Vinicius Canafístula de Oliveira - TCC - Letras

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

CÂMPUS DE ARAGUAINA
CURSO DE LETRAS – LINGUA INGLESA E LITERATURAS

VINICIUS CANAFISTULA DE OLIVEIRA

DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DOS PERSONAGENS


DO LIVRO O “SENHOR DAS MOSCAS” (WILLIAN
GOLDING)

Araguaína/TO
2021
VINICIUS CANAFISTULA DE OLIVEIRA

DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DOS PERSONAGENS


DO LIVRO O “SENHOR DAS MOSCAS” (WILLIAN
GOLDING)

Artigo foi avaliado e apresentado à UFT – Universidade


Federal do Tocantins – Câmpus Universitário de
Araguaína, Curso de Letras língua inglesa e literaturas
para obtenção do título de licenciado e aprovado em sua
forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

Orientador(a): Dra. Thelma Pontes Borges

Araguaína/TO
2021
3
4
Dedico esse trabalho a todos que me
ajudaram nesse processo de graduação. Sou
eternamente grato a todos.

5
RESUMO

O livro O senhor das moscas, de Willian Golding, romance inglês, ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura, apresenta uma distopia a partir da história de um grupo de garotos que,
após um acidente aéreo, param numa ilha deserta e precisam sobreviver sozinhos. O artigo visa
analisar o desenvolvimento moral dos personagens do livro com base na teoria de Jean Piaget
sobre o desenvolvimento moral verificando como se posicionam frente aos dilemas que o
convívio na ilha impõe. O desenvolvimento moral ocorre por sucessivos processos de
reorganização da psiquê, em função de situações sociais dialógicas, que produzem, ou não,
avanços qualitativos na moralidade humana. Utiliza-se o método piagetiano na análise das
narrativas e no contexto literário de cada personagem e/ou do grupo. A análise de dois grupos
de crianças, que se separam e lutam entre si, demonstra que a aglutinação ocorreu a partir de
características psicológicas em comum. Dessa forma o primeiro grupo foi marcado por uma
liderança autônoma cujos membros conseguiam trabalhar pela descentração cognitiva,
compartilhamento de ideias esculpindo o que Piaget denomina de autonomia moral; o segundo
grupo possui um líder preocupado com si mesmo, incapaz de atender à coletividade,
demonstrando rasteira cognitiva e moral e seus membros têm como característica a necessidade
de serem guiados e protegidos, manifestando imaturidade psíquica típica da heteronomia.
Considera-se a heteronomia como um momento de alta vulnerabilidade à influência de outros,
podendo ser conduzidas a comportamentos grupais não adequados ao convívio coletivo,
enquanto a autonomia moral é dada por um estilo de personalidade que permite a atribuição do
bem coletivo à frente da individualidade.

Palavras-chave: Literatura. Distopia. Psicologia. Ética.

6
ABSTRACT

The book “The Lord of the Flies” by Willian Golding, an English novel, Nobel Prize
winner for Literature presents a dystopia based on the story of a group of boys who, after a
plane crash, stop on a desert island and need to survive on their own. The article aims to analyze
the moral development of the characters in the book based on Jean Piaget's theory on moral
development, verifying how they position themselves in the face of the dilemmas imposed by
living on the island. Moral development occurs through successive processes of reorganization
of the psyche, due to dialogical social situations, which produce, or not, qualitative advances in
human morality. The Piagetian method is used in the analysis of narratives and in the literary
context of each character and/or group. The analysis of two groups of children, who separate
and fight each other, demonstrates that the agglutination occurred from common psychological
characteristics. Thus, the first group was marked by an autonomous leadership whose members
were able to work for cognitive decentering, sharing ideas, sculpting what Piaget calls moral
autonomy; the second group has a leader concerned with himself, unable to attend to the
community, demonstrating cognitive and moral slippage and its members are characterized by
the need to be guided and protected, manifesting psychic immaturity typical of heteronomy.
Heteronomy is considered a moment of high vulnerability to the influence of others, which can
lead to group behaviors that are not suitable for collective interaction; while, moral autonomy
is given by a personality style that allows the attribution of the collective good ahead of
individuality.
Keywords: Literature. Dystopia. Psychology. Ethic

7
SUMÁRIO

Introdução ..........................................................................................9
Contextualização da obra O senhor das moscas: Literatura
Distópica ...........................................................................................10
O Desenvolvimento Moral na Obra de Jean Piaget.......................13
Apresentação do método .................................................................18
Discussão e Analise dos Personagens da Obra ...............................19
Considerações Finais .......................................................................24
Referências Bibliográficas ...............................................................25

8
Introdução

A Literatura é um veículo que expressa em histórias àquilo que a psicologia explica


em teoria; consegue viajar por alguns lugares, personagens e gera no leitor a descentração
dos sentimentos, contribuindo com a formação humana e a experimentação cotidiana
através de seus personagens. Sonhar com outra realidade e expressar através de palavras
por meio de um enredo representando uma utopia social ou uma distopia torna possível
imaginar como seria uma sociedade com certas condições para sobreviver. É o que
encontramos no livro de Willian Golding (1911/1993), O senhor das moscas, no qual
crianças vão parar em uma ilha no meio do Oceano Pacífico, e lá, precisam sobreviver
até aparecer ajuda para retornarem à ‘sociedade’ em que estão acostumadas a viver.
É pensando na importância da literatura na vida das pessoas e em sua influência
que este trabalho tem por objetivo analisar características de desenvolvimento moral dos
personagens desse livro. Sua pesquisa consiste em seguir alguns parâmetros: o primeiro
é distinguir um entendimento literário baseado na obra de Jean Piaget, O juízo moral na
criança (PIAGET, 1932/1994), compreendendo os comportamentos das crianças em
situações extremas de suas vidas, momentos em que o único objetivo é se manter vivos.
O segundo parâmetro conduz à compreensão do social e suas decisões. É a capacidade de
compreender como a vida pode se expressar com a arte com isso pode-se prever como a
humanidade se comporta em situação extrema e analisar como a moral se manifesta nestes
momentos. Outro aspecto está diretamente ligado a possibilidade de analisar o
comportamento dos personagens dos livros e seu juízo moral com base nas teorias e
estudos.
A Psicologia Moral estuda o desenvolvimento humano e comportamentos em
ambiente social, permitindo analisar a ação de cada sujeito em determinada situação, seja
ela escolar ou um ambiente social, verificando a escala de valores1 e se uma pessoa
escolhe seus princípios de acordo com a construção da sua personalidade. A teoria de
desenvolvimento moral de Piaget mostra que a moral e a ética só aparecem com a
interação do sujeito com o ambiente proporcionado. Piaget (1932/1994) esclarece que a
coação dos adultos interfere no meio moral da criança e afeta diretamente o seu

