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ARTIGO
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.210
Luís Anunciaçãob
https://orcid.org/0000-0001-5303-5782
*Registra-se um agradecimento especial a todas e todos assistentes sociais que participaram direta ou indireta-
mente deste estudo, sem essa colaboração e participação não teria sido possível o desenvolvimento do presente
projeto e respectiva reflexão.
a
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Franca/São Paulo, Brasil.
b
Pontifícia Universidade Católica — PUC-Rio, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
Recebido: 4/10/2019 Aprovado: 21/2/2020
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Introdução
A
tualmente, o avanço das tecnologias da informação, microele-
trônica e robótica têm acentuado a subordinação da força de
trabalho a aspectos puramente financeiros. Entende-se que
estamos vivenciando um cenário que admite condições absolutamente
inseguras do trabalho e da totalidade da vida social. Nas palavras de
Antunes (2018), o irracionalismo fetichizado de nosso tempo impõe um
mundo do trabalho informal e precário. Consequentemente, isso gera
um trabalho marcado pela uberização, walmarterização, intermitência
e pejotização, cujas relações são desprotegidas e eivadas da ideologia do
empreendedorismo, da suposta autonomia e do individualismo.
Mesmo que grupos de economistas e políticos repitam que no lugar
das ocupações que se encerram em função das mudanças tecnológicas
muitas outras surgirão, tanto a análise retrospectiva das mudanças do
mundo do trabalho quanto o exame atual indica que a redução da força
de trabalho vivo poderá chegar a níveis inimagináveis. Assim, é preciso
encarar que a iminência da 4ª Revolução Industrial (4ª RI ou Indústria
4.0) é um momento de agudização da modernização capitalista, diga-se
de passagem, altamente financeirizada e informacional.
Schwab (2016) informa que a revolução tecnológica em curso, com
a profusão de numerosas áreas, tais como: inteligência artificial (IA); ro-
bótica, a internet das coisas (IoT, na sigla em inglês), veículos autônomos,
impressão 3-D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, ar-
mazenamento de energia e computação quântica, Big Data, entre outros,
implicará a transformação de toda humanidade. Sustenta o autor que a
sua análise diverge dos estudos que apontam que as mudanças em curso
são tão somente uma extensão da 3ª Revolução Industrial (3ª RI). Para
Schwab (2016), caracteriza-se em 4ª RI devido à velocidade com que
as mudanças e inovações ocorrem e, ainda, à capacidade de ampliação
de cada descoberta que se aprofunda em outra e outra, como um efeito
dominó. Schwab sublinha também que se trata de uma revolução devido
à fusão das tecnologias do mundo físico, digital e biológico e, por fim, o
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Método
1
Este texto é parte fundamental do projeto de pesquisa: “Processo de trabalho e saúde dos e das
assistentes sociais que atuam nos serviços de Seguridade Social no Brasil”, o qual foi aprovado
pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Unesp-Franca. Conta com a participação de pesquisadores(as)
de três universidades públicas: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (Unesp-Franca),
Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
sendo as respectivas coordenadoras de cada região as profas. dras. Edvânia Ângela de Souza
(Unesp-Franca), Vera Gomes e Daniela Castilho (UFPA), Jussara Mendes, Dolores Sanches Wüns-
ch e Tatiana Reidel (UFRGS). Esse projeto também fez parte das atividades de pós-doutorado,
desenvolvido no período de 2015 a 2017 no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Unifesp, sob a supervisão do prof. dr. Francisco Antonio de Castro Lacaz, quando o projeto de
pesquisa também foi aprovado pelo Comitê de Ética da Unifesp e submetido e aprovado pelo
CNPq, conforme Processo n. 445443/2015-4, 2015-7. Atualmente, foi submetido e aprovado
na modalidade Bolsa Produtividade (PQ) e aprovado sob o n. 313708/2018.
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Explicita-se que a agência é um posto da Previdência Social (APS) localizado em determinado
município, que está subordinada imediatamente a uma gerência regional da Previdência, sendo
essa também uma agência, mas que congrega outras do seu território a título de gerenciamento.
3
As oficinas ocorreram durante o desenvolvimento de atividades do projeto de extensão uni-
versitária “O trabalho do Serviço Social no INSS e a saúde do trabalhador”, desenvolvido no
período de 2014 e 2015, com apoio da Proex, Unesp.
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A nosso ver o Serviço Social deveria ser bem mais amplo no sentido do
atendimento ao segurado em todos os benefícios em si, principalmente
na questão socioeducativa de levar até o cidadão o conhecimento dos
seus direitos e deveres, mas isso não ocorre no dia a dia, devido às tare-
fas administrativas que nos são demandadas e que nem são do Serviço
Social, mas a gente acaba tendo que fazer em função também do quadro
de funcionários que está cada vez mais se extinguindo. Pra você ter uma
ideia, só esse ano vamos perder mais de 11 mil servidores... Vamos perder
não, já estamos perdendo devido às aposentadorias que estão ocorrendo
(Grupo focal 1, AS, PS-SP, 2019).
