E Book Coracao de Cachorro
E Book Coracao de Cachorro
E Book Coracao de Cachorro
RA
ÇÃO
DE
CACHORRO
MIKHAIL BULGAKOV (1891-1940)
TRADUÇÃO: LEIALDO PULZ
Mikhail Bulgakov
CORAÇÃO DE CACHORRO
Tradução
Leialdo Pulz
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Editora Gazeta do Povo
___________
Bulgakov, Mikhail
Coração de Cachorro / Bulgakov, Mikhail;
tradução Leialdo Pulz – 1ª edição – Curitiba,
Editora Gazeta do Povo, 2023
___________
[2023]
Curitiba - Paraná
www.gazetadopovo.com.br
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ÍN
DI
Capítulo 1
Capítulo 2
CE
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
CA
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TU
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C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
1
Aauuu-au-auuu-auau! Oh, olhe para mim, estou
morrendo. A nevasca no beco está uivando até a
morte, e eu estou uivando com ela. Estou perdido,
estou perdido. Um canalha com um chapéu sujo –
um cozinheiro da cantina do Conselho Central de
Economia Nacional – jogou água fervente em mim
e escaldou meu lado esquerdo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ros de Prechistenka, no entanto, estavam me di-
zendo que no restaurante “Bar” em Neglinnyi eles
comem o prato do dia – cogumelos e molho pi-
cante – por 3,75 rublos a porção. Este é um negó-
cio amador, é o mesmo que lamber uma galocha ...
Oo-o-o-o-o ... Ooh-ooh-ooh...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
apenas por causa da dor física e do frio, porque
meu espírito ainda não se apagou... O espírito des-
te cão continua vivo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
até tem gente boa. Por exemplo, o falecido Vlas de
Prechistenka. Quantas vidas ele salvou? Porque a
principal coisa a se fazer durante uma doença é in-
terceptar a ferida. Os velhos cães costumavam di-
zer: Vlas acenará com um osso e nele haverá um
pouco de carne. O reino dos céus é para pessoas
como ele, que era o nobre cozinheiro do Conde
Tolstoi, e não para esses do Conselho de Nutrição.
O que eles estão fazendo lá no Conselho de Nutri-
ção, para a mente de um cão, é incompreensível.
Eles fazem sopa de carne salgada que está estra-
gada, aqueles trapaceiros. Os pobres tolos que co-
mem lá não percebem a diferença. É só pegar, de-
vorar e engolir.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
A digitadora vem correndo, porque não se pode ir
a um bar com um salário de 60 rublos por mês. Ela
não poderá ir ao bar comer e ainda ter o suficien-
te para o cinema, e o cinema é o único consolo na
vida de uma mulher. Ela franze a testa pois são 40
copeques por dois pratos, mas esses dois pratos
não valem 15 copeques. O gerente de suprimen-
tos embolsou os 25 copeques restantes. Ela re-
almente precisa desse tipo de comida? A parte
superior do pulmão direito dela não está bem, e
ainda tem outra doença típica das mulheres em
solo francês. Ela foi demitida do emprego e está
sendo alimentada com carne podre na cantina,
que situação a dela!...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tudo será gasto com mulheres, lagostas e um bom
vinho. Porque passei fome o suficiente na minha
juventude, e agora chega! Mesmo porque não há
vida após a morte”.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Com a cabeça inclinada, ela apressou-se ao ataque,
atravessou o portão e, na rua, começou a contorcer-
-se, a rasgar-se, a espalhar-se, depois foi torcida
por um redemoinho de neve e desapareceu.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
A porta do outro lado da rua, numa loja bem ilu-
minada, abriu-se e apareceu um cidadão. Era um
cidadão, não um camarada, e ainda mais correta-
mente, um cavalheiro. Ao aproximar-se, ficou mais
claro que era um cavalheiro. Acham que estou jul-
gando-o pelo casaco? Que disparate. Muitos pro-
letários usam casacos hoje em dia. Já com os cola-
rinhos não é bem assim, para dizer o mínimo, mas
ainda se podem confundir à distância. Contudo,
pelos olhos, não se pode confundir, nem de perto
nem de longe! Oh, os olhos são uma coisa muito
importante. Como um barômetro. Vê-se tudo atra-
vés dos olhos – quem tem uma grande secura na
alma, quem é capaz de lhe enfiar uma bota nas
costelas por nada, e quem tem medo de tudo. Este
último é aquele que pode ser agradavelmente mor-
dido pelo tornozelo. Quem tem medo vai levar uma
mordida! Se tem medo, fique aí parado de pé... R-r-
-r... au-au.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
de que escreverá nos jornais – Eu, Filipe Filipovi-
ch, fui envenenado com essa comida!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
de lona no qual estava inscrito “É possível o reju-
venescimento?”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
do para morrer, e seria o desespero um pecado? De-
vo lamber-lhe as mãos, não há mais nada a fazer.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
e a neve até às lágrimas, porque quase engoliu o
cordão que havia nela. Mais, mais lambidelas na
sua mão.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
uma visão maravilhosa daquele que usava o casa-
co de pele e de alguma forma expressar seu amor
e devoção por ele. E sete vezes ao longo da rua Pre-
chistenka até o cruzamento com a Obukhov, ele
expressou isso. Ele beijou sua bota no cruzamento
com a rua dos Mortos, abrindo caminho, com um
uivo selvagem que assustou tanto uma senhora
que ela se sentou em um pedestal. Uivou duas ve-
zes em apoio à autopiedade.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tal de Moscou para toda a ralé que perambula pe-
la Prechistenka!
- Cachorrinho, cachorrinho!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Muitas vezes mais perigoso que um
zelador. Raça absolutamente odiosa.
Desgraçados. Maldosos que usam
roupas arrendadas!”
- Olá, Fyodor.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
vou dar uma mordida. Isso até seria
interessante: uma leve mordida na perna
calejada daquele proletário. Eu faria isso
por todas as intimidações feitas pelos teus
colegas. Quantas vezes já mutilaram meu
rosto com a vassoura, né?”
- Vai, vai.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O importante benfeitor dos cães virou-se brusca-
mente no degrau e, inclinando-se sobre a grade,
perguntou horrorizado:
- E aí?
- Ninguém em especial!