1
O termo valores é adotado com base na definição piagetiana e deriva de seus estudos sobre afetividade. O
valor é dado pela relação afetiva entre pessoas e o objeto, é a afetividade que define o valor das situações
(Piaget, 1953-54/1994).

9
desenvolvimento mudando comportamento para agradar o adulto, “no entanto, se aspecto
afetivo da cooperação e da reciprocidade escapa ao interrogatório, há uma noção, a mais
sem dúvida das noções morais que parece resultar diretamente da cooperação “(PIAGET,
1932/1994, p. 1560).
No livro O senhor das moscas, os personagens vivenciam situações de isolamento,
limites de insegurança, desespero por alimentos e dormida [repouso], desconhecimento
do novo local social. A nova sociedade a princípio é estabelecida por meio de uma
democracia, com ausência de adultos e ou referências, como um lugar totalmente sem
regras, tornando possível a liberdade total para todos na ilha. Diante da situação expostas,
como eles lidaram com as relações sociais? Eles tiveram compaixão? Eles pensaram no
bem coletivo? Quais características de personalidade podem ser aferidas a partir dos
comportamentos e pensamentos dos personagens? Como se configura a personalidade
ética e moral dos rapazes? Qual o impacto da morte de Simon para o meio social?
A pesquisa de O senhor das moscas pretendeu responder às questões e, mediante
análise literária sobre desenvolvimento humano e formação de personalidade ética,
auxiliar nas análises sobre a dialética entre regimes sociais, políticos e desenvolvimento
social.
O artigo está dividido em três partes, além da introdução e das considerações
finais, a saber: a primeira contextualiza a obra e o autor de O senhor das moscas,
apresenta um resumo do enredo e faz uma breve explanação acerca de literatura distópica;
a segunda parte aborda como ocorre o desenvolvimento da moralidade na teoria de Jean
Piaget; e a terceira parte apresenta os resultados da pesquisa, demonstrando que os garotos
perdidos na ilha se comportam de acordo com sua capacidade de desenvolvimento moral
e se agrupam em função disso.

Contextualização da obra O senhor das moscas: Literatura Distópica

A literatura nos proporciona momentos de reflexão sobre o contexto social e nos


possibilita viajar no tempo, permitindo imaginar e analisar a partir de diferentes
perspectivas teóricas como a sociedade se desenvolve em determinados contextos: “O
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim,
interno” (CANDIDO, 1995 p.14).

10
Willian Golding (1911-1993) publicou sua obra O senhor das moscas em 1954,
na Inglaterra. Em seu período pós-guerra, a Inglaterra estava passando por um momento
de recuperação fundamental para a economia. Para poder reerguer-se, a Inglaterra
elaborou esquemas de economia para que não ocorresse um colapso sistêmico “44 nações
se reuniram na cidade britânica de Bretton Woods, em julho de 1944” (GASPAR, 2015,
p. 267). Essa reunião serviu para que pudesse chegar a um acordo e definições com o que
se deve fazer com a nação após esse período pós-guerra.

Novas instituições foram criadas, como o Banco Internacional para a


Reconstrução e o Desenvolvimento– BIRD –, o atual Banco Mundial, e o
Fundo Monetário Internacional – FMI. O sistema de Bretton Woods foi o
primeiro exemplo, na história mundial, de uma ordem monetária totalmente
negociada, tendo como objetivo governar as relações monetárias entre estados-
nações independentes. No esforço de promover a cooperação internacional
sobre uma base consensual e estável, deve ser citada, também, a criação, em
1945, da Organização das Nações Unidas – ONU. (GASPAR, 2015 p. 268).

A obra pertence ao gênero literário ficcional distópico, que retrata uma sociedade
composta por garotos, de 08 a 12 anos de idade, vivendo em uma ilha no meio do Oceano
Pacífico, devido à queda de um avião no local. A princípio, o livro de William Golding
foi rejeitado vinte e uma vezes por editoras de sua época; quando finalmente publicado,
trouxe uma boa repercussão, mas seu impacto maior veio quando produziu em 1990 o
filme dirigido por Harry Hook com roteiro de Jay Presson Allen e publicado em DVD em
20 de novembro de 2001, produzido por Lewis M. Allen, Ross Milloy. O filme
reverberou na época, pois com o audiovisual é mais fácil o acesso, a mais pessoas, de
maneira rápida e tornou-se um clássico para debates em sociologia, Psicologia e outros.
Essa literatura distópica emerge, de forma assertiva, após a Segunda Guerra
Mundial, com muitas obras do gênero2. A literatura nos traz para uma reflexão em que
podemos vivenciar uma realidade muito próxima do caos. Assim, William Golding nos
mostra que até mesmo as crianças podem promover uma sociedade bárbara: “A crença na
remoção da ignorância e do despotismo conduziriam o homem à concretização das
utopias renascentistas que estabelecem as bases do Humanismo” (MEDEIROS;
MATEUS 2019, p. 111).

2
Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, 1984 (1949), de George Orwell, Admirável mundo novo (1932),
de Aldous Huxley, A mão esquerda da escuridão (1969), de Ursula, Nós (1924), de Ievguêni Zamiátin.

