INÁ DE CASTRO - Imaginário Político e Território

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1 Leia também: O Mito da Necessidade Ind Elias de Castro Geografia e Modemidade Paulo Cesar da Costa Gomes Trafet6rias Geogréficas Roberto Lobato Corréa F Brasil: Uma Nooa Poténcia Regional 4 na Economia-Mundo Bertha K. Becker e Claudio A. G. Egler Brasil: Questies Atuais da Reorganizagéo do Territério Ind E. Castro, Paulo Cesar C. Gomes & Roberto L. Corréa (orgs, Ind Elias de Castro Paulo Cesar da Costa Gomes Roberto Lobato Corréa (organizadores) LORAGOES GEOGRAFICAS -PERCURSOS NO FIM DO SECULO veer Best IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO: NATUREZA, REGIONALISMO E REPRESENTAGAO Ind Elias de Castro Introdugio Considerar imagindrio politico e territ6rio como ter- nos que possam articular-se coerentemente numa discus- ‘sGo académica decorre da acepeio mfnima da politica co- ‘mo controle das paixdes humanas e do territério como © suporte material para a convivéncia, necesséria & liberagio -da energia inerente aquela pulsio. O imaginério social, por ‘sua vez, 6 0 cimento dessa coeréncia por tomar vistvel e interpretvel os simbolismos presentes nas relagdes dos homens entre si e com o seu meio, os quais materializam- ‘se nos diferentes modos de organizagdo sécio-espacial. E neste sentido que imaginsrio politico, territ6rio e natureza encontram-se entrelagados em situagdes concretas, expli- cando algumas das questées-chave, tanto da representagao territorial da politica como o sentido dos seus discursos das bandeiras regjonalistas Desse modo, a resposta ao desafio de compreender 0 155 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS mundo em que se colocam os gedgrafos requer também considerar a forga dos s{mbolos, das imagens e do imagin4- rio como parte integrante dos contesidos da disciplina Constituindo a base das representagdes que orientam as diregdes das aces dos homens sobre 0 espago, o dominio do simbélico possui um inegivel valor explicativo. Mais do, que fonte de sobrevivéncia, a terra € um registro simbélico por exceléncia e, apesar de a racionalidade modema ter conquistado os espagos objetivos das relagies sociais, as representagdes permanecem nos dispositivos simbélicos, nas priticas codificadas e ritualizadas, no imagindrio ¢ em suas projegdes. Esta é certamente uma questiio para a geografia na medida em que ela é conhecimento do espago, mas tam- bem um modo de vé-lo, de interpreté-lo e de codificé-lo, tanto através de seu discurso académico como por inter= médio de seus avatares nos discursos do senso comum. Por tanto, sendo a terra desde a aurora dos tempos fonte de simbolos e de significados, o diseurso geogréfico, comesan- do por aquele contido nos relatos dos viajantes do mundo antigo até o dos intérpretes contemporineos do espago glo- balizado, contribui com sua ret6rica para construir alle mentar imaginério social. Portanto, se a interpretagio des te imagindrio 6 necessaria para a construgio do conhed mento, a geografia, nada inocente no assunto, deve mobi zr seus recursos intelectuais para participar desta tarefa, Como contribuigio, este trabalho desenvolve-se et tomo da idéia central da necesséria interagio entre a tei 0 homem como fundadora do imagindrio social. Mais d que inspirador dos mitos ¢ base da organizagao dos ritual 156 IMACINARIO POLITICO & TERRITORIO que compéem 0 imaginario, 0 espago é ao mesmo tempo Continente © contetido dos seus signos e simbolos. No ‘entanto, por se tratarem de relagdes humanas, as “paixées” a elas inerentes Ihe conferem dimensio politica. Assim, 0 imagindrio social desdobra-se em imaginario politico e, ambos, por sua matriz espacial e por serem informados pela geografia dos lugares, encerram em si o imaginério geogratfico. Assim, mais do que uma preocupagio em buscar uma feito de imaginéxio geogréfico frente a acepgio de Beinn social, © objetivo aqui proposto é duplo. Pri- io, argumentar em favor da inseparabilidade entre ima- gindrio, politica e territ6rio; segundo, apontar as possibili- es emptricas do conceito de imaginério para a compre- asio das formas de apropriagio do espaco pela sociedade. ta-se de propor o inverso do que ha muito tempo tém ito os antrop6logos ao utilizarem os valores simbélicos do ago das sociedades como um recurso empfrico funda- tal para compreender o seu imagindrio e conhecer os 0s fundamentais da sua organizagio. A utilizagao dos conceitos de imaginagio, imagem e io tem sido cada vez mais freqtiente em diferentes de pesquisa geogréficas, desde as incursées fenome- ogicas da Geografia Humantstica até as discusses sobre ginagbes geogrdficas e a renovagiio da geografia cul- . Sinal da pertinéncia do tema é a presenga do termo gindrio entre as palavras da geografia que comp5em 0 rio organizado por Roger BRUNET (1992) ¢ como capttulo da enciclopédia de geografia onganizada por AILLY et al. (1995). As abordagens geograficas dos pro- EXPLORAGOES GEOGRAFICAS blemas relativos ao imagindrio indicam a sensibilidade da disciplina a este percurso nas ciéncias sociais, arnpliando as possibilidades empiricas de utilizagio do conceito, ainda polémico e, durante muito tempo, chasse gardée da filoso- fia, da antropologia ¢ da sécio-linglistica. Certamente é na competéncia geogréfica sobre o espago que reside sua con- tribuigdo ao debate e & elaboragdo de novas questdes que, de um ponto de vista académico, representem ui avango tanto para o tema em geral como para a disciplina em par- ticular, Em sua tarefa de produzir conhecimento sobre 0 ¢s- aco, a Geografia funda também um discurso sobre 0 espa {go (BERDOULAY, 1988). Mas quem Ihe da sentido e consis- téncia, sancionando-o, é a sociedade, com suas contradi- «es, pulsdes, desejos, conflitos — em sintese, palxBes; po- rém necessariamente contextualizadas no tempo e no espa- 0. Neste sentido, como a ambigio de compreender ¢ ex- plicar 0 espago através de uma racionalidade objetiva, com a pretensio de exclusividade na apreensio do real ¢ na ela- boragao de um discurso univoco sobre ele, esté epistemo logicamente em crise, novos caminhos, mesmo que polé- ‘micos, devem ser tentados. Em seu percurso como disciplina académica, a Geo- grafia tem incorporado conceitual e metodologicamente @ sociedade, ou seja, o fazer social e sua dindmica. Prisionel- ra da razio iluminista, a objetividade necessiria ao fazer cientifico expulsava de suas argumentages tudo que niio tivesse existéncia concreta ou que ndo pudesse ser explicar do de acordo com a razio, faculdade que tem o ser humae no de avaliar, julgar, ponderaridéias universais. Nesta pers: 158 IMAGINARIO POLITICO & TERRITORIO ppectiva, a rfgida busca, na disciplina, de fatores causais de- finia o contetido explicativo dos fatos geogréficos em fun- ‘gio da possibilidade de claras ¢ objetivas relagdes de causa e efeito, qualquer referéncia 4 imagem, sfmbolo ou imagi- nério s6 merecia status explicativo se subordinada a légica ‘objetiva da base material, sendo esses conceitos natural- ‘mente decodificados como ideologia. A incorporagdo des- 'ses conceitos, embora ainda objetos de polémica, através abordagem fenomenolégica da Geografia Humanistica mntribuiu para ampliar a agenda temdtica e o campo em- ico da disciplina, No entanto, o momento presente 6 im- ite por estimular a busca de