- E Fyodor Pavlovich?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Eles vão fazer mudanças em todos os aparta-
mentos, Filipe Filipovich, exceto no seu. Agora
mesmo houve uma reunião e foi aprovada uma re-
solução. Eles elegeram um novo comitê de mora-
dia e expulsaram o antigo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
2
C a c h o r r o
Não há absolutamente nenhum sentido em apren-
der a ler quando a carne já cheira a um quilômetro
de distância. No entanto, se você mora em Moscou
e tem pelo menos um pouco de cérebro na cabeça,
você aprende a ler e escrever, quer queira quer não,
e, além disso, sem nenhum curso. Dos 40.000 cães
de Moscou, é possível que algum idiota completo
não consiga soletrar a palavra “salsicha”?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
mo, Bolinha começou a perceber que “azul” nem
sempre significa “carne”, e, apertando o rabo en-
tre as patas traseiras e uivando de dor ardente,
lembrou que em toda casa de carne o primeiro car-
taz à esquerda sempre é dourado ou vermelho, se-
melhante a um trenó.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
forma extremamente conveniente a palavra “Ne-
pril ...”, que significava: “Não se expresse com pa-
lavras indecentes e não dê gorjetas.” Aqui, às ve-
zes, as brigas surgiam do nada, as pessoas levavam
socos na cara, embora em casos raros – para os
cães isso era constante – com pedaços de panos
ou botas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“Realmente seria um proletário? –
Bolinha pensou surpreso – “acho que
não”. Ele ergueu o nariz, cheirou mais
uma vez o casaco de pele e pensou com
segurança: “Não, aqui não há cheiro
de proletários. Aquela é uma palavra
erudita, mas só Deus sabe o que
ela significa”.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
que refletia o segundo Bolinha desgastado e ras-
gado, e havia ainda terríveis chifres de veado lá no
alto, incontáveis casacos de pele e galochas e uma
tulipa elétrica feita de opala no teto.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“O cozinheiro, aquele condenado. O
cozinheiro!” – o cachorro disse com olhos
queixosos e uivou levemente.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
vou ser forçado a tomar o óleo de mamona
e toda a minha lateral será cortada
com facas. Mas ninguém vai me
tocar mesmo!”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
pensou o cachorro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
teve firme. Aquele líquido nauseante sufocou a res-
piração do cachorro e sua cabeça começou a girar.
Então suas patas fraquejaram, caíram e ele come-
çou a cambalear.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“mas devo reconhecer que fizeram um
ótimo trabalho”.
“De Sevilha a Granada... na silenciosa
escuridão da noite”, cantava uma voz
distraída e desafinada acima dele.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
seu idiota.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Salsicha da Cracóvia! Meu Deus, ele teve que com-
prar sobras no valor de vinte copeques no açougue.
Eu mesma preferiria comer a salsicha de Cracóvia.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
balançou e tremeu, mas rapidamente se recupe-
rou e seguiu o jaleco esvoaçante de Filipe Filipo-
vich. Mais uma vez o cachorro atravessou o corre-
dor estreito, mas agora viu que estava bem
iluminado por uma luminária redonda acima. Quan-
do a porta laqueada se abriu, ele entrou no escritó-
rio com Filipe Filipovich que deslumbrou o cachor-
ro com sua decoração. Em primeiro lugar, tudo
estava muito iluminado: havia luz no teto molda-
do, sobre a mesa, na parede, nos vidros dos armá-
rios. A luz inundou todo um abismo de objetos, dos
quais o mais interessante era uma enorme coruja
pousada num galho que estava preso à parede.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
jaleco, sentou-se à enorme mesa e imediatamente
pareceu extraordinariamente importante e sério.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“Jesus Cristo!” – pensou o cachorro. “O que é isso?!”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
positivamente fascinado. Você é um mago!
- Ai!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tapete um pequeno envelope, no qual estava a fo-
to de uma beldade com cabelos esvoaçantes. O su-
jeito deu um pulo, abaixou-se, pegou-o e corou
profundamente.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O rosto do estranho ficou nublado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tado... Vista-se, meu amigo!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
te deve ser 54-55. Os sons cardíacos estão abafados.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Senhora! – Filipe Filipovich gritou. – Tem gen-
te esperando por mim! Por favor, não me faça per-
der tempo, a senhora não é a única aqui!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- “De Sevilha a Granada...” – Filipe Filipovich can-
tava distraidamente e pisava no pedal da pia de
mármore. A água começou a brotar.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Ele acordou com um toque e viu que Filipe Filipovi-
ch havia jogado alguns tubos brilhantes na bacia.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Veja bem, eu realizo operações em casa apenas em ca-
sos extremos. Vai custar muito caro – cinquenta rublos.
– Eu aceito, professor!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Quatorze anos, professor... Você entende, isso
vai me arruinar. Daqui a pouco devo fazer uma via-
gem de negócios a Londres...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
desgraçada.”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
po – Filipe Filipovich o interrompeu em tom de adver-
tência – em primeiro lugar, vocês vão pegar um res-
friado e, em segundo lugar, vocês deixaram marcas em
meus tapetes, e todos os meus tapetes são persas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
orgulhoso.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Foi você quem se mudou para o apartamento de
Fyodor Pavlovich Sablin?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
bleia geral dos moradores do nosso prédio, na qual
foi levantada a questão da lotação dos apartamen-
tos do prédio.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tavo ainda. Preciso dele para minha biblioteca.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
que viemos conversar. A Assembleia Geral pede-lhe
que, voluntariamente, por uma questão de discipli-
na laboral, ceda a sala de jantar. Ninguém tem sala
de jantar em Moscou.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
um tanto acinzentado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“Esse cara”, pensou o cachorro encantado,
“é igualzinho a mim. Oh, ele vai mordê-los
agora, oh, ele vai mordê-los! Ainda não sei
de que forma, mas vai mesmo!.. Acerte-os!
Agora mesmo eu poderia pegar esse de
pernas longas de botas mais altas, alí perto
do tendão... rrrr!...”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Com licença, professor – começou Shvonder, vi-
sivelmente transtornado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
mas que haja um pedaço de papel que garanta que
nem Shvonder nem ninguém mais possa sequer
bater à porta do meu apartamento. Um papel que
seja definitivo. Um papel de verdade. Isso mesmo.
O meu nome nem precisa ser mencionado nele.
Claro que sim! Não estou nem aí para eles. Sim,
Sim. Por favor. Por quem? Sim... Bem, isso é outro
assunto. Sim. Está bem. Estou passando o telefo-
ne agora. Por favor – Filipe Filipovich dirigiu-se a
Shvonder com uma voz de cobra – ele falará com
você agora.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
cional... Sabemos do trabalho dele... queríamos dei-
xar até cinco cômodos para ele... então, bem... já
que é assim... está tudo certo...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
mo? – Filipe Filipovich perguntou educadamente.
- Não quero.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Você não tem pena das crianças da Alemanha?
