão radical
era sair de casa à noite para uma coisa dessas, mas certamente entraria para a minha lista de
coisas fora do normal que já me haviam acontecido. Bem ao lado de “Alguém morre com
meu nome no pulso”.
- Natalie! – uma voz estridente e mandona veio da direção da entrada. Olhei para baixo,
como se eu pudesse sair daquele terrível sonho em um simples piscar de olhos.
Mas quando levantei a cabeça, o pesadelo só havia acabado de começar.
- Vovô? Vovó? Catherine? O que fazem aqui? – perguntei, entre surpresa e amedrontada.
- Eu liguei para a sua casa, perguntando se você tinha melhorado. – Catherine se prontificou
a responder. – Mas seus avós disseram que você tinha saído comigo. Eles me perguntaram
se eu sabia onde você estava, então eu disse que não, e que você estava agindo estranho
desde que voltamos do cemitério, como se você tivesse visto um fantasma, ou algo do tipo.
Então, eles tiveram a ideia de vir para cá.
- Como sabiam que eu estava aqui?
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- Quando Catherine falou em fantasma, uma ideia súbita me veio à cabeça. – respondeu
vovó.
- Ontem à noite você nos falou que tinha visto uma garota mascarada. – vovô completou,
pigarreando.
- Falei? – perguntei, franzindo o cenho. – Não me lembro disso.
- Mas você falou. – replicou vovó.
- Ficamos com medo de que estivesse se encontrando com Victoria!
- Como sabem quem é ela? Nem eu sabia...
- Bem, acho que está na hora de que lhe revelar tudo. – eles estremeceram. - Vamos para
casa.
- Mas como vocês sabem que a mascarada chama-se Victoria? – perguntei, insistindo no
assunto. – E qual o problema de me encontrar com ela?
- Querida... – começou vovô, colocando as mãos sob meus ombros. – Victoria está morta!
32

3. A descoberta de um novo mundo

- Então, é por isso que pensou em Victoria quando Catherine disse que eu tinha visto um
“fantasma”? – perguntei, aconchegando-me no sofá da sala em casa.
Meus avós tinham deixado Catherine na casa dela, pois diziam que este era um assunto de
família. Tentei argumentar dizendo que Cath já era da família, mas da forma como eles
estavam apreensivos, seria melhor não cutucar as onças com vara curta.
- Sim. – vovó respondeu, vagamente.
- Você encontrou-se com ela? - perguntou vovô, curioso. - O que ela disse?
- Ela iria me contar algo antes de vocês chegarem. Ela falou algo sobre maldição, eu acho. E
me pediu para perguntar à Paul e Anna toda a verdade. Vocês conhecem esses dois?
Eles trocaram um olhar de cumplicidade.
- Nós precisamos contar para você, mas um passo de cada vez, você se assustaria se
soubesse tudo de uma vez só. - interviu vovô. - Nós somos Paul e Anna. – ele fez um gesto
apontando para si mesmo, depois para vovó.
- Sério? - perguntei, balançando a cabeça. – É, não poderia achar que vocês se chamassem
“Vovô” e “Vovó”.
- É hora de uma segunda verdade. – Vovô Paul fungou, e respondeu, parecendo me olhar
penalizado. – Nós não somos seus avós, querida.
- Como não? – franzi o cenho, boquiaberta.
Eles se olharam novamente, como se já soubessem o que deveriam fazer. Em um instante, a
sala clareou totalmente e eu não consegui enxergar nada. Minha visão foi ofuscada por um
intenso brilho alaranjado. Quando o brilho ofuscou, vi algo realmente inacreditável.
Acho que a intensidade da luz alterou minha visão, pois no lugar de dois idosos, dois adultos
estavam, embora com a mesma roupa.
Ele era alto, seu cabelo era loiro e cacheado, que lhe caia sob o ombro. Era o mesmo homem
que eu vira em meu sonho, com a diferença de ser um pouco mais velho.
A mulher tinha cabelos bem pretos e lisos. Era alta, mas não tanto quanto ele, e aparentou
ser mais jovem.
- Uau! Vocês têm que me ensinar a fazer isso! – exclamei, com a excitação à flor da pele.
- Você é realmente parecida com sua mãe... - anunciou vovó... ou melhor, Anna, dando de
ombros.
- Você conhece minha mãe? - perguntei, surpresa. – Que pergunta idiota. – dei de ombros,
ao me dar conta de que era óbvio que elas se conheciam.
- Mas é claro! Foi uma das melhores entre as nossas. – ela disse, seus olhos se revirando
para cima, e apresentavam um brilho travesso. Ela estava com um ar de saudades.
- As suas o que? - perguntei, confusa.
- Você deveria explicar para ela antes, não acha? – brincou o homem, lançando um sorriso
sedutor.
- Não me diga o que devo fazer. – ela respondeu, seriamente.
- Então eu explico! – Paul se prontificou, mas Anna o interrompeu.
- Eu falei para não me dizer o que fazer. – ela replicou. – Não que vou te dar a satisfação de
contar toda a verdade para ela.
- Ah, mulheres! – ele revirou os olhos, e se jogou de uma só vez no sofá, esperando a
narrativa dela.
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- Nós não somos pessoas comuns, Natalie. – começou ela, me tocando delicadamente no
ombro. – Não somos humanos.
- Eu acho que percebi isso 2 minutos atrás, quando de velhos vocês se transformaram em
novos. – disse, brincando com uma mecha de meu cabelo.
- Não é tempo para brincadeiras ou sarcasmo. - disse vo... Anna, levantando o lábio
superior.
- Não foi brincadeira, muito menos sarcasmo. - disse eu, tentando me justificar, dando de
ombros, mas percebi que aquele gesto apenas fazia com que tudo parecesse mesmo
brincadeira.
- Tudo bem, tudo bem. Vamos ao que realmente interessa. – anunciou Anna, parecendo
irritar-se. – Nós morávamos em um outro... lugar. Apropriado para pessoas da nossa espécie.
Lá é como aqui, só que... melhor.
- Você vêm da linhagem Dolman. – Paul anunciou, interrompendo-a. – Todos têm uma
Linhagem, que é representada por sua família, e deve segui-la conforme o que era exercido
por seus ancestrais.
- Que ótimo, hein? – exclamei, excitada.
- Não nos interrompa, por favor. – pediu Paul.
- Enfim! – disse Anna, retomando o relato. – Sua família é muito importante. Mas, é como
dizem, com grandes poderes também vêm grandes responsabilidades. E inimigos!
- A família Dolman atrai olhares invejosos por sua riqueza. Entre os maiores, está a família
Callum.
- Eles são temíveis. Os maiores bandidos destin que já se ouviu falar. Há anos não se têm
notícias sobre o último de sua geração, mas tudo indica que um herdeiro foi deixado...
- E este herdeiro, assim como os outros de sua família, está em busca de vingança, da última
Dolman viva. – ela fez uma pausa. – Você!
- Eu? Mas o que foi que EU fiz? – arregalei os olhos, saltando do sofá.
- Você? Nada. Mas como eu disse, a família Dolman atrai muita inveja. Sua família foi
amaldiçoada. Uma terrível maldição que...
- Que maldição? – perguntei, lembrando da conversa com a garota morta.
- Bem, nós não sabemos. Apenas a família Dolman sabe.
- Mas você disse que eu sou a última Dolman viva.
- Exatamente.
- Isso quer dizer que a maldição morrerá comigo ou...?
- Nós não sabemos. Só existem dois modos de se conhecer a maldição.
- E quais são eles?
- Abrindo o diário de Sarah Dolman, e seguindo as instruções que nele estiverem.
- Fácil! – exclamei, exaltada.
- Não se precipite. Desde que Sarah Dolman morreu ninguém nunca conseguiu abri-lo. Só
existe uma forma... mas ninguém sabe ao certo qual é.
- Ótimo! – exclamei, descontente. – E qual a segunda forma?
- Se você se encontrasse com o filho de Callum. A família dele lhe jogou essa maldição, ele
deve saber como quebrá-la.
- Ótimo! – joguei minhas mãos ao alto, me dando por vencida. - Onde encontro ele?
- Você não pode! – Anna falou aos berros, como já era de costume para minha ex avó.
- Por quê não?
- Não seria uma atitude muito sensata procurar alguém que deseja matá-la. – ela arregalou os
olhos para mim, da mesma forma ameaçadora que eu havia visto minha vida inteira. - Além
do mais, a quebra da maldição salvaria sua vida, mas acabaria com a dele.
- Então eu não posso viver enquanto ele sobreviver? – perguntei, de um pulo, exaltada. –
Isso é tão Harry Potter. Adorei.
- Você e aquele livro doido de novo. – Paul falou, dando de ombros. – Aprenda que a vida
não é esse tal de... Réuri Poti. – dei um risinho ao ouvir ele pronunciar o nome errado, como
sempre fazia quando era só meu avô.
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- A diferença é clara, meu bem. – Anna falou, parecendo se acalmar. – Vocês podem viver
em harmonia. Poderiam até serem amigos e tomarem chá juntos. Mas não sabemos o que
está acontecendo ao certo. O inimigo pode ser ele, como pode ser qualquer outro. Queremos
que tenha em mente que você está correndo perigo de vida. Tenha em mente que existe por
aí uma pessoa doida para te torturar lentamente até seu último suspiro de...
- Obrigada. – falei, fingindo estar emocionada. – Isso é muito tranqüilizador.
- Não assuste a menina. – Paul repreendeu-a. – Tudo isso já é estranho demais.
- Okay. – Anna retomou seu ar sério. – Vá para seu quarto e faça as malas. Precisamos te
levar ao lugar onde nunca deveria ter saído. E sem mais perguntas.

***
Fui para meu quarto imediatamente. A versão nova de Anna era assustadora. Bem mais do
que a antiga.
Tirei todas as minhas malas que estavam encima do guarda-roupa. Abri violentamente as
portas, tirando seis cabides por vez e jogando tudo na cama. Não me dei ao trabalho de
dobrar nada. Levaria muito tempo.
Soquei tudo dentro das malas. É exaustivo ter que arrumar algo, quando se está acostumada
a ser uma pessoa relaxada e preguiçosa.
Peguei a última camiseta que tinha ficado para fora, e prensei-a contra a mala.
Tem que caber. Só mais uma pecinha...
Subi na mala, o desafio agora seria fechar. Empurrei o zíper com força, quase quebrando.
Soltei um urro de felicidade.
- Tá tudo bem aí? – Anna perguntou do outro lado da porta.
Acho que seu instinto “maternal” ainda estava alerta.
- Terminei as malas. – gritei de volta. – Sobrevivi.
Peguei o diário de Sarah Dolman, pelo visto, minha avó. Anna me deixou ficar com ele, mas
disse que eu deveria cuidar como se minha vida dependesse dele.
As capas coladas me davam aflição, e me sentia frustrada só de imaginar que não
conseguiria abri-lo. Que coisa útil, hein.
Analisei a contra capa. Uma frase estava escrita.
“Você pode passar a vida inteira buscando a chave para a felicidade, mas sempre acabará
descobrindo o que procura dentro de si.”
Coloquei o diário em uma das malas com livros. Um a mais ou a menos não faria tanta
diferença.
Abri a porta sorrateiramente, e dei alguns passos ao quarto na frente do meu. Ia bater na
porta, mas ficar ali escutando a conversa me pareceu mais interessante.
Eles sussurravam, como se soubessem que eu poderia estar ali, mas minha audição era bem
mais apurada do que o normal.
- Acha mesmo que foi ele? – Anna parecia saber a resposta, mas preferiu uma segunda
opinião.
- Sem a menor dúvida. Quem mais assassinaria uma pessoa que Natalie odeia e ainda
rasgaria em seu pulso o nome dela? – Paul disse, como se a conclusão fosse óbvia.
- Você quer dizer que o nome no pulso... – ela completou. – foi um aviso para ela ficar
esperta?
- Sim. – disse ele, e o imaginei andando em volta da cama, pois ouvi seu joelho fazer um
estalo ao bater em madeira.
- Mas o filho de Callum nem deve ter sobrevivido. – ela indagou. – Você sabe disso. Você
era seu guardião.
O filho de Callum era o bebê que Paul estava segurando em meu sonho? Mas por que?
- Mas não sabemos ao certo. – ele parecia mais pensativo do que o habitual. – Lembra da
profecia? Apenas dois corações unidos pelo mesmo laço, serão capazes de com a maldição
acabar.
- Dois corações... – Anna repetiu. – E mesmo laço... se refere à dois irmãos ou irmãs da
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linhagem.
- Exatamente.
- Mas a única irmã que Natalie teve, está morta. – Anna concluiu.
Paul soltou um riso sem muito humor, e concluiu.
- Isso é o que você pensa. – sua voz estava seca, porém firme.
Desgrudei meu ouvido da porta, com medo de ser descoberta.
Então... eu tinha uma irmã.

***

18 de dezembro, segunda-feira.
Já amanhecia lá fora. Eu não conseguira dormir a noite toda. Fiquei pensando em tudo o que
aconteceu nos últimos dias. Um segundo pode mudar tudo, e revirar nosso mundo de cabeça
para baixo.
Meus olhos apresentavam olheiras enormes, que acentuavam mais ainda as sardas do meu
rosto. Minhas madeixas ruivas brilhavam, e estavam mais rebeldes do que o normal. Eu os
mantinha compridos e levemente enrolados. Natural e difícil de cuidar.
- Natalie, já está acordada? – perguntou Anna, com aquela voz grave, que em nada
combinava com seu jeito delicado.
- Eu nem dormi. – respondi, bocejando levemente.
- Mas precisava. – ela respondeu, de um jeito cuidadoso. Deveria ser a força do hábito. –
Pegue suas malas. Nós temos que ir antes que as pessoas comuns comecem a acordar.
Olhei para o relógio. Era exatamente 5h00. Aposto que muitas pessoas já estavam
acordando naquele momento.
- Poderia me ajudar? – perguntei, abrindo abruptamente a porta e indicando as malas.
- Claro! – ela respondeu, animada. – Que bagunça!
- Vamos, garotas! Não podemos nos atrasar. – Anunciou Paul, batendo na porta e ajudando
Anna a carregar as malas.
Entramos no carro e começamos a seguir caminho, rumo ao desconhecido. Bem, pelo menos
para mim!
O céu estava incrivelmente bonito nessa manhã. O sol brilhava atrás das nuvens, e o céu
aparentava uma cor violeta. Eu nunca reparara como as ruas podem ser fascinantes a essa
hora da manhã. Acho que eu deveria prestar mais atenção aos pequenos detalhes que me
cercam.
O carro parou abruptamente.
- Pensei que chegar em outro mundo demoraria mais! – falei, irritada por ele ter apenas
virado a rua, e ido até o final.
- Não chegamos ainda. Só na passagem. – ele estacionou o carro em frente à um muro de
uma residência abandonada, na rua sem saída.
Abri a porta cambaleando, quase me arrastando ao sair.
- Sem dramas, Natalie! – Anna exclamou para mim. Pensei que fosse gritar novamente.
- Okay, okay! – exclamei, ainda com o corpo mole. – Vamos fazer o que? Atravessar a
parede e pegar o Expresso de Hogwarts?
- Já falei pra você parar com isso. – Paul disse, irritado. – Se você tentar atravessar a parede,
a única coisa que vai conseguir será um belo galo na testa.
- Tente isso. – Anna me passou um pequeno pote, com um pó púrpura.
- Purpurina?! Não preciso de mais brilho, meu bem. – disse debochada. Ela me lançou um
olhar ameaçador.
- Acho melhor demonstrarmos como é que se faz. – Ela pegou outro recipiente do mesmo
tamanho, e ingeriu todo o conteúdo de uma só vez, sendo seguida por Paul.
Em poucos segundos, eles desapareceram.
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- Poderia ter ido apenas um, né! – exclamei, descontente.
Abri a tampa do potinho, e ingeri tudo de uma vez.
Seja lá o que Deus quiser.
Meu corpo começou a se encolher, e minha roupa se adaptou. Passei pelo pequeno buraco
que havia na parede, próximo ao chão. Quando meu corpo estava completamente do outro
lado, ele voltou à estatura normal.
- Okay! Agora eu sou a Alice.
- Você poderia parar de mencionar esses livros juvenis? – Anna disse, parecendo aborrecida.
- Tá bom, tá bom! – exclamei, dando de ombros. – Ei... vocês envelheceram de novo. – falei,
apontando para os dois velhinhos que se encontravam na minha frente.
- É, isso vai ajudar um pouco. – Ela disse, agora apressada. – Venha!
***
Paul e Anna caminhavam de mãos dadas, enquanto eu estava um pouco mais à frente,
observando tudo com a maior atenção possível. Um vilarejo se estendia e parecia que casas
eram empilhadas uma sobre a outra. Literalmente falando, claro, pois algumas casas
flutuavam sobre outras, formando uma montanha de casas. Dava uma agonia olhar para tudo
aquilo, e imaginar despencando.
- O que são aquelas criaturas? – perguntei, apontando para um grupo que parecia constituído
de pessoas normais, até liberarem asas e encolherem de tamanho. A asa de um deles bateu
no rosto de uma menina atrás, e ela caiu no chão. A cena até que foi engraçada.
- São destin. Você entenderá melhor o que são quando chegar na escola. – Paul respondeu,
nem se dando ao trabalho de parar e me explicar melhor do que se tratavam. – Aqui é apenas
uma parte do Vilarejo, e felizmente, é onde vivem os mais simples e humildes destin, não
são briguentos como a outra parte do nosso mundo. Aqui os destin vivem em paz.
Paul poderia começar explicando o que significam destin, já seria de uma ajuda enorme.
Pensei, seguindo eles.
Entramos em um caminho estreito, onde eu mal conseguia respirar. Havia uma porta de
madeira bem velha no final.
- O que é? – perguntei, assim que vi Paul abrindo-a.
- Venha! – Anna falou. Pelo visto, não havia tempo para explicações.
Era um caminho tão apertado quanto o outro. Conforme andávamos, ele era iluminado por
vagalumes. Me curvei um pouco para andar. O teto estava batendo em minha cabeça.
- Não podemos usar mais daquele pó? – perguntei, me queixando.
- Não, ele só serve para a entrada e saída do reino. – Anna gritou para mim. - Não é tão
desconfortável assim.
- Para você é fácil falar, com a altura que está. – respondi, cansada. – Agora entendi porque
se transformaram. - Eu estava quase arfando de tanta apreensão. - Acho que sou
claustrofóbica. – disse eu, tomando um pouco de ar.
- Não reclame querida, já estamos chegando. – Paul disse, em um tom carinhoso.
- Não estou reclamando, apenas constatando os fatos, ora.
- Chegamos. – Anna disse, na frente.
- Você chegou. – resmunguei, quase saindo do túnel. – Liberdade, enfim. – disse eu,
levantando os braços ao céu.
- Nós trouxemos você para a escola...
- A liberdade acabou! – exclamei abaixando os braços, o que fez com que Anna risse da
minha situação. – Escola? Pra que? Eu estou de férias, sabia?
- Sei. – Paul respondeu, como sempre, sério. – Mas aqui você estará mais segura do que em
qualquer outro lugar do mundo mágico. Tente entender, será melhor assim.
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- Arranjamos empregos aqui dentro, e poderemos nos manter enquanto ficamos de olho em
você – Anna disse, me guiando pelos ombros. – Você vai gostar daqui, pode fazer amizades
enquanto o período de aulas não começa, e podemos disfarça-la, para não chamar muita
atenção para o fato de você ser uma Dolman.
- Que mal teria nisso? – disse eu, dando de ombros.
- Só o fato de que seu inimigo a conhece apenas pelo sobrenome. Então cuidado. – Paul
disse, e antes de chegarmos no portão de entrada, anunciou. – Na porta de seu dormitório
tem uma placa com seu nome, mas está enfeitiçada para que só você leia o “Dolman”, as
outras pessoas lerão “Bonnet”, tudo bem?
- E se alguém me perguntar meu sobrenome e eu não lembrar? Ou me confundir? –
perguntei, confusa.
- Trate de não fazer isso. Precisamos preservar sua identidade. – Paul disse, e continuamos
andando em direção ao colégio. – E talvez possamos dar um jeito no seu cabelo também.
- O que é que tem com ele? – não pude deixar de perguntar, assustada.
- Cabelos longos e ruivos são características de Dolman. Mas você encontrará algumas
outras ruivas no colégio. Trataremos de fazer isso para que o inimigo não se concentre
apenas em você... – Anna respondeu, parecendo pensativa, mas teve que se calar ao
aproximarmos da entrada do colégio, e encontrarmos um monitor que logo exclamou para
mim:
- Bem-vinda ao colégio. – um moço sorridente disse, na entrada da escola. – A maior escola
de destin do país.
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4. A nova escola
18 de dezembro, segunda-feira.

- Des... o que? – perguntei ao monitor, tentando de uma vez por todas entender aquilo que
Paul já havia dito, mas nem se dera ao trabalho de salientar minha dúvida.
- Destin. – respondeu ele. – O que somos.
- Okay! Sei que está tentando esclarecer, mas para mim ainda está confuso. – disse eu,
provavelmente com uma cara de boboca.
Ele riu. Não sei se foi por minha ignorância, ou se era força do hábito, mas de qualquer
modo, não me importaria que ele o fizesse. O moço tinha um sorriso bonito.
- Aqui, somos todos destin, ou fée, no seu caso. – ele arqueou os olhos, e sorriu de canto.
Quero que saiba, caro leitor, que não sou de me render ao primeiro rosto bonito que aparece.
Tem que ter conteúdo. Mas aquele garoto, tinha muito conteúdo, e estava em seu cabelo bem
penteado, seu sorriso encantador, e seus olhos castanhos, que brilhavam incrivelmente.
- Continue! – retribui o sorriso, demonstrando simpatia.
- Destin e fée são como chamamos seres de nossa espécie. Destin é para o masculino, e fée
para a turma feminina. Somos seres mágicos, que evoluíram por uma família francesa, o que
explica os nomes nessa língua. Nossa espécie se concentra em pequenas partes do mundo,
mas a maioria veio para o Brasil. Não existem muitos de nós. Não chegamos nem à um
milhão de destin ou fée, e não sabemos ao certo do que evoluímos. Só que temos aparência
humana, asas que surgem após a puberdade, e temos poderes que surgem a partir dos quatro
elementos: terra, ar, fogo e água. Outro fator interessante, é que cada um de nós tem uma
descendência que mistura várias etnias, então é comum encontrarmos alguém que tenha
nome de uma nacionalidade, e sobrenome de outra. – ele fez uma breve pausa para retomar
fôlego, e continuou. – Não usamos varinhas nem essas coisas que bruxos ou feiticeiros
fazem. Não somos nada disso, não confunda. Somos uma espécie pequena em
transformação.
- Ôooh! – exclamei, impressionada. – Poderia me dizer o seu nome? Sabe... talvez eu possa
precisar de outra explicação mais tarde.
Ele sorriu maliciosamente, e me respondeu, apertando minha mão com firmeza.
- Sou Bernardo Longatto!
- Natalie Do... Bonnet! – respondi, gaguejando ao lembrar que não deveria dar meu nome
verdadeiro, e depois rerotnei com mais firmeza. – Natalie Bonnet.
Me despedi do Moço Simpatia do Sorriso Bonito, e adentrei a escola. Fazia um sol
escaldante no colégio. A luz refletia sob o ladrilhado do pátio e chegava ao chão seus
reflexos. Os grampos que prendiam minhas madeixas caíram, e devido a quantidade de
pessoas que se aproximavam, resolvi deixá-los soltos.
A primeira coisa que eu iria fazer, seria percorrer cada canto daquele lugar, procurando
meus avós falsos/protetores, que haviam me deixado sozinha.
Muito bonito, deixarem a protegida perdida num lugar que ela não conhece.
***

O suor já estava brotando em meu rosto quando avistei duas cabeleiras brancas que eu tanto
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conhecia.
- Estava à procura de vocês. – disse, com falso tom de repreensão. – Procurei em todos os
cantos.
- Parece que esqueceu um. – respondeu vovô/Paul, de modo divertido e debochado.
- Estávamos vendo aquele jardim. – Anna apontou para um canteiro. - Tem crisântemos,
você sabe o quanto adoro essa flor.
- Sei sim, mas deveriam me ter avisado. – rebati, ainda fingindo estar brava por terem me
deixado. Não sabia o que Anna via nos crisântemos, eram tão estranhos... preferia lírios.
- Você parecia tão distraída com aquele moço. – a malícia brotava nos lábios de Paul.
- Ei, o que o senhor quis dizer com isso? – perguntei, agora me fazendo de inocente. Como
se eu não soubesse...
- Nada não. É que você é adolescente, não pode controlar seus instintos naturais. – ele falou,
mais tranqüilo impossível.
- Vovô!!!! – levei as mãos a boca, constrangida. - Ou melhor, Paul.
- Vamos parar com esse joguinho! – disse Anna, no mesmo tom levemente alterado de
sempre. – Daqui para a frente terá que ir sozinha. – ela me entregou um cartão e uma
pequena bolsa. – Aqui está a chave do seu quarto, com o número. E nessa bolsa tem dinheiro
e coisas que pode precisar.
- Onde estão as malas?
- Já foram enviadas para seu quarto assim que entramos nesse mundo. – ela respondeu, com
um olhar maternal. – Temos um sistema muito bom e altamente tecnológico para a emissão
de malas.
Após uma breve piscadela, eles saíram, me deixando sozinha pelo campus.
***
O monitor do portão me dera um mapa da escola, para que eu não me perdesse mais do que
já estava. A escola era dividida em três blocos principais: o da esquerda era onde ficavam os
dormitórios, também conhecido como Bloco I. O segundo, vulgo Bloco II, era o do meio,
onde ficavam as salas de aula, separadas por andar para cada ano. No da direita, ou Bloco
III, havia a biblioteca, que ficava no subterrâneo, dois andares para “aulas normais”, seja lá
o que isso for, mais acima tinham salas para aulas práticas e no topo, o escritório do diretor.
Eu aposto que ele não gosta muito de socializar, seu gabinete ficava tão alto que eu tive a
impressão de que precisaria tomar um ônibus espacial para chegar até lá, quem sabe apenas
para fazer uma visita, ou tomar um chá algum dia.
Nos três blocos haviam letras enormes escritas, que formavam o nome da escola. Magicien
de Sorcellerie, segundo o folheto.
Nome bonito. Se bem que tudo me parecia soar bonito em francês, inclusive meu nome.
Alguns pais se aproximavam com seus filhos, mas a maioria estavam sozinhos.
Anna me dissera que os alunos só começariam a chegar mesmo no começo de Janeiro, os
que vinham agora era para conhecerem a escola e aproveitarem os jogos estudantis, alguma
coisa assim.
Subi para o primeiro Bloco, onde eu encontraria os quartos. Fiquei surpresa ao descobrir que
eles não separavam os quartos por sexo, e sim por ano. Todos os alunos do primeiro ano
ficavam nos andares dois e três. Do segundo, nos andares quatro e cinco; e do terceiro ano,
nos andares seis e sete. O primeiro era só enfermaria.
Subi as escadas. Chequei no meu cartão-chave o número de meu quarto, mas ele não tinha
essa informação. Era apenas um retângulo todo vermelho. Ele escapou de minhas mãos, e
flutuou no ar, sozinho.
- Mas que po... – exclamei alto, vendo o cartão flutuando pelo corredor. Corri atrás dele
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como uma doida desesperada. – VOLTA AQUI!!
Alguns pescoços se espichavam para fora de seus quartos, algumas meninas riam ao verem
uma novata correndo atrás de sua chave.
Ela parou abruptamente, na frente de uma porta no final do corredor.
Joanne lsen
Ellen Underwood
Natalie Chloe Dolman
Nicole Del Louis Carpenter
Penélope Prine Fergunson

Era o meu quarto. Peguei o cartão e o inseri na porta. Todas as malas já estavam ali, mas
nenhuma das outras garotas se encontravam no quarto. Encontrei uma cama etiquetada em
meu nome. Me joguei nela, colocando o cartão no criado mudo. O quarto tinha espaço
suficiente para cinco garotas, mas não tinha privacidade entre as camas, ficavam lado a lado.
Tirei meu celular do bolso, e fiz a única coisa que queria ter feito desde que saí de casa:
dormir.
***
19 de dezembro, terça-feira

Dormi ininterruptamente por um dia, só acordando no dia seguinte ao que cheguei, na hora
do almoço.
- Temos uma Bela Adormecida entre nós! – disse uma voz desconhecida, parecendo dar
sorrisos bobos com outra pessoa.
Abri meus olhos, e me deparei com dois pares de olhos amigáveis me encarando.
- Oi... eu sou Nicole Carpenter... – uma loira de madeixas curtas e enroladas disse para mim,
sorrindo amigavelmente.
- Sou Ellen! – a garota ao seu lado anunciou.
Sentei na cama para poder analisá-las melhor. Essa Ellen tinha cabelos longos e
extremamente cacheados. Sua pele era de um marrom chocolate, e possuía belos olhos
verdes.
- Prazer! Sou Natalie D... Bonnet! – disse, estendendo a mão para elas, e dando um pulo para
o banheiro. Droga, se eles pelo menos tivessem arrumado para mim outro sobrenome que
começasse com D, eu não me enroscaria tanto na hora de dizê-lo.
Sabia que estava atrasada, então só troquei de roupa. Uma camiseta pólo verde-água e jeans
apertado. Meu tênis all star e relógio no pulso.
Perfeito!
Penteei minhas madeixas, e deixei aquele ruivo natural solto ao vento.
- Vamos descer juntas. – A loira Nicole disse, abrindo a porta do quarto. – Sabemos que
chegou ontem, e pelo visto... dormiu o dia inteiro... Não deve ter conhecido nada ainda.
- Não mesmo. – falei, pensativa. - Os elevadores estão cheios. – eu disse, entortando o lábio
para o canto.
- Tem um jeito mais interessante! – disse Ellen, pulando na frente e puxando uma cortina
que tampava a parede.
Nela, um orifício enorme se anunciava. Era um tobogã.
- Pule primeiro! – Ellen disse, e antes que eu pudesse responder alguma coisa, ela me
empurrou.
Caí de peito e comecei a gritar feito uma louca. Outros tubos se entrelaçavam à esse. Eram
dos andares superiores.
Atrás de mim, ouvi Ellen gritando alto em tom melodioso:
- I BELIEVE I CAN FLY! WOOOW!!
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O túnel chegou ao fim, e cai de boca no chão.
- Pensei que desse jeito seria mais gostoso. – gritei para as meninas, que logo caíram em
cima de mim.
- Não disse que seria mais gostoso. – Retrucou Ellen. – Só que a adrenalina seria maior.
Elas levantaram de mim, e senti algumas costelas quebrando.
Fomos para o refeitório. Estava começando a lotar de pessoas... ou destin, como chamavam.
Que seja!
Encontramos uma mesa de quatro assentos. Apenas um estava ocupado.
- Hey, queridinha. Com licença que estamos chegando! – Ellen gritou para a menina na
mesa, jogando sua bandeja de almoço ao lado da dela.
A garota olhou para ela espantada.
- Sou Ellen, essas são Nick e Natalie. – anunciou, com um sorriso enorme nos lábios.
Seria mais simples sentar e comer, mas pelos longos vinte minutos que passei com ela, pude
perceber que animação deveria ser seu nome do meio.
- Sou Amanda Luporini! – disse a garota, em tom firme e decidido. Ela tinha uma postura
séria, o qual era acrescentado por seu cabelo na altura do ombro, em tom de castanho escuro
e olhos incrivelmente azuis. – Vocês, novatas, terão muito o que aprender aqui. – dizendo
isso, ela se levantou da mesa, sua bandeja já estava vazia. – Sou a chefe do Departamento de
Estudos Avançados. Se um dia quiserem descobrir o verdadeiro prazer dos estudos, me
procurem no subterrâneo do Bloco III.
Deu uma piscadela em nossa direção, e saiu pomposamente para o outro lado do refeitório.
- Você faz amizade fácil! – disse eu, vendo a garota se afastar.
- Com o tempo... você se acostuma. – Nick falou, colocando um pedaço de torta holandesa
na boca. – Primeiro a sobremesa... depois o almoço.
- Ai, Nick Nick! – Ellen exclamou de repente, tomando o lugar em que Amanda estava. – Já
disse para parar de dizer... tudo... pausadamente...
Nós rimos da imitação. Olhei para elas, imaginando há quanto tempo se conheciam.
Pareciam bem unidas. A loira da Nicole, a morena da Ellen, e agora eu, a ruiva da Natalie
para completar esse triângulo de amizade.
- Estão aqui desde quando? – perguntei distraidamente, remoendo a comida em meu prato.
- Há dois meses... e meio. - Falou Nicole, sob o olhar indagador de Ellen. – Vim com minha
irmã... quando ela voltou das férias escolares.
- Eu há duas semanas. – Ellen disse, levantando a mão direita. – Não quis fazer formatura.
- Por que não?
Ela hesitou por um instante, com os olhos enrugados, de forma preocupada.
- Com um vestido longo e colado ao corpo, nem os professores resistiriam à mim. – disse,
por fim, com um sorriso largo e malicioso brindando-lhe os lábios. - Não queria causar
tumulto, sabe como é.
Retribui o sorriso, e encarei a comida em minha bandeja. Pelo menos eu já sabia duas coisas
sobre Ellen. Primeira: Ela tem a auto-estima elevada. Segunda: Usa o bom humor para fugir
daquilo que não quer responder.
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5. Nas alturas
19 de dezembro, terça-feira

O toque de recolher já iria soar. Não cheguei a ouvi-lo ontem, bom, desmaiada do jeito que
eu estava, seria praticamente impossível. Passei o dia todo na companhia de Ellen e Nicole,
e descobri mais sobre elas do que elas sobre mim. Nicole é rica e completamente meiga.
Seus modos são elegantes, e as vezes ela olha para as pessoas de uma forma tão gentil que
dá vontade de apertar suas bochechas finas. Percebi que ela não diz tudo pausadamente,
parece algo psicológico que vez ou outra ela acaba esquecendo. Ela tem cabelos na altura
dos ombros, loiros e repicados. Já Ellen, é uma mulata de corpo violão. Cabelos cacheados e
castanhos, olhos verdes e jeito de durona. Vi vários garotos espicharem o pescoço quando
ela passou. Sei que gosta de cozinhar e ajudar as pessoas.
Estávamos sentadas na cama de Nick. Eu já havia trocado de roupa e colocado meu pijama
de bolinhas, e elas estavam quase prontas para dormir. Nicole penteava o cabelo de Ellen, e
jogávamos conversa fora. Para a primeira vez que eu conversava com elas, até que tínhamos
bastante assunto.
- Cuidado para não maltratar os fios. – Ellen advertiu, com um sorriso enorme brindando-lhe
o rosto.
- Pode deixar, aprendi a pentear dessa maneira com minha antiga babá. – Disse Nick,
prendendo o cabelo da outra no topo da cabeça. – Pronto. – jogou-se na cama, agarrando um
travesseiro.
A porta atrás de mim se abriu, e ouvi uma voz forçada e irritante, que me fez lembrar da
personagem de Friends que eu mais odiava:
- Oh... my... God! – Ela entortou o lábio ao ver que estávamos ali.
- Janice?! – exclamei, espantada, antes de olhar para trás e me deparar com uma garota de
cabelo liso e comprido.
- Está perdida, fia? – Ellen perguntou.
- Estou perdida nessa bagunça que vocês fizeram no meu quarto.
- Nosso quarto. – Ellen corrigiu, entortando o lábio para ela.
A morena do cabelo liso deu de ombros.
- Quem é essa? – perguntei, assim que a morena do quadril da Kim Kardashiam entrou no
banheiro, seguida por sua amiga loira desnutrida.
- Joanne Isen. A outra é Penélope Fergunson. São nossas duas outras colegas de quarto. –
anunciou Ellen, crispando o lábio para a direita.
- Bem simpática essa Joanne. – Disse eu, com um leve sarcasmo em meu tom de voz.
- Não viu nada... – Disse Nicole, com a voz embargada de sono.
- Vamos deixar Nick dormir em paz. – Disse Ellen, saltando da cama da amiga, para a sua.
- Tudo bem. – Saí dali, indo para a minha.
Nicole apagou a luz do abajur e desabou em sono logo em seguida. Ouvi um leve farfalhar
de seu ronco. Ellen pegou um livro em sua cabeceira.
- Boa noite, Nat. Vou fazer uma viagem agora. – Ela me avisou, apanhando de seu criado-
mudo um pequeno objeto que emitia um ponto de luz em seu dedo. Mergulhou para baixo de
seu cobertor com o livro e apagou a luz de seu abajur.
- Boa noite. – falei, com um riso no canto do lábio.
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Joanne e Penélope já estavam de volta e pareciam exaustas.
- Vamos dormir agora. Espero que não faça muito barulho. Caso contrário, se arrependerá de
cada som emitido. Fui clara? – Jo (depois de falar tão calorosamente comigo, acho que tenho
intimidade para chama-la assim) me fuzilou com os olhos. Sua amiga apenas acenou em
concordância para a minha direção.
- Tá! – respondi, dando de ombros.
Eu passara tão pouco tempo em meu quarto – pelo menos, acordada -, que não tivera tempo
de mexer em nada. Minhas malas ainda não haviam sido desfeitas. Abri uma delas, na
procura pelo diário de Sarah Dolman. Queria dar mais uma olhada nele antes de dormir.
Talvez alguma ideia de como abri-lo surgisse. Revirei a mala e não encontrei. Abri as outras
e nada. Abri todas as gavetas de meu criado-mudo. Nada. Olhei embaixo da cama e no baú
da cabeceira. Nada. Gelei por alguns instantes, me jogando de costas na cama, com os olhos
arregalados.
Eu havia perdido o diário.
***
O dia já amanhecia e o sol fazia questão de me fazer saber disso. Ele brilhava intensamente
em minha face, quase cegando meus olhos. Ótimo jeito de acordar. Ellen e Nicole ainda
estavam dormindo. Aproveitei para jogar meu travesseiro na cara delas. Nada como um
despertador natural.
As super simpáticas Joanne e Penny já haviam saído. Ótimo, meu dia começaria mais
bonito.
Descemos para tomar café da manhã, e sentamos na mesma mesa do dia anterior, com a
garota que havíamos visto, a Amanda, do Club dos Super Inteligentes, ou sei lá o que.
- Se não tiverem planos para hoje, poderiam ir ao parque. Soube que a partir de amanhã
estará em manutenção. – Anunciou Amanda, olhando o jornal que lia com curiosidade.
- Que parque? – perguntei, me servindo de um pedaço gordo de bolo recheado.
- Um parque de diversões mágico que fica há poucos quilômetros daqui. – Amanda
respondeu, me encarando com seus olhos azul claro e dando uma jogada no cabelo castanho,
o que a fazia parecer uma secretária. – Para aqueles que precisam de algo para distrair a
mente da atividade intelectual, pode ser bom.
Saímos do Campus da Escola com apenas uma mochila nas costas e uma autorização de
Paul. Ele não gostara muito da ideia de me ter longe de seu olhar protetor, mas meu senso de
diversão falava mais alto.
- Como vamos chegar até lá? – Perguntei para elas. – A Amanda disse que fica há uns três
quilômetros daqui.
- Vamos andando até lá. – Respondeu Ellen, com seu habitual sorriso no rosto. – Faz bem
sair do sedentarismo.
- Você está de brincadeira, né? – franzi o cenho.
- Claro. – Ela disse, soltando uma gargalhada. – Olha a minha cara de quem está a fim de
perder tempo andando. – Ela deu de ombros, e procurou em sua bolsa algum objeto. –
Vamos usar isso.
- O que é... isso? – Nick perguntou, tomando em suas mãos um pequeno cilindro. Peguei
outro, sem entender.
- É um objeto mágico caseiro. – Ellen respondeu. – É muito útil, mas tem um pequeno
problema de segurança.
- Pequeno?
- É. Se você soltar ele durante o trajeto, corre o risco de cair e morrer. – Ela disse, com
naturalidade. – É só não soltar que fica tudo certo.
Olhei para o cilindro em meus dedos. Ele tinha um painel que parecia um GPS. Era cinza
ferro e mais pesado do que aparentava.
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- Como eu uso isso? – perguntei, olhando-o sob sua superfície, mas não encontrei nenhum
botão.
- É simples. – Ellen disse, analisando o seu próprio. – Ajustem no painel o local onde estão,
e para onde desejam ir. Depois apontem para cima com ambas as mãos, segurando
firmemente.
Ajustei o caminho para o único parque que apareceu foi o Évasion, há três quilômetros e
meio dali. Esse mesmo. Segurei firme e apontei para o alto. Nada acontecera nos primeiros
segundos, mas depois, meu corpo foi totalmente lançado para cima. O cilindro tremia em
minha mão, senti-o escorregando.

Entendi o porquê de Ellen ter falado do perigo de deixá-lo cair. Fechei meus olhos com
força, com medo da altura que eu estava. O céu deveria ser mais bonito visto daquele
ângulo, mas meu coração palpitava no peito e queria saltar fora.
- Abra os olhos, Natalie! - Ellen gritou para mim, voando ao meu lado. - Preste atenção,
você tem que manter seu corpo completamente deitado. Isso faz com que o voo seja mais
prazeroso. E esqueça o medo, você não vai morrer.
Assenti levemente e abri meus olhos lentamente. Até que não era tão ameaçador assim estar
sobrevoando prédios altos, segurando em um cilindro. Falando assim, até parece ridículo,
mas era mesmo.
- Quem inventou essa coisa? - Perguntei, olhando para as duas à meu lado e alguns pássaros
vindo em nossa direção.
- Um primo meu. Bem prático e rápido para quem não tem asas ainda. - Ellen respondeu, se
desviando de uma águia.
Uma mão minha escorregou de tanto suor. Perdi o equilíbrio na outra mão, embora ela ainda
segurasse o objeto. Meu corpo começou a ziguezaguear em direção ao chão. Eu estava
ganhando mais velocidade.
Tentei segurar o cilindro novamente com ambas as mãos, mas meu braço havia paralisado.
O objeto escorregou totalmente de minha outra mão, tentei agarrá-lo, mas ele fora lançado
para o outro lado.
Comecei a cair de cabeça para baixo, com os olhos já fechados, apenas esperando o
momento de minha morte, meus órgãos já estavam a adormecerem. Aquele poderia ter sido
o pior momento de minha vida, se eu não tivesse sido surpreendida pela melhor coisa que
poderia me ter acontecido.
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6. O Covil da Dama

