Saboroso Cadáver

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CADÁVER EXQUISITO

Copyright © Agustina Bazterrica, 2017


c/o Schavelzon Graham Agencia Literaria
www.schavelzongraham.com
Publicado originalmente na Argentina em 2017
Todos os direitos reservados
Arte da Capa © Penguin Random House Grupo Editorial S.A.
Acervo de imagens © Dream e 123RF.
Tradução para a Língua Portuguesa
© Ayelén Medail, 2022
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Gerente de Marketing Digital
Mike Ribera
Gerentes Editoriais
Bruno Dorigatti
Marcia Heloisa
Editor
Paulo Raviere
Capa e Projeto Gráfico
Retina 78
Coordenador de Arte
Arthur Moraes
Coordenador de Diagramação
Sergio Chaves
Finalização
Sandro Tagliamento
Preparação
Silvia Massimini Félix
Revisão
Fabiano Calixto
Lielson Zeni
Impressão e Acabamento
Coan Gráfica

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Jéssica de Oliveira Molinari – CRB-8/9852
Bazterrica, Agustina
Saboroso cadáver / Agustina Bazterrica ; tradução de Ayelén Medail. — Rio de janeiro
: DarkSide Books, 2022.
192 p.
ISBN: 978-65-5598-188-9
Título original: Cadáver Exquisito
1. Ficção argentina 2. Distopia 3. Antropofagia – Ficção I. Título II. Medail, Ayelén
22-1984 | CDD Ar863
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção argentina

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua General Roca, 935/504 – Tijuca
20521-071 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com
Sumário

Página de título
Créditos
Dedicatória
Epígrafe

Parte I
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23

Parte II
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
Agradecimentos
Sobre a autora
Cólofon
Para meu irmão,
Gonzalo Bazterrica
O que se vê nunca coincide
com o que se diz.
GILLES DELEUZE


Me acaban el cerebro a mordiscos,
bebiendo el jugo de mi corazón
y me cuentan cuentos al ir a dormir.
[Acabam com meu cérebro a mordidas,
bebendo o suco de meu coração
e me contam histórias antes de dormir.]
PATRICIO REY Y SUS REDONDITOS DE RICOTA
… e sua expressão
era tão humana que
me provocou horror …
LEOPOLDO LUGONES
Meia rês. Marreteiro. Linha de abate. Banho de aspersão. As
palavras aparecem em sua cabeça e o golpeiam. Destroçam-no.
Mas não são apenas palavras. São o sangue, o cheiro denso, a
automatização, o não pensar. Irrompem durante a noite, quando ele
está desprevenido. Acorda com o corpo coberto de suor, pois sabe
que o espera outro dia de abate de humanos.
Ninguém os chama assim, pensa, enquanto acende um cigarro.
Ele não os chama assim quando tem de explicar a um novo
funcionário como funciona o ciclo da carne. Poderiam prendê-lo por
falar isso, poderiam inclusive enviá-lo ao Matadouro Municipal e
industrializá-lo. Assassiná-lo seria a palavra exata, embora não
permitida. Enquanto tira a camiseta embebida de suor, tenta afastar
a ideia persistente de que são isto, humanos, criados para ser
animais comestíveis. Abre a geladeira, serve-se de água gelada,
toma-a devagar. Seu cérebro o adverte que há palavras que
encobrem o mundo.
Há palavras que são convenientes, higiênicas. Legais.
Abre a janela, o calor é sufocante. Permanece fumando
enquanto respira o ar quieto da noite. Quando se tratava de bois e
porcos, a coisa era fácil. Um ofício que aprendera no frigorífico El
Ciprés, o frigorífico de seu pai, sua herança. Sim, o grito de um
porco sendo derrubado podia petrificar, mas eles usavam protetores
de ouvido e, logo, aquilo se tornava apenas um ruído. Agora que ele
é o braço direito do chefe, tem de controlar e preparar os novos
funcionários. Ensinar a matar é pior do que matar. Põe a cabeça
para fora da janela. Respira um ar abafado, que arde.
Ele gostaria de se anestesiar e viver sem sentir nada. Agir de
forma automática, olhar, respirar e nada mais. Ver tudo, saber e não
dizer. Mas as lembranças permanecem, continuam com ele.
Muitos naturalizaram aquilo que a mídia insiste em chamar de
“Transição”. Mas ele não, porque sabe que transição é uma palavra
que não evidencia como o processo foi curto e cruel. Uma palavra
que resume e cataloga um fato incomensurável. Uma palavra vazia.
Mudança, transformação, virada: sinônimos que parecem ter o
mesmo significado, mas a escolha de cada um deles fala de uma
maneira singular de ver o mundo. Todos naturalizaram o
canibalismo, pensa. Canibalismo, outra palavra que poderia trazer
problemas enormes para ele.
Lembra-se de quando anunciaram a existência da GGB. A
histeria massiva, os suicídios, o medo. Depois da GGB, tornou-se
impossível continuar comendo animais, porque eles contraíram um
vírus mortal para os humanos. Esse era o discurso oficial. Palavras
com peso suficiente para nos moldar, para suprimir qualquer tipo de
questionamento, pensa.
Anda pela casa descalço. Depois da GGB, o mundo mudou
definitivamente. Testaram-se vacinas, antídotos, mas o vírus resistiu
e mutou. Ele se lembra de artigos falando sobre a vingança dos
veganos, outros sobre atos de violência contra os animais, médicos
na televisão explicando o que fazer para substituir a falta de
proteínas, jornalistas confirmando que ainda não existia a cura para
o vírus animal. Suspira e acende outro cigarro.
Está só. Sua mulher foi para a casa da mãe. Já não sente
saudades dela, mas na casa há um vazio que não o deixa dormir,
que o inquieta. Pega um livro na biblioteca. Está sem sono. Acende
a luz e se prepara para ler, mas logo a apaga. Toca a cicatriz em
sua mão. É antiga, não dói mais. Foi um porco. Ele era muito jovem,
um principiante, e acreditava que não era necessário respeitar a
carne, até que a carne o mordeu e quase arrancou sua mão. O
encarregado e os outros não paravam de rir. Você foi batizado,
diziam-lhe. O pai dele não disse nada. Depois dessa mordida,
pararam de vê-lo como o filho do dono e ele se enturmou. Contudo,
nem essa turma, nem o frigorífico El Ciprés existem mais, pensa.
Pega o celular. Há três ligações perdidas de sua sogra.
Nenhuma de sua mulher.
Decide tomar banho porque não suporta o calor. Abre o chuveiro
e enfia a cabeça na água fria. Quer apagar as imagens distantes, as
lembranças que persistem. Aquele monte de gatos e cachorros
queimados vivos. Um arranhão significava a morte. O cheiro de
carne queimada durou semanas. Lembra-se dos grupos de
escafandros amarelos que percorriam os bairros toda noite para
matar e queimar qualquer animal que cruzasse pelo caminho.
A água fria cai em suas costas. Ele se senta no chão do box.
Nega com a cabeça lentamente, mas não consegue parar de
lembrar. Houve grupos que começaram a matar e a comer pessoas
de forma clandestina. A imprensa registrou o caso de dois bolivianos
desempregados que foram atacados, esquartejados e assados por
um grupo de vizinhos. Quando ele leu essa notícia, sentiu calafrios.
Foi o primeiro escândalo público, também o que instalou na
sociedade a ideia de que, apesar de tudo, carne é carne, não
importa de onde venha.
Ergue a cabeça para que a água molhe seu rosto. Queria que as
gotas lhe dessem um branco no cérebro. Mas sabe que as
lembranças estão ali, sempre. Em alguns países, os imigrantes
começaram a desaparecer em massa. Imigrantes, marginais,
pobres. Foram perseguidos e, talvez, sacrificados. A legalização foi
levada adiante quando os governos foram pressionados por uma
indústria bilionária que estava parada. Os frigoríficos e as
regulamentações foram adaptados. Pouco tempo depois,
começaram a ser criados como gado de corte para abastecer a
demanda massiva de carne.
Sai do chuveiro e se seca de modo superficial. Olha-se no
espelho, está com olheiras. Ele é partidário de uma teoria da qual se
tentou falar, mas aqueles que falaram em público foram silenciados.
O zoologista de maior prestígio, que dizia em seus artigos que o
vírus era uma invenção, sofreu um acidente bastante oportuno. Ele
acredita que é tudo uma encenação para reduzir a superpopulação.
Desde que se lembra, fala-se em escassez de recursos. Recorda-se
dos distúrbios em países como a China, onde as pessoas se
matavam por conta da superlotação, mas nenhum meio de
comunicação abordava a notícia desse ponto de vista. Quem lhe
falava que o mundo iria explodir era seu pai: “O planeta vai pelos
ares a qualquer momento. Você vai ver, filho, arrebenta ou todo
mundo vai morrer feito praga. Olhe como na China já começaram a
se matar por conta da quantidade de gente, já não cabem. E aqui,
aqui ainda há lugar, mas vamos ficar sem água, sem alimento, sem
ar. Tudo indo para o inferno”. Ele olhava para seu pai com certa
pena porque pensava que ele dizia coisas de velho, mas agora sabe
que o pai estava certo.
O expurgo trouxera outros benefícios atrelados: redução da
população, da pobreza, e oferta de carne. Os preços eram altos,
mas o mercado crescia em um ritmo acelerado. Houve protestos
massivos, greves de fome, reivindicações de organizações de
direitos humanos e, ao mesmo tempo, surgiram artigos, pesquisas e
notícias que afetaram a opinião pública. Universidades prestigiosas
afirmaram que a proteína animal era necessária para viver, os
médicos confirmaram que as proteínas vegetais não possuíam
todos os aminoácidos essenciais, os especialistas asseguraram que
as emissões de gases tinham diminuído, mas a desnutrição havia
aumentado, as revistas falaram sobre o lado obscuro dos vegetais.
Os focos de protestos foram se debilitando e continuavam surgindo
casos de pessoas que a imprensa dizia que tinham morrido pelo
vírus animal.
O calor continua sufocando-o. Anda nu até a varanda de sua
casa. O ar não circula. Deita-se na rede e tenta dormir. Lembra-se
com frequência da mesma publicidade. Uma bela mulher, vestindo
roupas conservadoras, serve o jantar para seus três filhos e o
marido. Olha para a câmera e diz: “Para minha família, eu dou
alimento especial, a carne de sempre, só que mais gostosa”. Todos
sorriem e comem. O governo, seu governo, decidiu ressignificar
esse produto. A carne humana era agora “carne especial”. Deixou
de ser apenas “carne” para ser “lombo especial”, “costela especial”,
“rim especial”.
Ele não chama isso de carne especial. Ele usa palavras técnicas
para se referir a isso que é um humano, mas nunca chegará a ser
uma pessoa, isso que é sempre um produto. Faz alusão ao número
de cabeças para industrializar, ao lote que espera na área de
descarga, à linha de abate que deve respeitar um ritmo constante e
ordenado, aos excrementos que devem ser vendidos para fazer
estrume, à área de triparia. Ninguém pode chamá-los de humanos
porque significaria dar a eles entidade, chamam-nos de produto, ou
carne, ou alimento. Exceto ele, que gostaria de não ter de chamá-
los por nome algum.
O caminho para o curtume sempre lhe parece longo. É uma estrada
de terra, reta, com quilômetros e quilômetros de campos vazios.
Antes havia vacas, ovelhas, cavalos. Agora não há nada, não à
primeira vista.
O celular toca. Para o carro à beira da estrada e atende à sua
sogra. Ele diz que não consegue falar, pois está dirigindo. Ela fala
em voz baixa, sussurrando. Comenta que Cecilia está melhor,
porém precisa de mais tempo, que ainda não consegue voltar. Ele
não responde. A sogra desliga.
Ele é oprimido pelo curtume, pelo cheiro das águas residuais
com cabelo, terra, óleo, sangue, resíduos, gordura e produtos
químicos. E também pelo sr. Urami.
A paisagem desolada obriga-o a lembrar e a se perguntar, mais
uma vez, por que continua nesse trabalho. Trabalhou apenas um
ano no frigorífico El Ciprés, depois de concluir o ensino médio. Logo
decidiu estudar veterinária, com a aprovação e alegria de seu pai.
Porém, a epidemia do vírus animal surgiu pouco tempo depois.
Voltou para casa porque o pai tinha enlouquecido. Os médicos
diagnosticaram demência senil, mas ele sabe que o pai não
suportou a Transição. Muitas pessoas se deixaram morrer por uma
espécie de depressão aguda, outras se afastaram da realidade,
outras simplesmente se mataram.
Avista o cartaz “Curtume Hifu. 3 KM”. O sr. Urami, o dono, é um
japonês que odeia o mundo em geral e adora a pele em particular.
Enquanto dirige pela estrada solitária, nega devagar com a
cabeça porque não quer se lembrar, mas se lembra. O pai falando
dos livros que o vigiam à noite, o pai acusando os vizinhos de serem
assassinos de aluguel, o pai dançando com sua mulher morta, o pai
perdido no campo, de cuecas, cantando o hino nacional para uma
árvore, o pai internado em um asilo, a venda do frigorífico para
saldar as dívidas e não perder a casa, o olhar ausente do pai, ainda
hoje, cada vez que o visita.
Entra no curtume e sente um golpe no peito. É o cheiro dos
produtos químicos que impossibilitam o processo de decomposição
da pele. É um cheiro que asfixia. Todos trabalham em total silêncio.
À primeira vista, parece quase transcendental, um silêncio zen, mas
é porque o sr. Urami os observa lá de cima, do escritório. Não
apenas vigia e controla os funcionários, como também tem câmeras
por todos os lados.
Ele sobe até o escritório. Nunca precisa esperar. Metódicas,
duas secretárias japonesas o recebem e, sem perguntar se aceita,
servem-lhe chá vermelho em uma xícara transparente. O sr. Urami
não olha para as pessoas. Ele as mede. Sempre sorri e ele sente
que, quando o sr. Urami o observa, na verdade está calculando
quantos metros de pele poderia extrair dele se o sacrificasse, se o
despelasse e o descarnasse ali mesmo.
O escritório é sóbrio, elegante, mas na parede há uma
reprodução barata de O Juízo Final de Michelangelo. Ele já a viu
muitas vezes, porém só naquele dia repara que há uma
personagem segurando uma pele esfolada. O sr. Urami observa-o,
olha seu rosto desconcertado e, adivinhando seus pensamentos, diz
que é um mártir, São Bartolomeu, que morreu esfolado, e achava
que fosse um detalhe curioso. Ele assente sem dizer uma palavra,
porque considera um detalhe desnecessário.
O sr. Urami fala, declama como se estivesse revelando uma
série de verdades incomensuráveis para uma plateia numerosa. Os
lábios dele brilham com sua saliva, tem lábios de peixe ou de sapo.
Há um pouco de umidade e ziguezague. Há um pouco de enguia no
sr. Urami. Ele apenas fica a observá-lo em silêncio porque, em
essência, é o mesmo discurso que repete a cada visita. Pensa que o
sr. Urami precisa reafirmar com palavras a realidade, como se essas
palavras criassem e sustentassem o mundo em que ele vive.
Imagina-o em silêncio, enquanto aos poucos as paredes do
escritório começam a desaparecer, o chão se dissolve e as
secretárias japonesas afundam no ar, evaporam. Ele vê tudo isso
porque assim deseja, mas é algo que nunca vai acontecer, porque o
sr. Urami fala de números, dos novos produtos químicos e tintas que
está testando. Explica-lhe, como se ele não soubesse, a dificuldade
com esse produto, que sente falta da pele das vacas. Embora,
esclarece, a pele humana seja a mais macia da natureza, porque
sua textura tem um grão menor. Pega o telefone e diz algo em
japonês. Uma das secretárias entra com uma pasta enorme. O sr.
Urami abre a pasta e lhe mostra distintos tipos de pele. Toca as
peles como se fossem objetos cerimoniais. Explica como evitar os
defeitos causados pelas contusões feitas durante o trânsito do lote,
diz que essa pele é mais delicada. Ele olha a pasta. É a primeira vez
que a mostra para ele. O sr. Urami oferece-lhe a pasta, mas ele não
a toca. O sr. Urami indica com o dedo uma pele muito branca com
marcas e fala que é uma das peles mais valiosas, embora uma
grande porcentagem teve de ser descartada devido aos ferimentos
profundos. Repete-lhe que só consegue disfarçar os ferimentos
superficiais. Diz que montou essa pasta especialmente para ele,
assim poderia mostrá-la para o pessoal do frigorífico e do criadouro,
então eles entenderiam quais peles precisam de maior cuidado. O
sr. Urami se levanta e tira uma lâmina de uma gaveta. Entrega-lhe e
diz que já mandou um novo desenho, mas que precisa aperfeiçoá-lo
por conta da importância do corte no momento da esfoladura, que
um corte malfeito implica o desperdiço de metros de couro, que o
corte tem de ser simétrico. O sr. Urami volta a pegar o telefone. Uma
secretária entra com uma chaleira transparente. Faz um gesto e a
secretária serve mais chá. Ele não quer tomar, mas toma. As
palavras do sr. Urami são medidas, harmoniosas. Constroem um
mundo pequeno, controlado, cheio de fissuras. Um mundo que pode
se romper por uma palavra inadequada. Fala sobre a importância
essencial da esfoladora, se estiver mal calibrada pode desgarrar a
pele, diz que a pele fresca que enviam do frigorífico precisa de mais
refrigeração para que o descarnamento posterior seja menos
complicado; fala da necessidade de que os lotes estejam bem
hidratados para que a pele não fique seca, para evitar que rache; diz
que é preciso falar com o pessoal do criadouro sobre isso, porque
não respeitam a dieta hídrica, que o atordoamento tem de ser
preciso porque, caso os sacrifiquem com descuido, isso depois se
percebe na pele, que fica dura e é mais difícil de trabalhar porque,
salienta o sr. Urami, “tudo se reflete na pele, o maior órgão do
corpo”. Essa frase é dita com pronúncia exagerada sem deixar de
sorrir. Com essa frase ele conclui todos seus discursos e depois faz
um silêncio calculado.
Ele sabe que não precisa falar, apenas assentir, mas há palavras
que golpeiam seu cérebro, que se acumulam, que o deixam
vulnerável. Gostaria de falar atrocidade, inclemência, excesso,
sadismo. Gostaria que essas palavras rasgassem o sorriso do sr.
Urami, perfurassem o silêncio regulado, comprimissem o ar até
asfixiá-los.
Mas fica mudo e sorri.
O sr. Urami nunca o acompanha até a saída, mas dessa vez
desce com ele. Antes de ele ir embora, os dois ficam parados ao
lado de um caleiro. O sr. Urami controla um funcionário que
processa peles ainda com pelos. Devem ser de um criadouro,
pensa, porque as do frigorífico são entregues completamente
depiladas. O sr. Urami faz um gesto. O encarregado aparece e
começa a gritar com um operário que está descarnando uma pele
fresca. Parece que estava fazendo tudo errado. Para justificar a
aparente ineficiência do funcionário, o encarregado tenta explicar ao
sr. Urami que o rolo da máquina de descarne quebrou e que eles
não têm o costume de descarnar manualmente. O sr. Urami o
interrompe com outro gesto. O encarregado se curva e vai embora.
Depois, andam até o fulão de curtido. O sr. Urami para e diz que
quer peles negras. Só isso, sem explicações. Ele mente e responde
que chegará um lote em breve. O sr. Urami assente e se despede.
Toda vez que ele sai do prédio, sente a necessidade de fumar
um cigarro. Sempre algum funcionário se aproxima para contar-lhe
atrocidades sobre o sr. Urami. Os boatos dizem que, antes da
Transição, ele assassinava e esfolava pessoas, que as paredes de
sua casa estão cobertas de pele humana, que mantém pessoas no
porão e sente enorme prazer em esfolá-las vivas. Ele não
compreende por que os funcionários contam essas coisas a ele.
Tudo é possível, pensa, mas a única coisa de que ele tem certeza é
que o sr. Urami dirige seu negócio como um reinado de terror, e que
funciona.
Deixa o curtume e sente alívio. Pergunta-se, mais uma vez, por
que se expõe a isso. E a resposta é sempre a mesma. Sabe por que
faz esse trabalho. Porque ele é o melhor e o pagam como tal,
porque não sabe fazer outra coisa e porque a saúde de seu pai
assim requer.
Às vezes a gente tem que carregar o peso do mundo.
Trabalham com vários criadouros, mas ele inclui no itinerário da
carne aqueles que fornecem a maior quantidade de cabeças. Antes
trabalhavam com o criadouro Guerrero Iraola, mas o produto perdeu
qualidade. Algumas cabeças dos lotes que mandavam eram
violentas e, quanto mais violentas, mais difícil atordoá-las. Visitou o
criadouro Tod Voldelig quando teve de fechar a primeira operação,
mas é a primeira vez que o inclui no itinerário da carne.
Antes de entrar, liga para o asilo onde o pai está. Quem o atende
é Nélida, uma mulher que se ocupa de coisas que realmente não lhe
provocam uma paixão exagerada. A voz dela é elétrica, mas, por
trás do som, ele percebe um cansaço que a corrói, que a consome.
Ela diz que o pai está bem, chama-o de dom Armando. Ele diz que
vai visitá-lo em breve, que já fez a transferência desse mês. Nélida
diz, querido, não se preocupe, querido, dom Armando está estável,
tem suas coisinhas, mas está estável. Ele pergunta se com
coisinhas ela se refere a episódios. Ela fala que ele não se
preocupe, pois não é nada que esteja fora do controle.
Ele desliga e permanece por alguns minutos no carro. Procura o
telefone da irmã. Ia ligar para ela, mas se arrepende.
Entra no criadouro. O Gringo, o dono, pede desculpas e diz que
veio um alemão querendo comprar um lote importante, que por isso
precisa mostrar o criadouro e explicar tudo a ele, porque o alemão
não entende nada, é novo no negócio, que veio do nada e não teve
tempo de avisá-lo. Ele responde que não se importa, que vai
acompanhá-los.
O Gringo é desajeitado. Anda como se o ar fosse demasiado
denso para ele. Não tem noção da magnitude de seu corpo, esbarra
nas pessoas, nas coisas. Transpira. Muito.
Quando ele conheceu o Gringo, pensou que fosse um erro
trabalhar com esse criadouro, mas o Gringo é eficiente e é um dos
poucos que resolveu vários problemas com os lotes. Tem o tipo de
inteligência que não precisa de refinamentos.
O Gringo o apresenta ao alemão. Egmont Schrei.
Cumprimentam-se com um aperto de mãos. Egmont não o olha no
olho. Veste uma calça jeans que parece recém-comprada e uma
camisa social limpa demais. Tênis branco. Parece deslocado com a
camisa social bem passada e o cabelo loiro grudado na cabeça.
Mas Egmont sabe. Não diz uma palavra, porque sabe, e essa roupa
que só um estrangeiro que nunca pisou em um campo usaria, serve-
lhe para impor a distância necessária para planejar o negócio.
O Gringo pega o dispositivo de tradução automática. Ele
conhece esses dispositivos, mas nunca precisou usar um. Nunca
pôde viajar. Percebe que é um modelo antigo, com apenas três ou
quatro idiomas. O Gringo fala para o aparelho, que traduz tudo para
o alemão automaticamente. Diz que vai mostrar o criadouro, que
começarão pelo rufião. Egmont assente com a cabeça. Não mostra
as mãos. Estão atrás de suas costas.
Andam pelos corredores com jaulas cobertas. O Gringo explica a
Egmont que um criadouro é um grande depósito de carne viva e
levanta os braços como se estivesse revelando a chave do negócio.
O alemão parece não entender. O Gringo deixa de lado as
definições grandiloquentes e começa a explicar as coisas básicas,
como: manter as cabeças separadas, cada uma em sua jaula, para
evitar episódios de violência, que se machuquem ou se comam. O
aparelho traduz com uma voz mecânica de mulher. Egmont assente.
Ele não consegue deixar de pensar na ironia. Carne comendo
carne.
Abre a jaula do rufião. No chão há um capim que parece fresco e
duas bacias de metal fixadas nas barras. Uma tem água. A outra,
vazia, é para o alimento. O gringo fala através do aparelho e explica
que foi ele quem criou desde filhote esse rufião, que é da Primeira
Geração Pura. O alemão olha para ele com curiosidade. Pega seu
aparelho de tradução. De um modelo mais novo. E pergunta o que
seria a geração pura. O Gringo explica que as PGP são cabeças
nascidas e criadas em cativeiro, que não têm modificações
genéticas nem recebem injeções para acelerar o crescimento. O
alemão parece compreender e não faz comentários. O Gringo
continua com o que estava dizendo, que parece interessá-lo mais, e
explica que os garanhões são comprados pela qualidade genética.
Que ele o chama de rufião, porém tecnicamente não seria, pois
aquele ali emprenha as fêmeas, as cobre. Ele diz que o chama
assim porque serve para detectar as fêmeas que estão prontas para
ser fertilizadas. Os outros garanhões estão destinados a encher de
sêmen as latas de coleta para a inseminação artificial. O aparelho
traduz.
