Os 3 Caminhos de Hécate
Os 3 Caminhos de Hécate
Os 3 Caminhos de Hécate
Herculano Pires
Os 3 Caminhos
de Hécate
Crônicas do Irmão Saulo
(Lições de Espiritismo)
Apoio:
Contracapa (esquerda)
Os 3 Caminhos de Hécate
Contracapa (direita)
Índice
“Hécate” .................................................................................. 8
Primeira Parte – Ciência .......................................... 10 1 –
Ciência e Superstição....................................................... 11 2 –
Provas Empíricas ............................................................. 14 3 –
Seqüência das Ciências.................................................... 17 4 –
Fenômenos de Materialização.......................................... 20 5 –
Ciência e Religião............................................................ 25 6 –
Preservativo da Loucura .................................................. 28 7 –
Sonhos Premonitórios...................................................... 31 8 –
Tarefa de Hécate.............................................................. 34 9 –
Psicologia Espírita ........................................................... 37
Segunda Parte – Filosofia ......................................... 40 10
– Um Divisor de Águas .................................................... 41 11
– Os Fatos e a Doutrina..................................................... 44 12
– Cristianismo do Cristo ................................................... 47 13
– Da Magia ao Mito.......................................................... 50 14 –
O Velho e o Novo .......................................................... 54 15 –
A Seara Imensa.............................................................. 57 16 –
Método e Bom-senso ..................................................... 60 17 –
Kardec, o Demiurgo....................................................... 63 18 –
Religião Reconstruída.................................................... 66 19 –
Filosofia de Vida ........................................................... 69 20 –
O Complexo e a Caridade .............................................. 72 21 –
O Que é Mais Fácil ........................................................ 75 22 –
Heranças Tribais ............................................................ 78 23 –
A Verdade e a Violência................................................ 81 24 –
A Lei como Pedagogo.................................................... 84 25 –
Cristãos e Filósofos........................................................ 87 26 –
Espiritismo e Cultura ..................................................... 90
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 7
“Hécate”
Hécate, filha do titã Perseu, o resplandecente, e de
Astéria, a donzela estelar, foi a única sobrevivente da
era titânica que manteve o seu poder sob o domínio de
Zeus. Honrada pelos mortais e pelos imortais, era re
presentada como deusa tríplice. Triângulo divino, não
apresentava a deformidade de um corpo com três ca
beças, mas a harmonia de três corpos unidos, como um
grupo de três jovens de costas voltadas umas para as
outras.
As faces de Hécate olhavam o cosmos em três di
reções. Estava presente no mistério das encarnações e
das desencarnações. Vivia na Terra, mas descia aos in
fernos e subia aos céus. Quando Deméter procurava sua
filha Perséfone, raptada por Hades, o deus infer nal,
Hécate saiu ao seu encontro com um facho de luz e,
arrebatando-a nos seus corcéis, levou-a até o Sol.
Deméter soube, então, na luz solar, o destino da filha
desaparecida.
Hécate, a deusa tríplice, no céu era a Lua, na Ter ra
era Diana, no inferno, Prosérpina. O mistério da
trindade, que é uma das mais antigas formas mitológi
cas, encontrou em Hécate a sua mais poética expres são.
Invocavam-na para afastar as almas dos mortos, nos
casos de possessão ou loucura. Nas noites de luar,
aparecia nas encruzilhadas, acompanhada de almas er
rantes e de animais. para torná-la propícia, ou para que
auxiliasse as almas perdidas, ofereciam-lhe nas encru
zilhadas os resíduos dos sacrifícios aos deuses.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 9
1 – Ciência e Superstição
Em artigo distribuído pela APLA, aos jornais de todo o mun
do, Chapman Pincher escreve de Londres, estranhando que o nosso
século, considerado Idade da Ciência, seja também a Gran de Idade
da Superstição. Mas, procurando explicar essa situação
contraditória, faz uma descoberta curiosa: a de que a ciência gera a
superstição. Como se vê, trata-se de uma explicação dialética, bem
ao gosto do século. Mas uma explicação que não passa de simples
paliativo.
Qual a razão pela qual o nosso século seria a grande Idade da
Superstição? Primeiro, segundo explica Chapman Pincher, por
causa dos Discos Voadores. Depois, porque há uma crença geral
em “poltergeists”, ou seja: “espíritos sobrenaturais e dotados da
capacidade de mover objetos materiais”. E depois, ainda, porque
milhões de pessoas, em todo o mundo, acreditam que os espíritos
dos mortos podem comunicar-se com os vivos e até mesmo mate
rializar-se”.
A posição do Sr. Pincher não é única. Há milhares de intelec
tuais, pelo mundo inteiro, escrevendo artigos, pronunciando con
ferências, dando aulas e publicando livros, nesse mesmo sentido.
Para todos eles, aceitar a possibilidade da existência de espíritos é
revelar atraso mental, apego a superstições superadas pelo desen
volvimento das ciências. Que resposta podemos dar a esses ho mens
ilustres, não raro dotados de grande capacidade mental, que
relegam ao porão do subconsciente as nossas mais sólidas convic
ções?
Há espíritas que se impressionam com isso. Muitos nos es crevem,
perguntando como explicar-se a existência de tanta e tão ferrenha
negação, de parte de homens esclarecidos. A melhor
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 12
4 – Fenômenos de Materialização
Vários leitores nos fazem perguntas sobre os fenômenos de
materialização de espíritos. “Isso é verdade? Os espíritos se mate
rializam, se tornam tangíveis e podem ser fotografados? Esses
fenômenos são de fácil obtenção? Até mesmo em círculos incultos
é possível o aparecimento de materializações legítimas? E por que
o escuro? Por que não aparecem as materializações em plena luz?
Essa fotofobia não justifica as acusações de fraude, formuladas em
todos os casos?”
