Xá-Ku-Nóis Clóvis de Barros Filho
Xá-Ku-Nóis Clóvis de Barros Filho
Xá-Ku-Nóis Clóvis de Barros Filho
Xá-ku-nóis
1ª edição: Abril 2022
Autores:
Clóvis de Barros Filho e Geraldo Trindade
Preparação de texto:
João Paulo Putini
Revisão:
Vitor Donofrio (Paladra Serviços Editoriais) e Leticia Teófilo (Tecendo Letras)
Produção de eBook:
Loope Editora
ISBN: 978-65-5047-108-8
Prefácio
Capítulo 1 | Confiança é estrume
Capítulo 2 | Vingança a sangue fresco
Capítulo 3 | O outro chegou primeiro
Capítulo 4 | Orgasmos e enxaquecas
Capítulo 5 | Monja, Cortella, Karnal e Pompeu
Capítulo 6 | Nada ficou no lugar
Capítulo 7 | Galanteador, militante e equilibrado
Capítulo 8 | Sou mamífero, bípede e vertebrado
Capítulo 9 | O Mumu do Anatólio
Capítulo 10 | Condôminos e baladeiros
Capítulo 11 | Cada um na sua
Capítulo 12 | No princípio havia um princípio
Capítulo 13 | O jeito agora é o seguinte
Capítulo 14 | Se há confiança, então é cega
Capítulo 15 | Quimera que vale
Capítulo 16 | Remotas origens
Capítulo 17 | Por quem se toma esse infeliz?
Capítulo 18 | Tolerância zero
Capítulo 19 | Aqui tem um bando de loucos
Capítulo 20 | A alma é a consciência do corpo
Prefácio
Roberto Rodrigues
Confiança
é estrume
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***
***
Você, que está lendo com atenção, dá uma engasgada. Uma coisa é o
movimento dos astros. Outra, bem diferente, é o comportamento das
pessoas.
A sua experiência te ensinou que não é bem assim. Que, muitas vezes,
embora esteja tudo combinado, quem se comprometeu rói a corda.
Vale lembrar que esse tipo de ruptura não é exclusividade dos outros.
Cada um de nós se encontra do outro lado da corda, em face de alguém que
também tem certezas e expectativas sobre nossa conduta.
***
***
***
***
Para Heráclito, como acabamos de ver, tudo era uxo e mudança. Rios,
banhistas, excrementos e qualquer outra realidade do mundo. E o
pensamento é muito atrativo para quem busca sempre novas fatias de
mercado.
Você bem que sabe: não se faz circular o capital em boa velocidade com
geladeiras que duram vinte anos, televisores herdados de avós e aparelhos
celulares sem tela!
Não se trata apenas de oferecer um produto que não existia antes. Mas de
um jeito cada dia mais “facilitador” e ousado.
As empresas avançadas em e-commerce são um ótimo exemplo.
Asseguram ter como propósito, em primeiro lugar, conhecer sua clientela a
ponto de saber do que clientes precisam antes mesmo de que disso se deem
conta; em segundo lugar, vender e entregar o produto dentro de casa sem
que o pedido seja feito; e, nalmente, autorizar o débito no seu cartão de
crédito sem a sua autorização.
E o principal: ter certeza da sua docilidade e plena satisfação com todas
essas manobras.
***
***
Era um dia quente do mês de julho do ano do seu passamento, 475 a.C.
Heráclito despertou antes dos primeiros raios de sol. Lavou-se e penteou a
barba. Vestiu túnica de cor azul-celeste. Seu desjejum foi rico em cereais,
frutas e, sobretudo, mel.
Heráclito, como podem ver, se cuidava. Isso de pobreza e simplicidade
radical era coisa de outras escolas de pensamento. Com ele, o mel era
sagrado. Figos secos, tâmaras, e por aí vai.
Apesar disso, sentia-se alquebrado. Atormentado por enfermidade que
lhe armazenava os líquidos nos espaços intersticiais – dando-lhe um peso
que superava suas forças. Sentou-se meditabundo no quintal, com o corpo
de quem não estava se aguentando.
Suspeitava ter contraído essa famigerada doença durante longo retiro em
dieta rigorosa. Com ervas, plantas e nada mais.
***
***
— Cuidado com o rosto. Não chegue com a pá tão perto. Ponha com as
mãos o resto do adubo em volta do pescoço.
Depois de todo o ritual de preparação do tratamento, Antenor e Leandro
pediram licença ao mestre para buscar alimento. A manhã tinha sido
exaustiva. Heráclito, em silêncio, aquiesceu com a cabeça.
Voltariam para buscá-lo “numa meia horinha”. Auguraram um ótimo
suadouro e repouso d’alma.
***
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Vingança a
sangue fresco
***
Toda cooperação indica algum vínculo entre pessoas. Mas não qualquer. Um
vínculo com exigências.
Antes de tudo, presume-se que esse vínculo deva prevalecer perante todo
interesse particular que possa comprometê-lo.
Claro que essa prevalência também pode ocorrer na camaradagem de
longa data, na parceria feliz entre os colegas ou mesmo na união
circunstancial entre membros de grupos – no interior da organização – com
objetivos os mais variados.
Mas o vínculo a que estamos nos referindo aqui faz pensar sobretudo no
que os gregos chamavam de philia.
— Já ouvi falar nessa tal de philia. Mas não sei o que signi ca
exatamente.
A usual tradução de philia por amizade é pouco esclarecedora e
empobrece seu sentido. Talvez fosse melhor entender do que se trata sem
tentar traduzir.
Um verdadeiro tratado sobre esse tema pode ser encontrado nos livros
VIII e IX da obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Mencionamos porque
sempre há, em meio aos leitores, os que querem ir mais longe.
***
***
***
Um pouco mais de philia para o nosso leitor. Nas histórias eternas dos
mitos.
Orestes era lho de Agamêmnon e Clitemnestra. Um casal com nomes
cheios de letras.
Eis que, numa tarde de outono, Clitemnestra, em parceria com seu
amante Egisto, mata cruelmente seu marido Agamêmnon, o amado pai de
Orestes. Repetimos os nomes para o leitor não se perder.
— Boa. Assim ca mais claro. A mulher matou o marido com a ajuda do
amante. É bem isso que aconteceu, não?
Exatamente.
Uma vez ultimado o trágico ato, urdido em detalhe nos lençóis da alcova
adúltera, Orestes é exilado para ser criado – de criação e não de criadagem –
na corte do rei da Fócida.
Todos esses nomes nos parecem estranhos. Mas são mencionados com
frequência – em tom de obviedade – por aqueles que impressionam pela
erudição quando tomam a palavra.
Apesar da pompa aparente, a trama é bem trivial. Prosaica mesmo. A mãe
do menino Orestes matou o marido, pai do mesmo menino, em parceria
com seu amante. E, na sequência, se livrou do lho. Mandando-o para a
casa do, ops, do rei da Fócida.
Orestes era boa gente. E logo fez amizade com Pílades, lho do dono da
casa. Esse tal de Pílades, ninguém diz, mas era príncipe da Fócida, claro.
Apesar da infância aparentemente recuperada, Orestes nunca esqueceu a
brutalidade de que fora vítima seu pai, o grande Agamêmnon, herói da
guerra de Troia.
Decidem, então, juntos, os amigos Orestes e Pílades, vingar a sua morte.
E assim se fez.
Mortos os amantes homicidas pelas mãos do próprio lho da vítima.
Matricídio, portanto.
Sem me alongar, porque o essencial para nós já foi dito, observo apenas
que, no nal da narrativa, Orestes enlouquece. Como punição divina da
vingança que empreendera.
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***
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E se você vier com a história de que con ança se constrói, que vai surgindo
ao longo do tempo, então te perguntamos:
— Mas e antes desse “ao longo do tempo” acontecer? Como ca a relação
com as pessoas?
Alguém chega dizendo que se chama Altevir, com formação em
Administração de Empresas, tem experiência com almoxarifado, garante ser
o perfeccionismo seu grande problema.
Altevir vira o anúncio no jornal e estaria muito a m de cooperar porque
precisa do trabalho e compartilha, com entusiasmo, os valores da
organização.
Você, então, el às suas convicções e com descon ança de tudo que diga
respeito a pessoas, responde:
— Lamento. Como ainda não construímos uma relação de con ança, não
acredito que se chame Altevir, tampouco no que informam seus diplomas e
documentos, que, claro, podem ser todos falsos. Tomo também por
mentirosos seu currículo, experiência de trabalho, necessidades, valores e
intenções. Como ainda não construímos uma relação de con ança, não
posso saber quem você é. Logo, não con o em você. Em nada do que diga
ou apresente. O que impedirá que venhamos a ter algum tipo de relação.
Como preciso dela para vir a con ar em você um dia, acho que não vai rolar.
Desejo sorte. A porta de saída é logo ali. Por favor, mande entrar o próximo
candidato para a vaga do almoxarifado.
Como você vê, foi preciso con ar um dia para vir a con ar algum dia.
Talvez por isso mesmo, muitos digam:
— Eu con o sempre, até que destruam minha con ança.
Nesse caso, não há processo. Mas princípio. Anterior a qualquer
experiência e válido para qualquer um.
***
Há também pessoas que de nem sua con ança pela simples aparência. Ou
pelo que sentem no calor da interação. Consideram mais importante a
intuição.
E, de acordo com o que asseguram algumas delas, raramente se dão mal.
Bem. Cada um sabe de si. Bem como dos critérios que usa para julgar o
que vê e o que ouve.
Cada pessoa tem maior ou menor consciência do modo como se deixar
afetar por esse ou aquele tipo de estímulo causado por manifestações
humanas.
E este capítulo chega ao seu nal. Levando consigo esse pilar da
cooperação. A con ança e o seu contrário.
CAPÍTULO 3
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— Ficou claro. Agradeço pela explicação tão direta. Mas por que viver em
sociedade é considerada por muitos a única solução de vida possível? Por
que a convivência se impõe à vida? Por que não se cogita fazer tudo em
solidão?
Bem. A razão primeira e mais fundamental é bem simples de entender.
A vida que vivemos neste mundo, essa nossa vida marcada pela nitude e
por sobressaltos, é vivida com outros indivíduos. Na companhia deles e,
também, em relação com eles.
Portanto, mais do que simplesmente lado a lado, a vida que vivemos é
vivida em sociedade.
Para muitos, essa vida em sociedade resultaria da vontade manifesta de
cada um de seus agentes. De uma decisão. Como se estabelecessem um
acordo entre eles. Ou um contrato.
Do tipo, a partir de agora, nós aqui, fulano, sicrano, beltrano, muitos
outros e eu passamos a viver juntos, a viver em relação, sob uma certa ordem
econômica, segundo instâncias legítimas de governo, de legislação, de
jurisdição etc.
Por se tratar de uma decisão assemelhada ao que acontece num contrato
privado, essa tese é dita contratualista. A sociedade, nesse caso, surgiria
porque todo mundo prefere viver socialmente.
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Orgasmos
e enxaquecas
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Alguns temas são abordados com maior clareza pela análise do seu
contrário, ou pela sua falta. Harmonia parece ser um deles. Em especial,
quando o que temos em mente é a harmonia entre pessoas em uma
atividade coletiva.
Não é só com o tema da harmonia que esse fenômeno da clareza pela
ausência se produz.
Sá e Guarabyra sugerem o mesmo ao de nir harmonia, em linda canção
dedicada ao tema, pela sua falta ou raridade:
Que desejo tão fácil de se ter
Que presente difícil de ganhar
Mas é sina do homem procurar
Harmonia
Ocorre-me bonita fórmula do professor Sponville. A assimetria entre o
bem e o mal. Para cada segundo de orgasmo, serão horas de enxaqueca. E
meses de depressão.
Para ir ainda mais longe. O bem, esse parece difuso e impreciso, talvez
discutível. Já o mal, que para muitos não é nada mais do que a falta de bem,
esse é bem mais claro e fácil de identi car. Portanto, menos discutível.
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Tudo que propusemos até aqui a respeito da máquina pode ser retomado na
análise de organismos vivos. Tomemos como exemplo a digestão.
O alimento é ingerido. Seu processo digestório começa na boca. Nela os
alimentos são mastigados. O contato com a saliva facilitará a passagem pelo
tubo digestivo. Várias enzimas se fazem presentes, como a amilase salivar,
responsável por quebrar o amido.
Com a ação dos dentes, da língua e da saliva, o alimento se converte
numa pasta denominada bolo alimentar. Formado na boca, ele é
impulsionado na direção da faringe e, na sequência, do esôfago.
