Além Do Mais A Escola

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

"Além do mais…a escola"

https://ebpbahia.com.br/jornadas/2023/alem-do-mais-a-escola/

O QUE MANTÉM A ESCOLA DE LACAN VIVA?

Boletim Desidério: Bernardino, gostaríamos de saber o que mantém a Escola de


Lacan viva?

Bernardino Horne: É uma pergunta bem interessante e eu vou começar com uma
frase de Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” que diz
um pouco da ideia dele nesse texto, que é: “Pretendemos mostrar como a
impotência de sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na
história dos homens, ao exercício de um poder”[2]. Práxis é uma palavra antiga que
se usava muito nessa época de Lacan, especialmente para definir a união entre
teoria e prática. Quando uma práxis funcionava bem era porque a teoria e a prática
se articulavam bem.

Por que digo isso? Por que cito isso? Porque o que sustenta viva uma análise é sua
práxis, ou seja, que exista uma teoria e uma clínica que funcionem articuladamente,
e é isso o que mantém viva a psicanálise. Ou seja, sustentar autenticamente uma
práxis.A palavra autenticamente é uma palavra que Lacan usa em sua época. É uma
palavra muito forte porque diferencia um tipo de prática de outra. A Associação
Psicanalítica Internacional, a IPA, que Freud criou, nasceu viva, muito viva! Foi uma
época de crescimento da obra de Freud inteira. Deu nomes muito importantes para a
psicanálise: Abraham, Melanie Klein, Sándor Ferenczi, Ernest Jones, Theodore
Wright. Lacan tira os sete famosos colegas do grupo de Freud etc.

Mas a descoberta de Freud, isto nos diz Lacan no início de “Função e campo da fala
e da linguagem em psicanálise”[3] é de tal ordem, descentra tanto a situação do ser
humano como Galileu descentra o mundo, ou, enfim, que não é fácil sustentar a
teoria analítica e a práxis analítica. Ou seja, a teoria e a clínica. E surgem, no curso
do processo de crescimento da análise, diferenças, algumas importantes, que vão
produzindo decepções, diferenças, outros grupos que se vão formando. É nesse
sentido que a psicanálise não é uniforme nem unidirecional. E a maioria dos grupos
que se afastaram, a maioria deles foi desaparecendo ou se transformou realmente
em outra coisa absolutamente diferente.

O próprio Freud, no giro de 1920, quando se movimenta em direção à pulsão de vida


e à pulsão de morte, mais da metade da IPA não aceita ele. Porque a metade da IPA
era americana. Os americanos psiquiatras iam aos congressos e não tinham nem
ideia da psicanálise, iam aos congressos para abater imposto de renda, esse tipo de
coisa. Então havia um número muito grande de membros da IPA que eram
psiquiatras da Ego Psychology.

Então, o que mantém viva a psicanálise é o trabalho constante dos psicanalistas


pela psicanálise, porque a psicanálise em si tende a desaparecer porque é uma
corrente de pensamento contrária à do desejo humano. Desejo humano é mais o da
ignorância, de não saber e querer passar bem. E nós vamos contra isso, vamos a
favor da verdade, contra o desejo de ignorância, colocar em movimento, ou seja,
contrário ao gozo que implica ficar quieto.

A LÂMINA CORTANTE DA VERDADE

Bernardino Horne: Quando Lacan fez o primeiro movimento de saída, de mudança e


de retorno a uma leitura de Freud, dos três registros, e depois quando é expulso, na
época do Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, quando é
expulso da IPA, foi colocada para ele uma quantidade de impossibilidades de ensino
fundamentalmente, tanto que ele tem que sair da IPA. Ele diz que lhe havia sido
aplicada a excomunhão maior, a mesma que recebeu Espinosa, de quem ele era
admirador, leitor. E o que Lacan discute é precisamente a não aceitação da pulsão
de morte – que em psicanálise, em seu ensino ele o diz claramente – e diz que essa
negativa leva a um ambientalismo declarado. Ou seja, a uma superficialização
ambientalista da psicanálise. É nesse momento que ele funda a Escola, o “Ato de
fundação”[4]. E as metas, digamos assim, que ele se propõe, são de restaurar a
lâmina cortante da verdade, quer dizer, restaurar a psicanálise de Freud no sentido
de lâmina cortante da verdade. Não significa voltar a Freud tal qual, mas à essência
de Freud que é a lâmina cortante da verdade. E a estudar os finais de análise, coisa
que propõe em “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola”[5], que completa o “Ato de fundação”. Por quê? Porque no passe se
trabalham duas coisas.

