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8/10/2019 O Arranjo de Marco Pereira - My Funny Valentine

O arranjo de Marco Pereira para My Funny Valentine :


da leadsheet à peça

Rafael Thomaz (UNICAMP)


Fabio Scarduelli (UNICAMP)

Resumo: Este artigo apresenta uma análise do arranjo do violonista brasileiro Marco Pereira
para a canção norte-americana , com o intuito de explorar e entender a
My Funny Valentine
transformação de um tema de música popular aberto em uma peça fechada para instrumento
solo. Para tanto, foi traçado um breve histórico da hibridação na música brasileira com ênfase
no violão solista, e uma abordagem a respeito das particularidades e potencialidades do uso da
leadsheete da partitura convencional.
Palavras-chave: Leadsheet.
Marco Pereira. Hibridismo. Arranjo.

Title: The Arrangement forMy Funny Valentine


by Marco Pereira: Leadsheet to Piece
Abstract: This article presents an analysis of the arrangement made by the Brazilian guitarist
Marco Pereira for the American song ntine in order to explore and understand
My Funny Vale
the transformation of an open structured theme of a popular song into a closed structured
piece for a solo instrument. For this purpose, a brief history of the hybridization of Brazilian
music was outlined emphasizing solo guitar and an approach to the specific aspects and
potential of using the leadsheet and conventional score.
Keywords: Marco Pereira. Hybridism. Leadsheet. Arrangement.

....... .............. .................................................................


My para
THOMAZ, Rafael; SCARDUELLI, Fabio. O arranjo de Marco Pereira Funny Valentine
: da

leadsheetà peça.Opus, Porto Alegre, v. 19, n. 1, p. 141-162, jun. 2013.

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O arranjo de Marco Pereira para My Funny Valentine .................................

O
diálogo entre os universos do erudito e do popular, da alta e da baixa cultura, do
centro e da periferia, da “pequena” e da “grande tradição”, é um tema que merece
ser tratado com bastante cuidado, a fim de que não se faça julgamento de valor.
Mas também
diferem estes não
doisse pode ignorar
âmbitos, a existência
e, tendo-se em vistadeoambos. Háque
interesse características marcantes
o tema desperta que
pelo fato
de não serem definidas nem definitivas suas fronteiras, os agentes, os mediadores e os
conceitos, parece justo nos debruçarmos um pouco sobre este assunto.
O hibridismo, conforme observa Oliveira (2009: 12), encontra-se presente na
obra para alaúde e vihuela desde o século XVI. O autor cita a obra de Luis de Narvaes,
Diferencias sobre Guardame las, vacas
na qual são desenvolvidas variações sobre o tema
popular homônimo do período. Esse procedimento, adotado por vários compositores ao
longo da história da música ocidental, parte da apropriação de melodias e ritmos populares,
tal como podemos observar em várias peças sinfônicas e camerísticas baseadas em ritmos
de dança de salão europeus nos séculos XVIII e XIX - como a valsa,mazurka,
a o schottisch
e a polca. No Brasil, Kiefer (1979) aponta para a nacionalização de tais danças europeias,
constituindo tanto a adaptação ao “estilo” brasileiro quanto a fusão e a geração de novos
gêneros como o maxixe, o tango brasileiro e o choro. Essa influência pode ser percebida
claramente, no violão, naSuíte Popular Brasileira
de Heitor Villa-Lobos - formada por
Mazurka-choro, Schottisch-choro, Valsa-choro, Gavota-choro
e Chorinho
- a qual se encontra hoje
como parte integrante do repertório canônico do violão de concerto. Ainda no repertório
do violão romântico/moderno, que precede o nacionalismo deliberado, encontramos dois
prolíficos exemplos: o espanhol Francisco Tárrega, grande difusor do violão e importante
nome no desenvolvimento técnico do instrumento, que compôs peças inspiradas em
sonoridades regionais, comoRecuerdos de La Alhambrae Capricho Árabe (possivelmente
mazurkas
baseada na presença da cultura moura na Espanha). Além disso, compôs algumas
e valsas que remetem diretamente às danças de salão do século XIX; e o paraguaio Agustín
Barrios, grande virtuose no instrumento, que compôs peças com clara influência popular
como Maxixe, Choro da Saudade, Danza Paraguaia e Aire de Zamba características
, adaptando
musicais adquiridas em suas viagens pela América Latina.
As passagens de Agustín Barrios e outros importantes concertistas pelo Rio de
Janeiro até 1930, como Josefina Robledo, Juan Rodriguez e Regino Sainz de La Maza
propiciaram a aceitação do instrumento nas salas de concerto e salões da alta sociedade, já
que o violão estava até então associado ao acompanhamento de modinhas, à vadiagem e à
malandragem. Taborda (2011) traz muitos exemplos dessa conjuntura em seuViolão livro e
identidade nacional
. Essa entrada do violão nas salas de concerto seguiu-se ampliando a partir

