V10N19 Inv 2013 Artigo Alvaro Regiani

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2013

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013


Aprovado em ago. 2013

CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS DE HANNAH ARENDT PARA A


HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA

ÁLVARO REGIANI *

RESUMO
A história para Hannah Arendt era uma “categoria
da existência humana”, um juízo sobre as ações e os
atos entre os homens, era a narrativa sobre o
memorável que indicava a pluralidade humana e a
individualização dos seres humanos nas arenas
públicas. E servia para “aprender a lidar com o que
irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que
inevitavelmente existe”, nesta perspectiva a autora,
ansiava compreender os fenômenos humanos através
de um modelo antinômico as meta-narrativas do
século XIX. Para assim, garantir, através da
contingência, um procedimento que assegurasse a
liberdade, bem como construir uma teoria da história
que abarcasse sua categoria filosófica de ação.

PALAVRAS-CHAVE
História. Meta-narrativas. Antinomia. Teoria. Filosofia
política.

* Professor-especialista de História da América e História e cultura


afro-brasileira da UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS - UEG e membro
do Grupo de Pesquisa em imagens técnicas - GPTEC. Mestrando
em filosofia política pela UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UnB.

13
PARA A

ABSTRACT
The history for Hannah Arendt was a “category of
human existence” a judgment on the actions and deeds
HANNAH ARENDT

of men. Was the narrative about memorable indicated


a human plurality and individualization of human
beings in public arenas. And served to “learn to deal
with what has irrevocably and reconcile with what
inevitably exist,” this perspective the author, longed
DE

to understand human phenomena through a model


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

antinomian meta-narratives of the nineteenth century.


For thus ensuring through contingency, a procedure
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

that ensures freedom and construct a theory of history


that would encompass a philosophical category of
action.

KEYWORDS
History. Meta-narratives. Antinomy. Theory. Political
Philosophy.

14
A historiografia arendtiana compreendia a ação

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humana em uma perspectiva independente do
sentido histórico oitocentista, autonomamente a
qualquer pré-estruturação dos fenômenos temporais.
Seu conceito de história foi construído como um duplo
oposto à teleologia oitocentista. Ao se contrapor ao
pensamento metafísico na semântica do passado
Hannah Arendt, empreendeu uma desconstrução,
articulada nas intuições e filamentos de ideias de
Martin Heidegger e Walter Benjamim, aos regimes de
historicidades do pensamento moderno ocidental, em
especial nas filosofias da história de Immanuel Kant,
G. W. Hegel e K. Marx.
A desconstrução do regime de historicidade
moderno propõe a crítica ao tempo manipulável,
originado pela descoberta da “consciência histórica” e
constitui o principal limite entre a historiografia
moderna e a clássica. H. Arendt compreende a
existência de “intervalos” nesses dois regimes de tempo
e restitui as intuições de Walter Benjamim ao pensar a
historiografia por meio de um “tempo de hoje”,
propondo superar a “brecha” entre o passado e o futuro.
A desconfiança no “mundo processualmente
manipulável” nos aproxima das questões levantadas
pela filósofa Hannah Arendt, que ao postular uma cisão
entre o antigo conceito de história com o moderno esta
acentuou uma “brecha” entre essas duas concepções
de tempo. Dado que uma visão, a moderna, suplantou
as perspectivas da historiografia clássica, pois os
“processos invisíveis engolfaram todas as coisas
tangíveis e todas as entidades individuais visíveis para

15
PARA A

nós, degradando-as a funções de um processo global” 1,


o que gerou a perda das especificidades, ao mesmo
tempo, que revelou toda a ilusão de uma história total,
HANNAH ARENDT

própria dos séculos XIX e XX.