Neste, o bolo alimentar é conduzido, por movimentos peristálticos, ao
estômago. O processo todo que leva o bolo alimentar da boca ao estômago
recebe o nome de deglutição.
No estômago, o bolo alimentar é abordado pelo chamado suco gástrico.
Este é constituído por substâncias secretadas pelas células da parede do
próprio estômago. Como a pepsina, que quebra proteínas em peptídeos.
O resultado nal de todas essas intervenções sobre o alimento ingerido se
encaminha para o intestino, que concluirá a digestão ultimando a excreção
do que não será aproveitado.
Para que o alimento se convertesse em fezes, foram muitos os elementos a
tomar parte no processo. Constitutivos de um verdadeiro sistema, dito
digestório. Com os inputs e
outputs já mencionados, mas também mecanismos de seleção, gatekeeper,
bem como uma complexa caixa, não tão preta assim, na qual o mais
essencial desse processo de digestão realmente acontece.
Se algum desses elementos não intervir adequadamente, poderá
comprometer a intervenção de todos os demais. Podemos falar aqui em
harmonia entre essas diversas intervenções. Tal como no caso da máquina
citado inicialmente.
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— E de onde vem essa resposta?
Essa maneira cósmica de pensar (o mundo e a vida de cada um) parte de
algumas certezas.
Primeira certeza: existe um lugar certo, adequado, para cada um dos
integrantes do universo. Sendo assim, viver bem implica ocupar esse lugar.
Assim, os animais têm o seu habitat. O vento venta na direção certa. A
maré mareia no ponto certo. A chuva chove onde tem que chover etc.
Cada um de nós – seguindo essa forma de pensar – também teria um
lugar. Adequado a nossa natureza. Um lugar que nos é natural, portanto.
Onde a vida uiria melhor. Tudo rolaria mais redondo. A vida seria mais
uida.
Tipo o comando do ataque com a 9 para Romário. Uma pena em
descrições realistas do Paraíso para Eça. Um piano em retalhos para Benito
de Paula. Uma inovação pedagógica animada para Daniel Castanho. Um
templo de mãos em prece para a Monja. Um auditório para Cortella ou
Karnal. Uma sala de aula em ética para Julio Pompeu.
Segunda certeza: além de um lugar certo, tudo tem uma nalidade. Uma
função. E por isso existe e integra essa ordem. Assim, o papel do vento, da
chuva, da vaca, do pulmão, das tripas e de todo o resto é o que justi ca sua
presença no Cosmos.
No nosso caso, o perfeito ajuste a essa ordem implica viver honrando essa
nossa nalidade. Somos, portanto, úteis para o universo. E só assim
alcançaremos a felicidade. Essa, sim, absolutamente inútil. Por se tratar do
bem supremo. Em função do qual toda a cadeia de funcionalidades se
per la.
O passo a passo da vida é útil para o Cosmos. O manual de instrução da
vida boa é dado pelo pertencimento. Não há sentido nem valor para a vida
no isolamento, na individualidade. Já a felicidade alcançada com isso, essa é
nossa. Essa não está a serviço de nada. Essa é simplesmente o máximo.
Terceira certeza: além do lugar certo e da nalidade, tudo que existe
dispõe perfeitamente dos atributos para cumprir esse papel, essa função.
Assim, o intestino é maravilhosamente disposto para evacuar. As veias e
artérias, para conduzir o sangue. O rio, para irrigar. E os olhos, para
enxergar.
O nosso caso não diverge nem discrepa. Somos perfeitos de natureza para
cumprir esse nosso papel cósmico. Para saber qual é, o caminho é conhecer-
se.
Daí a insistência. Conhece-te a ti mesmo. Frase que lembra Sócrates.
Que faz pensar no oráculo. Que deu início a todo esse nosso jeito ocidental
de pensar a vida.
***
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Todas essas certezas dos antigos são inspiradoras. A luz e a beleza das ideias
faz pouco da nossa pobre e opaca concordância.
E, quando um apo de inspiração atravessa, traz consigo sempre alguma
lembrança literária.
Uma vez pediram a um poeta famoso que de nisse o Arpoador. Aquele
lugar dentro da Guanabara em que quase todos desejam viver.
É possível que um pensamento limitado de alcance entregue-se muito
facilmente à ilusão de de nir seu objeto com perfeita clareza. Alguns poetas,
na sua intuição, aderem talvez à ilusão das formas acabadas, imaginando que
tudo possa caber nos seus meios expressivos. Mas quando se aguça o
pensamento, aí as coisas se revelam em sua complexidade.
Disse o poeta:
— No Arpoador, há os namorados, que querem dar a seu namoro
moldura atlântica, céu e onda por testemunhas. Julgam-se merecedores de
acompanhamento sinfônico-paisagístico, e não percebem que o Arpoador,
áspero e depurado na sua condição de rocha, está acima e além dos
namorados.
E os que procuram estar sós, roídos de dor moral ou desgosto de
superfície, os que fazem do Arpoador berço para minar a sua angústia?
— Bem, o Arpoador é dos reinos mais povoados e movimentados do
universo: espaço, luz e forma estão ali em contínua diversi cação, criando-se
e recriando-se com mobilidade de arquitetura aérea. É solidão, sim, mas
diferente do comum estar só com nossas pobrezas e limitações.
Há também o que vai para se entregar. O que não pede poesia, nem
consolo, e absorve o Arpoador em sua in nitude, apenas com o se deixar
levar e absorver na ordem maior.
Que bela alegoria!
***
Quinta certeza: eis o ponto que mais nos interessa. O bom funcionamento
do Cosmos depende de uma perfeita integração das partes que o
constituem. Assim, não se trata de cada um por si.
O bom desempenho de um de seus integrantes se dá na justa imbricação
com os demais integrantes alocados.
Dessa forma, a harmonia cósmica é integrada, participativa e dinâmica.
Distinta, portanto, de um quebra-cabeça, cujas partes se interpenetram
em função de protuberâncias e invaginações estáticas.
***
Sexta certeza: tudo tem a ver com tudo. De modo que todas as partes são
solidárias. Corresponsáveis pelo bom funcionamento do todo. Uma
responsabilidade do tamanho do universo. De nida numa ética
propriamente cósmica.
Uma vida fracassada, mal vivida, em desarmonia, compromete o universo
inteiro. Atenta contra a sua ordem.
Eis porque o pensamento cosmológico antigo é considerado por muitos
como holista. Termo que vem do grego holos, que quer dizer todo. Toda
ação produz efeitos, que por sua vez produzem outros efeitos e assim por
diante. Numa cadeia sem- m. Pela eternidade.
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— Caramba. Estou perplexo! Nunca fui um mau aluno nos tempos de
escola. Estudamos os antigos. Nas leituras, fui além do obrigatório. Mas
nunca tinha me dado conta de nada disso. É mesmo um conjunto de
certezas que balizam a vida.
Exatamente. E você, com certeza, se deu conta de que esse jeito cósmico
de pensar nos oferece subsídios para enfrentar o nosso problema maior.
A nal, cooperar. Operar junto.
Cada uma das certezas apresentadas nos mostra as condições dessa
operação conjunta.
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Nada ficou
no lugar
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O mundo está sempre a escapar ao nosso agrante. Com seus corpos que já
não são mais, que nunca param de deixar de ser. Quando vamos repetir ou
con rmar o que tínhamos percebido, eis que nos deparamos com novas
realidades. E constatamos que já não são mais o que foram um dia. Talvez
tenham sido. Como ter certeza se a con rmação desmente?
Com alguma sorte, os mundos um dia percebidos viram lembrança e
torcem pela memória para sobreviverem no espírito.
Mas, nesse instante, em que estamos você e eu envolvidos nesta leitura,
aqueles corpos que um dia agramos no mundo, bem como os nossos
próprios que os percebem, já não são mais. Se ainda forem algo,
converteram-se em outra coisa.
E se acha que estou exagerando é porque não olhou direito para o mundo.
Tampouco para o espelho. Pode crer. Nada cou no lugar. Dando razão a
Adriana, que canta lindamente a sina da impermanência.
***
***
Quisera eu ter sempre diante de mim pessoas como você. Atenciosas ao que
digo. E dispostas a contrastar as a rmações que faço com a própria
experiência. Quero elogiá-lo perante todos os demais leitores.
Mas agora é a minha vez.
E eu te pergunto: será mesmo que tudo isso que você apresenta, em tom
de obviedade absoluta, procede?
Você propõe que, ao nal do dia, edifícios, coisas menores e pessoas
estejam tal como você as deixou pela manhã ao sair. Eu presumo que você se
re ra aos dias ditos normais, sem incêndios ou óbitos na família.
— Claro. Um dia como outro qualquer.
Muito bem. Quer dizer que, ao longo desse dia como outro qualquer,
nada te aconteceu? Não houve encontros seus com o mundo? Não houve
interação com coisas, com pessoas?
Você nada fez e nada transformou? Você não tirou nada do lugar? Não
deixou nada escrito que antes era página em branco? Não sujou nada que
estava limpo?
Não encontrou ninguém no elevador? Com quem tenha conversado?
Acredita mesmo que, com você ou sem você, tudo teria sido o mesmo para
as pessoas encontradas? Não acha que a viagem de andar em andar em
conversa com você é vida diferente daquela na solidão da nave?
Você não disse nada a ninguém? Informou sobre algo ignorado até então
pelo interlocutor? Você não propôs um café que, sem o seu convite, teria
sido tomado em outro momento, ou em nenhum momento? Você não
solicitou alguma tarefa que ocupou seu subordinado? Não entregou a tarefa
ao chefe em tempo de satisfazê-lo? Ou em atraso que o tirasse do sério?
E, nesse dia, como em outro qualquer, ninguém nesse mundo tampouco
fez ou disse nada que tenha te alegrado, entristecido, feito sorrir, chorar,
pensar, discordar? Nada que tenha aprendido de novo? Cuja existência
ignorava. Ou algo sobre o que tenha re etido melhor? E calibrado sua
opinião a respeito.
— Claro que sim. Muita coisa parecida com isso aconteceu. Talvez o
tempo todo.
Mas então você foi afetado? Amou, sorriu, chorou, sentiu raiva, fome,
sede, em suma, viveu. Talvez o tempo todo.
— Claro que sim. Por mais que eu costume car na minha, não dá para
se blindar completamente. Quando evitamos algumas coisas, acabamos por
encontrar outras. Não tem jeito.
Para me ngir de morto no trem, costumo usar um superfone de ouvido
bloqueador de ruído, presenteado pelo meu grande amigo Marcial.
Desse modo, não tenho que conversar com quem puxa papo ao lado. Mas
vou ouvindo meu jazz, mandado pelo Nelson – outro grande amigo – numa
superplaylist. Com destaque para Anat Cohen e Marcello Gonçalves em
“Outra Coisa”. Preciosa dica.
Como você vê, nada como ter amigos para fugir do mundo. Mas para
escapar do chato do trem, mergulho na música e me deixo encantar por ela.
E acha que nada disso produziu em você nenhuma mudança? Você não se
alterou em nenhum momento?
— Não sei se essas coisas todas que você falou, de fato, me
transformaram. Na verdade, não consigo enxergar exatamente nenhuma
mudança.
Vamos tentar por outro caminho.
***
Você admite, sem di culdade, que não nasceu com o corpo que tem hoje.
— Certamente que não.
Tampouco com a capacidade de pensar e enunciar pensamentos que tem
hoje. Chamemos de competências da alma.
— De jeito nenhum.
Então, num dado momento, ou em vários deles, você sofreu alguma
transformação. Estamos de acordo, por enquanto?
— Sim, estamos.
Pensemos juntos para encontrar esses momentos. Pode ser?
— Com certeza.
Pergunto a você se acredita que as transformações no seu corpo e alma
aconteceram, todas elas, ao término de cada década de vida.
Nesse caso, você teria permanecido o mesmo durante dez anos e só no
nal da década teria envelhecido, de uma vez, o correspondente aos dez
anos. Acha que pode ter acontecido isso?
— O senhor está brincando. Isso é absurdo. Claro que não.
Então proponho que essas mesmas mudanças de envelhecimento no seu
corpo tenham acontecido nas viradas de cada ano. No tal do Réveillon. Em
31 de dezembro. Exatamente à meia-noite.
De um segundo a outro, todas as transformações de corpo teriam se
processado de uma vez: ossos se alongaram, pelos surgiram;
esbranquiçaram; caíram; a voz engrossou; a genitália se desenvolveu.