142 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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do trabalho do violonista espanhol Andrés Segovia, que além de notável concertista foi
fundamental na produção de repertório para o instrumento no século XX, através de
inúmeras encomendas feitas a compositores não violonistas. As primeiras peças para violão
de
1920,compositores que não
por encomenda dominavam
de Miguel o instrumento
Llobet foram escritas
e Andrés Segovia. apenas
O repertório por voltanesse
composto de
período apresenta grande influência da música folclórica, especialmente a espanhola, ma
filtrada pela lente nacionalista de compositores como Federico Moreno Torroba, Joaquin
Turina, Joaquin Rodrigo e Manuel de Falla.
Já o modernismo no Brasil teve como uma de suas características a produção de
música nacionalista - já em voga desde o final do século XIX na Europa, em países com
Rússia, República Checa, Eslováquia, Polônia, Hungria e Espanha - gerando uma gran
expansão de um repertório híbrido, de inspiração popular e forma erudita. Os
compositores nacionalistas sofreram grande influência do escritor Mário de Andrade, que
em seuEnsaio sobre a música brasileira
foi incisivo ao afirmar que “nosso folclore musical não
tem sido estudado como merece” e que “o compositor brasileiro tem de se basear quer
como documentação quer como inspiração no folclore” (ANDRADE, 1972: 9, 26). Essa
postura modernista pode ser encarada também como reflexo da necessidade das elites
brasileiras em encontrar uma unidade nacional, de fazer com que o Brasil seja identificado
externamente como uma nação coesa. Os esforços para “inventar um projeto unificador
para si próprio” (VIANNA, 1995) levaram à procura pela originalidade e autenticidade n
cultura rural e na mestiçagem, esta última, vista anteriormente como o problema da nação
e transformada, agora, em solução.
A busca por “matéria-prima” nacional e popular, nesse momento, foi
preferencialmente voltada à música rural. Nesse período, também se desenvolvia no Brasil a
música popular urbana representada por gêneros como o choro e o samba, que também
inspiraram obras de concerto como a série dos Chôrosde Heitor Villa-Lobos. É nesse
contexto que o hibridismo cria, no Brasil das primeiras décadas do século XX, uma relação
de mútua influência. Ao mesmo tempo em que os compositores nacionalistas se envolvem
com as tradições
urbanos começa ado folclore traços
expressar e da música rural,ou
de herança a música popular
influência vindosdesenvolvida
da música denos centros
concerto.
Podemos citar como elementos referenciais iniciais: a apropriação da forma rondó pelos
compositores de choro; o uso do canto empostado bel( canto
) pelos principais intérpretes
da música popular e a criação de arranjos sinfônicos dentro do contexto das rádios
nacionais. Não é exagero dizer que movimentos nascidos posteriormente, como a bossa-
nova e a tropicália, apresentam referências a sonoridades criadas na música de concerto,
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143
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gêneros nacionais. Paralelamente, seu desenvolvimento técnico no país sempre esteve


