Os 3 Caminhos de Hécate

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J.

Herculano Pires

Os 3 Caminhos
de Hécate
Crônicas do Irmão Saulo

(Lições de Espiritismo)

Editora Paidéia Ltda.


J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 2
Título: Os 3 Caminhos de Hécate
Autor: J. Herculano Pires
9ª Edição - Abril de 2004 - 1500 exemplares
Coordenação Editorial: Herculano Ferraz Pires
Capa: Andrei Polessi
Diagramação: Adriana Cury Pires
Laser Film: Sérgio A. Franco
Revisão: Flávia Cury Pires / Tatiana Cury Pires
Número do ISBN 85 – 88849 – 26 – 7

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Paidéia Ltda
Rua Dr. Bacelar, 505A - V. Clementino
CEP 04026-001 São Paulo - SP
Tel. (011) 5549-3053 / 5182-5836
www.editorapaideia.com.br

Apoio:

J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 3

Contracapa (esquerda)
Os 3 Caminhos de Hécate

O Autor deste livro, professor J. Herculano Pires, o


fez através de uma seleção de suas crônicas que foram
publicadas nos Diários Associados, nos anos 60, com o
pseudônimo de Irmão Saulo.
Como a versão original está esgotada, estamos pu
blicando uma nova edição, onde a única alteração feita foi
separar as crônicas por assunto abordado: Ciência,
Filosofia e Religião, sem alterar o conteúdo original do
livro.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 4

Contracapa (direita)

José Herculano Pires foi o que podemos chamar


homem múltiplo. Em todas as áreas do conhecimento em
que desenvolveu atividades – dentro e fora do movimen to
doutrinário – sua inteligência superior iluminada pela
doutrina espírita e pela cultura humanística brilhava com
grande magnitude, fazendo o povo crescer espiritual
mente. Herculano Pires foi mestre em Filosofia da Edu
cação na Faculdade de Filosofia de Araraquara e mem bro
da Sociedade Brasileira de Filosofia. Presidente do
Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São
Paulo e fundador do Clube dos Jornalistas Espíritas de
São Paulo, que presidiu por longos anos. Diretor da Uni ão
Brasileira de Escritores e vice-presidente do Sindicato dos
Escritores de São Paulo. Presidente do Instituto Pau lista
de Parapsicologia (...). E, o que é mais importante:
espírita desde os vinte e dois anos de idade, ninguém no
Brasil e no estrangeiro mergulhou tão fundo nas águas
cristalinas da Codificação Kardeciana e ninguém defen
deu mais e com mais competência do que ele a pureza
doutrinária (...)
(Do livro
J. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec,
de Jorge Rizzini)
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 5

Aos três anjos:

As meninas Julie e Caroline Baudin e a


srta. Japhet,

que representaram, no plano mediúnico,


as três faces de Hécate,

apontando a Kardec os três caminhos da


Doutrina Espírita.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 6

Índice
“Hécate” .................................................................................. 8
Primeira Parte – Ciência .......................................... 10 1 –
Ciência e Superstição....................................................... 11 2 –
Provas Empíricas ............................................................. 14 3 –
Seqüência das Ciências.................................................... 17 4 –
Fenômenos de Materialização.......................................... 20 5 –
Ciência e Religião............................................................ 25 6 –
Preservativo da Loucura .................................................. 28 7 –
Sonhos Premonitórios...................................................... 31 8 –
Tarefa de Hécate.............................................................. 34 9 –
Psicologia Espírita ........................................................... 37
Segunda Parte – Filosofia ......................................... 40 10
– Um Divisor de Águas .................................................... 41 11
– Os Fatos e a Doutrina..................................................... 44 12
– Cristianismo do Cristo ................................................... 47 13
– Da Magia ao Mito.......................................................... 50 14 –
O Velho e o Novo .......................................................... 54 15 –
A Seara Imensa.............................................................. 57 16 –
Método e Bom-senso ..................................................... 60 17 –
Kardec, o Demiurgo....................................................... 63 18 –
Religião Reconstruída.................................................... 66 19 –
Filosofia de Vida ........................................................... 69 20 –
O Complexo e a Caridade .............................................. 72 21 –
O Que é Mais Fácil ........................................................ 75 22 –
Heranças Tribais ............................................................ 78 23 –
A Verdade e a Violência................................................ 81 24 –
A Lei como Pedagogo.................................................... 84 25 –
Cristãos e Filósofos........................................................ 87 26 –
Espiritismo e Cultura ..................................................... 90
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Terceira Parte – Religião .......................................... 94 27


– O Impacto Espírita......................................................... 95 28 –
Desenvolvimento Espiritual........................................... 98 29 –
Moral e Religião .......................................................... 102 30 –
Sincretismo Religioso .................................................. 105 31 –
Mediunidade Bíblica.................................................... 109 32 –
Fanatismo Sectário....................................................... 113 33 –
Religião Espiritual ....................................................... 117 34 –
Perante o Natal............................................................. 120 35 –
Bases Bíblicas.............................................................. 123 36 –
Espontaneidade Mediúnica .......................................... 126 37 –
A Reencarnação e a Cultura......................................... 130 38 –
Jesus e Nicodemos....................................................... 135 39 –
A Magia da Água......................................................... 138 40 –
Religião Psíquica ......................................................... 141 41 –
Sincretismo Cristão...................................................... 144
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 8

“Hécate”
Hécate, filha do titã Perseu, o resplandecente, e de
Astéria, a donzela estelar, foi a única sobrevivente da
era titânica que manteve o seu poder sob o domínio de
Zeus. Honrada pelos mortais e pelos imortais, era re
presentada como deusa tríplice. Triângulo divino, não
apresentava a deformidade de um corpo com três ca
beças, mas a harmonia de três corpos unidos, como um
grupo de três jovens de costas voltadas umas para as
outras.
As faces de Hécate olhavam o cosmos em três di
reções. Estava presente no mistério das encarnações e
das desencarnações. Vivia na Terra, mas descia aos in
fernos e subia aos céus. Quando Deméter procurava sua
filha Perséfone, raptada por Hades, o deus infer nal,
Hécate saiu ao seu encontro com um facho de luz e,
arrebatando-a nos seus corcéis, levou-a até o Sol.
Deméter soube, então, na luz solar, o destino da filha
desaparecida.
Hécate, a deusa tríplice, no céu era a Lua, na Ter ra
era Diana, no inferno, Prosérpina. O mistério da
trindade, que é uma das mais antigas formas mitológi
cas, encontrou em Hécate a sua mais poética expres são.
Invocavam-na para afastar as almas dos mortos, nos
casos de possessão ou loucura. Nas noites de luar,
aparecia nas encruzilhadas, acompanhada de almas er
rantes e de animais. para torná-la propícia, ou para que
auxiliasse as almas perdidas, ofereciam-lhe nas encru
zilhadas os resíduos dos sacrifícios aos deuses.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 9

A deusa tríplice era também representada por três


caminhos cruzados. Os caminhos de Hécate conduzi am
aos três planos do seu império cósmico: o mundo
subterrâneo, o mundo terreno e o mundo celeste. Deu sa
dos mistérios da terra e do espaço, Hécate asseme lha-se
à doutrina tríplice do Espiritismo, que pelos caminhos
da ciência, da Filosofia e da Religião, arran ca
Perséfone do hades, conduz Deméter ao Sol e trans
forma os resíduos mitológicos em auxílio para as al mas
e os homens.
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Primeira Parte

Ciência
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1 – Ciência e Superstição
Em artigo distribuído pela APLA, aos jornais de todo o mun
do, Chapman Pincher escreve de Londres, estranhando que o nosso
século, considerado Idade da Ciência, seja também a Gran de Idade
da Superstição. Mas, procurando explicar essa situação
contraditória, faz uma descoberta curiosa: a de que a ciência gera a
superstição. Como se vê, trata-se de uma explicação dialética, bem
ao gosto do século. Mas uma explicação que não passa de simples
paliativo.
Qual a razão pela qual o nosso século seria a grande Idade da
Superstição? Primeiro, segundo explica Chapman Pincher, por
causa dos Discos Voadores. Depois, porque há uma crença geral
em “poltergeists”, ou seja: “espíritos sobrenaturais e dotados da
capacidade de mover objetos materiais”. E depois, ainda, porque
milhões de pessoas, em todo o mundo, acreditam que os espíritos
dos mortos podem comunicar-se com os vivos e até mesmo mate
rializar-se”.
A posição do Sr. Pincher não é única. Há milhares de intelec
tuais, pelo mundo inteiro, escrevendo artigos, pronunciando con
ferências, dando aulas e publicando livros, nesse mesmo sentido.
Para todos eles, aceitar a possibilidade da existência de espíritos é
revelar atraso mental, apego a superstições superadas pelo desen
volvimento das ciências. Que resposta podemos dar a esses ho mens
ilustres, não raro dotados de grande capacidade mental, que
relegam ao porão do subconsciente as nossas mais sólidas convic
ções?
Há espíritas que se impressionam com isso. Muitos nos es crevem,
perguntando como explicar-se a existência de tanta e tão ferrenha
negação, de parte de homens esclarecidos. A melhor
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resposta nos é dada pela própria história da chamada “superstição


espírita”. Até hoje, desde as famosas investigações da Sociedade
Dialética de Londres, para desfazer a “praga do século” – que era
então, e isso no século XIX, o Espiritismo –, nenhum investigador
sério pôs a mão no fogo sem ser queimado. Quer dizer: até hoje,
nenhum cientista que se atreveu, com seriedade, a investigar os
fatos espíritas, deixou de comprová-los. E muitos tornaram-se
espíritas, inclusive o maior deles, que foi William Crookes, o
Einstein do século XIX.
O que acontece, pois, é que o Sr. Pincher, e muitos outros
como ele, apegam-se aos seus conhecimentos com o mesmo fana
tismo dos supersticiosos. Não são mais do que supersticiosos de
outra categoria. Acreditam piamente que a concepção científica do
mundo é a última palavra no plano do conhecimento, esqueci dos
das tremendas lacunas, das falhas gigantescas, das enormes
manchas de dúvida e incerteza que revelam a necessidade de
maiores investigações e maior ponderação. Esquecem-se de que as
ciências, todas elas, estão ainda em desenvolvimento, constitu em
processos inacabados. E assim como as religiões, apoiando-se no
pressuposto da revelação divina, julgam-se no direito de sus tentar
seus dogmas absolutos, assim estes agnósticos se conside ram, com
apoio nas conquistas da ciência, com o direito de impor os seus
dogmas, igualmente absolutos.
Para escrever o que escreveu, o Sr. Pincher deve ignorar as
experiências da Metapsíquica, da Parapsicologia e da Ciência
Psíquica inglesa. Deve ignorar também as investigações de certos
religiosos, inclusive da comissão de pastores anglicanos, que há
poucos anos, na própria Inglaterra, agindo em defesa de sua reli
gião, mas sendo sinceros, tiveram de concluir pela realidade da
fenomenologia espírita. Deve ignorar, ainda, as pesquisas do
Professor Price, da Universidade de Oxford, que concluem pela
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mesma realidade. Deve, enfim, ignorar muita coisa, apesar de todo


o seu possível saber.
E entre as coisas que o Sr. Pincher ignora, podemos incluir
esta: não é a ciência que gera superstições, mas a incapacidade da
ciência é que transforma em superstições muitas coisas reais, que
podiam ser explicadas. Essa incapacidade, por sua vez, decorre em
grande parte do dogmatismo científico de que o Sr. Pincher é um
exemplo. Uma das coisas que mais se apontavam contra a realidade
dos fatos espíritas, no século XIX, era o chamado “ab
surdo” dos fenômenos de levitação. Como se poderia admitir a
levitação, se ela contrariava a lei da gravidade: Entretanto, o
Professor Crawford, da Universidade de Belfast, catedrático de
mecânica, incumbiu-se de investigar os fatos e chegou a descrever
a própria mecânica da levitação. Sua teoria da alavanca fluídica,
experimentalmente comprovada, figura no “Traité de Metapsichi
que”, de Richet. Provou Crawford que a levitação não contrariava
nenhuma lei científica.
Quanto à materialização, que tanto aborreceu o Sr. Pincher,
sua prova científica não foi feita pelos espíritas, mas por sábios
como Crookes, que era físico, e Richet, fisiologista. Dois sábios
que não se fecharam em posições dogmáticas, mas procuraram
verificar o que havia a respeito de problemas tão complexos. Não é
científica, como bem dizia Ernesto Bozzano, a atitude dos que, em
nome de princípios, negam os fatos que os contrariam. Esta
mos certos de que, se o Sr. Pincher pensasse um pouco nessa
afirmação de Bozzano, não continuaria a escrever contra a ciência
que tanto ama, para acusá-la de mãe da superstição. Apesar de
dialética, essa posição é muito incômoda para um homem que
distribui pensamentos pelo mundo, através de agências jornalísti
cas. Porque o mundo, apesar dos pesares, está cheio de gente que
conhece muita coisa que o Sr. Pincher ignora.
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2 – Provas Empíricas
“Por que materializar espíritos, quando o que mais precisa mos
é de espiritualizar homens?”, pergunta-nos um leitor. A resposta é
simples: porque assim provamos a existência do espíri to. As
tentativas de espiritualização do homem através da razão e da fé, de
que a Idade Média nos oferece o mais completo exem plo, não
deram os resultados desejados. Pelo contrário: o desen volvimento
do materialismo, através das ciências empíricas, ame açou de
destruição completa o edifício milenar da fé. E foi exata mente
nessa hora que os fenômenos espíritas reagiram contra o
materialismo, usando, como diz Kardec, as mesmas armas deste e
no seu próprio campo de ação.
As pessoas satisfeitas com as teorias espirituais que esposam,
em geral não compreendem a necessidade de provas materiais da
existência do espírito. Mas a própria história se incumbe de nos
mostrar que essas provas são necessárias, a começar pelo episódio
de são Tomé. Os homens se dividem, segundo um princípio filo
sófico, em racionais e empíricos. Os racionais se contentam com a
demonstração de tipo silogístico, aristotélico, mas os empíricos
exigem a experiência concreta, querem por os dedos nas chagas. E
se os primeiros são bem-aventurados, nem por isso o Cristo des
prezou os segundos, pois submeteu-se à prova. Por outro lado, é
preciso convir que Kant tinha razão, ao mostrar que a razão pura
pode levar-nos a todas as antinomias.
Há muitos espíritas que nunca puseram os dedos nas chagas,
muitos bem-aventurados que se fizeram espíritas por força do
simples raciocínio. Mas há outros que só chegaram à concepção
espírita depois de longas lutas, anos de dúvida e hesitação, duran
te os quais as provas materiais exerceram papel decisivo no seu
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processo pessoal de espiritualização. Os fenômenos físicos da


