2015 - Yaísa de Arruda Martins
2015 - Yaísa de Arruda Martins
2015 - Yaísa de Arruda Martins
DISSERTAÇÃO
2015
II
Seropédica, RJ
Julho de 2015
UFRRJ / Biblioteca Central / Divisão de Processamentos Técnicos
920.71
135 f.
Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Curso de Pós-Graduação em
História.
Bibliografia: f. 111-121.
AGRADECIMENTOS
e nela seguimos lado a lado, juntamente, agora com Bárbara Winther, em nossa querida
República das Letras!!!
Gostaria também de agradecer aos funcionários da Rural que se dedicam a tornarem
nossas vidas mais fáceis, dentre eles cito dois em especial, Cheila Chaves secretária da
graduação que nos auxiliou no tão confuso “período 2012.3”, e em segundo, gostaria de lembrar
do amigo “tio” Zé que muito cedo nos deixou, mas onde quer que esteja, tenho certeza de que
está cuidando das meninas do F1!! Meu trabalho também foi realizado pra você, tio!
À minha família, fonte de inspiração, de carinho e de amor. Local onde aprendi que
devo ter meu próprio pensamento, e também a respeitar o pensamento do próximo. Local onde
descobri que força e superação andam lado a lado com o amor, e que desistir não é coisa que
fazemos. Por fim, aos motivos da minha existência, Ana, Elimário e Raisa, minha vida não teria
sentido, não seria organizada, não teria rumo, sem vocês. Só mais um adendo, muito obrigada
pelo Bolsa Família desses dois anos!
E por fim, gostaria de agradecer a Deus por me fazer superar todas as dificuldades e
adversidades que surgiram ao longo desses dois anos, pois sem a paciência que ele me fez
cultivar, jamais teria acreditado que dois anos sem uma fonte de renda fixa fosse possível de
ser logrado.
VII
Resumo: Esta dissertação tem como objetivo analisar as biografias elaboradas por Januário da
Cunha Barbosa, dentro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no período de
1839 a 1846, momento em que desempenhou o cargo de primeiro secretário perpétuo. O
trabalho também pretende preencher uma lacuna dentro da historiografia, na qual a imagem de
Cunha Barbosa está atrelada principalmente à atuação política no momento de Independência
do Brasil. O foco da investigação está nos escritos biográficos de autoria de Cunha Barbosa,
como parte relevante não somente da sua produção letrada individual, mas também do projeto
historiográfico do IHGB, ao qual essa produção manteve-se vinculada. Também proponho
como objetivos identificar as categorias de grande homem, gênio e de providencialismo
histórico que estão imbricadas nesses relatos biográficos, além de evidenciar o caráter
pedagógico e a função moralizante dessas biografias, cuja escrita está afinada com a concepção
exemplar de história, bem como a preocupação de seu autor em fazer desta modalidade de
escrita uma forma privilegiada de acesso ao passado da nação.
Abstract: This thesis aims to analyze the biographies written by Januário da Cunha Barbosa,
within the Brazilian Historical and Geographical Institute (IHGB) in the period from 1839 to
1846, when he served as the first perpetual secretary. The work also aims to fill a gap in the
historiography, in which Cunha Barbosa image is linked mainly to political activity at the period
of Independence of Brazil. The focus of research is on biographical writings of Cunha Barbosa
as an important part not only of their individual literate production but also the historiographical
project of IHGB to which this production has remained linked. I propose also aims to identify
the categories of great man, genius and historical providentialism that are embedded in these
biographical accounts, besides highlighting the pedagogical and moralizing function of these
biographies, whose writing is in tune with the exemplary conception of history as well as the
concern of its author to do this writing mode of a privileged form of access to the past of the
nation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
CAPÍTULO 1: UM BRASILEIRO ILUSTRE: CONSTRUÇÕES DA MEMÓRIA DE
JANUÁRIO DA CUNHA BARBOSA NO IHGB ................................................................ 24
1.1 As virtudes de um cônego ........................................................................................................... 24
1.2 Lembrado ou esquecido? ............................................................................................................. 39
1.3 O que os contemporâneos dizem? ............................................................................................... 54
CAPÍTULO 2: A ANTOLOGIA POÉTICA E BIOGRÁFICA DE JANUÁRIO DA
CUNHA BARBOSA ............................................................................................................... 58
2.1 Dizem por aí.... ............................................................................................................................ 58
2.2 Antologias Poéticas ..................................................................................................................... 63
2.3 O Pioneiro ................................................................................................................................... 65
2.4 A Biografia em dois momentos: análise das biografias dentro do Parnaso ................................ 71
2.5 Biografia como escrita da história ............................................................................................... 73
CAPÍTULO 3: VIDAS EXEMPLARES E CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA
NACIONAL ............................................................................................................................ 78
3.1 O panteon de Cunha Barbosa ...................................................................................................... 78
3.1.1 Letras e Armas ......................................................................................................................... 90
3.1.2 As exceções .............................................................................................................................. 93
3.2 Muito além do que os olhos podem ver: uma análise das categorias de providencialismo, gênio e
grande homem. .................................................................................................................................. 96
3.3 Grandes homens e o destino nacional ......................................................................................... 99
3.4 O gênio nacional ....................................................................................................................... 102
Considerações finais ............................................................................................................. 108
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 111
Fontes ..................................................................................................................................... 111
ANEXO - Perfil dos biografados de Januário da Cunha Barbosa na seção da Revista do
IHGB. ..................................................................................................................................... 122
9
INTRODUÇÃO
1
MARTINS, Yaísa de Arruda. Biografia, Memória e História nos Escritos de Januário da Cunha Barbosa.
Seropédica: UFRRJ/ICHS, 2013. Monografia de graduação.
2
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brazileiro. A produção dos vultos nacionais no segundo reinado. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, 2000, pp. 41-61.
3
Entre os textos memorialísticos dedicados ao cônego no século XIX, podemos destacar: SIGAUD, José Francisco
Xavier. Elogio Historico do Secretario Perpetuo Conego Januario da Cunha Barboza. RIHGB, Tomo XI, 1848, pp.
185-190 e SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros illustres (os contemporaneos), retratos dos homens
mais illutres do Brasil, na politica, sciencias e letras, desde a guerra da independencia até os nossos dias, copiados
por S. A. Sisson, acompanhados das suas respectivas biographias. Publicado sob a protecção de S. M. o Imperador.
RJ, Lithographia de A. S. Sisson, 1859-1861, Vol I.
4
SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros illustres (os contemporaneos), retratos dos homens mais
illutres do Brasil. op. cit., p. 111.
10
emancipação.5 Nesse contexto, é importante esclarecer que a imprensa periódica era um espaço
privilegiado para os debates políticos.6 Lúcia Guimarães destaca a atuação de Cunha Barbosa
nos acontecimentos que antecederam a Independência, período em que, ao lado de Joaquim
Gonçalves Ledo, fundou, em 15 de setembro de 1821, o periódico semanal nomeado Revérbero
Constitucional Fluminense (1821-1822), porta-voz dos ideais liberais e constitucionalistas.7
Além disso, também é conhecida a participação do cônego em episódios importantes desse
contexto, como o dia do Fico e a legislatura na Assembleia Geral, decisiva para o rompimento
com a metrópole.8
Com os desdobramentos do processo de separação entre Brasil e Portugal, Cunha
Barbosa foi mantido preso na Fortaleza de Santa Cruz, sendo deportado para a cidade portuária
do Havre, na França, juntamente com José Clemente Pereira e Gonçalves Ledo, por ordem do
ministro José Bonifácio.9 Seu exílio do país deveu-se à acusação de “republicanismo”, no
contexto da querela política entre os grupos de Gonçalves Ledo e dos Andradas.10 Cunha
Barbosa era membro da Loja Maçônica Grande Oriente, integrando o “grupo de Ledo” que, no
contexto de efervescência constitucionalista da década de 1820, defendia como ideal político
“um governo baseado na soberania popular, tendo D. Pedro como chefe escolhido pelo povo e
subordinado a seus representantes”.11 Já o “grupo do Bonifácio”, prezava uma constituição que
5
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Januário da Cunha Barbosa. In: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do
Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002, p. 394.
6
Lustosa salienta que o período entre os anos de 1821 e 1823 foi de intensa disputa de projetos políticos
antagônicos nas páginas dos periódicos, para mais detalhes ver: LUSTOSA, Isabel. Imprensa, Censura e
Propaganda no Contexto da Independência do Brasil. Estudios: Revista de Investigaciones Literaria y Culturales.
Julho-Dezembro, 2010, pp. 370-393. Disponível em: http://www.revistaestudios.com.ve. Acesso em fevereiro de
2013.
7
No segundo capítulo da presente dissertação será realizada uma discussão sobre os diversos trabalhos referentes
ao Reverbero Constitucional Fluminense, entre esses estudos está a pesquisa de: SILVA, Virginia Rodrigues da.
O Revérbero Constitucional Fluminense, Constitucionalismo e Debate Político na Imprensa à Época da
Independência. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho de 2011, pp. 1-16.
8
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Januário da Cunha Barbosa, op. cit., p. 394.
9
Andréa Slemian demonstra que o processo que culminou com a quebra do exclusivo colonial, começou em 1815
quando, mesmo depois da Restauração na Europa, o rei D. João VI, decidiu permanecer no Brasil, elevando a
colônia à condição de Reino. A insatisfação permaneceu até que no ano de 1820 eclodiu um movimento na cidade
do Porto, no qual a população pedia o regresso do rei a Portugal. SLEMIAN, Andréa. A Agitação política no Rio
de Janeiro após a Revolução do Porto. In: Vida Política em Tempo de Crise: Rio de Janeiro (1808-1824). Aderaldo
& Rothschild Editores, São Paulo, 2006, p.114.
10
Dicionário Biobliográfico de Historiadores, Geógrafos e Antropólogos Brasileiros (1839/1860). Vol. 6. Rio de
Janeiro: IHGB, 1998, p.28.
11
NEVES, Lúcia M. Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: cultura política da independência (1820-
1830). Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2003, p. 376. Como observa a autora, o Revérbero Constitucional Fluminense
defendia a monarquia representativa constitucional como a melhor forma de governo, apoiando a figura de D.
Pedro I, desde que o monarca se mantivesse subordinado às decisões da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa. A noção de “soberania popular”, neste caso, envolve a participação dos “homens bons” que
integrassem as Câmaras provinciais e o Senado.
11
12
Nessa disputa, o grupo de José Bonifácio garantirá espaço no início do governo de D. Pedro I. BARATA,
Alexandre Mansur. Constitucionalismo e sociabilidade na cidade do Rio de Janeiro (1822-1823): a Nobre Ordem
dos Cavaleiros da Santa Cruz e o projeto de Constituição para o Império do Brasil. In: Nação e Cidadania no
Império: novos horizontes. (Org.) José Murilo de Carvalho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007, p. 356.
13
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do Púlpito: Oratória Sagrada no tempo de D. João VI. São Paulo, Ed.
Unesp, 2010, p. 117.
14
Coleção Instituto Histórico. Carta Régia da Rainha de Portugal, nomeando o cônego Januário da Cunha Barbosa
comendador Honorário da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Paço de Cintra, 23 de
Julho de 1842. Lata 137, pasta 27.
15
Os trabalhos de Bianca Martins de Queiroz e Juscelino Pereira Neto, trazem a informação de que o cônego foi
deputado por Minas Gerais, porém o relato biográfico publicado por Sisson demonstra que ele foi convidado tanto
pela província de Minas Gerais quanto pela do Rio de Janeiro, porém como era natural da região fluminense,
assumiu o cargo por este local. SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros illustres (os contemporaneos),
retratos dos homens mais illutres do Brasil, na politica, sciencias e letras, desde a guerra da independencia até os
nossos dias. op. cit., p. 112.
16
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2011, Edições Anpuh. p.72.
17
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do Púlpito: Oratória Sagrada no tempo de D. João VI. op. cit., pp. 116-
120.
18
BARBOSA, Januário da Cunha. Nicteroy: Metamorphose do Rio de Janeiro. Londres, Impresso por Greenlaw,
1822.
12
Para registrar e divulgar os estudos produzidos pelos sócios, foi criada a Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a RIHGB, com publicação trimestral. Idealizada no
19
A Mutuca Picante. Rio de Janeiro, 1834-1835. Officina de Thomaz B. Hunt & C.
20
BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil,
tanto ineditas, como ja impressas. Rio de Janeiro, Typographia Imperial e Nacional, 1829-1832.
21
Breve noticia sobre a creação do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. RIHGB, Tomo I, 1839, pp. 5-8.
Sobre a SAIN ver também: BARRETO, Patricia R. Correa. Sociedade Auxiliadora da I. Nacional: uma oficina de
ideias. Anais do XIII Encontro Regional ANPUH-Rio, 2008. Disponível:
http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212685654_ARQUIVO_ARTIGOREVISADO.pdf.
22
SILVA, José Luiz Werneck. Isto é o que me parece: A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1827-
1904) na Formação Social Brasileira. A Conjuntura de 1871 até 1877. Dissertação de Mestrado – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1979. Vol I, p.91.
23
SILVA, José Luiz Werneck. Isto é o que me parece: A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1827-
1904) na Formação Social Brasileira. A Conjuntura de 1871 até 1877. Dissertação de Mestrado – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1979. Vol II, p.10.
24
SCHWARCZ Lilia Moritz. Os Institutos Históricos e Geográficos: Guardiões da história oficial. In: O
Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993, p.106.
13
mesmo ano de fundação da agremiação, o periódico teve como marco inicial de circulação o
ano de 1839.25
O material impresso na Revista constituir-se-á como fonte primária para esta pesquisa,
em especial as biografias produzidas no primeiro decênio de constituição do Instituto,
publicadas na seção intitulada “Biografias de Brasileiros Distintos por Letras, Armas e
Virtudes”.26 O recorte temporal foi delineado a partir do período de atuação de Januário da
Cunha Barbosa no IHGB, desde a fundação em 1839 até 1846, ano de seu falecimento,
coincidindo com a publicação de seus escritos biográficos na Revista.
Dentro do Instituto, Januário da Cunha Barbosa produziu diversos tipos de escritos,
dentre eles estão o “Relatorio sobre a Inscripção da Gavia”27; o “Programma – Se a introdução
dos escravos Africanos no Brazil embaraça a civilisação dos nossos indigenas, &c.,”28; o
“Programma. – Qual seria hoje o melhor systema de colonizar os Indios entranhados em nossos
sertões &.”,29 além de relatórios anuais apresentados como parte de sua função como primeiro
secretário perpétuo da agremiação.
Entre os seus textos mais célebres e citados entre os historiadores que estudam o século
XIX, está o famoso Discurso proferido no ato de fundação do IHGB, no qual, ao esboçar os
parâmetros sobre como deveria ser escrita a história do Brasil, exalta a importância da produção
de biografias e da sua publicação nas páginas da Revista do IHGB. Segundo ele, o registro das
vidas de brasileiros ilustres serviriam para “arrancar do esquecimento” e fixar a memória dos
grandes homens que construíram a nação. Em suas palavras,
Uma biographia dos mais preclaros Brazileiros é tarefa, de certo, mui superior
às forças de um só homem, attentas as nossas circumstancias; mas a gloria que
deve resultar de uma tal empreza accende o zelo dos que a teem encetado em
comunhão de trabalho, e reflectirá tambem sobre o nosso Instituto, porque são
do seu gremio os emprehendedores da desejada biographia brazileira; e se a
sua modéstia me previa de lhes dar os devidos louvores por uma obra de honra
25
No extrato dos estatutos do Instituto o relato de institucionalização da revista adverte que esta se “publicará de
tres em tres mezes um folheto, (...) Nesta revista se publicarão, além das actas e trabalhos do Instituto, as memorias
de seus membros que forem interessantes á historia e geographia do Brazil (...)”. Extracto dos Estatutos do Instituto
Historico e Geografico Brasileiro, 1839, Revista do IHGB, p. 18.
26
Para um levantamento das biografias publicadas na seção da Revista do IHGB, ao longo do século XIX, ver:
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no
Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2009, pp. 207-217. Tese de Doutorado.
27
PORTO ALEGRE, Manoel d’Araújo; BARBOSA, Januario da Cunha. Relatorio sobre a Inscripção da Gavia,
mandada examinar pelo Instituto. RIHGB, 1838, p. 77.
28
BARBOSA, Januario da Cunha. Programma – Se a introdução dos escravos Africanos no Brazil embaraça a
civilisação dos nossos indigenas, &c. RIHGB, 1839, Tomo I, p. 123.
29
BARBOSA, Januario da Cunha. Programma. – Qual seria hoje o melhor systema de colonizar os Indios
entranhados em nossos sertões &. RIHGB, 1840, Tomo II, p.3.
14
Nesse contexto, podemos perceber na figura de Cunha Barbosa, um desses padres que
conciliaram a vida eclesiástica com a atuação na cena política do Brasil oitocentista. Ao longo
da dissertação, e principalmente a partir do momento em que os escritos do cônego começarem
a ser analisados, serão perceptíveis a conjunção dessas atuações e sua inserção no espaço de
sociabilidades da Corte que, de forma direta, irá influenciar sua forma de pensar a história e de
escrever biografias.
30
BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. RIHGB, Tomo I, 1839, p.14. Nas citações dos textos da Revista do
IHGB, manterei a grafia e a pontuação originais.
31
SILVA, Ana Rosa Coclet da. Padres Políticos e suas redes de solidariedade: uma análise da atuação sacerdotal
no sertão de Minas Gerais (1822 e 1831). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 63, 2012, pp. 119-
120.
32
Idem, 121.
15
II
33
Ver, entre outros: DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir. Lições
de história. O caminho da ciência ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: FGV/ PUC-RS, 2010, pp. 15-31.
34
BENATTI, Antonio Paulo. História, Ciência, Escritura e Política. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato
Aloízio de Oliveira (orgs.). Narrar o Passado, Repensar a História. Campinas, SP: UNICAMP, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, 2000 (Coleção Idéias), pp. 66-71.
35
ALBUQUERQUE JÙNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história.
Bauru, SP/ Edusc, 2007, pp.57-58.
36
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão: biografia,
erudição e escrita da história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850). História. São
Paulo, v.26, n.1, 2007, p. 159.
37
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo na Formação do Império do Brasil: Autoconsciência
Moderna e Historização. Revista de História, nº159, 2008, p. 130.
38
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857, op. cit., p.50.
39
Idem, p. 55.
16
Dentro dessa perspectiva, vale ressaltar que o contexto em que Januário da Cunha
Barbosa publica grande parte de seus escritos é marcado por quatro momentos importantes da
política nacional: a Independência; o primeiro Reinado; a Regência e o início do segundo
Reinado. Nesse período, não havia uma compreensão consensual do que seriam a pátria, o país
e a nação, pois estas palavras não possuíam os significados que hoje lhes atribuímos. Também
é certo afirmar que, tampouco no início das Cortes Gerais em Portugal, havia a intenção
explícita de separação entre a colônia e a metrópole.40 É nesse contexto de crise política que
Cunha Barbosa atuou e desenvolveu seus escritos, em um dado momento mais combativo com
as palavras, defendendo suas ideias políticas nas páginas do Reverbero Constitucional
Fluminense, e em outro, elaborando biografias de figuras ilustres do passado colonial, com forte
acento moral e pedagógico, para servirem de exemplos para os cidadãos da recém-emancipada
nação brasileira.
Em grande parte dos trabalhos de pesquisa de história da historiografia e da história
intelectual do Brasil, a figura de Januário da Cunha Barbosa é recorrentemente mencionada por
sua atuação como fundador e primeiro secretário perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.41 Apesar de ser considerado um personagem memorável e ilustre no contexto
político do Brasil Imperial, existem poucos estudos que se debruçam efetivamente sobre os seus
escritos.
Entre as referências às obras do cônego, destaco o breve texto de apresentação de
Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira, sobre a antologia poética por ele organizada entre
os anos 1829-1832, intitulada Parnaso Brasileiro, ou Colleção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, Tanto Inéditas, como já Impressas, incluindo a obra entre os textos
fundadores da história da literatura brasileira.42 Dois estudos mais recentes, ainda em
40
JANCSÓ, István e PIMENTA, João Paulo Garrido. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira)”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta.
Formação história. A experiência brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 2000, pp. 129-132.
41
Entre esses trabalhos, destacamos: CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história. Historiografia e nação
no Brasil do século XIX. Diálogos, Maringá/Paraná, v. 8, 2004, pp. 11-29 e ARAUJO, Valdei Lopes de. A
Experiência do Tempo – Conceitos e Narrativas na Formação Nacional Brasileira (1813-1845). São Paulo: Ed.
Hucitec, 2008, pp. 107-188. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos: caminhos da
historiografia. Rio de Janeiro, n.1, 1988. e GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção
de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, a.
156, n. 388, jul./set., 1995.
42
MOREIRA, Maria Eunice; Zilberman, Regina. Januário da Cunha Barbosa: Parnaso brasileiro. In: O Berço
Cânone. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, pp.75-89.
17
andamento, têm por objeto a trajetória de Cunha Barbosa. O primeiro deles, o de Bianca Martins
de Queiroz, pretende elaborar uma biografia intelectual do cônego, tendo por foco não apenas
o alcance do projeto historiográfico do IHGB de fornecer um passado adequado às pretensões
da monarquia, mas apresentar “um panorama mais completo das principais referências
ideológicas” presentes no cenário político brasileiro do século XIX.43
O outro trabalho, de Juscelino Pereira Neto, também tem por foco a trajetória política
do cônego com a preocupação específica de cotejar as informações contidas nas biografias de
Cunha Barbosa, cruzando-as com os discursos daqueles que seriam os seus adversários
políticos. Dessa forma, pretende "sustentar como a inter-relação de categorias como o tempo e
passado - e, por conseguinte, a História - era dimensionada pelos elementos clássicos de
exemplo e imitação".44
Diferentemente da proposta de Queiroz e de Neto, que propõem estudos centrados na
trajetória política do cônego, pretendo focar a investigação nos escritos biográficos de autoria
de Cunha Barbosa, como parte relevante não somente da sua produção letrada individual, mas
também do projeto historiográfico do IHGB, ao qual essa produção manteve-se vinculada.
Evidentemente que, para investigar os escritos biográficos de Cunha Barbosa, será necessário
considerar a sua inserção nos quadros da elite letrada do Brasil imperial, entre os atores da
construção do Estado-nação, a partir de 1822.
Neste sentido, tomamos por referência a distinção proposta por Lúcia Maria Bastos
Pereira das Neves ao tratar da história política do Império no século XIX, entre dois grandes
grupos de figuras públicas e letradas: uma elite coimbrã e uma elite brasiliense. 45 Na primeira,
concentravam-se indivíduos que, por conta da ascendência social e familiar privilegiada,
concluíam sua formação na Universidade de Coimbra, tendo a magistratura como carreira
dominante, destacando-se entre seus integrantes os irmãos Andradas, José Bonifácio, Antônio
Carlos e Martim Francisco. Já a elite brasiliense, era constituída por sujeitos oriundos de
43
QUEIROZ, Bianca Martins de. Januário da Cunha Barbosa (1780-1846): A Trajetória de um dos Fundadores
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH, São
Paulo, julho de 2011. p. 1.
44
NETO, Juscelino Pereira. O Cônego Januário da Cunha Barbosa: Uma Trajetória Política na Corte Imperial
(1821-1846). Anais Volume 1: V Seminário de Pesquisa Programa de Pós-Graduação em História Social
Universidade Estadual de Londrina 18 a 20 de outubro de 2011, p. 138.