associado a métodos europeus e sul-americanos de tradição erudita. Ao longo do século
XX o violão se estabeleceu como um dos símbolos da nacionalidade brasileira, depois de
ser sinônimo
solistas de vadiagem,
do instrumento boemia e influência
com marcante marginalidade. Ao mesmo
da música populartempo,
urbana,consolidaram-se
como Américo
Jacomino (Canhoto), João Pernambuco, Dilermando Reis e Aníbal Augusto Sardinh
(Garoto). No início do século, porém, os músicos populares ainda dispunham de parcos
conhecimentos de teoria e leitura musical, prova disso é que nenhum deles deixou suas
músicas escritas em partituras, apenas seus registros em discos. Apesar disso, músicas
destes e de outros compositores-violonistas brasileiros (transcritas posteriormente) fazem
parte do repertório de inúmeros solistas ao redor do mundo atualmente, tendo sido
gravadas por violonistas consagrados como Carlos Barbosa-Lima, Sharon Isbin (VIOLÕE
PROJETO MEMÓRIA BRASILEIRA, 1989), Marcelo Kayath (GUITAR CLASSICS F
LATIN AMERICA, 1985), Turíbio Santos (BRASILEIRÍSSIMO, 1990) e David Russel
LATINO, 2004). Essa apropriação feita por solistas internacionais da música brasileira par
violão demonstra o nível de compatibilidade técnica presente na obra desses autores que
foram, direta ou indiretamente, influenciados pelo violão erudito.
Até a década de 1930 o violão exercia três diferentes funções, como mostra
Taborda:

Acompanhador solista: o violão harmonizou modinhas e lundus que garantiram a


viabilidade das primeiras gravações fonográficas;
Acompanhador no âmbito dos conjuntos de choro: o instrumento assumiu, ao lado
do cavaquinho, o suporte harmônico para a realização dos gêneros instrumentais;
O violão popular, solista de obras escritas diretamente para ele ou transcritas de
outros instrumentos (TABORDA, 2011: 117).

Nesse contexto, o acompanhamento ao violão esteve ligado aos padrões do


choro, com progressões harmônicas essencialmente triádicas. Entretanto, alguns violonistas
em especial Aníbal Augusto Sardinha, já usavam em suas composições harmonias com
acordes extendidos. Esse estilo abriu caminho para a bossa-nova, que ficou consagrada
através do discoChega de Saudade(1959) de João Gilberto. Neste, o cantor e violonista
apresentou uma “nova forma” de acompanhar ao violão que unia a batida do samba,

opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145
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normalmente numa imitação às células rítmicas executadas pelo tamborim, a uma forma de
harmonizar mais complexa do que até então, através das tríades estendidas com o uso de
sétimas/sextas, nonas, décimas primeiras e décimas terceiras. Esse tipo de harmonização
aproximou
se refere aooclima
violãoebrasileiro do norte-americano,
jazzsonora.
ambientação especialmente
Ferreira (2012: do
393) alinha no que
coolo jazz
desenvolvimento
harmônico ocorrido nojazz às inovações de João Gilberto por meio da influência do
Julie Is Her Name
guitarrista Barney Kessel e do álbum (1955), em que acompanha a cantora
Julie London. Mammì (1992: 64-65) afirma, ainda, que para Tom Jobim, principal composito
gravado por João Gilberto e produtor musical de seu primeiro disco, compor é “encontrar
uma melodia que não pode ser variada, já que ela é o centro da composição, mas pode ser
colorida por infinitas nuances harmônicas” (MAMMÌ, 1992: 64-65).
Na geração pós-bossa-nova surgiram Baden Powell e Paulinho Nogueira, dois
violonistas que tinham em sua música uma mistura interessante de diferentes elementos
1
como: a MPB em formação, a técnica erudita, a música de Bach, a cultura do candomblé,
entre outros. Esses músicos começaram a adaptar ao repertório do violão solo as canções
do repertório popular, em especial da bossa-nova, da canção de protesto e das músicas dos
festivais. A MPB, posteriormente, passou a representar um termo de possibilidades imensas,
que poderia abarcar desde compositores das décadas de 1930 e 40, como Noel Rosa, Ary
Barroso e Dorival Caymmi, até todo o tipo de música considerada digna de obter essa
classificação nos tempos atuais.
Baden Powell tornou-se conhecido internacionalmente e podemos destacar,
particularmente, sua grande capacidade de execução de mão direita na adaptação de ritmos
afro-brasileiros à execução do violão. Criou arranjos de canções de Tom Jobim, Caymmi e
Pixinguinha; compôs muitas peças para violão solo e um número considerável de canções
em parceria com Vinícius de Moraes e Paulo César Pinheiro, com destaque para os Afro
Sambas de 1966. Baden possuía um grande domínio técnico sobre o instrumento, adquirido
tanto através do estudo do violão clássico quanto de sua vivência prática junto a outros
músicos populares. Tornou-se referência para toda a geração seguinte de violonistas
brasileiros.
composições Já para
Paulinho Nogueira
violão teve uma
solo, dentre carreira
as quais mais famosa
a mais voltada àé produçãon.,de1que
Bachianinha arranjos e
apresenta uma influência, possivelmente intuitiva, da obra de Bach.