Uma: quais são os finais de análise? Porque nos finais de análises, à medida que
sabemos o final, nos dá lugar e a posição e a orientação do início. Nós iniciamos a
análise orientados pelo final. E esse final vai ser para Lacan uma orientação ao real e
ao mesmo tempo é um procedimento que permite a discussão do que é um analista,
coisa que é fundamental, pergunta fundamental da Escola. Nós participamos, nosso
grupo de pessoas participamos do Campo Freudiano. Somos membros de um
conjunto amplo que se chama Campo Freudiano. O Campo Freudiano é o campo
fundado por Freud, a psicanálise. Mas estamos na Orientação Lacaniana no Campo
Freudiano. Qual é a Orientação Lacaniana do Campo Freudiano? É a orientação ao
real. E nem todos sabem que no Seminário 7, A ética da psicanálise – até o
Seminário 6, O desejo e sua interpretação, Lacan se dedica ao simbólico e ao
imaginário – a partir do 7, ele começa a se ocupar do real. E diz na introdução:
vamos nos ocupar da ética, não a ética clássica que procura o bem e as formas de
alcançá-lo, seguindo a clássica ideia de Aristóteles, mas vamos nos ocupar do mal,
digamos assim, de Sade, é por outro caminho que iremos. E a intenção, e isso é
textual de Lacan, é iniciar. Iniciamos, nesse momento, um programa de
aprofundamento no real. Esse programa que ele começa, vai ter um ponto especial
no Seminário 19, …ou pior, que é o seminário onde ele diz “Há Um”, e no Seminário
23, O sinthoma, quando ele fecha de alguma forma essa questão, onde já irá tratar
da forma em que se escreve o “Há Um”, ou seja, é uma escritura no real, ainda que
seja o resultado de uma operação simbólica; é, entretanto, sem significado. Por que
digo isto? Porque isso é o que mantém viva a Escola, nossa pesquisa permanente
sobre a orientação ao real, sobre o que é um analista etc.

O QUE É UMA ESCOLA?

Bernardino Horne: Isso implica em nos perguntarmos o que é uma Escola? O que é
a Escola? E por que desejar a Escola? A Escola é um conceito fundamentalmente, é
um conceito trabalhado por Lacan. As escolas surgiram antes das universidades. A
universidade e a Escola têm uma mesma finalidade ou um mesmo objeto, que é o
saber. São duas instituições que se interessam pelo saber, mas são saberes muito
diferentes. Em certo sentido, e isto é um pouco duro de dizer, mas é o que se pensa,
que o saber universitário é um saber mais morto. Ou seja, que o professor ensina o
que sabe, e na psicanálise, na realidade, sempre estamos falando do que não
sabemos. Porque não sabemos o que é um analista, não sabemos muito bem o que
é uma Escola. Lacan tinha claro que as escolas, as escolas prévias à universidade,
se formavam em torno de uma pessoa que sabia e sabia dizer. Sócrates, Aristóteles,
depois foram formando escolas, não no início. E escolas eram isso: grupos de
pessoas interessadas em torno de alguém que sabia dizer e pensar. Isso implica que
essas pessoas tinham uma implicação subjetiva no que estavam. Existia
transferência por essa pessoa que sabia. Havia transferência dos discípulos de
Aristóteles por Aristóteles, havia transferência por Platão na escola de Platão. Como
há transferência por Lacan em nós, inclusive dos que não conheceram Lacan
diretamente, mas através de seus livros.

Boletim Desidério: Nesse caso, qual seria uma diferença que a gente poderia
estabelecer entra a Escola de Psicanálise e essa escola de Aristóteles? Existiria aí,
então, uma diferença?

Bernardino Horne: Em certo sentido, claro que há diferença, a diferença dos anos,
inclusive. A diferença talvez da personalidade dos ensinantes seja mais distribuída,
digamos assim. Mas me parece que nós temos uma transferência a Lacan e a Miller
atualmente como pessoa viva, que têm algo da transferência que tinham os
discípulos de Aristóteles, possivelmente. O que acontece é que a Escola não é só
transferência. Faz uma diferença com a universidade e com outros ensinos porque
há transferência. Faz disso também uma instituição diferente. Nós não somos uma
instituição totalmente democrática. Porque há transferência, e quando houve
fraturas ou rupturas, separações etc., em geral as pessoas se vão com seu analista,
ou seja, com a transferência. As fraturas se dão nesse sentido; quase sempre tem
sido assim.