mediunidade: “raps”, movimento de objetos, materializações e
desmaterializações parciais ou totais, e voz direta (pelo qual os
espíritos falam diretamente, vibrando sua voz no ar, sem se servi
rem do aparelho vocal do médium), constituem a base das pesqui
sas científicas do Espiritismo. e alguém poderá alegar a inutilida de
dessas pesquisas, na era científica em que vivemos?
Quantas angústias, quantos desesperos foram e são minorados
pelas experiências espíritas de materialização! Isso prova que as
materializações não pertencem apenas à ciência, mas também à
religião. São uma das formas mais eficientes de consolação ofere
cidas pela doutrina espírita. Frederico Figner e sua esposa, deso
lados com a perda de sua filha Rachel, só encontram consolo
quando a menina se materializa nas famosas sessões da médium
Ana Prado, no Pará, provando-lhes que não havia sido destruída
pela morte e pedindo à mãe que tirasse o luto. Lombroso, o gran de
criminologista italiano, sente-se renovado ao ver sua mãe
materializada, numa sessão com Eusápia Paladino. As materiali
zações consolam, confortam, renovam o homem, abrem-lhe pers
pectivas novas ao pensamento, demonstrando de maneira concreta
a continuidade da vida após a morte. Foi graças a elas que Richet, o
grande fisiologista, depois de angustiantes dúvidas, rendeu-se à
evidência da sobrevivência e declarou, numa carta a Cairbar
Schutel: “A morte é a porta da vida”.
Há quem se mostre aterrorizado com a possibilidade dos fe
nômenos de materialização, como aconteceu com o escritor Tho
mas Man. O medo da morte, cultivado no homem ocidental atra vés
de milênios, tem raízes profundas. Mas há também os que se
alegram e se entusiasmam com eles, como o escritor Denis Brad ley
em “Rumo às Estrelas”. A verdade, porém, é que, existindo os
fenômenos, devem ser objeto de pesquisa. O Espiritismo não os
utiliza somente para provar a sobrevivência espiritual, mas tam-
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bém e principalmente para investigar as relações existentes entre o


sensível e o inteligível, a forma e a matéria, o corpo espiritual e o
corpo material (do apóstolo Paulo), a alma e o corpo das con
cepções religiosas. Esse problema é de importância fundamental
para o homem, muito mais do que a desintegração atômica e a
conquista do espaço sideral. E os fenômenos de materialização
encerram os segredos da sua evolução.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 17

3 – Seqüência das Ciências


Pergunta-nos um leitor amável: “Se os fatos espíritas sempre
existiram, por decorrerem de leis naturais, por que o Espiritismo só
pôde aparecer e se definir em meados do século XIX, segundo leio
em sua última crônica?” A resposta nos é dada por Kardec, no
primeiro capítulo de seu admirável livro “A Gênese”, para o qual
remetemos o leitor. Para antecipar-lhe, entretanto, a informa
ção que naquele texto irá obter de maneira completa e minuciosa,
diremos alguma coisa a respeito.
Kardec nos lembra que “todas as ciências se encadeiam e se
sucedem numa ordem racional, nascendo uma das outras, à medi da
que encontrem pontos de apoio nos conhecimentos anteriores”. E
acrescenta: “O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos
elementos constitutivos do Universo, toca forçosamente na maio ria
das ciências, e não podia aparecer senão depois da elaboração
delas.” Da mesma maneira por que a Sociologia não poderia
aparecer e se definir nos séculos anteriores, embora os fatos soci ais
e a sociedade sempre existissem, o Espiritismo não poderia fazê-lo
antes, embora os Espíritos e os fatos espíritas sempre existissem.
O objeto do Espiritismo é o princípio espiritual. Este princí pio,
porém, não poderia ser encarado de maneira positiva, pelo homem
encarnado, senão depois do seu progresso no conhecimen to do
princípio material. A mente humana se eleva progressiva mente de
um plano a outro. Não precisamos senão de observar o processo
natural do desenvolvimento do conhecimento, tanto do ponto de
vista psicológico, quanto do epistemológico, para verifi carmos
isso. Sem o desenvolvimento das ciências materiais o
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 18
conhecimento das leis gerais da matéria, o homem não estaria em
condições de enfrentar a investigação das leis gerais do espírito. Há
quem estranhe a falta de desenvolvimento da ciência espí rita, em
face do rápido avanço das ciências materiais, no correr da última
centúria. Mas Augusto Comte já observava, em seu “Curso de
Filosofia Positiva”, que as ciências materiais “se desenvolvem mais
rapidamente”, por serem estudadas com isenção de ânimo, uma vez
que o seu objeto é exterior e estranho ao homem. A ciência espírita
tem por objeto o próprio homem, naquilo que constitui a sua
substância, o seu próprio ser. Comte transferia a substância do
homem para o social, reduzindo o indivíduo a uma estrutura
fisiológica. O homem, como espírito, como expressão psíquica,
como entidade cultural, se encontrava na sociedade. Por isso,
considerava a física social, mais tarde denominada sociolo gia,
como a última ciência na escala do conhecimento, a que mais
tardiamente teria de ser elaborada.
Kardec, descobrindo a autonomia do espírito, ser individual
que se desenvolve em sociedade mas não se absorve nesta – pelo
contrário, a transcende –, abriu as portas de uma ciência nova, de
mais difícil desenvolvimento que a sociologia, e que realmente é a
última a ser atingida pelo homem, pois é a sua própria ciência.
Evidente que seu progresso tem de ser mais lento, mais laborioso e
até mais doloroso que o das ciências anteriores. A observação de
Comte, referente ao mais fácil desenvolvimento das ciências
exteriores, cujos objetos estão fora do homem e distanciados dele,
lembra-nos um trecho de Kardec em “A Gênese”, capítulo primei
ro, que acentua alguns motivos de retardamento do progresso da
ciência espírita. São motivos decorrentes da condição apontada por
Comte para a física social. Diz Kardec: “O simples fato da
possibilidade de comunicação com os seres do mundo espiritual
tem conseqüências incalculáveis e da maior gravidade; é todo um
mundo novo que se nos revela, e cuja importância é tanto maior,
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 19

quanto a ele se destinam todos os homens, sem exceção. Esse


conhecimento não pode deixar de produzir, ao se generalizar,
profundas modificações nos costumes, no caráter, nos hábitos e nas
crenças, que exercem tão grande influência sobre as relações
sociais.”
Bastariam essas conseqüências para justificarem o apareci
mento, por assim dizer, tardio do Espiritismo, bem como a falta de
maior impulso no seu desenvolvimento, a par das demais ciên cias.
O Oráculo de Delfos já ensinara a Sócrates que a ciência mais
elevada é a do “conhecimento de si mesmo” e o tempo se incumbiu
de provar a verdade do ensino. A última das ciências é a que nos
liberta da matéria.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 20

4 – Fenômenos de Materialização
Vários leitores nos fazem perguntas sobre os fenômenos de
materialização de espíritos. “Isso é verdade? Os espíritos se mate
rializam, se tornam tangíveis e podem ser fotografados? Esses
fenômenos são de fácil obtenção? Até mesmo em círculos incultos
é possível o aparecimento de materializações legítimas? E por que
o escuro? Por que não aparecem as materializações em plena luz?
Essa fotofobia não justifica as acusações de fraude, formuladas em
todos os casos?”
O problema das materializações é realmente um dos mais
complexos da ciência espírita. Todas essas perguntas têm razão de
ser. Mas, por outro lado, todas elas tem resposta e as respostas já
foram dadas há muito tempo, por investigadores espíritas e não
espíritas, alguns deles representando nomes honrosos nas ciências
materiais. Para começar, diremos que é verdade. Sim, os espíritos
realmente se materializam e, quanto a isso, não pode haver a menor
dúvida, por parte das pessoas que tenham procurado co nhecer o
problema. Já não somos nós, os espíritas, que dizemos isso: são os
cientistas que realizaram experiências a respeito, no passado e no
presente.
Que as materializações são tangíveis e podem ser fotografa das,
também é indiscutível. Aí estão as experiências de Crookes e
Richet; o “Tratado de Metapsíquica”, com suas magníficas ilus
trações, as investigações atuais, realizadas nos Estados Unidos e na
Europa; as experiências felizes efetuadas em nosso país. Desde o
caso célebre da médium Ana Prado, no Pará, até o das materia
lizações luminosas do médium Peixotinho, no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte, atestadas pelo livro recente do delegado Ranieri.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 21

Quanto à facilidade na obtenção dos fenômenos, tudo depen de,


como em todos os casos em que desejarmos “interrogar a
natureza”, seja no plano das ciências materiais, seja no Espiritis mo,
da existência de condições favoráveis e de aparelhagem suficiente.
Não podemos obter fenômenos de materialização se não
dispusermos de um médium especial, de um grupo de pessoas
capazes de nos auxiliarem em trabalho sério e persistente, de local
adequado para as experiências. Dispondo de todos esses elemen tos
e, ainda, se o médium estiver em condições físicas e psíquicas
normais, obteremos os fenômenos com relativa facilidade.
A produção desses fenômenos em círculos incultos é também
possível. Acontece, porém, que nesses círculos não há condições
para verificação da legitimidade das aparições. Por outro lado, não
havendo conhecimento das dificuldades para obtenção dos
fenômenos, nem uma compreensão ampla da sua significação,
esses círculos são mais sujeitos a fraudes e mistificações, não raro
produzidas pelos próprios espíritos. A bibliografia espírita, e
mesmo a não espírita, registram numerosos casos de fenômenos de
materialização em tribos selvagens. O professor Ernesto Boz zano
escreveu um belo livro a respeito, recentemente reeditado em
Verona, por Edizioni Europa, com o título: “Popoli Primitivi e
Manifestazioni Supernormali”.
No tocante ao problema da luz, devemos acentuar que a escu
ridão não é condição obrigatória. As sessões de Crookes, por
exemplo, as mais importantes realizadas na Europa no século XIX,
foram quase todas com luz. Atualmente, nos Estados Uni dos,
segundo relatos da sra. Marshall, para a “Revista Internacio nal do
Espiritismo”, numerosas experiências foram realizadas, com pleno
êxito, à luz do dia. No Brasil também há casos de materialização
nessas condições.
Em geral, os médiuns sensíveis à luz precisam submeter-se a
uma espécie de treinamento, para suportá-la. Em muitos casos, a
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 22

luz afeta as formações ectoplásmicas, prejudicando o médium, mas


há o recurso de conservar-se o médium num gabinete escuro, do
qual saem as formas materializadas para uma sala com luz tênue.
De qualquer maneira, o problema da luz não justifica as acusações
de fraude, pois sabemos que muitos fenômenos quími
cos e biológicos somente se realizam no escuro. As materializa ções
envolvem melindrosos e ainda não esclarecidos problemas nesses
dois campos da ciência.
O médico italiano Enrico Imoda efetuou numerosas experiên
cias, na primeira década do século XX, para obtenção de fotogra
fias mediúnicas. Obteve êxito notável nas sessões realizadas com a
médium Linda Gazzera, uma jovem de vinte e dois anos, e
elaborou um trabalho que foi publicado logo após a sua morte, com
o título de “Fotografie di Fantasmi”. Essas fotografias foram
tiradas pelo antigo sistema de lâmpadas a magnésio, o que basta
para confirmar que as formas materializadas resistem à luz, por
mais forte que esta se apresente. Embora se tratasse, em geral, de
fenômenos ideoplásticos, a prova tem o mesmo valor, pois a
ideoplastia é também materialização, não de espíritos, mas de
formas mentais produzidas pelo médium ou pelos espíritos que o
assistem.
A srta. Linda Gazzera apresentava uma mediunidade curiosa,
capaz de produzir fenômenos físicos com extrema rapidez, mal se
apagava a luz. Guillaume de Fontenay, experimentador francês que
participou das sessões, observou que em menos de um minuto os
fenômenos começavam a produzir-se, de maneira intensa e variada.
Entretanto, a médium não suportava a luz e o seu guia espiritual,
Vincenzo, exigia sempre que se fizesse plena escuridão na sala de
trabalhos. Fontenay entendia que essa fotofobia da médium podia
ser vencida aos poucos. De qualquer maneira, os fenômenos
obtidos por Imoda, e depois também por richet, com Linda
Gazzera, provam a excelência dos seus dons mediúnicos.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 23

Temos, portanto, dois casos clássicos de materializações que


se realizavam em condições contrárias: o de William Crookes, com
a jovem médium Florence Cook, cujas aparições se produzi am com
luz, e o de Enrico Imoda, com linda Gazzera, que exigia escuridão.
Vê-se que o problema da luz está ligado, de certa for ma, às
condições pessoais do médium, seja no plano psíquico, seja no
fisiológico. Outras numerosas experiências, e várias ocor rências de
aparições espontâneas em pleno dia, mostram que não há uma
fotofobia generalizada, nos casos de materialização. Não se pode
dizer, portanto, que o escuro seja condição essencial para a
produção dos fenômenos, que podem realizar-se também em plena
luz.
Guillaume de Fontenay, que foi vice-presidente da Seção de
Paris da Sociedade Universal de Estudos Psíquicos, formulou uma
curiosa teoria sobre os fenômenos de materialização. Segundo essa
teoria, os fenômenos apresentam vários estados, dos quais se
destacam três fundamentais. Desses três, os dois primeiros podem
ser considerados como estágios, como fases preparatórias da
materialização completa. Parece que a luz exerce influência nega
tiva apenas no primeiro estágio. A teoria de Fontenay foi confir
mada por experiências de Ochorowicz em Varsóvia, com a mé dium
Stanislawa. Fontenay, pelo menos, assim considerou o resultado
daquelas experiências.
Em carta dirigida a Demaison, e publicada no livro de Enrico
Imoda, “Fotografie di Fantasmi” (Edições Fratelli Bocca, Turim,
1912), Fontenay expõe a sua teoria nos seguintes termos: “Consi
dero que as materializações de formas apresentam vários estados.
O primeiro – e o segundo, creio –, o mais fácil de obter-se, é o
estado em que elas são tangíveis, consistentes, capazes de se
moverem e de movimentar objetos, mas permanecem invisíveis,
mesmo em plena luz. Num segundo estado, as formas materiali
zadas são, ao contrário, visíveis, mas inconsistentes. Pode-se
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 24

atravessá-las com a mão, sem experimentar nenhuma sensação


tátil, a não ser, por vezes, a que alguns observadores chamaram
“sensação de teia de aranha”. Afinal, num terceiro estado, que
parece ser o mais difícil de obter-se, a materialização se completa,
o que quer dizer que as formas criadas revestem todos os atributos
normais da matéria: consistência, poder mecânico, visibilidade.”
Essas explicações de Fontenay, segundo nos parece, respon
dem às perguntas de vários leitores sobre o problema da luz nos
fenômenos de materialização. Ao caso particular de Linda Gazze ra,
a teoria se aplica de maneira admirável. Linda não tolerava a luz,
mas os fenômenos produzidos pela sua mediunidade apresen tavam
mobilidade, força mecânica e consistência. Daí a conclusão de
Fontenay, de que a médium podia desenvolver a capacidade de
produzir fenômenos completos em plena luz.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 25