1Sigla que significa Música Popular Brasileira, mas que foi aplicada inicialmente à produção artística d
era dos festivais de canção da década de 1960.
146 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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Seguindo a linha de compositores resultantes do hibridismo discutido acima,


chegamos ao violonista Marco Pereira. Iniciou seus estudos na década de 1960 e, apesar de
o violão popular brasileiro já ter, na época, história e repertório suficientes para
representar
maioria dosuma escola violonística,
professores ainda não sua
ainda improvisava haviadidática
métodosouconsolidados para oatravés
ensinava violão ensino.de
A
materiais importados e com base na estética clássico-romântica, como os livros de Matteo
Carcassi e Francisco Tárrega. Em entrevista concedida a este pesquisador (PEREIRA, 2012
Marco Pereira afirma que estudou inicialmente através do método de Tárrega, com um
professor que era pianista, mas que pela grande demanda tornou-se também professor de
violão. Posteriormente, foi encaminhado a estudar com o uruguaio Isaías Sávio, que se
tornou durante longo período a principal referência de violão clássico na cidade de São
Paulo e também no Brasil. Marco Pereira aspirava à vida de concertista. Formou-se no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e preparou-se para estudar na Alemanha,
mas decidiu-se posteriormente por estudar na Sorbonne, em Paris, onde escreveu uma
dissertação, depois lançada em livro no Brasil, sobre a obra de Heitor Villa-Lobos para
violão (PEREIRA, 1984). Quando voltou ao Brasil, decidiu abandonar o repertório erudito
para trabalhar em composições próprias, com forte influência da música brasileira, mas sem
abandonar a técnica e a sonoridade de concertista adquirida em sua formação.
Em 1985, então com 35 anos, depois de ter sido premiado em famosos concursos
Concurso
internacionais de violão na Espanha ( Andrés Segovia
, em Palma de Mallorca e
, em Valência), Marco Pereira lançou oViolão
Concurso Francisco Tárrega LP Popular Brasileiro
Contemporâneo . Trata-se de um LP essencialmente autoral, possuindo 8 faixas, das quais 7
são composições próprias. Participam deste primeiro disco os músicos Zé Eduardo Nazario
(bateria), Sizão Machado (contrabaixo acústico) e Oswaldinho da Cuíca (percussão).
Em 2003, Marco Pereira lançou pelo selo norte-americano GSP oOriginalCD ,
formado apenas por obras para violão solo de sua autoria. Na mesma década foram
Samba da Minha Terra
produzidos, entre outros discos, os títulos (2004) eCristal(2010) que
incluem majoritariamente a produção de arranjos de músicas do repertório popular
dedicados ao violão solo ou como solista acompanhado de contrabaixo e bateria.
A obra de Marco Pereira apresenta singular interesse porque une a exigência
técnico-sonora do violão erudito, a variedade rítmico-melódica da música popular brasileira
e o caráter improvisatório dojazz.

opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
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. . . . . . SCARDUELLI