Egmont quer entrar na jaula, mas se detém antes. O rufião se
mexe, olha para ele, e o alemão dá um passo para trás. O Gringo
não percebe o desconforto do alemão. Continua falando. Diz que ele
compra os garanhões segundo a conversão alimentar e a qualidade
da musculatura, mas que ele não comprou esse rufião, criou,
esclarece pela segunda vez. Explica que a inseminação artificial é
fundamental para evitar doenças, permitindo a produção de lotes
mais homogêneos para os frigoríficos, dentre muitos outros
benefícios. O gringo pisca para o alemão e conclui: o investimento
só vale se forem manipuladas mais de cem cabeças, porque a
manutenção e a equipe especializada são caras. O alemão fala
através do aparelho e pergunta para que usam o rufião então, se
não são porcos nem cavalos, são humanos; também pergunta por
que o rufião cobre as fêmeas, não deveria, pois é pouco higiênico. A
voz da tradução é de homem. Uma voz que parece mais natural. O
Gringo ri, um pouco incomodado. Ninguém os chama de humanos,
não aqui, não onde é proibido. “Não, claro, não são porcos, embora
sejam geneticamente bem parecidos, mas eles não têm o vírus.”
Faz-se silêncio. A voz da máquina falha, e o Gringo a examina. Dá
umas pancadinhas nela e a máquina volta a funcionar. “Esse macho
tem a habilidade de detectar os cios silenciosos das fêmeas,
deixando-as ótimas. Percebemos que, se o rufião as cobre, as
fêmeas ficam com mais disposição para a inseminação. Porém está
vasectomizado para não emprenhá-las, porque tem que fazer um
controle genético. Além do mais, é conferido constantemente. Está
limpo e é vacinado.”
Ele vê como o lugar vai se enchendo das palavras ditas pelo
Gringo. São palavras leves, sem peso. São palavras que se
misturam com as outras, as incompreensíveis, com as mecânicas
ditas por uma voz artificial, uma voz que não sabe como todas
essas palavras podem envolvê-lo, até sufocá-lo.
O alemão olha para o rufião em silêncio. Parece que em seu
olhar há inveja ou admiração. Ri e diz: “Que vida boa a dele”. A
máquina traduz. O Gringo olha para o alemão e ri, dissimulando
uma mescla de nojo e irritação. Ele vê como vão surgindo perguntas
que se acumulam no cérebro do Gringo: como pode se comparar a
uma cabeça? Como pode desejar isto, ser um animal? Depois de
um longo e incômodo silêncio, o Gringo responde: “É por pouco
tempo; quando não servir mais, o rufião também vai para o
frigorífico”.
O Gringo continua falando como se não pudesse fazer outra
coisa, está abalado. Ele olha para os pingos de suor descendo da
testa do Gringo e parando apenas nas cavidades do rosto. Egmont
pergunta se falam, pois tanto silêncio chama sua atenção. O Gringo
responde que, desde pequenos, ficam isolados em incubadoras e
depois em jaulas. Que extraem as cordas vocais deles para
controlá-los melhor. Ninguém quer que falem, pois carne não fala.
Diz que se comunicar eles se comunicam, mas através de uma
linguagem elementar. Dá para saber se estão com frio, calor, essas
coisas básicas.
O rufião coça um testículo. Em sua testa há marcas de ferro
quente, um T e um V entrelaçados. Está desnudo, como todas as
cabeças de todos os criadouros. Tem um olhar perturbado, como se
por trás da impossibilidade de pronunciar palavras houvesse uma
loucura oculta.
“Ano que vem vai competir na Sociedade Rural”, diz o Gringo em
tom triunfante, e ri com um barulho parecido com o de um rato
ciscando a parede. Egmont olha sem entender e o Gringo explica
que na Sociedade Rural são premiadas as melhores cabeças das
raças mais puras.
Andam entre as jaulas. Ele calcula que nesse galpão há mais de
duzentas cabeças. Não é o único galpão. O Gringo se aproxima e
põe a mão no ombro dele. A mão é pesada. Ele sente o calor, o suor
dessa mão que começa a umedecer sua camisa. O Gringo diz em
voz baixa:
— Olhe, Tejo, vou mandar o novo lote para vocês na semana
que vem. Carne premium, de exportação. Mando também alguns
PGP.
Ele sente a respiração irregular perto da orelha.
— No mês passado, você enviou um lote com dois doentes. A
Vigilância Sanitária não autorizou a embalagem e deixamos para os
Carniceiros. Krieg mandou dizer que, se acontecer novamente, vai
trocar de criadouro.
O Gringo assente.
— Vou terminar aqui com o alemão e depois conversamos
melhor.
Leva os dois para o escritório. Aqui não há secretárias japonesas
nem chá vermelho, pensa. Há pouco espaço e paredes de placas de
MDF. Entrega-lhe um folheto e pede que ele o leia. Explica a
Egmont que está exportando sangue de um lote especial de fêmeas
prenhes. Esclarece que esse sangue tem propriedades especiais.
Ele lê, em letras grandes e vermelhas, que o procedimento reduz a
quantidade de horas improdutivas da mercadoria.
Pensa: mercadoria, outra palavra que obscurece o mundo.
O Gringo continua falando. Esclarece que são infinitos os usos
do sangue das grávidas. Que antes o negócio não foi explorado
porque era ilegal. Que pagam fortunas porque, quando extraem o
sangue, invariavelmente elas acabam abortando, pois ficam
anêmicas. A máquina traduz. As palavras caem na mesa com um
peso desconcertante. O Gringo diz a Egmont que vale a pena
investir nesse negócio.
Ele não responde, o alemão tampouco. O Gringo seca a testa
com a manga da camisa. Saem do escritório.
Passam pelo setor onde ficam as leiteiras. Há máquinas que lhes
sugam os úberes, como são chamadas pelo Gringo. “O leite desses
úberes é de primeira qualidade”, fala para o aparelho e lhes oferece
um copo, enquanto esclarece: “Recém-ordenhado”. Egmont
experimenta. Ele nega, acenando com a cabeça. O Gringo conta
que são manhosas e têm uma vida útil curta, estressam-se rápido e,
quando já não servem, a carne é enviada para o frigorífico
fornecedor de comidas rápidas, assim se lucra mais. O alemão
assente e diz “sehr schmackhaft”, a máquina traduz “muito
saborosa”.
Enquanto seguem rumo à saída, passam pelo galpão das
prenhes. Algumas estão em jaulas, outras estão deitadas em
mesas, sem braços nem pernas.
Ele desvia o olhar. Sabe que, em muitos criadouros, inabilitam
aquelas que matam os fetos batendo a barriga nas barras, deixando
de comer, fazendo qualquer coisa para que o bebê não nasça e
morra em um frigorífico. Como se soubessem, pensa.
O Gringo acelera o passo e explica algo a Egmont, que não
consegue ver as prenhes nas mesas.
Na sala contígua, estão as crias em incubadoras. O alemão fica
olhando para as máquinas. Tira fotos.
O Gringo se aproxima. Ele sente o cheiro pegajoso desse corpo
que transpira quase doente.
— Fiquei preocupado com o que você disse sobre a Vigilância
Sanitária. Amanhã vou ligar de novo para os especialistas para que
façam a revisão e, se tiver mais alguma cabeça para descarte, me
avise que eu faço um desconto.
Os especialistas, pensa, estudaram medicina, mas quando eles
trabalham conferindo lotes em criadouros ninguém os chama de
médicos.
— Outra coisa, Gringo. Não poupe mais no transporte, da outra
vez duas cabeças chegaram quase mortas.
O Gringo assente.
— Ninguém pretende que viajem sentados na primeira classe,
mas não os amontoe como sacos de farinha porque acabam
desmaiando e batendo a cabeça, e se eles morrerem, quem paga?
Além disso, eles se machucam e depois os curtumes pagam menos
pelo couro. O chefe também não concorda com isso.
Entrega a pasta do sr. Urami.
— Tome cuidado especialmente com as peles mais claras. Vou
deixar esse mostruário por um tempo com você, para que guarde
bem os valores e dê um trato especial aos mais caros.
O Gringo fica vermelho.
— Pode deixar, não vai acontecer de novo. Um dos caminhões
quebrou e, para não atrasar a entrega, eu os amontoei um pouco
mais que de costume.
Andam por outro galpão. O Gringo abre uma das jaulas. Tira
uma fêmea com uma corda no pescoço.
Abre-lhe a boca. Ela parece estar com frio. Treme.
— Olhe esses dentes. Todos saudáveis.
Levanta os braços e abre as pernas da fêmea. Egmont se
aproxima para examiná-la. O Gringo fala para a máquina:
— São necessários investimentos em vacinas e remédios para
mantê-los saudáveis. Muito antibiótico. Todas as minhas cabeças
estão com os documentos atualizados e em ordem.
O alemão olha para ela concentrado, girando ao seu redor.
Agacha-se, olha os pés e abre-lhe os dedos. Fala pelo aparelho que
traduz:
— Esta é de uma geração purificada?
O Gringo reprime o sorriso.
— Não, esta não é da Geração Pura. Esta foi modificada
geneticamente para que crescesse muito mais rápido, o que
complementamos com alimento especial e injeções.
— Mas o sabor muda?
— São muito saborosas. Óbvio que os PGP são carne de alta
gama, mas a qualidade destas é ótima.
O Gringo tira um aparelho que parece um tubo. Ele conhece bem
esse tipo de aparelhos. São usados no frigorífico. Põe a ponta do
aparelho no braço da fêmea. Aperta um botão e a fêmea abre a
boca em um gesto de dor. No braço dela ficou uma ferida
milimétrica, mas que sangra. O Gringo acena para um funcionário,
que se aproxima para fazer um curativo.
Abre o tubo e dentro dele há um pedaço de carne do braço da
fêmea. É comprido, bem pequeno, do tamanho da metade de um
dedo. Entrega-o para o alemão e pede que ele experimente. O
alemão duvida. Porém, depois de alguns segundos o experimenta e
sorri.
— Muito saborosa, não é? Aliás, é um bloco sólido de proteínas
— diz o Gringo através da máquina que traduz.
O alemão assente.
O Gringo se aproxima e diz em voz baixa:
— É carne de primeira qualidade, Tejo.
— Se você enviar algum com a carne dura, posso disfarçar para
o chefe, pois ele sabe que os marreteiros podem errar o golpe, mas
com a Vigilância Sanitária não dá para brincar.
— Sim, está certo.
— Com os porcos e bois aceitavam uma propina, mas hoje,
esqueça. Todos ficaram paranoicos com isso do vírus, entende?
Você recebe uma denúncia e fecham o frigorífico.
O Gringo assente. Puxa a corda e bota a fêmea na jaula. A
fêmea perde o equilíbrio e cai sobre o capim.
Há cheiro de churrasco. Vão até a área de descanso dos peões.
Estão fazendo uma costela no fogo de chão. O Gringo explica a
Egmont que começaram a preparar a costela às oito da manhã
“para que a carne se dissolva na boca”, e que, aliás, os rapazes iam
comer vitela. Esclarece: “É a carne mais macia que há, pouca,
porque não pesa o mesmo que um novilho. Estamos comemorando
porque um dos rapazes acaba de ser pai. Querem um sanduíche?”.
O alemão assente. Ele diz que não. Todos olham para ele
surpresos. Ninguém rejeita essa carne, comê-la é equivalente a um
mês de salário. O Gringo não disse nada porque sabe que suas
vendas dependem da quantidade de cabeças que ele decidir
comprar. Um dos peões corta um pedaço de carne da cria e prepara
dois sanduíches. Acrescenta um molho apimentado, de cor
vermelho-alaranjada.
Chegam a um galpão menor. O Gringo abre outra jaula. Acena
para que apareçam e diz para a máquina: “Comecei a criar obesos;
eu os superalimento para depois vendê-los a um frigorífico
especializado em gordura. Fazem tudo quanto é coisa, até
biscoitinhos gourmet”.
O alemão se afasta para comer o sanduíche. Come encurvado.
Não quer manchar a roupa. O molho cai bem perto do tênis. O
Gringo se aproxima e entrega-lhe um lenço, mas Egmont acena
indicando que não precisa, que o sanduíche está gostoso.
Permanece de pé, comendo.
— Gringo, preciso de pele negra.
— Justo nesse momento estou em tratativas para trazer um lote
da África. Você não é o primeiro a pedir.
— Depois te confirmo a quantidade de cabeças.
— Parece que um estilista famoso lançou uma coleção com
couro negro e que vai bombar no inverno.
Ele quer ir embora. Precisa deixar de ouvir a voz do Gringo.
Precisa deixar de ver como as palavras se acumulam no ar.
Passam por um galpão branco, novo, que ele não tinha visto
quando entrou. O Gringo aponta para o galpão e diz à máquina que
está investindo em outro negócio, criando alguns para o transplante
de órgãos.
Egmont se aproxima com interesse. O Gringo dá uma mordida
no sanduíche e, com a boca cheia de carne, explica: “Finalmente,
aprovaram a lei. Preciso de mais permissões e controles, porém o
rendimento é maior. Outro bom negócio para investir”.
Ele se despede. Não tem interesse em continuar ouvindo. O
alemão ia estendendo sua mão, porém a recolhe quando percebe
que está manchada com a gordura do sanduíche. Pede desculpas
com um gesto e sussurra “Entschuldigung”. Sorri. A máquina não
traduz.
Do canto de sua boca cai lentamente o molho alaranjado, que
começa a pingar sobre os tênis brancos.
Acorda cedo porque precisa ir aos açougues. Sua mulher ainda está
com a mãe.
Entra em um quarto vazio onde há apenas um berço no centro.
Toca a madeira branca do berço. Na cabeceira, o desenho de um
urso e um pato abraçados. Estão rodeados de esquilos e borboletas
e árvores e um sol sorridente. Não há nuvens nem humanos. Esse
tinha sido seu berço e foi o berço de seu filho. Já não se vendem
produtos com animais fofos, inocentes. Foram substituídos por
barquinhos, florezinhas, fadas, gnomos. Sabe que precisa tirá-lo daí,
destroçá-lo e queimá-lo antes de sua mulher voltar. Mas não
consegue.
Está tomando chimarrão quando escuta um caminhão buzinar na
entrada de sua casa. Espia pela janela e vê as letras vermelhas
“Tod Voldeling”.
Sua casa é relativamente isolada. Os vizinhos mais próximos
moram a dois quilômetros. Para chegar até a casa, é necessário
abrir a porteira, que ele pensou ter deixado trancada com cadeado,
e percorrer o caminho cercado de eucaliptos. Ficou surpreso por
não ter ouvido o motor do caminhão ou ter visto a nuvem de terra.
Antes, havia cachorros que corriam latindo atrás dos carros. A
ausência dos animais deixou um silêncio opressivo, mudo.
Quando escuta a buzina, solta o chimarrão, exaltado, e se
queima.
Alguém bate palmas e grita seu nome.
— Olá, sr. Tejo?
— Olá. Sim, sou eu.
— Trago um presente do Gringo. Assina aqui?
Ele assina sem prestar atenção no que está assinando. O
homem entrega um envelope a ele e depois vai até o caminhão.
Abre a porta traseira, entra e tira uma fêmea.
— O que é isso?
— Uma fêmea PGP.
— Leve isso embora, vá! Agora.
O homem fica parado, sem saber o que fazer. Olha para ele
desconcertado. Ninguém seria capaz de rejeitar um presente
daqueles. Com a venda dessa fêmea dá para acumular uma
pequena fortuna. O homem puxa a corda amarrada no pescoço da
fêmea, sem saber o que fazer. A fêmea se move, submissa.
— Não posso. Se eu voltar com ela, o Gringo me põe na rua.
Ajusta a corda e entrega a ele a outra ponta. Como ele não a
segura, o homem joga a corda no chão, dá alguns passos
apressados, sobe no caminhão e parte.
— Gringo, o que você me enviou?
— Um presente.
— Eu mato cabeças, não crio. Entendeu?
— Fique com ela por alguns dias, depois a gente faz um
churrasco.
— Estou sem tempo, sem vontade nem recursos para ficar com
ela alguns dias.
— Amanhã eu envio a rapaziada para sacrificá-la.
— Se é para sacrificá-la, eu mesmo faço.
— Resolvido, então. Enviei todos os documentos, caso você
queira vendê-la. Está saudável, com as vacinas atualizadas. Você
também pode cruzá-la. Está na idade reprodutiva perfeita. Porém o
mais importante é que ela é uma PGP.
Ele não responde. O Gringo diz que a fêmea é um luxo, repete
que tem genes limpos, como se ele não soubesse. Esclarece que
ela faz parte de um lote que há mais de um ano ele alimenta com
ração à base de amêndoas. “É para um cliente exigente, que pede
para eu cultivar carne personalizada para ele.” Explica que ele cria
algumas cabeças a mais, caso alguma morra antes do tempo.
Cumprimenta-o, mas antes esclarece que o presente é para que ele
perceba o quanto valoriza fazer negócios com o Frigorífico Krieg.
— Sim, obrigado.
Desliga furioso, porque, em sua mente, insulta o Gringo e seu
presente submisso. Senta-se e olha a hora. Já está tarde. Sai e
desamarra a fêmea da árvore em que a amarrara. A fêmea não
tenta nem tirar a corda do pescoço. Claro, ele pensa, ela não sabe
que pode tirá-la. Quando ele se aproxima, ela começa a tremer.
Olha para o chão. Urina-se. Ele a leva até o galpão e a amarra na
porta de um caminhão quebrado e enferrujado.
Entra na casa e pensa o que pode deixar para a fêmea comer. O
Gringo não enviou ração balanceada, só enviou um problema. Abre
a geladeira. Um limão. Três cervejas. Dois tomates. A metade de um
pepino. E algo em uma panela que sobrara de algum dia. Cheira e
acha que está bom. É arroz branco.
Leva uma bacia com água e outra com o arroz frio. Tranca a
porta do galpão com o cadeado e vai embora.
Ir aos açougues é a parte mais difícil do itinerário da carne, porque
ele precisa ir à cidade, porque tem de ver Spanel, porque o calor do
concreto não o deixa respirar, porque tem de respeitar o toque de
recolher, porque os prédios, as praças e as ruas o fazem lembrar de
que antes havia mais pessoas, muitas mais.
Antes da Transição, os açougues eram atendidos por
funcionários mal pagos que, muitas vezes, eram obrigados por seus
patrões a adulterar a carne para vendê-la podre. Como um
funcionário havia dito a ele, quando trabalhava no frigorífico do pai:
“O que vendemos está morto, está apodrecendo e parece que as
pessoas não querem aceitar isso”. Entre um chimarrão e outro, o
funcionário contou-lhe os segredos de como adulterar a carne, para
que parecesse fresca, para que não se sentisse o cheiro ruim: “Para
a carne embalada usamos monóxido de carbono; para a que fica na
vitrine, muita refrigeração, cândida, bicarbonato de sódio, vinagre e
temperos, muita pimenta”. As pessoas sempre lhe confessavam
coisas. Ele acha que é porque sabe escutar e não tem interesse em
falar de si mesmo. O funcionário contou-lhe que o chefe, para
compensar, comprava carne confiscada pela Vigilância Sanitária,
algumas peças com vermes que ele tinha de preparar para depois
colocar à venda. Explicou-lhe que a preparação implicava deixá-la
muito tempo na geladeira para que o frio detivesse o cheiro. Que ele
era obrigado a vender carne adoecida, com manchas amarelas que
ele precisava tirar. O funcionário queria sair do açougue e conseguir
um trabalho no frigorífico El Ciprés, que tinha uma boa reputação, e
disse que só queria um trabalho honesto para sustentar a família.
Explicou-lhe que não suportava o cheiro de cândida, que o cheiro do
frango podre o fazia vomitar, que nunca se sentira tão doente e
miserável. Que não conseguia olhar nos olhos das mulheres
humildes quando lhe pediam a carne mais barata para fazer bife à
milanesa para os filhos. Que quando o dono não estava, ele lhes
dava a carne mais fresca, mas quando estava ele tinha de dar a
carne podre e depois não conseguia dormir por conta da culpa. Que
esse trabalho o consumia pouco a pouco. Quando contou isso para
seu pai, ele decidiu deixar de mandar carne para esse açougue e
contratou o funcionário.
Seu pai era uma pessoa íntegra, por isso está demente.
Entra no carro. Suspira, mas logo pensa que vai ver Spanel e
sorri, embora vê-la sempre seja difícil.
Enquanto dirige, uma imagem irrompe em seu cérebro. É a
fêmea em seu galpão. O que estaria fazendo? Será que tem comida
suficiente? Estará com frio? Insulta mentalmente o Gringo.
Chega ao Açougue Spanel. Desce do carro. As calçadas da
cidade estão mais limpas desde que os cachorros se foram. E mais
vazias.
Na cidade tudo é extremo. Voraz.
Com a Transição, os açougues fecharam e só depois, com a
legitimação do canibalismo, alguns abriram de novo. Porém, são
exclusivos e atendidos pelos donos, que exigem qualidade extrema.
São poucos os que conseguem ter dois açougues e, nesse caso, o
atendimento fica a cargo de um parente ou alguém de muita
confiança.
A carne especial dos açougues não é acessível e por conta
disso, surgiu um mercado clandestino no qual se vende carne mais
barata porque não precisa dos controles nem de vacinas e porque é
carne fácil, carne com nome e sobrenome. É assim que a carne
ilegal é chamada, aquela que se consegue e se produz após o
toque de recolher. Mas também é carne que nunca será modificada
geneticamente nem controlada para que fique mais macia, mais
gostosa, mais viciante.
Spanel foi uma das primeiras a reabrir seu açougue. Ele sabe
que para Spanel o mundo é indiferente. Ela só sabe cortar carne e
faz isso com a frieza de um cirurgião. A energia viscosa, o ar frio em
que os odores ficam suspensos, os azulejos brancos pretendendo
ratificar higiene, o avental manchado com sangue, tudo isso é
indiferente para ela. Para Spanel, tocar, cortar, triturar, processar,
desossar, desmanchar aquilo que uma vez respirou é uma tarefa
automática, porém de precisão. É uma paixão contida, calculada.
Com a carne especial foi necessária uma adaptação a novos
cortes, novas medidas e pesos, novos gostos. Spanel foi a primeira
e a mais rápida, porque manipulava a carne com um desapego
assustador. No início, tinha poucos clientes: eram as empregadas
dos ricos. Spanel tinha visão para os negócios e instalou o primeiro
açougue no bairro de maior poder aquisitivo. As empregadas
pegavam a carne com nojo e confusão e sempre esclareciam que
eram mandadas pelo patrão ou pela senhora, como se isso fosse
necessário. Ela as olhava com um sorriso apertado, mas
compreensivo, e as empregadas sempre voltavam por mais, com
mais confiança a cada vez, até deixarem de dar explicações. Com o
passar do tempo, os clientes começaram a ser mais frequentes.
Todos se sentiam mais tranquilos ao ser atendidos por uma mulher.
O que ninguém sabe é o que essa mulher pensa. Mas ele sabe.
Ele conhece muito bem Spanel, porque ela também trabalhava no
frigorífico do pai.
Spanel lhe diz frases estranhas enquanto fuma. Ele gostaria de
que sua visita durasse o menor tempo possível, por conta do mal-
estar que a intensidade congelada de Spanel gera nele. E Spanel o
retém, sempre o retém, como fez quando ele começou a trabalhar
no frigorífico do pai e o levou até a sala de cortes, quando todos
tinham ido embora.
Ele acredita que ela não tem com quem falar ou contar o que
pensa. Também imagina que Spanel estaria disposta a se deitar
outra vez na mesa de cortes, e que seria tão eficiente e despojada
como foi quando ele ainda não era um homem. Ou não, agora seria
vulnerável e frágil, abrindo os olhos para que ele pudesse entrar, ali,
detrás do frio.
Ela tem um ajudante de quem ele nunca ouviu uma palavra. Ele
é quem faz o trabalho duro, quem carrega as peças até a câmara
fria e quem limpa a loja. Tem o olhar de cachorro, de lealdade
incondicional e ferocidade contida. Não sabe o nome dele, Spanel
nunca lhe dirige a palavra, e quando ele a visita, geralmente o
Cachorro aparece pouco.
Quando Spanel abriu o açougue, imitava os tradicionais cortes
bovinos para a mudança não ser tão abrupta. Se alguém entrava,
logo pensava que estava em um açougue de antigamente. Com o
tempo, foi mudando de forma gradual, mas constante. Primeiro
apareceram em um canto as mãos embaladas a vácuo, disfarçadas
entre os bifes à rolê, a fraldinha e os rins. A embalagem tinha
etiqueta de carne especial e, em outra parte, o esclarecimento de
extremidade superior, evitando, estrategicamente, colocar a palavra
mão. Com o tempo, acrescentou pés embalados apresentados em
colchão de alface com a etiqueta de extremidade inferior. Mais
tarde, uma bandeja com línguas, pênis, narizes, testículos com
cartaz “Delícias Spanel”.