- Não.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Você odeia o proletariado – disse a mulher com
veemência.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
3
C a c h o r r o
Nos pratos pintados com magníficas flores e uma
ampla borda preta havia finas fatias de salmão e
enguias em conserva. Sobre uma tábua pesada es-
tava um pedaço de queijo cortado e uma tigela de
prata onde havia caviar rodeado por gelo. Entre os
pratos estavam vários copos finos e três garrafas
de cristal com vodcas multicoloridas. Todos es-
ses itens foram colocados sobre uma pequena
mesa de mármore, confortavelmente presa a um
enorme aparador de carvalho esculpido, de on-
de se expeliam raios de vidro e uma luz pratea-
da. No meio da sala havia uma mesa pesada co-
mo uma lápide de pedra, coberta com uma toalha
branca, e sobre ela jaziam dois talheres, guar-
danapos dobrados em forma de tiaras papais e
três garrafas escuras.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Traga-os aqui – ordenou Filipe Filipovich pre-
datoriamente. – Doutor Bormenthal, eu imploro,
deixe o caviar em paz. E se você quiser ouvir um
bom conselho: não sirva vodca inglesa, mas beba
a verdadeira vodca russa.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Colocam de tudo – disse com confiança aquele
que havia sido mordido.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
los bolcheviques comem aperitivos frios com sopa.
Uma pessoa mais ou menos que se preze deve lidar
com comidas quentes. E esta é a melhor dentre as
comidas quentes de Moscou. Eram antigamente pre-
parados de forma excelente no Bazar Eslavo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
maioria das pessoas não sabe comer direito. Você
precisa saber não apenas o que comer, mas tam-
bém quando e como (Filipe Filipovich balançou a
colher significativamente). E o que posso dizer? Se
você se preocupa com sua digestão, meu conselho
é não falar sobre bolchevismo e medicina no jan-
tar. E – Deus me livre – não leia jornais soviéticos
antes do almoço.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Caramba…
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“Saint Julien é um vinho decente”,
ouviu o cachorro durante o sono,
“mas agora acabou”.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Filipe Filipovich, você está exagerando – comen-
tou Zina, sorrindo, e levou embora a pilha de pratos.
- Isto é interessante…
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Você gostaria de uma sapateira? Moro nesta ca-
sa desde 1903. E assim, durante esse tempo, até
março de 1917, não houve um único caso, e subli-
nho com lápis vermelho: nenhum – de que pelo
menos um par de galochas desaparecesse da nos-
sa porta de entrada lá embaixo com a porta comum
destrancada. Observe que há 12 apartamentos aqui.
No dia 17 de março, num belo dia, todas as galo-
chas desapareceram, inclusive dois pares meus,
três bengalas, um casaco e o samovar do porteiro.
E desde então o suporte de galocha deixou de exis-
tir. Querido amigo! Não estou nem falando do aque-
cimento a vapor. Eu não falo nada. Deixe pra lá: já
que existe uma revolução social, não há necessi-
dade de afogá-la. Mas eu pergunto: por que, quan-
do toda essa história começou, todos começaram
a subir por essas escadas de mármore com suas
galochas sujas e com as botas de feltro? Por que as
galochas ainda precisam ser trancadas? E também
é necessário ainda deixar um guarda para que nin-
guém as roube? Por que foi retirado o carpete da
escadaria principal? Karl Marx proíbe tapetes nas
escadas? Está dito em algum lugar dos escritos de
Karl Marx que a segunda entrada da casa Kala-
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
bukhov na Prechistenka deveria ser fechada com
tábuas para que todos tenham que percorrer por
todo o quintal até a porta principal? Quem precisa
disso? Por que o proletário não pode deixar as galo-
chas lá embaixo e assim não sujar o mármore?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ram as flores dos locais? Por que é que a electrici-
dade, que, Deus me livre, apagou-se duas vezes ao
longo de 20 anos, mas agora apaga-se ordenada-
mente todo mês? Dr. Bormenthal, as estatísticas são
uma coisa terrível. Você, que conhece meu trabalho
mais recente, sabe disso melhor do que ninguém.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tar como se estivesse num coro no meu aparta-
mento, estarei em ruínas. Se, ao entrar no banhei-
ro, eu começar, desculpem a expressão, a urinar
no banheiro fora do vaso sanitário, Zina e Darya
Petrovna começariam a fazer o mesmo. A devas-
tação começaria no próprio banheiro. Consequen-
temente, a devastação não está nos armários, mas
nas cabeças. Isso significa que quando esses barí-
tonos gritarem “acabem com a destruição!” – eu
estarei rindo. (O rosto de Filipe Filipovich distor-
ceu-se de modo que aquele que foi mordido abriu
a boca.) Juro para você, acho engraçado! Isso sig-
nifica que cada um deles deveria levar uma pan-
cada na nuca! E assim, quando eles tiverem dei-
xado todo tipo de alucinações e começarem a
limpar os seus quintais – que é a responsabilida-
de direta deles – a devastação desaparecerá por si
mesma. Você não pode servir a dois senhores! É
impossível varrer os trilhos do bonde e organizar
o destino de alguns maltrapilhos ao mesmo tem-
po! Ninguém pode fazer isso, doutor. E ainda mais
para essas pessoas que, em geral, estão 200 anos
atrás dos europeus no desenvolvimento, e que ain-
da não conseguem sequer abotoar as próprias cal-
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ças!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
não tem muito dinheiro.”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Não tem nada de perigoso – objetou Filipe Fili-
povich acaloradamente. – Não há contrarrevolu-
ção. A propósito, aqui está outra palavra que ab-
solutamente não suporto. O que isso realmente
significa? O que está escondido por detrás desta
palavra? Só o diabo sabe! Então eu digo: não há na-
da de contrarrevolução nas minhas palavras. Elas
têm apenas bom senso e experiência de vida.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
A vítima do cachorro agradeceu educadamente e,
corando, colocou o dinheiro no bolso do paletó.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
um defensor da divisão de trabalho. Que cantem lá
no Bolshoi enquanto eu faço as operações aqui. Isso
é bom. E sem destruição... É isso, Ivan Arnoldovich,
você apenas fique atento: assim que ele estiver mor-
to, tire-o da mesa, coloque-o diretamente no lí-
quido nutritivo e traga-o para mim!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
louco, o asfalto gelado, fome, gente má... A
cantina, a neve... Deus, como vai ser difícil
para mim!..”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
peludo cor de café com uma cara de
satisfeito, caminhando na frente dos
espelhos. “É bem possível que minha avó
tenha feito alguma coisa com um labrador.
Agora que reparo melhor – há uma mancha
branca no meu focinho.”
“De onde isso vem, você pode se perguntar?