novos percursos intelec- is para a explicagio geogréfica, que devem ir além tanto rigidez de um esquema explicativo universal como da ilidade imaginativa e sensorial da corrente humanista. necessidade de as ciéncias ampliarem os limites explica- mais além da razio da matriz iluminista, sem perder vista 0 rigor do método, revela-se mas erfticas cada vez ressonantes ao paradigma cientifico vigente, identifi- por MORIN (1996) como da simplificaco, numa clara A sua perspectiva de que fendmenos complexos pos- ser reduzidos as sts causas mais simples. A contribui- desta critica esté na possibilidade de compreensio da ;plexidade dos fernOmenos pela incorporagao dos con- de suas significagées simbdlicas, 0 que amplia 0 co- imento para além do dominio das causalidades con- , visiveis e objetivas. Questdes novas esto sendo colocadas para os indivf- € para a sociedade e, conseqiientemente, para as dis- que se propdem ampliar o conhecimento sobre a 159 [EXPLORAGOES GEOGHAFICAS dinfmica e interagdo entre ambos com o espago. As ima~ gens, sua extensio vertical e horizontal, impéem contetidos novos as ciéncias sociais pela ampliago do mundo cotidia- no, pela incorporagio de um novo cosinos (propiciado pe- las pesquisas espaciais) no qual elas substituem os relatos do cosmos dos antigos. H uma nova dinamica das imagens pela continua produgdo de simbolos, tomando mais nume- rosos © complexos os aparatos para sua produgzo. Além disso, novos modos de apreensio e de vivencia dos sfmbo- Jos produzem importantes efeitos sobre o comportamento individual e coletivo; sobre a politica e o processo decisério sobre o territério, enquanto produto e continente — na- da passivo ou inocente — do contetido social ‘Todas estas questdes apontam para a relagio necessé- ria entre 0 imagindrio e a epistemologia. Primeiro, o papel heuristico do imagindrio, cujos contetidos simbclicos das imagens, do impreciso, das contradigSes constituem desa- fios colocados & investigacao cientifica, em qualquer campo, hha muito tempo. Segundo, e decorréncia natural do primei- ro, considerar conceitual e empiricamente 0 imaginario constitui uma altemativa metodolégica para lidar com a complexidade dos fendmenos geogréficos; ou seja, com a. rmultiplicidade das suas mediagdes e dos seus sfmbolos, com 4 incorporagao explicativa do nio racional e do emocional @ com o ressurgimento do fendmeno, rejeitado pelas ativida- des racionais desde o final do século XVIII. (© campo das relagées entre a politica, como controle da agio individual e coletiva, e o espago, como continente destas agdes em fungio da inserglo territorial fundadora do fato poltico, revela um amplo ¢ estimulante Ieque de 160 IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO questdes que se colocam para a agenda de pesquisas da ‘geografla contemporiinea. Neste sath, hoe que 0 espa- {$0 googrifico é 0 espago da politica, apesar de & primeira vista parecer uma banalidade, serve como ponto de partida, Para uma discusstio dos significados dos conteddos polti- os do espago e das mediagées dos contetidos espaciais no fazer politico. Se aceitamos como definigio minima de os- Pago “o conjunto indissocifvel de sistemas de objetos e sis- temas de agdes” proposto por Milton SANTOS (1996), po- demos acrescentar que hé na idéia de “aco” um forte nexo ‘comportamental e decisional, o que nos permite reconhe- cer que 0 espago 6 bem mais que uma instincia politica, sendo mesmo parte integrante da sua esséncia. A idéia de €sséncia aqui é forte e, certamente, vista com reservas nas abordagens niio espaciais da politica. Porém, como nosso ‘Problema é demonstrar que espago e politica sio indisso- -cidveis, tentaremos progressivamente elaborar e defender ‘esse argumento, Partindo da politica como uma palavra-chave e indo mais além do seu significado institucional, ou seja, a tralizagdo da organizago da vida politica e social no les, qualquer que seja o niimero de seus integrantes. outras palavras, como a convivéncia humana 6 fonte cial de conflito, o sentido da poltica 6, justamente, 08 seus limites. A politica é, portanto, 0 meio controle das paixées; embora progressivamente encaste- 161 Oe EXFLORAGOES CEOCRAFICAS Jada na esfera pablica, permanece também como regulagio na esfera privada. Na realidade, o processo de socializagio a0 mesmo tempo em que diferencia a espécie humana dos aanimais, estabelece as condigoes para a liberaglo das pul- ses mais caracteristicamente humanas, que véo desde a afetividade e generosidade até o 6dio, inveja ¢ ambigdo. Se © dominio dos dots primeiros estabelece as bases para a paz e a cooperagdo, a intervengio de qualquer um dos outros trés eria as condigées para disputas. Esta perspect- va de um convivio ao mesmo tempo instituinte do ser social e intrinsecamente conflituoso constitui o paradoxo que funda a politica na esfera social. pensamento politico moderno, desde Maquiavel, passando por Bodin, Hobbes, Rousseau, tinha como pro- bblema central a organizagio de um sistema de regras que permitisse regular controlar os interesses, avatares das paixées humanas, de modo duradouro, Ao Estado Moder- ‘no, com seu aparato institucional e legal de controle, indi- Vidual e coletivo, ¢ de monopélio da violéncia legftima, tem cabido, hé trés séculos, a tarefa de submeter e estabelecer 605 limites dos conflitos sociais em recortes espaciais parti- culares. Este modelo de organizagio da vida social em Es- tado territorial, dominante na modemidade, deriva da in- separabilidade entre espago e sociedade ¢ entre sociedade « politica. preciso acrescentar aqui que o termo socieda- de, além da acepgao minima de associagdo, contém tam- bém a idéia de um balizamento de espago ¢ de tempo Portanto, cada sociedade est contextualizada pela sua his- t6ria e pela sua geografia; como corolétio, também as rela Bes politicas no seu interior. 162 IMACINARIO POLITICO E TERRITORIO ‘A compreensao de que uma forma duradoura de con- trole dos conflitos scixisrequeria uma clara e segura deli mitagio territorial foi a questo central de O Principe, de Maquiavel. Circunscrevendo 0 “politico” em seu carter puro e irredutfvel, Maquiavel reconhece 0 caréter confli- tual do corpo social e aponta a necessidade de controles legais € morais (este termo tenta assimilar a “idéia regula- dora” contida no seu conceito de virtu), mas volta-se para uma realidade empfrica, na qual a formula da base territo- vial para a estabilidade das condigBes para 0 exercfcio do poder do principe e da riqueza da sociedade era funda- mental. Sua questdio mais importante era a divisio da Itdlia daquele tempo em cinco centros de poder: o Papa, Veneza, Napoles, Milio e Florenga, 0 que a tomava vulneravel, “sem um chefe, sem ordem, batida, espoliada, dilacerada, invadida e suportando todos os infortdinios". Na realidade, Maquiavel tinha em mente o novo fendmeno das nagées- estado, como a Franga, cuja unidade e autonomia conquis- tadas contra a dispersio feudal e o poder espiritual dos Papas encontravam-se em plena consolidagio. Para ele, uisito da lideranga) so os dois polos da agio politica, embora qualificatives humanos, sio engendrados ir da base territorial da agao. A discussio da inseparabilidade entre espaco e polti- refere-se, portanto, & questio da violéncia fundadora relagdes sociais e 4 necessidade de