5 – Ciência e Religião
Os estudos que temos feito sobre a ciência espírita e sua posi
ção no quadro geral do conhecimento visam tão somente demons
trar que o Espiritismo não pode ser tratado ligeiramente por pes
soas que não conhecem a sua estrutura doutrinária, e muito menos
ser encarado através dos aspectos da sua difusão popular, como
religião. Mas não queremos negar, com isso, o caráter religioso da
doutrina. Pelo contrário, já tivemos ocasião de afirmar, várias
vezes, que o Espiritismo é uma doutrina tríplice, em que a ciên
cia,a filosofia e a religião se encadeiam e se sucedem, numa or dem
lógica e, portanto, necessária.
Alguns leitores acham inútil a nossa insistência ao aspecto ci
entífico do Espiritismo, alegando que o ponto culminante da
doutrina é a religião, exatamente o aspecto mais acessível ao povo.
Entretanto, quando compreendemos que a religião espírita não
poderia existir, e não teria sentido, sem a ciência espírita, parece
evidente a importância da discussão do aspecto científico. Kardec
insistiu de tal maneira no estudo desse aspecto, deu tal ênfase ao
seu desenvolvimento, que até mesmo espíritas ilustres, ainda hoje,
fazem confusão a respeito do assunto, não admitindo a existência
da religião espírita. Mas “O Livro dos Espíritos” revela o sentido
religioso da doutrina desde o seu primeiro capítulo, e em “O
Evangelho Segundo o Espiritismo”, bem como em “O Céu e o
Inferno”, vemos configurar-se nitidamente a religião espírita, na
base dos princípios cristãos e como desenvolvimento natural do
Cristianismo.
Insistir no aspecto científico, portanto, não é contradizer o re
ligioso, nem se opor a ele ou subestimá-lo. É, pelo contrário,
segundo o próprio exemplo do codificador, manter a unidade
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 26

doutrinária, firmada em sua base científica. Para algumas pessoas,


o fato de tratarmos de ciência espírita parece pernóstico. “Chega de
ciência – dizia-nos um amigo –, precisamos é de melhorar o
homem, pela religião”. Mas desde que o mundo é mundo existem
religiões, e vemos Kardec declarar em “A Gênese”, com muita
razão, que as religiões serviram “como instrumentos de domina
ção”. A posição do Espiritismo em face desse problema é bem
outra. O Espiritismo só admite uma religião de libertação, que não
sirva de instrumento para outros fins, e por isso mesmo uma
religião fortemente apoiada na comprovação científica. Uma
religião, como dizia Kardec, que possa encarar a razão face a face,
em todas as etapas da evolução humana.
A característica do Espiritismo, no panorama religioso do mundo, é
exatamente o seu sentido racional e científico. Seu mérito especial
é haver submetido a alma à investigação científi ca, iniciando o
homem no conhecimento positivo dos problemas espirituais, até
então relegados ao plano do mistério. Kardec esclarece esses
problemas com absoluta consciência de sua impor tância e declara,
no capítulo primeiro de “A Gênese”, item 14: “As ciências só
fizeram progressos importantes depois que se basearam no método
experimental; mas, até então, acreditava-se que esse método só era
aplicável à matéria, quando o é igualmente às coisas metafísicas”.
As ciências, para Kardec, se completam com o Espiritismo, última
conquista do pensamento. Daí a sua afirmação peremptória: “O
Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente. A ciência,
sem o Espiritismo, não pode explicar certos fenômenos, com o
auxílio apenas das leis materiais; o Espiritismo, sem a ciência, não
teria a base e comprovação”.
O pensamento do codificador a respeito é de uma limpidez
admirável. O Espiritismo é para ele uma dupla revelação, ou seja,
“participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 27

científica”.1 É, portanto, ciência e religião. É ciência, quando


investiga, pesquisa, experimenta, para depois revelar as leis do
“elemento espiritual, constitutivo do universo”. É religião, quando
aceita a revelação divina das leis do Espírito, do mundo moral,
através do Evangelho do Cristo e da confirmação do Espírito da
Verdade. E entre a ciência e a religião, como uma espécie de
perispírito conceptual, ligando o corpo e o espírito da doutrina,
temos a filosofia espírita. Só através da aceitação desse esquema
kardeciano podemos realmente compreender o Espiritismo em sua
plenitude.
1
“A Gênese”, capítulo I, item 13)
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 28

6 – Preservativo da Loucura
Acusar os espíritas de loucos, apontar o Espiritismo como
caminho para o hospício e até mesmo apresentar o Espiritismo
como forma de loucura, foram expedientes muito usados e de
grande efeito em nosso país, na luta contra a propagação da dou
trina. Nem mesmo os homens de ciência deixaram de usar esse
expediente. E ainda agora, em trabalhos recentes – um deles
publicado em São Paulo, por lente universitária, e denunciado por
Deolindo Amorim em magnífico artigo no jornal “Mundo Espíri
ta” –, aparecem tristes resquícios dessa atitude. Ficou célebre a tese
do professor Henrique Roxo, posta a ridículo por Leopoldo
Machado, Carlos Imbassahy e outros, sobre a estranha doença que
se chamaria “delírio espírita-episódico”, ou seja, a “doença” da
vidência.
No exterior, entretanto, desde o princípio das pesquisas espí
ritas, os grandes mestres de psicologia e psiquiatria tomaram
atitude bem diversa. Enrico Morselli, diretor do Hospital Psiquiá
trico de Macerata e professor de Psiquiatria e Neurologia na Uni
versidade de Gênova, autor de dois alentados volumes sobre as
relações do Espiritismo com a Psicologia – apesar de não ser
espírita e de nem mesmo aceitar a “hipótese espírita” –, não admi
tia que o Espiritismo fosse causador de loucura. Pelo contrário,
referindo-se às numerosas experiências que realizou com a mé dium
Eusápia Paladino, acentuava o teor de equilíbrio, sensatez e
serenidade dos participantes dos trabalhos e acrescentava que, em
sua longa carreira de psiquiatria, haviam sido apenas quatro ou
cinco casos de alienados espíritas. Imaginemos a cifra correspon
dente a outras correntes.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 29
Charles Richet, ao tratar de acusações de histeria e de loucura
feitas aos médiuns, declara peremptoriamente no seu “Tratado de
Metapsíquica”: “Recuso-me inteiramente a considerá-los como
doentes”. E logo mais adverte: “Certamente que eles sofrem
alguma desagregação da consciência. Mas também os artistas, os
sábios e mesmo os indivíduos comuns não sofrem freqüentemente
de análogas desagregações da consciência, com autoritarismo
parcial?” Referindo-se aos grandes médiuns então conhecidos,
Richet acentua que nem a sra. Piper, nem o rev. Stainton Moses,
“possuíam qualquer característica fisiológica ou psicológica que os
distinguisse”, e terminava declarando: “esses sensitivos são como
todo o mundo”.
Uma observação curiosa de Richet, sobejamente constatada
pelos investigadores espíritas no mundo inteiro, é a naturalidade e a
espontaneidade do desenvolvimento mediúnico, assim expressas
pelo sábio: “ Na maioria dos casos, foi por acaso que eles desco
briram a sua sensibilidade. Não foi jamais por ato deliberado da
vontade que se tornaram médiuns. Seu poder desenvolveu-se
espontaneamente.” Da mesma maneira, a faculdade desaparece,
quando menos se espera, e sem que o médium “possa retê-la”,
segundo as expressões de Richet.
Como se vê, há enorme distância entre a atitude de sábios como
Morselli e Richet e a de alguns psiquiatras nacionais que se
empenham em classificar os médiuns de anormais. A mediunida de,
aliás, não é privilégio dos chamados médiuns. O Espiritismo
demonstra que a mediunidade é uma faculdade humana generali
zada. Todas as criaturas humanas são médiuns. O que existe é
apenas uma variação de graus ou de potência, como se nota em
todas as demais faculdades. O pitoresco “delírio espírita episódi co”
pode ser considerado como uma espécie de surto gripal, ou de
sarampo ou varicela, que de vez em quando ataca os grupos hu-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 30

manos. Enquanto o professor Henrique Roxo não descobrir uma


vacina eficiente, estaremos todos sujeitos a esse delírio. Kardec, em
“O Livro dos Espíritos”, estuda o problema da loucura, em face das
acusações feitas ao Espiritismo. E pergunta: “Conhece-se o número
de loucos e maníacos produzidos pelos estudos matemáticos,
médicos, musicais, filosóficos e outros? E deve-se, por isso, banir
tais estudos? O que provam esses fatos? Nos trabalhos físicos,
estropiam-se os braços e as pernas; nos trabalhos intelectuais,
estropia-se o cérebro.” A seguir, lembra Kardec que nenhuma
ciência, nenhuma arte, nenhum ramo de atividades mentais é
responsável pela loucura, que pode desen volver-se em qualquer
estudo, desde que o indivíduo tenha dispo sição para ela. E por fim
esclarece que o Espiritismo “é um pre servativo da loucura”, porque
oferece ao estudioso os elementos necessários à sua paz de espírito.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 31

7 – Sonhos Premonitórios
Os sonhos premonitórios constituem um dos mais curiosos
capítulos da fenomenologia espírita. Como explica Kardec, o sonho
é uma lembrança dos momentos de emancipação da alma, durante
o sono. Geralmente, trata-se de lembrança imprecisa, mesclada a
reflexos das horas de vigília. Quando, porém, o espíri
to é capaz de se emancipar realmente da matéria e das suas preo
cupações rotineiras, temos sonhos lúcidos, e entre eles os premo
nitórios, que nos advertem de coisas por acontecer. Ou ainda, como
no caso recente do detento que descobriu a filha do jornalis ta,
morta num rio – vendo da sua cela aquilo que os pesquisadores não
descobriam –, os sonhos são lembranças de trabalhos do espírito no
mundo espiritual, enquanto o corpo material descansa no sono.
Não é à-toa que dizem ser o sono um primo-irmão da morte. O
ditado popular corresponde, nesse caso, à realidade. Kardec o
explica no cap. VIII da segunda parte de “O Livro dos Espíritos”,
de maneira clara: “O sono liberta parcialmente a alma do corpo.
Quando o homem dorme, momentaneamente se encontra no esta
do em que estará, de maneira permanente, após a morte. Os espíri
tos que logo se desprendem da matéria, ao morrerem, tiveram
sonhos inteligentes”.
Noutro trecho do mesmo capítulo, Kardec esclarece: “O so nho é a
lembrança do que o vosso espírito viu durante o sono. Mas
observai que nem sempre sonhais. Porque nem sempre vos
lembrais daquilo que vistes. Isso porque não tendes a vossa alma
em pleno desenvolvimento. Freqüentemente, não vos resta mais do
que a lembrança da perturbação que acompanha a vossa parti-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 32

da e a vossa volta, a que se junta a lembrança do que fizeste ou a


do que vos preocupa no estado de vigília.”
Ernesto Bozzano, o grande autor espírita italiano, que con
venceu Charles Richet da realidade da sobrevivência, estudou, do
ponto de vista científico, o problema dos sonhos premonitórios, em
trabalhos notáveis como “Dei Fenomeni Premonitori”, Della
Manifestazioni Supernormali Fra i Popoli Selvaggi”, Premonizio ni,
Precognizioni, Profezie”, e na sua obra monumental, publicada em
tradução portuguesa entre nós, “Animismo ou Espiritismo”.
Gustavo Geley, Eugênio Osty, Paul Gibier e tantos outros estudi
osos, nomes ilustres da ciência contemporânea, também trataram
do assunto, sem contarmos os escritores doutrinários, que exami
naram do ângulo estritamente espírita. Trata-se, pois, de problema
bastante estudado na bibliografia doutrinária.
Muitos são os casos de premonição da morte pelo sonho. Um
deles, bem recente, é o do médium Urbano de Assis Xavier, de
sencarnado em Marília em 1959. Cerca de dois anos antes de haver
sofrido o derrame cerebral que acabou vitimando-o, Urba no, então
em plena saúde, sonhou que se encontrava, no plano espiritual, com
uma entidade amiga, e esta o advertia: “Até 1960 estarás deste
lado.” Contando o fato, Urbano dizia que, ao ouvir a advertência,
sentiu-se emocionado. Então, a entidade lhe pergun tou: “Tens
medo?” Tendo ele respondido negativamente, objetou, entretanto:
“Tenho receio apenas do instante da passagem, do momento de me
desprender do corpo.” A entidade sorriu e disse: “Não te arreceies
disso, pois nem sequer perceberás esse momen to.”
O sonho, que Urbano contava constantemente aos amigos, a
firmando que havia sido muito nítido, mas ficando entre a crença e
a descrença, quanto à sua consumação, realizou-se plenamente. O
momento da morte foi para ele tão rápido, que nem deve ter sido
percebido. Mas o sorriso da entidade que o advertia pode
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 33

relacionar-se com as provas que ele teria de sofrer, antes desse


momento. Porque de fato era curioso que ele temesse justamente a
fase mais rápida, quando tudo o que devia temer estava nas prece
dentes.
Quando o médium desencarnou, no último dia de outubro de
1959, os amigos que dele tinham ouvido o sonho compreenderam a
natureza premonitória do mesmo. Podem perguntar os leitores qual
a utilidade da premonição, se o próprio interessado a punha em
dúvida. Lembremo-nos, porém, de que os sonhos são lem
branças do que se passa com o espírito nos momentos de despren
dimento do corpo. A advertência da entidade deve ter sido muito
mais ampla e com finalidade espiritual. O médium, em estado de
vigília, recordava-se apenas de um episódio, que interessava para
preveni-lo, e talvez também como novo exemplo da possibilidade
premonitória dos sonhos, em casos de morte. O sonho, portanto, foi
apenas um fragmento do que realmente se passou entre o médium e
a entidade, que o preparava espiritualmente para as provas finais da
vida terrena.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 34