Então, a Escola tem esse saber como um objeto, há um objeto saber que Lacan, na
“Proposição…” trabalha. Ele disse que Sócrates tinha um saber em si que era
agalmático, que era um ágalma, fazia com que ele brilhasse e com que as pessoas o
amassem por isso. Era tanto que se diz que Sócrates era um feio, parece que muito
feio. O feio envoltório que guardava dentro de si o objeto agalmático que era o seu
saber. Então, e não muitas vezes, no Conselho da Escola repensamos – me lembro
de alguns trabalhos com colegas – em como manter o ágalma da Escola. E não há
melhor forma que a do trabalho sobre o saber. O trabalho que, por exemplo, Miller
realizou durante os anos que fez o curso dele – o último está inédito ainda – ou seja:
nossa forma de sustentar autenticamente uma práxis é pela via do trabalho sobre o
saber e não sobre o poder. Tanto é assim que o desejo do analista, que é o que
movimenta a clínica, é um desejo desprendido de toda intenção de poder. Quase que
podemos dizer que uma das definições de desejo do analista é não conter nenhuma
intenção de poder.

ESCOLA: UM SABER INCOMPLETO

Bernardino Horne: Por outro lado, esse saber da Escola é um saber incompleto. E é
um saber que parte de que no centro do saber que se está trabalhando e formando,
tecendo com uma rede de saber, implica buracos, furos, de não saber que seguimos
trabalhando permanentemente. E ao escolher a palavra Escola, Lacan coloca o
saber no centro da Escola. O centro da Escola é o saber. O fundamental da Escola é
o saber. Se nós não trabalhamos e fundamentamos e damos sustento ao nosso
saber, a psicanálise desaparece. Ou seja, a Escola não nos dá segurança, se
estamos na Escola, não estamos tranquilos que sabemos. Estamos intranquilos,
porque sabemos que há buracos que temos que seguir trabalhando. Um dos
buracos é a não existência do conceito de analista. O analista é como a mulher, não
há O analista. Não há um significante para dizer “um analista é aquele tal coisa”.
Bom, ele é aquele que se senta atrás e ouve o paciente. Sim, mas não é só ouvir.
Também há que dizer algo. Há que ouvir de uma maneira, há que ouvir a partir de um
lugar etc.

E então, o passe, que é o segundo buraco. É preciso em nossa Escola trabalhar os


finais de análises. Por outro lado, trabalhar o que é o analista, o que é esse analista,
como esse analista tornou-se analista.

ESCOLA: UM CONJUNTO DE UNS SOZINHOS

Bernardino Horne: Tem um texto muito interessante que recentemente reli, de Miller,
que está em Opção Lacaniana número 2 e se chama “O conceito de Escola”[6]. É um
texto que vale a pena ler e que trata precisamente da ideia de Lacan de que a Escola
é um conceito. Também podemos pensar a Escola como um conjunto de Uns
sozinhos que formam um conjunto Escola em função do desejo de manter viva a
Psicanálise. O motivo pelo qual nos juntamos para trabalhar é para manter viva a
Psicanálise.

INICIATIVA ESCOLA

Boletim Desidério: Nesse contexto de Escola, o que você poderia falar da Escola
Brasileira de Psicanálise, incluindo a Seção Bahia?

Bernardino Horne: O momento de fundação da Escola foi um momento de grande


entusiasmo no mundo. Pouco depois de se formar a Associação Mundial de
Psicanálise com quatro Escolas – a EOL, a Escola Europeia, a Escola de Barcelona
(acho que era) e a Escola da Venezuela –, fundou-se a quinta Escola que era a
Escola Brasileira. O problema de todas as Escolas no início, em sua fundação, foi
que haviam grupos lacanianos. E a Escola era a desaparição dos grupos e a união
em uma forma Escola, que era um por um e não por grupo.