45
Vale ressaltar que Neves privilegiou, dentre outros sujeitos, os autores de veículos de transmissão da cultura,
como os folhetos e os periódicos da época, o que os transformava em produtores de bens simbólicos. NEVES,
Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais a cultura política da Independência (1820-
1822). Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.
18
famílias sem grande poder aquisitivo, nascidos e formados no Brasil e que, majoritariamente,
voltavam-se para a carreira eclesiástica.46
Como já foi destacado, a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve
diretamente ligada ao processo de consolidação do Estado Nacional, havendo, portanto, uma
direta vinculação da agremiação com o projeto político da nação recém emancipada. 47 Nesse
contexto, o IHGB ficou com a responsabilidade de construir uma historiografia que fornecesse
uma identidade própria e diferenciada do Brasil diante das demais nações.48
Ao abordar as diretrizes que orientaram os trabalhos dos sócios da agremiação, Manoel
Salgado Guimarães recorre ao célebre discurso de Cunha Barbosa, no qual o cônego afirma que
a busca, o arquivamento e a publicação de trabalhos e fontes referentes à história do país seriam
as tarefas centrais dos seus consócios.49 Uma das formas escolhidas para a constituição da
história nacional foi a construção de uma galeria de heróis nacionais, capaz de fornecer
exemplos para as próximas gerações.50
Em sua tese, Lúcia Guimarães apresenta uma análise de dados que possibilita uma
melhor compreensão do perfil dos sócios e da dinâmica das relações existentes no IHGB, nos
anos iniciais de sua institucionalização.51 Ao tratar da composição inicial da agremiação, a
autora percebe que grande parte dos sócios fundadores estiveram presentes em momentos
importantes da trajetória do Estado Imperial. Abordando o perfil de formação, ocupação e
origem social desses primeiros sócios, a historiadora utiliza como referência a hipótese de José
Murilo de Carvalho52, de que a homogeneidade ideológica do grupo foi propiciada
principalmente pela “socialização dos seus integrantes”.53 Carvalho entende que a educação e
a ocupação de cargos na carreira política forneceram as bases para a coesão das elites letradas
no Brasil imperial.54
46
Idem, pp. 86-87.
47
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos: caminhos da historiografia. op.cit.
48
Idem, pp. 5-6.
49
Idem, p. 4.
50
Idem, p.15.
51
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, a. 156, n. 388, jul./set., 1995.
52
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, pp. 13-47.
53
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). op. cit., p. 475.
54
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política
imperial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 21.
19
Nos anos 2000, com a ampliação dos estudos sobre o IHGB, o exame do material
publicado na Revista conquistou mais espaço nas pesquisas acadêmicas. Entre esses estudos,
está a tese de Temístocles Cezar, defendida na França, em 2002, sob a orientação de François
Hartog.55 Um dos pontos observados pelo autor ao analisar as relações entre a escrita da história
e a construção de uma “retórica da nacionalidade” no Brasil do século XIX, foi a centralidade
do gênero biográfico. Em suas palavras,
55
CEZAR, Temístocles. L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la
nationalité. Le cas Varnhagen. Paris: EHESS, 2002. Tese de Doutorado.
56
CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX. Métis: história
& cultura, v.2, n.3, jan.-jun. 2003, p. 74.
57
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brazileiro. A produção dos vultos nacionais no segundo reinado. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, 2000, p. 59.
58
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2009. Tese de Doutorado.
20
Outro ponto destacado pela historiadora é que, nesse momento, serão exaltadas as
características de “gênio” e “herói” dos indivíduos biografados.63 O “gênio”, na concepção dos
autores românticos, seria o intérprete perfeito de si e do mundo, ou seja, sua percepção daquilo
que o rodeava era mais aguçada do que a dos outros seres humanos, expressando essa
compreensão a partir de obras únicas e originais. Todos os indivíduos possuiriam a
potencialidade de ser um gênio, mas poucos, de fato, o seriam, daí o caráter “individualizador
e diferenciador da genialidade”. Já na categoria de “herói”, a ênfase estaria nas especificidades
de cada sujeito, servindo para a “construção de modelos de ação virtuosa”, passíveis de serem
seguidos e imitados.64
59
Idem, p. 190.
60
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista, op.cit., p. 156. A palavra francesa panteon (em português, panteão) designa o monumento
erigido para receber os restos mortais do homens ilustres. No caso das biografias produzidas pelos sócios do
IHGB, o “monumento” seria as páginas da RIHGB.
61
GONÇALVES, Márcia. Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro. In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial – 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
2009. Vol. II., p. 431.
62
Idem, p. 440.
63
Idem, pág. 454.
64
Idem, pp. 456-457.
21
A partir das referências mencionadas, meu trabalho pretende dialogar com estudos
sobre as relações entre biografia e história, contribuindo para uma análise focada na escrita
biográfica de Cunha Barbosa. Assim, buscarei compreender as vinculações do seu projeto
biográfico às tarefas da pesquisa e escrita da história nacional no IHGB, missão orientada pelo
princípio da fórmula clássica da historia magistra vitae, segundo a qual a história serve “como
coleção de exemplos – plena exemplorum est historia [a história é cheia de exemplos] – a fim
de que seja possível instruir por meio dela”.65
Também proponho como objetivos identificar as categorias de grande homem e de
providencialismo histórico que estão imbricadas nesses relatos biográficos, além de evidenciar
o caráter pedagógico e a função moralizante dessas biografias, cuja escrita está afinada com a
concepção exemplar de história, bem como a preocupação de seu autor em fazer desta
modalidade de escrita uma forma privilegiada de acesso ao passado da nação.
Sobre a temática do “grande homem”, será necessário considerar que a figura do herói,
no século XVIII, passou por um momento de crise, sendo contestado o seu caráter “semidivino”
em nome da razão iluminista, assim como os valores guerreiros e militares que esse herói
representava tornaram-se ultrapassados.66 Nessa nova condição, o mérito pessoal passou a ser
medido pelas contribuições de certos indivíduos em prol da humanidade e para a edificação de
um patrimônio cultural universal.67 Assim, segundo François Dosse, “o século XIX, com o
progresso dos valores liberais e democráticos, além do aprofundamento da questão social,
agravou a crise do herói, opondo-lhe uma estratégia de suspeita a fim de fazer valer outras
lógicas mais coletivas, sociais”.68 No contexto de formação dos estados nacionais, a noção de
“grande homem” adquire a conotação de “patriota exemplar”, ou seja, como aquele que
desempenhou, em sua vida, atos em favor da construção da nação.
Quanto à análise da categoria de “providencialismo histórico” nas biografias
elaboradas por Cunha Barbosa, podemos ressaltar como um dado importante para o
entendimento dessa relação a própria formação religiosa do cônego, além da atuação de
destaque no mundo eclesiástico na função de orador sacro do Estado imperial. O trabalho de
Giorgio de Lacerda Rosa salienta que a linguagem do providencialismo foi correntemente
65
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006, p. 43.
66
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. São Paulo, Edusp, 2009, p.166.
67
Idem, pp. 166-167.
68
Idem.
22
69
Nesse momento, a crise se revela na ruptura com o pacto colonial. ROSA, Giorgio de Lacerda. A Suprema
Causa Motora: O Providencialismo a Escrita da História no Brasil (1808-1825). Mariana, 2011, p. 15. Dissertação
de Mestrado.
70
CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX. Métis: história
& cultura, v.2, n.3, jan.-jun. 2003, pp.73-94. OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A
biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2009. Tese de
Doutorado.
71
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. op., cit.
72
BARBOSA, Januario da Cunha. Quadro resumido da vida de Grégorio de Matos Guerra. In: Parnaso Brasileiro,
ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Caderno nº5, p.47-
23
biográfico idealizado pelo primeiro secretário perpétuo, que tomará forma nas páginas do
periódico do IHGB a partir de 1838, e a idealização de um panteon de papel como tarefa
constituinte da escrita da história que começou a ser pensada dentro dessa instituição.
E, por fim, no terceiro capítulo, a análise das biografias de autoria de Cunha Barbosa,
incluídas na seção de brasileiros ilustres da Revista do IHGB, terá por base as noções de grande
homem, gênio e providencialismo histórico, categorias identificadas recorrentemente nos
escritos do cônego. Também procurarei identificar o perfil dos “brasileiros ilustres” eleitos pelo
cônego, as formas e estruturas narrativas com que suas biografias foram elaboradas, buscando
investigar como o elogio das vidas exemplares do passado colonial articulava-se à construção
da história nacional.
53. 1830; BARBOSA, Januario da Cunha. Breve notícia sobre a vida de Doutor Manuel Inácio da Silva Alvarenga.
In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja
impressas. Caderno nº6, p.28-32. 1830; BARBOSA, Januario da Cunha. Breve notícia sobre a vida de Domingos
Caldas Barbosa. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas,
como ja impressas. Caderno nº8, p.17-19. 1832.
24
CAPÍTULO 1:
UM BRASILEIRO ILUSTRE: CONSTRUÇÕES DA MEMÓRIA DE JANUÁRIO DA
CUNHA BARBOSA NO IHGB
Na citação acima, Silvio Romero, em 1888, lança duras críticas ao cônego Januário da
Cunha Barbosa. Seu principal intuito, assim como muitos de sua geração, era contestar o lugar
de produção historiográfica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que, desde a sua
fundação, estivera atrelado ao Estado monárquico, por isso o alvo em um dos capítulos de sua
História da Literatura Brasileira foi o primeiro secretário perpétuo.74 Diferentemente da visão
de Romero, grande parte dos elogios biográficos dirigidos à figura do cônego, realizados em
sua grande maioria por sócios do IHGB, não serão marcados pelas críticas, mas sim pela
exaltação de sua obra e de sua vida.
Apesar da criticidade, Romero revela dois pontos que fariam de Cunha Barbosa uma
“figura de valor”, o primeiro seria a atuação no movimento de emancipação do país, e o
segundo, a produção de biografias, as quais ele frisa serem seus melhores projetos. Mas será
que a figura de Januário da Cunha Barbosa poderia ser reduzida a “uma mediocridade cheia”,
como o define Romero? Ou será que essa imagem do cônego era compartilhada por todos os
letrados do século XIX?
73
ROMERO, Sylvio. Oradores Sagrados - Poesia Religiosa e Patriotica. História da Literatura Brazileira. Tomo
Primeiro (1500-1830), 1888, Rua do Ouvidor, 71, B.L. Garnier – Livreiro Editor, pp.335-339.
74
Sobre a “geração de 1870”, da qual Romero é um dos nomes mais destacados, Ângela Alonso salienta que,
embora abarcasse um grupo de intelectuais de origem social heterogênea, compartilharam a experiência de
“marginalização política” naquele contexto, daí a postura de contestação e crítica ao status quo imperial.
ALONSO, Ângela. Crítica e Contestação: o movimento reformista da geração de 1870. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais – Vol. 15, nº44, Outubro de 2000, pp. 35-36.
25
Para averiguar melhor essa suposição, analisaremos diversos trabalhos nos momentos
distintos em que o cônego foi rememorado, tanto no século XIX, quanto no XX. Vale atentar
para o fato de que as diferenças sobre a forma de retratar a figura do primeiro secretário
perpassam principalmente o lugar e o tempo de fala de cada autor.
Dentro do IHGB, a sessão de 8 de março de 1846 foi convocada de maneira
extraordinária, sendo dedicada à escolha do sócio que tomaria assento na posição de 1º
secretário perpétuo do Instituto, já que o então secretário Cunha Barbosa havia falecido no dia
22 de fevereiro do mesmo ano. É importante ressaltar que, na ata desta reunião consta que, no
ano de 1846, ainda não havia sido realizada nenhuma reunião dos sócios da agremiação, devido
à enfermidade do cônego. A partir desse ato, podemos analisar a perceptível necessidade da
presença de Cunha Barbosa para a execução das disposições da instituição. Na mesma ocasião,
foi proferida a transcrição do elogio fúnebre, realizado por Manoel de Araújo Porto Alegre, na
hora de “baixar o corpo á sepultura”.75 Nesse discurso, o então presidente e orador do IHGB
tenta demonstrar as duas faces que julgava mais importantes do cônego, afirmando que “sua
vida se dividiu entre o altar e a pátria”.76
O vocabulário no período da independência foi marcado pela diferença dos
significados dos vocábulos pátria, país e nação. 77 É provável que no momento em que o Araújo
Porto Alegre enuncia as qualidades do cônego e ressalta que sua vida havia sido voltada para
pátria, uma recente formulação e o crescente sentimento de pertença da nova configuração
política tenha sido evocada.
Em sua argumentação, o orador enfatiza o lado patriótico de Januário da Cunha
Barbosa, e evidencia que, ao fazer associações com instituições e academias do exterior, ele
havia divulgado o nome do Brasil por todo o mundo. Também chama a atenção para o fato de
que, desde os primeiros movimentos para a separação dos laços que uniam Brasil e Portugal, o
cônego havia sido um dos maiores defensores da implantação de um modelo de governo
monárquico, silenciando de certa forma os motivos de seu exílio, ou seja, a acusação de
republicanismo. Desse modo, Araújo Porto Alegre entrelaçava a vida do cônego com a do
75
Ata da 145ª sessão em 8 de março de 1846. RIHGB, Tomo VIII, 1846, pp. 144-152. O sócio eleito para ocupar
o cargo antes desempenhado por Januário da Cunha Barbosa, foi Manoel Ferreira Lagos.
76
Idem, p. 146.
77
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira). In: Viagem Incompleta: A Experiência Brasileira (1500-2000).
MOTA, Carlos Guilherme (Org.). 2ª edição, Editora SENAC, São Paulo, 2000, p. 130.
26
Império, ressaltando que o padre foi um dos maiores defensores da Independência, que “(...)
erguia a sua voz impavida para anathematisar uma politica oppressôra.”78
Ao mudar seu foco para a vida religiosa de Cunha Barbosa, o presidente do Instituto
ressaltava, principalmente, seu grande poder de eloquência: “O pomo espinhoso e ressequido
pelo sol ardente nos seus labios fluia mel; e a estrada escabrosa da virtude evangelica parecia-
se com as planicies do Edem quando era apontada pelo seu dedo de orador”.79
No decorrer de seu discurso, Araújo Porto Alegre elencava uma série de instituições
que lamentavam a morte do literato, dentre elas, a Assembleia de Cônegos, “um dos seus mais
bellos ornatos”; o Parlamento, que se privava de um grande produtor de documentos; a
Sociedade Auxiliadora que perdia o seu maior agente “permutador das riquezas naturaes”, fato
que, segundo Porto Alegre, podia ser comprovado nas páginas de O Auxiliador da Indústria
Nacional80. Do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Cunha Barbosa havia sido “o seu
maior apoio, a columna monumental de sua fundação: elle era o piloto que dirigia do fundo do
gabinete essas viagens scientificas, o depositario que recolhia e espelhava os thesouros occultos
de nossos annaes, o mais zeloso conservador de sua gloria e de sua existencia."; e, por último,
a Igreja também sofria a perda um de seus grandes oradores, um sacerdote ilustre, que era
generoso sem possuir bens.81
Assim como em grande parte dos elogios biográficos publicados nas páginas da
Revista do IHGB, Porto Alegre relatava que o cônego passara por diversas provações durante a
vida, entre elas estaria o período de exílio, assunto sempre controverso da vida do cônego. Nos
textos memorialísticos dos literatos do século XIX, ficam muito vagos os motivos da sua
expulsão do país, embora todos afirmem que Cunha Barbosa sofreu retaliações injustamente,
destacando que ele era inocente das acusações recebidas, como aponta Manuel de Araújo Porto
Alegre no trecho a seguir:
78
Ata da 145ª sessão em 8 de março de 1846, op. cit., p. 145.
79
Idem, p. 146.
80
O jornal O Auxiliador da Industria Nacional (AIN), do qual Januário da Cunha Barbosa era um dos responsáveis
pela redação, foi o meio de divulgação dos trabalhos desenvolvidos pela Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional (SAIN), local onde o IHGB foi pensado e criado sob seus auspícios, e teve como período de circulação
de janeiro de 1833 a dezembro de 1892, sendo publicado mensalmente. MURASSE, Celina Midiore. O Jornal O
Auxiliador da Indústria Nacional e a Campanha pela Fundação de Instituições Educativas: 1833 a 1850.
Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/39.pdf., acessado em 12 de Abril de 2014.
81
Ata da 145ª sessão em 8 de março de 1846, op. cit., p. 149.
27
De acordo com a fala do orador, Cunha Barbosa passou por momentos de miséria, -
esse fato é incorporado à sua narrativa para corroborar a ideia de que o cônego foi um grande
homem que venceu os percalços da vida – retornando ao país, inocentado das acusações
recebidas e colocado na posição de "(...) um dos creadores d'esta patria que possuimos, um dos
constituidores d'esta nova monarchia, e um constante sustentaculo da liberdade."83 Neste
mesmo trecho, o Araújo Porto Alegre faz alusão à deportação dos Andradas do país e, mais
especificamente, a José Bonifácio, afirmando que o cônego havia encontrado “(...) no meio do
Oceano aquelle mesmo que havia referendado o seu exilio (...)”.84 Nesse momento, o autor não
assume uma posição com relação à querela entre os grupos formados na época da
Independência, apenas relatando que ambos os lados eram inocentes. Neste caso, é perceptível
a premissa de que abordar assuntos sobre o passado recente do país era algo a ser evitado entre
os sócios do Instituto.85 No final de sua locução, Manuel de Araújo Porto Alegre propõe que
sejam erguidos bustos dos fundadores do Instituto,
82
Idem, pp.150-151.
83
Idem, p. 151.
84
José Bonifácio foi deportado para a França, após a dissolvição da Assembleia Constituinte, em novembro de
1823. Neste mesmo ano, absolvido das acusações de “republicanismo”, Cunha Barbosa retornava ao Brasil, após
o exílio, decretado por Bonifácio, então ministro, logo após a aclamação do imperador. Ver: NEVES, Lúcia Bastos
Pereira das. José Bonifácio. In: VAINFAS, R. (dir.) Dicionário do Brasil Imperial, op. cit., pp. 424-425.
85
Sobre o veto à história do presente no IHGB, ver: OLIVEIRA, Maria da Glória de. Brasileiros Ilustres no
Tribunal da Posteridade. In: Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 26, nº43: jan/jun, 2010, pp. 283-298.
86
Idem, p. 151. A proposta de Araújo Porto Alegre consta nos arquivos do IHGB nos seguintes termos: “Proponho
que o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil mande fazer o busto do conego Januario da Cunha Barboza (...)
que façam huma Sessao d’inauguração d’sua memória, assim como ao do outro fundador o general Cunha Mattos.
Segunda sessao de março de 1846. Manuel de Araújo Porto Alegre, passim.” Coleção Instituto Histórico, Lata
188, Doc. 23.
28
Nos anos que se seguem até a inauguração dos monumentos, muito pouco foi
comentado sobre a figura de Cunha Barbosa nas páginas da Revista do Instituto. Ainda no ano
de 1846, alguns sócios correspondentes remeteram cartas à sede do IHGB, relatando seus
pêsames quanto à morte do primeiro secretário perpétuo. Exemplo disso é a carta do sócio
Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, da Bahia, que escreveu “participando o doloroso
sentimento que lhe causara a morte do nosso secretario perpetuo (...)”.87 Outro sócio a transmitir
os pêsames, citado na mesma ata, foi o baiano Francisco Ezequiel Meira.88 Entre os sócios
correspondentes, o membro honorário da Argentina, Pedro de Angelis, também lamentou a
perda do cônego.89
Todas essas correspondências, principalmente as que versam na continuidade ao
auxílio às pesquisas do Instituto, trazem à tona a importância da figura de Cunha Barbosa, pois
na fala desses sócios é perceptível que o principal vínculo com o IHGB até aquele momento
era por via de correspondência com o cônego, tendo que, depois de sua morte, reafirmar seu elo
com os demais sócios da agremiação.
Ainda como desdobramento de seu discurso no velório de Cunha Barbosa, na sessão
do dia 17 de junho de 1847 é proposta por Manoel de Araújo Porto Alegre, juntamente com
Manoel Ferreira Lagos e Francisco Manoel Raposo de Almeida, uma sessão extraordinária para
“comemorar a saudade” dos membros falecidos do Instituto e também do príncipe Imperial
Dom Affonso.90 Na sessão do dia 28 de outubro, ficaria decidida a data desse evento para
relembrar os falecidos e inaugurar os bustos dos sócios fundadores: dia 22 de fevereiro de
1848.91 Nesse ano, ficou acordado que uma edição extra da Revista trimestral seria colocada
em circulação, contendo novos elogios e discursos em homenagem aos fundadores, Januário da
Cunha Barbosa e a Raymundo José da Cunha Mattos.
O décimo primeiro tomo da Revista é totalmente dedicado à publicação de discursos
declamados na sessão de homenagens a Dom Affonso e aos membros falecidos do Instituto.92
Os discursos e oblações iniciais são dedicados ao príncipe morto e a seus pais. É importante
87
Ata da sessão 148ª do dia 30 de abril de 1846. RIHGB, 1846, Tomo VIII, p. 289.
88
Ata da sessão 149ª do dia 14 de maio de 1846. RIHGB, 1846, Tomo VIII, p. 293.
89
Ata da sessão 152ª do dia 6 de agosto de 1846. RIHGB, 1846, Tomo VIII, p. 417. Dentro das atas do ano de
1846, diversos são os sócios que mandam suas condolências, mas já no ano de 1847 elas começam a escassear e
chega um momento em que não são mais perceptíveis nas páginas da Revista.
90
Ata da sessão 169ª do dia 17 de junho de 1847. RIHGB,1847, Tomo IX, 1847, p. 289.
91
Ata da sessão 181ª do dia 28 de outubro de 1847. RIHGB, Tomo IX, 1847, pp. 564-565. A data ainda sofreu
alterações e a cerimônia, de fato, ocorreu no dia 6 de abril de 1848.
92
Segundo os elogios proferidos nessa festividade, D. Afonso foi o primogênito de D. Pedro II, que havia falecido
ainda criança.
29
frisar que D. Pedro II estava presente na sessão, sendo esta a oportunidade que muitos literatos
tinham de arrecadar graças do Imperador, tanto para si, quanto para o Instituto.
Em seu discurso, o Presidente da agremiação, Candido José de Araújo Vianna, ao citar
que, no período anterior, muitos consócios haviam falecido, dispõe atenção especial ao cônego,
enunciando que: “entre elles [os sócios falecidos] deparareis com aquelle illustre Brazileiro que
concebêra a idéa da creação d’esta sociedade, que mais serviços lhe prestára, e cujo nome
andará sempre a par da recordação dos que promoveram a independência do Brazil (...)”. 93
Já no início de sua arguição, no “Elogio Historico Geral dos Membros Falecidos”,
Manoel de Araujo Porto Alegre defende o trabalho de rememoração do passado, entendendo
como primordial a lembrança dos membros fundadores já falecidos, pois “a vida do Instituto
está[va] intimamente ligada com a vida dos mortos”.94 Esses monumentos erigidos dentro do
Instituto, os bustos dos sócios fundadores, servirão não só como rito de homenagem aos mortos,
mas também farão parte do processo de criação de uma memória afetiva, a ser partilhada pelos
sócios presentes e futuros da agremiação. Como salienta Fernando Catroga,
93
VIANNA, Candido José de Araújo. Discurso do Presidente. RIHGB, Tomo XI, 1848, p. 88.
94
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. Elogio Historico Geral dos Membros Falecidos. RIHGB, Tomo XI, 1848,
p. 150.
95
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 25.
96
PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. Elogio Historico Geral dos Membros Falecidos. op. cit., p. 151.
30
alongou em seu discurso, pois outros sócios ainda iriam prestar homenagens a Cunha Barbosa,
concluindo:
97
Idem, p. 152.
