8068-Texto Artigo-24808-1-10-20230112
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CRISTIANISMO TRANSCENDENTE
Vítor Rosa*
Resumo: Autor de Considérations sur la France (1797), o Pape (1819) e as Soirées de Saint-
Pétersbourg (1822), o pensamento de Joseph de Maistre (1753-1821) continua a ser polémico
e controverso. Diplomata, maçom e católico, com caráter firme, foi um dos mais influentes
do pensamento contrarevolucionário no período da Revolução Francesa (1789-1799). Em
1792, deixa a sua terra natal (Chambéry) e ruma em direção do exílio. Defende o retorno da
Monarquia Absoluta. Com base numa análise documental e de arquivos disponíveis, neste
113
artigo procuramos refletir sobre o seu pensamento de Maistre, sobretudo sobre a oração, o
pecado original e a redenção. A sua fidelidade maçónica e sua frequência com os
“Iluminados” permitiram-lhe perseguir o seu ideal de renovação religiosa e de unidade
eclesiástica.
Palavras-chave: Cristianismo, Oração, Pecado Original, Redenção, Maçonaria
Abstract: Author of Considérations sur la France (1797), the Pape (1819) and the Soirées de Saint-
Pétersbourg (1822), Joseph de Maistre (1753-1821) remains polemic and controversial.
Diplomat, freemason and catholic, with a firm character, he was one of the most influential
of counter-revolutionary thought in the period of the French Revolution (1789-1799). In
1792, he left his native Chambéry and went into exile. He advocated the return of Absolute
Monarchy. On the basis of a documentary and archival analysis available, in this article we
seek to reflect on de Maistre's thought, especially on prayer, original sin and redemption. His
Masonic fidelity and his attendance with the “Illuminati” allowed him to pursue his ideal of
religious renewal and ecclesiastical unity.
Keywords: Christianity, Prayer, Original Sin, Redemption, Freemasonry
1 Cf. Cogardan (1894). Este autor refere que Joseph de Maistre, com o seu grande capuz negro, com buracos
para os olhos, caraterístico dos Penitentes Negros, poderá ter assistido ao horror das sentenças capitais. Os
Penitentes Negros tinham por missão acompanhar os condenados ao último suplício e rezar por eles.
2 Maistre (1819) tem uma opinião muito favorável dos Papas, considerando-os como os professores, os tutores,
por volta de 1766/1767, mas desconhece-se o nome e a Obediência (grupo de maçons que adotam uma mesma
forma de trabalho e de ação) de pertença (Lepage, 1956). Em Chambéry, havia uma outra loja maçónica
chamada de “Indépendants”, que terá se constituído em 1763. Cf. https://archives-en-
ligne.savoie.fr/ir_pdf/PRIV/AD073_F_IR2401_26F.pdf (consultado em 19/12/2021).
4 De referir que em 1742 já havia 200 lojas maçónicas em França, das quais 22 em Paris. Em 1771, contam-se
6 Esta Ordem teve um grande sucesso, sobretudo na Alemanha. Contou com vários membros célebres: Goethe,
Wieland, Lessing, Mozart, Joseph de Maistre, Werner (Naudon, 1963). A Ordem foi retificada, daí o nome Rito
(ou Regime) Escocês Retificado (RER), adotado no Convent des Gaules, que teve lugar em Lyon, em 1778, e o de
Wilhelmsbad, em 1782. Renuncia-se a filiação templária, a sua sucessão e a restauração material.
7 Maistre escreverá que era uma loja aristocrática, reunindo o melhor de todas as classes. A generosidade dos
membros da loja maçónica impressionava e as refeições eram de uma grande sobriedade e a distinguiam (Goyau,
1921b, p. 147).