O problema das materializações é realmente um dos mais
complexos da ciência espírita. Todas essas perguntas têm razão de
ser. Mas, por outro lado, todas elas tem resposta e as respostas já
foram dadas há muito tempo, por investigadores espíritas e não
espíritas, alguns deles representando nomes honrosos nas ciências
materiais. Para começar, diremos que é verdade. Sim, os espíritos
realmente se materializam e, quanto a isso, não pode haver a menor
dúvida, por parte das pessoas que tenham procurado co nhecer o
problema. Já não somos nós, os espíritas, que dizemos isso: são os
cientistas que realizaram experiências a respeito, no passado e no
presente.
Que as materializações são tangíveis e podem ser fotografa das,
também é indiscutível. Aí estão as experiências de Crookes e
Richet; o “Tratado de Metapsíquica”, com suas magníficas ilus
trações, as investigações atuais, realizadas nos Estados Unidos e na
Europa; as experiências felizes efetuadas em nosso país. Desde o
caso célebre da médium Ana Prado, no Pará, até o das materia
lizações luminosas do médium Peixotinho, no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte, atestadas pelo livro recente do delegado Ranieri.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 21
5 – Ciência e Religião
Os estudos que temos feito sobre a ciência espírita e sua posi
ção no quadro geral do conhecimento visam tão somente demons
trar que o Espiritismo não pode ser tratado ligeiramente por pes
soas que não conhecem a sua estrutura doutrinária, e muito menos
ser encarado através dos aspectos da sua difusão popular, como
religião. Mas não queremos negar, com isso, o caráter religioso da
doutrina. Pelo contrário, já tivemos ocasião de afirmar, várias
vezes, que o Espiritismo é uma doutrina tríplice, em que a ciên
cia,a filosofia e a religião se encadeiam e se sucedem, numa or dem
lógica e, portanto, necessária.
Alguns leitores acham inútil a nossa insistência ao aspecto ci
entífico do Espiritismo, alegando que o ponto culminante da
doutrina é a religião, exatamente o aspecto mais acessível ao povo.
Entretanto, quando compreendemos que a religião espírita não
poderia existir, e não teria sentido, sem a ciência espírita, parece
evidente a importância da discussão do aspecto científico. Kardec
insistiu de tal maneira no estudo desse aspecto, deu tal ênfase ao
seu desenvolvimento, que até mesmo espíritas ilustres, ainda hoje,
fazem confusão a respeito do assunto, não admitindo a existência
da religião espírita. Mas “O Livro dos Espíritos” revela o sentido
religioso da doutrina desde o seu primeiro capítulo, e em “O
Evangelho Segundo o Espiritismo”, bem como em “O Céu e o
Inferno”, vemos configurar-se nitidamente a religião espírita, na
base dos princípios cristãos e como desenvolvimento natural do
Cristianismo.
Insistir no aspecto científico, portanto, não é contradizer o re
ligioso, nem se opor a ele ou subestimá-lo. É, pelo contrário,
segundo o próprio exemplo do codificador, manter a unidade
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 26
6 – Preservativo da Loucura
Acusar os espíritas de loucos, apontar o Espiritismo como
caminho para o hospício e até mesmo apresentar o Espiritismo
como forma de loucura, foram expedientes muito usados e de
grande efeito em nosso país, na luta contra a propagação da dou
trina. Nem mesmo os homens de ciência deixaram de usar esse
expediente. E ainda agora, em trabalhos recentes – um deles
publicado em São Paulo, por lente universitária, e denunciado por
Deolindo Amorim em magnífico artigo no jornal “Mundo Espíri
ta” –, aparecem tristes resquícios dessa atitude. Ficou célebre a tese
do professor Henrique Roxo, posta a ridículo por Leopoldo
Machado, Carlos Imbassahy e outros, sobre a estranha doença que
se chamaria “delírio espírita-episódico”, ou seja, a “doença” da
vidência.
No exterior, entretanto, desde o princípio das pesquisas espí
ritas, os grandes mestres de psicologia e psiquiatria tomaram
atitude bem diversa. Enrico Morselli, diretor do Hospital Psiquiá
trico de Macerata e professor de Psiquiatria e Neurologia na Uni
versidade de Gênova, autor de dois alentados volumes sobre as
relações do Espiritismo com a Psicologia – apesar de não ser
espírita e de nem mesmo aceitar a “hipótese espírita” –, não admi
tia que o Espiritismo fosse causador de loucura. Pelo contrário,
referindo-se às numerosas experiências que realizou com a mé dium
Eusápia Paladino, acentuava o teor de equilíbrio, sensatez e
serenidade dos participantes dos trabalhos e acrescentava que, em
sua longa carreira de psiquiatria, haviam sido apenas quatro ou
cinco casos de alienados espíritas. Imaginemos a cifra correspon
dente a outras correntes.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 29
Charles Richet, ao tratar de acusações de histeria e de loucura
feitas aos médiuns, declara peremptoriamente no seu “Tratado de
Metapsíquica”: “Recuso-me inteiramente a considerá-los como
doentes”. E logo mais adverte: “Certamente que eles sofrem
alguma desagregação da consciência. Mas também os artistas, os
sábios e mesmo os indivíduos comuns não sofrem freqüentemente
de análogas desagregações da consciência, com autoritarismo
parcial?” Referindo-se aos grandes médiuns então conhecidos,
Richet acentua que nem a sra. Piper, nem o rev. Stainton Moses,
“possuíam qualquer característica fisiológica ou psicológica que os
distinguisse”, e terminava declarando: “esses sensitivos são como
todo o mundo”.
Uma observação curiosa de Richet, sobejamente constatada
pelos investigadores espíritas no mundo inteiro, é a naturalidade e a
espontaneidade do desenvolvimento mediúnico, assim expressas
pelo sábio: “ Na maioria dos casos, foi por acaso que eles desco
briram a sua sensibilidade. Não foi jamais por ato deliberado da
vontade que se tornaram médiuns. Seu poder desenvolveu-se
espontaneamente.” Da mesma maneira, a faculdade desaparece,
quando menos se espera, e sem que o médium “possa retê-la”,
segundo as expressões de Richet.
