Dokumen - Tips - o Arranjo de Marco Pereira My Funny Valentine
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Resumo: Este artigo apresenta uma análise do arranjo do violonista brasileiro Marco Pereira
para a canção norte-americana , com o intuito de explorar e entender a
My Funny Valentine
transformação de um tema de música popular aberto em uma peça fechada para instrumento
solo. Para tanto, foi traçado um breve histórico da hibridação na música brasileira com ênfase
no violão solista, e uma abordagem a respeito das particularidades e potencialidades do uso da
leadsheete da partitura convencional.
Palavras-chave: Leadsheet.
Marco Pereira. Hibridismo. Arranjo.
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8/10/2019 O Arranjo de Marco Pereira - My Funny Valentine
O
diálogo entre os universos do erudito e do popular, da alta e da baixa cultura, do
centro e da periferia, da “pequena” e da “grande tradição”, é um tema que merece
ser tratado com bastante cuidado, a fim de que não se faça julgamento de valor.
Mas também
diferem estes não
doisse pode ignorar
âmbitos, a existência
e, tendo-se em vistadeoambos. Háque
interesse características marcantes
o tema desperta que
pelo fato
de não serem definidas nem definitivas suas fronteiras, os agentes, os mediadores e os
conceitos, parece justo nos debruçarmos um pouco sobre este assunto.
O hibridismo, conforme observa Oliveira (2009: 12), encontra-se presente na
obra para alaúde e vihuela desde o século XVI. O autor cita a obra de Luis de Narvaes,
Diferencias sobre Guardame las, vacas
na qual são desenvolvidas variações sobre o tema
popular homônimo do período. Esse procedimento, adotado por vários compositores ao
longo da história da música ocidental, parte da apropriação de melodias e ritmos populares,
tal como podemos observar em várias peças sinfônicas e camerísticas baseadas em ritmos
de dança de salão europeus nos séculos XVIII e XIX - como a valsa,mazurka,
a o schottisch
e a polca. No Brasil, Kiefer (1979) aponta para a nacionalização de tais danças europeias,
constituindo tanto a adaptação ao “estilo” brasileiro quanto a fusão e a geração de novos
gêneros como o maxixe, o tango brasileiro e o choro. Essa influência pode ser percebida
claramente, no violão, naSuíte Popular Brasileira
de Heitor Villa-Lobos - formada por
Mazurka-choro, Schottisch-choro, Valsa-choro, Gavota-choro
e Chorinho
- a qual se encontra hoje
como parte integrante do repertório canônico do violão de concerto. Ainda no repertório
do violão romântico/moderno, que precede o nacionalismo deliberado, encontramos dois
prolíficos exemplos: o espanhol Francisco Tárrega, grande difusor do violão e importante
nome no desenvolvimento técnico do instrumento, que compôs peças inspiradas em
sonoridades regionais, comoRecuerdos de La Alhambrae Capricho Árabe (possivelmente
mazurkas
baseada na presença da cultura moura na Espanha). Além disso, compôs algumas
e valsas que remetem diretamente às danças de salão do século XIX; e o paraguaio Agustín
Barrios, grande virtuose no instrumento, que compôs peças com clara influência popular
como Maxixe, Choro da Saudade, Danza Paraguaia e Aire de Zamba características
, adaptando
musicais adquiridas em suas viagens pela América Latina.
As passagens de Agustín Barrios e outros importantes concertistas pelo Rio de
Janeiro até 1930, como Josefina Robledo, Juan Rodriguez e Regino Sainz de La Maza
propiciaram a aceitação do instrumento nas salas de concerto e salões da alta sociedade, já
que o violão estava até então associado ao acompanhamento de modinhas, à vadiagem e à
malandragem. Taborda (2011) traz muitos exemplos dessa conjuntura em seuViolão livro e
identidade nacional
. Essa entrada do violão nas salas de concerto seguiu-se ampliando a partir
142 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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do trabalho do violonista espanhol Andrés Segovia, que além de notável concertista foi
fundamental na produção de repertório para o instrumento no século XX, através de
inúmeras encomendas feitas a compositores não violonistas. As primeiras peças para violão
de
1920,compositores que não
por encomenda dominavam
de Miguel o instrumento
Llobet foram escritas
e Andrés Segovia. apenas
O repertório por voltanesse
composto de
período apresenta grande influência da música folclórica, especialmente a espanhola, ma
filtrada pela lente nacionalista de compositores como Federico Moreno Torroba, Joaquin
Turina, Joaquin Rodrigo e Manuel de Falla.