8 A Ordem da Milícia do Templo foi constituída em 1118, em Jerusalém, no tempo das Cruzadas, para proteção
9 Sobre a vida e obra de Martinès de Pasqually, cf. Nahon (2011) e Rosa (2021, 2022). Fundou a Ordre des
Chevaliers Maçons Elus Coëns de l’Univers, que se apresentou como a “verdadeira maçonaria”. Carateriza-se por
um sistema de altos graus ligados a uma teurgia e a uma magia divina (Amadou, 1989). Para Martinès, Jesus
Cristo não é um Deus no sentido específico que lhe atribui a teologia pós-Niceia. Ele qualifica Cristo de Espírito
Duplamente Forte e classifica-o como dos primeiros seres emanados antes de surgir o mundo criado. Esta
conceção particular faz do Cristo uma espécie de anjo superior, relembrando as posições das primeiras
comunidades de cristãos (Leforestier, 1928, 1970; Amadou, 2016). O seu Traité sur la réintégration des êtres dans
leur première propriété, vertu et puissance spirituelle divine (1899) foi reservado a alguns eleitos sob a forma de
manuscrito e só foi publicado pela primeira vez no final do século XIX. Conta uma espécie de história paralela
da Criação do mundo, assim como a Queda do Homem. Revela as condições e os meios pelos quais os homens
poderão reconquistar a sua primeira dignidade. Relata, igualmente, como os primeiros Espíritos se revoltaram,
depois da sua emanação por Deus.
archives.savoie.fr/accounts/mnesys_cg73/datas/medias/ir_pdf/PRIV/AD073_002J.pdf (consultado em
19/12/2021).
12 Maistre aqui refere-se às lojas maçónicas que atribuem os três primeiros graus maçónicos: aprendiz,
companheiro e mestre.
Goyau (1921a, p. 16) observa que “os Iluminados que Maistre visitava
em Lyon eram discípulos do judeu cabalístico português Martinès Pasqualis 13,
que foi mestre de Saint-Martin, o ‘Filófoso Desconhecido’”.
Maistre era um assíduo leitor de Clemente de Alexandria (150-215) e de
Orígenes (185-254)14. Ele encontrou no Regime Escocês Retificado (RER), do
qual foi membro até 1792, em Savoie, uma doutrina que ia ao encontro das suas
convicções (Glaudes, 1997, 2007; Vivenza, 2003, 2005a; Dachez & Pétillot,
2010). Essas leituras dos primeiros séculos do cristianismo davam-lhe acesso a
conhecimentos sobre a criação do mundo, o sentido espiritual das Escrituras, a
ordem natural e sobrenatural, etc. Vários autores observam a influência de 118
Orígenes no pensamento de Maistre (Triomphe, 1968; Froidefont, 2010;
Vivenza, 2012). Triomphe (1968) salienta que “Orígenes fornece a Maistre a
justificação dos principais artigos do seu Credo” (p. 438). Entre outros aspetos,
Orígenes considerava que o mundo terrestre é um local de resipiscência, os
homens deveriam retornar a Deus; deveria haver um esforço no sentido da
virtude e de aceitação do divino; o estado pré-angélico de Adão, o encerramento
das almas num corpo de matéria em consequência da prevaricação do primeiro
homem, a apocatástase pensada como um aniquilamento do mundo sensível e
de todas as formas de matéria, a vida celeste pós-morte.
Na perspetiva de Moreau (1837), “Deus é o primeiro maçon” (p. 1) e
que, segundo a lenda, Adão terá sido recebido maçon segundo os ritos no
Oriente do Paraíso pelo Pai Eterno. É uma forma de dizer que a Maçonaria
13 As investigações ainda não provaram que Pasqually era português. Nahon (2011) rejeita esta hipótese. Tudo
indica que nasceu em Grenoble em 1727 e faleceu em Port-au-Prince, em 1774.
14 A sua obra é imensa, mas considera-se a De principiis (Tratado sobre os Princípios) como a principal,
119
Figura 1: Ofício da Confraria da Santa Cruz e Misericórdia e dos Penitentes Negros
Fonte: Gallica, BnF.
Figura 2: Brasão da Loja Maçónica Saint Jean des Trois Mortiers, século XVIII, Chambéry
Fonte: Grande Oriente de França
A vida de exilado
Nos anos 1789 e 1790 as realidades da História apanham Joseph de
Maistre, atrapalhando as suas pesquisas, assim como a vida dos iniciados de
Chambéry. A Revolução Francesa vai complicar o reino de Savoie. O Rei da
Sardenha, Victor-Amédée III (1726-1796)18, inquieto pela agitação
15 Dermenghem (1946) sublinha que Maistre sempre defendeu Saint-Martin “contra todas as críticas” (p. 46).
Saint-Martin escreveu várias obras: Le Tableau Naturel des Rapports qui existent entre Dieu, l’Homme et l’Univers (1782),
L’Homme de Désir (1790), Ecce Homo (1792), Le Nouvel Homme (1792), Considérations philosophiques sur la Révolution
française (1796), Éclair sur l’Association Humaine (1797), Le Crocodile ou la Guerre du Bien et du Mal (1798), Le Ministère
de l’Homme-Esprit (1802).