Pouco depois, e com base nos cortes suínos, as pessoas
começaram a chamar as extremidades superiores de mãozinhas e
as inferiores, de patinhas. Com essa permissão e esses diminutivos
que anulavam o espanto, a indústria as catalogou dessa forma.
Hoje em dia, já vende brochettes de orelhas e dedos, sob o
nome de “brochettes mistas”. Vende licores com globos oculares.
Língua à vinagrete.
Spanel o leva para um quarto que fica atrás do açougue, onde
há uma mesa de madeira e duas cadeiras. Estão rodeados de
geladeiras onde ela guarda as meias peças, tiradas da câmara fria
para cortar e depois vender. O torso humano é chamado de “peça”.
A possibilidade de ser chamado de “meio torso” não é considerada.
Nas geladeiras também há braços e pernas.
Pede a ele que se sente e serve um copo com vinho pisado. Ele
bebe porque precisa do vinho para poder olhar em seus olhos, para
não lembrar de como ela o empurrou sobre a mesa que,
normalmente, estava cheia de vísceras de vaca, mas, naquele
momento, estava tão limpa quanto uma mesa cirúrgica, e desceu-
lhe as calças sem dizer uma palavra. Como ela suspendeu o
avental, ainda manchado de sangue, subiu à mesa em que ele
estava já deitado e nu, e sentou-se cuidadosamente, segurando-se
nos ganchos que transportavam as vacas.
Não é que considere Spanel perigosa, ou louca, ou que a
imagine nua (porque nunca a viu nua), ou que tenha conhecido
pouquíssimas açougueiras mulheres e todas elas sejam herméticas,
impossíveis de decifrar. Também precisa do vinho para conseguir
ouvi-la com calma, porque as palavras de Spanel perfuram seu
cérebro. São palavras geladas, afiadas, como quando disse “não” a
ele e pegou seus braços e os segurou com força quando ele tentou
tocá-la, tirar o avental dela, acariciar seu cabelo. Ou quando tentou
se aproximar no dia seguinte e ela só disse “adeus”, sem
explicações e sem um beijo de despedida. Depois soube que ela
havia herdado uma pequena fortuna com a qual comprou o
açougue.
Ela assina papéis que ele levou para certificar sua conformidade
com o Frigorífico Krieg e ratificar que não adultera a carne. São
formalidades, pois é sabido que ninguém adultera, não agora, não a
carne especial.
Assina e toma vinho. São dez da manhã.
Spanel lhe oferece um cigarro e o acende. Enquanto fumam, diz
a ele: “Não entendo por que achamos atraente o sorriso de uma
pessoa. Com o sorriso, a gente mostra o esqueleto”. Ele percebe
que nunca a vira sorrir, nem sequer quando se segurou nos ganchos
e olhou para cima e gritou de prazer. Foi apenas um grito, um grito
bestial e obscuro.
“Sei que, quando eu morrer, alguém vai vender minha carne no
mercado clandestino, algum desses parentes distantes e horríveis
que eu tenho. Por isso fumo e bebo, para que o sabor da minha
carne seja amargo e ninguém desfrute da minha morte.” Dá uma
tragada curta e diz: “Hoje sou a açougueira, amanhã posso ser o
gado”. Ele bebe de um gole só e diz que não entende, que ela tem
grana, que poderia garantir sua morte como fazem tantos outros.
Ela o olha com pena: “Ninguém tem nada assegurado. Que me
comam então, eles vão ter uma indigestão terrível”. Abre a boca
sem mostrar os dentes, e se ouve um som gutural, um som que
poderia ser uma gargalhada, mas não é. “Estou rodeada de morte, o
dia todo, a toda hora”, e aponta para as peças nas geladeiras: “Tudo
indica que meu destino será esse, ou você acha que não vamos
pagar por isso?”. “Então, por que você não desiste? Por que não
vende o açougue e vai trabalhar com outra coisa?” Spanel olha para
ele e dá uma tragada longa. Demora a responder, como se a
resposta fosse evidente e não precisasse de palavras. Solta a
fumaça lentamente e diz: “Vai que algum dia eu venda suas costelas
por um bom preço. Mas antes provaria uma”. Ele bebe mais vinho e
responde: “É bom mesmo, eu devo ser delicioso”. E sorri, mostrando
todo o seu esqueleto. Ela o observa com os olhos gélidos. Ele sabe
que ela está falando sério. Também sabe que essa conversa é
proibida, que aquelas palavras podem-lhes trazer grandes
problemas. Porém, ele precisa que alguém diga o que ninguém diz.
Toca o sino da porta do açougue. Um cliente. Spanel levanta-se
para atendê-lo.
O Cachorro aparece. Sem olhar para ele, o funcionário tira uma
meia peça da geladeira e a leva para um quarto refrigerado com a
porta de vidro. Ele pode ver tudo o que o Cachorro faz. Pendura a
meia peça para não contaminar a carne. Arranca as marcas de
aprovação do ONSA e começa a esquartejar a carne. Faz um corte
fino nas costelas para extrair um bom matambre. Ele não sabe os
cortes de cor como antes. Durante a adaptação, muitos dos nomes
de cortes bovinos foram utilizados e misturados com os suínos.
Redigiram-se novos catálogos e desenharam-se novos cartazes
com os cortes da carne especial. Esses cartazes nunca ficam
expostos para o público. O Cachorro pega a serra e corta o
pescoço.
Spanel entra e serve mais vinho. Senta-se e diz a ele que as
pessoas estão voltando a pedir cérebros, que um médico tinha
confirmado que comer cérebros produzia sei lá que doença, uma de
nome composto, mas que agora parece que outro grupo de médicos
e várias universidades confirmaram que não. Ela sabe que sim, que
aquela massa viscosa não tem como ser boa sem estar dentro da
cabeça. Mas vai comprá-los e cortá-los em fatias. É uma tarefa
difícil, diz, porque escorregam demais. Pergunta se pode
encomendar o pedido da semana com ele. Não espera a resposta.
Pega uma caneta e começa a escrever. Ele não esclarece que pode
enviar o pedido virtualmente. Gosta de ver como Spanel escreve em
silêncio, concentrada, séria.
Ele a observa com atenção enquanto ela completa o pedido com
letra apertada. Spanel tem uma beleza recolhida. Inquieta-o porque
existe algo feminino por debaixo dessa aura bestial que ela faz
questão de mostrar. Há alguma coisa admirável nesse desapego
artificial.
Há algo nela que ele gostaria de romper.
Em itinerários anteriores, depois da Transição, ele sempre ficava em
um hotel da cidade e, no dia seguinte, ia à reserva de caça. Dessa
forma, evitava algumas horas dirigindo. Mas, com a fêmea em seu
galpão, ele precisa voltar.
Antes de sair da cidade, compra ração balanceada especial para
cabeças domésticas.
Chega à sua casa à noite. Desce do carro e vai direito para o
galpão. Xinga o Gringo. Justo agora, justo na semana do itinerário
da carne, ele vem e me traz esse problema. Justo quando Cecilia
não está.
Abre o galpão. A fêmea está encolhida no chão, em posição
fetal. Dorme. Parece sentir frio, apesar do calor. Comeu o arroz e
tomou a água. Assim que a toca com o pé, ela se assusta. Protege
a cabeça e se encolhe.
Vai até a casa e busca uns cobertores velhos. Leva-os até o
galpão e os dispõe ao lado da fêmea. Leva embora as bacias e as
enche com mais água.
Volta para o galpão com as bacias cheias. Fica sentado em um
fardo de palha enquanto a olha. Ela se abaixa e toma a água
devagar.
Nunca olha para ele. Sua vida é o medo, pensa.
Sabe que pode criá-la, que é permitido. Sabe que há pessoas
que criam cabeças domésticas e as vão comendo enquanto estão
vivas, aos poucos. Dizem que a carne é mais saborosa, bem fresca,
garantem. Já estão à venda os manuais que explicam como,
quando e onde fazer o corte para que o produto não morra antes do
tempo.
Possuir escravos é proibido. Lembra o caso de uma família que
foi denunciada e processada pela posse de dez fêmeas que
trabalhavam em uma oficina clandestina. Estavam marcadas.
Compraram-nas em um criadouro e as treinaram. Sacrificaram todos
eles no Matadouro Municipal. Fêmeas e família se transformaram
em carne especial. A imprensa cobriu o caso durante semanas.
Lembra de uma frase que todo mundo repetia escandalizado: “A
escravidão é barbárie”.
Ela não é ninguém e está em meu galpão, pensa.
Não sabe o que fazer com essa fêmea. Está suja. Precisaria
lavá-la, em algum momento.
Fecha a porta do galpão. Vai para a casa. Tira a roupa e entra no
chuveiro. Poderia vendê-la e resolver o problema de vez. Poderia
criá-la, inseminá-la, começar com um pequeno lote de cabeças,
tornar-se independente do frigorífico. Poderia fugir, deixar tudo,
abandonar seu pai, sua mulher, a criança morta, o berço que
aguarda ser destroçado.
Desperta com a ligação de Nélida. Dom Armando se
descompensou, querido. Nada grave, só queria que você soubesse.
Não precisa vir, mas seria bom. Você sabe que seu pai fica feliz,
embora às vezes não o reconheça. Sempre que você vem, os
episódios cessam por vários dias. Ele agradece pelo aviso e diz que
irá em breve, em algum momento. Desliga e fica na cama pensando
que não queria começar o dia dessa forma.
Coloca a chaleira no fogo e se veste. Enquanto toma o primeiro
chimarrão, liga para a reserva de caça. Explica que teve uma
emergência familiar e que vai ligar novamente para reagendar a
visita. Depois liga para Krieg e diz que vai demorar um pouco mais
com o itinerário. Krieg responde que pode levar o tempo que
precisar, mas que o espera para entrevistar dois possíveis
candidatos.
Pensa alguns segundos e liga para a irmã. Diz que o pai está
bem, que deveria visitá-lo. Ela responde que está ocupada, que
educar dois filhos e cuidar da casa toma todo o seu tempo, que vai
em breve. Que morando na cidade é mais difícil, porque o asilo fica
longe e ela tem medo de voltar depois do toque de recolher. Diz isso
com desprezo, como se o mundo tivesse culpa por suas escolhas.
Depois muda o tom e fala que há muito não se encontram, que
queria convidá-lo para jantar, pergunta por Cecilia, se continua na
casa da mãe dela. Ele diz que ligará novamente, em outro
momento, e desliga.
Abre o galpão. A fêmea está deitada sobre os cobertores.
Acorda assustada. Ele leva as bacias embora. Volta com água e
ração balanceada. Vê que ela encontrou um lugar para fazer suas
necessidades. Na volta terei que limpar, pensa, cansado. Quase não
a olha, porque fica aborrecido com essa fêmea, essa mulher nua em
seu galpão.
Entra no carro e vai direto para o asilo. Nunca avisa para Nélida
que irá. Ele está pagando pelo asilo melhor e mais caro da região e
considera que tem direito de ir sem avisar.
O asilo fica no caminho de sua casa à cidade. Está localizado
em uma zona residencial de bairros privados. Sempre que vai, faz
uma parada uns quilômetros antes.
Estaciona e anda até a porta do zoológico abandonado. As
correntes que fechavam a grade estão quebradas. A grama está
crescida, as jaulas vazias.
Ele sabe que é arriscado andar ali porque ainda há animais
soltos. Não se importa. Os grandes massacres aconteceram nas
cidades; porém, durante muito tempo, houve pessoas que se
aferraram aos seus animais de estimação e não estavam dispostas
a matá-los. Dizem que algumas dessas pessoas morreram pelo
vírus. Outras abandonaram seus cachorros, gatos, cavalos no meio
do campo. Com ele nunca acontecera nada, mas dizem que é
perigoso andar só, sem arma. Há matilhas, estão com fome.
Anda até a jaula dos leões. Senta-se no banco de pedra. Pega
um cigarro e o acende. Olha o espaço deserto.
Lembra-se de quando o pai o levou. Seu pai não sabia o que
fazer com aquele menino que não chorava, que não dissera uma
palavra desde a morte da mãe. A irmã era bebê, era cuidada por
babás, alheia a tudo.
O pai levava-o ao cinema, à praça, ao circo, a qualquer lugar
longe da casa, longe das fotos da mãe sorridente com o diploma de
arquiteta, longe da roupa que continuava pendurada nos cabides, da
reprodução do quadro de Chagall que ela tinha escolhido para pôr
em cima da cama. Paris através da janela: há um gato com rosto de
humano, um homem voando de paraquedas triangular, uma janela
colorida, um casal em tinta preta e um homem de dois rostos com
um coração na mão. Tem algo que fala da loucura do mundo, uma
loucura que pode ser sorridente, impiedosa, embora todos estejam
sérios. Hoje, o quadro está em seu quarto.
O zoológico sempre estava lotado de famílias, maçãs do amor,
algodão-doce rosa, amarelo, azul, risadas, balões, bichinhos de
pelúcia de cangurus, baleias, ursos. O pai dizia: “Olhe, Marcos, um
macaco-de-cheiro. Olhe, Marcos, uma cobra-coral. Olhe, Marcos,
um tigre”. Ele olhava sem dizer nada, porque sentia que o pai não
tinha palavras, que essas que dizia estavam ausentes. Intuía, sem
saber ao certo, que essas palavras estavam prestes a se quebrar,
que eram sustentadas por um fio transparente e muito fino.
Quando chegaram à jaula dos leões, o pai ficou olhando sem
dizer nada. As leoas descansavam ao sol. O leão não estava ali.
Alguém jogou uma bolacha para os animais. As leoas olharam
indiferentes. Ele pensava que estavam muito longe, que a única
coisa que queria naquele momento era pular dentro da jaula, deitar-
se entre as leoas e dormir. Teria gostado de acariciá-las. As crianças
gritavam, rosnavam, tentavam rugir, as pessoas se aglomeravam,
pediam licença. Mas, de repente, todos ficaram em silêncio. O leão
saiu das sombras, de alguma caverna, e andou com muita lentidão.
Ele olhou para o pai e disse: “Papai, o leão, aí está o leão, viu?”. O
pai estava com a cabeça baixa, desfazendo-se no meio da multidão.
Não estava chorando, mas ele conseguia ver as lágrimas, ali, atrás
das palavras que não podia dizer.
Termina o cigarro e o joga na jaula. Levanta-se e vai embora.
Anda devagar até o carro, com as mãos no bolso da calça.
Escuta um uivo. Está longe. Fica parado, olhando, para ver se
consegue ver algo.
Chega ao asilo Novo Amanhecer. O casarão está rodeado por
um parque bem cuidado, com bancos, árvores e fontes. Contaram-
lhe que antes havia patos em um pequeno lago artificial. Hoje, o
lago desapareceu. Também os patos.
Toca a campainha. É atendido por uma enfermeira. Nunca
recorda os nomes, mas todas se lembram dele. “Sr. Marcos, tudo
bem? Entre, entre, que já já traremos dom Armando.”
Ele se assegurou de que o asilo fosse atendido exclusivamente
por enfermeiras. Nada de cuidadoras ou auxiliares noturnas sem
treino nem estudo prévio. Foi lá que conheceu Cecilia.
A primeira coisa que ele sente, cada vez que entra, é um cheiro
leve de urina e remédios. O aroma artificial dos fármacos que
permitem que aqueles corpos continuem respirando. A limpeza do
lugar é impecável, mas ele sabe que o cheiro de urina é quase
impossível de eliminar com os velhos usando fraldas. Ele nunca
chama os velhos de avós.
Nem todos são avós, nem serão. Apenas são velhos, pessoas
que viveram muitos anos, e talvez seja essa sua única conquista.
Conduzem-no até a sala de espera. Oferecem-lhe algo para
tomar. Senta-se em uma poltrona em frente a um janelão enorme
que dá para o jardim. Ninguém caminha pelo jardim sem proteção.
Alguns usam um guarda-chuva. Os pássaros não são violentos, mas
as pessoas têm pânico deles. Um pássaro preto pousa em um
arbusto pequeno. Ouve um sobressalto. Uma senhora, uma velha,
uma paciente do asilo olha para ele assustada. O pássaro voa e a
velha murmura algo, como se pudesse se proteger com as palavras.
Depois adormece no lugar. Parece que acabaram de lhe dar banho.
Lembra-se do filme de Hitchcock, Os pássaros, de como havia
ficado impactado quando assistira e de como se lamentou quando o
proibiram.
Lembra-se de quando conheceu Cecilia. Ele estava sentado
nessa poltrona, esperando o pai. Como Nélida não estava, foi ela
quem levou o pai. Nessa época, o pai caminhava, falava, tinha certa
lucidez. Quando ele ficou em pé e a viu, não sentiu nada especial.
Mas, quando ela começou a falar, ele prestou atenção. Aquela voz.
Ela falava da dieta especial para dom Armando, de como estavam
cuidando da pressão dele, dos constantes check-ups que faziam, de
que o pai estava mais tranquilo. Ele via um monte de luzes ao redor,
sentia que aquela voz podia elevá-lo. Com aquela voz, ele podia sair
do mundo.
Desde que aconteceu aquilo com o bebê, as palavras de Cecilia
têm buracos negros, engolem-se a si mesmas.
Há alguma televisão ligada, sem som. Transmitem um programa
antigo, em que os participantes têm de matar gatos a pauladas.
Arriscam-se a morrer para ganhar um carro. As pessoas aplaudem.
Pega um folheto do asilo. Estão na mesinha de centro, do lado
das revistas. Na capa há um homem e uma mulher sorrindo. São
velhos, mas nem tanto. Antes os folhetos mostravam velhos
correndo felizes por um campo ou sentado em um parque com
muito verde. Hoje o fundo é neutro. Mas eles sorriem como antes.
Em vermelho, dentro de um círculo, consta a frase “Garantimos
segurança 24 × 7”. Sabe-se que nos asilos públicos a maior parte
dos velhos, ao morrerem ou quando os deixam morrer, é vendida no
mercado ilegal. É a carne mais barata que dá para conseguir,
porque é carne seca e doente, cheia de fármacos. Carne com nome
e sobrenome. Em alguns casos, os próprios familiares, em asilos
privados ou públicos, autorizam a venda do corpo e com isso pagam
as dívidas. Já não há mais funerais. É muito difícil controlar que o
corpo não seja desenterrado e comido, por isso muitos cemitérios
foram vendidos, outros foram abandonados, alguns ficaram como
relíquias de um tempo em que os mortos podiam descansar em paz.
Ele não pode permitir que seu pai seja desmanchado.
Da sala de espera, ele consegue ver o salão onde os velhos
descansam. Estão sentados, assistindo à televisão. É o que fazem
durante a maior parte do tempo. Assistem à televisão e aguardam a
morte.
São poucos. Ele se assegurou disso também. Não queria um
asilo lotado, com velhos descuidados. Mas também são poucos
porque é o asilo mais caro da cidade.
O tempo é asfixiante nesse lugar. As horas e os segundos
grudam na pele, perfuram-na. O melhor seria ignorar isso, ainda que
não se possa.
Olá, querido Marcos, como vai? Que bom te ver. É Nélida que
traz o pai em uma cadeira de rodas. Ela o abraça porque gosta dele,
porque todas as enfermeiras conhecem a história do filho dedicado
que, ainda por cima, teve a delicadeza de resgatar a enfermeira e se
casar com ela.
Depois da morte do bebê, Nélida começou a abraçá-lo.
Ele se agacha, olha nos olhos do pai e segura suas mãos. Diz:
“Olá, papai”. O pai tem o olhar perdido, desolado.
Levanta-se e pergunta a Nélida: “Como está, melhorou? Sabem
por que se descompensou?”. Nélida pede que ele se sente. Deixa o
pai ao lado da poltrona olhando o janelão. Eles ficam perto, em uma
mesa com duas cadeiras. Dom Armando teve outro episódio,
querido. Ontem tirou a roupa toda e, enquanto Marta, a enfermeira
da noite, foi atender a outro avô, seu pai foi para a cozinha e comeu
todo o bolo de aniversário que havíamos preparado para um avô
que estava fazendo 90 anos. Ele esconde um sorriso. O pássaro
preto levanta voo e pousa em outro arbusto. O pai assinala-o com
um gesto de felicidade. Ele se levanta e leva a cadeira de rodas
para perto da janela. Quando volta a se sentar, Nélida olha para ele
com carinho e pena. Marcos, vamos ter que voltar a amarrá-lo de
noite. Ele assente. Você precisa assinar uma autorização. É pelo
bem-estar de dom Armando. Sabe que não gosto disso. Seu pai
está delicado. Não pode comer qualquer coisa. Aliás, hoje é um
bolo, amanhã pode ser uma faca.
Nélida vai buscar os documentos.
Seu pai já nem fala. Emite sons. Queixas.
As palavras estão ali, encapsuladas. Apodrecem por detrás da
loucura.
Ele senta-se na poltrona olhando o janelão. Segura sua mão. O
pai olha para ele como se não o conhecesse, mas não tira a mão.
Chega ao frigorífico. É um lugar isolado, rodeado de cercas
elétricas. Colocaram-nas por conta dos Carniceiros, que tentaram
entrar várias vezes. Romperam as cercas quando não tinham
eletricidade, treparam nelas, machucaram-se só para conseguir
carne fresca. Agora se conformam com as sobras, com os pedaços
que não têm utilidade comercial, com a carne adoecida, com o que
ninguém comeria, a não ser eles.
Antes de atravessar a porta, permanece por alguns segundos no
carro observando o conjunto de edifícios. São brancos, compactos,
eficientes. Nada poderia indicar que ali dentro matam humanos.
Lembra-se das fotos do matadouro de Salamone, que sua mãe lhe
mostrara. O edifício está destruído, mas a fachada continua intacta,
com a palavra matadouro como um golpe duro. Enorme, sozinha, a
palavra resistiu a desaparecer. Opusera-se a ser despedaçada pelo
clima, pelo vento furando a pedra, pelo tempo corroendo a fachada,
aquela que sua mãe dizia ter influência art déco. As letras cinza se
destacam por conta do céu que está por detrás. Não importa a
forma que o céu atinja, se azul sufocante ou repleto de nuvens ou
preto furioso, a palavra continua ali, a palavra que fala de uma
verdade implacável em um belo edifício. “Matadouro” porque ali
matavam. Ela queria reformar a fachada do frigorífico El Ciprés, mas
o pai se negou porque um matadouro devia ser ignorado, fundir-se
com a paisagem e nunca ser chamado pelo que realmente é.
Oscar, o segurança da manhã, está lendo o jornal, mas quando o
vê no carro, fecha o jornal rapidamente e o cumprimenta, nervoso.
Abre a porta e diz, forçando um pouco a voz: “Bom dia, sr. Tejo, tudo
bem?”. Ele responde acenando com a cabeça.
Desce do carro e fica fumando. Apoia os braços no teto do carro
e permanece quieto, olhando. Passa a mão pela testa suada.
Não há nada ao redor do frigorífico. Nada à primeira vista. Há um
espaço truncado com algumas árvores solitárias e um riacho
apodrecido. Está com calor, mas fuma sem pressa, alongando os
minutos antes de entrar.
Sobe direito para o escritório de Krieg. Alguns funcionários o
cumprimentam no caminho. Ele os cumprimenta sem olhar para
eles. Dá um beijo em Mari, a secretária. Ela lhe oferece um café e
diz: “Daqui a pouco eu levo, Marcos, que bom te ver. O sr. Krieg já
estava ficando apreensivo. Sempre que você faz o itinerário ele fica
assim”. Ele entra no escritório sem bater na porta e senta-se sem
pedir licença. Krieg está ao telefone. Sorri para ele e faz um gesto,
avisando que desligará logo.
As palavras de Krieg são contundentes, mas escassas. Fala
pouco e devagar.
Krieg é dessas pessoas que não foram feitas para a vida. Tem o
rosto de um retrato falido, que deu errado, o desenhista o amassou
e jogou no lixo. É alguém que acaba por não se encaixar em lugar
nenhum. Não tem interesse pelo contato humano, por isso seu
escritório foi reformado. Primeiro isolou o espaço, de tal forma que
só sua secretária pode escutá-lo e vê-lo. Depois, acrescentou mais
uma porta. Essa porta dá para uma escada que vai direto para o
estacionamento privado, localizado atrás do frigorífico. Os
funcionários o veem pouco, ou nada.
Ele sabe que seu chefe dirige o negócio com perfeição, que é o
melhor quando se trata de fazer números e transações. Tratando-se
de conceitos abstratos, de tendências de mercado, de estatísticas,
Krieg se destaca. Só tem interesse em humanos comestíveis, as
cabeças, o produto. Mas não se interessa pelas pessoas. Detesta
cumprimentá-las, manter conversas mínimas sobre o frio ou o calor,
ter de ouvir seus problemas, aprender os nomes, registrar se
alguém está de licença ou teve um filho. Para isso existe ele, seu
braço direito. Ele, de quem todos gostam e respeitam, porque
ninguém o conhece, não de verdade. Poucos sabem que perdeu um
filho, que sua mulher foi embora, que seu pai está desabando em
um silêncio obscuro e demencial.