11
Diferente da literatura utópica que nos possibilita a imaginação e um sonho de
uma sociedade perfeita, a literatura distópica funciona como uma crítica social ou política
com pessoas vivendo em seu maior extremo, supondo múltiplas possibilidades do ser e
fazer humano, que podem culminar em ruínas psíquicas e crises humanitárias.
O autor nasceu em St. Columb Minor, na Cornualha (sudeste da Inglaterra), em
1911, e faleceu em Falmouth, na mesma região, em 1993. “Golding foi professor do
primário; de tendências pessimistas, levou uma vida marcada pelo desregramento até a
segunda guerra mundial que combateu como oficial da marinha britânica” (GOLDIN,
2003, s/p). Após servir o seu país na Segunda Guerra Mundial, Golding retornou à sala
de aula com ensino de literatura, até que, em 1954, fez sucesso com sua obra O senhor
das moscas. A obra lhe permitiu abandonar o ensino de literatura e mudar-se, em 1962,
para os campos de Cornualha; em 1983, Golding recebeu o prêmio Nobel de Literatura.
Após o livro aqui estudado, escreveu vários romances, dentre os quais se destacam” O
Deus Escorpião” (1971), “Ritos de passagem” (1980) e “Homens de papel” (1984). O
autor diz que, ao servir seu país na Segunda Guerra Mundial, foi capaz de perceber o
quanto é fácil o homem deixar de lado o seu juízo moral. Ao retornar do conflito, o autor
escreveu o livro O senhor das moscas 3 que possibilitou à sociedade refletir sobre uma
nova perspectiva de realidade possível.
Com 14 Milhões de exemplares vendidos apenas nos países de língua inglesa, O
senhor das moscas tomou o lugar de pleno direito no restrito círculo das obras da literatura
que conseguem trazer um best-seller para sua época. Romance de estreia do então pouco
conhecido William Golding, o livro foi publicado na Inglaterra de 1954, graças ao apoio
de T. S. Eliot4. Ao seu grande sucesso chegou com a edição popular lançada nos E.U.A
em 1959, que fariam do livro verdadeiro objeto de culto, sobretudo para o público jovem.
O romance conta a história de que, após a queda de um avião, durante um conflito
planetário, um grupo de meninos e rapazes encontra-se numa ilha deserta sem qualquer
adulto ou representatividade feminina. Os garotos se reúnem em grupos para entender

3
O título original do livro Lord of the Flies tem sentido duplo – Senhor ou Deus das Moscas – é a tradução
literal de hebraico de Baal Zvuv, nome pejorativo dos hebreus monoteístas a Baal, um deus filisteu, que
mais tarde virou Belzebu (o diabo) na tradição católica.
4
Thomas Stearns Eliot foi um poeta modernista, dramaturgo e crítico literário inglês nascido nos Estados
Unidos. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1948. Eliot nasceu em St. Louis, Missouri, nos Estados
Unidos, mudou-se para a Inglaterra em 1914, tornando-se cidadão britânico em 1927, com 39 anos de idade.
(ELIOT T.S p. 7).

12
melhor o que fazer; os mais velhos tomam conta da situação tentando acalmar os menores
e encontrar uma solução imediata para a situação grave, sendo obrigados a sobreviver na
ilha deserta no meio do Oceano Pacífico. Os grupos são divididos por diferentes tarefas:
construção de barracas, busca por alimentos e por materiais para o fogo.
É nesse contexto de extrema liberdade e sem a presença de adultos que medeiem
os comportamentos que a história se desenrola, fazendo com que ocorram ações de
humilhação, aniquilamento e morte do grupo adversário. Assim, sob a égide da
Psicologia, buscou-se compreender esses comportamentos.

O Desenvolvimento Moral na Obra de Jean Piaget

O desenvolvimento do juízo moral no livro O senhor das moscas consiste em buscar


compreender como os personagens constroem suas regras e como isso se refletiu em suas
atitudes e decisões na ilha. Nela, é possível analisar as atitudes de cada criança, à luz de
Piaget (1932/1994).
Piaget (1932/1994) desenvolve uma teoria que explica como a moral é construída
na personalidade humana e como fatores na criação da criança e no modo como ela é
tratada desde seu nascimento interfere nesse processo. O autor articula teoricamente a
formação da cognição, da moral e mostra que os afetos funcionam como o propulsor do
desenvolvimento: “O papel da afetividade é funcional na inteligência, é a fonte de energia
que a cognição utiliza para seu funcionamento” (BRONZATTO; CAMARGO, 2010,
p.85).
De forma ampla, Piaget parte de pesquisas com os próprios filhos, desenvolve
metodologias e as utiliza em pesquisas experimentais com crianças. Para chegar às
tendências de desenvolvimento moral, iniciou seus trabalhos verificando como as
crianças lidavam com regras de jogos, amarelinha para as meninas e bolinha de gude para
os meninos. Depois, trabalhou com dilemas morais. Depreendeu então processos que
partem da anomia, passam pela heteronomia moral e chegam à autonomia.
Para Piaget, o conhecimento é um processo enriquecedor para o indivíduo. O
processo de assimilação e acomodação implicam melhor compreender como funcionam
os passos para uma criança apreender mais sobre ela mesma e uma perspectiva de mundo;
a assimilação é a inclusão no meio dos esquemas que o indivíduo já dispõe, ou seja, as
suas ações diante do novo são pautadas por uma estrutura de conhecimento já existente.
A acomodação é dada pela mudança da estrutura em função de um “start cognitivo”,
13
mostrando que as experiências sociais têm papel preponderante no desenvolvimento
humano. É justamente esse movimento de utilizar as estruturas prontas para compreender
o novo, encontrar vivências novas e desafiadoras e reorganizar, pela via da acomodação,
do pensamento que permite a evolução da mente e das estruturas intelectivas e morais.
As emoções nesse processo funcionam como propulsoras.
Suas estruturas e seus conhecimentos mudam de forma quantitativa e qualitativa
tornando maior seu processo, ou seja, em um movimento de assimilação, o indivíduo não
muda suas estruturas, só as aumenta, levando-as ao extremo. Na acomodação, ocorre uma
mudança qualitativa estrutural: “Piaget reconhece que, nos processos de assimilação e
5
acomodação, o aspecto afetivo se traduz pelo interesse do self pelos objetos de
conhecimento” (BRONZATTO; CAMARGO, 2010, p. 85). Essa ação de assimilação é
associada a um processo de motivação para ação que gera a acomodação. A acomodação,
diferente de assimilação, consiste em pensamentos que se modificam diante das ações: as
construções cognitivas e morais do indivíduo vão mudando com a percepção de mundo e
seus novos conhecimentos são incorporados transformando em estruturas para conhecer
e se posicionar no mundo.
Piaget, ao pesquisar o desenvolvimento moral da criança, percebe três fases e as
denomina de anomia, heteronomia e autonomia, construídas em função da forma com que
a criança lida com as regras sociais, a noção de justiça e de punições.
Em seu estágio moral de anomia, a criança não consegue reconhecer as regras
estabelecidas, a sua vontade perante a uma situação vai prevalecer mediante ao meio,
independentemente de como conseguirá executar a sua vontade. Ela conhece as regras,
mas não as segue, posto que não as incorporou a si mesma.
Na anomia a criança desconhece as regras, a regra ainda não é coercitiva, seja
porque é puramente motora, seja (início de estágio egocêntrico) porque é
suportada, como que inconscientemente, a título de exemplo interessante e não
de realidade obrigatória. Isto é, nesse estágio a criança faz a regra conforme
seus hábitos motores e ela não é obrigatória. (GUERREIRO; UHDE;
CORRÊA, 2018, p. 2).