Uma dor intensa me tomou em cada ponto de meu corpo. Se eu não morresse na queda,
morreria com aquela dor. Me encolhi toda como se estivesse envolta em um casulo. Senti a
parte de trás de minha camiseta se rasgando. Algo estava saindo de mim.
Eu tô parindo pelas costas.
Só isso explicaria. Meu corpo pareceu ficar mais leve. A descida havia parado e eu voltara a
subir, puxada por dois galhos que me saíram das costas: minhas asas haviam finalmente
aparecido.
- Uau, Natalie! - Ellen gritou para mim, lá de baixo. Ela já havia pousado ao lado da entrada
do parque, enquanto Nick tentava se recuperar da queda brusca que tivera.
Eu sabia que aquelas asas faziam parte de meu corpo frágil, mas não tinha a mínima ideia do
que faria para controlá-las.
- Alguém sabe como faço para descer daqui? - perguntei, com medo de que minhas asas se
quebrassem. Elas eram muito finas, e tinham uma coloração bonita de laranja claro.
- Só pressione seu corpo para baixo. - Gritou Nicole, como sempre, sabendo como agir em
uma situação mágica.
Me concentrei no que ela disse, e impulsionei meu corpo para baixo como se estivesse
dando um mergulho.
Tomei mais impulso do que necessário e não consegui parar antes da entrada do parque.
Estava voando baixo, mas em uma velocidade suficiente para derrubar algumas pessoas e
escutar palavrões que eu nem sabia que existiam.
Nada como chegar fazendo uns strikes. Sou do tipo que "causa" por onde passa.
Já estava quase perdendo as forças, quando meu corpo entrou em atrito com um jovem
distraído. Me agarrei a ele, derrubando-o e caindo junto.
Ele caiu de costas no chão, amortecendo minha queda.
- Aaaaaah! - Gritei de dor quando as asas em minhas costas começaram a encolher. Meu
corpo voltou ao normal.
Pela biologia, aquilo não fazia o menos sentido. E por mim, também.
- Você está bem? - Perguntou o menino, se levantando e ajeitando a roupa que eu havia
amassado.
- Estou! - respondi, sentindo meu corpo se aliviar do peso das asas.
- Pelo visto, você sempre precisará da minha ajuda para algo. - ele deu um riso debochado, e
só naquele instante olhei para ele.
O cabelo preto em perfeito contraste com a pele clara, duas incríveis piscinas brilhavam-lhe
nas pálpebras. Um sorriso travesso nos lábios, e jeito de menino tímido, mas experiente.
- Bernardo Longatto! - Exclamei seu nome, ao lembrar da ajuda que ele me dera dois dias
atrás, na portaria da escola. Era um monitor que eu realmente não me importaria em passar
horas ouvindo falar da evolução de bruxos para destin e fée.
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- Bonnet. - Disse ele, aumentando o tamanho do sorriso. - A ruiva mais encantadora que eu
já vi passar pelos portões da escola.
- Talvez eu tenha sido a única. - rebati, levemente sarcástica.
- Pode até ser. Mas as outras garotas parecem tão sem graça perto de você.
Que bonito. Nunca fui de me render a qualquer rosto bonito que aparecesse na frente. Mas
um cara tão simpático e com um sorriso tão lindo, não é pra qualquer um.
- NATALIE! VOCÊ ESTÁ BEM? - Ouvi Ellen gritar atrás de mim. Me virei para ela, e
agradeci, mentalmente, por ter me tirado do sufoco de estar com o Longatto. Eu não
resistiria.
- Estou sim, obrigada. - respondi, já dando as costas à ele, e saindo.
- Ei! - Ele chamou minha atenção, e me virei. - Já que eu estou sozinho, poderia me juntar a
vocês? - Ele deu uma piscadela em minha direção, e me senti incendiando por dentro.
Nessas horas surge fogo onde eu nem sabia que tinha.
- Eu não me oponho! - Falou Ellen, com um sorriso enorme no rosto. Se aproximou dele, e
tascou-lhe um beijo bem próximo à boca.
- Esse é o jeito dela dizer "Prazer em te conhecer." - Disse eu, ao ver na expressão facial
dele um misto de surpresa e vergonha pelo inesperado quase beijo dela.
- Por mim... tudo bem. - Nicole disse, ainda na adrenalina pelo pouso que teve.
Ótimo! Todas haviam concordado, então o jeito era aceitar. O parque estava num
movimento enorme. Algumas barracas pareciam em clima de Festa Junina: Tinha a barraca
do beijo roubado (como se o pessoal da escola precisasse disso), Barra da Maçã do Amor
Amaldiçoado e Barraca do Milho Gororoba, que era onde vendiam tudo o que você puder
imaginar que envolva milho.
- A fila da Montanha Magi está enorme. - Disse Ellen, se referindo à gigantesca montanha-
russa que se anunciava à nossa frente.
- Tem a Montanha Magi Opostle. - Anunciou Bernardo, com um sorriso tímido.
- O que é isso? - perguntei, devolvendo o sorriso.
- É uma Montanha-russa que só tem descidas. Algumas delas de costas.
Achamos a ideia empolgante, e fomos para a entrada do brinquedo, que ficava no ponto
mais alto do parque. Para nossa sorte, não havia fila.
- São poucos os que conseguem encarar esse desafio. - Disse Longatto, se sentando ao meu
lado no carrinho. Ellen e Nicole estavam atrás, e eu podia senti-las falando sobre nós.
- Estão todos prontos? - perguntou o moço de voz fanhosa, pressionando o botão de
"Início/Début".
- Se sentir medo de cair, pode me abraçar. - Bernardo sussurrou para mim e tive vontade de
simplesmente largar tudo e fazer o que ele estava sugerindo.
Se controle. De alguma forma, ele mexia comigo.
O carrinho deu partida. Tinha um pedaço do caminho que era apenas reto e na velocidade da
tartaruga.
- Medo do que? - caçoei.
- Não se apresse, bonita. - Disse ele, me chamando por um apelido fofo.
Não é a beleza dele. Tem algo a mais.
O carrinho parou, e um painel ao fundo apontava uma contagem regressiva.
- Se quiser me agarrar agora, só para garantir... - Retornou ele, galanteador.
47
- Não vejo motivos para iss... - Minha voz se perdeu na imensidão quando a contagem
chegou à zero, e o carrinho despencou da pista, descendo na velocidade mais alta que eu
conseguiria imaginar.
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah! - As meninas gritavam atrás de nós, em uníssono.
Senti um frio intenso na barriga, que parecia não se acabar mais. Fechei meus olhos, e todo
aquele vento me fez sentir falta de ar. Irônico isso.
O carrinho voltou para a pista normal, e teve mais uma descida, só que dessa vez menor, e
depois fez um loop e começou a ir de costas.
- Aaaaaah! - soltei um grito, e peguei na mão esquerda de Bernardo, buscando proteção.
Meu coração estava quase voltando ao normal, quando tivemos uma descida, e ouvi um
crepitar de fogo atrás de nós.
Comecei a me sentir zonza. A descida normal já havia sido ruim o suficiente, eu não
precisaria de uma pior, e de costas.
- Nós vamos morreeeeeeeeer. -gritei no ouvido de Bernardo, me agarrando mais ainda à sua
mão.
Meu corpo estava quase de ponta cabeça, meus olhos se reviravam, meu pescoço doía
terrivelmente.
Acho que vou vomitar.
O carrinho parou repentinamente e se virou de novo.
O fogo começou a subir em todos os lados e uma chama intensa passava por cima de nossas
cabeças.
- Ainda não acabou? - perguntou Ellen, com um tom de diversão na voz.
- Você tá... gostando disso? - perguntou Nick, parecendo assustada.
O carrinho começou a andar em linha reta, e saiu da caverna de fogo, começando um trecho
banhado por água, mas completamente escuro.
- Agora ferrou mesmo! - exclamei, insatisfeita pela situação que parecia não acabar nunca.
A água banhou nossos corpos, e a velocidade não parava de aumentar.
- Eles querem mesmo matar a gente. - disse, já sentindo o vômito subir para a boca.
Outra descida se iniciou, mas logo veio seu fim.
O carrinho parou abruptamente, meu corpo foi projetado para frente, mas não caí. As luzes
se acenderam.
- Tem alguém aí? - perguntei, subindo na plataforma de saída, minha voz emitindo eco.
- É por isso que quase ninguém vem aqui. - começou, Bernardo, naquele jeito didático que
ele tinha de falar as coisas. - As descidas são longas e temos que sair pelo Covil da Dama.
- Covil da Dama? - repetiu, Ellen, achando graça do nome.
- É. Diz a lenda que é onde algumas meninas foram assassinadas. Esse Covil é interditado,
mas existe uma saída que passa pelos corredores, sem necessariamente termos que entrar lá
dentro.
Que legal, hein. Como se não bastasse tudo o que já havíamos passado com aquela
Montanha-Russa. Se é que eu posso chamar assim.
- Mas como vamos subir até o topo do parque de novo? - perguntei, tentando me acalmar.
- A saída do Covil nos direciona para um elevador. - Ele respondeu, parecendo exausto
também.
Nicole parecia pensativa, e espirrava.
- Não dá um certo medo... passarmos por um lugar marcado pelo assassinato?
- Um pouco. - conclui, temerosa.
48
- São apenas lendas urbanas sobre garotas que nem sabemos se existiram mesmo. - Bernardo
deu de ombros, como se não se importasse com aquelas histórias bobas.
- Elas eram da escola? - perguntou Ellen, parecendo interessada no assunto. Ou talvez só
estivesse interessada no Bernardo.
- Segundo a lenda, eram mais do que estudantes comuns que haviam sido assassinadas. -
Bernardo respondeu, com um sorriso de suspense. - Eram conhecidas como as Meninas de
Seda.
Fiquei boquiaberta com o que acabara de ouvir.
- Co... como você sabe sobre as Meninas de Seda? - perguntei, surpresa.
- Elas foram bem conhecidas no nosso mundo, antes dos assassinatos que sofreram. -
Explicou Bernardo, em seu jeito didático de ser. - Sabe-se que foram elas quem evoluíram
os bruxos da época, com três famílias fundamentais, mas apenas uma Até hoje conhecida: as
Dolman.
Ele fez uma pausa, e percebi que as meninas estavam espantadas. Provavelmente conheciam
a fama que a minha família tinha, mas eu não poderia dizer que era uma delas. Começamos
a entrar por um corredor estreito, e Bernardo seguiu à frente, sendo acompanhado por mim e
Ellen e Nick logo atrás.
- Outras garotas também faziam parte, de outras família menores, mas o reconhecimento
apenas das Dolman causou intrigas e traições. E foi aí onde tudo começou. A maldição das
Dolman, que até hoje não sabemos o que é. Na realidade, eu suspeito que essas Dolman
possam estar vivendo por aí com uma identidade falsa, mas acho que as Meninas de Seda
podem nem ter existido de verdade. Mas caso tenham existido mesmo, elas foram grandes
guerreiras, mas também sofreram muito.
- Que... horror! - exclamou Nicole, parecendo estar mais pasma ainda.
- Não fique espantada. – Bernardo disse, abrindo um sorriso. – Essas coisas acontecem,
vocês estudarão sobre isso em História da Escola.
- Da escola? Mas tem ligação entre essas Meninas de Seda e a nossa escola? – Ellen
perguntou, falando o que eu havia me questionado.
- Claro que sim. – Ele disse, pronto para explicar. – A escola se chama Magicien de
Sorcellerie, certo?
- Se você está dizendo. – disse eu, dando um sorriso, tentando esconder a tenção pelo fato
dele estar falando de minha família, e pior, como se as Meninas de Seda nem tivessem
existido de verdade.
- A abreviação de Magicien de Sorcellerie, fica MDS. E Meninas de Seda também. MDS. É
uma mensagem oculta que colocaram no nome da escola ao nomeá-la, em nome da honra
das famosas guerreiras, embora não seja uma coisa que se ouça todo tempo por aí.
- Mas o que aconteceu no Covil da Dama? - perguntei, tentando pular aquela parte. Desde
que havia descoberto sobre as Meninas de Seda, minha vida dera uma reviravolta tremenda.
Não queria escutar mais nada sobre isso.
- Bem, segundo o que dizem... - ele começou, e fez uma breve pausa antes de retomar
novamente. - O inimigo principal delas, os Callum, haviam preparado uma armadilha para
pegá-las. Eles as haviam atraído Até o Covil da Dama, e quando elas chegaram, as
assassinaram brutalmente. Seus corpos não foram encontrados Até hoje, e correm boatos por
aí de que elas foram levadas com eles, e jogadas em algum lugar bem distante.
- Mas se nenhum corpo foi encontrado, como saberiam que elas realmente morreram? -
questionou Ellen.
- É aí que tá. Até hoje não sabemos se é uma história verdadeira ou não. Mas dizem que bem
no meio do Covil, existem sete marcas de corpos, contornados em sangue. E em cima de
cada um, havia um lenço de cores diferentes, mas todos com as mesmas palavras escritas:
Meninas de Seda.
- Que sinistro. - tornou a repetir, Nick, dessa vez, sem pausa.
49
- A história é bem bizarra mesmo. - Bernardo disse, chegando à duas portas no fim do
corredor. Uma dizia "Saída", e a outra, era o acesso para o Covil.
- Me explique uma coisa... o que é esse covil?
- Costumava ser um brinquedo onde tinham algumas assombrações. A mais assustadora era
a Dama Lanrazini. Ela sempre ficava na entrada do Covil, e quando chegava ao centro, ela
aparecia novamente, e víamos ela ser brutalmente assassinada.
- E chamam isso de brinquedo? - perguntou Ellen, soltando um riso debochado.
- Era uma casa dos horrores com um verdadeiro horror acontecendo. Mas claro, ela não
morria. Nada não passava de um truque de mágicas barato. Quando as Meninas de Seda
foram assassinadas aqui, alguns chegarem a acreditar que não passava de mais um truque.
Mas não foi bem assim. - Ele fez uma pausa, parecendo em dúvida. - Por que estamos de
papo furado aqui, quando poderíamos estar saindo desse inferno?
Ele abriu a porta do corredor, e liberou passagem para mim e as meninas.
Segui caminho atrás dele, e as meninas vieram logo, parecendo assustadas.
- A saída está logo ali. - disse Bernardo, vendo o vão da porta no final do corredor. Ele
iluminara com um pequeno isqueiro que trazia consigo no bolso.
Chegamos ao final do corredor. Abriu a passagem, e deixei as meninas saírem na frente.
Suspirei aliviada ao passar pela abertura da porta, mas a sensação não durou muito tempo.
- Ellen? Nicole? Bernardo? - perguntei, e o único som que tive como resposta foi o de minha
própria voz ricocheteando pelo cômodo vazio.
Uma luz se acendeu ao fundo, e um arrepio intenso perpassou por meu corpo.
Vi sangue jorrado no chão e contornos de corpos pelo piso imundo. Fui até o pequeno ponto
de luz que se anunciava, e ele envolveu meu dedo como se fosse um anel. Passei em frente
às marcas, e vi em cada um algum nome escrito na região onde deveria ficar o pulso.
Meu corpo se estremeceu completamente.
Olhei para trás tentando encontrar meus amigos, mas a porta estava fechada.
Como eu vim parar aqui?
Respirei fundo, tentando pensar em alguma solução.
Eu estava perdida, e definitivamente sozinha.
Bem, isso era o que eu pensava.
***
Engoli em seco. Quase conseguia ouvir as batidas de meu coração, que aumentavam
compassivamente.
- Tem alguém aí? - perguntei, tentando manter meu tom de voz firme.
O ponto de luz ainda em meu dedo, iluminava o salão, mas minha visão ainda estava
deturpada.
Fui para o meio da sala fechada. Os sete corpos formavam um círculo. Dei uma volta
completa, e encontrei um espelho enorme que me permitia ver meu corpo inteiro.
Eu daria uma bela defunta, com aqueles cachos enormes e ruivos pendendo sob minha
cabeça, e a pele alva que me dava um aspecto de morta-viva.
- Por que essas Meninas de Seda me perseguem? - perguntei ao vácuo, me aproximando do
espelho.
Um ranger de unhas soou atrás de mim. Pareciam unhas compridas e firmes, arranhando de
forma bruta as paredes do cômodo vazio. Fiquei estática, sem saber como deveria reagir.
Olhei pelo espelho, mas não vi nada atrás de mim.
Agora não sei se isso é bom ou ruim. Mas de qualquer forma, a coisa vai ficar feia pro meu
lado.
O ruído retornou às paredes, mas dessa vez, bem mais forte. Todos os pelos de meu corpo se
eriçaram.
- Que... quem está aí? - perguntei, virando parte de meu corpo para trás. - Apareça. - ordenei,
e me virei novamente para a frente, quase caindo de susto. - Aaaaaaaahhh!!
Era a Mascarada. A mesma que estava na minha formatura e no cemitério.
50
- Não precisa ter medo. - ela falou de modo calmo, e me encarou jovialmente.
Eu ainda vou dar na cara dela.
- Não preciso? Você me traz para o lugar onde sete garotas que possuem um laço comigo,
foram assassinadas, aparece na minha frente quando eu estava me cagando de medo, e ainda
espera o que? - gritei com ela, apontando meu dedo indicador em sua cara. - vai me pedir pra
manter a calma também?
- Mas eu... - ela tentou falar, gaguejando.
- Você o que? – gritei, sendo seguida por um eco de minha própria voz pelas paredes.
- Preciso falar com você. – ela pareceu engolir em seco, com uma sombra de horror nos
olhos.
- Não teria modo mais fácil de fazer isso? - perguntei, ainda gritando. - Você poderia ter
aparecido quando eu estivesse lá fora com meus amigos.
- Eles não podem me ver. É melhor conversar com você quando estamos sozinhas.
- O que tanto você precisa me falar, hein? - perguntei, agora tentando me acalmar.
Ela me encarou como se estivesse medindo suas palavras quanto ao que era mais correto a se
dizer.
- É tão complicado. Mas não temos muito tempo. - ela disse apreensiva, olhando para os
lados.
- DIGA! - gritei com ela, cada vez mais esgotada e sem paciência. - Toda essa enrolação está
me deixando nervosa.
- A última coisa que eu quero é te deixar nervosa. - ela disse, fechando brevemente os olhos.
- Ha-ha-ha, se não queria me assustar, então porque precisou arranhar as paredes daquela
forma medonha? Por que me trouxe aqui?
- Eu não...
- Seja mais rápida. – bufei, minha paciência a cada segundo mais longe de voltar ao normal.
- Não estou gostando de ficar aqui.
- Eu não te trouxe aqui. - ela elevou seu tom de voz, e pegou em minhas mãos, tentando me
fazer sentir calma. Nunca havia tocado ela antes, suas mãos eram frias como as de uma
morta.
Ela era uma defunta. Lembrei desse pequeno fato que Paul e Anna haviam me contado. Isso,
é claro, se aquela à minha frente fosse mesmo Victoria.
- Mas você...
- Não era eu quem estava arranhando as paredes. É isso o que estou tentando te dizer desde
que apareci. – retornou ela, segurando mais firmemente minhas mãos trêmulas.
- Mas se não era você... – disse eu, tentando concluir meu pensamento. - Então quem?
Ela nem teve tempo de me responder. Seu corpo foi jogado para trás por uma brisa de vento
forte, que eu sabia ter sido uma magia poderosa. Ela caiu do outro lado do cômodo, longe de
minha visão e da claridade da luz que eu ainda carregava na ponta dos dedos.
- Quem é você? – perguntei, sentindo meu coração pulando.
Daqui a pouco ele cai pra fora.
O barulho cessou, e me senti apreensiva quando o silêncio tomou conta do cômodo. Como
se já não estivesse sendo ruim o bastante.
O vento passou por mim, apagando a luz em meu dedo.
O cômodo foi tomado por uma escuridão total, e, sem saber o que fazer, o vento me atingiu
em cheio no estômago, fazendo meu corpo voar e ricochetear do outro lado.
- Por que está fazendo isso comigo? – minha voz saiu fraca, e senti o gosto do sangue em
minha boca.
- Você, Natalie, é o motivo pelo qual eu não posso viver em paz. – sua voz era feminina,
mas me parecera que ela estava usando algum aparelho pra reproduzir uma voz distorcida da
realidade.
- É covardia matar um oponente mais fraco que você. – reclamei, cuspindo o sangue no
chão.
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- Se você soubesse a força que tem, não estaria aí reclamando. – anunciou ela, me chutando
na barriga.
- Mas por que está fazendo isso comigo? – rolei de dor no chão, tentando a todo custo
levantar. - Aqui e assim?
- Quando eu te matar, a outra fica mais fraca. – ela respondeu mecanicamente, sem
pestanejar. - É tão simples quanto a luz do dia.
- Que outra? – perguntei, ela ainda me chutando e eu me sentindo cada vez mais
enfraquecida.
- A sua irmãzinha... – ela me deu um chute, mas dessa vez na cabeça. Os olhos de minha
agressora apareceram em minha frente, como se ela quisesse que aquela imagem ficasse fixa
em minha mente antes que eu morresse.
Tinha algo de familiar neles, mas eu não sabia dizer porque, nem a quem pertenciam.
Ela colocou as mãos em minha garganta, e agonizei durante alguns segundos enquanto as
últimas palavras dela ainda dançavam em minha mente.
A sua irmãzinha...
Fechei meus olhos, cessando minha respiração. Finalmente não sentia mais nada.
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7. A volta ao mundo normal


22 de dezembro, sexta-feira.

Meu corpo estava dolorido a cada canto. Minhas pálpebras pesavam quando tentei abrir
meus olhos.
- O que... o que... aconteceu? - minha garganta doía, e estava seca pela falta de saliva.
- Você está bem, meu amor. Mas pode descansar por mais alguns dias se precisar. - uma voz
feminina e simpática respondeu, falando mansamente.
- Dias?
- Você deu entrada aqui quarta-feira.
- E hoje...?
- É sexta. Você sofreu ferimentos muito sérios. - ela deu uma pigarreada.
- Anna? - perguntei, só agora reconhecendo a voz de minha protetora por seu tom maternal.
- Sim, querida. Como está se sentindo? - ela sentou perto de mim na cama, medindo minha
pressão.
- Viva. - respondi, engolindo em seco. Poderia ser óbvio, mas não me sinto verdadeiramente
viva há dias.
- O que... aconteceu? - retornei a pergunta, sentindo a saliva de minha boca acabar.
- Você foi atacada. - ela respondeu solícita, parecendo medir cada palavra dita para não me
deixar assustada. - Teve ferimentos na cabeça, mas graças à ajuda dos seus amigos você foi
encontrada a tempo. Agora você está na Enfermeira, do Bloco III da escola.
- Onde eles... estavam? - perguntei, me referindo ao desencontro com eles no Covil.
- Pergunte você mesma. - ela falou, apontando para Ellen e Nicole, que me sorriam ao
longe.
Elas se aproximaram do leito. Nicole afagou minhas madeixas e deu um sorriso de canto
bem meigo. A cara dela. Ellen segurou minha mão.
- Você deu um susto danado na gente. - disse ela, parecendo se controlar para não chorar.
- Foi a cena... mais horrível que eu... Já vi. - Nick desatou a chorar, tirando um lenço de sua
bolsa. - Você tá... melhor? Nós ficamos... preocupadas quando te vimos... naquele estado.
- Como me encontraram? - perguntei, aceitando o copo de água que Anna havia oferecido.
- Quando passamos pela porta, saímos perto de uma loja de doces. Nicole foi a última e
percebeu que você não estava com a gente. Tentamos abrir a porta de novo, mas ela
emperrou, não sei. Rodamos em volta do brinquedo, e encontramos uma saída de
emergência. Entramos por ali mesmo, mas ficou tudo muito escuro. Demoramos um bom
tempo para encontrarmos a porta para a sala do Covil. Quando entramos, vimos uma pessoa
segurando você, e jogando para o outro lado. Foi tão brutal, você não faz ideia. - Ellen fez
um pausa, limpando uma lágrima que lhe escorria.
- Acho que eu faço ideia sim. - disse, soltando um riso debochado.
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- Me desculpe. - ela assoou o nariz, e retornou seu relato. - Quando a pessoa nos viu,
desapareceu. Assim, sem mais nem menos, nem deixando sinal algum. A única coisa que
vimos foi a cor de seus olhos.
- Era de um vermelho... bem forte. - completou, Nick, se recompondo. - Vermelho como o...
fogo.
- Disso eu me lembro. - comentei, engolindo em seco.
- Isso é tudo o que sabemos, Natalie! - Ellen disse, e acariciou minhas madeixas ruivas tão
sem vida naquele leito de hospital. - Mas não hesitaremos em levantar forças para
descobrirmos quem fez isso com você, está bem?
Assenti, e sorri em gratidão. Conhecia elas a menos de uma semana, mas a Irmandade já
estava enorme.
- Meninas, deixem ela descansar. - Anna avisou, aparecendo atrás delas.
Elas fizeram um gesto afirmativo com os dedos, e saíram.
- Só mais uma coisa. - falei para Anna quando ela veio ajeitar meu travesseiro.
- Diga. - ela ajeitou a coberta em mim, me deixando confortável.
Pestanejei um pouco antes de dizer, mas decidi soltar de uma só vez:
- Me desculpe.
- Pelo que, meu bem?
- Você me disse para ficar longe do perigo e não me meter mais em confusões. Eu saí sem a
sua permissão ou de Paul. - soltei, me sentindo mais culpada por não ter pedido permissão
do que pelo que aconteceu.
- Não se preocupe. Nós encontramos você e está viva. Agora descanse. - ela sorriu
amavelmente, e me deu um beijo carinhoso no meio da testa.
- Posso fazer mais uma pergunta? - disse, sentando na cama.
- Claro.
- Você acha que a pessoa que me agrediu - comecei, tomando fôlego e tentando recuperar a
saliva. - foi o mesmo que matou Brittany na formatura?
Ela pensou bem na pergunta, antes de considerar responder.
- Temo que sim.
Ela me deu outro Beijo na testa, e um tapinha no rosto.
- Fique bem. - deu as costas, e me deixou descansando.
Se em algum momento da vida eu já recebi algum amor maternal, aquele com certeza foi o
mais forte e intenso.

***

23 de dezembro, sábado
Nem parece, mas já faz uma semana desde que as coisas mudaram. Os sete dias que
mudaram minha vida, mas ainda não decidi se pra melhor ou pior.
Tive alta do hospital hoje durante a tarde. Queria tomar um pouco de ar puro, mas Paul não
queria que eu ficasse muito exposta e sozinha, então fui direto pro meu quarto organizar
minhas malas, que eu não havia desfeito ainda.
Ellen e Nicole não desgrudavam de mim, como se tivessem medo de me perderem de novo.
- Nós realmente não sabemos como isso aconteceu, Natalie. - disse Ellen, em seu tom
autoritário. - Mas pode ter certeza de quem quer que tenha sido o infeliz que fez isso com
você, ele vai pagar caro.
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- Muito... caro. - pestanejou, Nick, sentando-se na beirada da cama. Sua postura ereta dava
de dez a zero na minha. - Fui atrás de umas pessoas... pra perguntar se elas viram algo...
ninguém sabe de nada... mas vamos descobrir... e a pessoa vai pagar pelo que fez.
Agradeci a elas e as abracei. Tão poucos dias de amizade, e já não sabia o que faria sem
elas.
- Podem me dar licença, meninas. Preciso falar a sós com a minha protegida. - elas
assentiram diante o olhar autoritário que Paul lhes lançou.
Saíram do quarto.
- Você realmente está se sentindo melhor? - ele perguntou, me fazendo sentar na cama.
- Sim, muito.
- Quero que você me perdoe. Como seu protetor, eu não deveria ter deixado nada disso
acontecer.
- Não foi sua culpa. Já disse pra Anna que não deveria ter saído sem consultar vocês antes. -
respondi, sem saber se me sentia culpada também.
- Mas como seu protetor, o mínimo que deveria ter feito seria assegurar que você ficasse
protegida 24h por dia. - ele falou, assumindo uma postura rígida com as mãos para trás.
- Isso não parece muito possível. - dei um sorriso, e toquei sua mão direita. - Eu não culpo
você. Sério.
Ele sorriu de volta, agradecendo minha compreensão. Ele se levantou para ir embora, mas
parou em frente à porta, com a mão na maçaneta, parecendo ter lembrado de algo.
- Tem mais uma coisa que preciso te contar. - ele se virou, sério. - Na noite do baile de
formatura, Anna e eu não tínhamos ido num bingo.
Contrai a sobrancelha, me lembrando exatamente da cena dos dois chegando na delegacia
bravos comigo por ter estragado o bingo.
- Não? Então onde estavam?
- Nós tínhamos ido para o Conselho de Representantes Destin. É uma organização não
mantida pelo governo, mas que tem por função manter todos os protetores informados sobre
tudo o que pode acontecer de ruim a seus protegidos.
- Irônico, não? - disse eu, soltando um risinho. Paul odiava quando eu fazia isso.
- Eles nos chamaram para falarem que haviam encontrado uma pista de que Callum ainda
estava vivo.
- E qual era essa pista?
- Não tinha nenhuma. Foi um chamado falso para que não estivéssemos por perto quando o
assassinato de Brittany acontecesse.
- Nossa...
Fiquei perplexa, e ele se virou em direção à porta. Mudou de ideia, dando meia-volta.
- Antes de ir, quero te perguntar... - levou o dedo indicador ao lábio, parecendo pensativo.
- Diga. - disse, bocejando.
- Você acha que o ataque ter sido feito por algum dos seus amigos? - soltou a pergunta
rapidamente, e nem pensei para responder.
- Não, não. - respondi, sem hesitar. - Eles tinham saído e depois começaram a me procurar.
Então nenhum deles pode ter feito isso.
- Certeza?
- Absoluta. - respondi, firme, dando de ombros.
Ele assentiu, fechando a porta atrás de si.
55
***
24 de dezembro, domingo

Acordei com menos dor de cabeça que nos últimos dias.


Não passava das 5h da manhã. As meninas dormiam profundamente, e Joanne até roncava.
Ainda não conseguia gostar dela, e a recíproca era tão verdadeira que ela pareceu se
decepcionar quando voltei para o quarto, ontem a noite.
Aposto que minha morte não seria um problema pra ela. Abri a primeira gaveta de meu
criado mudo, e tirei o livro que eu havia guardado há dias. As páginas pareciam úmidas.
Estranho.
Joguei dentro da gaveta as chaves do meu armário. Um som oco foi emitido do fundo.
Espero não ter acordado ninguém.
A essa hora, com esse silêncio, qualquer som é alto o bastante.
Dei uma breve espiadela nas quatro camas delas, e continuavam a dormir profundamente.
Tirei delicadamente alguns objetos que estavam dentro da gaveta, e me deparei com um
fundo falso.
Um belo esconderijo.
Parecia estreito, mas o suficiente para caber um objeto qualquer. Um livro, ou até mesmo
um...
- Diário! - exclamei exasperada, ao ver um diário de capa preta e letras vermelhas, escrito
"Sarah Dolman".
Era o diário de minha avó. Eu não tinha perdido?
Tirei ele da gaveta, e vi uma folha logo abaixo. Parecia ser um bilhete, escrito à mão e em
bela caligrafia feminina:
Fiquei com receio de que o perdesse, então tirei-o de sua mala quando elas chegaram no
quarto. Não esconda algo tão importante em um lugar tão óbvio.
Estou te devolvendo, com a esperança de que não refute minhas expectativas.
Confio em você, Anna.
- Anna, você me deu um baita susto. - sussurrei a mim mesma, ainda segurando a folha de
papel entre meus dedos.
Guardei-a novamente, e junto ao diário fechei o fundo falso.
Eu poderia pensar em um esconderijo mais apropriado, mas aquele me parecia ideal.
Recostei novamente na cama, com a mente inquieta. Os olhos do agressor ainda eram um
mistério para mim.
Não consigo imaginar ninguém que eu conheça fazendo isso. Na verdade, não imagino
ninguém agredindo outra pessoa de forma tão covarde. E aquele ruído de unhas arranhando
a parede... seriam unhas mesmo? Tenho minhas dúvidas.
Deitei, e apaguei as luzes. Fisicamente, eu já estava bem, apesar das pancadas fortes na
cabeça, mas ficarei melhor ainda, desde que a vida resolva cooperar comigo e nada mais me
aconteça.
Não sei se terei essa sorte.

***
24 de dezembro, à noite.
56
Véspera de Natal. Não estou em nenhum clima para festejar nada. Simplesmente. Não tenho
família para dar presentes, nem dinheiro pra isso. Nicole e Ellen haviam saído do Campus
hoje mais cedo para passarem a data com suas famílias.
Nick me disse que sua irmã mais velha, a qual era monitora na escola, sempre estragava a
data com o mau humor. Já Ellen disse que passar o Natal em família é divertido, porque ela
não é o centro das atenções. Pelo visto, ela está cansada de ser tão querida. Pensei em pedir à
Paul ir comigo até a biblioteca. Já tinha escurecido, e sei que mesmo com a escola às moscas
ele não me deixaria sair sozinha.
Isso é tão frustrante. Anna estava me observando de longe.
- Tem uma pessoa que quer te ver. - anunciou ela, jogando sua mochila no ombro. Estava
exausta.
- Quem?
- Catherine. - anunciou ela sem pestanejar, e fiquei boquiaberta. Eu havia esquecido
completamente que já tive uma vida do lado de fora, e principalmente daqueles amigos que
jurei que seriam pra sempre.
Pô, esquecer da Cath é sacanagem...
- Onde ela está? - perguntei, olhando em volta.
- Ela não pode entrar aqui, lembre-se disso. Mas do outro lado do muro, ela quer saber se
está bem.
- Como sabe disso? - franzi o cenho.
- Eu sempre recebo as correspondências da nossa antiga casa. E hoje recebi essa. - me
entregou um pequeno pacote.
O envelope era rosé, e exalava um perfume delicioso. O cheiro da Catherine.
A caligrafia itálica e impecável.

Querida,
Vocês sumiram. A casa de vocês está às moscas, mas tenho a esperança de que consiga ler
essa carta. Estou com saudades de você. Os últimos dias devem estar sendo duros pra você,
sei disso. Dê notícias quando puder. Tenho algo a te contar. Gostaria que pudesse aparecer
para o Natal,então caso leia isso, apareça em casa.
Te amo pra sempre, minha irmãzinha.
Com amor,
Catherine.

- Minha irmãzinha... - repeti aquelas palavras, me sentindo estranha por ela ter usado
justamente aquele termo.
Irmãzinha.
- Anna... - chamei-a, lhe devolvendo a carta. - Tem certeza de que a Cath não sabe de nada
sobre nosso mundo?
- Tenho. Por que a pergunta?
- Nada não, bobagem minha. - dei de ombros. Eu estava tão obcecada com aquela história
toda da agressão, que achava que tudo era uma pista.

***

- Quer mesmo ir? - Paul perguntou, assim que terminou de ler a carta de Catherine.
57
- Claro. - respondi, bocejando. - Quero saber o que Catherine tem a me dizer.
- Nós dois vamos com você. Só precisamos pegar uma autorização com o diretor da escola. -
Anna anunciou, e saiu apressada em busca da tal autorização.
- Você está bem, mesmo? - perguntou Paul, paternal como sempre.
- Ótima! - respondi com toda a convicção que consegui reunir.
- Então vamos. Dessa vez, eu posso garantir que nada de ruim vai acontecer a você.
Sorri, e fui para meu quarto tomar banho. Paul tinha razão. Nada de ruim poderia acontecer.
Pelo menos não comigo.

***
24 de dezembro, domingo. Residência de Catherine Owsen.

Paul soou a campainha da casa de Catherine. Ela era independente o suficiente para morar
sozinha. Bom, com Cáthia, na verdade. Cath demorou alguns segundos para aparecer, mas
nos recebeu deslumbrante, com um vestido vermelho sangue até os pés, as madeixas presas
em um coque elegante.
- Você está cada vez mais bonita. - eu disse, abraçando-a com força.
- Que saudades de você. - ela cochichou em meu ouvido. - Parece uma eternidade.
Nós entramos, e fomos recebidos pelo restante do grupo de amigos deles. Joe, Mark, Cáthia,
e todos aqueles que eu só conhecia de vista.
- Sintam-se a vontade. - Catherine sorriu para Paul e Anna, os quais haviam se transformado
novamente em bons velhinhos. Eles ainda achavam que aqueles eram meus avós, e isso seria
bem menos difícil de explicar do que se eu tivesse levado eles naturalmente como são.
Cath me puxou de canto, e disse em meu ouvido, rapidamente:
- Preciso te contar... mas tem que ser a sós.
- Contar o que? - tentei questioná-la, mas ela já havia saído, buscando mais aperitivos para
os convidados.
Sentei no sofá, com cuidado para não bater meu braço que ainda doía, esperando pelo
momento da noite em que minha amiga me diria o que estava me remoendo de curiosidade.
58

8. Nem toda brincadeira acaba bem


24 de dezembro, domingo.

A festa de Catherine estava digna de uma verdadeira Owsen. A música agitada no fundo,
alguns mais animadinhos, no meio da lança faziam uma pista de dança, e se jogavam como
se não tivesse ninguém vendo. Bem, tecnicamente, eu era a única que estava sentada
observando os outros.
- Você não vai dançar? – Cáthia surgiu esticando para mim seu sorriso mais falso, e fez uma
voz fingida.
- Talvez mais tarde. – respondi, dando de ombros, mas sorrindo de volta para parecer
simpática.
- Ah, venha! – ela me puxou pelo braço direito, e me fez levantar, me arrastando para onde
todos estavam.
- Natalie, querida! – Catherine gritou para mim, parando de se esfregar em seu namorado,
Joe, e formando uma roda em minha volta.
- Vamos festejar! – ela levantou um brinde, e todos seguiram seu movimento. – Um brinde!
À vida! Enquanto podemos. – e deu uma piscadela para Cáthia, e todos riram.
***
Algumas pessoas mais velhas já haviam saído quando passara da meia noite. Paul e Anna
haviam pedido para dormir em um dos quartos da casa. Seria suspeito eles ficarem
acordados ate tarde sendo meus avós, e não poderiam simplesmente nos deixar ali,
desamparados.
- Opa, agora vamos pra surpresa da noite. - anunciou Catherine, assim que ficamos apenas
eu, ela, Cáthia, seus namorados, Mark e mais um que eu não conhecia.
Ah, Mark. O menino que dançara comigo e não tivera a coragem nem de me defender
naquela noite de formatura.
- Já ouvi esse papo antes. - disse eu, lançando um olhar irritado para ele.
- Dessa vez, é diferente. - ela me lançou um olhar divertido e continuou. - Eu e Cáthia, como
boas anfitriãs, preparamos uma brincadeira pra vocês.
- Já passou da meia-noite e estamos em número par. Coincidência? - Joe soltou de um jeito
forçosamente divertido, mas ainda arrogante. Como sempre.
Os meninos deram risos maliciosos, e nós reviramos os olhos.
- Essa brincadeira eu reservo pra mais tarde. - Cath deu uma piscadela, entrando na
brincadeira, como sempre. Admiro nela esse espírito de estar sempre de bom humor, não
importam as circunstâncias.
- A brincadeira que queremos fazer - Cáthia tomou a frente, vendo que aquele papo entre os
dois namorados poderia render. - É uma caça ao tesouro.
- Sim. - Cath disse, retomando o foco. - Nós escondemos pela casa alguns presentes, e vocês
terão algumas pistas para achá-los.
- Encontrem as pistas em baixo da árvore. Cada uma delas levarão vocês a cômodos
diferentes, então não vale pedirem ajuda uns aos outros. E o que ficar por último, ganha uma
outra surpresa.
59
Consultei meu relógio. Já eram 2h43min. Eu não estava no melhor ânimo pra participar de
uma brincadeira dessas, que sabe-se lá quanto tempo levaria pra acabar.
- Eu posso dormir e terminar isso depois? – perguntei, bocejando levemente pra expressar
meu cansaço.
- Para de ser preguiçosa, Nat. Temos disposição de sobra pra isso. – Mark falou, me
cutucando no braço.
- Você tem, né? – disse eu, massageando o braço ainda sensível pelo ataque que eu sofrera
dias atrás. – Ai!
- Nat, agora que reparei nesse vermelhão no seu braço. O que aconteceu? – Cath exclamou
atônita, só naquele momento se dando conta de que algo estava errado comigo.
- Ah, umas pessoas me atacaram esses dias. Mas já estou bem. Não foi nada demais – ela fez
cara de quem queria maiores detalhes, mas eu não estava no melhor ânimo para explicar.
Me levantei e fui até a árvore pegar o envelope com meu nome escrito, seguida por Mark.
- Apesar do ataque, você está ótima! - sussurrou ele, ao meu ouvido.
- Eu sempre tô. - dei de ombros, lendo as pistas. - Quantas pistas bestas. - amassei o papel
em meus dedos, e o guardei em meu bolso da calça. Puxei a Catherine de canto, e sussurrei
em seu ouvido. - Você tem me evitado a noite toda e mal olhou para mim desde que cheguei.
Mas não irá fugir. Nós precisamos conversar sobre o que você queria me falar, e não sairei
daqui enquanto não souber.
***
Todos iniciamos a busca pelos presentes. Passei no quarto em que Paul e Anna estavam.
Eles estavam conversando, e olharam atônitos pra mim quando entrei.
- Ah, é você! – Anna levou as mãos ao peito, aliviada.
- O que tem a nos contar, Natalie? - perguntou Paul, antes que eu fechasse a porta atrás de
mim.
- Como sabe que tenho algo a contar? – perguntei, sentando na poltrona do quarto.
- Não teria passado aqui por outro motivo. – ele deu de ombros, e pegou um cigarro no bolso
da calça.
- Não sabia que você fuma. – disse, surpresa. - Já está tarde. Vocês deveriam dormir um
pouco.
- E o que você, mocinha, está fazendo acordada ainda? – Anna perguntou, tirando o cigarro
de Paul. – Na minha frente, não.
- Mandona. – ele mostrou a língua pra ela, e me diverti com a cena dos dois, juntos como um
verdadeiro casal.
- Somos jovens e é cedo ainda. – respondi, massageando uma ferida do braço. – A Cath
preparou uma caça ao tesouro, algo assim.
- Não está um pouco tarde pra isso?
- Que nada. – dei de ombros, e me levantei para encará-los. – Posso pedir uma coisa? –
esperei uns segundos, e ao vê-los assentindo com a cabeça, continuei. – Fiquem de olho em
todos nessa casa. Façam isso por mim, e sem que eles percebam.
- Por que? Você viu algo suspeito? – Paul ficou alarmado.
- Não. Mas é aí que tá o problema. – eu disse, com um leve sorriso de canto. – Eu nunca
percebo nada quando é pra acontecer.
- Ok, nós tomaremos conta. Agora volte, antes que eles sintam sua falta lá.
Assenti agradecida, e voltei para baixo, tentando entender as pistas.
***
25 de dezembro, madrugada de segunda-feira

Todas as pistas eram ridículas, e envolviam charadas que crianças de 5 anos conseguiriam
entender. Mas pelo menos a intenção foi boa.
60
Cada um foi para um lado da casa, enquanto Cáthia e Catherine ficariam sentadas no sofá
esperando até o fim. Elas eram ricas, e onde moravam tinha espaço para fazer uma grande
brincadeira de esconde-esconde onde você ficaria procurando todos durante horas.
Elas haviam colado em várias paredes números ou alguma palavra. Minha primeira pista
fazia referência a comidas. Fui direto para a cozinha, procurando por algum palavra que
fizesse menção à isso.
Demorei até entender que encontraria o que precisava dentro da geladeira. Ali, havia uma
folha com espaços para eu completar a frase. Tão infantil, mas uma boa.
Algumas palavras estavam escritas no verso:

Parabéns, Natalie. Você conseguiu chegar aqui. As próximas pistas que desvendar, te
levarão para um cartão que contém algumas letras. Essas letras, na ordem em que for
encontrando, você deverá escrever nos espaços dessa folha. A mensagem, a levará para o
seu presente. Boa sorte.

Não parecia ser a letra da Cath, então deveria ser a de Cáthia, eu nunca havia visto.
Estava fácil demais pra ser só aquilo. Posso não ser nenhuma vidente, mas podia prever
muita dor de cabeça em minha madrugada.
Olhei para a lista de pistas, vendo qual era a próxima.
Resolver a raiz quadrada de 9.
Tudo bem que eu não era tão boa em matemática, mas ela não precisava apelar colocando
algo tão fácil. Olhei cada canto da cozinha, procurando pelo cartão de número 3. Encontrei
dentro do forno.
As letras eram POO.
Eu não tinha nenhuma caneta por perto, então teria que dar conta de guardar os cartões na
ordem, para formular a frase em minha mente depois.
A terceira pista, dizia para ir para o quarto de Catherine e procurar pelo coração da dona.
Subi apressadamente as escadas, sabendo exatamente ao que se referia. Era uma caixa em
formato de coração que ela havia ganhado de presente de Joe, quando completaram um ano
de namoro. Só poderia ser.
Empurrei a porta, e nem precisei me esforçar tanto para encontrar. Estava sob a
escrivaninha. Abri-a, e me deparei com ela quase vazia, se não fosse pela presença de um
cartão, onde estava escrito por cima “Você chegou ao coração!”. Desdobrei ele, e li as letras
EINS.
Coloquei o cartão em baixo dos outros, retirando novamente as pistas do bolso. Só faltavam
duas. A próxima me indicava a ir para o lugar mais nojento onde eu poderia encontrar uma
pista.
Banheiro? Talvez. Corri pela suíte do quarto de Cath, mas não encontrei nada ali. Deveria
ter um mapa da casa também. Tudo bem que eu nunca estivera ali antes, pois elas haviam se
mudado depois que conheci o outro lado da minha vida, mas não deixar nenhum mapa dos
banheiros era sacanagem. Isso mesmo. “OS”. Duas adolescentes metidas à adultas, que
mantinham uma casa enorme em São Paulo.
Encontrei um banheiro. Abri o armarinho, e vi um cartão, em que apenas estava escrito
“DEA”. Só poderia ser minha pista. Não tinha importância. Se não fosse, o pior que
aconteceria seria que eu estaria atrapalhando a brincadeira alheia. A última pista, apenas
dizia.
“O ponto de início pode ser a chave para se encontrar o fim. Encontre a sequência numérica
correta.”
A sala, claro. Onde as duas malucas estariam me esperando, para me verem trabalhando o
cérebro encontrando uma sequência que fosse correta. Desci as escadas correndo, com um
sorriso no rosto.
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Meus pés faziam eco as descerem.
- Cáthia? Catherine? – perguntei, chegando à sala. Elas não estavam lá. Ninguém estava.
Sentei no sofá, e parei para respirar um pouco. A casa estava quieta. Quieta até demais.
Agora que havia parado para reparar, nenhum dos outros amigos delas estavam por onde eu
passei.
A casa é grande. Lembrei, dando de ombros. Elas poderiam ter simplesmente saído. Não
disseram que ficariam ali até o fim. Havia colado na televisão vários bilhetinhos, com
sequências numéricas em cima, e provavelmente as letras restantes por baixo.
Analisei-as, e todas me pareciam verdadeiras. Não havia entendido o que seria essa
sequência correta, sendo que poderia ser qualquer uma.
- Já sei! – exclamei, o som saindo mais alto do que eu imaginara. Coloquei tudo o que havia
encontrado até então na mesinha de centro, e recolhi todas as pistas da TV. Iria testar todas,
até encontrar a correta.
Abri a primeira. Estava vazia. A segunda também. A terceira. A quarta.
Que estranho.
Abri a quinta. Três letras estavam escritas. ALV.
Só poderia ser.
Abri a folha para completar a frase.
_ _ RÃ_.
M _ N_ _ A_
_E
S_D_
S_ _V_

Com calma, abri novamente a primeira pista e completei com as primeiras letras
encontradas.
PORÃO.
M _ N_ _ A_
_E
S_D_
S_ _V_

Abri o próximo envelope. Não sabia que naquela casa tinha um porão, e sou uma verdadeira
medrosa pra essas coisas. Olhei as próximas letras da pista.
PORÃO.
M E NIN AS
_E
S_D_
S_ _V_

O terceiro envelope tinha as letras DEA


PORÃO.
M E NIN AS
DE
SEDA
S_ _V_
62
Meu coração gelou quando formulei essas palavras. Mas talvez não mais quanto quando eu
terminei a última palavra.
PORÃO.
M E NIN AS
DE
SEDA
SALVE.

Salve as Meninas de Seda. Porão.


***

Saí correndo sem nem olhar para trás, e subi diretamente para o quarto em que meus
protetores estavam. A porta estava trancada. Gritei e a esmurrei.
- ABRAM! ABRAM! EU PRECISO DE VOCÊS!
Ninguém lá dentro se manifestou. Fiquei quieta, para que pudesse ouvir algum som, e ouvi
um choro leve.
- Vocês estão aí? – perguntei, agora brava.
- Natalie! – a voz de Anna parecia seca. – Ele veio. Está aqui.
- Cadê Paul?
- Foi buscar reforços. – ela tomou fôlego, e continuou. – Eu tentei proteger vocês... mas...
- Mas?
- Ele me prendeu aqui. Foi tudo uma armadilha, Natalie. – Anna parecia sufocada em sua
própria fala. – Eles sabiam quem somos nós. Sabiam de tudo.
- Quem sabia? – perguntei, impaciente pelo outro lado da porta.
- Os amigos que você viu hoje... não eram seus amigos de verdade. Eles tomaram a mesma
forma. E esconderam os verdadeiros no porão. Salve, Natalie. – ela tossiu, e pareceu
ofegante.
Comecei a gritar pela casa, descendo desesperada o lance de escadas em direção à sala
novamente. Onde quer que eles estivessem, mais cedo ou mais tarde alguém teria que ouvir.
- Porão, porão, porão! – levei as mãos à cabeça, tentando conter a respiração, mas estava
praticamente impossível.
- CATHERINE? – gritei o mais alto que pude, formando forças para não chorar. Meu braço
voltara a doer, e toda a angústia pelo que poderia ter acontecido à minha amiga me tomou.
Saí apressada pela casa, procurando pela entrada do porão. Já era quase 4h00 da manhã, eu
estava praticamente sozinha, perdida e com mais um problema nas costas.
Feliz Natal?
Acho que não.
Subi novamente a escada, na tentativa de encontrar alguma coisa no andar de cima, mas
parei no meio do caminho. Os degraus pareciam ocos. Sapateei sobre eles, e realmente
estavam.
Mas é claro.
Pestanejei, e desci novamente. A entrada para o porão deveria estar do lado da escada.
- Achei! – exclamei baixinho, não sabendo se me alegrava ou me entristecia por isso.
O corrimão estava sujo de sangue. Engoli em seco, e abri a porta lentamente. Não queria
fazer barulho. Desci as escadas do porão, e um cheiro forte inalou pelas minhas narinas.
Isso é... sangue.
Concluí, sentindo minha respiração prender.
- Nat... alie! – uma voz feminina me chamou, parecendo vir de baixo. Do chão.
- Catherine? – sussurrei de volta, na esperança de que fosse ela.
- Cáth... – ela respondeu o próprio nome, e tossiu, parecendo cuspir algo no piso imundo.
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- Onde estão os outros? – perguntei, tentando localizá-la ali dentro, mas estava escuro
demais.
- Eles foram... – ela parecia fazer muito esforço pra falar, mas eu entendia. Seja lá o que
tivessem feito com ela, deveria ter sido horrível demais.
Comecei a andar para trás, apalpando o ar na tentativa de achar qualquer coisa, e levei um
susto quando encostei na parede e esbarrei no interruptor.
Cáthia estava sozinha de um lado, com manchas de sangue pelo corpo. Na parede do lado
oposto, havia uma frase em vermelho. Ela escorria pelo branco da tinta. Havia sido pintada
de sangue. Algumas manchas dificultavam a leitura, mas dava pra entender perfeitamente o
que estava escrito ali.
Salve as Meninas de Seda
Abaixo, o corpo de Catherine estava inerte, com uma tesoura em sua mão. Usava um vestido
que parecia ter saído de outro século. Em seus olhos, uma máscara preta. Seus olhos estavam
abertos, mas completamente sem vida.
- Não! – exclamei baixinho, pois já não tinha mais forças para gritar. Catherine não!
Caí a seu lado, me deixando ser tomada pelas lágrimas. Quem quer que tivesse feito isso,
acabaria pagando. E muito caro.
Abracei o corpo de minha amiga, medindo seu pulso. Mas a pulsação havia cessado.
Senti algo líquido correr por meu polegar e olhei o pulso de minha amiga. Havia a mesma
marca do corpo de Brittany...
Estava escrito meu nome, e logo abaixo de onde o sangue parava de escorrer, um lenço azul
com as inscrições Meninas de Seda se anunciava.
A Mascarada também havia estado ali.
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9. O que vem após a morte


25 de dezembro, segunda.

- Natalie! - a voz feminina me chamou. Meus olhos pesaram, mas fiz um esforço para ver
quem era.
- Catherine? - perguntei, na dúvida se tudo o que eu vivera até então não passara de um
sonho.
Ela sorriu para mim, e disse num sussurro:
- Você precisa de um pouco de pó nessa pele pálida! - ela acariciou meu rosto, parecendo
preocupada.
- Cath? O que aconteceu com você? Está manchada de sangue. - apontei para seu vestido de
estilo antigo, preto. Uma grande bola de sangue se anunciava na direção do feto. Suas
madeixas loiras estavam presas em um coque desgrenhado. Algumas mechas lhe caiam sob
uma enorme máscara que lhe cobria os olhos. Seus pulsos estavam cortados. Sua face,
estava pálida e seu toque era gélido.
Ela entristeceu o olhar, como se lhe doesse falar sobre aquilo.
- Eu tenho que deixar você, Natalie. - ela respondeu, agora cabisbaixa. - Espero que tenha
aprendido alguns truques de maquiagem comigo. Não me terá mais por perto para lhe
arrumar quando precisar. - seu olhar tinha ternura, e um pesar enorme. - Não queria que
fosse assim. Que eu tivesse que me despedir de você tão cedo.
Sentei na ponta do sofá, me dando conta do rumo que aquela conversa estava tomando.
Tentei tocar seu rosto, mas minha mão ultrapassou diretamente.
- Você está mesmo...
- Morta? É claro que sim. Olhe o meu estado. - ela olhou para si mesma com pena, e depois
voltou seu olhar para mim. - É tão irônico uma pessoa que foi vaidosa a vida toda ter que
morrer com uma roupa tão brega e cabelo bagunçado. - ela tentou ajeitar uma mecha atrás da
orelha, e sorri ao vê-la pela última vez como ela sempre foi.
Vaidosa, mas com um senso de humor que não tinha pra ninguém.
- Onde nós estamos? - perguntei, me sentando.
- Na sua cabeça. Entre todas as Meninas de Seda, você é uma das poucas que tem o dom de
ver e falar com mortos.
- Minha cabeça? - repeti, olhando ao redor. - Mas essa é a sala da sua casa.
- Sim. Porque é onde seu corpo realmente está nesse momento. - ela olhou ao redor, e
voltou-se para mim, pesarosa. - Vou sentir falta disso.
- Como você sabe sobre...
- As Meninas de Seda? - completou ela, lendo meus pensamentos. - Era isso o que eu queria
te contar. Pena que o bilhete chegou tarde. Depois que vocês sumiram da casa onde
moravam, eu a invadi com aquela cópia da chave que me deu uma vez. Revirei ela toda, mas
consegui encontrar um endereço da família Dolman. Fui até lá, e descobri a sede dessa
sociedade. - ela engasgou um pouco com a própria voz, mas prosseguiu - É horrível, Natalie.
65
O que fizeram a elas...
- Eu sei. - completei, lembrando do que haviam me dito sobre a Sociedade Meninas de Seda.
- Mataram elas de uma forma terrível mesmo.
- Não isso. - ela franziu o cenho pra mim. - Elas não morreram. Pelo menos não a maioria.
Mas estão numa condição que seria melhor se tivessem encontrado a morte.
- Condição? Que condição? - Me exaltei, querendo saber o que havia acontecido. - Se a
maior parte não morreu, então o que aconteceu com elas?
- Elas foram traídas por alguém de confiança. Alguém que fazia parte, mas havia sido
expulsa por se envolver com o inimigo. Ela se revoltou, Natalie. Se revoltou, e juntou forças
com Adolf Callum para fazerem o que fizeram. E ninguém nunca desconfiou. Meu Deus,
ninguém desconfiou.
- Mas o que eles fizeram? - perguntei novamente, prendendo a respiração.
- Eles as tran... - sua voz começou a ficar fraca.
- Natalie! Natalie! - outra voz me chamou.
- Me conte, Cath. Rápido! - gritei para ela, percebendo seu rosto se desconfigurar. Ela
sumiu da minha frente e tudo voltou a ficar escuro.
Acordei com a voz de Paul me chamando. Eu estava na sala da casa de Catherine.