formas institucio- is e de recortes territoriais para o seu controle, Bem antiga que os postulados do Estado Modemo, esta 163 EXPLORAGOES GEOCHAFICAS pperspectiva 6 encontrada em todos os pensadores politicos, qualquer que seja a sua época, € fundamenta a existéncia de um imagindrio politico, constituido no paradoxo da ne- cessidade social de estar junto e na laténcia do confronto gerado na satisfagio desta necessidade. Para a discussio da evidencia do espago como referente da agio politica, pelos seus contetidos materiais e simbélicos, e da politica como decisio que configura o espago € preciso recorrer a soci6- logos ou politélogos com sensibilidade espacial e a ge6gra- fos com sensibilidade politica. No entanto, nfo ¢ evidente que as discussdes contenham, de forma acabada, os argu- ‘mentos titeis a proposta da andlise da inseparabilidade con- ceitual de espago e politica. E preciso extrair fragmentos para reuni-los nesta construgio. Como percurso metodol6gico, optamos pela discus- so conceitual do imaginério social, que se desdobra em ‘imaginério politico, 0 qual por sua vez se alimenta do ¢ realimenta 0 imagindrio geogréfico. Como os termos ima- gem, imaginagao e imaginario tm hoje uma presenga forte nos trabalhos geogrificos, uma contextualizagio destes ter- mos em relagio ds suas matrizes intelectuais, mesmo que sumétia, pode ser titil como base de referencia. Nossa pro- posta de trabalho 6, portanto, a discussio do imaginério politico e sua utilidade conceitual e empfrica para ampliar a agenda da geografia politica e avancar 0 conhecimento sobre 0 espago geogréfico, especialmente seu desdobra- ‘mento empfrico representado pelo territ6rio, IMACINARIO POLITICO E TERRITORIO Do imaginério ao imaginério politico © termo imagindrio remete necessariamente as suas rafzes — imagem e imaginac3o, e conseqiientemente ao significado corrente de produto da imaginagdo e, como tal, sem possibilidade de existéncia concreta, opondo-se a ex- periéncia como fonte do conhecimento. Este 6 o primeiro, e fundamental, problema de atribuir ao vocsbulo um con- ceito academicamente itil fora das disciplinas que tém nas ‘imagens mentais ¢ psicoldgicas seu objeto de reflexio. Na realidade, a tenstio entre imagem/imaginagéo razdo como substratos do conhecimento e da busca da verdade é uma ‘questao colocada para os grandes sisternas metalisicos des- de a antiguidade grega. A busca da verdade em Sécrates, passando por Platio ¢ Aristételes, estabelecia que a tinica via de acesso a ela era a experiéncia dos fatos. Apesar de Platio e seus seguidores considerarem o mito uma possibi- Tidade para alcangar verdades indemonstréveis, gragas a sua linguagem simbélica e imagindria, as correntes raciona- listas que renegavam a imaginago por constituir fonte de erros ¢ de falseamentos impuseram-se progressivamente no pensamento ocidental. Foram, entio, completamente ‘exclufdas dos procedimentos intelectuais, a partir do século XVI, todas as reflexes que niio estivessem apoiadas na experiéncia e na razio como forma de acesso ao conheci- mento verdadeiro. Apesar do dominio das correntes racio- nalistas, a tensio entre os dois conjuntos de concepgées filos6ficas sobre as mais consistentes vias de acesso ao Conhecimento nto desapareceu completamente na moder- nidade ocidental. 165 EXPLORAGOES GEOGHAFICAS O primeiro desses conjuntos pertence & tradigio ilu- tinista que desvaloriza a imagem e a fungio da imaginagao pela contradigio entre imaginério e realidade conereta, que 86 pode ser apreendida pela raziio. A fungio da imaginagio 6, justamente, libertar-se da razdo e, portanto, negé-la, difi- cultando a compreensiio da realidade, Descartes, Pascal, Spinoza, Leibniz. denunciavam a imaginagao como o fim do progresso do conhecimento, atribuindo-Ihe as nogies de ilusto e fantasia, considerando-a o vazio da razflo, A exclusi- vidade do método proposto por Descartes como sinico meio de acesso a verdade cientffica, que invadiu todo o campo de investigagdo do saber verdadeiro, foi decisiva no fortaleci- mento do paradigma racionalista em todos os ramos da cincia modema. A imagem, produto do devaneio, do fal- seamento da razio, fot relegada a arte de persuadir dos pre~ gadores, dos poetas, dos pintores, sem jamais ter acesso & dignidade de uma arte de demonstrar (DURAND, 1994). O segundo, pode-se dizer, representa a heranga plato- nica que, embora de modo esporidico, fincou alguns ali- cerces para a erftica do domfnio da razio como tinica fonte de acesso a verdade. No século XVIII, Kant j4 elaborava a resisténcia a um racionalismo dogmético, fortalecida no século XIX, primeiro pela reagdo romantica aos excessos do mecanicismo e do materialismo cartesianos e posterior- mente pela revolugio filos6fica do final do século que res- gatou a imagem, ndo apenas como objeto do conhecimento tual, mas como todo objeto passfvel de uma representagiio (BERGSON, ef. SARTRE, 1984). No século XX, com Bache- lard e Sartre, imagem e imaginagao sio percebidas como faculdade de conhectmento e estado de conhectmento, 166 IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO senciais em nossa relagio com 0 mundo, Para esta relagao, © imaginério, sendo fungdo e produto da imaginagdo, in- corpora € reconstr6i o real. Trata-se, aqui, de percebé-lo como substantivo, como mediagiio da realidade. (SARTRE, 1980; VEDRINE, 1990; BALANDIER, 1994, 1997; CasTO- RIADIS, 1997) ‘Também os avangos da psicologia, especialmente com Freud, que apontou o papel decisivo das imagens como mensagens que chegam 2 consciéneia a partir do incons- ciente, abriram caminho para a revalorizagiio da imagem, do simbélico, que na psicologia permitiu, com Jung, 0 res- gate da importineia do imaginério para além das referén- as & cultura ocidental, de matriz. européia, Ao identificar, em seu método terapéutico, os arquétipos, ou seja, as ima- gens psiquicas do inconsciente coletivo, que constituem uma heranga comum de toda a humanidade, o disefpulo de Freud estabeleceu também novos elementos para a discus- sio e compreensio do imagindrio social fator de conheci- ‘mento do comportamento individual e coletivo. As discusses acima permite uma primeira tomada de posigio conceitual do imagindrio como a forga atuante da idéia e da representagio mental da imagem. Neste sen- tido, 0 imagindrio constitui uma energia que se formaliza individual e coletivamente, materializando-se em agdes in- formadas por imagens ¢ simbolos (DUBOIS, 1995). Des- vendar o imaginério significa, pois, revelar 0 substrato sim- olico das agdes concretas dos atores socias, tanto no tem- po como no espaco, Em sintese, 0 conceito de imaginario, enquanto subs- tantivo da imaginagio produtora, ou seja, a mediagaio entre 167 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS © mundo interior e o exterior, entre o real ¢ 0 imaginado, supée a ntilizagdo de sfmbolos, signos e alegorias. Se como articulagao entre realidade, discurso e conhecimento o con- ceito de imaginsrio pode ser empiricamente dtl, a extrema ‘confusio no uso de termos a ele relacionados, pela desvalo- rizagdo da imaginagio nas correntes racionalistas do pensa- mento ocidental, torna-o um conceito de utilizago sempre polémica. [Nao se trata aqui de reproduzir a histéria e as reflexes sobre a polémica em torno do valor heurstico da imagem e dda