98
Idem, p. 152.
99
SIGAUD, J.F. Elogio Historico do Secretario Perpetuo Conego Januario da Cunha Barboza. RIHGB, Tomo XI,
1848, p. 190.
31
pois, logo que teve idade suficiente, entrou para o corpo secular da instituição. Outra área de
atuação destacada no “Elogio Histórico” é o jornalismo, com a referência da contribuição de
Cunha Barbosa no Revérbero Constitucional Fluminense, empreendimento desenvolvido
juntamente com Gonçalves Ledo.
A narrativa de Sigaud apresenta-se de forma linear, começando com o nascimento e
passando rapidamente para o período em que Cunha Barbosa tomou parte do corpo eclesiástico
da igreja, no qual produziu diversos “(...) sermões e orações de graças altamente attestam a
tendencia se suas ideias progressivas, e reflectem a época social e politica em que foram
pronunciadas.”100 Dessa forma, Sigaud sustenta que, mesmo sendo padre, o primeiro secretário
nunca esteve desvinculado das causas sociais e políticas.
Depois dessa introdução, Sigaud menciona o período em que Cunha Barbosa esteve
no exílio e, por último, destaca o momento em que o cônego atuou nos quadros da SAIN
(Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional). Ao relatar mais demoradamente sua atuação
como letrado, o autor incluiu a fundação do Instituto entre os grandes feitos de Cunha Barbosa,
descrevendo-o como um dos pilares dessa agremiação. Referindo-se à sua participação na
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, a qual o IHGB esteve atrelado em seus anos
iniciais, ressaltava que essas instituições forneciam “a imagem reveladora das idéias e das
oscilações da época actual”, formulando mais uma vez, a imagem de um homem que cuja
trajetória sintetizava uma multiplicidade de eventos.101
Ao relacionar o texto de Sigaud com o de Romero, podemos perceber um aspecto já
salientado anteriormente. Romero situa-se em um momento em que a posição do IHGB, como
instituição vinculada à ordem monárquica imperial, será alvo da crítica da “nova geração” de
1870, enquanto Sigaud elabora o seu discurso em um contexto anterior e, na condição de
membro daquela agremiação, faz a exaltação de um consócio que também não deixa de ser um
elogio dirigido à própria instituição.
Ainda no tomo de 1848, a Revista publicou os discursos proferidos na cerimônia de
inauguração dos bustos dos fundadores do Instituto. Na ocasião, o então presidente, Candido
José de Araújo Vianna, enfatizava que os fundadores também deveriam ser lembrados por seus
escritos e por suas “vidas illustres” e, por isso serviriam de exemplo para os cidadãos
brasileiros. Em suas palavras, o objetivo da homenagem era “patentear nos vultos d’esses
100
Idem, p. 191.
101
Idem, p. 187.
32
varões respeitaveis, nas suas feições amenas e expressivas, [...] a generosidade, o patriotismo,
a humanidade, e mais virtudes que os ornaram (...)”.102
O discurso de Araujo Vianna ressalta o quão breve foi a vida dos fundadores do IHGB,
posto que o Marechal Cunha Mattos falecera três meses após a sua fundação e Januário da
Cunha Barbosa apenas sete anos depois. Para aproximar afetivamente o público com os
homenageados, afirmava que não estes não seriam lembrados apenas pelos monumentos de
metal e pedra, mas sim por seus escritos e pelo exemplo de suas vidas “illustres”. E, para isso,
certificava ser necessário
patentear nos vultos d’esses varões respeitaveis, nas suas feições amenas e
expressivas, que soube conservar habil artista, a generosidade, o patriotismo,
a humanidade, e mais virtudes que os ornaram(...)103
Outro discurso incluído nessa cerimônia foi o de Manuel de Araújo Porto Alegre, o
sócio que mais escreveu e se manifestou sobre a vida do cônego nesse momento post mortem.
Mais uma vez, o orador do Instituto exaltava as qualidades de Cunha Barbosa, referindo-se aos
três campos em que sua atuação havia sido mais profícua, o púlpito, a literatura, e a ciência,
acrescentando que
Nessa fala podemos perceber que Porto Alegre dá maior ênfase às facetas religiosa, de
homem de letras e de poeta, associadas à vida de Cunha Barbosa. Quanto a isso, também é
possível salientar que no momento em que o orador se refere à musa que supostamente inspirara
o cônego, reforça a imagem de um grande homem com atuação multifacetada que combinou as
atividades religiosas, literárias e científicas.
Assim como Araújo Porto Alegre, grande parte de seus biógrafos destacam três
virtudes que retrariam a sua vida: a bondade, a generosidade e o amor à pátria. Este último
102
VIANNA, Candido José de Araújo. Discurso do Presidente. RIHGB, Tomo XI, 1848, p. 218.
103
Idem.
104
PORTO ALEGRE, Manoel de Araújo. Discurso do Orador. RIHGB, Tomo XI, 1848, p. 229.
33
atributo é o mais enfatizado pelo orador do Instituto, ao salientar que a maior qualidade do
cônego foi a de ser inimigo de todos os antagonistas da pátria.105
Ao abordar a produção de Januário da Cunha Barbosa, o orador agrega que este deixou
grande acervo de escritos, por isso percebe que três instâncias lastimam perdas com sua morte,
o clero, do qual era um brilhante “florão”, as letras, campo no qual desempenhou um apostolado
incansável e a pátria da qual era um útil servidor. Por esses atos, Porto Alegre afirmava que a
glória do povo brasileiro repousava em seu túmulo, inserindo o primeiro secretário no hall de
brasileiros ilustres, que serviam de exemplo para as gerações presentes e vindouras.106
Outro elogio biográfico inserido nessa celebração é de autoria do segundo secretário
do Instituto. Francisco de Paula Menezes observava que para falar de um homem ilustre como
o primeiro secretário, era preciso discorrer sobre um período inteiro de ilustração.107 Menezes
alegava assim que Cunha Barbosa foi um homem ativo, e sempre se dedicou principalmente às
áreas que estavam ligadas ao desenvolvimento de suas capacidades intelectuais.
O discurso de Francisco de Paula possui uma estrutura narrativa diferente dos outros
elogios biográficos proferidos nessa cerimônia.108 Seu texto se inicia de forma a rememorar a
vida do cônego, tocando principalmente em pontos relativos à sua atuação como primeiro
secretário do Instituto. Inicialmente, levanta a grandiosidade de Januário da Cunha Barbosa,
como pode ser exemplificado na passagem abaixo:
e tu, ô meu illustre e saudoso mestre, gloria das lettras e da patria, dá que eu
me inspire na contemplação da tua memoria respeitavel, das sublimes
inspirações de teu genio, para que possa fallar de ti, retratar-te tão digno como
fôras por tuas qualidades e virtudes, tão sublime como o eras em teus
momentos de gloria! Anima-me, oh verdadeiro genio! para que menos
temeroso eu vá caminho de tantos obstaculos.109
105
Idem, p. 230.
106
Idem, pp. 230-231.
107
MENEZES, Francisco de Paula. Elogio Historico do conego Januario da Cunha Barboza. RIHGB, Tomo XI,
1848, p. 241.
108
É importante lembrar que grande parte desses discursos são lidos e apresentados inicialmente de forma oral,
nas sessões comemorativas, para somente depois serem transcritos e impressos nas páginas da Revista do IHGB.
SOUSA, Francisco Gouvea de. Proclamação e revolta: recepções da República pelos sócios do IHGB e a vida da
cidade (1880-1900). Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, 2012, PUC-Rio. p. 21.
109
Idem, p. 242.
34
primeiro é que, ao iniciar sua fala, o segundo secretário do Instituto usa o vocativo (“ô meu
illustre e saudoso mestre”), referindo-se ao cônego como se ele estivesse fisicamente presente
no auditório. Já o segundo, é a utilização da categoria de gênio para designar o conjunto de
virtudes e qualidades que o distinguiam como homem ilustre. Segundo Márcia Gonçalves, a
partir do momento em que as vidas e feitos dos biografados nas galerias de brasileiros ilustres
do século XIX, confundem-se com os acontecimentos da nação, é perceptível que esses
indivíduos são designados pelas categorias de gênio e de herói sobretudo pela acepção moderna
da primeira. Como vimos acima, nos elogios biográficos sobre Cunha Barbosa, os autores
exaltavam as suas qualidades e virtudes excepcionais como homem de letras, bem como o
caráter “heroico” de sua trajetória política.110 Para Gonçalves, os conceitos de gênio e herói,
presentes nas narrativas biográficas do Oitocentos, são usados como “sínteses de valores e
ideias da ação dos homens no mundo”, demarcando a sua condição de “seres no e do tempo”
cuja percepção acompanhou a experiência da modernidade. Assim, além de exaltar as
qualidades daqueles que não podiam ser esquecidos, os elogios biográficos também serviam
para demarcar como e por que eles deveriam ser lembrados, contribuindo para tornar as
histórias de vida de alguns indivíduos eleitos em elementos essenciais da construção da própria
memória nacional. 111
Em seu elogio histórico, Francisco de Paula descreve os momentos iniciais da vida do
cônego, reforçando a ideia de que o biografado desde jovem manifestava talentos que se
realizariam em momentos posteriores de sua vida, um pressuposto comum na composição de
biografias no Oitocentos, como na seguinte passagem: "Foi d'este homem superior [Manoel
Ignacio de Alvarenga] que bebeu o jovem alumno as fecundas lições da arte dos Ciceros, em
que mostrava não vulgar aptidão."112 Ao assinalar a vocação que o cônego possuía para as letras,
Paula Menezes destaca a importância da retórica na formação de Cunha Barbosa e o seu
excepcional talento para a arte oratória, na qual teve grande proeminência nas décadas de 1810
e 1820. Como um de seus principais mentores, Ignacio de Alvarenga, seria biografado pelo
próprio Januário para o panteon do IHGB.113
110
GONÇALVES, Márcia. Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro. In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial – 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
2009. vol. II, pp. 454-455.
111
Idem.
112
MENEZES, Francisco de Paula. Elogio Historico do conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., p. 243.
113
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. RIHGB. Tomo III, 1841, pp.338-346.
35
No final de seu discurso, Francisco de Paula relata que, da mesma forma com que
viveu, o cônego morreu pobre e respeitado, pois sua vida foi um aglomerado de grandes feitos.
Reserva os momentos conclusivos de sua fala para fazer um agradecimento ao Imperador, como
já dito anteriormente presente na festividade, por este ser um mentor para as letras no Brasil, o
que proporcionou Januário da Cunha Barbosa e outros letrados desenvolverem seus
trabalhos.116
Fora das páginas da Revista do IHGB, a figura do cônego também será rememorada
por outros letrados. Um dos principais textos sobre a vida de Januário da Cunha Barbosa seria
incluído na Galeria dos Brasileiros Illustres, de Auguste Sisson.117 O texto publicado pelo
litógrafo francês é, na verdade, um dos discursos compostos para as festividades de inauguração
dos bustos dos fundadores. Esse fato corrobora algumas considerações feitas por Temístocles
114
MENEZES, Francisco de Paula. Elogio Historico do conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., p. 249.
115
Idem, p. 251.
116
Idem, p. 258.
117
SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros illustres (os contemporaneos), retratos dos homens mais
illutres do Brasil, na politica, sciencias e letras, desde a guerra da independencia até os nossos dias, copiados por
S. A. Sisson, acompanhados das suas respectivas biographias. Publicado sob a protecção de S. M. o Imperador.
Rio de Janeiro: Lithographia de A. S. Sisson, 1859-1861, pp. 109-112. Vol. I.
36
Cezar sobre a obra de Sisson, sendo uma delas a afirmação de que os textos biográficos que
compõem a Galeria foram redigidos por vários autores, e que somente as litografias dos
biografados seriam de sua autoria.118 Embora não possua a assinatura de um autor, é possível
identificar que o texto biográfico dedicado a Cunha Barbosa, incluído na Galeria, e o Elogio
de Sigaud são idênticos. Para demonstrar, transcrevemos os parágrafos iniciais de ambos, nos
quais se percebe que a redação é a mesma, com pequenas alterações na grafia:
Outro esboço biográfico realizado ainda no século XIX, está no terceiro volume do
Anno Biographico, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado no ano de 1876. Com estrutura
narrativa similar à dos outros elogios ressaltados anteriormente, a nota biográfica de Macedo
perpassa os pontos mais conhecidos da vida do cônego, sempre de forma cronológica. Esse
texto é claramente inspirado no elogio de João Francisco Sigaud, de 1848. Porém, traz alguns
dados antes não mencionados, um deles é o motivo da viagem do cônego a Minas Gerais, que
acabou culminando no seu exílio. Para Macedo, esse deslocamento ocorreu em virtude da
anunciação da Independência, “afim de cooperar para a imediata aclamação do imperador D.
118
CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX. Métis: história
& cultura, v.2, n.3, jan.-jun. 2003, pp. 84-85.
119
SIGAUD, J.F. Elogio Historico do Secretario Perpetuo Conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., pp. 186-
187.
120
SISSON, Sébastien Auguste. Galeria dos brasileiros illustres (os contemporaneos). op. cit., p. 111.
37
Pedro I que poderia achar obstaculo no governador, que era o fidalgo portuguez D. Manoel da
Camara (...)”.121
Outro ponto interessante a ser ressaltado, é a ênfase que Macedo dá à troca de lado
político do cônego, afirmando que “aplaudido liberal em 1821 e em 1822; de 1828 em diante
incorreu no desagrado e nas desconfianças dos liberaes, principalmente depois que se
encarregou do Diario do Governo.”122 Essa mudança ideológica também será abordada por
Feijó Bittencourt, em 1946, na biografia que será analisada no próximo subcapítulo.123
Já quase no século XX, outro elogio será composto, fora das páginas da RIHGB.
Sacramento Blake em seu “Diccionário Bibliographico Brazileiro”, de 1895, afirma que o
cônego “(...) foi um dos primeiros e mais esforçados obreiros de nossa Independencia”. O
verbete biográfico de Blake é claramente embasado nos discursos memorialísticos
desenvolvidos no IHGB, tanto que, no final de seu texto, cita um trecho do elogio de Manuel
de Araújo Porto Alegre, recitado no velório do cônego, em 1846. 124
Retornando ao Instituto, uma das últimas citações encontradas nas atas da Revista do
IHGB, referente à vida do cônego, está na sessão do dia 24 de outubro de 1867, quando uma
carta do procurador geral José Luiz Alves ao presidente do IHGB, Visconde de Sapucay, foi
exposta, tendo por conteúdo a pesquisa sobre os túmulos dos fundadores da Instituição. Alves
relata que, entre as urnas fúnebres das catacumbas da igreja da Venerável Ordem 3ª dos
Mínimos de São Francisco de Paula, haviam sido encontrados os restos mortais do marechal
Raymundo José da Cunha Mattos. Já os restos de Cunha Barbosa não foram encontrados e,
segundo o procurador, teriam se perdido pelo descuido e indiferença de seus parentes.125 No
século XX, novos bustos serão construídos para serem instalados nos túmulos dos fundadores.
Nesse momento, pouca importância será dada ao trabalho de José Luiz Alves que acusara o
desaparecimento dos restos mortais de Cunha Barbosa, assunto ao qual retornaremos adiante.
É interessante perceber que, no momento em que as comemorações do cinquentenário
de criação do IHGB foram realizadas, o cônego não é mencionado nas poucas citações sobre a
121
MACEDO, Joaquim Manuel de. Anno biographico brazileiro. Typographia e litographia do imperial instituto
artístico, Rio de Janeiro, vol. 3, 1876. p. 562.
122
Idem, p. 563.
123
Ao longo desse primeiro capítulo poderemos perceber a importância dos eventos ocorridos entre 1821 e 1822
na vida de Cunha Barbosa. Em função de seu engajamento político e posterior exílio, o ano de 1822 será tomado
como um marco ao longo do capítulo e do trabalho.
124
Blake, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Typ. e
Imp. Nacional, 1883-1899, 6 vol. p. 294.
125
Ata da 12ª Sessão de 24 de outubro de 1867. Tomo 30, parte 2, v.35, RIHGB, pp. 465-466.
38
festividade que foram documentadas. Esse silenciamento dentro do IHGB, talvez se devesse
principalmente ao fato de que os sócios tinham expectativas sobre a formação de um terceiro
reinado, mesmo que a República já despontasse como uma sombra no horizonte. Para o IHGB,
a mudança política, de imediato, representava uma perda, por conta do seu forte vínculo com o
projeto político imperial.126
Vale ressaltar também que, dentro dessas comemorações, o ato de fundação do
Instituto não era o principal momento exaltado. Ao analisar um dos comentadores do
cinquentenário, Francisco Gouvêa de Sousa, percebe que, “Cunha Mattos e Januário da Cunha
Barbosa haviam iniciado o movimento, mas a força não era suficiente, (...), pois foi apenas com
a participação de D. Pedro II na sessão de 15 de dezembro de 1849 que o Instituto se
firmaria”.127
Todo movimento realizado nesta primeira parte do capítulo demonstrou que as formas
com que a memória em torno da figura de Cunha Barbosa foi esboçada no século XIX, retratam
a imagem de um padre com atuação diversificada no mundo político e letrado. Segundo a
historiadora Ana Rosa Coclet da Silva, esse não seria um caso único, pois outros clérigos
brasileiros conciliaram suas atividades como sacerdotes e como políticos no século XIX.128
Outro ponto importante ressaltado pela autora, é o fato de que o clero participante do
movimento da independência, e aqui podemos destacar a figura de Cunha Barbosa, foi formado
no contexto da política do “regalismo católico pombalino” que visava colocar a Igreja sob a
tutela do Estado, caracterizando-se por estimular a união da prática sacerdotal com as funções
públicas.129
A base dessa política pode ser observada em uma concessão dada pelos papas aos reis
de Portugal e Espanha, ainda no momento do expansionismo marítimo, para melhor
propagarem a fé cristã, que ficaria conhecida como “Padroado”130. Nesse modelo, os
126
SOUSA, Francisco Gouvea de. Proclamação e revolta: recepções da República pelos sócios do IHGB e a vida
da cidade (1880-1900). Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, 2012, PUC-Rio. pp. 24-25.
127
Idem, p. 42.
128
SILVA, Ana Rosa Coclet da. Padres Políticos e suas redes de solidariedade: uma análise da atuação sacerdotal
no sertão de Minas Gerais (1822 e 1831). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 63, 2012, p. 119.
129
Sobre o “regalismo católico pombalino”, Coclet entende que “essa articulação entre prática religiosa e política
ganhou formato específico durante a atuação do marquês de Pombal como primeiro ministro do rei d. José I (1750-
1777). Historicamente associado ao reformismo ilustrado português, o governo de Sebastião José de Carvalho e
Melo inaugurou uma política conhecida como regalismo, visando colocar a Igreja sob a tutela do Estado,
nacionalizando-a e tornando seus membros verdadeiros ‘servidores públicos’. Idem, pp. 122- 123.
130
Em espanhol Patronato.
39
governantes civis possuíam direitos na “administração dos negócios eclesiásticos, com vistas a
‘dilatar a fé e o império’”.131
Por fim, vale ressaltar que o “regalismo católico pombalino” e os ideais do reformismo
ilustrado português não se vincularam exclusivamente à Universidade de Coimbra, pois
também circularam entre clérigos dos Seminários do novo mundo. Dessa forma, os integrantes
do corpo clerical brasileiro, mesmo aqueles não formados em Coimbra, caso de Cunha Barbosa,
igualmente sofreram influência desses ideais.132
Até o momento, podemos observar que os discursos memorialísticos elaborados no
século XIX, dentro do IHGB, construíram a imagem do cônego como defensor da pátria. A
seguir, tentaremos demonstrar que, no século XX, a forma e a intensidade com que Cunha
Barbosa foi rememorado se modificaram e, raramente, seu nome será lembrado pelos
intelectuais, mesmo por aqueles que frequentavam o Instituto. Nesse novo contexto, sua
imagem será desvinculada da monarquia e vinculada à da república. Essa mudança na
construção da sua memória pode ser observada não somente pela passagem e distância no
tempo, mas também pelas transformações profundas nos quadros políticos e sociais da nação.
131
SILVA, Ana Rosa Coclet da. Padres Políticos e suas redes de solidariedade: uma análise da atuação sacerdotal
no sertão de Minas Gerais (1822 e 1831). op. cit., p. 123.
132
Como referência de um trabalho clássico que se debruça no estudo da Ilustração no Brasil, podemos citar a
pesquisa de Maria Odila da Silva Dias, de 1968, publicada na Revista do IHGB. DIAS, Maria Odila da Silva.
Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, v. 278, janeiro-março, 1968, pp. 105-170.
133
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia, op. cit., p. 45.
40
pretendo demonstrar algumas transformações nas formas com que Januário foi lembrado, que
acentuaram aspectos de sua trajetória e silenciaram outros.
Como visto anteriormente, o cinquentenário do IHGB, foi comemorado em um
momento de instabilidade política, já que seus sócios estavam entre a surpresa e a não aceitação
da República. Em 1902, ano de publicação de um “esboço biobibliográfico”, de autoria de
Antonio da Cunha Barboza, a República já era vista como inevitável, e, portanto, necessária
para a nação. O exemplo mais conhecido das distintas formas de recepção do regime
republicano pode ser identificado nos escritos de Joaquim Nabuco. Segundo Bárbara Winther
da Silva, o primeiro momento de recepção
pode ser percebido em seu texto O dever dos monarquista de 1895, na qual o
distanciamento é encarado como uma forma de ação e, a República não é
exaltada, mas sim "esquecida". Já o segundo momento é marcado pelo texto A
república é incontestável, trabalho de 1902, apresentando uma postura de
afirmar a República como uma sucessão natural do Império e consequentemente
exaltando a sua proclamação em 1889.134
134
Além do exemplo citado, Bárbara trabalha com outros letrados que tratam a República como uma evolução
histórica e inevitável, entre eles, Tristão de Alencar Araripe, que defende que na Revolução de 1817 já existia o
cerne do movimento republicano. Texto cedido pela autora. Ver também: SOUSA, Francisco Gouvea de.
Proclamação e revolta: recepções da República pelos sócios do IHGB e a vida da cidade (1880-1900). Tese de
Doutorado, Rio de Janeiro, 2012, PUC-Rio.
135
BARBOZA, Antonio da Cunha. Conego Januario da Cunha Barboza: Esboço biobibliographico. RIHGB, 1902,
Tomo LXV, parte II, p. 197.
41
Dessa forma, demonstra que Cunha Barbosa pode ser considerado um grande homem,
e por isso "todos nós brazileiros, lhe somos devedores dos mais sinceros reconhecimentos e
homenagens".137
Antonio Cunha Barboza define o tio como um “redivivo”, ou seja, como figura que
permanecia viva através de suas obras, sendo assim o biografista apresenta detalhes de sua
trajetória a partir de seu nascimento. É bem provável que esta inversão de narrativa tenha sido
utilizada para reforçar a ideia de predestinação e fazer com que o leitor vislumbrasse os traços
de sua vida futura ainda na tenra juventude.