***

- Você está bem? - ele perguntou, parecendo aliviado por eu ter acordado.
- Acho que sim. Onde estão...
- Cathia foi levada ao hospital. Ela vai ficar bem. Encontramos os namorados das duas e
aquele tal de Mark em um cômodo, nos fundos. Eles estavam feridos, mas não muito.
- Nós pensamos que Callum pegou todos eles, mas o foco dele era machucar apenas as que
eram mais íntimas de você. Os meninos estão em choque, mas conseguiram dizer algumas
coisas. - Anna anunciou, sentando ao meu lado no sofá.
- Catherine sabia. - eu disse, mais a mim mesma do que a eles.
- Sabia do que? - Paul e Anna perguntaram em uníssono.
- Sobre as Meninas de seda. - revelei, esfregando os olhos.
- Isso explica porque eles a vestiram como uma Menina de Seda. - Paul comentou.
- Como ela pode saber, se nem eu sei direito o que é? - eu disse, confusa.
- Nós já falamos sobre isso. Você é uma delas, tem mais poderes que a maioria das pessoas
da sua idade.
- E eu preciso salvar as outras...
- Mas as outras não estão vivas, querida.
- Isso é o que você acha. - falei, me levantando do sofá. Isso era o que eu achava também.
Agora não sabia mais.

***

O velório estava marcado para as 14h. Eu não ficaria até o enterro.


Não suportaria ver minha melhor amiga ser enterrada, e ainda, por alguém que queria a mim.
Sou ele quem eles querem. Fomos ao hospital, visitar Cáthia e avisar Joe sobre o que tinha
acontecido.
Os meninos tinham sido levados para o Hospital das Quimeras. Eles precisaram tomar soro
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para se hidratarem. Encontrei-os na sala de espera.
- Vocês estão melhor?
- O que fizeram com minha Cath? - Joe perguntou, com os olhos embrulhados em lágrimas,
seu tom de voz não apresentava mais a arrogância que lhe era característica.
- Você já sabe?
- Cáthia veio pra cá. Nós estamos aqui. Mas ela não. - ele afundou o rosto em suas mãos. Eu
conheci Cath minha vida inteira, mas naquele momento senti mais por ele do que por mim.
Nunca o tinha visto daquele modo, tão humano.
- Ela não conseguiu resistir. - anunciei, fungando pelas lágrimas que surgiam em meus
olhos.
- Natalie - Mark chamou minha atenção, parecendo perturbado com alguma coisa. - Eu
preciso falar com você.
Assenti, fazendo menção para o namorado de Cathia - nunca lembro o nome dele - apoiar
Joe. Deveria der David, Dylan. Algo assim.
Sai com Mark pelo portão da frente. Os pais deles já haviam chegado. Anna se encarregara
de avisar os pais de Cáthia e Catherine o que havia acontecido.
Paul fora comigo, não poderia me deixar sozinha, embora quisesse ir investigar o porão.
- Ela não aguentou, né. - comentou ele, colocando as mãos nos bolsos. - Foi a cena mais
horrível que eu já vi em toda a minha vida.
- Imagino. - respondi, secando as lágrimas.
- Olha, eu sei que você já está péssima por tudo o que aconteceu... mas preciso te contar
umas coisas.
- O que? Você viu alguma coisa que não contou?
- Sim... eles pegaram a gente antes da festa. Eram cinco pessoas, um para cada um de nós.
Eles falaram algo como que só poderiam se transformar em nós, quando nossos corpos
estivessem guardados em um lugar em que ninguém poderia nos achar. Eles nos bateram.
Não tão forte em nós, o pior foi o que as meninas tiveram que enfrentar. Eles trancaram
primeiro os namorados naquele cômodo, e me deixaram com elas. Me bateram, porque
achavam que eu e você tivéssemos uma relação mais íntimas do que com os outros dois. E
então, eles fizeram aquilo com ela...
- O que eles fizeram?
- Eles bateram nela até que sua boca começasse a jorrar sangue. Me amarraram com Cáthia.
Pegaram um vestido preto. Diziam que pertenceu à Sarah Dolman, algo assim. Tiraram uma
máscara preta, que cobria os olhos. E então, eles...
- Eles o que? - perguntei exasperada, com medo do que ele tinha a dizer. - O que fizeram
depois?
Ele me encarou, olhando meus olhos de forma pesarosa, como se não quisesse me contar.
- Eles... queimaram os olhos dela. - ele soltou de uma só vez, e tapou a boca com as mãos.
Senti meus olhos encherem de lágrimas novamente. - Disseram que só assim ela poderia
morrer como uma verdadeira menina... algo de seda, não lembro direito.
- Como uma Menina de Seda? - completei por ele.
- Sim, isso. - ele respondeu, confuso. - Não sei o que quer dizer.
- Eles queriam que ela morresse como Sarah? - perguntei, tentando esclarecer as ideias.
- Foi isso. E depois disso, eles colocaram a máscara onde era seus olhos, cortaram seus
pulsos, da mesma forma como fizeram com Brittany. Eles cortaram o pulso dela... porque só
assim, sabendo que você ou alguém próximo está em perigo, uma moça mascarada aparece.
67
- Ahhh, então eles escrevem meu nome em pulsos dos assassinados por isso? Pra chamarem
Victoria?
- Sim, pelo que entendi, eles precisam reunir vocês duas para conseguirem matá-la. Essa
Victoria não pode deixá-la morrer, mas quando estão juntas e a atacam, você se enfraquece
mais rápido.
- Mas Victoria já não está morta? - perguntei, confusa. - Como podem atacá-la?
- Cath me explicou isso. Ela contou para todos nós dias antes de ter acontecido tudo isso. Ela
foi assassinada, sim. Mas antes de morrer, ela furou os próprios pulsos e escreveu seu nome
com uma agulha. Esse sangue que escorreu, ela deu a você de beber. Assim, quando
morresse, uma parte dela continuaria viva dentro de você. Eles a chamam pra tentarem
enfraquecer essa relação. Você não pode morrer enquanto Victoria existir dentro de você, e
Victoria não pode ir completamente enquanto você existir. Eles precisam que você veja
muita coisa acontecer, para que depois consiga entender o porquê de tudo isso. Catherine
queria que eu lhe contasse, bem, caso não sobrevivesse. Tome muito cuidado, Natalie. - ele
acariciou minha face com a ponta de seus dedos. Puxei-o pela gola da camisa, e beijei-o de
forma calma.
Seus lábios estavam machucados, sua boca estava seca.
- Me desculpe. Foi impulso. - me afastei dele. Eu estava precisando disso. Precisava sentir
algo bom, me aliviar de todo aquele pesadelo que me cercava.
Ele me beijou novamente, e dessa vez, ele me enlaçou em seus braços, como se esperasse
me aliviar de toda dor do mundo. Seus lábios eram ternos, e apresentavam um carinho por
mim que até então eu não havia conhecido ainda.
E então, encostei a cabeça em seu peito, e desatei a chorar, enquanto milhares de perguntas
se formulavam em minha mente.

***

Tudo estava cada vez mais confuso. Muitas perguntas novas se formavam, mas nenhuma
resposta aparecia.
E a pergunta principal era simples: Por que?
Por que tudo isso estava acontecendo? Será que ser uma Dolman era algo tão horrível
assim? Eu não tinha culpa pelo que já havia passado, então por quê?
Paul havia aparecido minutos depois que deixei Mark dentro do hospital. Mais do que
nunca, eu deveria ne afastar dele.
Eu deveria me afastar de todos. Quanto mais pessoas se aproximassem de mim naquele
momento, pior seria para elas.
- Nós precisamos ir de volta para nosso mundo. - ele sussurrou no meu ouvido, me
chamando de canto.
- Aconteceu mais alguma coisa? - perguntei, minha cabeça explodindo em dor de cabeça.
- Sim. O caso já está nos jornais, e logo a polícia virá até você.
- Mas eu não fiz nada. - repliquei, irritada.
- Não seja lerda, Natalie. - ele ralhou comigo, jogando as madeixas loura encaracoladas para
trás. - Há uma semana uma garota foi assassinada, com o seu nome escrito em seu pulso.
Agora, sua melhor amiga foi encontrada da mesma maneira. Não sei como não foi presa
ainda.
- Tudo bem. Vamos. - olhei ao redor, tentando encontrar sua companheira. - Onde está
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Anna?
- Foi avisar os pais de Cath. Ela preferiu fazer isso pessoalmente, e eles moram longe. Mas
assim que voltar, já irá direto para a escola.
- É melhor assim. Posso te contar uma coisa? - repliquei, olhando-o com ansiedade.
- Deve. - ele disse, severo e curto, como sempre.
- Ela falou comigo através de um sonho. - anunciei, me referindo à Cath. - Eu posso falar
com os mortos. Isso é estranho.
Ele franziu o cenho.
- Mas, uma menina de Seda, só podem se comunicar com outra Menina de Seda, após a
morte. - ele argumentou, erguendo os ombros.
- Mas Cath não era uma delas. - Falei, sentindo meus olhos brilharem por poder falar com
ela, mesmo após a morte.
- Ela morreu como uma. E isso fez dela digna de ser uma menina de seda. - disse, para a
minha surpresa.
- Mas ela não tinha poderes...
- Não tem importância, Natalie. Você não percebe? - ele replicou.
- Então, mesmo estando morta, eu poderei conversar com ela? - perguntei, alimentando uma
pequena esperança em meu peito.
- Agora ela faz parte de você. Assim como todas as outras que morreram em seu nome. -
disse ele, de forma branda.
- Até mesmo Brittany? - franzi o cenho, torcendo para sua resposta ser negativa.
Ele riu.
- Só as que morreram como uma Menina de Seda. - ele tornou a repetir. - Mas o que
importa, é que ela está aqui. - disse, tocando com a ponta do dedo indicador no meio de meu
peito.
- E o que aquelas inscrições na parede queriam dizer? - perguntei, me sentindo uma criança
curiosa.
- Que ainda existe um modo de salvar sua família da maldição. E quando isso acontecer,
todas aquelas que morreram em vão, voltarão à vida. - ele respondeu, como sempre, com a
resposta na ponta da língua.
Me surpreendia ele saber tanta coisa. Sorri timidamente, olhei para trás, como se me
despedisse de Catherine, mesmo sabendo que ainda poderia revê-la. Eu só teria que salvar
todas as Meninas de Seda. De algum modo, ainda havia um jeito de fazer as coisas voltarem
a dar certo.
Fomos para a escola, onde eu teria tempo suficiente para pensar no porquê de tudo aquilo
estar acontecendo, e por onde eu deveria começar. Haveria alguma pista no meio de toda
aquela confusão.
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10. Uma briga e um jogo


27 de dezembro, quarta.

Os alunos já começavam a voltar. Nicole chegara, e sua irmã estava junto.


- Oi, Nat! - ela exclamou, toda sorrisos. - Que saudade... de você. – pulou em mim, me
abraçando.
- Você conheceu essa menina semana passada. Pare de sentimentalismo, Nole. - a loira atrás
dela disse, fechando a cara. Ela tinha as madeixas compridas e loiras, e um brilho no olhar
que não me era estranho. Talvez parecido com o de Nick, mas sem toda a vitalidade da
irmã.
- Essa é minha irmã... mais velha. - Nicole revirou os olhos, apontando para ela. – Mary
Anne Carpenter... Ela não tem sentimentos nem coração.
- Ao contrário de você, que tem até demais. – a garota bufou, dando de ombros e ignorando
a mão que eu havia estendido a ela. - Nós nos veremos muito por aí. Sou monitora da escola.
E agora que sei que é amiga da minha irmã, ficarei de olho em você. - ela lançou em mim
um olhar ameaçador, e saiu.
- Acho que ela não gostou muito de mim. – disse eu, colocando as mãos no bolso da
jaqueta.
- Ela não gosta muito de ninguém. - Nick disse, dando de ombros. - Ela é assim por causa...
da minha mãe.
- O que tem sua mãe? – perguntei, curiosa.
- Oh, Victoria Carpenter sempre foi uma mulher de mistérios... Mas pelos boatos que
surgiram... Mary sabe mais do que deveria. – Nick respondeu em seu habitual tom de
mistério.
Observei a irmã saindo ao longe, enquanto imaginei o que ela saberia de mais.
***
Ellen chegara também, e trouxera a nós um pequeno mimo. Era uma caixa em forma de
maçã, com divisórias para poções mágicas.
- Criativo! - exclamei, agradecida.
- Meu Natal foi um saco... com a minha irmã rabugenta. - disse Nick, se jogando na cama.
- O meu foi bom... - Comentou Ellen vagamente, me analisando. Eu estava sentada na ponta
da cama, pensativa. - Você está bem, Natalie? Quase não falou nada.
- Meu Natal não foi tão bom, mas pelo menos aprendi algumas coisas. - disse, vagamente.
Estava disposta a não contar para ninguém o que havia acontecido. Elas se afastariam de
mim se soubessem o que estava acontecendo com tentas pessoas que se aproximavam de
mim.
- Você me parece abatida. – Ellen retornou a dizer, preocupada. - O que aconteceu?
Olhei para elas, e exclamei:
- Eu pretendia rever uma antiga amiga, mas creio que não será possível.
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Já era tarde. Elas foram dormir. Abri a primeira gaveta do criado-mudo e apanhei em minhas
mãos o diário de Sarah.
Tudo seria bem mais simples se eu pudesse abrir esse diário e descobrisse logo o que tenho
que fazer. Se eu não fiz nada, por que isso está acontecendo comigo?
Talvez Paul ou Anna soubessem qual o endereço da Família Dolman. Eu perguntaria pra
eles. Mas só amanhã. Hoje eu precisava descansar minha mente de todo aquele inferno.

***

28 de dezembro, quinta.
Descemos pelo tobogã. Encontrei Anna logo na entrada. Ela estava à espreita, me
observando. Fui até ela, e sussurrei em seu ouvido:
- Vocês descobriram mais alguma coisa?
- A polícia está atrás de você. - ela sussurrou de volta. - Investiguei o cômodo em
que achamos os rapazes. Encontramos algo que pode ser útil, mas não descobrimos ainda.
E Mark falou o que viu. Ele disse também que depois do que fizeram com Catherine, o
colocaram no cômodo com os meninos.
- Eu sei que vocês são contra isso, mas eu vou atrás do infeliz que fez isso até os quintos do
inferno.
- Você sabe que não deve fazer isso. É justamente o que ele quer.
- Quem mais ele deve matar para que ele tenha quem deseja? É a mim que ele quer. E é
justamente o que darei a ele.
Anna parou de falar quando percebeu que Ellen e Nicole vinham em nossa direção.
- Tudo bem por aqui? - perguntou Ellen, desconfiada.
- Sim. - respondeu Anna, e olhando para mim, disse. - Nos vemos mais tarde.
Assenti e sai com as meninas.
- Você está muito desanimada, Natalie. - Ellen disse, me puxando de lado. - sei que não
gosta muito de esportes, mas hoje depois do café da manhã teremos um jogo na quadra da
escola. Pode ser uma boa, para levantar o ânimo.
- Verdade. - disse Nick, me abraçando do outro lado. - E terá o baile de boas vindas... no
domingo.
- Não estou afim de festejos. – revirei os olhos.
- Mas te fará bem. - Ellen disse, e fomos para o refeitório.

***

Ela me olhou de esguelha, e voltando sua atenção ao jornal que lia abertamente à mesa,
disse:
- Sinto muito por sua perda, Natalie!
Arregalei os olhos, me sentando à sua frente.
- Como sabe?! – perguntei, surpresa. Pensei que Anna e Paul manteriam aquilo em segredo.
- Todos nós temos um poder especial, que varia de pessoa para pessoa. – Amanda
respondeu, ainda olhando o seu jornal. – O meu é raro. Eu consigo saber o que se passa
dentro de uma pessoa pelo simples fato de olhar para ela.
- As vezes, você me dá medo. – comentei, olhando para minha bandeja.
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- Se você não tem nada a esconder, então não tem nada a temer. – ela rebateu, e continuei
comendo, quieta.
As meninas se sentaram do meu lado.
- Eu acho que a nossa querida colega de quarto, Joanne Isen, está um pouco incomodada
hoje. – disse Ellen, tentando quebrar o silêncio na mesa. Olhei para onde ela estava
apontando.
Ela lançava um olhar estranho, provavelmente em minha direção. Seus cabelos compridos
pareciam mais escuros do que normalmente.
- Ela não gosta de nós. – comentei, dando de ombros. – Nem liguem.
Nick revirou os olhos, comentando:
- Essa garota... não tem mais o que fazer. – disse, despejando molho de tomate em seu
almoço. Ela estava com um vestido rosa floral, que lhe delineava a cintura. – Ah... não.
Ela levou uma mão à cabeça, vendo sua irmã se aproximar. Mary Anne era uma garota
bonita e de rosto fino. Mas se não fosse sua postura severa, poderia até ser mais meiga que
Nick.
Ela olhou em minha direção com cara de indiferença, nem se dando ao trabalho de
cumprimentar qualquer pessoa à mesa.
- Nole, a mãe mandou isso pra você. – ela avisou, colocando um embrulho ao lado da
bandeja da irmã.
- O que é? – Nick perguntou, levando a macarronada à boca.
- Se você se desse ao trabalho de abrir o pacote ao invés de ficar fazendo perguntas idiotas,
saberia. – Mary disse, e se afastou da mesa. – Estarei fazendo vistoria pela escola, se
precisar de algo, e for extremamente urgente, mande me chamar. Não me faça perder tempo
com bobagens.
Ela se virou, e foi embora, sem nem olhar na nossa cara. Ellen olhou para ela pasma, e
Amanda tirou os olhos do jornal por alguns instantes.
Nick continuou a comer sua macarronada.
- O que foi... gente? – perguntou, engolindo de uma só vez.
- Sua irmã é uma ogra. – Ellen disse, surpresa por Nicole não aparentar nenhuma expressão.
- Já tô... acostumada. – ela limpou os lábios. – Ela até que foi simpática... O inferno foi ter
convivido com ela durante o Natal... Um saco.
- Imagino mesmo. – falei, jogando a cabeça para trás. – Se essa é a versão simpática, quero
estar longe quando ela estiver sendo chata mesmo.
Nicole riu, e disse.
- Com o tempo você se acostuma! – ela olhou para o prato, e colocou uma mão na barriga. –
Preciso ir ao Hamlet.
Ela saiu apressada. Olhei para Ellen e Amanda.
- Hamlet? – perguntei, sem entender a expressão. Sabia que havia sido um personagem
importante de uma das mais célebres tragédias escritas por Shakespeare.
- Todos os toaletes daqui tem nomes de personagens literários que fizeram história. -
esclareceu Amanda, me olhando como se eu já devesse saber disso.
- Mas, por que Hamlet? – retornei a pergunta, ainda confusa.
- É um tipo de gíria que usamos, quase um eufemismo, na verdade. Quando estamos em
aula, por exemplo, dizemos "Podemos ir ao Hamlet?". É mais educado do que aparenta ser.
– Amanda rebateu, levantando-se à mesa. – Amanhã o Departamento de Estudos Avançados
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terá uma reunião. Caso queiram ir, estão mais do que convidadas. Chamem a loira também.
– ela saiu, se referindo à Nick.
Olhei para Ellen, e falei:
- Mas não é nojento ter nomes tão famosos relacionados com banheiro?
- Eu discordo. É como uma singela homenagem... mas de uma forma diferente.
- Bem peculiar... - respondi, entretida com a comida.
- Essa escola é como um livro: deve ser lido lentamente para conhecer a cada detalhe. – ela
bufou, me vendo terminar o almoço.
Eu não tinha a menor pressa, mas ela, ao contrário , parecia inquieta.
- A Nick está demorando. – Ela olhou ao redor, vendo o refeitório se esvaziando.
- Deve ter se perdido. - disse eu, tentando argumentar.
- Duvido muito. Nicole está aqui há mais tempo do que nós. Ela conhece todos os atalhos da
escola. – ela rebateu, e se levantou. – Vamos procurá-la.
***
Empurramos uma porta pesada que dava acesso ao banheiro. Estava, como era de se esperar,
lotado de pessoas. Várias cabines se encontravam por ali. Eram tantos nomes de
personagens...
Ellen havia me dito que haviam exemplares das obras dentro do banheiro, mas em forma de
livretos. As garotas que estavam ali não me pareciam interessadas em usar o banheiro, o que
era completamente normal, até mesmo para garotas mágicas. Banheiro sempre foi o ponto
de encontro para fofoca. E aquela parecia ser enorme, as pessoas pareciam se aglomerar
mais.
- O que está havendo? - perguntei em tom razoavelmente alto para que alguém pudesse me
escutar me responder.
- Duas garotas estão brigando. - disse uma, parecendo animada com a situação.
- Briga de banheiro! - exclamei, animada. - Adoro!
- Oh, não! - exclamou Ellen, do meu lado.
- O que foi? - perguntei, confusa.
- Uma das garotas que estão brigando é Joanne.
- Lega! - falei mais animada.
- A outra está apanhando feio. - ela disse, com expressão pesarosa. - É Nicole.
Meu sorriso logo se desfez de meu rosto.
- Nós temos que ir ajudá-la. - eu disse, tentando empurrar algumas meninas que estavam à
nossa frente, mas nenhuma pareceu se mover.
- Não adiantaria. - ela respondeu. - Eu soube que essa Joanne era uma encrenqueira da
primeira vez que coloquei os olhas nela.
- Mas o que Nicole fez para ela? – perguntei, confusa.
- Eu não...
Ela parou de falar abruptamente, e todas as outras garotas também fizeram silêncio, pois
Nicole e Joanne agora estavam gritando uma com a outra.
- Eu sei o que você fez. - gritou Joanne, acertando um soco na barriga de Nicole.
- Você é uma maluca encrenqueira. - Nicole disse, se afastando. – Eu nem sei do que está
falando.
- Você acha que não? - disse Joanne, respirando fundo. - Eu posso sentir.
Sentir o que? Me perguntei, internamente. Provavelmente, ela estava sentindo o cheiro do
perfume Dolce & Gabbana de Nick.
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- Ora, sua...
Antes que ela pudesse concluir a frase, Ellen estava avançando e me puxava junto.
- Podem parar com isso! - ela disse, daquele jeito autoritário que poucas pessoas tinham. -
Quem não for usar o banheiro para suas necessidades faça o favor de se retirar.
Ninguém se moveu.
Ela respirou fundo, fechou os olhos. Em seguida, inspirou e abriu os olhos gritando:
- Saiam! - sua voz soou de uma forma aterrorizante. - AGORA!!!!!!
Algumas meninas começaram a sair, ficando ai apenas as que estavam realmente usando o
banheiro.
- Já pensou em ser monitora? - perguntei para Ellen assim que boa parte das garotas já
estavam fora do banheiro.
- Na verdade, já! - ela respondeu, com seu jeito durão de ser.
- Vocês duas para a diretoria, agora. - Gritou uma voz ainda mais brava que eu poderia
reconhecer mesmo de costas. Mary Anne estava com a expressão fechada.
- Mas, mana...
- Não me faça falar outra vez, Nole. - Mary disse, lançando um olhar ameaçador para ela.
Antes de saírem, puxei Joanne pelo braço e disse em seu ouvido:
- Você vai pagar por isso. - depois disso, eu e Ellen saímos do banheiro.
***
- Você acha que o diretor dará um castigo muito ruim à ela? - perguntei para Ellen, quando
já estávamos nos jardins do colégio.
- Eu creio que o castigo seja subir até a sala do diretor. - disse ela, pensativa. - Vamos ao
ginásio de esportes?
- A gente não ia com a Nick?
- Ela não está aqui. E não estou com vontade de esperar por ela enquanto ela se diverte
tomando uma bronca básica do diretor e da irmã.
Não pude fazer nada além de concordar com ela, dando de ombros.
- A Mary Anne é muito durona. – disse eu, lembrando do jeito como todos calaram a boca
quando ela se aproximou.
- Aparentemente, é mesmo. – Ellen respondeu, pensativa. – Toda vez que olho pra ela, eu
sinto que existe uma garota meiga ali, adormecida, apenas esperando ser livre.
- Acho difícil eu conseguir ver a meiguice nela. – disse, e dando de ombros, fomos para o
ginásio.
***
O ginásio era enorme, mas se não fosse por isso, poderia ser considerado um lugar comum.
A arquibancada não estava tão cheia.
- Ótimo! – eu exclamei, pensando em voz alta. – Parece ser a parte da escola mais normal
que conhecemos até agora.
- Se eu fosse você, não me precipitaria. – disse Ellen, me dando uma piscadela.
- Ok! Então que venha a magia! – exclamei, esperando que algo extraordinário acontecesse.
- Vai começar! – Ellen disse, animada.
- O que, exatamente? – perguntei, confusa.
- Olhe! – ela apontou pra frente.
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O chão do ginásio estava apenas em terra. Do alto, um bloco de cimento descia. Ele era
pequeno, e parecia um tabuleiro com bonecas atléticas. Quando chegou ao solo, o tabuleiro
aumentou e ficou totalmente proporcional ao campo.
- Uau! – exclamei, animada. – Basquete.
- Não! – disse Ellen, à meu lado. – Basquete mágico.
- Qual a diferença?
- Em um basquete normal as pessoas não podem se encolher enquanto estão com a bola. Ou
colocar fogo nela.
Franzi o cenho. Uma semana era mais do que suficiente para eu perceber que nunca mais
teria algo normal na vida. Em alguns segundos, o estádio começou a encher de pessoas.
Os veteranos estavam animados, enquanto os novatos estavam ansiosos.
- As regras são claras. – disse um homem alto e musculoso. Provavelmente, o treinador. –
Nada de feitiços baixos ou agressivos. Vocês podem usar magia apenas para feitiços
relacionados aos quatro elementos: jogo o mais limpo possível. Não se pode roubar a bola
do adversário sem ser com as próprias mãos. Todos entenderam? – ele perguntou, e vendo o
consentimento por parte de ambos jogadores, anunciou. – Que os jogos comecem.
Dizendo isso, ele saiu do campo e apitou o jogo. A bola de longe parecia normal, embora
apresentassem furos.
- Para que os furos? – perguntei para Ellen, mas não foi necessário que ela me respondesse.
Um jogador estava quase pegando a bola quando ela começou a soltar fumaça.
- O feitiço do vapor! – anunciou Ellen. – Ele faz com que até o objeto mais seco fique cheio
de água fervendo. Isso impede que o adversário toque a bola enquanto ela não voltar para
sua temperatura normal.
Eu assenti, continuando a prestar atenção ao jogo. Nunca havia assistido à nenhum jogo de
basquete normal em toda a minha vida, imagine então, um daqueles. Uma jogadora usara
um feitiço de ar para levar a bola até ela, mas outra aparecera na frente e lhe tomou a bola.
Pelo que eu havia entendido, os outros jogadores não podiam lançar nenhum feitiço na bola
enquanto ela estivesse nas mãos de outra pessoa, mas poderiam usar feitiços para chegar
mais rápido perto da possuidora da bola.
Uma jogadora do time azul lançou a bola, fazendo o feitiço de falso fogo, uma ilusão que
fazia com que a bola parecesse pegar fogo, mas era apenas para despistar o outro time.
As cestas ficavam subindo e descendo, e foi difícil algum time conseguir marcar ponto. Uma
menina lançou um feitiço de gelo, e acabou acertando em outra.
O juiz apitou, para darem um intervalo no jogo. Ela estava estática, enquanto a que lançara
ficou olhando, com as mãos na boca.
Saímos do ginásio. Ellen olhou para mim, passando a mão por meus ombros.
- Foi um bom jogo, não acha? – Ellen me perguntou, rindo.
- Tirando o final. - eu disse, soltando um riso sem a menor graça.
Nós saímos do Bloco II e nos encontramos com Nicole.
- O que aconteceu no gabinete do diretor? – perguntei, notando o semblante preocupado
dela.
- A pior parte foi ter que subir até lá. – ela respondeu.
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- Eu disse! – Falou Ellen, animada.
- O diretor perguntou o que havia acontecido, e Joanne inventou algumas mentiras sobre
mim. Ela é maluca.
- Eu não fui com a cara dela desde o primeiro momento que a vi. – disse Ellen, se mostrando
um tanto enfurecida.
- Eu sei disso! – exclamou Nicole, mordendo o lábio inferior. – Mas vamos mudar de
assunto. Como foi o jogo? – ela perguntou, mantendo seu olhar bem-humorado.
- Fascinante! – respondi, ainda pensando no frio que aquela menina deveria estar sentindo.
- Pena que eu perdi. - disse Nicole, animada. – Quero que vocês não contem sobre isso para
ninguém, ok?
Enquanto ela falava, nos empurrava para perto de uma árvore onde não tinha ninguém.
- Pode falar! – eu disse prontamente, curiosa.
- Ok, vou confiar em vocês algo que nem mesmo eu deveria saber. – Nicole enrolou,
aumentando ainda mais minha curiosidade.
- Fala logo! – Ellen parecia mais curiosa do que eu para saber a novidade.
- Quando subimos para o gabinete do diretor, ele estava em uma reunião, mesmo assim nós
ouvimos a conversa. – ela disse, se animando mais ainda para contar. – Estão vendo aquele
labirinto ali? – ela falou, apontando com o dedo indicador. – O diretor estava dizendo em
breve teremos um desafio ali.
- Ah, era isso? – disse eu, desapontada.
- Você não entendeu? Nós teremos um desafio no labirinto... Ele é lendário pela escola pois
é uma das melhores aventuras que poderemos viver aqui. – disse Nicole. – Minha irmã falou
que quem consegue chegar até o fim... adquire um misterioso poder para realizar aquilo que
quiser.
- Uau! – exclamou Ellen, parecendo animada.
- Mas, e quem não conseguir chegar até o fim?
- Então essa pessoa retorna ao ponto de partida. – falou Nicole. – Isso, é claro, se a pessoa
não estiver muito machucada... No caso de ocorrer algum acidente a pessoa já vai
diretamente para a enfermaria.

Arregalei meus olhos, preocupada.


- Mas o risco é muito alto? - perguntei. - Digo, de alguma coisa ruim acontecer.
- Que nada. - ela deu de ombros. - Geralmente... é muito tranquilo.

***

Deixei as meninas, e fui para o quarto, procurando um remédio para dor de cabeça. Veio
repentinamente, e estava forte demais. Parei em frente a porta. Do lado de dentro, uma voz
falava:
- Ela não vai mais nos incomodar. - parecia sussurrar. - Não até atingirmos quem nós
realmente queremos.
Por que eu não pensara naquilo antes? Joanne só poderia ter feito aquilo com Nick para me
atingir. Corri até a enfermaria, e encontrei Anna.
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- Oi, meu bem. - exclamou ela ao me ver.
- Preciso de uma coisa...
- Aconteceu alguma...
- Preciso que você e Paul fiquem de olho em mim e minhas amigas. - respondi, formulando
algo na cabeça. - Não quero que nada aconteça à elas, tudo bem?
Ela assentiu, e eu saí da Enfermaria, procurando-as. Não sei porque, mas tinha uma péssima
impressão sobre Joanne e tudo o que estava acontecendo nos últimos dias.
De qualquer forma, é sempre melhor prevenir.
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11. As Veux
29 de dezembro, sexta.

O clima entre Nick e Joanne ainda estava tenso. E o pior é que a cama das duas ficava uma
do lado da outra. Jo tentou mudar de quarto, mas a supervisora foi bem rígida com ela. Disse
que se toda garota que brigasse, tentasse mudar de quarto, a escola viraria uma bagunça e
todo dia uma estaria em um quarto diferente.Tenho que concordar com ela. As meninas
brigam demais. Esses dias, escutei uma história de uma garota que bateu em outra porque
viu ela beijando o garoto que gostava.
Uma coisa de doidos.
Descemos para o pátio. Os alunos estavam agitados, eu não sabia porque. Encontrei Anna, e
ela me puxou de lado.
- Anna?! - exclamei. - O que faz aqui?
Ela me olhou com pouco caso, e respondeu:
- Eu tenho que te proteger. Estou sempre com você. - ela tirou do bolso da calça uma folha
amassada. - É pra você.
Me estendeu o bilhete. Abri-o. Era de Marc.

Quero que saiba que apesar de tudo de ruim que está acontecendo, adorei aquele momento
que passamos juntos.

A menção ao nosso beijo me fez estremecer por dentro. Não que eu sentisse alguma coisa
por ele, nem por aquele momento. Foi apenas um beijo como qualquer outro. Mas havia algo
em suas palavras que me intrigava.

Sinto muito por sua perda. Bem, minha também, já que Cath era minha cunhada.
Deve estar sendo duro pra você. Se quiser sair um dia pra quem sabe, a gente conversar...

Claro, conversar. Me engana que eu gosto.

Vou adorar te ver. Conte comigo pro que precisar.


Marc.

Dobrei novamente a folha de papel, e a guardei em meu bolso.


- Tem mais algum recado para mim? - perguntei, fixando Anna, enquanto via minhas amigas
do outro lado, lendo o painel de recados da escola.
- Não. – ela ia dar meia volta, mas parou, segurou meu braço e disse. – Estou de olho em
Joanne por vocês. Mas fique esperta também. Não só com ela. Mas todos ao redor.
Assenti e sai.
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O sol brilhava tão intensamente do lado de fora da escola, que chegava a queimar os olhos.
- Deveria ter pego meu óculos de sol. – Ellen diz, tentando tapar o raio de sol com uma das
mãos.
- Olha... são as Veux. – Disse Nick, apontando em direção à um pequeno grupo de garotas.
Era difícil não nota-las.
Todas tinham cabelos longos, que praticamente chegavam até a cintura. Um pouco mais à
frente, vinha uma de cabelos lisos e completamente azuis. Eram escuros, da cor do marinho.
Ela estava de batom vermelho, e num estilo despojado fashion. A seu lado, vinha outra de
cabelos verdes encaracolados, tão grandes quanto os da outra. Tinha um pircing no nariz e
outro nos lábios. Seus olhos eram bem marcados, e tinha um estilo mais rockeiro.
Do outro lado, uma garota de cabelo liso e cor de vinho. Ela andava com outra, com cabelos
cacheados e na cor rosa.
- Quem são? - perguntei, apontando em direção à do cabelo azul, que tinha postura de líder.
- As Veux. - ela disse, pronunciando o nome lentamente para mim. "Vôuks".
- Ah, as famosas Veux. - disse Ellen, lembrando quem eram.
- Alguém pode me dizer? Eu tô boiando.
- Elas são conhecidas como as jovens mais populares e corajosas do mundo. São podres de
ricas, e um tanto metidas. Do tipo que não olha duas vezes pra mesma pessoa, sabe? É o que
dizem, pelo menos. - Ellen esclareceu.
- E o que faz delas tão corajosas?
- O dinheiro dos pais dá um jeitinho nessa fama toda. Quem sabe elas entrem em ação nessa
escola. Por enquanto, são apenas doidas que se arriscam pelos maiores perigos do nosso
mundo sem medo de ser feliz. São um grande exemplo pra um bando de pré adolescentes fée
sem mais o que fazer.
- Que... revolta. - Nick riu, diante o tom sarcástico da amiga.
- Apenas não gosto de gente metida a besta. - ela revirou os olhos, dando de ombros.
***
- O que vocês vão usar... No baile?
- Que baile? - perguntei, franzindo o cenho.
- O baile de virada do ano que terá no domingo. - Ellen esclareceu.
- Aqui na escola? - repliquei, confusa.
- Sim. Mas será aberto ao público. Será o nosso Baile de Boas Vindas. - Ellen retornou,
afundando os olhos em alguma matéria da sia revista de fofocas.
- Não tô no clima de bailes. - disse, jogando a cabeça pra trás.
- Alguém na sua situação, Natalie, é que deveria mesmo pensar em ir no baile. Será
divertido. - Ellen deu uma espiadela em minha direção.
Dei de ombros.
Mary Anne chegou, e me lançou um simpático olhar de "não olhe para mim de novo". Pelo
visto, ela estava num dia bom. Nem se deu ao trabalho de me dizer algo arrogante.
- Mamãe está precisando falar com você. - ela anunciou, estufando o peito, assumiu uma
postura de general.
- O que ela quer? - Nick perguntou, fazendo pouco caso.
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- Não perca seu tempo perguntando à mim. Só estou avisando. - ela deu meia volta, dizendo.
- Faça o favor de me acompanhar, Nole. Não tenho todo o tempo do mundo.
Nick bufou, e saiu seguindo a irmã.
- Não me conformo com essa Mary Anne ser tão chata. - Ralhei, enquanto Ellen continuava
entretida na sua revista.
- Não me conforme com o fato de que ela chama a irmã de Nole. Que ridículo. Doeria dizer
Nick? - Ellen argumentou, e soltei um riso.
Seu telefone começou a tocar.
- Oh, não acredito!! - ela exclamou, pesarosa.
- O que aconteceu? - perguntei, levantando a sobrancelha.
- Meu irmão sofreu um acidente. - Ela disse, tremendo. - Tenho que ir pro hospital.
Ellen saiu correndo, procurando o gabinete do diretor pra assinar uma dispensa.
Ia dizer que iria com ela, mas ela saiu tão rápido que nem me deu tempo de abrir a boca pra
nada. Eu não gostava de ficar sozinha, pelo menos não nos últimos dias. Fui para a
biblioteca, em busca de um pouco de paz. Tudo estava tão conturbado, e eu iria fazer
exatamente o que vinha fazendo nos últimos dias: absolutamente, nada.
Fui para a biblioteca, que ficava no Bloco III da escola, no subterrâneo com as salas de
aula. Desci a escadaria. As paredes eram enfeitadas com pedras, assim como o chão. Andei
devagar. Sempre que corria ou andava rápido, eu ficava parecendo um pinguim.
Vi a entrada da biblioteca. Parecia realmente enorme. Apressei o passo, mas não esperava
pelo que estava vindo em seguida. Duas gárgulas desceram de cada lado da parede. Elas
começaram a jorrar água. Fiquei imóvel, mas duas mãos pesadas me puxaram.
- Você é burra ou o que? - um moço alto e loiro começou a ralhar comigo. Sua aparência não
era tão máscula quanto a força da pegada que ele me dera. Mas seu tom de voz apresentava
arrogância aguda.
- Não precisa dar uma de bom samaritano. - repliquei, me desvencilhando de suas mãos.
- Te salvei de ficar toda ensopada e é assim que me agradece? - ele deu um sorriso
sarcástico. - Sorte sua eu gostar de ruivas. - ele enroscou os dedos em meus enormes
cabelos.
- Não te dei liberdade pra fazer isso. Agora, se me der licença, tenho mais o que fazer. - o
empurrei com uma mão, me afastando.
Me enfiei dentro de uma prateleira qualquer. Não estava procurando nada em particular, mas
ainda estava irritada com a "passada de mão" daquele loiro bonitinho que não valia nada.
Que petulante.
Dei uma olhada no estado da minha camiseta. Estava molhada na região da barriga,
descendo Até minhas partes baixas. Esbarrei em uma estante qualquer, derrubando uma
penca de livros. Virei-me. Os livros eram de um menino asiático, com olhar penetrante e
jeito esquisito.
- Me desculpe. - falei, me virando para ele.
- Não foi nada. - respondeu ele, olhando para o chão enquanto recolhia os livros. - Você
deveria se secar. Vai acabar ficando resfriada.
Abaixei-me, ajudando-o a pegar os livros.
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- Sou Natalie.
Ele levantou o olhar para mim, e respondeu seco.
- Steven. - pegou os livros do chão. - Obrigado. - tomou para si os livros que estavam em
minhas mãos, e me lançou um olhar tímido.
Saiu em direção ao outro lado da biblioteca, e esparramou seus livros em uma mesa.
E eu, apenas fiquei ali, observando o garoto que mais me chamou atenção em toda a minha
vida.
Quando sai da biblioteca, encontrei Ellen e Nick.
- Precisamos de uma roupa para o baile. - Ellen anunciou, com a voz rouca. Ela limpou as
lágrimas que lhe escorriam pela face.
- Seu irmão está bem? - perguntei, tocando-lhe a face.
- Ele vai ficar. - respondeu, jogando o cabelo para trás. Ela conseguia incrivelmente ficar
mais atraente ainda com os olhos lacrimejantes.
- Preciso mesmo... de uma irmã nova. - Nick disse, com o tom um pouco irritado e eu ri.

***

Sair da escola, para as meninas, só requeria uma coisa: autorização do diretor. Para mim,
nem autorização adiantaria se eu não pudesse passar por Paul.
Subimos até o gabinete do diretor. Por sorte, Paul estava lá.
- O que está fazendo aqui? - perguntou ele, em tom bravo.
- Preciso de uma autorização pra ir no shopping com as meninas. - respondi baixinho,
encarando-o nos olhos.
- E quem disse que eu vou permitir isso?
- A autorização do diretor já basta. - respondi, dando de ombros.
Paul me lançou um olhar ainda mais irritado, e me puxou de canto, enquanto Ellen e Nick
falavam com o diretor.
- Você sabe muito bem os perigos que estão lá fora. - ele sussurrou, apertando a manga da
minha blusa com força.
- E por isso eu vou deixar de viver? - perguntei, tentando inutilmente me desvencilhar dele.
- Você tem que tomar cuid...
- Paul, eu sei disso. - disse eu, me irritando. - Se nem quando eu estava com você e a Anna
fiquei livre Callum filho da mãe, imagine então com elas. - apontei para as minhas amigas,
que agora observavam a cena de longe. - Só te peço um voto de confiança. Nada de ruim
pode acontecer... - eu sabia que aquilo não era verdade, e Paul mais ainda.
- Você vai ficar aqui. Suas amigas podem comprar pra você o que precisar. - ele respondeu,
tirando do bolso um saquinho com dinheiro. - E essa é minha última palavra.
Ele me deu as costas, indo falar com o diretor.
- Mas, Paul...
- Já disse Natalie. É minha última palavra. - ele gritou comigo, fazendo minhas amigas
ficarem perplexas. - Agora nos deem licença. Vão.
Saímos do gabinete do diretor. Desci com elas até o portão da escola.
Encontramos Bernardo Longatto conversando com o segurança.
- Olha só! - ele exclamou, alegre ao me ver. - Tava com saudades desses seus lindos cabelos
ruivos. - ele disse, acariciando minha pele.
Seu toque me fez estremecer por dentro. Não sei o que está acontecendo comigo.
- Vão as compras? - Falou ele, como se só agora tivesse visto minhas amigas.
- Elas vão! Eu não. Não consegui autorização. - pestanejei, entortando o lábio. - Pelo menos
terei muito tempo pra não fazer nada.
Ele riu, e dando uma piscadela em minha direção, falou.
- Eu posso dar um jeitinho nisso. - antes que eu perguntasse o que era, ele foi até a portaria,
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e conversou com o segurança. Este deu uma olhada em minha direção, assentindo com a
cabeça.
- Podem ir. - ele indicou o caminho para Ellen e Nick. Me puxou pela cintura e sussurrou no
meu ouvido. - Ele só deixou você sair porque eu disse que era minha namorada e estava
comigo.
Arrepiei diante do seu hálito sob a minha nuca.
- Vai ser um sacrifício enorme fingir isso. - disse, passando meu braço sobre ele e pegando
em sua mão.
- Vai mesmo. Quero ver conseguir resistir à mim depois de passar cinco minutos coladinha à
mim. - ele soltou um riso brincalhão.
Bernardo tinha realmente um sorriso encantador. Acho que nunca me cansarei de dizer isso.
- Sair da escola nunca foi tão fácil assim. - exclamou Ellen, dando uma olhada maliciosa em
mim e Bernardo. - Sabe, Nick, tô precisando ver umas coisas antes de ir pro shopping... me
acompanhe.
Nick deu um risinho bobo, e seguiu-a.
- Eiii! - gritei para elas, mas o braço esquerdo de Bernardo me impediu de alcança-las.
- Nós vamos com elas. Só que um pouco mais atrás. Vai ser bom a gente ter um tempo pra
se falar.
- É que... elas sabem que não podem sair de perto de mim. - reclamei, exasperada. Bernardo
poderia ser um fofo, mas até onde eu sabia, até ele poderia ser o filho de Callum.
- Você não confia em mim? - sussurrou ele, fazendo carinha de gato pra mim. Ele acariciou
a ponta de minha orelha com os dedos.
Olhei sinceramente pra ele e respondi:
- Ultimamente, está difícil confiar em qualquer pessoa no mundo.

***

O Shopping era enorme, como já era de se esperar. Olhando assim, aquele até parecia um
mundo normal.
Demoramos até encontrarmos a loja perfeita. Nunca liguei pra essas coisas, e sinceramente,
uma roupa qualquer pra mim já estaria de bom tamanho.
Mas as duas eram teimosas. Bernardo apertara minha mão, como se tivesse medo de me
perder, e andamos como um casal de namorados.
Eu poderia até tentar me desvencilhar de seu toque, mas a presença dele me fazia bem de
uma forma que era praticamente inexplicável.
- Não quero algo que me deixe muito gostosa. Sabe como é, melhor evitar alguns ataques
cardíacos. - Ellen disse, olhando alguns vestidos das araras.
Algumas meninas entortaram a cara pra ela, mas era normal. Já havia me acostumado com o
jeito dela. Não que ela se achasse a gostosona - embora fosse mesmo - mas ela brincava
muito com a atenção que recebia dos garotos.
- Vai ser difícil. Em você, qualquer coisa cai bem. - respondi, revirando os olhos.
- Nat. - Bernardo disse em meu ouvido. - Tenho que ir numa loja. A gente se vê depois.
Ele me abraçou, me dando um beijo no pescoço.
Filho da mãe. Me deixou toda arrepiada.
Ele deu um Tchau de longe para as meninas, e saiu.
- Seu namoradinho... É bonito. - Nick disse, paquerando um vestido de rendas vermelho
claro.
- Ele não é meu namorado. - revirei os olhos, começando a procurar algo que me caísse
bem.
- Ainda né, porque do jeito que vocês se comem com os olhos, vai acabar em namoro. -
Ellen disse, distraída, procurando um vestido.
Ri, e fui para o outro lado da loja. Ela era toda decorada em cores claras.
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A loja estava começando a encher, então eu teria que escolher algo bem rápido.
Entre tantas bancadas e araras, achei um compartimento para roupas em estilo menos
"fofinhas".
Não sou supersticiosa, então não me importaria tanto assim em usar um vestido preto na
virada do ano.
Poderia muito bem representar o luto que eu ainda sentia por Catherine.
- Esse ficaria ótimo em você. - uma mão atrás de mim me estendeu um vestido. Ele era da
cor azul marinho, todo colado ao corpo na parte de cima, mais largo na parte de baixo,
levemente rasgado.
Aceitei o vestido, e me virei para ver quem tinha sugerido ele, quando meu queixo quase
caiu.
A garota tinha enormes cabelos azuis, que pareciam ainda mais incríveis visto de perto. Seu
olhar parecia acostumado à olhar para as pessoas com superioridade, mas havia algo a mais
em seu modo gentil.
- Você é uma das...
- Veux. Sim. - ela riu, baixando o olhar. - Mas pode me chamar de Isabella. Sou Isabella
Champoundry.
- Sou Natalie. - respondi, dispensando qualquer comentário em relação ao meu sobrenome.
Já que eu não poderia usar o Dolman, o Bonnet não me parecia tão atrativo assim.
- Tem sangue francês também? - perguntou ela, curiosa.
- Tenho. Mas não sei quase nada sobre a minha família.
- Hum. Que pena. - ela deu um sorriso de canto, anunciando uma covinha. - Gostou do
vestido?
- É lindo. - respondi, tomando-o em minha mãos. - Você trabalha aqui?
- Não. Só vim com as outras Veux para comprarmos mais algumas roupas. Fazer compras
alivia o estresse. - ela prendeu suas longas madeixas em um coque. - Você está pensativa
demais.
Ela analisava meu semblante, como se pudesse me desvendar.
- É que me disseram que vocês... as Veux, são do tipo que não olha duas vezes pra alguém. -
respondi automaticamente. - Pensei que fossem mais esnobes.
Ela soltou um riso debochado.
- Geralmente somos mesmo. Mas eu sou a menos chata do grupo. - ela virou de costas para
mim, e disse quase num sussurro. - E fiquei sabendo grandes coisas sobre você. Acredito
que tens potencial para ser uma de nós, caso queira.
Fiquei boquiaberta. Não sabia que era tão fácil assim entrar para uma irmandade.
- Mas eu teria que pintar meu cabelo também? - perguntei ironicamente, e ela riu.
- Isso fica à seu critério. Nunca tivemos uma ruiva. - Isabella voltou seu olhar para mim, de
forma pueril. - O convite está feito. Creio que as outras garotas não se importariam com uma
nova integrante. - e dando meia volta, ela disse - E não se esqueça de levar esse vestido.
Ficará maravilhoso em você.
Ela saiu, e eu fui para o caixa.
Uma coisa ela tinha razão: o vestido era realmente a visão da perfeição.
Mas outra coisa me deixara intrigada: Quem poderia ter falado de mim a ponto de deixá-la
tão interessada à meu respeito?
Voltamos para a escola. Nicole estava animada por ter encontrado o vestido perfeito, e Ellen
admirava a felicidade da amiga.
- Não sei como alguém que tem tudo na vida, foi criada num Reino de verdade do qual seu
avô era Rei, consegue se animar com um vestido em uma lojinha qualquer do shopping.
- Eu sou... Feliz. - Nick respondeu, colocando as roupas novas no armário. - Feliz... nas
pequenas coisas... da vida. E em vestidos... maravilhosos.
Joguei a única peça que eu comprara em cima da minha cama. Depois eu guardaria.
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- Você nem mostrou ainda o que comprou... Natalie. - disse Nick, parecendo curiosa.
- Eu guardo a surpresa para o ano novo. - dei uma piscadela, e ela sorriu. Seu sorriso era o
mais puro e ingênuo que eu já havia visto em uma adolescente.
- Você é sempre tão cheia de mistérios. - Ellen disse, se jogando em sua cama.
Nick guardou todas as suas roupas, dobrou as sacolas, colocando-as dentro de uma gaveta do
criado-mudo, e sentou-se delicadamente na ponta da cama, com as pernas cruzadas e as
mãos no joelho.
- Como você consegue ser tão certinha? - Perguntei, admirada.
- Com a mãe que eu tenho, ou você aprende a ter bons modos ou é deserdada. - Ela
respondeu, e, para a minha surpresa, sem nenhuma pausa.
Deitei na cama, ajeitando meu travesseiro.
- Foi um dia cheio, acho bom a gente ir dormir logo. - Falei, esfregando os olhos com meu
dedo indicador esquerdo.
Recebi um travesseiro bem no estômago, de Ellen.
- Você é outra toda certinha. - ela pestanejou, com um sorriso no rosto. Admirava essa
qualidade nela de estar sempre de bom humor.
- Só quero estar bem disposta amanhã. - respondi, me agarrando firmemente à seu
travesseiro. - Vou dormir, meninas. - Virei para o outro lado, e adormeci naquele mesmo
instante.