A falta de algumas informações leadsheet


na é intencional. Não há informações
definitivas sobre como deve ser feito o acompanhamento, já que a condução rítmica e
harmônica é expressa apenas por cifras. Até as informações definidas na partitura como as
cifras ou a melodiasão
que normalmente nãodefinidas
são consideradas intocáveis,
pelo intérprete podendo
ou pelo sofrer alterações
arranjador, e variações
previamente ou de
improviso. Esta forma de escrever a música deixa margens para que cada nova
interpretação incorpore ou exclua informações diversas, desde aquelas de caráter mais
interpretativo, como dinâmicas e timbres, até aquelas de caráter mais fundamental, como
notas e ritmos. Nojazztradicional há, ainda, mais um agravante a este caso, pois
leadsheet
a
é também a referência base para a improvisação feita, normalmente, em formato chorus
de-
repetição da forma, respeitando o “esqueleto” harmônico sobre o qual cada músico pode
improvisar melodias.
Em contrapartida, na tradição da música de concerto europeia há uma
manutenção do original proposto pelo compositor através da partitura. Na peça, a
interpretação não é completamente rígida, mesmo em casos nos quais os parâmetros de
altura, duração, andamento, articulação, fraseado, dinâmica e timbre são definidos pelo
compositor. É o intérprete quem define - quase sempre intuitivamente - as proporções que
serão atribuídas a cada um desses parâmetros. Nesse caso, também é possível que a cada
nova interpretação existam diferenças, mas em uma proporção menor do que no caso das
leadsheets.

Potencialidades da leadsheet e da partitura


Tanto as leadsheetscomo as partituras tradicionais tornaram-se essenciais na
prática diária da música popular e da música erudita, respectivamente, por atenderem a
requisitos específicos de cada uma das práxis. Para atender as exigências presentes em cada
um dos campos, essas duas formas de escrita apresentam potencialidades, códigos
decifráveis que fazem sentido apenas para aqueles habituados à sua prática.

A partitura surgiu, a princípio, para que as melodias criadas estivessem sempre


disponíveis, sem que fosse necessário buscar na memória fragmentos que, fatalmente,
trariam com eles novos contornos. Com seu desenvolvimento, a partitura acumulou mais
signos que determinam outros parâmetros, além da altura e do tempo, os quais seriam
capazes de esboçar traços importantes para uma futura interpretação. A escrita também
permitiu que os compositores, ao longo do tempo, fossem capazes de lapidar suas peças, o
que possibilitou um nível mais alto de exploração do discurso musical e das possibilidade
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .149
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instrumentais. O uso - consciente ou inconsciente; implícito ou explícito - das


potencialidades de cada instrumento pode ser associado ao termo “idiomatismo” que,
como afirma Scarduelli:

[...] refere-se ao conjunto de peculiaridades ou convenções que compõem o


vocabulário de um determinado instrumento. Estas peculiaridades podem abranger
desde características relativas às possibilidades musicais, como timbre, dinâmica e
articulação, até meros efeitos que criam posteriormente interesse de ordem musical
(SCARDUELLI, 2007: 139).

A aplicação dos idiomatismos instrumentais encontra na partitura a oportunidade


de cristalizar um aproveitamento mais amplo do instrumento, possibilitado pelo fato de que
2
cada nota é pensada previamente. O fato de a partitura apresentar uma estrutura fechada
favorece a fixação de ideias que podem ser concebidas através da improvisação e, caso não
fossem escritas, estariam à mercê da memória.
A leadsheetfixa um número bem menor de parâmetros para o intérprete, sendo
que até os parâmetros fixados, como a melodia, por exemplo, podem sofrer alterações
durante a execução. Por esse fato, considera-seleadsheet
a como um guia para a execução
que permite a exploração e variação de diversos elementos - como harmonia, ritmo,
textura, timbre, dinâmica, fraseado - de acordo com o gênero executado e o gosto pessoal
de cada intérprete. As cifras harmônicas se limitam a designar os acordes a serem
executados, mas deixam em aberto, em um primeiro olhar, a condução das vozes, salvo a
exceção de algumas linhas de baixo que aparecem grafadas. Alguns gêneros, como o choro
e o samba, ainda têm como tradição a improvisação das linhas de baixo - normalmente feita
pelo violão de 7 cordas - o que resulta em uma grande quantidade de acordes invertidos.
Pressupõem pelasleadsheetsde outros estilos, como ojazz e a bossa-nova, que o músico
executante possa mudar ou complementar os acordes cifrados, muitas vezes escritos
apenas na forma de tétrades, cujas extensões são escolhidas durante a interpretação.
Outros elementos do acompanhamento como a rítmica e a textura (gerada pela
organização rítmica, harmônica e contrapontística) não aparecem descritos nesse tipo de
notação. Os elementos referentes à interpretação - variação tímbrica, gama dinâmica,