Bem, Filipe Filipovich é um homem de muito
bom gosto, e ele não aceitaria o primeiro
cachorro vira-lata que encontrasse.”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
aprendeu os toques da campainha de Filipe Filipo-
vich – dois golpes bruscos do dono, e saía voando
latindo para encontrá-lo no corredor. O mestre es-
tava envolto em um casaco de pele de raposa mar-
rom-escuro, que brilhava com milhões de flocos de
neve e cheirava a tangerina, charutos, perfume, li-
mões, gasolina, água de colônia e tecido.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Senhor, ele comeu a casa inteira. O que você es-
tá dizendo, Filipe Filipovich? Estou surpreso que
não exploda.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ruja pelo rabo! Antes que eu conseguisse pegá-lo,
ele a despedaçou. Esfregue o focinho dele na co-
ruja, Filipe Filipovich, para que ele saiba que não
deve estragar as coisas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
rua Obukhov. O cachorro caminhava como um pri-
sioneiro, ardendo de vergonha, mas, tendo cami-
nhado pela Prechistenka até a Catedral de Cristo,
entendeu perfeitamente o que uma coleira signi-
ficava na vida. A inveja furiosa era visível nos olhos
de todos os cães que ele encontrava, e no beco sem
saída, algum vira-lata esguio com o rabo cortado
latia para ele dizendo que ele era um “cão bastar-
do de estimação” e um “lacaio”. Ao cruzarem os
trilhos do bonde, o policial olhou para a coleira com
prazer e respeito, e quando voltaram, aconteceu a
coisa mais inédita da vida: Fyodor, o porteiro, des-
trancou pessoalmente a porta da frente e deixou
Bolinha entrar, enquanto comentava com Zina:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
mentalmente e, balançando o traseiro,
seguiu até o mezanino como um cavalheiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
“O que você quer? Por que você está
latindo?” – o cachorro semicerrou os olhos
de maneira tocante. “Que tipo de
ladrãozinho eu sou? Você não percebe a
minha coleira?” – e ele recuou de lado até a
porta, enfiando o focinho nela.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
qual as chamas borbulhavam e tremeluziam.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Não preciso de nada disso – respondeu o bigode
preto, com pouco autocontrole e com voz rouca. –
Como você é excitante!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
na faca brilhante e cortava silenciosamente os mio-
los amarelos e elásticos.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Como resultado, de repente ele começou a chora-
mingar e tomou seu café da manhã – meia xícara
de mingau de aveia e um osso de cordeiro do dia
anterior – comendo-o totalmente sem apetite. Ele
caminhou entediado até a área da recepção e latiu
levemente para seu próprio reflexo no espelho. Mas
à tarde, depois que Zina o levou para passear pela
avenida, o dia transcorreu normalmente. Não hou-
ve consultas naquele dia pois como era sabido, não
há consultas às terças-feiras, e a divindade esta-
va sentada no escritório, abrindo sobre a mesa al-
guns livros pesados com figuras coloridas. Ele ape-
nas estava esperando o almoço ser servido. O
cachorro se animou um pouco com a ideia de que
naquele dia o segundo prato, como descobriu na
cozinha, era peru.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Ele começou a se agitar, tocou a campainha e, quando
Zina entrou, mandou servir o jantar com urgência.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Três horas atrás. – respondeu Bormenthal, sem ti-
rar o chapéu coberto de neve e abrindo o zíper da ma-
la.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
parecia uma mortalha e começou a correr
da sala de exame para a cozinha e vice-
versa.
- Tranque-o!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
de algum tipo de depressão severa. Tudo era cha-
to, confuso...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
um cão de estimação, uma criatura
inteligente, aqui tenho experimentado uma
vida melhor. E o que é a liberdade? Fumaça,
miragem, ficção... As bobagens desses
infelizes democratas...”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Um arrepio passou pelo coração do cachorro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Havia um outro médico ali na sala. O cachorro odia-
va aquele médico! Era o cara que ele havia mordi-
do. Acima de tudo, Bolinha odiava os seus olhos.
Geralmente ousados e diretos, agora eles corriam
em todas as direções, longe dos olhos do cachor-
ro. Eles eram cautelosos, falsos e em suas profun-
dezas escondia-se uma ação má e suja, ou até mes-
mo um crime completo. O cachorro olhou para ele
pesada e sombriamente e foi para o canto.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
frente dele e um cheiro horrível exalava dele.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
desossadas e dobradas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
CA
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C o r a ç ã o d e
4
C a c h o r r o
Bolinha estava estirado na estreita mesa de ope-
ração. A cabeça estava pendendo impotente do tra-
vesseiro de capa branca. Sua barriga havia sido
aparada e agora o Dr. Bormenthal, respirando pe-
sadamente e ofegantemente, com uma máquina
cortava o pêlo da cabeça de Bolinha. Filipe Filipo-
vich, apoiando as palmas das mãos na beirada da
mesa, observava através das bordas brilhantes e
douradas de seus óculos esse procedimento. Disse
então com entusiasmo:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Ele ergueu as mãos neste momento, como se es-
tivesse abençoando o malfadado cão por uma fa-
çanha difícil. Ele tentou não deixar uma única par-
tícula de poeira cair na borracha preta.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Pode.
- Sim.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ga no estômago do Bolinha. A pele imediatamen-
te se abriu e o sangue jorrou em todas as direções.
Bormenthal atirou-se sobre o cão como uma ave
de rapina. Começou a pressionar a ferida aberta
com chumaços de gaze. Depois apertou com leves
beliscões as bordas, com algo que parecia com uma
pinça de açúcar, e a abertura secou. O suor borbu-
lhava na testa de Bormenthal. Filipe Filipovich cor-
tou o cão uma segunda vez e os dois começaram a
despedaçar o corpo do Bolinha com ganchos, te-
souras e algum tipo de grampo. Tecidos rosa e ama-
relos emergiram, escorrendo sangue. Filipe Fili-
povich, que estava girando o bisturi no corpo do
cachorro, gritou de repente:
- Tesoura!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
va na pele flácida. Então ambos ficaram agitados,
como assassinos que têm alguma pressa.
-Trépano!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
caixa de artesanato. O crânio estalou baixinho e
tremeu. Cerca de três minutos depois, a tampa do
crânio foi removida.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- O pulso está caindo drasticamente...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O médico inseriu facilmente a agulha no coração
do cachorro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Depois disso, removeu vários espaçadores e pinças
do crânio, colocou o cérebro em seu recipiente ós-
seo, recostou-se e perguntou com mais calma:
- Dê mais adrenalina.
- Sature!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
cabeça. Como um vampiro satisfeito, Filipe Fili-
povich finalmente recuou, arrancou uma luva, ti-
rou dela uma nuvem de pó encharcada de suor, ar-
rancou a outra, jogou-a no chão e tocou a
campainha na parede. Zina apareceu na soleira,
virando-se para não ver o cão coberto de sangue.