imaginagao nos sistemas metafisicos que tém, desde a antiguidade clissca, estruturado nossos paradigmas na bus- ca do conhecimento através da ciéncia. Autores como SAR- ‘TRE (1980); DURAND (1992, 1994); CASTORIADIS (1991, 1997); VEDRINE (1990) jé 0 fizeram, e muito bem. Nosso objetivo, ao trazer fragmentos desta discussto, 6 argumentar em favor do simbélico e do imaginério como objetos de reflexio académica e como possibilidade metodolégica de abordagem do real, também nas pesquisas empfricas que se propZem a ampliar © conhecimento sobre 0 espago. Trata- se de alimentar 0 caudal das correntes geogréficas que in- corporam as representagies sociais como mediagoes funda rmentais ao conhecimento da sociedade e do espago, contri- seu significado para a geografia. las mediagées simbolicas e que no hé solugto de continu: dade, para o homem, entre o imagindrio e o simbdlico, sen 168 uindo com a articulaglo necesséria entre objetos coneretos seus conteridos simbélicos, procurando compreender 0 Partindo da proposta de DURAND (1994) de que todo pensamento humano 6 representagio, quer dizer, passa pes IMACINARIO POLITICO & TERRITORIO do entio “o imaginario esta conexio obrigat6ria, pela qual se constitui toda a representagio humana‘, podemos acres- Centar que esta conexao se faz necessariamente no espago, como fonte inesgotvel de signos e simbolos do imaginéio social. Deve ser acrescentado, porém, que mio ha unanimi- dade nas correntes que reconhecem a imaginagio como fonte de conhecimento, Estas desdobram-se na perspecti- va do sfmbolo como base da representagio humana, como indica Durand, ou na imaginago como objeto de reflexio que nio pode ser excluido pela razlo, como quer Sartre, ou fonte de criagio, psiquicamente fundamental, como aponta Bachelard, ou ainda com Castoriadis, como alterna- tiva aos limites impostos pela rigidez explicativa do mate- rialismo histérico e seu conceito de ideologia. Mas, qual- quer que seja a perspectiva dada a questo, deve ser ressal- tada a posigtio de BALANDIER (1997), para quem “o imagi- nério permanece mais do que nunca necessério, sendo de algum modo 0 oxigénio sem o qual toda a vida pessoal e coletiva se arruinariam’ Por tudo isto, tem sido cada vez mais consensual no novo paradigma cientifico a incorporagio da imagem, do simbélico e do imagindrio como problemas que devem ser ‘eonsiderados na busca do conhecimento. Paralelamente, ibém 0 espago como objeto e como continente/contet- simbélico tem sido considerado nas pesquisas orienta- na dirego desse novo paradigma. Bachelard, cujas re- des ajudou a delinear este novo espirito cientifico, res- a importncia da imaginagio e do imagindrio, argu- ido sobre a referéncia fundamental de ambos & na- © a0 espago; estes como componentes do psiquismo 169 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS humano ¢ como referencias obrigat6rias para a compreen- sfio do ponto em que se cruzam ciéncia e poesia, razdio € devaneio. Em sua interpretagiio do espitito cientifico € incorporada a criatividade do espfrito por via da imagina- ‘¢lo, associada & experiéncia com a natureza € com 0 espa- 0, para uma continua retificagio dos conceitos ¢ remogio de obstéculos epistemolégicos colocados pelo apego & ex- periéncia como ponto de partida absoluto. ‘Apesar da sua rejeigio inicial das imagens pelo risco das metéforas enganadoras que clas implicam, Bachelard apontou, na fase final da sua obra, a importineia da imagi- nagio, desenvolvendo simultaneamente uma dupla feno- menologia do imagindrio: na ciéncia e na poesia. Incor- porando o papel do simbolismo imaginério na representa- fo a discussiio dos limites do debate entre as correntes racionalistas e realistas, criticou a eneruzilhada dos cami- hos entre realismo e racionalismo que produz 0 duplo movimento pelo qual a ciéncia simplifica 0 real e complica a razio. Para 0 autor, a imaginagio € dinamismo organiza- dor e este é fator de homogeneidade na representacdo. Para ele, longe de ser faculdade de formar imagens, a ima- ginagio ¢ poténcia dinfimica que “deforma” as e6pias prag- maticas fornecidas pela percepsaio (PESSANHA, 1984). Esta ‘iltima remete & representago, as suas metéforas e aos seus simbolos. Sua extensa obra sobre a motivagio simbéli- ca contida nos elementos terrestres — terra, fogo, dgua © ar — indica o carter primitivo, psiquicamente fundamen- tal da imaginagio criadora e o papel importante que a assi- milagdo subjetiva joga no encadeamento dos simbolos e de suas motivagies. 170 IMAGINARIO POLITICO & TERRITORIO ‘Além dos elementos terrestres presentes nas refle- xGes do fil6sofo, também o espago é interpretado como um arquétipo, como um elemento essencial da estrutura psico- I6gica do individuo. Em sua Poética do espago, sio desven- dados os “valores do espago habitado”, “o ndo-eu que pro- tege 0 eu”. O espago da casa constitui “a concha protetora criadora de imagens que permanecem guardadas, escon- didas nas profundezas da alma humana”. O valor simbélico do espaco est contido na sua proposta de pesquisar a topofilia para “determinar 0 valor humano dos espagos de posse, espacos proibidos a forgas adversas, espagos ama- dos”. A relagio psicoldgica do homem com 0 seu espago encontra-se também na base de sua proposta de uma to- poandlise, ou seja, um estudo psicolégico sistemético dos lugares fisicos da nossa vida fntima. E importante reter 0 elo afetivo entre a pessoa e 0 lugar, ou ambiente fisico, ‘como um componente do imagindrio social e das paixdes que constituem os alicerces das relagdes sociais. Recor- endo ao que foi dito no infcio, na politica, quando paixdes transformam-se em interesse, também a relaglo afetiva ‘com 0 espago participa desta mudanga. Ou seja, 0 espago ‘contém os sfmbolos do imaginério social e é um compo- nente dele, tanto em sua dimensio emocional como mate- rial, e por isso um campo de disputas entre interesses pri- vvados de individuos ou grupos. Na perspectiva de que a realidade é eriada pelo ima- o social e niio uma mera representagio das imagens reflexos de um real distorcido, Castoriadis aprofunda discussio entre imagindrio e representagio como meios conhecimento e abre novo campo de polémica, agora im EXPLORAGOES CEOGRAFICAS IMACINARIO POLITICO TERRITORIO. também nas hostes do materialismo hist6rico. Utilizando a imagem e a imaginago na proposta de uma nova perspec- vistas sempre como institufdas porque foram reconhecidas tiva tedrica para compreender o social, em oposigio tanto como maneiras de fazer universais, simbolizadas e sancio- a0 sono dogmatico do ser determinado, contido no materia nadas pelos seu rituais. lismo marxista, como & compreensio do imagindrio como Em trabalho mais recente, Castoriadis vai ainda mais especular, como reflexo e como fictfcio, o autor propoe longe e retoma o conceito de imagindrio social, diferen- t como conceito de imagindrio “a criagdo incessante e essen- ciando a imaginagéo da imaginagéo radical. Esta ltima | cialmente indeterminada (social-historica e psfquica) de fi- significando 0 imagindrio social instituinte é central para a guras/formas/imagens, a partir das quais somente € possf- sua reflexio. Para ele, a realidade 0 é porque existe imagi- vel falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos rea- nagéo radical e imagindrio instituinte. Definindo seus