Já o modernismo no Brasil teve como uma de suas características a produção de
música nacionalista - já em voga desde o final do século XIX na Europa, em países com
Rússia, República Checa, Eslováquia, Polônia, Hungria e Espanha - gerando uma gran
expansão de um repertório híbrido, de inspiração popular e forma erudita. Os
compositores nacionalistas sofreram grande influência do escritor Mário de Andrade, que
em seuEnsaio sobre a música brasileira
foi incisivo ao afirmar que “nosso folclore musical não
tem sido estudado como merece” e que “o compositor brasileiro tem de se basear quer
como documentação quer como inspiração no folclore” (ANDRADE, 1972: 9, 26). Essa
postura modernista pode ser encarada também como reflexo da necessidade das elites
brasileiras em encontrar uma unidade nacional, de fazer com que o Brasil seja identificado
externamente como uma nação coesa. Os esforços para “inventar um projeto unificador
para si próprio” (VIANNA, 1995) levaram à procura pela originalidade e autenticidade n
cultura rural e na mestiçagem, esta última, vista anteriormente como o problema da nação
e transformada, agora, em solução.
A busca por “matéria-prima” nacional e popular, nesse momento, foi
preferencialmente voltada à música rural. Nesse período, também se desenvolvia no Brasil a
música popular urbana representada por gêneros como o choro e o samba, que também
inspiraram obras de concerto como a série dos Chôrosde Heitor Villa-Lobos. É nesse
contexto que o hibridismo cria, no Brasil das primeiras décadas do século XX, uma relação
de mútua influência. Ao mesmo tempo em que os compositores nacionalistas se envolvem
com as tradições
urbanos começa ado folclore traços
expressar e da música rural,ou
de herança a música popular
influência vindosdesenvolvida
da música denos centros
concerto.
Podemos citar como elementos referenciais iniciais: a apropriação da forma rondó pelos
compositores de choro; o uso do canto empostado bel( canto
) pelos principais intérpretes
da música popular e a criação de arranjos sinfônicos dentro do contexto das rádios
nacionais. Não é exagero dizer que movimentos nascidos posteriormente, como a bossa-
nova e a tropicália, apresentam referências a sonoridades criadas na música de concerto,
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143
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normalmente numa imitação às células rítmicas executadas pelo tamborim, a uma forma de
harmonizar mais complexa do que até então, através das tríades estendidas com o uso de
sétimas/sextas, nonas, décimas primeiras e décimas terceiras. Esse tipo de harmonização
aproximou
se refere aooclima
violãoebrasileiro do norte-americano,
jazzsonora.
ambientação especialmente
Ferreira (2012: do
393) alinha no que
coolo jazz
desenvolvimento
harmônico ocorrido nojazz às inovações de João Gilberto por meio da influência do
Julie Is Her Name
guitarrista Barney Kessel e do álbum (1955), em que acompanha a cantora
Julie London. Mammì (1992: 64-65) afirma, ainda, que para Tom Jobim, principal composito
gravado por João Gilberto e produtor musical de seu primeiro disco, compor é “encontrar
uma melodia que não pode ser variada, já que ela é o centro da composição, mas pode ser
colorida por infinitas nuances harmônicas” (MAMMÌ, 1992: 64-65).