2Há, evidentemente, exceções presentes na música do século XX, na qual a estrutura não é fechada,
mas que representa uma parcela pequena em relação ao uso da partitura na música erudita.
150 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .opus
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. . . . . . SCARDUELLI

indicações de frase etc. - também não aparecem grafadosleadsheets


nas . Na música popular,
cabe ao intérprete ou ao arranjador definir esses parâmetros.
Podemos considerar também como potencialidades presentesleadsheets
nas dois
aspectos definidores do
jazz, mas que estão presentes quase sempre de maneira implícita: o
swinge a improvisação (GRIDLEY, 1987). Subentende-se, em leadsheet uma , que o
intérprete tenha conhecimento do gênero escrito e dê a ele a devida articulação e
contorno rítmico. Oswing(do jazz e da música brasileira) encontra-se na forma sutil na
qual se aliam pequenos detalhes de articulação a pequenas “imprecisões” rítmicas,
características de cada estilo. A improvisação, jazz
no, se faz tanto durante o tema
(apresentação da melodia) quanto durante os chorus, quando um solista improvisa
melodicamente sobre a progressão harmônica. No chorus também acontece uma
acentuação do “grau” de improvisação utilizado pelos acompanhadores.

My Funny Valentine
A cançãoMy Funny Valentine foi originalmente composta por Bobby Darin, Richard
Rodgers e Lorenz Hart para o musical Babes in Armsde 1937, mas se tornou umstandard
do repertório “jazzístico”, tendo sido um dos temas mais gravados até3 hoje.
Entre tantas
gravações há inúmeras versões diferentes, desde arranjos orquestrais, passando por trios e
quartetos de jazz e duos de voz e piano, até a versão para violão solo de Marco Pereira,
apresentada no CDSamba da Minha Terra
, lançado em 2004. Esse disco contém arranjos e
composições de Marco Pereira, tocados em diversas formações, sendo essa a única faixa
para violão solo.
O interesse por esse arranjo surgiu da constatação, intuitiva e despretensiosa a
princípio, de que o arranjador conseguiu unir vários elementos diferentes sem que estes
perdessem suas características fundamentais. Esses elementos são: a liberdade e
expressividade dojazz, o uso pleno do instrumento, o caráter de improvisação e a
sonoridade do violão erudito.
A partitura l(eadsheet
) referencial utilizada no Brasil para a execuçãoMy
deFunny
Valentineencontra-se disseminada através do Real Book (KERNFELD, [s.d.]), coletânea de
leadsheetscriada e divulgada clandestinamente (sem o pagamento de direitos autorais) por
estudantes dejazzda Berklee College of Music nos Estados Unidos. Esse registro chegou

3 Nosite www.myfunnyvalentine.com.br, o brasileiro Geraldo Barbosa, afirma ter recebido certificado


My Funny Valentine
do Guinness Book, por possuir 1384 gravações diferentes da música .
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .151
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O arranjo de Marco Pereira para My Funny Valentine .................................

ao Brasil provavelmente com o grande número de músicos brasileiros que foram estudar
nessa universidade. OReal Book se caracteriza por ser um apanhado de leadsheetsde
standardsde jazze temas dos principais compositores do gênero até a década de 1970.

Análise
O arranjo de Marco Pereira não se encontra disponível em partitura, portanto,
para esta análise, será utilizada uma transcrição nossa (Fig. 1). Os critérios adotados no
processo de transcrição buscam uma aproximação às outras partituras escritas pelo
arranjador e compositor, nas quais o nível de detalhamento é grande e inclui indicações de
digitação das duas mãos (inclusive qual corda deve ser utilizada), de dinâmica (incluindo
crescendo e decrescendo , rallentando, ritardando e
), de fraseado (como arcos de frase, fermatas
), de articulação (como ligado
acellerando , stacattoe acentos), indicações de timbre (como
dolce,metálicoe pizzicato
) e indicações expressivas (como molto cantabile, rítmico, preciso e
intenso
).
Forma. A forma utilizada no arranjo segue descrita no quadro abaixo (Tab. 1):