Ao procurar na crítica fenomenológica e na
historiografia clássica à possibilidade de contrapor o
sentido processual do encadeamento histórico contido
na ideia de progresso, Hannah Arendt articulou uma
DE

teoria da história que procurava restituir criticamente


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

e garantir algumas “ferramentas” para a disciplina dos


tempos. Seu conceito de história inicia-se, nas “origens”
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

da tradição ocidental, na experiência da Grécia clássica


por sua compreensão sobre a vita activa, (labor, obra e
ação). Para H. Arendt esta categoria foi “à única
experiência política autêntica” 2 por isso vinculou-se a
perspectiva histórica dos antigos como fruto da busca
pela imortalidade, bem como, da permanência das ações
memoráveis na esfera pública, para “preservar aquilo
que deve sua existência aos homens”. 3
Para construir este argumento H. Arendt
procurou na leitura do poeta Homero o princípio
norteador da arena pública grega, a imortalidade
reconhecida entre os pares. Na epopeia homérica, a
imagem do hístor, o árbitro (juiz), foi evocado por duas
1
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro
W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Debates; 64 /
dirigida por J. Guinsburg) pp. 95-96.
2
Cf. PAREKH. In. Simões Francisco, Maria de Fátima. Homero
como fonte da polis grega de Hannah Arendt. In. CORREIA,
Adriano; Nascimento, Mariângela. Hannah Arendt: entre o
passado e o presente. Juiz de Fora: UFJF, 2008.
3
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 70.

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vezes na Ilíada, a fim de apaziguar os conflitos entre os

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homens através da emissão de um juízo. No primeiro
caso, a celeuma entre Ájax e Idomeneu, sobre a vitória
em uma competição organizada por Aquiles, em
decorrência da morte de Pátroclo, foi decidida pelo
hístor, Agamêmnon. Em uma segunda cena, outro grego
assume o cargo de hístor, este foi chamado para resolver
um litígio entre dois homens, como é narrado no poema:
Mais além, perante / o povo, na ágora, dois homens
litigando / em torno de um delito; a lide: a morte
de outrem / e o resgate a ser pago em reparo do
dano; / um jurava ter pago o débito; afirmava / o
outro que nada recebera; um árbitro, ambos /
pediram, que julgasse o pleito; divididos / os
cidadãos, aos gritos, tomavam partido; os arautos
continham o povo; gerontes / sentavam-se nas sedes
de pedra polida, / sacro círculo; arautos portavam
seus cetros, / voz-sonora; tornado-os, erguiam-se e
ditavam suas sentenças: dois áureos talentos, no solo
/ postos, prêmio ao melhor juiz.4
A representação do árbitro no poema homérico
revelava, segundo H. Arendt, uma teia de relações
humanas com “suas inúmeras vontades e intenções
conflitantes” e servia como fundamento para a
compreensão do conceito de história no mundo grego.
Neste específico enredo, a arbitragem dos conflitos
humanos, necessitava conter em seu juízo a procura
pela verdade sob o signo da autoridade (auctoritati),

4
HOMERO, Ilíada. Cantos 496-509. P. 259 volume II. In.
CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero: Vol II / Homero;
Tradução Haroldo de Campos. 3º ed. São Paulo: Arx, 2002.

17
PARA A

pois, nos cantos da Ilíada, tanto Agamêmnon, quanto


o hístor acima citado, não estavam presentes nos
eventos, estes não eram testemunhas, mas em ambos
HANNAH ARENDT

os casos a emissão de seus julgamentos foram


reconhecidos como verdade por meio da posição em
que atuavam na esfera pública.
A legitimidade e a capacidade de “julgar o
ausente” estabeleciam-se através de uma autoridade,
DE

“que torna útil aos homens viver juntos (syzen) – ou


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

seja, (a comparticipação de atos e palavras)” 5. Assim,


as questões práticas das ações humanas seriam
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

resolvidas na arena pública da polis, o hístor emitia


sentenças dentro da esfera pública para “multiplicar a
fama imortal” e manter a unidade na esfera pública.
Quando o hístor homérico ocupava a posição
de árbitro na arena pública, este analisava a direta
correspondência entre o verdadeiro e o justo, bem como
a possibilidade da ação tornar-se um “ato memorável”.
O ato de “julgar o ausente” necessitava possuir uma
verdade dialogável com a esfera publica, para assim,
“louvar poeticamente” os atos dignos da imortalidade.
Desta forma a história antiga, fundada sob os preceitos
homéricos, oscilava entre a permanência e a ruptura
com o narrável, o que a aproximava da forma poética.
Ao se aprofundar na experiência grega, H. Arendt
observou uma mudança na perspectiva histórica, um
movimento entre a poesia e a averiguação. Para
Heródoto de Halicarnasso o ato de investigar (historiê)
5
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto
Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 209.