O sacerdote tirou a touca ensanguentada com as
mãos e gritou:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
5
C a c h o r r o
Do diário do Doutor Bormenthal
***
História da doença.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Coração, pulmões, estômago, temperatura...
***
23 de dezembro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Foram injetados no coração 8 cc de clorofórmio,
1 seringa de cânfora, 2 seringas de adrenalina.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
24 de dezembro.
***
25 de dezembro.
***
26 de dezembro.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
27 de dezembro.
***
28 de dezembro.
***
29 de dezembro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
de doenças da pele, e o diretor do Instituto de
Veterinária de Moscou. Reconheceram o caso
como não descrito na literatura. O diagnóstico
não foi especificado. Temperatura: 37,0.
***
30 de dezembro.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
31 de dezembro.
Apetite colossal.
***
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
1 de dezembro. 1 de janeiro de 1925.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
2 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
À 1 hora e 13 minutos. – Desmaio profundo do
Prof. Preobrazhensky. Durante a queda, bateu
com a cabeça no braço de uma cadeira.
***
***
6 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
As consultas ao professor foram canceladas.
Desde as 5 horas da tarde, a partir da sala de
exames, onde esta criatura anda de um lado pa-
ra o outro, ouve-se um palavrão nitidamente
vulgar e as palavras “quero mais um par”.
***
7 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich ainda não se sente bem. Eu
faço a maior parte dos registros. (gravador,
fotografias)
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Ele disse uma nova palavra: “policial”.
***
8 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
pleta (enfatizado três vezes). Isso não diminui sua
incrível e impressionante descoberta.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Por alguma razão, os palavrões causam uma
impressão surpreendentemente dolorosa em
Filipe Filipovich. Há momentos em que ele dei-
xa a sua observação contida e fria dos novos fe-
nômenos e parece perder a paciência. Então, te-
ve um momento em que ele repentinamente
gritou nervoso:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
segui entender o que dizia. Ele explicou:
***
9 de janeiro.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
10 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
***
11 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Se você me xingar ou ao médico novamente,
você terá problemas.
***
12 de janeiro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
periência do Prof. Preobrazhensky revelou um
dos segredos do cérebro humano. A partir de
agora, a misteriosa função da glândula pitui-
tária – um apêndice cerebral – tem uma expli-
cação. Ela define a forma humana. Seus hor-
mônios podem ser considerados os mais
importantes do corpo – os hormônios da apa-
rência. Uma nova área se abre na ciência: sem
qualquer réplica de Fausto, um homúnculo foi
criado. O bisturi do cirurgião deu vida a uma
nova unidade humana. Prof. Preobrazhensky,
você é um criador. (Borrão).
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
no de sua vida acumulou um abismo de conceitos.
Todas as palavras com as quais ele começou a falar
eram palavras da rua. Ele as ouviu e as escondeu em
seu cérebro. Agora, andando pela rua, olha horro-
rizado para os cães que encontra. Só Deus sabe o que
está escondido nos cérebros deles.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Preobrazhensky e passei a noite na sala com
Bolinha. A nossa antiga sala de exames foi con-
vertida em uma área de recepção. Shvonder es-
tava certo. O comitê de moradia está exultante.
Não há mais um único copo nos armários.
***
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Klim Grigorievich Chugunkin, 25 anos, solteiro.
Não filiado ao Partido, mas simpatizante. Foi
julgado 3 vezes e absolvido: a primeira vez por
falta de provas, a segunda vez a sua origem o
salvou, mas na terceira vez foi condenado: 15
anos de prisão. Crime: Roubo. Profissão: tocar
balalaica em tabernas.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
17 de janeiro.
***
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Assinado: Assistente do Professor F. F. Preobra-
zhensky, Doutor Bormenthal.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
6
C a c h o r r o
Era uma noite de inverno. Final de janeiro. Pouco an-
tes do jantar, antes das consultas. No teto, perto da
porta da sala de exames, havia uma folha de papel
branca, na qual estava escrito com a letra de Filipe
Filipovich: “Proíbo comer sementes de girassol no
apartamento”. F. Preobrazhensky. E em letras de lá-
pis azul, grandes como bolos, na caligrafia de Bor-
menthal: “É proibido tocar instrumentos musicais
das cinco da tarde às sete da manhã”. Depois, escri-
to à mão por Zina: “Quando você voltar, diga a Fili-
pe Filipovich: não sei para onde ele foi. Fyodor disse
que saiu com Shvonder.” Preobrazhensky escreveu
à mão também: “Vou ter que esperar eternamente
pelo vidraceiro?”. Na caligrafia de Darya Petrovna:
“Zina foi na loja, e disse que ia trazê-lo”.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Relâmpagos distorceram seu rosto e palavras esfar-
rapadas, escassas e arrolhadas saíram por entre seus
dentes. Ele leu a nota:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Diga a ele que já são cinco horas, e que é para pa-
rar. Ah, e diga-lhe para vir aqui, por favor.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
lipovich, na escuridão total, seja no teto ou na pare-
de, via uma tocha acesa com uma coroa azul. Abrin-
do-os, ficava cego novamente, porque do chão,
salpicando leques de luz, botas laqueadas com tiras
brancas chamavam a atenção.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- O ar da cozinha é mais agradável.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Eu falei para ele comprar essas envernizadas. Por
que eu não deveria usá-las? Todo mundo usa. Se vo-
cê descer até a rua Kuznetzky, verá quase todo mun-
do usando botas assim.
Silêncio.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Fui claro, estou te perguntando?
- Sim, foi.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Uma expressão ousada iluminou o homem.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
os lixões novamente? Congelando nas portas dos
edifícios? Bem, se eu soubesse disso...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O homenzinho interrompeu seu discurso e cami-
nhou desafiadoramente em direção ao cinzeiro com
o cigarro mastigado na mão. Sua marcha era instá-
vel. Ele amassou longamente a bituca de cigarro com
uma expressão que dizia claramente: “Não! Não!”.
Depois de apagar o cigarro, ele de repente cerrou os
dentes enquanto caminhava e enfiou o nariz debai-
xo do braço.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
olhos olharam de soslaio para os blocos de parquet.
Ele contemplou seus sapatos e isso lhe deu grande
prazer. Filipe Filipovich também olhou para os de-
talhes que brilhavam nas botas de cano curto do ho-
mem, franziu a testa e perguntou:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- O que o comitê tem a ver com isso?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Muito bem – ele falou com mais calma – não é uma
questão de palavras. O que seu precioso comitê de
moradia diz então?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
registro. Não quero que achem que sou um desertor
do exército. E mais – pertencer a um sindicato, es-
tar no quadro de empregos...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O homem ajeitou a gravata e respondeu:
- Poligraf Poligrafovich.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Desculpe. Meus nervos estão perturbados. Seu no-
me me pareceu estranho. Onde você, estou interes-
sado em saber, o encontrou?