Outro ponto salientado por Antonio da Cunha Barboza é o reconhecimento da
importância do clero na sociedade do século XIX, pois neste "estava concentrado todo o poder
da época”. Assim, optando pela vida eclesiástica, seu tio “entraria pela porta mais facil e azada
para quem queria seguir os caminhos que guia[va]m á grandeza humana (...)".138 Em 1808, com
a criação da Capela Real no Rio de Janeiro, por D. João VI, o jovem Januário foi nomeado
como um dos seus pregadores régios. Sobre esse assunto, Renata Maria da Cruz Duran afirma
que a sermonística, desenvolvida pelos membros do clero, foi um ramo das belas-letras que
contribuiu para a “invenção da identidade nacional”, pois criou uma vida social e uma
uniformização da língua. A autora ainda argumenta que
Na narrativa da vida de seu tio, Antonio Cunha Barboza distingue duas fases, a de
político e a de literato. Relatando em primeiro lugar a vida do cônego como político, tenta
demonstrar que ele não foi um “desertor de seu partido”, trazendo à pauta o período em que
este esteve à frente do Diario Fluminense, quando se aliou a Evaristo Ferreira da Veiga, e no
qual fazia críticas ao governo de D. Pedro I, ressaltando que essas avaliações não se estendiam
136
Idem, p. 197.
137
Idem, p. 198.
138
Idem, p.199.
139
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do Púlpito: Oratória Sagrada no tempo de D. João VI. São Paulo, Ed.
Unesp, 2010, p. 73.
42
É importante destacar que Antônio Cunha Barboza define o tio e Gonçalves Ledo
como “precursores do 7 de setembro” por suas atividades no Revérbero, juntamente com
Hypólito José da Costa, editor do Correio Braziliense, primeiro periódico brasileiro, e José
Clemente Pereira, como figura de atuação decisiva no célebre dia do Fico.
Ao relatar as preferências políticas do editor do Reverbero, salienta que este sempre
se posicionou por uma Monarquia Constitucional Representativa, que tivesse como líder,
defensor e protetor o príncipe D. Pedro. Esta posição seria um dos motivos de seu exílio, e que
durante o século XIX, podemos observar, foi aspecto silenciado pelos monarquistas do
IHGB.141 Contudo, no início do século XX, ainda em período de consolidação da primeira
República, Cunha Barbosa poderia ser exaltado como um letrado à frente de seu tempo por
defender uma forma representativa de governo.
Ao contrário do que os esboços biográficos do século XIX apresentam, ou muitas
vezes não enunciam, Antonio da Cunha Barboza, além de mencionar o evento, ainda traz um
trecho de uma carta do cônego ao Marquez de Barbacena, na qual expressa, em 1 de abril de
1830, a sua predileção pelo constitucionalismo, declarando que, “sou e serei sempre o que fui,
amei e amo o Soberano D. Pedro e a monarchia constitucional, unica fórma de governo que
póde servir ao Brazil."142 Sobre esse posicionamento político, vale lembrar que Cunha Barbosa,
assim como outros membros da chamada elite brasiliense, defendia a emancipação do Brasil
dentro de uma monarquia representativa constitucional, baseada no equilíbrio dos poderes, o
140
BARBOZA, Antonio da Cunha. Conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., p. 200.
141
Idem, p. 201.
142
Grande parte dos escritos do século XIX não mencionam a verdadeira acusação pela qual Januário foi exilado,
já alguns historiadores apontam o “republicanismo” como uma das causas. O fato é que sua forma de propor a
participação da população no processo político foi o aspecto que mais incomodou José Bonifácio, e também o que
levou a pedir o exílio do cônego. Idem, p. 205.
43
Na segunda parte de sua exposição, Antonio da Cunha Barboza deu maior ênfase ao
que definiu como “o serviço às letras” do cônego, o que, segundo o autor, deu-lhe uma "aureola
de grandeza", comprovando o seu empenho patriótico, pois
143
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Emancipação política. In: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do
Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002, p. 227.
144
Idem, p. 220.
145
Idem, p. 223.
44
É importante ressaltar, mais uma vez, que essa biobibliográfia, é composta por Antonio
da Cunha Barboza, parente próximo do cônego, o que de certa forma pode determinar
diretamente as escolhas daquilo que será lembrado e do que será esquecido acerca do cônego.
Ao analisar as outras atuações do cônego, até mesmo as que desenvolveu como
político, e comparar aos seus atos como literato, o autor afirma que Januário da Cunha Barbosa
possuía "natural pendor" para as letras. Ao rebater as acusações de Silvio Romero de que
Januário havia sido um simples “colecionador”, Antonio Barboza afirma que, apesar de o
Parnaso ser uma obra de compilação de poesias de diversos autores, revela-se ímpar por ser o
pioneiro desse tipo de empreendimento no Brasil. O sobrinho do cônego apoia-se nas
observações do austríaco Ferdinand Wolf, em O Brasil literário (1863), de que Januário foi o
primeiro a elaborar “uma antologia bem ordenada, acompanhada de introduções biográficas e
críticas das principais produções biográficas do Brasil”.147 Ainda citando o trabalho de um dos
principais escritores da geração de 1870, Antonio Barboza dá especial atenção à avalição
realizada sobre a contribuição literária do cônego, parte essa que contém um elogio, como no
trecho citado no início deste capítulo, afirmando a importância da sua produção biográfica:
nas suas varias biographias, genero literario, em que como confessa o Sr.
Sylvio Romero, fôra Januario sensato e simples, deixando-se ler com agrado,
especialmente quando trata de Claudio Manoel da Costa, o inconfidente
mineiro, é verdadeiramente original.148
146
Idem, p. 245.
147
WOLF apud BARBOSA, Antonio C., op. cit., p. 246. A obra de Ferdinand Wolf aparece na cronologia de
“textos fundadores da história da literatura brasileira” do século XIX, elaborada por ZILBERMAN, Regina e
MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 15.
148
BARBOZA, Antonio da Cunha. Conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., p. 246.
149
Idem, pp. 246-247.
45
ou seja, como “um dos mais laboriosos literatos de seu tempo” que cultivou variados gêneros
da literatura nacional.150
Nessa segunda parte do texto, ao descrever o cônego ressalta que
150
Idem, p. 248.
151
Idem, p. 248.
152
BARBOSA, Januário da Cunha. Programma – Se a introdução dos escravos Africanos no Brazil embaraça a
civilisação dos nossos indigenas, &c., desenvolvido na sessão de 16 de Fevereiro. RIHGB. Tomo I, 1839. pp. 123-
129.
153
BARBOZA, Antonio da Cunha. Conego Januario da Cunha Barboza. op. cit., pp. 269-270.
154
Idem, p. 279.
46
Outro texto que rememora momentos da vida do cônego, também publicado na Revista
do IHGB, foi elaborado por Roquete Pinto e tem como título "Os jornalistas da independência",
de 1917. Nele, é relatada a participação de diversos jornalistas nesse momento político
brasileiro e, entre eles, Gonçalves Ledo e Januario da Cunha Barbosa aparecem em lugar de
proeminência.157
Outro ponto importante, e que raramente é citado entre os textos biográficos sobre
Cunha Barbosa, é sua participação na maçonaria. Fato que pode ser elucidado na observação
de que, já no Oitocentos, essa instituição era lugar de circulação e debate de ideias e importante
espaço articulador de redes de sociabilidades políticas.158 No século XX, depois de perder
posição como espaço de sociabilidade, a maçonaria será vista por grande parte da população
com uma conotação negativa. Roquete Pinto cita a filiação dos jornalistas à maçonaria, dizendo
155
Idem, p. 282.
156
MENEZES apud BARBOSA, Antonio da Cunha, op. cit., p. 284.
157
PINTO, Roquete. Os jornalistas da independência. RIHGB, T.82, v.136, 1917, pp. 780-789.
158
SLEMIAN, Andréa. A vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.
pp. 179-181. BARATA, Alexandre Mansur. Constitucionalismo e sociabilidade na cidade do Rio de Janeiro (1822-
1823): a Nobre Ordem dos Cavaleiros da Santa Cruz e o projeto de Constituição para o Império do Brasil. In:
Nação e Cidadania no Império: novos horizontes. (Org.) José Murilo de Carvalho. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2007.
47
que este era o melhor espaço para se trabalhar para a liberdade da nação brasileira. E por isso,
em 1822, fundaram a loja do Grande Oriente do Brasil, a qual segundo ele "veiu a constituir-se
o mais pujante fóco de irradiação e a mais vigilante atalaia dos ideaes da independencia."159
Em seu texto, Roquete Pinto também destaca que as páginas do Reverbero orientaram
os brasileiros a combaterem a partida do príncipe, o que culminou com o dia do "Fico". Com
isso, podemos perceber que a sua narrativa, pelo menos nas passagens iniciais, concentra-se na
participação de Ledo e Cunha Barbosa na política pré-independência.160
Sobre o exílio do cônego, Roquete Pinto não se detém nos motivos da expulsão, porém
traz detalhes sobre a viagem até Minas Gerais, que antecedeu a expatriação do Brasil. Segundo
ele,
(...) ficou deliberado que os maçons mais influentes partissem para todas as
provincias, afim de promoverem a adhesão delles á emancipação definitiva do
paiz, sob o sceptro de d. Pedro. Januario, que era o grande orador do Grande
Oriente, offereceu-se para ir a Minas, o que fez á custa propria e com o mais
brilhante e seguro exito.161
Com um olhar mais atento a este trabalho, podemos perceber que o autor dá grande
destaque à vida do cônego, mesmo trabalhando com as trajetórias dos dois jornalistas e, isso se
deve, principalmente, ao fato de Cunha Barbosa ter sido fundador da agremiação a qual Roquete
Pinto estava vinculado. Por fim, para encerrar sua arguição sobre o Revérbero, faz uma
aproximação, não só intelectual, mas também afetiva de Gonçalves Ledo e do cônego. Exemplo
disso é que, para o autor, os letrados poderiam ser lembrados como,
159
Idem, p.780.
160
Idem, p.781.
161
Idem, p.784.
162
Idem, p. 784.
48
estava a já citada inauguração dos novos bustos dos fundadores. A cerimônia ocorreu no dia 24
de outubro de 1938, quando estátuas em bronze foram alocadas nos respectivos túmulos do
cemitério da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Os restos
mortais de Raymundo José da Cunha Mattos ficaram na base do pedestal do busto, já o busto
do cônego Januário da Cunha Barbosa foi colocado em cima do jazigo da sua família.163
Ainda no ano das festividades do centenário do Instituto, o discurso de Manuel
Peregrino teve por finalidade apresentar alguns aspectos da vida e memória do Instituto. Fato
importante que o presidente destaca é a constituição do Instituto em 1838, o qual estaria
alinhado com a ideia de centralizar documentos espalhados pelas províncias, que colaborassem
para a construção de uma história nacional. Porém, a parte de seu texto que mais se dedica aos
fundadores é a que relembra dos eventos festivos que o Instituto promoveu em lembrança a
estes dois homens. Ressalta, inicialmente, a sessão pública do dia 6 de abril de 1848, na qual os
bustos foram inaugurados e diversos elogios e cantos foram realizados em honra a Mattos e a
Barbosa.164
Peregrino também cita brevemente a comemoração dos 50 anos, em 1888, e afirma, a
partir das palavras de Porto Alegre, que Cunha Barbosa foi “(...) um dos constituidores da nova
monarquia e constante sustentáculo da ordem e da liberdade.”.165 Ao tratar mais detidamente
da vida do cônego, afirma que ele foi “brasileiro dos mais notáveis, espírito dos mais lúcidos
do seu tempo, eloqüente orador sacro a quem Mont'Alverne considerava como um dos gigantes
da orátoria, (...) que á causa da Independência prestou os mais relevantes serviços, bem merece
a consagração da posteridade.”.166 Ao se utilizar de uma fala de Monte Alverne, considerado
um dos principais oradores sacros do Brasil, na qual este tece elogios ao cônego, insere uma
percepção de credibilidade na figura de Cunha Barbosa, já que nesse momento, a palavra do
grande orador possuía poder de legitimação.
Por fim, Peregrino afirma também que, no momento de sua morte, Januário despediu-
se do mundo com a frase: “Meu amado Brasil, meu querido Instituto, adeus!...”
Ainda no ano do centenário do IHGB, foi publicada uma das narrativas mais completas
sobre a vida do cônego no capítulo a ele dedicado no livro Os Fundadores, do sócio Feijó
Bittencourt, texto que se tornará referência para estudos posteriores. Bittencourt narra a
163
Coleção do IHGB, Lata 344, Pasta 22.
164
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Volume 182, p. 137.
165
Idem, p. 138
166
Idem, p.139.
49
167
BITTENCOURT, Feijó. Os Fundadores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938.
168
Idem, p. 171.
169
Idem, pp. 172-173.
50
na imagem do padre um exemplo a ser seguido, a sermonística foi “um gênero cujas temáticas
e representantes fizeram parte de um movimento comum de formação da identidade
brasileira”.170
Nos anos iniciais do século XIX, quando Cunha Barbosa começou a exercer o
sacerdócio no país, e se tornou pregador, diversos padres destacavam-se como oradores,
projetando-se na esfera social. Nesse momento, outros três oradores – frei Francisco de São
Carlos, frei Sampaio e frei Monte Alverne – também ganharam destaque nos púlpitos do Rio
de Janeiro e, alguns anos mais tarde, despontariam na galeria dos biografados ilustres do
IHGB.171 O trabalho de Maria Renata da Cruz Duran se destaca por analisar justamente a
projeção desses oradores oitocentistas, no momento em que a igreja se constituía em importante
espaço de sociabilidades e de contato da população local com a Corte.172
Assim que a família real aportou no Brasil, Cunha Barbosa foi nomeado pregador da
Capela Real e, para o autor de Os fundadores, esse período se delineia como o primeiro grande
momento de sua vida. Segundo o testemunho de Paulo de Menezes, citado por Bittencourt,
Cunha Barbosa pronunciou mais de quatrocentos sermões e mesmo não rivalizando com os
outros oradores, pois o cônego não era ambicioso, recebeu elogios de Monte Alverne, que o
chamou de um “gigante da oratória”.173
Sua carreira de orador atingiu cedo o apogeu e, para Feijó Bittencourt, isso ocorreu
principalmente pelo fato de Januário logo se envolver nos acontecimentos políticos de sua
época.
Quando destaca a atuação do cônego como jornalista e maçom, o autor enfatiza que as
duas instâncias estavam interligadas, afirmando que “a maçonaria, sem ter cor política definida,
não passava da organização para todos fazerem política naquela ocasião, conspirando”.174 Com
170
DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do Púlpito: Oratória Sagrada no tempo de D. João VI. op. cit., p. 85.
171
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Frei Francisco de Monte Alverne. RIHGB. Tomo XXXIII, 1870. pp. 143-156; ARAÚJO, José Tito Nabuco de.
Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Frei Francisco de Santa Theresa Sampaio.
RIHGB. Tomo XXXVII, 1874. pp. 191-208; Do Ostensor Brasileiro. Biographia dos Brazileiros distinctos por
lettras, armas, virtudes, etc: Frei Francisco de Santa Thereza de Jesus Sampaio. Tomo VII, 1845. Pp. 248-250;
SILVA, J. M. Pereira da. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Frei Francisco de
São Carlos. RIHGB. Tomo X, 1848. Pp. 524-542; Araújo, José Tito Nabuco de. Biographia dos Brazileiros
distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Frei Francisco de S. Carlos. RIHGB. Tomo XXXVI, 1873. Pp. 517-542.
172
Idem, p.72.
173
BITTENCOURT, Feijó. Os Fundadores, op. cit., p. 174.
174
Idem, p. 176.
51
posição de destaque entre os maçons, Cunha Barbosa logo esteve à frente de vários
acontecimentos políticos daquele contexto.
Ao citar o periódico Reverbero Constitucional Fluminense, Bittencourt salienta que os
redatores possuíam posturas diferentes, Gonçalves Ledo era um “agitador” e Barbosa era um
“cortesão leal”. Nesse momento, o autor aponta fato interessante sobre as disputas que
envolveram a emancipação do Brasil em relação a qual o que estava em jogo inicialmente não
era a separação de Portugal, assim como demonstra o trecho a seguir:
(...) vinha Januario da Cunha Barbosa, exaltar ainda mais o ânimo de d. Pedro,
concitando-o a que mais fizesse, a que fosse fundador de um império! Mas
império não quer dizer independência; comenta o historiador; império já se
dizia do Brasil ainda unido a Portugal; império significava tão somente um
todo. 175
175
Idem, p. 177.
176
O passaporte expedido pelo ministério da Guerra e assinado pelo ministro Luís Pereira da Nóbrega de Souza
Coutinho, permitindo ao padre Januário da Cunha Barbosa livre passagem até a província de Minas Gerais,
também traz nomes pertencentes a sua comitiva, dentre eles estavam Joaquim Teixeira de Oliveira e Manoel Ferreri
de Souza. Coleção do Instituto Histórico, Lata 13, Pasta 36.
177
Idem, p. 182. No arquivo do Instituto Histórico e Geográfico é possível encontrar o passaporte utilizado por
Cunha Barbosa para deixar o país, nele consta a data de 12 de Dezembro de 1822, “primeiro da Independência e
do Império”, fato bastante curioso é que o próprio José Bonifácio assina o documento e na datação do ofício
escreve “da Nação Brasileira”. Coleção do Instituto Histórico, Lata 674, Pasta 86.
52
Ao refazer os passos do cônego ao ser exilado, Bittencourt relata que Januário passou
um tempo na França, e outro em Londres, local onde imprimiu a epopeia Nicteroy, na qual faz
um elogio engrandecedor do Imperador brasileiro e de sua família.178 Bittencourt não relata que
a principal acusação que pesava sobre o cônego era a de republicanismo, fato que ameaçaria a
posição de d. Pedro I, por isso o futuro primeiro secretário perpétuo do Instituto faz um elogio
ao Imperador, tentando rebater as críticas sofridas em 1822.
Já no tópico “Em oposição a Evaristo”, Feijó Bittencourt relata que Cunha Barbosa só
permaneceu em uma legislatura, na Assembleia Geral e, posteriormente, trabalhou na
Tipografia Nacional e editou o jornal Diário Fluminense. Nesse momento, tornou-se o escritor
oficial do governo, já que começou a defender os atos da administração. Com o regresso de d.
Pedro I a Portugal, o cônego que detinha sua proteção, é dispensado do cargo de redator do
Diário Fluminense, porém foi readmitido e nele permaneceu até 1837.179 No subcapítulo
intitulado “De novo homem de partido”, Bittencourt também destaca que, nesse momento,
Cunha Barbosa voltou a se aliar a uma corrente de pensamento político, seguindo o partido de
Evaristo Ferreira da Veiga.
Quando aborda a passagem de Cunha Barbosa pelo Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil, Bittencourt ressalta que, no ano de 1837, o cônego deixou o cargo de diretor da
Tipografia Nacional “cuja administração lhe tinha valido o Hábito de Christo”, passando a viver
um momento politicamente desfavorável, com a ascensão de seus adversários políticos na
conjuntura do ministério de Bernardo Pereira de Vasconcelos e do chamado “regresso
conservador”.180 Bittencourt considera que a criação do IHGB, “à sombra do Paço”, resultou
da iniciativa de “um grupo arredio e vencido”, disposto a velar pela história e a ciência no país.
Neste caso, é importante observar que, diferentemente das visões que enfatizavam a dimensão
heroica e patriótica da fundação do Instituto e das trajetórias dos seus idealizadores, a narrativa
de Bittencourt será uma das primeiras a abordar o surgimento da agremiação como um ato
eminentemente político, a partir do qual “ia se escrever a História do Brasil, que passava a ter
vida própria”.181
178
Idem, p. 185.
179
Idem, pp. 186-188.
180
ENGEL, Magali Gouvea. Bernardo Pereira de Vasconcelos. In: VAINFAS, R. (dir.). Dicionário do Brasil
Imperial (1822-1889), Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pp. 91-92.
181
BITTENCOURT, Feijó. Os Fundadores, op. cit., p. 197.
53
182
Ata da sessão comemorativa do centenário da morte de Januário da Cunha Barbosa e Antonio Francisco Dutra
e Melo. 20 de maio de 1946, sessão de número 1.747. v.193, pp. 168-169.
183
Noticiario. RIHGB, v.191, p. 374, 1946.
184
ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto e. A Marinha, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
Almirante Firmino Chaves (1938-1988). RIHGB, nº 149, Rio de Janeiro, out./dez., 1988, p. 546.
185
LACOMBE, Américo Jacobina. Discurso do Presidente. Revista do IHGB, nº 149, Rio de Janeiro, out./dez.
1988. p. 580.
54
Ao situar a fala desses dois sócios no momento histórico de 1988, podemos observar
a importância dos acontecimentos políticos da história do país, no momento de
redemocratização, presente em seus discursos. Antonio Luiz Porto e Albuquerque destaca a
produção intelectual como meio de suporte para o governo político, já Américo Jacobina aposta
na união para alcançar vitórias políticas e econômicas.
Podemos observar que a figura do cônego nesse segundo momento de investigação,
assume uma imagem em que se acentuam as suas contribuições aos mundos letrado e político.
Porém, esses discursos já não são construídos de forma a exaltá-lo com categorias heroicas,
criando o vulto de um homem ilustre devotado à pátria. Esse fato se liga às considerações
realizadas no início do capítulo, onde as reatualizações da memória sempre acompanham as
preocupações do presente a partir do qual se formulam. Por isso existia a necessidade de definir
Cunha Barbosa, como um “grande trabalhador”, salientando que ele participou de um esforço
político coletivo que consolidou a Independência, assim como deveria ser vista a proclamação
da República.187
Dentro do IHGB, nos últimos vinte anos, poucos estudos foram dedicados à vida e aos
escritos de Cunha Barbosa. O trabalho que mais se destaca dentro do Instituto é o artigo
publicado na Revista do IHGB em 1997, de Cybelle Ipanema, elaborado em ocasião da
celebração do sesquicentenário de falecimento do cônego.
O número 394 da Revista do IHGB, contém as descrições das celebrações do
sesquicentenário de falecimento de Januário da Cunha Barbosa, cujas solenidades ocorreram
186
Idem, p. 580.
187
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 48.
55
no dia 10 de julho de 1996. Antes do artigo de Ipanema, a Revista traz uma descrição da missa
realizada em homenagem ao cônego, na qual o Monsenhor Guilherme Schubert faz um discurso
atribuindo grande importância à vida eclesiástica do primeiro secretário, apesar de citar as
demais áreas em que ele atuou. Schubert, ao fazer ressalvas sobre Cunha Barbosa, afirma que
ele era "considerado figura polêmica, é justiça esclarecer que isso não se refere a ele como
eclesiástico".188 Acrescenta ainda que,
Logo após a fala do Monsenhor, o texto da sócia Cybelle Ipanema começa com o título
"Januário da Cunha Barbosa: Para não esquecer", observando que o primeiro secretário não era
uma figura tão lembrada quanto antes dentro do espaço do Instituto. Ao justificar seu trabalho,
a autora ressalta que "lembrá-lo é justificar o porquê nos reunimos e nos associamos para o
objetivo comum de cumprir o que ficou estatuído como ideia-mãe: preservar a cultura do
país.".190 Com essa fala introdutória, podemos perceber que essa tentativa de reviver a imagem
do cônego dentro do Instituto, acaba sendo um pouco mais do que foi construído no século
XIX, uma forma de continuidade. Seu texto não traz novas questões, pelo contrário reproduz
os elogios e vicissitudes já glorificadas no Oitocentos.
A historiadora realiza seu pronunciamento enquanto primeira secretária do Instituto e
afirma ser uma ousadia tentar preencher o lugar do cônego, já que ele possuía um perfil
multiforme como religioso, mestre de Filosofia, pregador sacro, poeta, tradutor, jornalista,
historiador, administrador e “entusiasta de ideias generosas”.191
Cybelle Ipanema chama a atenção pela segunda vez, a primeira foi no título da
comunicação, para o baixo número de biógrafos que dedicaram seus trabalhos à vida do cônego,
relatando ainda que, em sua grande maioria, foram seus contemporâneos, denotando assim o
188
SCHUBERT, Guilherme. Cônego Januário da Cunha Barbosa. RIHGB, Rio de Janeiro, 158 (394), jan./mar.