Ao mesmo tempo, nesse mesmíssimo instante, e só nele, toda a elevação
de alma se processou, o repertório se alargou. E você, naquele instante,
passou a discorrer sobre as causas da falência do modelo tradicional de
produção industrial, tão em voga no século XIX; ou sobre buracos negros no
universo, energias renováveis, ou quem sabe ainda sobre a importância de
Fernando Pessoa para o mundo lusofônico.
Tudo isso, de repente. Bem na virada do ano. Pode ser?
— Essa proposta, o senhor bem sabe, continua absurda. É claro que as
mudanças que sofremos não acontecem na noite da passagem do ano.
Ótimo. Então quero crer que tenham ocorrido mês a mês. No quinto dia
útil, por exemplo. No dia em que muitos recebem seus salários.
— Claro que também não.
Aos domingos?
— Também não.
Então devem acontecer todos os dias.
— Suponho que sim.
Mas a que horas, exatamente? Enquanto você dorme?
— Não sei. O senhor sabe?
Ora, vamos, não perca a esportiva. Tudo isso é para você entender do
modo mais claro possível. Quando cogitamos pelo absurdo, o que é plausível
pode saltar aos olhos com mais clareza.
***
***
Não será porque ela denuncia que o que é nunca mais será, incluindo tudo
aquilo que acreditamos ser o que amamos? Não será porque nos lembra,
com certa truculência, que a vida – e tudo que dela faz parte – não para de
ser outra o tempo todo? De deixar de ser o tempo todo?
Não será porque nos damos conta de que quando a vida deixa de ser é
porque morremos? Morremos uma morte diferente. Uma morte em meio à
vida. A morte de uma vida em proveito de alguma outra. Escancarando a
pobreza existencial dos nossos apegos?
Não será o apreço pelo que já é a legitimar todo esforço contra a
deterioração? Esforço por perseverar em si mesmo? Pela permanência no
próprio ser. Pela eternidade. Ou, ao menos, por alguma duração?
Talvez tudo se resuma mesmo a isso. A luta malograda contra a nitude.
A indignação patética ante o desaparecimento. Fazendo da vida um salto
para o nada, no abismo da existência. Sem cordas nem ganchos. Uma
angústia solitária, amor sem objeto. Esperança desesperada.
— Nossa! Agora você pegou pesado. Acho que tem, sim, um pouco de
tudo isso que você acabou de dizer.
Você, querido leitor, falou que algo de você permanece no meio de toda
mudança. Pode me dizer o que é?
***
Galanteador,
militante e
equilibrado
***
***
De fato.
Muitos de nós – acostumados a pensar primeiro no singular e depois no
plural – acabam por conceber toda cooperação como a reunião de operações
individuais preexistentes. Esse modo de entendimento ganha tintas de
convicção se o famoso “eu” for um dos envolvidos.
Assim, pensar a partir das próprias iniciativas e das razões pelas quais
cada um de nós deliberou isso ou aquilo é um hábito da inteligência difícil
de ser rompido.
Tanto é assim que o professor Bourdieu, um dos mais importantes
cientistas sociais do século passado, destacava – no sentido de chamar a
atenção do leitor – que a sua própria obra só poderia ser entendida,
explicada e analisada a partir da existência de um campo estruturado de
produção cultural denominado campo acadêmico, com seus agentes –
dominantes, dominados e pretendentes –, suas estratégias de conservação e
subversão, condições de acessibilidade, regras de funcionamento, habitus,
troféus etc.
Mas essa consciência da inserção da própria vida social num quadro
estruturado com tantos pormenores é prerrogativa de muito poucos. O mais
comum é enxergar a origem das próprias ações num movimento deliberativo
que tem na própria razão e vontade o único motor.
***
***
***
***
***
***
Por isso, quando re etimos sobre o que é cooperar, claro que não podemos
abrir mão da dimensão social que de ne e rede ne a legitimidade dos seus
processos.
No entanto, tão importante quanto é ter em conta que toda cooperação é
implementada por indivíduos. Pessoas de carne e osso como vocês e nós.
Essas pessoas, certamente, receberam seus contornos no talho das
interações, nas alegrias e nas tristezas da convivência, nos prêmios e castigos
das hierarquias. Mas foram se constituindo como sujeitos. E, a partir daí,
reivindicando e assumindo suas soberanias relativas.
É no interior desse zigue-zague plenamente interativo que destacamos a
importância dos processos de construção e identi cação das
individualidades. Das pessoas de verdade.
Sob pena de toda cooperação não passar de uma simples estrutura
abstrata de pensamento, higienizada de gente com interesses, expectativas,
propósitos pessoais, mas também aptidões, virtudes morais, caráter e
identidade.
CAPÍTULO 8
Sou mamífero,
bípede
e vertebrado
***
***
Vimos também que a mudança é um tema que preocupa. Que nos espaços
de cooperação há temor em aceitá-la. Que há di culdade em concebê-la
como um contínuo. E que toda forma de vida e de convivência deve levar
em conta esse dado da realidade de todos nós.
***
Neste capítulo vamos falar desse que chegou atrasado e pegou o bonde
andando.
Veremos quanto um discurso sobre si – exigido a cada nova interação –
obedece a regras estritas de aceitação.
Esse eu, que corresponde a cada um de nós, a origem e o fundamento
daquele que estamos acostumados a pensar que somos – e a dizer a nosso
respeito – é tema de relevância gritante.
A nal, na hora de cooperar, importa saber quem somos. Para bem
identi car – em relação aos demais – o que nos toca fazer. Qual a nossa
especi cidade operativa.
Vamos, como de hábito, nos servir de uma situação concreta que
poderemos imaginar com facilidade. Nesse cenário encontraremos boas
oportunidades para exemplos que nos serão preciosos.
***
Nosso cenário é uma balada. Quando você chegou, viu que estava
bombando. E você não levava fé. A galera já estava bem animada, pulando
ao som de um DJ bem conhecido.
Você não conhecia ninguém. Mais desenturmado, impossível. Os dois
que te convidaram, um casal bem simpático, por sinal, esses conheciam todo
mundo, ou quase. Mas você mesmo também não os conhecia bem.
Esse casal eram e são ainda os seus genitores. Os seus pais. Eles que
tomaram a iniciativa de te convidar. E você, recém-chegado, recém-nascido,
não podia mesmo estar enturmado. Por sorte, eles te tratavam muito bem.
Mas não há regra.
Logo que você surgiu por ali, a galera pareceu muito interessada em te
conhecer. Aproximaram-se para isso. E não pouparam amabilidades. Alguns
tinham levado até presente por saberem da sua chegada. Te observavam
curiosos e comentavam tudo que viam. Com vivo interesse.
Você ouvia muito. Mas não entendia nem falava nada. Assustado, chorava
e gritava, sem que isso, aparentemente, incomodasse ninguém. Pelo
contrário. Havia ternura em olhares e gestos. Felicidade manifesta por você
ter chegado. Por estar ali. Dava mesmo a impressão de que você fosse causa
da alegria de todos.
***
***
***
Ali, no calor daquela interação, há que ter sempre algo a dizer sobre si. Que
possa dar conta desses primeiros momentos. Algo que satisfaça quem
aborda. Veio à cabeça muita coisa verdadeira para dizer.
— Sou mamífero, bípede, vertebrado, portanto, pluricelular, com
pulmões para a respiração, aparelho digestório e neurônios, muitos
neurônios, que fazem sinapses bem legais.
Pela cara que ele fez, você intuiu rapidinho que não era bem isso que ele
queria saber.
***
Não há situação de vida social que não cobre alguma identi cação. Com
variação nas formas. Currículo e entrevista de emprego, cha de paciente na
internação hospitalar, check-in em hotel, RG no motel, cadastro na recepção
do edifício comercial e todo o resto.
As informações requisitadas acabam se tornando previsíveis. Tanto que
quando escapam minimamente, causam estranhamento. Como perguntar o
estado civil para receber um livro pelo correio ou a frequência a algum culto
religioso para ser medicado em uma enfermaria.
***
***
***
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***
— Mas para além do que dissermos sobre nós mesmos, o que é, de verdade,
esse eu que se apresenta?
Eita, agora você pisou em terreno pantanoso. As ciências humanas nos
ensinam que essa singularidade cobrada pelo seu interlocutor é uma ilusão.
Que não há substância. Apenas uma sobreposição inde nível de estruturas
orgânicas, psíquicas, sociais, linguísticas.
Que o tal do eu – ou sua alma – não poderia ser sua causa. Quando
muito, seu efeito. Por isso resta pouco. Pouco mais do que a ilusão de si.
Sempre exigida e chancelada por outros iludidos. Como Narcisos, sujeitos
de seus sonhos.
Veja o que diz o lósofo Nietzsche, de quem, com certeza, você já ouviu
falar:
— Não concordo que o “eu” seja aquilo que pensa. Ao contrário.
Considero o “eu” como uma construção do pensamento, com o mesmo valor
que “matéria”, “coisa”, “substância”, “indivíduo”, “propósito”, “número”. Isto
é, só como cção reguladora, com a ajuda da qual se inventa, no mundo do
vir a ser, uma espécie de estabilidade.
Relatos sobre si. De ilusões sobre o eu. Relatos sem objeto. Labirinto.
Vazio de ser. Abismo.
Não havendo nenhum eu – tipo Clóvis ou Geraldo – que permaneça,
camos dependendo dos relatos para podermos ser alguma coisa. Daí a
cobrança. Daí a necessária repetição. Para convencimento e
autoconvencimento.
Nossa identidade – em forma de narrativa – garante que algo permanece
idêntico. Que o de ontem é o mesmo do de hoje. Que algo do Geraldo que
saiu de casa para trabalhar voltou do trabalho e sentou-se para jantar.
Garantia de que haja algo que corresponda a Geraldo. Com quem sua
esposa se casou. E continua casada.
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O Mumu do
Anatólio
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Mas não há que confundir essas vontade com o desejo. E por que não?
Em primeiro lugar, porque todo querer – possibilitado pela vontade – é
sempre em ato. Querer agir sem poder realizar a ação querida é um absurdo
conceitual. Como querer andar sem poder se levantar. Ou querer ver sendo
cego.
Uma vontade que não pode agir e, portanto, não age, nega-se a si mesma,
não existe como tal. Será uma simples quimera, um desejo, um devaneio.
Desse modo, aquele que quer comer já está comendo. Quem quer andar
já está na iminência de marchar. Levanta-se e anda. Aquele que quer ler já
está a abrir o livro.
***
Por isso, toda vontade – e o querer que ela faculta – tem necessariamente
por objeto o que é realizável por quem o quer, isto é, o que está ao seu
alcance.
Enquanto que o desejo, não necessariamente.
Assim, eu sempre desejei voar, por conta própria, e sem ser em queda
livre. Algo como utuar no ar. Se fosse possível um deslocamento em alta
velocidade batendo os braços, melhor ainda.
Ora, voar por conta própria ou me tornar invisível podem ser objetos de
desejo. Mas não de vontade. Porque essa última implica, como dissemos,
realização, atualização.
E os dois desejos acima não se deixam realizar, dadas, de um lado, as
condições gravitacionais a que estamos submetidos e, de outro, a estranha
mania de alguns fótons de esbarrar em nós e re etir nossos corpos para
olhares curiosos.
***
***
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Cooperação é operação. Quem coopera opera.
E toda operação é, antes de tudo, uma ação. Uma potência que se
atualiza. Uma potência de escolha que se efetiva em vida vivida. Que se
realiza em ato. Num ato de vontade.
Que pode vir acompanhado de algum exercício de razão prática. Como a
identi cação de algum m, objetivo, meta ou resultado e dos meios mais
indicados para alcançá-lo.
Decorre daí que toda cooperação também seja um ato de vontade.
Faculdade de querer operar junto. Que, como toda vontade, supõe alguma
potência de escolha que se atualiza.
Assim, sabemos, é sempre possível querer agir e operar sozinho. É
também possível querer se organizar como empresa vertical, piramidal. É
possível, em terceiro lugar, não querer agir de jeito nenhum.
Mas, nalmente, também é possível querer cooperar.
Essa escolha pode vir acompanhada da identi cação dos meios mais
adequados para os ns estabelecidos.
Só que com a vontade, a faculdade de querer, a participação de duas ou
mais pessoas, operando juntas, em busca de um propósito comum.
***
Condôminos
e baladeiros
***
Se o desejo é só falta…
Mulheres e homens desejam ser. Por isso não são.
Mulheres e homens não são. Por isso desejam tanto ser.
Mulheres e homens nunca foram. Por isso sempre desejaram ser.
Mulheres e homens nunca serão. Por isso desejarão ser sempre.
Mulheres e homens são vazios de ser. Por isso desejam plenitude de ser.
Mulheres e homens desejam sempre. Confundem-se com o desejo.