18
servia para preservar a existência da glória e a imortalidade

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humana preservando os atos do esquecimento. Heródoto
marca o momento de ruptura entre a poesia e a história,
atribuindo à investigação (historeîn) a característica
basilar para se guardar a memória (mnémon), para
transformá-la em conhecimento e “retardar o
desaparecimento dos traços da atividade dos homens” 6.
A memória poética reservava à imortalidade aos heróis
gregos, contudo Heródoto foi o primeiro a decidir narrar
a guerra contra os persas sob a perspectiva da verificação
e da mortalidade, ou nas palavras do “pai da história”:
Isso é o que tanto os persas quanto os fenícios dizem.
Eu, sobre essas coisas, não irei dizer que
aconteceram assim ou assado. Aquele que eu próprio
sei ter sido o primeiro a começar as ações injustas
contra os gregos, indicarei e prosseguirei a sequência
da narrativa, percorrendo por igual as pequenas e
grandes cidades dos homens. Pois a maioria das que
antigamente eram grandes tornam-se pequenas; e
as que, em meu tempo, eram grandes, antes eram
pequenas. Sabendo, portanto, que a felicidade
humana jamais permanece no mesmo ponto,
recordarei igualmente ambos os tipos. 7
A história de Heródoto tornava-se sinônimo da
investigação sobre a transitoriedade, um discurso que
6
DOSSE, François. A história. Tradução Maria Elena Ortiz
Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003. p. 13.
7
HARTOG, François. A história de Homero à Santo Agostinho.
Prefácios de historiadores e textos sobre história reunidos e
comentados por François Hartog organizador; Traduzidos
para o português por Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2001. (Humanitas) p. 47.

19
PARA A

resguardava a memória do esquecimento, para “que


nem os acontecimentos provocados pelos homens, com
o tempo, sejam apagados, nem as obras grandes e
HANNAH ARENDT

admiráveis, trazidas à luz tanto pelos gregos quanto


pelos bárbaros, se tornem sem fama” 8. Nesta definição,
Heródoto mantém a posição de árbitro contido na
epopeia homérica, mas concebe a investigação do
passado sob o signo do provisório. Assim, o historiador
DE

possuía autoridade para narrar os eventos transitórios,


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

assegurando a glória dos feitos humanos sem recorrer


à imortalidade da premissa poética.
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

Segundo Hannah Arendt a narrativa do passado


adquiriu uma semântica pública, dado que “a História
acolhe em sua memória aqueles mortais que, através
de feitos e palavras, se provaram dignos da natureza, e
sua fama eterna significa que eles, em que se pese sua
mortalidade, podem permanecer na companhia das
coisas que duram para sempre.” 9 Deste modo a vida
pública entre os gregos, “a conversa de cidadãos uns
com os outros” 10, sua “cidadania” nos assuntos públicos,
permitiu transpor o discurso para a narrativa das ações
políticas, ou seja, é a existência da política e seu
distanciamento com o ciclo natural que permite uma
historicidade “objetiva”, distante do absoluto poético.
O dialogo com os gregos, em especial sobre suas
definições históricas encontradas na Ilíada e nas obras
de Heródoto, tem para Hannah Arendt uma dupla
significação, a primeira, evidentemente, a característica
8
Ibidem p. 43.
9
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 78.
10
Ibidem. p. 82.