1997, p. 193.
189
Idem, p. 194.
190
IPANEMA, Cybelle. Januário da Cunha Barbosa: Para não esquecer. RIHGB, Rio de Janeiro, 158 (394),
jan./mar., 1997, p. 195.
191
É interessante perceber que grande parte dos sócios que se dedicaram a manter a figura do cônego viva dentro
do Instituto, ocuparam a mesma cadeira que este inaugurou em 1838, a de primeiro secretário. Nota-se, então, que,
pelo menos no diz respeito aos estudos da vida de Cunha Barbosa, que foi papel de seus sucessores retomarem sua
figura.
56
evidente esquecimento da figura de Cunha Barbosa no último século pela academia. Outro
ponto importante em sua narrativa é a forma com que organiza o perfil do cônego a partir do
local onde mais tempo esteve em sua vida, o Rio de Janeiro, relatando que este poucas vezes se
ausentou da cidade. Dessa forma, Cybelle Ipanema afirma que o fato dele ser fluminense
determinou a forma com que agiu e tomou suas decisões.192
Ao descrever as diretrizes e os trabalhos do cônego, a primeira secretária atenta para o
fato de que “na cátedra, no púlpito, nas lides jornalísticas, nas letras, em cargos de direção, na
condução de trabalhos administrativos, no espírito associativo, constata-se-lhe uma linha de
coerência em que a moral e o desejo de servir são vigas mestras de seu pensamento.”193
Na última parte de sua arguição, a primeira secretária se dedica a apresentar a atuação
de Cunha Barbosa dentro do IHGB e, para isso, comenta as diretrizes do Instituto, citando o
texto inaugural da agremiação, o célebre Discurso, elaborado pelo cônego. Afirma que nele "o
secretário definiu os rumos da instituição, que não devemos perder de vista, adaptados,
obviamente, às modificações do país e do mundo, às novas visões da historiografia e aos novos
procedimentos metodológicos para servir ao Brasil, através do estudo, principalmente da
História e da Geografia."194
***
Podemos sintetizar alguns aspectos destacados ao longo deste capítulo sobre a
construção da memória do cônego Januário da Cunha Barbosa dentro do IHGB. Primeiramente,
observamos que o século XIX foi o momento mais fecundo para a exaltação de suas qualidades
de letrado e religioso. Sua atuação nos acontecimentos políticos de 1822 também lhe renderam
a imagem de um patriota exemplar. Já nos elogios biográficos do início do século XX, verifica-
se uma atualização da memória e da imagem do primeiro secretário, a partir dos novos valores
relacionados à República recém proclamada. Depois desse primeiro momento, os discursos
memorialísticos sobre o cônego serão realizados em eventos comemorativos do Instituto, os
quais se preocuparam em ressaltar a sua atuação dentro da agremiação, além de possuírem o
intuito de colocar a figura de Cunha Barbosa em evidência, após o relativo esquecimento de
seu nome em finais do século XIX.
192
Idem, p. 196.
193
Idem, p. 195.
194
Idem, p. 207.
57
CAPÍTULO 2:
A ANTOLOGIA POÉTICA E BIOGRÁFICA DE JANUÁRIO DA CUNHA BARBOSA
195
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Modulações Poeticas precedidas de um bosquejo da historia da poesia
brasileira. Rio de Janeiro, Typographia Franceza, 1841.
196
Idem, p. 15.
59
Barbosa o primeiro a divulgar os seus escritos, incluindo no Parnaso “meia duzia de satyras”,
precedidas de um resumo da vida do poeta baiano.197
Ainda no século XIX, em um momento posterior aos clamores de exaltação do cônego,
como já vimos anteriormente, no ano de 1888, no primeiro tomo da História da Literatura
Brasileira, Sylvio Romero afirmava: “De tudo o que se escreveu, apenas raramente lê-se hoje
o Parnaso Brasileiro. O Nictheroy, os Garympeiros, e a Rusga da Praia Grande, estão
esquecidos, e tudo o mais que escreveu em revistas e jornais.”198 E para completar sua avaliação
sobre a contribuição literária de Cunha Barbosa, salientava que,
A partir dessa citação, podemos perceber claramente que Romero se refere ao Parnaso,
pois se tratava de uma obra de compilação de trabalhos de poetas brasileiros. Em outro
momento de seu texto, intitulado “Poetas de transição entre clássicos e românticos”, Romero
faz uma crítica tanto ao Parnaso de Cunha Barbosa, quanto ao Florilégio, de Francisco Adolfo
de Varnhagen, outra antologia poética elaborada no século XIX, salientando que a história da
literatura brasileira não deveria ser “um simples amontoado de noticias biographicas e a citação
de alguns trechos poeticos”, mas ser composta com a missão de “penetrar no ideal das nações
para sorprender-lhes a vida subjectiva.”200
Por sua vez, José Veríssimo, em 1916, também cita a obra de Cunha Barbosa, em sua
História da Literatura Brasileira. Mesmo não sendo tão crítico quanto Romero, Veríssimo
também realiza apontamentos contundentes ao Parnaso, principalmente em relação à falta de
organização do material, porém também demonstra haver pontos positivos na obra do cônego.
Para ele, a coleção era
197
Vale ressaltar que ao citar a breve biografia da vida de Gregorio de Mattos, Rebello, acaba destacando a
importância dessa modalidade de escrita. REBELLO, Manuel Pereira. Obras poéticas de Gregório de Mattos –
precedidas da vida do poeta. 1882, p. V.
198
ROMERO, Sylvio. Historia da Literatura Brazileira. Tomo Primeiro (1500-1830), 1888. p.335.
199
Idem, p. 336.
200
Idem, p. 435.
60
Nesse trecho, Veríssimo ressalta que, além do cônego, outros letrados se dedicaram a
compilações de produções literárias, mas, em sua visão, tais compilações não possuíam
nenhuma qualidade, sendo o trabalho do primeiro secretario o único com relativa importância
por ser o pioneiro do gênero. Veríssimo valorizava não propriamente a obra de Cunha Barbosa,
mas sim seu trabalho e esforço enquanto divulgador e homem de letras. Ao comparar Januário
com outros literatos, diz que
201
Verissimo, José. Historia da Literatura Brasileira – De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).
Lisboa: Typ. << Editora L.da >>, 1916, p. 22.
202
Idem, p. 169.
203
Idem.
61
(...) nas três obras principais dessa etapa antológica – o Parnaso de Januário
da Cunha Barbosa (1829-1831), o Parnaso de Pereira da Silva (1843-1848),
o Florilégio de Varnhagen (1850-1853) – verificamos um progresso constante
na seleção dos autores, na qualidade e quantidade de amostras escolhidas,
204
Idem, p. 406.
205
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira – Momentos decisivos 1750-1880. 12ª ed.
Comemorativa dos 50 anos de lançamento. São Paulo/Rio de Janeiro, 2009, pp. 282-283.
206
Idem, p. 315.
207
Idem. Por outro viés, diferenciando-se da ideia de Candido, recentemente, Janaína Senna percebe que “(...)
pensar o Parnaso Brasileiro como eventual resposta ao Parnaso lusitano, de Almeida Garrett (1826-1827), me
parece mais plausível do que a ideia de que este último tenha inspirado o primeiro, como propõe Antônio
Candido.”. Para a autora, a obra portuguesa, por fim, não aparece como uma eventual inspiração para o trabalho
do letrado brasileiro. SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção
do passado literário. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. Tese de doutorado. p. 89.
62
Outro crítico literário que também se deteve sobre o assunto, Wilson Martins, salienta
que o Parnaso de Cunha Barbosa surge ao mesmo tempo em que o Parnaso Lusitano de Garrett,
e aparece como uma resposta ultranacionalista, ainda no contexto da Independência, já que um
é português e o outro brasileiro.209 Ainda para Martins, “(...) o Parnaso Brasileiro mostra, ao
mesmo tempo que, com base nessa teoria do passado, (...) o Brasil começava a construir com
um “sistema” a sua literatura do futuro."210
Na coleção dirigida por Afrânio Coutinho, sobre “A Literatura no Brasil”, no capítulo
intitulado “A Crítica Literária Romântica”, a existência do Parnaso Brasileiro, de Cunha
Barbosa, é ignorada e, em seu lugar, o Bosquejo, de Almeida Garrett, é elegido como o principal
projeto de compilação poética desse momento.211 O projeto do cônego aparece citado
brevemente, quando o autor discute o debate, comum do século XIX, sobre a necessidade de
fixar a nacionalidade dos escritores/poetas. Nesse ponto, Coutinho observa que as antologias
produzidas nesse período possuem intenção didática, pois
(...) denotam uma concepção clara quanto à natureza brasileira dos escritores
que cultivaram as letras, fosse mesmo no período colonial. Incluíram como
representantes da literatura brasileira os escritores anteriores à
Independência.212
208
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira – Momentos decisivos 1750-1880. op. cit., p. 663.
209
MARTINS, Wilson. A Crítica Literária no Brasil. Editora Francisco Alves, 2002. p. 83.
210
Idem. p. 84.
211
COUTINHO, Afrânio (dir.) A Literatura no Brasil. 7. Ed. Ver. E atual. – São Paulo: Global, 2004. p. 322.
212
Idem, p. 335.
63
O século XIX brasileiro foi momento crucial para a definição do que era ser brasileiro
e para o debate sobre a existência de uma literatura nacional, considerada como expressão e
testemunho da própria história pátria.213
Por isso, o papel dos parnasos poéticos, não só do Brasil, mas também dos países recém
emancipados da América espanhola, era o de buscar um distanciamento das características que
os ligavam a suas antigas metrópoles. Nesse processo, buscava-se uma literatura que afirmasse
as singularidades das novas unidades nacionais.214 As antologias e florilégios poéticos
funcionaram, naquele momento, como indicadores do “grau de civilização” das nações
emancipadas.
Levando em consideração o léxico, a palavra “antologia” só começa a ser utilizada de
forma disseminada durante o século XIX. Sobre a origem da palavra, Janaína Senna observa
que esta surgiu na Grécia Antiga, com anthologium que, no latim tornou-se Florilegium,
significando “coletânea de flores”. Porém, com o passar do tempo, o vocábulo muda seu
sentido, se esvazia e se transforma. Segundo a historiadora, os livros escritos no Brasil do século
XIX, já não colhem as características dos antigos, pois, nesse momento, essas coletâneas serão
voltadas para o universo pedagógico.215 Para a historiadora,
213
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. Tese de doutorado. p. 10.
214
Idem, p. 12.
215
Idem, p. 29.
216
Idem, p.37.
217
SENNA, Janaína. A ponto precário: o parnaso fundacional de Januário da Cunha Barbosa. In: LIMA, Ivana
Stolze; CARMO, Laura do (Org.). História social da língua nacional. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa,
2008. p. 44.
64
218
Idem, p. 40.
219
Idem, p. 120.
220
ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo – Conceitos e Narrativas na Formação Nacional
Brasileira (1813-1845). op. cit., p. 126.
221
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 11.
222
Marco A. Pamplona, ao estudar a mudança do vocábulo “Nação” no período de 1750-1850, percebe que “(...)
reconhecer-se “brasileiro”, entre 1820 e 1822, não significava necessariamente abrir mão do sentimento de
pertencimento político à “grande família lusitana”. PAMPLONA, Marco A. Nação. In: Léxico da História dos
Conceitos Políticos do Brasil. João Feres Júnior (org). Editora UFMG, Belo Horizonte, 2009. p. 170.
223
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 40.
65
2.3 O Pioneiro
Vista por muitos críticos como louvável por ter sido o primeiro empreendimento a se
dedicar à literatura brasileira, a coletânea de Cunha Barbosa é composta por oito pequenos
cadernos de 64 páginas, que foram publicados entre os anos de 1829 e 1832. Neste Parnaso,
segundo o próprio cônego, estariam empreendidas as melhores poesias de todos os poetas
brasileiros, para que servissem de inspiração ou modelo a ser seguido pelos demais literatos
brasileiros. Além das poesias, o primeiro secretário julgou necessário anexar uma notícia
biográfica de cada autor, para "oferecer ao conhecimento do mundo as memórias dos ilustres
brasileiros, que fazem honra à literatura nacional".228 Maria da Glória de Oliveira, ao analisar
os nomes que aparecem nas biografias do Parnaso, salienta que três desses também estão
presentes na seção de biografados do IHGB. Os três nomes que aparecerem nas duas
publicações são: Gregório de Matos Guerra, Manuel Inácio da Silva Alvarenga e Domingos
Caldas Barbosa. O interessante é perceber que, apesar de publicar dezenas de poesias de autoria
de José Basílio da Gama, esse não ganhou uma nota biográfica no Parnaso. Porém, a primeira
224
SILVA, J.M.P. da. Parnaso brasileiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843-1848. 2v.
225
SILVA, Joaquim Norberto de Sousa; ADÊT, Émile. Mosaico poetico, poesias brasileiras antigas e modernas,
raras e ineditas, acompanhadas de notas, noticias biographicas e criticas, e de uma introdução sobre a litteratura
nacional. Rio de Janeiro: Tipografia de Berthe e Haring, 1844.
226
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilégio da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira,
1946. 3v. Os dois primeiros tomos da obra foram impressos em Lisboa, em 1850, e o terceiro, em Madri, no ano
de 1853.
227
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 169.
228
BARBOSA, Januário da Cunha. Ao Publico. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Caderno nº1, 1829.
66
229
SENNA, Janaína. A ponto precário: o parnaso fundacional de Januário da Cunha Barbosa. op. cit.
230
Idem, p. 316.
231
MIRANDA, José Américo. Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa: Prefácios e Índices, Organização,
edição, Notas e Apresentação. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 1999. p. 8.
67
Quanto à apresentação dos poetas, o cônego declara que pretende tornar conhecido o
“gênio” literário dos brasileiros, para servir de exemplo, já que, em sua visão daquele momento
histórico, o ramo das “Bellas Letras” estava abandonado há algumas décadas, por conta dos
acontecimentos políticos recentes que afetavam a nação.232
É importante ressaltar ainda que, com a publicação do Parnaso, muitos autores
ganharão vista do público pela primeira vez, como os poetas Basílio da Gama e de Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga.233 No caso do primeiro, o caderno três publica dois sonetos e uma
décima, inéditos naquele momento. Já no caso de Silva Alvarenga, seis das vinte composições
reunidas na coletânea também eram inéditas.234
É interessante destacar ainda a presença de nomes femininos na seleção. As poetisas
Beatriz Francisca de Assis Brandão e Delfina Benigna da Cunha são incluídas no Parnaso em
um momento em que as mulheres são vistas como “coadjuvantes”, às quais eram negadas “a
autonomia e a subjetividade necessária à criação”.235
Como já mencionado anteriormente, muitos críticos apontaram problemas na
organização da coletânea. De certa forma, o próprio cônego explica a falta de critério para a
escolha dos nomes incluídos no Parnaso. Nos textos introdutórios da obra, o primeiro secretário
do IHGB salienta que
Os anos em que a nação esteve ligada a Portugal seriam, na visão de Cunha Barbosa,
o motivo do atraso no campo ilustrado brasileiro. Por isso a necessidade de se fazer projetos
232
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 90.
233
MIRANDA, José Américo. Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa. op. cit., p. 16.
234
Idem, p. 18.
235
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORI, M. (org.) História das mulheres no Brasil. 8a.
ed. SP: Contexto, 2006, p. 403.
236
BARBOSA, Januario da Cunha. Introdução. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Tomo I, Caderno nº2, 1830. [grifos meus]
68
que contemplassem essa área, principalmente com o intuito de elevar o nome do país entre as
civilizações cultas do mundo.
É importante frisar que, para Cunha Barbosa, assim como para os demais letrados no
Oitocentos, as questões políticas não estavam à parte do mundo das letras. Na introdução do
Parnaso, o cônego lamenta que, desde a Independência, poucos eram os brasileiros que se
dedicavam à poesia. A necessidade de se elaborar essa coletânea não estava somente vinculada
com a promoção das letras nacionais, mas também se relacionava ao cumprimento de um dever
cívico e uma forma de demonstração do amor à pátria.237
Em três prefácios breves, Cunha Barbosa expõe suas intenções e ideias acerca da
coleção. São eles os seguintes: “Ao público”, que precedeu o conteúdo do caderno primeiro da
obra, publicado em 1829; a “Introdução”, incluída no caderno segundo, em 1830 e o “Aviso”,
que veio no caderno quinto, abrindo o segundo volume do Parnaso.
No prefácio do primeiro tomo, o cônego projetava os caminhos e as suas pretensões
com a realização da coletânea. No final de sua argumentação, o cônego demonstra as
perspectivas que encontra em seu empreendimento:
237
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 90.
238
BARBOSA, Januário da Cunha. Ao Publico. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Caderno 1 , 1829.
239
BARBOSA, Januário da Cunha. Ao Publico. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Caderno 5, 1831.
69
Nesses textos introdutórios, o cônego tratou das biografias, concedendo grande espaço
para esse gênero de escrita. Em sua concepção,
Forâ bom ajuntar á esta collecção huma noticia Biographica de tantos Poetas,
que honrão o nome Brasileiro com produções distinctas; mas esta tarefa
offerece maiores difficuldades, sem com tudo desanimar a quem espera ainda
offerecer ao conhecimento do mundo as memorias dos Illutres Brasileiros, que
fazem honra á Litteratura Nacional.240
Em 1843, quando publicou o primeiro volume do seu Parnaso Brasileiro, João Manoel
Pereira da Silva mencionava que o “antigo Parnaso”, de Cunha Barbosa, já era, naquele
momento, uma raridade bibliográfica, mas destacava o inacabamento da obra: “os oito
cadernos, que se publicaram, mereciam grande reforma”. 241
O francês Ferdinand Wolf, em seu livro “O Brasil literário”, de 1863, também cita a
importância do Parnaso de Cunha Barbosa para a história da literatura nacional. Para Wolf,
(...) só no decorrer dos últimos trinta anos é que apareceram no Brasil obras
objetivando reunir os materiais da história literária futura ou tentar uma
súmula de seu desenvolvimento. Assim em 1831 [sic], Januário da Cunha
Barbosa, além do mais poeta, publicou um “Parnaso brasileiro”, de que não
conhecemos nada, além do título.242
240
BARBOSA, Januário da Cunha. Ao Publico. In: Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos
Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Caderno 1, 1829. Como salientado anteriormente, na
comparação das biografias presentes no Parnaso com aquelas de autoria do cônego, na Revista do IHGB, podemos
perceber a presença de três nomes comuns às duas publicações, são eles: Gregório de Matos, Manuel Ignácio da
Silva Alvarenga e Domingos Caldas Barboza. Mais adiante, faremos uma análise de cada uma dessas biografias.
241
SILVA apud MIRANDA, José Américo. Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa. op. cit., Idem, p.
9.
242
DENIS apud SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do
passado literário. op. cit., p. 102. Em seu artigo “As Transformações nos Conceitos de Literatura e História no
Brasil: Rupturas e Descontinuidades (1830-1840)”, Valdei Lopes de Araújo entrelaça o estudo da obra de Cunha
Barbosa e a de Gonçalves de Magalhães, buscando demonstrar como o conceito de literatura sofreu modificações
naquele período. Segundo ele, o fato se deu principalmente pela emergência de um novo “campo de experiência”,
apesar do curto espaço temporal que divide essas duas obras. ARAUJO, Valdei Lopes de. As transformações nos
conceitos de literatura e história no Brasil: Rupturas e descontinuidades (1830-1840). sÆculum - REVISTA DE
HISTÓRIA [20]; João Pessoa, jan./ jun. 2009. p. 49.
70
243
Idem,p. 53.
244
Idem, p. 53. Para maiores detalhes sobre as definições de construtores e herdeiros, ver: MATTOS, Ilmar
Rohloff. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. São Paulo: Almanack
brasiliense, 2005. Disponível em: <http://www.almanack.usp.br>.
245
MIRANDA, José Américo. Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa: Prefácios e Índices, Organização,
edição, Notas e Apresentação. op. cit., p. 7.
246
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 93. Grifos meus.
71
autora entende que a escolha do gênero antológico não foi aleatória, já que os principais
objetivos declarados pelo autor eram os de resgatar e preservar nomes e poesias de
brasileiros.247
Huma Senhora, cega desde a idade de dous annos, versejando na de 12, com
bastantes conhecimentos sobre a Historia, e outros ramos Philologicos, he sem
duvida hum assombro (Barbosa, J. da C.: 1829, caderno 4°, p. 26).
247
Idem, p. 49.
248
SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., p. 94.
72
A autora, cega desde a idade de dous annos e versejando desde a de doze com
bastante conhecimento da historia e outros ramos philologicos, é sem duvida
um assombro! (Silva, J.N. de S. & Adêt, E.: 1844a, p. 154, nota 58).249
249
APUD. SENNA, Janaína Guimarães de. Flores de antanho: as antologias oitocentistas e a construção do passado
literário. op. cit., pp. 133-134.
250
BARBOSA, Januario da Cunha. Quadro resumido da vida de Grégorio de Matos Guerra. In: Parnaso
Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Tomo II,
Caderno nº5, 1831. p. 47.
251
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Gregório de Mattos. RIHGB. Tomo III, 1841, p. 333.
252
BARBOSA, Januario da Cunha. Breve notícia sobre a vida de Doutor Manuel Inácio da Silva Alvarenga. In:
Parnaso Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas.
Tomo II, Caderno nº6, 1831. p. 28.
73
Meu tio (assim nos informou hum parente ainda vivo deste nosso Poeta) nem
era Preto nem branco, nem d’Africa nem d’América; mas era hum homem de
muitos talentos e de virtudes sociaes, Expliquemos estes ditos...255
Meu tio (assim nos informou um parente ainda vivo d'este nosso poeta) não
era preto nem branco, nem d'Africa nem da America: mas era um homem de
muitos talentos, e de virtudes sociaes: expliquemos estes ditos.256
Percebe-se que Cunha Barbosa deixa claro se tratar de um parente próximo e, neste
caso, o desafio maior talvez estivesse em narrar a vida de um poeta mestiço, de modo a
demonstrar o seu valor e as suas “virtudes”.
253
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. RIHGB. Tomo III, 1841, p. 338.
254
MENEZES, Francisco de Paula. Elogio Historico do conego Januario da Cunha Barboza. RIHGB, Tomo XI,
1848, pp. 243.
255
BARBOSA, Januario da Cunha. Breve notícia sobre a vida de Domingos Caldas Barbosa. In: Parnaso
Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Tomo II,
Caderno nº8, 1831. p. 17.
256
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Domingos Caldas Barboza. RIHGB. Tomo IV, 1842, p.210.