Por isso, talvez, sejam desejo.
Mas, nesse caso, seriam algo. E não poderiam desejar sê-lo.
Não se deixe impressionar com as linhas acima. São só poesia. E poesia
ruim. Por isso mesmo, é hora de voltar para o nosso arroz com feijão bem
temperado.
***
Você se lembra das provas de física que teve que encarar no Ensino Médio.
Um veículo se desloca em movimento retilíneo e uniforme à velocidade
de 80 quilômetros por hora. Em quanto tempo percorrerá a distância de 500
quilômetros?
Esse está fácil. Temos três dados. O tipo de movimento, a velocidade e a
distância. A incógnita é o chamado delta t. Delta esse representado por um
pequeno triângulo, lembra?
Tentemos aqui um paralelo. Com isso daremos ao leitor a impressão de
rigor. Nossa incógnita é a cooperação entre humanos. O dado que temos é
este: humanos desejam. Sempre.
Este capítulo nos permitirá jogar um pouco de luz sobre o desejo. Sem
isso, tudo que propusermos sobre cooperar será em vão.
***
O que é o desejo?
A resposta de que gostamos mais não é aquela com que devemos
começar.
Gostamos de pensar desejo como força vital. Como potência. De agir, de
pensar, de gozar. Como energia mobilizada para viver naquele instante e
naquele lugar. Num mundo que já está bem aí. E você em plena relação com
ele.
Desejo na palestra, por exemplo. Batendo no peito. Duzentos por cento
centrado na produção do discurso. Adrenalina jorrando. Nossa. Você não
tem noção.
Mas essa não deve ser a primeira resposta. Pouco importa do que eu gosto
ou deixo de gostar. Você tem que ser levado pela mão dos grandes. Eis o
nosso compromisso.
***
***
***
Desejo é amor. Porque amor é desejo. São a mesma coisa, portanto. Para
Platão.
Você ama tudo que deseja. Todos que deseja. Na intensidade que deseja.
Enquanto desejar.
Por outro lado, se o desejo acabar, é porque o amor acabou também.
E desejamos o que não temos. Nem tudo, claro. Nós, os autores deste
livro, não temos doença grave. E tampouco a desejamos. A falta é condição
necessária, mas não su ciente do desejo.
Desejamos ser o que não somos. De novo. Não somos doentes e não
desejamos sê-lo.
Por outro lado, desejamos comer, beber, ler, assistir, beijar, abraçar e
qualquer outro verbo que o leitor quiser acrescentar por sua conta e risco.
Na intensidade da falta que faz. E enquanto a falta perdurar.
***
***
***
Um exemplo.
Até 2015 minha visão era razoável. Coisa de miopia e astigmatismo.
Nada que um par de lunetas, com sólida armação tartaruga, não resolvesse.
Eis que por essa época o mundo a ou suas garras. O descolamento de
uma retina – agredida por um silicone incompatível – cegou-me a vista
direita. E uma escavação pronunciada no nervo óptico comprometeu
seriamente a outra.
Muito bem. Até o fatídico 2015, enxergar era uma obviedade. Uma
presença tão evidentemente presente que nunca dela me dei muita conta.
Uma condição de vidente impossível de amar tão aderida à vida que era.
Mas as coisas mudaram. A visão tornou-se ausente. Faltante. E fazendo
muita falta. Insisto porque, como vimos acima, há o que falte e não faça
nenhuma falta. Como uma caixa de charutos. Ao menos para os autores
deste livro. Cada qual saberá de si e de suas faltas.
Desse momento em diante, a visão tornou-se desejável.
E muito desejada. Amável. E muito amada. À moda de Platão.
Eroticamente. Na condição dramática da impossibilidade.
De ver o rosto daqueles que amo.
***
Antes de de nir desejo como falta, Sócrates esclarece aos ouvintes que tudo
que vier a dizer não é pensamento original seu. Que sobre as coisas do amor
foi instruído, desde moço, por uma mulher: Diotima.
Essa Diotima não é uma mulher comum. É a própria sabedoria.
Pensando como um grego, é a virtude masculina elevada à máxima potência.
O que ensinou Diotima a Sócrates? Que o amor é sempre amor pela
beleza. Que esse amor não é nem belo nem feio.
Se fosse feio, não saberia nem do que se trata a beleza. Se fosse belo, não
iria atrás dela porque já a possuiria em si mesmo.
Eros está no meio do caminho, portanto. Entre o humano e o divino.
Entre a beleza e a feiura. Entre a sabedoria e a ignorância.
De fato. O ignorante não vai atrás de verdade alguma porque não tem
nem ideia dessa possibilidade. E o sábio também não a persegue. Porque já
dispõe dela.
***
***
Lá no começo deste capítulo, dissemos que não era pela falta que
gostaríamos de ter começado. Esperamos nos explicar nas linhas que
seguem.
Nada impede que possamos desejar ser o que não somos ou ter o que não
temos. Mas acredito não residir nesse não ser ou nesse não ter o mais
importante. Não considero essa falta o mais essencial no desejo.
E por que não?
Um exemplo poderá nos ajudar.
Um professor universitário leciona na graduação. Recebe por hora-aula.
Mas deseja ser pesquisador. Trabalhar na formação de novos pesquisadores.
Deseja integrar um programa de pós-graduação com mestrado e doutorado.
E, de fato, isso que ele deseja fazer ele ainda não faz.
Para isso ele se prepara. Estuda por conta própria. Faz pesquisa ajudado
pelos seus alunos de graduação. Apresenta trabalho em todos os congressos
cientí cos em que é aceito. Converte seu curso em livro. Participa de grupos
de estudo. Oferece-se para ajudar na produção de pesquisadores já
consolidados. En m, não poupa esforços. Faz tudo que pode.
Muito bem. A pergunta que deixamos é a seguinte: onde está o desejo?
Onde reside sua materialidade? Onde encontrar a sua positividade?
Estará no posto universitário ainda não ocupado? No contrato de
trabalho ainda não assinado? Nas pesquisas ainda não realizadas? Na vida
ainda não vivida?
Certamente em nada do que foi mencionado acima. Porque isso tudo
pode bem ser o objeto do desejo. Aquilo para o que o desejo se volta. Seu
ponto de chegada. Seu limite. Quem sabe até seu fracasso. A nal, a lista
toda, de fato, ainda falta a quem deseja.
Portanto, se o desejo não está no mundo que falta, onde estará?
Ora. Está no mundo que é. No mundo presente. Na realidade concreta
das experiências. Na pulsão de quem mobiliza esforços. Na mente de quem
imagina. No tesão de quem se já se vê lá.
E o que há nesse mundo?
Encontramos na mente de cada um dos que desejam a imagem daquilo
que desejam. E essa imagem é, enquanto imagem, completa. A ela, nada
falta. Ela é o que é. Nem mais, nem menos.
Encontramos também esforço. Calorias gastas. Estratégias. Dedicação.
Empenho. Luta. Ora, tudo isso também é bem presente. É potência em vias
de atualização. É planejamento em vias de implementação.
É em toda essa realidade vivida, nessa presença inequívoca de ação, de
pensamento, de escolha, de decisão, de trabalho que agramos toda a
positividade do desejo.
Agora. Se o mundo que consta na mente de quem deseja como sendo o
mundo que gostaria de ter, que faria bem, que apeteceria, que agradaria,
pois bem, se esse mundo aí ainda não se encontra também em carne e osso
como realidade cotidiana, como mundo percebido, como vida de todo dia e
encontro de toda hora, isso não basta para fazer da falta a essência do desejo.
Para dizer as coisas mais diretamente.
Entendemos que o desejo seja muito mais a busca real e presente do
mundo desejado (que ainda falta a quem deseja) do que esse mundo
desejado e buscado porque faz falta a quem o deseja.
O desejo nos parece ser muito mais a realidade e a presença da luta e do
empenho de quem deseja do que a falta provisória da sua conquista.
***
***
Cada um na sua
***
Presumo a sua surpresa com esse tema. A nal, estamos a tratar neste livro
de cooperação, de relações, de grupos, de con ança entre pessoas. E todos
esses assuntos requerem a presença de alguém mais. Pelo menos mais um. O
que já bastaria para comprometer qualquer solidão.
Para ser mais explícito:
Se dois indivíduos – ou duas centenas deles – operam juntos, não podem
estar sós. Logo, tratar de solidão neste livro equivaleria a inserir um capítulo
sobre a economia da Patagônia numa coletânea de trovas portuguesas.
Dir-se-á ainda mais:
Que toda cooperação é uma evidência da nossa sociabilidade; indicativa
de que precisamos uns dos outros; de que existimos para viver em grupos
organizados; de que somos uma família, um time, uma equipe, uma célula,
um espaço de sinergia; de que, sem a devida participação de cada um, o
todo sucumbe.
E tudo isso parece excluir em de nitivo a ideia de solidão.
Na vida que é a de cada um de nós, outras pessoas surgem por toda parte,
o tempo todo. Com seus corpos, seus discursos, suas obras, suas ideias. E
muitas dessas pessoas interagem conosco. Nas mais variadas situações.
Portanto, seguindo o que dissemos nos primeiros parágrafos deste
capítulo, considerações que, por sinal, sentam no colo do mais imediato
senso comum, só ca mesmo sozinho quem quer. Isto é, quem opta por
viver nesse estado.
E, ainda assim, mesmo desejando com rmeza estar só, encontraria
alguma di culdade para se manter por muito tempo distante de outros.
Até aqui, tudo bem, tudo certo, nenhuma polêmica à vista. Dadas as
evidências da existência humana, a solidão é um assunto fora de propósito.
Sobretudo num livro destinado a cuidar de formas particulares de interação
pro ssional.
***
“Mas só que não” – diriam hoje meus alunos, quando contestam alguma
verdade muito aparente.
— E por quê? – você pergunta.
Não podemos negar que haja muito de verdadeiro em tudo que foi dito
acima. De fato, humanos tendem a viver convivendo. A trabalhar
colaborando. A agir interagindo. A operar cooperando. A habitar
coabitando.
Mas nada disso compromete, exclui ou elimina a solidão. De jeito
nenhum.
— Você está querendo dizer com isso que a convivência entre as pessoas é
quase sempre super cial, com interações pobres? Que embora as pessoas
vivam juntas, na verdade pensam só em si mesmas? Que, a despeito das
virtudes anunciadas, das boas intenções prometidas e até mesmo das juras
de amor eterno, as pessoas tomam as outras por mero instrumento de suas
ambições, trampolim para seus prazeres e meio para a satisfação de seus
próprios interesses?
Embora tudo que você acaba de dizer marque presença mais do que
cotidiana na convivência entre humanos, não era nisso que eu estava
pensando ao observar que a presença de outras pessoas e a relação com elas
não é incompatível com a solidão de cada um.
— Não?
Não!
— Mas, então, o que está querendo dizer com essa sua solidão?
Re ro-me a algo mais fundamental. Que resulta menos da moral do que
dos afetos.
A eventual falta de generosidade, a que você se refere, não denuncia de
modo inequívoco a solidão do egoísta. A ação mais ou menos virtuosa, em
que pese a relativa estabilidade dos traços de caráter, pode oscilar de situação
para situação.
Re ro-me a uma solidão necessária. No sentido losó co de inexorável.
***
***
— Nos casos da chuva e do óbito cou claríssimo. Mas ainda não consigo
relacionar isso com a nossa solidão que, para mim, continua sendo eventual.
Vejo que os exemplos trouxeram um ganho de compreensão. Mesmo que
ainda não tenham permitido vislumbrar o que estamos pretendendo ensinar.
— Sim. Acho que os exemplos trouxeram ainda mais clareza para a
minha incompreensão.
Ótimo. Adorei essa sua fórmula.
Fique tranquilo que não concluiremos este capítulo sem deixar isso muito
bem explicadinho, nos seus míííííínimos detalhes, como pedia um humorista
da velha guarda. Do tempo dos autores que vos escrevem.
Retomando, então:
Dizíamos que a solidão é necessária. De modo que não há como cogitar a
sua ausência. Em nenhum tempo e lugar.
A solidão se impõe. No sentido de ser condição da existência humana.
De acompanhar nossa vida do nascimento à cova.
E se impõe a todos nós. Inapelavelmente. Não se trata, portanto, de
alguma particularidade psicológica e, menos ainda, de um desvio moral.
Por isso, não podia estar pensando em pessoas mais ou menos egoístas ou
generosas. Tampouco naquelas que não dão muita bola para o que os outros
estão sentindo. Isso fulminaria a solidão daqueles que dedicam suas vidas a
diminuir a dor e o sofrimento do próximo.