Como se vê, há enorme distância entre a atitude de sábios como
Morselli e Richet e a de alguns psiquiatras nacionais que se
empenham em classificar os médiuns de anormais. A mediunida de,
aliás, não é privilégio dos chamados médiuns. O Espiritismo
demonstra que a mediunidade é uma faculdade humana generali
zada. Todas as criaturas humanas são médiuns. O que existe é
apenas uma variação de graus ou de potência, como se nota em
todas as demais faculdades. O pitoresco “delírio espírita episódi co”
pode ser considerado como uma espécie de surto gripal, ou de
sarampo ou varicela, que de vez em quando ataca os grupos hu-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 30
7 – Sonhos Premonitórios
Os sonhos premonitórios constituem um dos mais curiosos
capítulos da fenomenologia espírita. Como explica Kardec, o sonho
é uma lembrança dos momentos de emancipação da alma, durante
o sono. Geralmente, trata-se de lembrança imprecisa, mesclada a
reflexos das horas de vigília. Quando, porém, o espíri
to é capaz de se emancipar realmente da matéria e das suas preo
cupações rotineiras, temos sonhos lúcidos, e entre eles os premo
nitórios, que nos advertem de coisas por acontecer. Ou ainda, como
no caso recente do detento que descobriu a filha do jornalis ta,
morta num rio – vendo da sua cela aquilo que os pesquisadores não
descobriam –, os sonhos são lembranças de trabalhos do espírito no
mundo espiritual, enquanto o corpo material descansa no sono.
Não é à-toa que dizem ser o sono um primo-irmão da morte. O
ditado popular corresponde, nesse caso, à realidade. Kardec o
explica no cap. VIII da segunda parte de “O Livro dos Espíritos”,
de maneira clara: “O sono liberta parcialmente a alma do corpo.
Quando o homem dorme, momentaneamente se encontra no esta
do em que estará, de maneira permanente, após a morte. Os espíri
tos que logo se desprendem da matéria, ao morrerem, tiveram
sonhos inteligentes”.
Noutro trecho do mesmo capítulo, Kardec esclarece: “O so nho é a
lembrança do que o vosso espírito viu durante o sono. Mas
observai que nem sempre sonhais. Porque nem sempre vos
lembrais daquilo que vistes. Isso porque não tendes a vossa alma
em pleno desenvolvimento. Freqüentemente, não vos resta mais do
que a lembrança da perturbação que acompanha a vossa parti-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 32
8 – Tarefa de Hécate
“Não acha o confrade que devemos deixar de construir hospi
tais para alienados mentais e cuidar com mais interesse da cons
trução de orfanatos e asilos? Os hospitais de alienados são terri
velmente onerosos, tanto na construção quanto na manutenção, e
causam verdadeiros transtornos, pela má vontade com que são
vistos pelos organismos oficiais. Além disso, servem de arma
contra nós, pois os adversários chegam a dizer que os construímos
com dor de consciência, para curar os loucos que nós mesmos
produzimos. Na minha opinião, fecharíamos todos esses hospitais.
O governo e os que nos combatem que cuidassem dos loucos!”
Assim nos escreve um confrade, irritado com uma crônica de
imprensa – que aliás já analisamos nesta coluna –, e com um artigo
de certo pastor, batendo na mesma e velha tecla, tão gasta que o seu
pobre som serve apenas para irritar os nervos: “as práti
cas espíritas produzem loucura”. Damos razão ao confrade, no que
toca ao seu estado de irritação. Porque, de fato, não somos anjos e
nem sempre dispomos de suficiente paciência para ouvir
continuamente os velhos sons dessa tecla enferrujada pelo tempo.
Mas, por outro lado, discordamos fundamentalmente da sua atitu
de e das suas conclusões.
O problema da construção de hospitais espíritas, destinados à cura
de alienados mentais, é da mais alta responsabilidade doutri nária.
Longe de interromper nossas atividades nesse terreno, ou fechar os
hospitais que possuímos, ou de transformá-los em noso cômios de
outra natureza, o que devemos é construir mais e mais instituições
dessa ordem. Quanto maior o número de hospitais espíritas para
doentes mentais e psíquicos, melhor estaremos agindo, no
cumprimento dos nossos deveres. Que importa o que
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 35
9 – Psicologia Espírita
Enrico Morselli foi um precursor da psicologia espírita. Pou co
importa que Morselli não tenha sido espírita. O grande psiquia tra
italiano incorpora-se, como Richet, à equipe dos desbravado res.
Sua obra “Psicologia e Espiritismo”, em dois volumes, publi cada
em Turim, em 1908, constitui uma das primeiras pontes
lançadas entre essas duas regiões do conhecimento, por sobre o
abismo dos preconceitos e da ignorância. Aliás, já tivemos a
oportunidade de afirmar que uma das grandes glórias do Espiri
tismo é justamente essa: a ciência espírita vem sendo construída
pelos adversários e contraditores da doutrina. Quanto mais eles
escavam os alicerces, para derrubar as paredes, mais constatam a
solidez do edifício espírita e mais contribuem para fortalecê-lo. A
obra de Morselli se fundamenta nas experiências que reali zou com
a famosa médium Eusápia paladino. Depois de verificar a realidade
dos fenômenos espíritas, de curvar-se ante a evidência dos fatos,
como Lombroso, o psiquiatra não quis, entretanto, aceitar a
explicação espírita dos mesmos. Fez como Richet, que só bem mais
tarde daria a mão à palmatória. Considerou simplista e apressada a
teoria espírita, mas sustentou com ênfase a realidade da
fenomenologia supranormal e propôs a criação de um “espiri tismo
sem espíritos”, à maneira da “psicologia sem alma” que Watson
proporia mais tarde.