20
política inerente ao discurso histórico, à segunda, seria

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encontrar a separação da “humanidade” das “coisas
naturais”. De acordo com H. Arendt, a “concepção e
experiência gregas de natureza, que compreendia todas as
coisas que vêm a existir por si mesmas, sem assistência de
homens ou deuses” 11 eram distantes da mudança relativa
aos negócios humanos. Diante da condição de
transitoriedade do mundo, ou nas palavras de H. Arendt,
perante a “fragilidade dos negócios humanos”, uma vez que
“toda ação é fútil, ilimitada e de resultados incertos” 12.
Ao recorrer às ideias do filosofo Aristóteles 13,
sobre a “imortalidade do gênero humano” e a
“eternidade para as coisas que não mudam”, há para
H. Arendt uma distinção entre as categorias de
compreensão de tempo e as concepções imutáveis da
natureza, ou pelas palavras da autora “entre as coisas
feitas pelo homem e as coisas que existem por si
mesmas” 14. A mortalidade era destinada aos homens,
assim como a eternidade residia no ciclo da natureza e
também na poesia, portanto para os homens a “fama
imortal” era o que tornava os negócios humanos próprios
do ambiente vivenciado na polis, enquanto a imortalidade
da espécie humana conectava-se a noção de natureza
cíclica. Por isso, na categoria histórica, o memorável, o
“fazedor de grandes façanhas e de grandes palavras” 15,
distanciava-se da noção natural.
11
Ibidem. p. 70.
12
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 208.
13
Cf. ARISTÓTELES. Da Alma. Tradução de Carlos Humberto
Gomes. Lisboa: Edições 70, 2001.
14
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 72.
15
Ibidem. p. 77.

21
PARA A

O distanciar-se de um vinculo entre a ação


humana e uma naturalização da ação, era para Hannah
Arendt uma possibilidade de refutar, com base na
HANNAH ARENDT

tradição historiográfica, os paradigmas hegeliano-


marxistas que unificavam a esfera da ação a uma
naturalidade dos processos. A totalidade e a
racionalidade no processo histórico oitocentista
partiram do princípio de que existe uma natureza
DE

histórica, conduzida a uma finalidade (télos). Para essas


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

filosofias da história, a harmonia superava a


contingência, uma vez que ao definir o método histórico
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

como um desdobramento de uma lei natural, válida


para todas as épocas e atores, a história se aproximava
dos sistemas físicos newtonianos, ou um retorno a
concepções naturalísticas e causais. Assim como sugere
o historiador François Dosse:
À medida que a filosofia da natureza é guiada pelo
princípio mecânico, a história, considerada como
natureza, deve ser vista segundo um princípio de
geração mecânica, segundo uma teleologia que
designa, em Kant, o método de estudo da natureza
para tornar evidentes os princípios de unidade e de
coerência. A história cosmopolítica, segundo Kant,
é, portanto, concebida à maneira de um sistema de
corpos celestes e sua referência é o modelo
astronômico. Mas, a essa unidade que é a história
da humanidade, Kant dá uma direção que é a da
realização progressiva do direito dos homens.16
A história, para os modernos, passa a ser um
processo organicamente fundamentado em uma visão
16
DOSSE, François. Op. cit., p. 231.

22
holística e natural, a espécie humana segue uma

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“intenção da natureza”, segundo a expressão de Kant.
A ideia de um ordenamento processual dos eventos
humanos permitia a emergência de uma “astúcia da
razão” para Hegel ou a “luta de classes” para Marx. As
várias apropriações dessas visões promoveram a
construção de uma filosofia da história, cujo princípio
seria uma trama teleológica e mecânica, situada acima
das ações humanas, fundamentando uma corrente
historiográfica, o historicismo.
Em contraponto a essas teses, Hannah Arendt
anseia restituir a ação, não mais como função da “razão”
ou “produção”, mas sim, como “a mais alta atividade do
homem” 17. A ideia de progresso nos oitocentos impunha
ao tempo um significado regido por leis universais e
naturais, nitidamente ancorados em valores voltados para
a emancipação da espécie humana. Tal noção histórica
reconhecia a primazia das condições racionais sobre a
natureza e pressupunha a inteligibilidade de sua
sistematização como revelação auto-evidente. Esta
específica construção do historicismo europeu possibilitou
a harmonização das hipóteses aos “fatos sociais”, pois:
O significado está contido no processo como um todo,
do qual a ocorrência particular deriva sua
inteligibilidade, é que não somente podemos provar isso,
no sentido de uma dedução coerente, como podemos
tomar praticamente qualquer hipótese e agir sobre ela,
como uma sequência de resultados na realidade que
não apenas fazem sentido, mas funcionam.18

17
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 119.
18
Ibidem. p. 123.

