LIVRO PT-BR Way Truth Life Rev2021!03!10

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CAMINHO

VERDADE

VIDA

O Discipulado
como uma Jornada
da Graça

David A. Busic
Uma vida que segue a Jesus nunca deve ser monótona ou
estagnada, nem deve ser vivida sozinha. Ao procurarmos
tornar-nos cada vez mais como Jesus, descobrimos que o
discipulado cristão é uma jornada contínua da graça. No
Caminho, Verdade, Vida David Busic convida-nos a considerar
as várias maneiras que a graça de Deus – que busca, salva,
santifica, sustém e é suficiente – nos encontra onde estamos
nas nossas vidas. Quando respondemos fielmente Àquele que
amorosamente nos chama e equipa para a Jornada da Graça,
desfrutaremos de um relacionamento mais profundo com Jesus
Cristo, que é Ele mesmo o Caminho, a Verdade e a Vida.

David A. Busic (DMin, DD) serve como superintendente geral


na Igreja do Nazareno. Anteriormente serviu como presidente
do Nazarene Theological Seminary em Kansas City (EUA),
e como pastor principal de igrejas na California, Kansas e
Oklahoma. Busic também escreveu The City: Urban Churches in
the Wesleyan-Holiness Tradition [A Cidade: Igrejas Urbanas na
Tradição de Santidade Wesleyana] e dois volumes de Perfectly
Imperfect [Perfeitamente Imperfeito], estudos de personagens
do Antigo e Novo Testamentos.
CAMINHO
VERDADE
VIDA
O Discipulado
como uma Jornada
da Graça

David A. Busic
Direitos Autorais © 2021
The Foundry Publishing
Kansas City, MO 64141

Publicado originalmente em inglês sob o título


Way Truth Life por David A. Busic
Publicado por The Foundry Publishing

Esta edição foi publicada


por NazLivros Publicações (Brasil)
e Global Nazarene Publications (Lenexa, KS USA)
pelo acordo com a The Foundry Publishing.
Todos os direitos reservados
ISBN 978-1-56344-937-6 rev2021-03-10

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada num sistema
de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio sem a
permissão prévia por escrito do editor, por exemplo, digitalização, fotocópia e
gravação. Exceptuam-se as breves citações em revisões impressas.
Design da Capa: Matt Johnson
Design do Interior: Sharon Page
Equipe editorial: Priscila Guevara, Paulo de Melo Duarte, Susana Reis Gomes,
Joyce Temple, Paulo Neto
Todas as citações das Escrituras, excepto as indicadas, são extraídas da versão João
Ferreira de Almeida Revista e Corrigida.
Os endereços da Internet neste livro eram precisos no momento da publicação
do mesmo, mas podem não estar disponíveis em todos os idiomas. Esses links
são fornecidos como um recurso. O editor não os confirma nem garante o seu
conteúdo ou permanência.
Em memória de Robert E. Busic, um pai que me ensinou que o
discipulado é uma jornada inundada de graça e que a semelhança
com Cristo é o nosso destino.

Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade;


une o meu coração ao temor do teu nome.

- Salmo 86:11
ÍNDICE
Agradecimentos ............................................................... 7
Introdução ....................................................................... 9
1. A Graça Maravilhosa ............................................. 19

O Caminho
2. A Graça que Busca ................................................ 33

A Verdade
3. A Graça Salvadora ................................................ 51

A Vida
4. A Graça Santificadora ............................................ 75
5. A Graça Sustentadora .......................................... 109
6. A Graça Suficiente ............................................... 145
Posfácio: Jesus Cristo é o Senhor .................................... 163
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos podem abranger desde o reconhecimento da-
queles que tornaram algo possível até dívidas de gratidão que não
podem ser pagas. Assim é aqui.
Quando eu fui eleito para servir como superintendente ge-
ral na Igreja do Nazareno, sabia que os meus colegas da Junta de
Superintendentes Gerais iriam influenciar a minha vida, mas o grau
desse impacto tem sido inestimável. Embora ocorram quase sempre
diferenças de opinião nas nossas inúmeras conversas como liderança,
o nosso compromisso para fazer, fielmente, e em oração, o que é me-
lhor para a igreja — mesmo com um custo — e a minha confiança
absoluta na força do caráter e na pureza dos seus corações são o que
perdurarão. Obrigado Filimão Chambo, Gustavo Crocker, Eugénio
Duarte, David Graves, Jerry Porter, Carla Sunberg e J.K. Warrick. A
influência de vocês tem me inspirado a escrever este livro no serviço
à igreja, para nos ajudar a cumprir a nossa missão de ‘fazer discípulos
à semelhança de Cristo nas nações”.
Obrigado ao Scott Rainey, diretor global dos ministérios de dis-
cipulado da Igreja do Nazareno, pelo convite para escrever um livro
simples que enfatiza o discipulado de santidade como uma jornada
da graça. Obrigado a Bonnie Perry, diretora editorial da The Foundry
Publishing, pela sua crença inabalável de que uma boa teologia escrita
e transmitida às nossas crianças é uma tarefa importante o suficiente
para investir o melhor de sua vida. Obrigado a Audra Spiven, por
editar com um objetivo de clareza e de sempre trazer a pergunta, “E se

7
C A MINHO • VERDADE • VIDA

dissesse desta forma?” Finalmente, obrigado à congregação nazarena


da minha juventude que, a despeito de não ser grande em assistência
era extravagante em amor, me ensinou que a santidade não é somente
o que Deus, em Cristo, tem feito por nós, mas também o que Deus,
em Cristo, faz incansavelmente em nós e através de nós quando desis-
timos do direito a nós mesmos e deixamos Jesus ser Senhor.

Nota do Autor
Como tem sido o meu estilo em escritos anteriores, encorajo o
leitor a consultar as notas dos capítulos para uma maior abrangência
de compreensão quanto ao discipulado e a jornada da graça. As ano-
tações abundantes refletem a minha dívida ao pensamento de outros
e o meu desejo em oferecer um discernimento adicional que seria um
fardo ao corpo principal do texto. Para melhor acessibilidade, as cita-
ções completas são oferecidas cada vez que um novo capítulo inicia,
mesmo que esse autor ou fonte tenha sido reconhecido antes.

8
INTRODUÇÃO
Jesus nos convida a uma jornada. “Venha e siga-me.” É um simples
convite para uma aventura com um amigo querido. A vida cristã é
mais do que a crença correta. É mais do que um consentimento inte-
lectual. É um convite para uma jornada com Jesus.
Outra palavra para a jornada com Jesus é discipulado. O discipu-
lado é seguir o caminho de Jesus enquanto se viaja com Ele. O cami-
nho tem muitas voltas, curvas e contracurvas inesperadas na estrada.
Às vezes, o caminho parece fácil, outras vezes, parece uma difícil
subida. No entanto, o objetivo final (em grego, telos) do discipulado é
sempre o mesmo: ser como Cristo.
Se isso parece impossível, está realmente em um ponto muito bom
para começar. De fato, seria impossível se não fosse por uma certeza
muito importante: fazemos a jornada com Jesus. É por isso que é uma
jornada da graça.
Quando Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João
14.6), Ele estava falando sobre mais do que uma equação intelectual
sequencial ou um acordo transacional que fazemos com Deus. Ele
estava descrevendo a maneira relacional em que o discipulado acon-
tece. De fato, o Caminho, a Verdade e a Vida não são abstrações
filosóficas ou princípios de vida. O Caminho, a Verdade e a Vida são
uma Pessoa.
Jesus estava apontando para o telos (objetivo) apropriado da jor-
nada: a verdadeira vida como Deus pretendia, e os meios pelos quais

9
C A MINHO • VERDADE • VIDA

alcançamos a meta são o caminho e a verdade, realizados dentro e


através de si mesmo.1 A jornada da graça é relacional na sua essência.
James K. A. Smith descreve o discipulado como “um tipo de imi-
gração, do reino das trevas para o reino do Filho amado de Deus
(Colossenses 1.13)”.2 Esta é a linguagem de uma jornada — mudar de
um país para outro.3 Trata-se de mudar a cidadania e as alianças, o
que é totalmente impossível à parte da graça de Deus em Jesus Cristo,
que é o Caminho. Smith continua: “Em Cristo, recebemos um passa-
porte celestial; no Seu corpo, aprendemos a viver como ‘cidadãos’ do
Seu reino. Tal imigração para um novo reino não é apenas uma ques-
tão de se ser teletransportado para um reino diferente; precisamos
nos acostumar a um novo modo de vida, aprender um novo idioma,
adquirir novos hábitos — e desaprender os hábitos desse domínio
rival.”4
Eu realmente acredito que quando Jesus disse: “Vou preparar um
lugar para vocês” (João 14), essa promessa incluía a garantia de que
Ele nos fez, pessoalmente, uma reserva para a viagem, incluindo aco-
modações quando chegarmos. Ele é o nosso passaporte celestial que
nos permite tornarmos cidadãos de um novo país — do Seu reino. O
melhor de tudo é que Ele promete nos acompanhar ao longo de todo
o caminho para casa. Jesus será o nosso Caminho para o caminho.
Esta é a esperança de uma jornada da graça.

Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida


Quando Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, Ele
não estava sugerindo um princípio de vida abstrato para pendurar

1. Richard John Neuhaus define telos como “o objetivo final que dá sentido ao
aspecto em questão”. Neuhaus, Death on a Friday Afternoon: Meditations on the
Last Words of Jesus from the Cross (New York: Basic Books, 2000), 127.
2. James K. A. Smith, You Are What You Love: The Spiritual Power of Habit (Grand
Rapids: Brazos Press, 2016), 66.
3. The Pilgrim’s Progress (1678), de John Bunyan, foi uma primeira versão fictícia desse
mesmo conceito de jornada que se toma para mudar de país ou de reino.
4. Smith, You Are What You Love, 66.

10
INTRODUÇ ÃO

como uma placa na parede. Pelo contrário, foi uma resposta a uma
pergunta levantada por discípulos assustados e incertos. Vem de uma
seção do Evangelho de João que os estudiosos da Bíblia se referem
como “o último discurso” (João, capítulos 14 a 17). Esses quatro ca-
pítulos de João, mais do que qualquer um dos outros três evangelhos
do Novo Testamento, nos dão uma visão interna do que Jesus estava
pensando e ensinando aos Seus discípulos durante as horas imediata-
mente anteriores à Sua Paixão e morte na cruz. Assim, eles poderiam
muito bem ser descritos como a última vontade e testamento de Jesus
Cristo.5
Lembre-se que os discípulos ouviram notícias incrivelmente más.
Eles se reuniram em um espaço emprestado. Todos estavam condicio-
nados a espaços apertados. Jesus lava os pés dos Seus doze discípulos,
o que deixa todos desconfortáveis. Então lhes diz que muito em breve
um deles O trairá (13.21). Para piorar a situação, depois de vários anos
viajando por todos os lugares juntos, Jesus declara que está indo em-
bora e que eles não poderão ir com Ele (13.33).
Tudo isto é muito perturbador! Jesus consegue sentir o peso de
Suas palavras sobre eles. Não é de admirar que diga: “Não se perturbe
o coração de vocês” (14.1). A palavra traduzida para “perturbe” é a
mesma palavra usada para descrever as águas do mar da Galileia du-
rante uma tempestade violenta. Quando o vento soprou, as águas fi-
caram turbulentas e agitadas. Os discípulos se sentiam assim. Os seus
estômagos estão agitados. As suas cabeças estão às voltas. As suas
emoções estão sobrecarregadas. Jesus tenta consolar os seus furiosos
corações: “Não se perturbe o coração de vocês. (…)Vou preparar-lhes
lugar. (…)voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde
eu estiver. Vocês conhecem o caminho para onde vou” (João 14.1-4).

5. Frederick Dale Bruner refere-se a João 14-16 como sermões do discipulado de Jesus,
com o capítulo 17 servindo como uma oração de encerramento e, no total, como
“a teologia sistemática compacta de Jesus para Sua igreja missionária”. Bruner, The
Gospel of John: A Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2012), 78.

11
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Então Tomé fala. A história nomeou-o “Tomé, o incrédulo”, mas


fico feliz por ele ter estado lá (cuidado com os tempos verbais) uma
vez que teve a coragem de fazer a pergunta que todos queriam fazer.
Ele é como um aluno que pára o professor no meio da aula e diz:
“Com licença. Esta pode ser uma pergunta obtusa, mas não fazemos
ideia do que está falando.” De fato, não era uma pergunta obtusa.
Perceba o fato de Tomé ter tido a presença de espírito para identi-
ficar o problema óbvio que todos tinham com as palavras de Jesus:
“Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o
caminho?” (14.5).
A vida é assim, não é? Há momentos em que nos perguntamos
para onde devemos ir. Às vezes, pensamos que sabemos para onde
estamos indo — ou esperamos saber para onde estamos indo — mas
temos que admitir que nos perdemos completamente no caminho.
Parece haver tantas interseções e curvas, tantas opções e becos sem
saída. O que desejamos mais do que qualquer outra coisa no quebra-
-cabeça da vida é um mapa. No entanto, muitas pessoas, que não en-
contram esse mapa, decidem que é melhor ir para um lugar qualquer
do que ficar em lugar nenhum, e por isso, escolhem uma direção e
partem para o que parece ser o caminho de menor resistência.
Felizmente, Jesus responde à pergunta de Tomé (e à nossa): “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por
mim” (14.6). É interessante que a ênfase da afirmação de Jesus está
claramente na palavra “caminho”. O caminho é sequencialmente
primeiro. Isso não quer dizer que a verdade e a vida não sejam impor-
tantes. Significa simplesmente que a verdade e a vida explicam como
e porque Jesus é o Caminho.6

6. Muitas pessoas consideram Raymond Brown como o estudioso joanino


proeminente da sua geração. Ele acredita que “o caminho é o principal predicado
[da declaração de Jesus], e a verdade e a vida são apenas explicações do caminho”.
Brown, The Gospel According to John XII-XXI, The Anchor Bible Commentary
(New York: Doubleday, 1970), 621. Se isso estiver correto, a verdade e a vida são
explicações do caminho — ou, dito de outra forma, Jesus é o Caminho, porque Ele

12
INTRODUÇ ÃO

Ele é o Caminho, porque é a Verdade — a revelação de Deus.


Ele é o Caminho, porque a vida de Deus disponível para cada pessoa
reside n’Ele e somente n’Ele. Ele é simultaneamente o acesso e a en-
carnação da vida com Deus. O cerne das boas novas do Evangelho
de João é que em Jesus — a Palavra encarnada e único Filho de Deus
— podemos ver e conhecer a Deus de uma maneira nunca antes pos-
sível. Ele é a auto revelação autorizada de Deus.7 Por outras palavras,
Jesus não é apenas um caminho, mas O caminho — porque Ele é a
manifestação excepcional e visível do Deus invisível, a quem conhe-
cemos como Pai (1.14, 18; 6.46; 8.19; 12.45).8
“Ninguém vem ao Pai senão por mim” (14.6). Muitos de nós po-
dem se identificar com a pergunta de Tomé: “Como podemos saber
o caminho?” (14.5) porque cada pessoa, de forma articulada ou não,
procura respostas para questões espirituais. A nossa sociedade de
hoje é mais aberta espiritualmente do que antigamente. O proble-
ma é que as pessoas estão abertas a muitos caminhos diferentes de
espiritualidade.
A visão moderna do mundo ocidental parte de uma mentalidade
consumidora abrangente. Está ligada à preocupação política muito
recente de adotar o pluralismo. Isso faz com que muitas pessoas vejam
um caminho espiritual tão relevante e legítimo como qualquer outro,
desde que as suas necessidades pessoais sejam atendidas e desde que
sejam autenticamente fiéis a si mesmas. E assim é assumido — se al-
guém escolhe o budismo, o hinduísmo, o islamismo, a cientologia, o
judaísmo, o cristianismo ou qualquer outra religião — que, desde que
seja sincero e gratificado pela sua escolha, essa alternativa será tão

é a Verdade e a Vida. Jesus, pessoalmente, personifica os três.


7. Bruner, The Gospel of John, 811. Bruner nos lembra que “a revelação de Jesus sobre
Deus, o Pai, nos dá uma grande esperança de que o Pai também [como Jesus] será
— e, de fato, é e sempre foi — muito, muito bom”.
8. Inspiro-me nesta frase a partir de uma nota de rodapé poética na The Wesley Study
Bible: New Revised Standard Version, Joel B. Green and William H. Willimon, eds.
(Nashville: Abingdon Press, 2009).

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

boa quanto qualquer outra porque todos os caminhos levam (assim


diz a cosmovisão) ao mesmo Deus.
Um dos muitos problemas com essa visão é que estas diferentes
crenças geralmente se contradizem e fazem reivindicações mutua-
mente exclusivas. Quando o cristianismo é visto à luz de outros sis-
temas religiosos diversos, é a fé única que faz a afirmação definitiva
de que Jesus é o caminho exclusivo para Deus. Não se pode acreditar
na afirmação exclusiva de Jesus Cristo: “Ninguém pode vir ao Pai
senão por mim” e ainda acreditar que existem outras maneiras de
obter acesso ao Pai. Fazer isso negaria, efetivamente, o próprio Cristo
que disse essas palavras. Jesus não disse: “Eu sou um dos muitos cami-
nhos para o Pai”. Ele não disse: “Pode optar por me seguir, se quiser,
mas há outras opções igualmente viáveis”. Jesus também não disse:
“Qualquer que seja o caminho espiritual que percorrer, ficará bem
comigo, desde que seja sincero”. Jesus nunca deu a entender isso. Ele
declarou claramente que é o único caminho para o Pai.9
Pouco depois de nossa família se mudar para uma nova cidade,
minha esposa e eu tivemos um compromisso na cidade. Nós dirigimos
em veículos separados. Como seu senso de direção sempre foi melhor
do que o meu, ela liderou o caminho. De repente, fomos pegos em um
trânsito intenso e eu a perdi. Vi o que pensei ser o veículo dela e o se-
gui. Quando percebi que estava seguindo o veículo errado — e agora
por uma estrada completamente diferente — era tarde demais para
chegar ao compromisso. Eu simplesmente virei o carro e fui para casa.
A moral da história é simples: você pode até ser sincero no caminho
que escolher e , ao mesmo tempo, estar sinceramente errado. O fato
é que é preciso mais do que sinceridade para encontrar o caminho

9. Isto não limita a soberania de Deus para alcançar graciosamente seguidores de


outras religiões e tradições de fé que podem morrer sem conhecer ou mesmo sem
ouvir o nome de Jesus. Deus é sempre livre para fazer o que soberanamente escolhe
fazer. Espero sinceramente ser surpreendido pela graça na reconciliação de todas
as coisas.

14
INTRODUÇ ÃO

certo.10 É preciso verdade! Uma pessoa pode estar percorrendo um


caminho a uma boa velocidade, mas se estiver indo pelo caminho
errado, não importa a rapidez com que chegue.
A afirmação de Jesus é radicalmente inclusiva, porque todos são
convidados a seguir o caminho, mas é radicalmente exclusiva, pois
cada caminho que uma pessoa seguir para encontrar a verdade acaba
como em um beco sem saída, a menos que seja o único Caminho que
os leve ao único Deus verdadeiro.
Cada pessoa — cada um de nós — é culpada de tomar a direção
errada, espiritualmente falando. Como resultado, ficamos longe de
Deus. O profeta Isaías escreveu enfaticamente: “Todos nós andáva-
mos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu cami-
nho” (53.6). O apóstolo Paulo reitera isso em Romanos: “Porque todos
pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (3.23). Porquê? Porque
todos nós seguimos o caminho errado na vida. Todos escolhemos se-
guir o nosso próprio caminho, em vez de buscar a vontade e o cami-
nho de Deus para as nossas vidas.
O Evangelho (boas novas) é que Jesus veio para pessoas como nós.
Outro escritor do Evangelho, Lucas, nos diz que o objetivo declarado
da missão de Jesus é “buscar e salvar os perdidos” (19.10). Em vez de
nos deixar sem saber para onde ir em uma bifurcação na estrada,
ou pior, seguir sem rumo o caminho errado, Jesus veio nos mostrar
claramente o único caminho para Deus, para o novo país do reino e
para a vida eterna.
Um comentarista parafraseia as palavras de Jesus da seguinte ma-
neira: “Eu sou o Caminho para lá e eu sou a Verdade que te conduzirá
no Caminho para lá, e eu sou a Vida que te dará o poder de seguir a

10. Ninguém é mais sincero sobre a sua verdade do que homens-bombas suicidas. No
entanto, a sinceridade — não importa quão apaixonadamente comprometida a
pessoa esteja com a sua verdade — não é suficiente se não estiver fundamentada
na realidade final.

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

Verdade ao longo do caminho até lá.”11 “Eu sou o Caminho”12 não é


um conjunto de direções, nem um mapa, nem um conjunto de pis-
tas — Eu sou o Caminho. “Eu sou a Verdade” não é um conjunto de
princípios organizadores da vida ou pressupostos filosóficos — Eu sou
a Verdade.
“Eu sou a Vida” não é uma maneira alternativa de viver com um
ponto de vista mais otimista — Eu sou a única vida real, a única for-
ma de nos tornarmos verdadeiramente humanos.
A afirmação de Jesus Cristo de não ser apenas um caminho, uma
verdade e uma vida, mas ser o verdadeiro e único Filho de Deus, é a
base do cristianismo. Essa afirmação não foi feita para difamar outros
sistemas de fé; mas sim para dizer que há apenas um caminho para o
Pai, que é através de Jesus Cristo. Ele é o único meio pelo qual pode-
mos ser salvos. Como Frederick Bruner apontou, “O Oriente ansiava
permanentemente pelo ‘Caminho’ (o Tao), o Ocidente pela ‘Verdade’
(Veritas) e o mundo inteiro (oriente, ocidente, norte e sul) pela ‘Vida
(real)’. Jesus é, em pessoa, os três”.13
Imagine que você está em uma cidade desconhecida e pede di-
reções a alguém de como chegar a um lugar difícil de encontrar. A
pessoa a quem pediu ajuda poderia dizer algo assim: “Você precisa vi-
rar à direita no próximo cruzamento. Depois, atravesse a praça, passe
pela igreja e permaneça na via do meio, que o levará diretamente à
terceira rua à direita, até chegar a uma rua de quatro vias”. Mesmo
com orientações claras, quando o caminho é complicado, as chances
de dar uma volta errada ou de se perder são altas.

11. Bruner, The Gospel of John, 823.


12. O pronome [ego, “eu”] é enfático, passando a ênfase de um método para uma
Pessoa. Também é digno de nota, e foi destacado inúmeras vezes, que as palavras
“Eu Sou” de Jesus em João são uma referência ao pronunciamento ardente de
Deus a Moisés: “Eu Sou o Que Sou” (Êxodo 3.14). “Eu Sou” ficou conhecido nas
Escrituras Hebraicas como Jeová.
13. Bruner, The Gospel of John, 812.

16
INTRODUÇ ÃO

Suponha que, em vez disso, a pessoa a quem pergunta diz: “Sabe,


não há uma maneira fácil de lá chegar. É complicado se você nunca
esteve lá. Siga-me. Melhor ainda, venha comigo e eu o levarei até lá.”
Essa pessoa se torna não apenas o seu guia, mas também essencial-
mente o caminho, e, desta forma, você não vai deixar de chegar onde
precisa ir. É isso que Jesus faz por nós. Ele não apenas dá conselhos e
orientações. Ele caminha conosco em uma jornada da graça. De fato,
Ele não nos fala sobre o caminho — Ele se torna o Caminho!
Lesslie Newbigin, teólogo britânico e missiólogo reconhecido, ar-
ticulou poderosamente essa perspectiva: “Não é que Ele [Jesus] ensine
o caminho ou nos guie no caminho: se assim fosse, poderíamos agra-
decer-Lhe pelos Seus ensinos e depois seguir o caminho por nossa
conta. Ele próprio é o caminho. (…) Seguir esse caminho é, de fato,
o único caminho para o Pai”.14
Na história Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, Alice
chega a uma encruzilhada e faz uma pergunta ao Gato Risonho:
“Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir a partir
daqui?”
“Isso depende muito de onde você quer ir”, responde o gato.
“Não me importo muito para onde vou”, responde Alice.
“Então não importa o caminho que você vai”, disse o Gato.
Talvez ninguém tenha resumido de forma mais eloquente a afir-
mação singular de Jesus do que Thomas à Kempis no seu clássico
devocional, A Imitação de Cristo.
Siga-me. Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Sem o
Caminho, não há como “ir”. Sem a Verdade, não há conheci-
mento. Sem a Vida, não há como viver. Eu sou o Caminho que
deve seguir, a Verdade em que deve acreditar, a Vida pela qual
deve esperar. Eu sou o Caminho inviolável, a Verdade infalível
e a Vida eterna. Eu sou o Caminho reto, a Verdade suprema, a

14. Lesslie Newbigin, The Light Has Come: An Exposition of the Fourth Gospel (Grand
Rapids: Eerdmans, 1987), 181.

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

Vida verdadeira, a Vida abençoada, a Vida não criada. Se per-


manecer no meu Caminho, conhecerá a Verdade, a Verdade o
libertará e alcançará a Vida eterna.15
Em Jesus, encontramos o Caminho para o Pai. Ele é o caminho
para casa.
Em Jesus, encontramos a Verdade. Ele encarna a verdade imutá-
vel, segura e certa do caráter e da natureza do Pai.
Em Jesus, encontramos a Vida — vida abundante, tanto agora,
como na nova criação que há de vir, como prometida por Deus.
Esta é a jornada da graça.

15. Thomas à Kempis, Of the Imitation of Christ, Book 3, chapter 56 (c. 1418–1427).

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1
GRAÇA MARAVILHOSA
A graça está em toda parte.
— Georges Bernanos

Hoje, “Maravilhosa Graça” é um dos hinos mais famosos e amados


do mundo. Embora tenha mais de dois séculos, esse hino continua a
ser cantado em centenas de idiomas e dialetos.1 Ele transcende raças
e credos, fronteiras geográficas e geracionais. Você nem mesmo preci-
sa ser cristão para saber as palavras e se comover com seu significado.
Foi um pastor inglês chamado John Newton que escreveu esse
hino. Durante o início de sua vida adulta, ele era o capitão de um
navio negreiro e foi pessoalmente responsável por trazer centenas de
escravos da África Ocidental para a Grã-Bretanha. No entanto, após
uma experiência de quase morte durante uma violenta tempestade no
mar, ele teve uma experiência de conversão que o mudou radicalmen-
te. Ele nunca mais foi o mesmo.
Ele não começou apenas uma jornada da graça com Deus, mas
também se arrependeu profundamente do seu envolvimento pessoal

1. Enquanto escrevo isto, sentado numa sala do aeroporto de Joanesburgo, na África


do Sul, consigo ouvir um dos trabalhadores cantarolando baixinho em “africâner”.
O jornalista americano Bill Moyers assistia a uma apresentação no Lincoln
Center, onde o público cantava “Graça Excelsa”. Ele ficou tão impressionado
com o poder unificador da música entre cristãos e não cristãos, que se inspirou a
produzir um documentário com o mesmo nome.

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

no tráfico de escravos. Ele renunciou o cargo de capitão, tornou-se


um pastor anglicano e, mais tarde, tornou-se o mentor de William
Wilberforce, que liderou a campanha para abolir a escravidão no
Império Britânico. Aos oitenta e dois anos, quando estava prestes a
morrer, Newton declarou: “A minha memória está quase desapare-
cendo. Mas lembro-me de duas coisas: que sou um grande pecador
e que Cristo é um grande Salvador”. Não é de admirar que pudesse
escrever de maneira tão poética — ele tinha recebido, experimentado
e sido transformado por uma graça incrível.
Este é um livro sobre a graça. É sobre a jornada da graça pela
qual somos feitos cada vez mais à imagem de Jesus Cristo, que é “o
Caminho, a Verdade e a Vida”. A graça vem de muitas formas, tan-
to nas Escrituras como nas nossas vidas, mas a sua natureza perma-
nece a mesma. Nós a recebemos pessoalmente como um presente
de Deus e cooperamos com Deus em um relacionamento mútuo e
transformador.

O que é graça?
O que é a Graça de Deus? Como é que ela entra nas nossas vidas,
nos afeta, nos muda e nos capacita a viver vidas semelhantes a Cristo?
Existem muitas definições de graça:
• O favor imerecido de Deus.
• O amor imerecido de Deus.
• O favor dado a alguém que merece o contrário.
• A expressão absolutamente livre do amor de Deus encontrando
seu único motivo na generosidade e benevolência do Doador.2
• A bondade ilimitada de Deus.
Todas essas definições de graça tentam descrever aqueles aspectos in-
descritíveis e surpreendentes da resposta amorosa de Deus à imerecida

2. Esta é uma paráfrase livre da definição de graça atribuída ao falecido estudioso do


Novo Testamento, linguista e líder de missões, Spiros Zodhiates.

20
GR AÇ A M AR AVILHOSA

humanidade. É por isso que usamos a palavra “maravilhosa”. Ela de-


safia as nossas categorias humanas de relacionamentos e transações.
Quem trabalha com finanças sabe o que é um “período de carên-
cia”. Os períodos de carência são pequenos períodos de tempo em que
um pagamento é adiado sem que haja penalização. Quando alguém
deve um pagamento de carro ou um empréstimo escolar, mas esse
pagamento é adiado sem incorrer em multas por atraso, isso se trata
de “um período de carência”. No entanto, um “período de carência”
tem obrigações anexadas. Dura apenas por um curto período de tem-
po. Eventualmente terminará e, se alguém ainda não tiver pago o
que deve, serão cobradas multas adicionais. É gratuito — mas não é
incondicional.
A graça de Deus é diferente. A graça de Deus é gratuita (não deve
ser confundida com algo que “não tem custo” — mais sobre essa ideia
no fim do capítulo) e isso é algo bom porque, de outra forma, não a
conseguiríamos pagar. Nunca poderíamos pagar ou retribuir o que
devemos a Deus. É pela Sua graça que Deus faz por nós o que nunca
poderíamos fazer por nós mesmos. É por isso que dizemos que a graça
é imerecida. Deus nos trata melhor do que merecemos. É o favor que
nos é dado quando merecemos o oposto e que nos leva a seguir Jesus
em um discipulado completamente dedicado.
A definição mais simples de graça é “presente”. O apóstolo Paulo
usou a palavra grega comum para “presente” ou “favor”, charis, e aju-
dou a reimaginá-la como uma maneira de descrever o vasto significa-
do de tudo o que Deus fez por nós em Jesus Cristo (2 Coríntios 8.9;
9.15; Gálatas 2.21; Efésios 2.4-10).3 Também é importante notar que
charis é derivado da raiz char — “aquilo que traz alegria”.4 Assim, a
ação da graça dada e recebida evoca alegria e gratidão. Nesse sentido,
é apropriado que os que recebem a graça ofereçam algo em troca:

3. A palavra grega charis é traduzida em latim para gratia, a partir da qual muitas
línguas recebem a palavra “graça”.
4. Thomas A. Langford, Reflections on Grace (Eugene, OR: Cascade Books, 2007.

21
C A MINHO • VERDADE • VIDA

ação de graças e uma vida consagrada. Isto não quer dizer que a graça
divina é uma transação relacional. O desejo (ou expectativa) de re-
tribuir o favor nega o poder do presente.5 O pensamento transacional
sempre enfraquece e desvaloriza as intenções de um presente.

Se eu der um presente a um amigo, posso dizer: “Quero dar este pre-


sente como um sinal do meu amor por você.”
A resposta normal seria meu amigo receber o presente e simples-
mente dizer: “Obrigado”.
E se, em vez disso, meu amigo dissesse: “É muito gentil da sua
parte. Quanto eu te devo?” Ele teria enquadrado a linguagem de um
presente na linguagem de uma transação: Você está fazendo algo bom
para mim. Fico te devendo uma.
Há outro problema em confundir o dom da graça com transações
reembolsáveis. O significado fundamental da graça é que não há nada
que possamos fazer para que Deus nos ame mais, e não há nada que
possamos fazer para que nos ame menos do que já nos ama.6 Não há
nada tão bom em nós que nos torne dignos ou capazes de conquistar
o amor de Deus, e não há nada tão ruim em nós que possa nos separar
do amor de Deus, que está em Jesus Cristo, nosso Senhor (Romanos
8.35–39). Deus não nos ama porque somos bons, e Deus não nos odeia
porque somos maus. A natureza essencial de Deus é o amor santo, o
que significa que a ação que mais plenamente caracteriza Deus é a
graça abnegada e derramada divinamente.7

5. Em Paul and the Gift (Grand Rapids: Eerdmans, 2015), John M. G. Barkley defende
que a ideia de “presente” como algo entregue “gratuitamente” é um conceito
ocidental moderno. Durante toda a antiguidade, e ainda hoje em muitas partes do
mundo, os presentes são dados com fortes expectativas de retorno — mesmo para
obter algo que fortaleça a solidariedade social. O entendimento do Evangelho do
Novo Testamento sobre o “presente” da salvação é que, embora não seja merecido
e não possa ser conquistado, a graça gera justiça e a justiça gera obediência.
6. Philip Yancey, What’s So Amazing about Grace? (Grand Rapids: Zondervan, 1997),
70.
7. “A característica mais essencial de Deus é o amor. ‘Deus é amor’, diz João de

22
GR AÇ A M AR AVILHOSA

Philip Yancey reconhece isto quando escreve: “A graça significa


que Deus já nos ama tanto quanto um Deus infinito pode amar”.8
Como Deus não nos amou inicialmente com base no nosso bom
comportamento, como é que um comportamento melhor poderia
fazer com que nos amasse mais? Da mesma forma, como é que um
comportamento pior poderia fazer com que nos amasse menos? Não
pode orar mais, dar mais, servir mais ou sacrificar mais e fazer com
que Deus diga: “Ela está se saindo muito melhor. Ela finalmente está
se tornando boa. Amo-a mais agora do que antes”. Não. Você é ama-
da(0) tal como é. Quando se trata do amor de Deus, nada depende
do que se faz ou de como se comporta — não porque o mereço, mas
porque o amor é a primeira e a última inclinação do coração de Deus.
Uma boa e comum comparação entre justiça, misericórdia e gra-
ça: a justiça é você obter o que merece. A misericórdia é você não
obter o que merece. A graça é você obter o que não merece.
Jesus contou muitas parábolas para nos ajudar a reimaginar a vida
do ponto de vista do reino. As parábolas não eram apenas histórias
morais contadas para nos mostrar uma melhor maneira de viver. Elas
nos ajudam a entender melhor e a corrigir o nosso conceito da natu-
reza e do coração de Deus. Pense nas parábolas da ovelha perdida, da
moeda perdida e dos filhos perdidos (Lucas 15).9 Jesus descreve Deus
como um pastor que fica muito feliz, não porque noventa e nove ove-
lhas seguiram as regras, mas porque uma das Suas, que estava perdida,

maneira simples e profunda. Podemos modificar o amor de Deus com a palavra


‘santo’. No entanto, isso pouco acrescenta à compreensão de Deus porque, por
natureza, o amor de Deus é santo. O modificador ‘santo’ nos lembra, no entanto,
que Deus está além de nós como sendo diferente de nós. Deus é santo, sempre
diferente de nós em natureza”. Diane LeClerc, Discovering Christian Holiness:
The Heart of Wesleyan-Holiness Theology (Kansas City, MO: Beacon Hill Press of
Kansas City, 2010), 274.
8. Philip Yancey, What’s So Amazing about Grace?, 70.
9. O meu uso de “filhos” no plural é intencional. O ensino de Jesus nesta parábola
parece deixar claro que os dois filhos estavam perdidos por diferentes razões —
mas apenas um saiu de casa.

23
C A MINHO • VERDADE • VIDA

foi encontrada. Ele descreve Deus como uma mulher que vira a casa
do avesso para procurar uma moeda preciosa. Quando a encontra,
fica tão feliz que faz uma festa para comemorar com os seus amigos.
E descreve Deus como um pai apaixonado que procura no horizonte
por sinais de um filho rebelde. Quando vê o rapaz errante “ainda
longe” (Lucas 15.20), fica cheio de compaixão e corre para o receber
em casa. Todas essas são ideias sobre a natureza e o coração de Deus.
“Ser encontrado” deleita o coração de Deus! A graça supera a peram-
bulação, a perda e a infidelidade.
Jesus contou outra parábola sobre os trabalhadores de uma vi-
nha cujo empregador paga a todos os trabalhadores o mesmo salá-
rio, embora alguns trabalhem muito menos horas que outros (Mateus
20.1-16). Esta história não faz sentido a nível econômico. Parece uma
prática empresarial imprudente. Este tipo de comportamento impru-
dente de um empresário corre o risco de alienar os funcionários que
mais trabalham e incentivar a preguiça dos menos motivados. No
entanto, esta não é uma parábola sobre as melhores práticas de negó-
cio; é uma parábola sobre a extravagante graça de Deus. A graça não
é uma equação matemática que registra as horas dos funcionários,
segue princípios contabilísticos ou recompensa os trabalhadores mais
esforçados. A graça não é sobre quem merece ser pago; se trata de
pessoas que não merecem receber presentes de forma nenhuma. Se
isso é escandaloso para os seus ouvidos e ridículo para o seu senso
comum, então, está começando a entender a questão da graça.

A graça é pessoal
Podemos falar da experiência da graça porque ela é profundamen-
te pessoal e relacional. A graça é pessoal por dois motivos importan-
tes. Primeiro, a graça não é uma coisa. Não é uma mercadoria. Não é
uma substância sagrada derramada em nós como um “óleo de motor
cristão” para ajudar o nosso “motor” de discipulado a funcionar com

24
GR AÇ A M AR AVILHOSA

mais eficiência. A graça é pessoal porque vem a nós na pessoa de Jesus


Cristo, que disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.10
Thomas Langford, um teólogo da tradição wesleyana, afirma que,
ao longo da história da igreja tem havido uma luta entre dois enten-
dimentos da graça:
Por um lado, a graça tem sido pensada como algo, algo que Deus
possui e pode dar, e talvez algo que as pessoas possam aceitar e
possuir; ou, em termos mais amplos, alguma atmosfera, energia
ou poder que representa a ação de Deus e fornece um contex-
to circundante para a vida humana. Por outro lado, a graça foi
identificada com “alguém”; a graça é uma pessoa, a graça é Deus
— Deus presente aos seres humanos. Falar da graça é falar da
presença de Deus e da interação afetuosa com a criação. Nesse
entendimento, as considerações sobre a graça são baseadas em
reflexões sobre a vida, a morte e a ressurreição de Jesus. Jesus
Cristo é a graça; a graça é Jesus Cristo.11
Fico impressionado com o poder da declaração de Diarmaid
MacCulloch em sua história monumental do cristianismo: “Uma
pessoa, não um sistema, capturou [Paulo] nos misteriosos eventos no
caminho para Damasco”.12 Saulo de Tarso — que passou a ser co-
nhecido como o apóstolo Paulo — não estava preparado para essa
revelação surpreendente. O seu compromisso tinha sido com uma
religião, um sistema definido, uma tradição, uma lei. Ele a conhecia
muito bem. Ele era seu defensor treinado e apaixonado — mas foi
uma pessoa que o mudou. Essa pessoa foi Jesus de Nazaré, a quem
Paulo mais tarde identificaria como Cristo e Senhor.