O estágio motor e individual acontece desde o seu nascimento aos dois anos de
idade. Nesse estágio, a criança manipula as regras conforme as suas vontades já
estabelecidas, priorizando as regras individuais e não as regras coletivas. Nesse momento

5
Compreender como “eu”.

14
ocorre um predomínio do que Piaget chamou de egocentrismo, que ocorre dos dois anos
aos cinco anos de idade. Nesse período, a criança consegue seguir regras codificadas já
estabelecidas, mas a criança não se importa com o resultado da sua ação, nem se vai
ganhar ou perder: “É por esse duplo caráter de imitação dos outros e de utilização
individual dos exemplos recebidos que Piaget designa o nome de egocentrismo”
(GUERREIRO; UHDE; CORRÊA, 2018, p. 2).
Na heteronomia moral, Piaget dá-se uma cooperação nascente. Esse estágio
desperta entre os sete a oito anos de idade, quando “Surge, então, a necessidade de
regulamentar as partidas e vencer os adversários” (GUERREIRO; UHDE; CORRÊA,
2018, p. 2). Cada criança já tem sua personalidade e já possui opiniões por diversos
assuntos, gostos e preferencias; começa a criar competição entre as outras crianças, como
por exemplo, quando uma diz para outra que ela consegue correr mais rápido, já
estabelece uma competição entre as demais crianças, mesmo que não haja uma
recompensa para quem vai ganhar a corrida: o que importa é ser o mais rápido.
Na fase da heteronomia moral da criança, é notável observar como as regras são
insolúveis a ela e precisam ser claras e objetivas. Ocorre a percepção de que sempre
haverá uma consequência caso elas sejam quebradas: “nessa fase a criança julga a ação
como boa ou não com base nas consequências dos atos” (FINI; 1991, p.60), mas a criança
não consegue considerar fatores importantes para racionalizar tal processo. Não tem a
capacidade de analisar motivos, intenções, pois foca na aparência do ato e toma decisões
de forma instantânea, um julgamento absoluto para o ser. Como exemplo, pode-se pensar
em uma criança que quebra dez pratos por acidente. Na percepção, deveria ser mais
punida do que uma criança que quebrou um único prato tentando roubar um pedaço de
bolo de chocolate que estava na geladeira. O que importa para uma criança em seu
desenvolvimento moral na heteronomia é que a quantidade de pratos quebrados é mais
importante que o motivo de ter quebrado os copos. Nesse momento, “A criança tende a
considerar que sempre que alguém é punido esse alguém deve ter feito algo de errado”
(FINI; 1991, p.60), ficando em função de seu desenvolvimento impossibilitada de analisar
além da situação. Contexto e motivações não são analisados, apenas as consequências dos
atos.
A heteronomia moral é dada também pela necessidade de seguir uma liderança,
considerando alguém que diga o que deve ou não ser feito. Tal nível de desenvolvimento
é interessante para uma criança entre os seus 7 aos 15 anos, posto que é parte da
maturação, mas é problemático se perdura para a vida adulta. Seguir um líder cegamente,

15
apenas por obediência, impossibilita a percepção dos contextos e a adequação das regras
sociais de forma a produzir de fato justiça social.
Essa incapacidade de observar uma situação e não considerar os elementos dos
contextos é chamado por Piaget de realismo moral. Em termos, é aquela pessoa que se
baseia na aparência das situações e não nas intenções. A superação dessa fase é
dependente de um ambiente cooperativo, ou seja, de vivências em que ocorra uma
diminuição das situações de coerção social, o que abre espaço para a criança aprender a
se posicionar, produzir descentrações cognitivas, se colocar no lugar do outro. Somente
com uma alteração do ambiente educativo é possível um avanço no desenvolvimento
moral para a autonomia.
Nas descrições de Piaget (1932/1994) de suas pesquisas com sua filha, há a
demonstração de que na educação de Jaqueline seus pais sempre procuraram mostrar pra
ela o real sentido de tudo, explicando que a cada ação existe uma reação, “sempre
procuramos fazê-la compreender o porquê das ordens, em lugar de impor-lhes regras
categóricas” (PIAGET 1932/1994, p.142). É importante que a criança entenda todo
processo de regras e toda sua consequência para si próprio mostrando desde o princípio
como pode-se cooperar. Para que haja regras é preciso compreender seu princípio,
levando em conta que, “originadas de raciocínios, as ações são sempre impregnadas de
afetividade” (BRONZATTO; CAMARGO, 2010, p.85).
As crianças menores têm dificuldades de entender um contexto de uma situação,
em sua maioria, vão focar nas consequências, sem pensar nas circunstâncias que levaram
àquela ação.
As construções teóricas de Piaget acerca desses três estágios apresentam um norte
para análise das ações humanas, contudo, o próprio autor nos alertou sobre o fato de que
se capta nas pesquisas é o “juízo” e não a ação moral, podendo haver uma distância entre
o que se pensa e verbaliza e a prática moral.
A relação entre o juízo e ação moral é verdadeiro “calcanhar de Aquiles” dos
estudos sobre moralidade. Em termos práticos, equivaleria a perguntar se o
adolescente em quem Piaget (1932/1994) identificou indícios de autonomia
moral em face de seu raciocínio acerca de dilemas hipotéticos agiria em
correspondência com seu posicionamento verbal. Ou em termos mais simples:
um sujeito extremamente inteligente reuniria as condições suficientes para agir
moralmente? A hipocrisia que comumente se observa em adultos portadores
de comoventes discursos, que acomodariam perfeitamente o dístico “faça o
que eu digo, mas não faça o que eu faço”, deixa dúvidas a esse respeito
(BRONZATTO; CAMARGO, 2010, p. 82).