23
PARA A

Assim, com a “descoberta” do “sentido do


processo” na modernidade, a história passa a ser
percebida como uma meta-narrativa, cujo sentido, não
HANNAH ARENDT

é mais a busca da recordação através dos atos, como


pensavam os gregos, mas da racionalização narrativa
dos processos prévios aos eventos, assim:
Na época moderna a História emergiu como algo
que jamais fora antes. Ela não mais compôs dos
DE

feitos e sofrimentos dos homens, e não contou mais


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

a estória de eventos que afetaram a vida dos


homens; tornou-se um processo feito pelo homem,
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

o único processo global cuja existência deveu


exclusivamente à raça humana.19
Ao confeccionar um paralelo entre a história antiga
e a moderna, em dois regimes de historicidade distintos,
H. Arendt objetivava propor uma antinomia ao sentido
processual da história, para assim, revelar a ação e o
discurso, como categorias básicas para a condição humana
na contemporaneidade. A importância que a autora
constrói sobre a indeterminação dos eventos, expõe o
ponto fulcral de sua filosofia e orientam seus leitores a
compreender o seu conceito de história como sendo
independente à teleologia proposta pela modernidade.
A destituição do um sentido histórico que
englobasse a noção de ação decorre da concepção de
que a “condição humana não é mesmo que a natureza
humana” 20, ou seja, não existe aquilo que permanece
idêntico, para Hannah Arendt a história era a “novidade
da novidade”. O ato, e não a ação podia ser concebida
19
Ibidem. p. 88.
20
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 17.

24
como memorável este foi o objetivo de conhecimento

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para a autora, uma objetividade sem a exclusão do eu 21,
ou seja, a questão era pensar o ser como uma cadeia
de mudanças indefinidas, no qual se permite,
politicamente, mudar continuamente o mundo.
A ação humana, projetada em uma teia de relações
onde fins numerosos e antagônicos são perseguidos,
quase nunca satisfaz sua intenção original; nenhum
ato pode jamais ser reconhecido por seu executante
como seu com a mesma alegre certeza com que uma
obra de arte de qualquer espécie será identificada
por seu autor. Quem quer que inicie um ato deve
saber que apenas iniciou alguma coisa cujo fim ele
não pode nunca predizer, ainda que tão-somente
por seu próprio feito já alterou todas as coisas e se
tornou ainda mais imprevisível. 22
As críticas de Hannah Arendt ao conteúdo das
meta-narrativas históricas tornaram-se pilares
argumentativos para o seu conceito de liberdade, este
erigido através das definições sobre a ação, estabeleceu
na promessa a garantia para a natividade. Através da
negação de conceber um mundo manipulável em
decorrência de uma suposta emancipação do gênero
humano, e contrária à perspectiva de “fazer à história”,
Arendt enxerga os problemas epistemológicos relativos
às categorias do historicismo, assim:
Se se toma a história como o objeto de um processo
de fabricação ou elaboração, deve sobrevir um
momento em que esse “objeto” é completado, e que,
21
Cf. ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 79.
22
Ibidem. p. 120.