8 – Tarefa de Hécate
“Não acha o confrade que devemos deixar de construir hospi
tais para alienados mentais e cuidar com mais interesse da cons
trução de orfanatos e asilos? Os hospitais de alienados são terri
velmente onerosos, tanto na construção quanto na manutenção, e
causam verdadeiros transtornos, pela má vontade com que são
vistos pelos organismos oficiais. Além disso, servem de arma
contra nós, pois os adversários chegam a dizer que os construímos
com dor de consciência, para curar os loucos que nós mesmos
produzimos. Na minha opinião, fecharíamos todos esses hospitais.
O governo e os que nos combatem que cuidassem dos loucos!”
Assim nos escreve um confrade, irritado com uma crônica de
imprensa – que aliás já analisamos nesta coluna –, e com um artigo
de certo pastor, batendo na mesma e velha tecla, tão gasta que o seu
pobre som serve apenas para irritar os nervos: “as práti
cas espíritas produzem loucura”. Damos razão ao confrade, no que
toca ao seu estado de irritação. Porque, de fato, não somos anjos e
nem sempre dispomos de suficiente paciência para ouvir
continuamente os velhos sons dessa tecla enferrujada pelo tempo.
Mas, por outro lado, discordamos fundamentalmente da sua atitu
de e das suas conclusões.
O problema da construção de hospitais espíritas, destinados à cura
de alienados mentais, é da mais alta responsabilidade doutri nária.
Longe de interromper nossas atividades nesse terreno, ou fechar os
hospitais que possuímos, ou de transformá-los em noso cômios de
outra natureza, o que devemos é construir mais e mais instituições
dessa ordem. Quanto maior o número de hospitais espíritas para
doentes mentais e psíquicos, melhor estaremos agindo, no
cumprimento dos nossos deveres. Que importa o que
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 35

digam os adversários? Pois até do Mestre, que é o Divino Modelo


das supremas aspirações cristãs, não disseram pior do que isso? A
responsabilidade dos espíritas, no trato das doenças men tais e
psíquicas, está na razão direta dos conhecimentos do assun to, que a
doutrina nos proporciona. E na razão inversa da absoluta falta de
conhecimento que campeia pelo mundo, tanto no terreno da
psiquiatria materialista, quanto no das várias correntes religio sas e
espiritualistas. Porque sabemos muito bem, na teoria e na prática,
através de experiências cotidianas e de observações e estudos de
numerosos médicos espíritas do Brasil e do Exterior, que a maioria
dos casos de desequilíbrio são de origem psíquica, não no sentido
materialista do termo, mas no sentido espírita. E sabemos que sem
o tratamento adequado, que é o tratamento espírita, esses casos não
se resolvem, podendo às vezes sofrer passageiros arrefecimentos,
mas no geral agravando-se até a completa loucura.
Os arquivos dos hospitais espíritas comprovam o que estamos
dizendo. E livros como os do médico Inácio Ferreira, de Uberaba,
ou do psiquiatra Karl Wickland, de Chicago, dizem de maneira
objetiva, através dos fatos minuciosamente relatados, da impor
tância fundamental do tratamento espírita para essas anomalias.
Deixar, pois, que as infelizes vítimas de tais desequilíbrios – na sua
esmagadora maioria provindas de outras religiões – fiquem
entregues a tratamentos inadequados, seria falta de caridade, falta
de espírito cristão e de solidariedade humana.
Pouco importa que nos acusem de “dor de consciência”, se na
verdade não a temos. O importante é não criarmos essa dor de
consciência pelo desleixo no cumprimento dos nossos deveres
doutrinários. Sabemos que o Espiritismo, em vez de fazer loucos,
como dizem aqueles que não o conhecem ou querem combatê-lo,
“é o melhor preservativo da loucura”, segundo afirma Kardec, e o
seu melhor remédio. Que diríamos de Pasteur, se ele houvesse
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 36

abandonado o seu trabalho e deixado o mundo entregue à igno


rância da verdadeira causa das infecções, somente porque o com
bateram e ridicularizaram? O mesmo seria dito de nós, espíritas,
mais tarde, se hoje lavássemos as mãos diante do crescente pro
blema das doenças mentais e psíquicas que assolam a Terra. É
preferível aceitarmos as acusações infundadas e levianas do pre
sente, do que termos de arcar no futuro com as mais graves res
ponsabilidades morais. Realizemos a tarefa de Hécate, em favor
dos possessos e obcecados.
Possuímos hoje a maior rede de hospitais para alienados do
nosso Estado. Por todo o país, o exemplo dos espíritas paulistas vai
produzindo resultados cada vez maiores. Muitas unidades novas da
grande rede paulista estão em vias de construção. Não deixemos
esfriar-se, de maneira alguma, o nosso entusiasmo pela grande
causa. Compete ao Espiritismo curar a loucura do mundo moderno,
como coube ao Cristianismo curar a do mundo antigo. Prossigamos
em nossa tarefa: onde quer que um grupo de espíritas possa reunir-
se, para construir mais um hospital de alienados, que não percam
um só minuto. Ergamos por toda parte os nossos hospitais,
transformando-os cada vez mais em verdadeiros tem plos da ciência
e da religião, na divina harmonia entre o saber e o amor, como
anúncios do futuro entre as incompreensões do pre
sente.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 37

9 – Psicologia Espírita
Enrico Morselli foi um precursor da psicologia espírita. Pou co
importa que Morselli não tenha sido espírita. O grande psiquia tra
italiano incorpora-se, como Richet, à equipe dos desbravado res.
Sua obra “Psicologia e Espiritismo”, em dois volumes, publi cada
em Turim, em 1908, constitui uma das primeiras pontes
lançadas entre essas duas regiões do conhecimento, por sobre o
abismo dos preconceitos e da ignorância. Aliás, já tivemos a
oportunidade de afirmar que uma das grandes glórias do Espiri
tismo é justamente essa: a ciência espírita vem sendo construída
pelos adversários e contraditores da doutrina. Quanto mais eles
escavam os alicerces, para derrubar as paredes, mais constatam a
solidez do edifício espírita e mais contribuem para fortalecê-lo. A
obra de Morselli se fundamenta nas experiências que reali zou com
a famosa médium Eusápia paladino. Depois de verificar a realidade
dos fenômenos espíritas, de curvar-se ante a evidência dos fatos,
como Lombroso, o psiquiatra não quis, entretanto, aceitar a
explicação espírita dos mesmos. Fez como Richet, que só bem mais
tarde daria a mão à palmatória. Considerou simplista e apressada a
teoria espírita, mas sustentou com ênfase a realidade da
fenomenologia supranormal e propôs a criação de um “espiri tismo
sem espíritos”, à maneira da “psicologia sem alma” que Watson
proporia mais tarde.
“Psicologia e Espiritismo”, entretanto – como “The Human
Personality”, de Frederic Myers, e “L’extériorisation de la Motri
cité”, de De Rochas –, representa um marco na elaboração da
psicologia espírita. Muito se falou, depois desses pioneiros, em
metapsíquica, metapsicologia e parapsicologia. Tanto Richet, no
passado, como Rhine, na atualidade, tentaram avançar, através
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 38

dos fenômenos espíritas, além do campo imediato dos estudos


psicológicos. Mas a verdade é que, antes desse avanço, é indis
pensável a criação de uma disciplina preparatória, que seria exa
tamente a psicologia espírita, cujos princípios já se encontram na
obra de Kardec.
Morselli e Myers compreenderam bem esse problema. A Me
tapsíquica e a Parapsicologia são necessárias ao desenvolvimento
dos estudos psíquicos, mas existem as bases de uma Psicologia
Espírita, de uma ciência psíquica ligada ao homem encarnado e
referente a ele, à natureza e ao funcionamento normal do seu
psiquismo. Essas bases devem ser desenvolvidas, na construção de
um ramo novo da Psicologia. Morselli e Myers têm o mérito de
haver percebido que os fenômenos espíritas não se situam apenas
na zona supranormal, devendo também ser estudados na zona
normal, comum, do psiquismo habitual. De Rochas, por sua vez,
chegou a demonstrar com suas investigações no campo de regres
são da memória, que podemos encontrar o supranormal no próprio
normal, verificando as reencarnações através da hipnose. O
trabalho desses pioneiros não teve prosseguimento. Richet atirou-se
além da Psicologia, com seu “Tratado de Metapsíquica”, e desde
então não se pensou mais em termos puramente psicoló gicos, a
respeito dos problemas espíritas. Não obstante, a mediu nidade é um
problema fisio-psicológico e não metapsíquico, segundo as
próprias definições de Kardec. A falta do desenvolvi mento de uma
Psicologia Espírita tem concorrido para que os psicólogos se
afastem do campo das investigações psíquicas, entregando-o,
cômoda e prazerosamente, aos metapsiquistas e parapsicologistas.
Hoje, mais do que nunca, impõe-se um trabalho sério de
construção da Psicologia Espírita. Somente ela dará base à outra
disciplina de grande e urgente necessidade, que é a Psiquiatria
Espírita. Os trabalhos de Morselli, Myers e De Rochas, bem como
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 39

os de outros que contribuíram para o esclarecimento de vários


problemas, como Osty, Zöllner, Notzing, Lodge e tantos mais,
devem ser retomados com urgência, não somente no sentido de
experiências e pesquisas, mas também e sobretudo de elaboração
teórica. A Psicologia Espírita lançará novas luzes sobre muitos
problemas obscuros que, para usarmos uma expressão de Richet,
atravancam atualmente o caminho dos estudos psicológicos.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 40

Segunda Parte

Filosofia
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 41

10 – Um Divisor de Águas
A 18 de abril de 1857, a primeira edição de “O Livro dos Es
píritos” aparecia nas livrarias de Paris, e com ela raiava para o
mundo uma nova fase da vida humana, a que hoje damos o nome
de “era espírita”. O responsável pela publicação era um ilustre
professor francês, discípulo de Pestalozzi, autor de várias obras
didáticas, largamente conhecido pela sua vasta cultura e seu inve
jável equilíbrio de espírito. Assinava o livro com pseudônimo por
dois motivos: para diferenciar a sua atividade nas letras didáticas da
sua atividade no campo espiritual e, ao mesmo tempo, para
confirmar a sua crença na reencarnação anterior, quando sacerdote
druída, entre os celtas.
Até esse momento, esse dia exato – 18 de abril de 1857 –, não
se conhecia no mundo a palavra “Espiritismo”. Os fenômenos de
Hydesville, com as irmãs Fox, ocorridos dez anos antes nos Esta
dos Unidos, puseram na ordem do dia o problema da sobrevivên
cia. As explicações, as hipóteses, as teorias brilhantes ou não, e
mesmo as tentativas de formulação doutrinária, repetiram-se por
toda parte. Videntes numerosos assumiam atitudes de mestres, na
linha mística de Swedenborg. Mas, com tudo isso, a confusão era
cada vez maior. De um lado, as religiões tradicionais impugnavam
a novidade, baseadas em sua autoridade cegamente aceita. De outro
lado, os homens de ciência recusavam-se a aceitá-la. Fala va-se em
Neo-Espiritualismo, mas em geral esta palavra não definia nada, a
não ser o surto de um movimento confuso.
Com “O Livro dos Espíritos”, essa fase de transição foi supe
rada. Kardec lançava uma palavra nova, “Spiritisme”, que definia,
uma doutrina já perfeitamente estruturada em seu livro.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 42

Essa doutrina, ao contrário da confusão reinante no chamado


Neo-Espiritualismo, não se baseava na autoridade pessoal de um
vidente, de um profeta ou coisa semelhante, mas “nas instruções
dos Espíritos Superiores”, dada através de vários médiuns, e nas
observações e experiências de um pesquisador competente e culto.
Aquilo que dizem os marxistas a respeito de sua doutrina, no
tocante à evolução do problema socialista, podemos dizer a pro
pósito de “O Livro dos Espíritos”: com ele surgiu o Espiritualis mo
Científico, superando a fase confusa do Espiritualismo Utópi co.
Dali por diante, falar em espíritos não era mais falar em bru xas e
gnomos, em figuras de ficção ou de lenda, mas em entidades
inteligentes, criaturas humanas que haviam sobrevivido à morte do
corpo.
As próprias religiões tradicionais, que então lutavam desespe
radamente contra o progresso do materialismo, nada de concreto e
positivo podendo opor a esse progresso, foram imediatamente
beneficiadas com o aparecimento do Espiritismo. Os homens de
cultura, de pensamento, que não sabiam como sustentar a sua fé,
diante da impossibilidade de defendê-la perante a ciência, viram se
amparados por uma nova arma. O Espiritismo, como acentuou
Kardec em seus livros, tornou possível às religiões enfrentarem o
materialismo em seu próprio terreno e com suas próprias armas. Já
se podia falar em verificação experimental da existência da alma. E
os grandes cientistas do século sentiram-se animados a tratar do
problema espiritual como coisa séria, e não mais como simples
superstição.
O que “A Origem das Espécies”, de Darwin, representou para
o progresso da concepção antropológica; o que “O Discurso do
Método”, de Descartes, significou na mudança de posição do
pensamento medieval para o moderno, o que “A Psicologia como
Ciência”, de Herbart, e os “Elementos de Psicofísica”, de Fech
ner, representaram na transição da psicologia clássica para mo-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 43
derna, “O Livro dos Espíritos” representa, na transição ainda em
curso, do espiritualismo clássico para o espiritualismo moderno.
Agora mesmo nos chegam notícias da França, relativas à or
ganização de uma Sociedade Internacional de Parapsicólogos
Católicos, empenhada no esclarecimento dos fenômenos espíritas.
Sem a publicação do livro de Kardec, em 1857, não teria sido
possível o aparecimento da Metapsíquica, de Richet, da qual surgiu
a Parapsicologia de Rhine, agora vitoriosa nos meios uni versitários
da América e da Europa, despertando o interesse dos próprios
círculos católicos.
A importância de “O Livro dos Espíritos” no pensamento
moderno é simplesmente fundamental. Esse livro, que é a obra
básica do Espiritismo, representa o marco de uma nova era, no
tocante aos problemas espirituais. Com ele, o mundo superou, por
assim dizer, de um golpe, o longo passado mítico e dolorosamente
místico da humanidade, para abrir as portas dos antigos mistérios
ao pensamento racional e à investigação científica. Foi por isso que
Kardec chamou o Espiritismo de III Revelação, acentuando que se
trata de uma revelação de dupla natureza, ao mesmo tempo divina e
humana. Revelação divina, porque dada ao homem atra vés das
manifestações espirituais, e humana ou científica, porque elaborada
e desenvolvida pelo homem no plano da razão e da
experimentação.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 44