Miller, no congresso da Venezuela sobre a transferência, lançou a ideia para o Brasil


de uma coisa que chamou “Iniciativa Escola”, pela qual, cada um, as pessoas que
queriam participar da Escola futura teriam que mandar um fax a Miller, pessoal,
individual, dizendo: “eu quero fazer parte da Iniciativa Escola”. Foi interessante
porque alguns chefes de grupos, digamos assim, diziam aos seus colegas: me dê
seu nome que vou mandar uma lista com o nome de todos. Miller não aceitou isso.
Não aceitou que mandassem uma lista com cinco pessoas. Cada um tinha que
mandar. Você poderia mandar do fax emprestado de alguém? Sim, mas era o seu
fax e não um fax conjunto. E eu acho que o Brasil foi possivelmente dos grupos da
América etc., a Escola que mais diluiu os grupos, realmente. Com exceção de uma
pequena complicação que se manteve por um tempo em São Paulo, que chegou ao
ponto de terem mais de um Instituto. Há ainda mais de um Instituto, mas naquela
época, praticamente não se trabalhava na Escola em São Paulo, se trabalhava nos
Institutos. Lentamente se foi reunindo dentro da Escola. Mas no resto do Brasil,
realmente não houve problema. Na Bahia, houve algum pequeno problema, mas se
solucionou e se diluíram. Isso fez uma diferença, me parece, da EBP com outras
Escolas. Quando estrangeiros vêm para trabalhar aqui, o que falam comigo
individualmente, em algum momento – a maioria são pessoas que conheço
bastante e podemos conversar – o que mais os atrai a vir ao Brasil é a possibilidade
de debate. Inclusive, em alguma vez que falei na Europa se comentou da diferença
de bibliografia. Eu ponho na minha bibliografia autores brasileiros. Nós debatemos
com Jésus Santiago, com Sérgio Laia, algum tema. Debatemos, conhecemos as
ideias, nos parecem interessantes. Já nos lugares em que se mantiveram os grupos,
teriam se separado. Se você estava num grupo e eu num outro, se você falasse
numa plenária, eu saía e ficava tomando um café fora, e quando você terminava, eu
entrava. Isso nunca aconteceu no Brasil.

Então a Escola Brasileira foi uma Escola consistente desde o primeiro momento.
Juvenil, se quiser colocar assim. No sentido de que sabia menos, tinha menos saber
do que podia ter Barcelona, ou que podia ter Buenos Aires, mas que tinha um
conjunto funcionando como Escola, um por um. Não por grupo. Isso acho que foi a
característica talvez mais importante e positiva da Escola Brasileira, que teve êxito
na desaparição praticamente dos grupos, que foi quase no início, e os pequenos
restos foram se resolvendo melhor.

Quanto à Seção Bahia, ela participou dessa situação. Não existem grupos na Seção
Bahia, e talvez a característica mais importante da Seção Bahia, me parece, é que
tem um Instituto muito poderoso, não apenas tem uma Seção, uma Seção
importante. Na primeira época da Escola, a Seção Bahia era a que mais apresentava
trabalhos nos congressos fora do Brasil, era uma Seção importante. Lentamente,
claro, foram tomando força e quantidade e movimento: Minas, Rio e São Paulo. Mas
num primeiro momento, a Bahia foi muito forte. E eu acho que possivelmente o
nosso Instituto seja o Instituto mais forte do Brasil, e o que tem dado formação, um
saber prévio à formação, à maioria das pessoas de todo Norte e Nordeste, um
Instituto que tem incidido na formação dos psicanalistas em toda parte Norte e
Nordeste do Brasil.

Boletim Desidério: Que honra poder participar dessa transmissão que você acabou
de fazer. Muito obrigado, Varón !

Bernardino Horne: Obrigado! Saudações a todos.

Transcrição direta da entrevista concedida por vídeo para a rubrica “Além do mais… a Escola” do
[1]
Boletim Desidério. Gentilmente autorizada por Bernardino Horne para publicação.

[2] LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. (1958) In: LACAN, J. Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 592.

[3] LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. (1953) In: LACAN, J. Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 238-324.

LACAN, J. Ato de fundação. (1967) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
[4]
2003. p. 235-247.

[5] LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. (1967) In: LACAN,
J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 248-264.

[6] MILLER, J.-A. O conceito de Escola. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de
Psicanálise, São Paulo, n. 2, p. 03-04, 1992.

Category: Boletim Desidério 17 de agosto de 2023

Você também pode gostar