25
PARA A

desde que se imagina ser possível “fazer a história”,


não se pode escapar à consequência de que haverá
um fim para a história. Sempre que ouvimos
HANNAH ARENDT

grandiosos desígnios em política, tais como o


estabelecimento de uma nova sociedade na qual a
justiça será garantida para sempre, ou uma guerra
para acabar com todas as guerras, ou salvar o mundo
inteiro para a democracia, estamos nos movendo
no domínio desse tipo de pensamento.23
DE

A “reconciliação com a realidade”, em uma


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

teoria antinômica da historiografia restitui estatuto do


HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

memorável em uma dupla conotação, impedir que a


história seja compreendida como uma sistematização
do gênero humano e conceber a disciplina do passado
através das categorias da ação como milagre e novidade.
Esse milagre arendtiniano, articulado pelo princípio da
ação, postula a compreensão dos eventos humanos
estão atrelados à categoria da contingência. Neste
sentido, o tempo em que decorre a ação, parte de duas
premissas, a imprevisibilidade e a irreversibilidade. A
natureza da imprevisibilidade, ou a possibilidade para
iniciar algo, (archein), se desenvolve em simultaneidade
com a ação e jamais por categorias a priori:
É da natureza do início que se comece algo novo,
algo que não pode ser previsto a partir de coisa
alguma que tenha ocorrido antes. Esse cunho de
surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo
início e a toda origem. [...] O novo sempre acontece
à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e
de sua probabilidade que, para fins práticos e

23
Ibidem. p. 114.

26
cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre

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surge sob o disfarce do milagre. 24
A ideia do ‘novo’, como semântica da
imprevisibilidade responde às propostas de previsibilidade
das ciências fundamentadas na ‘estatística’ e na
‘probabilidade’, permitindo assim, compreender a ação
como uma força regida pela promessa, a soberania do
contrato mútuo 25. Essa soberania é definida pela
“impossibilidade de calcular o futuro, e seus limites
são os mesmos limites inerentes à própria faculdade
de fazer e cumprir promessas” 26, ou seja, a ação decorre
no tempo presente, esta é regida pelo princípio da
promessa entre os homens, independente de qualquer
estruturação previa.
Somente na esfera da promessa, como uma
conjunção mútua de esforços, pode-se antecipar uma
questão, mas nunca prever, pois, a “capacidade de dispor
do futuro como se este fosse o presente, isto é, do enorme
e realmente milagroso aumento da própria dimensão
na qual o poder pode ser eficaz.” 27 Assim, o tempo da
ação é sempre mantido pelo presente, em uma constante
tensão entre a promessa e as ações imprevisíveis.
Hannah Arendt concebe que somente na
presença dos outros, sob o signo da pluralidade, se
constrói a promessa no espaço público que permite à
existência humana a propensão a ser um iniciador
(initium), que seria, entre outras a capacidade de
24
ARENDT, Hannah. Op. cit., pp. 190-191.
25
Cf.Ibidem. p. 256.
26
Ibidem. p. 256.
27
Ibidem. p. 257.

27
PARA A

lembrar sua origem e encenar a estória (story) da


humanidade 28. Este “algo” que se inicia na presença
entre outros, pressupõe também a premissa da
HANNAH ARENDT

irreversibilidade da ação, uma vez que os sujeitos foram


criados no mundo e em um tempo específico, estes se
tornam parte do mundo, podendo no futuro serem
esquecidos, mas não desditos.
A imprevisibilidade e a irreversibilidade da ação
DE

condiciona o conceito de natividade e servem como


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

garantia de um factum (fato) da pluralidade humana,


possibilitando uma leitura da contingência contrária a
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

ideia de naturalidade histórica. Ao articular uma resposta


às crenças num “movimento temporal e retilíneo”,
Arendt reflete sobre um tempo lacunar entre o passado
e o futuro, o homem como um fenômeno atemporal,
A trilha plainada pelo pensar, essa pequena picada
de não-tempo aberta pela atividade do pensamento
através do espaço-tempo de homens mortais e na
qual o curso do pensamento, recordação e da
antecipação salvam o que quer que toquem da ruína
do tempo histórico. 29
Esta suspensão do tempo, entre o pensar e o
agir, implicava uma análise conceitual, que como
procedimento historiográfico visava uma aproximação
“metafórica com o que aconteceu na consciência dos
homens”, para, em termos metodológicos, “observar
que o apelo ao pensamento surgiu no estranho período
28
Cf. CORREIA, Adriano. O significado político de natalidade:
Arendt e Agostinho. In. CORREIA, Adriano & NASCIMENTO,
Mariângela (orgs.). Op. cit., p. 25.
29
ARENDT, Hannah. Op. cit., p 40.