Ninguém sabe que é incapaz de matar a fêmea em seu galpão.
Krieg desliga.
— Estou com dois candidatos esperando por você. Não os viu
quando entrou?
— Não.
— Quero que você aplique uma prova neles. Só estou
interessado em contratar o melhor.
— Perfeito.
— Depois me conte as novidades. Isso é mais urgente.
Ele se levanta para sair, mas Krieg faz um gesto para que se
sente.
— Há outro assunto. Encontraram um empregado com uma
fêmea.
— Quem?
— Um dos seguranças da noite.
— Não posso fazer nada. Não estão sob minha
responsabilidade.
— Comento isso porque vou ter que mudar de empresa de
segurança outra vez.
— Como souberam?
— Pelas filmagens. Agora as vemos todas as manhãs.
— E a fêmea?
— Ele a estuprou até a morte. Deixou-a jogada em uma jaula
comum, com o resto. Nem sequer a enfiou na jaula certa, é muito
imbecil.
— E agora?
— Vigilância Sanitária e boletim de ocorrência pela destruição de
um bem móvel.
— E a empresa de segurança tem que restituir o valor da fêmea.
— Sim, isso também, ainda mais porque era uma PGP.
Ele se levanta e sai. Vê Mari caminhando com o café. É uma
mulher que parece frágil, mas sabe que, se ele pedisse, ela
começaria a abater a fazenda toda, sem tremer qualquer músculo.
Faz um gesto para que ela esqueça do café e pede que o apresente
aos candidatos. Estão na sala de espera, não os viu quando entrou?
Oferece-lhe companhia, mas ele responde que vai sozinho.
Na sala de espera há dois jovens em silêncio. Apresenta-se e
pede que o acompanhem. Explica-lhes que farão um breve percurso
pelo frigorífico. Enquanto andam em direção à área de descarga,
pergunta-lhes por que desejam esse emprego. Não espera
respostas elaboradas. Sabe que os candidatos são escassos, que a
reposição é permanente, que são poucos os que suportam trabalhar
nesse lugar. O incentivo é a necessidade de ganhar dinheiro, porque
sabem que é um trabalho bem pago. Mas a necessidade os
sustenta por pouco tempo. Preferem ganhar menos e fazer outra
coisa que não implique limpar vísceras humanas.
O mais alto responde que necessita da grana, que a namorada
ficou grávida e precisa economizar. O outro olha com um silêncio
pesado. Demora em responder e diz que foi indicação de um amigo
que trabalha em uma fábrica de hambúrguer. Ele não acredita, nem
um pouco.
Chegam à área de descarga. Há homens que carregam com pás
os excrementos do último gado que chegou. Guardam o excremento
em sacolas. Outros lavam os caminhões-jaula e o chão com
mangueiras. Todos estão vestidos de branco, com galochas pretas
de cano alto. Os homens o cumprimentam. Ele acena com a cabeça
sem sorrir. O mais alto tem o impulso de tampar o nariz, mas baixa a
mão rapidamente e pergunta por que guardam os excrementos. O
outro olha em silêncio. “É para adubo”, responde-lhe.
Explica-lhes que aí desce o gado, pesam-no e o marcam.
Também os raspam, pois o cabelo se vende. Depois os levam para
as jaulas de repouso, onde descansam por um dia. “A carne de uma
cabeça estressada fica dura ou com sabor ruim, e se transforma em
carne de má qualidade”, diz-lhes. “Esse é o momento em que se faz
a inspeção ante-mortem.” “Ante o quê?”, pergunta o mais alto. Ele
explica que qualquer produto que apresente traços de doença
precisa ser retirado. Os dois assentem. “Nós os separamos em
jaulas especiais. Se são recuperadas, voltam para a roda do abate
e, caso continuem doentes, são descartadas.” O mais alto pergunta:
“Descartar quer dizer que os sacrificam?”. “Sim.” “E por que não os
devolvem para o criadouro?”, pergunta o mais alto. “Porque o
transporte é caro. O criadouro é avisado das cabeças descartadas e
depois é só fechar as contas.” “Por que não são curadas?” “Porque
o investimento é muito caro.” “Chegam cabeças mortas?”, continua
perguntando o mais alto. Ele olha para ele com certa surpresa. Os
candidatos não costumam fazer esse tipo de perguntas, e acha
interessante a novidade. “Poucas, mas às vezes chegam. Nesse
caso, a Vigilância Sanitária é avisada e eles vêm recolher as
cabeças mortas.” Ele sabe que essa última informação é a verdade
oficial, portanto, é uma verdade relativa. Sabe (porque assim
ordena) que os funcionários deixam algumas cabeças para os
Carniceiros, que as carneiam com facões e levam o que podem.
Não se importam com que a carne esteja adoecida, arriscam-se
porque não podem comprar. Ele faz vista grossa e tenta ter esse
gesto de caridade ou de certa piedade. Também faz isso porque é
uma forma de manter apaziguados os Carniceiros e a fome. O
anseio pela carne é perigoso.
Enquanto caminham pela área das jaulas de repouso, conta-lhes
que no início terão que fazer tarefas simples de limpeza e recolha.
Conforme demonstrem capacidade e lealdade, vão aprender as
outras tarefas.
A área das jaulas de repouso tem um cheiro azedo, penetrante.
Ele pensa que esse é o cheiro do medo. Sobem uma escada que dá
acesso a uma ponte suspensa, de onde é possível vigiar o gado.
Pede-lhes que não falem alto porque as cabeças precisam estar
tranquilas, qualquer som abrupto as altera e, se ficam agitadas, são
mais difíceis de manipular.
As jaulas estão abaixo. As cabeças ainda estão inquietas pela
viagem, embora a descarga tenha sido de manhã cedo. Movem-se
assustadas.
Explica-lhes que quando chegam, recebem um banho de
aspersão e depois são inspecionadas. Precisam estar em jejum,
esclarece, damos apenas uma dieta hídrica para diminuir o
conteúdo dos intestinos e assim reduzir o risco de contaminação no
momento de, após o sacrifício, manipulá-las. Tenta calcular quantas
vezes repetiu essa frase em sua vida.
O outro assinala as cabeças que estão marcadas com uma cruz
verde. “O que significam essas marcas verdes no peito?” “São os
escolhidos para ir à reserva de caça. Os especialistas que
inspecionam as cabeças escolhem as de melhor estado físico. Os
caçadores precisam de presas desafiadoras, querem persegui-las,
não têm interesse em alvos fixos.” “Claro, por isso a maioria é
macho”, diz o mais alto. “Sim, as fêmeas geralmente são submissas.
Testaram com fêmeas prenhes e o resultado foi bem diferente,
porque se tornam ferozes. De vez em quando nos pedem dessas.”
“E aqueles de cruzes pretas?”, pergunta o outro. “Para o
laboratório.” O outro tenta dizer mais alguma coisa, mas ele
continua andando. Não pensa em contar nada sobre esse lugar,
sobre o Laboratório Valka, e, mesmo se quisesse contar, não
poderia.
Os funcionários que inspecionam o gado cumprimentam-no das
jaulas. “Amanhã, vão transferir os recém-chegados para as jaulas
de cor azul, e daí eles vão direto para o abate”, diz-lhes, enquanto
descem a escada e andam até a sala de boxes.
O outro se demora olhando as cabeças das jaulas azuis. Faz um
sinal para que ele se aproxime e pergunta se aquelas cabeças
serão sacrificadas nesse dia. Ele responde que sim. O outro as
contempla em silêncio.
Antes de chegarem à área dos boxes, passam por algumas
jaulas de cor vermelha. São jaulas amplas e, em cada uma delas,
há só uma cabeça. Antes de perguntarem, ele explica que essa é
carne de exportação, são cabeças da Primeira Geração Pura. “É a
carne mais cara do mercado, porque a criação leva muitos anos.”
Precisa explicar que o resto da carne é modificada geneticamente
para acelerar o crescimento e atingir maior rentabilidade. “Então, a
carne que comemos é totalmente artificial? É carne sintética?”,
pergunta o mais alto. “Bem, não. Não diria que é artificial nem
sintética. Diria que é modificada. O sabor não é tão diferente do da
carne PGP, embora a carne PGP seja de alta qualidade, para
paladares exigentes.” Os dois candidatos ficam parados, em
silêncio, olhando as jaulas nas quais as cabeças têm o corpo todo
pintado com as letras PGP. Uma sigla para cada ano de
crescimento.
O mais alto está um pouco pálido. Ele acha que o rapaz não vai
suportar o que virá em seguida, provavelmente desmaiará ou
vomitará. Pergunta-lhe se está se sentindo bem. “Sim, bem, bem”,
responde. Sempre acontece o mesmo com o candidato mais fraco.
Precisam da grana, mas não é o suficiente.
Ele sente um cansaço que poderia matá-lo, mas continua
andando.
Entram na zona dos boxes, porém ficam na sala de descanso, que
tem um janelão com vista para a o box de insensibilização. O lugar é
tão branco que os cega.
O mais alto senta-se e o outro pergunta por que não podem
entrar na sala. Ele responde que apenas o pessoal autorizado com
roupa de trabalho regulamentada tem acesso, pois tomam todas as
providências para não contaminar a carne.
Sergio, um dos abatedores, cumprimenta-o e entra na sala de
descanso. Está vestido de branco, de galochas pretas, máscara,
avental de plástico, capacete e luvas. Abraça-o. “Tejo querido, onde
você estava?” “Fazendo o itinerário com os clientes e fornecedores.
Venha, vou te apresentar.”
De vez em quando, ele bebe cerveja com Sergio. Ele o
considera um sujeito autêntico que não olha para ele com um
sorriso torto por ser o braço direito do chefe, que não fica pensando
em quais vantagens pode tirar, que não tem problemas em dizer o
que pensa. Quando o bebê faleceu, Sergio não olhou para ele com
pena nem disse “Leo agora é um anjinho”, nem o olhou em silêncio
sem saber o que fazer, nem o evitou, nem o tratou de maneira
diferente. Abraçou-o e o levou a um bar, embebedou-o sem parar de
contar piadas até que os dois choraram de gargalhar. A dor
continuou intacta, mas ele soube que tinha um amigo. Uma vez,
perguntou por que Sergio trabalhava de marreteiro. Ele respondeu
que eram as cabeças ou sua família. Que não sabia fazer outra
coisa e era bem pago. Que, a cada vez que sentia remorso,
pensava em seus filhos e na vida melhor que estavam levando
graças a esse trabalho. Disse-lhe que a carne original ajudou a
controlar a superpopulação, a pobreza e a fome, ainda que não a
tenha erradicado. Disse que cada um tem uma função nessa vida,
que a função da carne era ser sacrificada e depois comida. Disse
que, graças ao seu trabalho, as pessoas eram alimentadas e ele se
orgulhava disso. E disse mais, porém ele já não conseguia ouvir.
Saíram para comemorar quando a filha mais velha de Sergio
entrou na universidade. Ele se perguntou, enquanto brindavam,
quantas cabeças tinham pagado a educação dos filhos de Sergio,
quantas marretadas ele teve que dar na vida. Ofereceu-lhe que
fosse seu braço direito, mas Sergio respondeu categórico: “Prefiro
os golpes”. Ele valorizou essa resposta negativa e não pediu
explicações, pois as palavras de Sergio são simples, claras. São
palavras sem gume.
Sergio se aproxima dos candidatos e estende-lhes a mão. “Ele
faz um dos trabalhos mais importantes, atordoar as cabeças. Com
apenas um golpe, ele as desmaia para que depois as degolem.
Mostre para eles, Sergio.”
Pede aos candidatos para subirem em uns degraus construídos
debaixo da janela. Dessa forma, ficam com a altura necessária para
ver o que acontece dentro do box.
Sergio entra na sala de boxes e sobe na plataforma. Pega a
marreta. Grita: “Pode mandar!”. Uma porta guilhotina se abre, e
entra uma fêmea nua de pouco mais de vinte anos. Está molhada e
tem as mãos amarradas nas costas com uma precinta plástica. Está
raspada. O espaço do box é estreito, para ela é impossível se
movimentar. Sergio ajusta o grilhão de aço inoxidável que corre por
um trilho vertical na altura do pescoço da fêmea, e tranca-o. A
fêmea treme, sacode-se, quer se soltar. Abre a boca.
Sergio olha em seus olhos e dá uns tapinhas na sua cabeça que
quase parecem uma carícia. Diz-lhe algo que eles não ouvem, ou
canta para ela. A fêmea fica quieta, mais calma. Sergio levanta a
marreta e golpeia sua testa. O golpe é seco. Tão rápido e silencioso
que é demencial. A fêmea desmaia. Seu corpo amolece e, quando
Sergio abre o grilhão, o corpo cai. Abre-se a porta basculante e a
base do box se inclina, expulsando o corpo, que desliza até o chão.
Um funcionário entra e amarra os pés com correias fixadas às
correntes. Corta a precinta plástica que aprisiona as mãos e aperta
um botão. O corpo se eleva e é transportado, de cabeça para baixo,
para outro quarto através de um sistema de trilhos. O funcionário
olha para o quarto de descanso e os cumprimenta com um gesto.
Ele não se lembra do nome do homem, mas sabe que o contratou
há alguns meses.
O funcionário pega uma mangueira, lava o box e o piso
manchados com excrementos.
O mais alto desce dos degraus e senta-se em uma cadeira com
a cabeça baixa. Ele pensa: agora vai vomitar. Porém, ele se ergue e
se recompõe. Sergio entra sorrindo, orgulhoso de sua
demonstração. “E aí, o que acharam? Querem experimentar?” O
outro se aproxima e diz: “Sim, eu”, mas Sergio solta uma gargalhada
e diz: “Não, menino, ainda falta muito para você”. O outro parece
decepcionado. “Deixe eu explicar, querido. Se você os mata de um
golpe, a carne estraga. E se você não os faz desmaiar e eles entram
vivos no sacrifício, aí você também estraga a carne. Entendeu?” E
abraça o outro enquanto o sacode um pouco, rindo. “Essa molecada
de hoje, Tejo! Querem ganhar o mundo e não sabem nem andar.”
Todos riem, menos o outro. Sergio explica que os novatos usam a
pistola de dardo cativo penetrante, “tem menos margem de erro,
sabe? Mas a carne não fica tão macia. Ricardo, o outro atordoador
que agora está descansando lá fora, usa a pistola e está treinando
para usar a marreta. Trabalha aqui há seis meses”. E conclui: “Usar
a marreta é só para entendedores”. O mais alto pergunta o que
disse à carne, por que falou com ela. Ele se surpreende porque
chama de carne a fêmea atordoada, não a chama de cabeça ou de
produto. Sergio responde que cada atordoador tem seu segredo de
como acalmá-los antes de os atordoar, e que cada atordoador tem
que achar seu jeito. “Por que não gritam?”, diz o mais alto. Ele não
quer responder, ele queria estar em outro lugar, mas está ali. É
Sergio quem responde: “Não têm cordas vocais”.
O outro sobe nos degraus e observa a sala dos boxes. Apoia as
mãos na janela. Tem ansiedade no olhar, impaciência.
Ele pensa que esse candidato é perigoso. Alguém com tanta
vontade de assassinar é alguém instável, alguém que não
conseguiria assumir a rotina de matar, o gesto automático e
desapaixonado de carnear humanos.
Saem da sala de descanso. Explica-lhes que irão para a área de
sacrifício. “Vamos entrar?”, pergunta o outro. Ele olha sério. “Não”,
responde. “Não vamos entrar porque, como já disse, não estamos
com a roupa regulamentada.” O outro olha para o chão e não
responde. Enfia as mãos nos bolsos da calça com impaciência.
Suspeita que o outro possa ser um falso candidato. De quando em
quando aparecem pessoas fingindo ser candidatos só para serem
testemunhas da matança. Pessoas que apreciam o processo,
enxergando-o como uma curiosidade, como uma anedota colorida
para acrescentar à sua vida. Pensa que são pessoas sem a
coragem de aceitar e assumir o peso desse trabalho.
Andam por um corredor com uma janela com vista para a sala de
degola. Os funcionários estão vestidos de branco na sala branca.
Porém, a aparente imaculabilidade está manchada com toneladas
de sangue que cai na canaleta de sangria e respinga nas paredes,
nos uniformes, no piso, nas mãos.
As cabeças entram por um trilho automático. Há três corpos
içados de cabeça para baixo. Um já fora degolado e os outros
aguardam sua vez. Um deles é a fêmea que Sergio acabou de
atordoar. O operário pressiona um botão e o corpo que já foi
sangrado continua o caminho no trilho, enquanto o outro corpo fica
em cima da canaleta. Em um rápido movimento, o homem corta seu
pescoço. O corpo treme um pouco. O sangue cai na canaleta.
Mancha o avental, a calça e as galochas do operário.
O outro pergunta o que fazem com o sangue. Ele decide ignorá-
lo e não responde. O mais alto diz: “Usam para fazer fertilizante”.
Ele o olha. O mais alto sorri e diz a ele que seu pai trabalhou pouco
tempo em um frigorífico de antigamente, que contou-lhe algumas
coisas. Diz a expressão “de antigamente” baixando a cabeça e a
voz, como se sentisse tristeza ou resignação. Ele responde que o
sangue de vaca era usado para fazer fertilizante. “Esse sangue tem
outros usos”, porém não esclarece quais.
O outro diz: “É para fazer uma morcela deliciosa, não é?”. Ele o
olha fixamente e não responde.
O operário se distrai conversando com outro funcionário.
Ele percebe que o operário está demorando muito. A fêmea que
Sergio atordoou começa a se mexer. O operário não a vê. A fêmea
se balança devagar, primeiro, e depois com mais força. O
movimento é tão violento que consegue desprender os pés das
correias, pois estavam frouxas. Cai de um golpe seco. Treme no
chão e a pele branca fica manchada com o sangue daqueles que
foram degolados antes dela. A fêmea levanta um braço. Tenta ficar
de pé. O operário dá meia-volta e a olha com indiferença. Pega uma
pistola de dardo cativo e dispara na testa. Volta a içá-la.
O outro se aproxima da janela e assiste à cena com um sorriso
de canto de boca. O mais alto tampa a boca.
Ele toca o vidro e o operário se sobressalta. Não o vira e sabe
que aquele descuido pode custar seu trabalho. Faz um sinal para
que saia. O operário pede que alguém o substitua e sai.
Cumprimenta-o pelo nome, dizendo que isso que acabou de
acontecer não se repetirá. “Essa carne morreu com medo e terá um
sabor ruim. Você estragou o trabalho de Sergio com essa demora.”
O operário olha para o chão e diz que foi um descuido, que o
desculpasse, que não vai acontecer novamente. Responde-lhe que
ficará na seção de triparia até novo aviso. O operário não consegue
esconder a cara de nojo, mas assente.
A fêmea que Sergio atordoou já está sangrando. Ainda há mais
uma que espera ser degolada.
O mais alto se agacha, fica de cócoras e abraça a cabeça com
as mãos. Ele dá um tapinha nas suas costas e pergunta se está
bem. O mais alto não responde, apenas faz um gesto pedindo um
minuto. O outro continua observando, fascinado, sem perceber o
que está acontecendo. O mais alto fica em pé. Está pálido e com
pingos de suor na testa. Recupera-se e continua observando.
Observam como o corpo sem sangue da fêmea é levado pelo
trilho até que um operário solta as correias dos pés e o corpo cai em
um tanque de escaldagem junto a outros cadáveres que flutuam na
água fervente. Outro funcionário os afunda com um pau, mexendo-
os. O mais alto pergunta se, quando os afundam, os pulmões não
se enchem de água contaminada. Ele pensa: “cara inteligente” e
explica que sim, pouca água, pois já não respiram, mas que o
próximo investimento do frigorífico será uma máquina de escalda
por aspersão. “Nessas máquinas, a escalda é individual e vertical”,
esclarece.
O operário põe um dos corpos que flutuam na plataforma de
carga, que se eleva e deposita o corpo na caleira de escalda que
começa a girar, enquanto um conjunto de cilindros rotativos com pás
o depilam. Ele continua se impressionando quando vê essa parte do
processo. Os corpos giram a toda a velocidade, como se estivessem
dançando uma dança esquisita e críptica.
Faz um gesto para que o sigam. Irão para a sala de triparia.
Enquanto andam devagar, ele comenta que o produto é utilizado
quase totalmente. “Praticamente nada se desperdiça.” O outro
permanece observando como um operário repassa os cadáveres
escaldados com um maçarico. Assim, completamente depilados,
podem eviscerá-los.
Antes de chegar à sala de triparia, passam pela sala de cortes.
Todas as salas são interligadas pelo trilho que vai transportando os
corpos para que passem por cada uma das etapas. Pelas janelas
compridas, eles podem ver como cortam com uma serra a cabeça e
as extremidades da fêmea que Sergio atordoou.
Ficam parados, observando.
Um operário pega a cabeça e a leva para outra mesa, onde
extrai os olhos e os coloca em uma bandeja com um cartaz que diz
“Olhos”. Abre a boca, corta a língua e a deposita em uma bandeja
com um cartaz que diz “Línguas”. Corta as orelhas e as coloca em
uma bandeja com um cartaz que diz “Orelhas”. O operário pega
uma punção e uma marreta e, com cuidado, vai golpeando a parte
inferior da cabeça. Golpeia até romper uma parte do crânio e, com
delicadeza, tira o cérebro e o deixa em uma badeja com um cartaz
que diz “Cérebros”.
A cabeça, agora vazia, é colocada em um caixote com gelo que
diz “Cabeças”.
“O que fazem com as cabeças?”, pergunta o outro com certa
excitação contida. Ele responde de forma automática: “Tem muitos
usos. Um deles é enviá-las para o interior, onde preparam cabeça
enterrada”. O mais alto esclarece: “Nunca provei, mas dizem que
são uma delícia. Pouca carne, barata e saborosa, se souberem
cozinhá-la”.
Outro operário já apanhou as mãos e os pés e os guardou
limpos nas gavetas com suas respectivas etiquetas. Os braços e as
pernas são vendidos para os açougues, com as peças. Ele explica
que todos os produtos são lavados e revisados por inspetores antes
da refrigeração. Aponta para um homem, vestido igual ao resto, com
uma pasta na qual faz anotações e um carimbo de certificação que
às vezes tira e usa.
A fêmea que Sergio atordoou já está esfolada e irreconhecível.
Sem a pele e sem as extremidades, está virando uma peça.
Observam como um operário levanta a pele, tirada por uma
máquina, e a estica com cuidado em gavetas compridas.
Continuam andando. As janelas compridas agora dão vista para
a sala intermediária ou de cortes. Os corpos esfolados se movem
nos trilhos. Os operários fazem um corte com precisão, do púbis até
o plexo solar. O mais alto pergunta por que há dois operários para
cada corpo. Ele responde que um faz o corte e o outro costura o
ânus para evitar qualquer expulsão que contamine o produto. O
outro ri e diz: “Não gostaria de ter esse trabalho”. Ele pensa que
nem esse trabalho lhe daria. O mais alto também está ficando
cansado do outro e o olha com desprezo.
Em uma mesa de aço inoxidável, caem intestinos, estômagos,
pâncreas, que os funcionários levam para a sala de triparia.
Os corpos abertos se movem nos trilhos. Em outra mesa, um
operário corta a cavidade superior. Tira os rins, o fígado, desprende
as costelas, corta o coração, o esôfago e os pulmões.
Continuam andando. Chegam à sala de triparia. Há mesas de
aço inoxidável com canos perfurados pelos quais a água escoa. Nas
mesas há vísceras brancas. Os operários as movem e as vísceras
escorregam na água. Parecem um mar que, em lenta ebulição, se
movimenta em um ritmo próprio. Os funcionários as inspecionam,
limpam, desentopem, desmantelam, qualificam, cortam, calibram e
as guardam. Eles observam como os operários levantam as tripas e
as cobrem com camadas de sal para guardá-las em gavetas.
Observam como cortam as bordas de gordura mesentérica.
Observam como injetam ar comprimido nas tripas para conferir que
não tenham furos. Observam como lavam os estômagos e os
cortam para retirar um conteúdo amorfo, verde-amarronzado, que é
descartado. Observam como limpam os estômagos vazios e rotos,
como os secam, os reduzem e os cortam em faixas para formar algo
semelhante a uma esponja comestível.
Em outra sala, menor, veem as vísceras vermelhas suspensas
em ganchos. Inspecionam, lavam, certificam e as guardam.
Ele sempre se pergunta como será passar a maior parte do dia
guardando corações humanos em uma caixa. Em que pensarão
esses operários? Estarão conscientes de que isso que seguravam
em suas mãos estava pulsando há pouco tempo? Será que se
importam com isso? E depois pensa que ele também passa grande
parte da vida supervisionando como um grupo de pessoas, sob sua
ordem, degola, eviscera e corta mulheres e homens com muita
naturalidade. Todos podem se habituar a quase qualquer coisa,
exceto à morte de um filho.