11 – Os Fatos e a Doutrina
Desde o aparecimento do Espiritismo, numerosos esforços
vêm sendo feitos para negar a natureza dos fatos espíritas, dimi nuir
a sua significação, ridicularizá-los, atribuí-los à fraude ou misturá-
los com ilusionismo e hipnotismo. As forças e as pessoas
empenhadas nessa inglória tarefa partem da suposição de que,
negados ou deturpados os fatos, a doutrina pereceria. Entretanto, a
história dessa luta demonstra o contrário. Os fatos espíritas não
podem ser negados nem confundidos com fenômenos de outra
natureza, e o combate que a eles se move só tem servido para
intensificar a propagação da doutrina.
No capítulo sexto das “Conclusões” de “O Livro dos Espíri
tos”, Allan Kardec declara: “Seria fazer uma idéia bem falsa do
Espiritismo, acreditar que ele tira sua força da prática das mani
festações materiais e que, portanto, entravando essas manifesta ções
pode-se minar-lhe as bases. Sua força está na sua filosofia, no apelo
que faz à razão e ao bom-senso.” A seguir, o codificador explica
que os fenômenos espíritas existem desde todos os tem pos, não se
podendo escondê-los ou sufocá-los, precisamente por serem
naturais. Tratando-se, pois, de fatos naturais, lutar contra eles é
lutar contra a natureza, contra a realidade.
Mas por que o codificador afirma que a força do Espiritismo
não está nos fatos, e sim na doutrina? Pois não são os fatos a
própria base objetiva da doutrina? Se lhe tirarmos essa base real, a
doutrina não estará ameaçada? Claro que sim, e o próprio Kardec o
diz, no mesmo capítulo citado. Mas diz também que, por serem
naturais esses fatos, ninguém os conseguirá subtrair das bases
doutrinárias. Ninguém poderá nunca impedir as comunicações
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 45

mediúnicas, em suas diversas modalidades. Elas são universais, de


todos os tempos e de todas as latitudes, entre todos os povos.
Kardec, porém, deixa claro que o Espiritismo não é um acer vo de
fatos, um conglomerado de fenômenos materiais, e sim uma
filosofia, uma doutrina. Os fatos espíritas, como o demonstrou
Ernesto Bozzano, apoiado nas pesquisas dos antropólogos e etnó
logos André Lang e Freedom Long, são a fonte natural de que
nasceram todas as religiões. Por outro lado, as religiões se alimen
tam constantemente nessa fonte. Eles são, por isso mesmo, tão
importantes para o Espiritismo quanto para outras doutrinas. E a
força do Espiritismo não decorre dos fatos, mas dos princípios que
ele construiu sobre esses fatos, interpretando-os da maneira
legítima, através da razão e do bom-senso.
Enganam-se, portanto, os que combatem a fenomenologia es
pírita com o fim de impedir a propagação do Espiritismo. Mais
acertados estão os que lutam contra a doutrina, contra os princí pios
filosóficos e religiosos do Espiritismo. Negar a doutrina, mesmo a
peso de sofismas, é mais fácil do que negar os fatos em que ela se
assenta. Mas ainda nesse terreno é preciso convir que a luta não é
muito fácil. Porque a doutrina espírita não apresenta
incongruências, não disfarça os seus princípios em zonas obscu ras,
sob o nevoeiro do mistério ou a proteção de interpretações místicas.
Um amigo de Cairbar Schutel, materialista, depois de haver
lido “O Livro dos Espíritos”, fez-lhe esta declaração: “Não aceito a
premissa de que parte este livro. Mas, se ela for verdadeira, não há
maior monumento de lógica do que este”. As incoerências,
contradições e absurdos que até hoje têm sido apontados na obra de
Kardec não passam de deformações intencionais ou feitas por
espíritos apaixonados. Foi por isso que Camille Flammarion, à
beira do túmulo de Kardec, chamou-o de “o bom-senso encarna
do”. E é por isso que insistimos sempre na necessidade de leitura
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 46

e estudo da obra de Kardec. Obra, aliás, que não é somente dele,


mas também – e principalmente – dos Espíritos.
A leitura dos livros fundamentais do espiritismo é indispen
sável não só aos adeptos, como também aos adversários sinceros.
Aqueles adversários que não querem jogar com sofismas, nem usar
as armas fáceis da deturpação, precisam enfronhar-se dos
princípios espíritas, para lutarem com lealdade contra eles. E os
espíritas que realmente estejam a par da sua doutrina, não temem
nem detestam os adversários. Primeiro, porque eles sabem que é
dever do espírita respeitar a liberdade de consciência. Depois, por
terem a demonstração histórica de que os adversários bem inten
cionados acabam rendendo-se à evidência da verdade, e os mal
intencionados nada mais fazem do que pôr lenha na fogueira do
Espiritismo. Até hoje, os adversários têm sido úteis à doutrina.
Quanto mais pregam e escrevem contra ela, mais auxiliam a sua
propagação.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 47

12 – Cristianismo do Cristo
A posição do Espiritismo no mundo atual é das mais curiosas.
Certas pessoas o consideram tão elevado, tão puro, tão exigente no
plano moral, que confessam: “Não posso me dizer espírita, pois
ainda não atingi a perfeição necessária”. Outras, pelo contrá
rio, sentem arrepios ao simples enunciar do nome da doutrina, pois
entendem que Espiritismo é coisa diabólica, imoral, detestá vel.
Entre os intelectuais, uns declaram enfaticamente: “Espiritis mo é
ciência; o vulgo não pode entendê-lo”. Outros, porém, o
desprezam: “Nada tem de científico, pois é simples superstição,
sem conteúdo e sem base”.
De vez em quando aparecem figuras de destaque, nos meios
científicos ou clericais, revestidas de títulos pomposos, afirmando
que os fatos espíritas não passam de trapaças ou de ocorrências de
natureza puramente hipnótica. Escrevem livros, fazem conferên
cias, dão entrevistas e chegam a praticar exibições hipnóticas em
teatros e estações de televisão, para “provar” que o Espiritismo não
existe. Ao mesmo tempo, figuras de destaque, inclusive nos meios
clericais, reprovam essas atitudes e entendem que os fatos espíritas
merecem maior atenção, maior cuidado no seu trato, não podendo
ser confundidos com fenômenos comuns de sugestão e hipnotismo.
Em meio a essas contradições, o espírito do povo poderia sen tir-se
perplexo. Entretanto, o que se nota é que a perplexidade pertence
mais às elites, pois o povo compreende pouco das altas disputas
dos “doutores” e está acostumado a espetáculos de toda espécie.
Longe de aceitar sugestões perturbadoras, o povo, na sua
simplicidade e pureza de coração e entendimento, prefere decidir
pela sua própria experiência e esta lhe mostra, dia a dia, que os
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 48
fatos espíritas são realidades inegáveis e que o Espiritismo é, antes
de tudo, uma doutrina consoladora, que tanto socorre as
necessidades do homem encarnado, quanto ilumina o espírito a
respeito dos problemas que ele terá de enfrentar após a morte.
Essa curiosa situação do Espiritismo lembra exatamente o que
aconteceu com o Cristianismo no mundo antigo. O apóstolo Paulo
– que era um “apóstolo espiritual”, pois só se converteu e seguiu a
Jesus graças a um fato mediúnico –, escreveu que os cristãos
pregavam uma doutrina que era “escândalo para os judeus e lou
cura para os gregos”. Porque pregavam a Cristo crucificado, num
mundo em que o importante era a vitória social do homem. E
judeus, gregos e romanos, cheios de ambição e vaidade, apegados
aos seus preconceitos religiosos e culturais, consideravam o Cris
tianismo uma heresia obscura e uma religião de escravos. Apesar
disso, a mensagem cristã espalhou-se no meio do povo, produziu os
seus efeitos e transformou o mundo.
Pouco importa que os poderosos de hoje, como Paulo antes do
episódio mediúnico da Estrada de Damasco, cheios de sabedo ria
mundana, de ciência imprecisa ou de intransigência dogmática,
lutem contra o Espiritismo. A doutrina nascente encerra em seus
princípios todos os germes de um mundo novo, que em breve se
firmará sobre a Terra. Traz com ela uma nova ciência, uma nova
filosofia e uma nova religião. Sua força renovadora é, portanto,
imensa e seu processo de penetração é o mesmo da fonte poderosa
em que hauriu os seus princípios: o Cristianismo do Cristo, e não o
dos seus intérpretes.
Não se inquietem, pois, os meios espíritas, com as ondas de
combate à doutrina, que de vez em quando agitam o mundinho
estreito do meio em que vivemos. Não se combate senão o que
constitui uma ameaça, o que representa alguma coisa. O Espiri
tismo é combatido justamente por ameaçar os erros dominantes em
todos os setores do pensamento contemporâneo, como o Cris-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 49

tianismo combatia os do mundo antigo. Mas, na sua qualidade de


prolongamento histórico, e portanto natural e necessário, do Cris
tianismo, possui o Espiritismo o mesmo impulso dinâmico que
levou aquele à vitória.
A mensagem espírita, que é mensagem cristã renovada pelo
Consolador, penetra sutilmente nas consciências e nos corações,
pelo simples fato de corresponder plenamente aos mais profundos
anseios das almas, nesta hora de transição da vida na Terra.
Porque um novo Céu e uma nova Terra estão sendo elabora
dos, segundo a profecia apocalíptica, e o Espiritismo é a mensa gem
nova do Cristo aos corações que sonham com um mundo melhor e
mais belo. Não importa que haja os que esbravejam contra a
alvorada nascente. O sol nunca pediu licença para nascer e iluminar
o mundo. Não importa que haja vacilantes e inquietos. Os ventos
novos de um novo dia sopram rajadas de coragem e serenidade, nos
rumos do futuro.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 50

13 – Da Magia ao Mito
Num curioso estudo comparativo sobre a vida e a obra de
Mark Twain e Monteiro Lobato, o professor Cassiano Nunes, da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, assinala o
interesse dos dois escritores, o norte-americano e o brasileiro, pelo
Espiritismo. E buscando uma explicação para esse interesse, em
dois espíritos pragmáticos, voltados intensamente para a ativi
dade prática, lembra uma observação de Otto Maria Carpeaux,
quanto ao que pode haver de paradoxalmente materialista no
interesse pelo Espiritismo.
Logo mais, analisando a posição de Lobato, nota Cassiano
Nunes que ele entendia “o advento do Espiritismo como progresso
da ciência.” Não era, pois, o sentimento religioso, mas o raciona
lismo materialista de Lobato que o levava a interessar-se pelos
“fatos surpreendentes”. Algumas frases de Lobato provariam isso:
“Um dia, esses fatos psíquicos, hoje considerados sobrenaturais,
serão conhecidos e fichados, como tantos da química”. Ou ainda:
“Os compêndios de física trarão o capítulo novo da metapsíquica,
como os compêndios de hoje trazem o capítulo novo da termodi
nâmica”.
A observação de Carpeaux, que vai correndo o mundo, pois já
a vimos citada algumas vezes, precisa de melhor análise. Qual a
razão do materialismo no interesse pelo Espiritismo, se este é
exatamente a negação do materialismo? A razão estaria nos fatos
materiais que demonstram a existência do espírito, ou seja, nos
chamados fenômenos físicos do Espiritismo, como os “raps”, as
materializações, a movimentação de objetos, as levitações. Mas a
recíproca não prova o contrário? Pois o que os interessados bus
cam nessas manifestações materiais não é exatamente o espírito, a
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 51

prova da sobrevivência? Não é a demonstração da existência


espiritual?
Muito mais de materialismo existe no espiritualismo forma
lista, que se traduz pelas formas de religião natural ou positiva.
Porque nesse espiritualismo, além dos fenômenos materiais,
existem os símbolos materiais, cujo poder de concretização chega,
em geral, a absorver o sentido espiritual. A evolução espiritual do
homem, atestada pela História das Religiões, revela-nos esse
processo dialético, através do qual o espírito humano se desprende
da fascinação mágica primitiva para ligar-se às ideações mitológi
cas. Nosso espiritualismo religioso, que tem sempre uma acusação
de materialismo para os processos espirituais diferentes, está
densamente impregnado de magia e mitologia. Sacramentos,
objetos sagrados, instrumentos de culto, efígies, medalhas e ima
gens, ídolos, constituem o seu complicado aparelhamento materi al.
O Espiritismo, ao contrário disso, não admite o culto materi al,
a adoração idólatra, o apego às fórmulas mágicas. Na mesma linha
da evolução religiosa a que nos referimos acima, o Espiri tismo se
situa numa fase superior à do monismo hebraico.
Aceitando a mensagem cristã “em espírito e verdade”, o Espi
ritismo afasta deliberadamente o acervo material do espiritualis mo
antigo, para que o homem possa voltar-se livremente em direção ao
espírito. Os fenômenos psíquicos pelos quais se inte ressa não têm
sentido mágico, nem religioso, mas científico. São encarados como
fatos naturais, e não sobrenaturais. Fatos que servem para
demonstrar a realidade espiritual no próprio plano do material, pois
este nada mais é do que uma conseqüência daquela.
Haverá, por exemplo, maior tendência materialista no interes se por
um fenômeno de materialização, do que no interesse pelo ato
mágico da consagração de um objeto, no qual o próprio Deus “é
obrigado” a materializar-se, para que o homem o absorva em
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 52