74
Com essas palavras iniciais, o IHGB, desde sua criação, coloca-se como um dos pilares
da sociedade que começava a se formar, sendo as letras, sobretudo a história e a geografia,
capazes de não só “adoçar” os costumes públicos, mas também de contribuir para o
fortalecimento da monarquia constitucional. A origem da agremiação remonta à sessão do dia
18 de agosto de 1838, da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, quando o primeiro
secretário, Raymundo José da Cunha Mattos, e o secretário adjunto, Januário da Cunha
Barbosa, propõem a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sob o argumento de
que a história e a geografia serviriam como alicerces para a nação e para o esclarecimento dos
brasileiros.258
Ao analisar as formas com que a sociedade lidou com a Independência, Ilmar Mattos
observa que a emancipação política contribuiu para apagar “as ainda fluidas fronteiras entre as
esferas pública e privada, ao inundar como uma grande onda representativa da questão do
Estado todos os âmbitos da vida comum”.259 Nessa conjuntura, aqueles indivíduos que se
apresentavam como “construtores” por se envolverem no projeto de consolidação da nova
unidade política, também eram “herdeiros”, de um nome (o “Império do Brasil”) e um território
e essa herança definiria também os marcos dessa construção, cuja trajetória longa e tortuosa
estendeu-se para além do momento da emancipação.260
Como parte desse processo e dentro do propósito de construir um saber específico
sobre o passado da nação, o IHGB organizou-se, nos primeiros anos, “segundo princípios não
estritamente regidos pelo mérito intelectual acadêmico, mas bem mais próximos de uma
sociedade de corte, fundada na hierarquia de funções e papéis sociais”. 261
Assim, mais uma característica que aproxima o IHGB do estado monárquico é a
inserção de D. Pedro II, como patrono e mecenas da agremiação. Segundo Lúcia Guimarães, a
proposta de colocar o Instituto sob a proteção do Imperador que, vale ressaltar, ainda não havia
257
Breve Noticia sobre a creação do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Tomo I, RIHGB, 1839, pp. 5-6.
258
Idem, p.5.
259
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade
política”. Almanack Braziliense, n. 01, maio/2005, p. 10.
260
Idem, p. 24.
261
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Traçando vidas de brasileiros distintos com escrupulosa exatidão, op. cit.,
p.163.
75
atingido a maioridade, partiu de Januário da Cunha Barbosa, assim como o pedido de auxílio
financeiro para a nova agremiação, dirigido à Regência. Porém, em seu estudo sobre a
Sociedade Auxiliadora, Werneck da Silva não atribui a iniciativa ao cônego e, para ele
Porque,
O principal objetivo de narrar as vidas dos grandes homens era retirar do esquecimento
os nomes daqueles que honraram a pátria, além de oferecer um arquétipo de cidadão a ser
262
SILVA, José Luiz Werneck. Isto é o que me parece: A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1827-
1904) na Formação Social Brasileira. A Conjuntura de 1871 até 1877. Dissertação de Mestrado – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1979. Volumes I, p.91.
263
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial, op. cit., pp.
484-485.
264
De acordo com o levantamento de Maria da Glória de Oliveira, entre os anos de 1839 e 1899, a Revista do
IHGB publicou 165 textos biográficos, 71 deles incluídos nos tomos do primeiro decênio de circulação.
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história, op. cit., pp. 207-217.
265
BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso, op. cit., p. 14.
266
Idem. p. 14.
76
imitado pelo resto da população.267 Nesse contexto, a escrita de biografias e a escrita da história
eram práticas plenamente compatíveis e complementares na visão de grande parte dos sócios
do IHGB.268
De acordo com Temístocles Cezar, no Brasil do século XIX, os contatos entre
biografia e história foram marcados por duas preocupações, “a constante busca de marcas de
cientificidade e a tarefa de se escrever a história da nação”.269 Além disso, os dois gêneros
adequavam-se aos preceitos da fórmula da historia magistra vitae (história mestra da vida), que
funcionou como “princípio organizador” que justificava e orientava as investigações do
IHGB.270 A função pedagógica atribuída à escrita biográfica, afinava-se diretamente a este
princípio e, desse modo, a narrativa da vida de personalidades importantes se apresentava ao
Instituto como uma possibilidade de tirar da história exemplos para o presente. 271
No título da seção de biografias da Revista, também chama atenção o topos das armas
e letras, cujo uso marcou a produção letrada portuguesa no período da expansão ultramarina.
A fórmula sugere uma articulação recíproca entre ação e palavra, entre a espada e a pena,
mediante a qual um feito militar somente adquiriria grandeza pelo canto do poeta.272 Segundo
Maria da Glória de Oliveira, o uso da fórmula no contexto brasileiro, pode ser compreendido a
partir de dois aspectos:
o mais evidente deles, é que ela reforça a dimensão de natureza política que,
ineludivelmente, articulava-se ao empreendimento historiográfico do Instituto
e à legitimação de um projeto civilizador inaugurado pela colonização
portuguesa. (...) Por outro lado, a tópica, em toda a sua conotação metafórica,
sinaliza critérios fundamentais de distinção dos indivíduos e seus feitos nos
quadros mais amplos da história da nação.273
267
As biografias não figuraram somente nas páginas da Revista do IHGB. No século XIX brasileiro, outras obras
do gênero também foram publicadas. Entre elas, está o famoso livro de Auguste Sisson, Galeria dos Brasileiros
Illustres: Os Contemporaneos, e a obra de João Manuel Pereira da Silva, O Plutarco brazileiro, ambos estudados
por CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX. Métis:
história & cultura, v.2, n.3, jan.-jun. 2003, pp.73-94.
268
CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história. Historiografia e nação no Brasil do século XIX.
Diálogos, Maringá/Paraná, v. 8, 2004, pp. 11-29 e OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a
história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2009.
Tese de Doutorado.
269
CEZAR, Temístocles. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX. op. cit., p.74.
270
CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX. Diálogos,
DHI/UEM, v.8, n.1, 2004, p.14.
271
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857. op. cit., p.126.
272
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. op. cit., p. 113.
273
Idem, pp. 115-116.
77
Dessa forma, além de ter como principal finalidade fixar a memória dos nomes e das
vidas dos brasileiros ilustres que, de alguma forma, contribuíram para a construção da nação,
“a aposta biográfica dos sócios do Instituto seria justificada pela vocação moralizante daquela
modalidade de escrita e por uma ambição de verdade análoga à da historiografia”, assumindo
um caráter historiográfico.274
No Brasil da primeira metade do Oitocentos, os valores heroicos estiveram atrelados
à figura de D. Pedro I, principalmente pela vinculação de seu nome à Independência. Já seu
filho, o Imperador D. Pedro II, foi visto como “grande homem”, aquele que zelou pela ilustração
e pelas letras da nação. E por último, na galeria nacional, apareceram os biografados, aqueles
escolhidos como servidores exemplares do Império.275
Vale destacar a importância do catolicismo nesse momento, como uma das bases de
estruturação da sociedade oitocentista brasileira que funcionava também como o elo essencial
que ligava o passado, o presente e o futuro.276 No caso das biografias de autoria de Cunha
Barbosa, como ainda será demonstrado neste trabalho, destacam-se as figuras públicas
vinculadas à Igreja Católica, em detrimento de outros nomes do passado nacional.
Esses biografados aparecem enquadrados na categoria de “brasileiros ilustres” por
suas realizações e por certos traços morais que os destacava nos quadros da nação. No próximo
capítulo, as biografias elaboradas por Cunha Barbosa serão analisadas a partir das categorias de
“providencialismo histórico”, “grande homem” e “gênio”, noções recorrentes utilizadas para
descrever as trajetórias e os méritos dos indivíduos do passado colonial dignos de memória no
século XIX.
274
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. op. cit., 187.
275
Idem. p. 59.
276
Idem. p. 51.
78
Na primeira metade do século XIX, a biografia assumiu um papel ímpar como uma das
formas de elaboração do passado histórico brasileiro. Na seção intitulada “Biografias de
Brasileiros Distintos por Letras, Armas e Virtudes”, criada pelo cônego Barbosa, figuram
diversos nomes exaltados como servidores da nação e construtores da história nacional. Esses
esboços biográficos trazem consigo não somente relatos factuais da vida de indivíduos célebres,
mas expressam também os valores políticos e ideais coletivos que se afirmavam naquele
momento. A partir do estudo dessas biografias, também é importante considerar as
peculiaridades inerentes à trajetória de seu autor, Cunha Barbosa, que viveu o momento prévio
e posterior à independência, combinando atuações como religioso, político e literato.
Em 1837, dentro do periódico O Auxiliador, da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional o cônego publicou o “Elogio Fúnebre ao Conde de Gestas”, proferido no ano
anterior.277 É possível perceber nesse elogio, a utilização das noções de “providencialismo”, de
“grande homem” e de “gênio”, que também marcam a construção do panteon de Cunha Barbosa
dentro do IHGB.
Para o cônego, anunciar a morte do Conde de Gestas (1788-1836), era tarefa que a
Providencia havia lhe reservado como forma de “pagar este lúgubre tributo da nossa gratidão á
memoria de hum sócio (...)”. 278
Barbosa exaltava as “incansaveis fadigas que este Ilustre
Estrangeiro consagrava sempre em beneficio da humanidade (...)”, demonstrando ser este um
homem dedicado à realização de atos não em benefício próprio, e sim de um coletivo, da
nação.279 O fato de ser francês não era empecilho para que Aymard fosse exaltado em terras
brasileiras, já que, para o cônego, “(...) estrangeiro em nossa pátria, consagrava-lhe hum amor
de tão subido quilate, que correria parelhas com o do mais patriota Brasileiro (...)”. Por fim,
277
BARBOSA, Januário da Cunha Barbosa. Elogio Funebre do Conde de Gestas, recitado na sessão geral
anniversaria da installação da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional no dia 6 de agosto de 1836, pelo
membro do conselho administrativo da mesma sociedade o S.r Januário da Cunha Barbosa. O Auxiliador, 1837,
v.9, pp. 286-290.
278
Segundo Cunha Barbosa, Jacques-Marie Aymard nasceu em 1788 na França, era sobrinho da Condessa de
Roquefeuille, e veio com sua tia para o Brasil em 1807, junto com a família real; foi Membro do Conselho da
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, trabalhou para o Estado francês sendo seu Encarregado de Negócios
e Cônsul Geral na corte brasileira. Idem.
279
Idem, p. 286.
79
define o Conde como portador de um gênio, que precisou encontrar local físico para esse
florescimento, sendo escolhido um lugar “(...) nas montanhas da Tijuca hum sitio apropriado
ao seu genio, e ás suas observações e experiências”.280 Trata-se de um texto que, sob muitos
aspectos, diferencia-se das biografias estampadas nos anos seguintes na Revista do IHGB,
sobretudo porque foi composto como peça oratória de laudação fúnebre e recitada, portanto,
em uma circunstância específica.
Dentro do IHGB, Cunha Barbosa não foi o único autor a se dedicar à escrita biográfica,
nem tampouco foi aquele a contribuir com o maior número de textos em toda a seção de
brasileiros ilustres.281 Entre os sócios da agremiação, Francisco Adolfo de Varnhagen, autor da
primeira História Geral do Brasil, desponta com o volume de biografias um pouco superior ao
do cônego, caso seja considerado o primeiro decênio da Revista do Instituto. A tabela a seguir
demonstra o período em que Januário esteve à frente da agremiação: 282
25
N° DE BIOGRAFIAS
PUBLICADAS
14
13
BIÓGRAFOS
280
Idem, p. 287.
281
Mas vale reafirmar que o cônego, apesar de não ter maior preponderância na confecção de biografias, foi o
grande incentivador do gênero dentro do Instituto. Assim como podemos observar na conhecida passagem do
Discurso de Cunha Barbosa na inauguração do IHGB: “Uma biographia dos mais preclaros Brazileiros é tarefa,
de certo, mui superior ás forças de um só homem, attentas as nossas circumstancias; mas a gloria que deve resultar
de uma tal empreza accende o zelo dos que a teem encetado em communhão de trabalho, e reflectirá tambem sobre
o nosso Instituto, porque são do seu gremio os emprehendedores da desejada biographia brazileira; e se a sua
modestia me priva de lhes dar os devidos louvores por uma obra de honra nacional, a justiça não soffre que eu
deixe de publicar os seus nomes em credito dos membros fundadores deste Instituto” BARBOSA, Januário da
Cunha. Discurso. RIHGB, Tomo I, 1839. p. 14.
282
Ao pesquisar a produção biográfica de Varnhagen, Evandro Santos, salienta que este foi um dos maiores
colaboradores da seção de biografias da Revista do IHGB, e apontado por José Honório Rodrigues, como o
precursor da escrita biográfica no Brasil oitocentista. SANTOS, Evandro. A História geral do Brasil, de Francisco
Adolfo de Varnhagen: apontamentos sobre o gênero biográfico na escrita da história Oitocentista. História da
Historiografia. Ouro Preto, nº9, agosto, 2012. pp. 88-105. Os dados que deram corpo a este gráfico estão no Anexo
II.
80
283
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Bento
de Figueiredo Tenreiro Aranha. RIHGB. Tomo II, 1840. p. 266.
284
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho formou-se na faculdade de Direito Canônico de Coimbra, entrou
para Igreja, onde ocupou vários cargos até se tornar Bispo de Pernambuco.
81
e nela o primeiro secretário preocupa-se mais em relatar aspectos da vida religiosa de seu
biografado.285
A biografia de Clemente Azeredo Coutinho e Mello (1731-1774) é distinta das demais,
pois começa com a exaltação de sua linhagem familiar que remete a uma legitimidade herdada,
pois nas palavras do cônego: "Familias ha em que o empenho de adquirir honra e gloria no
serviço da patria constitue uma como herança, que vai passando de paes a filhos".286
Ainda no parágrafo introdutório, Barbosa cita que este era irmão de João Pereira
Ramos de Azeredo Coutinho (1722-1799), figura importante na reforma da Universidade de
Coimbra, que também ganhou um elogio biográfico na seção. 287 Antes mesmo de apresentar
aspectos sobre a vida de Clemente Coutinho, salienta que este seguiu o caminho das letras,
tendo estudado na Universidade de Coimbra, sendo esse um de seus talentos.288 Aspecto
importante de ser ressaltado é que, ao longo desse esboço, o cônego retoma sempre um ponto,
o peso da família, principalmente naquilo que concerne à sua influência nas decisões tomadas
pelo sujeito, pois esta instituição é anterior a seu nascimento. Dessa forma, dá grande destaque
à construção de uma linhagem familiar de “ilustres” servidores do Império.
A biografia de João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho é uma das mais extensas,
entre as assinadas por Cunha Barbosa. Nesse texto, o cônego confere maior importância à
linhagem familiar dos Azeredo Coutinho do que aos talentos individuais manifestados na mais
tenra infância. O primeiro secretário salienta que João Pereira e seu irmão se empenharam em
refazer os estatutos para a "reforma geral de todas as Sciencias", processo diretamente ligado à
Reforma da Universidade de Coimbra289.
285
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: D. José
Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. RIHGB. Tomo I, 1839, pp. 272-274.
286
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Clemente
Pereira de Azeredo Coutinho e Mello. RIHGB. Tomo IV, 1842, p. 88. Clemente Pereira de Azeredo Coutinho e
Mello também teve formação jurídica em Coimbra. Posteriormente entrou para a carreira militar, foi nomeado
governador da capitania do Maranhão, tendo falecido antes de exercer o cargo. Vale acrescentar que também se
dedicou às “letras”, escreveu “Noticias sobre a topografia dos paizes percorridos desde o Piauhy até a Bahia.
287
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: João
Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. RIHGB, Tomo II, 1840, pp.118-127. João Pereira Ramos de Azeredo
Coutinho, irmão de Clemente Pereira de Azeredo Coutinho e Mello, formou-se em Cânones em Coimbra.
Trabalhou em diversos quadros do Estado e também foi professor daquela Universidade.
288
É importante perceber a grande quantidade de vezes que a palavra “talento” aparece para descrever as
habilidades dos homens ilustres. Como se todos eles fossem abençoados com características que deveriam ser
melhor desenvolvidas. No Dicionário da Língua Portuguesa Moraes, a palavra tem por significado “habilidade,
boa disposição para as ciências, artes.” SILVA, Antonio Moraes. Dicionario da Lingua Portuguesa composto
pelo Padre Dr. Raphael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: 1789. Tomo
Segundo, p. 441.
289
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. RIHGB, Tomo II,1840, p. 128. A Reforma da Universidade de Coimbra,
82
se encontra em um plano mais amplo que são as Reformas Pombalinas, que começaram em 1758, com a destituição
do poder temporal da Companhia de Jesus, onde seus membros foram expulsos dos domínios portugueses. A nova
proposta de modernização, que levaria a uma renovação ilustrada, era a extinção do ensino desenvolvido pelos
jesuítas, e foram instituídas aulas régias de latim, grego e retórica, dando maior ênfase ao estudo da língua nacional.
NUNES, Cristiane Tavares Fonseca de Moraes. A Universidade de Coimbra Reformada. VII Congresso Brasileiro
de História da Educação. ISSN 2236-1855. Disponível em: http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/.
Acessado em: 26 de abril de 2015.
290
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Henrique
Julio de Wallenstein. RIHGB. Tomo VI, 1844, p. 111. Wallenstein, nasceu na Silesia Prussiana, estudou em colégio
da Congregação de Jesus. Trabalhou em diversas instâncias do Estado, como por exemplo como adido e como
cônsul nos Estados Unidos e no Brasil. Participou também de academias, como a Academia de História da Espanha
e do próprio IHGB. Vale acrescentar que assim como von Martius, que saiu vitorioso, Wallenstein também se
inscreveu no concurso lançado em 1844 pelo IHGB, sobre “como deveria ser escrita a história do Brasil". Sua
proposta era a de que fosse tomada como referência as "Decadas" de João de Barros. A menção ao concurso não
aparece nas páginas da biografia desenvolvida por Cunha Barbosa.
291
Em uma das únicas passagens em que a vida pessoal do biografado aparece é para fazer menção ao motivo de
sua permanência no Brasil, "(...) casou-se com uma senhora brasileira, a quem sempre tratou com toda a delicadeza
e affecto, de cuja união existem dous filhos." Idem, p. 115.
292
Somatório das províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Falar de províncias e nação nesse momento ainda
é muito difícil, trabalho mais árduo seria definir esses indivíduos como “brasileiros”, já que, em um período muito
próximo, o da Independência, “(...) reconhecer-se “brasileiro”, não significava necessariamente abrir mão do
83
5
2
1
MINAS GERAIS RIO DE JANEIRO GRÃO PARÁ BAHIA SEM DEFINIÇÃO PRUSSIA
Ainda de acordo com os dados referentes aos anos de nascimento e de morte, podemos
observar que quase oitenta por cento dos biografados (11) viveu no período colonial, tendo a
sua trajetória de vida concentrada no período anterior a 1822. Uma das hipóteses que se pode
levantar referente a esses dados é de que as características a serem perpetuadas, ainda estavam
ligadas a uma elite formada socialmente no período colonial. Outra perspectiva de análise é
perceber nesses dados a aproximação dos biografados com o perfil e a trajetória dos sócios do
IHGB nos primeiros decênios de sua existência.293 Ao analisar os quatorze personagens
biografados pelo cônego, é possível perceber e corroborar a tese segundo a qual a galeria de
brasileiros ilustres do IHGB pode ser compreendida como “fruto da sociedade política do
reinado de dom Pedro II”. Portanto, é possível afirmar que esses biografados, nascidos nos
tempos coloniais, e em grande parte nas províncias da região sudeste, funcionam como um
“espelho” do quadro de sócios do Instituto no século XIX.294 Vale ainda afirmar que esse
“espelho” serve não apenas para que os notáveis do Instituto se mirem no exemplo dos ilustres
membros das elites coloniais, mas também para fortalecer uma espécie de linha temporal de
continuidade entre esse passado colonial e a construção do império e da nação após a
independência. No gráfico abaixo, visualizaremos melhor essa demarcação.
sentimento de pertencimento político à “grande família lusitana. PAMPLONA, Marco A. Nação. In: Léxico da
História dos Conceitos Políticos do Brasil. João Feres Júnior (Org.). Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2009. p. 170.
293
Tal aspecto foi destacado por ENDERS, Armelle. O Plutarco Brazileiro. A produção dos vultos nacionais no
segundo reinado. op. cit., p.59.
294
Idem.
84
PE RÍO DO DE MO RT E DO S B IO GRAFADO S PO R J.
CUNH A B ARB O S A
11
3
MORRERAM ANTES DE 1822 MORRERAM DEPOIS DE 1822
Sem Informação; 2
Universidade de
Coimbra; 8
Colégio Religioso; 4
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
295
Sobre a distinção entre elites brasiliense e coimbrã, ver NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e
Constitucionais – a cultura política da Independência (1820- 1822). Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003, p. 50.
296
Idem, p. 33. Ver também, CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial.
Teatro de sombras: a política imperial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
85
7 de abril de 1831, quando tomou o partido da “revolução vitoriosa”, sendo acolhido pelo grupo
de Evaristo da Veiga.297 A mudança se torna significativa se lembrarmos que, desde seu retorno
do exílio, Januário optou por uma postura prudente como um fiel defensor dos atos do
governo.298
Nas biografias de José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830)299 e de
Antonio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), percebemos um exemplo dessa preocupação. Na
vida do padre Sousa Caldas, relata já nos primeiros instantes de seu texto que Caldas dedicou-
se desde muito cedo aos estudos, tendo seguido o mesmo caminho de muitos brasileiros, indo
para Portugal terminar sua formação em Coimbra.
297
BITTENCOURT, Feijó. Os Fundadores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. pp. 187-188.
298
“Defendendo atos do governo, ei-lo “escritor oficial” e “funcionário público”, conquanto jornalista. (...)
Acusaram-no os companheiros de ontem de que que com isso ele se contradizia.” Idem, p. 187.
299
Monsenhor José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo, foi presbítero secular, formou-se bacharel em Cânones
por Coimbra, obteve as honrarias de Comendador e Cavaleiro da Ordem de Cristo; Cavaleiro da Ordem da Torre
e da Espada. Também foi Conselheiro honorário do Supremo Tribunal de Justiça e deputado na primeira legislatura
do império, cuja assembleia presidiu.
300
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. RIHGB, Tomo II,1840, p. 128. Sousa Caldas formou-se bacharel em
Direito por Coimbra, nesse mesmo tempo foi perseguido e preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Depois desse
período conturbado, dedicou-se à magistratura, porém rapidamente entrou para os quadros da Igreja, dedicando-
se ao púlpito, como orador sacro, e às letras.
301
Monsenhor José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo também foi conselheiro honorário do Supremo Tribunal
de Justiça e deputado na primeira legislatura do Império, cuja assembleia presidiu.
86
denota mais uma vez o perfil singular da galeria de brasileiros ilustres, composta pela presença
significativa dos religiosos – que não deixavam de ser funcionários públicos de carreira – como
alicerces da sociedade, do Império e da monarquia no Segundo Reinado.
Essa característica de formação, tanto em colégios católicos, quanto em Coimbra, pode
ser bem explicitada na biografia de José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), o Marquês
de Caravellas, na qual Januário relata parte de sua formação, quando seus primeiros estudos
foram iniciados na Congregação de S. Bento, e depois, assim como para grande parte dos
brasileiros, tiveram continuidade em Coimbra com o curso de Teologia. Esse fato demonstra
uma forte ligação dos estudos no século XIX com os colégios católicos, sendo Carneiro de
Campos um exemplo da trajetória educacional dos letrados no Brasil oitocentista.302
Mais um ponto de convergência entre a trajetória do biógrafo e a de seus biografados,
o que igualmente expressa os valores da sociedade imperial, pode ser identificado no espaço
destinado nessas narrativas à enumeração de títulos e honrarias de que estes dispunham, dentre
elas está a Comenda da Ordem de Cristo, de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, de
Cavaleiro da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Villa Viçosa, dentre outras. Embora
tais condecorações fossem menos frequentes na época do Brasil Colônia, posto que eram
concedidas pela metrópole, não deixaram de ser consideradas como prova da distinção dos
biografados. É importante frisar que, no Segundo Reinado, criou-se uma sociedade de corte,
baseada justamente na concessão de mercês, títulos e honrarias, como essas condecorações das
diferentes “ordens”.303 Os gráficos abaixo traduzem melhor essa análise,
302
Carneiro de Campos formou-se em Direito Civil por Coimbra, foi senador do Império por sua província (Bahia),
possuía as honrarias: Ordem do Cruzeiro, Comenda de Cristo, Comenda da Ordem Austríaca da Coroa de Ferro e
era Cavaleiro de Villa Viçosa, tornando mais conhecido por seu título de Marquês de Caravelas.