Quantas cabeças por mês ele tem de matar para pagar o asilo
do pai? Quantos humanos ele tem de sacrificar para esquecer como
deitou Leo no berço, agasalhou-o, cantou uma canção de ninar e no
dia seguinte ele amanheceu morto? Quantos corações precisam ser
guardados em caixas para que a dor se converta em outra coisa?
Mas a dor, intui, é a única coisa que o faz continuar respirando.
Sem a tristeza, não lhe resta nada.
Ele explica aos candidatos que estão chegando ao final do processo
de abate. Irão para a sala onde as peças são divididas. De uma
pequena janela quadrada podem ver uma sala mais estreita, porém
branca e iluminada como as anteriores. Dois homens com
motosserras, vestidos com o uniforme regulamentado, com
capacetes e galochas pretas, cortam os corpos ao meio. Usam
viseiras plásticas que protegem o rosto. Parecem concentrados.
Outros funcionários inspecionam e guardam as colunas vertebrais
retiradas antes do corte.
Um dos homens da motosserra olha para ele e não o
cumprimenta. É Pedro Manzanillo. Pega a motosserra e corta um
corpo com mais ímpeto, parece estar com raiva, mas corta com
precisão. Ele sabe que sua presença sempre altera Manzanillo.
Tenta não cruzar com ele, mas é inevitável.
Explica aos candidatos que depois do corte, as meias peças são
lavadas, inspecionadas, seladas, pesadas e depositadas na câmara
de resfriamento para receber frio suficiente. “Mas, com o frio, a
carne não fica dura?”, pergunta o outro. Ele explica os processos
químicos pelos quais a carne fica macia graças ao frio. Cita palavras
como ácido lático, miosina, ATP, glicogênio, enzimas. O outro
assente, como se compreendesse. “Nosso trabalho acaba quando
as diferentes partes do produto são transportadas até os respectivos
destinos”, diz, encerrando o percurso e saindo para fumar.
Manzanillo deixa a motosserra sobre uma mesa e olha para ele
novamente. Ele sustenta o olhar porque sabe que fez o que tinha de
ser feito e não sente culpa. Manzanillo trabalhava com outro
manipulador de motosserras a quem chamavam Enci, porque era
como uma enciclopédia. Sabia o significado de palavras difíceis, nos
descansos, sempre estava lendo um livro, e quando, no início, riam
dele, contava a sinopse do que estava lendo e todos escutavam
fascinados. Enci e Manzanillo eram como irmãos. Moravam no
mesmo bairro, as mulheres e os filhos eram amigos. Chegavam
juntos ao trabalho e formavam uma ótima equipe. Mas Enci
começou a mudar. Pouco a pouco. No início, só ele percebeu.
Estava mais calado. Nos descansos, ficava observando o gado nas
jaulas de repouso. Perdeu peso. Tinha olheiras. Começou a se
demorar no corte das peças. Adoecia e faltava ao trabalho. Um dia,
ele o encarou e perguntou o que estava acontecendo, mas Enci
respondeu que nada. No dia seguinte, parecia que tudo tinha
voltado ao normal e, durante algum tempo, ele pensou que estava
bem. Até que, uma tarde, Enci avisou que tiraria um descanso, mas
levou com ele a motosserra sem que ninguém percebesse. Foi até
as jaulas de repouso e começou a abri-las. Qualquer operário que
se aproximava era ameaçado com a motosserra. Algumas das
cabeças escaparam, mas a maioria permaneceu nas jaulas.
Estavam confusas e aterrorizadas. Enci gritava para elas: “Vocês
não são animais. Vão matar vocês. Corram. Precisam escapar”,
como se as cabeças pudessem entender o que ele dizia. Alguém
conseguiu golpeá-lo com uma marreta e ele caiu inconsciente. Sua
ação subversiva só atrasou o abate por algumas horas. Os únicos
beneficiados foram os empregados, que conseguiram descansar
das tarefas e se distrair com a interrupção. As cabeças que
escaparam não chegaram longe e foram devolvidas às jaulas.
Teve que demitir Enci, pois alguém que se quebra não pode ser
consertado. No entanto, conversou com Krieg para lhe dar
assistência e subsidiar atendimento psicológico, mas, um mês
depois, Enci se matou com um tiro. A mulher e os filhos tiveram de
sair do bairro e, desde esse dia, Manzanillo olha para ele com
verdadeiro ódio. Ele o respeita por isso. Ficará preocupado quando
ele parar de observá-lo, quando o ódio não sustentá-lo mais. Porque
o ódio dá forças para seguir adiante, mantém a estrutura frágil,
entrelaça as linhas para que o vazio não tome conta de tudo. Ele
gostaria de poder odiar alguém pela morte de seu filho. Mas a quem
pode culpar por uma morte súbita? Tentou odiar Deus, mas ele não
acredita em Deus. Tentou odiar a humanidade toda por ser tão frágil
e efêmera, mas não conseguiu sustentar o ódio, pois odiar a todos é
o mesmo que odiar a ninguém. Também gostaria de se quebrar
como Enci, mas seu desmoronamento nunca chega a acontecer.
O outro está calado, com o rosto grudado na janela, observando
como cortam os corpos. Tem um sorriso que já não dissimula. Ele
gostaria de sentir isso. Gostaria de poder sentir felicidade, ou
excitação, quando decide promover um operário do posto de lavar o
sangue dos pisos para classificar e guardar órgãos em caixas. Ou
gostaria, pelo menos, de que tudo fosse indiferente para ele.
Observa melhor e vê que o outro tem um celular escondido na
jaqueta. Como é possível, se antes de entrar são revistados pelo
pessoal de segurança, que pedem os celulares e avisam que não
podem filmar nem tirar fotos? Aproxima-se e toma o celular, atira-o
ao chão e o quebra. Segura-o pelo braço com força e diz em seu
ouvido: “Não volte nunca mais. Vou mandar seus dados e sua foto
para todos os frigoríficos que conheço”. O outro se vira e em
nenhum momento há surpresa, nem vergonha, nem palavras. Olha
para ele descaradamente e sorri.
Leva os candidatos até a saída. Antes, chama o chefe de segurança
e pede que leve o outro. Explica o que aconteceu e o chefe de
segurança diz para ficar tranquilo, que cuidará dele. Ele diz que
depois precisam conversar, que isso não poderia ter acontecido.
Toma nota mental para conversar com Krieg. A terceirização da
segurança foi um erro, já dissera, mas terá de dizer outra vez.
O outro já não sorri, porém tampouco resiste quando o levam.
Despede-se do mais alto com um aperto de mãos e diz:
“Entraremos em contato”. O mais alto agradece sem muita
convicção. Acontece sempre, pensa, mas outra reação soaria
estranha.
Ninguém realmente lúcido ficaria feliz em fazer esse trabalho.
Fuma do lado de fora antes de subir para entregar os relatórios a
Krieg. Seu celular toca. Atende dizendo “Oi, Graciela” sem olhar a
tela, porém do outro lado há um silêncio grave, intenso. Sabe,
então, que é Cecilia.
— Olá, Marcos.
É a primeira vez que ela liga desde que foi para a casa da mãe.
Parece abatida.
— Olá.
Sabe que será uma conversa difícil. Dá outra tragada no cigarro.
— Como você está?
— Estou aqui no frigorífico. E você?
Ela demora a responder, demora muito.
— Sim, posso ver que você está aí.
Mas não está olhando para a tela. Permanece em silêncio por
alguns segundos e, sem olhar em seus olhos, diz:
— Mal, continuo mal. Acho que ainda não consigo voltar.
— Por que não me deixa te visitar?
— Preciso ficar sozinha.
— Estou com saudades.
As palavras são um buraco negro, um buraco que absorve
qualquer som, qualquer partícula, qualquer respiração. Ela não
responde. Ele diz:
— Aconteceu comigo também. Eu também o perdi.
Ela chora em silêncio. Cobre a tela com a mão e ele a ouve
sussurrar “não aguento mais”. Há um abismo, uma queda livre com
arestas. Ela passa o telefone para a mãe.
— Oi, Marcos. Ela está muito triste, desculpa.
— Tudo bem, Graciela.
— Logo estará melhor, beijo.
E desligam.
Ele permanece um tempo sentado. Os funcionários passam e
olham para ele, mas ninguém o incomoda. Essa é uma das áreas de
descanso, ao ar livre, onde é permitido fumar. Observa como as
copas das árvores se movem com o vento, aliviando-o do calor.
Gosta do ritmo, dos barulhos das folhas esbarrando entre si. São
poucas, quatro árvores no meio do nada, mas estão grudadas umas
nas outras.
Sabe que Cecilia nunca melhorará. Sabe que está quebrada,
seus pedaços não têm possibilidade de se unir.
A primeira coisa de que se lembra é do medicamento na
geladeira. De como o transportaram em um recipiente especial para
controlar a cadeia de frio, iludidos, muito endividados. Lembra-se da
primeira injeção que ela pediu que aplicasse em sua barriga. Ela
tinha aplicado milhões, bilhões de injeções, mas queria que ele
inaugurasse esse ritual, a origem de tudo. A mão dele tremia um
pouco porque não queria que sentisse dor, mas ela dizia: “Vamos,
amor, aplique, vá com vontade, não tem problema”. Ela segurou
uma dobra de sua barriga e ele aplicou a injeção e ela sentiu dor,
sim, porque o medicamento estava frio e Cecilia sentia como
entrava em seu corpo, mas fingiu com um sorriso porque era o
começo da possibilidade, do futuro.
As palavras de Cecilia eram como um rio de luzes, um fluxo
aéreo, pareciam vaga-lumes resplandecentes. Ela dizia, quando
ainda não sabia que teriam de recorrer aos tratamentos, que queria
que seus filhos tivessem os olhos dele, mas com o nariz dela, a
boca dele, mas com o cabelo dela. Ele ria porque ela ria e, com o
riso dela, o pai e o asilo, o frigorífico e as cabeças, o sangue e os
golpes secos do atordoador sumiam.
Outra imagem que aparece como explosão é a cara de Cecilia
quando abriu o envelope e viu os resultados do exame
antimulleriano. Não compreendia, um valor tão baixo? E olhava o
papel sem poder dizer nada, até falar bem baixinho, “sou jovem,
deveria produzir mais óvulos”, disse perplexa porque ela, que era
enfermeira, sabia que a juventude não garantia nada. Olhou para
ele pedindo ajuda com os olhos e ele pegou o papel, dobrou-o e o
deixou na mesa e disse para não se preocupar, que tudo daria certo.
Ela começou a chorar, ele a abraçou e deu-lhe beijos na testa e no
rosto enquanto dizia “vai dar tudo certo”, embora soubesse que não
seria assim.
Depois vieram mais injeções, pílulas, óvulos de má qualidade,
banhos e telas com mulheres desnudas e a pressão de encher o
copo plástico, batizados que não foram, a pergunta “e aí, para
quando é o primeiro filho?” que se repetia até a exaustão, salas de
cirurgia onde não o deixaram entrar para segurar a mão dela, mais
dívidas, bebês de outros, dos que podiam ter, retenção de líquidos,
mudanças de humor, discussões sobre a possibilidade de adotar,
ligações do banco, aniversários infantis dos quais queriam escapar,
mais hormônios, o cansaço crônico e mais óvulos sem fertilizar,
choros, palavras ofensivas, dias das mães em silêncio, a esperança
de um embrião, a lista de nomes possíveis: Leonardo se fosse
homem, Aria se fosse mulher, testes de gravidez jogados no lixo
com impotência, brigas, a busca de uma doadora de óvulos, as
dúvidas sobre a identidade genética, cartas do banco, a espera,
medos, a aceitação de que maternidade não tem a ver com os
cromossomos, a hipoteca, a gravidez, o nascimento, a euforia, a
felicidade, a morte.
Volta tarde para casa.
Abre a porta do galpão. Vê a fêmea encolhida, dormindo. Troca
a água e repõe a comida. Ela acorda assustada pelo barulho da
ração balanceada caindo no prato metálico. Não se aproxima.
Observa-o atemorizada.
Pensa que precisa dar um banho nela, mas não agora, não hoje.
Hoje tem algo mais importante a fazer.
Sai do galpão e deixa a porta aberta. A fêmea segue-o devagar.
A corda a detém na porta do galpão.
Entra na casa e vai direto para o quarto do filho. Apanha o berço
e o deixa no meio da grama. Entra no galpão para buscar o
machado e a querosene. A fêmea permanece em pé, observando-o.
Fica paralisado ao lado do berço em meio à noite estrelada. As
luzes no céu, com toda essa beleza atroz, o esmagam. Entra na
casa e abre uma garrafa de uísque.
Fica ao lado do berço e não chora. Observa-o e toma da garrafa.
Primeiro usa o machado. Precisa destroçá-lo. Quebra-o enquanto se
lembra dos pezinhos de Leo em suas mãos, quando nasceu.
Depois joga querosene e acende um fósforo. Bebe mais. O céu
parece um oceano em silêncio.
Olha como os desenhos pintados à mão vão desaparecendo. O
urso e o pato abraçados se queimam, perdem a forma, evaporam.
Vê a fêmea observando-o. Parece fascinada pelo fogo. Entra no
galpão e a fêmea se encolhe, amedrontada. Fica de pé se
balançando. A fêmea treme. E se ele também destroçá-la? É sua,
pode fazer o que quiser. Pode matá-la, pode abatê-la, pode fazê-la
sofrer. Ele pega o machado, olha para ela em silêncio. Essa fêmea é
um problema. Levanta o machado. Aproxima-se e corta a corda.
Sai e fica deitado na grama sob o silêncio daquelas luzes no céu,
milhões, geladas, mortas. O céu é de vidro, um vidro opaco e sólido.
A lua parece um Deus estranho.
Já não se importa que a fêmea escape. Já não se importa que
Cecilia volte.
A última coisa que vê é a porta do galpão e a fêmea, aquela
mulher, que o observa. Parece chorar. Mas ela não pode entender o
que está acontecendo, não sabe o que é um berço. Não sabe de
nada.
Quando restam apenas brasas, ele já está adormecido na
grama.
Abre os olhos, mas volta a fechá-los. A luz o fere. Sua cabeça dói.
Está com calor. Sente pontadas na têmpora direita. Permanece
quieto, tentando se lembrar por que está fora de casa. Uma imagem
difusa vem à sua mente. Uma pedra no peito. Essa é a imagem. É o
sonho que teve. Senta-se com os olhos ainda fechados. Tenta abri-
los, mas não consegue. Apoia a cabeça nos joelhos e os abraça.
Permanece quieto por alguns segundos. Sua mente está em branco,
até que se lembra do sonho com clareza aterrorizante.
Entra nu em um quarto vazio. As paredes estão manchadas de
umidade e de algo marrom que parece sangue. O piso está sujo e
quebrado. O pai está em um canto, sentado em um banco de
madeira. Está nu e olha para o chão. Ele tenta se aproximar, mas
não consegue se mexer. Tenta chamá-lo, mas não consegue falar.
No outro canto há um lobo comendo carne. A cada olhar seu, o lobo
levanta a cabeça e rosna, mostrando-lhe os dentes. O que o lobo
está comendo se mexe, está vivo. Observa melhor. É seu filho, que
chora sem emitir som algum. Desespera-se. Quer salvá-lo, mas está
imóvel, mudo. Tenta gritar. O pai se levanta e caminha em círculos
pelo quarto, sem olhar para ele, sem olhar para o neto sendo
despedaçado pelo lobo. Ele chora sem lágrimas, grita, quer sair do
corpo, mas não consegue. Um homem aparece com uma
motosserra. Poderia ser Manzanillo, porém não consegue ver seu
rosto. Está borrado. Há uma luz, um sol suspenso no teto. O sol se
move, formando uma elipse de luz amarela. Deixa de pensar no
filho, como se nunca tivesse existido. O homem que poderia ser
Manzanillo corta seu peito. Abre-o. Ele não sente nada. Examina se
o trabalho foi bem feito. Estende a mão para parabenizá-lo. Sergio
entra e observa-o com atenção. Parece bem concentrado. Não fala
com ele, agacha-se e enfia a mão em seu peito. Vasculha, move os
dedos, remexe. Arranca-lhe o coração. Come um pedaço. O sangue
escorre da boca. O coração continua batendo, mas Sergio o atira no
chão. Enquanto o esmaga, diz-lhe ao ouvido: “Não há nada pior do
que não poder enxergar a si mesmo”. Cecilia entra no quarto com
uma pedra preta. Tem o rosto de Spanel, mas ele sabe que é
Cecilia. Sorri. O sol se move mais rápido. A elipse aumenta. A pedra
brilha. Pulsa. O lobo uiva. O pai senta-se olhando para o chão.
Cecilia abre mais seu peito e deposita ali a pedra. Ela dá meia-volta,
ele não quer que se vá. Tenta chamá-la, mas não consegue. Cecilia
olha para ele com felicidade, agarra uma marreta e o atordoa, bem
no centro da testa. Ele cai, mas o chão se abre e continua caindo
porque a pedra do peito o afunda em um abismo branco.
Levanta a cabeça e abre os olhos. Volta a fechá-los. Nunca se
lembra dos sonhos, não com tanta clareza. Cruza as mãos na nuca.
Foi apenas um sonho, pensa, mas é atravessado por uma sensação
de insegurança. Um medo arcaico.
Olha para o lado e vê as cinzas do berço. Olha para o outro lado
e vê a fêmea deitada bem perto de seu corpo. Levanta-se em
sobressalto, mas se desequilibra e volta a sentar-se. O que eu fiz?
Por que está solta? Por que não escapou? O que faz dormindo a
meu lado?
Dorme encolhida. Parece tranquila. A pele branca da fêmea
brilha com o sol. Vai tocá-la, quer tocá-la, mas a fêmea treme um
pouco, como se estivesse sonhando, e ele retira a mão. Olha a testa
dela, marcada a fogo. O símbolo de propriedade, de valor.
Olha o cabelo liso que ainda não foi cortado e vendido. É longo e
está sujo.
Há uma certa pureza nesse ser impossibilitado de falar, pensa,
enquanto com um dedo percorre o contorno do ombro, de um braço,
do quadril, das pernas até chegar aos pés. Não a toca. O dedo está
a um centímetro da pele, a um centímetro das siglas PGP
espalhadas pelo corpo todo. É belíssima, pensa, mas tem uma
beleza inútil. Não é porque é bela que será mais saborosa. Não se
surpreende com esse pensamento, nem sequer se fixa nele. É o
que pensa sempre que se depara com uma cabeça que chama sua
atenção no frigorífico. Alguma fêmea que se destaca dentre as
tantas que passam por lá todos os dias.
Deita-se a seu lado, bem perto, sem encostar nela. Sente o calor
do corpo, a respiração lenta, pausada. Aproxima-se mais um pouco.
Respira no ritmo dela. Lento, mais lento. Sente seu cheiro. É forte
porque está suja, mas ele gosta, parece o cheiro inebriante do
jasmim, selvagem e agudo, alegre. Sua respiração se acelera. Algo
o excita, essa proximidade, essa possibilidade.
Levanta-se de repente. A fêmea acorda assustada e olha para
ele confusa. Ele a segura pelo braço e a leva, sem violência, mas
decidido, para o galpão. Fecha a porta e vai até a casa. Toma um
banho rápido, escova os dentes, se troca, toma duas aspirinas e
entra no carro.
Hoje é seu dia de descanso, porém dirige até a cidade, sem
pensar, sem parar.
Chega ao açougue Spanel. É muito cedo e ainda não está
aberto. Mas sabe que ela dorme ali. Toca a campainha e o Cachorro
o atende. Empurra-o sem cumprimentá-lo e vai direto para o quarto
de trás. Fecha a porta. Tranca-a.
Spanel está de pé ao lado da mesa de madeira, bem tranquila,
como se estivesse esperando-o. Não parece surpresa. Sustenta
uma faca com que corta um braço pendurado em um gancho.
Parece muito fresco, como se tivesse sido arrancado de alguém há
pouco. Não é um braço de frigorífico porque ainda sangra e tem
pele. A mesa tem sangue, o piso também. As gotas caem,
lentamente. Um charco está se formando e o som das gotas que
caem da mesa, pingando no piso, é a única coisa que se escuta.
Aproxima-se. Parece que vai dizer algo, mas afunda uma das
mãos no cabelo de Spanel e a agarra pela nuca. Segura-a com
força e a beija. No início, o beijo é voraz, colérico. Ela tenta se opor,
mas só um pouco. Ele arranca seu avental manchado de sangue e a
beija de novo. Beija-a como se quisesse quebrá-la, mas o faz bem
devagar. Desabotoa sua camisa enquanto beija seu pescoço. Ela se
contorce, treme, mas não emite nenhum ruído. Ele a vira,
empurrando-a contra a mesa. Abaixa suas calças e afasta a
calcinha. Ela respira com força, esperando, mas ele decide que a
fará sofrer, que quer entrar aí, por trás do frio, das palavras
cortantes. Spanel olha para ele pedindo, quase rogando, porém ele
a ignora. Anda até o outro extremo da mesa, segura-a pelo cabelo e
a obriga a abrir o zíper de sua calça jeans com a boca. O sangue
que pinga do braço cai bem perto da borda da mesa, entre os lábios
dela e a virilha dele. Tira as botas, depois a calça jeans e, por
último, a camisa. Fica nu. Aproxima-se da borda da mesa. Mancha-
se com o sangue. Ele indica a ela onde tem que limpar, ali onde a
carne está dura. Ela obedece e lambe. Com cuidado, no início,
depois com desespero, como se o sangue que mancha tudo fosse
pouco e precisasse de mais. Ele puxa seu cabelo com mais força e
faz um gesto para que faça mais devagar. Ela obedece.
Ele quer que ela grite, que a pele deixe de ser um mar imóvel e
vazio, que as palavras se quebrem, se dissolvam.
Anda até o outro extremo da mesa. Tira a calça dela, arranca a
calcinha e abre suas pernas. Escuta um barulho e vê o Cachorro
observando da janela da porta. Acha justo que ele faça seu papel de
animal fiel, de escravo dócil protegendo sua dona. Desfruta desse
olhar cego, da possibilidade de que o Cachorro o ataque de uma
vez por todas.
Dá uma única estocada, exata. Ela fica em silêncio, treme, se
controla. O sangue continua gotejando da mesa.
O Cachorro quer abrir a porta. Está trancada. Ele consegue ver a
raiva dele, sente-a no ar. Vê os dentes nos olhos. Deleita-se com o
desespero do Cachorro e, sem parar de olhar para ele, puxa o
cabelo de Spanel. Ela, em silêncio, arranha a mesa e suas unhas se
mancham de sangue.
Vira-a e se distancia alguns passos. Observa-a. Senta-se em
uma cadeira. Spanel se aproxima e para bem em cima de suas
pernas. No entanto, ele se levanta de repente, derruba a cadeira
pelo impulso, levanta-a e a esmaga com seu corpo contra uma das
portas de vidro. Atrás dela há mãos, pés, um cérebro. Ela o beija
angustiada, solene.
Spanel abraça a cintura dele com as pernas e, com as mãos,
segura seu pescoço. Ele a aperta contra o vidro, mais um pouco.
Penetra-a, agarra-lhe o rosto e a olha diretamente nos olhos. Mexe-
se devagar sem deixar de olhar nos olhos dela. Ela se desespera,
mexe a cabeça, quer se soltar, mas ele não deixa. Ele sente sua
respiração entrecortada, quase agonizante. Quando ela para de se
contorcer, a acaricia e a beija e continua se movendo lentamente.
Então Spanel grita, grita como se o mundo não existisse, grita como
se as palavras se partissem ao meio e perdessem todo o seu
significado, grita como se, abaixo do inferno, existisse outro inferno,
de onde não quer escapar.
Veste-se enquanto Spanel, nua, fuma um cigarro sentada na
cadeira. Sorri, mostrando todos os dentes.
O Cachorro continua observando da janela da porta. Spanel
sabe que ele está do outro lado, mas o ignora.
Ele vai embora sem se despedir.
Entra no carro. Acende um cigarro. O celular toca quando ia ligar o
carro. É sua irmã.
— Oi.
— Olá, Marcos, onde você está? Estou vendo prédios. Você está
na cidade?
— Sim, vim cuidar de uns trâmites.
— Venha almoçar em casa, então.
— Não, preciso ir ao trabalho.
— Marcos, eu sei perfeitamente que hoje é seu dia de folga, foi o
que me disse a senhora que me atendeu, quando liguei para o
frigorífico. Não vejo você há muito tempo.
Ele prefere isso a voltar para sua casa onde a fêmea está.
— Está bem, eu vou.
— Vou preparar para você uns rins especiais marinados no limão
com ervas, de lamber os beiços.
— Não estou comendo carne, Marisa.