30 de dezembro, sábado.

Véspera de ano novo. Não sei porque a chegada de um ano pode ser tão importante assim.
Entra ano, sai ano, as pessoas se enchem de promessas que elas sabem que não cumprirão, e
quando chegam no mês de maio, já esqueceram de praticamente todas e não realizaram nada
ainda.
Mas de qualquer forma, não seria eu a chata a estragar os festejos dos outros. Ao contrário,
eu até estava animada para a festa de amanhã.
Abri a primeira gaveta do meu criado-mudo, soltando o compartimento falso. O diário de
Sarah Dolman.
Olhar para ele me trazia saudades.
Saudades dessa minha avó que eu nem chegara a conhecer. E também da falta que Catherine
me fazia, que, naquele momento, apertava mais ainda em meu peito.
Lembrei-me da noite do Baile de Formatura, em que Cath e os outros chegaram atrasados. A
primeira coisa que ela fizera, foi me olhar dos pés à cabeça e me dizer "Não fique brava
comigo, mas você está horrível."
Agora eu não teria mais quem me dizer o quão feia eu estava em festas, ou quem me
ensinasse tudo de fútil e útil que eu poderia querer saber.
Olhei para as camas ao meu redor. Ellen e Nick não haviam acordado ainda. Joanne e Penny
já tinham saído. Suas camas estavam arrumadas, então acho que nem ali elas haviam
dormido.
Glória a Deus, não precisava ver a cara de nenhuma das duas de manhã.
Fui para o banheiro. Precisava de uma banho bem quente, que me lavasse de corpo e alma,
levando aquela dor no peito que eu estava sentindo.
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Entrei no box. Liguei o chuveiro. O som da água escorrendo de manhã era bem audível, o
que dava a impressão para quem estava de fora, que tava chovendo.
Mordi o lábio inferior, mas não aguentei. Não aguentava mais me fazer de forte e fingir que
nada havia acontecido, mas já faria uma semana desde que Catherine havia sido assassinada.
E tudo aquilo, por minha causa.
Deixei a água que escorria levar consigo minhas lágrimas da mais penosa dor. Tive a
sensação por um momento, que todos que estavam ao meu redor acabariam sofrendo de
alguma forma. Seria bem mais fácil se eu me entregasse logo ao inimigo. Isso, é claro, se eu
soubesse quem era.
Ele pode estar mais próximo do que você imagina. Uma voz teimava em minha mente, e
embora relutante, eu sabia que poderia ser verdade. Mas quem? Meu Deus, quem estava
fazendo esse inferno na minha vida?
Não fazia a mínima ideia, mas eu teria que descobrir logo. Antes que ele levasse outra
pessoa importante pra mim.
***
Assim que saí do chuveiro, Nick já estava acordada esperando o banheiro ser liberado.
- Bom dia... Natalie! - Exclamou, e ficou olhando para mim por alguns segundos. -
Aconteceu... alguma coisa?
- Não, nada. - respondi, tentando disfarçar meus olhos vermelhos.
- Você sabe que pode contar comigo... para o que precisar... certo? - Perguntou ela, com o
olhar meigo de piedade.
- Sei sim, Nick. E é por essas e outras que eu gosto muito de você.
- Também gosto... muito de você... Natalie. - ela respondeu, com um belo sorriso no rosto, e
foi tomar banho.
- Perdi alguma coisa? - Ellen perguntou, se espreguiçando na cama.
Balancei a cabeça em negativa.
- Ah, então nesse caso, vou voltar a dormir. - Ela se agarrou ao travesseiro, e fechou os olhos
novamente.

***

Descemos pelo tobogã, e caímos bem de frente com a enfermaria. Anna estava saindo, e me
deu um "Oi" de longe. Nem ela nem Paul me perguntaram sobre o fato de eu ter saído ontem
com as meninas - e um garoto - sem a permissão deles, o que eu achei muito estranho. Mas
não iria até ela reclamar pelo puxão de orelha que ela deveria ter dado em mim. Muito pelo
contrário, fingi que nada tinha acontecido, e continuei andando.
Encontramos Bernardo perto da porta de saída. Ellen e Nick se entreolharam, e nem
precisaram falar nada para se afastarem.
- Suas amigas devem achar que eu tô dando muito em cima de você. - ele riu, mordiscando
levemente o lábio. - O que não seria má ideia, diga-se de passagem.
- Você não iria querer ter ao seu lado alguém como eu, se soubesse que não sou a melhor
companhia pra ninguém. - respondi, jogando minhas madeixas ruivas para trás.
- Eu posso apostar que sim. - ele respondeu, e parecia prestes a dizer alguma outra coisa,
quando um rapaz alto apareceu. Ele era um negro musculoso, com porte responsável.
- Por que você está de conversinha com essa senhorita - disse o moço alto, olhando de
esguelha para mim. - quando deveria estar fazendo seu serviço de monitor?
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Bernardo engoliu em seco, ficando todo vermelho.
- Me desculpe. Isso não acontecerá novamente. - ele olhou para mim, e abaixando o olhar,
completou. - Senhorita Bonnet, tenho que ir. A gente se encontra por aí.
Assenti, vendo os dois se afastarem. Pelo visto, ser monitor naquela escola não era uma
tarefa das mais fáceis.
***
Ellen e Nick haviam simplesmente sumido pela escola. Saíram sem me dizerem pra onde
iam, e eu não tava muito afim de ficar que nem uma jumenta atrás daquelas duas.
A gente tem que se encontrar mais cedo ou mais tarde, e a escola é grande demais pra
encontrar qualquer pessoa que eu queira ver.
Como eu praticamente não sei me divertir sozinha, fui para a biblioteca.
Nick me falara sobre um botão que poucos alunos conheciam, que ficava à menos de quinze
centímetros da gárgula direita, para impedir que ela jorrasse água. Não foi fácil encontrá-lo,
mas não estava querendo pegar um resfriado.
- Você foi esperta dessa vez! - exclamou uma voz masculina atrás de mim, que eu logo
reconheci.
Virei para ele, com cara de tédio.
- Você de novo! - exclamei, ao ver o loiro alto arrogante que havia me ajudado da outra vez.
- Que ótima forma de cumprimentar o amor da sua vida! - ele soltou um riso sarcástico, e
revirei os olhos.
Fui para o lado da biblioteca que falava sobre a Teoria Geral da Evolução de Destin,
tentando despistá-lo, mas ele me seguiu até ali.
- Você não vai me dar uma chance de te conhecer melhor? - ele se aproximou, tentando
acariciar meu rosto.
- Você tá me perseguindo? Olha que eu sei muito bem me defender. - me desvencilhei de
seu toque, empurrando-o levemente.
- A princesa acha que consegue fugir de mim. - ele debochou, rindo.
- Quer pagar pra ver? - perguntei, levantando os punhos em sua direção.
- Ui, acho que vou passar a noite na Enfermaria hoje. - ele riu mais ainda, com o sarcasmo à
mil.
Dei um chute em suas partes baixas, o que fez ele se dobrar em dor. Aquele foi um ótimo dia
para eu usar meu tênis com spikes, mas isso não vem ao caso.
Joguei-o no chão, e prendi seu pescoço com meu antebraço. Meu joelho estava sobre sua
barriga, e ele começou a ficar roxo.
- Nunca subestime uma garota, palhaço. - cuspi as palavras nele, e me levantei.
- Você me aguarda, guria. - ele ainda estava no chão, mas apontava seu dedo em minha
direção.
- Vai fazer o que? Chamar os amiguinhos pra te ajudarem? - satirizei ele, dando meia volta.
Fui para outra prateleira, já pensando em sair dali, mas acabei encontrando um asiático
estranho que eu havia conhecido ontem.
- Ei! - chamei sua atenção, acenando pra ele. - Você é o Steven, certo?
Ele olhou em minha direção, parecendo um tanto envergonhado.
- Sim. - respondeu, mantendo uma pequena distância quando tentei me aproximar. - Você é
Natalie. - completou, mostrando que lembrava de mim.
- Eu mesma. - respondi, com um sorriso tremido no rosto.
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- Vi o que fez com Dylan. Achei admirável. - disse ele, se referindo ao loiro que apanhara
para mim.
- Ah, um bocó ele. - disse eu, dando de ombros.
- Completamente. - Steven revirou os olhos. - Bem, eu já tenho que voltar pro meu
dormitório.
- Te acompanho, já estava de saída mesmo.
Segui-o, até a entrada do jardim.
- Você não parece de muita conversa! - afirmei, olhando para ele que se mantivera em
silêncio durante o caminho todo.
Ele fixou os olhos em mim, respondendo.
- Prefiro a sabedoria do silêncio, e observar a beleza das pessoas.
Analisei ele, e sorri de canto:
- Você é uma pessoa excepcional. - Encarei-o, e ele se despediu de mim, beijando
educadamente minha mão.
***
Subi para o meu dormitório. Talvez as meninas tivessem ido para lá.
Entrei no quarto, boquiaberta. Quatro das cinco camas estavam normais, mas uma estava
completamente revirada: a minha.
A colcha da cama estava jogada de qualquer jeito, meu vestido para o baile estava exposto e
estirado na cama como se alguém já o fosse usar. As gavetas do criado-mudo estavam
abertas, e tinham alguns papéis jogados, ao lado de uma tesoura.
Abri o compartimento secreto da primeira gaveta. O diário ainda estava lá, para meu alívio.
Parecia que nada havia sido levado, mas tirando a bagunça, estaria tudo certo.
Que estranho.
Ouvi o som do chuveiro sendo desligado de dentro do banheiro.
- Ellen? Nicole? - perguntei.
Mas quem saiu do banheiro não era nem uma, nem a outra. Era Joanne.
- Você... - disse, percebendo o sentido que aquilo fazia.
- Eu também durmo aqui, sabia? - Ela respondeu, com a voz estranha.
- O que você fez na minha cama? - retornei, me sentindo vermelha de raiva.
- Nada. Quando cheguei já estava assim. - ela deu de ombros, jogando a toalha sobre a
cama.
- O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? - explodi de raiva, indo pra cima dela.
- EU JÁ DISSE QUE NADA SUA MALUCA! - ela respondeu, se desvincilhando de mim.
Por pouco não consegui atingir seu rosto.
- O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? - a porta se abriu repentinamente, e o rosto de
Mary Anne apareceu.
- Ela estava me atacando! - gritou Joanne, correndo para o outro lado do quarto.
- Natalie Chloe Dolman!! - Mary exclamou, dizendo meu sobrenome verdadeiro. Ela tapou a
boca com as pontas dos dedos, como se não pudesse deixar transparecer que sabia daquela
informação, mas logo se corrigiu. – Digo, Natalie Bonnet. São tantos alunos que acabo me
confundindo. Você vai pegar uma advertência. Ainda vou pensar num castigo para você. -
bufou ela, e senti seu olhar em chamas me incendiar por dentro. Ela olhou para Joanne, e
disse. - E você, mocinha, trate de não se meter em confusões nos próximos dias, ou a coisa
vai ficar muito feia pro seu lado.
Mary saiu batendo a porta, e Joanne desceu logo em seguida.
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12. O Baile
31 de dezembro, domingo.

- Finalmente... ano novo. - Nicole abriu o maior sorriso possível, tirando seu vestido rosa
claro do armário. Ele era todo rendado na parte de cima, com uma grande camada de tule
embaixo. Era bonito, e combinava mais ainda com seu salto nude da sola vermelha.
- Que seja um ano de paz. - disse eu, revirando os olhos. - Porque se piorar, eu fujo pra
Nárnia.
- Como você é pessimista. - Ellen riu, me dando um tapinha no ombro.
Já passava das oito horas da noite. A festa começaria só depois das nove, mas as meninas
eram apressadas.
Joanne saiu do banheiro depois de quase quarenta minutos lá dentro, deixando Ellen furiosa.
- Pensei que tivesse morrido lá dentro. - ela bufou, esbarrando nela quando foi para o
banheiro.
- Você não vai se ver livre de mim tão cedo. - ela fechou a cara, e foi se trocar. -
Infelizmente ainda serei obrigada a ver todo dia a cara de vocês. - ela fixou o olhar em Nick
ao dizer isso.
Nick arregalou os olhos assustada.
- Por que ela te odeia tanto? - sussurrei pra ela.
- Meu cheiro. - ela respondeu, como se tivesse saciado minha curiosidade, mas eu fiquei
apenas mais intrigada ainda. - É algo da família, todos temos um cheiro que só as narinas
mais sensíveis conseguem captar... O que é o caso da Joanne... Quando ela brigou comigo,
foi justamente por ter reconhecido o mesmo odor que ela sentiu quando alguém da minha
família fez algo à dela... Não sei direito o que... nem quem... Só que quando ela sentiu o
cheiro que exalava de mim... ficou fora de si.
- Nossa! - franzi o cenho, impressionada. - É como se você tivesse que carregar uma
maldição por causa da sua família.
- Exatamente... mas não me importo. - ela deu de ombros, fazendo pouco caso. - Joanne não
sabe... o que faz.
Me surpreendi com a calma dela e bons modos. Nicole era realmente uma pessoa
excepcional da cabeça aos pés.
Ellen saiu do banheiro. Nos aprontamos, e em menos de quinze minutos já estávamos todas
prontas.
Joanne saíra antes porque não estava suportando viver no mesmo ambiente que Nicole.
Penny, era praticamente seu capacho e virara a cara para nós só por causa da amiga. Coisa
de gente fresca.
Nick estava parecendo uma verdadeira princesa com seu vestido todo delicado da cabeça aos
pés. Seu cabelo já era curto, então dispensava qualquer tipo de arranjo.
Ellen estava com um modelo salmão, que lhe delineava cada curva de seu corpo. As
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madeixas cacheadas presas em um coque frouxo, deixando algumas mexas caídas.
E eu, mais simples do que elas, com meu modelo azul. Joguei o cabelo completamente para
o lado direito e fiz a maquiagem favorita de Catherine: olhos bem marcados em preto, e
lábios em vermelho forte.
- Achei interessante da diretoria dar como tema pra festa "cores". - Ellen disse, pegando sua
bolsinha de colo. - Começar um ano sem aquele branco todo sem graça será uma boa.
Assentimos, e Nick perguntou:
- Minha família está vindo... Passar o ano novo com eles... É um saco.
- Nick, Nick. - Ellen deu leves tapinhas na amiga. - Nós já sabemos que você ama seus
familiares.

***

Passava das 21h quando resolvemos descer para o Salão de Festas. Era um espaço enorme,
que ficava do lado de fora da escola. O Campus era tão grande que não sei como não me
perdi mais ainda nele. As famílias não paravam de chegar. Não vejo tanta graça em
comemorar a virada do ano em uma escola, mas já que diziam que as festas ali eram
lendárias...
As portas do salão eram de madeira envernizadas e estavam decoradas com flores
vermelhas. Do lado de dentro, um telão enorme apareceu, mostrando imagens de momentos
dos alunos na escola e frases de ano novo em várias línguas.
As mesas estavam envolta em círculos, que a faziam subir e descer, com cadeira e tudo.
Estranho, bizarro, mas interessante.
Uma pista enorme se anunciava na frente, com uma decoração de luz feita de peças de
bicicletas. Dava um aspecto misterioso e sombrio ao ambiente.
- Vocês querem sentar? - Nick perguntou, avistando uma mesa desocupada.
Nossos vestidos eram enormes demais para caberem em baixo da mesa.
- Por que essas mesas ficam balançando? - Perguntei, tentando não me concentrar no fato de
que a mesa ficava subindo e descendo lentamente quando nos sentamos.
- Faz parte da decoração. - Ellen respondeu, distraída.
Olhando ao redor, aquele Baile de Boas vindas me lembrava muito uma formatura.
- Ah... Não. - Nick exclamou, tentando se esconder atrás de mim.
- O que aconteceu? - perguntei, tentando achar o que a deixara inquieta.
- Minha... - disse, engolindo em seco. - Família.
Fixei os olhos na direção em que ela olhava. Uma mulher em postura mandona, com um
vestido luxuosamente lindo. Seus cabelos loiros muito bem penteados, com um olhar
profundo e significativo. Um menino pequeno estava à seu lado, com jeito de tímido que não
queria estar naquele lugar. Do outro lado, um homem na casa dos 40 anos, com a barba
cerrada, impecavelmente arrumado.
Eles se aproximaram de nossa mesa. A mulher encarou Nick com ar de desdém e disse:
- Você tem se alimentado direito? - seu tom era forçosamente maternal. Acho que ela não
era muito dada a sentimentalismos.
- Tenho sim... mamãe! - ela respondeu, baixando o olhar.
Ela voltou olhos para Ellen, que estremeceu de uma maneira como eu nunca pensara que
veria nela.
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E depois, direcionou seus olhos para mim. Mas quando o fez, havia um brilho diferente no
olhar. Ela aparentava surpresa, como se já me conhecesse, mas não esperasse me ver ali.
- Não vai me apresentar suas amigas? - perguntou a mãe de Nick, olhando fixamente para
mim.
- Claro. - Nick respondeu, fazendo pouco caso. - Essas são Ellen Underwood... e Natalie
Bonnet.
- Bonnet. - ela repetiu meu sobrenome, e percebi em seu tom de voz um certo deboche,
como se ela soubesse que na realidade eu era uma Dolman. – Nunca ouvi falar sobre essa
linhagem.
Assenti afirmativamente, envergonhada. O olhar da mãe de Nick me deixava constrangida.
O menino, provavelmente irmão dela, sentou-se ao meu lado na mesa, cabisbaixo.
- Filha, você está radiante. - o pai dela se pronunciou, quase fazendo uma reverência. Ele
tinha ótimos modos.
Nick sorriu em agradecimento, mas continuou quieta.
- Somos a Família Carpenter, de Del Louis. - ele disse, de um jeito lisonjeiro. - Sou Adolf
Carpenter. Filho legítimo do fundador de Del Louis. Esse é meu primogênito, Harry
Carpenter. - falou, apresentando o menino. - E minha esposa, Victoria Carpenter.
- Victoria? - disse eu, surpresa. - Nome bonito.
Esse não era o nome da Mascarada?
Bom, quem foi que disse que o livro da vida não pode ter dois personagens com o mesmo
nome?
Eles se sentaram conosco, até Mary Anne aparecer.
- Fique com a gente, querida. - a mãe dela anunciou, com um olhar arrogante.
- Não posso, mamãe. - Mary respondeu, tensa. Embora eu não conhecesse ela tão bem,
nunca tinha visto ela daquele jeito. Parecia intimidada. - Tenho que monitorar alguns
alunos.
- Que responsável. - Victoria Carpenter deu um sorriso de canto, meio sarcástico e disse. -
Você deveria seguir o mesmo exemplo, Nicole.
Nick abaixou o olhar, ficando vermelha de vergonha.
- Precisa aprender a agir como mulher. Já passou da idade de agir como se fosse uma
menininha. - completou Victoria, fazendo minha amiga afundar a cabeça em seus próprios
braços.
- Mamãe! - o pequeno Harry exclamou, cutucando a mãe no ombro. - Quero ir no banheiro.
- Você já tem idade suficiente pra ir sozinho. Não espere que eu faça isso por você também.
- ela deu de ombros, e o menino levantou da mesa puxado pelo pai.
- Não precisa exalar simpatia na frente das amigas da sua filha. - o pai de Nick disse,
levando o menino ao banheiro.
Ellen me cutucou de leve, me entregando um guardanapo dobrado. Era um bilhete.
"A Mary Anne me pareceu tão simpática, de repente. "
Ri. Pelo menos uma das filhas tinha pra quem puxar.
Tá explicado porque Nick não gosta da família.

***
31 de dezembro, 23h36min.
90
Era quase meia noite quando encontrei Bernardo. Nick tinha saído com os pais e o irmão.
Ellen encontrou sua família também. Nós combinamos de nos encontrarmos perto da porta
de saída de emergência quando faltasse dez minutos para a virada.
Estranhamente, eu não havia visto Paul ou Anna ainda. Sabia que ela iria, certamente, para
socorrer caso algum aluno precisasse. Esperava que ninguém morresse naquele baile. E
Paul, bem... Esse deveria no mínimo aparecer, já que era meu protetor.
Mas eu sei que você não quer ficar aqui me ouvindo falar dos meus protetores que deveriam
estar aqui e não estão. Aposto que querem ouvir sobre Bernardo, e o quanto ele conseguia
ficar cada vez mais encantador. Ele usava um terno de linho azul marinho, com uma blusa
de botões por baixo, na cor azul claro, que combinava perfeitamente com meu vestido.
De longe, até parecíamos um casal.
Não que fosse uma má ideia...
- Como tão bela jovem pode estar desacompanhada em uma festa como essa? - ele sorriu
lisonjeiro, me oferecendo uma rosa vermelha que trazia em mãos.
- Não encontro minha família. - justifiquei, me referindo à Paul e Anna como as pessoas
mais próximas de uma família que eu já tive. - Você estava procurando alguém?
- Estava. - respondeu ele, me analisando. - Mas acabei de encontrar. É uma ruiva simpática
que me fez ter olhos só para ela desde o primeiro momento em que a vi. - ele tocou minha
face com o polegar.
Ah, me beije logo. Gritei por dentro, mas meu bom senso me impedia de tomar qualquer
atitude do tipo.
- Quer dançar? - perguntei, me agarrando em seu pescoço.
- Ei, o convite faz parte da função do homem. - respondeu ele, brincalhão.
- De onde eu venho, uma mulher de verdade não tem medo de tomar a iniciativa. -
concluindo a frase, o puxei pelo braço para o meio da pista.
Tinha ainda uns dez minutos antes que tivesse que voltar para encontrar as meninas.
- Não acredito que no mundo mágico também tem música eletrônica. - abri um sorriso, ao
escutar uma música do Calvin Harris começar a tocar. -
We'll be coming back for you one day.
Cantarolei a única parte que sabia. Bernardo passava os braços pela minha cintura.
Acho que já vi essa cena antes...
- O ano novo já está quase chegando. Quer fazer algum pedido? - gritei para ele, me
divertindo com a música.
- Não preciso pedir nada. - ele respondeu, sorrindo. - Ter você aqui comigo já é mais do que
suficiente.
Como ele consegue fazer com que eu me sinta tão adolescente apaixonada, se mal o
conheço?
Encarei seus olhos, que pareciam duas piscinas de tão intensamente azuis. Não teria medo de
me afogar nelas. Deslizei meu braço esquerdo por todo seu peitoral, fixando minha mão em
suas costas. Com a outra mão, o puxei para mais perto de mim.
Não seria nada ruim começar um ano desse jeito. Pensei, mas me afastei dele quando braços
fortes me puxaram para trás.
- Ei, o que você está fazendo? - gritei, me debatendo com a pessoa. Era Paul. Tinha que ser.
- O que pensa que está fazendo, mocinha? - perguntou ele, sussurrando em meu ouvido,
enquanto me empurrava para longe dali.
- Não estava fazendo nada. - Respondi, cruzando os braços na frente dos seios. - Pelo menos
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não, até você chegar.
- Já disse para você parar de fazer tantos... amigos. - retrucou, parecendo constrangido em
ter que falar sobre aquele assunto comigo.
- O que há demais em beijar alguém? Eu não...
- Já te disse, mas parece que você é cabeça de vento demais para absorver isso. - ele me
interrompeu, parecendo se estressar. - Qualquer pessoa nessa escola pode ser o Filho de
Callum. Parou para pensar nisso, ou tá difícil de entender? Não quero te ver acompanhada
de nenhum menino, sozinha. Estamos entendidos?
Fechei os olhos, tentando me acalmar. Paul só quer o seu bem. Uma parte dentro de mim
gritava, mas outra teimava o contrário.
Ele quer te aprisionar. Não quer te ver feliz.
- Tudo bem! - respondi, decidindo encerrar aquele assunto de uma vez. - Posso encontrar
minhas amigas, pelo menos?
Ele assentiu, e me agarrou pelo braço esquerdo.
- Te levo até elas. E vou deixar bem avisado.
Encontramos as duas, andando juntas. Nick abriu um sorriso ao me ver, mas logo o desfez,
percebendo minha cara de infelicidade.
- Estávamos te procurando... Natalie! - ela anunciou, se aproximando de mim.
Paul soltou meu braço, puxando Ellen, depois Nick para avisar a elas sobre seu sermão.
Nada de me deixarem à sós com nenhum garoto.
Elas se sentiram intimidadas. A presença dele era ameaçadora às vezes, embora Paul fosse
uma pessoa boa. Não entendia o que estava acontecendo com ele justamente aquela noite.
- Não se preocupe, Natalie! - Ellen anunciou, assim que Paul saiu. - Nós daremos um jeito
para você e seu namoradinho. Não há nada que um pouco de magia não resolva.
Ele não é meu namorado. Pensei, jogando a cabeça para trás.
Fomos para fora do salão de festas, onde boa parte dos convidados estavam: nos jardins da
escola. Este estava todo decorado em vermelho e azul. Era quase meia-noite, e eu ainda não
tinha reencontrado Bernardo para me desculpar.
Quando a contagem regressiva começou, os fogos começaram a subir das flores.
- DEZ! - todos gritavam em uníssono.
- NOVE! - os fogos já atingiam o céu, formando lindas explosões .
- OITO! - As luzes irradiavam, e no alto, formavam as iniciais da escola.
- SETE! - A imagem começou a se alterar...
- SEIS! - No meio de toda aquela explosão de cores, faíscas começaram a cair do céu.
- CINCO! - Aos meus pés, pontos de cores azuladas e vermelhas formavam uma nova frase.
- QUATRO! - As meninas olhavam para cima.
- TRÊS! - Mantive meu olhar no chão.
- DOIS! - A nova frase estava formada.
- UM! - E dizia "Salve as Meninas de Seda"
Todos começaram a se aglomerar ao meu redor, e perdi de vista os pontinhos coloridos.
Entrei no abraço coletivo, mas não estava tão feliz quanto eles.
Saí dali. Quem estava me mandando essas mensagens? Refleti, observando tantas criaturas
mágicas juntas. Como eu nunca tinha visto antes. E como para responder a minha pergunta,
num ângulo de 45º, encontrei uma garota com as vestes toda rasgadas, uma máscara enorme
lhe cobrindo a face.
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O que a Mascarada queria dessa vez?
E, sem nem pensar duas vezes, fui em sua direção.
Não fuja! Pedi mentalmente, vendo que ela se afastava.
Não fuja. Preciso entender o que está acontecendo de uma vez por todas.
Ela fez o que sempre fazia quando estávamos em público. Percebi, quando fui me
aproximando e ela se afastando, mas sem desaparecer. Parecia que apenas queria que eu a
acompanhasse para um lugar onde ela poderia conversar comigo à sós.
Entramos no canteiro do jardim. As flores haviam sido enfeitiçadas para mudarem de cor
conforme o nosso humor, pelo que Nick me dissera.
Ficavam vermelhas para casais apaixonados, pretas para pessoas que não estavam em seu
melhor dia, azul para aqueles que dominavam a paz interior, e amarelas para os
ansiosos. Quando passei, uma fileira de flores adquiriram a coloração verde, de esperança.
Talvez representasse a esperança que eu tinha de que todo o pesadelo que a minha vida se
tornara acabasse. Quanto tempo ainda me restaria?
- Aqui já não está bom? - perguntei, quando passamos pelas rosas que apresentavam um
pontinho de luz que ficava piscando.
Ela me encarou daquele jeito irritante que só ela conseguia fazer. Não falava nada, não agia,
nada. Só me observava.
- Ei, fale alguma coisa! - repliquei, com vontade de tacar o primeiro objeto que visse, nela.
Mas me lembrei que não seria muito possível. Ela estava morta, qualquer coisa que eu
tacasse, perpassaria por seu corpo como se não fosse capaz de lhe causar cócegas.
Ela respirou fundo, e pude ouvir o som de suas narinas puxando o ar para seus pulmões.
Mortos respiram? Me perguntei, confusa.
- Por que você me traz pra esses lugares isolados? - perguntei, impaciente. - Se só eu
consigo te ver, não teria tanta importância conversarmos aqui ou em qualquer outro lugar.
Fiz uma pausa quando vi que ela me observava com curiosidade.
- Em primeiro lugar - começou ela, com aquela voz suave e distante. - Eu não te trouxe aqui.
Você me seguiu porque a sua curiosidade sempre foi maior do que o seu medo.
Entortei o lábio, percebendo que ela tinha razão em cada ponto.
- Em segundo lugar - continuou, colocando as mãos atrás do vestido rasgado e sujo. - As
pessoas achariam no mínimo estranho verem uma jovem fée falando para o vento lhe
responder.
Sei um riso de canto. Não tinha visto a situação por esse lado ainda.
- Tudo bem. Agora que está justificada - disse eu, ajeitando a saia de meu vestido. - Pode me
explicar o que foi aquele aviso? Salve as Meninas de Seda - fiz um gesto de aspas com as
mãos ao reproduzir as palavras exatas do recado que ela havia me mandado em forma de
restos de fogos.
- Gosto de ser criativa. - ela retornou, assumindo postura de general. - Teria que ser algo que
só você pudesse ver, e fizesse com que percebesse minha presença.
- Então esse é seu jeito de ser criativa? - franzi o cenho. - Pelo menos ninguém teve que
morrer dessa vez.
Ela levantou um olho, surpresa pela minha ignorância.
- Eu não contaria com isso.
- O que quis dizer? - fiquei perplexa. Ah, não.
- Você entendeu. - ela replicou, mas manteve sua paciência. - Eu estou sempre com você.
Mas só posso aparecer quando algo ruim acontece. Ou está para acontecer.
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Suas palavras me causaram um arrepio, eriçando cada pelo de meus braços.
- Pera, alguém vai morrer no ano novo? - perguntei, perplexa.
Agora fod... de vez.
- Vai. E a vítima já está marcada. - ela respondeu, virando o rosto para o lado. Sua face foi
incendiada por uma rajada de luz, demonstrando um brilho único. Nunca havia visto nada
parecido em minha vida.
- Marcada? - questionei. - Isso quer dizer que a vítima já foi escolhida? - arregalei os olhos
mais ainda, começando a sentir falta de ar.
- Já. E ela foi marcada. No pulso. Só por isso eu estou aqui, Natalie. - ela fungou, se
apressando para terminar. - Seja lá quem esteja fazendo isso, é alguém que marca à todas as
vítimas no pulso horas antes de sua morte. A vítima não percebe isso. Quando está viva, é
praticamente indolor. Ela só aparece quando a pessoa morre.
- Mas por que uma marca? - respondi, e uma súbita ideia me veio à mente. - E se a pessoa
que faz essa marca, tem apenas a intenção de deixar isso como um aviso para o assassino
saber a quem matar?
- É justamente isso que eu quero te dizer. - ela se apressou um pouco mais. - Me escute com
toda a atenção. A marca no pulso é o que faz com que eu apareça pra você. Eles sabem que
somente com a minha ajuda você vai conseguir descobrir tudo. Foram eles quem trouxeram
meu espírito de volta. Eles querem que você receba minha ajuda...
- Por que? Pra que? Se eu posso derrotá-los desse jeito, por que receber a sua ajuda é o
objetivo deles?
- Porque quando você está comigo, você se torna mais fraca. - ela engoliu em seco, e pude
sentir a amargura em seu tom de voz. - Você sempre foi meu ponto fraco. E eu sou o seu. -
sua voz parecia embargada em emoção.
- Por que meu ponto fraco? Qual é essa nossa ligação? - questionei, vendo seu rosto ficar
mais pálido.
- Somente duas garotas ligadas pelo mesmo laço de sangue, serão capazes de destruir a
maldição. - ela respondeu, como se aquela resposta já tivesse sido planejada antes. - Mas se
uma não sobreviver, se tornará o ponto fraco da outra, até que juntas, encontrem um jeito de
se unirem pela eternidade. - ela fez uma pausa. - É isso o que diz a profecia. Você tem que
salvar as Meninas de Seda.
- Mas eu não sei o que fazer. - repliquei, sentindo uma lágrima gelada escorrer por meu olho
esquerdo.
- Você saberá o que fazer, quando a hora certa chegar. - ela fungou, tirando um papel
dobrado que estava em seu sapato. - Mas até essa hora chegar, você terá que aprender a
desvendar todas as pistas sozinha. Não poderei ficar aparecendo sempre, quanto mais
estamos em contato, mais nos enfraquecemos.
- Mas eu não sinto diferença nenhuma...
- No começo, não mesmo. Mas logo você perceberá o quanto a minha presença só tem feito
mal a você. - ela me olhou. - E a última coisa que eu preciso te dizer, antes que sua presença
enfraqueça ainda mais meu espírito - ela estava quase transparente agora - É que Callum tem
um cúmplice. E esse sim, vai fazer de tudo para se aproximar de você. E é exatamente com o
cúmplice de Callum com quem você deve se preocupar agora.
Ela colocou o papel no chão. Acompanhei sei movimento, e quando meu olhar voltou para
cima de novo, ela não estava mais lá.
94

***

01 de janeiro, segunda-feira

O bilhete era uma pista. Bem, pelo menos eu achava que fosse.
No canto superior, tinha um desenho. Era uma garota com os olhos queimados. Não poderia
ser Catherine, pois no desenho a garota era morena.
E uma frase, que não fazia o menor sentido.
"Uma marca no pulso como aviso, olhos queimados como registro"
Quem sou eu para questionar a garota que me conhecia melhor do que eu mesma.
A madrugada de virada de ano estava fresca, com uma brisa gostosa.
Depois dos fogos, a balada continuou, e ainda está rolando. Mas como eu não estou muito
no clima para festas, decidi vir para o quarto mesmo e tentar desvendar um crime antes
mesmo de acontecer.
A Mascarada só aparecia pra me deixar ainda mais confusa e intrigada. Sabia pelo que meus
protetores tinham falado que Victoria, ou seja qual fosse seu nome, era minha irmã, algo
assim. Seria quantos anos mais velha?
Teria sido bom ter conhecido à ela enquanto ainda estava viva. Deveria ter sido uma mulher
e tanto.
O estranho de se estar num cômodo sozinha na madrugada, é que qualquer ruído se torna um
som terrível. Lá fora, observando pela janela, podia ver um aglomerado de pessoas
festejando. O som não era alto o bastante para chegar até meu quarto.
Graças a Deus. Preciso dormir.
No corredor, pude ouvir o som de passos e vozes em sussurros entrando nos quartos
vizinhos. Deitei na cama, mas não consegui dormir.
Rolei de um lado para o outro, torcendo para que minhas amigas aparecessem naquele
momento. Nunca desejei tanto ter para quem contar tudo o que estava acontecendo.
Apaguei as luzes e peguei uma coberta. Minha cabeça estava num turbilhão de emoções.
No toilet, o chuveiro começou a pingar. Nunca pensei que o som de uma gota caindo na
banheira pudesse ser tão alto.
Não estava incomodando de início, mas depois de alguns minutos começou a pingar mais
rapidamente.
Droga de chuveiro, viu.
Levantei, e abri a porta do banheiro. Um cheiro forte começou a inalar pelas minhas
narinas.
- Ah, não! - exclamei.
Já abri esse cheiro antes. E nenhuma da vezes veio algo bom depois disso.
Apertei o interruptor, e a confirmação do que eu pensara se concretizou diante de meus
olhos: eu não precisaria mais tentar desvendar o crime. Ele já tinha acontecido, e foi com
uma de minhas colegas de quarto.
95

13. Outro assassinato acontece

A cena que eu vi, embora não tivesse sido da mais agradáveis, era algo que havia se tornado
normal para mim nas duas últimas semanas.
O corpo estava jogado na banheira, com um profundo corte em sua testa, de onde escorria
uma linha fina de sangue. Em seu pulso, estava a marca da morte. Meu nome. Como se já
não bastasse ela ter sido assassinada no banheiro do nosso quarto e eu ter sido a primeira a
encontrá-la.
A goteira de água caía ao lado de seu corpo. Aquele cabelo loiro eu reconheceria em
qualquer lugar...
Não, não era Nicole quem estava ali. Deus me livre que fosse. Não suportaria a perca de
mais uma pessoa querida.
A garota assassinada era Penélope. A melhor amiga de Joanne, e grande nojentinha. Ela
nunca teve tanta importância pra mim. Nunca mesmo. Era só o pau mandado da Jô, e
burrinha por natureza.
Senti pena dela por um instante. Era bonita, corpo de modelo desnutrida e feição de quem
estava sempre com nojo das outras pessoas. Nunca foi muito boa, mas eu também não tivera
a oportunidade de conhecê-la. Nem se eu quisesse.
Sai do quarto, e desci o tobogã. Precisava tomar um pouco de ar para pensar no que eu iria
fazer.
Claro que a culpa não tinha sido minha, mas Joanne me viu subir quando não estava mais
disposta a ficar na festa.
Cruzei o saguão, e encontrei Mary Anne. Ela estava cabisbaixa, e parecia chorosa.
- O que aconteceu? - perguntei, tocando-lhe o ombro.
Ela ergueu os olhos pra mim, me fuzilando.
- Não é da sua conta o que acontece na minha vida pessoal. Trate de não tentar meter o
dedelho onde não é chamada, Senhorita Dolman.
Ela pronunciou meu sobrenome com grande desdém, e saiu para o outro lado do saguão. Ela
sabe sobre mim. Isso é preocupante. Deveria avisar Paul ou Anna? Ou deixar rolar?
É cada doido que me aparece, viu.
Consultei o relógio do celular. 2h54 da madrugada da virada. Ainda estava cedo demais para
deixarem os festejos.
Sai para fora da escola, indo ao salão de festa. Achei Nicole entediada com sua família.
Puxei-a de lado, sussurrando em seu ouvido:
- Preciso da sua ajuda.
Ela arregalou os olhos, mas me acompanhou.
- O que houve? - perguntou, levando uma mão no queixo em preocupação.
Expliquei toda a situação. Nossa colega de quarto assassinada, meu nome em seu pulso.
Ela levou as mãos aos lábios, como se fosse vomitar.
- Vamos até nosso quarto. Preciso ver o corpo e a gente pensa em que fazer. - ela respondeu,
apressada. - Joanne vai achar que fomos nós.
Notei em seu semblante uma enorme preocupação, e também pena pela morte. Nick não
consegue sentir raiva de ninguém por muito tempo.
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- Ou pior. - respondi, já subindo com ela as escadas. - Ela pode querer vingança.
Abrimos a porta do quarto, mas o que eu não poderia esperar, era que encontraria o
assassino tão cedo.

***

- Aaaaaaaaah! – Nick gritou, escondendo seu rosto às minhas costas.


Prendi a respiração, sentindo meu peito inchar. Soltei todo o ar contido de uma vez só, e
encarei o ser misterioso. Ele estava de costas para a porta, mas percebi que deu uma leve
estremecida quando acendemos a luz. Estava vestido de preto dos pés à cabeça, com um
capuz cobrindo-lhe as madeixas. Ele virou metade de seu rosto em minha direção, seus olhos
de um castanho claro profundos, mas o restante do rosto, coberto por uma máscara.
Esse povo que gosta de máscaras, viu.
Ele estava de pé, ao lado da cama de Penélope, uma grande mancha de sangue escorria da
colcha.
Do lado de fora, o som de passos vindo na direção daquele dormitório se tornavam cada vez
mais audíveis. Ainda era de madrugada quando tudo estava acontecendo, então muitas
garotas já haviam ido dormir, embora a maioria tivesse acordado pelo barulho do grito de
Nick.
Legal, mais muvuca. Eu e Nick estamos ferradas, isso sim.
- O que aconteceu aqui? - disse bem alto uma nojentinha que havia acabado de subir as
escadas. Ela carregava nas mãos os saltos, e na cara, uma expressão perplexa. Eu e Nick nos
viramos para trás, e vimos meia dúzia de rostos curiosos com o que havia dentro do quarto.
Algumas conseguiram espichar os olhos e quase vomitaram ao conseguir ver o que tinha lá
dentro. Na realidade, nem eu tinha prestado atenção ainda.
Virei para o lado de dentro do quarto. O encapuzado não estava mais lá, mas a janela estava
aberta, de onde provavelmente ele tinha fugido.
Mas que filho de uma bela mãe, hein.
Olhei para a cama de Penélope, e entortei a cara. Agora eu entendia o porquê dele ter
voltado, precisava terminar o serviço. O corpo dela estava jogado na cama, o sangue jorrado
para todo lado, mas o que mais me assustava não era nada daquilo, e sim um outro detalhe:
seus olhos estavam abertos, mas não havia pupila alguma, apenas um orifício preto, como se
seus olhos tivessem sido queimados. E acima da cabeceira, escrito à sangue estavam as
palavras: Feliz ano-novo.
Quanta ironia. As meninas começaram a entrar no quarto, como se aquilo tudo fosse um
grande atrativo.
- O que vocês fizeram? - ouvi uma voz no fundo, e estremeci. Da última vez que ouvi isso,
tive que fugir do meu mundo para outro que deveria ser melhor, mas até agora só estava se
demonstrando mais perigoso ainda.
Respirei fundo antes de dizer qualquer coisa. Se eu começar a gaguejar dessa vez, aí sim tô
ferrada.
- Nós acabamos... de chegar. - respondeu Nick, parecendo manter a calma. - Ela já estava...
assim.
- Ah, claro. - respondeu outra, sarcasticamente. - ela apareceu assim do nada. Conta outra,
Nicole.
Com todo aquele burburinho que tinha se formado, Mary Anne logo apareceu.
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Merda! pensei, ao ver o corpo esguio da loira alta se aproximando. Todas deram passagem
para que ela entrasse no quarto, claro, não havia uma menina que olhasse para Mary e não
sentisse medo dela, pelo menos não as com bom senso.
Ela lançou um olhar ameaçador em nossa direção, e puxou Nick pelos cabelos:
- Eu não te disse para não se meter em mais confusões? - gritou com a irmã, arregalando os
olhos.
- Eu não fiz... nada. - Nick tentou se defender, com os olhos marejados de lágrimas.
- Ei, parem já com isso. - tentei me meter no meio das duas, mas fui afastada por uma Mary
Anne completamente alterada. Se pelo menos Ellen estivesse ali, saberia controlar a
situação.
Mary soltou a irmã, e respirou fundo contando até três. Depois de voltar ao nível de
arrogância normal, vociferou:
- O que foi que aconteceu aqui?
- Quando entramos no quarto - respondi, tentando manter a calma. - Havia um homem
encapuzado. Ele fez isso com ela, nós não sabemos mais nada.
- E onde está esse homem? - ela perguntou, apontando o dedo na direção da minha garganta.
Engoli em seco, mas respondi:
- Fugiu. Provavelmente, pela janela.
Mary Anne foi em direção à janela, e pareceu ter encontrado algo.
- O que você... achou? - Nick perguntou, se recompondo.
- Pegadas de um sapato masculino. - Mary respondeu, misteriosa. - E um pedaço de pano
preto com sangue. - completou, apontando o pedaço de retalho para nós.
- Agora acredita em nós? - perguntei, colocando as mãos na cintura.
- Vou levá-las para a sala do diretor. - ela consultou o relógio que pendia no criado mudo da
irmã. - Mas só de manhã. Vocês precisam depor. - e alterando seu tom de voz, deu um berro
para as meninas que observavam a cena. - VÃO PARA O QUARTO DE VOCÊS, AGORA!
As meninas saíram apressadas.
- Mais uma coisa. - questionei ela, antes de que saísse do quarto. - Onde iremos dormir? -
apontei para a cama de Penny, e a imagem aterrorizante que seria dormir junto com uma
morta.
- Claro. - Mary disse, como se só naquele momento tivesse notado aquilo. - Vocês duas,
peguem só o que for essencial, e venham comigo para a Enfermaria. Vou falar para Anna
deixar vocês duas passarem a noite lá. - e olhando ao redor, ela concluiu. - Tem uma outra
garota, certo?
Assenti, só agora me lembrando de Joanne. Não queria estar por perto para ver a reação dela
quando descobrisse o que tinha acontecido à amiga.
- Joanne. - respondi, olhando para baixo. - Você vai contar para ela?
- Alguém tem que fazer isso, né! - Mary respondeu, áspera. - Vão logo, não tenho a
madrugada toda pra vocês. - ela nos apressou. Nick abriu a primeira gaveta de seu criado-
mudo e tirou um celular e algumas coisas básicas. Fui até minha cama, e abri a gaveta do
criado-mudo.
Havia uma pequena gota vermelha pela superfície da gaveta. A pista da Mascarada estava
por cima, como se os olhos queimados da garota do desenho de alguma forma, estivessem
fixos em mim. As madeixas escuras na altura dos ombros, e uma cara pálida. Abaixo, a frase
"Uma marca no pulso como aviso, olhos queimados como registro".
Sentei na borda da cama, refletindo sobre aquilo. Mas é claro...
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- Você não me entendeu? - vociferou, Mary Anne, chamando minha atenção. - É para ser
rápida.
Assenti, abrindo o fundo falso. Apalpei todo o espaço, mas ele estava vazio. Droga, droga,
droga, droga, droga.
- Ah, eu perdi uma coisa! - gaguejei, já sentindo meu coração palpitar. Da última vez que o
diário sumira, estava com Anna. Dessa vez, eu tinha a certeza de que ela não tinha
absolutamente nada a ver com aquilo.
Ele havia levado o Diário de Sarah Dolman, e eu não fazia a mínima ideia do quanto aquilo
poderia ter ferrado com minha vida.
Não tinha ideia pelo menos ainda. Fechei a gaveta, e saímos do quarto, e eu, com o coração
na mão e a cabeça à mil, por ter começado o ano da pior maneira que eu poderia ter
imaginado.
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14. Um convite para a morte

O sol já chegava na Enfermaria, batendo nas cortinas da janela. Estar naquele lugar era tão
deprimente quanto começar o ano com um corpo mutilado na cama ao lado da sua no
dormitório.
É, meu caro, a vida tem dessas, e infelizmente no meu caso, eu já estava envolvida demais
com toda aquela história pra tentar normalizar alguma coisa.
Virei para o criado-mudo, tentando encontrar o desenho que eu havia levado. Meu celular
estava perdido em algum canto da escola, mas pelo menos meu relógio de pulso estava ali.
Todo banhado a prata com uma pedrinha do meio. Herança que minha mãe deixou, por isso
eu não largava ele por nada.
Nick já havia levantado, e estava arrumando seu leito.
- Feliz ano novo - sussurrou ela, entortando o lábio, sabendo que não estava sendo um ano
Feliz, mesmo tendo começado à sete horas. Mas já valia sua intenção.
- Obrigada. - disse eu, me espreguiçando. - Que o ano todo não seja um reflexo do que
aconteceu na virada.