Por isso fomos bem incisivos. A solidão se impõe a todos nós. De
candidatos a santo a canalhas que despertam revolta no próprio tinhoso.
***
O que precisa car claro, antes de mais nada, é que a solidão a que me re ro
aqui nada tem a ver com a presença de pessoas por perto, mesmo que
muitas, interagindo ou não.
Assim, se estivéssemos num estádio de futebol, em dia de clássico e em
tempos pré-pandêmicos, com mais 60 ou 70 mil outros torcedores pulando
junto, essa existência compacta, espremida e cheia de proximidade
tampouco mudaria nossa sina solitária.
Desse modo, no caso de uma cooperativa ou de qualquer outro tipo de
processo operativo de funcionalidade interdependente – levado a cabo por
mais de um indivíduo –, nada elimina a solidão de nenhum de seus agentes.
Mesmo que esse “mais de um” chegue a alguns milhares deles.
Lamento, portanto. Não por nossas vidas inexoravelmente solitárias,
claro. De nada adiantaria. As coisas são o que são.
Lamento, sim, pela ingenuidade iludida dos nossos sensos mais comuns.
***
— Não entendi. Se quiser me tomar por um bronco, que à vontade. Não
me importo. Já estou me acostumando com as suas ironias. Quero deixar
claro que, no meu entendimento, você está exagerando. Pegando pesado
mesmo. Não dá para generalizar, sobre essa questão, da solidão como você
está propondo. Não preciso pensar muito para encontrar incontáveis
contraexemplos. Em muitos lugares que frequento, inclusive o do meu
trabalho, não vejo solidão alguma. Pelo contrário. A galera não se desgruda.
Trampa junto, sai junto, ca junto e ainda quer mais. Eu mesmo, que
costumo car mais na minha, sinto-me superintegrado, em sintonia, numa
vibe de grupo mesmo.
***
Bem. Para começar, nós, autores, acreditamos que estar ciente da própria
ignorância é o primeiro e decisivo passo para algum progresso nas atividades
do espírito.
Servindo-nos dos seus termos, saber-se bronco é condição para deixar de
sê-lo um dia, ainda que só parcialmente. Deixando claro que não há
nenhuma garantia de que isso aconteça. Saber-se ignorante é, portanto,
condição necessária mas não su ciente para mudar de estatuto cognitivo.
Em segundo lugar, a solidão de que estou falando não resulta de uma
circunstância da vida.
— Como assim?
Quando a rmo que a solidão é condição da existência, não estou dizendo
que uns e outros se sentem sozinhos quando a festa acaba, por exemplo. Ou
quando vai todo mundo embora; quando o ano escolar termina; quando os
lhos crescem, casam-se e deixam o lar.
Não se trata, portanto, de, circunstancialmente, experimentar a solidão.
Não é nada disso.
— Então, se não é isso, o que é?
Quero dizer que a nossa solidão nos acompanha o tempo todo. Duzentos
por cento do tempo. Do nascimento à cova. Durante a balada. Na viagem
de formatura. Na arquibancada do estádio, comemorando o gol do seu time.
No altar, celebrando o seu matrimônio. Em meio aos lençóis.
Não se trata, portanto, de se sentir sozinho só de vez em quando.
Reitero, portanto, sem medo de entediar, que a solidão é condição da
nossa existência. Para todos. Em qualquer tempo e lugar.
Você vive necessariamente só. E nós, os autores deste livro, também.
Portanto, minha hipótese, copiada de Espinosa, é muito mais radical.
— Mas isso parece muito absurdo. E aposto que não só a mim. Portanto,
acho que você vai ter que começar a se explicar quanto antes.
***
***
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***
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***
***
A mesma palavra dura do chefe que produz tanto amargor para um traz
segurança para o outro.
A mesma beterraba tem o gosto que seus corpos degustadores lhe
atribuem. Questão de papila. Da língua de cada um. E de momento. As
papilas de hoje proporcionarão um gosto diferente do de amanhã. Porque
seu nariz entupiu durante a noite.
***
Você entendeu. A solidão deste Capítulo 11 não tem nada a ver com a
presença de outras pessoas por perto.
Denuncia a impossibilidade de compartilhamento da vida afetiva. De
sentir o que o outro sente.
Mundo inacessível. Por de nição. A tristeza do luto alheio. O prazer do
orgasmo alheio. A dor da injeção alheia. A felicidade do nascimento do
lho alheio. A excitação do marido pela mulher alheia. Ou da mulher pelo
marido que é o dela.
***
***
***
***
Esses afetos são determinantes das reações. Das iniciativas. Das tomadas de
posição. Bem como das eventuais virtudes nelas envolvidas. Mais arrojo e
coragem têm a ver com menos temor ou maior resistência a ele. Mais
prudência tem a ver com mais temor – possivelmente advindo de maior
lucidez e capacidade de antecipação de possibilidades nefastas.
Portanto, você que coopera. E que muitas vezes espera dos demais
cooperadores um entusiasmo, uma motivação, com sangue nos olhos, faca
nos dentes e todo o resto do jargão motivacional, deveria a partir de hoje
considerar que somos ilhas afetivas. Que nossos afetos obedecem a variáveis
inerentes ao mais profundo de cada um de nós mesmos.
E que, portanto, se os outros não parecem tão empolgados quanto você,
não vale a pena se estressar. Blasfemar. Sugerir que são uns pamonhas. Uns
derrotados. Uns frouxos. Porque nada disso será muito e caz.
Quanto maior a sabedoria, maior o respeito à diversidade. De pontos de
vista, com certeza. Mas também de afetos, de emoções e de sensações. Até
porque aqueles primeiros estão irremediavelmente vinculados a esses
últimos.
CAPÍTULO 12
No princípio
havia um
princípio
***
***
Quando deparamos com essa palavra, princípio, pode nos vir à mente um de
seus signi cados mais imediatos: o começo.
No Evangelho de São João lemos logo nas primeiras linhas que “no
princípio era o verbo”. O autor refere-se ao logos. À linguagem, ao discurso
e à razão. Só mais tarde esse verbo “se fez carne e habitou entre nós”.
Ora, o princípio citado por João nada tem a ver com estruturas
gramaticais. Menos ainda com o que é necessário respeitar para construir
adequadamente uma frase.
O princípio citado pelo evangelista aponta para os primórdios do mundo.
Seus primeiros instantes de existência.
Na teogonia de Hesíodo, o princípio era o Caos. O deus Caos.
Concebido no relato mitológico como uma queda livre escura, lúgubre e
sem- m.
Tal como no exemplo bíblico, estamos a falar dos começos. De quando
não havia mais nada. Do primeiro deus. Que deve ter curtido sua solidão
por muito tempo. Até o aparecimento de Gaia, que veio lhe fazer
companhia e trazer um pouco de chão para tanto despencar.
***
***
***
Para que essas re exões a respeito dos princípios cooperativos possa ganhar
clareza, devemos fazer como sempre. Começar do mais simples, pegando o
leitor pela mão e subindo degrau a degrau.
Então, mãos à obra!
***
Dizer que alguém não tem princípios nunca é elogio. Mas o que signi ca ter
princípios?
Recuemos um passo. Às vezes, é conveniente.
Será que princípio é algo que se possa ter?
Talvez o verbo ter não seja mesmo o mais indicado. A nal, princípios não
são objeto de posse ou de propriedade.
Desse modo, melhor seria – no lugar de “ter princípios” – respeitá-los na
hora de deliberar, decidir e agir.
Eis que você, nobre leitor, um pouco enfadado com o que considera esses
primeiros parágrafos uma lenga-lenga – ou encheção de linguiça – que não
leva a parte alguma, resolve bater na mesa e exigir explicações objetivas e
rápidas.
— Mas quais são esses princípios? Sempre existiram? Onde foram
propostos? Por quem? Por que devem se impor absolutamente? De onde
tiram tanta força?
Caramba. Isso não é uma leitura. É um bombardeio. Se você não
dominar essa sua ansiedade, terminará por nos levar a todos ao afogamento.
Con e em mim. Estamos atravessando uma região de muita correnteza.
Mas de extraordinária beleza. Por isso, não sei se vale tanto a pena acelerar.
Lembre-se sempre de: toda vez que ler “princípios do cooperativismo”
admita que, para que a expressão ganhe sentido pleno, é preciso ter uma
vaga ideia do que são princípios, não acha?
Caso contrário, faremos como muitos outros, que repetem à exaustão
fórmulas decoradas e acabam morrendo sem saber direito o que passaram a
vida inteira a dizer com grande convicção.
***
Não há dúvida de que num livro sobre cooperação, interessa mais de perto
tudo que tem a ver com a ação humana. E essas podem, de fato, resultar da
aplicação de um princípio.
Mas é preciso sempre ter em mente: princípios não são só referência para
a ação humana. Porque nem todo princípio pertence ao campo da
moralidade. Isto é, nem todo princípio é uma questão moral.
Um princípio pode ser um ponto de partida teórico ou prático. No
primeiro caso, teórico, trata-se do pontapé inicial de um raciocínio. Cujo
único escopo é o conhecimento acurado de algo. No segundo caso, prático,
o pontapé inicial é o de uma tomada de decisão. Que, por sua vez, visa
identi car a ação mais adequada.
Todo princípio é indemonstrável. Porque se demonstrável fosse,
confundir-se-ia com um teorema.
Se seu curso de matemática no Ensino Médio tiver honrado o programa
dos vestibulares mais exigentes, você certamente enfrentou os principais
teoremas da geometria descritiva. Nesse caso, terá se dado conta de que é da
própria natureza da demonstração, isto é, inerente a todas elas, partir
de um princípio, ele mesmo indemonstrável.
Em outras palavras, todo princípio é um ponto de partida a partir do qual
se fazem inferências, mas em relação ao qual dispensam-se demonstrações.
Um princípio não se confunde com um axioma ou um postulado. Porque
esses últimos integram simplesmente exercícios hipotético-dedutivos. Ao
passo que os primeiros, os princípios, também podem pautar decisões,
estratégias, encaminhamentos, protocolos, procedimentos e tudo que
organiza a vida prática.
***
***
Todo princípio prático pode ser entendido como o meio caminho entre uma
virtude e a materialidade da ação.
Um exemplo sempre ajuda.
• Generosidade é uma virtude.
• Por princípio, ofereço comida a quem tem fome.
• Ontem mesmo, na porta de um supermercado, uma senhora me pediu
um pacote de pão de forma e um pouco de mortadela para comer com
o lho de uns 5 anos.
Outro exemplo.
• Honestidade é uma virtude.
• Por princípio, não pego nada que não seja meu. Nem mesmo para um
simples uso imediato.
• Encontrei num dia desses uma carteira com documentos e algum
dinheiro no assento do trem do metrô. Desci na primeira estação e
procurei um funcionário da companhia para entregar-lhe o achado.
Terceiro exemplo. Não que bravo. Cada um vai no seu ritmo. Se você já
entendeu, que à vontade para pular.
• Humildade é uma virtude.
• Por princípio, não me gabo de alguma competência ou desempenho
entendido por destacado. Por princípio, destaco minhas fragilidades.
• Em entrevista recente para o apresentador Marcelo Tas, enfatizei a
pobreza dos meus recursos estilísticos para escrever os conteúdos
daquilo que ensino.
***
Os princípios são ferramentas da consciência. São recursos da moral. Não
da ética.
— Nessa eu boiei legal.
Então, venha comigo. A ética é a inteligência compartilhada em busca do
aperfeiçoamento da convivência. Trata-se de uma iniciativa circunscrita a
espaços especí cos onde essa convivência se dá.
Assim, temos éticas pro ssionais, como a dos médicos, a dos advogados;
éticas corporativas, como desta ou daquela empresa; e até mesmo éticas de
unidades políticas, como de um município ou país.
Na ética discutem-se valores daquela convivência. Como o aprendizado
(entre estudantes); a criação (entre artistas e intelectuais); o preparo físico
(entre atletas) etc.
Com base nos valores especí cos daquele espaço de convivência de nem-
se regras de conduta. Válidas para esse caso especí co.
Algumas dessas regras incidem sobre segmentos especí cos de atividades.
Regras de um jogo de futebol. Só se aplicam a quem joga futebol. Mas a
todos que jogam futebol.
Outras, sobre organizações. Como as cooperativas. As regras de uma
empresa. Só incidem sobre seus sócios.
Todos eles.
Outras ainda têm o estatuto de normas jurídicas. Como as leis de um
país. Que só se aplicam naquele país. Mas também devem se aplicar a todos
os habitantes.
***
***
***
Se você faz algo “por princípio”, é porque deve ter um bom motivo para isso.