“Psicologia e Espiritismo”, entretanto – como “The Human
Personality”, de Frederic Myers, e “L’extériorisation de la Motri
cité”, de De Rochas –, representa um marco na elaboração da
psicologia espírita. Muito se falou, depois desses pioneiros, em
metapsíquica, metapsicologia e parapsicologia. Tanto Richet, no
passado, como Rhine, na atualidade, tentaram avançar, através
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 38
Segunda Parte
–
Filosofia
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 41
10 – Um Divisor de Águas
A 18 de abril de 1857, a primeira edição de “O Livro dos Es
píritos” aparecia nas livrarias de Paris, e com ela raiava para o
mundo uma nova fase da vida humana, a que hoje damos o nome
de “era espírita”. O responsável pela publicação era um ilustre
professor francês, discípulo de Pestalozzi, autor de várias obras
didáticas, largamente conhecido pela sua vasta cultura e seu inve
jável equilíbrio de espírito. Assinava o livro com pseudônimo por
dois motivos: para diferenciar a sua atividade nas letras didáticas da
sua atividade no campo espiritual e, ao mesmo tempo, para
confirmar a sua crença na reencarnação anterior, quando sacerdote
druída, entre os celtas.
Até esse momento, esse dia exato – 18 de abril de 1857 –, não
se conhecia no mundo a palavra “Espiritismo”. Os fenômenos de
Hydesville, com as irmãs Fox, ocorridos dez anos antes nos Esta
dos Unidos, puseram na ordem do dia o problema da sobrevivên
cia. As explicações, as hipóteses, as teorias brilhantes ou não, e
mesmo as tentativas de formulação doutrinária, repetiram-se por
toda parte. Videntes numerosos assumiam atitudes de mestres, na
linha mística de Swedenborg. Mas, com tudo isso, a confusão era
cada vez maior. De um lado, as religiões tradicionais impugnavam
a novidade, baseadas em sua autoridade cegamente aceita. De outro
lado, os homens de ciência recusavam-se a aceitá-la. Fala va-se em
Neo-Espiritualismo, mas em geral esta palavra não definia nada, a
não ser o surto de um movimento confuso.
Com “O Livro dos Espíritos”, essa fase de transição foi supe
rada. Kardec lançava uma palavra nova, “Spiritisme”, que definia,
uma doutrina já perfeitamente estruturada em seu livro.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 42
11 – Os Fatos e a Doutrina
Desde o aparecimento do Espiritismo, numerosos esforços
vêm sendo feitos para negar a natureza dos fatos espíritas, dimi nuir
a sua significação, ridicularizá-los, atribuí-los à fraude ou misturá-
los com ilusionismo e hipnotismo. As forças e as pessoas
empenhadas nessa inglória tarefa partem da suposição de que,
negados ou deturpados os fatos, a doutrina pereceria. Entretanto, a
história dessa luta demonstra o contrário. Os fatos espíritas não
podem ser negados nem confundidos com fenômenos de outra
natureza, e o combate que a eles se move só tem servido para
intensificar a propagação da doutrina.
No capítulo sexto das “Conclusões” de “O Livro dos Espíri
tos”, Allan Kardec declara: “Seria fazer uma idéia bem falsa do
Espiritismo, acreditar que ele tira sua força da prática das mani
festações materiais e que, portanto, entravando essas manifesta ções
pode-se minar-lhe as bases. Sua força está na sua filosofia, no apelo
que faz à razão e ao bom-senso.” A seguir, o codificador explica
que os fenômenos espíritas existem desde todos os tem pos, não se
podendo escondê-los ou sufocá-los, precisamente por serem
naturais. Tratando-se, pois, de fatos naturais, lutar contra eles é
lutar contra a natureza, contra a realidade.
Mas por que o codificador afirma que a força do Espiritismo
não está nos fatos, e sim na doutrina? Pois não são os fatos a
própria base objetiva da doutrina? Se lhe tirarmos essa base real, a
doutrina não estará ameaçada? Claro que sim, e o próprio Kardec o
diz, no mesmo capítulo citado. Mas diz também que, por serem
naturais esses fatos, ninguém os conseguirá subtrair das bases
doutrinárias. Ninguém poderá nunca impedir as comunicações
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 45
12 – Cristianismo do Cristo
A posição do Espiritismo no mundo atual é das mais curiosas.
Certas pessoas o consideram tão elevado, tão puro, tão exigente no
plano moral, que confessam: “Não posso me dizer espírita, pois
ainda não atingi a perfeição necessária”. Outras, pelo contrá
rio, sentem arrepios ao simples enunciar do nome da doutrina, pois
entendem que Espiritismo é coisa diabólica, imoral, detestá vel.
Entre os intelectuais, uns declaram enfaticamente: “Espiritis mo é
ciência; o vulgo não pode entendê-lo”. Outros, porém, o
desprezam: “Nada tem de científico, pois é simples superstição,
sem conteúdo e sem base”.
De vez em quando aparecem figuras de destaque, nos meios
científicos ou clericais, revestidas de títulos pomposos, afirmando
que os fatos espíritas não passam de trapaças ou de ocorrências de
natureza puramente hipnótica. Escrevem livros, fazem conferên
cias, dão entrevistas e chegam a praticar exibições hipnóticas em
teatros e estações de televisão, para “provar” que o Espiritismo não
existe. Ao mesmo tempo, figuras de destaque, inclusive nos meios
clericais, reprovam essas atitudes e entendem que os fatos espíritas
merecem maior atenção, maior cuidado no seu trato, não podendo
ser confundidos com fenômenos comuns de sugestão e hipnotismo.
Em meio a essas contradições, o espírito do povo poderia sen tir-se
perplexo. Entretanto, o que se nota é que a perplexidade pertence
mais às elites, pois o povo compreende pouco das altas disputas
dos “doutores” e está acostumado a espetáculos de toda espécie.