forma de alimento? Bastaria este exemplo, para mostrar a falta de


fundamento, e até mesmo a injustiça que estigmatiza a observação
de Carpeaux. O interesse pelo Espiritismo nada tem de materialis ta,
nem de paradoxal. É uma conseqüência natural da evolução do
homem, que a partir do materialismo primitivo, vai se libertando
pouco a pouco daquilo que Huntersteinem chamou “a filosofia do
mito”, para racionalmente buscar a espiritualidade, nos próprios
processos da vida. Veja-se o contraste: o Espiritismo atrai pela
evidência dos fenômenos psíquicos, enquanto o Espiritualismo
tradicional atrai pela materialização do psíquico no formalismo
religioso, materialização que resulta numa “fisiologia do mito”.
Quanto à posição de Lobato, impregnada de interesse cientí
fico, está de pleno acordo com o próprio sentido do Espiritismo. No
seu livro “A Gênese”, logo no primeiro capítulo, Kardec esclarece
o motivo porque o Espiritismo só apareceu em meados do século
XIX: porque era necessário o desenvolvimento das ciências para
lhe preparar condições. Kardec faz mais: afirma, em “O Livro dos
Espíritos”, aquilo mesmo que Lobato afirmava, ou seja, que o
Espiritismo é o desenvolvimento natural da ciência. Mas,
precisamente por ser um desenvolvimento, não é simples
prolongamento do materialismo científico. É, pelo contrário, o
rompimento desse materialismo, para que a ciência se espirituali
ze.
As comparações de Kardec correspondem bem às de Lobato. O
problema espiritual, envolto nas névoas do mágico e do mitoló gico,
deve racionalizar-se, na era nova que surge a partir do Re
nascimento. Racionalizar não é materializar, mas espiritualizar. A
razão se sobrepõe à matéria, é ação do espírito sobre a matéria.
Basta nos lembrarmos de Hegel, para compreendermos isso.
Racionalizar o problema espiritual é depurá-lo da ganga grosseira
da superstição primitiva. É libertá-lo das formas materiais da magia
e idolatria, desembaraçá-lo do misticismo alegórico, em
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 53

que as alegorias, formas de comparação do espiritual com o mate


rial, impedem a verdadeira compreensão espiritual. Carpeaux
poderia dizer que as fórmulas mágicas do chamado “baixo-
espiritismo” contradizem o que estamos afirmando. Mas, nesse
caso, teríamos de lembrar que o Espiritismo é uma doutrina
racional, não uma prática religiosa de tipo sincrético, segundo
pretendem os seus adversários. O chamado “baixo-espiritismo”
nada tem de Espiritismo. É simplesmente a forma larvar das cha
madas religiões positivas.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 54

14 – O Velho e o Novo
Os brutais acontecimentos da África do Sul, daquela mesma
África sofredora e heróica que transformou Gandhi, de advogado
do hindu em apóstolo universal da não-violência, vêm provar, mais
uma vez, a tese espírita de que vivemos num mundo semipa
gão. É inútil querer-se proclamar o contrário, falar de boca cheia
em civilização cristã. Não chegamos ainda ao grau suficiente de
espiritualidade, de elevação moral, para vencermos o passado
brutal da humanidade que o Cristo veio reformar. A violência dos
babilônios, dos egípcios, dos gregos e romanos, dos bárbaros que
derrubaram o Império e dos cristãos que o sucederam, acendendo
fogueiras humanas em honra a Cristo, essa terrível violência que
era também a dos judeus, com seu sanguinário deus dos exércitos,
continua a imperar no mundo que insistimos em chamar de cris tão.
São ainda recentes os massacres nazistas. É de ontem a inva
são traiçoeira da Abissínia numa sexta-feira da paixão, por um país
católico, onde se ergue a sede oficial do cristianismo. É de hoje a
tragédia cubana, com as atrocidades anteriores a Fidel e os
fuzilamentos deste. Entretanto, com exceção dos nazistas, todos os
demais agiram brutalmente sob a denominação de cristãos. Agora
mesmo, os assassinos de Sharpville, na África, estão con vencidos
de que defendem a civilização cristã. E tudo por que? Porque o
Cristianismo com “C” maiúsculo é ainda um processo em
desenvolvimento, é uma forma nova de vida, um novo modo de
ser, que luta em todos nós contra o “homem velho”, esse an
tropóide selvagem que aprendeu a persignar-se, mas continua
feroz.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 55

Jesus se comparava ao semeador, distribuindo na terra vasta do


mundo as sementes da boa-nova. E como semeador, conhecia tão
bem o processo da semeadura e da germinação, que anunciou as
vicissitudes por que a seara passaria, no seu desenvolvimento.
Vemos no Evangelho de João, capítulos 14 e 16, como Ele anun
cia a necessidade de um Consolador, que viria à Terra no momen to
preciso, quando o homem estivesse mais apto a suportar a verdade
cristã, para restabelecer o seu ensino e ensinar ainda o que não lhe
fora possível ensinar no seu tempo: “Ainda tenho muito que vos
dizer, mas não o podeis suportar agora; mas, quan do vier aquele
Espírito de Verdade, ele vos guiará a toda a verda de.”
No século XIX a promessa se cumpriu, com a III Revelação, o
advento do Consolador, do Espírito da Verdade, cujos ensinos
renovadores se consubstanciam no Espiritismo. Ainda teremos,
portanto, que trabalhar muito em nossa mente e em nosso coração,
para que a obra cristã se complete na Terra e possamos realmente
ter uma civilização cristã.
Outra expressão de Jesus, que revela o seu perfeito conheci
mento das dificuldades de sua missão, é a que se refere à porção de
fermento que se põe numa medida de farinha, para levedá-la. O
fermento leveda a massa de farinha, misturando-se a ela. Assim
está agindo o Cristianismo, desde que Jesus semeou no mundo as
suas divinas sementes. O fermento cristão levedou a farinha do
mundo, modificou a estrutura social da antiguidade, transformou a
concepção humana da vida, mas ainda se apresenta misturado com
os terríveis resíduos do passado. Há igrejas cristãs que de fendem o
princípio anticristão do assassinato individual ou coleti vo. Há
ministros cristãos que pregam a extinção dos hereges e lutam
“cristãmente” pela pena de morte.
A História nos mostra o Cristianismo como um movimento
ideológico a desenvolver-se por etapas. A princípio, vemo-lo em
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 56

sua pureza primitiva, nos tempos apostólicos e imediatamente pós-


apostólicos; depois, vemo-lo misturar-se com os sistemas, os
rituais, a idolatria das religiões mitológicas, transformando-se
mesmo numa mitologia disfarçada; mais tarde, vemo-lo revoltar
se contra os elementos pagãos que o desfiguram e arrojá-los em
parte do seu corpo, através da Reforma; e mais adiante, com o
advento do Espiritismo, vemo-lo, afinal, esplender em sua inte
gridade e pureza, como religião psíquica ou espiritual, segundo a
expressão feliz de Conan Doyle, para libertar o homem da herança
pesada de outros tempos. Quando os princípios espíritas ilumina
rem a maioria das consciências, o processo cristão se completará
na Terra e teremos então a verdadeira civilização cristã. Porque não
basta crer na imortalidade: é preciso saber que ela existe e,
sobretudo, compreendê-la através da lei da reencarnação. A idéia
cristã de Deus como Pai só pode completar-se, realizando toda a
sua significação universal, quando a idéia espírita da reen carnação
provar a todos os homens o absurdo dos divisionismos raciais.
Somente assim, à luz da III Revelação, os homens com preenderão
o verdadeiro sentido da fraternidade cristã e poderão vencer o
“homem velho”, para que o “homem novo” do Evange lho triunfe
sobre a Terra.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 57

15 – A Seara Imensa
O Cristianismo é seara imensa, de trabalho e de amor, em que
as almas laboram através do tempo, semeando e colhendo sem
cessar. Passam as gerações, sucedem-se as civilizações, e a seara
verdejante amadurece, preparando a colheita de vida eterna, para o
futuro do mundo efêmero. Tão grande é ela, tão vasto e fecundo o
seu seio, tão amplos os seus horizontes, que os homens se atur
dem ao contemplá-la, fixam-se em pequenos detalhes, prendem-se
a pormenores do plantio, absorvem-se em cuidados de reduzidos
tratos de terra. Não raro, chegam a considerar inimigos os pró prios
companheiros de trabalho, somente por se encontrarem noutros
pedaços de chão, ou por desenvolverem tarefas diferentes, no
grande labor da seara. Apesar disso, o tempo vai passando e a seara
amadurece. A poderosa seiva que a anima não leva em conta a
miopia humana.
A princípio, o Grande Semeador saiu a semear. Depois, reu niu
os que se interessam pelo seu trabalho e os espalhou pelas terras da
herança. Mais tarde, os sucessores foram reunindo outros
trabalhadores e a luta cresceu cada vez mais. O aumento dos
homens determinou, como sempre acontece, a divisão do trabalho.
Uns entenderam que deviam transformar a seara natural numa
grande fazenda artificial, com a casa grande imitando o templo de
Jerusalém, com guardas armados para defendê-la, com disciplina
rigorosa e vigilância permanente nas fronteiras. Outros entende ram
que não devia ser assim, e surgiram contendas e guerras, ficando
esquecido o trabalho da seara. Mas o Grande Semeador esperou
tranqüilo, pois a semente lançada no solo germinava sempre, apesar
da miopia dos homens.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 58
Chegou, certa vez, o tempo da florada. A seara crescera e es
tendera-se pelas terras da herança. Pendões verdes balouçavam a
todos os ventos do mundo. As flores tinham de surgir. E foi então,
em plena Renascença, que a Reforma brilhou em meio à seara,
reivindicando os direitos dos que se haviam oposto, nos tempos
antigos, ao monopólio dos serviços cristãos. A Reforma se ergueu
contra o formalismo tradicional e desentranhou as páginas sagra das
dos arquivos canônicos. Os textos evangélicos enfloraram a seara.
Todos puderam lê-los de novo, sentir pessoalmente as suas
pulsações da vida espiritual, interpretá-los com a luz própria que
Deus concedeu a todas as criaturas. Mas em breve as flores tive
ram, também, os seus cultores exclusivistas. Do antigo formalis mo
ritual, passaram eles ao formalismo literal. À maneira dos velhos
rabinos judeus, que de uma vírgula da Torá conseguiram tirar dez
sentenças, os literalistas proclamaram o absolutismo de letra. Ai
dos que se opunham aos exegetas autorizados, ai dos que se
atreviam a entender que os velhos textos nada mais eram do que a
roupagem do Espírito, o anúncio dos frutos vindouros! Mas o
Grande Semeador continuou esperando tranqüilo, pois apesar de
tudo a seara amadurecia.
Por fim, as flores começaram a dar lugar às primeiras espigas,
que repontavam tímidas, verdolengas, anunciando esperanças, nos
próprios meios da Reforma: primeiro, foi Swedenborg, com a sua
Nova igreja de Jerusalém, anunciando a revivescência do espírito;
depois, Edward Irving, cura da igreja escocesa, que leva para
Londres o problema das comunicações espirituais; depois, as
manifestações mediúnicas dos Shakers, nos Estados Unidos,
seguidos logo mais dos fenômenos de Hydesville, com as meninas
da família Fox, num lar metodista; depois, o rev. Ferguson, da
igreja de Nashville, no Tenesse, freqüentada por Lincoln, que leva
para a Inglaterra os irmãos Davenport, divulgando seus poderes
mediúnicos, depois o rev. Stainton Moses, que desenvolve sua
poderosa mediunidade; o rev. Vale Owen, que se torna médium; e
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 59

os reverendos Arthur Chambers, de Broockenhurts; Charles Twe


edale, de Weston, Yorkshire, e tantos outros, que proclamam a
volta das Vozes do Além.
Por fim, Kardec recebe a Terceira Revelação e as espigas
maduras começam a ser colhidas em todo o mundo. A seara imen sa
devolve, a cento por um, apesar das incompreensões de muitos de
seus trabalhadores, as sementes que o Grande Semeador saíra a
semear. O Espiritismo, cheio de compreensão, de luz e fraternida
de, dá cumprimento à Promessa do Consolador, iniciando a fase
final do Cristianismo, para o advento anunciado do Reino de Deus
na Terra.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 60

16 – Método e Bom-senso
Entre aquelas doutrinas espiritualistas que tudo explicam e
aquelas que tudo afirmam, o Espiritismo se apresenta como região
intermediária. Não pretende dar explicações para todas as coisas,
nem construir um castelo de afirmações dogmáticas. Seu objetivo
não é o proselitismo a todo custo, nem a satisfação da curiosidade
ou da imaginação, e muito menos o domínio das consciências. Pelo
contrário: é a busca da verdade espiritual, através do bom
senso, no campo raso da observação e da experimentação.
Doutrinas que tudo explicam, desde a maneira por que Deus
constrói os mundos, até as minúcias da fisiologia do corpo espiri
tual, existiam no mundo muito antes da codificação espírita.
Doutrinas autoritárias, que tudo afirmam e tudo impõem, sob
ameaças terrenas e celestes, dominaram a Terra desde os primór
dios da civilização. Mas doutrinas que procuram a verdade, dentro
dos limites da razão, com plena consciência das limitações huma
nas, só apareceram quando o homem começou a compreender a si
mesmo.
Kardec explica, em “A Gênese”, com a clareza didática que
caracteriza as suas obras: “O Espiritismo, tendo por objeto o estudo
de um dos elementos constitutivos do Universo, toca for çosamente
na maior parte das ciências; só podia aparecer, portan to, depois da
elaboração delas”. Noutro trecho, que como esse pertence ao
primeiro capítulo do livro, diz o codificador: “Como meio de
elaboração, o Espiritismo procede exatamente como as ciências
positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se
apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conheci das.
Ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 61