10. Quando o Evangelho de João fala do Espírito Santo como “outro” consolador,
significa que o Espírito da Verdade continuará o ministério de Jesus, a Verdade
(14.6, 16–17).
11. Langford, Reflections on Grace, 18.
12. Diarmaid MacCulloch, Christianity: The First Three Thousand Years (New York:
Penguin Books, 2009), 9.

25
C A MINHO • VERDADE • VIDA

O sistema anterior de crenças de Paulo era a total adesão à lei.


Após a experiência no caminho para Damasco (Atos 9.1–22), ele pas-
sou a ver as coisas de forma diferente. Ainda acreditava que a lei era
boa — mas incompleta. Quando conheceu a pessoa, ele mudou o seu
foco do que era bom (sua herança judaica) para alguém incompara-
velmente melhor: Jesus Cristo. Através da experiência de um encon-
tro íntimo com Cristo, ele descobriu uma justiça que não era sua.13
Paulo acreditava que o relacionamento do crente com Cristo (a
pessoa) poderia se tornar tão íntimo que ele fala disso como “unidade
em Cristo”, indicando uma união total. A unidade não era um con-
ceito abstrato, greco-romano e platônico para Paulo. Jesus Cristo foi
(é) um ser humano real no espaço e tempo histórico recente. Ele não
é apenas como nós em Sua humanidade, mas é — como aquele que
Paulo conheceu na estrada de Damasco — uma pessoa ressuscitada e
transcendente cuja vida, morte, ressurreição e ascensão reverteram a
catástrofe de nosso pecado e queda (1 Coríntios 15.22).
Em um sentido muito real, a mudança de nome de Saulo para
Paulo foi mais do que uma conversão, foi um despertar: “algo como
escamas caiu dos seus olhos e a sua visão foi restaurada” (Atos 9.18).
Foi uma regeneração. Paulo recebeu um presente puro e inalterado
que não podia ganhar nem merecer. Agora, ele podia ver para onde a
lei tinha apontado o tempo todo — para uma pessoa. É por isso que
escreveria mais tarde: “nós pregamos a Cristo crucificado, que é es-
cândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas, para os que são
chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder
de Deus e sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1.23–24). Isto era escanda-
loso para quem estava vinculado à lei e tradição judaicas, e loucura
para quem estava absorvido na cultura grega de elite e nas visões filo-
sóficas ocidentais. Mas, para aqueles que acreditavam que Jesus era o

13. Dikaioun, “ser feito justo” (ou na frase que ficou famosa pela Reforma Protestante
no século XVI, “ser justificado”), denota que há uma graça que vem de fora de nós
mesmos.

26
GR AÇ A M AR AVILHOSA

Cristo de Deus (em grego, christos significa o “ungido”), pela graça de


Deus, Ele se tornou a sua salvação.14
Os primeiros cristãos não pregaram um sistema nem uma reli-
gião. Eles proclamaram uma pessoa. Para o Islã, a Palavra tornou-se
um livro (Alcorão); para o cristianismo, o Verbo se fez carne (João
1.14).15 Um ser humano, o eterno, único Deus, tornou-se uma pessoa
— encarnação. Os primeiros cristãos não desistiram das suas vidas
por uma teoria, princípio ou força vital. Foi para e por causa de uma
pessoa — uma pessoa real que foi realmente crucificada e sepultada,
que realmente ressuscitou dentre os mortos como os primeiros frutos
da nova criação, que realmente subiu ao céu e que vai mesmo voltar.
Não conheço ninguém que descreva isto de maneira mais articu-
lada do que Dietrich Bonhoeffer: “Com uma ideia abstrata, é possível
entrar em uma relação de conhecimento formal, se entusiasmar com
ela e talvez até colocá-la em prática; mas nunca pode ser seguida em
obediência pessoal. O cristianismo sem o Cristo vivo é inevitavel-
mente um cristianismo sem discipulado e o cristianismo sem discipu-
lado é sempre um cristianismo sem Cristo”.16
Portanto, a jornada da graça não é seguir um sistema, um livro,
um Manual, uma denominação ou uma tradição. Seguimos, adora-
mos e servimos a Jesus Cristo. A graça é o resultado de todos os be-
nefícios da vida, ministério, morte, ressurreição e ascensão do Jesus
pessoal, que agora é Cristo e Senhor.
Um relato cristocêntrico (centrado em Jesus) da graça não deve
negligenciar uma teologia trinitária mais robusta da graça (Deus
como Criador e Pai; o poder do Espírito Santo na vida do crente).
Entender a graça como pessoa é lembrar que tudo o que conhecemos

14. Strong’s Concordance of the New Testament indica que charis, “graça”, aparece pelo
menos oitenta e oito vezes nas cartas de Paulo às igrejas do primeiro século.
15. Agradeço a Daniel Gomis, diretor regional da Igreja do Nazareno na África, por
esta importante distinção.
16. Dietrich Bonhoeffer, The Cost of Discipleship (New York: Macmillan Company,
1949), 63–64.

27
C A MINHO • VERDADE • VIDA

pessoalmente sobre Deus é revelado mais claramente na vida, ensino


e experiência da pessoa que Deus escolheu para se tornar conhecida.
O objetivo de todo discipulado cristão é moldar os que recebem a
graça à imagem e semelhança de Jesus Cristo. A graça não é algo — a
graça é uma pessoa.
Essa afirmação nos leva à segunda razão pela qual a graça é pes-
soal: a graça chega a cada pessoa de acordo com a sua necessidade ou
capacidade específica de recebê-la. Cada pessoa recebe e se apropria
da graça de forma única.
Tenho muitos amigos, mas me relaciono com eles de formas di-
ferentes, porque cada um é único. Tenho três filhos e, embora ame
todos da mesma forma, não posso tratá-los da mesma forma. Eles são
todos diferentes, por isso, a minha abordagem parental deve se adap-
tar a cada um. Esta é a maneira amorosa de ser um amigo e ser um pai.
Da mesma forma, a graça é apropriada e recebida exclusivamente
por cada pessoa, porque experimentamos a graça em um relaciona-
mento pessoal com o Deus trino, que nos foi dado pelo Pai, estendido
por Jesus Cristo e capacitado pelo Espírito Santo. A graça é pessoal
porque chega até nós em uma pessoa, personalizada de acordo com as
nossas necessidades. À medida que Deus Se entrega mais a nós, mais
graça é dada.

A graça é dispendiosa
Dietrich Bonhoeffer nos lembra que, embora a graça seja livre,
ela não vem sem um custo. Em um parágrafo penetrante do seu livro
mais conhecido, The Cost of Discipleship [O Custo do Discipulado],
Bonhoeffer destaca a diferença entre a graça barata e graça custosa
como a falta de exigência por um discipulado real ou uma expectativa
acerca dele: “A graça barata é uma graça sem discipulado, uma graça
sem a cruz, uma graça sem Jesus Cristo, vivo e encarnado”.17 Além

17. Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 47-48.

28
GR AÇ A M AR AVILHOSA

disso, Bonhoeffer afirma sem rodeios que a graça barata é o “inimigo


mortal da nossa igreja”, “o inimigo mais amargo do discipulado” e
“tem sido a ruína de mais cristãos do que qualquer mandamento de
obras”.18 Pode-se dizer que se é justificado apenas pela graça como um
presente de Deus, mas o fruto de uma vida justificada é aquele que
deixou tudo e seguiu a Cristo.19 E a razão, Bonhoeffer aponta correta-
mente, é que quando alguém ouve a chamada de Jesus para O seguir,
a resposta dos discípulos é primeiramente um ato de obediência antes
de ser uma confissão doutrinária de fé (Marcos 2.14).20
Bonhoeffer continua a descrever como a graça é dispendiosa e
porque é que um discipulado completo e totalmente rendido é a única
resposta apropriada.
A graça é dispendiosa porque nos chama a seguir e é graça por-
que nos chama a seguir Jesus Cristo. É dispendiosa porque custa
a vida e é graça porque dá ao homem a única vida verdadeira. É
dispendiosa porque condena o pecado e é graça porque justifica
o pecador. Acima de tudo, é dispendiosa porque custou a Deus a
vida do Seu Filho: “Foste comprado por um preço” e o que cus-
tou muito a Deus não pode ser barato para nós. Acima de tudo,
é graça, porque Deus não considerou o Seu Filho demasiado dis-
pendioso para pagar pela nossa vida, mas entregou-O por nós. A
graça dispendiosa é a Encarnação de Deus.21
A vida do discipulado é uma jornada da graça. Começa com a
graça, é fortalecida pela graça e é infundida com graça do início ao
fim. Não há verdadeiro discipulado a menos que sigamos e obedeça-
mos ao caminho de Jesus. A graça de Deus pode ser recebida como
um presente — de forma gratuita — mas não pode permanecer à
parte das exigências do discipulado.

18. Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 45, 55, 59.


19. Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 55.
20. Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 61.
21. Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 47-48.

29
C A MINHO • VERDADE • VIDA

A graça é maravilhosa
Philip Yancey relata uma cena do filme The Last Emperor [O Último
Imperador], do jovem ungido como o último imperador da China. Ele
vive uma vida de luxo com muitos servos sob seu comando.
“O que acontece quando você erra?” — pergunta o irmão.
“Quando eu erro, alguém é punido” — responde o imperador.
Para demonstrar, o menino imperador quebra um precioso artefato e
um dos servos é espancado pela transgressão.22
Esse era o costume antigo dos reis e imperadores. Não era justo
nem misericordioso. Então, chegou alguém de outro mundo. Ele era
um Rei que trouxe um novo significado ao conceito de autoridade.
Ele reverteu a antiga ordem e inaugurou um novo reino. Quando os
seus servos caem no pecado, este Rei recebe o que lhes é devido.
Yancey reflete: “A graça é gratuita apenas porque o próprio doador
arcou com o custo”.23
Isso não é justiça ou misericórdia — é graça. Graça dispendiosa.
Talvez seja por isso que ainda gostamos de cantar o hino de Newton.
A graça é maravilhosa.
Então, como é que a graça extravagante de Deus se manifesta nas
nossas vidas diárias? Uma coisa é saber o que ela significa. É ótimo
saber que Deus nos ama desta forma, mas que diferença é que isso faz
na minha vida? Qual é a aparência da graça quando olho para ela? O
que é que a graça faz quando a experimento? Que diferença a graça
faz na minha vida quotidiana?
A graça é experimentada de maneiras multifacetadas, diferencia-
das e diversas. O restante deste livro explorará as múltiplas expressões
da jornada da graça.

22. Yancey, What’s So Amazing About Grace?, 67.


23. Yancey, What’s So Amazing About Grace?, 67.

30

O CA MINHO
Através da graça que busca (também
chamada de graça preveniente), Deus vai
adiante de nós para abrir um caminho e nos
atrair para um relacionamento com Ele.

2
A GRAÇA QUE BUSCA1
Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido.
— Lucas 19.10

O discipulado é semelhante a uma longa obediência na mesma


direção — com Jesus como nosso guia e companheiro.2 Chamamos
a isso de jornada da graça. A jornada da graça é sempre dinâmica
porque é relacional na sua essência. Andar pela fé é mais aventura do
que trabalho enfadonho, mais prazer do que dever, com cada passo
da jornada de discipulado imerso na graça de Deus. Experimentamos
a graça de Deus de maneiras diferentes em várias épocas de nossas
vidas. Embora essas facetas da graça nem sempre sejam sequenciais

1. Partes deste capítulo são incluídas e adaptadas do capítulo do autor, intitulado


“The Grace That Goes Before: Prevenient Grace in the Wesleyan Spirit” [“A
Graça Que Vem Antes: Graça Preveniente no Espírito Wesleyano”], de David A.
Busic, em Wesleyan Foundations for Evangelism [Fundamentos Wesleyanos para
Evangelismo], ed. por Al Truesdale (Kansas City, MO: The Foundry Publishing,
2020). Foram usadas com permissão.
2. A frase “uma longa obediência na mesma direção” é emprestada de um livro sobre
discipulado de autoria do pastor-teólogo Eugene Peterson, A Long Obedience in the
Same Direction: Discipleship in an Instant Society (Downers Grove, IL: InterVarsity
Press, 1980).

* Partes deste capítulo são incluídas e adaptadas do capítulo do autor, intitulado


“The Grace That Goes Before: Prevenient Grace in the Wesleyan Spirit”, de
David A. Busic, em Wesleyan Foundations for Evangelism, ed. por Al Truesdale
(Kansas City, MO: The Foundry Publishing, 2020). Foram usadas com permissão.

33
C A MINHO • VERDADE • VIDA

(seguindo uma ordem específica), elas são diferenciadas de acor-


do com os diversos propósitos que cumprem em nossas jornadas de
discipulado.3
Existem pelo menos cinco motivos bíblicos que retratam como
experimentamos a graça de Deus. Isso não quer dizer que existam
diferentes classificações da graça, como se a graça pudesse ser disse-
cada em diferentes medidas ou tipos categóricos.4 Como Jack Jackson
aponta, “a graça de Deus é singular”5 ou, tal como John Wesley afir-
ma, a graça de Deus é simplesmente “o amor de Deus”.6 Para evitar
essa tendência de classificar vários tipos de graça, Wesley escolheu
se concentrar na natureza experimental da graça: “Dependendo do
estágio de discipulado, as pessoas experimentam a graça de Deus de
maneira diferente. As pessoas que se encontram no estado de natu-
reza (pré-cristão) experimentam a graça de forma preveniente; uma
vez despertados, experimentam a graça de maneira convincente e
justificativa; e então, finalmente, uma vez justificados, experimentam

3. Embora a graça possa não ser experimentada sequencialmente, os teólogos


referem-se a uma ordem de salvação (ordo salutis). No entanto, Diane LeClerc
destaca um ponto importante: “Como é frequentemente considerada uma série de
etapas na vida cristã, alguns estudiosos preferem a via salutis, ou meio de salvação,
para enfatizar a fluidez de um estágio para outro”. Em Discovering Christian
Holiness: The Heart of Wesleyan-Holiness Theology (Kansas City, MO: Beacon Hill
Press of Kansas City, 2010), 315.
4. Esta foi uma questão importante no último capítulo. A graça não é uma coisa —
a graça é uma pessoa e é pessoal. Tom Noble sugere que a tendência de tratar a
graça como uma força ou uma substância objetiva veio do agostinismo medieval.
Surgiram diferentes tipos de graça que poderiam ser infundidos nos cristãos. A
tendência se expandiu no escolasticismo protestante do século XVII. “Esse modelo
escolar de graça traz os seus próprios problemas, particularmente uma tendência
de despersonalizar a ação de Deus, substituindo a ação pessoal do Espírito por essa
substância impessoal chamada ‘graça’”. T. A. Noble, Holy Trinity: Holy People: The
Theology of Christian Perfecting (Eugene, OR: Cascade Books, 2013), 100.
5. Jack Jackson, Offering Christ: John Wesley’s Evangelistic Vision (Nashville:
Kingswood Books, 2017), 53.
6. John Wesley, Sermon 110, “Free Grace,” Sermons III: 71–114, vol. 3 in The
Bicentennial Edition of the Works of John Wesley (Nashville: Abingdon Press, 1986),
3.544, par. 1.

34
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

a graça trabalhando para santificar as suas mentes e corações.”7 A


descrição de Jackson da teologia de Wesley aqui é lindamente escrita,
lógica e ainda assim flexível, distinguindo entre a graça como uma
coisa e como uma jornada relacional que inclui circunstâncias e ex-
periências da vida, compromissos divinos e tempo providencial. A
graça é uma pessoa e é estendida de formas pessoais.
Com isso em mente, oferecemos os seguintes motivos para nos
ajudar a entender melhor como muitas vezes experimentamos o amor
de Deus na jornada da graça, reconhecendo que não são tipos dife-
rentes de graça, mas maneiras diferentes pelas quais podemos expe-
rimentar Deus como graça personificada ao longo das nossas vidas.8
• A Graça Que Nos Busca
• A Graça Salvadora
• A Graça Santificadora
• A Graça Sustentadora
• A Graça Suficiente
Nos capítulos seguintes, examinaremos cada um destes motivos em
detalhe, bíblica, teológica e experimentalmente. Comecemos pela
graça que busca.

A graça que vai adiante de nós


A graça de Deus não começa no momento da nossa salvação. Ela
precede até a consciência da nossa necessidade de Deus. Nós não bus-
camos Deus naturalmente; pelo contrário, Deus nos busca. O termo

7. Jackson, Offering Christ, 53.


8. Seguindo o entendimento de William Greathouse e H. Ray Dunning sobre a
“salvação” como um termo teológico com amplas conotações: “[Salvação] abrange
toda a obra de Deus direcionada para restaurar o homem ao seu estado perdido.
Começando com a salvação inicial, inclui todos os aspectos dessa restauração,
incluindo a salvação final ou a ‘glorificação’”. William M. Greathouse and H. Ray
Dunning, An Introduction to Wesleyan Theology (Kansas City, MO: Beacon Hill
Press of Kansas City, 1982), 75. Além disso, Greathouse e Dunning explicam que
a salvação não se localiza num evento ou numa experiência singular: “O Novo
Testamento fala da salvação em três tempos: passado (foi), presente (está a ser) e
futuro (será)”.

35
C A MINHO • VERDADE • VIDA

teológico para esta ação, através da qual Deus procura se aproximar,


é graça preveniente. A graça preveniente significa simplesmente que
Deus vem até nós antes de chegarmos a Ele. A graça de Deus nos
busca e chega onde estamos.
Às vezes, os cristãos começam o testemunho da sua experiência de
conversão com uma declaração sobre como “chegaram a Cristo”, em
um certo lugar ou com certa idade. Estas são tentativas genuínas de
recontar um tempo e um local específico quando tiveram um encon-
tro com Deus e experimentaram um novo nascimento em Cristo. No
entanto, a expressão “encontrar a Cristo” não é exatamente precisa,
porque ninguém nunca encontra a Jesus Cristo. Jesus Cristo vem até
nós. Em uma carta muito importante escrita aos primeiros cristãos
gentios, o apóstolo Paulo diz: “E vos vivificou, estando vós mortos em
ofensas e pecados, em que noutro tempo andastes segundo o curso
deste mundo, mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu
muito amor com que nos amou estando nós ainda mortos em nossas
ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos)”
(Efésios 2.1-2, 4–5). Preste especial atenção a uma palavra que Paulo
repete para dar uma ênfase especial: mortos. Paulo leva isso muito
a sério! Ele não diz que estávamos “doentes” nos nossos pecados ou
“presos” neles. Não. Nós estávamos mortos nos nossos pecados.
Segundo a Bíblia, existem três tipos de morte: física, espiritual e
eterna. Paulo está descrevendo a morte espiritual. Estávamos viven-
do, respirando e passando pelos momentos da vida, mas estávamos
espiritualmente mortos por causa do pecado. Uma pessoa pode estar
fisicamente viva e passear, mas por dentro ela não consegue respon-
der às coisas espirituais porque não tem sensibilidade espiritual. É por
isso que alguém que está espiritualmente morto não se conecta à ver-
dade espiritual. Não é mais real, para eles, do que um olfato para uma
pessoa morta. As pessoas mortas não respondem, se desconectam dos
outros e desconhecem o que as rodeia.

36
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

Paulo diz que estávamos todos nesta condição de mortos-vivos.


Da mesma forma como os mortos não podem responder a estímu-
los externos, nenhuma pessoa espiritualmente morta pode “chegar
a Cristo” pela sua própria força. A ajuda deve vir de fora. Portanto,
de acordo com Paulo e outras passagens bíblicas, Deus intervém na
nossa situação desesperadora e faz algo por nós que não podemos fazer
por nós mesmos: Deus chega onde estamos. Pelo poder do Espírito
Santo, Deus se move na nossa direção e desperta as nossas sensibili-
dades espirituais. Esta realidade leva a um pensamento profundo: até
a nossa capacidade de dizer não aos sussurros de Deus só é possível
porque a graça preveniente de Deus já nos encontrou. Apenas somos
livres para responder a Deus porque Deus libertou a nossa consciên-
cia espiritual para o fazer. Um movimento da graça sobre nós precede
qualquer resposta a Deus.
A “Bela Adormecida” é um conto de fadas famoso sobre uma prin-
cesa que foi enfeitiçada por uma rainha má. A princesa permanece
em um perpétuo estado de sono e a única maneira de ser despertada
é se o príncipe vier e beijá-la. Esse beijo a desperta do seu estado de
coma e a resgata da sua condição sem esperança. Embora seja apenas
um conto de fadas, é simbólico de como a graça preveniente funcio-
na. A Bíblia diz que cada alma humana está em um tipo de sono de
morte espiritual e que somos incapazes de nos trazer à consciência es-
piritual. Então, o Príncipe chega e nos beija, o feitiço é quebrado e so-
mos despertados para novas realidades desconhecidas. Assim, como
o pai apaixonado de Lucas 15 corre para o filho desgraçado no fim do
caminho, este beijo representa a graça preveniente. Leia novamente
estas palavras da parábola através das lentes da graça preveniente: “A
seguir, levantou-se e foi para seu pai. Estando ainda longe, seu pai o
viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
(...) ‘Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e
foi achado’. E começaram a festejar o seu regresso.” (Lucas 15.20, 24).

37
C A MINHO • VERDADE • VIDA

John Wesley e a graça preveniente


O nosso progenitor teológico John Wesley tinha muito a dizer so-
bre a graça preveniente. Embora ele não acreditasse que o discipulado
real começasse até depois da conversão, ele sustentava que a graça de
Deus trabalha antecipadamente, despertando nas pessoas o desejo de
começar a buscar a Deus, cujo desejo marca o início do despertar.9
Buscamos a Deus apenas porque Deus nos busca primeiro.
John Wesley não foi o primeiro a abraçar a ideia do poder da graça
preveniente estendido a todas as pessoas, mas certamente acrescen-
tou a sua própria distinção na ordem da salvação.10 Às vezes, referin-
do-se a ela como “graça preveniente”, Wesley acreditava que, desde o
nascimento, a graça de Deus está ativa em todas as pessoas, buscando
atraí-las para a vida eterna em Jesus Cristo. Isso é verdade mesmo que
nunca tenham ouvido o Evangelho sendo proclamado. A presença e
a ação prévia de Deus através do Espírito Santo é a graça que “ante-
cede” o ouvir as boas novas, o despertar espiritual e a conversão.
Nenhuma pessoa é estranha à graça de Deus, e todos são objetos
do cortejo do Espírito de Jesus. Como seres humanos caídos, “mortos
nas nossas transgressões e pecados” (Efésios 2.1), somos incapazes de
chegar a Deus pelas nossas próprias forças. Portanto, Deus é sempre
o primeiro na cena do despertar, conversão e transformação de vida.
Chamamos a atividade inicial do Espírito Santo de “preveniente”
porque precede sempre a nossa resposta. Pode-se chegar à fé em Jesus
Cristo, mas nunca ninguém “chega a Cristo” a menos que Deus pri-
meiro os atraia e os capacite. Jesus disse aos seus discípulos que seria a
obra do Espírito Santo (João 16.5-15; ver também João 6.44).
Como Lovett Weems coloca, “Deus nos procura antes mesmo de
O buscarmos. A iniciativa da salvação está com Deus desde o começo.

9. Jackson, Offering Christ, 43–44. Ver também Randy Maddox, Responsible Grace:
John Wesley’s Practical Theology, (Nashville: Kingswood, 1994), p. 8.
10. Na tradição católica, a “graça atual” é dividida em duas partes: “graça preveniente
operacional” e “graça cooperante subsequente”.

38
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

Antes de darmos um passo, Deus já está lá”.11 A graça não é irresistí-


vel, mas ninguém fica sem o convite de um relacionamento pessoal
com Deus. O que isto significa para quem segue a tradição wesleyana
de santidade? Isto significa que, ao partilharmos o Evangelho, nunca
encontramos um contexto moralmente neutro. Não há pessoas que
encontremos que não tenham sido afetadas pela graça preveniente.
Certamente, alguns serão mais resistentes ou receptivos do que ou-
tros, mas podemos ter a certeza de que Deus tem estado fielmente
ativo nas suas vidas muito antes de chegarmos em cena. O príncipe
precedeu a nossa entrada na vida dessas pessoas.
A oferta da salvação de Deus não é coerciva. Pela sua natureza,
o amor recíproco (a base do verdadeiro relacionamento) exige a li-
berdade de aceitar ou rejeitar o amor oferecido. No entanto, a graça
preveniente precede a nossa resposta e possibilita-a. Essa é a ordem da
redenção e o começo do discipulado. Deus inicia; nós respondemos.
A graça acontece sempre primeiro.

Desenvolvendo o que Deus está operando em nós


Todo o Novo Testamento presta testemunho e os escritos do após-
tolo Paulo enfatizam especialmente que “quando uma pessoa crê em
Jesus como Senhor ressuscitado, esse evento é em si um sinal que o
Espírito está trabalhando através do Evangelho, e que, se O Espírito
iniciou aquela ‘boa obra’ da qual essa fé é o primeiro fruto, pode-
-se confiar que terminará essa obra”.12 No entanto, essa garantia não
nega a importância da participação humana. O relacionamento im-
plica cooperação.
Paulo enfatiza quem começa e termina a jornada da graça: “Tendo
por certo isto mesmo, que Aquele que em vós começou a boa obra a

11. Lovett H. Weems, Jr., John Wesley’s Message Today (Nashville: Abingdon Press,
1991), 23.
12. N. T. Wright, Paul: A Biography (San Francisco: HarperOne, 2018), 96.

39
C A MINHO • VERDADE • VIDA

aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1.6).13 Além disso,


o discípulo (e igreja) de Jesus deve operar a sua salvação “com temor
e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade” (2.12-13).14 Devemos, pela graça,
desenvolver no mundo o que Deus está operando em nós. Os exem-
plos bíblicos úteis são abundantes.
Deus veio a Abraão em um lugar chamado Ur dos Caldeus (agora
chamado de Irã). Deus iniciou o chamado dizendo: “Farei de você um
grande povo, e o abençoarei.
Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção.” (Gênesis
12.2). Quem chegou primeiro? Deus. Quem começou a boa obra em
Abraão? Deus. Contudo, Abraão teve que responder em obediência
para desenvolver, no mundo, o que Deus estava trabalhando nele.
Deus veio a Jacó em um sonho revelando uma escada para o céu
(Gênesis 28.10-22) e depois lutou com Jacó no rio Jaboque (32.22-32).
Quem chegou primeiro? Deus. Quem começou a boa obra em Jacó?
Deus. No entanto, Jacó teve que desenvolver o que Deus estava ope-
rando nele.
Moisés estava a cem milhas do nada. Deus veio até ele por meio
de uma sarça ardente e o chamou para resgatar o Seu povo da escravi-
dão no Egito (Êxodo 3.1–4.17). Quem chegou primeiro? Deus. Quem
começou a boa obra em Moisés? Deus. No entanto, Moisés teve que
desenvolver o que Deus estava operando nele.
O Cristo vivo apareceu a Saulo (ou cercou-o) no caminho para
Damasco (Atos 9.1-19). Saulo não estava à procura de Deus. Ele esta-
va em uma missão para perseguir os cristãos. Quem chegou primeiro?
Deus. Quem iniciou a boa obra em Saulo (que rapidamente se tornou
Paulo, missionário aos gentios)? Deus. No entanto, como Paulo diria

13. Observe que Deus é tanto o iniciador como o facilitador da jornada da graça.
14. Adiciono aqui “a igreja” porque a palavra “vocês” está no plural.

40
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

mais tarde na sua carta à igreja filipense, ele teve que desenvolver o
que Deus estava operando nele.
O eunuco da África em uma estrada deserta na Judeia (Atos 8),
Cornélio em uma visão às três horas da tarde (Atos 10), Lídia à beira
do rio (Atos 16): o que têm todos eles em comum? Estas e muitas
outras histórias semelhantes mostram pessoas respondendo com fé ao
Deus que primeiro veio a elas. Todos estavam desenvolvendo o que
Deus estava operando neles.
Existe um padrão consistente de Deus em agir com Sua graça
preveniente e pessoas que respondem em fé. O missiólogo britânico
Lesslie Newbigin disse: “Fé é a mão que agarra a obra consumada de
Cristo e a torna minha”. Não elimina a necessidade de resposta, mas a
graça preveniente vem sempre em primeiro lugar. Mesmo Agostinho,
que era um firme defensor da predestinação, afirmou: “Aquele que nos
fez sem nós mesmos, não nos salvará sem nós mesmos”.15

Providência e preveniência
Há uma diferença entre graça providencial e graça preveniente.
Providência é como Deus provê o sustento e a provisão de Sua cria-
ção, incluindo os seres humanos.16 Deus “provê” ou “assiste” (Gênesis
22.8, 14) o que é necessário para sustentar o mundo e prover às pes-
soas individualmente.
Como a providência de Deus cruza a vida de cada pessoa é pro-
fundamente misterioso. Quando, onde e em que família uma pessoa
nasce é uma questão de providência. Por que uma pessoa nasce em
uma família hindu na Índia em 1765, enquanto outra pessoa nasce

15. Citado em John Wesley, The Works of the Rev. John Wesley (Kansas City, MO:
Nazarene Publishing House, n.d.; and Grand Rapids: Zondervan Publishing
House, 1958, concurrent editions), VI, 513.
16. A palavra “providência” vem de duas palavras latinas: pro, que significa
“encaminhar” ou “em nome de”; e videre, que significa “ver”. A providência às
vezes é distinguida em duas categorias: “providência geral”, o cuidado de Deus pelo
universo; e “providência especial”, a intervenção de Deus na vida das pessoas.

41
C A MINHO • VERDADE • VIDA

em uma família cristã em Moçambique em 2020, são questões de pro-


vidência. A providência de Deus carrega vários graus de responsabi-
lidade espiritual. Aquele a quem é dada a oportunidade de ouvir o
Evangelho ao longo de sua vida será julgado de maneira diferente do
que o que nunca ouviu acerca do nome de Jesus. A parábola de Jesus
do servo fiel e sábio é sobre mais do que posses materiais — envolve
a mordomia da graça de Deus. “A quem muito foi dado, muito será
exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido.” (Lucas
12.48). Nem todos têm a mesma oportunidade e o mesmo terreno em
que se apoiar. Alguns recebem mais e outros recebem menos. Com
o presente de “mais”, surge uma maior exigência por uma resposta.
Essas são questões acerca da providência divina.
Se a providência é o lugar onde Deus nos coloca, a preveniên-
cia descreve as formas multifacetadas pelas quais Deus nos encontra.
Todos recebem a mesma graça que antecede a salvação. No entanto,
as oportunidades de resposta diferem. Deus se estende a todos persis-
tente e pacientemente. Esta crença distingue o cristianismo de outras
religiões do mundo que ensinam que Deus responderá se primeiro os
humanos moverem-se em direção a Deus. O cristianismo inverte a
ordem: Deus age sempre primeiro, permitindo assim uma resposta.
Deus inicia a boa obra da graça e paz. A redenção e a nova criação
começam sempre com a iniciativa de Deus. Nada revela isso mais do
que a convicção de que o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo. Deus age
sempre primeiro. O Espírito Santo de Deus desperta as pessoas para a
necessidade de salvação, convence-as do pecado e aplica a expiação
de Cristo quando elas respondem com fé.
Para John Wesley, o despertar espiritual é mais do que mera cons-
ciência: “Não há homem, a menos que extinga o Espírito, que seja
totalmente desprovido da graça de Deus. Nenhum homem que vive
é inteiramente destituído do que é vulgarmente chamado de cons-
ciência natural. Cada homem tem alguma medida dessa luz (...) que

42
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

ilumina cada homem que vem ao mundo. E cada pessoa (...) se sente
mais ou menos desconfortável quando age de maneira contrária à luz
da sua própria consciência. Então, ninguém peca porque não tem gra-
ça, mas porque não usa a graça que tem”.17 Uma consciência inquieta,
o aumentar da consciência acerca do certo e do errado e o despertar
da consciência espiritual, são presentes graciosos de Deus para todos.
Essa confiança tem implicações importantes para o evangelismo no
espírito wesleyano.

A graça preveniente e o evangelismo


Uma vez conheci um grupo de pastores cristãos que vive em um
lugar onde é difícil ser seguidor de Cristo. É legal ser cristão, mas exis-
tem leis nacionais restritas contra o proselitismo de uma fé para outra.
O evangelismo cristão aberto é severamente punido com prisão e até
morte. Perguntei aos pastores como é que o evangelismo acontecia
em um ambiente tão hostil e perigoso. Após alguns momentos de
silêncio, um pastor respondeu: “Sonhos”. Não entendi, e por isso pedi
que me explicasse. “Centenas de vizinhos têm tido sonhos durante a
noite. O Cristo ressuscitado aparece-lhes em toda a Sua beleza e ma-
jestade. Quando acordam, eles vêm nos fazer perguntas. ‘Conte-nos
sobre esse homem que chega até nós durante a noite.’ Quando eles
perguntam, é nossa obrigação responder. Não estamos evangelizan-
do. Estamos apenas fornecendo evidências da nossa experiência para
explicar as experiências deles. Muitos deles estão entregando as suas
vidas a Cristo dessa forma.”
Em lugares onde a igreja encontra portas fechadas, o Espírito de
Deus está à nossa frente. A graça preveniente de Deus não conhe-
ce fronteiras ou barreiras. O amor de Deus alcança incansavelmente
até as pessoas mais difíceis, resistentes e hostis. Elas podem nunca

17. Wesley, Works, VI, 512.

43
C A MINHO • VERDADE • VIDA

responder com a fé obediente, mas não podem escapar da presença


penetrante de Deus que não deixa de as amar e atrair.
Essa tem sido a repetida história do Filme JESUS. Este filme narra
dramaticamente a vida de Cristo. Ele tem sido um instrumento eficaz
da graça na vida de milhares em todo o mundo. Já foi apresentado
a pessoas em áreas remotas onde o nome de Jesus nunca foi falado.
Conta-se uma história sobre o chefe de uma tribo que se levantou
durante uma apresentação e disse: “Pare! Conhecemos este homem!
Ele apareceu aos nossos antepassados há muitos anos e revelou esta
história de salvação. Ele disse que um dia alguém viria nos dizer o
Seu nome. E agora sabemos que o nome dele é Jesus”. Embora este
seja apenas um exemplo de várias histórias semelhantes, ele mostra
que o Espírito de Deus está muito à frente da igreja, como é sempre o
caso. O Espírito Santo já estava cultivando o solo do coração das pes-
soas para receberem o Evangelho. A graça preveniente cruzou com o
desígnio providencial de Deus muito antes da igreja chegar para pro-
clamar as boas novas. Como resultado, muitas vezes uma tribo inteira
deposita a sua fé em Cristo.
O evangelismo cristão não é um ato solo nem um momento solitá-
rio. Isso acontece nas interações relacionais estimuladas pelo Espírito
Santo, que surge antes, sempre graciosamente. Nenhum cristão pode
olhar para o “espelho retrovisor da vida” e deixar de ver as maravi-
lhosas maneiras pelas quais Deus agiu para o seu despertar e levá-lo
ao arrependimento e fé em Cristo Jesus.
O meu pai se tornou cristão quando era jovem através de pais
adotivos nazarenos. Eu me tornei cristão através do exemplo de pais
cristãos e de um grupo de homens que se encontravam fielmente to-
das as manhãs de quarta-feira para orar especificamente pela minha
salvação. A sua jornada de graça é única para si. O que é igual para
todos é que Deus nos precede sempre.

44
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

O meu amigo Stephane era um ateu que frequentava uma univer-


sidade na Alemanha, onde estudava ciência robótica. O tio ateu dele
falou-lhe sobre um filme chamado The Mission. O tio encorajou-o
a ver o filme por causa da “atuação impecável e belas paisagens”. O
filme passa no século XVIII, nas selvas do nordeste da Argentina. Ali
foi estabelecida uma missão jesuíta espanhola para alcançar as tribos
indígenas guaranis para Cristo.
Stephane alugou o filme. Ele ficou especialmente comovido com
uma cena em que um comerciante de escravos e mercenário chama-
do Rodrigo Mendoza escala uma íngreme cascata na montanha. As
ferramentas do seu ofício — a sua armadura e espadas — estavam
amarradas às costas. Ele estava se penitenciando pelos seus muitos
pecados. Quando chega ao topo do precipício, um guerreiro da tribo
que Mendoza tinha raptado e vendido como escravo, salta na sua
direção com uma faca na mão, como se fosse cortar a sua garganta.
Depois de hesitar um momento, o membro da tribo corta a corda dos
ombros de Mendoza e atira a mochila pesada para o fundo da cascata.
Mendoza está subitamente consciente de que algo mudou esse jovem
guerreiro, de uma sede de vingança para uma vontade de mostrar
misericórdia.
Exausto e coberto de lama, Mendoza cai no chão. Ele começa a
chorar incontrolavelmente, não com lágrimas de remorso, mas com
lágrimas de alegria nascidas de uma paz interior. Ele recebe refúgio na
aldeia e é bem recebido na comunidade. Eventualmente, Mendoza faz
os votos para ser um padre jesuíta.
Mais tarde, Mendoza recebe um livro onde acaba lendo uma pas-
sagem sobre o significado do amor. Stephane não sabia a fonte das
palavras, mas disse que eram as palavras mais poéticas e bonitas que
já tinha ouvido. Elas capturaram-no tanto que viu a cena repetida e
meticulosamente. Ele escreveu as palavras para não se esquecer de-
las. Depois, foi a uma biblioteca para pesquisar a fonte do poema.