***

Anna estava esperando a nós duas no setor administrativo da Enfermaria. Ela ficava ótima
com aquela roupa inteiramente branca e o cabelo preso em um coque.
- Nós removemos o corpo do quarto. - ela anunciou, me entregando um prontuário. -
Avisamos os pais da garota. O pai pelo menos me aparentou estar arrasado, não posso dizer
o mesmo sobre a mãe dela.
- E Joanne? - perguntei, receosa. Elas eram muito amigas e ambas não gostavam de mim.
Seria mais que natural que ela ficasse arrasada, ou no mínimo querendo fazer de mim e Nick
pedacinhos.
- É isso o que me preocupa. - disse Anna, alisando o queixo.
- Ela não sabe... ainda? - Nick questionou, esfregando os olhos com o dedo indicador.
- Pelo contrário. - Anna nem hesitou ao responder. - Ela ficou sabendo, claro. Quando ficou
cansada da festa, quis ir para seu quarto, mas não deixamos. Ela quis saber porque, e...
bem...
- Vocês deixaram ela ver o corpo?
- Não. Mas contamos pra ela. - Anna bateu as unhas dos dedos no balcão, como se tentasse
encontrar um modo de dizer aquilo. - Ela agiu com uma completa indiferença.
- Indiferença? - repeti a última palavra, como se seu significado tivesse fugido da minha
mente. - Ela não deu pití nem nada?
- Não. - Anna respondeu, erguendo os ombros. - Suas palavras exatas foram "Que pena", e
pediu que arranjássemos um lugar para ela dormir. Apenas.
Meu queixo caiu, não fazia ideia de que ela pudesse ser tão fria daquele jeito. Bem, vindo da
Joanne, não há nada que eu pudesse duvidar, mas uma reação daquelas diante a morte da
melhor amiga, era de surpreender qualquer um.
Deixamos a Enfermaria da escola, e encontramos várias garotas que cochichavam quando
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passávamos.
- Elas deveriam pelo menos... disfarçar um pouco. - Nick comentou, quando entramos no
refeitório. Vimos Amanda Luporini em uma mesa vazia, o de sempre, e fomos à seu
encontro.
- Vai ser difícil eu desejar feliz ano novo pra vocês duas depois do que aconteceu. - Ela
disse, assim que nos sentamos no banco ao seu lado.
- Acho que a escola inteira já está comentando sobre isso. - Disse eu, fechando os olhos de
raiva, e abri-os grotescamente. - Eu não tenho mais forças pra lutar.
As duas nada comentaram. Passei os olhos lentamente por cada canto do refeitório que eu
conseguia alcançar. Não via Ellen desde a virada do ano.
- Será que aconteceu alguma coisa à ela? - me perguntei em voz alta, e Amanda respondeu:
- Não se preocupe, Ellen deve estar bem. - ela virou a página do jornal, e só então me
lembrei de que ela podia saber o que se passa dentro de uma pessoa só de olhar para ela.
- Espero que esteja mesmo. - pestanejei, olhando para baixo. Nick parecia querer perguntar
do que estávamos falando, mas deve ter entendido, pela falta que Ellen e seu humor faziam.

***

Paul estava irado com o rumo que as coisas estavam tomando. Primeiro, era o filho de
Callum. Agora, como se não bastasse, tinha o cúmplice dele também.
- Vocês duas precisam ir para o quarto de vocês, mas só para pegarem coisas que realmente
vão precisar nesse primeiro momento. - ele disse, quando nos acompanhou Até o dormitório
feminino. - Todo cuidado será pouco agora.
Entramos no quarto que exalava o cheiro terrível do assassinato. A lembrança do assassino
face a face comigo me fazia estremecer por dentro, e ficar completamente arrepiada por
fora.
Sentei na minha cama, mas percebi algo fora do lugar. O travesseiro estava completamente
virado do avesso. Apalpei ele, para deixá-lo mais macio, mas de dentro saiu um papel.
Era timbrado, e em letras garrafais. Parecia um convite, muito bem elaborado e perfumado.
Virei-o, lendo o que estava escrito no verso.
Arregalei os olhos. Aquilo era estranho.
Não era um convite para casamento ou coisa do tipo. Era um convite para a morte.
Arrumei uma pequena maleta, apenas com algumas roupas e o papel timbrado. Aquilo era
uma pista e tanto. Paul veio em minha direção, e sussurrou em meu ouvido:
- Guarde o diário na mala.
- Claro né. – respondi com firmeza, mas estremecendo por dentro. Antes que ele se virasse,
puxei-o pela manga da camisa. – Só tira uma pequena dúvida. – fiz a linha inocente, e
perguntei – O quão ferrada eu estaria se eu perdesse o diário? Só por suposição mesmo.
- Muito. Demais, sua vida praticamente depende disso. – ele respondeu, revidando meu
olhar seriamente. – Tenha em mente que só o diário pode te ajudar a quebrar a maldição. Se
você o perder, é melhor rezar para que não caia nas mãos do inimigo.
- Por que? – questionei, ainda me fazendo de boba. – Se só uma Dolman consegue abri-lo,
então ele não poderia fazer nada...
- Não poderia abri-lo. – ele me interrompeu, parecendo irritado. – Mas certamente tentaria
destruí-lo. E caso conseguisse, aí sim você estaria mais ferrada do que já esteve até esse
momento. – ele me deu as costas, e disse – Agora pare com essas suposições. Pegue o diário
e o esconda bem.
Assenti, forçando um sorriso de canto, enquanto um único pensamento tomava conta de
mim. Merda! Merda, merda, merda!!
101
O ano não poderia ter começado mais lindo e maravilhoso, e fiz uma promessa a mim
mesma: caso eu sobreviva até a próxima virada de ano, não vou comemorá-la. Pensar no
futuro me deixava insegura e incerta.
Estava quase terminando minha maleta, quando Joanne apareceu à porta. Engoli em seco,
sem saber se deveria perguntar alguma coisa para ela, ou dizer alguma palavra que pudesse
servir de consolo. Mas ela parecia bem demais para alguém que tinha perdido uma pessoa
querida, ou que pelo menos eu supunha que fosse para ela. Nunca dá para saber o que se
passa na mente de Joanne, a menos que se tenha poderes de clarividência.
Nesse caso, acho que eu ficaria doida se tivesse que ler uma mente tão perturbada daquele
jeito.
- Não precisa ficar olhando para mim. – ela disse, com aquela voz de menina esnobe
engasgada. – Até parece que nunca viu. – foi para sua cama, e pegou algumas joias na
primeira gaveta.
- Você está bem? – perguntei, vendo ela se fazer de indiferente ao que acontecera. A cama
ao lado da sua, era a de Penny. A parede fora coberta com uma lona preta, e o espaço estava
isolado. O cheiro ainda estava forte, por isso Paul dissera para sermos rápidas, e o quarto
estava praticamente interditado.
- Isso interessa pra você? – ela perguntou, dando uma sonora gargalhada. – Estou bem, por
que não estaria? Viu, isso fez alguma diferença na sua vida? Não, agora pare de encher o
saco e continue a arrumar essa sua malinha. – ela falou com desdém, jogando o cabelo para
trás.
- Por que não estaria? – repeti, boquiaberta. – Bem, talvez pelo fato de que a sua melhor
amiga foi assassinada na madrugada de hoje. Você tem a mínima consciência disso, sua
cabeça de vento estabanada?
Ela olhou para a lona, como se só naquele momento tivesse notado a falta de Penélope. Senti
seu olhar pesar por alguns segundos, como se ela estivesse considerando a possibilidade de
demonstrar algum tipo de sentimento pelo ocorrido. Mas ao contrário, ela fuzilou-me com os
olhos, e retornou:
- É uma pena que isso tenha acontecido. Mas não vou sofrer por ela, cada um tem o fim que
merece. – ela deu de ombros, e me surpreendi ainda mais por sua atitude. – Mas da próxima
vez, espero que esse Assassino melhore o alvo. – ela me encarou, e percebi que se tivesse
uma metralhadora naquele momento, ela não hesitaria em usar em mim.
Deixamos o quarto, e eu fiquei abismada com tudo o que tinha saído da boca de Joanne. Não
imaginava que ela fosse tão sem sentimentos daquele jeito a ponto de não dar a mínima para
a morte de sua melhor amiga. Do jeito que era, talvez tenha ficado aliviada com o
acontecido, isso sim.
- Natalie... – Nick me chamou, puxando-me delicadamente por minha blusa. – Lembra
daquela briga... que a Joanne puxou comigo sem eu ter feito... nada?
Assenti, quase sentindo um desespero por ela falar tão pausadamente. As vezes dava uma
agonia no peito, mas Nick tinha problemas respiratórios que a faziam perder o fôlego
facilmente. Era isso, ou algo psicológico.
- Será que ela está... por trás disso tudo? – ela completou, como se nem mesmo ela quisesse
acreditar naquilo. – Você sabe que ela... é capaz de tudo. E odeia nós... duas.
- Depois do que eu ouvi, não duvido mais nada, viu. – respondi, massageando com a ponta
dos dedos meu pescoço. Anna pediu para deixarmos nossos pertences com ela enquanto não
arranjassem um outro dormitório para nós. Entreguei minha maleta a ela, que estava tensa
102
demais, a ponto de sofrer um ataque de nervos a qualquer segundo. – Por que você está tão
preocupada? Sou eu quem está sendo ameaçada de morte. – Não sei se isso que eu falei foi
na intenção de ser uma piada, só sei que Anna não gostou nada e me olhou com irritação.
- Não é o melhor momento para brincadeiras do tipo. – ela massageou as têmporas, e soltou
irritada. – Tinha que ser filha de Victoria mesmo, viu.
Franzi o cenho, confusa.
- Me desculpe, mas filha de quem? – perguntei, como se não tivesse ouvido o que ela tinha
dito.
- Sophie. Sophie Dolman, sua mãe. – ela se corrigiu, parecendo ainda mais perdida com sua
confusão.
- Ah, sim! – exclamei, ainda não me dando por vencida. – Pensei que tivesse dito Victoria.
- Victoria é sua irmã, já conversamos sobre isso, Natalie. – ela se irritou, arrumando alguns
prontuários que estavam jogados em sua mesa. – Só estou cansada, acontece as vezes. – dei
de ombros, decidindo deixa-la em paz. Anna não dormira bem aquela noite, ficara acordada
a madrugada toda preocupada com tudo o que tinha acontecido, e com mais medo do que eu
de que o Encapuzado ainda poderia estar na Escola.
- Você viu Ellen? – perguntei para Nick, assim que saímos da Enfermaria, e fomos para o
Jardim, do outro lado da escola.
- Estava me perguntando... o mesmo. – ela olhou ao redor. Já estava ficando tarde, e nada de
Ellen aparecer. Sabíamos que ela não tinha voltado para o quarto, caso contrário, teriam
mandado ela dormir na Enfermaria, com a gente.
- Acho que ela nem sabe do que aconteceu ainda. – disse eu, ficando mais preocupada. –
Será que ela está bem? – eu sabia que Nick não poderia ter a resposta para essa pergunta,
mas uma palavra de consolo sua já adiantaria muita coisa.
- Não sei... mas posso conversar com Mary Anne... talvez ela possa descobrir algo.

***

Nick tinha me deixado sozinha para ir falar com a irmã. Não que ela não tivesse me
chamado pra ir junto, é só que eu preferia ficar ali, no meio daquelas flores e sozinha,
tentando achar uma resposta para tudo aquilo.
No fundo, eu me preocupava tanto com Ellen porque eu havia percebido que ele não atacava
só pessoas que eu gostava, ou só a quem eu odiasse.
A primeira, foi Brittany, a nojentinha da escola. A segunda, foi Catherine, para sempre
minha melhor amiga e quase uma irmã para mim. Agora, Penélope, que sinceramente, era
uma sem sal que eu não gostava nem um pouco. Se eu estivesse certa com meus
pensamentos, a próxima vítima seria alguém próximo de mim.
Só espero poder estar enganada. Não iria me iludir a ponto de desejar que não houvesse
outras vítimas, pois eu sabia que esse jogo não iria acabar ali.
Abri o pacote de convites, analisando melhor cada um deles. Eram três, em papel timbrado e
ainda perfumados. O primeiro, tinha uma gota de sangue bem no topo, mas os outros
estavam normais.
Em letras garrafais, tinha o nome de Penélope, e abaixo uma frase assustadora, que
praticamente anunciava sua morte.
103
Penélope Fergunson
Não deixe de prestigiar esse esplendoroso assassinato
Dormitório 23 – Cama 2/ Durante a virada do ano
Conto com a sua presença.

Não havia palavra melhor para descrever aquilo, do que essa: sinistro. Era literalmente um
convite para a morte, com direito a show de camarote. Abri o segundo papel, temendo ver
ali o nome de alguma amiga minha.
Mas ao contrário, era mais um convite do tipo, com um nome que eu desconhecia. Não
havia data nenhuma, nem ao menos local. Coloquei-o sobre a luz, e algumas palavras
começaram a ser desenhadas.
Arregalei os olhos, quase deixando o papel cair no barro. Na terceira linha, onde deveria
estar o local e data, apenas apareceu "Agora", começando a transparecer outras palavras. Era
um papel mágico, que havia sido enfeitiçado para datar os assassinatos conforme fossem
acontecendo.
Abri as pressas o terceiro envelope, enquanto o local não aparecia no segundo, mas esse eu
deixei cair de minhas mãos, sendo manchado pelo barro.
Como o outro, não tinha endereço, muito menos data, ou qualquer outra coisa. Só duas
palavras escritas bem no topo. E elas eram
Natalie Dolman .

Game Over! Pensei, já me dando por vencida. Não tinha mais jeito, eu sei que meu tempo de
vida estava se tornando cada segundo mais curto. Quero agradecer primeiramente a Deus
por ter me concedido a vida,pensei, preparando um discurso mental para a minha morte. E
dizer que odeio o filho de Callum, seja lá quem for. Quero dizer, o filho só não, a família
toda.
Brincadeiras a parte, peguei o convite de minha morte da lama e o coloquei com os outros.
Estava sujo demais, seria útil se eu pelo menos soubesse algum feitiço para limpar lama de
papel. Estou numa escola mágica, mas até agora não aprendi magia nenhuma. Legal a forma
como as coisas funcionavam aqui, se pelo menos eu pudesse aprender qualquer coisa que
fosse, seria uma oponente muito melhor para Callum.
Talvez seja justamente essa a intenção em não me ensinarem nada.
Reuni minha caixinha de pensamentos, e corri para o outro lado do jardim. O segundo
“convite” dizia que o assassinato da garota de nome desconhecido estava acontecendo no
Recanto Proibido. Onde fica isso?Que segundo o mapa, ficava após o jardim, andando
alguns metros depois da escola. Não sei porque ainda insistia em correr tanto, já que quando
chegasse lá, o crime já teria acabado, e a menina já estaria morta, ou no máximo, ou
assassino ainda estaria lá.
Rezei para que nem um, nem o outro estivessem certos. Apalpei meu bolso em busca de meu
celular, mas lembrei que havia perdido ele.
Droga! Não dá pra avisar Anna onde estou indo só com esse relógio ridículo de pulso.
Dei uma batida leve na tela do relógio, enquanto eu ainda corria. Um dos papeis caiu no
chão, e tive que voltar para apanhar. Senti algo pesando em meu pulso direito. Era o relógio,
104
que começara a me apertar o pulso, e pior, não havia nada que estivesse impulsionando
ele. Estava se apertando sozinho.
Era só o que me faltava mesmo, um relógio que só poderia estar possuído pelo "capiroto".
Tentei pegar o papel no chão, mas minha mão já estava quase paralisada pelo relógio.
Quando pensei que nada poderia ficar mais estranho ainda, o relógio começou a abrir a tela,
e alguns números apareceram. Era uma tela de celular, e estava discando para Anna.
Um relógio que faz chamada? Se eu soubesse, nunca na minha vida teria comprado um
celular.
A voz de Anna atendeu o outro lado da linha, trêmula. Tomei em uma das mãos os papeis
caídos, enquanto na outra eu apenas prestava atenção no visor do relógio.
- Anna? - questionei, entre correndo e limpando o suor que brotava em minha testa. - Olha,
minha vida tá correndo perigo.
- Ok. - ela respondeu calmamente do outro lado da linha. - Agora me fale algo que eu não
saiba?
- Como minha protetora linda e amada. - falei mansamente, e pude sentir que do outro lado
da linha ela fazia uma cara de deboche. Anna nunca acreditara no meu sarcasmo. - Você não
deveria no mínimo se preocupar quando eu falo que estou correndo perigo?
- E quem disse que não me preocupo? - ela respondeu, o telefone agora, chiando.
- Tá bom. - respondi, decidindo deixar a enrolação de lado. - Depois te explico a situação,
mas precisarei de reforços num tal de Recanto Proibido. Fica nos arredores da escola,
conhece?
Senti que ela prendeu a respiração por um segundo, em surpresa.
- Já vou aí agora. - ela respondeu, apressada. - Não vá lá sozinha. Independente do que esteja
acontecendo, me entendeu?
Assenti, mas quando pensei em dar meia volta e ficar esperando ela, já era tarde demais.
Uma fachada enorme se anunciava, com um brilho intenso que quase ofuscou minha visão.
Na placa dizia "Recanto". Logo abaixo, tinha uma placa de madeira,com alguns pregos
longos e quase soltos, escritos à mão com uma tinta preta escorrida: "Recanto Proibido. Não
ultrapasse."
O portão enferrujado estava fechado, e produziu um som estridente ao ser aberto.
Parece até que já ouvi isso antes.
As folhas secas no chão emitiam um ruído alto ao serem pisadas. Tenho uma vida pra
salvar. Uma voz gritava dentro da minha mente. O Recanto nada mais era do que uma
casinha isolada, que tinha mesas no jardim e balanços, onde provavelmente os casais da
escola passaram momentos agradáveis. Atravessei a pequena trilha de folhas, e dei de cara
com uma porta de madeira. O trinco estava aberto, e eu sabia que alguém havia estado ali
antes.
Lembrei vagamente das palavras de Anna brincando em minha mente, e me dizendo que eu
não deveria entrar ali sozinha, ainda mais quando eu mesma sabia que um assassinato estava
acontecendo e o próximo poderia ser o meu.
Abri a porta com firmeza, já decidida. A sala de estar era bem ampla, mas estava com as
luzes apagadas. Acendi um isqueiro que encontrei em meu bolso, pois aprendi a lição das
últimas vezes que um pouco de luz, as vezes, pode ser a salvação.
A luz irradiou por todos os lampiões que tinham na sala, iluminando o ambiente. Não sabia
se o Encapuzado ainda estava ali, mas ele já tinha deixado sua marca, e daquela vez, foi pior
do que todas as outras.
105
Na parede, estava escrito à sangue "Seu tempo está acabando, Natalie."
Ele ousara escrever meu nome para deixar a mensagem, mas aquilo era o que menos
importava naquele momento. Tentei segurar o vômito, mas daquela vez foi inevitável.
Vomitei ali mesmo, na porta de entrada, enquanto observava com muito pesar, seis corpos
femininos organizados em círculo, com um espaço vazio entre eles.
As sete Meninas de Seda que haviam morrido no Covil da Dama. Foi a primeira coisa que
me veio a mente.
No meio entre elas, uma mensagem havia sido deixada

Se quiser salvar aqueles à quem ama, tem que estar disposta a se sacrificar primeiro.

Depois disso, só lembro de ter visto um par de olhos que eu conhecia, e ter desmaiado, no
meio daqueles seis corpos, como se o meu fosse o sétimo para completar.
106

15. Ela não é tão ruim

Acordei com a cabeça pesada. Será que tudo não passara de um pesadelo? Duvido muito.
- O que aconteceu? - perguntei para a pessoa ao meu lado, embora minhas pupilas
estivessem lacrimejando o suficiente para que eu não conseguisse reconhecer seu rosto.
- Você vai ficar bem. - ela sussurrou, trazendo uma colher à minha boca. - Agora tome isso.
Vai ajudar com a dor de cabeça.
Engoli o que ela me oferecia. Consegui reconhecer o tom de voz feminino, mas não saberia
dizer exatamente de quem era. Vi ao longe uma silhueta magra, mas não o bastante para que
não fosse bonita. Seus cabelos chegavam na altura dos ombros, e pareciam levemente
cacheados. Não consegui reconhecer mais nada, minha visão estava pesada, meu estômago
incendiava em dor.
- Pode me dizer o que aconteceu? - perguntei, odiando aquela situação toda. Parece que toda
vez que eu me encontrava em uma situação perigosa, desmaiava e deixava os outros
cuidarem disso por mim. Um saco.
- Você chegou ao Recanto Proibido. - ela explicou, torcendo um pano fino, a água
respingando pela bacia. - Não deveria ter ido lá, é perigoso. Salvei sua vida e te trouxe para
cá.
- Onde estamos?
- Costumava ser uma casa na árvore.
- Casa na árvore? - repeti, sentindo minha cabeça latejar ainda mais. - Como conseguiu me
trazer para cá?
- Feitiços, claro. - ela respondeu, simples e direta. - Não posso deixar você morrer. Temos
que parar o inimigo, antes que ele consiga o que quer.
- Você sabe? - perguntei, tentando me sentar. Estava no chão, mas ela havia coberto o piso
com uma manta velha. Aquela poeira toda estava atacando minha rinite, mas isso era o de
menos agora. - Sabe sobre as Meninas de Seda?
- Mais do que você pode imaginar. - respondeu ela, arfando. Sua voz era tão doce e delicada
que por um momento, pensei que fosse Nicole. - Só não descobri ainda quem está fazendo
isso. E o porquê de tamanha crueldade.
Ela se afastou, olhando pela janela.
- Já está escurecendo. - ela anunciou, pegando em meu pulso. - Seus protetores e Nole
devem estar preocupados com você, vamos. - fechei os olhos, sentindo um leve frio na
barriga. Quando os abri novamente, não estávamos mais na Casa da árvore. Eu me
encontrava na Enfermaria do hospital, com Anna vindo em minha direção, mas a garota que
me ajudara, tinha sumido.
Eu não conseguira ver seu rosto, mas eu sabia quem era, e o fato de ter descoberto isso, só
me fez estranhar toda a situação. Afinal, quem era a única pessoa que eu conhecia que
chamava Nicole de Nole?
***
107

Quando Anna me liberou da Enfermaria, Paul aparecera pra ficar no meu pé o resto da
tarde.
- Você não pode contar para ninguém o que viu. - ele sussurrou em meu ouvido, me
puxando de canto.
- Nem se eu quisesse. - respondi, agoniada pelas lembranças que me vinham à mente pelo
ocorrido. Sangue, corpos mutilados, e eu desmaiada no meio deles. - Não mesmo.
- Conversei com o diretor. - ele disse, apressado. - Essa história não vai chegar aos ouvidos
dos alunos. Já foi traumatizante demais terem um assassinato nessa madrugada.
- Mais cedo ou mais tarde os pais vão querer saber onde seus filhos foram parar. - respondi,
sussurrando de volta. - E quando isso acontecer, todo mundo ficará sabendo.
- Você acha que eu já não pensei nisso? - ele respondeu, com o olhar pesado. - Essa situação
toda tem quebrado minha cabeça dia e noite, e não tem ninguém no mundo que queira mais
do que eu que isso acabe logo.
- Posso garantir o quanto você está enganado. - revidei. Era eu a quem os Callum queriam,
claro que me importava com isso. Mas será que o suficiente para tentar desvendar todo esse
mistério? Até agora não tinha movido uma palha para ajudar.
- Natalie, ouça bem. - ele segurou em meus ombros, daquele jeito paternal que só ele
conseguia. - Você pode ter os instintos da sua mãe, mas não está preparada ainda para o que
está por vir. Mas a hora está chegando, Callum está cansando de brincar, e uma hora, ele vai
parar de usar outras pessoas para chegar até você...
- É isso o que não entendo. - bati os pés no chão, como uma criança mimada quando fica
brava. - Se ele quer a mim, porque está usando outras pessoas?
Tem que fazer suspense, né meu bem. Aquela voz irritante gritava em minha mente. Acho
que era meu diabinho pessoal que conversava comigo vez ou outra.
- Ele se fortalece da sua fraqueza. E sua fraqueza, Natalie, é se sentir mal pelos outros.
Respirei fundo. Ele precisou atender uma chamada urgente, e teve que me deixar ali.
- Não se meta em lugares escuros. - me aconselhou, se encolhendo até ficar praticamente
invisível. Preciso aprender a fazer isso.
Fui para o jardim, pois lá eu conseguia ficar em paz com meus pensamentos. As flores já
não tinham mais aquelas luzes do ano novo. Parando para pensar, nem parecia que fazia
apenas horas desde que o ano se iniciara, o tempo parece mais extenso quando uma coisa
ruim vai acontecendo atrás da outra. Deitei na grama, só esperando esquecer tudo aquilo.
Uns sofrem por amor, outros por falta de dinheiro, e até umas semanas atrás, meu problema
maior era não ter todas as camisetas das bandas de rock que eu gostava. Como a vida é
injusta, agora estava eu aqui, sofrendo pela contagem regressiva que minha vida se
encontrava.
Se pelo menos eu estivesse com meu celular, poderia escutar Stairway to heaven para entrar
no clima. Ou minha situação estaria mais para Highway to hell?
Eis a questão.
Ouvi passos atrás de mim, e me levantei, com medo. Era uma garota alta de longos cabelos
azuis. Ah, uma Veux. Como era o nome dessa mesmo?
- Isabella Champoundry. - ela disse, como se tivesse lido meus pensamentos. Sentei no
gramado, e fiz um gesto para que ela se sentasse também. Me disseram que as Veux eram as
garotas metidas, mas aquela até que aparentava ser gente boa. A fama leva a comentários
maldosos e as pessoas falam demais.
108
- Acho que já nos apresentamos. - respondi com um sorriso tímido, lembrando daquele dia
na loja de roupas que ela me ajudara a encontrar o vestido perfeito.
- Lembro de você. - ela respondeu, olhando para uma roseira que se encontrava à nossa
frente. Ela elevou as mãos, e em questão de segundos, todas as flores que antes eram
vermelhas, ficaram num azul tão intenso quanto o de suas madeixas.
- As vezes eu gostaria de saber fazer mais magia. - disse eu, admirada. - Não aprendi nada
ainda.
- A magia é uma questão do quanto o seu corpo está em sintonia com a sua mente. - ela
respondeu, sabiamente. - Acredite em mim, quando você menos esperar, você vai conseguir
liberar suas asas, se encolher e descobrir o elemento que rege todos os seus poderes.
- Elemento? Como assim?
- Todos nós temos um elemento principal, do qual nossos poderes derivam. O meu, é a água.
Por isso o cabelo azul. - ela respondeu, apontando para as próprias madeixas.
- Cabelo longo e azul. Duas coisas maravilhosas em uma só. - respondi, abraçando meus
joelhos. - Me disseram que você e as Veux são do tipo que não olham duas vezes para a
mesma pessoa. - comentei, deixando de encará-la, e olhando para o céu que começava a
encher de estrelas. - Mas você não é assim.
- É que você, Natalie, é tão famosa de onde eu venho, quanto nós somos para vocês. - ela
respondeu, passando uma perna sobre a outra, em uma pose de poder.
- Então vocês já me conhecem? - perguntei, com a resposta óbvia na ponta da língua. Se ela
disse que eu sou bem famosa de onde ela vem, claro que me conhece, né.
- Claro. - respondeu, soltando um riso. - Ser uma Menina de Seda sempre foi um sonho de
muitas garotas da nossa idade.
- Juro que não entendo porque. – bufei. – É um saco. Coisas terríveis acontecem às pessoas
ao meu redor, e eu não sei o que fazer.
- A resposta vai aparecer. Mas terá um momento certo para isso. – ela disse, me analisando.
– E não vai demorar. Você só tem que estar pronta para perceber os sinais.
Assenti, concordando com o que ela havia dito, mas quando virei a cabeça para respondê-la,
havia sumido.

***
05 de janeiro – sexta-feira

Há dias eu não via Isabella Champoundry. Essas pessoas que adoram uma saída dramática,
viu. Embora ela tivesse me deixado falando sozinha, seria bom esclarecer umas coisas com
ela. Bella sabia de mais coisas sobre mim do que eu mesma, então uma ajuda sua poderia vir
a ser útil. Se bem que, parando para pensar, qualquer pessoa sabia mais de mim do que eu.
É, esse é o nível que eu cheguei, e estava cansada de ser a única perdida nessa história toda.
Se tratava de minha vida, mas parece que todo mundo ao redor sabia mais do que eu.
Ellen havia voltado para a escola, pelo visto, a situação não estava boa para ela também, sua
mãe estava com um problema sério de saúde, algo assim, e ela teve que ir para casa durante
alguns dias.
Nick estava bem, eu não havia contado que sua irmã fora uma boa samaritana comigo, do
jeito que elas se tratavam, Nick não acreditaria que Mary Anne era capaz de um gesto de
bondade.
109
Ainda estávamos dormindo na Enfermaria, mas as coisas tinham sossegado de segunda até
agora. O diretor estava escondendo muito bem a situação, a escola tinha tantos alunos que
quase ninguém sentiu falta das meninas que haviam sido assassinadas no Recanto.
Anna me puxou de canto quando eu estava andando distraída, com uma cara de pesar.
- Ah, não! Quem morreu dessa vez? – perguntei, adiantando o assunto.
- Não é isso. – respondeu, séria, e diminuindo o tom de voz, murmurou. – É sobre o
acontecido de segunda-feira.
- Ah... o que vocês descobriram? – perguntei, aguçando minha curiosidade.
- As meninas encontradas...
- Até agora não me disseram quem eram. – respondi, alarmada. – Eu conhecia alguma delas?
- Sim. – ela abaixou a cabeça, parecendo se controlar.
- Quem eram? Vamos, me diga. – apressei-a, curiosa.
- Três delas eram garotas que haviam sido mortas antes. – Anna respondeu, tentando manter
a calma. – Brittany, na festa de formatura; Catherine, no Natal e Penélope, no Ano novo.
- Cath era uma delas? – disse meu, surpresa. – Mas ela e Brittany foram enterradas.

- Sim, e o filho de Callum é mais maluco do que poderíamos imaginar. - Anna fez uma
pausa, antes de prosseguir com o que havia para dizer. - Ele abriu os túmulos delas. E... bem,
tirou os corpos.
Me surpreendi pela forma fria como Anna simplesmente jogava essas informações na minha
cara, sem uma consideração prévia pelo que eu poderia estar sentindo.
- Eu não sei o que dizer. - respondi, pasma pelo que havia ouvido.
- E tem mais uma coisa. - ela disse, me atualizando de tudo que soubera. - Ontem tivemos
uma reunião com o Conselho. Nós sabemos porque o filho de Callum está atacando todas
essas pessoas antes de chegarem em você.
- Então me conte. - quase gritei com ela, me sentindo um pouco mais aliviada.
- É que só assi... - ela começou a falar, mas foi chamada pela chefe do Departamento de
Enfermaria. - Já volto. - ela gritou para mim, e fiz um gesto obsceno em direção da outra.
Velha chata, tinha que atrapalhar justo agora.
Fui para a biblioteca, pensar um pouco. Nick e Ellen estavam em algum canto da escola
paquerando os meninos, se bem as conhecia. Elas não sabiam do que acontecia comigo, e
seria melhor para todo mundo que continuasse assim mesmo.
Encontrei uma estante de literatura clássica de todas as nacionalidades possíveis. Literatura
brasileira, alemã, italiana, germânica, russa, francesa...
Puxei um livro qualquer, mais interessada em distrair minha mente do que na leitura em si.
Puxei o convite em papel timbrado que eu havia guardado em meu bolso, com meu nome no
topo. Não havia aparecido nenhuma outra frase, só aquilo mesmo. Espero que Anna consiga
me contar o que está acontecendo antes que ele me pegue.
Guardei-o no bolso de minha calça, e comecei a folhear as páginas, quando senti mãos
delicadas sobre meu ombro.
- Esse tem mais a ver com você. - a pessoa me estendia um livro de capa dura vermelha, que
apresentava o título "Anna Karenina", do autor Tolstoi. Claro, literatura russa, como eu
poderia não conhecer?
- Obrigada. - puxei o livro, me virando de cara para a garota que me prestara essa gentileza.
Era Mary Anne Carpenter, a irmã de Nick.
- Você parece surpresa. - ela disse, analisando minha expressão, mas mantendo sua face
completamente séria e complacente.
110
- Estou. - respondi, engolindo em seco. - Pensei que não gostasse de mim.
- O fato de ter indicado um livro não significa que eu goste, ou que eu vá com a sua cara.
Talvez eu só esteja tentando colocar um pouco de cultura nessa cabeça oca. - ela respondeu,
retomando sua "simpatia" habitual.
- Ok então. - respondi, analisando a obra.
- Vai por mim, você vai gostar. - ela disse, pegando um livro na estante, e poderia jurar que
vi em sua face um sorriso tímido. Só posso estar ficando com sérios problemas de visão,
viu.
- Mais uma vez, obrigada. - disse eu, e antes de dar meia volta, sussurrei. - Isso foi muito
gentil de sua parte. Só não entendo porque você é tão seca com as pessoas.
Ela me lançou um daqueles olhares que me faziam desejar nunca ter nascido, e disse:
- Sabe... eu não preciso ser uma garota mole e sensível para me importar. Me importo com
as pessoas, só não vejo a necessidade delas saberem disso.
Ela saiu com um olhar irritado, mas eu sabia que fazia parte de sua personalidade. Mary
Anne poderia até tentar esconder, mas lá no fundo, eu sabia que ela não era uma garota tão
ruim assim quanto aparentava.
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16. Outra mensagem é deixada

8 de janeiro, segunda-feira

Já fazia uma semana desde que os assassinatos tinham acontecido. O diretor inventou o
rumor de que algumas meninas haviam saído da escola, para os alunos não ficarem tão
assustados com os assassinatos, e a imprensa mágica não ficasse dando foco ao acontecido.
Estava conversando com minhas amigas ontem, e Nicole me contara a bizarra lenda que
cercava o Recanto Proibido. Dizem que era um lugar agradável onde os alunos enamorados
se encontravam para darem uns beijos. Hoje em dia, em qualquer canto que se olhava via-se
pessoas fazendo "saliências", mas não é isso o que importa aqui. Só gostaria de deixar
registrado que com tantos alunos fazendo isso, não via tanta importância em Paul querer me
manter afastada de Bernardo. Mas voltando à história do Recanto, não quero parecer uma
boba apaixonada.
O lugar era bastante interessante, com bancos e um enorme canteiro de flores, mas como
nem tudo pode ser perfeito, um jovem, que até hoje não se sabe quem era, conseguira abrir a
passagem do porão, e o que encontrou lá dentro, eram armadilhas terríveis que desafiavam
sua vida. Pelo que se sabe, ele não conseguiu sair de lá com vida. Diziam que por todo canto
do local, via-se sangue, e por esse motivo, havia sido proibida a entrada no Recanto.
Não sei se é bom saber que coisas ruins já aconteciam antes mesmo que eu tivesse entrado
nessa escola.
Acendi o visor do relógio, passada das 3 horas da manhã. Hoje será nosso primeiro dia de
aula, finalmente. Fui sábado com Nick comprar algumas roupas novas e material. Ellen foi
no Vilarejo das Quimeras onde sua família morava, estava estranha nos últimos dias, mas
acho que deveria ser por causa de seu irmão mais novo que não estava bem uns dias atrás.
Sofreu um acidente, ou coisa assim. Se eu tivesse uma família com a qual me preocupar,
talvez conseguisse entender melhor a dor que ela estava sentindo.
E ter perdido Catherine não seria quase a mesma coisa?
Fechei os olhos, disposta a dormir novamente. Apaguei em dois segundos, e estava no
mundo dos sonhos novamente. Fazia tanto tempo que não sonhava nada fora do normal, que
nem me lembro qual tinha sido a última vez que isso acontecera. Eu estava em um quarto no
segundo andar. Não me lembro de ter sonhado com aquele lugar antes, mas eu tinha quase a
certeza de saber qual casa era aquela: onde as Meninas de Seda se reuniam.
Se eu nunca estive aqui, como sabia disso?
Muito simples, claro. A resposta logo veio à minha mente. Olhando pela janela, eu via duas
mulheres conversando preocupadas, usando máscaras em seus rostos delicados, e vestidos
enormes. Até pareciam princesas em roupas de baile de máscaras.
Eu usava um vestido longo, que me apertava a parte de cima de meu corpo. Eu tenho
peitos, pensei, notando o volume que formava no corpete. Em meus pés, um salto enorme
prateado.
Só em sonho mesmo, viu. Odeio saltos.
112
No espelho, refletia uma imagem que não era eu mesma. Uma ruiva bonita de cabelo médio
se anunciava. Seu rosto coberto por uma máscara, seus olhos enormes e azuis, com um
brilho resplandecente. As sardas em sua face deixavam-na apenas mais atraente ainda.
Poderia jurar que era Victoria, talvez alguns anos mais velha.
Do andar de baixo, eu ouvia uma voz de criança chamando por seu nome.
Abri a porta abruptamente, e espichei os olhos em cima da escada, para o que acontecia. Um
par de olhos puros como uma noite de luar, me encaravam, pedindo colo. A garotinha ruiva
parecia ter pouco menos que cinco anos de idade. Seu cabelo era comprido, e em seu rosto
não havia nenhuma máscara, nada.
- Mamãe! - ela esticou os braços em minha direção, querendo colo.
Isso é só um sonho, não tem que fazer sentido. Pensei, descendo os degraus da escada e
fazendo o papel de Victoria.
- Até que enfim te achamos. - as duas moças que eu vira pela janela anunciaram, trazendo
uma outra criança em seu colo. Também era uma menina, mas eu não conseguira ver sua
face.
- Estava em meu quarto. - disse eu, entrando em minha personagem. - Coloquem as crianças
para dormir. - falei, segurando em meus braços a pequena que estava no chão. Ela tinha no
olhar um brilho que lembrava muito o meu.
Elas levaram as meninas para cima, e fiquei ali, apenas esperando. Meu coração batia
acelerado, e em minha mente surgiam um turbilhão de pensamentos que não eram meus.
"Não quero deixá-las". Victoria pensou, e senti um grande pesar por ela. "Mas só assim elas
poderão ter uma vida normal, antes que a Maldição se realize novamente".
Ela arregaçou a manga de seu vestido. Uma cicatriz roxa se anunciou em cada um de seus
pulsos. No direito, meu nome estava marcado, e eu já sabia o que ele significava. Era a
marca de que mesmo após a morte, uma parte dela ainda estaria dentro de mim.
No pulso esquerdo, a mesma marca se anunciava, mas havia um detalhe diferente: o
primeiro nome não era Natalie, e sim Naomi.
"Naomi? Quem é essa?, deixei meus pensamentos invadirem o corpo de Victoria, mas a
cena se dissipara. Tudo voltou a ficar escuro, eu não via mais a casa, nem o corpo de
Victoria. Nada.
Meus olhos se abriram, mas eu não havia acordado ainda, era apenas mais um sonho que se
iniciava.
Victoria aparecia, mas dessa vez, não estava de máscara. Seu vestido de rendas era bonito,
seu cabelo já estava um pouco maior do que antes. Ela segurava as mesmas meninas que eu
vira antes, uma em cada mão. Eu podia sentir sua dor em cada passo que dava, ela parecia
prestes a fazer algo contra a sua vontade.
No final da rua, uma casa de paredes rosa e portão azul. Que combinação estranha.
Ela adentrou, sem nem se dar ao trabalho de abrir o portão. Vou colocar isso na lista de
coisas que eu ainda tenho que fazer.
Na sala, um homem alto e loiro aguardava. Era Paul, em seu rosto pude perceber uma
expressão que misturava a tristeza e alegria.
- Aqui estão! - Victoria anunciou, com a voz embargada em emoção.
Ele assentiu, olhando as garotas. Agora que eu pudera analisar melhor, elas eram idênticas.
- Você precisa protegê-las. - ela disse, se deixando ser consumida pela emoção. - Sabe que
Callum está vindo atrás de mim. Uma parte da Maldição já se concretizou.
113
- Eu sei. - ele concordou, e colocou as meninas no sofá da sala. Elas estavam quietas, e nem
tinham vontade de brincarem entre si.
- Anna já está vindo. Você sabe que eu sozinho não poderia cuidar de mais uma criança.
Ela colocou as mãos nos ombros dele, e disse:
- Não se culpe pelo que aconteceu à seu último protegido. Não é sua culpa que ele tenha sido
sequestrado, ou seja lá o que tiver acontecido.
- É sim. Eu nunca fui um bom protetor, mas Anna me ajudará. - ele disse, com o peito
arfando. - Já escolhemos um lugar para morarmos. É melhor que seja longe daqui. Vamos
atravessar as fronteiras entre nosso mundo e o mundo normal. Lá pode não ser o melhor
lugar para se viver, mas é a única opção que temos por enquanto.
A porta da sala se abriu, e uma morena dos olhos castanhos entrou. Era Anna, mas em uma
versão anos mais jovem.
- Estou atrasada? - ela perguntou, cumprimentando Victoria.
- Não. Eu já estava de saída. - Vic enxugou as lágrimas que ainda brotavam em seu rosto.
Sentou-se na frente das meninas, e beijou as mãos de ambas.
- Eu esterei sempre aqui com vocês! - exclamou, tocando-lhes na direção do coração.
- Mamãe! - uma disse, lhe abraçando. - Não chora, mamãe.
Ela puxou as duas em um abraço apertado, e logo depois, se desvencilhou.
As meninas destaram a chorar, mas toda aquela cena já estava destruindo-a o suficiente.
Victoria desapareceu, deixando as meninas com Paul e Anna. Eles trocaram os olhares por
alguns segundos, e ambos assentiram, como se tivessem se entendido.
De um momento para o outro, eles se transformaram em dois idosos, que até poderia passar
por casal.
Anna segurou uma das meninas em seu colo, Paul pegou a outra. Elas ainda se debatiam e
choravam. Eles tocaram suas faces, e as duas pararam de chorar. Colocando-as no chão, as
meninas falavam animadamente:
- Vovô, vovó! Vem brincar com a gente. - elas pulavam, e saíram da sala, correndo.
Paul olhou para Anna, que parecia comovida.
- Acha que será melhor assim? Se elas não se lembrarem de nada do que aconteceu em suas
vidas até então?
- Foi melhor termos feitos elas perderem todas essas memórias. - Paul respondeu, sentando
no sofá. - Só que mas cedo ou mais tarde, elas começarão a lembrar. Não podemos protegê-
las para sempre.
Sua voz foi se tornando fraca em minha mente, de um segundo para o outro, toda a cena
sumiu. Acordei suando frio em minha cama. No relógio, as horas marcavam 8h23.
Droga. A primeira aula já tinha começado. Levantei, e peguei uma roupa qualquer que havia
encontrado, isso não tinha tanta importância assim, desde que os professores não me
comessem viva.
Peguei meu relógio, e prendi meu cabelo no topo da cabeça em um coque. As meninas já
haviam saído do quarto. Acho que nem cheguei a mencionar isso, mas eu, Nick, Ellen e
Joanne conseguimos quartos para nós. Separados, mas era melhor do que viver na
Enfermaria.
Não tinha feito amizade com as novas colegas de quarto, então não era obrigação delas me
acordarem.
Bati a porta com força ao sair, mas fui invadida por uma dor de cabeça terrível.
114
O que está acontecendo comigo? Me questionei, parando com a mão na maçaneta. Meu
olhos ardiam e algo parecia querer explodir dentro de mim.
Em um lapso de memória, me lembrei de tudo o que havia acontecido.
Eu sei quem eu sou. E mais ainda, eu lembro de Naomi...
A simples lembrança fazia minha cabeça pesar de tanta dor, mas eu teria que aguentar. Pelo
menos até as primeiras aulas acabarem e eu poder descer para falar com Anna. Não sei o
porquê, mas tive a sensação de que ela poderia me explicar o que estava acontecendo melhor
do que Paul.
Desci o tobogã, mas pela primeira vez não bati em nada. Um poder de vento que emanava
de minhas mãos, refreou o tempo, e consegui parar antes de encontrar o fim.
Como eu havia feito aquilo? Pensei, analisando minhas mãos delicadas, e comecei a correr
em direção às salas de aula. Eu só havia passado pelo Bloco II uma única vez, mas mesmo
assim, consegui montar um mapa mental com grande precisão de onde tudo estava. Aquilo
era incrível, minha mente começara a trabalhar de uma forma muito mais veloz. Minha
memória está realmente voltando...
Em uma velocidade que eu nem sabia que tinha, cheguei na enorme sala onde os alunos do
primeiro ano estavam terminando de ter a primeira aula. Atrás da mesa principal, uma
professora alta e porte ameaçador se encontrava. Ela estava segurando a ponta de uma lança
quando me viu.
- Está atrasada, Senhorita Bonnet. - Anunciou, cuspindo as palavras em mim. Me assustei de
início, mas depois recordei-me que ela havia usado meu sobrenome falso.
- Eu sei! - respondi, encarando-a - Me perdi pela escola.
- Sabe o motivo pelo qual os alunos chegam na escola semanas antes das aulas? - ela
vociferou, alterando mais uma vez seu tom de voz. - PARA QUE TODOS VOCÊS
TENHAM A CHANCE DE APRENDEREM ONDE FICA CADA SALA DE AULA. - e
após gritar comigo quase até sair fogo de sua boca (e não estou de brincadeira), ela voltou ao
tom arrogante normal. - Agora sente-se, e que essa situação não se repita durante o semestre,
ou a coisa vai ficar feia pro seu lado, mocinha.
Puxei uma cadeira quase no fundo, dando de ombros. Não havia encontrado nem Nick, e
muito menos Ellen, mas aquilo não era tão ruim quanto levar uma bronca da professora-
dragão na primeira aula na escola nova.
Pensei que nada poderia piorar quando senti uma bolinha de papel roçar minhas costas. Até
em um mundo mágico os alunos não tem a decência de se comportarem.
Atrás de mim, ouvi o som de risadas de marmanjos, me chamando.
"Ôh, ruivinha!" um deles disse. Não vou me virar, porque não sou obrigada.
Peguei meu caderno dentro da mochila, e comecei a fazer algumas anotações rapidamente,
quando um dos imbecis veio até mim. Encostou a boca em minha bochecha o suficiente para
que eu sentisse seu bafo com odor de cappuccino com uma pitada de hortelã. Ele, de uma
forma nada gentil, falou:
- Adorei essa calcinha rosa aparecendo toda. - e saiu de perto. Olhei para trás, e os meninos
encaravam tanto meu cofrinho que fiquei tentada a mandarem eles tiraram uma câmera do
bolso para deixar registrado minha humilhação.
O menino que veio até mim me avisar, era um loiro de sorriso debochado, e jeito de
mauricinho. Eu já tinha visto ele antes, se chamava Dylan, se não me engano, e me lembro
muito bem do chute que dei em suas partes baixas quando ele tentou passar a mão onde não
devia.
Isso o playboizinho não conta pros amigos retardados.
Repentinamente, senti meu olhar queimar, como se estivesse ganhando uma outra coloração,
e encarei eles com toda a raiva que eu podia sentir. o vento começou a bater em minhas
madeixas, e eles estreitaram os olhos, aparentando medo.
O que está acontecendo comigo?
Pensei, irritada, e peguei meu caderno e mochila, e saí da sala, sem nem olhar para trás.
115
Ouvi a professora-dragão gritando meu nome, mas o que aquilo importava naquele
momento? Absolutamente, nada.
Minha cabeça parecia prestes a explodir com tanta informação nova que se calculava. As
coisas começavam a se encaixar, mas eu não me lembrava do último ano. Conseguia
resgatar em minha memórias qualquer coisa até meus 13 anos de idade, mas a última
lembrança que me vinha à mente, era a de meu aniversário de 14 anos, em que Naomi estava
comigo. Assoprávamos uma vela em cima do bolo.
Naomi era tão bonita. Claro, com seu rosto idêntico ao meu, não poderia ser de outro jeito.
Lembro que encaramos uma à outra, como uma pessoa normal olha para o espelho, e
fizemos um pedido, com um sorriso de criança travessa no lábio.
Depois disso, a última recordação que tenho, era apenas minha. Naomi não estava mais
comigo, e até então, eu não me lembrara que um dia ela tinha existido.
Cruzei com Anna no final do saguão, e ela sorriu ao me ver.
- Não deveria estar na aula? - ela perguntou, com um tom meio maternal. Eu olhei para ela,
como se pela primeira vez, a visse tal como ela realmente era.
- E você não deveria ter me contado que a única forma de quebrar a maldição, seria quando
eu pudesse lembrar de Naomi? - retruquei, sem raiva alguma em meu tom de voz. Ela me
encarou de volta, levando as mãos ao lábio.
- Como você...
- Eu me lembro. - respondi, poupando o trabalho dela de perguntar. - Lembro de
praticamente tudo. Da minha origem, que sou filha de Victoria e não de Sophie, como me
fizeram acreditar. Aliás, isso é outro ponto que precisamos esclarecer. As mentiras. - disse,
assumindo uma postura séria como nunca tinha assumido em toda a minha vida. - Lembro o
porquê de minha mãe ter me deixado. Ela era rastreada pelo inimigo, e enquanto eu e Naomi
estivéssemos perto dela, nos tornaríamos presas fáceis. - continuei, para a surpresa dela de
que eu realmente havia quebrado a barreira. - Me lembro de quando ela foi assassinada, e
vocês tiveram que criar uma nova barreira em minha mente, mais forte, para que nada
daquilo pudesse chegar nem ao menos em meus sonhos. - senti uma lágrima gelada roçar
minha face. - Me lembro da dor que senti quando soube que nunca mais poderia ver minha
mãe, ou então, quando descobri que meu poder junto ao de minha gêmea, era muito mais
forte do que o de muitos adultos. - fechei os olhos por alguns segundos, tentando me lembrar
do restante. - A única coisa que realmente não me lembro, é porque minha irmã não está
mais comigo.
- A Naomi, bem... ela foi... - Anna começou a gaguejar, como se quisesse fugir daquele
assunto. - Ela foi levada por Callum. Não sabemos para onde, nem como está seu estado de
vida. Só que ele a levou, e é exatamente sobre isso que eu precisava falar com você.
- Então me diga! Estou esperando, e posso perder todas as aulas que for preciso até que me
esclareça tudo.
Ela concordou em um gesto de cabeça, e me conduziu para seu quarto. Ali, pelo menos,
poderíamos conversar em paz, sem nenhum aluno bisbilhoteiro para encher minha paciência.
- Outro dia, você me perguntou porque o filho de Callum está fazendo tudo isso. - ela
iniciou, fazendo gesto para que eu me sentasse em sua cama. Ela ficou à minha frente,
brincando com as mãos e andando de um lado para o outro. - Nós temos uma teoria. Ele
precisa de sete corpos para reproduzir as mortes das Meninas de Seda que foram pegas no
Covil da Dama, há anos atrás. A intenção dele, é que a cada garota assassinada daquele jeito,
traga Victoria para mais perto de você, pois embora ela te proteja, você se enfraquece
quando isso acontece, não está pronta ainda. Quando o sangue da sétima garota fosse
derramado, você terá um lapso de memória tão forte e repentino que acabará lembrando de
tudo.
- Isso significa que a sétima morte aconteceu? Pois eu me lembro...
- Não, Natalie! - ela retrucou, com uma paciência quase angelical. - Não aconteceu ainda, e
você não se lembra de tudo. Você se lembra parcialmente. Se você se lembrasse de tudo,
saberia o que aconteceu no último ano, pois você não sabia ainda o que havia acontecido
116
com Naomi. Entende onde quero chegar? Quando o sangue da sétima garota for derramado,
você se lembrará de tudo a tal ponto, que aquilo lhe enfraquecerá, e só desse jeito, ele
conseguirá te matar.
- E essa sétima garota que está marcada...
- Tememos que seja Naomi. Não sabemos concretamente quem será a próxima vítima, mas
de qualquer forma, será alguém que tem um laço muito grande com você.
Estreitei os olhos, concordando com tudo o que me dissera.
- Minha cabeça está doendo muito, isso faz parte? - perguntei, massageando a região.
- Temo que sim. - ela disse, segurando minhas mãos, para em seguida, massagear minha
cabeça. - Daqui para a frente, Natalie, você descobrirá todo o poder que tem. Uma Menina
de Seda é muito forte, você não está pronta para controlar tudo isso, mas simplesmente não
podemos construir outra barreira em sua mente. Se você perder a memória agora, será presa
fácil na mão dos Callum.
- E se eu não souber controlar todo esse instinto que nasce dentro de mim?
- Se não souber controlar, é melhor rezar para que eu ou Paul estejamos por perto para salvar
sua vida, ou sabe-se lá as coisas terríveis que podem acontecer. - ela parecia mais pensativa
ainda, e se afastou alguns passos de mim. - Tome cuidado, sempre. A situação está fugindo
de nosso controle.
Assenti, e saí de seu quarto. Quando fechei a porta atrás de mim, um bilhete enorme com
meu nome escrito se anunciava.
Ah, mais essa. Bufei, jogando a cabeça de lado, e tomei o bilhete em minhas mãos.
Era só um aviso, nas mesmas letras garrafais do convite, que diziam:

Não é Naomi quem nós queremos. O inimigo está mais próximo do que imagina.
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17. O inimigo me encontra


11 de janeiro, quinta-feira

A primeira semana de aula estava quase chegando ao fim, e eu ainda me sentia tão estranha,
quanto na segunda-feira, quando descobri toda a verdade. Bem, pelo menos parte dela. Anna
me explicara que eu tinha poderes relacionados a todos os elementos e por isso, era tão
poderosa, mas me cansava mais do que a maioria das pessoas. Preferia ter um só poder e ser
relativamente normal. Sou tipo o Avatar, sabe aquele dos desenhos? Isso não é de todo ruim.
Eu gostava de olhar ao meu redor sem aquela grande interrogação que sempre surgia. Quem
sou eu? O que estou fazendo aqui? O que é magia? Como eu faço isso?
Essas, e enes outras perguntas que sempre se formulavam em minha mente - as vezes,
ganhando voz.
Não ser uma completa idiota e saber como agir tinha lá suas vantagens. Anna me fizera o
favor de conversar com Paul ao longo da semana. Ele agora se referia à mim como a
"Recém-Acordada", e eu sabia que lá no fundo ele sentia orgulho por ter me criado. Ele era
um bom homem, apesar da linha dura que vinha assumindo nos últimos dias, mas sabia que
ele só agia daquele modo, pois queria passar toda a confiança que eu iria precisar. Paul sabia
que se ele parecesse estar inseguro, ou com medo do que o filho de Callum pudesse fazer, eu
ficaria também, e admirava nele essa sua capacidade de pensar sempre no que era melhor
para mim.
Anna sempre fora fria, embora tivesse um jeito tão maternal, que algumas vezes me dava a
impressão de ser minha própria mãe. Gostaria que fosse mesmo.
Lembrei de Naomi, e no quanto nós duas sempre fomos tão unidas. Quando completamos 10
anos de idade, a barreira que nossos protetores colocaram em nossas mentes, se desfizera.
Nós tínhamos 5 anos de idade quando Victoria nos deixou, e embora você possa imaginar
que nós não nos lembraríamos de quase nada daquela época, as memórias eram tão nítidas
que até parecia que faziam poucas horas desde que tinham acontecido.
Lembro quando eles nos contaram sobre tudo o que havia acontecido com nossa mãe, a
forma como fora caçada e torturada até a morte por Adolf Callum. Esse era o nome de nosso
inimigo, responsável pelo fato de que eu nunca poderia ter uma família. Me lembrei que o
nome do filho de Callum era Andrew, algo assim.
Paul e Anna sempre souberam disso, pelo fato de Paul ter sido o protetor de Andrew quando
bebê. O Conselho de Representantes Mágicos da época, acreditava que se o pequeno bebê
fosse criado em um ambiente longe de toda a podridão que cercava sua linhagem, ele
poderia vir a ser diferente. Mas infelizmente, o sangue que corria em suas veias era mais
forte, e quando o bebê foi sequestrado, foi por alguém que era tão canalha quanto um
Callum. Ou talvez, até mesmo um deles, já que ninguém sabe ao certo onde estão todos os
Callum que viviam naquela época.
Me pego pensando, as vezes, se Adolf Callum não estaria vivo ainda, mas a única resposta
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que eu conseguia pensar, era: Nunca se sabe.
Agora, meu caro leitor, você pode estar se perguntando o porquê de eu estar enchendo aqui
com minhas histórias do passado e incertezas.
Em primeiro lugar, é bom ter memórias, vocês não fazem ideia do quanto é angustiante não
fazer a mínima ideia de quem você é, ainda mais quando se tem um inimigo perigoso que
você não sabe o que fazer para derrotá-lo.
E em segundo lugar, pois eu estava em uma aula da matéria "Evocação Prática". Durante a
semana, já tivemos aulas da teoria mágica, esportes, paramentos da magia cerimonial e
ritual, e mais um milhão de outras coisas que me surpreendiam pelo simples fato de termos
conseguido aprender tanta coisa, em um espaço de tempo tão curto.
- Há duas variedades que podemos encontrar através da Evocação Mágica. - um professor
moreno e relativamente alto, dizia, após explicar os conceitos básicos da sua matéria. Seu
jeito me lembrava o ator Chris Rock. - A Grande Evocação e a Pequena Evocação. Algum
de vocês saberia me dizer a diferença entre eles?
Nicole levantou a mão, tomando ar para respirar.
- Grande evocação... é a evocação de Deuses... e é mais perigosa... já que um Deus pode
desequilibrar a pessoa que o evoca. - Ela fez uma pequena pausa, como se estivesse
buscando em sua memória a outra definição. - Pequena evocação... é a evocação de
entidades menores, como almas, anjos e demônios.
- Exatamente. - ele respondeu, escrevendo algumas palavras no quadro. - Ao decorrer de
nosso curso, ensinarei para vocês o lugar ideal, materiais necessários e tudo o que
precisarem para a evocação pequena. Talvez quando tiverem força suficiente, poderão
aprender a evocação grande. Alguma pergunta?
Levantei a mão, tendo uma ideia súbita:
- É possível evocar o espírito de uma pessoa que já morreu, matando outras?
Ele me encarou com o cenho franzido, mas tirou minha dúvida.
- É mais difícil, mas é possível sim. - ele pareceu pensar por alguns segundos, e completou. -
Mas o que nós aprenderemos aqui, será a forma legal de fazer as coisas. Mas alguma
pergunta?
Nenhum aluno respondeu. Ele murmurou um "Maravilha!", escurecendo a sala. No teto,
apareciam alguns desenhos de estrelas.
- Vamos estudar Astrologia? - Ellen se questionou, sussurrando para mim.
Acho que o professor escutou, mas nem deu importância. Ele trouxe o quadro para a frente,
dizendo:
- Como hoje é o primeiro dia de aula, deixarei passar batido. Mas tragam o livro na próxima
aula. - Existem vários meios de se evocar entidades espirituais, mas uma das que mais gosto
de trabalhar, é pelo uso de pentagramas e hexagramas. - ele apontou para o quadro, onde
havia escrito as duas palavras e feito um desenho de cada. - O pentagrama, é mais utilizado
para a evocação de energias elementais. Ensinarei à vocês como fazer pentagrama e o
significado de cada. Já o hexagrama, serve para a evocação das forças zodiacais regentes em
um signo apenas, ou até para a evocação de forças planetárias. Para cada pentagrama e
hexagrama que se evoca, existe um contrário para bani-lo. - ele fez uma pausa, para que
pudéssemos absorver a tudo que havia explicado, e continuou, com empolgação. - Existem
cinco tipos de pentagramas: O do Éter, Fogo, Água, Ar e Terra. Mas os hexagramas tem
maior quantidade, sendo representados pelos quatro elementos naturais: Fogo, Ar, Água e
Terra, mas também podemos encontrar hexagramas da Lua, Mercúrio, Vênus, Marte,
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Júpiter, Saturno e do Sol. - Ele fez uma pausa, tomando ar. - Alguma dúvida?
Ninguém disse nada. Pela cara do pessoal, seria mais fácil se ele perguntasse "Alguém não
tem dúvida?", mas todos preferiam ficar quietos. Nick a meu ver, tinha absorvido todo o
conteúdo, e eu também. Era fácil pegar as coisas. O professor nos dispensou, e já passava
das 18 horas. O céu já estava escurecendo, e logo tocaria o sinal de recolher. Me despedi de
Ellen e Nick e subi para meu quarto. Tentávamos passar o máximo de tempo possível juntas,
mas meu cansaço era tão grande que se fechasse os olhos, adormeceria onde que eu eu
estivesse em dois tempos. E isso porque ainda era quinta-feira. Anna me explicara o quanto
as lembranças influenciavam no meu corpo, e tinha que admitir que aquilo era bizarro.
Deitei em minha cama, fazendo um movimento para a porta fechar. Acho que o feitiço não
funcionara, pois a porta nem havia se movido, como se tivesse alguém a segurando para que
ela não fechasse. Impressão minha, pensei. Adormeci, mas daquela vez, eu não tivera
nenhum sonho.

17 de janeiro - quarta-feira

A escola, nos últimos dias, estava me deixando tão entediada, que eu ficaria doida antes da
formatura. Isso porque as aulas só haviam começado há uma semana e meia e eu ainda
estava no primeiro ano.
Faltavam alguns dias para o meu aniversário de 15 anos. Ah, uma droga viu. Ser tão jovem,
ter o destino tão marcado pelo obscuro, a experiência de um primeiro amor...
Infelizmente, eu estava percebendo que toda a atração que eu sentia por Bernardo não era
apenas brincadeira de criança que diz gostar do primeiro rostinho bonito que vê pela frente,
mas havia algo nele que despertava em mim um sentimento tão intenso e puro, e eu me
sentia envolvida, como uma caça é pega pelo caçador. Mas a caçada seria boa, pois eu
queria ser pega.
Vi ele durante a semana. Seus olhos ainda me brindavam com um olhar divertido sempre
que ele me via. Vivia ocupado, para cima e para baixo, ser monitor na escola não era a tarefa
mais fácil a ser exercida.
Esbarrei em Samuel Tyler dia desses, e posso prever uma grande e sincera amizade em
nosso futuro. Sam, como costumo chamá-lo, é extremamente tímido e reservado. Olha que
fazer amizade om ele não foi a coisa mais fácil do mundo, porém também não fora a mais
difícil.
Já passava das duas horas da tarde quando fomos informados que nossas atividades do dia se
encerrariam por ali. Acho que a professora da próxima aula (Qual era mesmo?) estava
doente, ou algo do tipo.
Um sorriso travesso brilhava no rosto de Ellen ao saber dessa boa notícia.
- Sabe o que significa? - perguntou para mim e Nick, enquanto nos empurrava
delicadamente para fora do vão da porta. - Que nós poderemos sair. Conheço um lugar
ótimo, é uma Cachoeira que fica alguns quilômetros daqui, mas podemos sair e voltarmos
sem que ninguém nos note. O que acham?
Nem hesitei em pensar, e já concordei. Era uma boa ideia, e assim, eu poderia esfriar a
cabeça. Não que pretendesse esquecer de meus problemas, era praticamente impossível com
o tanto de coisas que ainda me perturbavam a mente.
- Sabe o que seria melhor ainda? - disse eu, tendo uma ideia. - Sairmos às escondidas.
120
Os olhos de Ellen brilharam ao ouvirem minha ideia, e Nick ficou boquiaberta, como se não
acreditasse que uma coisa dessas pudesse ter saído de minha boca.
- Olha só o que estou fazendo com você, hein Nat! - Ellen exclamou, parecendo feliz. - Mais
alguns dias de convivência comigo, e até a Nick. - Certinha estará desse jeito.
- Eu... não. - Nicole disse, dando de ombros. - É bom alguém... manter a cabeça no lugar.
- Mas perder a linha vez ou outra, não faz mal para ninguém. - Ellen deu uma piscadela em
direção à Nick, depois me encarou. - Alguma ideia de como sairemos às escondidas,
Senhorita?
- Tenho. - respondi, com um sorriso no rosto. - Vocês só terão que me ajudar à driblar
Anna.
***
Contei minha ideia para elas, mas era algo muito simples. Anna tinha em seus cuidados o Pó
Púrpura, para encolhermos de tamanho por alguns segundos e podermos passar por qualquer
lugar pequeno. A ideia seria as duas distraírem ela, enquanto eu iria direto ao seu
armazenamento de poções, onde eu reconheceria o Pó. Sabia que ela o guardava no armário
atrás do balcão, junto com todos os remédios da Enfermaria.
- Não acho legal... fazermos isso. - Nick questionou, insegura. - Se pegarem... a gente...
estaremos ferradas.
- É aí que tá a emoção da coisa. - Ellen disse, colocando o braço no ombro de Nick. - Nunca
sabemos se pode dar certo ou não.
Paramos na frente da Enfermaria, trocando olhares de cumplicidade. Ellen sabia ser uma
ótima atriz quando queria, então fingiu estar passando mal, enquanto se apoiava em Nicole.
Elas entraram, e eu permaneci do lado de fora. Dei uma espiadela lá dentro, e como eu
previra, Anna estava sozinha. Nenhum aluno ferido, e nenhuma outra pessoa para ajudá-la.
Quarta-feira era sempre o dia da semana em que ela ficava sozinha, por se tratar do dia da
semana mais tranquilo para ela.
- Anna... nos ajude. - Nick dramatizou, se rendendo à nosso plano. - Ela está... passando
mal.
Anna saiu de trás do balcão, indo socorrer ela. Deitou Ellen na maca, medindo sua pressão.
Entrei na Enfermaria, tirando meus sapatos para não fazer barulho. Fui direto ao balcão e
abri o armário com todo o cuidado possível. Localizei os potinhos do pó cor púrpura, o
quatro frascos saíram. Ia devolver um, mas antes que eu pudesse pensar duas vezes, ouvi o
som autoritário da voz de Anna:
- Muito bonito, Natalie. - Olhei para ela, com o coração na mão. - Já não basta ter tentado
me enganar, teve que meter suas amigas nessa também.
Ellen e Nick estavam atrás dela, com cara de decepcionadas por nosso plano não ter dado
certo. Me dando por vencida, ia devolver os frascos à prateleira, mas eles haviam sumido.
Ué! Exclamei. Não tinha devolvido eles, e nem estavam comigo. Anna nos liberou, mas
deixou o aviso de que se aprontássemos mais uma dessas, não viveríamos pra contar
história. Sabia que ela não estava falando sério, mas ela me assustava as vezes.
Fomos para o jardim da escola, decepcionadas por não termos mais nada a fazer.
- Acho que agora já podemos morrer de tédio. - Ellen disse, se jogando na grama.
Nick se sentou delicadamente à seu lado, e eu ri da cena. Uma era completamente
desleixada, e a outra, toda certinha.
Ia me jogar ao lado das meninas, mas um dor forte no pulso me invadiu. "O que está
acontecendo comigo?"
121
Em questão de segundos, algo começou a sair de meus pulsos. Não havia orifício nenhum,
era como se ele tivesse simplesmente expelindo algo de si.
Puxei o que quer que fosse aquilo, e me surpreendi ao ver quatro frascos do pó púrpura. Era
como se os frascos tivessem ficado camuflados em meu braço. Como foi que eu fiz isso?
- Meninas, olhem só! - exclamei, mostrando os frascos pra elas.
- Você escondeu eles com você? - Ellen deu um pulo, parando do meu lado.
- Não! - respondi, confusa. - Na verdade, nem eu sei como isso aconteceu. Parece até que
minha pele camuflou o frasco. - Cocei meu pulso, estranhando aquilo.
Não que fosse a coisa mais esquisita que já tivesse acontecido comigo, não entraria nem no
meu "TOP 10", levando em consideração todas as bizarrices ocorridas nos últimos tempos.
Dei um frasco do pó para cada uma, e escondi um no bolso da minha calça. Antes sobrando
frascos do que faltando. Fomos para a entrada da escola, nos escondendo atrás de uma
árvore. O porteiro da escola não poderia nos ver ali, caso contrário, estaríamos mais
encrencadas ainda.
- Que meus protetores nem sonhem que estamos fazendo isso! - disse eu, sendo consumida
pela excitação do momento.
- Não entendo... - Nick sussurrou, atrás de mim. - Eles são seus protetores... mas passam a
maior parte do tempo... longes de você.
Nunca tinha parado para pensar naquilo, mas era verdade. Anna vivia na Enfermaria,
praticamente, cuidando de todos os alunos que precisassem. Paul, vivia no Gabinete do
Diretor. Era seu assessor, algo do tipo. Não que eu esteja sendo egoísta, não me leve a mal.
Só queria um pouco mais da atenção deles voltada pra mim, poxa.
- O que estão fazendo aqui? - Uma voz soou atrás de nós, e estremecemos ao ouvir. Elas
estremeceram de surpresa, e eu, por saber exatamente à quem pertencia aquele tom de voz.
- Oi, Bernardo! - exclamei, dando um risinho de canto. - Fale baixo, estamos tentando sair
da escola.
- Pra que? É só falar com o porteiro, ou pedir uma autorização.
- Sair às escondidas é mais gostoso. - Ellen disse, mordendo o lábio. Mesmo sabendo que eu
gostava dele, parecia praticamente inevitável para ela dar em cima dele, mesmo que não
percebesse.
- E como pretendem fazer isso? - Ele perguntou, encostando o queixo em meu ombro.
Ai, papai. Se controla, Natalie! Disse a mim mesma, tentando conter tudo o que eu sentia
quando ele estava por perto.
Lembrei que tinha um frasco à mais, e o entreguei à ele.
- Quando se aproximar do portão, ingira isso. Completamente. - Falei, não dando muitas
explicações. - Você vai encolher por alguns segundos, mas é o suficiente para passar
embaixo do portão, entendeu?
Ele me encarou como se eu estivesse ficando doida, mas assentiu.
- Todas vocês entenderam, né? - Perguntei para eles. Quando as meninas assentirem,
exclamei um "Ótimo", e fizemos uma fila indiana para sairmos da escola.
Fiz menção para Ellen ir primeiro, já que ela estava mais confiante. Ela parou à espreita do
portão, e engoliu o conteúdo do frasco de uma só vez, desaparecendo. Depois, mandei Nick,
que estava mais insegura. Ela parecia trêmula, e prendeu a respiração quando achou que o
porteiro tinha olhado em sua direção.
Fiz um gesto para que se apressasse, e ela fechou os olhos, ingerindo todo o pó púrpura.
122
- Vai você primeiro. - Bernardo sussurrou no meu ouvido, me arrepiando toda. Droga,
droga, droga.
- Não, eu insisto que vá! Já sou experiente nisso. - dei um sorriso, e ele resolvendo nem
discutir, foi na frente. Sem hesitar, ele virou todo o frasco de uma só vez.
Fui para a frente do portão, já abrindo o frasco, quando senti um braço forte me prendendo.
- Onde pensa que vai, mocinha? - o porteiro tinha me achado.
Essas coisas só acontecem comigo.
- Onde penso, não. - disse eu, determinada. - Onde eu sei que vou. Tem pessoas me
esperando lá fora. - dei uma piscadela, e ingeri todo o pó púrpura. Vi o porteiro olhando para
mim com cara de bobo, e me procurando, quando achava que eu tivesse desaparecido.
Ele vai falar com Paul, sei disso. Dei de ombros, passando pelo portão. Estava determinada
à não deixar que nada estragasse minha tarde.
Bem, pelo menos, eu sempre espero isso.
Como ter poderes faz toda a diferença na vida das pessoas, Bernardo nos teletransportou até
a entrada da cachoeira. Nick e Ellen ainda não sabiam fazer isso, mas eu bem que poderia, se
quisesse. Só não queria dar a impressão de ser uma pessoa magicamente avançada.
A entrada para a cachoeira era toda cercada por pedras, e algumas tulipas amarelas ao redor.
No alto, uma enorme placa de Boas-vindas anunciava alguns dizeres que eram um tanto
incompreensíveis, no primeiro momento. Não que isso tivesse importância, muito pelo
contrário. Uma trilha larga se anunciava à frente, feita pelo mesmo pedregulho da entrada.
Tivemos que andar um bom tempo, até encontrarmos um caminho mais estreito, de barro.
As meninas desceram na frente, e estava escorregadia, e tropecei em uma pedra que não
tinha visto.
- Cuidado, mocinha! - Bernardo me segurou, me impedindo de cair, e segurou minha mão,
com o pai segura mão de sua filha pequena.
Argh! Que analogia péssima, posso mudar pensamento: Ele segurava minha mão, como um
namorado segurava a mão de sua amada. Pronto, melhor.
As meninas pareciam nem notarem o que estava acontecendo aqui atrás, pareciam entretidas
demais com o caminho para prestarem atenção em qualquer outra coisa. Elas soltaram uma
exclamação de "Uau!", quando cruzaram o final da trilha e deram de cara com uma imensa
cachoeira. Ela tinha três cataratas. A primeira, era a parte baixa onde toda a água caía. A
segunda, era de onde parte da água estava descendo, e tinha a terceira, o topo, onde ao
entardecer, poderíamos ver o mais belo pôr-do-sol.
A areia movediça já estava fazendo nossos pés escorregarem, mas sem pensarmos duas
vezes, nos jogamos dentro daquela imensidão de água límpida.
- Isso até que... não foi tão ruim. - Exclamou Nick, mergulhando na cachoeira.
- Falei pra você que seria divertido. - Disse Ellen, jogando água em mim e em Bernardo. -
Por que vocês dois não param de enrolar logo e se beijam? - Ela falou com tanta
tranquilidade, que até me surpreendi com seu tom de voz. Bernardo me encarou com um
sorriso tímido, e senti minha pele enrubescendo.
- Não sou tão fácil assim! - disse eu, sarcástica, mergulhando de cabeça em toda a água da
cachoeira. Consegui ficar de olhos abertos, apesar de minhas pupilas dilatadas não
conseguirem ver quase nada.
- Ei, sabem o que seria legal? - Ellen disse, chamando nossa atenção. Voltei para a
superfície, e a encarei para escutar mais uma de suas ideias brilhantes. - Se a gente subisse
naquela catarata e pulasse.
- Você ficou... doida! - Nick respondeu, boiando na água.
- Que nada. Seria divertido. - Ellen insistiu, e olhou para mim, buscando apoio. - O que
acham?
- Uma boa. - eu disse, me rendendo à pressão. - Eu vou primeiro.
Como eu sabia que tinha poder de ar, talvez não fosse tão difícil assim subir em algumas
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pedras da catarata.
Voltei para a areia movediça me segurando em algumas pedras para não cair. Me concentrei
um pouco, mas consegui formar uma rajada de ar ao meu redor, para me elevar até a pedra
de cima.
- Isso aí, Natalie! Você consegue. - Ellen gritava por mim, e toda aquela torcida me fizera
rir.
Parei na catarata, com os pés escorregadios. Obviamente, a pedra estava toda molhada e eu
teria que pular.
- Você consegue mais alto que isso! - Ellen gritou novamente, e olhei para a próxima
catarata. Não ficava tão acima assim, e só tinha um risco: um pulo mal feito dali, e eu bateria
a cabeça em alguma rocha e poderia morrer. Simplesmente.
O que seria da vida sem um pouco de adrenalina? perguntei a mim mesma, sem nem pensar
duas vezes. Formei outra rajada de ar ao redor de meu corpo, e subi mais, só que dessa vez,
com um pouco mais de esforço. Senti a rocha firme tocar meus pés. Ali estava menos úmido
na catarata debaixo, então pude respirar alguns segundos antes de olhar para baixo e pensar
em pular.
Lembro-me que Anna me dissera que enquanto eu não aprendesse a controlar meus poderes,
me sentiria exausta facilmente. É, ela estava muito certa nesse quesito.
Escutei um som atrás de mim, e me virei tão abruptamente que quase cai.
- Ooops! - me equilibrei rapidamente, olhando atrás de uma árvore. - Quem está aí? -
perguntei, mas obviamente não tive resposta.
- Ei, Natalie! O que está acontecendo aí? - Bernardo gritou para mim, mas nem me dei ao
trabalho de responder. Um lobo enorme surgiu bem na minha frente. Seus olhos enormes
apresentavam um brilho intensamente vermelho, que eu já havia visto antes...
São os mesmos olhos da pessoa que me atacou no Covil da Dama...
- O que você quer de mim? - perguntei, tentando me controlar. Se eu desse mais um passo
para trás, de onde estava, cairia bem em uma rocha. Se desse um passo para frente, seria
presa fácil.
Será que eu consigo libertar minhas asas? Me questionei, fazendo um esforço, mas nada
havia acontecido.
Em um súbito momento, o lobo pulou para cima de mim, e caí. Senti meu corpo se
petrificando completamente dos pés à cabeça. Uma dor forte me invadiu o peito, e quando
menos percebi, não sentia mais nada. Nem meu corpo, muito menos minha consciência, eu
havia caído em um baque só na água.

22 de janeiro, segunda-feira

A memória daquele dia na cachoeira me invadia sempre que eu piscava os olhos. Lembro-
me que o olhar daquele lobo foi forte o suficiente para ter me atingido como uma bala
perdida atinge seu alvo. Paul estava cada vez mais desconfiado de que um de meus amigos
estava conspirando para que tudo aquilo estivesse acontecendo, mas eu acreditava fielmente
que não.
Não imaginava nenhum deles fazendo nada disso. Ellen era toda durona, mas faria o
possível para me proteger. Nick tinha aquele jeito todo delicado, sei que não faria mal algum
há ninguém. E Bernardo, bem... nem preciso dizer o que penso dele.
Você pode estar se perguntando como foi que eu sobrevivi, não é mesmo? Ando com a
cabeça nas nuvens ultimamente, havia me esquecido desse detalhe. O lobo me atingiu com
uma rajada de vento, misturada à água da Cachoeira, que foram suficientes para formarem
uma cratera de gelo envolvendo meu corpo. Bernardo conseguiu me descongelar, usando seu
poder, e fiquei alguns dias na Enfermaria, dando um pouco de trabalho para a Anna. Ela e
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Paul ficaram bravos comigo, como já era de se esperar, e ralharem com a minha pessoa
quando estava melhor.
- Você quer passar a semana do seu aniversário em coma, sua irresponsável? - gritou Anna,
com aquele seu jeito que me lembrava muito a época em que eu achava que ela fosse minha
avó. - Quer morrer antes de fazer 15 anos, hein?
- O que tem a dizer, Natalie?! - Paul me questionou, me fuzilando com os olhos, enquanto eu
ainda estava deitada no leito da enfermaria.
- Ah, me desculpe? - Disse eu, sem saber o que mais eu deveria falar.
- Você sabe que essa não é a coisa certa a se dizer, mocinha. - Paul disse, bufando.
- Ah, é mesmo. - Respondi, batendo na cabeça. - O correto é 'Desculpem-me'. Acho que as
aulas de gramática não foram totalmente inúteis. - soltei um risinho, mas logo o contive ao
ver que eles não estavam nada divertidos com a situação.
Anna só me liberou hoje, pois amanhã será meu aniversário. Claro que eu ainda ficaria sob
seus cuidados médicos, mas estava de saco cheio de tudo aquilo. Eles sempre diziam que
iriam me proteger mais quando algo acontece, o zelo continuava zero. Será que eles não
podem impedir que o filho de Callum faça isso à mim? Ou talvez, a minha teimosia sempre
me levasse para lugares onde eles não poderiam me proteger, enquanto acreditavam que eu
estava na escola?
Pouco importava se era uma coisa ou outra, naquele momento, eu só conseguia olhar para
minhas mãos. Começava da ponta dos dedos, e passava por toda a parte de cima da mão,
indo até o início do braço, uma espécie de tatuagem preta, em estilo das Índias. Como foi
que isso aconteceu?
Anna me explicara que poderia ter sido uma reação alérgica ao ataque, misturado ao Pó
púrpura que eu havia ingerido, mas nunca tinha visto reação alérgica em forma de tatuagem.
De algum modo, eu sabia que, ou estava amaldiçoada, ou certamente era algo ligado às
Meninas de Seda.
Minha hora está chegando, sei disso.
Cruzei o final do saguão, e encontrei dois pares de olhos preocupados em minha direção.
- Ei... achamos... você! – Nick gesticulou para mim, tomando ar enquanto pausava ainda
mais sua fala.
- Vocês parecem cansadas! – eu disse, olhando para a loira e Ellen que surgia logo atrás.
- Tivemos que resolver um problema para Mary Anne. – Ellen respondeu, apoiando-se à
parede.
Dei de ombros e fiz um gesto para irmos visitar os jardins da escola.
- Fiquei sabendo... que amanhã é seu aniversário... – Nick comentou, jogando seu cabelo
curto para o lado.
- É. – comentei vagamente, fazendo pouco caso daquela data. Não estava em clima para
festejos. Na verdade, nunca estive.
- Então. Vamos comemorar! – Ellen pulou em meus ombros, animada. – Afinal, você estar
viva é um milagre.
- Isso... – Nick completou, sentando-se perto de uma roseira. – Mas o que... poderíamos
fazer?
- A Nat escolhe. - Ellen disse, e completou. - Desde que não seja algo que a deixe numa
experiência de quase morte.
- Ah, vindo de mim, não duvido que mais nada seja perigoso, sério. - respondi, indiferente. -
Prefiro passar essa data em branco.
125
- É bom comemorar. Nunca se sabe se estará viva até o próximo. - ouvi uma voz vinda da
minha costa, era Joanne.
- Aff, você. - disse eu, irritada por ver ela ali.
- Vocês não vão se livrar de mim tão fácil. - falou ela, e exclamou - O que é de vocês tá
guardado.
Ela deu uma espiadela por cima do ombro, e saiu andando reto para o outro lado.
- Foi impressão minha - Ellen questionou, franzindo o cenho. - Ou ela falou tudo aquilo
olhando para Nick?
- Eu prestei mais atenção no que ela estava dizendo, do que pra quem. - disse eu, parando
pra pensar naquilo.
- Ela não gosta... de mim. - Nick deu de ombros, ficando ao meu lado. - Ela ficou mal
quando Penny morreu... e o fato de termos encontrado o corpo... só fez com que ficasse mais
ainda... Pode não parecer... mas a Joanne é muito sensível.
- É, deu pra perceber que não parece. - soltei um riso sarcástico, jogando a cabeça para trás. -
Como você consegue ver esse lado de Joanne, mas simplesmente não pensa o mesmo em
relação à sua irmã? Ela salvou minha vida uma vez.
- Mas comigo... ela não é tão boa. - ela pigarreou, engolindo em seco.
- Podemos parar com esse papo antes que vocês comecem a chorar e a cantar músicas
depressivas? - Ellen reclamou, revirando os olhos. - Sabe o que podemos fazer? Depois do
toque de recolher, podemos nos encontrar na escadaria dos dormitórios, para cantarmos
Parabéns pra você quando der meia noite.
- Claro, porque nada pode dar errado quando a gente resolve quebrar as regras um pouco, né.
- eu falei, não gostando muito da ideia.
- Todos estarão dormindo mesmo. Só vamos cantar parabéns. - Ellen olhou para mim, com o
que eu chamo de "a carinha do gato de botas dos filmes do Shrek.
- Ok, está bem. Acho que Ele não pode vir atrás de mim aqui dentro.
- Ele? - Nick questionou, parecendo confusa. - Ele quem?
- A pessoa que está fazendo tudo isso comigo, entende? Creio que seja um inimigo que quer
me testar até eu não aguentar mais para que ele possa me matar.
- Que... horror! - Nick exclamou, levando as mãos ao lábio. Ellen pareceu levemente
surpresa, acho que ela já deveria ter imaginado uma coisa dessas.
- Meninas, tenho que fazer uma ligação. Fica combinado de nos encontrarmos, certo? - Ellen
se espreguiçou, e vendo nosso assentimento, ela saiu.
Ela estava estranha ultimamente.
***
23h38min.

As meninas no meu quarto já dormiam, e algumas chegavam até a roncar. Coloquei uma pantufa
nos pés para não fazer tanto barulho, e abri a porta com toda a delicadeza que nem mesmo eu
sabia que possuía. Olhei mais uma vez para dentro para me certificar que elas não haviam
acordado, e desci o longo corredor, até o topo da escadaria, onde as meninas já me esperavam.
Elas tinham levado um bolo pequeno, com uma vela na parte de cima. O bolo era de um sabor
comum até no mundo normal, com muito chocolate ao redor e pedaços enormes de morango.
Fiquei com água na boca só de ver.
- Se contenha, Nat. Só quando der meia-noite. - Ellen falou, abrindo um largo sorriso.
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- E o que custa adiantar alguns minutos? - falei, dando de ombros.
Elas nada responderam, e apena ficamos ali, conversando e olhando esporadicamente para o
relógio. Faltavam dois minutos quando a marca (ou tatuagem, efeito colateral, chamem como
preferirem), começou a coçar. Parecia que eu estava me pinicando toda, de tal maneira que nem
eu mesma pude entender direito.
'Ele se aproxima'. Uma voz gritava dentro de mim, e senti todos os pelos de meu braço se
eriçarem.
Uma rajada de vento soprou em minha nuca, e olhei para trás. As luzes se apagaram
repentinamente, e prendi minha respiração. Percebi que as meninas faziam o mesmo, não
sabíamos o que era.
"Bem que algum monitor poderia passar aqui, agora. Mas todos devem estar dormindo", meu eu
interior reclamava.
Senti uma vontade de ter uma lamparina nos olhos, ou no mínimo, coragem suficiente para
encarar o que quer que tivesse ali.
- Será que as luzes não se apagaram apenas? Já é meia-noite, e eles acham que estão todos
dormindo.
- Verdade. - falei, me sentindo aliviada. - Você poderia acender a vela pra gente cortar o bolo. -
falei para Ellen, e acho que ela assentiu. Riscou um fósforo, mas o deixou cair no mesmo
instante, soltando um grito de pavor.
O fósforo caiu no chão acesso, e o fogo começou a se espalhar.
- Precisamos apagar isso. - eu falei, me agarrando à parede.
- Não... Natalie! - Nick exclamou, parecendo à beira das lágrimas, e logo entendi o motivo.
Meus dedos que buscavam apoio nas paredes, acabaram encontrando algo menos resistente do
que tijolos e cimento. Coberto com uma capa enorme, um homem estava atrás de mim.
Era o Encapuzado que eu tinha visto no meu antigo dormitório. De um lado, a chama do fogo
parecia aumentar ainda mais. Do outro, ele nos encarava segurando um objeto entre seus dedos.
"Não pensei que o fim fosse chegar tão cedo."
Ele me jogou longe, fazendo com que eu passasse sobre o fogo. Minhas vestes ficaram em
chamas, e eu estava com algumas queimaduras.
"Que presentão de aniversário, hein!"
Ouvi ele quebrando algo na cabeça de uma amiga minha, e tentando lutar com outra, mas minha
visão estava enfraquecida.
- Pra pegar a Natalie, vai ter que me matar primeiro. - Ellen gritou tão alto, que logo algumas
luzes de quartos se acenderam. - Você não vai se safar dessa.
Alguns rostos curiosos surgiram, e senti que o Encapuzado estava enfurecido por isso.
- Eu só preciso dessa pra terminar o serviço. - sua voz era mecanizada, e vi de relance que ele
segurava algo com as duas mãos. Em um piscar de olhos, ele desapareceu e o fogo parou de
cessar.
Ellen correu para me ajudar, e senti minha cabeça pesar. A pancada tinha sido forte.
- Vocês estão bem? - perguntei, tossindo um pouco por causa da fumaça que eu havia inalado.
- Natalie! - Ellen parecia sensível como eu nunca tinha visto antes, e completou. - Ele levou
Nicole.
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18. E então, ela desapareceu...


23 de janeiro, terça-feira

Eu estava cansada de tudo, e nem tivera a chance de lutar verdadeiramente ainda com o
inimigo. Estava cansada de coisas acontecerem em datas que deveriam ser especiais para
mim. Formatura, Natal, Ano-novo, e bem, meu Aniversário de 15 anos. Muitas meninas
sonhavam com um dia de princesa para essa data. Eu só queria que nada daquilo estivesse
acontecendo.
Senti um vazio enorme quando soube que Nick havia sido levada, como não sentia há
tempos. Um vazio no peito, e talvez uma vontade enorme que me invadia o peito e teimava
em querer me fazer chorar, mas eu não aguentava mais derramar uma lágrima. Deveria
acabar logo com aquilo, e teria que se rápido.
O dia amanhecia, minhas colegas de quarto já haviam saído para a aula. Nenhuma queria
olhar na minha cara, achavam que o perigo me perseguia. Como se eu não soubesse.
Em cima de meu criado-mudo, tinha um bilhete, escrito à mão, por uma letra excepcional,
de causar inveja.

Feliz Aniversário! Sei que essas perdas não estão sendo fáceis para você,
se quiser, pode contar comigo.

A assinatura, era de Dáfne Louvain. Provavelmente, você nem se lembrará dela, mas era
uma das Veux, as garotas de cabelos longos e coloridos, as adolescentes mais famosas de
nosso mundo e todo aquele alvoroço que causavam sobre elas. Dáfne tinha longas madeixas
coloridas em rosa, e eram encaracoladas até o último fio de cabelo. Estávamos no mesmo
dormitório, e nunca trocamos muitas palavras. Ela é uma pessoa dócil, e já tem seus poderes
definidos com o elemento Ar, assim como eu.
Embora fosse razoavelmente boa, ela e seu grupo de amigas aprontavam poucas e boas na
sala de aula. Mas eram até divertidas.
Eu gostava mesmo era da Isabelle Champoundry, a líder de cabelos azuis e lisos. Seus
poderes eram de Água e sempre conversávamos pelos jardins da escola. Ela é uma boa
conselheira, e incrivelmente, é a única pessoa que eu conheço que consegue fazer com que
eu me sinta calma, como se todos os problemas que eu tenho, ela soubesse que posso
resolvê-los.
Ademais, tinha mais duas do grupo. Vanessa Roux, que era a rockeira de estilo
completamente fantástico. Cabelos verdes e encaracolados, com poderes regidos pelo Fogo,
mas não era tão sociável como as outras. Ela é mais fechada e centrada em si.
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E por último, tem a Safira Chevalier, invejo sua inteligente. Ela faz cálculos mentais que
deixam qualquer calculadora científica no chinelo. Com poderes de terra, tem cabelos lisos e
roxos.
Gostava delas, e tinha a impressão de que elas também gostavam de mim, pois não
conversavam com mais ninguém da escola que não fosse do grupo das Veux, além de mim.
Guardei o bilhete de Dáfne com carinho dentro da primeira gaveta. A tatuagem em meus
braços ainda permaneciam, e voltaram a coçar, mas não tinha tempo para pensar naquilo
quando eu estava, como sempre, atrasada.
Desci o tobogã, tentando fingir que estava bem, quando na verdade, minha cabeça estava à
mil, e o medo de que Nicole pudesse ser assassinada me assolava. Eu tenho que arranjar
alguma forma de impedir que qualquer coisa possa acontecer, e vou agir rápido.
Empurrei a porta da sala, e alguns olhares se voltaram em minha direção. Normal, normal.
Já estou acostumada.
Vi que ao lado de Ellen tinha um lugar livre. Bem, costumava ser o lugar de Nick.
- Posso sentar aqui? - perguntei, sussurrando em seu ouvido.
Ela assentiu afirmativamente com a cabeça, enquanto tomei posse do banco. Seus olhos
apresentavam duas olheiras enormes de uma noite muito mal dormida, nunca tinha visto ela
em uma aparência daquele tipo.
- Você acha que ela vai ficar bem? - Ellen sussurrou de volta, soltando o ar de seus
pulmões.
- Vai sim. - respondi, com convicção. - Eu vou atrás dela, e vou manter Nick viva, nem que
seja a última coisa que eu faça.
Ellen me olhou profundamente nos olhos, dizendo.
- Eu vou com você! - sua voz saiu fraca, e a abracei ali mesmo.
Nunca imaginei que seria tão triste assim a expectativa de perder uma pessoa que estava
comigo há um mês, mas me apeguei tão facilmente à Nicole e de uma tal maneira, que sentia
a necessidade de fazer algo, sabia que ela ainda estava viva.
Ficamos abraçadas por alguns minutos, até escutar o som grave de uma voz masculina
anunciando nossos nomes.
- Natalie Dolman e Ellen Underwood, para o gabinete do Diretor. Agora.
Assustei-me ao escutar aquilo, mas até preferia sair mesmo. Não estava no melhor dos
ânimos para escutar uma velha chata, falando sobre coisas chatas de magia que não eram do
meu interesse.
Saímos, acompanhando o monitor que viera nos buscar. Aquele eu não conhecia, mas em
seu crachá, tinha um nome dizendo "Connor Brian". Acho que já ouvira falar dele. Nick
vivia dizendo que era o namorado de sua irmã, Mary Anne, e que os dois se mereciam por
dividirem o mesmo temperamento azedo.
Mary Anne! pensei, tendo uma súbita ideia. Se ela ajudara a salvar minha vida uma vez,
obviamente estaria preocupada com sua própria irmã, apesar de tudo o que Nick dizia sobre
elas não se gostarem.
Não tem essa de não se gostarem, Mary Anne vai ter que me ajudar.
Subimos o gabinete do diretor, que ficava no ponto mais alto da escola. Ele não gostava de
ser incomodado, só em casos críticos em que a situação realmente pedia aquilo.
Diretor estranho, viu. Se bem que não havia nada naquele lugar que não fosse.
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- Sentem-se! - Álvares Boulevart disse. Ele era o Diretor da escola, com um estilo quarentão
galã, que fazia as amantes de novela das oito "pirarem". De olhos profundamente azuis e
cabelo escuro, usava uma camisa social e uma gravata que combinavam com seu olhar.
Nos sentamos nos lugares por ele indicado. À sua esquerda, estava Paul, com um olhar
preocupado e decepcionado como eu nunca tinha visto. Anna logo chegou, toda arfante.
- Reunimos vocês aqui, pois precisamos de tudo que sabem sobre os crimes. - Boulevart
anunciou, nos encarando com um olhar inquisidor, que faria a mais hábil mentirosa dizer
toda a verdade.
Ellen contou à ele tudo o que havia acontecido na noite passada, e pensei que ele fosse nos
dar um sermão por termos saído da cama depois do toque de recolher, mas ele simplesmente
sussurrou algo como "Eu fazia pior nessa idade.", e deu de ombros.
Nem Paul, muito menos Anna questionaram, ou fizeram qualquer pergunta, apenas ficaram
lado a lado, observando as decisões que o Diretor pretendia tomar. Ele ficou rondando sua
própria mesa com o dedo indicador no lábio durante alguns segundos, e depois olhou para
Anna, dizendo:
- Você deveria explicar as evidências até agora. - seu tom era tão autoritário, que ela
automaticamente saiu do lado de Paul e se colocou à nossa frente.
- Nós, ahn... - ela começou gaguejando, como se não estivesse completamente segura do que
iria dizer. - Nós constatamos que as sete vítimas, eram loiras.
Franzi o cenho, não entendendo qual a importância daquele fato.
- O assassino é preconceituoso, ou algo assim? - perguntei, e Anna me deu aquela olhada de
"não fale mais um A ou corto suas cordas vocais".
- Todas as Meninas de Seda eram ruivas. - Ela continuou, como se eu não a tivesse
interrompido. - Então o Assassino, ou Encapuzado, como você o chama, precisa de garotas
com a mesma coloração capilar para que possa surtir algum efeito. A primeira vítima,
precisava ser a mais impactante, a Brittany. Vocês se odiavam terrivelmente, então ele tinha
que começar por um alvo que fosse marcante. - ela fez uma pausa, analisando uma papelada
que Paul havia lhe entregado e continuou. - Os corpos das meninas que foram encontradas
no Recanto Proibido desapareceram, mas pelas fotos do local, todas tinham o mesmo padrão
de cor de cabelo. E a última vítima, não poderia ser Naomi. Aquele bilhete que você nos
mostrou, que dizia "Não é Naomi quem nós queremos. O inimigo está mais próximo do que
imagina.". Ele estava avisando você que, embora achássemos que Naomi poderia ser a peça
final, quem eles precisavam, era de outra garota de cabelos claros. Nicole era a única garota
desse estilo próxima à você, cujo sumiço poderia afetá-la.
- Que loucura! - refleti por um instante, e cheguei a conclusão de que a pessoa por trás disso
tudo era doida.
Bem, não precisaria tanta reflexão pra chegar à uma conclusão dessas, bastava apenas
analisar as situações ocorridas e ponto.
- Vocês fazem ideia de algum lugar que possam ter levado Nick? - perguntei, meio
cabisbaixa.
- Pensamos no Recanto Proibido, mas já vasculhamos por lá. Estamos rondando cada canto
da escola, mas nenhuma evidência foi encontrada ainda.
- Então, ela simplesmente desapareceu. - disse eu, decepcionada. Mas assim que saísse dali,
iria procurar Mary Anne. Deveria ter um jeito de encontrar Nick, e era exatamente o que eu
ia fazer.
E já sabia por onde começar.
130
A conversa com o diretor e meus protetores não foi tão longa assim. Paul nos levou até o
Hall de entrada, nos escoltando. Não queria que eu ficasse sozinha, e eu sabia que por mais
que ele tentasse esconder isso, ele sempre tivera um pé atrás com Ellen.
Ela havia voltado para a sala, pois sabia que eu ficaria perfeitamente bem na companhia de
Paul. Tadinha, estava tão abatida. Eu e ela éramos muito amigas, mas, embora pensar isso
pudesse me fazer sentir um pouco excluída, eu tinha que aceitar o fato de que ela e Nick
tinham uma amizade bem mais forte, pois se conheciam há mais tempo.
De qualquer forma, eu gosto delas, e sei que esse sentimento é recíproco.
- Sempre que algo de errado acontece, essa Ellen está junto... - Paul falou, me guiando até as
salas de terceiro ano, onde Mary Anne estaria. Precisava falar com ela, e sei que ela é a
única pessoa que pode me ajudar. - Não é estranho?
- Nick também sempre está junto, mas não significa que ela seja uma assassina, ou cúmplice.
- Rebati, defendendo minha amiga. - Não entendo porque você não gosta dela.
- Sou seu protetor. Meus instintos são fortes pra essas coisas. - Ele respondeu, me guiando
pelo ombro. - Um dia você vai entender que toda essa desconfiança que tenho, é para o seu
próprio bem.
- Eu sei disso. Mas eu sei em quem confiar, ok? - disse eu, me revoltando com toda a
insistência.
- Tô vendo que falar com você e com a porta dá no mesmo. - ele rebateu, decidindo deixar
para lá. - E sei que vai discordar disso, mas acho bom que fique longe do Longatto também.
- Aff, Paul. Até do Bernardo? - ele sabia muito bem que o que eu sentia pelo moreno
marrento era forte demais. - Ele nem estava acordado quando tudo aconteceu ontem à noite.
- O que te garante isso? - ele rebateu, e fiquei muda por alguns instantes. - Exatamente, você
não sabe. Vamos combinar o seguinte, você pode ver ele, mas só quando estiver comigo.
- Combinar? Você já tá impondo as regras, que opção eu tenho?
- Concordar com o que digo. Você é ingênua demais para se dar conta da imensidão do mal
que a cerca.
- Já percebi, não sou tão lerda assim. - senti a raiva subir dentro de mim. - E se não está
lembrado, já sou uma mocinha.
Ele arqueou as sobrancelhas, e pela primeira vez, vi um brilho diferente em seu olhar, era
algo quase paternal.
- Sei disso. E ainda não tive tempo de parabenizá-la por seu aniversário. - Ele falou, me
enlaçando com com o braço. - Espero que em seu próximo aniversário, você e Naomi
possam estar juntas. Esse seria o melhor presente, até mesmo para mim.
- Você acha que Naomi está viva? - questionei, por um momento, esquecendo minha raiva. -
Acha que ainda podemos ser uma família?
Ele me encarou por alguns segundos, e por um momento, senti em seus olhos um olhar
paternal. Paul nunca fora de demonstrar muitos sentimentos, mas geralmente acontecia
depois de uma discussão nossa.
- Chegamos! - Disse ele, na frente da sala onde Mary Anne estava tendo aula naquele
momento. Paul segurou meu rosto com as duas mãos e apertou minhas bochechas. - Se
cuide, você sabe que eu amo você, né?
Assenti, e não consegui dizer que o amava também, tomada pela emoção. Ele nunca me
dissera aquilo, e o fato de ter dito, me pegou completamente desprevenida. O abracei, me
segurando para não chorar, não queria parecer sensível, mas sabia que assim que colocasse
meus planos em prática, talvez nunca mais o veria.
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Ele bateu à porta da sala, e mandou um garoto franzino que a atendeu, chamar Mary Anne.
Olhei de relance dentro da sala, para ver se localizava a face ranzinza de Mary Anne, e
acabei vendo Amanda Luporini...
Ela sabe o que se passa dentro de uma pessoa pelo simples fato de olhar para ela...
Lembrei desse fato, e puxei Paul pela camisa.
- Tem uma outra pessoa que eu gostaria que você chamasse também. - disse à ele o nome de
Luporini, e ele assentiu, chamando-a em seu jeito autoritário. As meninas saíram em nossa
direção. - Agora você se vira bem sem mim?
- Claro, mas acho bom você ficar por perto. Não estou me sentindo muito segura. - falei,
entortando o lábio para a esquerda.
- Tá bem, só vou buscar uma surpresa que mandaram para você. - ele disse, em um tom
misterioso. - Já venho.
Assenti, vendo-o sair. Nem conseguia ficar mais curiosa, com tanta coisa fervilhando em
minha mente.
- Foi você quem mandou nos chamar? - Mary Anne disse, em tom estressado. - Espero que
tenha algo realmente importante à tratar, não estou afim de perder aula por qualquer
trivialidade.
- Caso você não saiba, a sua irmã mais nova foi sequestrada, você tem a consciência disso? -
rebati, no mesmo tom de arrogância que ela.
- Consegui ver isso dentro de você. - Amanda disse, me analisando. - E sei que me chamou
porque acha que eu posso te ajudar, mas temo que esteja errada.
- Por que diz isso? - franzi o cenho, entre impressionada e intrigada.
- Eu nunca consegui entender o que se passava dentro de Nicole. Ela sempre foi um mistério
para mim, então não posso ser muito útil em tentar encontrá-la, se não consigo senti-la.
- Não consegue? Eu sempre achei que pudesse sentir qualquer pessoa...
- Mas Nicole não é como as outras. - Mary Anne interrompeu, mantendo o tom pertinente. -
Ela sempre foi especial.
- Especial? Como assim? - perguntei, confusa. - Ela não é como nós?
- Não, ela é uma mistura de duas espécies, embora tenha aparência comum. - Mary
respondeu, como se lhe incomodasse falar sobre aquilo. - Ela é adotada, entende? Por isso
nunca a tratei como irmã, não a aceitava na família. Talvez esse tenha sido meu maior erro,
ela precisava de mim, e desse carinho.
Fiquei boquiaberta, ao escutar tudo o que Mary Anne tinha a dizer. Isso explicava o motivo
delas serem tão diferentes uma da outra, e também, o porquê de Mary Anne ser o retrato da
mãe, enquanto Nicole nem chegava perto disso.
- Acho que está na hora de reparar meus erros. - Mary disse, me encarando. - Qual o seu
plano?
Contei à elas com calma tudo o que havia descoberto, e como minha intuição me dizia para
onde ela fora levada.
- Isso é realmente impressionante! - Amanda disse, parecendo tão impressionada com isso,
quanto eu ficava sempre que ela conseguia saber o que eu estava pensando.
- Eu descobri que minha ligação com Naomi fica muito mais forte no dia do nosso
aniversário. Essa noite, quando dormi, ela apareceu para mim em sonho, e eu sabia que não
era uma lembrança. Estava acontecendo mesmo, e pude ver quando Nicole chegou carregada
pelo Encapuzado. Não pude ver seu rosto, mas havia algo em seu olhar que indicava que eu
o conhecia. - fiz uma pausa, para que elas assimilassem tudo, e continuei. - Então, preciso
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que vocês me façam dormir, para que eu possa entrar no subconsciente de Naomi, e falar
com Nicole para ela me dizer qual a passagem por onde eles vieram, para que eu possa
salvá-las. Mas tem que ser bem rápido mesmo.
As duas assentiram, não vendo outra opção. Mary era boa na arte da hipnose, então só
tivemos que ir para o meu quarto, onde ninguém nos incomodaria, já que minhas colegas
estavam em aula.
Deitei em minha cama, e Mary sentou ao meu lado, começando a me hipnotizar.
- Quando eu contar até três... na mente de sua gêmea entrará, e poderá com ela dividir as
imagens do presente. - sua voz era tão suave, que por um momento, me lembrou a
Mascarada. Ou melhor, minha mãe. Pensei nela por alguns segundos, me distraindo do que
ela dissera.
Se eu me distrair mais uma vez, vou acabar estragando tudo.
- Um... dois... três...
Meus olhos ficaram pesados, e adormeci em um instante. Senti por alguns segundos que
minha alma tinha saído de meu corpo, e começou a vaguear. Não consegui descobrir ao
certo qual era o caminho que ela estava percorrendo, mas quando abri meus olhos
novamente, estava em um outro corpo. Era idêntico ao meu, apesar dos graves ferimentos
em sua superfície.
O que fizeram com você, Naomi? Não sabia se ela podia me ouvir, mas estava contando com
isso.
Ouvi todos os pensamentos de Naomi gritarem em minha mente, e pensei por um instante,
que fosse enlouquecer. Os pensamentos dela e os meus juntos, assim não aguento.
À minha frente, uma jovem delicada e com um vestido de renda até os pés se encontrava.
Uma máscara cobria seu rosto, mas ainda podia ver os traços de seu rosto. Era Nicole.
Ela chorava compulsivamente, amarrada com as mãos para trás do corpo, e toda suja.
Pobrezinha, me partia o coração ver a ela daquela maneira.
Você não merecia uma amiga como eu. Tudo o que fiz, foi acabar com sua vida. Comecei a
me martirizar, embora lutasse para ser forte.
Uma luz ao longe se anunciava, e duas silhuetas apareciam. Uma, do Encapuzado. A outra,
eu realmente não conseguira definir de quem era.
- Nicole... - chamei-a, e percebi que Naomi estava sentindo minha presença ali.
Nick ergueu os olhos para mim, surpresa.
- Natalie? É você quem está aí? - sua voz ainda estava chorosa, mas vi um breve brilho se
anunciar em seus olhos.
- Sim. Mas não por muito tempo. - disse eu, sentindo que a hipnose se encerraria em poucos
minutos. - Preciso que me diga - tentei regular meu tom de voz, para ficar mais baixo. -
Preciso que me diga qual a passagem que eles trouxeram você.
Ela estava fraca. O Encapuzado, percebendo que nós tínhamos acordado, começou a vir em
nossa direção. Nick arregalou os olhos, mas sussurrou de uma só vez.
- Cachoeira!
***
Aquilo foi suficiente para que eu soubesse para onde ir, embora tivesse receio de chegar lá
tarde demais. Minha visão ficou escura, e pensei que Mary estivesse me chamando de volta,
mas eu não havia acordado.
Ao invés disso, um novo sonho se iniciara. Eu estava na Residência Dolman, no quarto de
Victoria.
133
Haviam vários quadros espalhados pelo cômodo. Em cima da escrivaninha, um bilhete dizia
"Meninas de Porcelana", sublinhado em baixo.
Na maioria dos quadros, Victoria aparecia alegre, mas um em especial me chamou atenção.
Não era ela quem estava ali, e não era uma fotografia exatamente. Parecia mais uma cena
real. Era uma jovem, com a pele mais fina que a de uma porcelana. Usava um véu que lhe
cobria metade do rosto, mas em seu único olho à mostra, algumas lágrimas caiam. Seus
olhos verdes me encaravam, e pareciam suplicar à mim um pedido silencioso de ajuda...
- Acorde! - a voz suave de Mary Anne me chamou, e levantei em um pulo. Ela e Amanda
estavam lado a lado, me encarando de cenho franzido, enquanto percebi que Dáfne havia
entrado no quarto para trocar de roupa.
- O que foi? O que aconteceu? - perguntei, não entendendo o motivo delas estarem daquele
jeito.
- Você é a única que pode salvar Nick e Naomi. - Mary disse, parecendo atordoada. - Seja lá
quem esteja fazendo isso, ele quer que você vá sozinha, e não deixará mais ninguém passar
pela passagem com você.
- Como sabe disso? - perguntei, esfregando os olhos com os dedos indicadores.
- Nós vimos isso. Foi o que sua visão nos mostrou. - Amanda respondeu, parecendo
decepcionada. - Desculpe-me, Natalie. Mas essa você terá que enfrentar sozinha.
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19. Uma passagem