Na geração pós-bossa-nova surgiram Baden Powell e Paulinho Nogueira, dois
violonistas que tinham em sua música uma mistura interessante de diferentes elementos
1
como: a MPB em formação, a técnica erudita, a música de Bach, a cultura do candomblé,
entre outros. Esses músicos começaram a adaptar ao repertório do violão solo as canções
do repertório popular, em especial da bossa-nova, da canção de protesto e das músicas dos
festivais. A MPB, posteriormente, passou a representar um termo de possibilidades imensas,
que poderia abarcar desde compositores das décadas de 1930 e 40, como Noel Rosa, Ary
Barroso e Dorival Caymmi, até todo o tipo de música considerada digna de obter essa
classificação nos tempos atuais.
Baden Powell tornou-se conhecido internacionalmente e podemos destacar,
particularmente, sua grande capacidade de execução de mão direita na adaptação de ritmos
afro-brasileiros à execução do violão. Criou arranjos de canções de Tom Jobim, Caymmi e
Pixinguinha; compôs muitas peças para violão solo e um número considerável de canções
em parceria com Vinícius de Moraes e Paulo César Pinheiro, com destaque para os Afro
Sambas de 1966. Baden possuía um grande domínio técnico sobre o instrumento, adquirido
tanto através do estudo do violão clássico quanto de sua vivência prática junto a outros
músicos populares. Tornou-se referência para toda a geração seguinte de violonistas
brasileiros.
composições Já para
Paulinho Nogueira
violão teve uma
solo, dentre carreira
as quais mais famosa
a mais voltada àé produçãon.,de1que
Bachianinha arranjos e
apresenta uma influência, possivelmente intuitiva, da obra de Bach.
1Sigla que significa Música Popular Brasileira, mas que foi aplicada inicialmente à produção artística d
era dos festivais de canção da década de 1960.
146 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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2Há, evidentemente, exceções presentes na música do século XX, na qual a estrutura não é fechada,
mas que representa uma parcela pequena em relação ao uso da partitura na música erudita.
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My Funny Valentine
A cançãoMy Funny Valentine foi originalmente composta por Bobby Darin, Richard
Rodgers e Lorenz Hart para o musical Babes in Armsde 1937, mas se tornou umstandard
do repertório “jazzístico”, tendo sido um dos temas mais gravados até3 hoje.
Entre tantas
gravações há inúmeras versões diferentes, desde arranjos orquestrais, passando por trios e
quartetos de jazz e duos de voz e piano, até a versão para violão solo de Marco Pereira,
apresentada no CDSamba da Minha Terra
, lançado em 2004. Esse disco contém arranjos e
composições de Marco Pereira, tocados em diversas formações, sendo essa a única faixa
para violão solo.
O interesse por esse arranjo surgiu da constatação, intuitiva e despretensiosa a
princípio, de que o arranjador conseguiu unir vários elementos diferentes sem que estes
perdessem suas características fundamentais. Esses elementos são: a liberdade e
expressividade dojazz, o uso pleno do instrumento, o caráter de improvisação e a
sonoridade do violão erudito.
A partitura l(eadsheet
) referencial utilizada no Brasil para a execuçãoMy
deFunny
Valentineencontra-se disseminada através do Real Book (KERNFELD, [s.d.]), coletânea de
leadsheetscriada e divulgada clandestinamente (sem o pagamento de direitos autorais) por
estudantes dejazzda Berklee College of Music nos Estados Unidos. Esse registro chegou
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ao Brasil provavelmente com o grande número de músicos brasileiros que foram estudar
nessa universidade. OReal Book se caracteriza por ser um apanhado de leadsheetsde
standardsde jazze temas dos principais compositores do gênero até a década de 1970.