28
intermediário que por vezes se insere no tempo

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histórico” 30. As influências de M. Heidegger, W. Benjamim
e K. Jaspers eram presentes em sua obra tanto na constituição
do pensar o político quanto na desconstrução do sentido de
história, dado que, o aparecimento da consciência histórica
acontece num “intervalo de tempo totalmente determinado
por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda.
Na história, esses intervalos mais de uma vez mostraram
poder conter o momento da verdade”. 31
O princípio de natalidade tanto serve para
fundamentar a questão da liberdade, quanto, para
referenciar a história entre os homens numa perspectiva
sempre posteriormente às ações, rompendo assim com
a historiografia oitocentista, que concebia a história
como emancipação da espécie humana a partir do
postulado aprioristico, no qual o progresso é inexorável
e independente à ação dos indivíduos. Pois, segundo
a autora:
A ação, única atividade que se exerce diretamente
entre os homens sem mediação das coisas ou da
matéria, corresponde à condição humana da
pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem,
vivem na Terra e habitam o mundo [...] A ação seria
um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência
com as leis gerais do comportamento, se os homens
não passassem de repetições interminavelmente
reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da
mesma natureza e essência, tão previsíveis quanto a
natureza e a essência de qualquer outra coisa. 32
30
Ibidem. p. 35.
31
Ibidem. pp. 35-36.
32
ARENDT, Hannah. Op. cit., pp. 15-16.

29
PARA A

Assim, há uma implicação sobre a narração dos


tempos passados, de que se deve procurar as
implicações advindas da natividade, como o inesperado
HANNAH ARENDT

e o prometido, como discurso que significa as atividades


da Vita Activa.
Todas as atividades humanas possuem um elemento
de ação e, portanto, de natalidade. Além disto, como
a ação é a atividade política por excelência, a
DE

natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a


REGIANI, ÁLVARO. CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS

categoria central do pensamento político, em


contraposição ao pensamento metafísico.33
HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

Esta condição anti-aprioristica da história foi


articulada em uma teoria que procura, epistemologicamente,
encontrar uma dimensão para as ações sem recorrer aos
pressupostos metafísicos, típicos do historicismo
oitocentistas para construir uma perspectiva que permite
a contingência nos fenômenos humanos. A celeuma de
Hannah Arendt e sua principal contribuição, como
afirma Renata Torres Schittino, é “enfatizar o aspecto
da contingência” para a história e das possibilidades de
narração existentes sob o signo da pluralidade, própria
do ambiente social, e não da “indiferença dos atos
humanos” 34, promovidos pela sistematização do povir.
As tensões que fazem parte do espaço público
estão compreendidas em uma justificativa de permissão

33
Ibidem. P. 17.
34
SCHITTINO, Renata Torres. Hannah Arendt e o sentido da
história. In. NASCIMENTO, Paulo; BREA, Gerson; MILOVIC,
Miroslav (orgs). Filosofia ou política? Diálogos com Hannah
Arendt São Paulo: Annablume, 2010. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.p. 197.

30
aos homens agirem livremente, mesmo em desacordos,

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013


mas que compartilham o mundo em comum. Assim, a
compreensão fenomenológica da história em H. Arendt
pressupõe, mediante aos juízos sobre testemunhos
memoráveis, conceber a teia de relações humanas
independente das concepções históricas processuais, pois
segundo a autora, as meta-narrativas desembocaram na
“legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e
pretendendo estabelecer diretamente o reino da justiça
na terra, executa a lei da História ou da Natureza sem
convertê-la em critérios de certo e errado que norteiam
a conduta individual.” 35

35
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 514.

31
PARA A

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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HANNAH ARENDT

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DE

______ . Origens do totalitarismo. Tradução Roberto


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HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA. P. 13-33.

33

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