Ainda era meu aniversário quando a noite anunciava. Paul havia deixado em minha cama a
surpresa de que falara. Era uma carta de Mark, e uma camiseta nova do AC/DC. Fazia
tempo que não via ele, ou Joe, e queria saber como estavam reagindo a falta que Catherine
fazia. Mark sempre gostara muito da cunhada. Por um momento, senti saudades dele e de
tudo o que havia acontecido.
Por um momento, me peguei pensando em como teria sido se meu destino já não estivesse
traçado, e se eu pudesse ter tido a oportunidade de uma vida normal. Talvez eu e ele
estaríamos juntos. Não consigo imaginar isso acontecendo, claro, mas é uma possibilidade.
Abri a carta, e li apenas um trecho:

Minha querida Natalie!


Há tempos venho te procurando, desde aquele dia em que nos beijamos na porta do
Hospital, não consigo tirar você dos meus pensamentos. Sinto saudades dos seus lindos
olhos castanhos, e da forma como seu olhar consegue sempre prender minha atenção
totalmente para si. Sinto falta desse seu cabelo cor de fogo a roçar minha pele...
Espero que caso consiga ler isso, ainda reste alguma lembrança carinhosa sobre mim.
Queria que estivesse aqui, Joe está precisando muito de você, como eu nunca imaginei que
fosse precisar. Nós sentimos sua falta.
Feliz aniversário, Nat. Ou Natilícia, lembra? Como eu te chamava uma vez ou outra.
Se puder, mande notícias, quero saber como está.

Dobrei a carta, e a guardei dentro do criado-mudo. Peguei uma caneta e uma folha em
branco, e escrevi sua resposta. Não estava afim de nada muito meloso, pois isso não fazia
meu tipo. Mas também não poderia dar uma resposta fria.
Agradeci todo o carinho dele comigo, dizendo que também sentia falta, enfatizando a parte
em que Catherine era a que mais ocupava meus pensamentos.
Disse à ele que me meteria em uma enrascada que eu nem sabia se voltaria viva, mas caso
isso acontecesse, iria visitá-lo algum dia. Coloquei a carta em um envelope branco comum, e
borrifei um pouco do meu perfume. Era força do hábito fazer isso.
Entreguei a carta à Anna.
Ela já estava à par de meu plano para salvar as meninas, e iria comigo. Ela e Paul, já que
eram meus protetores. Amanda havia falado que eles não poderiam entrar, mas sempre
podemos dar um jeitinho brasileiro em tudo.
Eu espero, pelo menos.
- Vá descansar. Tem que estar bem pra amanhã. - Anna anunciou, assim que lhe entreguei
minha carta.
- Como assim amanhã? Temos que começar a agir e logo. - disse eu, revoltada.
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- Você não será muito útil se estiver cansada, Natalie. - Anna replicou, guardando algumas
amostras de sangue dos alunos que participavam de algum time. - E tente entender uma
coisa, se nossa teoria estiver certa, eles não poderão atacar Nicole até que você e Naomi
estejam juntas, entendeu?
- E se a teoria de vocês estiver errada? - rebati, e percebi que ela ficara sem resposta alguma.
- E se quando chegarmos lá for tarde demais?
- Desculpe-me, querida. Mas você terá que entender dessa vez. - ela foi dura em cada
palavra dita.
- E eu sou obrigada a ficar me angustiando até então? - rebati, mas parei ao sentir minhas
mãos arderem. As marcas que haviam aparecido estavam se transformando em cicatrizes. A
pele de meus braços começaram a embranquecer, e minhas veias ficaram saltadas.
Anna arregalou os olhos para mim, e começou a analisar as marcas. Em meus pulsos,
algumas inscrições estavam aparecendo, mas eu não conseguira ler. Estavam em francês.
- O que está acontecendo comigo, Anna? - perguntei, com uma dor latente a me invadir por
inteiro. - O que está acontecendo?
- Acho que você pode ter razão. - seus olhos apresentavam um assombro que nunca tinha
visto naquele olhar. Ela gritou para sua Enfermeira assistente, e disse - Chame Paul.
Rápido.
Ela segurava meus dois braços com força, enquanto passava o olhar pelo armário de
remédios, como se um mapa mental estivesse passando dentro dela, tentando lembrar de
algum remédio que pudesse usar para aliviar a dor.
Eu me sentia quebrando por dentro.
- O que está acontecendo comigo? - rebati, agarrando com força Seu braço, e cravando nele
minhas unhas.
- Ele está abrindo o diário. - Anna respondeu, e vi que Paul estava chegando. Bastou que
desse uma olhada em mim, para que entendesse o que estava acontecendo.
- Como? - perguntei, cuspindo sangue com baba. Meus olhos começaram a revirar, e meu
corpo ficou mole por um instante.
- Ele está usando Naomi. - Anna disse, e agilmente inseriu uma agulha em minha veia. -
Você ficará bem em alguns minutos, mas tinha razão. Temos que ir para lá o quanto antes.
Paul assentiu, e fez com que aparecesse uma mochila com alguns suprimentos que iríanos
precisar. Não sabíamos o que enfrentaríamos, então todo cuidado seria pouco.
Anna injetou um soro em meu pulso, e no mesmo instante fiquei bem. Uau!
- Vamos agora! - Paul disse, se agarrando à mim.
- Espere! - exclamei. - Mas e Mary Anne? E tenho que me despedir de alguns amigos, caso
eu não volte.
- Você não irá morrer, Natalie. Estaremos lá para garantir isso. - Paul tentou me acalmar,
passando a mão por meu ombro como senpre fazia em nossos momentos paternais. - Você
ficará bem e logo Naomi estará aqui com você. Vamos acabar logo com isso.
E terminando a frase, nos teletransportamos para a entrada da Cachoeira.
- Como vamos saber o lugar onde está a entrada? - perguntei, analisando ao redor.
- Faço uma ideia. De onde o lobo te jogou mesmo? - Anna perguntou, jogando uma mochila
nas costas.
- Da catarata mais alta. Por quê?
- Acho que quando ele te jogou dali, a intenção era fazer com que você caísse direto na
entrada. Vale tentar. - Anna respondeu, nos levando para a Cachoeira.
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- Como sabe de tudo isso? - perguntei, não conseguindo evitar ficar desconfiada.
- É só mais um de meus poderes. - ela disse, e senti que definitivamente tinha muita coisa
que eu ainda precisava saber sobre ela.
- Tenha cuidado, Natalie! - Paul disse, me levando para o alto da catarata. - Se algo começar
a dar errado, estarei aqui para te proteger.
Ele sussurrou para mim. Respirei fundo e, sem nem pensar duas vezes, dei um salto. Já havia
feito aquilo antes, e o fato de estar sob a pressão de salvar minha melhor amiga e minha
irmã, me faziam mergulhar sem medo.
Caí na água, e meu corpo continuou a afundar. Minha visão ficava muito melhor embaixo da
água. Nadei alguns metros, e encontrei um orifício bem no fundo sa cachoeira.
A entrada! Exclamei mentalmente, e nadei até ela. Quando me aproximei da entrada, meu
corpo foi sugado pra dentro, como uma pia suga a água após ser desentupida. Meu corpo
começou a girar em redemoinho e senti uma vontade enorme de vomitar.
Minha visão começou a ficar embaçada pela quantidade de água que estava à minha frente e
quando pensei que fosse me afogar, meu corpo foi expelido para fora do tudo.
Caí de cara no chão e me ralei um pouco. Não era o lugar que eu havia visto na mente de
Naomi, mas presumi que não cairia mesmo no local exato.
Fiquei alguns minutos encostada na parede, esperando Paul ou Anna aparecerem. Será que
Amanda estava certa e eu teria que enfrentar aquilo sozinha? Estremeci só de imaginar.
Um barulho alto vindo de minha esquerda me chamou a atenção, e virei imediatamente a
cabeça para ver do que se tratada. Alguns galhos de árvores começaram a crescer na
superfície das paredes, e se mexiam compulsivamente, parecendo prestes a esmagar
qualquer coisa que estivesse em sua frente. E para o meu azar, não havia nada nem ninguém
mais ali.
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20. A ajuda da Mascarada

Os galhos secos mexiam compulsivamente. De sua raiz, parecia crescer cada vez
mais galhos. Alguns eram pontiagudos, e afiados como um facão. Tentei me jogar para o
outro lado do corredor, mas estava se tornando mais apertado.
Droga! Exclamei, gritando alto na esperança de que alguém me ouvisse, mas só fez o som de
minha voz ecoar pelo corredor. As paredes estavam se fechando, lentamente, mas dava para
sentir os galhos baterem em minha face. Levei dois cortes, uma na coxa e o outro na face.
Não tinha como eu voltar para onde havia entrado, pois era um tubo tão escorregadio que só
dava para entrar, e não sair por ele. Para meu lado esquerdo, eu não via nenhuma saída,
apenas um lugar escuro de onde se emitiam sons de galhos quebrando, parecidos com folhas
secas ao serem pisadas. Do lado direito, estava quase escuro, se não fosse por uma pequena
fonte de luz que era emitida através de um pequeno orifício no meio da parede.
Não tinha tempo para pensar, então seria bom que eu começasse a agir logo. Corri para o
lado direito, mas os galhos estavam impedindo minha passagem, como um campo de força.
Um galho passou por baixo de meu braço, atravessando minhas costas, a poucos milímetros
de me perfurar, enquanto outro passou na minha frente, passando por dentro de minha
camiseta, rente aos meus seios.
Quando eu sair daqui, a pessoa que fez essa armadilha vai me pagar uma camiseta nova, ou
não me chamo Natalie Dolman.
Agora estava presa mesmo, mas apesar de meu cansaço, meu cérebro ainda trabalhava na
mesma velocidade que quando minhas memórias retornaram para minha mente.
"A magia é uma questão do quanto seu corpo está em sintonia com a sua mente", lembrei
subitamente do conselho que Isabella Champoundry me dera uma vez. Eu gostava dela, mas
não estava com tempo para pensar em quem eu tinha afinidade ou não, estava mais
preocupada em salvar minha vida mesmo, obrigada.
Outros galhos começavam a surgir, e as paredes se encontravam cada vez mais. Um galho
passou por baixo de minhas madeixas e o outro bem na ponta de meu nariz. Pelos meus
cálculos, o próximo que vier ou atravessará meu ouvido, perfurando até encontrar meu
crânio, ou atingirá meu estômago.
Prendi o ar, e o soltei de uma vez, lembrando que havia liberado meus poderes outras vezes.
Alguns galhos começaram a descer do céu, e usei toda a força de meu pensamento para que
eles se quebrassem antes de chegarem à mim. Os pedaços caíram em cima de minha cabeça,
mas não chegaram a me machucar.
Meu braço direito ficou preso, e fiz um esforço enorme para soltá-lo com a força de meus
pensamentos. Os galho se retraíram, mas as paredes continuavam a encolher. Eu estava a
mais ou menos meio metro da parede com o orifício que poderia ser minha saída, mas
adivinhem só? Também estava encolhendo.
Bom, Natalie, menos papo e mais ação.
Disse a mim mesma, desconcentrando meu poder das paredes, e correndo em linha reta.
Consegui chegar ao outro lado, mas os galhos já voltavam ao normal e um prendeu em
minhas pernas. Coloquei os braços no orifício da parede, e rapidamente passei metade de
meu corpo para o lado de fora. Várias lamparinas se anunciavam, e tinha um caminho de
terra pela frente.
Minhas pernas ainda estavam presas, e senti que aquele encolhimento todo acabaria me
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matando sufocada. Fechei os olhos por um instante, tentando encontrar uma maneira de sair
dali.
Meu corpo foi se tornando mais leve, e aos poucos, pude sentir os galhos se desprendendo
de meus pés. Caí em cima da areia movediça, e poderia dizer com quase toda convicção
possível, que não havia sido eu quem fizera aquilo.
Levantei cambaleante, com meu corpo quase afundando em tanta areia. Consegui manter o
equilíbrio por alguns segundos, mas caí no chão novamente. Pelo menos, pude perceber que
a saída por onde eu passara estava fechada. O lugar onde me encontrava era completamente
fechado, e, se não fosse pelas luzes das lamparinas, eu ficaria morrendo de medo em estar
ali. Pra falar a verdade, eu já deveria estar, mas algo em meu íntimo me dizia para não ficar
desesperada.
Andrew Callum só estava querendo me testar, para quando eu chegasse exausta no final,
pudesse me matar com suas próprias mãos. Ok! Aquele pensamento não era tranquilizante,
mas era o máximo que eu conseguia.
Apoiei um braço na areia que não parava de se mexer, e consegui levantou novamente. Já
estava de pé e tentando me locomover, quando senti algo diferente roçando meu tornozelo,
mas dessa vez, não eram galhos assassinos e afiados.
Era um lenço. Lembrei que quando a mascarada aparecia e desaparecia em seguida, em seu
lugar surgia um lenço azul. Mas diferente dos demais, aquele tinha a coloração arroxeada.
Um lenço roxo? Será que o estoque de lenços azuis dela acabou? Pensei, olhando ao redor,
enquanto meus olhos procuravam por ela, mas eu sabia que não a encontraria.
Eu não havia me sentido mais fraca, e sabia que ele não ia matar as meninas enquanto eu
não chegasse. Então o que teria acontecido?
Dei de ombros, tentando sair dali. Salvar minha vida seria mais útil do que ficar parada
debatendo comigo mesma os mistérios que a rondavam.
A caminhada estava se tornando entediante. Meus pés não paravam de afundar, e eu olhava
ao redor cada segundo mais perdida por não fazer a mínima ideia de onde eu me encontrava
ou como faria para sair dali.
Amarrei o lenço roxo bem forte em meu pulso direito, tentando não enlouquecer devido à
falta de claridade, e fome que eu estava sentindo. Dei mais alguns passos, e quando
considerei a possibilidade de parar para descansar um pouco, um rugido atrás de mim me fez
mudar de ideia.
- Roooooooooooooooooooooar!!! - Não queria olhar para trás, mas foi meio que um instinto
natural. Uma cabeça de Leão enorme apresentava presas afiadas, e uma juba de fazer
qualquer um se borrar de medo. Ele rugiu novamente, e dessa vez, pude sentir desde seu
hábito horrível até o vento batendo em minhas madeixas quando ele cometera o ato.
Até ousaria dizer que ele tem um "bafo de onça", se isso não fosse sarcástico, ou até mesmo
ofensivo.
Comecei a correr para trás, tentando não cair. O nó que dei no lenço começou a desafrouxar,
e não tendo tempo para amarrá-lo novamente, comecei a apertá-lo contra meu pulso. Resolvi
correr de frente, já que aquele leão me mataria de qualquer jeito, mas em um súbito
momento, não era mais necessário. O leão começou a desaparecer, e no lugar onde estivera
antes, só restara névoa.
Olhei para o lenço em meu pulso, e parei de o apertar. Amarrei-o melhor, antes que ele
voltasse. Talvez o lenço fosse, afinal, um amuleto da sorte.
A areia em meus pés pararam de se moverem durante alguns segundos, como se alguém
tivesse desligado o motor que a mantinha em movimento. Claro, se esse pensamento não
fosse completamente absurdo e ridículo. Se bem que da forma como as coisas andavam, eu
não duvidada de mais nada.
- Olá! - chamei, tendo quase a certeza de que a Mascarada estava ali. Seria melhor que fosse
ela, pois eu tinha a certeza de que não estava sozinha. Minha voz ecoou, e reproduziu
freneticamente o que eu havia dito, tornando a cena mais bizarra ainda. Consegui sair da
areia movediça, encontrando uma pequena trilha de terra. A luz acabava antes da trilha,
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então tive que pegar uma das lamparinas na parede.
Encontrei uma porta encostada, e a abri. Uma escadaria enorme se anunciava, desci por ali
mesmo. Olhei para os ferimentos em meu corpo. O corte no abdômen começara a arder, mas
nenhuma parte de meu corpo estava sangrando. Pelo menos, não que eu soubesse.
Revirei os bolsos de minha calça em busca de algum pano para colocar sob os ferimentos,
mas não tinha nada. Vi minha camiseta da Kiss rasgada, e tive uma vontade súbita, pela
primeira vez na vida, de jogá-la fora.
Eu já estava bem distraída em meu caminho descendo as escadas, quando meu instinto me
alertou o perigo. Olhei para cima, e uma rocha começou a descer rapidamente em minha
direção.
Esquivei-me, usando meu poder de ar para jogar aquela grande pedra para o outro lado.
Deixei a lamparina cair, queimando a luz. Droga! Agora eu estava imersa em uma escuridão
total. O escuro sem saber o que havia pela frente me causava calafrios. Na realidade,
causaria em qualquer pessoa que estivesse em sã consciência.
Ouvi um barulho de pedra caindo em água, e segui o som para saber do que se tratava.
Minha visão não só era melhor embaixo da água, como também estava se tornando
adaptável à escuridão. Consegui descer lentamente cada degrau, até chegar ao último - ou
primeiro, dependendo do ponto de vista. - e me deparar com um lago de águas límpidas. Eu
estava em uma gruta.
Uma gruta que ficava abaixo de uma cachoeira com paredes esmagadoras e galhos
assassinos. Muito peculiar, e posso dizer que aquilo era a cara do Andrew Callum, seja lá
qual fosse a sua feição.
Fiquei em cima de uma pedra enorme, observando a água embaixo. Eu conseguia ver meu
reflexo através dele, e uma luz lá de baixo começava a brilhar. Parecia ter algo ali que meus
olhos não conseguiam captar.
Um calafrio intenso percorreu meu corpo. Eu havia mergulhado com tudo na cachoeira, e
quando caí em terra, minhas roupas estavam coladas em meu corpo, praticamente. Não sei
como nenhum galho machucou minha pele, só fez leves arranhões. Na areia, meus pés
ficaram grudados, mas pelo menos eu tinha sobrevivido, até ali.
Ouvi um leve estremecer na parte de baixo da pedra, e aos poucos, ela foi soltando leves
faíscas, levantando poeira, até chegar à superfície. A rocha parecia estar se
desmaterializando, e quando dei por mim, já estava caindo na água do riacho da gruta.
Droga! Eu não precisava de um outro banho, estava bem com aquela roupa agarrada estilo
"a gripe vai chegar para você", e meu corpo sujo de areia. Tentei emergir para a superfície,
mas uma força maior parecia me puxar para baixo.
Comecei a afundar. Meus olhos estavam abertos, mas eu estava sendo puxada pelos pés por
alguém que eu não conhecia. Não consegui ver sua face, e não poderia ter a certeza se aquilo
era para o meu bem ou não.
Tentei soltar meus pés de suas mãos, mas quando consegui mexer a parte de cima de meu
corpo, já estava bem no fundo, e a pessoa tinha desaparecido. Era a Mascarada novamente,
só podia.
Consegui parar de pé, e minha respiração já estava se habituando à água, apesar de ter
perdido o ar por alguns segundos. Minha visão estava clara, mas o que eu via à minha frente
era definitivamente impressionante: um jardim submerso, com seis estátuas cobertas de
musgo, em poses artísticas. Bem na minha frente, uma estátua com uma mão levantada e a
outra rente à barriga, segurando um lenço de seda azul.
Ela tinha passado por ali, e isso só me fazia sentir mais confiança em seguir em frente.
Peguei o lenço em minha mão, e tentei amarrá-lo em meu pulso. Demorei um pouco
mais para conseguir, mas logo ele estava preso junto ao lado do lenço roxo. Estar embaixo
da água era realmente estranho, ainda mais quando se olhava para as próprias mãos, e se
notava um enrugamento dos dedos.
As estátuas estavam próximas uma da outra, formando um círculo, que fazia parecer que
queriam dizer alguma coisa. Não sabia se havia caído ali por acaso, ou se Andrew havia
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planejado a armadilha para mim, mas de qualquer forma, o lugar era maior do que eu
poderia imaginar visto de fora, e era bem planejado.
De qualquer modo, me fazia lembrar a cidade perdida de Atlântida. Fui para o meio das
estátuas de musgo, esperando que alguma coisa acontecesse, ou eu fosse abduzida ou sei lá o
que.
Uma luz vinda de um dos olhos começou a brilhar, chamando minha atenção. Me aproximei
dela, analisando-a. Era uma estátua de estatura normal, mas era a única dali que parecia
realmente estar vestindo um tutu de bailarina, em uma pose fazendo uma reverência, e
olhando para cima, como a me encarar. Seu olho voltou a brilhar, e parecia ter algo
escondido bem em seu fundo. Toquei-o com a ponta de meu dedo indicador esquerdo, mas
nada aconteceu. Se meu tato não estivesse me enganando, eu poderia dizer que aquela
parecia uma bola de gude, com alguma fonte de iluminação por dentro, pois parecia vidro.
O olho afundou, e caiu para dentro da estátua. Aproximei meu rosto da estátua, e o que vi
me fez prender a respiração.
Droga, deveria ter aprendido a ser mais esperta. Me afastei, pensando no que deveria fazer
em seguida, mas não foi necessário. O olho caído da estátua fez abrir um orifício, de onde
dava para ver um olho humano de verdade. Era como se a estátua fosse apenas uma casca
escondendo uma pessoa. Corri para o outro lado do círculo, mas da superfície de gesse de
cada estátua, começavam a surgir poliquetos, aquela classe de anelídeos representada por
vermes marinhos. Não que eu tivesse medo daquelas coisas, mas o meu nojo era muito
maior do que qualquer pensamento racional que eu pudesse ter naquele instante.
Saí dali tentando não encostar em nenhum deles, e comecei a nadar em direção à uma trilha
de corais que se anunciavam à minha frente.
Estranho como, por um momento, eu consegui andar perfeitamente embaixo da água, ao
invés de flutuar. Pensei, tentando desocupar minha mente de tantos pensamentos
impertinentes que surgiam. Não precisava saber a resposta para aquelas perguntas naquele
momento, só de um jeito de sair daquele lugar, enquanto eu ainda conseguia respirar.
Segui a trilha de corais, até ver uma linha de sangue escorrer de meu braço. Olhei para trás,
e vi uma sanguessuga-marinha pela qual eu havia passado. Decidi ignorar o corte, não havia
sido nada demais, mas eu teria que ser mais rápida do que aquilo.
Já estava há meio metro de distância, quando senti o ar me fugindo das narinas. Agora
ferrou mesmo.
Minha visão embaçou um pouco, e por alguns minutos, comecei a entender como era a visão
dos míopes. Que estranho!
Virei para o lado esquerdo, e tentei aumentar a velocidade que eu estava usando para nadar,
mas meus braços já estavam começando a se cansarem. Tentei nadar para cima, mas eu não
estava conseguindo chegar até a superfície, o jeito seria encontrar mesmo um jeito de sair
daquele lugar de uma vez por todas, antes que algum tubarão ou animal do tipo aparecesse.
Se isso acontecer, aí sim eu posso dizer que a coisa tá feia pro meu lado. Virei para a
direita, vendo de forma distorcida o que parecia ser uma passagem. Nadei até lá, mas a luz
que eu havia visto me enganara, era uma água-viva. Olhei para ela, e engoli em seco. Eu não
poderia voltar para trás, pois meu caminho estava cercado por cefalópodes enormes. Alguns
eram polvos, mas a maioria eram lulas.
A água-viva tinha uma imposição imperial, e eu pensei que nada poderia ser mais estranho,
até ouvir sua fala em meus pensamentos.

"O que deseja, jovem terráquea?"


Não sabia se ela poderia me entender dessa forma, mas respondi sua pergunta em meus
próprios pensamentos.

"Só quero passar mesmo."

"Você atrapalhou meus servos, e fez com que os Seis Guardiães fossem acordados. Por que
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eu deveria conceder seu pedido". Sua voz retornou, e senti uma apreensão maior ainda.

"Se eu me desculpasse adiantaria alguma coisa? Sabe, não foi minha intenção, só preciso
sair daqui." Respondi, sentindo que ele fazia movimentos com os tentáculos.

"Seu desejo, não será concedido." E dizendo isso em meus pensamentos, me jogou para o
outro lado do jardim submerso, me fazendo bater as costas em um ouriço.

- Aiiii! - pensei, sentindo a dor.


Meus olhos se reviraram para cima, mas voltaram ao normal ao ver a legião de cefalópodes
que estava vindo em minha direção. Do outro lado, seis estátuas, que antes estavam cobertas
de musgo, dessa vez, estavam cheias de vida. Abaixo do tentáculo de uma das lulas, estava o
lenço azul da Mascarada.
Lembrei do quanto o outro havia me ajudado lá em cima, então, apertei com força o lenço
roxo que ainda estava em meu pulso, mas nada aconteceu. Ai não, será que cada lenço só
funciona no lugar onde o encontrei?
Me levantei, e sem pensar duas vezes, lancei uma rajada de água em direção à todas as
criaturas que estavam na minha frente. Não sabia como havia feito aquilo, só que o conselho
de Isabella ainda estava presente em minha mente.
"Se seu corpo estiver em sintonia com sua mente, tudo se torna bem mais simples".
Pequenas águas-vivas começaram a surgir de todo canto, e criei uma barreira, que as jogou
para o outro canto. Isso me daria algum tempo.
As estátuas estavam se aproximando, só que mais lentamente, mas não pareciam estar de
brincadeira.
Nadei para o outro lado, jogando para trás com meu braço esquerdo duas lulas que estavam
na minha frente. Olhei para o lenço caído do outro lado, não poderia deixá-lo ali, e muito
menos voltar. Respirei fundo - aliás, não sei como ainda conseguia - e com uma rajada de
água, puxei uma correnteza em minha direção, trazendo o lenço até mim.
Os polvos começaram a me atacar, e nadei em direção ao lenço, me esforçando para pegá-lo.
Estiquei o braço, mas ele estava preso em um ouriço roxo. Um polvo veio para cima de
mim, e pousou seus tentáculos bem na minha face.
Tentei jogá-lo longe com o outro braço, mas ainda tateava em encontrar o lenço. Meus
dedos finalmente o localizaram, mas acabaram sendo espetados. Isso pouco importa agora.
Pensei, e apertando o lenço, desapareci dali. Meus olhos estavam fechados, mas eu sabia que
estava à porta de outro perigo. Senti um cheiro estranho.
Levantei do chão, e empurrei uma porta que estava praticamente aos meus pés. Do lado de
dentro, havia uma sala vazia. Adentrei, e quando olhei para trás, já não havia mais porta
nenhuma.
Pisei em um dos pisos do chão, e o mesmo caiu naquele instante. O chão era sensível ao
toque humano, e o piso que caiu, revelou embaixo um rio imerso em uma chama ardente de
fogo.
Dos dois lados da sala, começaram a surgir armadilhas com lâminas afiadas e duas gárgulas
perto do outro lado, onde estaria a saída, cuspindo fogo.
Então, é isso. Que o desafio de fogo comece.
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21. O crepitar do fogo

Me agarrei firmemente à parede. Alguns pisos haviam caído, então tive que controlar minha
respiração e pressão – a qual provavelmente tinha abaixado – e tentar não olhar para aquela
chama.
Cheguei à outra extremidade da parede sã e salva, mas não pude suspirar de alívio, pois uma
lâmina enorme passou perto de mim o suficiente para que ela cortasse o bolso traseiro da
minha calça. Essa eu senti na ‘bunda’, literalmente.
Já fazia algum tempo que a lâmina entrara em um orifício quadrangular embutido na parede,
e quando pensei em dar um passo, ela saiu novamente. Essa foi por pouco. Exclamei,
exaltada. O piso à minha frente era um daqueles soltos, então tive que pisar no seguinte a
ele, e logo mais, voltei para o canto à esquerda.
Uma gárgula de fogo posta ao lado direito lançava chamas em minha direção e tive que
passar correndo, mas outra lança vinha a meu encontro.
Parei abruptamente, e assim que ela voltara para o outro lado, eu notei a ruína à minha volta.
Atrás de mim, o piso continuava intacto, mas em cada lado e na frente, um piso estava solto.
Involuntariamente, olhei para baixo e me deparei com aquele rio de chamas que parecia
prestes a me devorar por inteiro.
- Natalie! Você tem que pular! – disse a mim mesma, tentando não desmaiar. Para de ser
mole, garota. Você não passou por tudo isso pra morrer nadando na areia. Meu diabinho
interior gritava para mim, e tive que me controlar para não começar a me debater comigo
mesma.
Se eu voltasse para trás e tentasse seguir outro caminho, a gárgula de fogo me pegaria. Se eu
continuasse ali, morreria. Se tentasse pular e a lâmina me pegasse, morreria também. Caso
eu pulasse e caísse, adivinhem só? Eu morreria.
As opções de finais estavam bem abrangentes, eu poderia sem sombra de dúvidas qual o
final mais infeliz que gostaria para a história da minha vida, mas escolhi ficar viva, muito
bem, obrigada. Preferia arriscar tudo, do que morrer no meio do caminho.
Sem pensar duas vezes, dei um pulo para a frente.
Caí em cima do piso, mas algo que não fora calculado estava prestes a acontecer. Uma
lâmina vinha em minha direção e eu não conseguiria levantar e correr a tempo.
Abaixei minha cabeça e elevei o braço direito, como se de algum modo eu pudesse evitar
aquilo tudo. Fiquei assim durante alguns segundos, mas não senti mais nada. Abri meus
olhos lentamente e o que vi me deixou confusa. A lâmina parara a poucos centímetros de
minha mão. Se eu esticasse os dedos, poderia senti-la.
143
Você tem poderes de ar, sua anta. Use isso a seu favor. Meu diabinho interior dizia em
minha mente, e tentei me concentrar em manter a lâmina estática.
Levantei lentamente, tentando não ficar muito nervosa. Dei meia-volta no piso em que
estava, e, de costas para a saída, continuei a andar, mantendo minha concentração na lâmina.
Pisei em outro piso, mas algo que eu não esperava aconteceu. Ele estava solto. Tentei me
segurar, mas não havia nada o qual eu pudesse me agarrar. Eu estava caindo, e aquele rio
flamejante incendiava à minha frente. Minhas costas estavam doendo de uma forma
lancinante e horrenda.
Estava quase chegando ao fundo, quando algo estranho aconteceu. Senti minhas costas se
abrirem e a dor se aprofundou mais. As pontas dos meus cabelos, que haviam se soltado,
ficaram a centímetros da lava, mas eu havia parado.
Em um movimento súbito, comecei a ir para cima. Estava silencioso lá embaixo, tudo o que
eu ouvia era um leve bater de asas.
Mas é claro... santas asas, vieram em boa hora.
Passei pelo orifício de onde um piso havia caído, e avistei um lenço caído. Era verde escuro.
O apanhei rapidamente entre meus dedos, e corri para a outra extremidade do cômodo, me
jogando contra a parede tentando evitar que a gárgula de fogo me pegasse. Senti a brasa
passando a poucos centímetros de mim. Encolhi a barriga, prendendo a respiração, não
poderia me mexer nem um pouco.
O fogo da gárgula se retraiu, e saí pela porta.
Encontrei um outro caminho, e novamente estava escuro. Quando o local fora iluminado,
algo em meu estômago se remexeu, e perdi a fome no mesmo instante. No meio do cômodo
se encontrava uma roda de madeira, com lanças pontiagudas feitos do mesmo material, e
como acabamento... sangue. Muito sangue estava jorrado pelo lugar.
Apesar da visão nada privilegiada, a roda apresentava algumas marcações. Dizia que a saída
se abriria assim que a roda fosse girada.
Nem ferrando que eu toco nisso, eu hein.
Fechei meus olhos e inspirei o máximo de ar possível, assim como da última vez. Tentei me
lembrar de como havia feito aquele feitiço com as lâminas afiadas, mas aquela lembrança
parecia-me muito distante. Tentei manter as forças de meus pensamentos concentradas ali.
Abri lentamente meus olhos, e vi a roda de estadas pontudas se mexendo. Deixei meus
braços caírem ao lado como forma de relaxamento e repeti o mesmo ritual que havia feito
anteriormente. Fechei meus olhos, respirei lenta e profundamente. Minha rinite estava
atacada.
Elevei meu antebraço na altura do peito e inspirei o ar que havia tomado, mas mantive meus
olhos fechados, visualizando imagens em minha mente, as mesmas que me vieram
anteriormente.
Eu estava apreensiva e minha respiração voltara a ficar ofegante – maldita rinite.
Ele parecia girar lentamente, e, sinceramente não sei se aguentaria mais. Tive a súbita ideia
de ir andando em sentido horário, pois daquela maneira eu não me sentiria tão cansada e
teria a sensação de que estava indo mais rápido. A roda parecia uma rosca enquanto um cano
enorme que estava em seu meio parecia girá-la.
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Tentei manter minha respiração controlada, mas a falta de circulação de ar me fez começar a
respirar pela boca.
Eu não conseguia olhar para cima para saber o quanto faltava para que ele chegasse ao topo.
Já estava me sentindo fraca, quando tive uma ideia. Se eu não conseguir chegar até o fim?
Acho que agora já está alto o suficiente para que eu desça.
Eu sabia que assim que parasse de usar meus poderes mágicos, a roda começaria a girar em
sentido anti-horário, então tinha que ser rápida. Pelo que eu havia percebido, aquela descida
parecia o poço do filme “O chamado”. Se a Samara estivesse aqui, eu faria ela me ajudar a
rodar isso.
Me preparei para pular, e assim que senti que estava pronta abaixei os braços e escorreguei
para dentro. A roda girara tão rapidamente que me dera a impressão de que eu não
conseguiria passar, e por um momento, realmente pensei isso quando ela chegou a seu lugar
novamente, ecoando um som estridente sobre a minha cabeça.
Não fiz ideia do tempo em que fiquei caindo, apenas sei que nesse momento eu estava me
sentindo como a Alice encontrando o país das maravilhas, só que sem maravilha nenhuma.
Caí em um túnel estreito e mal iluminado.
- É, parece que o filho de Callum gosta mesmo de um túnel estreito, viu!
Havia uma porta à frente e embora ela estivesse apenas encostada, algo chamou minha
atenção. Era um lenço de seda rosa claro, que estava jogado no chão, bem à frente da porta
com os dizeres:
Meninas de Seda

Outro lenço do mesmo tipo... mas qual seria o motivo de todos eles terem cores diferentes?
Uma questão de estilo, talvez? Duvido muito. Amarrei-o em meu pulso, junto aos outros
três.

Empurrei a porta receosa, mas meu coração quase sofrera um ataque cardíaco quando vi o
que havia lá dentro, e de um momento para o outro, me senti caindo.
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22. “Meninas de Seda”

De certo modo, eu realmente começara a cair. Tudo estava girando, ou era apenas eu? Meu
corpo foi lançado de um lado para o outro, e eu quase vomitara. Eu girava, como se naquele
lugar não existisse gravidade. Tive por um breve momento que não conseguiria mais parar,
até me cair de boca em uma grande esfera. Bem, não era exatamente circular, mas várias
crateras a circundavam.
Vou explicar para vocês a vista que eu via: eu estava no que parecia o centro de tudo. Havia
caído dentro de um buraco, mas ao redor, pude ver o que parecia algo enorme e circular. O
chão era branco, mas tinha alguns ladrilhados em preto, que pareciam meio soltos. Será que
se eu pisar neles alguma coisa acontece? Talvez um míssil seja lançado em minha direção,
porque é só o que tá faltando.
Saí da abertura onde eu estava, e pisei em alguns ladrilhados preto, que pareciam ceder
passagem para meus pés. Até que tinha alguma utilidade. A cada ladrilhado que eu tocava,
parecia fazer com que a esfera toda se movesse, levando-a lentamente para outro canto.
Consegui me levantar, me ajoelhando sobre o espaçamento preto. A esfera não parava de se
mexer, e até parecia uma bola sendo chutada. Me agarrei à superfície quando ela deu uma
volta completa, temendo cair.
Você tem asas, você tem asas. Meu diabinho interior parecia cantarolar em minha mente.
Como se eu estivesse com qualquer energia para suportar aquelas asas nesse momento. Me
levantei, me concentrando para não me desequilibrar de novo. Agora a esfera já estava do
outro lado, e pude perceber mais claramente que haviam várias mulheres – se é que fossem
mulheres de verdade – com vestidos à lhe cobrirem os pés, e volumosos, com a última
camada de seda vermelha. Uma máscara lhes cobria a face, e seus chapéus lhes cobria a
cabeleira.
Se eu estivesse certa, ali eu enfrentaria o desafio de ar. Sabia que os desafios eram
relacionados aos quatro elementos, pois primeiramente eu estivera em terra com aqueles
galhos malucos. Depois, caí na água com aqueles animais que nunca pensei que pudessem
sem tão intimidadores. Longe de mim não pareciam mesmo. E então, o portal se abrira para
o fogo e algumas estacas em chamas.
Para terminar meu teste de resistência, Andrew Callum fora bem engenhoso e esperto, e
posso dizer que a pessoa que o está ajudando me conhece bem, e pior, intimamente, pois
deixaram o desafio com o elemento que fizera meus poderes serem liberados.
As mulheres parecias estáticas, mas assim que eu me mexia, elas começavam a dançarem
em sincronia.
Isso vai ficar sinistro! Pensei, respirando fundo e pensando qual seria meu próximo passo.
Concentrei minhas forças e poderes em tentar libertar as minhas asas. Consegui, e por uns
instantes, até que levantei voo, mas estava fraca. Caí em um ladrilhado preto, e me sentindo
esgotada, acabei rolando metade do globo.
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As mulheres, que provavelmente eram reproduções muito bem feitas de Meninas de Seda,
começaram a dançar, com um braço acima da cabeça e o outro, rente ao estômago, em pose
de bailarina. Elas rodopiavam, sem saírem do lugar.
O globo continuava a circular, até quase colidir com a parede da frente. Nela, haviam várias
mulheres do mesmo tipo, mas não de corpo inteiro. Pareciam apenas bustos idênticos aos
outros. A parede começou a se abrir, e lá de dentro, uma outra pessoa surgia, mas aquela era
diferente das demais. Seu vestido era rosa claro, mas ia até seus pés. Uma chama
efervescente emergia de sua cabeça: suas madeixas eram ruivas, como as de uma
verdadeira... Dolman.
Senti-me estremecer por dentro só de imaginar que poderia ser Naomi, mas era alguém cuja
existência eu não acreditara ser possível de ser capturada. Era Victoria Dolman, ou mamãe,
para os mais íntimos. Se não fosse ela, era uma reprodução muito bem feita, com sua pele
pálida e sardas estrategicamente espalhadas por sua face. Seus olhos que apresentavam um
intenso brilho azul, mas escondiam uma grande tristeza.
Parei, tentando me manter imóvel, mas involuntariamente me desequilibrei e acabei pisando
em outro ladrilhado preto, o que fez as meninas rodopiarem cada vez mais, e a parede à
minha frente se abrir completamente. Victoria (ou seria uma boneca como ela?), estava de
braços esticados. De cada canto de seu braço uma corda de aço saía, com um gancho fincado
em sua carne. Ela estava imóvel, apenas a me encarar com seu doce par de olhos que
ficavam variando do azul para o verde, do verde para o azul, e assim sucessivamente. Seu
olhar parecia fixo em mim, como em um pedido silencioso de socorro.
"Salve as Meninas de Seda". Lembrei daquelas palavras que pareciam me perseguirem nos
últimos dias.
"Salve as Meninas de Seda." Cada vez que voltavam para a minha mente, aquelas palavras
pareciam ressurgir com muito mais força e precisão. Agora até que parecia fazer sentido.
Para salvá-las, antes de mais nada, eu teria que estar disposta a me sacrificar. Mesmo que as
verdadeiras Meninas de Seda não fossem elas, e eu não fizesse a mínima ideia de onde
estariam.
Eu estava cansada, e minha cabeça já começava a latejar de dor. Isso não importa agora, se é
o que Andrew quer, é o que Andrew terá.
Saltei sem pensar duas vezes, minhas asas se soltando atrás de mim. Daquela vez, a dor nas
costas nem me incomodara mais, afinal, meu corpo inteiro estava dolorido. Uma a mais era
mero detalhe naquele momento. Parei à frente de Victoria, podendo perceber que seus pés
flutuavam. Ela estava apenas presa pelos ganchos nos cabos de aço. Aquela visão me fez
tremer por dentro, mas eu precisava ser mais forte do que já fui em toda a minha vida.
Aguente firme, Natalie. Ela parecia dizer isso em minha mente.
Eu sabia que meu esforço seria físico, pois já estava quase vomitando tudo em mim de tanto
cansaço. Eu estava conseguindo controlar bem minhas asas, apesar da dor terrível em
minhas costas, então subi até onde ela estava, ficando rente à seus ombros. Soltei um gancho
com as mãos, e pude reparar em uma lágrima que escorria do rosto de Vic, ou melhor... de
minha mãe. Aquela cena era de cortar o coração, mas eu sentia que precisa libertá-la.
Soltei todos os ganchos do lado esquerdo, minhas mãos ficando ensopadas com o sangue
dela.
Mas ela não é real. Não tem como ser. Minha mãe se foi há muito tempo.
Quando me aproximei do lado direito para libertá-la, uma turbina de ar começou a soprar em
mina direção, me empurrando para trás. Tava demorando.
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Me agarrei à sua cintura, tentando me proteger de todo aquele vento, e com muito esforço,
consegui me agarrar à outro gancho. Fiz um esforço enorme para tirá-lo, pois sou canhota,
mas estava puxando com a mão direito.
Droga, droga, droga! Isso não deveria estar acontecendo.
Daquela vez, pude sentir sua dor quando finalmente a libertei de um gancho, e sua pele saiu
junto à ele.
Aguente firme. Sua voz voltada a permear meus pensamentos, e eu sabia que faltava pouco
para aquele pesadelo acabar.
Me agarrei com todas as forças que ainda me restavam em seus braços, e puxei com força o
último gancho. A turbina se tornou mais intensa, e dessa vez, me empurrou para tão longe
que caí novamente na esfera, com uma Menina de Seda dançante perto de mim. Eu estava
ferida, mas aquilo não importava.
Levantei abruptamente, mesmo com a cabeça latejante em dor, e corri até ela, tomando em
meus braços uma Victoria que parecia tão real, só que machucada e liberta pelos ganchos.
Minhas asas continuavam a baterem em minhas costas, mas eu sabia que não aguentaria
aquele esforço por muito tempo. Victoria começou a ficar mais pálida em meus braços. Ela
estava desaparecendo.
- Agora você pode usar a ajuda das descendentes das últimas Meninas de Seda. - ela cuspia,
enfraquecendo.
- Descendentes? Pensei que eu e Naomi fôssemos as últimas. – pestanejei, não entendendo
onde ela estava querendo chegar com aquele papo.
- Vocês são as últimas Dolman, e únicas que podem quebrar a maldição. – ela grunhiu, e vê-
la naquele estado, me fez sentir vontade de me derramar em lágrimas e voar para bem longe
dali. - Mas existem quatro outras descendentes, de famílias pequenas, mas grandes
guerreiras.
- Mas como eu faço para ter a ajuda delas? Nem sei quem são, como poderei chamá-las? –
falei tudo rapidamente, com medo de que ela sumisse antes que pudesse me explicar tudo
aquilo.
- Os lenços. - ela sussurrou, e senti sua voz se enfraquecer mais.
- Eles são todos coloridos. – eu falei, por um súbito momento, entendendo que não fora
Victoria quem colocara os lenços em meu caminho. Cada um deles, era de uma dessas
descendentes que ela estava falando.
- Elas tiveram que se disfarçar. Os lenços representam a cor do cabelo que cada uma adotou.
Cabelos ruivos são a marca da maioria das Meninas de Seda. - dizendo isso, ela desapareceu,
uma passagem se abrindo à minha frente.
Passei por ela, voando, e quando senti a firmeza da terra, finalmente pude guardar minhas
asas, na maior exaustão de meu ser. Aquela era minha última passagem. Assim que passasse
por ali, finalmente saberia toda a verdade, e descobriria de uma vez por todas, quem era meu
traidor.
Fiquei à espreita, vendo no final do corredor, uma garota amarrada com um saco a lhe cobrir
a cabeça, jogada no chão sujo. Mais duas pessoas se encontravam com sacos na cabeça ao
lado da outra, só que de pé.
Enquanto você tiver os lenços, estará protegida. Parecia a voz de Victoria a perturbar minha
mente de novo.
Por um momento, olhei para aqueles lenços amarrados em meu pulso. Eu sabia que eles
representariam alguma coisa, então por isso os mantive perto de mim. O primeiro que eu
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havia encontrado era o roxo. Depois, o azul, que já tinha visto antes. O terceiro foi o verde, e
por último, o rosa.
"Os lenços representam a cor do cabelo..." Paralisei, engolindo em seco, ao relembrar
aquelas palavras. As únicas garotas que conheço que tem cabelos diferentes dos demais,
são...
- As Veux. – falei baixinho, me lembrando delas, principalmente de Isabella Champoundry,
que uma vez me convidara para fazer parte. Por isso elas me conheciam. - Elas são as
descendentes das Meninas de Seda!
Arranquei os lenços de meu pulso, sabendo que seria questão de tempo para que elas
aparecessem, e os segurei firmemente com a mão esquerda.