16
No entanto, as pesquisas na área vêm demonstrando que existe uma tendência a
haver equivalência entre o juízo moral e a ação moral (LA TAYLLE, 2009).
Na autonomia moral (a partir dos 15 anos), a criança já consegue pensar analisando
com mais racionalidade a situação. Considerando o exemplo citado anteriormente, seria
de fácil compreensão que a criança que quebrou dez pratos por acidente não precise de
nenhuma punição, pois foi um acidente, diferente da criança que quebrou um prato
tentando roubar um pedaço de bolo, posto que já consegue se descentrar e produzir a
análise do contexto social, “percebe as regras como estabelecidas e mantidas pelo
consenso social” (FINI; 1991, p.60).
Em seu último estágio, o de autonomia moral, Piaget chama de codificação de
regras quando a criança começa a entender melhor as regras estabelecidas e reflete em
um coletivo com mais facilidade, conseguindo analisar as consequências de suas ações e
entender o porquê de as regras existirem. Isso não significa que todas as crianças vão
respeitá-las, mas que pensam nestas e já conseguem entender melhor como funciona o
meio social: “Esse estágio é marcado pela consciência coletiva das regras e pela sua
generalização” (GUERREIRO; UHDE; CORRÊA, 2018, p. 2).
O aparecimento da autonomia moral é dependente de um ambiente social
cooperativo. “A cooperação é explicada como um tipo de relação que permeia a
autonomia moral” (CAMARO; BECKER, 2012, p. 259), posto que acaba com relações
hierárquicas e a tendência de seguir e obedecer ao outro. As relações por cooperação
pressupõem tomada de decisão e consciência, além de assumir as consequências pelos
próprios atos. O esperado para o ser humano até o final da adolescência é que alce a
autonomia moral como parte de sua personalidade.
Durante os anos de 1920 a 1930, Piaget trabalha com o conceito de cooperação
correlacionado à moral (CAMARO; BECKER, 2012, p.259) sendo de sua principal obra
O Juízo Moral na criança. Nele, o autor explica como funciona pensamento infantil e
todo seu processo em meio a sociedade. Piaget elabora sua pesquisa com esquema que
ele chama de as regras do jogo, estabelecendo um esquema complexo de regras com o
objetivo de extrair a moral implícita. Correlacionado com a regra de respeito do outro
diante a sociedade, estabelece limite nas relações sociais em não invadir o espaço do
outro, partindo da premissa de respeito.
Na infância, os pais nos mostram as possibilidades do mundo ensinando o que pode
e o que não pode, coisas simples como não matar, não roubar não cometer nenhum tipo
de ação, levando a desenvolver a noção de justiça indispensável para que as pessoas

17
consigam conviver umas com as outras, onde a paz é soberana e suas ações que
desvirtuam dessas regras possam ter consequências, mostrando que se sair dessas normas
o sujeito pode ser punido. Emergem aí princípios importantes que constituem a
moralidade, tais como respeito, interesses, igualdade, noção de justiça e respeito mútuo.
Todas essas características só são possíveis mediante a autonomia moral.
Em síntese, pela perspectiva de Piaget, existiriam três níveis de estágio moral. O
primeiro, o da anomia, no qual o sujeito não segue as regras sociais e atende seus próprios
desejos; o segundo, da heteronomia moral, que representa um avanço, posto que já atende
aos regulamentos sociais, contudo é incapaz de pensar as ações sozinho precisando de um
líder, nesse sentido seus comportamentos serão similares ao da liderança. Se o líder for
um sujeito cujos comportamentos podem ser identificados como éticos, a pessoa na
heteronomia também o será, contudo se o líder for tirânico, o sujeito nem perceberá os
problemas de suas ações. Em terceiro, dá-se a autonomia moral, considerada o
refinamento da percepção social, em que democracia, regulação, cooperação e bem
comum entram em ação para pautar os comportamentos sociais.

Apresentação do método

Jean Piaget (1932) utiliza do método clínico para obter seus resultados em suas
pesquisas analisando o comportamento das crianças e como elas vão se pautar diante de
situações provocadas por ele, sendo possível estudar a inteligência e a moralidade de seus
pacientes em suas pesquisas.
A obra usada nesse trabalho, o Juízo moral na criança, o autor analisa
comportamento de crianças com o objetivo de estudar sua moralidade, para que seja
possível de saber a que ponto uma criança desenvolve a sua estrutura de moralidade e se
consegue ser justa com os demais.
O método clínico de Jean Piaget (1932) apresentou formas inovadoras de obter
resultados ao estudar sobre inteligência estudando a assimilação das ideias e acomodação
de sua prática (RIBEIRO; SOUZA, 2020). Mais do que saber o que se responde, Piaget
passou a se preocupar com o porquê se responde, ou seja, traçou como parâmetro
compreender o processo que resulta em uma ação e não somente o resultado dessa. Assim,
o método clínico piagetiano é pautado numa sequência de entrevistas que permitem
entender como se chegou a tal resultado. Na análise do romance, foram considerados os
percursos narrativos da mesma forma, tentando compreender seus significados.
18
Em William Golding, observou-se o comportamento de cada criança e os modos
como portou-se diante de uma situação. Por se tratar de uma distopia, as situações dos
personagens são condicionadas a extremos. Os personagens estão presos a uma ilha, sem
comida e fogo, sem ter adultos a quem recorrer. Nessa situação, é preciso analisar a
urgência das decisões possíveis para sobreviver. É justamente a possibilidade de ver seus
comportamentos perante diversos dilemas do cotidiano que permitiu analisar o livro.