- Onde?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Comemora-se no dia 4 de março.
- Sharikov.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
via a mesma expressão confusa de Filipe Filipovich,
que se assentava ao lado dele.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- É muito simples – latiu Sharikov do lado da estante.
Ele olhou para a gravata, refletida no colossal espelho.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
você tem a ver com isso? – e ele enfiou o gancho com
força de volta no aparelho.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
do na polícia. E se houver uma guerra com os preda-
dores imperialistas?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
catriz cirúrgica muito recente se estendia ao lon-
go
de sua testa.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
ma perspectiva disso acontecer.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
se elevou e imediatamente sumiu. Uma força malig-
na roçou o papel de parede do corredor, indo em di-
reção à sala de exames. Algo caiu ali e imediatamen-
te voou de volta. As portas bateram e o grito baixo de
Darya Petrovna ecoou na cozinha.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich empurrou a porta do banheiro, mas
ela não se mexeu.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
nava com a pata dianteira direita como se estivesse
dançando e imediatamente vazou por uma porta es-
treita que levava para a escada dos fundos. A porta
se abriu um pouco mais e o gato foi substituído pelo
rosto de uma velha com lenço na cabeça, que com
sua saia coberta de bolinhas brancas, entrou na co-
zinha. A velha limpou a boca com o indicador e o po-
legar, olhou ao redor da cozinha com os olhos in-
chados e espinhosos e disse com curiosidade:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
A velha recuou em direção à porta e falou, ofendida:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Onze – respondeu Bormenthal.
- Au-au!..
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
cozinha. Filipe Filipovich mais uma vez bateu com o
punho na porta.
- Eu me tranquei.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Caramba! Ele deve ter chaveado a porta! – Zina
gritou, apertando as mãos.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
chão e juntou seus esforços aos das mulheres, a fim
de evitar a passagem da água por debaixo da porta.
Finalmente, Fyodor, o porteiro, apareceu depois da
ligação de Filipe Filipovich. Acendendo uma vela que
sem dúvida servira no casamento de Darya Petrov-
na e subindo num banco, Fyodor tentava alcançar a
claraboia. A parte inferior de suas calças em grandes
quadrados cinzentos apareceu instantaneamente
suspensa no ar e depois desapareceu pela abertura
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
te foi direto para o banheiro oposto, outra à direita
para a cozinha e a última à esquerda para o corredor.
Correndo aos pulos, Zina fechou a porta. Fyodor saiu
com água até os tornozelos, sorrindo por algum mo-
tivo. Ele estava todo molhado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
çadas), jogavam panos no chão da cozinha e os tor-
ciam em baldes sujos que depois eram levados para
a pia.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Zina! Querida! Limpe aqui, caso contrário, a água se
espalhará pela escada principal.
- O cano estourou...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Eu tenho hora marcada.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
quarto, vou te dar alguns sapatos.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Sabe, Sharikov – respondeu Filipe Filipovich, re-
cuperando o fôlego – nunca vi uma criatura mais
atrevida do que você.
Bormenthal riu.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Quase perdi meu olho – respondeu Sharikov
sombriamente, tocando seu olho com a mão mo-
lhada e suja.
- Agradeço humildemente.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Em um gato? – perguntou Filipe Filipovich, fran-
zindo a testa.
- Droga!
- Um rublo e meio.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
pa do gato...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
— É isso mesmo — disse Fyodor, concordando. —
É assim que deve ser feito. Um soco no ouvido é o que
ele precisa...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
7
C a c h o r r o
- Não, não e NÃO! – Bormenthal falou insistente-
mente, – por favor, deixe isso de lado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov respirou fundo e começou a pegar pedaços
de esturjão no molho espesso.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Bormenthal apontou para o buffet que havia sido
quebrado e que estava com uma fita adesiva.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– E como seria essa tal “espontaneidade”? – deixe-
-me perguntar.
- Desculpa, como é?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- O passado! – repetiu Filipe Filipovich e balançou a
cabeça amargamente, – não há nada que você pos-
sa fazer a respeito, Klim.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Eu não quero. Prefiro beber vodca. – Seu rosto
ficou oleoso e brilhava, o suor apareceu em sua
testa e ele começou a ficar alegre. Filipe Filipovi-
ch ficou um pouco melhor depois do vinho. Seus
olhos ficaram mais claros e ele olhou com mais
aprovação para Sharikov, cuja cabeça negra acima
do guardanapo branco brilhava como uma mosca
em uma poça de creme.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Não irei ao teatro – respondeu Sharikov com hos-
tilidade e contorcendo a boca.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Zina- gritou Filipe Filipovich ansiosamente – guar-
de isso, não precisamos mais de vodca. O que você
está lendo?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov encolheu os ombros.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Bem, o método – explicou Sharikov, tornando-se
falante depois da vodca – é simples.. Por exemplo –
aqui está um sujeito com sete quartos e quarenta pa-
res de calças e tem outro sujeito que vaga pela rua e
busca sua comida nas latas de lixo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Ei, espere aí – respondeu Sharikov, assustado –
para que servirá isso?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Mas foi porque você beliscou o seio dela – gritou
Bormenthal, derrubando o copo – fique parado aí...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Você sempre chamando todos de canalhas – res-
pondeu Sharikov com medo, atordoado pelo ataque
de ambos os lados.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Zina, lá na sala de exames tem um... Ela está na sa-
la de exames?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov começou a olhar de soslaio para o pro-
fessor com raiva e ironia. Filipe Filipovich, por sua
vez, lançou-lhe um olhar de canto de olho e ficou
em silêncio.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipovich recostou-se como sempre no encosto gó-
tico e pegou o jornal sobre a mesa.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Bem, então é melhor dar uma olhada no circo
Nikitins. Tudo precisa estar claro para não ter-
mos problemas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Após 10 minutos, Ivan Arnoldovich e Sharikov, ves-
tidos com um chapéu de bico de pato e um casaco
drapeado com gola levantada, partiram para o circo.
O apartamento ficou silencioso. Filipe Filipovich es-
tava em seu escritório. Ele acendeu uma lâmpada que
estava debaixo de uma pesada capa verde, o que dei-
xou o enorme escritório muito tranquilo, e começou
a medir o ambiente. A ponta do charuto brilhou com
um fogo verde claro por muito tempo e com força. O
professor colocou as mãos nos bolsos da calça e um
pensamento pesado atormentou sua mente erudita.