45
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Para sua surpresa, as palavras eram da Bíblia. Ele leu repetidamente 1


Coríntios 13 — “o capítulo do amor”.
Pouco tempo depois, Stephane se interessou romanticamente por
uma colega da faculdade. Uma noite, ela convidou-o para o que cha-
mou de “clube”. O que acabou por ser um estudo bíblico. Stephane
aprendeu a Oração do Pai Nosso. Como cientista, ele acreditava na
experimentação para determinar resultados lógicos. Stephane desco-
briu que, sempre que orava o Pai Nosso antes de ir dormir, descansava
em paz. Rapidamente começou a orar antes de dormir todas as noites.
Ele estava sendo despertado por um amor que busca e uma graça que
chega antes.
O Deus missionário começou a responder às orações de um jovem
ateu. Ele descobriu o esplendor do amor de Deus através de um fil-
me que tinha uma “actuação impecável e belas paisagens”. Stephane
respondeu à graça que vem antes. Ele confessou a sua fé em Cristo e
começou a desenvolver, no mundo, o que Deus estava fazendo nele.
Stephane é agora um missionário na Igreja do Nazareno. Tal é a graça
preveniente de Deus que leva ao arrependimento e à transformação.
Crer no poder da graça preveniente faz com que seja impossível
não se ficar desesperado por alguém que ainda não se tornou cris-
tão. Nunca devemos deixar de lado a esperança acerca de alguém,
porque Deus também não o faz. A confiança dos evangelistas não
repousa nem neles mesmos, nem na capacidade daqueles que ouvem
o Evangelho. Em vez disso, a nossa confiança absoluta é que o amor
de Deus é para todos. É extravagante (Efésios 1.7), implacável e imu-
tável. É suficiente para completar o que Deus começa. Aguarde en-
contros divinos!
Até onde Deus irá para alcançar uma pessoa? Apreciei a letra
da música de 2017 de Cory Asbury, “Reckless Love” [Ousado Amor],
sobre a graça de Deus que busca. A música fala sobre a graça de
Deus na vida do cantor “antes de falar” e “antes de respirar”. Ele

46
A GR AÇ A QUE NOS BUSC A

descreve o “impressionante, infinito e ousado amor de Deus”, que


“...deixa as noventa e nove só pra me encontrar.” A ponte da música
é assim:

Traz luz para as sombras

Escala montanhas
Pra me encontrar
Derruba muralhas

Destrói as mentiras
Pra me encontrar18
Esmagador. Interminável. É até este ponto que Deus irá para al-
cançar uma pessoa.

18. Algumas pessoas expressaram preocupação com o uso da palavra “ousado” nesta
música. Se significa descuidado, é problemático. Se significa surpreendente e
extravagante, aproxima-se da descrição do amor de Deus.

47
△◻
A VERDADE
Jesus nos resgata do pecado e nos guia para a
verdade que nos liberta através da graça salvadora.

3
A GRAÇA SALVADORA
Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito
de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.
— Romanos 6.23

Certa vez, um repórter desportivo pediu ao renomado jogador de


golfe Jack Nicklaus para identificar o problema mais comum para jo-
gadores amadores. Esperando que ele dissesse alguma coisa sobre a
falta de prática ou sobre a incapacidade de dar boas tacadas de forma
consistente, fiquei surpreso quando Nicklaus respondeu: “Excesso de
confiança”. Pensar que são melhores do que realmente são ou podem
fazer mais do que realmente podem. Pensar que conseguem acertar
entre duas árvores. Que provavelmente conseguem lançar a bola so-
bre as águas. Isto é excesso de confiança.
As pessoas fazem isso o tempo todo. Elas superestimam suas habi-
lidades e subestimam suas limitações. No entanto, em nenhum lugar
o problema de superestimação acontece com mais frequência do que
no reino espiritual. Superestimamos nossa força espiritual e subesti-
mamos nossa fraqueza espiritual.

Moralismo
Essa tendência de se superestimar espiritualmente é chama-
da de moralismo. O moralismo é a crença de que tudo está bem

51
C A MINHO • VERDADE • VIDA

espiritualmente porque a pessoa leva uma vida moral decente e tem


melhorado o seu comportamento. Dito de outra maneira, um mora-
lista é alguém que acredita que é salvo pelo bem que faz e pelo mal
que evita.
Todos os moralistas dizem coisas semelhantes: “Eu não sou Madre
Teresa, mas também não sou tão mau assim. Tenho uma vida ho-
nesta. Pago as minhas dívidas. Não traio a minha esposa. Voto com
responsabilidade. Dou dinheiro para caridade. Não sou um fanático
espiritual, mas também não sou tão mau assim”. Em outras palavras,
os moralistas seguem a linha de pensamento que lhes diz que Deus
levará em conta no Dia do Julgamento o fato de que eles fazem mais
bem do que mal, especialmente em comparação com outras pessoas
(assassinos em série, estupradores, traficantes de drogas, etc.) que são
muito piores. O moralismo é galopante em nosso mundo hoje.
Em 2004, a organização Gallup realizou uma pesquisa para desco-
brir o que os americanos acreditam sobre o paraíso. O que realmente
chamou a minha atenção foi o número de pessoas que acreditam que
estão indo para o paraíso: 77% dos que disseram acreditar no céu clas-
sificaram as suas chances de lá chegar como “boas” ou “excelentes”.
No entanto, de acordo com os que responderam ao questionário, ape-
nas seis em cada dez de seus amigos irão para o paraíso. O que mais
me chamou a atenção, especialmente no que diz respeito a um ponto
de vista moralista, é que muitas pessoas na pesquisa afirmaram que
“existe um paraíso onde as pessoas que tiveram vidas boas são eter-
namente recompensadas”.1 Enfatizo “ter vidas boas” para referir que a
maioria acredita que vai para o paraíso quando morrer por causa das
suas “vidas boas” e pelo seu “comportamento moral”.
Diana, a princesa de Gales, morreu em 1997. Foi uma perda trági-
ca para muitos à volta do mundo. A atenção da mídia e o luto público

1. Albert L. Winseman, “Eternal Destinations: Americans Believe in Heaven, Hell,”


May 25, 2004, https://news.gallup.com/poll/11770/eternal-destinations-americans-
believe-heaven-hell.aspx.

52
A GR AÇ A SALVADOR A

foram extensos devido à sua popularidade internacional. Lembro-me


de ouvir as pessoas falando sobre como era reconfortante saber que
Diana estava agora no paraíso, que ela era um anjo cuidando delas, e
que o paraíso era um lugar melhor para ela do que este mundo. Não
estou sugerindo que Diana não esteja no paraíso, mas me pergunto
sobre o raciocínio que estava por detrás de tantas pessoas dizerendo
que ela estaria lá. Pelo que pude observar, ela era uma pessoa gentil
e compassiva que usava a sua considerável influência para o bem. Ela
trabalhou com os pobres, era defensora dos pacientes com AIDS e
o seu ativismo ajudou a aumentar a consciência sobre problemas de
crianças e jovens. Ser conhecido por estas coisas maravilhosas é bom,
mas são elas que nos salvam? Será que ser bom ou fazer o bem leva à
salvação, ao paraíso e à recompensa eterna?
Vivemos em uma era de opiniões diversas em relação a estas
perguntas. Muitas pessoas sustentam que Deus classifica de forma
favorável e que um pouco de bondade ajuda muito. Se pudermos
acrescentar mais coisas à coluna das coisas “boas” do que à coluna
das más, a balança irá, de alguma forma, pender a nosso favor, e as
nossas vidas muito boas e esforços honestos compensarão a diferença.
Isso é moralismo.
A Palavra de Deus é clara neste ponto, no entanto: não somos
salvos pelos nossos esforços; não somos salvos pela nossa bondade;
não somos salvos pelas nossas intenções. Somos salvos pela graça e a
graça vem de fora de nós mesmos. A graça salvadora vem de Deus na
pessoa de Jesus Cristo.

A Expiação
A cruz é talvez o símbolo mais conhecido e reconhecido no mun-
do de hoje. Quando vemos a cruz, somos lembrados da vida e da
morte de Jesus na crucificação. A crucificação foi a forma de execu-
ção mais horrenda e torturante inventada pela humanidade. Por essa
razão, uma pessoa no primeiro século acharia estranho ver pessoas

53
C A MINHO • VERDADE • VIDA

modernas usando uma cruz em uma corrente em volta do pescoço. Se


hoje víssemos uma pessoa usando uma figura de uma cadeira elétrica
em um colar, acharíamos estranho porque representa um meio de pu-
nição criminal e morte. Isso é o que a cruz significava para as pessoas
no primeiro século. Era vergonhosa e desagradável. Foi o destino de
criminosos cruéis e rebeldes. A crucificação foi tão terrível que uma
palavra foi criada para explicá-la. A nossa palavra em português “ex-
cruciante” significa literalmente “da cruz”.
A morte por crucificação era uma maneira lenta, agonizante e
pública de morrer. Não havia obscuridade. Aqueles que estavam sen-
do crucificados eram frequentemente zombados e ridicularizados. A
multidão que assistia atirava pedras e ria enquanto os que estavam
pendurados na cruz progrediam lentamente para um estado de res-
piração profunda, difícil e ofegante. Por fim, eles morriam por asfixia
porque, ao ficarem suspensos, seus pulmões tinham dificuldade em
continuar funcionando. Às vezes, podia levar vários dias para que al-
guém finalmente morresse, e então aqueles que tinham sido crucifica-
dos não recebiam um enterro digno. Em vez disso, muitas vezes eram
ali deixados para que os pássaros comessem a sua carne. Depois de ter
passado tempo suficiente para que os mortos servissem de exemplo
para quem desafiasse o Império Romano, o que restava do cadáver era
retirado e jogado no depósito de lixo da cidade.
Não esqueçamos que Jesus foi crucificado na cruz de um crimino-
so, o que me leva a dizer o que até agora parece altamente peculiar: os
cristãos declaram isto como boas novas. De fato, dizemos que são as
melhores notícias que já ouvimos. A palavra que a Bíblia escolhe para
expressar essas boas novas é “Evangelho”. A cruz é o nosso Evangelho
— são as nossas boas novas.
No resumo mais curto do evangelho no Novo Testamento, o após-
tolo Paulo declarou: “Antes de tudo, entreguei a vocês o que também
recebi: que Cristo morreu...” (1 Coríntios 15.3a). Por si só, isso não é

54
A GR AÇ A SALVADOR A

uma boa notícia, mas então, Paulo dá um significado teológico à mor-


te de Cristo através de uma preposição profundamente importante,
a palavra “pelos” nos move de um fato trágico da história para sua
notável relevância para nossa jornada de graça: “que Cristo morreu
pelos nossos pecados, segundo as Escrituras”. Quando o “pelos” é adi-
cionado se torna boas novas — as melhores boas notícias já ouvimos.
Teologicamente, as Escrituras chamam o “morrer pelos nossos
pecados” de expiação. A expiação foi feita através da cruz de Jesus
Cristo. A doutrina da expiação começa no Antigo Testamento. O
Dia da Expiação, também chamado Yom Kippur,2 foi o dia mais sa-
grado do judaísmo antigo. Foi designado como um dia de arrependi-
mento e perdão.
Imagine-o na sua mente. Imagine milhares de adoradores se unin-
do para começar o ano com os seus pecados sendo expiados e sendo
lembrados da misericórdia de Deus. Naquele dia, o sumo sacerdote,
representando todo o povo, trazia dois bodes. Um bode era abatido
— sacrificado como oferta pelo pecado para fazer expiação. O sangue
era derramado e o animal morria. Romanos 6.23 diz que “o salário do
pecado é a morte” e Hebreus 9.22 nos lembra que “sem derramamento
de sangue não há perdão dos pecados.”
O primeiro bode morria de acordo com a lei. No entanto, o segun-
do era mantido vivo e chamado de bode expiatório. O sumo sacer-
dote punha as mãos na cabeça do bode expiatório e confessava sobre
ele todas as maldades e pecados dos israelitas. Simbolicamente, esses
pecados eram transferidos e colocados na cabeça do bode. Então, o
bode era levado para o deserto para um lugar solitário onde os peca-
dos do povo poderiam ser levados para longe e fora de vista.3
Esse ritual continuava ano após ano, década após década (ver
Hebreus 10.3-4). O sangue escorria. Milhares de animais eram

2. Yom = “dia”; Kipur = “para expiar; limpar”.


3. A tradição nos diz que a pessoa designada para a tarefa de libertar o bode
expiatório era um gentio que não tinha ligação com o povo de Israel.

55
C A MINHO • VERDADE • VIDA

sacrificados em um ciclo interminável de expiação para lidar com os


pecados do povo. Esse é o contexto em que Jesus viveu e ministrou.
Antes de considerarmos que a morte de Jesus na cruz fez expiação por
todo o pecado, tornando possível a graça salvadora, vamos considerar
duas questões fundamentais: O que é pecado? Porque é que precisa-
mos da expiação pelo pecado?

O que é o pecado?
Primeiro, pecado é rebelião. Talvez a definição mais reconhecível
de pecado venha de John Wesley: “uma transgressão voluntária de
uma lei conhecida de Deus”.4 O pecado é algo que é conhecido e vo-
luntário — algo que sabemos estar errado, mas fazemos de qualquer
forma porque podemos. É desobediência voluntária.
Quando 1 João 3.4 nos diz que “Todo aquele que pratica o pecado
transgride a Lei; de fato, o pecado é a transgressão da Lei” não se
refere apenas ao sentido legalista, como em “violação da lei”. Tem a
ver com a atitude por trás da violação da lei. Uma analogia pode nos
ajudar a entender. Uma coisa é ultrapassar o limite de velocidade por-
que você não sabia qual era o limite. Tecnicamente, você pode estar
infringindo a lei, mas não está agindo sem lei. Isso é muito diferente
de uma pessoa que diz: “Esqueça esses regulamentos estúpidos de li-
mite de velocidade. Eles estão aí apenas para tentarem me controlar.
Vou fazer o que quero, porque estou no comando da minha vida.” A
ilegalidade é a atitude de rebelião por trás da violação da lei — um
espírito rebelde.
Quando minha filha mais nova era pequena, ela não gostava de
ter que responder aos seus irmãos mais velhos quando mamãe e papai
não estavam por perto. Quando minha esposa e eu os deixávamos
sozinhos, nossa mais nova desafiadoramente erguia sua vozinha es-
tridente e dizia aos irmãos: “Vocês não mandam em mim!” Embora

4. Wesley, The Works of John Wesley, vol. 12 (Kansas City, MO: Beacon Hill Press of
Kansas City, 1978), 394. Ver também Tiago 4.17.

56
A GR AÇ A SALVADOR A

dito com a inocência de uma criança pequena, é a atitude do cora-


ção pecaminoso: a auto soberania. O pecado como rebelião sacode
os nossos punhos minúsculos diante do Deus todo-poderoso e grita:
“Você não manda em mim. Vou fazer o que quero, porque eu posso!
Ninguém, além de mim, nem mesmo Deus, manda em mim.”
É a recusa em aceitar o nosso papel de criaturas diante do nosso
Criador. É uma declaração de independência para sermos o nosso
próprio deus. Essa atitude de auto soberania não surpreende os escri-
tores das Escrituras. “Todos nós andávamos desgarrados como ove-
lhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair
sobre ele a iniquidade de todos nós” (Isaías 53.6). Pecado é rebelião.
Em segundo lugar, o pecado também é escravidão. É mais do que
auto soberania e optar por fazer as nossas próprias coisas e seguir
o nosso próprio caminho. Hamartia é uma palavra grega traduzida
como pecado, que deriva do verbo hamartano, que significa “errar o
alvo” ou “atirar no alvo e não acertá-lo”.5 Embora tenha sido usada
pela primeira vez por Aristóteles, se referindo particularmente à fa-
lha trágica de uma personagem principal do antigo mundo grego do
teatro (como mau julgamento, ignorância, falta de consciência, etc.),
e também conhecido como tragédia, os escritores e pensadores da
igreja primitiva utilizaram a palavra para descrever este aspecto do
pecado. Portanto, biblicamente, hamartia pode significar um ato de
comissão: “Eu sabia o que não deveria fazer, mas o fiz” (ver Romanos
6.1-2); ou pode significar um ato de omissão: “Eu sabia o que deveria
fazer, mas não o fiz” (Romanos 7.19; Tiago 4.17). Ambos os pecados
de comissão e omissão erram o alvo.
Aqui está como isso pode acontecer no mundo dos negócios. Por
um lado, quero que Deus abençoe os meus negócios, mas também

5. William Barclay, The Gospel of Matthew, vol. 1 (Louisville, KY: Westminster


John Knox Press, 1956), 253. Ver também H. G. Liddell, A Lexicon: Abridged
from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon (Oak Harbor, WA: Logos Research
Systems, Inc., 1996), 4.

57
C A MINHO • VERDADE • VIDA

quero garantir que eles sejam bem-sucedidos. Portanto, começo a fa-


zer algumas coisas secretamente para tentar seguir em frente, mesmo
sabendo que essas coisas não são éticas ou legais. As minhas esperan-
ças entram em conflito com as minhas ações e são incompatíveis com
elas. Não posso pedir a Deus que abençoe o meu trabalho sabendo
que estou fora de Sua vontade moral. Isso é um pecado de comissão.
Isso pode me levar adiante por um tempo, mas não terá o favor de
Deus. O lado oposto da mesma moeda é que eu quero que Deus faça o
meu trabalho prosperar, mas eu decido reter as vantagens e benefícios
justos de meus funcionários para aumentar meus lucros. Isso é um
pecado de omissão. No entanto, se o pecado é saber o que não devo
fazer e fazê-lo de qualquer maneira, ou saber o que devo fazer e não
fazer, ambos são iguais aos olhos de Deus.
Hamartia também pode significar algo muito mais profundo. Mais
do que uma ação que tomamos, o pecado é a nossa natureza — uma
condição na qual nos encontramos.6 Estamos enredados no pecado.
Não apenas somos rebeldes por natureza, mas também não somos
livres para fazer o contrário. Não apenas erramos o alvo, mas tam-
bém não conseguiríamos acertar nele se tentássemos. Como pessoas
caídas, não somos livres para fazer o que queremos. Estamos cativos
pelo pecado.
Muitas vezes pensamos que a nossa rebelião significa que ninguém
além de nós será responsável pelas nossas vidas, mas o que não perce-
bemos é que não podemos fazer essa escolha. Serviremos alguém ou
algo. Ou servimos a Deus de todo o coração, ou seremos escravizados

6. O povo wesleyano de santidade entende que o pecado envolve mais do que uma
ação tomada. Susanna Wesley é conhecida pela sua declaração escrita numa carta
ao seu filho João em 8 de junho de 1725: “Use esta regra: o que enfraquece a sua
razão, prejudica a ternura de sua consciência, obscurece seu senso de Deus ou tira
seu prazer de coisas espirituais; em resumo, o que quer que aumente a força e a
autoridade de seu corpo sobre a sua mente, isso é pecado, por mais inocente que
seja em si mesmo.”

58
A GR AÇ A SALVADOR A

pelas nossas paixões e comportamentos pecaminosos. Um ou outro


será nosso mestre.
Sejamos honestos: o pecado pode ser divertido. Se não fosse di-
vertido, não seria tentador. Se não fosse agradável, não seria atrativo.
Talvez devêssemos parar de dizer às pessoas o quanto elas vão odiar
o pecado e como ele é realmente chato. Não é um argumento con-
vincente. O pecado pode ser divertido — durante um tempo. No en-
tanto, o caminho para onde o pecado sempre leva é, eventualmente,
destrutivo. As consequências (salário) do pecado são o que machuca.
O pecado é um ciclo vicioso.
Festejar pode ser divertido. Onde as festas podem levar é que não
é divertido. A embriaguez não é divertida. As ressacas não são diver-
tidas. O alcoolismo não é divertido. Os vícios não são divertidos. Os
centros de desintoxicação não são divertidos. Os acidentes de trânsito
não são divertidos. O abuso conjugal não é divertido. As famílias dis-
funcionais não são divertidas. O pecado é um ciclo vicioso que leva à
destruição dolorosa.
Ter relações extraconjugais com alguém pode ser divertido. Onde
elas podem levar é que não é divertido. Uma consciência culpada
não é divertida. As doenças sexualmente transmissíveis não são di-
vertidas. O divórcio não é divertido. Partir o coração de alguém não
é divertido. Olhar nos olhos de seus filhos e dizer-lhes por que razão
está deixando a mãe ou o pai deles não é divertido. O pecado é um
ciclo vicioso que leva à destruição dolorosa.
A notável história que Jesus contou sobre o filho pródigo é um
excelente exemplo do ciclo do pecado (ver Lucas 15.11-24). Um filho
rebelde decide que quer estar no comando de sua própria vida. Ele diz
ao pai que quer a sua herança antecipadamente (no primeiro século
é o equivalente a dizer que gostaria que seu pai estivesse morto), pega
todo o dinheiro e gasta tudo em uma vida extravagante e dissoluta.
Ele adora esse estilo de vida — por um tempo. Então, o dinheiro

59
C A MINHO • VERDADE • VIDA

desaparece e seus amigos também. O filho se encontra de uma forma


que nunca imaginou estar: falido, humilhado e morando em um chi-
queiro. O pecado é um ciclo vicioso que leva à destruição dolorosa.
Talvez seja isso que Jesus quis dizer quando afirmou: “Entrem pela
porta estreita! Porque larga é a porta e espaçoso é o caminho que
conduz para a perdição, e são muitos os que entram por ela” (Mateus
7.13).
Aqui está a grande luta de nossa natureza pecaminosa: até que
ela mude, amaremos o pecado mais do que amamos a Deus porque
somos escravos do pecado — escravizados por seu poder.7 Nenhuma
quantidade de boas intenções ou trabalho árduo, nenhum moralismo
humanista vai nos libertar completamente. O pecado é escravidão.
Finalmente, o pecado é alienação. “Alienação” não é uma palavra
que usamos com frequência, mas, quando o fazemos, usamos para in-
dicar que algo deu errado em um relacionamento. Pecado não é apenas
quebrar uma regra ou violar uma lei; também é prejudicar um relacio-
namento. O pecado separa as pessoas de Deus e umas das outras. No
primeiro ato de pecado registrado, nossos ancestrais espirituais, Adão
e Eva, desobedeceram a Deus. Quando o fizeram, eles imediatamente
souberam que havia uma violação em seu relacionamento com Deus
e entre eles próprios. Os olhos deles se abriram e eles perceberam que
estavam nus. Isso significa mais do que reconhecer que não tinham
roupas. Eles se sentiram envergonhados e vulneráveis; se sentiram
fracos e alienados; se sentiram expostos. Até àquele momento, eles
apenas conheciam a comunhão amorosa de Deus, mas no momento
de seu pecado sentiram a separação de Deus. Sentiram a alienação. A
comunhão deles foi destruída e isso abalou suas almas. Eles sentiram
a culpa do peso de seus pecados. Em legítima defesa, eles fizeram algo

7. Geoffrey Bromiley ressalta o interessante fato de que a Bíblia frequentemente


“personifica” o pecado para destacar o poder e o controle que ele pode ter sobre as
nossas vidas. Bromiley, Theological Dictionary of the New Testament: Abridged in
One Volume (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), 4.

60
A GR AÇ A SALVADOR A

muito revelador: tentaram cobrir a nudez e se esconderem de Deus. Já


tentou encobrir sua culpa ou esconder seu pecado de Deus?
Deus sabia que a comunhão tinha sido quebrada e, em um dos
relatos mais ternos das Escrituras, Deus os chamou: “Onde estão?”
(Gênesis 3.9). Agora, será que Deus realmente não sabia onde eles
estavam? Estavam eles se escondendo tão bem atrás das árvores que
Deus não conseguiu encontrá-los? Já brincou de esconde-esconde
com uma criança de três anos? Claro que Deus sabia onde eles es-
tavam! No entanto, queria que soubessem que Ele também sentia a
separação.
O homem respondeu: “Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava
nu, tive medo, e me escondi” (3.10). Esta é a primeira vez que o medo
é mencionado na Bíblia. Vê o que o pecado faz? O pecado traz medo,
culpa e vergonha. O pecado traz alienação, condenação e separação.
O pecado torna os amigos em inimigos. O pecado transforma intimi-
dade em hostilidade. O pecado quebra a comunhão.
Esta é a nossa situação. O pecado é rebelião. O pecado é escravi-
dão. O pecado é alienação. Como é que vamos fazer tudo ficar bem
novamente? O que devemos fazer com todo esse pecado?
Permita-me lembrá-lo novamente da maior notícia que podere-
mos ouvir: “Antes de tudo, entreguei a vocês o que também recebi:
que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que
foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1
Coríntios 15.3-4). Isto é amor supremo e generoso. “Mas Deus prova
o seu próprio amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por
nós quando ainda éramos pecadores” (Romanos 5.8). Enquanto ainda
estávamos pecando, Cristo morreu. “Aquele que não conheceu peca-
do, Deus o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça
de Deus” (2 Coríntios 5.21). Isto é graça salvadora.
O reformador protestante Martinho Lutero é reconhecido por
chamá-la de “a grande troca”. Nossa morte por Sua vida; nosso pecado

61
C A MINHO • VERDADE • VIDA

por Sua justiça; nossa condenação por Sua salvação; nossos fracassos
por Seu sucesso; nossa derrota por Sua vitória. A expiação é o ato do
Deus Trinitário que derruba todas as barreiras que nossa rebelião e
pecado ergueram entre nós. “Nisto consiste o amor: não em que nós
tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu
Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1 João 4.10).
O que isto significa? A expiação esteve sempre no coração de
Deus. Todos os cordeiros, todos os sacerdotes e todos os sacrifícios
no templo estavam apontando, estavam nos levando a Jesus, que Se
tornou nosso grande Sumo Sacerdote e que derramou Seu próprio
sangue pelo perdão de nossos pecados.
N. T. Wright o expressa bem: “Ao longo de todo o Novo
Testamento, esta morte é vista como um ato de amor, tanto o amor
do próprio Jesus (Gálatas 2.20) quanto o amor de Deus que O enviou
e cuja auto expressão corporal era Ele (João 3.16; 13.1, Romanos 5.6-
11; 8.31-39; 1 João 4.9-10).”8 Deus Pai, enviou Cristo, o Filho, pelo
poder do Espírito Santo, para fazer por nós o que nunca poderíamos
fazer por nós mesmos.
Jesus tira os nossos pecados — passado, presente e futuro. Deus
já não Se lembra deles. “Quanto o Oriente está longe do Ocidente,
assim ele afasta de nós as nossas transgressões” (Salmos 103.12). A
morte de Jesus na cruz quebrou o poder do pecado em nossas vidas.
Estávamos escravizados em nossos pecados, em servidão e seguindo
“o príncipe da potestade do ar” (Efésios 2.2) e ao “deus deste mun-
do” (2 Coríntios 4.4). Através de Sua morte na cruz, Jesus entrou em
combate mortal com as forças demoníacas e as venceu de uma vez
por todas.9 Ele quebrou o poder da morte, do inferno e da sepultura.

8. N. T. Wright, Evil and the Justice of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press,
2006), 9.
9. A crença de que na cruz Jesus conquistou a vitória sobre os poderes do mal
é chamada de teoria da expiação de Christus victor . N. T. Wright comenta:
“Estou inclinado a ver o tema de Christus victor, a vitória de Jesus Cristo sobre
todos os poderes do mal e das trevas, como tema central da teologia da expiação,

62
A GR AÇ A SALVADOR A

Com a vitória de Cristo na cruz, já não estamos nas garras do pecado;


estamos nas garras da graça e potencialmente libertos (ver mais sobre
isso no capítulo 4, sobre a graça santificadora).
Por causa da expiação de Jesus, fomos reconciliados com Deus. A
nossa alienação foi retirada. A distância que havia entre nós deixou
de existir. O abismo foi ultrapassado. Jesus é a nossa paz que derrubou
todos os muros (Efésios 2.14). O véu do templo foi dividido em dois
(Mateus 27.51). A nossa culpa, vergonha e medo da punição foram
removidos. A nossa amizade com Deus foi restaurada. “Mas agora,
em Cristo Jesus, vocês, que antes estavam longe, foram aproximados
mediante o sangue de Cristo” (Efésios 2.13). Isto é graça salvadora.
Você tem ideia do quanto Deus o(a) ama? O Pai levou nosso peca-
do e culpa para Seu próprio coração através do Filho. Embora nossos
pecados sejam muitos e sejam graves, entre os quais está a idolatria
dos nossos corações em buscar outros deuses, nosso Deus trinitário
nos redime, nos torna nova criação e nos adota em Sua família. É por
isso que o perdão não é uma questão irrelevante! Qualquer pessoa
que diga: “É claro que Deus vai me perdoar — esse é o trabalho de
Deus” nunca entendeu a profunda dor associada a carregar o peca-
do de outra pessoa que apunhalou seu coração. Uma cruz está no
coração de Deus desde a eternidade. Deus Pai, em Seu único Filho,
Jesus Cristo, pelo Espírito, providenciou um meio de salvação. Jesus
entrou totalmente no propósito do Pai. Ele voluntariamente deu Sua
vida por nós. Aquele sem pecado pelos pecadores. O Inocente pelos

em torno do qual todos os outros significados variados da cruz encontram o


seu nicho particular”. Wright, Evil and the Justice of God, 114. Por outro lado,
Fleming Rutledge argumenta com firmeza que todos os temas bíblicos da expiação
trabalham juntos para formar um lindo conjunto para entender a profundidade e
o mistério da cruz. “A maneira mais verdadeira de receber o Evangelho do Cristo
crucificado é cultivar uma profunda apreciação da maneira como os motivos
bíblicos interagem entre si e se ampliam. Nenhuma imagem pode fazer justiça ao
todo; todos fazem parte do grande drama da salvação”. Rutledge, The Crucifixion:
Understanding the Death of Jesus Christ (Grand Rapids: Eerdmans, 2015), 6-7.

63
C A MINHO • VERDADE • VIDA

culpados. O Cordeiro imaculado de Deus veio viver a vida que deve-


ríamos ter vivido e morrer a morte que merecíamos morrer.
A vida, morte e ressurreição de Jesus renovam todas as coisas. Não
há nada mais importante do que esta verdade. É o cerne da história
humana e o fundamento da nossa fé. Sem Jesus, não há perdão de
pecados, nem vida eterna, nem relacionamento com um Deus bom,
santo e amoroso. Você pode se punir para sempre em arrependimento
pelos seus pecados. Você pode quebrar seu espírito ao tentar fazer as
pazes com Deus, mas a única maneira de experimentar a redenção
total e a paz permanente é quando perceber que sua única esperança
é Jesus.
Recebemos o dom da graça salvadora crendo em Deus. Nos en-
tregamos à misericórdia de Deus e depositamos nossa fé em Cristo.
Confiamos em Sua vitória conquistada na cruz; confiamos que a cul-
pa de nosso pecado é cancelada; confiamos que o domínio da morte
do pecado está quebrado; nossa consciência é purificada; encontra-
mos a expiação em Deus.
Existem duas maneiras de ver a expiação. Poderíamos dizer: “Se
Deus é amor, porque precisamos da expiação?” Por outro lado, pode-
ríamos dizer: “Deus expiou os nossos pecados — que amor!”

Como a graça salvadora funciona


Paulo diz que um cristão é alguém que passou por uma mudança
cataclísmica. Efésios 2.1-10 descreve a dramática transformação — da
escravidão do pecado à liberdade em Cristo — que acontece quando
alguém crê em Cristo e, portanto, é salvo. É alguém que passou da
morte para a vida, da escravidão para a liberdade, da condenação à
aceitação, da alienação à adoção. Agora, nos versículos 8 a 10, Paulo
diz como chegamos daquele ponto até aqui — como realmente nos
tornamos cristãos. É um processo orgânico com três partes: somos
salvos pela graça, que leva à fé, que produz boas obras. Essa é a equa-
ção e a ordem é crítica. Se errarmos a ordem, entendemos tudo mal.

64
A GR AÇ A SALVADOR A

Somos salvos pela graça. Examinamos extensivamente o signifi-


cado da graça no capítulo 1. É bom lembrar que a graça é sempre o
começo. A graça é sempre a primeira coisa. A graça nos desperta,
nos muda e nos coloca em um relacionamento correto com Deus e
uns com os outros. Muitas pessoas pensam que são cristãs por causa
do que fizeram; supõem que tudo o que precisam fazer é serem boas
pessoas e seguirem os ensinamentos da Bíblia e Deus as abençoará.
Isso não é graça — é moralismo. Não há evangelho em colocar a
nossa esperança no que podemos fazer. Nossa salvação não tem nada
a ver com o que fazemos. Tem tudo a ver com o que Deus faz. Nosso
despertar, nossa vitalidade, é tudo obra de Deus. Não somos salvos
pelo que fazemos por Deus; somos salvos pelo que Deus faz por nós. É
totalmente um presente.
Ouvi uma história sobre uma aluna do seminário que estava se
preparando para fazer sua prova final. Quando ela chegou à sala de
aula, todos estavam usando seus últimos minutos para estudar. O
professor entrou na sala de aula e anunciou que haveria uma breve
revisão antes do teste. Grande parte da revisão veio diretamente do
guia de estudo, mas havia muito material adicional para o qual nin-
guém tinha se preparado. Foi uma surpresa desagradável para a tur-
ma. Quando alguém perguntou ao professor sobre o material extra,
ele explicou que tudo estava contido na sua leitura e que eles seriam
responsabilizados por tudo. Foi difícil argumentar com essa lógica.
Finalmente, chegou a hora de fazer o teste. O professor disse:
“Deixem a prova voltada para baixo em suas mesas até que todos
tenham recebido a sua. Vou avisar quando devem começar.” Quando
os alunos viraram o teste, para seu grande espanto, todas as respostas
da prova já estavam preenchidas. Até seus nomes já estavam escritos
com caneta vermelha na perte superior. No final da última página es-
tava escrito: “Este é o final da prova. Todas as respostas do teste estão
corretas. Você vai receber um A. O motivo pelo qual você passou no

65
C A MINHO • VERDADE • VIDA

teste é porque o criador do teste já o fez por você. Todo o trabalho


que você fez na preparação não te ajudou a obter o A. Você acabou
de experimentar a graça.”
Tim Keller conta a história de uma conversa com uma mulher
mais velha que frequentava ocasionalmente sua igreja. Ela era educa-
da e recatada — alguns até diriam que era decente e moral. Ela torcia
o nariz ao mínimo de impropriedade ou indiscrição, mas não estava
convencida de que alguém precisava ser salvo de qualquer coisa se fos-
se boa pessoa. No decurso da conversa, ela disse com incredulidade:
“Deixe-me ver se entendi. Você está dizendo que se eu tiver uma vida
realmente boa e decente e até frequentar a igreja, mas nunca receber
Cristo como meu Salvador, não estarei melhor do que alguém que
cometeu um homicídio? É isso que você está me dizendo?”
Keller respondeu: “Basicamente, sim.”
Ela respondeu: “Esta é a religião mais estúpida que eu já ouvi
falar!”
Ao que Keller respondeu: “Bem, talvez você ache que é a reli-
gião mais estúpida que já ouviu falar, mas para aquele assassino que
se arrepende, é a melhor coisa que ele já ouviu. Aquele ex-assassino
não consegue acreditar que existe uma religião que oferece esperança
para alguém como ele.”
Embora essa história seja um pouco extrema, levanta uma ques-
tão importante. Aquela mulher recatada e moral, que tem absoluta
certeza de que é melhor do que a maioria das pessoas e que acha
que a essência do Evangelho é insultuosa, se não estúpida, está, ela
mesma, nas garras da “carne”.10 Ela está tentando ser decente e reta,
mas está tentando fazê-lo independentemente de confiar em Cristo
para a sua salvação. Essa é a armadilha iminente da justiça própria.
Reconhecendo esse grande perigo, Dietrich Bonhoeffer descreve com

10. Para obter uma explicação detalhada do significado da “carne”, consulte o capítulo
4, “Graça Santificadora”.

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A GR AÇ A SALVADOR A

maestria a atitude de um cristão abraçado pela graça: “Os cristãos são


pessoas que não buscam mais a salvação, a libertação, a justificação
em si mesmos, mas apenas em Jesus Cristo. Eles sabem que a Palavra
de Deus em Jesus Cristo os declara culpados, mesmo quando não sen-
tem sua própria culpa, e que a Palavra de Deus em Jesus Cristo os
declara livres e justos, mesmo quando não sentem nada de sua própria
justiça”.11
Não entendemos o Evangelho até entendermos que o fato de Deus
nos aceitar não se baseia no que fizemos ou iremos fazer. Está estrita-
mente baseada na natureza e no caráter de Deus enviando Jesus ao
mundo para morrer pelos pecados do mundo e ressuscitar para nossa
salvação.
Somos salvos pela graça. Então, diz Paulo, a graça leva à fé. O
que é a fé? A fé é essencialmente uma consciência e uma resposta
para quem nos despertou.12 Aqui está o que é essencial entender: a fé
que nos salva é a fé em Cristo. A fé cristã não é a fé geral em alguns
princípios. É fé que realmente houve um bebê nascido no planeta
Terra que era Deus em carne, que realmente morreu na cruz e que
realmente foi ressuscitado dentre os mortos. Paulo foi inflexível neste
ponto: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e é vã a
fé que vocês têm... E, se Cristo não ressuscitou, é vã a fé que vocês
têm, e vocês ainda permanecem nos seus pecados” (1 Coríntios 15.14,
17). Se Jesus realmente não morreu pelos nossos pecados e realmente
não ressuscitou dentre os mortos, a nossa fé nada mais é do que uma
ilusão ou um deísmo terapêutico moralista.13 Fé em generalidades não
tem sentido.