16 Sobre a vida e obra de Jacob Boehme, confronte Vivenza (2005b) e a obra clássica de Koyré (1979[1929]).
17 Swedenborg, nas suas teses, assinala uma posição anti-Trindade muito marcada, reconhecendo Deus como
o Eterno Criador. Jesus Cristo é o “humano de Deus”, cujo papel consistiu em salvar as criaturas, mas
sobretudo a sua missão tinha por objetivo que os homens pudessem ter uma ideia justa do que era a Glória e a
Sabedoria de Deus.
18 Goyau (1921a) refere que ele era maçom. Na opinião de Vivenza (2012), Victor-Amédée III sempre
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Joseph de Maistre casou em 1786 com a senhora Morand, tendo três filhos (Rodolphe, Adèle e Constance)
(Vitte & Perrusel, 1884).
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Figura 4: Estátua realizada em 1899 pelo escultor Dubois em memória a Joseph e Xavier de Maistre, filósofo
e escritor, nascidos em Chambéry
Fonte: Archives de France (cota: 35FI2133)
A prevaricação original
Nas Soirées de Saint-Pétersbourg, II Entretien, Maistre (1854 [1822]) destaca
que não faz a distinção entre as doenças, na medida em que elas são castigos.
Na sua perspetiva, o pecado original explica tudo isso. Sendo um mistério, a
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questão do mal e do pecado original são centrais no pensamento de Maistre,
atravessando a o conjunto da problemática teórica da sua obra (Vivenza, 2012).
O Homem encontra-se no seu estado degradado e a sua posteridade não é mais
parecida com o estado primitivo deste ser. Observa que “entre o homem enfermo
e o homem doente é a mesma diferença entre o homem vicioso e o homem culpado”
(Maistre, 1854 [1822], pp. 80-81). Acrescenta que “a doença aguda não é
transmissível, mas a que vicia os humores tornam-se a doença original, podendo
estragar toda uma raça” (p. 81). O mesmo se passa com as doenças morais,
segundo Maistre. Em virtude da degradação primitiva, “somos todos sujeitos a
sofrimentos físicos, em geral” (p. 82). “A essência de toda a inteligência é a de
conhecer e de amar. Os limites da ciência são as da sua natureza. O ser imortal
não aprende nada: ele sabe por essência tudo o que deve saber” (p. 86). Adianta
ainda que “o homem inteiro é uma doença” (p. 87). Num jogo de palavras,
sublinha que o Homem “não sabe o que quer; ele quer o que ele não quer; ele
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A universalidade da redenção
Maistre encara a redenção como uma ideia universal. Refere que sempre
se pensou que o inocente poderia pagar pelo culpado (utique si et provocaverit),
mas o cristianismo retificou esta ideia. Sob o império desta lei divina, o justo
procura se aproximar do modelo do Criador pelo lado doloroso. Ele examina,
purifica-se, reflete sobre os seus esforços para obter a graça do “justo
perseguido” (Salmo, 58, p. 115). Na sua argumentação, Maistre apela a
Orígenes, referindo que o sangue expandido no Calvário foi útil aos homens,
aos anjos, aos astros e a todos os seres criados. A redenção pertencia ao céu e
à terra. A purificação pelo sangue de animais foram apenas os primeiros neste
processo. Se o cordeiro foi capaz de tirar o pecado de todo o mundo, Maistre
diz: “contemplem a expiação de todo o mundo, isto é, das regiões celestes,
terrestres e inferiores, e verão quantas vítimas eles precisariam” (Maistre apud.
Vivenza, 2012, p. 140). Maistre destaca que, nesta redenção geral, operada
Conclusão
Durante muito tempo, os seus admiradores e detratores confinaram-no
ao seu papel de doutrinador monárquico e de grande representante da reação
tradicionalista contra a Revolução Francesa. Joseph de Maistre, nascido em
Chambéry em 1753, falecido em Turim em 1821, é ainda considerado como um
pensador austero. À luz de trabalhos inéditos e pesquisas académicas
realizados(as) nos últimos anos, a personalidade de Joseph de Maistre, cujas
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