ter- lidade e racionalidade sio seus produtos.” Nesta perspecti- mos, duas conotagdes sio atribufdas & imaginago: a pri- va, seu livro A instituigdo imagindria da sociedade, mais do meira estabelece a conexio com a imagem, nio apenas que um projeto teérico sobre a sociedade ou a hist6ria, 6 visual, mas também com a forma; a segunda relaciona-a um projeto politico, pois tem o objetivo da elucidagao criti- com a idéia, com a invenglo, ou seja, com a criagdo, repro- ca da verdade, 0 que é indissocifvel de uma finalidade, dutiva ou combinatéria. Seu conceito de imaginagéo radi- para a qual se propde uma agao. cal opie-se ao de imaginagao simplesmente reprodutora e Nesse projeto, preocupado com os sistemas simbdli- sublinha a idéia de que essa imaginago (radical) vem antes cos sancionados que legitimam as instituigdes, 0 autor des- da distingao do “real” e do “imaginario” ou “fictfcio”. Pois ‘venda 0s ritos e simbolos que instituem uma ordem simb6- “6 porque existe imaginacio radical e imagindrio instituinte lica, sem se privarem da referencia ao real, mas que se sa que existe para nés realidade”. O termo imagindrio é, pois, cramentam no ritual. Como um ritual é uma prética pauta~ ‘aqui um substantivo e se refere diretamente a uma subs- da em valores simbélicos que organiza hierarquicamente ‘tincia, néo se trata de um adjetivo denotando uma qualida- | os simbolos de status e de poder, o autor aponta que toda de. Para o autor a sede do vids do imagindrio social insti- instituigdo, muito além das instituigdes religiosas, em tens tuinte € 0 coletivo andnimo e, de modo geral, 0 campo do seu ritual nfo racional, existe no plano simbélico. Sua ial hist6rico (CasTORIADIS, 1997). Em sfntese, o imagi- reflexio é dirigida entdo para a compreensio, pela socieda- niirio de que fala é entio “a criagio incessante ¢ essencial- de, da légica simbélica das suas instituigées, tanto pablicas te indeterminada de figuras, formas, imagens, a partir ‘como privadas, como fatores que pesamn na evolugio da sua quais somente 6 possivel falar-se de alguma coisa”. organizagao, pois “a conquista da légica simbélica das instls que denominamos “realidade” “racionalidade” sio tuigdes e sua racionalizagio progressiva so processos his produtos, ou seja, a realidade é criada pelo imagindrio t6ricos recentes", embora as relagdes sociais reais sejam 172 173 EXPLORAGOES CEOGRAFICAS social. Para o autor, privilegjar a imaginagZo e o imaginério 6, como jé foi dito anteriormente, propor despertar de um sono dogmitico do ser determinado, € ser cupaz. de perce- ber a realidade hist6rico-social na sua dimensto de eriagéio continuada. Apesar da riqueza das argumentagées de Castoradis, 60 componente simbélico das insttuigoes soctais, necessa- riamente conectadas com o espaco, cujos conteridos defi- nem e delimitam seus rituais, que queremos reter como recurso para o conhiecimento da realidade social e que nos serd iit na compreensio da espacializagio das sociedades Da mesma forma, BOURDIEU (1989), com seu Poder sim- élico, contribui para a discussio dos rituais insttuctonais seu peso no processo decisério © nas diferenciagdes socials e espaciais. ‘Também buscando alternativas & compreensio da di- nica social para além dos modelos explicativos tinicos, MAFFESOLL, (1984, 1987, 1992) aponta o imaginério social como forga instituidora do imagindrio politico e o espago como o lécus por exceléncia do armazenamento e libera- «fo desta energia, Na busca de um modelo explicativo da dinfmica social que ultrapasse a prisio da racionalidade ‘ocidental moderna e do determinismo mecanicista, o autor se volta para o que ele denomina de forga imaginal, moral ou simbélica, que constrange A submissio as regras socials, constituindo a pulsio que esté na raiz da dimensio mental do politico (MAFFESOLI, 1992), que de certo modo esté na esséncia do argumento de La Boétie sobre a servidio vo- Juntéria. Mas, esta forga latente criadora nas comunidades, de seus espagos de convivialidade, ou soja, aqueles onde & 174 INACINARIO POLITICO E TERRITORIO convivéncia ¢ ritualizada, como nas festas religiosas ou po- pulares, tem na proxemia um conceito fundamental. Este remete as hist6rias vividas no dia-a-dia, a situagdes imper- ceptiveis que constituem a trama comunitéria, a trama da relagao interindividual, mas também aquela que “me liga a um territério, a uma cidade, a um ambiente natural que partilho com outros”. Este € 0 fundamento do territério- ‘mito e da estruturagao de uma meméria coletiva (MAFFE- SOLI, 1987), retomada de variadas formas por filésofos e Gientistas sociais. Assim, em sua andlise do fato soctal, 0 autor apéia-se na perspectiva da politica como controle das tensdes inerentes As relagdes sociais através da forga imagi- nal existente em toda vida em sociedade, tomando-a como ponto de partida para compreender a violéncia fundadora de toda agregagio social! sem descartar, porém, os princt- pos da territorializagio das sociedades e sua influéncia no ‘comportamento e nas ages socials. Porém, as paixdes comuns ou 0 sentimento coletivo, presentes nas reflexées da filosofia politica, fazem parte, para o autor, de um simbolismo geral, mediante o qual a ‘comunidade 6 parte integrante de um vasto conjunto c6s- ico do qual cla é apenas um clemento. E nesta perspecti- que Maffesoli aponta o elo fundamental da poltica com ‘espaco, quando chama a atengio para a origem ecolégica poder e desdobra o argumento do lago que se toma . Para ele, o espago 6 um nicho, um abrigo no qual “o 1 do poder cristaliza a energia interna da comuni- ici ein ae A Pal dite = tape ae aka pe oreo Po 175 EXPLORAGOES CEOGRAFICAS dade, mobiliza a forga imaginal que a constitui e assegura ‘um bom equilfbrio entre esta e 0 meio em torno, tanto social como natural”, Sua discussio revela 0 enraizamento ‘césmico na esséncia da politica necesséria a toda vida em sociedade, Para 0 autor, em termos mais clissicos, niio ha politica sem religida, esta no sentido orignal de religar, no qual pessoas partilham um conjunto de pressupostos ‘comuns, recorrendo a Marx, que dizia que a politica era a forma profana da religido, para reforgar seu argumento, ‘Desse modo, como todo o sagrado que organiza seus espa- «0s de culto a partir de nitose sfmbolos que os diferenciam Gos outros, também a poltica sacraliza, a seu modo, os cespagos profanos da convivéncia social. Do imaginario politico ao imagindrio geografico ‘Também na geografia hi uma forte consciéneia do poder simbélico do terrt6rio, estabelecido pelos on portadores de sgnifcados, algumas vezes mtlplos¢ idem> tificéveis pelos utilizadores dos Iugnres (BAILLY ¢ DEBAR: BIEUX, 1984). Desse modo, o lago se torna lugar porque @ imaginério polttico se torna imaginério territorial e se alle tedidos materiais, pela sua natureza, pela proxemia, ‘menta dele. Hé aqui, portanto, uma forte interdepen cia s6cio-espacial objetivada no imagindrio social de teddo politico ¢ territorial. Podemos, talver, ousar € US f6rmula de Simmel (Cf. MAFFESOLI, 1992) da forma ‘ante, que determina, limita, mas ao mesmo tempo t se (dé a ser). Em outras palavras, 0 territério, en 176 IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO forma e simbolo, 6 0 continente que afeta o seu conterido social e é da mesma forma afetado por ele. E possfvel, pois, propor