11. Dietrich Bonhoeffer, Life Together (New York: HarperCollins Publishers, 1954),
21–22.
12. Sou grato por esta definição num sermão pregado por Tim Keller, mas não consigo
me lembrar que sermão foi.
13. “Deísmo terapêutico moralista” é um termo introduzido por Christian Smith
e Melinda Lundquist Denton para descrever os adolescentes americanos na
mudança do século XXI e a estrutura cultural resultante de como as pessoas pós-

67
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Se Paulo estivesse vivo hoje, diria assim: Se Jesus não é quem disse
que é, se não é o Filho de Deus que Se tornou humano, se realmente
não morreu na cruz pela nossa salvação, se não ressuscitou fisicamen-
te dos mortos, se realmente não subiu ao céu e Se sentou à direita de
Deus Pai, então, deixemos de brincar de ir à igreja. Nenhum dos prin-
cípios faz sentido por si só. Fé na fé? Fé nas generalidades? Não. Porque
a fé na verdade, fé no amor e fé na justiça não nos mudarão nem nos
darão nova vida. É a fé em Jesus. Não somos salvos pelas nossas obras,
pela nossa bondade ou pelos nossos princípios. Somos salvos por cau-
sa de Cristo e somente Cristo. A fé n’Ele é o que importa, porque Ele
é a nossa única esperança.
Então, a fé produz boas obras. As boas obras não nos salvam —
nem nada que se pareça. No entanto, as boas obras fluem da nossa
fé. É impossível dizer que recebemos a graça de Deus e que temos
verdadeira fé bíblica se não há nada de diferente nas nossas vidas. A
Bíblia é prática neste ponto. Somos salvos pela graça, mas se não há
algo realmente acontecendo algo de concreto no nosso caráter e com-
portamento existente, então, não é fé verdadeira. Porque, enquanto a
graça leva à fé, a fé leva às boas obras. “Pois somos feitura dele, criados
em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (Efésios 2.10).
Os cristãos são obra de Deus. Poiema é a palavra grega para “o que
Ele fez em nós”, ou “obra manual”. Esta palavra é raiz da palavra em
inglês “poem”. Os cristãos são exclusivamente “peoms” de Deus —
obras de arte de Deus. A arte é bela, a arte é valiosa e a arte é uma
expressão do ser interior do artista. O que significa Paulo dizer que
os cristãos são obras de Deus? Em Cristo, somos vistos como belos,
valiosos e criados para ser uma expressão de nosso Criador, o Artista
Divino.

modernas pensam sobre Deus. Smith and Denton, Soul Searching: The Religious
and Spiritual Lives of American Teenagers (New York: Oxford University Press,
2005).

68
A GR AÇ A SALVADOR A

No entanto, somos uma obra de arte que foi danificada e desfigu-


rada pelo pecado. Você já viu uma obra-prima estragada — a magnum
opus de um mestre da arte desfigurada? De certa forma, a beleza ori-
ginal da obra-prima torna uma tragédia muito maior vê-la arruinada.
Se uma criança pega um giz de cera e desenha nos armários da cozi-
nha, fica ruim. No entanto, é muito pior se um vândalo pintar sobre
a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. A grandeza e a raridade daquilo
que foi desfigurado determinam o nível de tragédia e o nível de horror
em nossa resposta.
Há vários anos, tive a oportunidade de visitar Roma. Estava an-
sioso para ver a Pietà na Basílica de São Pedro. Consciente de ter sido
esculpida por Michelangelo a partir de um único bloco de mármore
(a única peça que foi assinada pessoalmente por ele), queria estudá-la
em primeira mão. Fiquei desapontado ao descobrir que a obra estava
a uma boa distância do público, atrás de cordas e protegida por um
painel à prova de balas. Porquê essas precauções? Porque em 1972, no
domingo de Pentecostes, um geólogo mentalmente perturbado que
afirmava ser Jesus atacou a escultura com um martelo. Os especta-
dores conseguiram pegar muitas das peças de mármore que estavam
voando. Algumas foram devolvidas, mas outras não, incluindo o na-
riz da Maria, que mais tarde foi reconstruído a partir de uma parte
de mármore cortada nas costas. Os italianos, juntamente com o resto
do mundo da arte, ficaram arrasados. Como poderia essa obra ser
restaurada à sua beleza original? Procuraram no mundo por artesãos
especializados em restauração. Depois de muito tempo, habilidade,
conhecimento, trabalho e intensidade, o projeto de restauração foi
concluído.14 Poucos foram os que conseguiram reconhecer que ela já
tinha sido danificada.

14. Um artigo do New York Times detalha um grupo de jornalistas que tiveram
permissão para subir andaimes e inspecionar de perto a escultura restaurada antes
do público. “A reconstrução do véu danificado, da área dos olhos, do nariz, do
braço e da mão parecia impecável, exceto em pequenas linhas que eram visíveis

69
C A MINHO • VERDADE • VIDA

É isso que Deus faz por todos que Ele salva pela graça. Somos Sua
obra-prima, Sua amada magnum opus, e Ele não permitirá que o dano
do pecado tenha a última palavra. Para provar o nosso valor, Deus
não apenas nos refaz à imagem de Jesus Cristo, mas também nos dá
um trabalho a fazer em Seu mundo. Fazemos esse trabalho porque
Deus nos reformulou. Quando sabemos disso profundamente, quando
realmente o compreendemos, nunca mais podemos dizer que são as
nossas boas obras que nos salvam. O moralismo nunca mais poderá
ser a nossa melhor resposta. Nossas boas obras são o subproduto do
que Deus fez em nós. Elas refletem a glória de Deus, não a nossa.
Aprecio as ideias que Eugene Peterson oferece na sua paráfrase da
equação de Paulo sobre a graça:
Agora Deus nos tem onde sempre quis. Tanto neste mundo
como no próximo, Ele quis derramar sobre nós graça e bonda-
de, em Cristo Jesus. A salvação foi ideia e obra d’Ele. Tudo o
que fazemos é confiar n’Ele o suficiente para permitir que Ele
aja na nossa vida. É um presente de Deus do início ao fim. Não
somos protagonistas nessa história. Se fosse o caso, andávamos
nos gabando de termos feito tudo! Não! Nada fizemos, nem nos
salvamos. Deus faz tudo e nos salva, Ele criou cada um de nós
por meio de Cristo Jesus, para nos juntarmos à obra que Ele faz,
a boa obra que Ele deseja que executemos e que faremos bem em
realizar.15
Deus, em Cristo, nos salva da condenação, julgamento e inferno.
Deus, em Cristo, nos redime e somos totalmente reconciliados.
Deus, em Cristo, nos justifica, corrigindo o que estava errado.
Deus, em Cristo, nos refaz e nascemos de novo.

apenas por uma inspeção minuciosa. Não houve diferença perceptível na cor
das peças restauradas e na superfície de mármore circundante da escultura.
‘Trabalhamos como dentistas’, disse Deoclecio Redig de Campos”. Paul Hoffman,
“Restored Pieta Show; Condition Near Perfect” New York Times, January 5, 1973,
https://www.nytimes.com/1973/01/05/archives/restored-pieta-shown-condition-
near-perfect-marks-on-marys-cheek.htm
15. Peterson, Eugene. A Mensagem, Efésios 2.7-10.

70
A GR AÇ A SALVADOR A

Deus, em Cristo, nos adota em Sua família.


Não somos salvos porque colocamos a nossa fé em uma doutrina.
Não somos salvos pelas nossas crenças corretas. Somos salvos por-
que algo de fora — ou, melhor, alguém — chegou a nós. Estamos
tão totalmente refeitos, que a melhor maneira que os escritores dos
evangelhos poderiam pensar em descrever é comparando a um novo
nascimento. Os escritores hebreus descreveram como que uma ex-
periência de ser arrebatado de uma cova. Estávamos em escravidão
e agora somos livres. Já não somos escravos do medo. Tornamo-nos
filhos de Deus. Antes estávamos fora da família de Deus e agora so-
mos membros de sangue puro da família de Deus. Somos justificados
diante do Pai, o que significa que as coisas estão corretas.
Nunca devemos esquecer que a salvação vem de fora, não de nós
mesmos. Não somos salvos porque somos bons; somos salvos porque
Deus é bom. Isso é salvação. Deus faz algo por nós que não podería-
mos fazer por nós mesmos. É a graça salvadora.
Agora nos voltamos para o que a obra-prima de uma vida re-
novada em Cristo pode se tornar plenamente pelo dom da graça
santificadora.

71
△◻○
A VIDA
Através da graça santificadora, o Espírito
Santo nos capacita a viver uma vida totalmente
consagrada a Deus. Através da graça
sustentadora, o Espírito Santo coopera conosco
para permitir uma vida fiel e disciplinada no serviço
a Deus. Através da graça suficiente, o poder
de Deus é aperfeiçoado em nossa fraqueza.


4
A GRAÇA
SANTIFICADORA
O mesmo Deus da paz os santifique em tudo. E que o
espírito, a alma e o corpo de vocês sejam conservados
íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo. Fiel é aquele que os chama, o qual também o fará.
— 1 Tessalonicenses 5.23–24

Segundo John Wesley, as quatro doutrinas mais importantes en-


contradas nas Escrituras são o pecado original, justificação pela fé,
novo nascimento e santidade interior e exterior.
A justificação foi um tema importante da Reforma Protestante,
que precedeu Wesley durante quase duzentos anos. Os reformadores,
incluindo Martinho Lutero, proclamaram que somos justificados com
Deus somente pela fé.1 Wesley enfatizou a necessidade da justificação,
mas ao adicionar o novo nascimento à sua lista das doutrinas bíblicas
mais importantes, ele estava transmitindo a ideia essencial de que a
cruz e a ressurreição lidam decisivamente com a culpa de nossos pe-
cados e com o problema central que nos leva ao pecado. Assim, para

1. A justificação é ficar bem com Deus, pela Sua graça, pela qual os nossos pecados
são perdoados e a nossa culpa é removida pelo sacrifício expiatório da morte de
Jesus na cruz. Ver o capítulo 3, “Graça Salvadora”.

75
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Wesley, o novo nascimento é o começo da vida santa — ou o que


chamamos de “santificação”.
No capítulo anterior, discutimos a natureza do pecado e os efeitos
prejudiciais que o pecado tem em nosso mundo e em nossas vidas,
mas qual é a origem do pecado? Qual é a fonte do pecado em nossos
corações?
A Bíblia diz que o pecado origina de nossa natureza inata. “Entre
eles também nós todos andamos no passado, segundo as inclinações
da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e
éramos por natureza filhos da ira, como também os demais” (Efésios
2.3, ênfases acrescentadas). Este versículo chama a atenção para duas
frases-chave que são amplamente mal compreendidas e precisam ser
expostas para uma maior compreensão.

Por natureza
Ao longo de suas cartas no Novo Testamento, Paulo ensina ex-
plicitamente que os seres humanos nascem com uma natureza deso-
bediente e pecaminosa (Romanos 7.18, 35; Efésios 2.1-3; Colossenses
3.5). Não aprendemos a pecar. Ninguém precisa nos ensinar a pecar.
Não há nenhuma aula na escola chamada “Introdução ao Pecado”.
Ele vem naturalmente, e somos bons nisso. Esta não é uma visão
popular recente, nem nunca foi.
Nascido no século IV, Pelágio foi um monge irlandês que mais
tarde se tornou cidadão romano. Ele ensinou que as pessoas não ti-
nham uma natureza pecaminosa, mas que as crianças aprendem a
ser pecaminosas pelos maus exemplos que lhes são dados quando são
jovens. Pelágio argumentou que nascemos com uma natureza neutra
e que as crianças se tornam boas ou más devido, em grande parte, aos
seus modelos. Portanto, de acordo com Pelágio, os pecados são ações
deliberadas da vontade e, se aplicarmos nossos melhores esforços, po-
demos viver uma vida muito boa, longe do pecado.

76
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

Pelágio viveu na época de outro teólogo proeminente, Agostinho


de Hipona, considerado um dos pensadores cristãos mais influentes
da história da igreja ocidental. O bispo do norte da África escreveu
extensivamente sobre a existência do pecado original herdado de
nossos primeiros pais espirituais e seus efeitos debilitantes.
Agostinho argumentou fortemente contra a visão de Pelágio, di-
zendo que ela era contrária às Escrituras e ao senso comum e isso
foi crucial para expulsar Pelágio da igreja sob a acusação de heresia.
Embora marcado pela igreja como um ensino herege desde o século
IV, o pelagianismo é bem vivo na igreja hoje.
Em uma viagem à Nova Iorque, eu e minha esposa assistimos ao
espetáculo da Broadway Wicked, que conta a história de Elphaba, a
Bruxa Má do Oeste (do famoso O Mágico de Oz) e de sua amizade
com Glinda, a Bruxa Boa do Norte. A história narra como cada mu-
lher luta para encontrar sua identidade, mas eventualmente Elphaba
escolhe ser má e Glinda escolhe ser boa — tudo por causa das cir-
cunstâncias de suas vidas. Porque acontecerem coisas más a Elphaba,
ela se torna má; as coisas vão bem para Glinda e, por isso, ela se torna
boa. É apenas um musical fictício, mas inúmeras pessoas modernas
tendem a pensar desta maneira acerca do pecado.
Jesus, no entanto, não concorda: “Mas o que sai da boca vem do
coração, e é isso que contamina a pessoa. Porque do coração proce-
dem maus pensamentos, homicídios, adultérios, imoralidade sexual,
furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15.18-19). O coração
é a fonte que contamina; o pecado vem do coração.
Veja crianças pequenas que mal têm idade para andar. Porque elas
agem da forma como agem? Porque são egoístas? Porque fazem birras
quando não conseguem o que querem? Uma criança não é pecadora
por causa de sua educação. Elas não viveram o suficiente para que seus
exemplos as afetassem a esse nível. Uma criança é pecadora porque o
pecado vem do coração — é inato. Elas não precisam ser ensinadas

77
C A MINHO • VERDADE • VIDA

a serem egoístas — o fazem naturalmente. O pecado apresentado é


uma expressão do que já está dentro da pessoa. Davi confessou: “Eu
nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu a minha mãe” (Salmo
51.5). É o fato empírico do pecado original.
Como é que isso se explica teologicamente? Cada pessoa é criada
à imagem de Deus e Ele é santo e bom. Como criada originalmente,
a humanidade refletia a natureza divina, mas a fonte de santidade
e bondade não era nossa — era o Deus eterno e trino. Conforme
explicado por William Greathouse e Ray Dunning, “somente Deus é
essencialmente santo. Somos santos apenas porque nos relacionamos
corretamente com Deus e somos cheios do Seu Espírito santificador”.
Assim, desde a introdução do pecado a partir da queda e suas con-
sequências subsequentes, nossa natureza essencial à imagem de Deus
permanece intacta enquanto a imagem moral de Deus é destruída.2
Greathouse e Dunning continuam: “Essencialmente o homem é
bom, é uma pessoa feita para Deus. Existencialmente, o homem é
pecador, um rebelde alienado da vida de Deus e, portanto, corrompi-
do”.3 Essencialmente bom, existencialmente rebelde. Isto é o pecado
original.

2. Imago Dei é a tradução latina de “imagem de Deus”. Apesar da imagem moral de


Deus na humanidade estar estragada como consequência da queda, a natureza
essencial de Deus mantém o valor de cada pessoa feita à Sua imagem. Diane
LeClerc observa que a teóloga nazarena Mildred Bangs Wynkoop, fiel aos ensinos
de John Wesley, “define a imagem de Deus na humanidade como a capacidade
de amar, no contexto de um relacionamento com Deus, com os outros, consigo
mesmo e com a terra”. LeClerc, Discovering Christian Holiness: The Heart of
Wesleyan-Holiness Theology (Kansas City: MO: Beacon Hill Press of Kansas City,
2010), 312. Além disso, consulte a seção final deste capítulo, “Inteira Santificação
Definida”.
3. Greathouse and Dunning, An Introduction to Wesleyan Theology (Kansas City,
MO: Beacon Hill Press of Kansas City, 1982), 52. Eles detalham o significado
histórico do pecado original (Romanos 5.12–21) e o seu significado existencial
(Romanos 7.14–25), 53–54. A perspectiva wesleyana do pecado original é diferente
da doutrina calvinista da depravação total.

78
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

Temos uma natureza com a qual nascemos. Não é “algo” que


precise ser retirado, como uma vesícula doente. É nossa disposição
para o orgulho e para o egocentrismo. É nossa tendência inata para a
violência, ego, autossuficiência e autopreservação. É o narcisismo da
mais alta ordem e em sua forma mais óbvia — o que significa que o
pecado em nossos corações é mais do que algumas indiscrições que
cometemos nossos piores momentos; é sim desconsiderar o primeiro
mandamento (Êxodo 20.2) e um fracasso em adorar somente a Deus.
N. T. Wright nos lembra o quão imersos realmente estamos:
O diagnóstico da situação humana não é que os seres humanos
simplesmente violaram a lei moral de Deus, ofendendo e insul-
tando o Criador, cuja imagem carregam — embora isso tam-
bém seja verdade. Esse rompimento da lei é um sintoma de uma
doença muito mais grave. A moralidade é importante, mas não
é tudo. Chamados à responsabilidade e autoridade em meio e
sobre a criação, os humanos viraram sua vocação de cabeça para
baixo, dando adoração e fidelidade às forças e poderes dentro da
própria criação. O nome para isso é idolatria. O resultado é a
escravidão e finalmente a morte.4
Temos mais do que um histórico ruim. Temos uma natureza de-
caída. A graça de Deus é necessária para fornecer libertação e cura
da condição do pecado e dos atos de pecado — originais e atuais.
Para isto, precisamos de justificação e santificação. Precisamos ser re-
formados e receber uma renovação radical de nossos corações. É por
isso que Wesley enfatizou a santidade interna e externa. Devemos ser
perdoados de nossos pecados, vivificados em Cristo e ter nossos co-
rações purificados pela fé. O resultado é uma recuperação da imagem
completa de Deus que foi perdida.

4. N. T. Wright, The Day the Revolution Began: Reconsidering the Meaning of Jesus’s
Crucifixion (New York: HarperCollins Publishers, 2016), 76–77.

79
C A MINHO • VERDADE • VIDA

As obras da carne
Como observado anteriormente, os escritos do Novo Testamento
— particularmente os atribuídos ao apóstolo Paulo — costumam se
referir a um aspecto da queda catastrófica do pecado original como
“obras da carne.” A palavra “carne” deriva de uma única palavra gre-
ga, sarx.5 Para não ser confundida com o corpo, a carne é usada no
sentido espiritual para se referir à inclinação egocêntrica que procu-
ra ser gratificada, ao amor desordenado do ‘eu’ que vive por si mes-
mo, em vez de se render totalmente à vontade e propósitos de Deus.6
Martinho Lutero — e, antes dele, Agostinho — descreveu isto grafi-
camente como o estado de “estar voltado para si mesmo” (incurvatus
in se). Pense profundamente no quadro mental que Lutero pinta ao
voltar-se para si mesmo: “Nossa natureza, pela corrupção do primeiro
pecado, [está] tão profundamente voltada para si mesma que não ape-
nas dobra os melhores dons de Deus para si mesma, como os desfruta
(como é evidente nas boas obras e hipócritas), ou melhor, até usa o
próprio Deus para obter estes dons, mas também falha em perceber
que busca de maneira tão perversa, distorcida e perniciosa todas as
coisas, até Deus, a seu próprio favor”.7
Quando Paulo diz: “(...) quero fazer o que é certo, mas não con-
sigo” (Romanos 7.18, NVT), está se referindo à impotência em sua

5. Uma teoria das duas naturezas da vida cristã foi introduzida através de um ponto
de vista dispensacional amplamente popular do final do século XIX e início do
século XX, que teve uma influência de longo alcance entre muitos evangélicos,
incluindo vários notáveis pregadores e professores evangélicos. Essa influência
levou o comitê da mais antiga tradução (1973) da Nova Versão Internacional
a traduzir “carne” (sarx) como “natureza pecaminosa”. Dunning ressalta que,
subsequentemente, Greathouse sugeriu que era “virtualmente impossível usar [essa
versão da tradução] como base para uma interpretação fiel do grego original”. A
comissão de tradução de 2011 da NVI reviu a sua tradução para “carne”. Dunning,
Pursuing the Divine Image: An Exegetically Based Theology of Holiness (Marrickville,
New South Wales: Southwood Press, 2016), Kindle Location 786.
6. Greathouse e Dunning definem carne como “‘eu’ vivendo para mim mesmo”.
Greathouse e Dunning, An Introduction to Wesleyan Theology, 53.
7. Martin Luther, Lectures on Romans, WA 56.304.

80
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

carne para amar e obedecer a Deus de todo o coração. Ele está e


nós estamos escravizados ao “eu” que quer o que queremos. Paulo
aprofunda o tema em sua carta, afirmando que a carne luta contra o
Espírito: “Porque a carne luta contra o Espírito, e o Espírito luta con-
tra a carne, porque são opostos entre si, para que vocês não façam o
que querem” (Gálatas 5.17). Ele continua ilustrando exemplos vívidos
das obras da carne e das ações e atitudes que seguem a carne, em con-
traste com o fruto do Espírito (vv. 19-23). Então, para terminar, Paulo
argumenta: “Pois a inclinação da carne é morte, mas a do Espírito é
vida e paz” (Romanos 8.6). A minha paráfrase é: ou matamos os de-
litos da carne ou eles vão nos matar. Esta é a força gravitacional não
censurada da carne.
A ideia bíblica da carne tem sido geralmente mal compreendida
ao longo dos anos. Lamentavelmente, alguns pensam que a carne e
o Espírito correspondem ao corpo e à alma e que a “carne” se refere
à pele dos nossos corpos.8 Como resultado, alguns foram levados a
supor que, se a carne é a fonte do mal e do pecado, então, o nosso
corpo físico deve ser intrinsecamente mau. Portanto, conforme segue
o pensamento, devemos subestimar os aspectos físicos das nossas vi-
das, submeter os nossos corpos à submissão e não permitir nenhum
prazer ou satisfação física.9 Embora isto possa parecer extremo, ocorre
até certo ponto sempre que é criada uma hierarquia do pecado, como
pecados do corpo e pecados do espírito e quando defendemos a ideia de
que um é certamente pior do que o outro (por exemplo, a imoralidade

8. A “carne” e o “corpo” são duas palavras separadas no Novo Testamento: sarx e


soma.
9. Grande parte da heresia do gnosticismo é baseada numa concepção errada
da carne como se correspondesse ao corpo. A ideia platônica de uma alma
suprema abstrata faz com que alguns até hoje olhem para o corpo com desprezo
e enfatizem a mortalidade de uma alma eterna sem corpo. No entanto, este erro
está em conflito com a doutrina bíblica da ressurreição corporal. Para combater
este predominante mal-entendido, os primeiros credos cristãos enfatizaram a
importância da ressurreição corporal (por exemplo: “Cremos na ressurreição do
corpo e na vida eterna”, Credo dos Apóstolos).

81
C A MINHO • VERDADE • VIDA

sexual é pior do que a fofoca ou amargura; a embriaguez é pior do


que o orgulho ou racismo). Consequentemente, se alguém comete
um pecado do corpo — também considerado um pecado “mortal”
— é quase imperdoável, mas os pecados do espírito são descartados
com a justificação de que “ninguém é perfeito.” Separar e classifi-
car o pecado dessa maneira é um claro mal-entendido da santidade
das Escrituras, sem mencionar o fato de que Paulo classifica todos os
pecados juntos em uma categoria (por exemplo, ver Gálatas 5.16-21:
idolatria e dissensões são identificadas como “obras da carne”).
O corpo humano claramente não é uma coisa má. Afinal, Deus
criou o corpo humano e depois assumiu um corpo humano em Jesus.
Quando Paulo quer se referir ao corpo físico, geralmente escolhe a pa-
lavra grega soma, não sarx. Apenas em Romanos, ele o faz treze vezes.
A palavra soma pode significar tanto o corpo físico humano como a
totalidade de uma pessoa, como em Romanos 12.1: “apresenteis o vos-
so corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”, que é um claro
apelo à santificação de toda a pessoa, incluindo nossos corpos físicos.
Então, o que é a carne e porque a graça santificadora é necessária?
A carne é a nossa inclinação (corpo, mente e espírito) para sermos
nosso próprio deus, em vez de ficarmos sob o senhorio de Jesus. É
o aspecto pecaminoso de nós mesmos que deseja viver nossas vidas
independentemente de Deus — ser o nosso próprio rei e salvador,
em vez de dependermos de Jesus. Antes da graça salvadora, somos
completamente controlados pela carne e não pelo Espírito. Temos
uma natureza pecaminosa, uma disposição do coração que acredita
que podemos salvar a nós mesmos e que é totalmente consumida e
dominada pela mente da carne. No entanto, no momento de nossa
justificação (perdão do pecado) e regeneração (novo nascimento), re-
cebemos o dom do Espírito Santo.10 O povo wesleyano de santidade

10. Embora a “regeneração” não seja uma palavra bíblica em si, os teólogos criaram-
na para descrever a nova vida que é dada pela graça a uma pessoa como resultado
do seu novo nascimento em Cristo. Num sentido muito real, alguém é elevado a

82
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

também se refere a isso como “santificação inicial”, porque não pode-


mos receber o que é santo — o Espírito de Jesus — sem começarmos
a jornada da vida santa.11
É aqui que começa a guerra pela soberania. Quem será o rei da
minha vida? Antes de sermos cristãos, não havia guerras, nem mes-
mo uma discussão ocasional. A carne que estava comprometida com
a nossa auto soberania e desejos egoístas nos dominava. Quando o
Espírito entra na nossa vida, recebemos novos desejos, motivações e
a mente de Cristo (Romanos 12.2; 1 Coríntios 2.16; Filipenses 2.5).
Essas duas forças, a carne e o Espírito, estão em oposição e lutam ago-
ra pela supremacia. A santidade é iniciada, mas agora deve aumentar
e amadurecer.
Paulo escreveu o seguinte à igreja em Corinto: “não não lhes pude
falar como a espirituais, mas como a carnais” (1 Coríntios 3.1). Isto
significa que não eram cristãos? Não, eles eram cristãos nascidos de
novo. De fato, ele começa a carta chamando-os de “santificados em
Cristo Jesus,” e “chamados santos” (1.2). A regeneração, justificação e
redenção tinham acontecido. A jornada da graça deles tinha começa-
do. O problema deles era que a batalha pela carne estava acontecen-
do. A inveja, rivalidade, orgulho e divisão ainda estavam presentes.
Eles eram cristãos, mas ainda “pessoas da carne” (3.1) — ao que Paulo
igualou a fé imatura. Eles eram cristãos, mas eram ainda “meninos em
Cristo” (3.1). Precisavam crescer. Esta é outra maneira de dizer que
ainda havia um nível de resistência neles que ainda não lhes permitia
entregarem totalmente as suas vontades e mentes a Deus.12

uma nova vida, ocorre uma ressurreição espiritual e acontecem mudanças reais de
maneiras tangíveis e intangíveis.
11. “Wesley nunca usou este termo [santificação inicial], mas simboliza a sua crença
de que o momento da salvação começa o processo de ser justificado.” LeClerc,
Discovering Christian Holiness, 318.
12. “O termo grego traduzido para ‘mente’ é um dos mais significativos termos
antropológicos usados por Paulo. Refere-se ao aspecto de raciocínio de uma pessoa
quando os poderes do julgamento estão a ser exercidos.” Dunning, Pursuing the
Divine Image, Kindle Location 814. A capacidade, dada por Deus, de cada pessoa

83
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Novamente, John Wesley oferece um discernimento perspicaz no


contexto das declarações de Paulo. Perguntando se os coríntios ti-
nham perdido a fé, Wesley insistiu: “não, ele [Paulo] declara manifes-
tamente que eles não tinham perdido a fé; pois caso assim fosse, não
seriam ‘meninos em Cristo’. E ele fala de serem ‘carnais’ e de serem
‘meninos em Cristo’ como sendo a mesma coisa; mostrando clara-
mente que cada crente é (em certo grau) ‘carnal’, enquanto é apenas
um ‘menino em Cristo’”.13 Carnal, para Wesley, é o equivalente do
estar “na carne”, e representa a fé imatura que precisa crescer à seme-
lhança de Cristo e no dar de si mesmo da cruz.14 Isto é verdade para
cada crente. A questão não é a salvação, é o senhorio. O santificado
deve crescer cada vez mais à semelhança de Jesus. Não é que algo
deva morrer neles — eles devem morrer, em algum sentido real, mas
figurativo, para aquilo que antes governava as suas vidas.15 As cre-
denciais religiosas não serão suficientes; os padrões morais não serão
suficientes. É preciso deixar de confiar na carne.
Durante um momento vulnerável de franqueza, Paulo confes-
sou: “Se alguém pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: fui
circuncidado no oitavo dia, sou da linhagem de Israel, da tribo de
Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, eu era fariseu; quanto ao

para pensar e usar o intelecto para entender é um dos aspectos do chamado


Quadrilátero Wesleyano, conhecido como “razão”.
13. Wesley, Sermon 13: “On Sin in Believers,” in The Complete Works of John Wesley:
Vol. 1, Sermons 1–53 (Fort Collins, CO: Delmarva Publications, 2014), 3.2.
14. Dunning defende que a “carnalidade é uma palavra enganosa, sendo usada como
substantivo, enquanto as Escrituras sempre usam a palavra carnal como um
adjetivo”. Dunning, Pursuing the Divine Image, Kindle Location 2076. Isto também
rejeita a ideia de que “a carne” é um tipo de coisa alienígena, como um “tumor
cancerígeno que vive metaforicamente dentro de nós” e que deve ser removido
cirurgicamente. Ibid., Kindle Location 801. Os defensores do conceito de algo que
precisa de ser removido, incluindo alguns pregadores de santidade do século XIX,
chamam-no de erradicação.
15. William H. Greathouse with George Lyons, New Beacon Bible Commentary,
Romans 1–8: A Commentary in the Wesleyan Tradition (Kansas City, MO: Beacon
Hill Press of Kansas City, 2008), 182.

84
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreen-


sível” (Filipenses 3.4b-6). Ele possuía todas as credenciais religiosas
para ser considerado justo, mas sua confiança estaria na carne. Paulo
continua: “Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por
causa de Cristo” (v. 7). Ele estava cumprindo as regras e obedecen-
do à lei, mas estava vivendo de acordo com a carne, ao acreditar
e depender de sua própria justiça para salvá-lo ou santificá-lo. Eram
coisas boas que tinham sido elevadas a um lugar central na sua vida,
por isso, ele teve que morrer para elas para conhecer a Cristo. Além
disso, ao conhecer a Cristo de maneira cada vez mais completa, Paulo
trocou os seus suados esforços morais pela justiça salvadora e santifi-
cadora de Cristo: “...para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo
justiça própria, que procede de lei, mas aquela que é mediante a fé em
Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (vv. 8b-9).
Muitas pessoas são morais, até religiosas, mas a condescendência,
rigidez, preconceito, aspereza e frieza de espírito são sinais reveladores
de que a carne adotou a religião e a usou como estratégia para não
depender de Jesus Cristo para a sua santidade. Como um empresário
ganancioso, cuja exploração dos que estão presos na pobreza, a fim
de obter lucro, está sob a escravidão da carne, assim é o fariseu. Aos
olhos de Deus, eles são iguais. Ambos são pessoas que adotaram estra-
tégias para criarem seu próprio caminho na vida, separados de Deus.
Aqui está a difícil verdade: até os cristãos podem continuar a vi-
ver de acordo com a carne. Antes da graça salvadora, a carne não
guerreia com o Espírito, porque estamos mortos em nossos pecados.
No entanto, mesmo quando o Espírito de Deus ganha vida em nós,
podemos viver de maneira carnal. Ainda podemos pegar em coisas
boas e torná-las um fim em si mesmas. Ainda podemos viver em nos-
sa própria força e poder, em vez de depender de Deus. É por isso que
precisamos da graça santificadora. Precisamos da graça de Deus para
crucificar a carne que deseja depender de nós mesmos — para matar a

85
C A MINHO • VERDADE • VIDA

nossa parte carnal que deseja administrar nossas próprias vidas, para
que o Espírito de Jesus possa assumir o controle completo.16
O aclamado professor escocês e escritor devocional Oswald
Chambers chega à essência de morrer para si mesmo, para que Cristo
seja conhecido cada vez mais:
Devo aceitar as minhas opiniões emocionais e crenças intelec-
tuais e estar disposto a transformá-las em um veredito moral con-
tra a natureza do pecado; isto é, contra qualquer reivindicação
que tenho do meu direito a mim mesmo. (...) Quando eu chego
a essa decisão moral e ajo de acordo com ela, tudo o que Cristo
realizou por mim na cruz é feito em mim. Meu compromisso
irrestrito de mim mesmo com Deus dá ao Espírito Santo a opor-
tunidade de me conceder a santidade de Jesus Cristo. (...) Minha
individualidade permanece, mas minha principal motivação
para viver e a natureza que me governa mudam radicalmente.17
A carne não precisa governar nossas vidas. A liberdade é ofereci-
da para uma vida santa. A graça santificadora é o meio e o remédio.
Então, como é que a graça santificadora realmente funciona na jorna-
da da graça? Para esse fim, temos o restante do capítulo.

Tornando-se como Jesus


Quero contar uma história sobre alguém que chamarei de George,
que não é o nome verdadeiro dele. George era membro da minha
igreja e uma pessoa muito infeliz. Ele estava sempre chateado com al-
guma coisa. Não gostava da música ou da minha pregação. Dizia que
eu não pregava sobre santidade da maneira como ele a tinha ouvi-
do quando era criança. Além disso, não gostava particularmente das

16. Oswald Chambers se refere à noção de morrer para si mesmo como identificação
com a morte de Jesus e uma “co-crucificação” voluntária. Da mesma maneira, o
cristão pode unir-se a Jesus na Sua ressurreição e partilhar uma “co-ressurreição”
para uma nova vida. A vida de ressurreição de Jesus é agora experimentada na
vida de santidade. Chambers, My Utmost for His Highest (Uhrichsville, OH:
Barbour and Company, 1935), 73.
17. Chambers, My Utmost for His Highest, 58.

86
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

pessoas, especialmente pessoas novas. Ele me escreveu cartas de sete


páginas com alguns dos comentários mais feios que possa imaginar,
não apenas atacando todos os movimentos de meu pastorado, como
também presumindo conhecer meus motivos.
Durante algum tempo, ele se queixava de que a igreja estava fo-
cada em si mesma e não estava alcançando os de fora. Então, quando
novas pessoas começaram a chegar na igreja, ele também não gostou,
porque agora, disse ele, já não nos importávamos com as pessoas que
estavam lá há anos e que pagavam o preço para que a igreja se tornas-
se estável. Ele disse que só estávamos crescendo porque roubávamos
ovelhas de outras igrejas (o que não era verdade). A questão principal
era que George não queria que as coisas mudassem.
Ele consumiu grande parte da minha energia emocional como
pastor. Ameaçou repetidamente deixar a igreja. No fundo, eu acho
que ele sabia o que todos sabiam — nenhuma outra igreja o toleraria.
Um dia liguei para ele e disse: “George, você sabe que eu o amo, mas
chega de cartas ou e-mails. Eu não consigo ouvir seu coração através
de um e-mail e você não consegue ouvir o meu. A partir de agora, se
tiver uma preocupação ou reclamação, terá de fazê-la pessoalmente.”
Parecia que as coisas tinham melhorado, pelo menos durante al-
gum tempo. Ele nunca mais me enviou outra carta, mas continuou
a espalhar negatividade na igreja. Chegou ao ponto dele ser mais
parecido com um mosquito do que com um cão de ataque — mais
irritante do que perigoso.
A parte mais triste para mim foi que ele não estava se transfor-
mando. Ele era uma pessoa irritadiça e o tinha sido desde sempre.
Não apenas na igreja. Ele não era um bom marido para a sua esposa;
os seus filhos não queriam estar com ele; e não tinha alegria na vida.
O mais surpreendente é que ele frequentou a igreja durante mais de
sessenta anos. Talvez o pior de tudo é que ninguém estava surpreen-
dido por ele não estar mudando e ninguém estava particularmente

87
C A MINHO • VERDADE • VIDA

incomodado com isso. Eles aceitaram esse fato. “Oh, George é assim
mesmo”, diziam. Ninguém esperava que ele se tornasse mais parecido
com Jesus.
Ao pensar nele, passei a acreditar que a pergunta errada a ser feita
sobre a saúde de uma igreja é: “quantas pessoas estão frequentando?”.
A melhor pergunta, ou pelo menos aquela que se move na direção
certa é: “como são essas pessoas?”18. Quando alguém se torna cristão,
o objetivo não é apenas aprender a seguir a Cristo, mas também viver,
de fato, uma vida cristã. Este é o objetivo do discipulado na jornada
da graça.

O objetivo do discipulado
Quando Paulo expôs os dons de ministério, disse que haveria
apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, mas que seu pro-
pósito unificado seria “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para
o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo”
(Efésios 4.12). Há muito a dizer sobre essas palavras em relação ao
discipulado, mas vamos começar com o conceito de “corpo”.
O corpo é uma analogia intrigante, porque sempre que o cresci-
mento espiritual é mencionado, supõe-se que algo esteja vivo. Todas
as coisas vivas crescem. Coisas mortas permanecem estáticas ou
deterioradas. Apenas coisas vivas crescem. Coisas inanimadas não
crescem. Uma peça de mobília não cresce. Uma rocha não cresce.
Apenas organismos crescem.
Um organismo pode ser: (1) uma coisa viva, como uma planta,
animal ou pessoa; ou (2) um sistema funcional de partes interdepen-
dentes que compreendem uma criatura ou coisa viva. As plantas são
organismos. As plantas não podem crescer sem luz solar, água e nu-
trientes. Elas precisam de um ecossistema para sustentar seu cresci-
mento ou morrem. Nossos corpos humanos também são organismos.