E o melhor motivo para que você aja desta ou daquela maneira é
justamente este: que todos também deveriam fazê-lo.
Se eu a rmo agir desta ou daquela maneira “por princípio”, é porque
suponho que qualquer um – em situação análoga – deva agir da mesma
maneira.
***
Se até aqui tudo parece meio fácil de entender, na hora de considerar a vida
do dia a dia, a identi cação de princípios pode se complicar. Bastante até.
Pelo que dissemos até agora, quais das a rmações abaixo te parecem
pertinentes e quais são descabidas?
• Eu, por princípio, quando vou à sorveteria, peço sorvete de morango.
• Por princípio, nunca tomo café da manhã.
• Por princípio, faço jejum todas as manhãs.
• Por princípio, não assisto à televisão.
• Por princípio, não pago para assistir à televisão.
• Por princípio, não tenho relações íntimas no primeiro encontro.
• Por princípio, não como carne.
• Por princípio, não como carne à noite.
***
Essa avaliação – de cada uma das a rmações acima – pode parecer bastante
óbvia. Nenhuma delas tem cara de princípio. Porque todas soam, num
primeiro momento, como simples preferências. Tomar sorvete de morango,
não tomar café, não comer carne à noite...
No entanto, em cada caso é possível problematizar.
O morango. De fato, pode ser uma simples preferência. Nesse caso, não
se trata de um princípio. Se for pela vitamina C, continua sendo um
problema seu, carente dela. Você poderia argumentar que todos precisam de
vitamina C. E que a alimentação nos dias de hoje não é rica dessa. E que a
economia da sua região depende do consumo de morangos.
Da mesma forma, não tomar café da manhã pode resultar de uma decisão
– muito particular – de dieta, sugerida pela teoria do jejum intermitente.
Nesse caso, é só um sobrepeso seu. Não tem nada de princípio.
Mas a razão para não tomar café pode ser outra. O preço da iguaria não
lhe parece justo. E você, por princípio, não aceita consumir o que tem preço
abusivo. E crê que essa deveria ser uma postura de todos. Para inibir a ação
de gananciosos e inescrupulosos. Agora, trata-se de um princípio. Ainda
que não sejam muitos a segui-lo.
***
O jeito agora
é o seguinte
***
Sem alguma re exão sobre o tema, não podemos trazer nada de consistente
sobre iniciativa, proatividade, espírito de dono, empoderamento e tantas
outras expressões que circulam no mundo pro ssional e a ele remetem, com
maior ou menor pertinência.
A liberdade é uma questão dita metafísica. Isso porque supostamente vai
além da física. E por que será? O enfrentamento do tema é dos mais
espinhosos. E, por isso mesmo, dos mais promissores.
Vamos propor chegar ao assunto como quem não quer nada. Entrando
por uma porta lateral. Para não chamarmos muita atenção. Quem sabe,
desse modo, pegamos o assunto desprevenido. Se hesitar alguns segundos
em mostrar suas garras, quem sabe não avançamos alguns passos em paz.
Venha conosco. Vamos precisar de toda a atenção agora.
***
Quando Agostinho fala sobre o tempo, no livro XI das Con ssões, começa de
um jeito muito curioso.
Diz ele que sabe muito bem o que é o tempo. Até que alguém lhe
pergunte a respeito. Assim que isso acontece, e ele se vê obrigado a se
manifestar sobre o assunto, aí Agostinho já não sabe mais do que se trata.
Sobre liberdade, proponho algo parecido.
Os autores deste livro, Geraldo e Clóvis, se sentem aqui muito próximos
de Agostinho. Mas não vá pensar bobagem. O lósofo africano foi um dos
maiores pensadores da história da humanidade. E os autores deste livro são
meros divulgadores sem pretensão.
Nossa proximidade, portanto, se restringe ao fato de também não termos
a menor ideia daquilo que antes acreditávamos saber com clareza. No caso, a
ideia de liberdade.
Seguindo o mestre:
Enquanto for para viver, escolhendo, decidindo, deliberando,
selecionando caminhos, diagnosticando cenários para se inserir e outros a
evitar, a liberdade é um dado da vida vivida e ponto. Mas na hora em que
alguém pede para falar a respeito, toda essa obviedade cai por terra. Tudo
que parecia da esfera do evidente torna-se turvo e de difícil tradução em
discurso.
***
***
***
Você pondera que esse agir não é exclusividade de humanos. Que os animais
também fazem muita coisa.
Propomos, como já destacado amplamente em capítulos anteriores, que o
agir humano é diferente de tudo que você vê os animais fazendo. Enquanto
esses são absolutamente regidos pela sua natureza, pelo seu instinto, homens
e mulheres, ao agir, vão além da sua natureza. Muito além.
Assim, não se confunde com perseguir outro animal para se alimentar
com fugir para não ser comido, com procurar um lugar adequado para se
abrigar.
O humano age em projeto. Em projeção. Com a participação do
intelecto. Que imagina o devir. Que de ne aonde deseja chegar. E que
avalia imediatamente a mão. Os meios para alcançá-lo. Um agir que supõe
possibilidades. Probabilidades. Muito longe da mera execução de um
programa de nido pela natureza instintiva.
Se nossa vida biológica – sistemas circulatório, respiratório, digestório etc.
– é tão programada quanto a de um javali, nossa vida espiritual é arejada por
uma competência simbólica que faculta a articulação de ideias e
antecipações probabilísticas com riscos calculados e inovações atrevidas.
***
***
A práxis é a ação. A atividade que esgota nela mesma seu valor. A ação vale
pela ação. A atividade é em si mesma seu próprio m.
Segundo a metafísica de Aristóteles, é perfeito tudo que não carece de
mais nada. Que não tem nenhuma de suas partes fora de si.
Ora, as ações perfeitas se caracterizam quando o m último é o próprio
exercício da faculdade. Por exemplo: o ver, pois o m da vista é a visão. Não
se produz nenhuma obra diferente da vista. Ao contrário.
Em outros casos, em que se produz algo, por exemplo, o construir; da arte
de construir deriva, além da ação de construir, a casa.
Portanto, nos casos em que se tem a produção de algo diferente do
próprio exercício da faculdade, o ato se desdobra no objeto que é produzido:
o ato de construir no que é construído; a ação de tecer no que é tecido etc.
Em geral, o ato do movimento naquilo que é movido.
Ao contrário, nos casos em que não ocorre nada além da atividade, a
atividade está nos próprios agentes: por exemplo, a visão está em quem vê; o
pensamento, em quem pensa; a vida, na alma de quem vive. Na alma
também está a felicidade, que é um certo modo de viver.
Em outras palavras: a ação não é produção de objetos ou de instrumentos.
A ação é criadora de humanidade.
Toda pessoa que age está produzindo a si mesma. A ação é autopoiética.
O humano, ao agir, atualiza a humanidade. Inventa-se e confere forma a si
mesmo.
***
***
O contrário da liberdade é a coerção. O constrangimento. Quando algo
impede que se faça o que se quer fazer. Ou obriga a fazer o que não se quer.
A liberdade nunca é nula. Ou, se você preferir, podemos dizer de outro
modo: a falta de liberdade nunca será absoluta.
Mesmo na total privação de movimentos. Como talvez se encontravam os
escravos na caverna de Platão. Sem deslocamento e constrangidos a olhar
para a parede no seu interior.
Ainda assim, nesse caso haveria alguma liberdade. De pensamento. De
articulação de ideias. De re exão crítica sobre o mundo. De avaliação
subversiva da realidade social. E muito mais.
No interior da cárcere, pode-se dormir ou não. Ler ou não. Cavar um
túnel para evasão ou não. Alimentar-se ou não. Produzir escritos de loso a
política para a posteridade (à la Gramsci) ou não. Comandar uma revolução
no exterior da prisão ou não. Ameaçar incautos com falsos sequestros pelo
celular ou não. Imaginar a vida saindo dali ou não. Pensar sobre os valores
de uma vida vivida ali dentro ou não.
E esse parágrafo não teria mesmo m, não fosse o escasso senso de
conveniência e oportunidade dos autores para encerrá-lo, entendendo que
seu propósito explicativo já tenha sido alcançado, ou que não será alcançado
nunca pelo mero acrescentamento de possibilidades existenciais atrás das
grades.
***
A liberdade tampouco será absoluta. Ou, ainda, a sua falta nunca será nula.
Nenhuma sociedade suportaria a ausência absoluta da coerção. A não ser
no império absoluto da moral. Em que a consciência de cada um lhe basta.
Para livremente imporem-se os limites da dignidade.
Como não é o caso, somos proibidos por lei de matar, furtar, ofender,
agredir. E muito mais.
Se todos pudessem matar, os assassinos de hoje rapidamente se
acautelariam de toda vida social. Se todos pudessem avançar no que não
lhes pertence, em pouco tempo ninguém teria nada.
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Dessa forma, iludidos ou não, dá muita pinta que um bom quinhão da vida
de cada um de nós depende do que fazemos dela. De nossas deliberações.
De caminhos e estratégias que escolhemos. Entre muitas outras. Para
chegar aos lugares sonhados por nós.
Por isso, cooperar deve resultar de uma escolha. Seja ela livre como toda
boa escolha ou escrava de um querer que se impôs, na calada cega da noite.
CAPÍTULO 14
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Espero que tenha cado claro. O esforço didático foi grande. Se houvesse
mais talento, o resultado seria melhor. Como sempre.
Agora podemos voltar à con ança. Retomando a nossa a rmação lá do
começo:
— Con o cegamente nele.
É uma análise. Um juízo analítico. Uma simples ênfase em um de seus
aspectos. Um destaque. Porque a con ança, por ela mesma, já contém a
cegueira. Tanto quanto a ideia de triângulo já contém os três lados.
A cegueira na frase não con gura síntese. Porque não agrega nada de
novo à ideia de con ança.
Em outras palavras: a eventual necessidade de comprovação empírica,
permitida pela visão, atenta contra a essência do con ar.
Con ar é ter certeza sem veri car. Ter certeza sem comprovar. Ter
certeza sem demonstrar. Quem con a tem certeza e ponto. Cegamente.
Para cooperar é preciso con ar! Do único jeito que uma con ança
verdadeira pode ser. Cegamente.
De fato, não há como estar do lado o tempo todo. É necessário ter muitas
certezas sobre a operação do outro. Sem precisar veri cá-la. Sem poder
veri cá-la.
***
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Primeiro.
Como con ar sem experiências anteriores? Toda relação tem um
princípio. Se a con ança depende do que aconteceu antes, partiríamos
sempre da descon ança. Que, no caso de certa consistência prática,
ensejaria no outro uma con ança, digamos, progressiva.
Ora, muitas vezes a con ança não pode esperar tanto. Quando uma
organização contrata um novo colaborador, não pode se dar ao luxo de
gastar anos de avaliação. É preciso apostar sem passado mesmo.
Você, leitor, dirá que as cartas de recomendação e as súmulas curriculares
servem para isso. Para compensar a falta de passado convivido.
Sim. Pretendem isso. Mas sabemos bem quanto – mesmo em boa-fé –
esses documentos são redutores da complexidade do comportamento de
uma pessoa. Ou francamente falseadores.
***
Segundo.
A repetição de um protocolo de ação, o respeito habitual a certas regras
de conduta, a con rmação reiterada de valores éticos e existenciais, tudo isso
pode fazer crer numa consistência prática. E, portanto, ensejar con ança
por parte dos demais.
Essa recorrência não assegura, por ela, nenhuma ação futura. Os lósofos
do conhecimento, em especial os empiristas, a rmam que a água pode
ferver a 100 °C nas condições normais de temperatura e pressão mil vezes.
Mas isso não assegura que o mesmo aconteça na 1001ª vez.
Com maior razão, a repetição de certas práticas por determinada pessoa
no passado não determina – por ela mesma – a ação de amanhã dessa
mesma pessoa.
***
Terceiro.
Se a con ança é construída a partir da delidade agrada no outro, como
con ar naquilo com que nunca teremos experiência empírica?
Como na existência de Deus, por exemplo.
***
Quarto.
Se a con ança depende dessa delidade, qualquer deslize nesse quesito é
su ciente para uma descon ança eterna? Uma pessoa que pisou na bola
nunca mais poderá ser digna de con ança?
— Que outra razão poderíamos propor para con ar se não for à luz do
que vamos observando no comportamento do outro?
Ora. Uma con ança por princípio. Com ela resolvemos o problema das
relações sem passado ou sem experiências materiais.
Tomar o que for dito por verdadeiro por qualquer um, por princípio.
Assumir que o outro honrará o combinado, por princípio.