303
Lúcia Guimarães afirma que “foi, sobretudo, no Segundo Reinado que se forjou uma sociedade de corte,
baseada na realeza do mérito. Dentre os motivos que recomendavam o recebimento de honrarias, destacavam-se,
além dos ditos serviços prestados, as provas de patriotismo, os atos de fidelidade e adesão à Sua Majestade
Imperial, etc.” GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Nobreza. In: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do
Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002.
87
8
4
POSSUEM NÃO POSSUEM
PARTICIPAÇÃO EM ACADEMIAS E
SOCIEDADES LETRADAS DO BRASIL E
DO MUNDO.
Não participavam 8
Participavam 6
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
304
Segundo Michel de Certeau, as citações são fontes de credibilidade, “assim, a linguagem citada tem por função
comprovar o discurso: como referencial, introduz nele um efeito de real; e por seu esgotamento remete,
discretamente, a um lugar de autoridade” CERTEAU, Michel de. A escrita da História. – Tradução de Maria de
Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 100.
88
305
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Ararigboya. RIHGB. Tomo IV, 1842, pp.207-209.
306
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Joaquim Carneiro de Campos. RIHGB. Tomo III, 1841, p. 481.
307
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Ararigboya. Op. cit.
308
Idem.
309
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: D. José
Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. RIHGB. Tomo I, 1839, pp.272-274.
89
transcrição de um decreto, no qual a Rainha lhe entrega o cargo de Juiz Conservador Geral e
Executor do tabaco, porém não é especificado de onde ou de qual arquivo foi retirado.310
Outro caso em que o primeiro secretário anexa compilações de escritos de seu
biografado é na notícia biográfica do Padre Antonio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), no
qual transcreve uma ode escrita pelo próprio biografado. E, mais uma vez, não possui a
preocupação em informar o local de alocação do documento. Depois da ode, também transcreve
um parecer sobre essa peça, no qual ressalta o uso dos pensamentos de Jean Jacques Rousseau
por parte do autor.311
Na biografia de seu tio, Cunha Barbosa encerra seu enredo com a morte do poeta. E
anexa um poema intitulado "Retrato de Amira", de autoria de Caldas Barboza, como forma de
legitimar sua presença no panteon dos ilustres pelas letras e virtudes, demonstrando com o
trabalho o valor do poeta. 312
Diferentemente das biografias citadas acima, na de Clemente Azeredo Coutinho,
encerra o relato com a morte de Coutinho em 13 de fevereiro de 1774, considerando que, apesar
de pouco tempo de vida, este trabalhou em prol da nação, através das armas e letras. Nas
palavras do primeiro secretário,
"(...) se a morte não viesse tão depressa encurta-le a vida, deixando perdidas
grandes despezas, que fizera para o seu transporte e sem compensação alguma
as de suas jornadas por asperos sertões, gastando assim muito de seu
patrimonio, porém mostrando em todos os seus feitos animo desinteresado,
maneiras affaveis, prudencia consummada, e zelo infatigavel na fiel execução
de todos os seus deveres."313
310
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: João
Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. op. cit.
311
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. op. cit.
312
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Domingos Caldas Barboza. op. cit.
313
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Clemente
Pereira de Azeredo Coutinho e Mello. RIHGB. Tomo IV, 1842, p. 91.
90
Por fim, ressalto o desfecho que Cunha Barbosa dá à notícia biográfica de Henrique
Wallenstein (1790-1843). Em quatro parágrafos, exalta as virtudes e a forma com que o
diplomata prussiano se relacionava com o próximo, seu papel como homem público e suas
relações com academias literárias, exaltando as características que o fizeram entrar no panteon.
Por fim, anexa documento, em francês, uma carta que chegou após sua morte trágica - ele se
matou, segundo o cônego por não querer sair do Brasil, já que havia constituído família, e por
isso acreditava não estar servindo seu país, pedindo dessa forma demissão - onde o governo da
Prússia não aceitou seu pedido, devido aos trabalhos que este já havia prestado a nação.315
Após esse levantamento sobre as principais características da vida dos biografados
pelo cônego, ficou claro que a escolha desses nomes não ocorreu de forma aleatória: da mesma
forma que alguns nomes são lembrados, outros invariavelmente são esquecidos. Personagens
como Tomaz Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa, amplamente conhecidos por
atuação na Inconfidência Mineira, não foram exaltados por Cunha Barbosa, e somente irão
entrar no panteon do IHGB em 1849 e, posteriormente, repetidos a exaustão.
314
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Bento
de Figueiredo Tenreiro Aranha. RIHGB. Tomo II, 1840, p.264-265. Segundo Sacramento Blake, este estudou em
Convento, e apesar de haver condições intelectuais de ir para Coimbra, não pode por falta de capital financeiro.
Trabalhou em diversos cargos dentro do Estado, porém Blake ainda salienta que este foi um literato e poeta.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Typ. e Imp.
Nacional, 1883-1899, volume 1, pp. 397-398.
315
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Henrique
Julio de Wallenstein. op. cit.
91
distinção para os indivíduos e seus feitos. Assim, “no panteão erigido nas páginas da RIHGB,
predominam duas categorias de brasileiros distintos: os funcionários de carreira do Estado e os
religiosos”.316
No tocante aos talentos para as letras, podemos perceber que José Joaquim da Cunha
Azeredo Coutinho deveu a eles sua entrada no panteon de biografados, pois nas palavras do
cônego, dentre as ações do bispo, “(...) applicou todos os seus cuidados á illustração do clero
(...)”.317
A trajetória de José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo (1753-1830) é semelhante à
de Azeredo Coutinho em diversos pontos; ambos nasceram no Rio de Janeiro, e também se
formaram em Coimbra, além de também serem retratados por Cunha Barbosa como distintos
pelas letras e virtudes. Dentre as atribuições que Pizarro e Araújo assumiu durante a vida, o
cônego ressalta que este quis estudar a história de seu bispado, e por não haver documentação
suficiente nos arquivos, serviu-se também de relatos orais para escrever os nove volumes das
Memórias históricas do Rio de Janeiro e das provincias conexas à jurisdição do vice-rei do
Estado do Brasil, publicados entre 1820 e 1822. 318 Segundo o cônego, elas foram
(...) escriptas todas de sua letra, e com a critica escrupulosa, que lhe era
propria, na verificação dos factos, confrontação de datas, investigação da
verdade. Se nós lhe não podemos dar o nome de historia geral do Brazil, ainda
assim esta obra é um excellente thesouro, onde muito cabedal de
conhecimentos interessantes encontrará o que se propôzer a escrever a nossa
historia, mormente no que diz respeito á parte ecclesiastica.319
É possível com isso perceber a importância atribuída ao ato de coligir dados e registrá-
los sob a forma de “memórias” que serviriam de subsídio para a escrita da história do Brasil.
Assim, Januário declara que “Monsenhor Pizarro foi um Ecclesiastico respeitavel, um juiz
integro, um escriptor severo, que tirou do esquecimento, e da desordem dos nossos archivos,
316
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro, FGV, 2011. p. 107.
317
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: D. José
Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. op. cit., p .272.
318
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Monsenhor José de Souza Azeredo Pizarro e Araújo. op. cit.
319
Idem, p. 276.
92
suas Memorias Historicas, em que vive o seu nome para a gloria dos Brazileiros”, enaltecendo
assim suas qualidades enquanto homem das letras.320
José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836) foi mais um eleito para o panteon que
obteve grande expressão no campo das letras, depois de formado em Coimbra, permaneceu em
Portugal como preceptor dos filhos de Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde de Linhares, pois
segundo Barbosa, era muito difícil para um homem nascido na colônia do Brasil, viver somente
das lettras, na metrópole por isso “(...) não duvidou empregar-se em Lisboa no ensino e
educação dos filhos de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (...)”.321
Ao abordar a vida de Henrique Wallenstein (1790-1843), Januário afirma que este foi
um homem completo, seguiu carreira diplomática, também como já vimos anteriormente, foi
exaltado por atitudes heroicas, dedicando-se dessa forma tanto às letras, quanto às armas.
Segundo o cônego, este prestou grandes serviços ao mundo das letras, participando de diversas
Academias e Sociedades Científicas, realizando a tradução de livros, como por exemplo a
tradução das obras do Conde de Maistre, do alemão para o inglês.322 Ao mencionar brevemente
o seu nascimento e infância na Prússia em 1790, o cônego afirma que Wallenstein “parecia não
ter outro divertimento, que não fosse o da meditação dos livros, dilatando a esphera de seus
conhecimentos, ensaiando os vôos do seu genio em algumas pequenas composições(...)”.323 Já
ao abordar sua carreira heroica nas armas, Cunha Barbosa salienta que este,
Os valores que dariam aos indivíduos a verdadeira medida da sua distinção estariam
tanto em suas virtudes militares e morais quanto no cultivo das letras e na estima ao
conhecimento. Dentro desse contexto, evidencio a fala de Cunha Barbosa ao descrever os
talentos de Clemente Pereira de Azeredo Coutinho e Melo (1731-1774), manifestos durante sua
320
Idem.
321
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Joaquim Carneiro de Campos. op. cit., p. 478.
322
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Henrique
Julio de Wallenstein. op. cit., p. 113.
323
Idem
324
Idem, p. 112.
93
vida, salientando que este “(...) procurou a gloria das armas apoiada na gloria das letras (...)”, o
que reforçava o ideal de conciliação desse dois talentos e virtudes.325
Entre os biografados de Cunha Barbosa que merecia ser exaltado somente por sua
virtude guerreira está o índio Ararigboya (?-1589)326. Vale destacar que, nessa biografia, Cunha
Barbosa realiza uma espécie de olhar geral sobre as lutas que ocorreram contra os invasores
franceses, nas quais o líder indígena teve intensa participação. Nesse conflito, relata que o índio
era “amigo” dos portugueses. Dentre as virtudes destacadas pelo cônego, além da guerreira,
aquela que apareceu na infância, ainda inclui a “fidelidade”, principalmente por permanecer
aliado e lutar ao lado dos lusitanos.327
3.1.2 As exceções
325
Vale salientar que Clemente Pereira logrou maior destaque na carreira militar do que no meio das letras. Porém,
a frase é importante para demonstrar a forma com que Cunha Barbosa percebia a completude do homem a partir
dessas duas atuações, as letras e as armas. BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos
por lettras, armas, virtudes, etc: Clemente Pereira de Azeredo Coutinho e Mello. op. cit. p. 88.
326
Araribóia era chefe guerreiro dos temiminó. Seu nome é remetido ao apoio que deu aos portugueses contra os
franceses e principalmente à criação da cidade de Niterói. Foi condecorado com a honraria de Cavaleiro da Ordem
de Cristo e tornou-se capitão-mor de sua aldeia. Morreu afogado em 1589. FARIA, Sheila de Castro. Araribóia.
In: VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.
p. 54.
327
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Ararigboya. op. cit.
94
Essa biografia também se torna interessante, pois diferente de grande parte das demais,
a narrativa da vida desse nativo não possui sequência cronológica. Pelo contrário, sua descrição
é "costurada" pelo ato de coragem e bravura guerreira. Em nota, Cunha Barbosadestaca que
Ararigboya significa "Cabra feroz", reafirmando mais uma vez suas virtudes guerreiras328,
qualidades que parecem ter justificado sua presença nesse panteon.
Nos estudos sobre biografias da revista do IHGB, será possível perceber, como
salientou Maria da Glória de Oliveira, que essa seção só mudará sua fórmula em 1850, quando
passará a se chamar de “Biografias de brasileiros distintos ou de indivíduos ilustres que
serviram no Brasil”, abrindo como possibilidade a inclusão de indivíduos não nascidos no Brasil
fazerem parte desse panteon.329 Fato que já havia acontecido anteriormente com a inserção de
Wallenstein na lista de biografados de Cunha Barbosa. Porém, é importante perceber que não
havia critérios e regras bem delimitadas para a eleição ou exclusão dos personagens ilustres.
Os dois próximos casos são incluídos a título de curiosidade, pois se apresentam como
biografias inusitadas para o contexto da sociedade escravista imperial. Os biografados
Domingos Caldas Barbosa (1738-1800) e Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (1749-1814)
eram negros. Esse fato gera uma fissura entre o momento político do Brasil, no qual ainda era
empregada a mão de obra escrava, e a presença de homens negros em um panteon que pretendia
fixar a memória das vidas de indivíduos ilustres como modelos exemplares. Dessa forma,
podemos perceber que não existia uma linha bem definida sobre as distinções que a sociedade
deveria seguir.330
Na biografia de Domingos Caldas (1738-1800), Januário menciona que ele sofreu
preconceito, sem, no entanto, especificar as formas como esse fato ocorreu. Porém, salienta
que, na Europa, obteve diversas "fortunas", que não necessariamente foram de ordem
econômica, mas significaram o reconhecimento como poeta e músico.331
328
Idem.
329
OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico
no Brasil oitocentista. op. cit., pp. 100-101.
330
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Domingos Caldas Barboza. op. cit.
331
Idem, p. 343. Sacramento Blake utiliza os dados da biografia elaborada por Cunha Barbosa, no verbete sobre o
poeta de seu dicionário. Caldas Barbosa era filho de português com africana, sua data de nascimento não é exata,
o ano que consta como seu nascimento é na verdade o momento em que foi batizado. Estudou em colégio jesuíta,
alistou-se no exército e lutou na colônia do Sacramento, obtendo baixa, se tornou presbítero secular. Também foi
membro da Arcadia de Roma, e presidente da Academia de Bellas Artes de Lisboa. Segundo Blake, era “poeta e
notabilíssimo repentista”. Blake, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro.
Rio de Janeiro: Typ. e Imp. Nacional, 1883-1899, volume 2, pp. 198-203.
95
Diferentemente das outras biografias, Januário faz uma descrição não só da trajetória
desse poeta, Manoel Ignácio, mas se preocupa também em fazer uma análise psicológica sobre
esse sujeito. Segundo ele, "(...) era de côr e semblante carregado, de falla pausada, estatura alta,
repleta e forte."332 E, "apezar do prejuizo que dominava a côrte portugueza sobre o accidente
da côr parda, Manoel Ignacio era convidado ás mais brilhantes sociedades(...)"333
Neste trecho, percebe-se claramente que Cunha Barbosa busca elementos que possam
enaltecer a presença de Caldas e Ignácio. Sendo assim, apesar do “acidente” da cor, como
afirma o cônego, que seria um constrangimento, os biografados possuíam talentos.
Outro ponto que merece destaque entre as exceções é a ausência de mulheres no
panteão do IHGB. Armelle Enders explica que em todo século XIX o número de figuras
femininas, foi bem menor do que o de masculinas; e que, além disso, quando apareciam, sua
presença se justifica a partir de características e ações atribuídas ao masculino. Esse fato pode
ser exemplificado na figura de Maria Úrsula de Abreu Lancastre, por exemplo, que se vestiu de
homem para guerrear junto com os portugueses na Índia.334
Outro motivo para aparição de uma mulher na galeria, é ela ser casada com um
brasileiro ilustre, fato que ocorreu com Catarina Alvares, esposa de Caramuru. Sendo assim,
podemos perceber que, as situações mencionadas anteriormente comprovam que, na verdade, a
mulher não era exaltada, mas sim suas características masculinas.335 Cunha Barbosa não projeta
nenhum nome feminino dentro de sua galeria do IHGB, porém podemos destacar que no
Parnaso mulheres serão exaltadas como poetas, como é o caso de Delfina Benigna da Cunha.336
332
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. op. cit., p. 343.
333
Idem, p. 340. Manoel Ignacio da Silva Alvarenga formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, quando
voltou ao Brasil, começou a advogar e a ensinar retórica gratuitamente. Estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde se
tornou professor régio de Retórica e Poética, foram seus alunos: Rodovalho, Monte Alverne, S. Carlos e Cunha
Barbosa. Junto com Basílio da Gama criou uma sociedade literária no Brasil, que foi encerrada e seus sócios
perseguidos, pelo Conde de Rezende. Por esse motivo Silva Alvarenga ficou preso por dois anos na ilha das
Cobras. Segundo Blake, este “foi um dos primeiros poetas do Brasil (...)” Blake, Augusto Victorino Alves
Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Typ. e Imp. Nacional, 1883-1899, volume 6,
pp. 100-102.
334
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brazileiro. A produção dos vultos nacionais no segundo reinado. op. cit., p. 52.
335
Idem. p. 53.
336
BARBOSA, Januario da Cunha. Advertência. [Apresentação dos versos da poetisa cega D. Delfina Benigna da
Cunha, por Januário da Cunha Barbosa]. In: Parnazo Brasileiro, ou Collecção das Melhores Poezias dos Poetas
do Brasil, tanto ineditas, como ja impressas. Tomo I, Caderno nº4, p.25. 1829.
96
3.2 Muito além do que os olhos podem ver: uma análise das categorias de providencialismo,
gênio e grande homem.
Porém a vida claustral não era a sua verdadeira missão sobre a terra, não quiz
a Providencia que suas virtudes passassem ignoradas e quasi inuteis na solidão
de uma cella.339
337
As relações entre Estado e Igreja, começam ainda no período colonial, quando, através do padroado, o rei
possuía plenos direitos de nomear pessoas para cargos eclesiásticos. Porém, no Império, essas relações
permaneceram e o corpo clerical ganhou mais destaque na vida política do país. ABREU, Marta. Igreja. In:
VAINFAS, Ronaldo. (dir.) Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002. p.
348.
338
A observação da utilização de talentos está ligada somente à análise dos escritos de Cunha Barbosa. ROSA,
Giorgio de Lacerda. A Suprema Causa Motora: O Providencialismo a Escrita da História no Brasil (1808-1825).
Mariana, 2011, p. 25. Dissertação de Mestrado.
339
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Joaquim Carneiro de Campos. op. cit., p. 478. [Grifo Meu]
97
340
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. RIHGB. Tomo III, 1841, p. 341.
341
ROSA, Giorgio de Lacerda. A Suprema Causa Motora: O Providencialismo a Escrita da História no Brasil
(1808-1825). Mariana, 2011, p. 31.
342
Idem, p. 39.
343
ROSA, Giorgio de Lacerda. A Suprema Causa Motora: O Providencialismo a Escrita da História no Brasil
(1808-1825). op. cit.
98
344
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Monteiro de Noronha. op. cit. p. 262. José Monteiro Noronha teve formação em colégio Jesuíta, foi governador
do bispado do Pará.
345
Grifos meus. BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes,
etc: Doutor Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. op. cit., p. 135.
346
A Prudência está diretamente ligada a um dos sete dons do Espírito Santo, o “Temor a Deus”. BARBOSA,
Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José Monteiro de
Noronha. op. cit., p. 260. [Grifo meu]
347
“14- Pois será como um homem que, viajando para o estrangeiro, chamou seus servos e entregou-lhes seus
bens. 15- A um deu cinco talentos, a outro dois, a outro um. A cada um de acordo com a sua própria capacidade.
E partiu. Imediatamente. 16- O que recebera cinco talentos saiu a trabalhar com eles e ganhou outros cinco. 17-
Da mesma maneira, o que recebera dois ganhou outros dois. 18- Mas aquele que recebera um só, tomou-o e foi
abrir uma cova no chão. E enterrou o dinheiro do seu senhor. 19- Depois de muito tempo, o senhor daqueles servos
voltou e pôs-se a ajustar contas com eles. 20- Chegando aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe outros
cinco, dizendo: Senhor, tu me confiaste cinco talentos. Aqui estão outros cinco que ganhei. 21- Disse-lhe o Senhor:
Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com o teu senhor!
22- Chegando também o dos dois talentos, disse: "Senhor, tu me confiaste dois talentos. Aqui estão outros dois
talentos, que ganhei. 23- Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito
te colocarei, Vem alegrar-te com o teu Senhor! 24- Por fim, chegando o que recebera um talento, disse: 'Senhor,
eu sabia que és homem severo, que colhes onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste. 25-Assim,
amedrontado, fui enterrar o teu talento no chão. Aqui tens o que é teu. 26-A isso respondeu-lhe o senhor: 'Servo
mau e preguiçoso, sabias que colho onde não semeei e que ajunto onde não espalhei? 27-Pois então devias ter
depositado o meu dinheiro com os banqueiros e, ao voltar, receberia com juros o que é meu. 28- Tirai-lhe o talento
que tem e dai-o aquele que tem dez, 29- porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele
que não tem, até o que tem lhe será tirado. 30- Quanto ao servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali haverá choro
e ranger de dentes!” Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus,
1985. Mt 25, 14-30.
99
Seria esse o caso de José Monteiro de Noronha que, ao propagar os talentos que Deus havia lhe
dado, fez com que o bispo, D. Fr. Miguel de Bulhões, ficasse sabendo de seus "(...) talentos e
virtudes(...)", e por isso ele, segundo o versículo 23, recebeu retribuições por ter desenvolvido
aquilo que lhe foi dado, recebendo o cargo de Vigário Geral do Rio Negro.348
Uma das características mais marcantes das biografias de Cunha Barbosa é a narrativa
linear dos acontecimentos sucessivos das vidas ilustres como se as histórias desses indivíduos
já possuíssem um sentido prévio desde o seu começo. Aspecto esse que podemos perceber na
identificação das qualidades que os biografados de Cunha Barbosa apresentam “desde a tenra
idade”, já que para o autor as virtudes do adulto se apresentavam ainda latentes em sua infância.
Ao traçar a vida de Antonio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), Cunha Barbosa o descreve
como virtuoso, sábio e honrado porque "abrilhantou a carreira da sua vida com actos de virtude
e de sabedoria, que recommendam o seu nome ao respeito da posteridade, e que o fazem entrar
na lista dos mais distinctos Brasileiros."349
Diversas foram as formas com que o cônego exaltou em seus biografados as qualidades
e virtudes de um grande homem. É importante lembrar que, no Oitocentos, essa noção
designava “a excelência do homem letrado, benfeitor da humanidade e sobretudo dotado de
virtudes exemplares como servidor do Estado”.350 No caso de João Pereira Ramos de Azeredo
Coutinho (1722-1799), Cunha Barbosa exalta o fato de que seu biografado nunca requereu
nenhuma remuneração em seus cargos.351 Além disso, era filho de uma família proeminente,
grande proprietária de bens, e seus filhos seguiram o mesmo caminho de “honra”.352 E, "apezar
das grandes difficuldades desse tempo, o honrado Brasileiro mostrou uma firmeza de caracter,
348
Idem, p. 260.
349
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas, op. cit., p. 132.
350
OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no
Brasil oitocentista. Rio de Janeiro, FGV, 2011, p. 21.
351
Dentre os cargos que exerceu, cito o de Almotacel pelo Corpo Acadêmico; Vice Conservador e Ouvidor dos
Coutos e Conselheiro. A lista completa de cargos, de honrarias e de formação acadêmica encontra-se no Anexo.
352
Manoel Pereira Ramos (Desembargador), José Ramalho de Oliveira d’Azeredo Coutinho (Capitão de
Cavalaria), Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho (Conselheiro da Fazenda) e D. Theodora Hygina Arnaut
do Rivo (Casou com o tutor do Imperador D.Pedro II).