18. Bill Hull, The Disciple-Making Pastor (Old Tappan, NJ: Revell, 1988), 13.

88
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

A anatomia humana é um sistema de funcionamento de partes inter-


dependentes — um sistema operacional projetado para trabalhar em
conjunto: “o corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros”
(1 Coríntios 12.12). Quando um dos nossos membros não está fun-
cionando corretamente, independentemente do quão insignificante
possa parecer, pode desequilibrar todo o sistema e causar danos à nos-
sa saúde.
Quando Paulo diz que somos o corpo de Cristo, ele está afirmando
que a igreja também é um organismo, composto por pessoas dinâmi-
cas e vivas, que são partes interdependentes que trabalham juntas e
dependem umas das outras para a vitalidade e saúde pelo poder do
Espírito Santo: “Porque também o corpo não é um só membro, mas
muitos” (1 Coríntios 12.14). Quando as partes não estão trabalhando
em conjunto de maneira holística, ficam doentes e fracas. Por outro
lado, quando as partes estão conectadas e crescem em conjunto de
maneira nutritiva, resultam em vitalidade e saúde, uma estrutura co-
meça a se formar e é alcançado um objetivo final (telos). Construímos
o corpo, “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno co-
nhecimento do Filho de Deus, ao estado de pessoa madura, à medida
da estatura da plenitude de Cristo (Efésios 4.13, ênfase adicionada). O
objetivo da maturidade cristã é a plena estatura de Cristo, a seme-
lhança a Cristo. Não existe outro objetivo. Por isso, o objetivo é para
a igreja. Quando os nossos membros individuais se reúnem, é para se
parecerem ao corpo de Cristo. Além disso, no caso de não termos lido
na primeira vez, Paulo reitera que “cresçamos em tudo naquele que
é a cabeça, Cristo” (v. 15) do qual todo o corpo cresce para o que foi
criado para ser.
O objetivo de todo o crescimento espiritual, individual e comuni-
tário, pessoal e corporativo, é tornar-se cada vez mais semelhante a
Jesus. O ato ou processo de se tornar semelhante a Jesus é a santifica-
ção e é possível pela graça santificadora.

89
C A MINHO • VERDADE • VIDA

A santidade não é opcional


Na língua grega, a santificação está relacionada com a palavra
“santo” (hagios). A teologia wesleyana da santidade sustenta que as
boas novas do Evangelho não são apenas que um dia estaremos com
Deus quando morrermos, mas também que a oferta de vida abun-
dante no reino de Deus é para agora, exatamente onde estamos. O
plano de Deus é que Sua imagem em nós, marcada pela queda, seja
restaurada a toda a sua beleza e glória, para que nos tornemos Sua
obra-prima, refletindo a semelhança de Cristo no que pensamos, di-
zemos e fazemos. Isto se chama santificação e é isso que estamos nos
tornando. Não é opcional para um cristão em crescimento.
Quando alguém compra um veículo novo, o vendedor nos infor-
ma que existe um equipamento padrão e acessórios opcionais. Cada
veículo virá com um volante, cintos de segurança, espelhos retro-
visores, motor, e assim por diante. Esses são equipamentos padrão
— todo veículo os possui. Porém, se queremos vidros automáticos,
rodas especiais e teto solar, precisamos perguntar sobre o preço des-
ses acessórios opcionais, o que significa que nem todos os carros os
têm. A santificação não é um acessório opcional para um discípulo
de Jesus. É um equipamento padrão para todos os modelos. Tornar-
se como Jesus é esperado porque o crescimento não é uma opção.
Estamos sempre crescendo em direção a algo — sempre em processo
de formação espiritual.
Mais uma vez, Paulo afirma essa formação em Romanos 12 quan-
do diz: “E não vivam conforme os padrões deste mundo, mas deixem
que Deus os transforme pela renovação da mente, para que possam
experimentar qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”
(v. 2). Conformado ou transformado — essas são nossas únicas duas
alternativas. Se não estamos sendo transformados (transformados de
dentro para fora) pelo poder renovador de Deus, então, estamos sendo
conformados (formados e moldados) por forças opostas a Deus que

90
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

estão à solta no mundo. A questão não é se você será formado espi-


ritualmente; a questão é o que irá formar você? Se Deus não está nos
formando, há um inimigo espiritual — um adversário, o maligno —
que fica perfeitamente feliz em configurar nossas vidas.
Simplificando, o mundo separado de Deus deforma e malforma
as pessoas. Deus reforma e transforma. É por isso que a santificação
— tornar-se como Jesus — é tão importante. Poucas palavras resu-
mem melhor a vontade de Deus para a vida humana do que estas
das Escrituras: “Pois a vontade de Deus é a santificação de vocês”
(1 Tessalonicenses 4.3); e “Procurem viver em paz com todos e bus-
quem a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus
12.14). A ordem de buscar a paz e a santidade implica ação em vez
de passividade. O crescimento espiritual de uma pessoa é chamado
de santificação ou santidade. A santificação inicial e a inteira santi-
ficação não são a mesma coisa, mas o objetivo de toda a santificação
é tornar-se como Jesus. Esta é a vontade de Deus para a vida de cada
cristão, porque, se não crescermos “em tudo naquele que é a cabeça,
Cristo”, estaremos sendo formados por algo que não é o amor santo
(Efésios 4.15).

Uma equação para o crescimento espiritual


O discipulado não é uma opção. A maioria dos cristãos não argu-
mentaria sobre esse ponto. A verdadeira questão é: como esse cresci-
mento acontece? Em seu livro Rethinking the Church [Repensando a
Igreja], James Emery White explica o que muitas pessoas acreditam
sobre o processo de discipulado. A fórmula que ele oferece é dada na
forma de uma equação matemática:

Salvação + Tempo + Aplicação Individual = Mudança de Vida

A fórmula se desenvolve com base em quatro suposições: (1) a


mudança de vida acontece na salvação; (2) continua a ocorrer natu-
ralmente ao longo do tempo; (3) é alcançada em grande parte por um

91
C A MINHO • VERDADE • VIDA

ato da vontade; e (4) é melhor alcançada sozinho.19 Vamos examinar


atentamente a hipótese proposta.
Primeiro, “salvação”. A salvação é uma transformação tão radical
de nosso ser (“nascer de novo”) que há uma mudança imediata do
coração que resulta em uma conversão milagrosa dos desejos, hábi-
tos, atitudes e caráter. Os cristãos nascem, não são feitos. Como a
salvação muda o estado de nosso relacionamento com Deus, altera o
nosso destino eterno e introduz o poder e a obra do Espírito Santo em
nossas vidas, é esperado um crescimento imediato e substancial. Essa
é a suposição da salvação.
Segundo, “tempo”. Embora o processo de transformação ocorra
na conversão, é óbvio que uma pessoa não cresce totalmente ao tor-
nar-se cristã. Ainda existem questões de resistência e egoísmo que
precisam de ser tratadas, diz White, mas são coisas que levam tem-
po.20 Portanto, a fórmula diz que um cristão de cinco anos terá cinco
anos de maturidade espiritual e um cristão de dez anos terá dez anos
de maturidade, e assim por diante. A fé não deixa de crescer com o
tempo; portanto, tudo o que precisamos fazer é ler a Bíblia, frequentar
a igreja o máximo possível, e o fruto do Espírito vai se multiplicar e
nos tornaremos mais parecidos com Jesus. Essa é a suposição sobre o
tempo.
Terceiro, “aplicação individual”. Isso tem a ver com a força de
vontade da pessoa. A ideia é que o que não acontecer naturalmente
ao longo do tempo, será complementado pela determinação e pelo
esforço humano. Tudo que uma pessoa deve fazer é decidir viver e agir
de uma certa maneira (e ter um pouco de perseverança) — porque
a vida cristã é sustentada por atos da vontade. Um tempo suficiente
mais a nossa força de vontade produzirá o fruto do Espírito. Essa é a
suposição da aplicação individual.

19. James Emery White, Rethinking the Church: A Challenge to Creative Redesign in an
Age of Transition (Grand Rapids: Baker Books, 1997), 55.
20. White, Rethinking the Church, 56.

92
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

Finalmente, “melhor alcançada sozinho”. A suposição final da


equação do discipulado é a independência, ou que um relaciona-
mento pessoal com Jesus Cristo é equivalente a um relacionamento
privado.21
A equação continua, mas raramente nos preocupamos em pergun-
tar se essas suposições são válidas. É assim que o discipulado aconte-
ce? Começamos automaticamente a crescer em nossa vida espiritual
após a salvação? Quando alguém se torna cristão, há uma mudança
imediata e profunda de hábitos, atitudes e transformação de caráter?
Os cristãos crescem ao longo do tempo e apenas pela força de vonta-
de? Como nosso relacionamento com Deus é pessoal, é melhor que os
discípulos de Jesus trabalhem sozinhos? Se essas suposições estiverem
corretas, deve haver uma grande evidência disso na igreja. Se são
verdadeiras, observa White, então, simplesmente trabalhar a equa-
ção deve oferecer consistentemente os mesmos resultados: cristãos
individuais e o corpo de Cristo se tornam cada vez mais parecidos
com Jesus em sua forma de pensar, falar e agir.22 No entanto, existem
razões importantes pelas quais a fórmula não está completa.
Para começar, os discípulos de Jesus tanto nascem como são cria-
dos. A graça salvadora muda nosso estado relacional com Deus, nosso
destino eterno e introduz o poder e a obra do Espírito Santo em nos-
sas vidas. No entanto, como vemos nos ensinos do Novo Testamento,
os novos cristãos ainda não têm um caráter maduro. Ser cristão não
se traduz automaticamente em tornar-se como Cristo. É necessário
desenvolvimento. A virtude cresce ao longo do tempo através de prá-
ticas específicas.23 À luz dessas realidades, consideremos uma estru-

21. A ideia de um relacionamento pessoal com Cristo ser um sinônimo de um


relacionamento privado com Jesus é muito mais prevalente na sociedade ocidental
do que noutras partes do mundo. O individualismo é considerado uma virtude
cultural nos EUA.
22. White, Rethinking the Church, 57.
23. N. T. Wright define o conceito cristão de virtude como a transformação do
carácter. Wright, After You Believe: Why Christian Character Matters (New

93
C A MINHO • VERDADE • VIDA

tura mais bíblica de como o crescimento espiritual ocorre através da


graça santificadora.
1. O crescimento espiritual pode começar na salvação, mas con-
tinuamos a crescer na graça ao longo de toda a vida. Existe diferen-
ça entre santificação e inteira santificação. O debate parece sempre
ser se a santificação é instantânea ou gradual. Existe um momento
crítico ou é um processo? A resposta é ambos.24 A graça santificado-
ra começa no momento que experimentamos a graça salvadora. Os
teólogos referem-se a ela como “santificação inicial”, que é seguida
pelo crescimento espiritual na graça, até que, em um momento de
total consagração e completa rendição de nossa parte, Deus purifica e
limpa o coração. Esta é uma experiência referida como inteira santifi-
cação, ou “perfeição cristã”.25 Contudo, mesmo após esse momento de

York: HarperCollins Publishers, 2010). Será dedicado muito mais tempo ao


entendimento da virtude no capítulo 5, “Graça Sustentadora”.
24. O assunto da crise ou processo, instantâneo ou progressivo, na experiência
da inteira santificação, tem sido, historicamente, um tópico de grande debate
nos círculos wesleyanos de santidade. O próprio John Wesley enfatizou
consistentemente a necessidade de ambos, e os primeiros líderes nazarenos eram
geralmente cuidadosos em sugerir um equilíbrio. O superintendente geral R.
T. Williams declarou o seguinte à Assembleia Geral da Igreja do Nazareno de
1928: “A igreja deve enfatizar tanto a crise como o processo na religião. Durante
muitos anos, o povo de santidade sentiu que o trabalho para o qual foi chamado
terminava no altar, quando as multidões que se apresentavam recebiam as bênçãos
da regeneração e da santificação, mas ficou evidente que o nosso trabalho apenas
começava aí. A Igreja do Nazareno combina esses dois grandes princípios, a saber,
a crise e o processo. Liderar [o povo] a Deus e a edificação do corpo de Cristo
na salvação inicial e no desenvolvimento do caráter cristão”. General Assembly
Journal, 1928, referenced in Dunning, Pursuing the Divine Image, Kindle Location
2176, footnote 26.
25. A perfeição cristã é uma frase bíblica e é frequentemente usada ao longo da
história cristã. Os pais e mães da igreja primitiva equiparavam a perfeição à ideia
de theosis, ou deificação: participação na natureza divina. No entanto, o conceito
moderno de perfeição é entendido de maneira diferente. Nunca foi ensinada com
precisão como uma “perfeição sem pecado”, ou, como Thomas Noble escreve, “a
ideia de que, nesta vida, os cristãos poderiam alcançar esse estado final absoluto
de perfeição, onde eram sem pecado e perfeitamente santos”. T. A. Noble, Holy
Trinity, Holy People: The Historic Doctrine of Christian Perfecting (Eugene, OR:
Cascade Books, 2013), 22. Para evitar a confusão da interpretação moderna e

94
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

plena consagração a Deus, continuamos crescendo na graça e nunca


paramos de crescer enquanto vivermos.
Os Artigos de Fé da Igreja do Nazareno declaram: “Cremos que há
uma distinção bem definida entre um coração puro e um caráter ma-
duro. O primeiro é obtido instantaneamente, como resultado da in-
teira santificação; o último resulta do crescimento na graça.” Quando
respondemos com fé à graça preveniente, recebemos a graça salvado-
ra. Há uma reorientação radical de nossas prioridades, uma recons-
tituição de nossos desejos e o poder e a obra do Espírito Santo são
liberados em nossas vidas. Em vez da libertação instantânea de todos
os hábitos prejudiciais, falhas de caráter ou más disposições que já
possuímos, Deus continua trabalhando em nós para nos moldar para
aquilo que Ele deseja que sejamos. O objetivo do discipulado cristão é
tornar-se cada vez mais parecido com Jesus. É por isso que Paulo pen-
sa que, assim como não esperamos que os bebês permaneçam bebês,
assim como queremos que eles cresçam e se tornem adultos plena-
mente funcionais, também devemos esperar que os cristãos também
não permaneçam bebês espirituais. O crescimento espiritual começa
na salvação, mas continuamos a crescer na graça durante toda a vida.
Daqui a um ano, devemos parecer, agir e pensar mais como Cristo do
que no dia de hoje, ao progredirmos pela graça santificadora.
2. O crescimento espiritual envolve mais do que apenas tempo.
A maioria de meus amigos não sabe, ou se esqueceram, que eu sei
tocar piano. Toco piano há mais de quarenta anos. Quando tinha dez
anos, praticava quase todos os dias (com muita supervisão da minha
mãe, que priorizava a prática de piano em vez do futebol). Agora toco
com muito menos frequência, cerca de uma vez por ano. Se alguém
me perguntasse há quanto tempo toco piano, estaria sendo sincero

destacar os aspectos dinâmicos do crescimento na graça, Noble argumenta: “Dado


esse conceito dinâmico de perfeição de movimento, em vez da chegada final, pode
ser preferível expressar este significado da palavra grega, não usando a palavra
‘perfeição’, mas traduzindo-a para ‘aperfeiçoamento’.” Ibid., 24.

95
C A MINHO • VERDADE • VIDA

se dissesse há quatro décadas, mas na verdade, não passei essas qua-


tro décadas praticando intencionalmente. Na igreja, há crianças que
tocam piano há alguns anos e tocam melhor do que eu, mesmo que,
tecnicamente, eu toque há mais tempo.
Com nossas vidas espirituais não é diferente. O simples fato de
ser exposto à informações não significa que as pessoas as absorvam,
entendam, aceitem e vivam. Embora seja verdade que o crescimento
espiritual leva tempo, não é verdade que a graça santificadora seja,
inerentemente, um produto do tempo, ou até um subproduto da ex-
posição à cultura cristã.26 As igrejas estão cheias de pessoas que pas-
saram anos sendo cristãs, mas suas vidas refletem muito pouco do
Espírito de Jesus. São críticas, irritadiças, cínicas, negativas e egoístas.
Muitas delas são como o George de uma de minhas antigas congre-
gações: elas não estão se tornando cada vez mais parecidas com Jesus
todos os anos. A razão é muito simples.
3. O crescimento espiritual não é tanto uma questão de tempo,
mas é uma cooperação com Deus e um treinamento intencional.
O escritor de Hebreus diz: “A esta altura, já deveriam ensinar outras
pessoas, e no entanto precisam que alguém lhes ensine novamente
os conceitos mais básicos da palavra de Deus. Ainda precisam de
leite, e não podem ingerir alimento sólido. Quem se alimenta de leite
ainda é criança e não sabe o que é justo. O alimento sólido é para os
adultos que, pela prática constante, são capazes de distinguir entre
certo e errado. Portanto, deixemos de lado os ensinamentos básicos
a respeito de Cristo e sigamos em frente, alcançando a maturidade”
(Hebreus 5.12–6.1, NVT, ênfase adicionada).27 Com base na expres-

26. White, Rethinking the Church, 59.


27. Wesley gostava de descrever a santificação como perfeição cristã, até mesmo
intitulando o seu mais famoso catecismo doutrinário, A Plain Account of
Christian Perfection. Ao argumentar que a experiência do amor perfeito, ou “Deus
aperfeiçoando em amor”, pode ser realizada nesta vida, ele aponta: “(1) existe
algo como perfeição; pois ela é repetidamente mencionada nas Escrituras. (2)
Não acontece tão cedo quanto a justificação; pois as pessoas justificadas devem

96
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

são “a esta altura”, podemos presumir que essa parte das Escrituras foi
escrita para crentes que já eram cristãos há algum tempo. Em vez de
se tornarem professores da jornada da graça através de suas palavras
e exemplo, eles ainda estavam comendo comida de bebê. O cami-
nho para seguirem uma dieta adulta e tornarem-se cristãos maduros
é através do treinamento em retidão — treinamento que os ajude a
reconhecer a diferença entre o certo e o errado e a distinguir entre
o bom e o melhor. Isso é estar caminhando em direção à perfeição
cristã, ou uma maturidade em Cristo que permite que os crentes ar-
rependidos se desviem dos aspectos da carne que ainda permanecem
no coração.28
A frase “pela prática constante, são capazes” nas Escrituras de
Hebreus é intrigante. Implica esforço intencional e implica que os
cristãos participem do próprio crescimento espiritual em Cristo.
Outros exemplos são abundantes: “Equipe-se! Edifique a sua fé!
Corra! Guarde o seu coração!” Todos estes exemplos são mandamen-
tos bíblicos para desenvolver, no mundo, o que Deus está fazendo em
nós. Este treinamento é realizado por práticas específicas — ou meios
da graça — que John Wesley chamou de obras de piedade e obras

‘prosseguir até à perfeição’. (Hebreus 6.1). (3) Não acontece tão tarde como a
morte; pois Paulo fala de homens vivos que eram perfeitos (Filipenses 3.15)”.
Wesley, A Plain Account of Christian Perfection, Annotated, eds. Randy L. Maddox
and Paul W. Chilcote (Kansas City, MO: Beacon Hill Press of Kansas City, 2015).
28. John Wesley, num sermão intitulado “The Repentance of Believers”
[O Arrependimento dos Crentes], enfatizou a contínua necessidade de
arrependimento para os cristãos que buscam a vida santa. Num artigo apresentado
em uma conferência de santidade, um dos meus professores de teologia do
seminário, Rob L. Staples, disse: “A inteira santificação pode ser entendida como
um compromisso total do nosso destino da theosis [renovação à imagem de Deus]
com um contínuo arrependimento por, e resultante limpeza de qualquer coisa que
impeça ou dilua esse compromisso, ou o que Wesley chamou de ‘arrependimento
dos crentes’ que disse ser ‘necessário em todas as etapas subsequentes do nosso
percurso cristão’”. Staples, “Things Shakable and Things Unshakable in Holiness
Theology,” Revisioning Holiness Conference, Northwest Nazarene University,
February 9, 2007.

97
C A MINHO • VERDADE • VIDA

de misericórdia.29 As obras de piedade incluem os meios instituídos


da graça, como oração, ler a Bíblia, jejuar, participar da Santa Ceia,
batismo e passar tempo com outros cristãos. As obras de misericórdia
também são um meio da graça enquanto se presta serviço a outras
pessoas, como por exemplo “alimentar os famintos, vestir os nus, abri-
gar o estrangeiro, visitar os que estão na prisão ou doentes e instruir
os desinformados”.30 Praticamos os meios da graça, assim como os re-
cebemos como presentes; a nossa participação é necessária.31
No entanto, devemos ter cuidado para não confundir participa-
ção com controle. Não controlamos o nosso crescimento espiritual,
nem o causamos. Há algumas coisas que estão sob nosso controle.
Podemos fazer um telefonema, dirigir um carro ou fazer uma tare-
fa. Há também coisas sobre as quais não podemos fazer nada. Não
podemos mudar as condições climáticas. Não podemos mudar nossa
genética. Existem coisas que podemos controlar e outras que não po-
demos — ambas existem.
No entanto, há também uma terceira categoria: as que não con-
trolamos, mas com as quais podemos cooperar. Pense em dormir. Se
você tem filhos, pode estar familiarizado com a necessidade de ter
que dizer a eles para irem dormir. Às vezes, eles respondem: “Não
consigo!” Eles estão parcialmente certos. Não conseguem ir dormir
da mesma maneira como se faz um telefonema. Como pais, assegu-
ramos aos nossos filhos que eles podem fazer algumas coisas para ser

29. “Por ‘meios da graça’ entendo sinais externos, palavras ou ações, ordenadas por
Deus e designadas para esse fim, como os meios comuns pelos quais Ele pode
transmitir aos homens a graça preveniente, justificadora ou santificadora.” Wesley,
“Sermon 16: The Means of Grace,” II.1, http://wesley.nnu.edu/john-wesley/the-
sermons-of-john-wesley-1872-edition/sermon-16-the-means-of-grace/. Os meios de
graça são também às vezes chamados de disciplinas espirituais.
30. Joel B. Green and William H. Willimon, eds., Wesley Study Bible New Revised
Standard Version (Nashville: Abingdon Press, 2009), 1488, footnote “Going on to
Perfection”.
31. Para obter mais informações sobre os meios da graça, consulte o capítulo 5, “Graça
Sustentadora”.

98
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

mais fácil dormir. Eles podem se preparar para tal. Podem deitar na
cama, apagar as luzes, fechar os olhos, ouvir música suave e o sono
acabará chegando! Eles não podem controlar o sono, mas não ficam
desamparados. Eles podem estar disponíveis para dormir e deixar que
o sono os invada. O mesmo se aplica ao crescimento espiritual. Não
podemos nos santificar ou nos tornar como Jesus. O Santo é que nos
torna santos. Deus é o nosso santificador. No entanto, tal como em
nossa salvação, é necessário haver cooperação. Nós não nos salva-
mos, mas devemos dizer sim à graça salvadora.
O eminente professor de discipulado Dallas Willard disse: “A gra-
ça não se opõe ao esforço; é contrária a ganhar”.32 Graça é mais do
que regeneração, justificação e perdão. A graça é necessária para toda
a jornada do discipulado. Mesmo assim, talvez o grande perigo de
nosso tempo não seja pensar que estamos fazendo muito em nossa
jornada de discipulado, mas supor que não devemos fazer nada. A
passividade pode ser tão perigosa quanto o legalismo. Quando Paulo
diz para tirar o velho eu e vestir o novo, certamente quer dizer que
devemos fazê-lo com a ajuda de Deus. Paulo é enfático em relação a
isso: “Exercite-se, pessoalmente, na piedade” (1 Timóteo 4.7) e no-
vamente: “Vocês não sabem que os que correm no estádio, todos, na
verdade, correm, mas um só leva o prêmio? Corram de tal maneira
que ganhem o prêmio” (1 Coríntios 9.24).
Graça significa que Deus fez tudo o que não poderíamos fazer
por nós mesmos, mas isso não significa que agora nos tornamos con-
sumidores que nada contribuem para o relacionamento. Esta ideia
equivocada explica a abordagem do discipulado sem ações de muitos
cristãos e, como resultado, a falta de crescimento e maturidade espiri-
tual. Assim, Dallas Willard também disse, “sabemos, como Jesus diz:
‘porque sem mim vocês não podem fazer nada’ (João 15.5) (...) mas é

32. Dallas Willard, The Great Omission: Reclaiming Jesus’s Essential Teachings on
Discipleship (New York: HarperCollins, 2006), 61.

99
C A MINHO • VERDADE • VIDA

melhor acreditarmos que o contrário deste versículo diz: ‘Se não fize-
rem nada, será sem mim’. E esta é a parte que temos mais dificuldade
em ouvir”.33 Cooperamos com a graça ativa de Deus reordenando as
nossas vidas em torno das atividades, disciplinas e práticas que foram
modeladas por Jesus Cristo. Além disso, participamos delas não para
ganhar nossa santificação, mas para alcançar, por meio do treinamen-
to o que não podemos fazer meramente “tentando com mais afinco”.
4. O crescimento espiritual é um esforço comunitário. Os lei-
tores ocidentais tendem a se surpreender com a ênfase comunitária
da descrição de Paulo da jornada da graça, embora muitas culturas
não ocidentais já saibam que não podemos fazer a jornada sozinhos.
Lendo novamente a partir de seu principal tratado teológico em re-
lação à igreja: “Ele faz que todo o corpo se encaixe perfeitamente. E
cada parte, ao cumprir sua função específica, ajuda as demais a cres-
cer, para que todo o corpo se desenvolva e seja saudável em amor”(E-
fésios 4.16, NVT, ênfase adicionada). Por mais inesperados que estes
versículos possam ser para as culturas acostumadas a curvar-se no
altar do individualismo, incluindo a espiritualidade individualista,
Paulo não pede desculpas pelo fato de que o nosso discipulado nunca
teve a intenção de ser um ato solo. Cada “parte” (individual) do corpo
é importante e tem um trabalho único a ser feito, mas todo o trabalho
individual tem um propósito combinado: ajudar as outras partes a
crescerem.
É sinergia sagrada. “Sinergia” vem da palavra grega synergos, que
significa “trabalhar juntos”. Já foi dito que o trabalho de um todo é
maior do que a soma individual de suas partes ou que a combinação
das partes individuais produz um impacto maior do que se poderia
fazer sozinho. A sinergia é encontrada na natureza, nos negócios, nos

33. Willard, “Spiritual Formation: What It Is, and How It Is Done,” n.d., http:// www.
dwillard.org/articles/individual/spiritual-formation-what-it-is-and-how-it-is-done.

100
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

esportes e nos relacionamentos familiares. É o poder da interdepen-


dência, reciprocidade e mutualidade.34
Um exemplo popular da mutualidade é a relação entre as zebras
e os pássaros muito pequenos chamados de pica-boi. Os pica-bois co-
mem os carrapatos nas costas das zebras, agindo como uma espécie
de controle de pragas; eles também emitem um som sibilante quando
estão assustados, servindo como um sistema de alarme para as zebras
quando os predadores estão por perto. As zebras fornecem bastante
comida para os pássaros; e eles fornecem às zebras uma boa higiene e
cuidados de saúde. Estes dois animais são completamente diferentes
em muitos aspectos, mas cada um precisa do outro para prosperar.
A sinergia também é a medida de um corpo saudável que está
crescendo e está cheio do amor perfeito (o que o grego chama de
ágape). A prestação de contas, encorajamento, admoestação, oração
intercessória e apoio são impossíveis longe de outras pessoas. Nós nos
tornamos um povo santo ao estarmos juntos. Ouvimos mais clara-
mente a voz de Deus em comunidade. O amor é superficial até que
seja vivido no contexto de relacionamentos reais. A jornada da graça
é um evento de equipe!35
Então, aqui estão elas, lado a lado. Duas equações distintas para o
crescimento no discipulado.
A equação popular:

Salvação + Tempo + Força de Vontade Individual =


Crescimento Espiritual

34. Para obter mais informações sobre o entendimento bíblico da interdependência,


ver o ensino de Paulo no Novo Testamento sobre o corpo humano como uma
metáfora para a igreja (1 Coríntios 12, Efésios 4). Para obter mais informações
sobre a mutualidade, ver os seus ensinos sobre o casamento cristão (Efésios 5).
35. White, Rethinking the Church, 61. Ver também o capítulo 5 e a ênfase na
responsabilidade cristã e na graça sustentadora.

101
C A MINHO • VERDADE • VIDA

A equação da santidade:

Graça + Cooperação com Deus + Comunidade cristã =


Semelhança a Cristo

Os cristãos são chamados a crescer na graça, que é outra maneira


de dizer que devemos crescer à semelhança de Jesus. Recebemos a
nova vida de Cristo para que possamos crescer n’Ele. Deus refaz e re-
modela. Isto é graça santificadora. Não conheço ninguém que o diga
de forma mais caprichosa do que C. S. Lewis:
Imagine que você é uma casa viva. Deus entra para reconstruir
essa casa. No início, talvez você consiga perceber o que Ele está
fazendo. Ele está melhorando o escoamento de águas e resolven-
do as infiltrações no telhado e assim por diante; você já sabia
que essas coisas precisavam ser feitas e por isso não fica surpreso.
Mas agora Ele começa a quebrar paredes de uma maneira que
dói terrivelmente e não parece fazer nenhum sentido. O que Ele
está fazendo? A explicação é que Ele está construindo uma casa
muito diferente daquela que você imaginou — Ele está colocan-
do uma nova ala aqui, um andar extra ali, erguendo pilares e
construindo pátios. Você pensou que estava sendo transformado
em um pequeno chalé, mas Ele está construindo um palácio. Ele
pretende morar nele.36
Deus não apenas nos salva, mas também nos transforma. Ele nos
aceita onde estamos, mas nos ama o suficiente para não nos deixar
lá. Ele reimagina, refaz e remodela. Quando nos oferecemos em com-
pleta consagração e total rendição a Deus Pai, o Deus Espírito Santo
limpa e purifica nossos corações, nos refazendo à imagem do Deus
Filho. Tornamo-nos semelhantes a Cristo em nossos pensamentos,
palavras e ações. A nossa casa está sob uma nova administração.

36. C. S. Lewis, Mere Christianity (New York: Touchstone, 1996), 175-76.

102
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

“Santidade significa que não há uma área de sua vida que este-
ja fora do controle de Jesus Cristo”.37 Tiramos as mãos do volante
e deixamos Jesus assumir o comando e dar as ordens. Dizemos: “Tu
és o meu Salvador (salvação); agora dobro os meus joelhos e faço de
Ti o meu Senhor (santificação)”. Somos separados para um propó-
sito santo, e o perfeito amor de Deus começa a fluir através de nós.
Começamos a amar a Deus verdadeiramente com todo nosso cora-
ção, mente e força, e nosso próximo como a nós mesmos.

Inteira santificação definida


Algumas últimas palavras sobre o que se entende por inteira san-
tificação. “Inteiro” não se refere a uma obra completa de Deus em
nós, mas em um sentido muito real, é ser completo. Deus trabalha
continuamente dentro de nós e sobre nós; portanto, nesse sentido,
a obra-prima da nossa vida continua até à ressurreição final de todas
as coisas, incluindo a nossa glorificação.38 Somos inteiros e “integral-
mente completos” pela graça santificadora, como podemos estar nesse
momento. Nossas vidas são marcadas pelo requintado esplendor do
shalom. Shalom é o que Deus está concebendo na criação e moldando
nas nossas vidas. Shalom certamente significa paz, mas também signi-
fica totalidade, integridade, unidade e todas as partes trabalhando em
harmonia com o objetivo (telos) para o qual fomos criados.

37. A primeira vez que ouvi Dennis Kinlaw usando essa expressão foi num sermão
da capela do seminário de 1991. Foi também a primeira vez que me lembro
de entender que o controle de Deus sobre a minha vida não era um desejo de
manipulação da Sua parte, mas um desejo de intimidade. Na minha opinião,
Kinlaw foi um dos melhores pregadores de santidade do final do século XX e início
do século XXI, até à sua morte em 2017.
38. A “glorificação” refere-se ao estado de um crente após a morte e a ressurreição
final de todas as coisas. “Pela graça de Deus, seremos finalmente glorificados
— ressuscitados com Cristo quando Ele voltar e transformados à Sua completa
semelhança, para desfrutar da Sua glória para sempre”. Greathouse and Dunning,
An Introduction to Wesleyan Theology, 54. Além disso, Diane LeClerc refere-se à
glorificação como a santificação final em “que uma pessoa é removida da própria
presença do pecado”. LeClerc, Discovering Christian Holiness, 318.

103
C A MINHO • VERDADE • VIDA

A inteira santificação, como já discutimos, é uma vida de persis-


tente renúncia à existência egocêntrica (carne) e a submissão contí-
nua de obediência não resistente aos caminhos e à vontade de Deus.
Como Jesus disse com grande precisão: “Se alguém quer vir após mim
[discípulos], negue a si mesmo [carne], dia a dia tome a sua cruz e
siga-me” (Lucas 9.23).39 O resultado de tal vida centralizada é a se-
melhança a Cristo que se manifesta no perfeito amor a Deus e ao
próximo.
O décimo Artigo de Fé da Igreja do Nazareno articula a santifi-
cação assim:
Cremos que a santificação é a obra de Deus, que transforma os
crentes, tornando-os semelhantes a Cristo. Ela é efetuada pela
graça de Deus, através do Espírito Santo na santificação inicial,
ou regeneração (simultânea com a justificação), na inteira santi-
ficação, na obra contínua de aperfeiçoamento feita pelo Espírito
Santo e culminando na glorificação. Na glorificação somos ple-
namente conformados à imagem do Filho.

Cremos que a inteira santificação é o ato de Deus, subsequente


à regeneração, pelo qual os crentes são libertados do pecado ori-
ginal, ou depravação, e levados a um estado de inteira devoção a
Deus e à santa obediência do amor tornado perfeito. É operada
pelo batismo com, ou enchimento do Espírito Santo e envolve,
numa só experiência, a purificação do coração do pecado e a
presença íntima e permanente do Espírito Santo, capacitando
o(a) crente para a vida e o serviço.

39. Em referência à ideia de que a inteira santificação implica toda uma vida de
negar a si mesmo (carne) e levar a cruz, “J. O. McClurkan, líder de um dos ramos
do sul do início do Movimento de Santidade, referia-se a este último aspecto da
vida santificada como ‘uma morte mais profunda do eu’, que na realidade deveria
acontecer durante toda a vida cristã. Por experiência, ele reconheceu que nem
toda a vida podia ser comprimida num momento de experiência”. Dunning,
Pursuing the Divine Image, Kindle Location 853. Para obter uma discussão mais
aprofundada sobre isto, consulte William J. Strickland and H. Ray Dunning, J.
O. McClurkan: His Life, His Theology, and Selections from His Writings (Nashville:
Trevecca Press, 1998).

104
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

A inteira santificação é provida pelo sangue de Jesus, realiza-


da instantaneamente pela graça mediante a fé, precedida pela
inteira consagração; e desta obra e estado de graça o Espírito
Santo testifica.

Esta experiência é também conhecida por vários termos que re-


presentam diferentes aspectos dela, tais como: “perfeição cristã,”
“perfeito amor,” “pureza de coração,” “batismo com, ou enchi-
mento do Espírito Santo,” “plenitude da bênção,” e “santidade
cristã.” 10.1. Cremos que há uma distinção bem definida entre
um coração puro e um caráter maduro. O primeiro é obtido ins-
tantaneamente, como resultado da inteira santificação; o último
resulta do crescimento na graça.

Cremos que a graça da inteira santificação inclui o impulso di-


vino para crescer na graça como um discípulo semelhantes de
Cristo. Contudo, este impulso deve ser conscientemente cultiva-
do; e deve ser dada cuidadosa atenção aos requisitos e processos
de desenvolvimento espiritual e avanço no caráter e personali-
dade semelhantes a Cristo. Sem tal esforço intencional, o tes-
temunho do(a) crente pode ser enfraquecido e a própria graça
comprometida e mesmo perdida.

Pela participação nos meios da graça, nomeadamente a comu-


nhão, as disciplinas e os sacramentos da Igreja, os crentes cres-
cem na graça e no pleno amor a Deus e ao próximo. 40
Devemos terminar nossa discussão sobre a graça santificadora per-
guntando: Com que propósito? Por que essa santidade desejada é
necessária? Qual será a evidência de uma vida marcada por tal seme-
lhança com Cristo?
Voltemos ao amor perfeito. A inteira santificação não é o piná-
culo da moralidade. É a forma mais elevada de amor abnegado. A

40. Igreja do Nazareno, Manual: 2017-2021, “X. Santidade Cristã e Inteira


Santificação”.

105
C A MINHO • VERDADE • VIDA

inteira santificação é o amor santo completo em nós. É bem conhe-


cido que Wesley definiu a inteira santificação como amor perfeito.
Era o conteúdo singular de seus ensinos sobre a santidade. Mildred
Bangs Wynkoop o afirma: “As discussões de Wesley sobre qualquer
segmento da verdade cristã o levaram rapidamente ao amor. ‘Deus é
amor’. Cada aspecto da expiação é uma expressão de amor; santidade
é amor; o significado de ‘religião’ é amor. A perfeição cristã é a perfei-
ção do amor. Cada passo de Deus em direção ao homem e a resposta
do homem, passo a passo, são aspectos do amor”.41 Para esclarecer a
questão, Wynkoop acrescenta: “Dizer que a santidade cristã é nossa
raison d’être [razão de ser] significa dizer que estamos comprometidos
com tudo o que o amor é, e isso é realmente importante”.42
Em suma, o amor é o aspecto mais importante. Qualquer coisa
menos do que o amor não atinge o objetivo máximo estabelecido pela
“razão de ser” de uma vida santa. Qualquer compreensão da inteira
santificação desprovida de amor é dura, legalista, crítica e profana.
Ágape (amor cristão) é o amor que mantém todos os outros amores
naturais em sua ordem devida.43 O ágape guia, interpreta e controla
todos os outros desejos. Por sermos incentivados a aumentar em ága-
pe, entendemos que ele é dado e aprimorado; é um dom e cresce em

41. Mildred Bangs Wynkoop, A Theology of Love: The Dynamic of Wesleyanism


(Kansas City, MO: Beacon Hill Press of Kansas City, 1972), 36.
42. Wynkoop, A Theology of Love, 36.
43. Para obter um resumo esclarecedor dos quatro termos gregos para amor — eros,
storge, philia e agape — recomendo a curta exegese de Wynkoop sob o título
“Love and Fellowship”. Ela argumenta que exceto o ágape, todos os outros termos
são amores naturais, exigindo pouco esforço. Ágape não é apenas uma dimensão
diferente do amor, mas é também uma qualidade pela qual se ordena a vida,
somente possibilitada pela plenitude de Cristo. “Portanto, o amor que chamamos
de amor cristão não substitui os outros amores, nem é um acréscimo a esses
amores, mas é uma qualidade da pessoa como um todo, pois está centralizada em
Cristo. A auto-orientação distorcida, que falha todos os outros relacionamentos
porque os utiliza para vantagem pessoal (geralmente das maneiras mais sutis e
desonestas), é trazida à sua plenitude pela presença permanente do Espírito Santo.
Neste relacionamento, todos os outros relacionamentos da vida são aprimorados,
embelezados e santificados”. Wynkoop, A Theology of Love, 38.

