Mário César Apresentação Universidade de Illinois
Mário César Apresentação Universidade de Illinois
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Resumo
Apresentação
“Muita gente de lá pra cá, cachimbos em punho, um caos ordenado. Terra de todos os
odores, alumínio queimado, cigarro, maconha, cheiro forte de gente que está há longo
tempo exposta à suja cidade. A Crackolândia não é só um lugar... É um conceito. Você
não anda na Crackolândia, ela anda em você. ”
Um conceito que invadiu nossos corpos e nos acompanhou até nossas casas, um
produtor de múltiplos sentidos que se definiu por um bloco de devires: Crackolândia.
Como habitar o caos e permitir que ele nos habite sem que isto incorra em um
desejo mortífero? Uma destruição de si?
Na experiência da escrita, percebemos que ali havia muito mais que um plano
invisível que não o era material, mas, sim, compartilhado por todos.
Na escrita compartilhada, estes sentidos iam ganhando corpo e produzindo em
nós um-em-nós, inclusive com os “crackeiros”. Por vezes, quando íamos no fluxo (termo
utilizado pelos usuários para caracterizar o território), nos perguntávamos quem estava
vivendo, se seriam eles ou nós, com toda a rede de sociabilidade produzida por eles com
sua intensidade, prazeres e dores. Houve um momento em que a dúvida permanecia. Eu
já não me importava em sentir cheiro de merda nos espaços públicos fora do horário do
expediente. Fato que não se manteve após sair deste trabalho. E porque falar de algo tão
asqueroso neste trecho? Justamente porque estamos falando da Crackolandia, pois
“você não anda na Crackolândia, ela anda em você”.
“...policiais dispersando a população, tentando evitar violência civil contra o
agressor. Este cenário de tensão dificultou o processo de abordagem. ”
Um cenário, um enxame, a violência do Estado como atravessamento no contato
entre o próprio Estado, representado pela saúde, e a população, produzindo
distanciamentos e criando outros sentidos no território, como o medo e a insegurança.
Este último trecho desenha uma alteração dos planos de forças com a chegada da
equipe. Do que isso fala? De um contágio, uma contaminação. Quando chegávamos no
fluxo e eles já iam trazendo os tambores de lixo e começavam a batucada cantando “eu
bebo sim e estou vivendo tem gente que não bebe e está morrendo...”, isto despertava
em nós perguntas sobre nossas vidas e nos possibilitava entrar em conexão com eles,
produzir aquela certa zona indiferenciada tão importante em um processo terapêutico e,
consequentemente, a possibilidade de intercessões serem realizadas junto aos usuários
em acordo com o que se apresentava naquele território tão rico em intensidades.
Nesse sentido, podemos trabalhar com um conceito de "território vivo", em que,
através de uma composição entre o espaço, o tempo, e a matéria, há produção de
subjetividades em uma construção sem fim. E esta fabricação de subjetividades não se
dá de maneira essencial, imutável ou individual, e sim como um acontecimento
coletivo, social. (ALARCON et al., 2013). Um "território vivo" é composto por espaços
físicos, dimensões simbólicas, afetivas e seus sentidos, e esta configuração nos mostra
um mapa psicossocial, um conjunto sempre dinâmico que se revela através da
cartografia.
Revelar as forças micropolíticas na produção de cuidado que se dá um
determinado território, conectando-se com o fora dos muros institucionais, é tensionar a
instituição em seus processos instituídos, é a possibilidade de produzir novos sentidos a
partir das existências que se dão ali naquele plano.
Assim, seguir os passos existenciais destes usuários é nos guiar por itinerários e
projetos terapêuticos que extravasam as ofertas instituídas por uma rede de serviços, é a
própria existência reivindicando produção de vida. (MERHY et al., 2014).
Mas para se produzir um território vivo é necessário o cuidado com as cidades
ao se introduzir mudanças na paisagem urbana promovendo encontros e produção de
vida; podemos afirmar que o consultório na rua é a própria clínica da cidade, pois
conceito; colagem e contágio; planos invisíveis; um-em-nós; me questionar sobre minha
própria vida; sociabilidade; arte, música e a violência do Estado que modificam uma
paisagem constituída. Do que estes planos falam? Falam de um território vivo, da
operação de uma produção de cuidado no limite, naquilo que se pode nomear de Saúde
Mental Coletiva, por conta de toda a complexidade em seu torno, e o modo como os
arranjos vão se fazendo de acordo com cada encontro.
No terceiro capítulo, coloco uma questão: qual a contribuição dos CnRua para a
reforma psiquiátrica e sanitária? Talvez esta questão tenha sido engolida pelo próprio
caminhar da pesquisa no campo e talvez este caminhar tenha inclusive apresentado
questões mais ricas, porque aqui já não se trata de falar daquilo que foi, de bater o pé
firme no chão e ficar defendendo um SUS, mas, sim, falar do estado da arte, da
precarização, das relações, das desconexões, inclusive do pesquisador, para abrir
questões sobre o que pode ser feito, e como pode ser feito, para pensarmos recomeço,
gesto ou trilha que se faz na própria incursão do desejo que não é individual, mas sim
coletivo e está diretamente conectado com os modos existenciais da atualidade.
Isso fala de um agenciamento social, fala de como a vida mudou, inclusive
dentro da própria saúde coletiva. Podemos dizer que aquilo que era para ser a
cartografia da produção de cuidado, no decorrer do campo, tornou-se também a
cartografia da precarização de vidas, de trabalhadores, de usuários, de potências; a
própria usurpação do tempo da vida.
E é neste ponto que as experimentações se fazem necessárias, porque ao
partirmos para outra experiência é sempre necessário levar consigo um pouco da
experiência vivida anteriormente, pois é desta forma que se pode perceber que uma
trajetória não tem começo, meio e fim, mas, sim, e sempre, recomeços.