que todo imagindrio social, da mesma forma que possui um forte componente politico, possui também um forte componente espacial pelo poder simbélico atribuido aos objetos geogrificos, naturais ou construfdos, que esto em relagio direta com a existéncia humana. Em outras palavras, todo imaginario social pode revelarse imagindrio geogrifico. A antropologia h4 muito percebeu e estuda a profunda relagio entre o meio mate- rial e o imaginério. Para BALANDIER (1997), “o imaginério reporta-se a espagos, produz uma topografia que lhe é pré- pria ¢ reflete, embora transformado, as relagées que 0 ho- ‘mem estabeleceu com o espago, onde o passado trouxe suas inscrigdes, dando assim uma materialidade & meméria cole- tiva’. O museu imagindrio de que fala André Malraux 6 fru- to desta materialidade, desta geografia transformada, pre- sente no imagindrio dos povos (BAILLY e FERRAZ, 1997). ‘A complexidade da tarefa de compreender o mundo, nada simples, e a necessidade de perceber tanto os proces- 808 visiveis como aqueles decorrentes da simbologia dos igares, seus aspectos miticos e suas conotagtes subjetivas sido também preocupagio dos geégrafos. Afinal, o émagindrio 6 composto pelas imagens que a mem6- Jembra e reconstitui logo que uma mengao de um lugar, ‘um monumento ou de uma paisagem 6 feita (BAILLY € 1997). Portanto, mais do que tentar qualificar em um imaginério geogréfico, objeto de estudo dos fos, estamos diante da tarefa de interpretar a geogra- contida no imagindrio social, ¢ expressa no pr6prio dis- 7 EXPLORAGOES CEOGRAFICAS ‘curso geogréfico, como um dos caminhos para compreen- der 0 papel que as representagées do meio desempenham nas priticas espaciais e na organizaclo do espago. Reafirmamos, como desdobramento das discussdes aci- ‘ma, que todo imagindrio social é também imaginério geogrd- fico, porque, embora fruto de um atributo humano — a imaginago — ¢ alimentado pelos atributos espaciais, no havendo como dissocié-los. Em outras palavras, os objetos geogrificos fazem parte do cotidiano individual ¢ coletivo, participa da pritica social que lhes confere valor simboli- co. A natureza — praias, ros, montanhas, florestas, campos, planicies ete. —e as construgdes — ruas, pragas, monumen- tos, bairros, quarteirdes, cidades — transformam-se em ima- gens, caminhos e representagdes da alma coletiva. Estas re~ presentagées geogrificas constituem entiio um modo de ser, um modo de falar da Terra, “teatro da aventura humana”, como diria J. P. FERRIEK (1990). H4, portanto, no imagind~ rio social uma profunda geograficidade pela relago concreta que se estabelece entre o homem e a Terra, Relagdo aqui dove ser compreendida, em seu sentido forte, como uma ca~ tegoria que indica o carter de dois ou mais objetos de pen- samento que sio concebidos como sendo, ou podendo ser, ‘compreendidos num tinico ato intelectual de natureza de- terminada, definindo o modo de sua existéncia e de seu des- tino. E nesse sentido que DARDEL (1952) utiliza 0 termo, ‘quando destaca que “a experiencia geogréfica, tio profunda € to simples, convida o homem a atribuir as realidades geo- gréficas um tipo de animagio e de fisionomia no qual revive sua experiéncia humana, interior e social” Existe, pois, uma relagdo, que nio pode ser ignorada, entre a geograficidade da experiéncia humana e a elabon- 178 IMAGINARIO FOLITICO & TERKITORIO 0 de um discurso que nfo € neutro, mas, ao contrério, qualifica o espago e seus objetos, tornando-os significantes, portadores de significados nas representagées sociais, Con- seqiientemente, este discurso expressa valores simbélicos «que presidem a estruturagio funcional do espago, com con- seqtiéncias importantes sobre a sua organizacio pela socie- dade em fungo dos significados que lhe so atribufdos. A argumentagio desenvolvida acima sobre o valor sim- bolico dos objetos geogrificos, sobre sua importincia nas representagSes sociais, aponta para o desdobramento essen- cial de um imagindrio geogrifico contido no imagindrio pol tico. Alguns temas podem ser trabalhados nesta perspectiva: a correspondéncia entre a natureza e o discurso politico, fundado no imaginério social sobre ela; © regionalismo, apoiado em um nés coletivo de base territorial e a repre- sentago politica territorial, que realiza a pritica politica com suporte no imagindrio geogrifico. A discussio que se segue tem por objetivo apontar as possibilidades empiricas da incorporagao do conceito de imagindrio a temas rele- vvantes para a compreensio dos modos ¢ meios utilizados pelos atores sociais para organizar seu territério, suas rela- "$668 sociais, sou modo de vida, Imagindrio politico e natureza AA suposigio da relagio entre a natureza e o imaging rio politico define uma abordagem que busca compreen- der formas possfveis de utiizago de aspectos particulares da natureza na construgio do imaginério coletivo de uma 179 EXPLORAGOES CEOCRAFICAS sociedade © a instrumentalizagdo deste imaginério para ages de base poltica no seu terrt6rio. Portanto, tornar a natureza um recurso politico supde, nfo apenas a sua util dade, mas a forma como ela é percebida coletivamente. A relagio, no sentido forte antes explicitado, entre o imaginé- rio politico ¢ 0 teritsrio € uma questo antiga, ¢ tem assu- ‘ido, ao longo da historia, diferentes formas de racionali- dade de objetivagio, que vio desde os recursos disponf- vveis na sua natureza, como suporte para a subsisténcia ou para o processo de desenvalvimento econdmico, até a pers: pectiva dos entraves naturais a ambos. Porém, sio as ima- gens construfdas socialmente sobre eles que constituem a pase fundamental do imagindrio social e recurso para a re- t6rica ou para a agio politica. Vises purticulares da natureza sempre alimentaram concepcdes politicas e as correntes deterministas da geo- grafinderam importante contribuiglo aos seus discursos. A interpretagio de Montesquieu da relacko entre as Teis da natureza ¢ as leis colocadas pelo poder politico em seu Livro Décimo Quarto do Espirito das leis indica as vanta- gens encontradas nos homens dos climas frios e, conse: ajtentemente, para 0 processo civilizatério por eles realize do. Filésofo lido e respeitado em sua época, refletia © 10> claborada imagem de si mesma, cujo valor natural era de mente a dominagio sobre outros povos em outras natures zas, Apesar da importincia das correntes possbilstas @ superagio, na geografia, de um determinismo “cientifi que buscava estabelecer leis de comportamento e quali 180 vva do tertitério condenado ao sofrimento e & pobreza por uma natureza dificil de ser domada. No entanto, quando esta mesma natureza torna-se base de discurso e fonte de - recursos piblicos, mais do que um s{mbolo do imagindrio social, ela passa a representar um valioso poder simbélico Be imaginério politico regional. A natureza semi-érida, neste caso, portanto, € exemplarmente apropri Bsc tina co tgp a tli. das no sistema de valores, dando suporte ao discurso e aos, forgava a visio de uma eivilizagio que, através de uma bem atos politicos. entificamente comprovado, justificava intelectual e etic IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO des humanas em fungio das qualidades do habitat, o de- terminismo nao abandonou de todo o “museu imaginério” ocidental, nem sua importancia no discurso politico. No Brasil, o caso