Longe de aceitar sugestões perturbadoras, o povo, na sua
simplicidade e pureza de coração e entendimento, prefere decidir
pela sua própria experiência e esta lhe mostra, dia a dia, que os
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 48
fatos espíritas são realidades inegáveis e que o Espiritismo é, antes
de tudo, uma doutrina consoladora, que tanto socorre as
necessidades do homem encarnado, quanto ilumina o espírito a
respeito dos problemas que ele terá de enfrentar após a morte.
Essa curiosa situação do Espiritismo lembra exatamente o que
aconteceu com o Cristianismo no mundo antigo. O apóstolo Paulo
– que era um “apóstolo espiritual”, pois só se converteu e seguiu a
Jesus graças a um fato mediúnico –, escreveu que os cristãos
pregavam uma doutrina que era “escândalo para os judeus e lou
cura para os gregos”. Porque pregavam a Cristo crucificado, num
mundo em que o importante era a vitória social do homem. E
judeus, gregos e romanos, cheios de ambição e vaidade, apegados
aos seus preconceitos religiosos e culturais, consideravam o Cris
tianismo uma heresia obscura e uma religião de escravos. Apesar
disso, a mensagem cristã espalhou-se no meio do povo, produziu os
seus efeitos e transformou o mundo.
Pouco importa que os poderosos de hoje, como Paulo antes do
episódio mediúnico da Estrada de Damasco, cheios de sabedo ria
mundana, de ciência imprecisa ou de intransigência dogmática,
lutem contra o Espiritismo. A doutrina nascente encerra em seus
princípios todos os germes de um mundo novo, que em breve se
firmará sobre a Terra. Traz com ela uma nova ciência, uma nova
filosofia e uma nova religião. Sua força renovadora é, portanto,
imensa e seu processo de penetração é o mesmo da fonte poderosa
em que hauriu os seus princípios: o Cristianismo do Cristo, e não o
dos seus intérpretes.
Não se inquietem, pois, os meios espíritas, com as ondas de
combate à doutrina, que de vez em quando agitam o mundinho
estreito do meio em que vivemos. Não se combate senão o que
constitui uma ameaça, o que representa alguma coisa. O Espiri
tismo é combatido justamente por ameaçar os erros dominantes em
todos os setores do pensamento contemporâneo, como o Cris-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 49
13 – Da Magia ao Mito
Num curioso estudo comparativo sobre a vida e a obra de
Mark Twain e Monteiro Lobato, o professor Cassiano Nunes, da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, assinala o
interesse dos dois escritores, o norte-americano e o brasileiro, pelo
Espiritismo. E buscando uma explicação para esse interesse, em
dois espíritos pragmáticos, voltados intensamente para a ativi
dade prática, lembra uma observação de Otto Maria Carpeaux,
quanto ao que pode haver de paradoxalmente materialista no
interesse pelo Espiritismo.
Logo mais, analisando a posição de Lobato, nota Cassiano
Nunes que ele entendia “o advento do Espiritismo como progresso
da ciência.” Não era, pois, o sentimento religioso, mas o raciona
lismo materialista de Lobato que o levava a interessar-se pelos
“fatos surpreendentes”. Algumas frases de Lobato provariam isso:
“Um dia, esses fatos psíquicos, hoje considerados sobrenaturais,
serão conhecidos e fichados, como tantos da química”. Ou ainda:
“Os compêndios de física trarão o capítulo novo da metapsíquica,
como os compêndios de hoje trazem o capítulo novo da termodi
nâmica”.
A observação de Carpeaux, que vai correndo o mundo, pois já
a vimos citada algumas vezes, precisa de melhor análise. Qual a
razão do materialismo no interesse pelo Espiritismo, se este é
exatamente a negação do materialismo? A razão estaria nos fatos
materiais que demonstram a existência do espírito, ou seja, nos
chamados fenômenos físicos do Espiritismo, como os “raps”, as
materializações, a movimentação de objetos, as levitações. Mas a
recíproca não prova o contrário? Pois o que os interessados bus
cam nessas manifestações materiais não é exatamente o espírito, a
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 51
14 – O Velho e o Novo
Os brutais acontecimentos da África do Sul, daquela mesma
África sofredora e heróica que transformou Gandhi, de advogado
do hindu em apóstolo universal da não-violência, vêm provar, mais
uma vez, a tese espírita de que vivemos num mundo semipa
gão. É inútil querer-se proclamar o contrário, falar de boca cheia
em civilização cristã. Não chegamos ainda ao grau suficiente de
espiritualidade, de elevação moral, para vencermos o passado
brutal da humanidade que o Cristo veio reformar. A violência dos
babilônios, dos egípcios, dos gregos e romanos, dos bárbaros que
derrubaram o Império e dos cristãos que o sucederam, acendendo
fogueiras humanas em honra a Cristo, essa terrível violência que
era também a dos judeus, com seu sanguinário deus dos exércitos,
continua a imperar no mundo que insistimos em chamar de cris tão.