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Eu vejo assim, nesses seis anos que estou na Previdência, esse é o mo-
mento mais crítico que a gente está vivendo em todos os sentidos, e para o
Serviço Social, vamos conseguir reinventar ou sobreviver? Há um desman-
telamento e não sei até onde vai [sic] os funcionários públicos, enquanto
autarquia, porque estamos caminhando para uma extinção, o teletrabalho
é um exemplo (Grupo focal 1, AS, PS-SP, 2019).
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INSS e do E-Social, sendo que esse último sistema permite amplo cru-
zamento de dados das informações dos segurados. Tais agenciamentos
levarão o sistema de PS a uma nova configuração, que, como bem exposto
pelo depoimento, caminha para a extinção da autarquia previdenciária,
enquanto estrutura física, tal como a conhecemos.
A contrarreforma da PS em curso e a interação do acesso ao siste-
ma via estrutura on-line, por um lado, cria dificuldades das condições
materiais e de infraestrutura para o acesso aos direitos e benefícios
previdenciários; por outro, há uma interação direta com o trabalho pro-
fissional do Serviço Social, que, para operar, enfrenta uma nova mas con-
tinua interação de conflitos entre o seu projeto ético-político — pautado
na defesa intransigente dos direitos — e uma contraditória imposição
de normas explícitas e implícitas, numa estrutura que se assenta no não
direito e em um conjunto de disposições de condutas de normas enun-
ciadas pela sua disposição em sistema on-line, que distancia o público
usuário das agências e, em consequência, dos diretos. Isso nos leva a
imaginar, numa perspectiva crítica, as contradições que a sua efetivação
implicaria, não a estabilidade necessariamente, mas a destruição do
sistema atual, vale repetir.
No geral, as AS têm relatado pouca autonomia para conduzir o seu
trabalho, por exemplo, a imposição da atuação profissional no Programa
de Reabilitação Profissional e na análise de processos.
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ficam sem esse atendimento, o próprio servidor não sabe como orientar
as pessoas aqui, e fica naquela: “Vai ter ou não vai ter? O que eu faço?”.
Simplesmente foi feito desta forma, nós tentamos argumentar tudo isso
e nós não conseguimos sequer com a nossa assessoria técnica, que é da
área do Serviço Social, que fica na gerência... (Entrevista coletiva, AS,
PS-SP, 2018).
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aposentadorias para fazer, mas se ele não finaliza, a gente não faz. Vou
te falar uma coisa: nessa semana inteirinha, hoje é sexta feira, não teve
nenhuma avaliação social. Então, aqui na agência nós estamos em duas,
daí eu tive que assumir isso, porque de fato não tem avaliação social para
as duas, como já falei, tem processos parados, mas o administrativo não
finaliza, às vezes tem uma demanda espontânea. Mas, enfim, eu fui para
análise, a gente chama de portariada, eu fui portariada. Assim, eu não
atendo mais, não tenho mais nenhuma relação com o segurado. Eu chego
aqui e vou lá para a retaguarda, comecei agora, só finalizo os processos
para que eles possam chegar para o Serviço Social fazer a análise social
(Grupo focal 1, AS, PS-SP, 2019).
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A escala “Bem-Estar Geral no Trabalho — escala de Afetos” possui dez sentimentos, especi-
ficamente: insatisfação, insegurança, intranquilidade, impotência, mal-estar, desconfiança,
incerteza, confusão, desesperança e dificuldade, que devem ser respondidos com opções entre
1 e 7, numa gradação bipolar entre 1 e 7. Por exemplo, se o participante assinalar valores como
“1” ou “2” ao item de “satisfação”, isto significa que ele se encontra próximo à insatisfação. Caso
marque valores como “6” ou “7”, a interpretação é a oposta (Blanch et al., 2010).
5
A escala “Bem-Estar Geral no Trabalho — escala de Competências” possui dez sentimentos, es-
pecificamente: insensibilidade, irracionalidade, incompetência, imoralidade, maldade, fracasso,
incapacidade, pessimismo ineficiência, inutilidade, que, tal como a subescala Afetos, também
devem ser respondidos com opções entre 1 e 7, em relação à “magnitude” que o participante
identifica (Blanch et al., 2010).
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A gente deixa de ser assistente social. É isso que angustia, na verdade, o que
parece que está posto para o Serviço Social é uma árdua e onipotente tarefa
de encontrar tempo, motivação e disposição para reflexionar e contextualizar
não só o processo produtivo que adoece, mata e explora, expropria, mas
também encontrar alternativas para transformar esses processos em feliz,
criativos... Nós temos que repensar o nosso próprio processo de trabalho
alienante, infeliz, e tentar fazer dele um trabalho feliz, criativo, um traba-
lhador social, exatamente, isso que nos é retirado e, por isso, essa angústia
toda, esse adoecimento que não é visível, depressão não é visível, até que a
gente consiga arrancar um braço e falar: “Eu estou triste, eu quero morrer”.
Arranco um pedaço de braço, até que consigo acabar de uma vez com isso.
Freud diz que há uma intenção, mas não há coragem para acabar com isso de
uma vez. Acaba com o tesão do trabalhador (Oficina 1, AS, PS — MG, 2016).
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Sobre os autores
Edvânia Ângela de Souza – Professora de Serviço Social.
E-mail: [email protected]
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