do semi-frido nordestino é exem- plar. Desde o final do século passado, a sua natureza semi- rida tem sido vista como a principal causa dos problemas da regito e tem sido amplamente utilizada nos discursos das elites regionais para obter maiores beneficios junto ao governo federal (CASTRO, 1992). Na realidade, a idéia de que o clima semi-drido € responsével pelo atraso no Nor- deste faz parte do imaginério regional, ¢ nacional, ¢ revela uma percepgo na qual o determinismo da natureza esta implicito, tanto na idéia de que o “sertanejo é antes de tudo um forte” de Euclides da Cunha, como na perspecti- ‘A seca 6, na realidade, uma palavra-chave. Ela repre- senta objetivamente falta de chuva, mas também simbol- snte a Regidio Nordeste e os problemas sociais e eco- micos que so peculiares as condigées da sua natureza il, como: miséria, analfabetismo, doenga, descapitaliza- etc. Ela € ainda fundamento na produgo de uma soli- 181 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS dariedade social, criadora de um nés coletivo que equaliza a todos diante da forga da sua tragédia, produtores grandes € pequenos, proprietérios ou no. Nesse sentido, o signifi- cado desses contetidos vai muito além da relagio entre na- tureza e atividade produtiva, evidenciando-se nas possibili- dades da natureza para a produgio de um imaginério polt- tico, socialmente equalizador ¢ institucionalmente eficien- te para obtengao de recursos financeiros e de poder. Quando 0 deputado Jorge Coclho afirma que “a es- ccassoz de gua no Nordeste jé fez incontaveis vitimas, de- sagregou familias, semeou miséria e sofrimento, condenou a regifio a uma posigio de inferioridade no cenério nacio- nal” (GASTRO; MAGDALENO, 1996) ilustra bem © que foi dito acima, Muitos outros discursos poderiam ser citados (CastRo, 1991), mas nao ha necessidade por que sio por demais conhecidos. No entanto, € sabido também que ha ‘grande diferenga entre a 4gua disponivel hoje na regio e a que havia no infcio do século, quando da criagio da Ins- petoria de Obras Contra as Secas. © Nordeste atualmente 6 a regio semi-rida mais bem servida de agua represada do mundo, o que nio chegou a alterar muito suas ativida- des, seu quadro social de miséria, nem o imaginério dos porta-vozes regionais mais tradicionais sobre as dificulda- des para o seu desenvolvimento. ‘Ainda no Brasil, 0 abortado movimento separatista O sul 6 0 meu pats indica que o fantasma de Montesquieu esta longe de ter sido exorcizado, quando subsume em seus argumentos para a fundagio de um outro estado-na- fo a vantagem do clima subtropical, mais frio, como fator de diferenciagio qualitativa da sociedade sulista do pais, 182 IMAGINARO POLITICO & TERRITORIO branca, educada e mais desenvolvida frente a uma outra sociedade na parte norte, tropical, negra, mestiga, pobre ¢ socialmente menos desenvolvida. Para quem argumenta sobre a superago de determinismos climéticos no imagi- nirio social, obviamente informado pelos manuais de geo- grafia, este 6 um bom tema de pesquisa Outro aspecto do imaginario politico de base territo- rial 6 a relagdo entre a dimensio do territ6rio e as possibili- dades para um processo civilizat6rio de democracia, opor- tunidades ¢ justica identificados objetivamente por Tocque- ville, na extensio do territério americano, e simbolicamente por Turner, na sua fronteira. O primeiro, em sua viagem pelos Estados Unidos no inicio dos anos 30 do século XIX, cujas reflexdes ¢ anotagdes deram origem ao seu Demo- cracia na América, apontou entusiasticamente as vantagens do territ6rio americano: sua extensio e a disponibilidade de recursos naturais, que foram considerados dados importan- tes nas condigées para a criagdo de um cardter nacional de- mocrético, embora sua questio central fosse o problema da democracia ¢ suas dificuldades para se impor nas socieda- des aristocréticas européias, especialmente Franga e Ingla- terra, Tocqueville era leitor de Montesquieu, e as earacte- risticas da geografia americana nao the passaramn desperce- bidas. Embora suas observagdes sobre estas questbes no sejam levadas em consideragao pelos analistas de sua obra, socidlogos ou politélogos, a um ge6grafo clas saltam aos olhos. Da mesina forma, uma leitura do livro América, de Kafka, dé bem a dimensio do imagindrio europeu, alimen- tado por recortes territoriais acanhados frente ao gigante norte-americano. As dimensdes descomunais dos prédios, 183 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS viadutos, automéveis e trens simbolizam a imagem de i de enormes recursos, onde tudo é fartura e exagero. et do temit6rio fundando um imagindsio articulado ‘com a extensio, com a riqueza, com as disponibilidades propiciadas por uma natureza generosa e, portanto, com ais possibilidades de ser demoerética. No final do século XIX, em 1893, o historiador Fre- derick Jackson Turner, analisando a importancia da fronteira para explicar a sociedade americana, endossou competente- ‘mente este imagindrio, Para ele, a fronteira fez. da América uma sociedade aberta, o que propiciou a mobilidade social e cesta o otimismo. A marcha para 0 Oeste fornecen ao povo americano um grande mito, 0 da possibilidade do renasci- mento e da renovagio. Desse modo, na consciéncia ameri- cana 0 Oeste simbolizon a esperanga e figurou no processo civilizat6rio como progresso, tornando-se, num sentido légi- co, sindnimo do sonho americano. ‘Como mito, o territério da fronteira confirmou a democracia politica, a infinitude humana e 0 idealismo filos6fico (SIMONSON, 1989). Imagindrio politico e regionalismo ‘A importincia do enraizamento social — 0 termo ‘aqui utilizado na sua acepgiio mais forte de raiz, com toda a simbologia que dela decorre, como: seiva, aimento, estar bilidade, vida — constitui a base da dimensio espacial da socialidade, que Maffesoli analisou em “A conguista do Presente”, Para ele, “tudo que pode ser dito acerca da es trutura e desenvolvimento (da socialidade), sua pluralidade 184 IMACINARIO POLITICO & TERRITORIO ete. adquire corpo no espago determinado que também estrutura as situagdes vividas”, Seja este espago a casa, 0 bairro, a cidade, o territ6rio, o mesmo representa uma for- ‘ma particular de compartilhar porque se beneficia da pro- ximidade e se ope ao outro, ao externo, pela distancia fisi- ca. E nesta correspondéncia do iriterno — da proximidade — com o externo — da distancia — que se engendram as tensdes, tanto simbélicas como materiais, dos particularis- ‘mos frente ao jacobinismo do poder institucionalizado cen- tralizado no Estado Modermo. Porém, a sabedoria dos ho- mens da politica Ihes permite utilizar esta energia agrega- dora das menores escalas dos espagos da socialidade para estabelecer os nexos de dominagao e controle dos poderes centralizados e distantes. Existe, pois, um imaginério politico que se funda na forca imaginal do estar junto e se realiza na insergdo territo- rial do fato social, Esta dupla dimensio partilhada da socie- dade — nés comunitério que funda 0 contrato social e os limites territoriais de reconhecimento deste contrato — im- plica duas dimensées da dialética do um versus o todo. Na dimensio das relagies sociais 6 possivel falar na tensio entre © individuo © grupo social, na qual o “eu” 6 um ator ao mesmo tempo ativo € passivo, moldando e sendo