Discussão e Analise dos Personagens da Obra

O juízo moral (PIAGET, 1934/1994) é construído através de suas experiências e


criações. Assim, um adolescente no estágio de autonomia (último nível de constituição
da moral na personalidade) consegue pensar no bem coletivo e sempre encontrar uma
forma para que todos possam trabalhar juntos, para sair vivos. Nesse sentido, em O senhor
das moscas , um dos personagens principais se destaca dentre os demais, quando começa
a encontrar supostas soluções para a situação de sobrevivência, no momento em que o
objetivo era manter todos vivos.
Na esperança de serem resgatados, os garotos vão para a parte mais alta do morro
e tentam fazer fogueira com pedras para chamar atenção de algum avião que possa estar
passando pela ilha. O personagem chamado Porquinho usa óculos e um dos garotos tem
a ideia de usar seus óculos para fazer fogo; colocando contra o sol e apontando para as
folhas secas. Após esforço conseguem fazer uma enorme fogueira, mas acabam perdendo
o controle do fogo e queimando todo o terreno. Sem sucesso quanto ao resgate, os garotos
decidem ir atrás de alimento.
A enterrou-se centímetro por centímetro e o guinchado aterrorizando tornou-
se um grito agudo então, Jack descobriu a garganta e o sangue quente jorrou
em suas mãos. A porca morreu sob eles e os meninos ficaram um pouco sobre
ela, pesados e satisfeitos. (GOLDING, 2003, p.149)

A citação acima refere-se ao momento em que os garotos encontram carne. No


meio da mata selvagem, em busca de alimento, procuram carne para se manterem vivos
e matam a porca brutalmente, jorrando sangue por todo lado. Com sentimento de orgulho,
os garotos passam sangue em seu corpo para glorificar a sua conquista de caça e se
reafirmar poderosos e autoritários. Jack então começa a se separar dos demais do grupo,
afirmando que o garoto que for para seu lado terá carne; metade dos garotos vão para seu
lado. Vemos que esse personagem assume uma liderança forte na história, posto que
garante aos demais, principalmente aos mais novos, elementos básicos de sobrevivência,

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como comida e abrigo. Jack se beneficia do fato de boa parte do grupo de garotos
encontrarem-se na heteronomia moral e terem a tendência de se filiarem a um líder. Cabe
ressaltar que esse líder, provavelmente, encontra-se na anomia moral, pois, no decorrer
da história, renuncia a todas as regras que medeiam uma convivência pacífica.
Jack ignorou-o, levantou a cabeça e começou a gritar.
- Ouçam todos. Eu e meus caçadores, fazemos festas e nos divertimos. Se vocês
quiserem entrar na minha tribo, vão até lá. Talvez eu os deixe entrar. Talvez
não. [...]
- Hoje à noite vamos fazer uma festa. Matamos um porco e temos carne. Podem
vir comer conosco, se quiserem (GOLDING, 2003, p.154).

O fato de termos grande parte dos meninos vinculados a um líder tirânico, que
atende apenas aos próprios desejos, faz com que os comportamentos que apareçam daí
para frente sejam resultados desse modo de ser, ou seja, se o líder mandar roubar,
humilhar, bater ou matar, a regra deve ser cumprida pelos seguidores. E é justamente para
onde a obra caminha, para comportamentos violentos e disruptivos, não porque ali se
reúnem crianças perversas, mas sim porque psicologicamente estão filiadas a alguém que
é.
– O chefe deve ser o da corneta.
Ralph levantou a mão e pediu silêncio.
-Muito bem. Quem quer que Jack seja o chef?
Com obediência temerosa, o coro levantou as mãos.
-Quem quer que eu seja?
Todas as mãos com exceção dos coros, e a não ser a de Porquinho, levantaram-
se imediatamente. Depois, Porquinho também levantou a mão embora de má
vontade.
Ralph Contou.
- Então o chef sou eu. (GOLDING, 2003, p.26)

Jack percebe o seu domínio e sua capacidade de manipulação sobre os demais e


principia a recrutá-los, chamando para seu lado, oferecendo comida e abrigo. Ele então,
começa a ser político na situação para favorecer o seu lado e se opor a Rhalf; esse último,
por suas características psicológicas, a saber, é democrático, preocupa-se com os demais
e os menores, utiliza da razão para elaborar uma forma de ser encontrado, cria regras a
partir de assembleias com as crianças, não segue o Jack, e se firma como liderança de um
pequeno grupo de crianças que pendem entre a heteronomia e a autonomia.

Calem -se – disse Ralph, distraidamente. Levantou a concha. – Acho que


devemos ter um chef para discutir as coisas.
- Um Chef! Um Chef!
- Eu devo ser o Chef – Disse Jack com ingênua arrogância, - pois sou chefe do
coro e solista. Posso cantar em dó sustenido.
Outro Vozeiro
- Bem, então – disse Jack, - eu...
Hesitou. O menino moreno, Roger, mexeu-se afinal e falou.