106
A GR AÇ A SANTIFIC ADOR A

nós pela presença permanente do Espírito Santo. É necessário esfor-


ço, mas nos é dado graça.
Somos atraídos pelo amor santo através da graça que busca (pre-
veniente). Somos capturados pelo amor santo através da graça salva-
dora. Somos purificados e separados pelo amor santo através da graça
santificadora. Crescemos na graça à medida que abundamos no amor
santo. É assim que experimentamos a plenitude da vida em Cristo.

107


5
A GRAÇA
SUSTENTADORA
E ao Deus que é poderoso para evitar que vocês tropecem
e que pode apresentá-los irrepreensíveis diante da sua
glória, com grande alegria, a este que é o único Deus,
nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, sejam
a glória, a majestade, o poder e a autoridade, antes de
todas as eras, agora, e por toda a eternidade. Amém!
— Judas 1.24–25

Chega um momento na vida de cada cristão quando algo co-


meça a surgir para eles. Às vezes acontece imediatamente, às vezes
acontece mais adiante na jornada da graça: aspectos de minha vida
permanecem sem rendição ao senhorio de Cristo. Há cômodos em
minha casa que está sendo reformada (para voltar à ilustração de C.
S. Lewis) que permanecem fechados para a obra de Deus.
Como Deus está incansavelmente comprometido com nossa san-
tidade, tornando-nos cada vez mais semelhantes a Jesus, o Espírito
Santo começa a sondar: “Será que tudo é meu? Tudo em você per-
tence a mim? Existe alguma coisa que você esteja me escondendo?”

109
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Nossa primeira resposta pode ser: “Tudo pode ser seu, exceto
(preencher o espaço em branco). Eu dei a Ti 99% de mim. Não há
nada que eu possa guardar para mim? Espera que eu Lhe dê tudo?”1
Com amor paciente e dedicação inabalável para cumprir o objeti-
vo final (telos) do nosso discipulado, o Espírito de Jesus sussurra: “Sim,
tudo de ti. Cem por cento. Sem conter nada”.
Ser totalmente de Deus é compartilhar em tudo a vida prometida
de Deus. Quanto mais do nosso eu é entregue a Deus, maior é a paz e
a alegria. Oswald Chambers acredita que a vida eterna não é uma dá-
diva originada em Deus, mas uma dádiva pertencente a Deus. Além
disso, o poder espiritual que Jesus prometeu aos Seus discípulos após
a Sua ressurreição e em antecipação ao Pentecostes não é um dom
do Espírito Santo, mas sim o poder do Espírito Santo (Atos 1.8). O
resultado é um suprimento infinito da vida abundante que aumenta
a cada renúncia para Deus. Mais uma vez, a visão de Chambers é es-
clarecedora: “Mesmo o santo mais fraco pode experimentar o poder
da divindade do Filho de Deus, quando está disposto a ‘entregar-se’.
Mas qualquer esforço para ‘nos apegar’ ao mínimo de nosso próprio
poder só diminuirá a vida de Jesus em nós. Temos que continuar nos
entregando, e a vida de Deus nos invadirá, pouco a pouco, mas de
forma segura, penetrando em todas as partes”.2
O coração humano é o lugar do pecado e da desobediência,
mas também é o lugar da graça e da santidade. Na graça que busca,
Deus corteja nosso coração; na graça salvadora, Deus o captura; na
graça santificadora, Deus o limpa. Nossa predisposição se move do
coração de um servo para o coração de um filho. Descobrimos que
já não servimos a Deus por medo do que poderia acontecer se não

1. “Cuidado para nunca pensar: ‘Oh, isto na minha vida não importa muito’. O fato
de que não importa muito para você pode significar que importe muito para Deus.
Nada deve ser considerado um assunto trivial por um filho de Deus. Nada nas
nossas vidas é um mero detalhe insignificante para Deus”. Chambers, My Utmost
for His Highest, 76–77.
2. Chambers, My Utmost for His Highest, 74–75.

110
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

obedecêssemos; em vez disso, recebemos um coração de amor que nos


dá o desejo de obedecer. No entanto, não se engane: a reivindicação
de Cristo ao longo da jornada da graça é por nada menos do que tudo
de nós — inteiros, completos, integrais.
A santidade significa ser separado para um propósito santo e ser
tão cheio do Espírito de Jesus que nossa mentalidade, motivos e atitu-
des são semelhantes a Cristo. Negamos a nós mesmos, o que significa
que desistimos de nosso direito ao “eu”. Tomamos a nossa cruz, o que
significa que transferimos nossos direitos para Jesus. Aqui está o sur-
preendente paradoxo: ao renunciar a nosso direito ao “eu” e transferir
nossos direitos a Jesus, encontramos vida. Quando perdemos nossa
vida em Cristo, a encontramos. Aquilo que é negado a Deus está,
finalmente, perdido; aquilo que é entregue a Deus não pode ser to-
mado de volta. “Porque vocês morreram, e a vida de vocês está oculta
juntamente com Cristo, em Deus” (Colossenses 3.3). A consagração
é total.
Nossa consagração a Deus não é a fonte de nossa santificação.
Não podemos nos santificar; não nos fazemos santos. O Espírito de
Jesus é que o faz. Não basta querer ser como Jesus. O desejo não é
suficiente e a imitação tem seus limites. Precisamos ter o Espírito de
Jesus em nós, ou, como Paulo diz, Cristo deve ser formado em vós
(Gálatas 4.19).
Em muitos aspectos, os fariseus eram as melhores pessoas da épo-
ca de Jesus. Eles eram morais, puros e bons. No entanto, a bondade
deles estava localizada na modificação do comportamento e em suas
tentativas de serem santos por meio de um sistema de gerenciamen-
to dos pecados que nunca lidava com seus corações. Eles queriam
ser piedosos e levar uma vida pura, mas sua abnegação acabou por
servir aos seus próprios interesses e o fato de carregar a sua própria
cruz os tornou menos amorosos. Só se consegue administrar o exte-
rior por um certo tempo, até que o interior assume o controle. Como

111
C A MINHO • VERDADE • VIDA

mencionado anteriormente, tudo o que está em seu coração acabará


escapando. O cristão fariseu — aquele que tenta ter uma vida santa
por meio do esforço auto dirigido e da carne — sempre carecerá do
amor perfeito porque não basta querer ser como Jesus. O Espírito de
Jesus deve estar em nós. Este é o ponto crucial da santidade do cora-
ção. A graça é necessária para capacitar, habilitar e para se ter uma
vida santa.
Dallas Willard explica que a vida santa realmente requer mais
graça do que qualquer tentativa de imitar Jesus através de empreen-
dimentos auto direcionados: “Se você realmente deseja usufruir da
graça, apenas siga uma vida santa. O verdadeiro santo ‘queima’ a gra-
ça da mesma forma como um avião 747 queima o combustível na des-
colagem. Tornando-se o tipo de pessoa que, rotineiramente, faz o que
Jesus fez e disse. Você consumirá muito mais graça ao ter uma vida
santa do que ao pecar, porque cada ato sagrado que você fizer terá que
ser confirmado pela graça de Deus. E essa confirmação é totalmente
o favor imerecido de Deus em ação”.3 Devemos ter a confirmação
incessante da graça sustentadora de Deus — a graça que nos impede
de cair (Judas 1.24).
Dito isto, a graça sustentadora não nega a necessidade de nossa
participação. No capítulo 4, vemos que a graça significa que Deus
fez tudo o que não poderíamos fazer por nós mesmos, mas isso não
significa que agora nos tornamos consumidores que nada contribuem
para o relacionamento. Cooperamos com a graça ativa de Deus reor-
denando nossas vidas em torno das atividades, disciplinas e práticas
que Jesus modelou. Participamos delas não para ganhar nossa santi-
ficação, mas para alcançar, através do treinamento, o que não pode-
mos fazer ao nos esforçarmos mais.

3. Willard, The Great Omission, 62.

112
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

A justiça transmitida
Talvez seja útil dizer algumas palavras sobre a diferença entre a
justiça imputada e a transmitida. Segundo Diane LeClerc, a justiça
imputada é “a justiça de Jesus creditada ao cristão, que permite que o
cristão seja justificado. Deus vê a pessoa através da justiça de Cristo,
mas não se refere à transformação interior e à limpeza do indivíduo
feita por Deus.” A justiça concedida, por outro lado, é “um dom gra-
cioso de Deus dado no exato momento do novo nascimento de um
indivíduo. Deus começa o processo de nos tornar santos”.4
A diferença entre as duas não é tão sutil como se imagina. Uma é
uma justiça creditada — aplicada, por assim dizer; a outra é uma jus-
tiça que habita. A justiça concedida pode ser entendida como o dom
de Deus que capacita e dá poder ao discípulo de Cristo para se esfor-
çar pela santidade, santificação e amor perfeito. Mais precisamente,
Timothy Tennent capta bem a diferença: “Como cristãos, sabemos
que Deus toma os pecadores e os veste com a justiça de Cristo (im-
putada). Depois, Deus opera em nós toda boa obra, para que a justiça
que antes nos foi imputada, se torne, em tempo real, transmitida a
nós, em medidas cada vez maiores”.5

O otimismo da graça
A justiça concedida é o que tornou John Wesley tão otimista
quanto ao potencial da transformação. Reconhecendo plenamente a
devastação do pecado original, Wesley não estava otimista quanto a

4. LeClerc, Discovering Christian Holiness, 312. É por isso que John Wesley se referiu
ao novo nascimento como santificação inicial. Embora não negue a outra, a
tradição reformada tende a enfatizar a justiça imputada, enquanto a teologia
wesleyana de santidade coloca a principal ênfase na justiça transmitida.
5. Timothy Tennent, “Living in a Righteousness Orientation: Psalm 26” Seedbed
Daily Text, September 1, 2019, https://www.seedbed.com/living-in-a-righteousness-
orientation-psalm-26/. Tennent acrescenta: “Somente na nova criação é que isto
é totalmente completo, mas a santificação é o chamado de cada crente — em ser
separado como santos — para que com todo o coração possamos louvar ao Senhor
‘nas congregações’ (Salmos 26.12).

113
C A MINHO • VERDADE • VIDA

natureza humana. No entanto, ele estava totalmente convencido de


que a graça de Deus poderia transformar literalmente uma vida de
dentro para fora.
Uma vez ouvi meu amigo Wesley Tracy se referir a isso como o
“otimismo radical da graça.” Para ilustrar, ele me contou uma histó-
ria: Imagine que há uma menina entrando pela parte de trás da igreja.
Ela tem onze ou doze anos. Suas roupas estão sujas e pouco cuidadas;
seu cabelo fino está emaranhado. Ela cheira a mofo, como se não
tivesse tomado um banho de verdade há vários dias. Você conhece
um pouco da história dela. Ela não está indo bem na escola. Está com
matérias atrasadas e não consegue ter notas boas. Você tem quase
certeza que o problema não é o intelecto dela, mas o mais provável
é que o problema esteja acontecendo em casa. Ela não conhece o
pai biológico e a mãe dela tem tido vários namorados. Há rumores
de abuso infantil em casa e os hematomas em seus braços parecem
confirmá-lo.
Tracy então disse: “Um comportamentalista olharia para aquela
menina e diria: ‘Ela tem cicatrizes para o resto da vida; ficará assim
para sempre. Algumas coisas podem ser recuperadas, mas ela sempre
andará cambaleando e nunca poderá ser tudo o que poderia ter sido
se seu ambiente fosse diferente.’ Isto é o que um comportamentalista
diria.” Mas Tracy continua: “Você sabe o que diria alguém que acredi-
ta no otimismo radical da graça? ‘Não importa o que tenha sido feito
a ela ou o que ela faz consigo mesma, esta menina tem a esperança do
Evangelho. Deus pode tomá-la de onde está e fazer dela o que Ele quer
que ela seja’”. Ou, como Wesley diria: “Mostre-me o mais vil infeliz
de Londres e eu lhe mostrarei alguém que tem a graça dos próprios
apóstolos.”
Esse otimismo leva a sério a nossa condição pecaminosa, mas leva
ainda mais a sério o poder da graça de tomar alguém, de qualquer
lugar, de qualquer situação, e torná-lo tudo o que Deus quer que ele

114
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

seja.6 Nenhuma dor é tão dolorosa, nenhuma mágoa é tão danosa,


nenhuma ferida é tão profunda, nenhum pecado é tão terrível que a
graça de Deus não possa transformar, curar e restaurar por completo.

Perdão e poder
A jornada da graça é a transformação da pessoa como um todo.
A justiça é transmitida; a santidade é dada. Não é “se esforçar mais”
ou “se recompor”, mas uma verdadeira mudança que resulta em uma
vida de poder. Em outras palavras, a graça de Deus é necessária para
o perdão e para o poder. Precisamos do perdão de nossos pecados
(absolvição) e precisamos de força (poder) para viver uma vida que
honre a Deus. Um sem o outro leva a extremos perigosos. Se disser-
mos: “Deus nos perdoará, mas Ele realmente não Se importa com a
maneira como vivemos nossas vidas imperfeitas, porque, afinal, tudo
está coberto pela graça”, corremos o risco de antinomianismo. Por
outro lado, se presumirmos que a graça é necessária apenas para per-
doar nossos pecados, mas depois cabe a nós seguir em frente sozinhos,
corremos o risco de legalismo. Ambos são extremos perigosos que im-
pedem a jornada da graça. O apóstolo Paulo fala desses dois extremos
quando diz: “desenvolvam a sua salvação com temor e tremor, porque
Deus é quem efetua em vocês tanto o querer como o realizar, segundo
a sua boa vontade” (Filipenses 2.12b-13). Quem é o responsável pelo
nosso crescimento espiritual? É trabalho nosso ou de Deus? A respos-
ta de Paulo é sim para ambas as perguntas e isso não é contraditório.
Considere o extremo do legalismo. O legalismo em sua defini-
ção teológica mais estrita é a noção exagerada de que a obediência
a regras, regulamentos e códigos específicos de conduta é necessária
para a salvação. Na prática, diz o legalismo, sabemos que Deus provi-
denciou nossa salvação através da cruz de Jesus, mas a sua realização

6. “Como Wesley diria, negar este otimismo tornaria o poder do pecado maior que
o poder da graça — uma opção que deveria ser impensável para uma teologia
wesleyana de santidade”. LeClerc, Discovering Christian Holiness, 27.

115
C A MINHO • VERDADE • VIDA

em nossa vida depende se orarmos muito, lermos a Bíblia todos os


dias e tomarmos o cuidado de evitar certas pessoas e lugares. No fun-
do, o legalismo está tentando fazer por nós mesmos o que somente
Deus pode fazer. O resultado de uma pessoa empenhada em manter
as regras é uma enorme quantidade de culpa, medo, frustração e in-
segurança com muito pouco de graça, paz ou segurança. É um disci-
pulado sem a graça e, levado ao extremo, torna-se uma forma ilusória
de humanismo hipócrita e um ar de superioridade. Os legalistas têm
grandes expectativas em relação a si mesmos, mas têm padrões ainda
mais altos para todos os outros, o que é pouco atrativo e repele os que
estão afastados da igreja.
Em contraste com o legalismo, está o extremo oposto, o antino-
mianismo. Antinomianismo é uma palavra técnica que deriva de
duas palavras gregas: anti, que significa ‘contra’ e nomos, que significa
‘lei’. Combinadas, expressam a ideia de ilegalidade. Embora seja ver-
dade — e passamos muito tempo discutindo esta questão — que um
cristão é salvo apenas pela graça e não por boas obras ou nossas pró-
prias ações, essa verdade não nos isenta das obrigações morais e espi-
rituais. Na prática, o antinomiano diz: “Como a graça é abundante,
porque não pecar ainda mais para receber ainda mais graça? Por estar
coberto pela graça, não tenho obrigação de obedecer a nenhum pa-
drão ético ou moral. Fui liberto do peso da responsabilidade. O amor
cobre tudo.” Por mais ilógico (e impraticável) que possa parecer, é a
mentalidade de alguns cristãos. “Não me peça nenhum compromisso
ou sacrifício sério. Estou farto de colocar pesados fardos espirituais
nos ombros das pessoas, porque isso só leva à culpa e ao legalismo an-
tiquados. Estou na graça”.7 Note que, embora John Wesley não fosse

7. Numa conversa com o estudioso de Wesley, Cliff Sanders, sobre o legalismo e o


antinomianismo, Sanders fez uma observação interessante: “Há cinquenta anos
atrás, o legalismo era o maior desafio para as igrejas evangélicas. Hoje é mais
provável que seja o antinomianismo, como a luta particular de muitos jovens
adultos que foram criados na igreja e que querem retirar do amor a sua dimensão
santa”.

116
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

legalista, ele acreditava que a maneira antinomiana de pensar era um


perigo ainda maior do que o legalismo e considerava o antinomianis-
mo a pior de todas as heresias, porque desvalorizava o amor perfeito.
O amor sem santidade é permissivo; a santidade sem amor é dura.
Em 1751, John Wesley escreveu uma carta a um amigo, muitos
acreditam, em resposta às acusações de que sua pregação era muito
legalista ou muito permissiva (antinomiana). Sua resposta foi instru-
tiva: “Eu não aconselharia pregar a lei sem o Evangelho mais do que
o Evangelho sem a lei. Sem dúvida, ambos devem ser pregados por sua
vez; sim, ambos ao mesmo tempo, ou ambos em um”. Wesley resume o
que ele quer dizer com “ambos em um” mantidos em tensão: “Deus te
ama; portanto ame-O e obedeça-O. Cristo morreu por você; por isso,
morra para o pecado. Cristo ressuscitou; por isso, erga-se à imagem
de Deus. Cristo vive para sempre; por isso, viva para Deus até que
você viva com Ele na glória. (...) Este é o caminho bíblico, o caminho
metodista, o caminho verdadeiro. Queira Deus que nunca venhamos
a sair deste caminho, nem para a esquerda nem para a direita.8
Sendo assim, qual das duas opções escolhemos? Nossa salvação
e crescimento espiritual são trabalho de Deus ou nosso? Paulo deixa
claro: não é um ou outro, mas ambos. A salvação completa é obra de
Deus do início ao fim. Somos procurados, salvos, santificados e sus-
tentados pela graça de Deus. No entanto, também somos exortados
repetidamente a fazer todos os esforços para cooperar com a obra
do Espírito Santo em nossas vidas (Lucas 13.24; Filipenses 2.12-13; 2
Timóteo 2.15; Hebreus 12.14; 2 Pedro 1.5-7; 3.13-34).9
Graça é tanto para o perdão como para o poder. É assim que a
graça sustentadora contribui para nosso discipulado na parceria
divino-humana. Deus inicia, nós respondemos. Deus chama, nós

8. John Wesley, “Letter on Preaching Christ”, The Works of the Rev. John Wesley,
Volume 6.
9. Ver a ênfase do capítulo 2 em “desenvolver no mundo o que Deus está fazendo em
nós”.

117
C A MINHO • VERDADE • VIDA

escutamos. Deus guia, nós obedecemos. Deus capacita, nós traba-


lhamos. “Primeiro, Deus trabalha; portanto, você pode trabalhar”,
disse Wesley. “Em segundo lugar, Deus trabalha; portanto, você deve
trabalhar”.10

A necessidade do livre arbítrio


O assunto deste capítulo é a graça sustentadora, que é a graça
que nos permite fazer o que Deus nos chama para fazer e a viver uma
vida santa. A carta de Judas no Novo Testamento refere-se a esta
graça, na bênção final, como o poder de Deus que nos impede de cair
e nos torna irrepreensíveis diante d’Ele no dia final. Tal declaração
comunica uma verdade muito importante sobre o nosso discipulado:
podemos cair da graça, mas a graça sustentadora de Deus possibilita
que isso não aconteça.
Houve uma época em que alguns pregadores de santidade bem-
-intencionados disseram que após a pessoa ser santificada, nunca
mais pecaria. Essa proclamação gerou muita confusão e consternação
entre cristãos sinceros, apaixonados por sua caminhada com Cristo,
mas que descobriram que não só era possível tropeçar e cair, mas
que isso acontecia com alguma frequência, especialmente à luz das
mensagens que lhes diziam que a inteira santificação solucionava o
problema. Esse não é simplesmente o caso — a razão é que nosso livre
arbítrio nunca é retirado da equação. O livre-arbítrio permanece para
sempre na vida do crente porque se baseia na necessidade do relacio-
namento. O amor é relacional e a escolha é um componente necessá-
rio de qualquer relacionamento saudável. De fato, a imagem de Deus
está estampada em nós, e o que está sendo restaurado na plenitude de
Cristo é a capacidade de relacionamentos santos e de amor.

10. John Wesley, “Sermon 85: On Working Out Our Own Salvation”, 3.2, http://
wesley.nnu.edu/john-wesley/the-sermons-of-john-wesley-1872-edition/sermon-85-
onworking-out-our-own-salvation.

118
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

O relato da criação em Gênesis é esclarecedor. Um Deus sobe-


rano cria o universo com pouco esforço além de dizer as palavras:
“Haja...”. O governo de Deus é absoluto e Seu domínio é incompa-
rável — no entanto, surpreendentemente, a liberdade humana está
entrelaçada na estrutura da criação. Dado o poder incomparável de
Deus para criar e sustentar, essa liberdade é inesperada porque, como
percebemos mais tarde, as distintas escolhas dos seres humanos não
são apenas permitidas, mas também têm o potencial de ajudar ou
prejudicar o florescimento do bom mundo de Deus. O Todo-Poderoso,
sob grande risco, permite que nossas escolhas tenham importância.
No primeiro paraíso, o Senhor Deus ordenou ao homem: “De
toda árvore do jardim você pode comer livremente, mas da árvore
do conhecimento do bem e do mal você não deve comer; porque,
no dia em que dela comer, você certamente morrerá” (Gênesis 2.16-
17). O poder da escolha foi dado nesta ordem. A princípio, pode-se
pensar que isto é injusto por parte de Deus. Porque Deus ordenaria
algo sabendo que, no exato momento em que se diz a alguém o que
não pode fazer, é exatamente nisso que irá pensar? Será que isso foi
um ambiente propício para a tentação? Não: Deus não os tentou. Eles
tinham uma escolha. As duas opções não eram iguais. Na ordem
está um reconhecimento do livre arbítrio (ou livre vontade).11 A livre
vontade é necessária para que exista amor em um relacionamento.
Se a minha esposa fosse forçada a me amar e não tivesse esco-
lha, ainda teríamos, mais ou menos, um relacionamento, mas não
seria um casamento. Por quê? Porque, se eu tivesse controle total, isso
se tornaria algo diferente de amor. Ela se tornaria um robô que não

11. Mildred Bangs Wynkoop nos lembra que a ênfase principal de John Wesley estava
mais na graça livre do que no livre arbítrio. Portanto, os da tradição wesleyana
falariam com mais precisão da “vontade libertada”, que se refere à vontade
autorizada e tornada livre pelo Espírito Santo, possibilitando que uma pessoa
confesse ativamente a fé em Jesus Cristo. Ao longo de todo o caminho, a salvação
é de Deus, somente pela graça. Wynkoop, Foundations of Wesleyan-Arminian
Theology, 69.

119
C A MINHO • VERDADE • VIDA

conseguiria agir voluntariamente de outra forma. A única maneira


de compartilhar um casamento saudável é se ambos tivermos a opção
de amar um ao outro. É aí que reside o risco inerente ao amor: ela
poderia escolher não me amar.
Quando Deus criou os seres humanos, Ele os colocou em um belo
jardim cheio de vida e bondade. Foi pura graça, pois foi iniciada e
dada por Deus, sem contribuição da parte deles. No entanto, Deus
não os fez robôs que tinham que fazer a Sua vontade. Eles poderiam
escolher entre o bem e o mal. Eles tiveram a opção de amar a Deus
ou não amar. Era quase como se Deus estivesse dizendo: “Faça isso
porque eu sou Deus. Sua obediência é uma escolha. Eu quero que
esse relacionamento seja baseado no amor, não no controle”. Deus
nos dá livre arbítrio não porque deseja nos tentar, mas porque deseja
que o escolhamos de volta. Só então será um relacionamento volitivo
enraizado no amor.
Soren Kierkegaard acreditava que uma vontade rendida era o si-
nal de um coração purificado: “A pureza de coração é desejar apenas
uma coisa”. O oposto de um coração puro é ter dupla mentalidade,
também refletida na vontade. A resposta para saber se a pessoa intei-
ramente santificada pode pecar novamente é sim. É possível cair da
graça, porque a pessoa é sempre livre para responder a Deus ou à ten-
tação em questão. Por amor, a escolha será sempre nossa. No entanto,
aqui está a principal diferença de uma vida sustentada pela graça:
agora temos o poder de não pecar. Pelo poder da graça sustentadora,
podemos dizer sim a Deus e não à tentação. Nossa fé é protegida pelo
poder de Deus, defendida por uma esperança viva através da ressur-
reição de Jesus Cristo dentre os mortos (1 Pedro 1.3–4).
Em uma franca confissão, Paulo admite que, antes do Espírito, o
pecado estava no controle de sua vida com tanta força que era como
um capataz de um escravo. “Porque não faço o bem que eu quero, mas
o mal que não quero, esse faço” (Romanos 7.19). Ele estava preso no

120
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

ciclo vicioso de não querer fazer algo, mas ser incapaz de resistir, e de
querer fazer algo, mas ser incapaz de fazê-lo. “Quem me livrará do cor-
po desta morte?” (7.24). Agora estando sob o poder do Espírito Santo,
continua Paulo, ele pode dizer sim a Deus e não à tentação. “Graças
a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! De maneira que eu, de mim
mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a car-
ne, sou escravo da lei do pecado” (7.25). Sem o Espírito Santo, nossa
vontade humana é fraca e impotente para obedecer; com o Espírito
Santo, somos capacitados a obedecer. Não é que quem seja santifica-
do nunca mais possa pecar, mas agora tem o poder para não pecar.
A diferença é a graça sustentadora de Deus que nos impede de cair.
A fidelidade se baseia na fé e na plenitude. Como Wesley foi rá-
pido em acrescentar, o Espírito Santo fortalece a nossa vontade, para
que possamos produzir “todo bom desejo, esteja relacionado ao nosso
temperamento, palavras ou ações, à santidade interna e externa.”12

A Graça sustentadora como transformação do caráter


Em seu livro imensamente útil e abrangente sobre discipulado,
After You Believe [Depois que Você Crê], N. T. Wright mostra como o
caráter cristão é formado nas pessoas e nas igrejas. Ele se refere a isso
como o longo, mas constante, crescimento na graça que vem como
resultado das práticas espirituais e hábitos formados na vida de uma
pessoa, que a transforma cada vez mais à imagem de Jesus Cristo. Os
escritores antigos chamavam essa formação de caráter de “virtude”.
Wright começa o livro recontando a verdadeira história de
Chesley Sullenberger, mais conhecido como “Sully”. Era uma tarde
de quinta-feira, 15 de Janeiro de 2009, e parecia como qualquer outro
dia na cidade de Nova Iorque. O jato comercial decolou às 15h26,
com destino a Charlotte. Sully era o comandante. Ele fez todas as
verificações de rotina, e tudo pareceu normal até que, apenas dois

12. Wesley, “Sermon 85: On Working Out Our Own Salvation”, III.2.

121
C A MINHO • VERDADE • VIDA

minutos após a decolagem, o avião bateu em um bando de gansos.


Ambos os motores foram severamente danificados e perderam potên-
cia. O avião estava indo para o norte, acima do Bronx, uma das partes
mais densamente povoadas da cidade. Sully e seu copiloto tiveram
que tomar decisões importantes rapidamente. As vidas de mais de
150 passageiros, e de outras milhares em terra, estavam em risco.
Os aeroportos menores mais próximos ficavam muito distantes e
aterrizar na rodovia New Jersey Turnpike seria um desastre. Isso os
deixou com apenas uma opção: aterrizar no rio Hudson. Apenas três
minutos antes da aterrizagem, Sully e seu copiloto tiveram que fazer
algumas coisas vitais para não terem um acidente. (Wright menciona
nove diferentes tarefas técnicas). Eles as fizeram de forma notável; e
aterrizaram o avião no rio Hudson. Todos saíram em segurança, com
o comandante Sully percorrendo o corredor de ponta a ponta várias
vezes para verificar se todos tinham escapado, antes dele mesmo se
retirar.13
Muitas pessoas disseram que foi um milagre, e em certo nível,
certamente foi. No entanto, onde estava o milagre? Os milagres
acontecem de muitas formas diferentes. O milagre estava na mão so-
brenaturalmente protetora e orientadora de Deus? Isso é certamente
possível. No entanto, há outra maneira de ver isso. Talvez o milagre
tenha sido a virtude de Sully, que o tornou capaz de responder com
tal rapidez técnica sob intensa pressão. Se usar a palavra “virtude”
desta maneira parece estranho, é porque virtude não é apenas outra
maneira de dizer “bom” ou “moral”. Wright argumenta que a virtude,
no sentido mais estrito da palavra, “é o que acontece quando alguém
faz mil pequenas escolhas, que exigem esforço e concentração, para
conseguir fazer algo bom e correto, mas que não ‘sai com natura-
lidade’ — e então, pela milésima vez, quando realmente importa,

13. Wright, After You Believe: Why Christian Character Matters (New York:
HarperCollins Publishers, 2010), 18-20.

122
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

descobre que está fazendo o que é necessário de forma ‘automática’,


como dizemos”.14
Em outras palavras, quando parece que algo simplesmente acon-
tece, começamos a perceber que isso não aconteceu por acaso. Como
Wright ressalta, se algum de nós estivesse pilotando o avião naquele
dia e tivesse feito apenas o que surge de forma natural, teríamos co-
lidido com a lateral de um prédio. A virtude, formação de caráter —
ou, para nossos propósitos, discipulado — que cresce na graça para
se tornar cada vez mais parecido com Jesus, não é o que acontece
naturalmente; é também o que acontece quando escolhas sábias e
criteriosas se tornam uma segunda natureza. Sully não nasceu com
a capacidade de pilotar um avião comercial, nem com os traços de
caráter que foram descobertos em curtos período de tempo — como
coragem, mão firme, julgamento rápido e preocupação com a segu-
rança de outras pessoas arriscando a si próprio. Essas são capacidades
e traços adquiridos que exigem prática e repetição específicas ao lon-
go do tempo — até que o que começou parecendo estranho começa
a se tornar normal, e então, o que parece normal começa a estar tão
arraigado em nossas mentes e memória muscular que reagimos em vez
de pensarmos. É uma segunda natureza.
Não quero ofender nenhum leitor que possa ser piloto, mas se eu
estivesse naquele avião que descia de forma rápida, não gostaria que
fosse um piloto novato fazendo o que lhe viesse naturalmente. Se
eles tivessem de recorrer ao manual do motor, pesquisar na internet
ou recorrer às suas memórias para se lembrar do que aprenderam na
escola de aviação sobre situações de emergência, para conseguirem
responder a uma situação de crise que nunca tinham enfrentando,
o resultado poderia ter sido muito diferente. O conhecimento não
é suficiente; nem a coragem e a determinação. Não. Wright insiste
enfaticamente que o que era necessário naquele momento de crise

14. Wright, After You Believe, 20.

123
C A MINHO • VERDADE • VIDA

era a virtude praticada de algo que se tornara uma segunda natu-


reza — uma transformação de caráter, “formada por forças específi-
cas, ou seja, ‘virtudes’ de saber exatamente como pilotar um avião”.15
Acrescentaria que não foi um avião qualquer, mas aquele avião em
particular — o avião que Sully tinha treinado para conhecer profun-
damente, em todos os seus detalhes.
A ideia da “segunda natureza” capta a minha atenção, especial-
mente no que diz respeito ao discipulado, à santidade e à jornada da
graça. Poucos discordariam de que qualidades como coragem, resis-
tência, restrição, sabedoria, bom senso e paciência não são naturais
para nós. São coisas que são aprendidas e enraizadas em nosso caráter,
às vezes através de circunstâncias difíceis e dolorosas, mas sempre
através do filtro de comportamentos aprendidos. Um caráter bem es-
tabelecido — de acordo com o Novo Testamento e conforme definido
por Wright — é “o padrão de pensamento e ação que passa direto por
alguém, de modo que onde quer que você o corte (por assim dizer),
você verá a mesma pessoa por completo”.16
O oposto de um caráter bem estabelecido é, sem dúvida, a super-
ficialidade. Muitas pessoas podem se apresentar inicialmente como
honestas, gentis, positivas e assim por diante, mas quanto mais são
conhecidas, mais suas verdadeiras cores irão aparecer. Tais pessoas
têm apenas uma boa fachada. “Quando enfrentam uma crise, ou sim-
plesmente quando baixam a guarda, são tão desonestas, ranzinzas e
impacientes como qualquer outra pessoa”.17 Qual é o problema? Elas
estão fazendo apenas o que lhes vem naturalmente; são autoconscien-
tes o suficiente para saber que sua atitude deve ser diferente, mas não
adquiriram os novos hábitos da segunda natureza para reagir bem a
desafios e decepções repentinas. O caráter de alguém não é feito nas

15. Wright, After You Believe, 21.


16. Wright, After You Believe, 27.
17. Wright, After You Believe, 27.

124
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

crises; é sim revelado nelas. Quando não temos tempo para pensar,
quem realmente somos é constantemente exposto.
H. Ray Dunning mostrou como alguns dos termos de Wesley do
século XVIII diferem do uso contemporâneo. Por exemplo, no que
diz respeito à nossa discussão sobre o livre arbítrio, “liberdade” foi
o termo que ele usou para liberdade de escolha, enquanto o termo
“vontade” foi usado para se referir ao que chamou de “afeições”, ou as
inclinações que motivam a ação humana. As afeições não se referiam
a sentimentos que vêm e vão, nem eram alteradas por modificações
temporárias de comportamento. Elas tinham mais a ver com o nível
mais profundo da razão de uma pessoa escolher certas coisas ou ações.
Intimamente relacionado às afeições estava o uso de Wesley do termo
“temperamento”. Um temperamento no século XVIII não significava
que uma pessoa estivesse irritada ou que se chateasse facilmente. Pelo
contrário, estava mais de acordo com a forma como usamos o termo
“temperamento” hoje em dia. Wesley usou temperamento no sentido
de “uma disposição duradoura ou habitual de uma pessoa”.18 Ou, mais
exatamente, aquelas afeições humanas que são focadas e desenvolvi-
das em aspectos duradouros do caráter de alguém, cultivadas pelos
meios da graça, até que não sejam mais situações momentâneas, mas
se tornam virtudes estáveis a longo prazo e, quando feitas com a in-
tenção justa, sejam “ temperamentos santos”.
“Temperamentos santos” era uma expressão frequentemente
usada nos ensinos de Wesley sobre o discipulado, especialmente em
suas reflexões sobre o fruto do Espírito em Gálatas. “Mas o fruto do
Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bonda-
de, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5.22–23). Vale a
pena destacar vários aspectos deste texto. Para começar, Wesley foi
enfático em mencionar que o fruto era singular, não plural (“frutos”).
Se fosse plural, a pessoa podia se sentir tentada a focar em um “fruto”

18. Maddox, Responsible Grace, 69.

125
C A MINHO • VERDADE • VIDA

em vez de outro, como se a fidelidade fosse nosso foco e a generosida-


de pudesse ser ignorada. O fruto como um todo unificado é evidência
de que o Espírito de Deus está trabalhando. As características do
fruto não são independentes. Então, à medida que crescemos, as nove
variedades do fruto trabalham juntas para criar uma imagem con-
vincente do que acontece quando o Espírito Santo está no controle
de uma vida consagrada. N. T. Wright aponta que Paulo, “não prevê
uma especialização”.19 Assim como se pode identificar um pessegueiro
pelos frutos que produz, um cristão é conhecido pelo fruto do Espírito
— temperamentos santos que são evidenciados na vida de alguém.
Não é de surpreender que Wesley enfatize que o amor começa a lista
dos temperamentos santos, porque as nove variedades são todas ex-
pressões de amor. No entanto, ao longo da jornada da graça, todas as
características de Cristo serão manifestadas em nossas vidas.
Talvez o mais importante que devemos entender sobre a jornada
da graça é que esses temperamentos santos não são experimentados
instantaneamente. Em vez disso, como explica Randy Maddox, “a
graça regeneradora (salvadora) de Deus desperta nos crentes as ‘se-
mentes’ de tais virtudes. Então, essas sementes se fortalecem e to-
mam forma à medida que ‘crescemos na graça’. Dada a liberdade, este
crescimento envolve a cooperação responsável, pois poderíamos, ao
invés, negligenciar ou sufocar o gracioso poder de Deus”.20 Há muito
que extrair da explicação de Maddox. No entanto, a ideia principal
que não devemos perder é que a virtude deve ser nutrida para que
possa aumentar.
Pela graça de Deus, somos salvos e santificados em um determi-
nado momento, e somos capacitados a iniciar a jornada em direção
à semelhança de Cristo — as sementes da justiça são plantadas. Em

19. Wright, After You Believe, 195.


20. Randy Maddox, “Reconnecting the Means to the End: A Wesleyan Prescription
for the Holiness Movement”, Wesleyan Theological Journal, vol. 33, No. 2 (Fall
1998), 41.