São ainda recentes os massacres nazistas. É de ontem a inva
são traiçoeira da Abissínia numa sexta-feira da paixão, por um país
católico, onde se ergue a sede oficial do cristianismo. É de hoje a
tragédia cubana, com as atrocidades anteriores a Fidel e os
fuzilamentos deste. Entretanto, com exceção dos nazistas, todos os
demais agiram brutalmente sob a denominação de cristãos. Agora
mesmo, os assassinos de Sharpville, na África, estão con vencidos
de que defendem a civilização cristã. E tudo por que? Porque o
Cristianismo com “C” maiúsculo é ainda um processo em
desenvolvimento, é uma forma nova de vida, um novo modo de
ser, que luta em todos nós contra o “homem velho”, esse an
tropóide selvagem que aprendeu a persignar-se, mas continua
feroz.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 55
15 – A Seara Imensa
O Cristianismo é seara imensa, de trabalho e de amor, em que
as almas laboram através do tempo, semeando e colhendo sem
cessar. Passam as gerações, sucedem-se as civilizações, e a seara
verdejante amadurece, preparando a colheita de vida eterna, para o
futuro do mundo efêmero. Tão grande é ela, tão vasto e fecundo o
seu seio, tão amplos os seus horizontes, que os homens se atur
dem ao contemplá-la, fixam-se em pequenos detalhes, prendem-se
a pormenores do plantio, absorvem-se em cuidados de reduzidos
tratos de terra. Não raro, chegam a considerar inimigos os pró prios
companheiros de trabalho, somente por se encontrarem noutros
pedaços de chão, ou por desenvolverem tarefas diferentes, no
grande labor da seara. Apesar disso, o tempo vai passando e a seara
amadurece. A poderosa seiva que a anima não leva em conta a
miopia humana.
A princípio, o Grande Semeador saiu a semear. Depois, reu niu
os que se interessam pelo seu trabalho e os espalhou pelas terras da
herança. Mais tarde, os sucessores foram reunindo outros
trabalhadores e a luta cresceu cada vez mais. O aumento dos
homens determinou, como sempre acontece, a divisão do trabalho.
Uns entenderam que deviam transformar a seara natural numa
grande fazenda artificial, com a casa grande imitando o templo de
Jerusalém, com guardas armados para defendê-la, com disciplina
rigorosa e vigilância permanente nas fronteiras. Outros entende ram
que não devia ser assim, e surgiram contendas e guerras, ficando
esquecido o trabalho da seara. Mas o Grande Semeador esperou
tranqüilo, pois a semente lançada no solo germinava sempre, apesar
da miopia dos homens.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 58
Chegou, certa vez, o tempo da florada. A seara crescera e es
tendera-se pelas terras da herança. Pendões verdes balouçavam a
todos os ventos do mundo. As flores tinham de surgir. E foi então,
em plena Renascença, que a Reforma brilhou em meio à seara,
reivindicando os direitos dos que se haviam oposto, nos tempos
antigos, ao monopólio dos serviços cristãos. A Reforma se ergueu
contra o formalismo tradicional e desentranhou as páginas sagra das
dos arquivos canônicos. Os textos evangélicos enfloraram a seara.
Todos puderam lê-los de novo, sentir pessoalmente as suas
pulsações da vida espiritual, interpretá-los com a luz própria que
Deus concedeu a todas as criaturas. Mas em breve as flores tive
ram, também, os seus cultores exclusivistas. Do antigo formalis mo
ritual, passaram eles ao formalismo literal. À maneira dos velhos
rabinos judeus, que de uma vírgula da Torá conseguiram tirar dez
sentenças, os literalistas proclamaram o absolutismo de letra. Ai
dos que se opunham aos exegetas autorizados, ai dos que se
atreviam a entender que os velhos textos nada mais eram do que a
roupagem do Espírito, o anúncio dos frutos vindouros! Mas o
Grande Semeador continuou esperando tranqüilo, pois apesar de
tudo a seara amadurecia.
Por fim, as flores começaram a dar lugar às primeiras espigas,
que repontavam tímidas, verdolengas, anunciando esperanças, nos
próprios meios da Reforma: primeiro, foi Swedenborg, com a sua
Nova igreja de Jerusalém, anunciando a revivescência do espírito;
depois, Edward Irving, cura da igreja escocesa, que leva para
Londres o problema das comunicações espirituais; depois, as
manifestações mediúnicas dos Shakers, nos Estados Unidos,
seguidos logo mais dos fenômenos de Hydesville, com as meninas
da família Fox, num lar metodista; depois, o rev. Ferguson, da
igreja de Nashville, no Tenesse, freqüentada por Lincoln, que leva
para a Inglaterra os irmãos Davenport, divulgando seus poderes
mediúnicos, depois o rev. Stainton Moses, que desenvolve sua
poderosa mediunidade; o rev. Vale Owen, que se torna médium; e
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 59
16 – Método e Bom-senso
Entre aquelas doutrinas espiritualistas que tudo explicam e
aquelas que tudo afirmam, o Espiritismo se apresenta como região
intermediária. Não pretende dar explicações para todas as coisas,
nem construir um castelo de afirmações dogmáticas. Seu objetivo
não é o proselitismo a todo custo, nem a satisfação da curiosidade
ou da imaginação, e muito menos o domínio das consciências. Pelo
contrário: é a busca da verdade espiritual, através do bom
senso, no campo raso da observação e da experimentação.
Doutrinas que tudo explicam, desde a maneira por que Deus
constrói os mundos, até as minúcias da fisiologia do corpo espiri
tual, existiam no mundo muito antes da codificação espírita.
Doutrinas autoritárias, que tudo afirmam e tudo impõem, sob
ameaças terrenas e celestes, dominaram a Terra desde os primór
dios da civilização. Mas doutrinas que procuram a verdade, dentro
dos limites da razão, com plena consciência das limitações huma
nas, só apareceram quando o homem começou a compreender a si
mesmo.
Kardec explica, em “A Gênese”, com a clareza didática que
caracteriza as suas obras: “O Espiritismo, tendo por objeto o estudo
de um dos elementos constitutivos do Universo, toca for çosamente
na maior parte das ciências; só podia aparecer, portan to, depois da
elaboração delas”. Noutro trecho, que como esse pertence ao
primeiro capítulo do livro, diz o codificador: “Como meio de
elaboração, o Espiritismo procede exatamente como as ciências
positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se
apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conheci das.
Ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 61
17 – Kardec, o Demiurgo
A existência dos fenômenos espíritas remonta aos inícios da vida
humana na Terra. Desde que o homem surgiu no planeta, com ele
surgiram os fatos que hoje constituem o que habitualmen te
chamamos fenomenologia espirítica. É claro que tinha de ser assim,
uma vez que os referidos fenômenos decorrem de leis naturais. mas
é também evidente que foi a partir de meados do século XIX que os
fatos espíritas se impuseram à consciência humana, na plenitude de
sua significação. O século XIX é, portan to, aquele em que se
assinala o aparecimento do Espiritismo.
Por duas maneiras a nova doutrina se impôs ao mundo: pri
meiramente, através do episódio mediúnico de Hydesville, nos
Estados Unidos, com as irmãs Fox; e dez anos mais tarde, com os
estudos e os livros de Allan Kardec, em Paris. Os fatos de Hydes
ville provocaram verdadeira revolução mental nos Estados Uni dos,
dando origem a numerosas experiências, realizadas com êxito por
homens eminentes da vida americana, chamando particular mente a
atenção dos cientistas, e originando as primeiras tentati vas de
formulação teórica, com os livros de André Jackson Davis. Da
América, o interesse pelo assunto se propagou a toda a Euro pa,
dando início ao ciclo das “mesas girantes”. E destas, afinal, surgiu
o interesse de Kardec pelo problema.
Durante muito tempo o Espiritismo esteve dividido em duas
grandes correntes: a anglo-saxônica, proveniente da América e
amplamente desenvolvida na Inglaterra, e a francesa, que tendo
Kardec à frente, se desenvolveu na Europa Continental e, mais
particularmente, nos países latinos. A primeira corrente caracteri
zava-se, como ainda hoje se caracteriza, pela falta de uma base
doutrinária bem estruturada, daí derivando o seu movimento de
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 64
coisas, como dizia o próprio Kardec. Ainda hoje se tenta opor uma
corrente à outra, como se tenta opor religião e ciência na
compreensão da doutrina, dentro mesmo dos quadros da Codifica
ção, onde o Espiritismo apresenta uma estrutura poderosamente
coerente, na sua forma tríplice de ciência, filosofia e religião.
Pouco a pouco, porém, a nova doutrina vai sendo mais bem
compreendida. As divergências formais, como previa Kardec, estão
sendo superadas pela prevalência inevitável da verdade.
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 66
18 – Religião Reconstruída
“Como pode ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, ciência, fi
losofia e religião? que mistura é essa?” pergunta-nos um leitor.
Esta pergunta é repetida por muitas pessoas, que não entendem o
problema das relações necessárias entre os vários ramos do co
nhecimento.
Sim, dissemos exatamente isso: relações necessárias. E é dessa
necessidade natural do conhecimento – não do Espiritismo em si,
como coisa isolada ou “sui-generis”, mas do próprio co nhecimento
– que resulta a natureza tríplice da doutrina. Já lem bramos diversas
vezes as afirmações de Léon Denis, de sir Oliver Lodge e do
próprio Kardec, quanto ao sentido de síntese do co nhecimento, que
o Espiritismo apresenta. Esse sentido de síntese, ao mesmo tempo
revela e explica a natureza tríplice da doutrina.
Seria inútil invocarmos as longas discussões filosóficas a res
peito das formas do conhecimento e suas possíveis relações. O que
nos interessa é a visão do problema no plano histórico, onde os
fatos nos mostram o conhecimento a se desenvolver progressi
vamente da religião até a ciência, passando pela filosofia. Por mais
simplista que pareça esse esquema, não se pode negar a sua
realidade histórica, e ela basta para demonstrar que a unidade do
espírito não pode ser quebrada por nenhuma teoria dos valores. A
religião, em suas formas primárias, é a matriz do conhecimento.
Dela derivam, por desenvolvimento do espírito crítico, a filosofia e
a ciência.
Esse esquema se inverte no Espiritismo, em virtude daquilo que
podemos chamar a lei circular ou cíclica da evolução. Atingi do o
plano do conhecimento científico, e realizando-se neste plano, o
espírito “se dobra sobre si mesmo”, para da ciência extra-
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 67
ir novamente a religião. No “estado positivo” de Augusto Comte, a
aridez conceptual força o homem a um regresso até as fontes vitais
do espírito. E é exatamente o esquema dessa volta que encontramos
na História do Espiritismo. No momento em que a ciência destruiu
a religião, através da crítica filosófica e das pes
quisas empíricas, o pensamento se reconstrói a si mesmo, recom
põe a sua unidade natural, com base na própria ciência. Temos
nesse fato uma confirmação da lei dialética da “nega ção da
negação”. A religião espírita nasce da ciência negativista, para
negá-la também. Estamos diante de um tipo diferente de religião,
inteiramente novo, que se apóia, não nos “valores religi osos” de
que fala Hessen, ou na “essência religiosa”, a que se alude Max
Scheller, mas nos valores lógicos. Partindo destes, o espírito
reencontra os valores éticos e reelabora os valores religio sos. É
assim que, da demonstração empírica da sobrevivência, ou seja, da
ciência positiva, surge a reflexão filosófica que reconduz o homem
à religião.
Os ramos do conhecimento são autônomos, constituindo-se de
valores próprios, mas integram um todo e por isso mesmo se
relacionam necessariamente. Essas relações se tornam evidentes no
processo histórico do desenvolvimento do Espiritismo. O homem
descrente exige a demonstração positiva da existência da alma para
reconstruir a sua unidade espiritual. A ciência espírita lhe oferece
essa demonstração; a filosofia espírita examina e comprova a sua
validade; a religião espírita a confirma na prática.
Esse processo não se realiza no espírito que aceita a religião
espírita em sua forma acabada. Mas essa aceitação confirma a
validade da “religião reconstruída”, mostrando que ela realmente se
constitui de “valores religiosos” tão legítimos como os das demais
religiões, não obstante se apóie nos valores lógicos. É o que Kardec
chama “a fé iluminada pela razão”, o velho ideal da
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 68
uma vida fora do corpo, além da matéria, é evidente que existe uma
hierarquia de seres espirituais além da terra.