moldado pela alma do grupo, pelo habitus. Ou seja, 0s cidadios poltti- ‘cos participam de um “coletivo de pensamento”, que se abri- ‘ga profundamente no imaginério do grupo social, com todos ‘0s mecanismos de conformidade, mas também com iniciati- ‘vas que um tal coletivo pode induzir (MAFFESOLI, 1992). ‘Numa perspectiva espacial, existe também uma ten- sio de base no moderno estado territorial. Na realidade, 185 EXPLORAGOES GEOGRAFICAS este tem representado ao mesmo tempo um abrigo para a preservagio de identidades terttoriais ameagadas ¢ uma ameaga & sobrevivencia destas identidades pelo poder sim- bolico do nacionalismo, necessério para fazer face & amea- 46a latente dos outros estados ¢ das forgas homogeneizado- ras em escala planetiria. Neste sentido, o territ6rio da so- berania estatal, enquanto espago politico e da politica, reflete 0 paradoxo do singular versus geral e s6 pode ser compreendido numa perspectiva dialégica, ou seja, que incorpore as l6gicas contraditérias, mas interdependentes, das dinamicas sociais geradas pela proximidade e aquelas geradas pela dist’incia. A percepgio da Franga, como uma unidade forjada na diversidade tio bem descrita por Fer- nand Braudel, 6 certamente um bom exemplo desta dialé- gica e de sua identificaglo e utilizagio no plano simbélico. Como desdobramento dessa dialética territorial da parte versus todo, 0 regionalismo, movimento politico de base territorial, é um problema geogrifico-politico por ex- celéncia. Surgido como reago ao jacobinismo do estado- nagdo ¢ levantando banderas da identidade, da autonomia, do direito a diferenga, ele ndio pode prescindir do “nicho” protetor que este mesmo estado ameagador representa hoje frente 4 ameaga de uma homogeneizagio em escala planetéria, Os regionalismos das regiées espanholas, que, com excegio de um segmento do movimento basco, nio dispensam o Estado espanhol e as ambigiidades do movi- mento politico autonomista do Quebec, que propée uma soberania que no abre mao do passaporte (ou seja, cida- dania) e da moeda canadenses, slo significativos da com- plexidade desta coexisténcia. Na realidade, estas questdes 186 IMAGINARIO POLITICO E TERRITORIO constituem um dos paradoxos da modernidade mediante o qual as sociedades, enquanto se territorializam, se preser- vam e resistem, ao mesmo tempo que, enquanto se univer- salizam, se renovam e sobrevivem. H, portanto, uma asso- ciagdo necesséria entre os regionalismos e a formagao dos estados-nacionais, quando se impés a idéia-forga da nacio- nalidade sobre os territ6rio ditos nacionais. Neste sentido, © regionalismo é gerado no contexto dos estados modernos que se tornaram, alguns antes, e a maioria a partir do sécu- lo XIX, estados nacionais territoriais, ou seja, submetidos a ‘uma l6gica de poder “territorialista”, sob a qual o territério € tanto a base da soberania ¢ do exerefcio do poder como também 0 reposit6rio dos contetidos dos sfmbolos mobili- zados para fundar 0 nds coletivo da identidade nacional que garante a adesio social ao pacto nacionalista. O regionalismo, enquanto mobilizagdo politica de ba- se territorial, decorre justamente dos modos através dos quais o estado nacional tem organizado, ou administrado, as diferengas — culturais e econdmicas — em seu territ6- rio para fundar a ideologia da unidade nacional. Os esta- dos-nacionais hoje conhecidos foram consolidados, em sua maior parte, a partir do dominio hegemdnico de uma re- gido que imps cultura, lingua, religigo e sistema produtivo sobre as outras. E justamente nas clivagens desta domina- ‘do que se tem desenvolvido a ideologia regionalista. Na formagio dos estados modernos, depois estados-nacionais, ARRIGHI (1996) aponta a importancia do territorialismo e © triunfo da ideologia nacionalista em todo 0 teritério. Neste sentido, os regionalismos representa muito mais lutas por disputas de recursos com base no poder simb6li- 187 EXPLORAGOES CEOCRAFICAS co da afirmagao de uma identidade ou solidariedade a ter- rit6rios particulares do que um desejo real de soberania, Trata-se, na realidade, da articulagdo entre escalas territo- riais de poder e de identidade que, sendo contradit6rias como esséncia, so complementares enquanto pritica polf- tica. Neste sentido, embora identidades culturais fortes co- mo lingua, religiéo e etnia sejam stmbolos eficientes nas disputas regionalistas, 0 regionalismo nao se esgota neste tipo de viés cultural. ‘Umna distingao € necessdria entre 0 sentido dos regio nalismos e nacionalismos. Embora ambos mobilizem sim- bbolos para alimentar os rituais da identidade sécio-territo- rial, a teleologia de cada um é diferente. O primeiro busca ‘a construgio de um estado-nagdo, 0 segundo busca mais ‘vantagens, ou menos desvantagens nas disputas com outras regides, no conjunto de um estado-nagao consolidado. O fato de um movimento regionalista levantar bandeiras se- paratistas pode ser, como 0 & em muitos casos, muito mais uma estratégia de luta frente ao poder central do que uma verdadeira busca de formagdo de um novo estado-nagio. No Brasil, o processo hist6rico politico, que progressi- vamente delineou os limites das unidades administrativas © 08 valores simbélicos dos territ6rios para as sociedades em cada uma, contribuiu para forjar escalas de interesse refor- gadas pelos discursos da identidade e da solidariedade. Com excegao do regionalismo nordestino, no qual o recorte regional ¢ os interesses politicos coincidem, as identidades tertitoriais no pas se fazem nos limites administrativos dos estados. © trabalho de HAESBAERT (1988) sobre a identi- dade gaticha € significative de que 0 termo regional no 188 IaciNdnio PoLitico & TERRITORIO Brasil pode ser trabalhado geograficamente dentro dos re- cortes politico-administrativos, sendo este o limite legitimo de identidade ¢ de expressiio de reivindicagSes poltticas de base territorial, num espago nacional cuja representagaio po- Iitica € organizada a partir de recortes territoriais legais. So- logos, historiadores e politélogos jé o fazem ha bastante tempo, revelando as especificidades s6cio-territoriais cons- trufdas historicamente nos limites administrativos subnacio- nais brasileiros (GOMES, 1980; SCHWARTZMAN, 1982). O tema do regionalismo sob a perspectiva do imaging- rio politico encontra-se em aberto na geografia brasileira. Além da existéncia de miltiplas escalas das relagies de poder no territ6rio nacional, o aparecimento de novas estra- tégias de relagdes centro-periferia, os novos arranjos espa Ciais e de solidariedades propiciadas pelas mudangas teeno- legicas, o fortalecimento dos poderes regionais ¢locais como novos interlocutores nas relag6es supranacionais so proble- ‘mas que se colocam hoje para os arranjos dos interesses no tertitrio e tendem a transformar o ambiente das tradicio- nais aliangas politicas, definindo-se novos stmbolos, elabo- rando-se novos discursos, mobilizando-se novos territérios. Imagindrio politico ¢ representagio territorial A institucionalizagio da representagio politica e do cequiltbrio dos poderes nas democracias modemas 6, neces- sariamente, espacializada a partir de diferentes escalas que englobam desde os espagos da convivéncia estabelecidos na proxemia, até aqueles mais amplos do dominio simbli- 189

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