126
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

um empreendimento da graça, temos a liberdade de deixar uma vida


de pecado e interesse próprio, para que possamos amar a Deus com
todo o coração, alma, força e mente. Não obstante, as três virtudes
permanentes da fé, esperança e amor (1 Coríntios 13.13) e as nove
variedades do fruto que procedem da vida cheia do Espírito são do-
tadas e cultivadas. O fruto do Espírito não aparece de repente, nem,
como Wright corretamente afirma, “cresce automaticamente”. Há,
sem dúvida, indícios promissores iniciais de que o fruto está a ca-
minho. “Muitos novos cristãos, particularmente quando uma con-
versão repentina significou um afastamento dramático de um estilo
de vida cheio de ‘obras da carne’, relatam sua própria surpresa com o
desejo que surge dentro deles de amar, perdoar, ser gentil e ser puro.
‘De onde veio tudo isso?’, perguntam eles. ‘Eu não costumava ser as-
sim’. Isto é algo maravilhoso, um sinal certo de que o Espírito está
trabalhando”.21
Estas incríveis mudanças de “afeição” são nada menos do que um
puro presente da graça. No entanto, os novos cristãos não se podem
tornar passivos. Eles têm que desenvolver o que Deus está fazendo
neles. A mesma graça que tornou possível esta mudança de “afeição”
deve agora ser transformada em um “temperamento santo”, cultiva-
do por meio de novos hábitos e práticas adquiridas. Mais uma vez,
Wright argumenta precisamente com uma imaginação aguçada de
discipulado: “Estes [novos desejos] são as flores; para colher o fruto, é
preciso aprender a ser jardineiro. Você tem que descobrir como cuidar
e podar, como irrigar o campo, como manter os pássaros e outros ani-
mais afastados. Deve ter cuidado para evitar pragas e fungos, cortar
a hera e outros parasitas que sugam a vida da árvore e garantir que
o tronco jovem possa permanecer firme debaixo de ventos fortes. Só
então o fruto aparecerá”.22

21. Wright, After You Believe, 195-196.


22. Wright, After You Believe, 196.

127
C A MINHO • VERDADE • VIDA

As flores são certamente o sinal de “que é Cristo em vocês, a espe-


rança da glória” (Colossenses 1.27), mas para obter o real fruto de um
caráter maduro e semelhante a Cristo, devemos nos tornar jardinei-
ros. As sementes devem agora começar a dar fruto. As afeições, ao se-
rem rendidas, produzem temperamentos santos, uma nova disposição,
que produz pensamentos cristãos e ações que começam a funcionar
de maneira natural.23 “Nisto é glorificado o meu Pai: que vocês deem
muito fruto; e assim mostrarão que são meus discípulos” (João 15.8).
As flores tornam-se frutos — as sementes tornam-se virtude. O poder
energizante de Deus torna-se a graça sustentadora.

Vício e virtude
Paulo admoesta os cristãos de Corinto: “Examinem-se para ver se
realmente estão na fé; provem a si mesmos. Ou não reconhecem que
Jesus Cristo está em vocês?” (2 Coríntios 13.5). No seu estilo percepti-
vo habitual, a paráfrase de Eugene Peterson é apropriada: “Testem-se
para saber se estão firmes na fé. Não se enganem, pensando que tudo
está garantido. Criem o hábito do autoexame. Vocês precisam de evi-
dências em primeira mão, não apenas de ouvir dizer que Jesus Cristo
está em vocês. Façam o teste. Se o resultado não for bom, tomem
alguma providência” (versículos 5-9).
Exames regulares de saúde são sempre melhores do que ataques
cardíacos ou derrames. Um problema que é encontrado cedo o su-
ficiente geralmente é tratável. Da mesma forma, uma manutenção
rotineira no automóvel geralmente pode prevenir falhas catastrófi-
cas do motor. Ao longo da história bíblica, os períodos de quarenta
dias foram reconhecidos como tempos de preparação, purificação e
inventário espiritual.24 Alguém poderia argumentar que o objetivo

23. “A linguagem de Wesley das ações santas a ‘fluir’ dos temperamentos santos sugere
que ele apreciou o sentido em que as afeições habituais trazem ‘liberdade’ às ações
humanas — a liberdade que vem da prática disciplinada (por exemplo, a liberdade
de tocar um concerto de Bach)”. Maddox, Responsible Grace, 69.
24. A época da Quaresma no calendário cristão é baseada no conceito de quarenta

128
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

dos reavivamentos e acampamentos na tradição de santidade é fazer


exames regulares, corporativos e pessoais. Conforme referenciado por
Paulo aos coríntios, o crescimento espiritual requer saúde espiritual.
No espírito do conselho de Paulo, a insistência de Wesley de que
os crentes se reunissem em pequenos grupos de prestação de contas
(“classes” como ele as chamava) era para praticar a disciplina de exa-
mes regulares de saúde espiritual.
Quais são os sinais de alerta da doença cardíaca espiritual?
Classificados pela igreja no século VI, os sinais de alerta foram iden-
tificados como “pecados capitais” ou “vícios mortais”. Assim como o
colesterol alto é um alerta para doenças cardíacas e uma luz piscando
é um sinal de que a lâmpada está falhando, então esses sinais são in-
dicadores de tendências prejudiciais em nosso discipulado e, a menos
que sejam tratadas, podem levar à morte espiritual. O entendimento
histórico da igreja sobre o vício — normalmente chamado de “os sete
pecados capitais” — é mais abrangente e inclui o seguinte:
Orgulho: colocar o eu no lugar de Deus como o centro e principal
objetivo da vida; recusa em reconhecer sua posição como criatura,
dependente de Deus.
Irreverência: negligência deliberada da adoração a Deus, ou sa-
tisfação com a participação superficial nela; cinismo manifestado em
relação ao santo ou uso do cristianismo para benefício pessoal.
Sentimentalismo: satisfação com sentimentos de piedade e uma
bela cerimônia, sem procurar a santidade pessoal; nenhum interesse
em carregar a cruz ou no sacrifício pessoal; uma maior atração para
com a espiritualidade emocional do que para os compromissos de
sacrifício.
Desconfiança: recusa em reconhecer a sabedoria e o amor de
Deus; preocupação, ansiedade, escrupulosidade ou perfeccionismo

dias de autoexame.

129
C A MINHO • VERDADE • VIDA

indevidos; tentativas de obter ou manter o controle da vida através


do espiritualismo, timidez indevida ou covardia.
Desobediência: rejeição da vontade conhecida de Deus; recu-
sa em aprender a natureza de Deus tal como revelada nas Sagradas
Escrituras; quebrar a confiança por irresponsabilidade, traição e de-
cepcionar desnecessariamente os outros; quebrar contratos legais ou
morais.
Impenitência: recusa em procurar e encarar os próprios pecados,
ou confessá-los diante de Deus; auto justificação, acreditando que
seus pecados são insignificantes, naturais ou inevitáveis; recusando
pedir desculpas e reconciliar-se com o próximo ou não querer perdoar
a si mesmo.
Vaidade: falha em dar crédito a Deus e aos outros por sua con-
tribuição na vida de alguém; vanglória, exagero e comportamento
ostensivo; preocupação indevida com “coisas”.
Arrogância: ser autoritário e argumentativo; ser opinativo e
obstinado.
Ressentimento: rejeição de talentos, habilidades ou oportunida-
des que Deus e outros oferecem para nosso bem-estar; rebelião e ódio
a Deus ou aos outros; cinismo.
Inveja: insatisfação com nosso lugar na ordem da criação de Deus;
manifestando-se em ciúmes, malícia e desprezo pelos outros ou pelas
“coisas” dos outros.
Cobiça: recusa em respeitar a integridade de outras criaturas, ex-
pressa na acumulação de coisas materiais para provar a autoestima; o
uso de terceiros para vantagem pessoal; a busca por status e poder às
custas dos outros.
Ganância: desperdício de recursos naturais ou bens pessoais; ex-
travagância ou viver além de suas possibilidades; manifestando-se em
ambição desordenada ou domínio de outros e proteção indevida das
“coisas”; mesquinhez; avareza.

130
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

Glutonaria: excesso de apetite natural por comida e bebida; a


busca desmedida por prazer e conforto; manifestando-se em intempe-
rança e falta de disciplina.
Luxúria: mau uso do sexo; inclui falta de castidade, falta de reca-
to, prudência e crueldade; não reconhece o casamento como o rela-
cionamento ordenado por Deus para a sexualidade.
Ociosidade: recusa em responder às oportunidades de crescimen-
to, serviço e sacrifício; inclui preguiça em deveres espirituais, mentais
ou físicos; negligência da família; indiferença à injustiça ou às pessoas
que sofrem no mundo; negligenciando os necessitados, solitários e
impopulares.
Os sinais de alerta podem ser sutis, mas perigosos para a alma.
Quando queremos ficar fisicamente saudáveis, mudamos certos pa-
drões de estilo de vida e fazemos escolhas alimentares em relação aos
nossos novos desejos — ocasionalmente, é necessária medicação para
complementar ou compensar o que o nosso corpo não consegue pro-
duzir por si próprio. Quando queremos fazer a manutenção de nosso
veículo, trocamos o óleo e os pneus — algumas peças até precisam de
ser substituídas. A verdade é que tanto nossos corpos quanto nossos
carros trabalham melhor quando não há uma solução rápida. É pre-
ferível a manutenção regular e contínua. A vida do discipulado fun-
ciona da mesma maneira. É certo que não é possível simplesmente se
livrar de certos padrões prejudiciais sem substituí-los por outra coisa,
algo melhor. Deve haver um bem substituto que seja mais forte do que
o mal atual. Qualquer pessoa no caminho da recuperação de um vício
dirá que algo deve substituir a dependência. Deve haver uma paixão
espiritual superior para substituir a paixão inferior e pecaminosa. Da
mesma forma, deve haver um programa de manutenção regular para
aprimorar nossa jornada da graça — uma maneira regular e sistemá-
tica de manter nosso discipulado em níveis máximos de desempenho.

131
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Qual é o bom substituto para os vícios mortais? Qual é o plano de


manutenção da graça sustentadora? O Novo Testamento identifica o
bem substituto como o fruto do Espírito — aquelas virtudes vivifica-
doras que substituem os instintos inferiores de nossa carne. O plano
regular e sistemático de manutenção é chamado de disciplinas espi-
rituais. Os atletas profissionais correm, alongam e levantam pesos,
não por diversão ou porque estão entediados, mas porque estão deter-
minados a atingir uma meta. Os exames espirituais não precisam ser
cirurgias grandes ou invasivas. Eles podem ser exames de bem-estar.
O remédio do bem substituto é o fruto do Espírito; o plano de ma-
nutenção da saúde para aumentar nossa receptividade à atividade de
Deus é constituído pelas disciplinas espirituais. Elas são elementos
essenciais da graça sustentadora.

A disciplina como meio da graça


O escritor de Hebreus reconhece a importância da disciplina es-
piritual: “Na verdade, toda disciplina, ao ser aplicada, não parece ser
motivo de alegria, mas de tristeza. Porém, mais tarde, produz fruto
pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (12.11).
A disciplina pode ter uma conotação negativa, se for vista como pu-
nição por transgressão. No entanto, como Hebreus reconhece, tam-
bém existe algo chamado disciplina para proteger ou fortalecer. Este
é o aspecto da disciplina a que Hebreus está se referindo. “É para
disciplina que vocês perseveram. Deus os trata como filhos. E qual é
o filho a quem o pai não corrige? Mas, se estão sem essa correção, da
qual todos se tornaram participantes, então vocês são bastardos e não
filhos” (vv. 7–8).
Duas coisas dignas de nota: (1) o autor não podia imaginar filhos
que não fossem beneficiários da disciplina dos pais; (2) o autor visuali-
za a disciplina como uma forma de amor santo. Amar um filho inclui
disciplina. Não é um castigo quando se nega a um filho uma pizza
à meia-noite, se estabelece um horário para ir dormir, ou se impõe

132
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

limites no que assistir no Netflix. O pai sábio sabe que isto não é
punição; é preparação para o futuro deles. Pode parecer injusto para
o filho, até cruel, mas chega o dia em que ele aprende a apreciar os
limites estabelecidos por pais amorosos para protegê-lo e ajudá-lo a se
tornar um adulto saudável e em pleno funcionamento. De maneira
semelhante, Deus nos disciplina para a santidade. Pode não parecer
agradável no momento, mas planta sementes para o fruto pacífico de
uma vida justa, e — não perca esta parte — temos que ser treinados
nela.
E. Stanley Jones disse sabiamente: “Você não pode obter a salvação
por meio de disciplinas — é o dom de Deus. Mas você não pode retê-
-la sem as disciplinas”.25 Quanto à formação do caráter, Agostinho é
creditado por definir a virtude como “um bom hábito condizente com
a nossa natureza”. Além disso, Jones cita os hábitos simples de Jesus
como exemplo de alguém que era totalmente dependente de Deus e
pessoalmente disciplinado em seus hábitos: “Ele fazia três coisas por
hábito: (1) ‘Ele se levantava para ler como era seu costume’ — Ele leu
a Palavra de Deus por hábito. (2) ‘Ele saiu para a montanha para orar
como era seu costume’ — Ele orava por hábito. (3) ‘Ele os ensinou
novamente como era seu costume’ — Ele transmitiu aos outros por
hábito o que Ele tinha e o que Ele tinha encontrado. Esses hábi-
tos simples foram os hábitos básicos de sua vida”.26 Hábitos sagrados
formam discípulos saudáveis. Voltando à ideia de Wesley acerca dos
temperamentos santos, ele acreditava que eram formados nos cristãos
ao participarem da vida da igreja através de práticas habituais que ele
chamava de “meios da graça”, também conhecidos como disciplinas
espirituais. Os meios da graça são canais da graça transformadora de

25. E. Stanley Jones, Conversion (Nashville: Abingdon Press, 1991), quoted in


Richard J. Foster and James Bryan Smith, eds., Devotional Classics: Selected
Readings for Individuals and Groups (Englewood, CO: Renovaré, 1990), 281.
26. Jones, Conversion, quoted in Foster and Smith, Devotional Classics, 282.

133
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Deus — aquelas atividades que nos canalizam a atividade de Deus na


jornada da graça.
Para Wesley, esses meios eram transmitidos através do que ele
chamava de obras de piedade e obras de misericórdia. As obras de
piedade são principalmente o que fazemos para melhorar nosso rela-
cionamento pessoal com Cristo. As obras de misericórdia estão liga-
das ao que fazemos para envolver o ministério e a missão de Deus no
mundo. Tanto as obras de piedade como as de misericórdia têm um
componente individual (algo que se pode fazer sozinho) e um com-
ponente comunitário (algo que deve ser feito com a ajuda de outros).
As obras individuais de piedade incluem meditar nas Escrituras,
oração, jejum, compartilhar a fé com outros (evangelismo) e doar
generosamente nossos recursos. As obras comunitárias de piedade
incluem a adoração compartilhada, participação nos sacramentos
da Santa Ceia e Batismo cristão, prestação de contas uns aos outros
(também conhecida como “conferência cristã”), estudo da Bíblia e
pregação. Mais uma vez, realizamos esses eventos religiosos não ape-
nas porque somos cristãos, mas também porque são “práticas infundi-
das pelo Espírito que reformarão e reciclarão nossos amores... práticas
contraformativas, com rituais que moldam a fome e liturgias que mol-
dam o amor”, porque através dessas práticas aprendemos a viver em
Cristo. (Ver Colossenses 3.12–16).27

Os sacramentos como meio da graça


Mais detalhes sobre a importância dos sacramentos serão úteis
para a jornada da graça. A palavra “sacramento” vem de uma palavra
latina que significa “santificar, consagrar” ou “tornar sagrado, santo”,
que por sua vez é derivada da palavra grega para “mistério”. Quando
alinhados, um sacramento é “um mistério sagrado”. John Wesley to-
mou emprestado a definição de sacramento do catecismo do Livro

27. James K. A. Smith, You Are What You Love: The Spiritual Power of Habit (Grand
Rapids: Brazos Press, 2016), 68-69.

134
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

Anglicano de Oração (que tomou emprestado da definição sucinta de


Agostinho), com uma leve adaptação para maior clareza: “Um sinal
externo de uma graça interior e um meio pelo qual o recebemos”.28
Combinando a ideia de mistério e meios sagrados, N. T. Wright des-
creve os sacramentos como “aquelas ocasiões em que a vida do céu
se cruza misteriosamente com a vida da terra”.29 Algumas tradições
cristãs observam mais sacramentos do que outras. Normalmente, os
protestantes defendem dois: o Batismo e a Eucaristia (também conhe-
cida como Ceia do Senhor ou Santa Ceia).30
John Wesley incentivou veementemente “uma estreita partici-
pação em todas as ordenanças (disciplinas espirituais)”31, mas espe-
cialmente na Santa Ceia. Ele se referiu a ela como “o grande canal”
pelo qual a graça nos é transmitida e até identificou a participação
nela como o primeiro passo para desenvolver nossa salvação.32 Este
dinâmico ponto de vista foi baseado em sua crença de que a Santa
Ceia é mais do que uma lembrança simbólica da morte de Cristo,
mas que a presença real de Cristo, pelo Espírito Santo, é experimen-
tada quando se recebe a Ceia do Senhor.33 Isso levou Wesley a tirar
duas conclusões consideráveis. Primeiro, pelo fato da graça presente
ser estendida para uma vida cristã fortalecida, a Santa Ceia deve ser
recebida tão frequentemente quanto possível. Segundo, pelo fato da
presença do Espírito Santo na Santa Ceia ser o equivalente à pronta e

28. Rob L. Staples, Outward Sign and Inward Grace: The Place of Sacraments in
Wesleyan Spirituality (Kansas City, MO: Beacon Hill Press of Kansas City, 1991),
21. Ênfase acrescentada.
29. Wright, After You Believe, 223.
30. A justificativa para os dois sacramentos é uma preferência por praticar apenas os
instituídos por Jesus Cristo (também conhecidos como “sacramentos dominicais”).
31. Wesley, A Plain Account of Christian Perfection, Annotated, 45.
32. Maddox, Responsible Grace, 202.
33. “Quando Jesus diz ‘memória’, a palavra grega é anamnese. É muito mais que
uma lembrança histórica. Aponta para uma lembrança inspirada pelo Espírito
Santo que introduz o evento do passado no presente de tal forma que ele está,
literalmente, ‘acontecendo novamente’”. J. D. Walt, “Wonder Bread”, Seedbed
Daily Text, April 24, 2020, https://www.seedbed.com/ wilderness-wonder-bread/.

135
C A MINHO • VERDADE • VIDA

disponível graça salvadora, santificadora e sustentadora de Deus, po-


dendo ser considerada uma “ordenança de conversão”34 — uma pes-
soa com um coração arrependido poderia ser salva — e um meio para
a promoção da santidade. Esta visão elevada da Santa Ceia levou o
teólogo nazareno Rob Staples a referir-se a ela como o “sacramento
da santificação”.35
O batismo é muito mais do que um simples ritual ou testemunho
público. Significa nossa morte e ressurreição com Cristo. “Fomos se-
pultados com ele na morte pelo batismo, para que, como Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós
andemos em novidade de vida” (Romanos 6.4). A pessoa não é im-
pulsionada para o reino de Deus — eventualmente, deve haver uma
morte para o pecado e para o “eu” e uma ascensão para uma nova
vida.36 O batismo marca esse momento. “O batismo deixa bem claro
que toda a vida cristã é uma questão de ser marcado com a cruz, de
compartilhar a cruz, de tomar a cruz e seguir Jesus”.37 Wesley não
incluiu o batismo em nenhuma das suas listas formais dos meios da
graça, não porque o desvalorizava, mas por causa de seu papel precur-
sor na comunidade da fé e como um evento único na vida do crente.
Assim, para Wesley, o batismo marcava o início da vida de santidade,
enquanto ele via os outros meios da graça como repetições necessá-
rias para a busca contínua da santidade.38

34. “Ordenança de Conversão” é uma expressão que John Wesley usou pessoalmente.
Staples, Outward Sign and Inward Grace, 252. Pelo testemunho da sua própria mãe,
de que ela recebeu plena certeza da sua fé ao participar na Santa Ceia e por muitos
outros testemunhos de experiências como essa, Wesley ficou convencido de que
o momento da Santa Ceia “re-apresenta” o sacrifício, de uma vez por todas, de
Cristo numa apresentação dramática, transmitindo o seu poder salvífico”. Maddox,
Responsible Grace, 203.
35. Ver Staples, Outward Sign and Inward Grace, 201–249.
36. Wright, After You Believe, 281.
37. Wright, After You Believe, 281.
38. Staples, Outward Sign and Inward Grace, 98; Maddox, Responsible Grace, 222.

136
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

Wesley estava muito alinhado com os reformadores ingleses em


grande parte de sua visão batismal, mas diferia deles em dois aspec-
tos substanciais. Segundo Maddox, Wesley exaltava “a transformação
graciosamente fortalecida de nossas vidas” sobre a concessão de nosso
“perdão jurídico (um foco na culpa e na necessidade de perdão)”. Esta
é uma distinção importante, porque significa que o batismo não é
apenas um sinal de que nossos pecados são perdoados, mas também
que estamos sendo curados de nossa natureza pecaminosa e do dano
que o pecado nos infligiu.39 Além disso, para Wesley, embora a graça
do batismo seja “suficiente para iniciar a vida cristã”, é preciso partici-
par de maneira responsiva e responsável com a graça que é dada para
que os meios da graça sejam totalmente eficientes.40 Nesse sentido, o
batismo é um sinal e símbolo da disposição de se envolver plenamen-
te no que é necessário para nutrir uma vida santa.
O historiador e estudioso nazareno Paul Bassett, disse-me uma vez
que a mais antiga liturgia batismal registrada, do final do século IV,
incluía a imposição de mãos do oficiante e a expressão das palavras
(minha paráfrase): “E agora receba a graça e a cura de nosso Senhor
Jesus Cristo, e que o poder do Espírito Santo opere em ti, para que,
nascendo das águas e do Espírito, você seja uma testemunha fiel”. Em
resumo, recebi graça; estou sendo curado; serei um discípulo de Jesus.

Relacionamentos de prestação de contas


Qualquer discussão sobre a graça sustentadora na vida do dis-
cipulado seria incompleta — especialmente para aqueles na tradi-
ção wesleyana de santidade — sem mencionar a importância dos

39. Existem diferenças significativas entre as tradições cristãs ocidentais (latinas)


e orientais (gregas) em relação ao significado da salvação. “O cristianismo
ocidental (protestante e católico) passou a ser caracterizado por uma ênfase
jurídica dominante na culpa e na absolvição, enquanto a soteriologia ortodoxa
oriental tipicamente enfatizava mais a preocupação terapêutica de curar a nossa
natureza doente de pecado”. Maddox, Responsible Grace, 23. A visão de Wesley do
significado do batismo incluía ambas, mas enfatizava o aspecto de cura e de vida.
40. Maddox, Responsible Grace, 23.

137
C A MINHO • VERDADE • VIDA

relacionamentos espirituais de prestação de contas. Wesley desenvol-


veu uma estrutura prática que acreditava ser necessária para todos os
cristãos em crescimento. Compreendendo a propensão do egocen-
trismo (que leva à falta de autoconsciência) e a tentação tenaz de vi-
ver vidas isoladas, Wesley instituiu cinco níveis aos quais chamou de
“conferência cristã”. Eram sociedades (semelhantes as aulas de Escola
Dominical projetadas para educação e instrução cristã), classes (fala-
remos mais sobre este assunto mais tarde), grupos (pequenos grupos),
sociedades seletas (desenvolvimento e orientação de liderança) e gru-
pos penitentes (grupos de recuperação).
Embora todos os níveis da conferência cristã tenham sido van-
tajosos como um meio da graça, Wesley passou a acreditar que as
classes eram a essência da comunidade cristã e vital para o cresci-
mento à semelhança de Cristo. Assim, elas se tornaram o “método”
do movimento metodista e, segundo muitos, foi a maior contribuição
organizacional de Wesley para a vida de santidade. Seu foco prin-
cipal não era a educação cristã, por si só, mas os comportamentos,
enfatizando o ambiente prático e o ambiente mais adequado para a
transformação espiritual. Os estudos bíblicos e o ensino doutrinário
eram importantes, mas eram reservados para as sociedades. As pes-
soas frequentavam as reuniões de classe para fazer perguntas sobre o
progresso espiritual de cada membro. Estavam lá para se olharem nos
olhos e fazer a pergunta: “Como está a sua alma?”. Eles deveriam se
responsabilizar pelo crescimento na graça e oferecer qualquer incenti-
vo necessário para estimularem uns aos outros em direção à santidade
do coração e da vida.41
O pregador protestante mais famoso do século XVIII não era John
Wesley. Essa designação pertencia a outro inglês, George Whitefield.

41. Esta seção sobre as classes é adaptada do meu livro sobre ministério urbano.
Para obter mais detalhes sobre a conferência cristã e o impacto das classes no
Metodismo, consulte David A. Busic, The City: Urban Churches in the Wesleyan-
Holiness Tradition (Kansas City, MO: The Foundry Publishing, 2020).

138
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

Pregador eloquente e dinâmico, Whitefield foi universalmente con-


siderado a voz do protestantismo em todo o mundo ocidental e um
dos principais impulsionadores do Grande Despertar na América do
Norte.42 Wesley e Whitefield eram amigos íntimos, e cada um admi-
rava a contribuição do outro para fortalecer a igreja. Mas no final,
foi o trabalho de Wesley que perdurou e não o de Whitefield. Adam
Clarke, um contemporâneo mais jovem de Wesley, atribuiu o fruto
duradouro do reavivamento wesleyano diretamente às reuniões de
classe.
Por larga experiência, reconheço a propriedade do conselho do
Sr. Wesley: “Estabeleça classes onde quer que pregue e tenha
ouvintes atentos; pois, se tivermos pregado sem o fazer, a pala-
vra tem sido como a semente à beira do caminho”. Foi por este
meio [da graça] que fomos capacitados a estabelecer igrejas per-
manentes e santas no mundo. Wesley viu esta necessidade desde
o início. Mas Whitefield... não. Qual foi a consequência? O fruto
do trabalho de Whitefield morreu consigo mesmo. O fruto do
trabalho de Wesley permanece e se multiplica.43
O próprio Whitefield, em resposta a uma pergunta sobre o impacto do
reavivamento wesleyano, refletiu mais tarde: “O meu irmão Wesley
agiu com sabedoria; as almas que foram despertadas sob seu ministé-
rio, foram agrupadas por ele em classes e, assim, preservou os frutos
de seu trabalho. Eu negligenciei isso e meu povo é como os grãos de
areia”.44
O discipulado pode ser pessoal, mas não deve ser privado. Cristãos
isolados estão em perigo porque a fé confinada produz discípulos
fracos e infrutíferos. A adoração compartilhada e a educação cris-
tã são benéficas e necessárias, mas, sem uma vida compartilhada de

42. Harry S. Stout, The Divine Dramatist: George Whitefield and the Rise of Modern
Evangelicalism (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), xiii–xvi.
43. J. W. Etheridge, The Life of the Rev. Adam Clarke (New York: Carlton and Porter,
1859), 189.
44. Etheridge, The Life of the Rev. Adam Clarke, 189.

139
C A MINHO • VERDADE • VIDA

relacionamentos íntimos e amorosos, combinados com a aplicação


do conhecimento recebido, será difícil “desenvolver a sua salvação”
(Filipenses 2.12). O segredo para o crescimento saudável e feliz na
graça está na repetida expressão de Wesley, “vigiando uns aos outros
em amor”.45

A misericórdia do autocontrole
Aprender a orar, jejuar, ler as Escrituras, refletir, estudar, sim-
plicidade, solidão, submissão, serviço, confissão, adoração e a pres-
tação de contas relacional são exemplos de meios da graça. Essas e
outras disciplinas espirituais como elas, são parte integrante da graça
sustentadora.
Você pode dizer: “Não tenho aptidão para essas coisas!”. Junte-se
ao clube. O fato é que ninguém tem aptidão para elas, no início. Elas
não são glamorosas e exigem muito trabalho e prática contínua. Não
se esqueça, com o Espírito ajudando, nossa velha natureza está sendo
transformada em uma nova até que o que antes não vinha natural-
mente, se torne uma segunda natureza e “até que Cristo seja formado
em vocês” (Gálatas 4.19). Talvez seja por isto que o domínio próprio
esteja listado como a última característica do fruto do Espírito. O do-
mínio próprio é necessário porque o fruto não é automático. As flores
mostram sinais iniciais de potencial, mas sem a concentração sinto-
nizada e a atenção deliberada, é improvável que o fruto amadureça.
Wright enfaticamente afirma que alguns frutos podem ser simu-
lados: “As variedades do fruto que Paulo menciona aqui são com-
parativamente fáceis de falsificar, especialmente em pessoas jovens,
saudáveis e felizes — exceto o domínio próprio. Se essa característica
não existe, sempre vale a pena perguntar se a aparência das outras
características do fruto é apenas isso, uma aparência, em vez de um

45. John Wesley, “The Nature, Design, and General Rules of the United Societies”,
Works, 9.69.

140
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

sinal real de que o Espírito está operando”.46 Não é de admirar, por-


tanto, que o domínio próprio reforce o firme compromisso de cultivar
uma vida de santidade. “Existem muitos parasitas, muitos arbustos
estranhos que ameaçam sufocar a árvore frutífera, muitos predadores
prontos para roer as raízes ou a arrebatar o fruto antes que ele ama-
dureça. Deve ser uma escolha consciente de mente, coração e vonta-
de para lidar com todos esses inimigos sem piedade. Só porque você
‘vive no Espírito’, não quer dizer que seguir o Espírito seja uma dire-
ção automática. Você tem que escolher fazê-lo. E você pode fazer.”47

Graça sustentadora: espiritual e prática


A graça sustentadora é espiritual e prática. É espiritual porque
precisa do Espírito. Assim como o fruto físico é o produto natural
de uma coisa viva, o fruto espiritual é o produto do Espírito Santo.
Não podemos fabricar a profunda obra de Deus em nós pelo poder do
Espírito Santo — é o que vem de fora e, como tal, é totalmente um
presente. No entanto, também é prático; de forma simples, requer
práticas. Estas práticas assumem a forma da jardinagem, para que o
que começou em nós seja “completado” (Filipenses 1.6) e produza
“frutos de justiça” (Filipenses 1.11). Nenhum agricultor que planta
milho na segunda-feira espera comer espigas de milho no próximo
domingo. Da semente à colheita é preciso cultivo e tempo. A água e
luz solar são necessárias, os fertilizantes devem ser aplicados e as ervas
daninhas devem ser tratadas se quisermos aproveitar os benefícios da
fruição.
Somos uma cultura instantânea: café instantâneo, pipocas de
microondas e internet de alta velocidade. As pessoas em cafeterias
gritam com seus dispositvos móveis se demorarem mais do que al-
guns segundos para se conectar ao Wi-Fi. A expectativa de tudo ins-
tantâneo deixa todos impacientes. De onde isso vem? Afirmo que

46. Wright, After You Believe, 196.


47. Wright, After You Believe, 196–197.

141
C A MINHO • VERDADE • VIDA

é alimentado por um desejo enraizado de gratificação instantânea,


que não é um fenômeno moderno — está na raça humana há mui-
to tempo. Embora existam muitos exemplos nas Escrituras do vírus
mortal que é a gratificação instantânea, Esaú — famoso pelo direito
de primogenitura — é o mais infame. Sua triste reputação foi estabe-
lecida após um longo e malsucedido dia de caça. Quando voltou ao
acampamento, estava faminto. Seu astuto irmão gêmeo, Jacó, estava
preparando um ensopado de lentilhas em uma fogueira. Esaú exigiu
comer. Sempre calculando os seus passos, Jacó negociou um acordo:
“Primeiro me venda o seu direito de primogenitura” (Gênesis 25.31).
O direito de primogenitura, ou o direito de filho mais velho (tam-
bém conhecido como lei da primogenitura), era uma regra de herança
comum que garantia privilégios financeiros e a autoridade familiar
ao filho mais velho do sexo masculino — uma bênção prestigiosa e
lucrativa. Jacó ter pedido a Esaú para lhe vender um bem tão valioso
por um prato de ensopado de lentilhas foi escandaloso. A resposta de
Esaú foi igualmente ultrajante: “Estou morrendo de fome; de que me
vale o direito de primogenitura?” (25.32). Ele estava disposto a trocar
seu bem mais valioso e precioso por um momento de gratificação ins-
tantânea — literalmente, uma prato de ensopado de lentilhas.
A ironia não pode ser ignorada. Que tipo de pessoa impulsiva
trocaria algo de valor infinito e inestimável por um momento de gra-
tificação instantânea que terminaria dentro de alguns momentos? No
entanto, nossa cultura de gratificação instantânea faz isso constante-
mente: troca algo de valor infinito e inestimável por algo que se sabe
que vale muito menos — algo duradouro por algo de curta duração.
“Eu quero o que eu quero e quero agora! Quero que meus apetites
sejam satisfeitos, mesmo que me custe tudo”. Não é de admirar que
o autor de Hebreus iguale a ação de Esaú à imoralidade pecamino-
sa: “E cuidem para que não haja nenhum impuro ou profano, como
foi Esaú, o qual, por um prato de comida, vendeu o seu direito de

142
A GR AÇ A SUSTENTADOR A

primogenitura. Vocês sabem também que, posteriormente, querendo


herdar a bênção, foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimen-
to, embora, com lágrimas, o tivesse buscado” (Hebreus 12.16–17). É
uma lição trágica e aprendida de forma dura que não deve ser igno-
rada. É necessária disciplina para a vida santificada e não se pode
prejudicar o processo de discipulado.
Tiger Woods é aclamado como um dos maiores jogadores de golfe
da história. Quando eu era jovem e estava aprendendo a jogar golfe,
tentei imitar seu estilo. Até comprei um chapéu para combinar com
os que ele usava. Havia apenas um problema: Tiger praticava duran-
te horas todos os dias e isso acontecia desde que tinha começado a
andar.48 Mesmo quando se tornou o melhor jogador de golfe do mun-
do, os especialistas disseram que, ainda assim, continuava praticando
mais do que qualquer outro. Posso dizer que quero jogar golfe como o
Tiger Woods, mas isso não significa nada a menos que meu compro-
misso com os treinos seja proporcional ao meu desejo. A gratificação
instantânea não será suficiente. Não importa o quanto eu queira que
seja diferente, o meu jogo de golfe será proporcional ao meu compro-
misso com os treinos.
Às vezes, as pessoas dizem: “Quero ser como a irmã Fulana de Tal.
Ela parece estar tão perto de Deus. Vejo Jesus nela. Ela é uma santa”.
Não é ruim vê-la como um bom exemplo de semelhança a Cristo e
procurar imitar seu estilo de vida, mas o que você talvez não saiba
são as horas e horas que ela passa a sós com o Senhor em meditação
e oração — as décadas que ela tem gasto no campo da prática espiri-
tual, sendo moldada para o resultado que se vê agora. Ela não chegou
onde está cedendo à gratificação instantânea. As práticas espirituais
formaram nela temperamentos santos que agora se parecem a virtu-
des. Ela cultivou o fruto do Espírito e é por isso que amor, alegria, paz,

48. Woods apareceu num bem conhecido programa de televisão aos dois anos de idade
e mostrou a sua habilidade no golfe.

143
C A MINHO • VERDADE • VIDA

longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domí-


nio próprio parecem tão obviamente presentes.
A santidade não é um momento de tempo e pronto! — a virtude é
adquirida. Não! É no que somos formados. “A conversão é um presen-
te e uma conquista. É o ato de um momento e o trabalho de toda uma
vida”.49 A paciência a longo prazo é o que é necessário para a jornada
da graça. Devemos cultivar o fruto.
Parece justo concluir um capítulo sobre a graça capacitadora de
Deus com uma oração pela pureza que foi feita aos santos durante
mais de mil anos:

Deus Todo-Poderoso, para Ti todos os corações estão abertos, todos


os desejos conhecidos, e de Ti nenhum segredo está escondido;
purifique os pensamentos de nossos corações pela inspiração do Teu
Espírito Santo, para que possamos amá-Lo perfeitamente e magnifi-
car dignamente o Teu santo Nome; através de Cristo, nosso Senhor.
Amém.50

49. Jones, Conversion, quoted in Foster and Smith, Devotional Classics, 281.
50. The Book of Common Prayer (Cambridge: Cambridge University Press, n.d.),
97–98.

144


6
A GRAÇA SUFICIENTE
Então ele me disse: “A minha graça é o que basta para
você, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza”
— 2 Coríntios 12.9

Começamos este livro dizendo que a graça é pessoal, experimen-


tada e conhecida através da pessoa e obra de Jesus Cristo, manifes-
tada na presença do Espírito Santo. Como observado por Thomas
Langford, a graça não é conhecida em abstrato como um princípio,
“mas na real doação de Deus na história”.1 Em Jesus Cristo e na pre-
sença do Espírito, a renovação da vida humana é experimentada pela
graça que busca, a graça salvadora, santificadora e sustentadora. Esta
última expressão bíblica da graça é, para mim, a mais misteriosa de
todas.
Você já se perguntou por que aqueles que parecem ter uma vida
fácil podem parecer tão distantes de Deus, enquanto os que estão
atravessando as águas mais profundas e lidando com grandes lutas
pessoais frequentemente sentem a proximidade íntima com Deus? À
primeira vista, ambas as observações parecem contra-intuitivas. É
lógico que aqueles com menos problemas seriam mais felizes e cerca-
dos por uma paz maior do que aqueles que passam por um profundo

1. Thomas A. Langford, Reflections on Grace (Eugene, OR: Cascade Books, 2007),


107.

145
C A MINHO • VERDADE • VIDA

sofrimento, mas o oposto acontece frequentemente. Como explica-


mos este paradoxo?
Orar “seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu” é con-
fessar que nem tudo o que acontece no mundo é a vontade de Deus.
Não atribuímos a Deus nada de mal. Sempre que o fazemos, contes-
tamos o Seu caráter. O terceiro mandamento proíbe tomar o nome
de Deus em vão, que tem menos a ver com maldições e mais a ver
com a deturpação de Deus no mundo. É uma coisa séria denominar
qualquer coisa que é má como vinda de Deus ou denominar qualquer
coisa que é de Deus como má. No entanto, deve-se mencionar que,
embora nem tudo o que acontece seja a vontade de Deus, ainda as-
sim, por causa de nosso Deus ser todo-poderoso e todo-amoroso, Ele
tem uma vontade em tudo, especialmente a respeito daqueles que
Deus reivindica como Seus e que permanecem em Cristo.
As Escrituras nos lembram que uma das especialidades de Deus é
redimir todas as coisas, mesmo quando o mal é intencional. “Vocês,
na verdade, planejaram o mal contra mim; porém Deus o tornou
em bem, para fazer, como estão vendo agora, que se conserve a vida
de muita gente” (Gênesis 50.20). Mais uma vez, Paulo nos lembra:
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”
(Romanos 8.28). José não disse que Deus fez com que os seus irmãos
o vendessem como escravo aos egípcios; ele disse que Deus não dei-
xaria que suas más intenções tivessem a última palavra. Paulo não
disse que Deus faz com que coisas ruins aconteçam ao Seu povo; pelo
contrário, ele disse que Deus é fiel para trabalhar em tudo, tanto o
bom quanto o mau, para tomar o que parece ser apenas destrutivo e
quebrado e torná-lo curador e santo. Essas Escrituras explicam porque
que aqueles, em Cristo, que enfrentam grande sofrimento também
são os que experimentam a maior paz. Algo acontece na vida de um
discípulo totalmente consagrado a Jesus que, ao longo da jornada da

146
A GR AÇ A SUFICIENTE

graça, passa por circunstâncias difíceis e situações exigentes. Eles ex-


perimentam a graça suficiente de Deus em suas fraquezas para susten-
tá-los e fornecer o que é necessário em suas maiores lutas.