100
que o enche de gloria."353 Cunha Barbosa salienta ainda que, em vida, essas virtudes foram
reconhecidas, pois "(...) El-rei fazer-lhe mercê deste logar em consideração do merecimento,
letras, e conhecido zelo do serviço de Deus, e seu, que nelle concorriam."354
Na biografia de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811), o cônego salienta
que, apesar de desenvolver bem seu trabalho na “Villa dos Indios”, Aranha foi obrigado a mudar
de cargo, pois sua posição seria abolida, sendo levado a Escrivão da Abertura da Alfandega do
Pará. E mesmo apesar desses problemas continuou, segundo o cônego, fiel ao governador,
“(...) mas por fim foi victima de insidiosas maquinações e negras calumnias,
movidas por occasiao da discordia, que rebentara entre o governador, o Bispo
D. Manoel d’Almeida de Carvalho, e o Juiz de Fôra Luiz Joaquim Frota de
Almeida, de quem era fiel e extremoso amigo.” 355
Devido a esse fato perdeu o cargo, passando mais uma vez por dificuldades, até que o Conde
dos Arcos lhe concedeu cargo vitalício no governo, superando assim as adversidades.356
Na biografia de Henrique Wallenstein (1790-1843), Cunha Barbosa destaca as atitudes
heroicas do diplomata em meio a uma epidemia de febre amarela, quando seu amigo, o
Deputado de Mejia, "(...) expirou em seus braços, ferido d'esse terrivel flagello, sem que o
receio de ser tocado de tão contagiosos mal affrouxasse no coração do Sr. Wallenstein os
heroicos sentimentos com que desempenhava os deveres da mais firma amizade."357
Além das virtudes morais e heroicas exemplares, a trajetória de servidor do Estado
também define uma importante faceta do grande homem no Oitocentos. Na biografia de José
Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), marquês de Caravelas, Cunha Barbosa exalta a sua
postura política no contexto conturbado das regências:
353
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: João
Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, op. cit., p. 124.
354
Idem.
355
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Bento
de Figueiredo Tenreiro Aranha, op. cit. p. 264.
356
Idem
357
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Henrique
Julio de Wallenstein, op. cit., p. 112.
101
Tanto é que, em 1831, após a abdicação de D. Pedro I, seria escolhido para fazer parte da
Regência Trina que ficou provisoriamente até as eleições para a Regência Permanente. Januário
da Cunha Barbosa, termina a biografia salientando que
358
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Joaquim Carneiro de Campos. op. cit., p. 482.
359
Idem, pp. 483-484.
360
Idem
361
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: João
Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, op. cit., pp. 125-126.
102
Na fala do primeiro secretário, é a Providência que outorga a luz que ilumina o gênio,
e que lhe concede o dom para trabalhar em prol do bem coletivo. Dessa forma, podemos
perceber que, apesar de diferenciarmos como categorias distintas, para promover uma melhor
análise da escrita do cônego, não nos pode escapar que, nos discursos dos letrados do
Oitocentos, providência, gênio e grande homem, são noções que se articulam entre si.
Na biografia do padre Antonio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), podemos
perceber a utilização da noção de gênio quando Januário relata que, em Coimbra, o biografado
encontrou condições para se dedicar ao estudo das ciências naturais e positivas, demonstrando
assim facilidade no mundo das letras. Porém, como se ainda estivesse latente, seu gênio sofreu
diversos percalços, incluindo a prisão pelo Santo ofício. Quando liberto, Januário diz que "(...)
restituido aos braços dos seus amigos e parentes, que bem conheciam a pureza de seu coração,
e a rectidão de suas idéas (...)"363
Para a compreensão da categoria de gênio é necessário remontarmos à sua formulação
no sistema filosófico de Kant, no final do século XVIII, segundo o qual gênio seria “ o talento
(dom natural) que dá a regra à arte”, ou “[...] gênio é a inata disposição de ânimo [ingenium]
362
Além de chamar atenção para “Ceo” e “Gênio”, achei pertinente destacar outras duas palavras que fazem
referência ao mundo do catolicismo, “Gloria” e “Sabedoria”. Essa segunda em particular, remete aos sete dons do
Espírito Santo, na qual segundo a Igreja, faz com que o sujeito saiba diferenciar o certo do errado. BARBOSA,
Januário da Cunha Barbosa. Discurso recitado na Igreja paroquial de Santa Rita, Celebrando – se o 8º anniversario
da Independencia do Brasil por Januario da Cunha Barboza elleitor da mesma freguesia. Rio de Janeiro,
Typographia de Lessa e Pereira, 1830. 11p. [Grifo Meu]
363
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. op. cit., p. 129.
103
pela qual a natureza dá regra à arte”. Com base nessa definição, conclui-se que “o gênio se opõe
totalmente ao espírito de imitação”, porque nunca adota as regras ou as formas prontas da
tradição, pois sua característica principal é a originalidade.364 No entanto, o segundo aspecto
destacado por Kant é que “[...] o produto de um gênio é um exemplo [...] para um outro gênio,
que através dele é despertado para o sentimento de sua própria originalidade”.365 Neste sentido,
o uso da categoria como critério de distinção das vidas ilustres mostra-se plenamente adequado
à exaltação da biografia, tanto quanto da história, como “mestra da vida” e fornecedora de
exemplos para o presente, tal como expressou Cunha Barbosa em seus discursos.
Para além dessa acepção filosófica, a palavra “gênio”, na língua portuguesa, mantinha
uma conotação mais usual, tal como se encontra no Dicionário de Moraes e Silva, na edição de
1789:
Gênio, s.m. O talento, ou disposição, aptidão, propensão para alguma arte, &c.
Vieira, o genio me guiou para este caminho. A indole, o natural: v.g. tem bom,
ou máo genio. Genios entre os Gentios; espiritos, ou quasi deidades, a quem
elles attribuiãoa criação das coisas, e suppunhão que a cada pessoa assistião
dois, um que os inclinava ao mal, outro ao bem: a isto parece alludir Ferreira,
Castro, f. 128. ou quando minha estrella, e cruel genio te poder arrancar
desta alma minha.366
364
Sussekind, Pedro. Considerações sobre a teoria filosófica do gênio. Viso – Cadernos de Estética aplicada, n.7,
jul-dez 2009. Disponível em: http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_7_PedroSussekind.pdf
365
apud SUZUKI, Márcio. O gênio romântico – Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel.
FAPESP/Iluminuras, São Paulo, 1998. p. 44, nota 96.
366
SILVA, A. de M. Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p.84.
367
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Gregório
de Mattos. RIHGB. Tomo III, 1841, pp. 333-338.
104
esse que, segundo Cunha Barbosa, deixou o gênio de Mattos ainda mais inquieto. Ao retornar
ao Brasil, chega à capitania de Pernambuco, onde o governador Caetano de Mello de Castro,
concedeu auxílio para o poeta, porém "(...) com palavras um pouco severas, lhe intimou que
naquella capitania cuidasse muito em cortar os bicos da penna, se o queria ter por amigo”.368
Em nova passagem, Cunha Barbosa, salienta mais uma vez as formas com que o gênio
de Mattos se demonstrava, pois mesmo doente "(...) e apparecendo-lhe o padre Francisco da
Fonseca Rego, vigario do Corpo Santo, para o dispôr á morte, elle com o seu genio jovial e
satyrico desprezou os seus avisos(...)".369 Porém, em seus momentos finais, foi encontrado em
um papel "(...) e escripto com letras ja mui tremidas um soneto em que seu genio se manifestava
arrependido das extravagancias de toda a sua vida."370
Já na biografia de Manuel Ignácio da Silva Alvarenga, Januário exalta sua força
enquanto gênio, afirmando que, apesar dos problemas que encontrou durante a vida, eles
facilmente foram suportados pelo indivíduo, pelo fato dele ser um genio. O período em que
Silva Alvarenga passou preso teria sido seu maior percalço, por conta do abuso de poder do
antigo sistema político colonial. Para o cônego “o despotismo colonial folgou de achar na
estupida denuncia de um malvado rabula, que o odio fradesco iniciara na mais vil intriga, um
pretexto para aferrolhar nos subterraneos da Ilha das Cobras, por mais de dois annos (...)"371
O importante de se frisar nessa biografia é que Cunha Barbosa anuncia a morte do
poeta em 1814, ainda na metade de sua narrativa para, a partir desse momento, explicar como
as ações do biografado, enquanto professor, ajudaram a despertar "(...) no Brasil genios
admiraveis, que marcam a era da renovação da boa litteratura, e a continuação dos novos
estudos a que a mocidade se entregara com gloria." O próprio Januário teria sido um dos
membros dessa nova geração.372 É importante elucidar que o cônego também foi aluno de
Manoel Ignácio e o elogio dos talentos do mestre também não deixa de ser a exaltação do gênio
de sua própria geração.373
368
Idem, p. 336.
369
Idem, p. 337.
370
Idem
371
Apesar de escrever em um contexto posterior ao movimento da Independência, em algumas biografias, Januário
denuncia o caráter despótico do antigo regime político, assim como podemos perceber no trecho citado.
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. op. cit., p. 340.
372
Idem, p. 341.
373
Cunha Barbosa faz um apanhado geral do que seria essa nova geração literária, exaltando o novo, uma
construção que em seu entendimento poderia ser vista como um sinal de patriotismo e de uma nova forma de ver
105
A idéa do nosso poeta não foi ainda assim perdida; porque novos genios vão
apparecendo na terra de Santa Cruz, levando ávante a difficultosa empresa de
proporcionar a nossa poesia á grandeza dos objectos que de todas as partes
nos cercam.374
Na biografia que dedica a seu tio, Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), o cônego
afirma que o talento que justificava a memória do biografado era a sua dedicação ao mundo das
letras. Como poeta, sobressaía-se nas sátiras, fato que segundo Cunha Barbosa o fez ter
inúmeros inimigos.376
Para Januário, o talento poderia se manifestar ainda na infância. Isso é visível quando
lança mão do percurso de vida de Basílio da Gama (1740-1795), ressaltando que, desde criança,
o poeta apresentava habilidades naturais para o mundo das letras, "foi tal o desenvolvimento de
seus naturaes talentos(...)".377
o Brasil. Vale ressaltar que a todo momento, nessa segunda parte da biografia, ele cita seu próprio Parnaso como
obra que reunia as poesias dessa nova geração. Idem, p. 342.
374
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. op. cit. p. 343.
375
SUZUKI, Márcio. O gênio romântico – Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel. op. cit., p. 47.
376
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc:
Domingos Caldas Barboza, op. cit.
377
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Basílio da Gama. RIHGB, Tomo I, 1839, pp.117-119. José Basílio da Gama iniciou seus estudos com os jesuítas,
e também junto com eles foi expulso do Brasil em 1758, com o banimento dessa ordem por decreto do Marques
de Pombal, o qual anos mais tarde lhe empregou no Estado português. Foi amigo de Silva Alvarenga, Alvarenga
Peixoto e do padre Caldas Barbosa. Junto com o primeiro, fundou uma Arcádia no Brasil, porém essa foi dissolvida
106
Ainda na biografia do poeta mineiro que, além da revista do IHGB, também figura no
Parnaso, Cunha Barbosa relata que o pai de Manoel Ignácio percebeu a aptidão do filho e o
incentivou nos estudos, para que este honrasse a pátria e a literatura brasileira. E para isso havia
sido necessário sair do Brasil e ir para Coimbra para buscar conhecimentos "necessarios ao
desenvolvimento do genio (...), local onde começou a ser respeitado por seus talentos.381
E esses talentos não ficam restritos aos indivíduos que os possuem, ao contrário, eles
são percebidos nas manifestações (artísticas, poéticas, na legislação do Estado, etc), que estes
promovem. Caso que ocorre com José Basílio da Gama ao entrar para a Arcadia de Roma, sob
o pseudonimo de "Termindo Sipillo", Cunha Barbosa declara que seus talentos ficaram
e seus membros perseguidos pelo Conde de Rezende. Na poesia seu trabalho mais conhecido até os dias atuais, é
o épico “O Uraguai”.
378
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Bento
de Figueiredo Tenreiro Aranha. op. cit.
379
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Monteiro de Noronha. op. cit., p. 259.
380
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Manuel
Ignácio da Silva Alvarenga. op. cit., p. 343.
381
Idem.
107
conhecidos em Roma.382 Ao retornar para Portugal, procurou auxílio do "protector das letras",
o Marquês de Pombal, nesse momento, segundo o cônego, quase foi degradado, pois ainda
havia uma repulsa contra os jesuítas. O seu obstáculo mais uma vez foi transposto graças às
Musas, "(...) e a sua perspicacia descobriu nelle, além dos talentos poeticos, outros não menos
preciosos, que soube aproveitar com gloria do seu ministro."383
Outra observação sobre o uso da expressão talento nas biografias de Cunha Barbosa,
é de que ele também se manifestaria fora do círculo poético. Esse é o caso de Antonio Pereira
de Sousa Caldas (1762-1814) que, apesar de ter a oportunidade de assumir cargos dentro do
Estado, como o de Juiz de Fora na província do Rio de Janeiro, não os aceitou e preferiu seguir
o "estado Ecclesiastico".
"(...) o Doutor Caldas teve a gloria de adquirir tambem na Italia muitos amigos
sabios, que respeitaram seus extraordinarios talentos, e a sua grande
probidade. Em Roma recebeu elle Ordens Sacras, e revestido no Sacerdocio,
já com todas as qualidade para desempenhar dignamente as delicadas
obrigações de tão sancto estado (...)" "(...) adquiriu por suas luzes e
virtudes."384
Parece acertado relacionar, pelo menos nas biografias elaboradas pelo cônego Barbosa,
que as manifestações de talento e de gênio, além de estarem diretamente ligadas às virtudes e
qualidades inatas e individuais, remete à atuação desses sujeitos no esforço coletivo de
engrandecimento da nação, sendo este o critério decisivo para sua entrada nesse panteon de
papel.
382
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: José
Basílio da Gama. op. cit., p. 117.
383
Chamo a atenção para a também utilização da palavra “glória”, por ser proveniente do vocabulário religioso.
Idem, p. 118.[Grifos Meus]
384
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas, virtudes, etc: Doutor
Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. op. cit., p. 130.
108
Considerações finais
Esse trabalho se propôs a dialogar com estudos sobre as relações entre biografia e
história, contribuindo para uma análise focada na escrita biográfica de Cunha Barbosa. Vale
retificar que outro ponto importante no trabalho foi identificar as categorias de grande homem,
de providencialismo histórico e gênio, que aparecem nesses relatos biográficos, além de
demonstrar o caráter pedagógico e a função moralizante dessas biografias, e a necessidade do
cônego em fazer com que a biografia seja uma forma privilegiada de acesso ao passado.
No primeiro capítulo, como pouco se conhece da vida do cônego Barbosa, já que hoje
ele é uma figura desconhecida, foi importante tentar perceber como que o processo
memorialístico em torno do cônego foi realizado dentro do Instituto, já que em periódicos fora
do Instituto poucas vezes seu nome foi citado.
A aproximação feita à figura de Januário da Cunha Barbosa deu-se através dos
discursos e elogios biográficos que, logo após sua morte, começaram a moldar a memória de
“brasileiro ilustre” em torno de seu nome, fortemente atrelada ao movimento de emancipação
política e ao surgimento do IHGB como lugar encarregado de elaborar o passado colonial no
contexto imperial. Em um primeiro momento, a imagem que se fixa é a do religioso patriota,
devotado à causa da monarquia nacional, com atuação diversificada no mundo político e
letrado.
Na passagem do século XIX para o XX, com a crise da ordem monárquica, o advento
e a implantação da República, a forma e a intensidade com que Cunha Barbosa foi rememorado
se modificaram e, paulatinamente, sua imagem foi sendo desvinculada da monarquia para ser
retomada à luz dos valores republicanos. Foi possível observar que as mudanças na construção
de sua memória, muitas vezes, acentuaram alguns aspectos da sua trajetória e silenciaram
outros, o que se relacionava não apenas à passagem e distância no tempo, mas sobretudo às
transformações profundas nos ideais políticos e sociais da nação.
No segundo capítulo, observamos que a relação entre Cunha Barbosa e a escrita de
biografias se estabeleceu em um momento anterior à formulação do projeto historiográfico do
IHGB, com a antologia poética Parnaso Brasileiro, primeira obra do gênero publicada no
Brasil. Nas décadas iniciais do Oitocentos, as antologias e florilégios poéticos funcionaram
como indicadores do “grau de civilização” das nações emancipadas. Não será por acaso que a
coletânea de Cunha Barbosa aparece no período político imediatamente posterior à
109
É importante ressaltar que esses esboços biográficos trazem consigo não somente
relatos factuais da vida de indivíduos célebres, mas expressam também os valores políticos e
ideais coletivos que se afirmavam naquele momento.
O fato de Cunha Barbosa ter sido membro secular da Igreja Católica é importante para
compreender que, inicialmente, o providencialismo tenha sido um campo desenvolvido pelo
cônego. Entretanto, os estudos realizados permitem afirmar que o providencialismo era
utilizado para “costurar” a vida desses personagens: é como se os desígnios de Deus
explicassem as escolhas dos personagens. Vale salientar que não se confunde com citações
bíblicas, mas é elemento explicativo dentro da narrativa empregada pelo cônego, e por outros
escritores que não necessariamente faziam parte do universo religioso. Já com relação a
categoria de “grandes homens”, podemos perceber que eles são destacados a partir da exaltação
de suas qualidades e virtudes em três facetas distintas: (i) as virtudes morais, (ii) as heroicas
exemplares e a (iii) trajetória de servidor do Estado.
Através da análise dessas narrativas e do perfil dos biografados, podemos perceber
que, mesmo sendo integrantes das elites letradas do período colonial, eles são eleitos por
representarem valores e qualidades exemplares no contexto imperial oitocentista. Em sua
maioria nascidos nas províncias do Sudeste, dedicados aos serviços do Estado e à carreira
eclesiástica, esses homens do passado transformavam-se em modelos para a nova sociedade no
presente, que se encontrava em vias de construção. A exaltação desses indivíduos como
“brasileiros ilustres” apoiava-se, enfim, nas noções de gênio, de grande homem e de
providencialismo histórico e suas trajetórias de vida singulares possuíam um sentido moral e
exemplar porque se relacionavam a um esforço coletivo, confundindo-se com a própria
construção da história nacional.
111
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virtudes, etc: João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. RIHGB, Tomo II, 1840, pp.118-127.
113
BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas,
virtudes, etc: Doutor Padre Antonio Pereira de Souza Caldas. RIHGB, Tomo II,1840, pp.128-
139.
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BARBOSA, Januário da Cunha. Biographia dos Brazileiros distinctos por lettras, armas,
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ANEXO - Perfil dos biografados de Januário da Cunha Barbosa na seção da Revista do IHGB.
Filiação Títulos
Ano/Local e Formação Participação Tomo/Ano
Ocupação
Biografado de Parentesco em academias e
nascimento sociedades
morte
1795/Lisboa
123
(não consta na
biografia).
1743/Campos dos
D. José Joaquim Universidade de Licenciado em Academia
Goitacazes (RJ).
da Cunha de Coimbra. Cânones na
Real de II
Azeredo Coutinho Universidade de
1821/Rio de Coimbra; Ciências de 1840
Janeiro. Arcediago da Sé
do Rio de Janeiro; Lisboa.
Inquisidor Geral
do Santo Ofício;
Bispo de
Pernambuco;
Bispo de Beja;
Escritor;
Governador
Interino;
124
Eleito deputado
das Cortes pelo
Rio de Janeiro.
na primeira
legislatura;
João Pereira Faria, senhor de Coimbra. e Ouvidor dos Ordem de Cristo. 1840
da Santa Igreja de
Lisboa; Procurador
da Coroa; Ministro
e Secretario de
Estado;
Conselheiro da
Providencia
Literária da
Universidade de
Coimbra;
Desembargador do
Paço; Censor da
reforma da
Legislação do
Reino; Juiz
Conservador
Geral; Deputado
da Mesa Prioral do
Crato; Ministro da
Junta do Exame do
Estado e
Melhoramento
127
Temporal das
Ordens Regulares;
Guarda mor da
torre do Tombo
Advogado;
Arcipreste da
Catedral do Pará;
Vigário Geral;
Autor do Roteiro
de navegação no
interior da
Província do Grão-
Pará.
Pará; Escrivão da
Mesa grande do
Pará;
Autor de poesias,
cantatas, sonetos,
etc.
serviço repartidos
por dois
engenhos”.
Manuel Ignácio da ...../São João Del Pai, Ignácio da Universidade de Literato; Academia
Silva Alvarenga Rei – Minas Silva (músico) Coimbra/ Bacharel Advogado; Literária do Rio de
III
Gerais em Direito. Professor régio de Janeiro; Arcádia
retórica e poética; (no Brasil). 1841
José Joaquim 1768/Salvador Pai, José Carneiro Congregação de S. Literato; Professor Marquês de Sócio Honorário
Carneiro de de Campos, Bento (Salvador); dos filhos do Caravelas; da Sociedade de
Campos negociante; Mãe, Graduado em Conde de Medicina; Sócio
Comendador da
D. Custodia Maria Teologia na Linhares; Honorário da
Ordem de Cristo;
do Sacramento. Universidade de Secretaria de Academia de
1836 III
Coimbra. Estado da Fazenda Comendador da industria agrícola
(Portugal); Ordem da Coroa manufatureira e 1841
Oficial da da Ordem de
Secretaria de Nossa Senhora da
Estado dos Conceição de
Negocios do Reino Villa Viçosa;
no RJ; Dignitário da
Imperial Ordem
Secretário da
do Cruzeiro.
Universidade de
Coimbra;
Conselheiro
Honorario de Capa
e Espada do
Conselho da
Fazenda; Membro
da comissão
encarregada de de
examinar o estado
do Tesouro
Público; Membro
do Conselho de
Estado para
confecção da
Constituição
Imperial; Senador
132
pela província da
Bahia; Ministério
do Império; um
dos Regentes do
Império.
Família de
Clemente Pereira 1731/Rio de “procurou a gloria Capitão dos
“ilustres
de Azeredo Janeiro das armas apoiada Dragões; Real
servidores do
Coutinho e Mello na gloria das Serviço; Coronel IV
Estado”;
lettras”. Agregado ao
“irmão do sabio 1842
regimento da
Bispo Conde
cavalaria de
Reitor e
1774/Lisboa Alcântara;
Reformador da Universidade de
Coimbra, Governador da
Universidade de
Faculdade de Leis Capitania do
Coimbra, e do
e Cânones. Maranhão
sabio Magistrado
João Pereira R.
d'Azeredo
Coutinho”.
133
Portuguezes."
Domingos Caldas “...morreu com “O pai de D. C. B., “[...]conhecendo “mormente quando Sócio da Arcádia
Barbosa mais de 60 anos...” depois de muitos que não se improvisava .... Lisbonense.
annos de adiantaria na tangendo uma
residencia em carreira militar, viola, e cantando
Angola, apesar de seus as glosas que fazia
IV
regressava para. o bons creditos aos assumptos
Rio de Janeiro, e litterarios, porque 1842
em sua companhia o acidente de sua
134
vinha uma preta côr lhe era então lyricos que selhe
gravida, que na embaraço mais davam”.
viagem deu a luz o forte, do que o
nosso Caldas” haver nascido fora
de Portugal, deu
baixa e passou-se
para a Europa”
Henrique Julio de 1790/ Hogue, Pai, Nicolau de Colégio de Padres Adido Militar da Sócio do VI
Wallenstein Wallenstein; Mãe, da Congregação de Rússia na Legação
Silésia prussiana IHGB; Membro da 1844
Izabel Kolker de Jesus da Espanha;
Academia de
Wallenstein
Oficial na História e de
Secretaria de outras Sociedades
Estrangeiros em Literarias na
1843/RJ Espanha.
Petesburgo;
Cônsul Geral da
Rússia no Brasil (a
partir de 1832).