Ele estalou os lábios, cantarolou entre os dentes,
“para as margens sagradas do Nilo...” E murmurou
alguma coisa. Por fim, colocou o charuto no cinzei-
ro, foi até o armário, todo de vidro, e iluminou todo
o escritório com três fortíssimas lâmpadas que es-
tavam penduradas no teto. Do armário, da terceira
prateleira de vidro, Filipe Filipovich tirou um pote
estreito e, franzindo a testa, começou a examiná-lo
à luz das lâmpadas. Flutuando no líquido transpa-
rente e pesado, sem cair no fundo, estava um peque-
no caroço branco, extraído das profundezas do cé-
rebro de Sharikov.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Encolhendo os ombros, curvando os lábios e gru-
nhindo, Filipe Filipovich o devorou com os olhos, co-
mo se no caroço branco e inafundável ele quisesse
discernir o motivo dos acontecimentos surpreen-
dentes que viraram a vida no apartamento da rua
Prechistenka de cabeça para baixo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Muito raramente os passos distantes de um pedes-
tre atrasado soavam; eles ecoavam por detrás das
cortinas e depois desapareciam. No escritório de Fi-
lipe Filipovich, seu repetidor batia suavemente sob
os dedos no bolso do colete...... O professor esperava
impacientemente o retorno do Doutor Bormenthal
e Sharikov do circo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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C o r a ç ã o d e
8
C a c h o r r o
Não se sabe o que Filipe Filipovich decidiu fazer. Ele
não fez nada de especial durante a semana seguinte e,
talvez como resultado de sua inatividade, a vida no
apartamento tornou-se cheia de acontecimentos.
- Bormenthal!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Não! – Filipe Filipovich trovejou na porta, – não
permitirei que você seja chamado dessa forma no
meu apartamento. Se você quiser que parem de cha-
má-lo apenas de “Sharikov”, tanto o Dr. Bormen-
thal quanto eu o chamaremos de “Sr. Sharikov”.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Como é que é? – perguntou Filipe Filipovich en-
quanto seu rosto mudava tanto que Bormenthal voou
até ele e de forma gentil o pegou pela manga.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov recebeu essas palavras com extrema aten-
ção e perspicácia, o que era visível em seus olhos.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov se acalmou significativamente e naquele
dia não causou nenhum dano a ninguém além de si
mesmo: aproveitando a curta ausência de Bormen-
thal, pegou a navalha do doutor e acabou por rasgar
as bochechas do próprio rosto. Quando Filipe Filipo-
vich e o doutor Bormenthal se puseram a costurar o
corte, Sharikov ficou uivando por muito tempo, cain-
do em lágrimas.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
E não foi só isso! Duas pessoas desconhecidas apa-
receram com ele, fazendo barulho na escadaria prin-
cipal e expressando o desejo de passar a noite lá com
Sharikov. Os referidos indivíduos só partiram depois
que Fyodor, que estava presente no local com um
casaco de outono por cima de suas roupas de baixo,
ligou para a polícia. Depois que eles foram embora,
foi descoberto que um cinzeiro de malaquita havia
desaparecido misteriosamente de um console no hall
de entrada, também o chapéu de castor de Filipe Fi-
lipovich e sua bengala com a inscrição, em letras
douradas: Do grato pessoal do hospital para Filipe
Filipovich em memória de “X” dias com carinho e
respeito.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- O mais incrível é que ambos estavam bêbados... Como
conseguiram roubar as minhas coisas? – Filipe Filipovi-
ch ficou pasmo, olhando para o local do balcão onde an-
tes estava colocada a lembrança do aniversário.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O pescoço de Filipe Filipovich ficou vermelho.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
E todos correram para ajudar o doente Sharikov.
Quando o levaram para a cama, ele cambaleou nos
braços de Bormenthal, amaldiçoando palavrões com
muita ternura e melodiosidade, pronunciando-os
com dificuldade.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Sim, meu amigo... – Filipe Filipovich murmurou
confuso e levantou-se para receber o abraço. Bor-
menthal deu um abraço e beijou-o no rosto.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
voltando, continuou em um sussurro: “afinal, você
sabe que este é o único jeito. Claro, não me atrevo a
lhe dar conselhos, mas, Filipe Filipovich, olhe para
si mesmo, você está completamente exausto, não
pode mais trabalhar assim!”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
apesar de poder ser a nossa primeira condenação.
Afinal, não temos uma formação adequada, meu
amigo?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Mas por quê?
- Mas...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
chupou um limão e falou:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Klim! – ele repetiu – Sabe, Bormenthal, você é
meu melhor aluno e, além disso, meu amigo, como
eu descobri hoje. Então, como seu amigo, vou lhe
contar um segredo, e claro, sei que você não vai me
envergonhar. O velho burro Preobrazhensky se com-
portou nessa operação como um estudantezinho do
terceiro ano. Verdade, a descoberta foi feita, você
mesmo sabe que tipo de, bem, – Filipe Filipovich
apontou tristemente com ambas as mãos para a cor-
tina da janela, claramente insinuando Moscou, –
mas apenas tenha em mente, Ivan Arnoldovich, que
o único resultado desta descoberta será que agora
todos nós teremos esse Sharikov aqui, – aqui Preo-
brazhensky bateu em seu pescoço curvado e leve-
mente esclerótico – mas fique tranquilo! Se alguém,
– continuou Filipe Filipovich com deleite, – me jo-
gasse no chão agora e me açoitasse, eu juro que lhe
recompensaria com cinco rublos! “De Sevilha a Gra-
nada...” Que droga... Eu passei cinco anos extraindo
apêndices de cérebros... Você sabe quanto trabalho
eu tive com tudo isso, é inacreditável. E agora, per-
gunto: para quê? Para transformar um cão muito
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
querido em um monstro que faz o cabelo se arrepiar.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tista em Kholmogory. Doutor, a humanidade cuida
disso sozinha, e no curso da evolução, a cada ano, ela
vai fazendo a seleção de toda a massa de imperfei-
ções, cria dezenas de gênios excepcionais que enfei-
tam o globo terrestre. Agora você entende, doutor,
por que eu discordei da sua conclusão sobre o histó-
rico da doença de Sharikov. Minha descoberta, com
a qual você está brincando, não vale nem um centa-
vo... Sim, não discuta, Ivan Arnoldovich, eu já enten-
di. Afinal, eu nunca falo ao vento, você sabe disso
muito bem. Teoricamente, é interessante. Ok, tudo
bem! Os fisiologistas ficarão encantados. Moscou es-
tá espantada... Mas e na prática? Quem está diante
de você agora? – Preobrazhensky apontou com o de-
do para a sala de observação, onde Sharikov estava
deitado – um vilão excepcional.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
bengala eu ainda vou encontrar. Em poucas palavras,
a hipófise é uma câmara fechada que determina a
essência humana. A essência! “De Sevilha a Grana-
da...” – revirando ferozmente os olhos, gritou Filipe
Filipovich. – E não a essência humana universal. Mas
em miniatura – o próprio cérebro. E eu realmente
não preciso disso, deixe-o ir para o diabo. Eu estava
preocupado com algo completamente diferente, com
a eugenia, com a melhoria da raça humana. E agora
estou lidando com rejuvenescimento. Você realmen-
te acha que estou fazendo isso por dinheiro? Afinal,
sou um cientista.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Bormenthal subitamente arregaçou as mangas e dis-
se, olhando de esguelha para o nariz:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Ah! Agora você entendeu? Eu já havia entendido
dez dias após a operação. Bem, então, Shvonder é o
maior idiota. Ele não percebe que Sharikov é uma
ameaça maior para ele do que para mim. Bem, ago-
ra ele está fazendo o seu melhor para atiçá-lo con-
tra mim, sem perceber que se alguém, por sua vez,
atiçar Sharikov contra Shvonder, só sobrarão os chi-
fres e as patas dele.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Ivan Arnoldovich, é elementar... Veja o que você
está realmente dizendo… a hipófise não vai simples-
mente desaparecer no ar. Afinal, ela está enxertada
no cérebro canino, dê tempo para ela se adaptar. Ago-
ra Sharikov já está mostrando apenas os resquícios
do seu coração de cachorro, e você tem que entender
que o que ele faz com os gatos é o melhor que ele sa-
be fazer como cachorro. Entenda que a verdadeira
tragédia é que ele não tem mais um coração de ca-
chorro, mas um coração humano. E o pior de todos,
dos que existem na natureza!