Introdução ad libitum
c. 1-6 (progressão harmônica )
A c. 7-14 (apresentação do tema)
A’ c. 15-22
B c. 23-30
A” c. 31-42
Ponte c. 43-50 (reutilização de acordes da introdução)
A c. 51-57 (solo sobre a harmonia)
A’ c. 58-63 (solo sobre a harmonia)
B c. 64-71 (retomada do tema)
A” c. 72-81
Coda c. 82-88 (cadência harmônica repetida 3 vezes)

Tab. 1: Forma

Podemos identificar, na forma descrita acima, características do tratamento dado


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às leadsheetsno jazz. Alguns indicadores são: o uso de uma introdução em caráter lírico
com rítmica suspensa; apresentação do tema completo como na canção original, solo de
caráter improvisado sobre a forma da música (nesse caso por se tratar de uma canção lenta
apenas metade de umchorus);coda com cadência harmônica repetida por três vezes.

opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .153
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de Rodgers e Hart,
My Funny Valentine,
Fig. 1:
com arranjo de Marco Pereira e transcrição de Rafael Thomaz.

opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155
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Como afirmamos no tópico em que foram


Tratamento rítmico-melódico.
tratadas as potencialidades das diferentes escritas, mesmo a melodia sendo a única
leadsheet
informação definida na , ela pode sofrer alterações, como podemos identificar nas
Fig. 2 e 3:

Fig. 2: Trecho daleadsheetde My Funny Valentine, RealBook


de Rodgers e Hart, extraída do
(compassos 1-8).

Fig. 3: Transcrição deMy Funny Valentine


, de Rodgers e Hart,
com arranjo de Marco Pereira e transcrição de Rafael Thomaz (compassos 7-14).

Nesse caso, há duas alterações visíveis: a variação rítmica e a adição de notas de


leadsheeté bastante simples com o intuito de ser apenas um
passagem. O ritmo escrito na
guia dos contornos rítmico-melódicos. Há, na práticajazz do, o swingum elemento
subentendido de caráter muito forte, no qual swing
as eights
(colcheias suingadas) são

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Não é possível manter no violão esse tipo de condução harmônica durante toda a
peça por limitações do instrumento. Mas, através de frases de preenchimento - executadas
entre as frases da melodia - o arranjo ganha características mais dissonantes, devido ao uso
4
de escalas com alto grau de tensões
, como nos exemplos abaixo (Fig. 6 e 7):

My Funny Valentine
Fig. 6: Escalas com alto grau de tensões, em (compassos 19-22).

My Funny Valentine
Fig. 7: Escalas com alto grau de tensões, em (compassos 58-61).

Na Fig. 6, terceiro compasso transcrito, há o uso da escala diminuta logo após o


acorde Em7(b5), explicitando as extensões de nona (Fá#), décima primeira (Lá), décima
terceira menor (Dó) e a sétima maior do acorde diminuto (Ré#). Já na Fig. 7, quarto
compasso transcrito, o que naleadsheetseria o acorde de Bm6 é apresentado em uma
inversão como um acorde de G#m7(b5/9) e seguido a ele há a escala de Si menor
melódica, que também pode ser nomeada, nesse caso, de Sol# Lócrio com 2ª maior, que
explicita no acorde meio-diminuto a tensão da nona maior. Se consideramos que este
acorde é também a terceira inversão do acorde da leadsheet
, teremos, em relação ao
acorde menorlargamente
modo dórico com sexta,aplicado
a extensão da sétima
a esse tipo demaior, que é mais dissonante em relação ao
acorde.
Esse tratamento harmônico é típico do jazze da bossa-nova, apesar da progressão
indicada naleadsheetnão determinar a aplicação desta ou daquela escala correlata, ficando a
cargo do intérprete ou arranjador definir qual “colorido” dar ao trecho.