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- Vamos fazer uma votação!
-Sim!
-Votar por um chef!
-Vamos Votar...
O brinquedo de votar era quase tão divertido quanto a concha. Jack começou
a protestar, mas o clamor passou do desejo geral de um chef para uma eleição
de Ralph por aclamação. (GOLDING, 2003, p.25)

Nessa lógica, o que se instala na obra é uma luta entre dois grupos distintos: um
liderado por uma pessoa na anomia, que faz o que quer, e é seguido por crianças na
heteronomia; e o outro liderado por Ralph, que demonstra ter desenvolvido a autonomia
moral e trabalha pelo bem coletivo, seguido de poucas crianças.
- Ouçam todos. Preciso de tempo para pensar numas coisas. Não posso decidir
o que fazer exatamente. Se isto não é uma ilha, não demorarão a nos procurar.
Por tanto, precisamos saber se isto aqui é uma ilha. Todo mundo deve
permanecer aqui. Esperar. Não ir embora. Três de nós – se levarmos mais vai
ser bagunça e vamos nos perder -, três de nós iremos numa expedição e
descobriremos se estamos numa ilha. (GOLDING, 2003, p.27).

Após recrutar boa parte dos garotos, Jack percebe que do lado de Ralph possuem
fogo, que é feito com os óculos do porquinho (um dos poucos que permanecem com o
Ralph e também tem uma personalidade autônoma), então Jack e seus garotos decidem
roubar os óculos do outro grupo de garotos, pois para Jack ele tinha tudo, menos o fogo,
que seria a sua principal arma contra Ralph, O conflito entre os dois grupos de garotos é
estabelecido por parte do Jack após roubarem os óculos do porquinho e chega em seu
ápice. Por sua vez, Porquinho vai atrás reivindicar, informando que eles não têm o direito
de invadir o espaço e retirar algo que era dele. Tenta sensibilizar também alegando que
não enxerga sem os óculos. Para fazer uso da fala, Porquinho utiliza de uma concha,
objeto empregado pelas crianças desde o começo como representando o direito a fala e a
opinião. Quem pegava a concha podia falar. Nesse caso, a concha era um representante
da sociedade, da moral, do respeito e do regramento social.

- Como vocês veem – disse Ralph, - precisaremos de caçadores que nos tragam
carne. E outra coisa.
Levantou a concha dos joelhos e olhou em volta, para as caras castigadas do
sol.
-Não há adultos. Vamos ter que cuidar de nós.
O grupo murmurou algo, mas logo se calou.
- Uma coisa a mais. Não é possível todo mundo falar ao mesmo tempo. Vai ser
preciso levantar a mão, como na escola. Levantou a concha a altura do rosto e
olhou em volta.
- Então eu passarei a concha para quem quiser falar. (GOLDING, 2003, p.38).

A concha se torna um objeto de valor para as crianças a partir do momento que


elas percebem que a pessoa que tiver a concha em mãos tem o direito de fala. Ela

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simboliza respeito e autoridade. Mais adiante, podemos observar quando acontece uma
ação para o roubo da concha.

Porquinho ficou em cima deles, ainda segurando a concha.


- Eram Jack, Maurice e Robert – disse Ralph. Não estão se divertindo?
-Pensei que ia ter asma.
-Pro diabo com a sua asma!
-Quando vi Jack, tive certeza de que ele vinha buscar a concha. Não sei por
quê.
O grupo de meninos olhou com respeito afetuoso para a concha. Porquinho
colocou-a nas mãos de Ralph e os pequenos, vendo o símbolo familiar,
começaram a voltar. (GOLDING, 2003, p.155)

O uso da concha faz com que todas as crianças dediquem sua atenção ao
Porquinho, contudo isso o leva a extrema vulnerabilidade frente ao Jack, que o vê como
uma ameaça a sua liderança.
Jack fala que eles precisavam do fogo e por isso teve que roubar dele, Ralph fica
irritado e diz que eles não precisavam roubar os óculos, era só pedir que eles entregariam
para acender o fogo. Jack acreditava que, para ter mais poder, precisava conquistar mais
territórios e mais pessoas daquela ilha, garantindo lhe comida, fogo e segurança, levando
em consideração que todos os garotos, ainda muito novos necessitavam da sensação de
proteção e de cuidados. Após Porquinho reivindicar seus direitos de reaver os seus óculos,
o grupo de Jack joga uma pedra em cima do menino, matando instantaneamente. Ressalta-
se que a liberação para a barbárie já havia sido dada em cenas anteriores a essa quando
da morte de outra criança em função desse mesmo grupo, conforme a cena da morte do
Simon, um dos meninos que se guiava pela autonomia moral:

Jack pulou na areia.


- A dança! Vamos! Dancem!
Correu tropeçando pela areia funda até o espaço de pedra além da fogueira.
[...]
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem sangue!
De novo, a cicatriz branca azulada abriu-se sobre eles e a explosão sulfurosa
desabou. Os pequenos gritaram e correram loucamente, fugindo da beira da
floresta; um deles, de puro pavor, chegou a romper o círculo dos grandes.
-É ele! É ele!
O círculo tornou-se uma ferradura. Uma coisa rastejava para fora da floresta.
Era escura, indefinida. O grito agudo que surgiu ante bicho parecia de dor. O
bicho precipitou se na ferradura.
Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem sangue! Acabem com ele!
As lanças caíram e a boca do novo círculo tremulou e gritou. O bicho estava
de joelhos no centro, os braços levantados sobre o rosto. [...] pulando no bicho,
gritando, gritando, mordendo, rasgando. [..] a maré subiu mais e vestiu com
seu brilho o cabelo crespo de Simon. (GOLDING, 2003, p.166, 167,168).

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Após a morte do porquinho, Ralph foi perseguido pelo grupo de garotos do Jack
que queriam matá-lo. Para caçá-lo atearam fogo por toda ilha e com lanças em suas mãos
embrenham uma perseguição. Em meio ao caos aparecem pessoas do exército para
resgatar os garotos. Ao avistar os adultos, as crianças param imediatamente a caçada ao
Ralph, posto que esses representam uma liderança maior e mais forte que a do próprio
Jack. O próprio Jack entra em lugar de submissão perante essa presença, mostrando que
também tem elementos de heteronomia.