– Claro. Eu o matarei!
– Por favor...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich de repente ficou alerta e levantou
um dedo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
rosto furioso e ardente. Tanto o médico quanto o pro-
fessor foram ofuscados pela presença de um corpo
forte e, pelo que parecia assustador para ambos,
completamente nu. Nas mãos poderosas de Darya
Petrovna, algo estava sendo arrastado, e esse “al-
go”, enquanto se movia, se sentava e suas pequenas
pernas, cobertas de pelos negros, se enrolavam no
chão. O “algo”, é claro, era Sharikov, completamen-
te perdido, ainda meio embriagado e usando apenas
uma camisa.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
cuperar o juízo.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
tou Sharikov, que imediatamente começou a gemer.
– Bem, bem...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
CA
PÍ
TU
LO
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C o r a ç ã o d e
9
C a c h o r r o
O espetáculo com Sharikov, prometido pelo Dr.
Bormenthal, não aconteceu. Na manhã seguin-
te, Poligraf Poligrafovich desapareceu de casa.
Bormenthal entrou em desespero, se xingou de
idiota por não ter escondido a chave da porta
da frente, gritou que isso era imperdoável e
terminou desejando que Sharikov fosse atro-
pelado por um ônibus. Filipe Filipovich ficou
sentado em seu escritório, passando os dedos
pelos cabelos, dizendo:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
fundos do comitê, com a desculpa de que iria com-
prar manuais na loja da cooperativa.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
rikov para que começassem a procurar em todos os
cantos de Moscou.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Achei um trabalho, senhor Filipe Filipovich – fi-
nalmente começou ele.
– Dê-me o papel.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Sim, foi Shvonder – respondeu Sharikov.
– Doutor!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Eles apareceram no hall imediatamente.
– Doutor, eu imploro.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Se comportou mal na noite de bebedeira.
– Bebedeira...
– Não vo...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Onde mais eu vou ficar? – respondeu Sharikov ti-
midamente, olhando em volta.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Assim, o apartamento ficou em silêncio e permane-
ceu assim por dois dias. Poligraf Poligrafovich saía
de manhã no caminhão, voltava à noite e jantava
tranquilamente com Filipe Filipovich e Bormenthal.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich piscou os olhos, pensou olhando pa-
ra a jovem de aparência desgrenhada e a convidou
muito educadamente.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich estava em pé junto à mesa, e a jo-
vem chorava com força em seu lenço manchado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Você o encontrou mesmo naquela porta?
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Sharikov, olhando para o nariz de Bormenthal, não
se mexeu.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Você está com dor de novo, meu amigo? – per-
guntou Filipe Filipovich.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
apartamento. Assinado pelo chefe do departamento
de limpeza, P.P. Sharikov. Presidente do comitê de
moradia, Shvonder. Secretário, Pestrukhin.”
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich apenas balançou desesperadamen-
te a mão. Então o paciente percebeu que o professor
estava encurvado e até parecia ter envelhecido nos
últimos tempos.
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– Pegue suas coisas: calças, casaco, tudo o que você
precisa, – e saia do apartamento!
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
lançou um gesto obsceno para Filipe Filipovich. En-
tão, com a mão direita, apontou um revólver para
Bormenthal. O cigarro de Bormenthal caiu como uma
estrela cadente. Alguns segundos depois, Filipe Fi-
lipovich estava se debatendo entre os cacos de vidro
quebrados e correndo do armário para o sofá. Sobre
este, atirado e tentando respirar, estava um encar-
regado do subdepartamento do Departamento de
Limpeza da Cidade; Bormenthal, o cirurgião, estava
sentado sobre seu peito, tentando sufocá-lo com
uma pequena almofada branca.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
– O professor pede que vocês não saiam do apartamento.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
os históricos clínicos dos pacientes do professor!
O rosto do médico parecia ter ficado completa-
mente angustiado naquela noite e, totalmente...
em pedaços. Naquela noite, Filipe Filipovich nem
parecia ele mesmo. E mais uma coisa... Bem, tal-
vez a inocente garota do apartamento ao lado es-
teja mentindo mesmo...
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
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LO
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C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
EPÍLOGO
Dez dias após a batalha na sala de exames do aparta-
mento do Professor Preobrazhensky, na rua Obukhov,
uma campainha tocou repentinamente.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipovich, autoritário e enérgico, cheio de dignidade,
se apresentou diante dos visitantes noturnos e pediu
desculpas por estar de roupão.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Os soluços de Zina cobriram o fim de suas palavras.
Houve uma comoção.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
O Dr. Bormenthal sorriu e saiu.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
- Não fui eu quem o nomeou para lá – respondeu
Filipe Filipovitch – Foi o Sr. Shvonder que recomen-
dou-o, se não estou enganado.
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
Filipe Filipovich deu de ombros.
Filipe Filipovich:
Doutor Bormenthal:
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
E Shvonder:
***
C o r a ç ã o d e C a c h o r r o
de, eles cortaram a minha cabeça por algum motivo,
mas isso vai cicatrizar logo. Não quero nem saber.”
***
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