Força aperfeiçoada na fraqueza


O apóstolo Paulo falou sobre a graça suficiente no contexto de
sua segunda carta à igreja do primeiro século em Corinto. Segundo
Paulo, quatorze anos antes de escrever essa carta aos coríntios, ele
recebeu uma visão de Deus onde “foi arrebatado ao terceiro céu” (2
Coríntios 12.2). Muitos estudiosos da Bíblia não acreditam que Paulo
estava sugerindo que existem vários níveis do céu, mas que estava
descrevendo uma revelação além da comum capacidade humana de
ver e que ele era capaz, pela inspiração do Espírito, de perceber algo
além do reino físico. Seu objetivo era dizer a eles (e a nós também)
que havia encontrado a presença de Deus de forma poderosa, que
tinha visto o Cristo ressuscitado e nunca mais seria o mesmo — isso
mudou sua vida.2
Uma experiência tão eufórica pode levar uma pessoa a ser espiri-
tualmente orgulhosa. Consciente desse potencial perigo, e para não
tropeçar em uma presunção profana, Paulo acrescenta que tinha um
“espinho na carne” (v. 7). Nem a origem, nem as especificidades do
espinho são totalmente claras. Não sabemos se o problema era físi-
co, emocional ou relacional.3 O que está claro é que se tornou um
fardo tão pesado para Paulo que ele se referiu ao espinho como “um
mensageiro de Satanás para me esbofetear” e para o lembrar de sua
fragilidade (v. 7). Ele implorou a Deus que o retirasse, removesse sua

2. Douglas Ward, “The ‘Third Heaven’”, The Voice: Biblical and Theological Resources
for Growing Christians, 2018, https://www.crivoice.org/thirdheaven.html. Muitos
estudiosos afirmam que a visão que Paulo descreve em 2 Coríntios é uma
referência ao seu encontro na estrada de Damasco com o Cristo ressuscitado.
3. Alguns especularam que o espinho na carne de Paulo era físico: uma condição
da pele, um problema agudo de visão ou epilepsia. Outros sugerem que o espinho
era uma memória do seu passado como perseguidor da igreja e as dificuldades
relacionais que poderiam ocorrer com os cristãos judeus.

147
C A MINHO • VERDADE • VIDA

deficiência — e, ao que parece, isso fez dele um líder mais forte e


melhor para igreja. Antes de explorarmos mais o espinho, vamos nos
lembrar que Paulo era um homem forte. Ele não era fraco espiritual-
mente. Em outro lugar, Paulo descreve em detalhes seus sofrimentos
como apóstolo:
Ora, trabalhei muito mais que eles, fui mais vezes encarcerado,
fui espancado mais do que posso contar e, em vários momen-
tos, estive às portas da morte. Cinco vezes levei as trinta e nove
chibatadas dos judeus, três vezes espancado pelos romanos, uma
vez fui apedrejado. Naufraguei três vezes e fiquei um dia e uma
noite perdido no mar. Em viagens difíceis, ano após ano, tive de
atravessar rios, enfrentar ladrões, lutar com amigos e inimigos.
Estive em risco na cidade, em risco na zona rural. Enfrentei pe-
rigo sob o sol do deserto e em tempestades no mar. Também fui
traído pelos que pensei ser meus irmãos. Sei o que é trabalhar
duro, passar noites longas e solitárias sem dormir. Já fiquei muito
tempo sem comer, sofri com o frio e com a falta de agasalho.4
Sem mencionar a pressão e a ansiedade contínuas de lidar com igrejas
problemáticas e membros insuportáveis da igreja!
Leia novamente a lista de provações de Paulo. Ele suportou tudo
isso e, sem dúvida, mais (me vem à mente possíveis mordidas de co-
bras). Você já está convencido de que Paulo não era nem uma flor
delicada nem um queixoso chorão? Isso nos leva a supor que, qual-
quer que fosse o espinho, não era uma coisa insignificante para Paulo.
Paulo refere, não menos que três vezes, que implorou a Deus que lhe
retirasse o espinho (uma forma bíblica de dizer: “eu insisti em pedir”).
Paulo está nos conscientizando de que ele estava realmente passando
por situações muito perigosas. Ele carregava um peso que o esmagava
e podia sentir que estava tropeçando em seu próprio peso. Não era
uma coisa pequena aos olhos de Paulo, e por isso, ele orou por cura. O
Senhor respondeu à sua oração, mas não da maneira que ele esperava.

4. Peterson, A Mensagem, 2 Coríntios 11.23–27.

148
A GR AÇ A SUFICIENTE

Não, Paulo. Você vai continuar com o espinho, mas quero que você
saiba disto: “A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfei-
çoa na fraqueza” (2 Coríntios 12.9). Você é mais forte em seus mo-
mentos mais fracos quando estou contigo do que nos seus momentos
mais fortes sem mim. A minha força é aperfeiçoada em sua fraqueza.

Carregado nos braços divinos


A graça suficiente é a maneira de o Senhor nos dizer: “Quando
você chegar ao fim da sua força humana, eu te darei a minha força
sobrenatural. Quando sua energia acabar, minha energia será vivifi-
cada em ti. Quando você não conseguir ir adiante, Eu te buscarei e te
carregarei. Descanse em meus braços por algum tempo.”
Existe uma parábola poética moderna e bem conhecida chamada
“Pegadas na Areia”.
Uma noite tive um sonho. Estava passeando na praia com o meu
Senhor. No céu passavam cenas da minha vida. Para cada cena
que se passava, percebi que eram deixados dois pares de pegadas
na areia, um que me pertencia e outro ao meu Senhor.

Quando a última cena da minha vida passou perante mim, olhei


para trás para as pegadas na areia. Havia apenas um par de pe-
gadas. Notei que eram nos momentos mais difíceis e tristes da
minha vida.

Isso me entristeceu e interroguei o Senhor sobre meu dilema.


“Senhor, quando decidi segui-Lo, me prometeu que andaria ao
meu lado e falaria comigo durante todo o caminho. Mas notei
que, durante as maiores tribulações da minha vida, havia apenas
um par de pegadas. Não compreendo por que me deixou, quando
eu mais precisei de Ti.”

O Senhor respondeu: “Meu precioso filho, Eu te amo e jamais te


deixaria nos momentos de provação e sofrimento. Quando você
viu na areia apenas um par de pegadas foi porque Eu te carreguei
nos braços.”

149
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Se alguém pudesse imaginar a graça que busca na forma de uma ima-


gem, seria um pastor perspicaz, um pai à espera, um beijo ao desper-
tar. Se a graça salvadora fosse uma imagem, seria um abraço, uma
adoção, uma reconciliação. Se a graça suficiente fosse uma imagem,
seria alguém sendo carregado nos braços divinos.
“Pegadas na Areia” é mais do que uma parábola — é uma história
da vida real que ouvi várias vezes. Em meus anos como pastor, havia
pessoas em minhas congregações que passaram por sofrimentos agu-
dos e agonizantes — algumas com tanta severidade que me pergunta-
va como tinham forças para sair da cama pela manhã; pessoas que se
encontravam tão no limite das suas forças que eu, usando a frase de
Eugene Peterson, “conseguia sentir o desespero deles em meus ossos.”
Então, os ouvia dizer: “Pastor, não consigo explicar. Não faz sen-
tido. Sei que deveria me sentir arrasado por tudo isso, mas me sinto
— e usavam estas mesmas palavras — como se eu estivesse sendo
carregada. Estou profundamente triste com essa perda, essa doença,
essa morte, essa traição e eu deveria estar desmoronando, mas há
uma paz em minha mente e uma tranquilidade em meu espírito que é
inexplicável. A única maneira de descrever é que é como ser gracio-
samente carregada nos braços eternos.” Um par de pegadas: a graça
suficiente.
Se há uma coisa que descobri no que diz respeito ao sofrimento,
é que a graça suficiente permanece uma realidade intelectual até que
mais precisemos dela. Pode-se saber algo em sua cabeça e nunca saber
em seu coração. Experimentá-la realmente, ser sustentado e ser carre-
gado por ela, está além da definição — só pode realmente ser vivida.
Assim é a graça suficiente. Conversei há pouco tempo com um amigo
que me disse: “Não sei o que faria se perdesse um dos meus filhos. Eu
não teria forças para continuar.”

150
A GR AÇ A SUFICIENTE

Eu respondi: “Você tem razão. Você não tem forças agora, porque
ainda não precisou passar por isso. Espero que nunca precise, mas se
precisar, haverá graça suficiente.”

Graça “na medida suficiente”


A graça suficiente é o que você precisa para hoje. É um presente
diário “do que é suficiente”. É como um maná no deserto. O povo de
Deus estava em uma jornada pelo deserto. Havia pouca comida e, a
menos que Deus provesse, eles morreriam de fome. Então, Deus lhes
deu um presente. Ele fez chover pão do céu. Todas as manhãs, quando
o povo acordava, estava no chão, do lado de fora de suas tendas, fres-
co para aquele dia. Eles não lutaram, trabalharam ou pagaram pelo
pão. Estava lá como um presente da mão de Deus. Tudo o que precisa-
vam fazer era juntá-lo e prepará-lo. A única regra era que não podiam
armazená-lo. Eles não podiam encher a lata com bolos e guardá-los
para um dia de chuva. Eles não podiam esconder o maná debaixo dos
colchões, caso Deus não o enviasse no dia seguinte; se eles o fizessem,
ele estragaria. Ficaria com vermes e bolor, e se tornaria isca para pei-
xe. Eles apenas tinham que acreditar que Deus proveria tudo o que
precisassem hoje e confiar que faria o mesmo no dia seguinte. As Suas
misericórdias se renovam a cada manhã.
A graça suficiente é assim. Não pode ser armazenada para o dia
seguinte. Ela é suficiente para hoje. Deus nos dá tudo o que preci-
samos hoje, e é exatamente o necessário. Amanhã será também o
suficiente. É “tudo o que você precisa, Eu Sou a graça” que nos carre-
ga quando não conseguimos ir adiante. Não é de admirar que Paulo
tenha declarado com confiança: “De boa vontade, pois, mais me glo-
riarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo.
Por isso, sinto prazer nas fraquezas, nos insultos, nas privações, nas
perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou
fraco, então é que sou forte” (2 Coríntios 12.9-10).

151
C A MINHO • VERDADE • VIDA

A graça que permanesse


Há alguns anos atrás, um pastor na Pensilvânia viu um homem
depois do culto com um broche com a imagem de um buldogue na
lapela do seu terno. Sem saber que o homem trabalhava para uma
empresa de caminhões cujo logotipo comercial era um buldogue, per-
guntou ingenuamente: “O que esse buldogue simboliza?”
Com um brilho nos olhos, o homem respondeu maliciosamente:
“Bem, pastor, o buldogue simboliza a tenacidade com que me agarro
a Jesus Cristo.”
O pastor respondeu: “É um símbolo maravilhoso, mas uma má
teologia.” Surpreendido, o homem perguntou: “Como assim?”
“Isso nunca deve representar a tenacidade com que você se apega
a Jesus Cristo”, observou o pastor. “Deve representar a tenacidade
com que Jesus Cristo se apega a você.”
Em tempos difíceis, a fé não é uma questão de quão forte somos
ou quanta fé temos. Nos momentos mais sombrios, a fé é realmente
uma questão de quão forte Deus é. Não importa o que encontremos
na jornada, a graça de Deus é suficiente para nos sustentar e Seu amor
é forte o suficiente para nos fazer passar por isso. Vamos lembrar que
“não importa o que aconteça” na vida significa que Jesus Cristo está
se apegando a nós com a tenacidade de um buldogue e nunca nos
deixará partir.
Uma mulher de uma igreja que eu estava pastoreando ficou de re-
pente muito doente. Os médicos fizeram uma série de exames para ver
o que estava acontecendo. Eles descobriram que ela tinha uma condi-
ção rara que fazia com que seu corpo tivesse graves reações alérgicas
a qualquer alimento que comesse. Tornou-se muito sério, até mesmo
com risco de vida. Durante esse período, seu marido foi enviado para
o Afeganistão em serviço militar. Ela foi finalmente hospitalizada e
enfrentou um exame médico que esperavam que a levasse a uma vio-
lenta reação alérgica que a faria parar de respirar temporariamente.

152
A GR AÇ A SUFICIENTE

Ninguém espera uma reação tão violenta, especialmente quando se


sabe que ela está chegando. Ela me disse: “Pastor, eu estava com muito
medo, a ponto de entrar em pânico. Estava deitada na cama do hospi-
tal, com pena de mim mesma pelo que estava prestes a suportar e me
perguntando por que tudo isso estava acontecendo comigo. Ainda
por cima, estava chateada por meu marido estar a milhares de qui-
lômetros de distância. Estava com medo e me senti muito sozinha.”
Chegou a hora do exame. Ela estava apavorada: “Agora sei o que
significa o termo ‘assustada’. Eu literalmente não conseguia me mexer
e descobri que nem conseguia orar. Nunca antes tinha sido incapaz
de orar. A única oração que pude fazer foi: ‘Deus, ajuda-me por favor’”.
Ela virou-se para a enfermeira que iria administrar o exame e per-
guntou: “Você é cristã?”
“Sim, sou”, respondeu a enfermeira.
“Você pode orar por mim?”
A enfermeira respondeu sem hesitar: “Claro”, e começou a fazer
uma simples oração por conforto e cura.
Mais tarde, essa amiga disse-me: “Enquanto a enfermeira orava,
senti uma paz incrível. Era quase como se Deus colocasse Suas mãos
em mim e me levasse à Sua presença” (sim, ela usou essa frase). “Eu
sabia que Deus estava comigo, e de repente o medo se foi.”
Eles administraram o exame e, para surpresa de todos, ela não
teve uma reação violenta. “Pastor, de repente senti uma fonte de ale-
gria surgindo em mim. Era uma alegria exuberante. Se eu pudesse ter
dançado na sala, teria dançado!”
Naquele exato momento, a enfermeira tirou o colete de radiação
que usava e tinha pendurada no pescoço uma grande cruz.
Agora, com lágrimas nos olhos por causa daquela vívida lembran-
ça, minha amiga me disse: “Foi aí que percebi que Deus tinha estado
comigo o tempo todo — eu simplesmente não O conseguia ver. Não
pude sentir a Sua presença, mas Ele estava lá. Ele esteve lá o tempo

153
C A MINHO • VERDADE • VIDA

todo. Embora meu marido estivesse no Afeganistão, eu ainda era a


noiva de Cristo. Jesus era meu marido naquele momento, ao meu
lado, me carregando”.
Ao longo da jornada da graça, a graça suficiente de Deus apega-se
a nós de várias maneiras, mas uma das maneiras mais importantes é
através do corpo de Cristo. Não devemos nos surpreender que, quan-
do oramos para que Deus Se revele em nossa dor, Ele vem na forma
de um cartão ou um telefonema de uma pessoa de nossa igreja que diz:
“Eu te amo. Estou orando por você. O Senhor está contigo.” Às vezes,
entramos na comunhão da igreja carregando o que parece ser um
fardo insuportável, e um irmão ou irmã em Cristo nos abraça e diz:
“Tenho pensado muito em você ultimamente. Quero que saiba que
você é amado e que tenho orado por você.” E, milagre dos milagres,
a presença encarnada de Jesus nos rodeia, quase como se Ele estivesse
nos carregando naquele momento com a tenacidade de um buldogue,
nos carregando pelos momentos mais desafiadores de nossas vidas.
Quando uma das minhas filhas era pequena, ela tinha medo do
escuro. Eu e a minha esposa sentávamos na cama dela e dizíamos:
“Não tenha medo. Jesus está aqui com você”.
Ela respondia: “Ok, mamãe e papai. Não vou ter medo.” No en-
tanto, não demorava muito para ouvirmos alguém batendo na porta
do nosso quarto. “Mamãe e papai, eu sei que Jesus está comigo, mas
preciso de alguém que seja parecido com vocês”.
Ela estava certa. Às vezes precisamos de alguém que se pareça
conosco. É isso que o corpo de Cristo é — a comunidade cristã é
Jesus em pele e osso. Através do calor humano das pessoas, cheios da
ilimitada compaixão e amor duradouro, somos abraçados e sustenta-
dos por Deus.

Resistência, caráter e esperança


Dor e sofrimento são coisas que normalmente queremos evitar.
Não é errado desejar conforto e saúde. No entanto, também sabemos

154
A GR AÇ A SUFICIENTE

que podemos encontrar alegria e até esperança em momentos doloro-


sos e angustiantes, porque sabemos que a força de Jesus é aperfeiçoada
em nossa fraqueza. Em outra carta aos cristãos do primeiro século que
moravam em Roma, Paulo disse: “E não somente isto, mas também
nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz per-
severança, a perseverança produz experiência e a experiência produz
esperança. Ora, a esperança não nos deixa decepcionados, porque o
amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que
nos foi dado” (Romanos 5.3-5). Mais uma vez, Paulo está se referindo
a virtude e formação de caráter à semelhança de Cristo.
Primeiro, o sofrimento produz perseverança. Os problemas, pres-
são e provações não são acidentes aleatórios do destino que não têm
relação com nosso objetivo final (telos) da semelhança a Cristo. Na
língua original do Novo Testamento, “perseverança” é a palavra
hypomone, que significa permanecer firme, não importa o que acon-
teça — permanecer firme, mesmo quando as pressões da vida surgem
diante de nós. As dificuldades produzem perseverança e a perseveran-
ça é a qualidade que diz: “Não vou desistir, não importa o que acon-
teça.” É parecido com uma corrida de longa distância. Suas pernas
estão pesadas, os pulmões precisam de ar, o coração parece que vai
explodir para fora do peito e você quer muito desistir. No entanto,
sabe que precisa continuar correndo porque, no exato momento em
que está desejando desistir, você está recebendo o maior benefício do
condicionamento físico. Isso é hypomone — perseverança sob pres-
são. Podemos nos regozijar em nossos problemas e provações, sabendo
que as pressões e até os sofrimentos da vida produzem resistência e
perseverança.
Segundo, a perseverança produz caráter. A palavra grega doki-
me se referia originalmente a um metal que foi refinado e do qual
foram removidas todas as impurezas. Os problemas e as provações
produzem perseverança e a perseverança produz força de caráter. O

155
C A MINHO • VERDADE • VIDA

caráter é desesperadamente necessário em todos os níveis da socieda-


de. Richard John Neuhaus enfatiza o ponto: “Sermos pessoas novas
em Cristo é pura dádiva de Deus; a construção do caráter é a concre-
tização desse presente. É um processo árduo de nos tornarmos quem
já somos, em Cristo. Requer respeito pelas experiências cotidianas,
pelos aspectos cotidianos da peregrinação cristã.”5 Neuhaus conclui
com firmeza: “O caráter implica coragem e graça para viver uma vida
boa em um mundo onde as necessidades não são, em grande parte,
atendidas”.6 Não se recebe força de caráter por procuração. Prevalecer
ao longo dos testes de situações da vida real produz perseverança e a
perseverança, quando justificada, produz integridade e profundidade
de caráter.
Terceiro, o caráter produz esperança. A esperança é a crença tran-
quila e certa de que Deus está conosco. A esperança é a expectativa
confiante de que, não importa o que o futuro traga, nosso companhei-
ro de jornada da graça sustenta o futuro. O problema central hoje em
dia não é o estresse elevado, mas a pouca esperança. Na verdade,
Thomas Langford afirma isso bem: “A esperança não é adiada para o
futuro; a esperança reformula a compreensão do passado e determina
a vida no presente. Vivemos transformados na e pela esperança”.7
Uma ilustração pode ajudar a esclarecer esta questão.8 Imagine
uma sala cheia de alunos do ensino médio. Você sevira para o aluno
que está à sua esquerda e pergunta: “Como está indo em seu último
ano do ensino médio?”
Ele responde: “Não estou indo muito bem. Reprovei em várias
disciplinas e, se eu reprovar em mais uma, não vou me formar. Vou
acabar repetindo o último ano.”

5. Richard John Neuhaus, Freedom for Ministry (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 90.
6. Neuhaus, Freedom for Ministry, 88.
7. Langford, Reflections on Grace, 107.
8. Ouvi esta ilustração num sermão pregado pelo Rev. Dr. Thomas Tewell nos anos
90 chamado “A Tenacidade de um Bulldog”.

156
A GR AÇ A SUFICIENTE

Você pergunta novamente: “O que você espera de seu futuro?”


“Bom, espero me formar em Maio e depois vou tentar entrar numa
faculdade no Outono.”
Depois você se vira para a aluna à sua direita e faz a mesma per-
gunta. “Como está indo em seu último ano do ensino médio?”
“Está indo muito bem”, diz ela.
“Você está pensando em ir para a faculdade?”
“Sem dúvida! Já fui aceita na Universidade de Harvard. Ainda
estou à espera de notícias de Princeton, Stanford e MIT, mas tenho
esperança.”
“Você deve ser uma aluna muito boa. Você se importa em me
dizer que lugar você está na classificação dos alunos?”
“Dos seiscentos alunos, sou a segunda melhor do meu ano, com
uma média de classificação de 4,3 pontos.”
“Uau! Isso é impressionante! Você se importa em me dizer qual foi
a tua nota no SAT (exame padrão amplamente utilizado para admis-
sões nas faculdades nos Estados Unidos)?
“Tirei 780 em matemática e 760 em linguística, que soma um to-
tal de 1540.” (800 é a nota máxima em cada categoria.)
“Isso é quase tão bom quanto meu resultado no SAT”, você acres-
centa ironicamente. “O que você vê no seu futuro?”
“Bom, espero me formar em Maio e depois ir para uma dessas
universidades para me tornar uma cientista pesquisadora.”
Você poderá pensar, “ela espera se formar?” Ela já se formou! Não
há dúvida.
Notou a diferença? O primeiro aluno estava esperando além do
que era esperado; a segunda aluna esperava, com certa confiança, que
isso acontecesse. Esperanças como esta não são adiadas para o futuro.
Elas remodelam a compreensão do passado e determinam a vida no
presente. Desta forma, somos transformados em e pela esperança. As
pessoas às vezes dizem: “Espero que Deus me ame. Espero que Deus

157
C A MINHO • VERDADE • VIDA

não me vire as costas. Espero que Deus não me abandone quando


estiver entre a espada e o escudo. Espero que Deus me sustente e me
fortaleça nos momento mais sombrios.” A esperança cristã se baseia
no amor passado, presente e futuro da cruz de Jesus Cristo e no poder
vivificador de Sua ressurreição. Esta esperança não nos decepciona
(Romanos 5.5). Estamos nas fortes garras da graça suficiente de Deus.
Ele se apega a nós com a tenacidade de um buldogue.

Nas tuas mãos, eu entrego o meu espírito


Não é por acaso que escrevi este capítulo durante a pandemia do
COVID-19, um tempo de grande incerteza e profundo sofrimento.
O Sábado de Aleluia, um dia antes da Páscoa, pretende ser um mo-
mento de tranquila reflexão sobre a morte de Jesus e de recordar Seu
tempo na escuridão de uma sepultura. Um dos textos lecionários para
este dia, o Salmo 31, continha as palavras que Jesus disse na cruz
antes de morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas
23.46). Jesus citou diretamente o Salmo 31.5, acrescentando apenas a
palavra Abba (“Pai”) à sua oração.
Das muitas coisas a serem aprendidas com esta oração de Jesus, a
que mais se destaca para mim no deserto do COVID-19, é que há uma
vasta diferença entre uma vida que é tirada e uma vida que é dada.
Jesus deixou claro no Evangelho de João: “Ninguém tira a minha
vida; pelo contrário, eu espontaneamente a dou” (10.18). Ele dá a Sua
vida livre e voluntariamente. A morte de Jesus na cruz não foi um
final trágico para uma vida promissora ou a decepção de uma missão
fracassada. Ela sempre foi o desígnio divino. A cruz era o plano cós-
mico de Deus para nos resgatar das trevas e das garras da morte dos
principados e potestades. Assim, o sacrifício de Jesus não foi imposto
a Ele — Ele o abraçou voluntariamente por nós. Ele sabia que estava
nas mãos de Deus e, por isso, podia dizer: “porque eu dou a minha
vida para recebê-la outra vez. Ninguém tira a minha vida; pelo con-
trário, eu espontaneamente a dou” (vv. 17-18).

158
A GR AÇ A SUFICIENTE

Deveríamos tirar um tempo para perguntar: nossa vida está sendo


dada ou tirada? Há uma grande diferença entre as duas coisas, prin-
cipalmente em relação à questão da confiança. “Pai, nas Tuas mãos
entrego o meu Espírito” significa que confiamos que a nossa vida está
sendo dada por algo maior e mais belo do que aquilo que poderíamos
realizar sem o nosso Pai celestial. Jesus, ao fazer essa oração no mo-
mento mais difícil de Sua vida, nos diz que já a fazia há muito tempo
— incluindo as orações agonizantes que fez no jardim do Getsêmani.
“Nas Tuas mãos” é uma oração de total rendição, porque, no fundo,
é uma declaração de que estamos nos retirando das mãos de outras
pessoas e circunstâncias — incluindo nossos próprios planos e pro-
pósitos — e estamos, voluntariamente, colocando nossas vidas nas
mãos de Deus. Com um poderoso sentido, isso redefine e reimagina
as experiências de nossas vidas, permitindo que as coisas aconteçam
conosco ou nos colocando aos cuidados de Deus para ordenar nossos
passos. Uma coisa é nos tirarem algo, a outra é entregarmos. Pode ser
uma perda ou uma rendição.
Jesus nos apresenta o chocante poder do sacrifício. Ele nos mostra
que, ao nos rendermos a Deus, somos capazes de transformar algo que
parece uma perda para todo o mundo, em algo que é um ganho para
todo o mundo. Quando Frederick Buechner diz: “Sacrificar algo é
torná-lo santo, dando-o por amor”, quer dizer que mesmo que alguém
esteja tentando arrancá-lo de nossas mãos, mesmo quando parece
que está fora de nosso controle, ainda podemos decidir como vamos
deixá-lo ir.9 Ainda podemos abrir nossas mãos no último momento
e revelar o que os outros pensavam que estava sendo tirado de nós
e o que as circunstâncias pareciam estar roubando de nós. Podemos
santificá-lo, fazendo-o por amor, entregando-o a Deus.

9. Frederick Buechner, Wishful Thinking: A Seeker’s ABC (New York: HarperOne,


1973), 10.

159
C A MINHO • VERDADE • VIDA

Na experiência surreal da pandemia do COVID-19, em que os dias


se tornaram semanas, era fácil sentir que algo nos estava sendo tirado.
Sentimos medo, raiva, incerteza e saímos de nossas zonas de conforto.
Tivemos uma escolha a fazer. Poderíamos nos fazer de vítimas e dizer:
“Algo está sendo tirado de mim”, ou poderíamos entregá-lo a Deus e
dizer: “Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito. Nos rendemos aos
Teus planos e propósitos. Nossas vidas não são nossas. A entregamos
porque pertencemos a Ti e a entregamos por amor, para que as possa
santificar”. Isso exige certa confiança de nossa parte, mas a recom-
pensa é a paz absoluta de saber que nossas vidas glorificaram a Deus,
que elas não são acidentes aleatórios ou falhas, mas que nossos dias
estão em Suas mãos. Na verdade, mesmo em nosso sofrimento, somos
mantidos em Seus braços. Nem mesmo uma pandemia global dita o
propósito e o significado de nossas vidas. Ninguém rouba as nossas
vidas — nós a entregamos. Essa é a realidade da nossa esperança.

A graça do lamento
A graça suficiente não elimina todos os nossos medos e dúvidas.
Não há como evitar: mesmo na esperança, há espaço para perguntas.
É possível ter fé mesmo quando há mais perguntas do que respostas. É
possível lamentar e manter a esperança ao mesmo tempo. Não é ape-
nas possível — também é bíblico. Chamamos isso de lamento. Dos
150 salmos no livro de orações que chamamos de Saltério, existem
diferentes variedades de salmos, incluindo ação de graças, realeza, as-
censão, lamento e até imprecatórios (orações que fazemos quando es-
tamos com ira). Os salmos nos oferecem exemplos, como a inspirada
Palavra de Deus, de como orar em toda e qualquer situação da vida.
Os salmos de ação de graça (hallel — de onde obtemos nossa pa-
lavra “aleluia”) são orações de louvor que oferecemos quando a vida
está bem ordenada e a presença de Deus parece estar especialmente
próxima. Os salmos de lamento, por outro lado, são as orações que cla-
mamos a Deus em nossa dor, quando a vida está difícil e turbulenta,

160
A GR AÇ A SUFICIENTE

sem fim à vista. As duas questões principais levantadas no lamento


são: “porque isto está acontecendo?” e “até quando?” Deus não apenas
permite estes tipos de perguntas, mas também é interessante notar
que 70% dos salmos bíblicos são orações de dor, não orações de lou-
vor — lamento, não hallel. O próprio Jesus orou um lamento (Salmo
22) durante Seu sofrimento na cruz.
A marca do lamento não é a dúvida, mas a confiança profun-
damente enraizada na fidelidade de Deus. Embora o lamento possa
começar como um grito de desespero, sua característica mais impor-
tante é a profunda confiança na natureza, caráter e poder de Deus
que está presente e é participativo e atento às trevas, fraqueza e sofri-
mento da vida. O lamento é a total dependência e total entrega a um
Deus que pode parecer distante, mas nunca está ausente.
Tenho um amigo que foi diagnosticado com um câncer raro.
Devido à doença incomum, os médicos estão tentando várias formas
de terapia, muitas das quais experimentais. Infelizmente, apesar dos
melhores cuidados e ciência disponíveis, o câncer continuou a se es-
palhar pelo seu corpo. Um dia, após outro relatório ruim, sua esposa
colocou este testemunho no Facebook: “Apesar das opções de trata-
mento médico estarem diminuindo, a realidade da presença de Deus
está aumentando.” Não conheço uma expressão mais bela de lamento
justo e esperança na graça suficiente de Deus.
Somos mais fortes em nossos momentos mais fracos quando o
Senhor está conosco do que em nossos momentos mais fortes sem
Ele. Temos essa certeza para a jornada da graça: a Sua força é aperfei-
çoada em nossa fraqueza. Essa é a esperança que não nos decepciona.
Deixemos que Pedro tenha a última palavra sobre a graça suficiente:
“E o Deus de toda a graça, que em Cristo os chamou à sua eterna
glória, depois de vocês terem sofrido por um pouco, ele mesmo irá
aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar vocês” (1 Pedro 5.10).

161
POSFÁCIO
JESUS CRISTO É
O SENHOR
Uma vida totalmente dedicada a Deus tem
mais valor para Ele do que cem vidas que foram
simplesmente despertadas pelo seu Espírito.
— Oswald Chambers

Muita coisa mudou nos últimos cem anos. Imagine nascer em


1920 e estar vivo no ano de 2020. Em apenas um século, o contexto
cultural em todas as regiões do mundo passou do industrial para a
informação (Gutenberg para Google), do rural para o urbano e do
pensamento moderno para o pensamento pós-moderno. Estas são
mudanças culturais tectônicas que permaneceram inalteradas nos
quinhentos anos anteriores. O que tinha sido um ambiente de mu-
dança contínua (o que é desenvolvido a partir do que foi antes e, por-
tanto, pode ser esperado, antecipado e administrado) durante meio
milênio, rapidamente mudou para uma situação de mudança rápida e
descontínua que era perturbadora e imprevisível.1 Estamos em águas
quase totalmente desconhecidas.

1. Alan J. Roxburgh, The Missional Leader: Equipping Your Church to Reach a


Changing World (San Francisco: Josey Bass, 2006), 7.

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

Estas mudanças que abalam os alicerces geraram novas situações


que desafiam pressupostos antigos de como o mundo funciona. Como
resultado, a eclesiologia (a natureza e a estrutura da igreja) e a missio-
logia (como a igreja se envolve na missão de Deus), por necessidade,
tornaram-se altamente adaptáveis sem se deixarem comprometer. No
entanto, em aspectos importantes, o que permanece constante neste
tempo de rápida mudança e descontínua é o princípio eterno de que
Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida — ou, nas palavras da mais
antiga confissão cristã: “Jesus Cristo é o Senhor”.
Quem consideramos “Senhor” é um alicerce essencial para a jor-
nada da graça. Se dissermos que “[PREENCHA O ESPAÇO EM
BRANCO] é ‘senhor’” (e realmente não importa se é outra pessoa,
outra coisa ou você mesmo), isso muda toda a narrativa, incluindo o
objetivo e o resultado final. Mas se realmente cremos que Jesus Cristo
é o Senhor, ordenado para sê-Lo de eternidade a eternidade, há ape-
nas uma resposta justa: discipulado. Richard John Neuhaus nos lem-
bra que o senhorio “não é apenas uma afirmação de fato, mas uma
promessa de lealdade pessoal e comunitária”.2 Porque Jesus Cristo é o
Senhor, queremos ser como Ele. Queremos fazer o que Jesus fez e viver
como Ele viveu. Essa é a definição do discipulado cristão e ainda é a
forma como Jesus entra em Sua igreja.
Dallas Willard argumenta convincentemente que o Novo
Testamento é uma coleção de livros sobre discípulos, por discípulos
e para discípulos de Jesus Cristo.3 Assim, o objetivo do discipulado
não é a autoatualização (“preciso encontrar o meu verdadeiro ‘eu’ e
o que é melhor para mim”) ou a resignação às forças do determinis-
mo (“não consigo evitar; eu sou assim”). De fato, pela perspectiva do

2. Neuhaus, Freedom for Ministry, 98.


3. Willard, The Great Omission, 3. Willard reitera que a palavra “discípulo” ocorre
269 vezes no Novo Testamento, enquanto “cristão” é encontrado três vezes e é
introduzido para se referir precisamente aos discípulos de Jesus em Antioquia (ver
Atos 11:26).

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POSFÁCIO

cristianismo, ser fiel a si mesmo é ser verdadeiro com a pessoa que


somos chamados por Deus Pai a ser, refeitos à semelhança de Seu
Filho. Seguir Jesus e tornar-se como Ele é o objetivo sem desculpas da
jornada da graça. João, o autor do Evangelho, se esforçou ao máximo
para nos dizer que Jesus se parece e age como Seu Pai: “Quem vê a
mim vê o Pai” (14.9), e que Jesus é o Verbo feito carne e, vindo de Seu
Pai, é cheio de graça e verdade (1.14). Quem Jesus é e o que Jesus faz
são dois lados da mesma moeda, uma realidade que levanta questões
importantes para a natureza do nosso discipulado.
Ao contrário do pensamento popular, Deus não é um velho senti-
mental com uma longa barba branca que acena a mão com desdém e
diz: “Não importa o que eles façam; Eu só quero que eles se divirtam
e aproveitem o tempo.” Deus também não é o Pai zangado, duro e
irritado, que mal pode esperar que seus filhos façam confusão, para
que Ele possa mostrar Sua ira e puni-los. O primeiro exemplo é a
graça sem verdade — a indulgência suave sem o fogo da santidade, o
que leva à permissividade irresponsável. O segundo é a verdade sem
a graça — uma religiosidade implacável que leva ao legalismo rígido
com pouco amor. Certamente não é fácil manter o equilíbrio entre
a graça e a verdade, mas ambos devem ser mantidos em tensão pela
necessidade e integridade do amor santo.
Fundamentalmente, o fato de tantas pessoas em nossas igrejas se-
rem cristãs de nome, mas não serem discípulas de Jesus Cristo, que é
o Senhor, é o grande problema da igreja hoje. Esse discipulado con-
sagrado (uma vida aprendendo a viver no reino de Deus como Jesus
fez) tornou-se opcional, exceto para os mais radicais entre nós — não
apenas porque perpetua a ideia de que Jesus pode ser seu Salvador
sem ser seu Senhor, mas, talvez mais importante, porque pressupõe
que a graça é dada para nos aceitar como somos, mas não tem relação
com o que nos tornamos.

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C A MINHO • VERDADE • VIDA

A observação de C. S. Lewis de que “o cristão não pensa que


Deus nos amará porque somos bons, mas que Ele nos tornará bons
porque nos ama” é simplesmente outra forma de dizer que Deus nos
ama como somos, mas também nos ama demais para nos deixar dessa
forma. O amor de Deus é amor santo. Então, o tipo de pessoa que
nos tornamos importa para Deus. O amor santo é cheio de graça e
verdade. O amor santo dissipa a graça barata. O amor santo torna-se
a condição e o meio para o discipulado. O amor santo exige que to-
memos nossa cruz e sigamos Jesus.
Se tomar nossa cruz parece uma mensagem difícil para nossos
dias, considere a alternativa: existência anêmica e insípida vivida
para si mesmo; religião sem relacionamento. Não posso escapar dos
comentários de Dallas Willard sobre o custo do “não-discipulado”
(suas palavras):
O custo do não-discipulado é muito maior (...) do que o preço
pago para andar com Jesus. (…) O não-discipulado custa a paz,
uma vida permeada por amor, a fé que vê tudo à luz do governo
superior de Deus para o bem, a esperança que permanece firme
nas circunstâncias mais desencorajadoras, o poder para fazer o
que é certo e suportar as forças do mal. Em suma, o não-disci-
pulado custa exatamente a abundância de vida que Jesus disse
que veio trazer (João 10.10). Afinal, o jugo em forma da cruz de
Cristo é um instrumento de libertação e poder para aqueles que
n’Ele vivem e aprendem a mansidão e a humildade do coração
que traz descanso à alma.4
O discipulado é uma jornada da graça que começa e termina com
Jesus, que é o Caminho, a Verdade e a Vida. O objetivo do discipu-
lado é seguir Jesus à medida que, pela graça, nos tornamos cada vez
mais parecidos com Ele. A jornada é iniciada e sustentada pela graça,
mas é realizada à medida que cooperamos livremente com Jesus como
Senhor.

4. Dallas Willard, The Great Omission, 8.

166
POSFÁCIO

Cristãos nascem; discípulos são formados. A semelhança de Cristo


é o nosso destino.

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