Um oficial naval estava de pé na areia, olhando para baixo, para Ralph, num
espanto cauteloso. Na praia, por trás dele, havia um escaler com os remos
levantados, nas mãos de dois marinheiros. No banco traseiro, outro marinheiro
segurava uma metralhadora. [...] Ralph olhou-o em silêncio. Por um instante,
vislumbrou uma imagem fugaz do estranho encanto que outrora dominara as
praias. Mas a ilha estava carbonizada como lenha usada... Simon Morrera... e
Jack havia... As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces e soluços
sacudiram-no. (GOLDING, 2003, p. 218).

É nesse contexto geral de divisão de grupos, busca por sobrevivência, disputa e


guerra entre os dois lados que o livro se desenrola permitindo uma ação mais apurada do
comportamento dos jovens na ilha. Para tanto, a seguir faremos uma apresentação de
como ocorre o desenrolar da moralidade no desenvolvimento humano.
A análise dos personagens ocorreu a partir de diversos elementos, por exemplo, no
início da estada na ilha, Ralph decide fazer uma votação para ver quem seria o líder do
grupo, demonstrando uma atitude de autonomia. Desde o início, ele consegue pensar em
uma democracia para o grupo onde todos precisam estar de acordo ou a maioria necessita
entrar em um único acordo. Além disso, mesmo no momento de maior pressão em que
sua vida estava em risco, ele não cedeu aos caprichos do outro grupo.
Jack Gritou por sobre o barulho
- Vá embora, Ralph. Fique na sua parte da ilha. Esta é a minha ponta e a minha
tribo. Deixe-me em paz.
-Você pegou os óculos de porquinho – disse Ralph, sem fôlego. – Você precisa
devolvê-los. (GOLDING, 2003, p.193)

É importante ressaltar a contradição posta pelo livro O Senhor das moscas: as


crianças são criadas em uma sociedade extremante “civilizada”, são educadas em escolas
militares e são ensinadas desde pequenas que precisam de regras para se portar em meio
social. Nessa esteira, ocorre a obediência pura à regra estabelecida pela sociedade
Londrina, a vivência no colégio militar teria sido a garantia para o estabelecimento de
regras adequadas de convívio na ilha, o que não ocorreu.

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Novamente Piaget (1994) oferece elementos para entender que relações educativas
coercitivas apenas reforçam a heteronomia moral e não auxiliam na chegada à autonomia
moral. Aquelas crianças careciam de ambientes cooperativos favorecedores da construção
de novas tendências morais.
Para fechar a análise, cabe ressaltar que a luta entre heteronomia e autonomia moral
apresentada no livro produz efeitos na percepção do que pode acontecer na sociedade em
função de uma tendência moral pouco apurada como é o caso da heteronomia moral.
Basta um líder tirânico, com tendências perversas, pouco preocupado com a maioria e o
bem coletivo, que uma parcela significativa da população o seguiria. A distopia
apresentada se faz atual nesse sentido, por apresentar elementos muito reais na
contemporaneidade.

Considerações Finais

O objetivo deste trabalho foi fazer uma avaliação das características morais dos
personagens da obra, através de um olhar que permite verificar suas estruturas de
desenvolvimento moral. Assim, a luta que eclode na ilha a partir de dois grupos distintos
de garotos se dá, justamente, por possuírem elementos de estruturação moral amplamente
diversos: de um lado um líder democrático e preocupado pelo bem coletivo (autonomia
moral), unido aos poucos garotos que também compartilham de tal condição e, de outro,
um líder tirânico, pautado pelos próprios desejos e sem preocupações coletivas (anomia
moral) seguido da maior parte das crianças da ilha, que necessitavam de uma liderança
forte em função de sua fragilidade emocional, cognitiva e moral, em crianças mais novas
e, em sua maioria, na heteronomia moral.
As relações sociais no início da história eram pacíficas e todos estavam tentando
sobreviver ao acidente, tendo a esperança de serem resgatados; contudo, no decorrer da
trama e a ascensão de Jack, o seu grupo passa a aceitar que não sairia daquela ilha, que
aquela era a realidade e que deveriam fazer de tudo para sobreviver, criando uma
realidade paralela às regras da sociedade. A luta estabelecida entre Jack e Ralph foi
resultado de uma incompatibilidade entre visões estruturais cognitivas: uma pessoa na
autonomia moral não cede, mesmo em momentos de grandes tensões emocionais e
sociais, aos caprichos dos desejos individuais; por outro lado, um cidadão na heteronomia
moral está em busca de um líder que lhe ofereça segurança, comida, abrigo e sentimento
de pertencimento, podendo deixar de lado os ditames do convívio social.

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A morte de Simon permitiu refletir que Jack não estava de brincadeira e que ele
não se importava com nada e nem com ninguém ele só queria ser soberano diante aos
demais. Ao matar Porquinho, ratificou com a morte dos seus colegas seu lugar de
autoridade maior dentro da ilha. Como restou somente um personagem, cabia a ele matar
para garantir a soberania total, assim toca fogo em torno de Ralph, para que ele fosse pego
e assassinado por ele ou Roger. As cenas finais mostram não somente até que ponto Jack
estava disposto a ir para garantir seu lugar, como também, seu poder de liderança, suas
palavras eram extremamente convincentes ao ponto de fazer com que as pessoas de sua
tribo o seguissem, lhe obedecesse e matassem em seu nome.
A distopia tem, entre outros aspectos, a capacidade de fazer pensar sobre as
possibilidades do devir humano. Essa literatura lança mão do inesperado, do impossível
e até do inverossímil e dessa forma, alerta para os rumos que a sociedade traça para si.
Impossível não achar semelhanças com a realidade em tempos em que se criam verdades
paralelas a partir da disseminação de falsas notícias, de crenças na liderança de um mito
que defende a tortura, a morte e o extermínio de grupos sociais. Talvez, a falência da
sociedade esteja pautada (entre tantas outras coisas) no desarranjo das estruturas
cognitivas/morais, haja vista que tais são dependentes de um ambiente mais cooperativo
e de uma educação pautada para além da aquisição de conteúdo específicos.

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