A irmã olha com estranheza e com certa suspeita.
— Você não virou um desses veganoides, não é?
— É uma questão de saúde, indicação médica. Por um tempo
só.
— O que aconteceu? Não me assuste, Marcos.
— Nada grave. Meu colesterol está um pouco alto, só isso.
— Bom, vou inventar alguma coisa, mas venha que eu quero te
ver.
Não é uma questão de saúde. Desde que o filho faleceu, não
voltou a comer carne.
A perspectiva de ver a irmã o deixa angustiado de antemão. É
um trâmite que precisa fazer quando não tem mais escolha. Ele não
sabe quem é sua irmã, não realmente.
Dirige devagar pela cidade. Há pessoas, mas é uma cidade que
parece deserta. Não apenas porque a população se reduziu, mas
também porque desde que não existem mais animais há um silêncio
que ninguém escuta, mas que está aí, o tempo todo, retumbando.
Essa estridência silenciosa se vê nos rostos, nos gestos, na forma
em que se olham uns aos outros. Parece que todos vivem detidos,
como se esperassem o pesadelo acabar.
Chega à casa da irmã. Desce do carro e toca a campainha com
alguma resignação.
— Oi, Marquitos!
As palavras de sua irmã são como caixas repletas de papéis em
branco. Ela o abraça de leve e rapidamente.
— Me dê seu guarda-chuva.
— Não tenho.
— Você está maluco? Como não tem?
— Não, não tenho. Moro no meio do campo e não acontece
nada com os pássaros, Marisa. Só as pessoas da cidade vivem
paranoicas.
— Entre logo, vamos.
A irmã o empurra olhando para os lados. Está preocupada com a
ideia de que os vizinhos vejam seu irmão sem guarda-chuva.
Ele sabe que terá de seguir o ritual que consiste em falar de
frivolidades, em que Marisa insinue que não pode se ocupar do pai,
em que ele responda que não precisa se preocupar, em ver dois
estranhos que são os sobrinhos e em que ela acalme sua culpa por
mais seis meses, até tudo se repetir.
Dirigem-se até a cozinha.
— Como você está, Marquitos?
Odeia que ela o chame de Marquitos. Usa o diminutivo para
expressar uma parcela de carinho que não sente.
— Bem.
— Melhor?
Ela olha para ele com certa pena e condescendência, a única
forma de olhá-lo desde que o filho falecera.
Ele não responde. Limita-se a acender um cigarro.
— Desculpa, mas aqui não dá, viu? A casa fica com cheiro ruim.
As palavras de sua irmã se acumulam umas sobre as outras
como arquivos que sustentam arquivos, que estão dentro de
arquivos. Apaga o cigarro.
Quer ir embora.
— A comida está pronta. Estou esperando que Esteban
confirme.
Esteban é o marido. Lembra-se dele sempre encurvado e com o
rosto cheio de contradições que tenta esconder com um sorriso de
canto. Ele acha que é um homem preso nas circunstâncias, com
uma mulher que é a cara da simplicidade e com uma vida que se
arrepende de ter escolhido.
— Que pena! Esteban acaba de responder que não virá, está
com muito trabalho.
— Claro.
— As crianças estão quase chegando da escola.
As crianças são seus dois sobrinhos. Ele acredita que ela nunca
teve interesse pela maternidade, que os teve porque ter filhos é um
dos projetos que fazem parte do desenvolvimento natural da vida,
da mesma forma que fazer uma festa de debutante, casar-se,
reformar a casa e comer carne.
Ele não responde. Não tem interesse em vê-los. Ela serve
limonada com hortelã e coloca um pires debaixo do copo. Ele toma
um gole e abandona o copo. A limonada tem gosto artificial.
— Como você está, Marquitos? De verdade.
Toca levemente a mão dele e inclina a cabeça reprimindo seu
pesar, porém não o suficiente para que se dê conta do que ela está
sentindo. Ele olha os dedos sobre sua mão e pensa que alguns
segundos antes, essa mão estava agarrando a nuca de Spanel.
— Bem.
— Como pode ser que você não use guarda-chuva?
Ele suspira levemente e pensa que, outra vez, será a mesma
discussão de todos os anos.
— Não preciso. Ninguém precisa.
— Todos precisam. Há regiões onde não foram construídos os
tetos protetores. Você quer morrer?
— Marisa, você pensa mesmo que, se um pássaro cagar na sua
cabeça, você morre?
— Sim.
— Repito, Marisa: no campo, no frigorífico, ninguém usa guarda-
chuva, ninguém acha isso. Não seria mais lógico pensar que, se um
mosquito te pica, e tivesse antes picado um animal, você não
poderia contrair o vírus?
— Não, porque o governo disse que não há perigo com os
mosquitos.
— O governo quer manipular você, ele existe só para isso.
— Aqui todo mundo usa o guarda-chuva. É o mais lógico.
— Não pensou que, talvez, a indústria do guarda-chuva tenha
visto uma oportunidade e fez um acordo com o governo?
— Sempre pensando em conspirações que não existem.
Ela bate o pé no chão. Suave, quase não se ouve o ruído, porém
ele a conhece e sabe que esse é o limite dela para manter uma
discussão, sobretudo porque não tem pensamento independente, e,
portanto, não pode sustentar nenhum argumento.
— Não vamos brigar, Marquitos.
— Não, certo.
Com os dedos, ela abre uma tela virtual na mesa da cozinha. No
menu aparece uma foto dos filhos. Toca nela e se abre uma janela
na qual se pode ver os filhos, quase adolescentes, andando na rua
com um guarda-chuva de ar.
— Quanto falta?
— Estamos chegando.
Fecha a tela virtual e olha para ele impaciente. Não sabe o que
falar.
— Eles ganharam esses guarda-chuvas dos avós, nem imagina
o quanto eles os mimam. Faz anos que vinham pedindo, mas são
tão caros. Que ideia é essa de fazer um guarda-chuva com
propulsão de ar? Mas estão felizes, todos os colegas têm inveja
deles.
Ele não responde e olha um quadro que projeta imagens,
pendurado na cozinha. São naturezas-mortas de má qualidade.
Frutas em cestas, laranjas apoiadas em uma mesa, desenhos
seriados sem autoria. Perto do quadro, ele vê uma barata que anda
pela parede. A barata desce até o balcão e desaparece atrás de um
prato com pão.
— As crianças estão encantadas com um jogo virtual que
ganharam dos avós. Chama-se “Meu bichinho virtual”.
Ele não pergunta nada. As palavras da irmã têm cheiro de
umidade estagnada, de confinamento, de frio compactado. Ela
continua falando.
— Dá para criar o próprio animal de estimação e acariciá-la de
verdade, brincar com ela, dar de comer. Minha mascote se chama
Mishi, é um gato branco angorá. Mas é filhote, porque não quero
que cresça. Eu gosto dos gatos bebês, como todos.
Ele nunca gostou de gatos. Tampouco dos gatos bebês. Toma
um pouco de limonada, dissimula o nojo que lhe causa e olha como
passam as naturezas-mortas. Uma das imagens pisca e se pixela. O
quadro fica preto.
— As crianças criaram um dragão e um unicórnio. Mas, já
sabemos que, daqui a pouco, vão se entediar, como aconteceu com
Boby, o cachorro robô que compramos. Poupamos durante tanto
tempo para dar esse presente a eles e se cansaram em poucos
meses. Boby está na garagem, desligado. Muito bem feito, por sinal,
mas não é o mesmo que um cachorro de verdade.
Sua irmã sempre dá a entender que eles não têm dinheiro, que
vivem de forma austera. Porém, ele sabe que não é verdade, apesar
de o assunto não o interessar, tampouco guarda rancor porque ela
não contribui com um centavo para os cuidados do pai.
— Fiz uma salada morna de verduras e arroz. Pode ser?
— Sim.
Ele percebe que perto da lavanderia há uma porta de que não se
lembrava. É o tipo de porta usada nas casas que criam cabeças. Dá
para ver que é nova, que ainda não foi estreada. Atrás da porta há
um quarto refrigerado. Agora entende por que a irmã o convidou. Vai
pedir a ele que consiga cabeças mais baratas para criar.
Escutam ruídos vindos da rua e seus sobrinhos entram.
Os sobrinhos são gêmeos. Uma menina e um menino. Quase não
falam, mas, quando o fazem, comunicam-se entre si com sussurros,
com códigos secretos e subentendidos. Ele os observa como se
fossem um animal estranho de duas partes separadas, mas
ativados por uma só mente. Sua irmã teima em chamá-los de “as
crianças”, quando todo o mundo os chama de “os gêmeos”. A irmã e
suas regras idiotas.
Os gêmeos sentam-se à mesa da sala sem cumprimentá-lo.
— Deram oi para o tio Marquitos?
Ele se levanta da mesa da cozinha e anda com passos lentos
até a mesa da sala. Deseja acabar o quanto antes o trâmite da visita
obrigatória.
— Oi, tio Marquitos.
Falam em uníssono, de forma mecânica, imitando um robô.
Contêm o riso, dá para ver em seus olhos. Ficam observando-o,
sem pestanejar, esperando que ele reaja. Porém, ele senta-se na
cadeira e serve-se com água, sem dar-lhes atenção.
A irmã serve a comida sem perceber nada. Tira seu copo com
água e deixa o de limonada. “Esqueceu o copo na cozinha,
Marquitos. Fiz a limonada especialmente para você.”
Seus sobrinhos não são idênticos, mas essa união encapsulada,
enferrujada, dá a eles um ar perturbador. Os gestos inconscientes
duplicados, o olhar idêntico, os silêncios compactuados geram
desconforto. Ele sabe que eles têm uma linguagem secreta, algo
que provavelmente nem a irmã saiba. Essas palavras que só eles
entendem transformam os outros em estrangeiros, desconhecidos,
analfabetos. Também os filhos de sua irmã são um clichê: os
gêmeos sinistros.
A irmã lhe serve a comida sem carne. Está fria. Não tem sabor.
— Está gostosa?
— Sim.
Os gêmeos comem os rins especiais ao limão com ervas, com
batatas à provençal e ervilhas. Saboreiam a carne enquanto o
olham com curiosidade. O menino, Estebancito, faz um gesto a
Maru, a menina. Ele sempre ri quando pensa no dilema catastrófico
que teria sido para sua irmã se fosse mãe de duas meninas ou dois
meninos. Dar o mesmo nome dos pais aos filhos significa roubar-
lhes a identidade, lembrar-lhes a quem pertencem.
Os gêmeos riem, trocam sinais, sussurram. Os dois têm o cabelo
oleoso ou sujo.
— Crianças, por favor, estamos comendo com o tio. Não sejam
mal-educados. Combinamos com o papai que na mesa não se
sussurra, se conversa como adultos, não é?
Estebancito olha para ele com um brilho nos olhos, um brilho
repleto de palavras como bosques quebrados e silenciados. Porém,
quem fala é Maru:
— Estamos adivinhando o sabor do tio Marquitos.
A irmã segura a faca que usa para comer e a enterra na mesa. O
ruído é furioso, veloz. A irmã diz: “Chega”. Fala devagar, medindo a
palavra, controlando-a. Os gêmeos olham para ela surpresos. Ele
nunca viu uma reação parecida vindo dela. Observa-a em silêncio.
Mastiga um pouco de arroz frio, sentindo tristeza por toda essa
cena.
— Estou cansada dessa brincadeira. Não se comem pessoas.
Ou vocês são selvagens?
Faz a pergunta gritando. Olha a faca enterrada na mesa e vai
correndo ao banheiro, como se despertasse de um transe.
Maru, ou Marisita, como sua irmã a chama, olha o pedaço de rim
especial que está por levar à boca e ensaia um sorriso enquanto
pisca para o irmão. As palavras de sua sobrinha são como vidros
que se derretem por um calor intenso, como corvos que arrancam
os olhos um dos outros em câmera lenta.
— A mamãe está doidinha.
Diz com uma voz de criança, fazendo bico e movendo o
indicador em círculos à altura da têmpora. Estebancito olha para ela
e ri. Tudo lhe parece engraçado. Diz:
— A brincadeira se chama “Cadáver Delicioso”,[1] quer brincar?
A irmã volta. Olha para ele envergonhada e com resignação.
— Desculpe. É uma brincadeira que está na moda e eles não
entendem que é proibido brincar disso.
Toma um pouco de água. Continua falando como se ele tivesse
interesse em receber uma explicação que não pediu.
— O problema são as redes e os grupinhos virtuais, é daí que
surgem essas coisas. Você vive desconectado, por isso não
entende nada.
Percebe que a faca ainda está enterrada na mesa. Tira-a
rapidamente, como se nada tivesse acontecido, como se sua reação
não tivesse sido desproporcional.
Ele sabe que, se se levantar e for embora, terá de repetir a visita
em breve, pois a irmã vai convidá-lo quantas vezes forem
necessárias para pedir desculpas. Limita-se a responder:
— Acho que Estebancito tem gosto de ranço, parecido com um
porco engordado por muito tempo, e Maru deve ter um gosto
parecido com o salmão, um pouco forte, mas gostoso.
Os gêmeos se olham sem entender. Eles nunca provaram porco
nem salmão. Depois sorriem achando graça. A irmã olha para ele e
não diz nada, só consegue tomar mais água e comer. As palavras
se atolam nela, como se estivessem dentro de sacolas plásticas
comprimidas.
— Me fale, Marquitos, vocês vendem cabeças para particulares,
para alguém como eu?
Ele come o que acha que são verduras. Não distingue o que está
comendo, nem pela cor nem pelo sabor. Sente um cheiro azedo no
ar. Não sabe se é da comida ou se é o cheiro da casa.
— Você está me ouvindo?
Olha para ela durante alguns segundos sem responder. Pensa
que, desde que ele chegou, ela não perguntou pelo pai.
— Não.
— A moça do frigorífico disse outra coisa.
Ele decide que é o momento de acabar a visita.
— O papai está bem, viu, Marisa?
Ela abaixa o olhar e sabe que é sinal de que seu irmão já teve o
suficiente.
— Que alegria.
— Sim, uma alegria.
Porém, ele decide ir além, pois ela ultrapassou o limite quando
decidiu ligar para seu trabalho e perguntar coisas que não devia.
— Teve um episódio há pouco.
A irmã deixa o talher no ar, no meio do caminho, como se a
surpresa fosse real.
— Sério?
— Sim, está controlado, mas acontece de vez em quando.
— Certo, certo.
Ele aponta com o garfo para os sobrinhos e diz, elevando a voz:
— As crianças, os netos dele, alguma vez o visitaram?
A irmã olha para ele surpresa e com fúria reprimida. O contrato
tácito não inclui a humilhar, e ele sempre o respeitou. Até esse dia.
— Com o colégio, as lições, a distância, fica muito complicado.
Além disso, tem o toque de recolher.
Maru vai dizer algo, porém a mãe toca sua mão e continua
falando.
— Pense que eles estão estudando na melhor escola, uma
escola de excelência, pública, lógico, porque as privadas são
caríssimas. Mas, se não atingirem o nível, terão que trocar de
escola, para uma paga, um gasto com que não podemos arcar.
As palavras da irmã são como folhas secas amontoadas em um
canto, apodrecendo.
— Claro, Marisa. Mando lembranças da parte de todos vocês
para o papai, o que acha?
Ele se levanta e sorri para os sobrinhos, mas não os
cumprimenta.
Maru olha para ele desafiante. Come um bocado de rim especial
e fala com a boca cheia e quase gritando:
— Eu quero visitar o vovô, mamãe.
Estebancito olha para ela com graça e responde:
— Vamos, mãe, vamos, vamos.
A irmã olha para eles confusa, não capta a crueldade do pedido,
não percebe as gargalhadas reprimidas.
— Bom, está bem, pode ser.
Ele sabe que não os verá por muito tempo e sabe que, se
cortasse um braço de cada um e os comesse nesse momento sobre
a mesa de madeira, o sabor seria exatamente o que previu. Olha
direto em seus olhos. Primeiro para Maru, depois para Estebancito.
Olha-os como se os saboreasse. Eles se assustam e abaixam o
olhar.
Anda em direção à porta. A irmã abre-a e o cumprimenta com
um beijo rápido.
— Que bom te ver, Marquitos. Tome aqui esse guarda-chuva,
faça o favor.
Ele abre o guarda-chuva e vai embora sem responder. Antes de
chegar ao carro, vê uma lixeira. Joga o guarda-chuva aberto. A irmã
observa-o da porta, fecha-a enquanto abaixa a cabeça.
Ele dirige até o zoológico abandonado.
Os almoços com a irmã sempre o deixam alterado. Não o
suficiente para que deixe de ir; porém, depois de vê-la, precisa de
tranquilidade para entender por que essa pessoa que faz parte de
sua família é assim, por que tem aqueles filhos, por que nunca
gostou dele e do pai.
Anda lentamente entre as jaulas dos macacos. Estão quebradas.
As árvores, que haviam sido plantadas lá dentro, estão secas. Lê
um dos cartazes com letras desbotadas:
Bugio-preto
Alouatta caraya
Classe: Mamíferos
Ao lado da palavra “Mamíferos” há um desenho obsceno.
Ordem: Primatas
Família: Atelidae (Cebidae)
Habitat: Bosques.
Adaptação: As fêmeas têm uma pelagem dourada ou
amarelada, enquanto o macho
As palavras que seguem estão apagadas.
Possuem um sistema especial para a produção de sons. Têm
um desenvolvimento elevado da laringe e, especialmente, do
osso hioide, formando uma grande cápsula que amplifica
suas vocalizações.
Alimentação: Plantas, insetos e frutas.
Status de conservação: Não ameaçado.
A frase “Não ameaçado” está riscada com uma cruz.
Distribuição: Região central da América do Sul. Do leste da
Bolívia e o sul do Brasil até o norte da Argentina e do
Paraguai.
Há uma foto do bugio-preto macho. Tem o rosto contorcido, como se
a câmera tivesse captado o momento em que foi capturado. Alguém
desenhou um círculo vermelho com uma cruz no centro.
Entra em uma das jaulas. A grama está crescida entre o
concreto, há cigarros e seringas no chão. Encontra ossos. Pensa
que podem ser do macaco ou não. Podem ser de qualquer um.
Sai da jaula e anda entre as árvores. Está quente e o céu está
limpo. As árvores dão a ele um pouco de sombra. Ele transpira.
Depara-se com uma loja de lembrancinhas. Introduz a cabeça no
buraco da porta. Encontra latas, papéis, sujeira. Entra e lê a lista de
produtos pintada na parede: leão Simba de pelúcia, girafa Rita de
pelúcia, elefante Dumbo de pelúcia, copo do reino animal, estojo do
macaco-esquilo. Há grafites nas paredes brancas, frases, desenhos.
Alguém escreveu “sinto saudades dos animais” com letra apertada e
pequena. Outro a riscou e escreveu: “Tomara que você morra,
imbecil”.
Sai da lojinha e acende um cigarro. Nunca passeia pelo
zoológico. Sempre vai direto para a jaula dos leões e permanece ali
sentado. Sabe que o zoológico é grande porque se lembra das
horas de passeio com seu pai.
Anda pelas piscinas vazias. São pequenas. Acha que ali ficavam
as lontras ou as focas. Não se lembra. Os cartazes foram
arrancados.
Enquanto anda, arregaça as mangas da camisa. Desabotoa
todos os botões e a deixa aberta, solta.
Mais adiante, avista jaulas enormes, altas, com cúpulas. Lembra-
se do aviário. Os pássaros coloridos voando, o estalo das plumas, o
aroma denso e frágil. Chega às jaulas, mas é apenas uma, dividida
em partes. Dentro e sob uma cúpula de vidro, há uma grande ponte
flutuante pela qual os visitantes podiam andar dentro da jaula. As
portas estão quebradas. As árvores plantadas na jaula cresceram
até romper a cúpula de vidro do teto e da ponte. Caminha sobre
folhas e vidros quebrados. Sente-os ranger sob suas botas. Vê a
escada que dá acesso à ponte flutuante. Sobe. Decide atravessá-la.
Anda entre os galhos, salta-os, empurra-os. Em uma clareira, olha o
teto e vê a copa das árvores e uma das cúpulas, a do centro. É a
única que tem um vitral colorido com o desenho de um homem com
asas, voando perto do sol. Ele sabe que se trata de Ícaro e conhece
a história. As asas são coloridas e ele voa por um céu repleto de
pássaros, como se o acompanhassem, como se aquele humano
fosse um deles. Com um galho com folhas que estava jogado, limpa
um pouco o chão da ponte para se deitar e não se machucar com os
vidros. Algumas partes da cúpula estão quebradas, porém é a que
menos dano sofreu, porque é a mais alta, também a que se
encontra mais distante dos galhos das árvores que ainda não a
alcançaram.
Gostaria de poder ficar o dia todo deitado olhando o céu
multicolor. Teria gostado de mostrar esse aviário a seu filho, assim
vazio, quebrado. Lembra-se, como um golpe, das ligações de sua
irmã no dia em que Leo morreu. Falava somente com Cecilia como
se ela fosse a única que precisasse de conforto. No funeral,
enquanto chorava, abraçava seus filhos como se temesse que eles
também falecessem de morte súbita, como se a morte do bebê do
caixão pudesse ser contagiosa. Ele observava a todos como se o
mundo tivesse se afastado alguns metros, como se as pessoas que
o abraçavam estivessem atrás de um vidro esmerilhado. Não
conseguiu chorar, em momento algum, nem sequer quando viu o
pequeno ataúde branco descendo terra adentro. Ficou pensando
que teria gostado de um ataúde menos chamativo, que entendia que
era branco pela pureza da criança que estava dentro, mas,
realmente somos tão puros quando chegamos ao mundo? Pensou
em outras vidas, pensou que, talvez, em outra dimensão, em outro
planeta, em outra época poderia se encontrar com seu filho e vê-lo
crescer. E, enquanto pensava tudo aquilo e as pessoas jogavam
rosas sobre o caixão, sua irmã chorava como se aquele filho fosse
dela.
Tampouco chorou depois, quando acabou o funeral simulado
que, nessa época, ainda se fazia. Quando as pessoas foram
embora e eles ficaram sozinhos, os funcionários do cemitério
levantaram o caixão, limparam a terra e as flores que haviam sido
jogadas e o levaram para uma sala. Tiraram o corpo de seu filho do
ataúde branco e o puseram em um transparente. Os dois tiveram de
testemunhar como o bebê entrava, lentamente, no forno que o
cremaria. Cecilia desmaiou e a levaram para outra sala com
poltronas, preparada para momentos como aquele. Ele recebeu as
cinzas e assinou os papéis que atestavam que seu filho havia sido
cremado e que eles testemunharam essa cremação.
Sai do aviário. Passa por alguns brinquedos para crianças. O
escorregador está quebrado. Há uma gangorra sem um dos
assentos. O gira-gira em forma de pião ainda tem a cor verde,
porém desenharam umas suásticas no piso de madeira. Na caixa de
areia crescera grama e alguém colocou, no centro, uma cadeira
espatifada e a deixou ali apodrecendo. Dos balanços, só resta um.
Senta-se no balanço e acende um cigarro. As correntes ainda
podem sustentar seu peso. Balança-se com as pernas tocando o
chão, com movimentos leves. Depois, balança-se com mais força,
descolando os pés, e vê que no céu, lá longe, estão se formando
nuvens.
Tira a camisa e a amarra na cintura. Está quente.
Perto dos brinquedos, avista outra jaula. Aproxima-se e lê o
cartaz pendurado.
Cacatua-de-crista-amarela
Cacatua galerita
Classe: Aves
Ordem: Psittaciformes
Família: Cacatuidae
Alguém escreveu “Romina te amo” em letras vermelhas sobre a
descrição do habitat.
Adaptação: Os machos têm os olhos cor de café escuro e as
fêmeas, vermelhos. Durante o cortejo, o macho levanta a
crista e mexe a cabeça formando um oito enquanto vocaliza.
Ambos os pais têm a função de incubar e alimentar as crias.
Vivem em torno de quarenta anos, na vida silvestre, e em
torno de 65 em cativeiro (existe um recorde de mais de 120
anos).
O resto do cartaz está quebrado, jogado no chão, mas ele não se
abaixa para pegá-lo.
Anda até uma construção grande. O batente da porta está
queimado. Entra em um salão com janelões quebrados. Acredita
que ali havia um bar ou um restaurante. Há poltronas embutidas na
parede que não conseguiram arrancar. A maior parte das mesas já
não existe, mas restam duas que foram soldadas ao chão. Há uma
construção comprida que pode ter sido um balcão.
Vê um cartaz que diz “Serpentário” e uma seta. Caminha por
alguns corredores escuros e estreitos até chegar a um espaço maior
com janelões. Vê pintado na parede outro cartaz que diz
“Serpentário, aguardar na fila”. Entra em um quarto com o teto alto e
parcialmente quebrado. Pelos buracos do teto, dá para ver o céu.