4 Consideramos tensões, neste caso, as notas não diatônicas utilizadas como extensões dos acordes.

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A escrita para violão exige certos


Escrita violonística e idiomatismo.
cuidados, devido a algumas características técnicas do instrumento, especialmente de
caráter harmônico, pois algumas aberturas de acordes são impossíveis de serem tocadas
em certas (2007:
Scarduelli tonalidades.
140), Ao conjunto
aplica de características
recursos
o termo idiomáticos particulares
, como de item
citado no um instrumento,
4 deste
artigo. O autor ainda classifica-os em dois grupos: implícitose explícitos
. Os recursos
idiomáticos implícitos são definidos “como a escolha de centros, modos e tonalidades que
favoreçam um amplo uso de cordas soltas no instrumento e, conseqüentemente, a
exeqüibilidade da peça” (SCARDUELLI, 2007: 140). Já os recursos idiomáticos explíci
“são aqueles que exploram características e efeitos peculiares do instrumento, utilizados
para a elaboração de idéias ou motivos musicais” (SCARDUELLI, 2007: 140).
O arranjo em questão apresenta especialmente o uso de idiomatismos implícitos.
Há dois fortes indícios: (1) A mudança da tonalidade, de Dó menor para Si Menor e (2) a
mudança da afinação da 6ª corda para Ré. Essas duas escolhas fazem com que o arranjo
fique mais simples de ser executado no violão e, consequentemente, amplie sua sonoridade,
por conta dos harmônicos gerados pelas cordas soltas. Na tonalidade de Si menor, todas as
cordas (Ré5, Lá, Ré, Sol, Si e Mi) fazem parte da escala diatônica.
Além desses, podemos apontar outro elemento implícito do violão que é
explorado nesse arranjo. O acompanhamento durante o tema é quase constantemente
feito apenas pela nota fundamental do acorde no baixo, sem nenhum preenchimento
harmônico. Isso ocorre, possivelmente, por conta da maior dificuldade técnica em se
executar acordes em posição fechada no violão, já que a melodia encontra-se apenas uma
oitava acima do baixo (nota Si) nos primeiros acordes. Essa escolha gera um contraste
“textural” entre esse trecho e a introdução, que apresenta acordes arpejados.

Considerações finais
O arranjo de My Funny Valentine
realizado por Marco Pereira é uma amostra do
diálogo entre as tradições da música popular e da música erudita na geração de um produto
artístico novo, de difícil enquadramento, que tem sido apreciado tanto por concertistas
quanto por “jazzistas”. O produto final é claramente mais direcionado à música de
concerto, mas não deixa de lado características fundamentais da música popular como o

5 Na afinação tradicional do violão a corda mais grave (6ª) é afinada em Mi, mas como descrito
no texto, para este arranjo foi utilizada a 6ª corda em Ré.
opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159
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caráter de improvisação e oswing , além de ser uma releitura, entre inúmeras possíveis, de
uma leadsheet. Tal releitura traz em si, de forma definitiva - por estar escrita -, elementos
até então abertos na leadsheetcomo: variações rítmicas da melodia, ornamentações
possíveis,
e o chorus.aNesse
distribuição dosdeacordes,
processo a textura
releitura, do acompanhamento,
esses elementos se encontramascom
extensões
outros,das cifras
mais
fechados e definitivos, tanto na interpretação quanto na escrita, como os cuidados com
timbres, dinâmica, articulação, fraseado e expressão, e, mais implicitamente, o cuidado de
tornar todos os elementos do arranjo mais idiomáticos, possíveis e sonoros ao violão.

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Rafael Thomaz é mestrando em música pela UNICAMP, onde cursou o Bacharelado em Música
Popular e atualmente atua como auxiliar docente através do PED (Programa de Estágio Docente).
Atua como violonista, tanto no âmbito da música de concerto quanto na música popular, tendo sido
premiado em concursos nacionais de violão e se apresentado desde 2009 com o grupo Algaravia
(www.algaravia.mus.br). [email protected]

Fabio Scarduelli é violonista,


Universidade Estadual professor
de Campinas e pesquisador.
(UNICAMP), Mestre
e Bacharel e Doutor
pela Escola em Música
de Música e Belaspela
Artes do
Paraná, tendo lecionado em instituições como a UFRN e a UNICAMP. Apresentou-se em vários
estados brasileiros, como solista, camerista e palestrante. Atualmente, realiza seu pós-doutorado na
UNICAMP, com bolsa da FAPESP, lidera Grupo
o de Pesquisa em Violão: estudos da performance,
, assim como orienta pesquisas de iniciação científica e mestrado na mesma
pedagogia e repertório
instituição, onde é credenciado no Programa de Pós-graduação em Música.
[email protected]

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