Ante um outro genérico. Que aqui se de ne apenas como humano.
Como cada um de nós.
Uma con ança a priori. Que se antecipa a todo encontro. Que antecede
toda experiência. Que serve de referência para a relação com qualquer um.
Nesse caso, o comportamento não mudaria segundo a aparência da pessoa
com quem se relaciona. O protocolo de conduta é de nido a partir de um
tu, de um ele, de um vós e de um eles genérico. Em suma, um outro,
qualquer outro, que merecerá a mesma disposição de con ança.
Uma certeza de verdade e autenticidade. Seja ante quem for.
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A imaginação liberta do real, dando a quem imagina autonomia em face do
mundo imaginado. Clóvis imagina da sua casa tudo que envolve a vida de
seu lho, que mora na Holanda.
E essa imaginação vai longe. Tendo ou não a ver com a realidade da vida
vivida pelo primogênito. Desse modo, essa imaginação facilita a distância,
promove a separação de quem imagina em face do real imaginado.
Nesse sentido, a imaginação se distingue do conhecimento. Que também
é libertador, mas não fomenta a separação do mundo conhecido. Pelo
contrário.
Quem se dispõe a conhecer não pode se dar ao luxo de divagações e
devaneios imaginativos. Toda produção de conhecimento recomenda
atenção máxima ao seu objeto, zelo com o corpus da pesquisa.
Em suma, pondo lado a lado imaginação e conhecimento, há que admitir
que se a imagem é gurada – sem que conte muito a correspondência com o
mundo imaginado –, o mesmo, claro, não se passa com o conhecimento.
Entendemos melhor agora a di culdade de identi car a de nição de um
projeto. Todo projeto combina, quanto possível, com a abertura da guração
imaginativa com os rigores dos protocolos cognitivos.
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Assim, para Rousseau, não é o outro que faz nascer o desejo em nós. Somos
nós que usamos o outro como meio para
alimentar nosso desejo. O outro não passa de um suporte para pendurar
características que nos encantam. Pretexto para projetar, em alguma
realidade que nos é alheia, o que queremos para nós.
Eis o desejo. Projeção de si mesmo no outro.
Não desejamos o outro. Desejamos a nós mesmos no outro.
O que faz de todo desejo a construção de uma ilusão.
E Rousseau não vê nisso nenhum problema. Pelo contrário.
Tudo isso que chamamos de desejo participa de um processo de
embelezamento. Embelezando o objeto do mundo desejado, fazemos da
vida uma felicidade.
O desejo nos conduz à felicidade porque, graças à imaginação, atribuímos
ao mundo qualidades que o mundo não tem. Trans guramos nosso ideal e
dessa forma somos felizes.
Existe no desejo uma dimensão criadora. Um pouco divina, portanto.
Pelo desejo, nós idealizamos. Isto é, transformamos em ideia. A realidade
passa por um trabalho propriamente desejante de conversão. Trabalho que,
para Rousseau, melhora, incrementa, aperfeiçoa, embeleza. Agrega valor,
como diriam nossos irmãos palestrantes do mundo do capital.
***
Remotas origens
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Londres, 6 de julho de 1533. Após dias de tormenta, tímidos raios se
esgueiram entre nuvens. No cinza das ruas, fantasmas perambulam
saltitando em poças. Uma ambiência fúnebre rondava a capital. Mendigos,
ladrões e opositores de Henrique VIII, julgados e condenados, faziam
trabalhar de sol a sol o pessoal de funerária.
Gritos de dor, lamento e desespero lancinavam nas imediações da ponte
de Londres. Eram três órfãos. De 10, 15 e 19 anos. Privados dos genitores
pelo furto de comida para alimentá-los. A fome e a miséria faziam dos
homens – de toda idade, sexo e religião – cães raivosos, prontos a tudo por
um osso.
Numa cela da Torre de Londres, um homem genial esperava resignado o
momento de sua execução. Em algumas horas a lâmina pesada e a ada para
seccionar qualquer material que tente lhe resistir se abateria sobre ele.
Debalde, intelectuais, pensadores, artistas e religiosos rogaram clemência.
Traição em face da Coroa da Inglaterra. Irrevogável.
Só um improvável gesto do próprio rei teria impedido a execução.
Instantes antes da hora fatídica, ouvem-se passos. Dois guardas se
aproximam. Um terceiro homem, de aspecto majestoso, vem logo atrás.
O rei indaga ao prisioneiro se está surpreso com a sua presença. Este
responde que poderia esperar tudo naqueles últimos instantes de vida. Mas
nunca aquela visita. O rei entrou na cela e contemplou a cidade da janela,
por trás das grades. Confessou sua fascinação pela névoa, tão familiar.
Parece esconder os pecados de uns e de outros.
O prisioneiro aproveita a deixa e acrescenta. “Não só os pecados, mas
também a verdade.”
O rei lhe pergunta aborrecido a que verdade ele se refere.
“A verdade de Roma? A verdade do Papa?”, vitupera, acusando-o de
traição. O prisioneiro houvera jogado sua con ança no lixo. Apunhalara-o
pelas costas.
O condenado se defende. Arrependera-se de ter tocado no assunto.
A rma ter agido para defender a unidade do cristianismo.
O rei o acusa de ter traído o reino, colocando-se a serviço do Papa.
Supunha que a execução iminente lhe tivesse feito pensar melhor. Mas,
aparentemente, equivocara-se.
Viera para conceder o perdão in extremis. Com um ato de magnânima
clemência. Com a condição de que o acusado admitisse publicamente seu
erro. E declarasse apoio irrestrito às bodas de sua Majestade com sua amada
Ana.
Em suma. Bastaria jurar delidade ao rei e estaria salvo.
O prisioneiro olha xamente para sua Majestade, a rma permanecer el
a ele e ao seu reino, mas antes deles, ao seu Deus.
O rei, devastado pelo ódio, a rma que o prisioneiro poderia ter fama e
dinheiro, mas escolhera morrer. Ordenou, então, aos guardas que o levassem
imediatamente. Para cumprir o seu destino.
Ante o carrasco, foi-lhe concedida a última palavra. O prisioneiro olhou
para o céu. Para ser, em seguida, golpeado de morte pela espada da degola.
Sua cabeça se descolou completamente do corpo, para o aplauso de alguns
poucos que acudiram para assistir à execução.
O relógio soou meio-dia. Os olhos de omas Morus permaneceram
abertos. Pareciam contemplar o tronco, agora distante.
Mas já não podiam ver a neblina que fora se dissipando ao longo da
manhã. Prenúncio de bom tempo para aquela tarde.
***
***
Com cuidado para não empanar o prazer das surpresas – que a leitura
inédita reserva –, falemos um pouco do cenário da trama sempre em busca
das origens do cooperar, de cooperações e cooperativas.
Morus imagina ter encontrado um manuscrito de um certo Rafael
Hitlodeu, lósofo de origem portuguesa que venerava a teoria das ideias de
Platão e o encantamento pelas maravilhas do mundo de Aristóteles.
O documento descreve uma ilha, no coração do Oceano Atlântico, que
faria lembrar o Jardim do Éden. Um paraíso onde homens e mulheres vivem
em paz e felizes.
Fascinado pela sociedade justa, sem intolerância e sem miséria que
acabara de encontrar, Hitlodeu decide esticar a visita para conhecer melhor
aquela curiosa e exitosa experiência de vida coletiva.
Na esteira da República de Platão, que delineava a cidade ideal e justa,
governada pelos lósofos, indivíduos capazes de governar a si mesmos, que
conhecem e aplicam o bem, omas Morus descreve aquela comunidade
política perfeita.
A ilha se chama Utopia. Um jogo de palavras possível vincula a eu topos
(lugar de felicidade) e ou topos (não lugar).
Utopia é a ilha que não é. Ilha do não lugar. Ilha do lugar nenhum.
Como em Peter Pan. Mas em direção à qual os homens de boa vontade
devem navegar para transformar a realidade existente.
O homem utópico, ensina o lósofo Ernst Bloch no século XX, é aquele
que pode transformar o real porque tem uma ideia alternativa de mundo
pela qual viver e lutar, porque quer construir-se asas para voar longe.
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Essa convicção se consolida em 1799. Fourier assiste a uma cena que relata
como decisiva para o entendimento do seu modo de pensar. Uma carregação
de grãos, toneladas e toneladas, jogadas em alto-mar. A especulação sobre os
preços exigia a diminuição abrupta da oferta.
Enquanto uma parcela signi cativa da população da cidade tinha fome.
***
Uma palavra sobre o que nos parece mais relevante da proposta dos
falanstérios, considerada por muitos como inspiradora dos movimentos
cooperativistas que se seguiram.
Estamos – importa recordar – na primeira metade do século XIX.
Trata-se de uma ideia pra lá de ambiciosa. Um lugar concebido para uma
convivência ideal. Um espaço que abrigaria diversidade, harmonia e
liberdade. Que deveria servir de modelo para a sociedade como um todo.
Fourier é bastante detalhista na sua descrição.
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Por quem
se toma esse
infeliz?
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A virtude de um ser está vinculada ao seu valor. Pelo modo como a virtude
participa do ser, sabemos quanto vale.
Se a virtude de um revólver é matar, o bom revólver é o que mata bem. O
bom veneno também. E já que a conversa foi por esse caminho, vale
também para a corda no enforcamento.
Um instrumento de tortura pode ser excelente. E o é quando tortura
excelentemente.
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Mas a humildade é virtude que não se reconhece como tal. Que não se
aceita como é.
Trata-se, portanto, de uma virtude sempre acompanhada de um
desentendimento sobre si mesma, por parte de seu titular. Pressupõe
ignorância desse último a respeito de sua própria natureza.
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Dessa forma, num cenário de cooperação, tudo que se deve evitar são líderes
soberbos e suas cortes de aduladores.
Um espaço de cooperação saudável deve contar com gente humilde,
consciente de suas fragilidades, e cooperados contributivos, genuinamente
dispostos a reduzi-las. Com os pés no chão e a mente na verdade.
CAPÍTULO 18
Tolerância zero
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Minha lha Natália é intolerante à lactose. O que essa intolerância quer
dizer?
Que produtos com lactose produzem, em seu corpo, efeitos
desarmonizadores, considerados pelas estatísticas das ciências da saúde
como fora de uma certa normalidade e, portanto, patológicos. A lactose
bagunça as relações entre algumas partes do seu corpo, resultando num todo
menos potente.
Perceba que essa intolerância é comumente empregada em situações tidas
como excepcionais. Uma incompatibilidade que não é genérica, mas
particular.
Desse modo, ninguém diria que é intolerante a veneno de rato. À cicuta.
À carne estragada. À corda que impede a passagem de ar pelo pescoço. À
bala de revólver.
Embora o seja. Como todo mundo.
O que todos esses elementos têm em comum? Tanto os que fazem mal só
para alguns quanto os que lastimam a todos, nenhum deles é uma pessoa.
São coisas do mundo que não toleramos. No sentido de não suportar. De
fazer mal. De causar desarmonia interna. Entre as partes que nos
constituem.
Outro ponto em comum. Entre a lactose, a carne estragada, a bala de
revólver e a corda. Em nenhum desses casos a intolerância está vinculada a
uma deliberação. Com mais razão ainda a alguma decisão. O desconforto
produzido pelo mundo nada tem a ver com a nossa vontade.
***
A intolerância que nos interessa aqui, mais de perto, não diz respeito ao
nosso organismo ou às partes que o constituem. Para o tema da cooperação,
a intolerância aponta para a nossa vida em sociedade. No sentido de
di cultá-la, claro.
Trata-se de uma questão de relação entre pessoas. Seus modos de falar, de
se entreolhar, de se julgar, de se comportar uns em relação aos outros. E na
relação com os outros.
Nesse caso, bem ao contrário da lactose, a intolerância pode se tratar de
uma questão de deliberação e de decisão. Uma questão moral. E a eventual
tolerância em face do Outro, uma virtude. Para a qual cabe considerar
treinamento, exercício, aprendizado, educação, formação.
Na virtude da tolerância, aprendemos a não nos deixar afetar
negativamente pelo comportamento do Outro. Como resultado, não nos
perturbaríamos pelo fato de o Outro viver de modo diferente. Nesse caso, a
formação culminaria numa blindagem afetiva.
Ou o treinamento para a tolerância incidiria sobre a forma de administrar
o afeto, sobre o agir, o reagir, o interagir?
Aqui, a ênfase seria comportamental. Teria por objeto a própria atitude
em face do Outro, seu pensamento, seu discurso, suas opiniões, suas ações.
Melhor apostar em ambos. Formação afetiva e com-
portamental.