Não há jaulas. As paredes estão divididas em compartimentos com
vidros. Ele acha que se chamam terrários. Os terrários têm vidros
pelos quais se observavam as serpentes. Alguns dos vidros estão
quebrados, outros sumiram completamente.
Senta-se no chão e busca um cigarro. Permanece observando
os grafites e desenhos. Um deles chama sua atenção. Desenharam
uma máscara, com bastante habilidade. Parece uma máscara
veneziana. Do lado, escreveram em letras grandes e pretas: “A
máscara da tranquilidade aparente, da placidez mundana, da alegria
pequena e brilhante de não saber quando isso que eu chamo de
pele será desgarrada, isso que eu chamo de boca perderá a carne
que a envolve, isso que eu chamo de olhos se deparará com o
silêncio preto de uma faca”. Não está assinado. Ninguém o apagou
nem desenhou em cima, mas ao redor escreveram e fizeram
desenhos. Lê algumas das frases: “mercado ilegal”, “desgarra isso
aqui”, “carne com nome e sobrenome, a mais gostosa!”, “alegria?,
pequena e brilhante? sério? LOL!”, “que belo poema!!”, “depois do
toque de recolher, podemos te comer”, “esse mundo é uma bosta”,
“YOLO”, “Ah, come de mim, come da minha carne/ ah, entre
canibais/ Ah, toma tempo para/ esmiuçar-me/ Ah, entre canibais/
Soda Stereo para sempre jamais”.
Está tentando se lembrar do significado de “YOLO”, quando
escuta um ruído. Fica quieto. É um choro bem fraco. Levanta-se e
caminha pelo serpentário até chegar a um dos janelões maiores.
Está intacto.
Quase não consegue distinguir nada. Há galhos secos no chão,
sujeira. Porém, vê uma figura se mexendo. De repente, vê uma
cabecinha se levantando. Tem o focinho preto e duas orelhas
marrons. Depois, distingue mais outra cabeça, e outra e outra.
Fica observando e pensando que está tendo uma alucinação.
Depois, sente o impulso de quebrar o vidro para tocá-los. De início,
não consegue entender como chegaram até ali, depois se dá conta
de que são três terrários conectados por portas, dois deles têm os
vidros quebrados. Não estão no nível do chão, por isso precisa subir
para poder entrar. Fica de quatro para conseguir passar pela porta
que conecta o maior dos terrários, o do meio, onde estão os filhotes.
A porta está aberta. O terrário é largo e bastante alto. Imagina que
ali teria estado uma anaconda, ou um píton. Os filhotes gemem,
estão assustados. Óbvio, pensa, nunca viram um humano em sua
vida. Anda de quatro com cuidado porque há pedras, folhas secas,
sujeira. Os filhotes estão embaixo de um galho que os cobre bem.
Galhos nos quais, talvez, alguma jiboia se enroscou, pensa. Estão
enrolados uns nos outros para se proteger e dar calor. Senta-se ao
lado, sem tocá-los, até que se acalmam. Depois, acaricia-os. São
quatro. Estão magros e sujos. Eles cheiram suas mãos. Levanta um
deles. É tão leve. O filhote treme. Depois, mexe-se desesperado.
Urina-se de medo. Os outros latem, gemem. Ele o abraça e o beija
até acalmá-lo. O filhote passa a língua por seu rosto. Ele ri e chora
em silêncio.
Com os filhotes, perde a noção do tempo. Brincam de atacá-lo.
Querem capturar os galhos que ele agita no ar. Mordiscam suas
mãos com os dentinhos, quase fazendo cócegas nele. Ele segura as
cabeças deles e as sacode com cuidado, como se sua mão fosse a
mandíbula de uma besta monstruosa que os persegue. Puxa-os
pelas caudas, levemente. Eles rosnam e latem. Lambem as mãos
dele. São quatro machos.
Dá nomes a eles: Jagger, Watts, Richards e Wood.
Os filhotes correm pelo terrário. Jagger morde a cauda de
Richards. Wood parece dormir, mas acorda de repente, pega um
dos galhos com a boca e o agita no ar. Watts o fareja, desconfiado.
Anda ao seu redor, fareja-o e late. Sobe em suas pernas com
movimentos torpes. Ele o ataca e Watts chora um pouco. Morde
suas mãos e mexe o rabo. Depois, Watts atira-se sobre Richards e
Jagger. Ataca-os, mas eles o perseguem.
Lembra-se de seus cachorros. Pugliese e Koko. Teve de
sacrificá-los, ainda que sabendo, suspeitando, que o vírus era uma
mentira fabricada pelas potências mundiais e legitimada pelo
governo e pela mídia. Se os abandonasse para não ter de matá-los,
temia que os torturassem. Se ficasse com eles, poderia ser muito
pior. Podiam torturá-los e os cachorros. Naquela época, vendiam-se
injeções preparadas para que os bichinhos não sofressem.
Vendiam-nas em todo lugar, até no supermercado. Enterrou-os
debaixo da maior árvore do terreno, a árvore em que, nas tardes de
muito calor, quando ele não tinha de trabalhar no frigorífico do pai,
se sentavam os três sob à sombra. Ele tomava cerveja e lia, eles
ficavam a seu lado. Levava junto um velho rádio portátil, do pai, e
escutava um programa de jazz instrumental. Gostava do ritual de
sintonizar a estação. De vez em quando, Pugliese se levantava e
saía correndo atrás de um pássaro. Koko apenas o observava,
sonolenta, e depois olhava para ele com um gesto que Marcos
sempre achou que significava “Pugliese está maluco, maluco de
pedra. Mas gostamos dele assim, doidinho”, e sempre acariciava
sua cabeça e dizia em voz baixa: “Taylor linda, minha Koko bonita”.
Porém, se o pai chegasse, Koko se transformava. Não conseguia
conter a alegria. Algo se acendia dentro dela, um motor adormecido,
e começava a pular, correr, mexer o rabo, latir. Quando via o pai,
não importava o quanto estivesse longe, saía correndo e se atirava
em cima dele. O pai sempre a recebia com um sorriso, abraçava-a e
pegava-a no colo. Ele percebia que o pai estava por chegar porque
Koko mexia a cauda de um jeito diferente, de um jeito reservado só
para o pai, que a encontrara na beira da estrada encolhida e suja,
com poucas semanas de vida, desidratada, à beira da morte. Esteve
com ela vinte e quatro horas, levava-a para o frigorífico, cuidava
dela até que Koko começou a reagir. Ele acha que o sacrifício de
Koko foi mais um dos motivos para a mente do pai colapsar.
De repente, os quatro filhotes ficam quietos, com as orelhas em
pé. Ele fica tenso. Em nenhum momento pensou no óbvio. Esses
filhotes têm mãe.
Escuta o rosnado. Olha através do vidro e vê dois cachorros
mostrando os dentes a ele. Demora menos de um segundo para
reagir. Nesse instante, pensa que gostaria de morrer ali, no terrário,
com aqueles filhotes. Que pelo menos seu corpo serviria de
alimento para que esses animais vivessem um pouco mais. Porém,
enxerga a imagem de seu pai no asilo e, com velocidade instintiva,
se arrasta até a porta por onde tinha entrado. Fecha-a de um golpe
e a tranca. Os cachorros já estão do outro lado, latindo, arranhando,
tentando entrar. Se deixasse a porta trancada e saísse pela outra,
pela que conecta o terrário contíguo, os filhotes morreriam. Se
abrisse a porta que acabava de fechar, essa que está segurando os
cachorros, não teria tempo de fugir antes de ser atacado. Porém, a
porta que dá acesso ao terrário contíguo está fechada. Tenta abri-la
e não consegue. Os filhotes gemem. Enrolam-se para se proteger.
Decide cobri-los com a camisa, ainda que saiba que é uma proteção
inútil. Deita-se no chão, em frente à porta por onde quer sair e
começa a chutá-la. Chuta várias vezes até que a porta cede.
Respira. Os cachorros latem e arranham com mais força. Assegura-
se de que a porta que dá ao terrário contíguo esteja completamente
aberta. Sabe que pode escapar por ali, porque o vidro está
quebrado. Escuta os grunhidos dos cachorros, que se intensificam.
Pensa que vieram outros ou que, a cada segundo, estão mais
raivosos.
Olha os filhotes, encolhidos, confusos, assomando suas
cabecinhas pelas bordas da camisa. Pega uma pedra mediana e a
encosta na porta trancada, por onde a matilha quer entrar. Depois a
destranca porque sabe que, provavelmente, os cachorros vão
empurrá-la, mas vai dar trabalho. Encontra outra pedra, um pouco
maior, e a arrasta até o terrário contíguo. Fecha a porta com a pedra
grande, pois havia quebrado a trava quando a chutou. Sai, com
cuidado, pelo vidro quebrado, sem pular nem fazer nenhum ruído
estridente. Quando já está no chão, começa a correr.
Corre sem parar, sem olhar para trás. Não se dá conta de que o
céu está carregado de nuvens cinza. Quando avista o carro, escuta
os latidos com maior nitidez. Vira apenas a cabeça e vê uma matilha
de cachorros perseguindo-o, cada vez mais perto. Corre como se
fosse sua última ação neste planeta. Consegue entrar no carro
segundos antes de que os cachorros o alcancem. Quando recupera
o fôlego, olha para os cachorros com tristeza, porque não pode
alimentá-los, banhá-los, cuidar deles, abraçá-los. Conta seis
cachorros. Estão magros, provavelmente desnutridos. Não sente
medo, mas sabe que poderiam acabar com ele se descesse do
carro. Não consegue deixar de olhar para eles. Faz muito tempo que
não se depara com um animal. Distingue o macho alfa que lidera o
bando. É preto. Os seis rodeiam o carro, latindo, sujando os vidros
com a espuma branca dos focinhos, arranhando as portas
trancadas. Olha os dentes, a fome, a fúria. São belíssimos. Liga o
carro e sai devagar. Não quer machucá-los. Os cachorros o
perseguem até que ele pisa no acelerador e se despede
mentalmente de Jagger, Watts, Richards e Wood.
Chega à sua casa. Sente falta do latido de Koko e Pugliese
correndo atrás do carro na estrada de terra, ladeada de eucaliptos.
Koko foi quem encontrou Pugliese; estava chorando sob a árvore
onde agora estão enterrados. Era um filhote de poucos meses,
cheio de pulgas e carrapatos. Estava desnutrido. Koko o adotou
como se fosse dela. Marcos catou as pulgas e os carrapatos,
alimentou-o para que recuperasse a força, mas Pugliese sempre
reconheceu Koko como sua salvadora. Se alguém gritasse ou
ameaçasse Koko, Pugliese endoidava. Era um cachorro fiel que
cuidava de todos, embora Koko fosse sua predileta.
O céu estava repleto de nuvens pretas, mas ele não percebe.
Desce do carro e vai direto para o galpão. Ali está a fêmea.
Encolhida, dormindo. Precisa dar-lhe um banho, é uma tarefa que
não pode mais ser adiada. Olha o galpão e pensa que deveria fazer
uma faxina, montar um espaço para que a fêmea fique mais
confortável.
Quando sai em busca de um balde para banhá-la, começa a
chover. Só então percebe que é uma tempestade de verão, uma
dessas tempestades assustadoras e belas.
Entra na cozinha e sente um cansaço demolidor. Quer sentar-se
e beber uma cerveja, mas não pode adiar a limpeza da fêmea.
Busca o balde, um sabão branco e um pano limpo. Vai até o
banheiro à procura de um pente velho. Não encontra nenhum até se
deparar com o pente que Cecilia deixou. Pega-o. Pensa que precisa
ligar a mangueira, porém, quando sai, a chuva está tão forte que ele
se molha todo. Está sem camisa, pois a deixou com Jagger, Watts,
Richards e Woods. Tira as botas, as meias e fica de calça jeans.
Anda descalço até o galpão. Sente a grama molhada sob os pés,
o cheiro de terra umedecida. Vê Pugliese latindo para a chuva. Vê o
cachorro como se estivesse ali, naquele momento. O maluco do
Pugliese pulando, tentando pegar as gotas, sujando-se na lama,
buscando a aprovação de Koko que sempre o vigiava da varanda.
Tira a fêmea do galpão, com cuidado, quase com carinho. A
fêmea se assusta com a chuva. Tenta se proteger. Ele a acalma,
acaricia sua cabeça, fala, como se ela compreendesse, “não é nada,
só água, só isso, vai te limpar”. Passa o sabão no cabelo dela e a
fêmea olha para ele aterrorizada. Senta-a na grama para tranquilizá-
la. Ajoelha-se atrás dela. O cabelo, que ele mexe todo desajeitado,
vai se enchendo de sabão branco. Faz isso devagar, para não
assustá-la. A fêmea pestaneja e mexe a cabeça para vê-lo através
da chuva, se contorce, treme.
A chuva cai com força, limpando-a. Ele passa sabão em seus
braços e os esfrega com o pano limpo. A fêmea está mais calma,
porém o olha com certa desconfiança. Passa o sabão nas costas e
depois a levanta com cuidado. Limpa seu peito, as axilas, a barriga.
Faz isso com zelo, como se estivesse limpando um objeto de certo
valor, porém inanimado. Está apreensivo, como se o objeto pudesse
quebrar-se ou pudesse recobrar a vida.
Com o pano, vai apagando as siglas que certificam que ela é
uma fêmea da Primeira Geração Pura. Apaga vinte siglas, uma por
cada ano de criação.
Passa-lhe a mão pelo rosto para limpar a sujeira impregnada.
Nota que ela tem cílios longos e olhos de uma cor indefinida. Talvez
cinza ou verdes. Tem algumas sardas dispersas.
Agacha-se para limpar os pés, as panturrilhas, as coxas. Apesar
das gotas que caem fortemente, consegue sentir o cheiro selvagem
e fresco, cheiro de jasmins. Pega o pente e a senta de novo na
grama. Fica atrás dela e começa a penteá-la. O cabelo é liso, mas
está embaraçado. Precisa penteá-la com cuidado para não
machucá-la.
Quando acaba, levanta-a e a observa na chuva. Parece frágil,
quase translúcida, ele a vê inteira. Aproxima-se para sentir o cheiro
de jasmim e, sem pensar, a abraça. A fêmea não se mexe, nem
treme. Apenas levanta a cabeça e olha para ele. Tem olhos verdes,
pensa, definitivamente verdes. Ele acaricia a marca de fogo da testa
dela. E beija a marca porque sabe que ela sofreu quando a
marcaram, da mesma forma que sofreu quando tiraram suas cordas
vocais para que a submissão fosse maior, para que não gritasse no
momento do sacrifício. Acaricia a garganta dela. Quem agora treme
é ele. Tira a calça jeans e fica nu. Sua respiração se acelera.
Continua abraçando-a na chuva.
O que gostaria de fazer é proibido. Mas faz.
… como uma fera nascida em uma jaula de feras nascidas
em uma jaula de feras nascidas em uma jaula de feras
nascidas em uma jaula de feras nascidas em uma jaula de
feras nascidas em uma jaula de feras nascidas e mortas em
uma jaula de feras nascidas em uma jaula, mortas em uma
jaula, nascidas e mortas, nascidas e mortas em uma jaula em
uma jaula nascidas e depois mortas, nascidas e depois
mortas, como uma fera, digo…
SAMUEL BECKETT
Acorda com uma camada de suor cobrindo o seu corpo. Não faz
calor, não ainda, não durante a primavera. Vai até a cozinha e toma
água. Liga a televisão, silencia o volume e passa os canais sem
prestar atenção. Para em um canal que transmite uma notícia
antiga, de muitos anos. Algumas pessoas começaram a vandalizar
as esculturas urbanas de animais. Mostram um bando atirando lixo,
tintas e ovos na escultura do touro de Wall Street. Cortam e passam
outras imagens de um guindaste carregando a escultura de bronze
de mais de três mil quilos, movendo-se pelo ar, enquanto as
pessoas a olham espantadas, apontam para ela e tapam a boca. Ele
ativa o volume, mas baixo. Houve ataques isolados em museus.
Alguém rachou a obra Gato e pássaro de Klee no MOMA. A
apresentadora fala sobre como especialistas estavam trabalhando
na restauração. Outra pessoa, no Museu do Prado, tentou rasgar
com suas próprias mãos Corrida de gatos de Goya. Avançou sobre
a pintura, mas os seguranças a impediram. Ele se lembra dos
especialistas, historiadores de arte, curadores, críticos falando
indignados sobre a “regressão medieval”, a volta “à sociedade
iconoclasta”. Toma um pouco de água e desliga a TV.
Lembra-se de como queimaram as esculturas de São Francisco
de Assis, como retiraram dos presépios o burro, as ovelhas, os
cachorros, os camelos, como destruíram as esculturas dos leões-
marinhos de Mar del Plata.
Não consegue dormir. Precisa acordar cedo para receber, no
frigorífico, um dos membros da Igreja da Imolação. São cada vez
mais, pensa. O ritmo ordenado e tranquilo do abate é alterado
quando chegam esses dementes. Essa semana terá de ir à reserva
de caça e ao laboratório. Tarefas que o afastam de casa, que
complicam. Mas precisa cumpri-las porque, nesses últimos tempos,
não consegue se concentrar. Krieg não lhe disse nada, mas ele
sabe que não está trabalhando como antes.
Fecha os olhos e tenta contar as respirações. Sobressalta-se
quando sente que alguém toca nele. Abre os olhos e a vê. Afasta-se
e ela se deita no sofá. Sente o cheiro selvagem e alegre, abraça-a.
“Olá, Jazmín.” Quando se levantou, ele a havia desamarrado.
Liga a TV. Ela gosta de ver imagens. No início, ela tinha medo da
televisão. Tentou quebrá-la várias vezes. O som era estridente para
ela, as imagens a alteravam. Porém, conforme foram passando os
dias, ela percebeu que o aparelho não podia machucá-la, que o que
acontecia ali dentro não podia lhe fazer nada, e começou a assistir
às imagens com fascínio. Tudo era motivo de surpresa. A água
saindo da torneira, a comida nova, tão diferente da ração
balanceada, a música que saía do rádio, tomar banho no chuveiro,
os móveis, poder andar livremente pela casa enquanto ele estivesse
por perto para vigiar.
Ajeita sua camisola. Conseguir vesti-la foi uma tarefa que exigiu
uma paciência enorme. Ela rasgava os vestidos, tirava-os do corpo,
urinava neles. Ele, longe de ficar zangado, ficava maravilhado com o
caráter, com a determinação dela. Com o tempo, ela compreendeu
que a roupa servia para agasalhar, que, de alguma forma, a
protegia. Também aprendeu a se vestir sozinha.
Ela olha para ele, aponta para a TV e ri. Ele também ri, não sabe
do que ou por quê, mas ri e a abraça mais um pouco. Ela não
produz sons, mas o sorriso de Jazmín vibra por todo o seu corpo e
ele sente que o contagia.
Ele acaricia a barriga dela. Está grávida de oito meses.
Precisa ir, mas antes vai tomar chimarrão com Jazmín. Ele já
acendeu o fogo e esquentou a água. Para que ela entendesse o
conceito de fogo, seus perigos e usos, levou um tempo. Toda vez
que ele acendia a boca do fogão, ela saía correndo para o outro
canto da casa. Passou do medo ao encanto. Depois, só queria tocar
aquela coisa azul e branca que, às vezes, podia ser amarela, aquela
coisa que parecia dançar, que tinha vida. Tocava o fogo até se
queimar e tirava rápido a mão, assustada. Chupava os dedos e se
afastava para voltar a fazer o mesmo, várias vezes. Pouco a pouco,
o fogo passou a ser algo cotidiano de sua nova realidade.
Toma o chimarrão, beija-a e, como todas as vezes, a acompanha
até o quarto, onde fica trancada. Fecha a porta de entrada com
chave e entra no carro. Sabe que ela ficará tranquila, assistindo à
TV, dormindo, desenhando com os gizes de cera que deixou,
comendo a comida que ele preparou, passando as páginas dos
livros sem entender o que dizem. Gostaria de ensiná-la a ler, mas
qual seria o sentido, se ela não pode falar e jamais poderia se
integrar a uma sociedade que a enxerga como um produto
comestível? A marca na testa, enorme, clara, indestrutível, obriga-o
a trancá-la em casa.
Dirige em direção ao frigorífico com rapidez. Quer se livrar das
obrigações e voltar para casa. O celular toca, e ele vê que é Cecilia.
Para à beira da estrada e atende. Ultimamente, ela liga com mais
frequência. Teme que ela queira voltar. Não poderia explicar o que
está acontecendo. Ela não entenderia. Tentou se esquivar, mas foi
pior. Ela sente sua impaciência, sabe que a dor agora se
transformou em outra coisa. Diz: “Você está diferente”; “Sua cara é
outra”; “Por que você não me atendeu da outra vez, está tão
ocupado assim?”; “Você já se esqueceu de mim, de nós”. O “nós”
não se reduz a ele e ela, inclui também Leo, porém dizer isso em
voz alta seria cruel.
Chega ao frigorífico, cumprimenta o chefe de segurança com um
gesto e estaciona. Não presta atenção se ele está lendo o jornal,
nem sequer vê quem é. Já não fica fumando encostado no teto do
carro. Sobe direto para o escritório de Krieg. Cumprimenta Mari com
um beijo, e ela diz: “Oi, Marcos, querido, você está bem atrasado. O
sr. Krieg já está lá embaixo. Chegou o pessoal daquela Igreja e ele
está os recebendo”. Ela diz a última frase com impaciência. “Estão
vindo com mais frequência.” Ele não responde, embora saiba que
chegou tarde e que o pessoal da Igreja se adiantou, aliás. Desce
rapidamente as escadas e corre pelos corredores sem
cumprimentar os operários que estão no caminho.
Chega ao salão de entrada, onde recebem os fornecedores e as
pessoas de fora do frigorífico. Krieg está em pé, sem falar, balança-
se devagar, de um jeito imperceptível, como se não pudesse fazer
outra coisa. Parece incomodado. Diante dele, há uma comitiva de
aproximadamente dez pessoas vestidas com túnicas brancas. Têm
a cabeça raspada e olham para Krieg em silêncio. Um deles veste
uma túnica vermelha.
Ele se aproxima e cumprimenta a todos estendendo a mão.
Pede desculpas pelo atraso. Krieg diz que agora ficarão com ele,
Marcos, o encarregado. Que o desculpassem, que tem de fazer uma
ligação.
Krieg anda rápido sem olhar para trás, como se os membros da
Igreja fossem contagiosos. Passa as mãos na calça, limpando algo,
talvez o suor, talvez raiva.
Ele reconhece o mestre espiritual, que é como chamam o líder.
Estende-lhe a mão e pede os papéis que abonam e certificam o
sacrifício. Inspeciona-os e vê que estão em ordem. O mestre
espiritual explica que o membro da Igreja que vai se imolar já foi
examinado por um médico, já deixou pronto o testamento e já fez o
ritual de despedida. Entrega-lhe outro papel carimbado e com a
certificação do cartório que diz: “Eu, Gastón Schafe, autorizo que
meu corpo sirva de alimento para outras pessoas”, assinatura e
número de identidade. Gastón Schafe avança, com sua túnica
vermelha. É um homem de setenta anos.
Gastón Schafe sorri e declama o discurso da Igreja da Imolação
com paixão, convicto: “O ser humano é a causa de todos os males
deste mundo. Somos nosso próprio vírus”. Todos os integrantes
levantam as mãos e gritam: “Vírus”. Gastón Schafe continua:
“Somos uma praga da pior classe, destruindo nosso planeta,
esfomeando nossos semelhantes”. Uma nova interrupção:
“Semelhantes”, gritam todos. “Minha vida terá sentido, realmente,
quando meu corpo alimentar outro ser humano, alguém que
verdadeiramente necessite. Por que desprezar meu valor proteico
com uma cremação sem sentido? Já vivi, para mim é o suficiente.” E
todos gritam em uníssono: “Salve o planeta, imole-se!”.
Meses atrás, o candidato era uma mulher jovem. No meio do
discurso, Mari desceu as escadas aos gritos, dizendo que era um
absurdo que uma mulher jovem se suicidasse, que ninguém estava
salvando o planeta, que tudo era uma palhaçada, que ela não podia
permitir que um bando de lunáticos lavasse o cérebro de uma moça
tão novinha, que deveriam ter vergonha, por que não se matavam
todos em uníssono, que não entendia por que não doavam todos os
órgãos se queriam ajudar, que uma Igreja da Imolação com
membros vivos era absolutamente grotesca e continuou gritando até
ele abraçá-la e levá-la para outro quarto. Sentou-a e deu-lhe um
copo com água, esperando até que ela se acalmasse. Mari chorou
um pouco e depois se recompôs. “Por que não se entregam direto
para o mercado ilegal, por que precisam vir aqui?”, perguntou-lhe
Mari com o rosto confuso. “Porque necessitam torná-lo legal para
que a Igreja continue funcionando, eles precisam dos certificados.”
Krieg perdoou a cena porque concordava com tudo que ela havia
dito.