Adentrei o local, mais decidida do que nunca a acabar com aquilo de uma vez por todas.
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23. A verdade é descoberta

- Eu já cheguei até aqui. Pare de mistério, seu covarde. Revele sua face. – gritei loucamente
com quem quer que estivesse ali, exalando minha fúria.
- Ainda não, querida. – ele respondeu. O filho de Callum. Finalmente estávamos próximos
um do outro. Talvez poderíamos jogar conversa fora e depois ele poderia me contar como
pretendia me torturar até a morte.
Tortura lenta, ou será que para ele eu já havia sofrido demais? Ri dessa possibilidade. Ele
não me atrairia como uma presa para seu esconderijo se não tivesse algo muito pior
reservado para o final.
Eu estava cansada e meu corpo doía por completo. Não seria muito difícil para ele me matar
naquela situação. Esse grande filho da mãe, viu. Ele sabia que se eu estivesse em boas
condições, me reunir com Naomi seria sua ruína, mas me fizera passar por todas aquelas
coisas antes de chegar até aqui, praticamente acabada.
- Onde está Nick? - perguntei, dando uma olhada ao redor. A garota no chão tinha a estatura
similar à minha, então deveria ser minha gêmea. Vê-la ali me fez sentir uma certa aflição e
angústia, ao mesmo tempo que em mim surgia um grande sentimento que eu só poderia
avaliar como amor, afinal, de todas as memórias boas e ruins que eu já tivera, da maioria ela
fazia parte. De pé, ao lado de seu corpo jogado, haviam mais duas pessoas amarradas com as
mãos para trás. Uma delas tinha quadris largos demais para ser a Nick. E a outra pessoa, era
um rapaz, pelo que eu pude perceber em seus ombros largos e roupas estrategicamente
sujos.
- Ela é o último de seus problemas. - ele me respondeu, saindo da escuridão onde estava, e
vindo ao meu encontro. Uma máscara preta lhe cobria o rosto todo, e por cima de suas
vestes pretas, uma capa enorme do mesmo tom, e um capuz a lhe cobrir a cabeça.
- Me fale, filho de Callum. - repliquei, reunindo para perto de mim a maior quantidade de ar
que eu conseguira. Minha rinite estava atacada novamente, e aquele lugar abafado só fazia a
situação toda piorar.
- Não me chame assim. - ele reclamou, e pude perceber que entortara os lábios para o canto.

- Eu não sei seu nome. - disse eu, só depois me dando conta que sabia sim. Andrew. - Não
pelo menos o nome pelo qual eu conheço você.
- Me conhece? Por que tem tanta convicção disso? - ele disse, dando mais um passo em
minha direção, e eu senti meu coração se apertando cada vez mais em meu peito.
Senti vontade de dizer: "Os leitores poderiam ficar decepcionados se você não for alguém
que eu conheça." Mas achei melhor não. Ele poderia nem saber que fazia parte de um livro.
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- De algum modo, eu sei que te conheço. - rebati, analisando-o. Se ele quisesse me matar
naquele momento, teria feito desde que eu chegara ali. Ele era esperto. - Seus lábios. Me
trazem algo familiar.
- Ah, sim. Meus desejáveis lábios, não é mesmo? - ele deu mais um passo em minha direção,
e eu senti minha espinha inteira se arrepiar.
Será que... Não pode ser. Debati comigo mesma, tentando acreditar que aquele não era o
monitor pelo qual eu me interessara.
- Eu vejo a dúvida plantada em sua mente. - ele disse, seu tom de voz me parecendo
familiar, mas eu não conseguira deduzir de onde. - E isso só deixa a diversão maior ainda.
- Por que você não me mata logo?! - me revoltei, brigando com ele. - Cansei do seu
joguinho. Ou se revele, ou me mate. AGORA.
- Calma! Eu não sou a pessoa com a qual você deveria se preocupar. - ele insinuou, com um
tom de desdém na voz.
- Ah, claro. - respondi, batendo em minha testa em tom de escárnio. - Por que eu deveria me
preocupar com um assassino que quer minha cabeça? Sei lá, talvez eu esteja enganada e
você tenha me chamado aqui pra jogar uma partida de UNO.
Ele riu, dando de ombros.
- Se nossos destinos já não estivessem marcados, nós dois Até que poderíamos ter dado
certo juntos. - ele se aproximou de minha face, e enroscou seus dedos em meus cabelos.
Se eu já não estivesse tão cansada, teria dado um chute em suas partes baixas naquele exato
momento.
Ele se virou, assim que ouvimos um barulho vindo do escuro.
- Ah, é você! - Ele disse, fazendo um gesto para que se aproximasse. Saindo da escuridão e
vindo direto para a luz, o mesmo lobo que me empurrara Cachoeira abaixo quando eu fui lá
com minhas amigas e... Bernardo. Aquele encapuzado estava familiar demais para o meu
gosto.
- Seu animal de estimação? - satirizei, sentindo meu coração gelar como nunca tinha
acontecido antes.
- Não apenas um animal, mas a pessoa por traz do plano todo. - dizendo isso, o animal
avançou em minha direção. Eu não tinha para que lado fugir, pois ele me pegaria de
qualquer jeito.
Libertei minhas asas, mas não consegui voar tão longe. Eu estava num cansaço físico
enorme. Os lenços haviam escapado de meus dedos, e não havia nem sinal de meus
protetores.
O lobo deu um pulo e conseguiu me alcançar. Ele mordeu uma de minhas asas, e
senti ela quebrando. Tentei segurar o choro, para não me dar por vencida, mas daquela vez,
não consegui. A dor me dilacerava em cada canto de meu corpo. Levantei do chão, e reuni
as poucas forças que ainda me sobravam e lancei uma rajada de ar nele, que o empurrou para
longe.
Ele não levou nem ao menos um arranhão, mas pelo menos eu conseguira atrasá-lo um
pouco. O filho de Callum havia saído dali. Deveria ter ido fazer um chá e o pipoca para
assistir minha derrota.
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O lobo voltou para minha direção, e pude ver em seus olhos o mesmo brilho que eu
conhecera antes. No Covil da Dama, na Cachoeira. Eram intensamente vermelhos. Ele me
empurrou, me jogando contra a parede. Minha costa estalou pelo impacto, e caí no chão
cuspindo sangue.
- Ah, tadinha da Natalie. - Andrew Callum voltara, e como eu previra, com uma caneca de
chá em sua mão. - Será que seria justo você morrer sem saber quem lhe causou tudo isso?
- Revele sua face. - eu falei, ainda no chão, cada segundo mais fraca. - Ou me mate.
- Que menina teimosa. - ele disse, me dando espaço para que eu pudesse me levantar. -
Assim eu me apaixono.
- Pare de joguinhos, Andrew. - disse eu, me apoiando à parede. - Eu tenho medo de já saber
que é você. - falei, pensando na última pessoa que eu desejaria que fosse o filho de Callum.
- Ah, mas você já sabe. - ele deu um riso debochado, e se aproximou Até que meu olhar
pudesse encontrar o seu. - Não está reconhecendo minha voz, Natilícia?
A menção do apelido me fez pensar que eu estava tendo alguma espécie de alucinação. Isso
não seria possível.
- Não... Não pode ser.
- Sim. – ele me contradisse. Puxou o capuz para trás, e com uma paciência que nem mesmo
eu tinha mais, ele revelou sua face.
Senti vontade de vomitar, chorar e dormir. Tudo junto.
Aquele olhar eu deveria ter reconhecido. Era o mesmo bocó com o qual eu havia dançado na
festa, e que me consolara quando perdi minha melhor amiga.
- Mark? Seu filho de uma...
- Não coloque mamãe no meio. – ele deu uma risada sinistra.
- Você é o filho de Callum durante esse tempo todo...
- Bobinha. – ele se aproximou e afagou minhas madeixas ruivas novamente.
- Tira a mão de mim. - falei, rangendo os dentes.
- A gatinha resolveu ficar arisca agora? - ele deu um passo para trás.
- Como pode ser você? - perguntei, tentando entender. - Você não é uma criatura mágica.
- Ah não? - ele deu um riso de deboche, e fez uma chama de fogo emergir da palma de sua
mão. Ele aproximou a chama de meu rosto, brincando comigo. - Não tenha medo. Eu nunca
queimaria seu rostinho lindo. - ele susurrou em meu ouvido, apagando o fogo. - Quero que
ele esteja bonito ainda quando eu tiver que ir no seu velório.
- Não toque em mim! - repeti, repelindo sua atitude.
- É bom saber que seu inimigo já beijou esses seus lábios deliciosos? - ele segurou com os
dedos de uma mão só meu queixo, apertando-o até fazê-lo formigar. - E que mal teria se eu
fizesse isso de novo, hein?
Cuspi em sua face, e ele se afastou alguns centímetros, limpando os olhos.
- Essa é a única saliva que terá de mim, seu desgraçado. - respondi, entredentes. - Só há uma
pessoa que eu gostaria de beijar nesse momento, e adivinhe só? Não é você.
- Ah, eu sei. - ele falou, dando de ombros. - Bernardo, seu amorzinho eterno. - ele riu-se. -
Mas sabe o que vai acontecer com ele? O mesmo que todas as outras da sua espécie tiveram
que fazer com seus amores. Matá-los.
152
Franzi o cenho, confusa.
- Do que você está falando? - questionei. O filho da mãe sabia como prender minha atenção
no momento certo. - Amor eterno? Por que eu mataria ele?
- Ah, você não sabe. - ele levou os dedos aos lábios, fingindo surpresa por aquilo. - A
maldição. Sempre a maldição. Bernardo é a pessoa que está destinada à você. Poderiam
viver um lindo amor por toda a eternidade, se não fosse, é claro, a mim para estragar essa
felicidade e garantir que a Maldição ocorra novamente. - ele fez uma pausa, e retornou. -
Todos estamos destinados à um amor eterno.
A uma pessoa pela qual poderíamos matar ou morrer. O primeiro Callum de nossa geração
foi rejeitado por uma Dolman. E sabe por quê?
Ela já havia encontrado esse amor. Desde então, a maldição foi lançada: todas aquelas que
nascerem sob a linhagem Dolman estará destinada à assassinar sua alma gêmea antes que
juntos possam ter uma filha. E sabe o que é mais interessante ainda? As Dolman só podem
gerar mulheres, pois assim, estarão destinadas à pagarem por toda a eternidade o erro
cometido por uma.
Fiquei boquiaberta diante de sua revelação.
- Mas eu não quero matar Bernardo. E sei que ele também não me deseja o mesmo...
- Não é questão de querer. - ele riu, cínico. - Tão bonita, mas tão tapada, hein? A
MALDIÇÃO. - ele gritou. - Não é uma questão de escolha. Nunca foi.
Olhei para ele de esguelha, e senti outra dor forte nas costas. Minhas asas estavam
quebradas, então não estavam encolhendo.
Mark me segurou novamente pelo queixo, e com muita audácia, me deu um beijo nos
lábios.
- Você poderia ser minha. - ele reclamou, parecendo inconformado. - Mas o destino quis
assim. - me soltou, e cai de costas para a parede.
Senti o que restava de minhas asas se quebrarem.
Ele me puxou pelos braços, me levantando. Cuspi todo o sangue que estava preso em minha
garganta na cara dele.
- Como você é má. - ele disse, passando sua capa na face. - Assim você me enlouquece mais
ainda. - um sorriso malicioso lhe brindava os lábios, e senti um embrulho no estômago só de
imaginar que ele poderia me beijar novamente.
- Você é nojento! - exclamei tentando empurrá-lo, mas estava praticamente sem forças.
- A coisa só está começando a ficar divertida. - ele me soltou, e foi até onde as três pessoas
que eu vira com saco na cabeça estavam. Ele pegou o menino nos braços, deixando no chão
aquela que eu acreditara ser minha gêmea, e a outra garota que eu não identificara.
Ele trouxe o menino para perto de mim, e lhe tirou o saco da cabeça. Era Bernardo.
Arregalei os olhos, sentindo-me estremecer ao lembrar das palavras de Mark.
"Eu vou garantir que a Maldição aconteça".
Bernardo parecia estar tão fraco quanto eu, e Mark tinha no rosto um sorriso psicopata.
- Depois que você acabar com isso, Natalie, nós seremos felizes. - Mark disse, enlouquecido.
- Para todo o sempre.
153
- Você só pode ter pirado! - exclamei, mas ao mesmo tempo, sentindo um forte instinto
dentro de mim.
- Pirei sim, em você. - ele falou, desamarrado Bernardo e o jogando no chão. Fui à seu
socorro, segurando sua cabeça com minha mão.
- Ber, fala comigo! - eu disse, vendo seus olhos se revirarem. - Fale comigo! - repeti,
apreensiva, e fiz o que pode ter sido meu maior erro: beijei-o. Foi um beijo puro e sincero,
como nunca havia feito com ninguém. Eu sentia um grande afeto, mas repentinamente, o
carinho foi se transformando em algo mais intenso. Senti um súbito desejo de lhe apertar a
cabeça Até esmagar seu crânio.
Me afastei dele, e fiquei olhando para Mark, que me analisava com uma expressão divertida
no rosto.
- O que está acontecendo, Mark?
- Só a Maldição. Não tardará a acontecer novamente.
Olhei dele para Bernardo novamente. Sentia um amor intenso percorrer por meu peito, mas
na mesma intensidade, queria matá-lo. Senti algumas lágrimas percorrerem por meus olhos,
e quando menos esperei, elevei seu corpo ao ar, e joguei-o na parede em um baque só. Ele
caiu próximo à meus pés, e aos prantos em lágrimas, dei meu golpe final.
***
A cena toda foi horrível, mas aquele instinto era bem maior do que eu. Não tinha como
controla-lo. Repudiei a mim mesma, chorando aos prantos ao lado do corpo de Bernardo.
Sua respiração estava fraca, mas ele precisava de cuidados médicos.
- Por que isso aconteceu? - dramatizei, chorando.
- Isso não é nem metade da maldição. - Mark disse, rindo.
- Como pôde ter sido tão cruel? Você me fez matar a pessoa que eu amava. Você matou
Catherine - levei aos mãos aos lábios, lembrando-me daquilo. - No Baile de formatura
também foi você, e quando Penélope morreu, e as meninas encontradas no Recanto
Proibido. Foi tudo obra sua, seu desgraçado.
Tentei bater nele, mas ele me conteve.
- Ei, não fale como se eu fosse o único ruim da história. - ele deu de ombros, começando a
relatar. - Na formatura foi fácil. Claro que a fila no banheiro não estava enorme, mas fiz o
serviço com tanta destreza. A Catherine tive que matar para te atingir, bem lá no fundo, e
sobre aquele papo de "ela era minha cunhada,
estou arrasado com isso". Por favor, né. E também, ela estava se tornando perigosa desde
que descobrira por acaso sobre a Sociedade. Precisava ser eliminada. Ela era esperta, sei que
acabaria descobrindo sobre mim. E sabe o que é melhor disso tudo? Os Callum são mestres
em disfarce e ótimos em encenação. Você acha mesmo que Paul ou Anna desconfiaram de
mim, sendo um pobre bocó sem poder nenhum? - ele riu, jogando a cabeça pra trás. - Claro
que não, e seria Hilário se o fizessem. Matar o verdadeiro Mark e assumir sua forma foi a
melhor coisa que já fiz. Apenas um pobre inocente, do outro lado do mundo, que não faz a
mínima ideia do mundo mágico.
- Mark... - sussurrei seu nome, sentindo um peso enorme. - Como pôde fazer tudo isso? Eu
não tenho culpa pelo passado...
154
- Quantas vezes terei que dizer que isso não interessa? - ele deu um sorriso psicopata, e falou
de forma calma. - Antes do seu golpe final, quero que saiba que eu não sou a mente por trás
disso tudo. Posso ser o filho de Callum, mas quem controlou o plano todo de acabar com sua
vida desde o início, é outra pessoa.
- Seu cúmplice! - exclamei, sentindo um ódio imenso de quem quer que fosse. - Quem é esse
infeliz? Mereço saber o nome antes que me mate.
- Seria melhor você morrer sem saber disso. -ele disse, e depois de uma pausa, continuou. -
Seu nome, é Helena Abelle Madelyne Callum. Minha meia irmã.
- Nem a conheço. - disse eu, confusa. - Por que ela está atrás de mim minha amigas?
- Você não entendeu ainda, Nat? - ele me olhou, parecendo por um momento sentir pena de
mim. - Ela É uma de suas amigas.
- Ellen? – levei as mãos à boca, horrorizada.
Meu Deus, mas por...
- Você é muito burra mesmo. – ele disse, perdendo a paciência, e pude perceber que atrás
dele, o lobo se pronunciava. – Ninguém melhor para ser a inimiga, do que a própria
vítima...
O lobo deu um salto, e se transformou numa mulher. Suas madeixas bagunçadas. De relance,
um par de olhos deixava de ser vermelhos, e se tornaram cor de mel me encaravam com um
brilho divertido. Um sorriso sarcástico lhe brindava os lábios.
- Nicole...
155

24. A última Dolman

Minha cabeça explodia em dor no momento em que consegui acordar. Apesar de tentar
apagar tudo aquilo de minha mente, as lembranças vinham nítidas em minha memória, de
tudo o que havia acontecido. Nicole era uma filha de Callum, com uma mutação genética
para lobos. Pelo que entendi, ela foi adotada por Victoria Carpenter, a mãe de Mary Anne,
quando ainda era uma criança, para que talvez, pudesse ficar longe do passado cruel de
sua família, e talvez assim, não seguisse o mesmo caminho que os outros.
Tentaram fazer o mesmo com Andrew Callum, ou Mark para os mais chegados, mas como
bem sabemos, tudo deu errado e ele fora sequestrado quando ainda era uma criança.
Do que me lembro daquela noite, sei que Adolf Callum ainda está vivo, escondido em algum
lugar tenebroso por aí, com sua esposa, Anneline Callum, a traidora da Sociedade Meninas
de Seda. Estranho né? Ela era uma de nós, e no final, acabou se deixando levar pela boa
lábia que os Callum tem, e se entregou à um amor tão doentio, a ponto de trair aquelas que
a haviam acolhido como família no passado.
Não dá para confiar em ninguém mesmo, e Nick seguiu o mesmo caminho. Mas tenho que
confessar, que quando olhei no fundo de seus olhos no campo de batalha, vi que ali dentro
havia uma alma bondosa, mas aprisionada por seu instinto natural de uma Callum: matar
uma menina de seda.
Sei que se ela não tivesse esse lado bom, talvez teria me matado muito antes. Ou será que
estou apenas divagando bobagens? Ah, não sei, viu. Só tenho o palpite de que a Maldição
não está nem no começo ainda. Sei que algo muito pior está por vir, e saber que minha vida
nunca mais estará em paz, não é um pensamento nada reconfortante.
Ouvi Anna dizer que Bernardo estava muito ferido, mas iria sobreviver. Pobrezinho,
descobrir meus sentimentos por ele tornava tudo diferente e muito mais perigoso, entende?
Mais cedo ou mais tarde, terei que partir de sua vida, ou deixá-lo ir, mas de qualquer
forma, será melhor saber que ele está vivo em alguma parte do mundo, mesmo que eu não
esteja na vida dele, do que morto por minha causa.
Meu Deus! Olhem só o que aconteceu comigo. Estou me tornando um completa boba
apaixonada, mas pelo menos pude compreender o que os filhos de Callum quiseram dizer
quando deixaram aquele bilhete que dizia "Para salvar aqueles que ama, terá que estar
disposta a se sacrificar primeiro". Algo assim.
Não quero que nenhum mal volte a acontecer, mas o futuro é tão incerto que eu temo só de
imaginar. Até que ponto eu iria para me livrar da Maldição? Sei que agora que reencontrei
Naomi poderemos abrir o diário juntas, e assim, descobrirmos o que fazer, mas me percorre
um arrepio em cada canto de meu corpo só de imaginar quem pode se machucar até lá, ou
quais serão as pedras em nossos caminhos.
156
Talvez isso não tenha tanta importância assim, é mais o fato de sabermos que podemos
contar uma com a outra.
Naquele dia em que encontrei meus inimigos, lembro que Ellen também estava lá. Era uma
das garotas com saco na cabeça. Tadinha, será melhor para ela que se afaste de mim, mas
depois de ter perdido Nick, desejava apenas que ela ainda conseguisse olhar na minha
cara.
Naomi foi encontrada em um estado crítico, mas ela ficará bem. Se duvidar, deve estar até
mesmo melhor do que eu nesse momento. Assim espero, estou nesse hospital há dias. Acho
que é minha terceira semana aqui. Ouvi as vozes de cada pessoa que entrou aqui para me
visitar durante esse tempo. Anna não havia saído do meu lado, e como Enfermeira, ela
poderia ajudar.
Paul está cuidando do sumiço de Helena e Andrew Callum. Só me lembro de ter lutado com
eles até esgotar minhas forças, e que com uma pancada na cabeça, acabei desmaiando em
minha própria poça de sangue.
Ouvi dizerem que as Veux apareceram. As Veux, ou melhor dizendo, a atual geração de
Meninas de Seda. Essas meninas são mesmo uns amores, viu. Sei que elas lutaram com os
Callum, e que Paul e Anna conseguiram chegar ao local onde nós estávamos, mas naquele
momento, os dois desapareceram.
Eles estavam muito machucados, pelo que Paul disse, então não sabíamos ao certo se ainda
estavam vivos, ou se haviam morrido, mas de qualquer modo, Paul disse que havia alguém
ajudando eles, e poderia ser o próprio Adolf Callum, o ordinário responsável pela morte de
minha mãe.
Em todas essas três semanas no Hospital das Quimeras, é a primeira vez que acordo e a
primeira coisa que dei de cara, foi um diário. Mas não era o de Sarah, muita avó. Era um
novo, com meu nome escrito na capa e na primeira folha, uma frase:
"Aqui se inicia uma nova história".
A caligrafia era tão parecida com a minha, que só pode ter sido Naomi quem o deixou aqui.
Espero que seja mesmo, e que ela esteja bem.
Passa das duas horas da manhã, e apenas a luz do abajur está ligada, mas ouço passos do
lado de fora. Terei que parar de escrever, e voltar a dormir. Ou pelo menos fingir, não
quero que me peguem acordada, isso poderia não ser muito bom.

Com carinho,
N.D.

Coloquei o diário no criado-mudo, tomando todo o cuidado possível para não fazer nenhum
barulho, e desliguei a luz do abajur. Pousei minha cabeça no travesseiro, e fingi que estava
dormindo. Chovia do lado de fora, e aquele som de água escorrendo pela janela do quarto
faria com que eu não demorasse muito para pegar no sono de uma vez por todas.
***
14 de fevereiro, ao amanhecer - quarta-feira
157
- Você ficou quase um mês em coma, Natalie! - Anna afagou meus cabelos, assim que
chegou em meu leito e me encontrou acordada. - Tem algumas pessoas lá fora que querem te
ver.
- Minha cabeça ainda está doendo muito. - falei, sentando-me na cama. - É uma boa ideia
ver quem quer que seja?
- Se preferir, pode descansar um pouquinho mais até completar um mês inteiro. - ela disse, e
percebi que seu sarcasmo se aproximava do meu. Deveria ser a convivência, só podia.
- Como os outros estão? - perguntei, preocupada. - Naomi está bem? Ellen sei que não se
machucou muito, mas faz tanto tempo. E... Bernardo sobreviveu?
- Estão todos melhores do que você! - ela respondeu, e eu não sabia se poderia considerar
aquela resposta como positiva ou não. - Naomi veio te visitar algumas vezes. Você precisará
ter muita paciência com ela. - Anna entortou o lábio para a direita.
- O que quer dizer com isso? - perguntei, aflita.
Ela sentou-se na borda de minha cama, e disse no tom mais pacífico possível.
- Ela não se lembra. - Respondeu, parecendo pesar quais eram as palavras ideais para o
momento. - Não se lembra do que aconteceu na infância de vocês, nem do momento em que
foi sequestrada. A única memória que ela tem recordação, foi da última vez que se viram,
por isso ela sabe que vocês são gêmeas, e durante esses dias, eu e Paul temos protegido ela e
contado a verdade aos poucos. O que aconteceu com os pais de vocês, porque ela foi
sequestrada e tantas outras coisas. Mas tudo aos poucos, então tenha toda paciência possível
com ela.
Assenti, respondendo:
- Pode deixar, ela é minha irmã. Devo isso à ela.
Anna afagou novamente minhas madeixas, me lançando aquele olhar maternal que ela só
usava após eu sobreviver à alguma enrascada.
- Ela vai precisar disso. - Anna exclamou, e levantando-se de minha cama, disse. - Ellen
também veio te visitar algumas vezes. Ela está preocupada com você.
- Bom saber que ela não me deixou! - disse eu, feliz por ter pelo menos uma amizade
verdadeira. - Mas para ela, seria melhor que se afastasse de mim.
- Não se martirize. - ela sussurrou, medindo minha pressão. - E quanto aquele seu
namoradinho, o Bernardo... - assim que ela citou o nome dele, senti-me estremecendo por
dentro. - Ele está bem. Quis te visitar algumas vezes, mas não deixamos. Sabe que não
poderá voltar a vê-lo, certo? - Anna sabia o momento ideal para estragar um momento
bonito com algum assunto que me chateasse.
- Sei. Sim. - respondi, pensativa. Sabe-se lá as coisas ruins que poderiam acontecer caso eu
resolvesse colaborar com o que o destino havia traçado. Poderia ser difícil de aceitar, mas
não seria impossível conviver com isso.
O quanto eu poderia estar enganada?
- Posso mandar entrar? - Anna interrompeu meus pensamentos, e não entendi no primeiro
momento, até me dar conta de que ela se referia às pessoas que queriam me ver.
- Claro! - dei de ombros, tentando ficar animada, embora sentisse que minha pele abatida e
pálida pela falta de Sol não ajudaria muito nesse aspecto. Anna saiu, e quando voltou, trazia
158
consigo quatro meninas de cabelos longos e coloridos. Saber que elas salvaram minha vida e
eram descendentes de Meninas de Seda só me fazia sentir um certo remorso por nunca ter
dado devida importância à elas. Nós poderíamos ter sido boas amigas, e quem sabe eu até
entrasse pro clube. Nada mais justo, e seria uma boa ser uma Veux, talvez com o cabelo
cinza. Eu poderia até pensar na ideia mesmo, me livrar um pouco do ruivo natural e
desapegar de tudo o que já havia acontecido.
- Você está melhor? - Isa Champoundry, a de cabelão azul perguntou, me analisando de
perto. De todas, ela sempre fora a minha favorita, até porque era a única com a qual eu
realmente falava na escola.
- Estou, e devo minha vida à vocês. - entortei o lábio para a esquerda, em uma tentativa de
sorriso, mas meus lábios estavam secos demais.
Agora imaginem só o bafo de onça, meus Deuses!
- Nós só fizemos parte de nossa obrigação em proteger as duas Meninas de Seda
descendentes da principal família. - Dáfne respondeu, me encarando de forma meiga e
delicada. Quase pedi pra ela não fazer aquilo. Me lembrava a Nick. Suas madeixas rosa
pareciam muito maiores do que eu conseguira me lembrar. Vanessa Roux apenas assentiu
com a cabeça, se fazendo entender que me desejava melhoras. Ela não era de demonstrar
sentimentalismos, embora se importasse. Seu cabelo estava num tom bem mais claro de
verde, e até combinara mais com sua personalidade.
- Somos meros mortais suscetíveis à ruína. - Safira exclamou, estando mais distante de mim
do que as outras. - Nossa função, é mantermos uma à outra a salvo. - ela observava a todo o
redor, com seu olhar crítico e analítico.
As outras assentiram.
- Quero que saiba que embora só você e sua irmã possam salvar as Meninas de Seda, te
ajudaremos naquilo que for necessário. - Isa disse, espirrando. - Somos como uma família.
- Obrigada. - respondi vagamente, e percebi que as madeixas de todas estavam mais claras
do que eram. Isa percebeu minha análise, e exclamou:
- A intensidade do tom capilar varia conforme nossa força e amadurecimento. - explicou ela,
pegando uma mecha do próprio cabelo. - Quanto mais claro, mais amadurecimento e
poderes se deliberando.
- Ah, sim! - exclamei. Elas ficaram ali mais ou menos meia hora conversando comigo sobre
tudo o que havia acontecido. Como descendiam de Meninas de Seda, a Maldição já havia se
proliferado nelas, e cada uma teve que fazer com seus amores o mesmo que fiz com
Bernardo. Só que muito pior.
Elas diziam não saberem qual era a outra parte da Maldição, mas obviamente, era pior do
que a primeira. Mas o que seria? Talvez Naomi pudesse me ajudar a descobrir isso. Ela teria
que me ajudar, ou caso contrário, a Sociedade estará perdida de uma vez por todas.
***
16 de fevereiro, sexta

Dois dias após acordar do coma, me liberaram do hospital. Anna seria minha enfermeira
particular até que eu recuperasse as forças completamente. Paul estava para lá de
159
preocupado, e fizera até menção de contratar para mim e Naomi um segurança, o que
convenhamos, era um tremendo exagero. Mas, depois de descobrir quem estava por trás de
tudo, ele não conseguia simplesmente confiar em qualquer pessoa.
Fui para a escola. Já estava em período de aula, mas aquilo pouco importava. Na realidade,
não tinha importância nenhuma. Eu estava ali por simplesmente estar, nada demais.
Subi para meu quarto, e encontrei no caminho, Joanne. Ela havia cortado o imenso cabelo na
altura dos ombros, e até que ficara bonito. Ela me viu, mantendo aquela pose de soberana,
mas a cumprimentei com um gesto de cabeça.
Fazia sentido ela não gostar de Nicole, e quando elas brigaram no banheiro, ter dito "Eu
sinto o seu cheiro!". Era o cheiro de loba com humano, de quem havia acabado de matar
alguém.
Joanne nunca me contou nada pois dei o azar de não ir com a cara dela à primeira vista,
então eu não acreditaria naquela época se ela tivesse me contado. Algumas coisas
começavam a se encaixar, finalmente, mas haviam muitos mistérios ainda.
Nada que mais um livro ou dois não pudessem resolver.
Fui para meu quarto, e encontrei no vão da janela, uma silhueta idêntica à minha e cabelos
brilhantemente vermelhos.

- Sabia que esse seria o primeiro lugar que você viria. - ela falou, e pude perceber seu tom de
voz muito parecido com o meu.
- Como sabia? - perguntei, jogando minha bolsa de colo na cama, e indo em sua direção.
- É o que eu faria. - respondeu ela, se virando para mim. - Existe algo melhor a se fazer
depois de um coma de quase um mês, do que ir direto pro dormitório tirar um cochilo?
Ela tinha o mesmo senso de humor que eu: sarcástico, levemente imbecil, mas irreverente e
nem sempre engraçado. Ela ficou me encarando por alguns tempos, com um sorriso travesso
a lhe brindar os lábios.
- É bom finalmente conhecê-la, irmã. - ela disse, e se aproximou de mim me dando um
abraço.
Em uma escala de 0 à 10, o quão bizarro é abraçar uma pessoa exatamente igual à você? Só
o suficiente para ser levemente desconfortável de início, e bastante bom depois disso.
Ela me disse que havia perdido a memória, mas esporadicamente sonhava com uma casa
abandonada, que só poderia ser a Sede da Meninas de Seda.
- Passei um tempo lá, eu sei disso. - ela falou, parecendo preocupada. - Era maravilhoso. O
lugar era bonito, não sei como está hoje, mas tenho relapsos de memória de vez em quando,
e vejo essas coisas. Não é tão longe daqui. - ela disse, me encarando. Droga, era como estar
olhando para o próprio espelho. - Poderíamos ir lá, isso se Paul permitir. Talvez ao rever
aquele lugar, minhas memórias possam voltar.
- Não se preocupe, eu converso com ele hoje mesmo. - disse eu, me jogando na cama. - Ele e
Anna podem ir junto. E sabe o que seria legal? - perguntei, encarando-a, e ela sorriu, como
se soubesse o que eu diria em seguida. - Nós levarmos o diário, já que ele retornou para
nossas mãos, e tentarmos abrir lá. Dizem que somente juntas podemos fazer isso, então não
tem erro.
160
Ela assentiu, e eu fui até o criado-mudo para procurar o diário, lembrando da minha reação
quando Anna o entregou à mim, e disse que ela e Paul já sabiam há um bom tempo que eu o
havia perdido. Sei que foi irresponsabilidade minha, e aquilo quase me matara, mas eu não
deixaria que acontecesse mais nada. Pelo menos tentaria.
Em cima de meu criado-mudo, havia um bilhete. Era idêntico à todos os outros que eu havia
encontrado antes, e embaixo dele, estava o convite para a morte que eu encontrei há muito
tempo. Ainda estava escrito apenas meu nome, mas o que me instigou mesmo, foi ter aberto
o bilhete, e lido a frase:

Nicole e Mark não são os únicos traidores. Cuidado.

Naomi arregalou os olhos pra mim, e eu sabia que embora fosse me meter em outras
enrascadas, pelo menos naquela eu não estaria sozinha.
161

Epílogo

16 de fevereiro, sexta.

Paul e Anna encerraram suas atividades na escola para levarem à mim e Naomi na seda das
Meninas de Seda. Naquele dia eu havia conversado com Samuel, e apresentei-o minha irmã.
Acho que ele ficou encantado com ela, ou no mínimo, surpreso por eu ter alguém idêntico à
mim. Amanda Luporini também veio nos cumprimentar, e ela parecia estar se sentindo
culpada por não ter me acompanhado. Disse à ela que estava tudo bem, não acredito que ela
poderia ajudar muito, e caso algo desse errado, poderia até piorar a situação.
Vi Mary Anne, e ela estava simpática como sempre.
- Vocês são um bando de idiotas retardados. - ela exasperou, parecendo decepcionada. -
Quem esse Mark filho da mãe pensa que é? E onde a Nole estava com a cabeça em trair
você de tal forma? Meus deuses, onde o mundo vai parar com essas crianças? - sabia que no
fundo ela estava fazendo o mesmo que Joanne fez quando soube que Penélope havia
morrido: estava fingindo não se importar para esconder seus sentimentos.
Apesar de tudo, ela garantiu que poderia me ajudar no que eu precisasse, pois sua mãe
conhecia intimamente a história das Meninas de Seda.
Saí da escola com Naomi, e Paul e Anna em nossa cola. Até parecíamos uma família, e para
quem não conhecesse, poderíamos ser considerados normais.
Paul nos teletransportou até a entrada da casa. No alto do portão, lia-se uma placa:

Família Dolman

Parece que o destino estava obstinado em me fazer terminar essa história do mesmo modo
como comecei, na casa da família. O local estava abandonado, mas apenas uma pessoa digna
de ser uma Menina de Seda poderia adentrar o portão, então eu e minha gêmea
entramos. Ela me conduziu por aquele caminho que eu conhecia tão bem em sonho, mas na
realidade era muito mais frio e sombrio do que imaginara. As folhas secas chacoalhavam nas
árvores, e um vento passado por nós, bagunçando nossas madeixas. Acho que já está na
hora de cortar esse cabelo, viu.
Adentramos o Hall de entrada. A sala estava com os móveis envelhecidos, teias de aranha
cobriam cada canto e desciam do teto até o piso. A sala, embora estivesse diferente, ainda
pude reconhecê-la. As três cadeiras das Meninas de Seda principais, e as menores ao redor.
Um grande espelho se encontrava próximo ao canto.
- Venha! Quero te mostrar uma coisa. – a voz de Naomi anunciou.
162
Ela puxou o espelho, e o abriu, mostrando que ali havia uma passagem. Ela entrou, e eu na
confiança de que nada poderia dar errado, a segui.
Chegamos do outro lado, onde uma cama cobria metade do cômodo.
- Aqui... é o antigo quarto de Victoria. – disse ela. – Nossa mãe.
Arregalei meus olhos, observando a cada detalhe daquele quarto.
Algumas fotos pendiam na parede, mas a que me chamou a atenção foi o maior deles, uma
imensa foto de corpo inteiro de minha mãe.
- Esse quadro é em tamanho real. – disse Naomi, notando meu interesse. Ela se aproximou
mais de mim. – Tenho um presente para você.
Ela abriu a primeira gaveta do criado mudo, o qual estava do lado da cama.
- Agora sim você será uma verdadeira Menina de Seda.
Era uma caixa, daquelas de joias, um pouco maior do que o convencional.
Abri-a, e me deparei com duas máscaras, em tamanhos ajustáveis, mas idênticas. Elas eram
prateadas, e cobriam boa parte do rosto. Meus dedos estremeceram ao tocá-la. Era tão frágil
e bonita, que senti até medo de que pudesse se desfazer em meus dedos. Coloquei-a em meu
rosto, e logo ela se alterou. Ficou menor, e sua cor mudou de prata para dourada. Meus olhos
ficaram sobressaltados, e mudaram a coloração também. Ficaram num violeta vívido e
brilhante.
Minha roupa em meu corpo ficou mais colada, e eu sentia as asas se proliferando em mim.
Só que elas não saíram, mas a dor que senti foi uma pontada terrível. Eu fiquei tanto tempo
desacordada que até havia me esquecido de que minhas asas haviam se quebrado. Não sabia
se elas se regeneravam, ou eu simplesmente teria que viver com uma asa quebrada, e outra
que não suportaria meu peso, mas tudo bem.
- Coloque a sua também. - disse eu, indicando com o polegar a caixa de jóias, onde a
máscara dela ainda estava.
Ela deu um riso, e segurou a caixa em suas mãos, mas não fez nada
- Essa foto... – disse ela, voltando-se para o quadro. – Tem algo nela que me intriga... Acho
que já o vi em sonho.
Olhei para o quadro novamente, onde nossa mãe estava com um vestido de noiva. Suas
madeixas vermelhas estavam presas, e ela, bonita como eu nunca havia imaginado antes.
- A mim, não. - disse eu, dando de ombros.
- Não sei o que é... mas é estranho. - ela retornou, e pousou as mãos delicadamente sobre
meus ombros, me empurrando para a frente. - Olhe bem.
Subimos os degraus, até ficarmos face a face com o quadro.
- É uma bela fotografia. - disse eu, tocando a moldura do quadro, imaginando como teria
sido se eu tivesse vivido naquela época. - Você não acha? - perguntei para Naomi, olhando
sob meu ombro, mas ela não estava mais do meu lado. Havia descido e eu nem notara.
Ela estava segurando a caixa em suas mãos, e refletia como se quisesse pegar a máscara,
mas não pudesse.
- Sabe por que não coloco minha máscara? - ela encarou-me, com um leve pesar. - Pois
somente quem está destinado à ela, poderá usá-la. - sua feição mudou de suave para fatal, e
seus olhos, antes castanho escuros, mudaram para uma tonalidade de vermelho que eu bem
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conhecia. Ela deixou a caixa cair à seus pés, e em um piscar de olhos, se transformou bem
na minha frente. Suas madeixas antes ruivas e compridas foram se tornando médios e loiros,
levemente bagunçados. Sua estatura ficou um pouco menor, e seu riso se tornou debochado.
Nicole.
- O que faz aqui? Você não pode entrar... - comecei minha série de perguntas, preocupada
em onde estaria minha verdadeira irmã.
- Minha mãe não é digna de ser uma de nós... mas acontece que eu sou imune a barreira,
pois embora eu seja filha do inimigo, meu coração é guerreiro o suficiente para me tornar
uma Menina de Seda. – ela falou ameaçadora.
- Pensei que tivesse fugido. – disse eu, estremecendo.
- É o que todos acham. Mas um inimigo não pode abandonar sua presa tão fácil. - ela
retrucou.
- Eu confiei em você! - comecei a gritar com ela. - Eu passei por tudo aquilo para te salvar, e
a primeira coisa que você fez, foi trair minha confiança, sua ordinária.
- Eu sou uma Callum. Não tenho culpa se isso é natural para mim. - ela retornou, como se
fosse a vítima da estória.
- Onde está Naomi? - perguntei, sentindo minha fúria assumir meu corpo.
- Ela está bem, estava em aula quando você chegou hoje cedo, e cuidei nos mínimos detalhes
para que você não encontrasse a verdadeira enquanto estivesse comigo. A escola é grande,
serve para essas coisas.
- Mas como Paul ou Anna poderiam descuidar assim? Como não desconfiaram quando
viram duas Naomi andando pela escola? - engoli em seco, me dando conta de que aquela
altura, todos já sabiam que eu e Naomi éramos gêmeas, e sendo Nick uma boa atriz, não
seria difícil para ela fingir que era eu para despistar, ou nós duas sermos vistas juntas. -
Droga! - reclamei, ainda gritando.
- Tolinha! - ela exclamou, sabendo que o uso de diminutivos só me deixava mais irritada
ainda em uma discussão.
Seus olhos mudaram de um instante para o outro de vermelho para mel, mas logo voltaram
para a outra cor. Ela me olhou séria, e por alguns segundo, pensei que estivesse fora de si.
- Preciso que você entenda o que me levou a fazer isso. - ela abaixou a cabeça por um
momento, e eu sei saber como reagir. Quando ergueu novamente, seu olhar estava mais
ameaçador do que antes. - Desculpe-me, mas isso é mais do que necessário.
Ao dizer isso, ela empurrou uma rajada de ar, que me fez cair em cima do quadro, mas ao
invés de bater nele, meu corpo foi projetado para trás, adentrando o quadro. Seria outra
passagem?
Minha mente começara a girar, e, antes que meu corpo atingisse o fim daquele terrível túnel,
desmaiei. Talvez eu tivesse ficado desacordada por alguns segundos apenas, mas não sabia
ao certo o tempo que eu ficara desacordada.
- Venha! - uma voz assustada disse, subindo as escadas. Ela abriu a porta do quarto,
parecendo assustada. - Ele está de volta, Vic. E dessa vez, ele quer você.
Levantei do chão, me sentindo desperta, e acompanhei a moça exaltada até o topo da escada.
Estávamos na Sede da Meninas de Seda, mas havia algo estranho. A sala não apresentava
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mais teias de aranha, e as cores dos móveis estavam mais nítidas do que nunca.
Minhas mãos estavam dormentes e meu pé esquerdo com cãibra. Fiz um coque com meu
cabelo no alto da cabeça. Parei, notando algo estranho. Minhas madeixas estavam mais
enroladas do que o habitual. E parecia mais macia também.
Olhei para a moça que eu não conhecia, e analisei o que ela havia me dito, desconfiada.
- Do que foi que me chamou? - perguntei, um pouco zonza.
- Vic. - ela respondeu, puxando meu braço, apressada. - Pensei que gostasse, Victoria.
Ela começou a corre comigo pela escada, mas parei ao ver um espelho. Talvez não fosse
tempo para aquilo, mas eu precisava entender o que estava acontecendo. Arregalei os olhos
ao me deparar com a imagem reproduzida. Ainda tinha o mesmo brilho no olhar, mas a
coloração de meus olhos haviam mudado de castanhos para azuis. Minha silhueta parecia
mais larga, e eu aparentava no mínimo, uns 5 anos à mais do que eu realmente tinha.
O que está acontecendo? Perguntei a mim mesma. Tentei acreditar que tudo aquilo não
passava de um sonho, mas as imagens estavam tão nítidas como nunca havia visto em sonho
nenhum antes.
Um baque soou no outro lado da casa, e a mocinha que estava comigo me puxou fortemente,
quase me fazendo cair.
- Victoria, venha! - ela exclamou, e comecei a correr com ela. - Ele está vindo. Temos que
sair daqui. Corremos para fora da casa, e ela me teletransportou. Chegamos à uma casa
menor, mas ainda não fazia a menor ideia de onde estava.
Vi ao longe um Paul que eu bem conhecia, só que alguns anos mais novo.
- Paul! - exclamei, feliz por vê-lo.
- Fiquei sabendo que o Conselho está atrás de você. Mas sei que você não é a traidora,
iremos descobrir o que aconteceu, Vic. - ele me consolou, afagando minhas madeixas com
suas mãos enormes, e depois beijou meus lábios.
Epa!, pensei, só então me dando conta de que aquele corpo já não era mais o meu, e até que
eu descobrisse uma forma de sair dali, teria que me conformar com todas as vantagens e
consequências que estar no corpo de Victoria traria.
Ela sempre estivera dentro de mim. Agora, era eu quem estava dentro dela.

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