Análise
O arranjo de Marco Pereira não se encontra disponível em partitura, portanto,
para esta análise, será utilizada uma transcrição nossa (Fig. 1). Os critérios adotados no
processo de transcrição buscam uma aproximação às outras partituras escritas pelo
arranjador e compositor, nas quais o nível de detalhamento é grande e inclui indicações de
digitação das duas mãos (inclusive qual corda deve ser utilizada), de dinâmica (incluindo
crescendo e decrescendo , rallentando, ritardando e
), de fraseado (como arcos de frase, fermatas
), de articulação (como ligado
acellerando , stacattoe acentos), indicações de timbre (como
dolce,metálicoe pizzicato
) e indicações expressivas (como molto cantabile, rítmico, preciso e
intenso
).
Forma. A forma utilizada no arranjo segue descrita no quadro abaixo (Tab. 1):
Introdução ad libitum
c. 1-6 (progressão harmônica )
A c. 7-14 (apresentação do tema)
A’ c. 15-22
B c. 23-30
A” c. 31-42
Ponte c. 43-50 (reutilização de acordes da introdução)
A c. 51-57 (solo sobre a harmonia)
A’ c. 58-63 (solo sobre a harmonia)
B c. 64-71 (retomada do tema)
A” c. 72-81
Coda c. 82-88 (cadência harmônica repetida 3 vezes)
Tab. 1: Forma
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às leadsheetsno jazz. Alguns indicadores são: o uso de uma introdução em caráter lírico
com rítmica suspensa; apresentação do tema completo como na canção original, solo de
caráter improvisado sobre a forma da música (nesse caso por se tratar de uma canção lenta
apenas metade de umchorus);coda com cadência harmônica repetida por três vezes.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .153
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de Rodgers e Hart,
My Funny Valentine,
Fig. 1:
com arranjo de Marco Pereira e transcrição de Rafael Thomaz.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155
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Não é possível manter no violão esse tipo de condução harmônica durante toda a
peça por limitações do instrumento. Mas, através de frases de preenchimento - executadas
entre as frases da melodia - o arranjo ganha características mais dissonantes, devido ao uso
4
de escalas com alto grau de tensões
, como nos exemplos abaixo (Fig. 6 e 7):
My Funny Valentine
Fig. 6: Escalas com alto grau de tensões, em (compassos 19-22).
My Funny Valentine
Fig. 7: Escalas com alto grau de tensões, em (compassos 58-61).
4 Consideramos tensões, neste caso, as notas não diatônicas utilizadas como extensões dos acordes.
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Considerações finais
O arranjo de My Funny Valentine
realizado por Marco Pereira é uma amostra do
diálogo entre as tradições da música popular e da música erudita na geração de um produto
artístico novo, de difícil enquadramento, que tem sido apreciado tanto por concertistas
quanto por “jazzistas”. O produto final é claramente mais direcionado à música de
concerto, mas não deixa de lado características fundamentais da música popular como o
5 Na afinação tradicional do violão a corda mais grave (6ª) é afinada em Mi, mas como descrito
no texto, para este arranjo foi utilizada a 6ª corda em Ré.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159
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caráter de improvisação e oswing , além de ser uma releitura, entre inúmeras possíveis, de
uma leadsheet. Tal releitura traz em si, de forma definitiva - por estar escrita -, elementos
até então abertos na leadsheetcomo: variações rítmicas da melodia, ornamentações
possíveis,
e o chorus.aNesse
distribuição dosdeacordes,
processo a textura
releitura, do acompanhamento,
esses elementos se encontramascom
extensões
outros,das cifras
mais
fechados e definitivos, tanto na interpretação quanto na escrita, como os cuidados com
timbres, dinâmica, articulação, fraseado e expressão, e, mais implicitamente, o cuidado de
tornar todos os elementos do arranjo mais idiomáticos, possíveis e sonoros ao violão.
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Rafael Thomaz é mestrando em música pela UNICAMP, onde cursou o Bacharelado em Música
Popular e atualmente atua como auxiliar docente através do PED (Programa de Estágio Docente).
Atua como violonista, tanto no âmbito da música de concerto quanto na música popular, tendo sido
premiado em concursos nacionais de violão e se apresentado desde 2009 com o grupo Algaravia
(www.algaravia.mus.br). [email protected]
162 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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