causas, chega às leis que os regem. Depois, deduz as suas conse


qüências e busca as suas aplicações úteis.”
O Espiritismo é, pois, aquilo que podemos chamar de Espiri
tualismo Científico, em oposição ao Espiritualismo Utópico dos
tempos anteriores. No plano da utopia, tudo é permitido. Pode dar-
se largas à imaginação, ao sonho, ao devaneio. No plano da
realidade, temos de enquadrar nossas aspirações de saber dentro
dos limites do possível. Francis Bacon já dizia, no alvorecer da
nossa era científica: “Chumbo e não asas devemos por no espíri to.”
Chumbo não para prendê-lo ao chão, mas para ligá-lo ao real,
evitando os vôos da imaginação. Por isso mesmo, quando Kardec
pediu aos Espíritos uma definição de Deus, estes lhe responderam
que não entrasse num labirinto do qual não poderia sair.
Muitas pessoas, atraídas pelos fenômenos espíritas, iniciam se
na doutrina com demasiada sede de conhecimentos espirituais.
Dentro em pouco, manifestam-se insatisfeitas com a doutrina.
Admiram-se de que o Espiritismo não cuide do desenvolvimento de
faculdades psíquicas extraordinárias, contentando-se com o
problema mediúnico, assim mesmo dentro dos limites que consi
deram estreitos. Pensam que o Espiritismo devia ser uma espécie
de ciência do absoluto, avançando além das fronteiras da teologia,
do ocultismo e coisas semelhantes. Acabam entregando-se aos
devaneios de teorias várias, na ilusão de estarem mais próximas da
verdade.
Não condenamos essas teorias, nem essas pessoas. Cada coisa tem
o seu lugar, no quadro geral da evolução. Mas devemos ex plicar a
nossa posição e a razão de ser da atitude espírita. Os que desejarem
voar, que batam livremente as asas de sua imaginação nos céus da
utopia. Mas o Espiritismo não pode fazê-lo, porque a sua natureza é
científica e o lugar que lhe compete não é na região dos sonhos,
mas no plano do conhecimento positivo. E quando falamos de
ciência, não é no antigo sentido filosófico, mas no
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 62

moderno sentido, determinado pelo método experimental. Não é de


ciência aristotélica, mas de ciência galiléica.
Quando compreendemos esse sentido do Espiritismo, captan do
a sua verdadeira significação, colocamos de lado a inquietação
natural que nos leva a aceitar muitas mistificações como “pro
gressos da doutrina”. Entendemos então que a doutrina só pode
progredir dentro dos princípios metodológicos de Kardec. Há cem
anos o codificador estabeleceu esses princípios, que continuam
válidos, porque ninguém, até agora, apresentou nada melhor. Se na
sociologia, por exemplo, a metodologia de Durkheim pôde ser
ultrapassada, foi porque a nova ciência evoluiu com rapidez. No
tocante ao Espiritismo, em razão da própria complexidade do
objeto, não se deu a mesma coisa.
As regras metodológicas de Kardec não estão superadas e têm
de ser observadas com rigor, se não quisermos voltar para trás,
mergulhar novamente na fase do espiritualismo utópico. Muitas das
“novas revelações” que estão sendo aceitas no meio espírita nada
mais são do que formas de retrocesso. E é por isso que temos de
intensificar, como aconselha Emmanuel, o estudo sistemático das
obras da codificação, nas agremiações doutrinárias.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 63

17 – Kardec, o Demiurgo
A existência dos fenômenos espíritas remonta aos inícios da vida
humana na Terra. Desde que o homem surgiu no planeta, com ele
surgiram os fatos que hoje constituem o que habitualmen te
chamamos fenomenologia espirítica. É claro que tinha de ser assim,
uma vez que os referidos fenômenos decorrem de leis naturais. mas
é também evidente que foi a partir de meados do século XIX que os
fatos espíritas se impuseram à consciência humana, na plenitude de
sua significação. O século XIX é, portan to, aquele em que se
assinala o aparecimento do Espiritismo.
Por duas maneiras a nova doutrina se impôs ao mundo: pri
meiramente, através do episódio mediúnico de Hydesville, nos
Estados Unidos, com as irmãs Fox; e dez anos mais tarde, com os
estudos e os livros de Allan Kardec, em Paris. Os fatos de Hydes
ville provocaram verdadeira revolução mental nos Estados Uni dos,
dando origem a numerosas experiências, realizadas com êxito por
homens eminentes da vida americana, chamando particular mente a
atenção dos cientistas, e originando as primeiras tentati vas de
formulação teórica, com os livros de André Jackson Davis. Da
América, o interesse pelo assunto se propagou a toda a Euro pa,
dando início ao ciclo das “mesas girantes”. E destas, afinal, surgiu
o interesse de Kardec pelo problema.
Durante muito tempo o Espiritismo esteve dividido em duas
grandes correntes: a anglo-saxônica, proveniente da América e
amplamente desenvolvida na Inglaterra, e a francesa, que tendo
Kardec à frente, se desenvolveu na Europa Continental e, mais
particularmente, nos países latinos. A primeira corrente caracteri
zava-se, como ainda hoje se caracteriza, pela falta de uma base
doutrinária bem estruturada, daí derivando o seu movimento de
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 64

constante oscilação entre a tendência religiosa de tipo eclesiástico e


a tendência científica de tipo materialista. Essa corrente gerou as
igrejas espíritas de estilo protestante e as associações de pesquisa
psíquica, as primeiras impregnadas de influências teológicas e as
segundas de prejuízos materialistas. Não é de estranhar que o
Espiritismo anglo-saxônico tenha rejeitado a reencarnação, até que
extraordinários fatos mediúnicos, comprovando esta lei fun
damental, a impuseram aos homens mais esclarecidos. A corrente
francesa caracteriza-se por uma base teórica perfeitamente estru
turada na chamada Codificação Kardeciana, constituída pelos
livros que Allan Kardec escreveu, por ordem e sob ditado e orien
tação dos Espíritos Superiores, integrantes da Falange do Conso
lador.
A corrente anglo-saxônica representa a fase inicial de desen
volvimento do Espiritismo, que dez anos mais tarde iria se definir
na França em sua verdadeira significação. Foi somente com Kar dec
que o Espiritismo tomou forma e corpo, recebendo, inclusive, o
nome doutrinário por que hoje o conhecemos. Antes da publica ção
da primeira edição de “O Livro dos Espíritos”, a própria
denominação do novo movimento era vaga e imprecisa: Neo
Espiritualismo. Kardec foi quem criou a palavra “Spiritisme”, para
com ela dar um nome exato, uma designação precisa à nova
doutrina. Historicamente, portanto, o Espiritismo surge com Kar
dec, em cuja obra adquire contornos definidos e se apresenta ao
mundo como uma doutrina espiritualista bem estruturada e pode
rosamente fundamentada. Kardec é, por assim dizer, o demiurgo da
nova era, o que tomou em suas mãos a matéria dos fatos para com
ela modelar um novo mundo.
É natural que esse vasto processo, ao mesmo tempo tão com plexo e
tão recente, do aparecimento e desenvolvimento do Espi ritismo,
ainda não seja bem compreendido, não raro até mesmo por espíritas
ilustres. Mas o tempo se incumbirá de ajustar as
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 65

coisas, como dizia o próprio Kardec. Ainda hoje se tenta opor uma
corrente à outra, como se tenta opor religião e ciência na
compreensão da doutrina, dentro mesmo dos quadros da Codifica
ção, onde o Espiritismo apresenta uma estrutura poderosamente
coerente, na sua forma tríplice de ciência, filosofia e religião.
Pouco a pouco, porém, a nova doutrina vai sendo mais bem
compreendida. As divergências formais, como previa Kardec, estão
sendo superadas pela prevalência inevitável da verdade.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 66

18 – Religião Reconstruída
“Como pode ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, ciência, fi
losofia e religião? que mistura é essa?” pergunta-nos um leitor.
Esta pergunta é repetida por muitas pessoas, que não entendem o
problema das relações necessárias entre os vários ramos do co
nhecimento.
Sim, dissemos exatamente isso: relações necessárias. E é dessa
necessidade natural do conhecimento – não do Espiritismo em si,
como coisa isolada ou “sui-generis”, mas do próprio co nhecimento
– que resulta a natureza tríplice da doutrina. Já lem bramos diversas
vezes as afirmações de Léon Denis, de sir Oliver Lodge e do
próprio Kardec, quanto ao sentido de síntese do co nhecimento, que
o Espiritismo apresenta. Esse sentido de síntese, ao mesmo tempo
revela e explica a natureza tríplice da doutrina.
Seria inútil invocarmos as longas discussões filosóficas a res
peito das formas do conhecimento e suas possíveis relações. O que
nos interessa é a visão do problema no plano histórico, onde os
fatos nos mostram o conhecimento a se desenvolver progressi
vamente da religião até a ciência, passando pela filosofia. Por mais
simplista que pareça esse esquema, não se pode negar a sua
realidade histórica, e ela basta para demonstrar que a unidade do
espírito não pode ser quebrada por nenhuma teoria dos valores. A
religião, em suas formas primárias, é a matriz do conhecimento.
Dela derivam, por desenvolvimento do espírito crítico, a filosofia e
a ciência.
Esse esquema se inverte no Espiritismo, em virtude daquilo que
podemos chamar a lei circular ou cíclica da evolução. Atingi do o
plano do conhecimento científico, e realizando-se neste plano, o
espírito “se dobra sobre si mesmo”, para da ciência extra-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 67
ir novamente a religião. No “estado positivo” de Augusto Comte, a
aridez conceptual força o homem a um regresso até as fontes vitais
do espírito. E é exatamente o esquema dessa volta que encontramos
na História do Espiritismo. No momento em que a ciência destruiu
a religião, através da crítica filosófica e das pes
quisas empíricas, o pensamento se reconstrói a si mesmo, recom
põe a sua unidade natural, com base na própria ciência. Temos
nesse fato uma confirmação da lei dialética da “nega ção da
negação”. A religião espírita nasce da ciência negativista, para
negá-la também. Estamos diante de um tipo diferente de religião,
inteiramente novo, que se apóia, não nos “valores religi osos” de
que fala Hessen, ou na “essência religiosa”, a que se alude Max
Scheller, mas nos valores lógicos. Partindo destes, o espírito
reencontra os valores éticos e reelabora os valores religio sos. É
assim que, da demonstração empírica da sobrevivência, ou seja, da
ciência positiva, surge a reflexão filosófica que reconduz o homem
à religião.
Os ramos do conhecimento são autônomos, constituindo-se de
valores próprios, mas integram um todo e por isso mesmo se
relacionam necessariamente. Essas relações se tornam evidentes no
processo histórico do desenvolvimento do Espiritismo. O homem
descrente exige a demonstração positiva da existência da alma para
reconstruir a sua unidade espiritual. A ciência espírita lhe oferece
essa demonstração; a filosofia espírita examina e comprova a sua
validade; a religião espírita a confirma na prática.
Esse processo não se realiza no espírito que aceita a religião
espírita em sua forma acabada. Mas essa aceitação confirma a
validade da “religião reconstruída”, mostrando que ela realmente se
constitui de “valores religiosos” tão legítimos como os das demais
religiões, não obstante se apóie nos valores lógicos. É o que Kardec
chama “a fé iluminada pela razão”, o velho ideal da
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 68

escolástica, só possível, entretanto, como o demonstra a História do


Espiritismo, após o desenvolvimento científico.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 69
19 – Filosofia de Vida
O Espiritismo é, acima de tudo, uma filosofia de vida, uma
concepção do universo, do homem e da vida, que deve ser inte
gralmente compreendida pelo adepto, para que ele possa realmen te
viver como espírita. As pessoas que freqüentam práticas medi
únicas sem conhecimento doutrinário não compreendem o que seja
o Espiritismo. Da mesma maneira, os intelectuais que se apegam
apenas aos estudos científicos da doutrina, esquecidos de suas
inevitáveis conseqüências religiosas, desconhecem o Espiri tismo
em sua totalidade.
O verdadeiro espírita, como dizia Kardec, não se satisfaz a
penas com os fenômenos mediúnicos, nem tampouco com a fre
qüência a trabalhos práticos. Os fenômenos são elementos impor
tantes, que comprovam a realidade da sobrevivência. Mas o fato
mesmo de comprovarem essa realidade está naturalmente indi
cando as suas conseqüências. Ao verificar a existência dos fenô
menos, o observador consciencioso procura compreender o que
disso resulta. E é claro que, ao compreendê-lo, penetra imediata
mente numa zona de responsabilidade moral e de sentimento
religioso, zona em que se passa o destino do ser após a morte. Ao
ver, através dos fenômenos mediúnicos, que a alma so brevive ao
corpo, o estudioso do Espiritismo se coloca imediata mente em face
do problema da vida espiritual. Esse problema é inevitavelmente
religioso. Inútil, pois, querer negar-se o aspecto e até mesmo o
sentido religioso da doutrina espírita. O Espiritismo se torna
religião no mesmo instante em que os fatos espíritas, os fenômenos
mediúnicos, cientificamente verificados e comprova dos, impõem
ao raciocínio as suas conseqüências. Desde que há
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 70

uma vida fora do corpo, além da matéria, é evidente que existe uma
hierarquia de seres espirituais além da terra.
Como esquivar-se alguém a essa conclusão e às suas implica
ções?
Da mesma maneira, como pode o pensamento religioso, que
encontra a sua comprovação nos fenômenos espíritas, negar a
validade e a importância destes? Como pode o espírita religioso
furtar-se à verificação dos fatos mediúnicos, sem negar, com isso,
as próprias bases da sua religião, ou pelo menos desprezá-las? Não
há, pois, como separar-se uma coisa da outra. No Espiritis
mo, tanto importam os fenômenos quanto as suas conseqüências
filosóficas, morais e religiosas. O espírita que realmente compre
ende a sua doutrina não pretende fragmentá-la, mas, pelo contrá rio,
defende constantemente a sua integridade.
Quando tratamos, entretanto, das conseqüências filosóficas dos
fenômenos espíritas, não estamos escapando do terreno da religião?
Quando cuidamos de moral, não estamos num terreno prático, em
que as normas da vida, no plano terreno ou no espiri
tual, se impõem por si mesmas, sem necessidade de atitudes mís
ticas? Assim pensam alguns estudiosos, voltando-se contra o que
chamamos de religião espírita. Entretanto, a interpretação dos
fenômenos, a reflexão sobre os fatos mediúnicos, leva inevitavel
mente à convicção de que existem poderes espirituais superiores, e
de que as relações do homem com esses poderes se passa no plano
das vibrações psíquicas, ao mesmo tempo de ordem mental e
emocional. E eis que nos encontramos no plano da religião, da
crença e da prece.
A crença espírita, porém, como assinalava Kardec, não é cega ou
imposta pela autoridade, e nem mesmo pela tradição. É a cren ça
consciente, iluminada pela razão. Creio porque sei, diz o espíri ta. E
a fé decorrente dessa posição é aquilo que Kardec considera: “fé
iluminada pelo raciocínio”, ou ainda: “capaz de encarar a
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 71

razão em qualquer etapa da evolução”. Vemos assim que o Espiri


tismo exige dos seus adeptos uma compreensão integral dos seus
princípios. Somente assim os adeptos poderão aplicar a si mesmos
a filosofia de vida decorrente do Espiritismo, filosofia que se traduz
em moral ou ética na vida terrena, e em religião nas rela ções com a
vida espiritual.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 72