***
***
Mas nada impede que tenhamos um olhar bem diferente para as mesmas
a rmações. Aliás, se estivéssemos num bar, eu te diria que esse segundo
olhar é mais provável e até aceitável. Em que medida?
Ora. Se alguém me diz que tolera que eu pense como penso, que eu diga
o que penso, que me comporte como me comporto (sem que haja de minha
parte atos ilícitos, não éticos, inaceitáveis), tenderia a perguntar-lhe por
quem se toma. Que estou cagando na pia ante a sua tolerância. Que não
careço da aprovação ou autorização de ninguém para viver com
autenticidade a minha vida etc.
O leitor terá compreendido. A tolerância, manifesta naquelas a rmações,
indica uma presunção de superioridade. De poder, portanto. De autoridade.
Como se de um momento a outro pudesse não mais tolerar. Desautorizar
pensamentos e práticas. Inviabilizar a vida soberana. Dar um basta em tudo
com o que não concorda.
Como se a tolerância anunciada comunicasse seu contrário como
possibilidade. Uma ocorrência iminente. E a vida como ela é não passasse
de uma concessão do virtuoso tolerante.
***
Um exemplo suplementar.
Estamos escrevendo este livro sobre cooperar. Suponha que algum autor –
conhecido e reconhecido pelo grande conhecimento do tema que estamos
tratando – tome a palavra em um simpósio e a rme:
— Eu tolero que vocês dois escrevam sobre cooperar.
Ora. Em que pese a legitimidade desse que tolera, a a rmação denuncia
uma superioridade presumida que soa como afronta. Parece sugerir o
contrário do a rmado. Que, em realidade, trata-se de uma licença
provisória. Condicionada a bom comportamento. E que pode ser revogada
discricionariamente. Sem justi cativa ou aviso prévio.
Uma indulgência.
De tempo e espaço.
A aula na faculdade começava às 19h30. Mas havia uma tolerância por
parte do professor de quinze minutos. Por causa do trânsito.
Proibido estacionar na faixa de pedestre. Com alguns centímetros de
tolerância.
Semelhante ao pai que deixa o lho brincar dentro de casa porque está
chovendo lá fora. Ele tolera. Por enquanto.
Quem tolera avisa o poder de interromper. De abortar. De não tolerar
mais.
— Dessa vez eu vou deixar passar. Na próxima, já sabe. É gancho. Direto.
A tolerância, muitas vezes, nos coloca numa faixa intermediária entre o
absolutamente permitido e o absolutamente proibido. Não é permitido, mas
há tolerância. É proibido, mas há tolerância.
O poder abre uma brecha. Seja para salvar os dedos, perdidos os anéis.
Seja como compensação ou barganha. Seja pela simples mudança de
interesses por parte de quem pode exercê-lo.
Lembro-me de um amigo muito ciumento. Que marcava em cima a sua
namorada. Assegurava não tolerar sequer um olhar oblíquo. Quanto mais
experiências táteis. Ante tanto rigor, oferecia em troca a mesma conduta que
exigia. E, claro, dava à moça a prerrogativa de descontinuar a relação
quando não suportasse mais.
Mas foram indo. Aparentemente sem grandes sobressaltos.
Um dia, escanhoando a barba no vestiário, abriu-se comigo. Disse que só
toleraria alguma terceirização afetiva da parte da namorada no caso de uma
eventual parceira.
***
Em nível público, por falta de meios para fazer cumprir a norma, busca de
legitimidade pelo caminho mais curto ou imediato ou ainda pela ocorrência
esculhambada, traduzida pela famosa expressão “a lei não pegou”.
De fato, não são poucos os delitos recorrentemente cometidos e tolerados.
Num esquema de vistas grossas abençoado pelos que contam.
Por vezes, a tolerância aumenta em função do chamado sujeito ativo. A
que grupo ou classe social pertence. Cor de pele, indumentária, aparência
em geral, local de residência, forma de se expressar, capital relacional, tudo
isso conta muito na hora de de nir o padrão de tolerância.
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Há, portanto, uma tolerância de segundo tipo. Que não é uma simples
concessão. Uma indulgência.
Trata-se de um reconhecimento. Aceitar que o outro tem direitos.
Equivalentes aos próprios. Prerrogativas. Desejos. Pretensões. Pontos de
vista. Ambições. Que não são, de direito, inferiores aos próprios. E,
portanto, não podem ser apenas tolerados no sentido de suportados,
aguentados, num gesto magnânimo de cedro em vertical.
Reconhecer o direito, cujo exercício não depende da minha boa vontade,
de pensar o que pensa. De agir como age. De vestir o que veste. De dizer o
que diz. De gostar do que gosta. De ser o que é. E de viver como quiser.
Reconhecimento de uma liberdade completa. De nida em lei.
Um reconhecimento que não poderá ser retirado, restrito, postergado ou
dilacerado segundo as variáveis da contingência de quem tolera.
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O leitor pode ponderar. Mas se o Outro tem um direito, pode fazer o que
quiser sem transgredi-lo, com ou sem tolerância. Se é seu direito, isso basta.
Assim, a prerrogativa de ir e vir dispensa olimpicamente a tolerância de
quem quer que seja. É direito seu.
Atribuir valor às coisas do mundo segundo seus próprios critérios, sem
ferir o ordenamento jurídico, é um direito. Não carece de tolerância
adicional alguma para se realizar.
Tatuar o corpo com dizeres em árabe extraídos dos ensinamentos do
profeta Maomé é um direito de cada um. Que não está vinculado à
tolerância deste ou daquele oráculo.
Vestir-se de rosa, sendo homem, ou de azul, sendo mulher, é um direito.
Que dispensa toda e qualquer bênção tolerante desta ou daquela autoridade,
porta-voz de moral crômica.
Não há o que tolerar ou não tolerar. Nos limites da lei, cada um faz o que
quer.
A luta de um povo escravizado, de um grupo oprimido, de um homem
acorrentado não é por tolerância. E sim por liberdade. O direito de pensar e
agir livremente não resulta de clemência ou piedade. Como culpados
perdoados.
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Havendo leis que de nem direitos e garantem liberdades, não há que falar
de tolerância. Estamos de acordo.
Com duas observações.
É preciso que os direitos e as liberdades não se restrinjam uns aos outros.
Usar a liberdade de fala para proibir o ir e vir, o culto a Maomé, as
tatuagens, vestir rosa e o próprio falar do Outro.
Como reitera a sabedoria popular, a liberdade de uns começa quando
termina a dos outros.
Por isso, supomos ser capazes de viver juntos sem precisar nos estapear.
Eis o que promete a civilização. E o que pretendem garantir a ética e a
moral.
Esses limites de liberdade não implicam a presença de nenhuma
tolerância. Cabe aos legisladores a de nição dos orbitais de ação lícita. E
nada mais.
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Aqui tem
um bando
de loucos
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A nal, somos um time. Mexeu com um, mexeu com todos. Porque aqui
tem um bando de loucos. Um por todos. E todos por qualquer um. Galera
do gueto. Uma célula. Na má a funciona assim. Tem nós e tem o resto. Os
mano contra a rapa.
O pertencimento é um fato social que pode suscitar afetos correlatos.
Uma alegria de fazer parte. Uma potência que sobe por integrar. Por
vestir aquela camisa. Por ser um deles. Por ver-se incluído. Uma euforia de
saber-se e dizer-se membro do grupo. É tudo que se tem. Se não for tudo, é,
sem dúvida, o mais importante. O que faz bater no peito. Orgulho no olhar
e na cabeça erguida.
As sensações advindas de qualquer pertencimento variam em função das
características do grupo a que se pertence.
E que características seriam essas?
Sem pretender ser exaustivo. Em primeiro lugar, as condições de acesso,
isto é, os atributos exigidos de que o pretendente deve fazer prova, a maior
ou menor porosidade na integração de novos membros. Desde os processos
seletivos mais formais, como aqueles por concurso, até as virtudes
observadas no mais estrito cotidiano.
Assim atestam a rmações como:
— Aqui não entra qualquer mané. Precisa ser sangue bom. Não é agindo
desse modo que você será aceito por eles!
Em segundo lugar, também incidem sobre as sensações de pertencimento
a estrutura interna do grupo, o funcionamento das suas atividades, os
processos decisórios e o exercício efetivo do poder.
Em terceiro lugar, as relações que o grupo mantém com o seu exterior.
Todo grupo, simplesmente por existir enquanto tal, com suas fronteiras
simbólicas, seus movimentos internos, acumula algum tipo de capital que
disponibiliza a seus integrantes para uso externo.
Essa conversão de capital institucional em capital pessoal é um dos
grandes atrativos de todo pertencimento.
De fato, na imensidão das relações sociais não é fácil conseguir se impor
apresentando-se apenas com recursos de indivíduo. Silvias ou Jerônimos
tendem a ser esmagados no confronto com quem fala em nome de muita
gente. É preciso ter comido muito feijão para conseguir se impor por si só.
Ocorreu neste instante, para dar conta com arte desse sentimento de
pertencimento, a letra da canção de Daniel
Balavoine, “Quand on arrive en ville”, da ópera rock Starmania.
Quand on arrive en ville/ Tout le monde chance de trottoir/ On n’a pas
l’air viril, mais on fait peur à voir/ Des gars qui se maquillent ça fait rire les
passants/ Mais quand ils voient du sang sur nos lames de rasoir/ Ça fait
comme un éclair dans le brouillard/ Quand on arrive en ville.
Quando a gente chega à cidade/ Todo mundo muda de calçada/ Não
temos aparência viril, mas causamos medo só de ver/ Homens que se
maquiam fazem rir os transeuntes/ Mas quando eles veem o sangue nas
nossas lâminas de barbear/ Que são como um raio na névoa/ Quando a
gente chega à cidade.
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Além dessas relações que nos são internas, nosso corpo, por sua vez, está no
mundo. Em relação ininterrupta com tantos outros.
Alguns compõem bem com o nosso. Outros, nem tanto.
Os primeiros – pelo próprio fato de estarem em relação – são
contributivos. Ajudam-nos a resistir. São unidades de real que, de fora,
arredondam o uir das relações entre as partes de dentro.
Lembro da infância. E um tal de dínamo para o farol da bicicleta. Algo
que lhe era exterior e contribuía muito com o que estava dentro, com a
bicicleta propriamente dita. Dínamo é palavra que vem do grego: potência.
Na informática há muita coisa externa ao computador que aumenta suas
possibilidades de ação.
Na vida de homens e mulheres há dínamos. Realidades externas que
determinam ganho de potência. Contamos todos com isso. Coisas, espaços,
pessoas. Precisamos disso para mantê-la em alta.
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A alma é a
consciência
do corpo
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No capítulo anterior, pudemos ver quanto a vida afetiva nos faz oscilar entre
ganhos e perdas de potência bem signi cativos.
Melhor assim. Não acham? Enquanto as subidas e descidas se sucedem,
há vida, há resistência, há luta, há alegria possível, e essa vale as penas do
existir.
Nem todos concordarão. A loso a antiga, por exemplo, a começar por
estoicos e epicuristas – adversários em quase tudo –, vinculava a vida boa a
uma certa imunidade ante os sobressaltos afetivos provocados pelo mundo.
Fazendo da tal da ataraxia a condição maior para uma vida boa.
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Você perguntará:
— Que vantagem Maria leva? Para que identi car – nessa espécie de
tabela – as coisas do mundo que naquele momento causaram boas ou más
sensações?
Acho que entendi o sentido da pergunta. Se o nosso corpo é alterado a
cada instante e o mundo nunca é encontrado duas vezes identicamente, o
resultado afetivo desse encontro – isto é, as sensações dele decorrentes – não
se repete. Não absolutamente.
Há, portanto, virgindade em cada relação. Em cada afeto. É
incontestável.
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Basta lembrar aquele poema bonito de Murilo Mendes. Não por acaso,
chama-se “Re exão”:
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio/ Deus de onde tudo deriva é
a circulação e o movimento in nitos/ Ainda não estamos habituados ao
mundo: nascer é muito comprido...
De fato.
Acreditamos, no entanto, que a compreensão do que nos acontece nos
traz alegria. É possível – em meio ao ineditismo dos instantes existenciais –
encontrar tendências. Se não repetições absolutas, um certo orbital de
probabilidades.
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Eis o mundo de cooperação no qual cada um poderá vir a ser estimulado.
Experimentar sensações. E descobrir-se.
Que a cooperativa seja esse espelho – entre tantos outros possíveis – e que
possamos nos descobrir menos miúdos pela obsessão com a própria
comodidade e mais dignos na intransigente busca do bem comum.