Como esquivar-se alguém a essa conclusão e às suas implica
ções?
Da mesma maneira, como pode o pensamento religioso, que
encontra a sua comprovação nos fenômenos espíritas, negar a
validade e a importância destes? Como pode o espírita religioso
furtar-se à verificação dos fatos mediúnicos, sem negar, com isso,
as próprias bases da sua religião, ou pelo menos desprezá-las? Não
há, pois, como separar-se uma coisa da outra. No Espiritis
mo, tanto importam os fenômenos quanto as suas conseqüências
filosóficas, morais e religiosas. O espírita que realmente compre
ende a sua doutrina não pretende fragmentá-la, mas, pelo contrá rio,
defende constantemente a sua integridade.
Quando tratamos, entretanto, das conseqüências filosóficas dos
fenômenos espíritas, não estamos escapando do terreno da religião?
Quando cuidamos de moral, não estamos num terreno prático, em
que as normas da vida, no plano terreno ou no espiri
tual, se impõem por si mesmas, sem necessidade de atitudes mís
ticas? Assim pensam alguns estudiosos, voltando-se contra o que
chamamos de religião espírita. Entretanto, a interpretação dos
fenômenos, a reflexão sobre os fatos mediúnicos, leva inevitavel
mente à convicção de que existem poderes espirituais superiores, e
de que as relações do homem com esses poderes se passa no plano
das vibrações psíquicas, ao mesmo tempo de ordem mental e
emocional. E eis que nos encontramos no plano da religião, da
crença e da prece.
A crença espírita, porém, como assinalava Kardec, não é cega ou
imposta pela autoridade, e nem mesmo pela tradição. É a cren ça
consciente, iluminada pela razão. Creio porque sei, diz o espíri ta. E
a fé decorrente dessa posição é aquilo que Kardec considera: “fé
iluminada pelo raciocínio”, ou ainda: “capaz de encarar a
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 71
20 – O Complexo e a Caridade
Enganam-se os que pensam que basta freqüentar sessões num
centro espírita para ser espírita e poder discutir Espiritismo. En
ganam-se ainda mais os que pensam que podem conhecer a dou
trina através de comunicações dos “guias”. O Espiritismo é uma
doutrina que envolve, como dizia Kardec, princípios referentes a
todas as ciências, pois que toca simultaneamente em todos os
ramos do conhecimento. Daí a sua característica, tão mal compre
endida e tão ironicamente combatida por adversários diversos, de
doutrina tríplice, envolvendo no seu todo doutrinário a ciência, a
filosofia e a religião. Como, pois, conhecer uma doutrina dessa
natureza, sem estudá-la a fundo, sem ler atentamente as suas obras
fundamentais?
Kardec, Léon Denis e Oliver Lodge afirmaram que o Espiri
tismo constitui uma síntese do conhecimento. É uma doutrina que
reúne em si os resultados da investigação científica, da cogitação
filosófica e do sentimento religioso, na busca da compreensão do
universo e da vida. Isso quer dizer, não que o Espiritismo repre
sente uma espécie de enciclopédia, o que seria absurdo, mas que
ele encerra na sua estrutura e visão global do mundo e da vida,
obtida pelo homem através daqueles ramos do saber humano. O
caráter sintético do Espiritismo não é conseqüência de um esforço
intencional nesse sentido, mas o resultado natural da evolução dos
conhecimentos humanos, que tendem naturalmente a uma síntese
conceptual.
Quando compreendemos essa posição excepcional do Espiri tismo,
admiramo-nos da facilidade com que certas pessoas, às vezes
dotadas de cultura, se referem a ele, para formulação de críticas
levianas e sem sentido. Mas ainda nos admiramos da
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 73
atitude de pessoas que, mal ingressaram no movimento doutriná rio,
já se consideram capazes de discutir problemas da doutrina, como
se fossem velhos estudiosos do assunto. Só não podemos nos
espantar, evidentemente, com os adversários, pois que esses,
firmados em preconceitos, fecharam os olhos e os ouvidos a qual
quer entendimento. Entretanto, as pessoas de cultura deviam ter
mais cautela ao se referirem à doutrina.
Há pouco, em um dos nossos jornais diários, comentando a
campanha da construção de um hospital espírita para doentes
mentais, em Jaú, escrevia um colunista que devia tratar-se de um
caso de complexo de culpa. E para justificar a sua tese, a sua
possível descoberta, em termos de possível interpretação psicana
lítica, citava alguns autores: Blavatsky, que era contrária ao Espi
ritismo, e mais dois pesquisadores, que admitiam a possibilidade de
perturbações psíquicas provenientes de práticas espíritas. Não há,
entretanto, nenhuma novidade nessa tese, que é tão velha quanto o
próprio Espiritismo. Já em “O Livro dos Espíritos”, obra
fundamental da doutrina, Kardec tratou do assunto, demonstrando a
má fé dos que a acusam de produzir desequilíbrios. O interes sante é
que a própria psicanálise, em que o colunista se apóia, é também
acusada de transtornar os que a ela se dedicam. Tão infundada, é
claro, uma acusação, quanto a outra. Kardec explica, com aquele
admirável bom-senso que falta a tanta gente – apesar da
distribuição eqüitativa de Descartes –, que todas as preocupa ções
profundas podem desequilibrar as pessoas já naturalmente
propensas ao desequilíbrio, desde as matemáticas até aos estudos
de qualquer religião.
A fundação de hospitais espíritas não decorre da verificação de
casos de desequilíbrio nos trabalhos doutrinários. Muito pelo
contrário, decorre da procura desses trabalhos pelos doentes men
tais, em geral desenganados pela ciência e sem possibilidades de
recursos em suas religiões. Os espíritas, acusados de “fabricarem”
J. Herculano Pires – Os 3 Caminhos de Hécate 74