20 – O Complexo e a Caridade
Enganam-se os que pensam que basta freqüentar sessões num
centro espírita para ser espírita e poder discutir Espiritismo. En
ganam-se ainda mais os que pensam que podem conhecer a dou
trina através de comunicações dos “guias”. O Espiritismo é uma
doutrina que envolve, como dizia Kardec, princípios referentes a
todas as ciências, pois que toca simultaneamente em todos os
ramos do conhecimento. Daí a sua característica, tão mal compre
endida e tão ironicamente combatida por adversários diversos, de
doutrina tríplice, envolvendo no seu todo doutrinário a ciência, a
filosofia e a religião. Como, pois, conhecer uma doutrina dessa
natureza, sem estudá-la a fundo, sem ler atentamente as suas obras
fundamentais?
Kardec, Léon Denis e Oliver Lodge afirmaram que o Espiri
tismo constitui uma síntese do conhecimento. É uma doutrina que
reúne em si os resultados da investigação científica, da cogitação
filosófica e do sentimento religioso, na busca da compreensão do
universo e da vida. Isso quer dizer, não que o Espiritismo repre
sente uma espécie de enciclopédia, o que seria absurdo, mas que
ele encerra na sua estrutura e visão global do mundo e da vida,
obtida pelo homem através daqueles ramos do saber humano. O
caráter sintético do Espiritismo não é conseqüência de um esforço
intencional nesse sentido, mas o resultado natural da evolução dos
conhecimentos humanos, que tendem naturalmente a uma síntese
conceptual.
Quando compreendemos essa posição excepcional do Espiri tismo,
admiramo-nos da facilidade com que certas pessoas, às vezes
dotadas de cultura, se referem a ele, para formulação de críticas
levianas e sem sentido. Mas ainda nos admiramos da
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 73
atitude de pessoas que, mal ingressaram no movimento doutriná rio,
já se consideram capazes de discutir problemas da doutrina, como
se fossem velhos estudiosos do assunto. Só não podemos nos
espantar, evidentemente, com os adversários, pois que esses,
firmados em preconceitos, fecharam os olhos e os ouvidos a qual
quer entendimento. Entretanto, as pessoas de cultura deviam ter
mais cautela ao se referirem à doutrina.
Há pouco, em um dos nossos jornais diários, comentando a
campanha da construção de um hospital espírita para doentes
mentais, em Jaú, escrevia um colunista que devia tratar-se de um
caso de complexo de culpa. E para justificar a sua tese, a sua
possível descoberta, em termos de possível interpretação psicana
lítica, citava alguns autores: Blavatsky, que era contrária ao Espi
ritismo, e mais dois pesquisadores, que admitiam a possibilidade de
perturbações psíquicas provenientes de práticas espíritas. Não há,
entretanto, nenhuma novidade nessa tese, que é tão velha quanto o
próprio Espiritismo. Já em “O Livro dos Espíritos”, obra
fundamental da doutrina, Kardec tratou do assunto, demonstrando a
má fé dos que a acusam de produzir desequilíbrios. O interes sante é
que a própria psicanálise, em que o colunista se apóia, é também
acusada de transtornar os que a ela se dedicam. Tão infundada, é
claro, uma acusação, quanto a outra. Kardec explica, com aquele
admirável bom-senso que falta a tanta gente – apesar da
distribuição eqüitativa de Descartes –, que todas as preocupa ções
profundas podem desequilibrar as pessoas já naturalmente
propensas ao desequilíbrio, desde as matemáticas até aos estudos
de qualquer religião.
A fundação de hospitais espíritas não decorre da verificação de
casos de desequilíbrio nos trabalhos doutrinários. Muito pelo
contrário, decorre da procura desses trabalhos pelos doentes men
tais, em geral desenganados pela ciência e sem possibilidades de
recursos em suas religiões. Os espíritas, acusados de “fabricarem”
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 74

loucos, têm sido, neste país e no mundo inteiro, os maiores e mais


eficientes curadores de desequilíbrios mentais e psíquicos. E tanto
assim, que a maior rede de hospitais para doentes mentais em nosso
Estado foi construída pelos espíritas. O hospital de Jaú será mais
uma unidade dessa rede maravilhosa, em que os doentes mentais,
graças ao Espiritismo, se livram dos internamentos dolo
rosos e sem fim das clínicas materialistas. Não é um complexo de
culpa, mas o lema da doutrina, que leva os espíritas a cuidarem do
assunto: “Fora da caridade não há salvação”.
As pessoas que desejarem saber por que motivo os espíritas de
Jaú estão fundando mais esse hospital, e por que motivo os de
Franca, Marília, Amparo, Itapira, Rio Preto, Penápolis, São Paulo e
outras cidades do nosso Estado, fora as de outros Estados, fun
daram hospitais para doentes mentais, deverão ler o livro de Be
zerra de Menezes, o “médico dos pobres”, intitulado “A Loucura
sob Novo Prisma”, ou os livros de Inácio Ferreira, médico do
sanatório Espírita de Uberaba, intitulados “Novos Rumos à Medi
cina”, ou ainda as famosas experiências do professor Karl Wic
kland, de Chicago, reunidas em seu livro “Trinta Anos Entre os
Mortos”. Não é a psicanálise que explica o interesse dos espíritas
por esse doloroso problema: é o fracasso da ciência materialista, no
tratamento da maioria dos casos de desequilíbrios mentais e
psíquicos.
Vemos, assim, como o Espiritismo confirma, na prática, a sua
natureza de doutrina tríplice. Das simples reuniões religiosas nos
Centros Espíritas, os adeptos da doutrina são forçados a passar ao
campo da ciência, com a fundação dos grandes hospitais que estão
hoje solucionando um dos mais graves problemas sociais em nosso
país. Pena que todo esse esforço dos espíritas não consiga comover
os que, sem conhecerem a doutrina, se julgam no direito de acusá-
la.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 75

21 – O Que é Mais Fácil


Pergunta-nos um leitor por que motivo não respondemos, no
que temos escrito sobre a reencarnação, o argumento apresentado
por um opositor, de que esse princípio é simplesmente cômodo,
servindo para os que desejam protelar a regeneração. É fácil res
ponder: porque o argumento do opositor é absurdo. Dizer que é
cômodo aceitar as conseqüências da lei de causa e efeito, através da
reencarnação, é não conhecer essa lei. De nossa parte, poderí amos
dizer que o comodismo está no lado contrário, nos que negam a
reencarnação, querendo furtar-se a ela. Sim, pois é bem mais fácil
viver apenas uma vez, do que muitas vezes, tanto mais quando, em
cada existência, temos de sofrer as conseqüências da anterior.
Bem sabemos que o argumento do comodismo se refere ao
problema da regeneração imediata. O comodismo estaria em
aceitarmos o princípio da reencarnação como uma forma de dei
xarmos as coisas para mais tarde. Isso, entretanto, só pode ocorrer a
quem não tenha a menor compreensão do princípio em causa.
Porque o princípio da reencarnação é dinâmico e não estático,
exige esforço próprio e contínuo, aproveitamento incessante das
oportunidades da vida, para elevação espiritual. O reencarnacio
nista sabe, antes de tudo, que se não aproveitar a sua nova encar
nação, estará sujeito às penas do remorso na vida espiritual e às
dolorosas existências de resgate, em novas encarnações, cheias de
dificuldades.
Não há, portanto, entre os reencarnacionistas, lugar para co
modismos espirituais. E o curioso é que os próprios opositores,
lançando mão desse falso argumento, se contradizem flagrante
mente, pois sempre nos acusam de querermos obter a salvação por
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 76

conta própria. Chegam mesmo a falar em vanglória, ou seja, que o


princípio da reencarnação nos leva ao perigo de nos vangloriar mos
de nossos esforços. Ora, de duas, uma: ou somos comodistas, ou
somos esforçados. Como se vê, não há qualquer fundamento nessa
alegação de comodismo, que só é feita em desespero de causa,
quando faltam argumentos ao opositor. Da mesma forma, não há
fundamento no argumento da vanglória, uma vez que nosso esforço
de transformação moral tanto existe no caso da reencarnação,
quanto no da regeneração. Num caso e noutro, a vontade terá
sempre de agir.
Por outro lado, temos ainda de considerar que o comodismo
dos reencarnacionistas deveria ser provado concretamente, através
de exemplos. E quem se atreveria a afirmar que os reencarnacio
nistas são mais apegados aos vícios do que os outros, os que crêem
no princípio da unicidade de existência? Para demonstrar o
contrário, seria bastante a comparação numérica. E isso, no nosso
mundo ocidental, seria inteiramente desfavorável aos opositores da
reencarnação.
Como se vê, o argumento do comodismo reencarnacionista é
inteiramente destituído de fundamento e até mesmo de senso. Não
queríamos perder tempo e espaço com uma discussão dessa or dem.
Mas, uma vez que o prezado leitor se interessou pelo assun to, é
possível que outros também tenham se preocupado com o nosso
silêncio a respeito. Da mesma maneira, se não temos trata do de
outros aspectos do problema, levantados aqui e ali, por alguns
opositores, é em virtude da inconsistência dos argumentos,
facilmente refutáveis. Entretanto, estamos sempre às ordens dos
amigos leitores, para esclarecer esses aspectos.
No tocante ao sentido reencarnacionista dos Evangelhos, é
natural que os espíritas sejam contraditados pelos demais cristãos.
O Espiritismo conhece e respeita os pontos de vista contrários, mas
sustenta a sua posição, por considerá-la bem fundamentada.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 77

Seria justo que, embora contradizendo-o, os opositores também


respeitassem o Espiritismo. É contraditória a atitude dos que
defendem a própria religião atacando e criticando as demais. O
primeiro princípio de toda religião realmente digna desse nome é o
amor, que exige, pelo menos, o respeito ao próximo.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 78
22 – Heranças Tribais
O estudo espírita do problema religioso nos revela a existên cia
de numerosas heranças da era tribal nas instituições religiosas
modernas. Processos mágicos e ritualísticos, adoração fetichista,
fórmulas misteriosas de evocação e de exorcismos, espírito fecha do
e agressivo e até mesmo endogamia. O método espírita, que
implica o histórico, nos permite descobrir, nas referidas institui
ções, as formas atuais de desenvolvimento dos resíduos tribais, que
se apresentam fortemente disfarçados através de um processo
curioso de racionalização.
Uma das manifestações mais evidentes do espírito tribal é a
intolerância religiosa, responsável não só por dolorosos episódios
da história da civilização, como também pelo desprestígio do
pensamento espiritualista em diversas épocas. Nesse terreno é que
mais gritantemente se revela o caráter antinômico das religiões, de
um lado pregando o amor e de outro distribuindo perseguições,
torturas e matanças. Ao mesmo tempo, é aí também que melhor
encontramos o disfarce racionalista do resíduo tribal: a violência
contra o próximo justificada pelo amor ao próximo, ao sofisma da
salvação. O inquisidor leva o herege à fogueira porque o ama e
quer salvar-lhe a alma.
Mas a intolerância não se manifesta apenas através da agres
sividade física. É também um processo de condenação e de repul sa
intelectual e social. Se o homem primitivo, na tribo, repelia o
estranho, só reconhecendo humanidade em criaturas do seu pró prio
sangue, o homem civilizado, na sua comunhão religiosa, faz o
mesmo, justificando-o, porém, com o dogma da salvação. Para o
judeu, o estrangeiro era o “goyn” idólatra e impuro; para o cristão,
era o “pagão” desprovido da graça; para o maometano, o “infiel”,
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 79

e assim por diante. Ainda hoje, em nossos próprios jornais diários,


em nossas revistas e em nossos livros, certos religiosos fazem
questão de exibir a sua intolerância, agredir e condenar os “adver
sários”.
Apreciada à luz da doutrina espírita, a intolerância religiosa
representa excelente argumento a favor do princípio da reencarna
ção. Porque ela demonstra a lentidão com que o espírito humano se
modifica, ao largo da evolução, exigindo milênios para se libertar
das raízes primitivas. Se podemos estudar esse processo no plano
coletivo, através da história, a razão nos diz que ele se realiza
também no plano individual, e a psicologia o comprova. Ora, não
seria possível admitir-se, a não ser de maneira contradi tória, que a
evolução humana se processasse no curto espaço de uma vida.
Somente através das vidas sucessivas, nas reencarna ções, o espírito
poderá libertar-se, progressivamente, dos resíduos do passado,
alcançando graus mais elevados de espiritualidade.
A distinção bergsoniana entre “religião estática”, como pro duto
social, e “religião dinâmica”, como produto da evolução individual,
oferece-nos a possibilidade de compreender melhor a maneira por
que o homem religioso se liberta do passado. Na “religião estática”,
forma social rigidamente estruturada, com a finalidade precípua de
manter e defender a estrutura social em que se formou, os resíduos
tribais estão fortemente vinculados, pois continuam a exercer o
mesmo papel defensivo que desempenha vam na tribo. Na “religião
dinâmica”, pelo contrário, esses resí duos nada têm a fazer. O
místico, o santo, o mártir, o poeta, não se interessam pelas divisões
conceptuais, convencionais, entre os homens, colocando a verdade
espiritual acima das convenções.
Jesus, exemplo histórico desse tipo de “religião dinâmica” a
que se refere Bergson, não se enquadrou na “religião estática” dos
judeus. Por isso foi condenado, mas por isso também nos deixou a
fórmula divina do “amai-vos uns aos outros”, completada ainda
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 80

com o “amai aos vossos inimigos”. O Espiritismo, revivendo hoje


os ensinos de Jesus em sua pureza primitiva, fora dos quadros
rígidos das “religiões estáticas”, repele os resíduos tribais das
religiões, opondo-se decisivamente aos modernos processos de
intolerância religiosa. A fórmula espírita é a da tolerância: todas as
religiões são boas, desde que sejam capazes de espiritualizar o
homem. Não obstante, todas são más, na proporção em que se
deixam dominar pelos resíduos tribais, forçando o homem a um
retrocesso mental em seu desenvolvimento.

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