O frigorífico é obrigado a recebê-los e “fazer todo esse show
macabro”, como Mari diz. Nenhum dos frigoríficos os aceitava. A
Igreja lutou durante anos para conseguir que o governo cedesse e
chegassem a um acordo. Só tiveram sucesso quando foi
incorporado um membro com contatos no alto escalão e com muitos
recursos. O governo, finalmente, teve de estabelecer um acordo
com alguns poucos frigoríficos para que aceitem os membros da
Igreja. Em troca, recebiam privilégios tributários. Com isso,
conseguiram se livrar do problema de ter que lidar com um bando
de delirantes e de pôr em risco toda a falsa construção sobre a
legitimação do canibalismo. Se uma pessoa com nome e
sobrenome pode ser comida, de forma legal, e essa pessoa não é
considerada um produto, qual o impedimento de se comer uns aos
outros? Mas o governo não indicou o que fazer com aquela carne, e
não esclareceu isso porque é carne que ninguém quer comer,
ninguém que saiba de sua origem e tenha de pagar o preço de
mercado. Krieg ordenara há tempos que o discurso para os
membros da Igreja da Imolação fosse o de que a carne do
sacrificado leva um certificado especial para ser consumida pelos
mais necessitados, sem maiores explicações. Que fosse entregue a
eles esse certificado para arquivá-lo com os outros certificados ao
longo dos anos. Na realidade, a carne vai para os mais
necessitados, os Carniceiros, que já estão perambulando lá fora,
perto da cerca. Porque eles sabem que virá um festim. Não importa
se for carne velha, para eles é deliciosa, porque é fresca. Ainda
assim, o problema com os Carniceiros é que são um grupo de
marginalizados a quem a sociedade não dá nenhum valor. Por isso
é impossível dizer ao imolado que seu corpo será destripado,
desgarrado, mordido, fagocitado por um excluído, um indesejável.
Concede um tempo para que os membros da Igreja se
despeçam do candidato, de Gastón Schafe, que parece em estado
de êxtase. Ele sabe que é por pouco tempo, que quando chegarem
à área dos boxes, Gastón Schafe provavelmente vomite, ou chore,
ou queira escapar, ou vá se urinar. Aqueles que não fazem isso é
porque estão drogados ou muito psicóticos. Sabe que os
funcionários do frigorífico fazem apostas. Enquanto espera que os
abraços terminem, pergunta-se o que Jazmín estará fazendo. As
primeiras vezes, teve que deixá-la trancada no galpão para que não
se machucasse nem destruísse a casa. Pediu as férias vencidas a
Krieg e tirou algumas semanas para ficar com ela, para ensiná-la a
viver em uma casa, a se sentar à mesa para jantar, a segurar o
garfo, a se higienizar, a segurar um copo de água, a abrir a
geladeira, a usar o banheiro. Teve que ensiná-la a não ter medo. Um
medo aprendido, conquistado, aceito.
Gastón Schafe avança e levanta as mãos para a frente. Entrega-
se com gestos dramáticos, como se todo o ritual tivesse algum valor.
Declama: “Como disse Jesus, tomai e comei: isto é o meu corpo”.
Diz isso com um tom triunfal, e só ele consegue ver a decadência da
cena toda.
Decadência e loucura.
Espera que o resto do grupo vá embora. Um guarda de
segurança os acompanha até a saída. Diz a ele: “Carlitos,
acompanhe-os”, e faz um gesto que Carlitos já sabe o significado:
“Acompanhe-os e certifique-se de que todos vão embora de forma
definitiva”.
Pede ao candidato para se sentar em uma cadeira e oferece-lhe
um copo de água. As cabeças são submetidas a um jejum completo
antes do sacrifício, mas nesse caso não importam as regras. Essa
carne é para os Carniceiros, que não têm interesse em sutilezas,
nem nas normas, nem nas contravenções. O objetivo dele é que
Gastón Schafe fique o mais tranquilo que puder, dadas as
circunstâncias. Vai buscar a água e se comunica com Carlitos, que
confirma que todos os membros da Igreja se foram, que subiram
todos em uma caminhonete branca, e que os vê partindo pela
estrada.
Gastón Schafe bebe o copo com água sem saber que contém
um calmante, suave, mas com força suficiente para que reaja com o
mínimo de estridência e violência quando chegar aos boxes.
Começou a usar os calmantes há pouco, depois de uma situação
com uma candidata jovem da Igreja, que comprometeu todo o
frigorífico. Foi no mesmo dia em que confirmou que Jazmín estava
grávida. Esse dia, de manhã, fez a ela um teste de gravidez de
farmácia, depois de ver que não apenas não menstruava, mas
também tinha ganhado um pouco de peso. Primeiro sentiu
felicidade, ou algo parecido, depois sentiu medo e depois confusão.
Como faria? Esse bebê não podia ser dele, não oficialmente, não
queria que o levassem e o mandassem a um criadouro,
despachassem a criança e Jazmín direto para o Matadouro
Municipal. Naquele dia, não pensava em ir ao trabalho, porém Mari
o chamou para que fosse com urgência: “Aquela Igreja, a dos
Imolados, que me deixa doida, trocaram a data e vieram direto e
dizem que eu errei; Krieg não está aqui, eu não vou recebê-los,
imagine, Marcos, quero chacoalhá-los, chamá-los à razão, estão
todos loucos, não consigo nem olhar para eles”. Ele desligou e foi
para o frigorífico. Não conseguia pensar em outra coisa que não
fosse no bebê, seu filho. Sim, seu. Alguma ideia teria de lhe ocorrer
para que ninguém o levasse. Recebeu a Igreja com impaciência.
Não se importou que a candidata, Claudia Ramos, fosse jovem.
Tampouco considerou que, quando os membros da Igreja se foram,
ele não esperou que os acompanhassem até a saída e levou
Claudia direto aos boxes. Tampouco se importou que ela
observasse pelas janelas da sala de triparia e da sala de degola, e
que, a cada passo que dava, ficasse mais nervosa. Não levou em
conta que Sergio estava descansando e que em seu lugar estava
Ricardo, o outro atordoador, menos experiente. Não considerou o
fato de que, quando entraram na sala dos boxes, Ricardo segurou o
braço dela como se fosse um animal e tentou tirar sua túnica com
certa violência e desprezo, para deixá-la nua e atordoá-la, e que
Claudia Ramos se soltou, apavorada, e saiu correndo. Claudia
Ramos correu desesperada pelo frigorífico. Passou pelas salas
gritando “não quero morrer, não quero morrer”, até sair à área de
descarga e ver como descia, dos caminhões, um lote de cabeças.
Correu direto até as cabeças gritando: “Não, não nos matem, por
favor, não, não nos matem, não nos matem”. Sergio, que a viu se
aproximando a toda a velocidade e, sabendo que era da Igreja da
Imolação, porque as cabeças não falam, pegou a marreta (da qual
nunca se separava) e a atordoou com uma precisão que deixou todo
mundo admirado. Ele havia saído correndo atrás de Claudia Ramos,
mas não a alcançara. Viu quando Sergio a atordoava e ficou
aliviado. Chamou o segurança pelo rádio e perguntou se o pessoal
da Igreja tinha ido embora. “Agora”, respondeu-lhe. Ordenou aos
funcionários que levassem Claudia Ramos para a Área dos
Carniceiros. E Claudia Ramos, inconsciente, foi despedaçada com
facões e facas e devorada pelos Carniceiros que perambulavam
pela região, a metros da cerca elétrica. Krieg soube da situação,
mas não deu importância a ela porque já estava farto da Igreja. Ele,
no entanto, entendeu que não podia acontecer novamente, pois, se
Sergio não a tivesse atordoado, poderia ter acontecido algo pior.
Gastón Schafe cambaleia um pouco. O calmante está fazendo
efeito. Passam pela sala de triparia e pela sala de degola, mas as
janelas estão cobertas. Chegam aos boxes. Sergio está esperando
na porta. Gastón Schafe está um pouco pálido, mas continua inteiro.
Sergio tira sua túnica e os sapatos. Gastón Schafe fica nu. Treme
um pouco e olha, confuso, ao redor. Vai falar, mas Sergio o segura
pelo braço, com cuidado, e cobre seus olhos com uma venda. Guia-
o até posicioná-lo dentro do box. Gastón Schafe se move,
desesperado, diz algo que não dá para entender. Ele pensa que
precisa aumentar a dose de calmante. Sergio ajusta o grilhão de aço
inoxidável no pescoço e fala com ele. Gastón Schafe parece
acalmar-se, pelo menos deixa de se mexer e de falar. Sergio levanta
a marreta e o golpeia na testa. Gastón Schafe cai. Dois operários
levantam-no e o levam para a área dos Carniceiros.
A cerca elétrica não consegue silenciar os gritos e o barulho dos
facões que cortam, das brigas pelo melhor pedaço de Gastón
Schafe.
Chega em casa cansado. Antes de abrir o quarto onde Jazmín está,
toma um banho; se não fizesse isso, Jazmín não o deixaria tomar
um banho tranquilo. Tentaria entrar com ele no chuveiro, iria beijá-lo
e abraçá-lo. Ele entende que ela fica sozinha o dia todo e, quando
chega, Jazmín o persegue pela casa.
Abre a porta e Jazmín o recebe com um abraço. Ele se esquece
de Gastón Schafe, de Mari e dos boxes.
O quarto tem colchões no chão. Não tem móveis nem nada que
possa machucá-la. Organizou-o assim quando soube da gravidez
dela. A possibilidade de que algo acontecesse com seu filho o levou
a tomar todas as precauções. Ela aprendeu a fazer suas
necessidades em um balde, que ele limpa todos os dias, e aprendeu
a esperá-lo. Ela pode se mover livremente dentro dessas quatro
paredes adaptadas para que não lhe aconteça nada.
Há muito tempo não sentia que essa casa era seu lar. Antes era
um espaço para dormir e comer. Um lugar com palavras quebradas,
silêncios encapsulados nas paredes, com um acúmulo de tristezas
estilhaçando o ar, arranhando-o, esburacando o oxigênio. Uma casa
onde se gestava uma loucura à espreita, iminente.
Porém, desde a chegada de Jazmín, a casa se encheu do cheiro
selvagem e de suas risadas brilhantes e mudas.
Entra no quarto que tinha sido de Leo. Tirou o papel de parede
de barcos e o pintou de branco. Construiu um berço novo e móveis.
Não podia comprá-los, não queria que ninguém suspeitasse. Cada
vez que volta do frigorífico, costuma sentar-se no chão e imaginar
de qual cor pintará o berço. Prefere que o filho nasça e, nesse
momento, quando se olharem nos olhos, imagina que seu filho o
fará saber qual será a cor. Nos primeiros meses dormirá com ele, ao
lado da cama, em um berço provisório.
Ele vai se responsabilizar para que esse bebê respire o tempo
todo.
Jazmín sempre se senta com ele no quarto do bebê. Ele prefere
que seja sempre assim, que ela o persiga. Todas as gavetas da
casa têm chave. Um dia, ele voltou do frigorífico e Jazmín havia
tirado todas as facas, tinha machucado uma das mãos. Estava
sentada no chão, manchada do sangue que caía lentamente. Ele
entrou em desespero. Era uma ferida superficial. Ele cuidou dela,
limpou-a e guardou as facas com chave. Também os garfos e as
colheres. Limpou o chão e descobriu que ela tinha tentado desenhar
na madeira. Então, comprou-lhe gizes de cera e papel.
Comprou câmeras conectadas ao celular: enquanto está no
frigorífico, consegue saber o que Jazmín está fazendo no quarto.
Ela passa muitas horas assistindo à televisão, dormindo,
desenhando, olhando para um ponto fixo. Por momentos, parece
que ela está pensando, como se isso realmente fosse possível.
— Alguma vez comeu algo vivo?
— Não.
— Tem uma vibração, um calor pequeno e frágil que o torna
particularmente delicioso. Arrancar uma vida a bocados. É o prazer
de saber que, graças à sua intenção, à sua atitude, esse ser deixou
de existir. É sentir como esse organismo, complexo e precioso,
expira pouco a pouco, mas que, ao mesmo tempo, começa a formar
parte de nós mesmos. Para sempre. Esse milagre me cativa. Essa
possibilidade de união indissolúvel.
Urlet bebe vinho em uma taça parecida com um cálice antigo. É
vermelha transparente, de cristal lavrado, com figuras raras. Podem
ser mulheres nuas dançando ao redor de uma fogueira. Não. São
figuras abstratas. Ou serão homens uivando? Segura a taça pela
haste e a levanta devagar, como se fosse um objeto de valor
extraordinário. A taça tem a mesma cor do anel do dedo anelar dele.
Ele olha as unhas de Urlet, como todas as vezes, e não
consegue deixar de sentir nojo. São cuidadas, porém compridas.
Essas unhas têm alguma coisa hipnótica e primitiva. Uma lamúria,
uma presença ancestral. Há algo que gera a necessidade de saber
o que se sente ao ser tocado por aqueles dedos.
Alegra-se ao pensar que tem a obrigação de visitá-lo poucas
vezes no ano.
Urlet está sentado em uma poltrona de madeira escura, com
espaldar alto. Atrás dele, estão penduradas seis cabeças humanas
que ele havia caçado no decorrer dos anos. Sempre esclarece, para
quem quiser ouvir, que são os troféus mais custosos de se caçar,
que significaram “desafios monstruosos e revigorantes”. Ao lado das
cabeças, há fotos antigas emolduradas. São fotos de coleção de
caçadores na África, caçando negros, antes da Transição. A maior e
mais nítida delas mostra um caçador branco ajoelhado, segurando a
espingarda e, atrás dele e em estacas, as cabeças de quatro
negros. O caçador sorri.
Não consegue calcular a idade de Urlet. É daquele tipo de
pessoa que parece estar no mundo desde os primórdios, mas com
uma vitalidade que os torna jovens à primeira vista. Quarenta,
cinquenta, poderia ter setenta. Impossível saber.
Urlet permanece calado e olhando para ele.
Pensa que Urlet coleciona palavras, além de troféus. Para Urlet,
elas valem tanto quanto uma cabeça pendurada na parede. Fala o
idioma local próximo à perfeição. Sua forma de se expressar é
preciosista. Escolhe cada palavra, como se o vento não as levasse,
como se as frases ficassem vitrificadas no ar e ele pudesse apanhá-
las e trancá-las em um móvel, mas não em um móvel qualquer, um
desses antigos, de estilo art nouveau com portas envidraçadas.
Urlet saiu da Romênia depois da Transição. Lá, a caça humana
era proibida e ele, que tinha uma reserva de caça de animais, quis
continuar com o negócio em outra parte.
Nunca sabe o que responder a ele. Urlet observa-o como se
esperasse alguma frase reveladora ou alguma palavra sensata, mas
ele quer ir embora. Diz a primeira coisa que vem à sua mente, fala
com nervosismo porque não consegue segurar o olhar de Urlet nem
deixar de sentir que dentro de Urlet há uma presença, algo que
arranha o seu corpo, por dentro, tentando sair:
— Sim, deve ser cativante comer algo vivo.
Urlet faz um gesto mínimo com a boca. É desprezo. Vê isso com
nitidez, e o reconhece porque, cada vez que tem de visitá-lo, em
algum momento da conversa Urlet demonstra displicência a ele de
um modo ou de outro; ou porque ele repete as palavras que Urlet
disse ou porque não tem nada novo para acrescentar ou porque a
frase que ele responde não permite que Urlet continue explanando.
Porém, Urlet tem gestos medidos e cuida para que não sejam
notados, e em seguida continua:
— Efetivamente, meu querido cavaler.
Nunca o chama por seu nome e sempre o trata com
formalidades. Chama-o de cavaler, que em romeno significa
cavalheiro.
É dia, mas no escritório de Urlet, atrás da mesa de madeira
preta, imponente, atrás da cadeira que parece um trono, debaixo
das cabeças dissecadas e das fotos, há velas acesas. Como se
aquele lugar fosse um grande altar, como se as cabeças fossem
relíquias de uma religião pessoal, a religião de Urlet dedicada à
coleção de humanos, palavras, fotos, sabores, almas, carne, livros,
presenças.
As paredes do escritório têm bibliotecas que vão do teto até o
chão, com livros antigos. A maioria dos títulos está em romeno,
mas, apesar da distância, ele consegue ler alguns: Necronomicon,
Livro Magno de São Cipriano, Enchiridion Leonis Papae, O Grande
Grimório, O Livro dos Mortos.
Escutam-se as risadas dos caçadores voltando da reserva de
caça.
Urlet entrega-lhe os papéis com o próximo pedido. Não
consegue deixar de sentir calafrios quando uma das unhas dele
roça sua mão. Tira a mão com rapidez, sem conseguir dissimular o
nojo, e não quer olhar em seus olhos porque teme que a presença,
a entidade que vive sob a pele de Urlet, pare de arranhá-lo e se
liberte. Será a alma de algum ser vivo que comeu e ficou ali presa?
Olha o pedido e vê que Urlet destacou em vermelho “fêmeas
prenhes”.
— Não quero mais fêmeas que não estejam prenhes. São idiotas
e submissas.
— Perfeito. As prenhes custam o triplo e, se estiverem de quatro
meses ou mais, são mais caras.
— Nenhum problema. Quero algumas com o feto desenvolvido,
para comê-lo depois.
— Perfeito. Vejo que a quantidade de machos aumentou.
— Os que o senhor me traz são os melhores do mercado. Vêm
mais ágeis a cada vez, ou pensantes, como se isso fosse possível.
Um assistente bate na porta devagar. Urlet pede que entre. O
assistente se aproxima e sussurra-lhe algo no ouvido. Urlet faz um
gesto para o assistente, que se retira em silêncio, fechando a porta.
Depois sorri.
Ele permanece sentado, desconfortável, sem saber o que fazer.
Urlet tamborila na mesa com as unhas, devagar, e não deixa de
sorrir.
— Meu querido cavaler, o destino me sorri. Há algum tempo,
implementei a possibilidade de que esses famosos que caem em
desgraça e devem fortunas possam recuperá-las aqui.
— Como seria isso? Não entendi.
Urlet bebe outro gole. Espera alguns segundos antes de
responder.
— Precisam permanecer na reserva de caça por uma semana,
três dias ou umas horas, dependendo do montante da dívida e, caso
ninguém consiga caçá-los e saiam com vida dessa aventura, eu
garanto o cancelamento total da dívida.
— Então estão dispostos a morrer porque devem grana?
— Há pessoas dispostas a fazer coisas atrozes por muito
menos, cavaler. Como caçar um famoso e comê-lo.
Ele fica perplexo com a resposta. Jamais teria pensado que Urlet
poderia julgar o fato de comer alguém.
— O senhor tem dilemas morais com isso, acha uma atrocidade?
— De forma alguma. O ser humano é um ser complexo e eu fico
deslumbrado com as vilezas, contradições e sublimidades da nossa
condição. A existência seria de um morno exasperante se todos
fôssemos impolutos.
— Mas, então, por que a qualificação de atroz?
— Porque é assim. Mas o maravilhoso é isto, que aceitemos
nossas desmesuras, que as naturalizemos, que abracemos nossa
essência primitiva.
Urlet faz uma pausa para servir-se de mais vinho. Oferece-lhe
mais, porém ele não aceita, diz que precisa dirigir. Urlet continua
falando, devagar. Toca o anel que tem no dedo anelar, mexe nele:
— Aliás, desde que o mundo é mundo nos comemos uns aos
outros. Se não for de maneira simbólica, nos fagocitamos
literalmente. A Transição concedeu a possibilidade de sermos
menos hipócritas.
Levanta-se devagar e diz:
— Venha comigo, cavaler. Desfrutemos da atrocidade.
Ele pensa que não quer fazer outra coisa a não ser voltar para
casa e ficar com Jazmín e tocar a barriga dela, porém há algo
magnético e repulsivo em Urlet. Levanta-se e o acompanha.
Espiam pela janela que dá para a reserva de caça. Na varanda
de pedra, podem ver meia dúzia de caçadores tirando fotos com
seus troféus. Alguns estão ajoelhados sobre o corpo da presa no
chão. Há dois que a exibem alçando sua cabeça e segurando-a
pelos cabelos. Um deles caçou uma fêmea prenhe. Ele acha que
deve estar de seis meses.
No centro do grupo, há um caçador com sua presa em pé. Está
apoiada em seu corpo e um ajudante a segura pela parte de trás. É
a maior presa, a de maior valor. Está vestida com roupa suja, mas
dá para ver que é cara, de boa qualidade. É o músico, o roqueiro
endividado. Ele não se lembra do nome, mas sabe que foi bem
famoso.
Os ajudantes se aproximam e pedem as espingardas. Os
caçadores carregam as presas no ombro e vão para um galpão
onde as pesam, marcam-nas e as entregam para que os cozinheiros
as desmanchem e embalem a vácuo as partes que os caçadores
levarão para casa.
A reserva de caça oferece o serviço de embalar as cabeças.
Urlet o acompanha até a saída, porém, diante da porta do salão, se
encontram com um caçador que chegou mais tarde. É Guerrero
Iraola. Ele o conhece bem porque era fornecedor de cabeças do
frigorífico. É o dono de um dos maiores criadouros, mas deixou de
encomendar cabeças com ele quando, com o tempo, Guerrero
Iraola começou a enviar cabeças adoecidas e violentas, a atrasar os
pedidos, a injetar medicação experimental para que a carne ficasse
mais macia. Enfim, a carne era de má qualidade e ele se cansou do
trato displicente, de nunca conseguir se comunicar diretamente com
Guerrero Iraola, de passar por três secretárias para poder falar
menos de cinco minutos.
— Marcos Tejo, velho querido! Como você está? Quanto tempo!
— Bem, muito bem.
— Urlet, convidamos esse gentleman à mesa. No discussion.
— Como o senhor preferir.
Urlet se curva levemente e depois faz um gesto a um dos
ajudantes e diz algo ao seu ouvido.
— Venha comer, a caça foi pretty spectacular. Todos queremos
provar Ulises Vox.
Pensa: “Claro, esse é o nome do roqueiro endividado”. Acha
aberrante a ideia de comê-lo. Responde:
— A viagem de volta é longa.
— No discussion. Pelos velhos tempos, que espero que voltem.
Sabe que tirá-lo da lista de fornecedores não o afetou muito em
termos econômicos. Afinal de contas, o Criadouro Guerrero Iraola
fornece cabeças à metade do país e tem um fluxo enorme de
exportação. Porém, também sabe que significou uma perda de
prestígio, pois o Frigorífico Krieg é o mais sério do mercado. Mas há
uma regra que não pode ser quebrada: estar em bons termos com
todos os fornecedores, ainda que Guerrero Iraola o exaspere com
essa mescla de palavras em espanhol e em inglês para indicar sua
origem, para que todos saibam que frequentou colégios bilíngues e
que provém de uma antiga linhagem de criadores, primeiro de
animais e agora de humanos. Nunca se sabe se, em algum
momento, terá de negociar novamente com essa classe de pessoas.
Urlet não o deixa responder e diz:
— Naturalmente, o cavaler está encantado com a ideia e meus
assistentes estão acrescentando um prato na mesa.
— Great! E o senhor, imagino que também virá comer.
— Seria uma honra.
Entram no salão onde estão os caçadores, que fumam charutos
puros sentados em poltronas de couro de espaldar alto. Já tiraram
as botas e os coletes, e os assistentes lhes deram paletós e
gravatas para usar no almoço.
Um dos assistentes toca uma sineta e todos se levantam para ir
à sala de jantar, sentam-se a uma mesa com louça inglesa, facas de
prata, taças de cristal. Nos guardanapos estão bordadas as iniciais
da reserva de caça. As cadeiras têm espaldares altos com o
estofado de veludo vermelho e há castiçais com velas acesas.
Antes de entrar na sala de jantar, um assistente pede para
acompanhá-lo. Entrega-lhe um paletó e uma gravata combinando,
para ele provar. Ele acha ridícula toda essa preparação, mas tem de
respeitar as regras de Urlet.
Quando entra na sala de jantar, os outros caçadores olham-no
surpresos, como se ele fosse um intruso. Porém, Guerrero Iraola o
apresenta:
— Este é Marcos Tejo, o braço direito do Frigorífico Krieg, uma
das pessoas com maior conhecimento do business, o mais
respeitado e o mais exigente.
Ele jamais teria se apresentado assim para alguém. Se tivesse
de ser sincero e dizer quem é, diria: “Ele é Marcos Tejo, um homem
que perdeu um filho e anda pela vida com um buraco no peito. Um
homem casado com uma mulher destroçada. Trabalha abatendo
humanos porque precisa manter um pai demente que não o
reconhece, trancado em um asilo. Vai ter um filho com uma fêmea,
um dos atos mais ilegais que uma pessoa pode cometer, mas ele
não se importa nem um pouco, e esse filho será dele”.
Os caçadores o cumprimentam e Guerrero Iraola pede a ele que
se sente a seu lado.
Ele deveria estar voltando para casa. São várias horas de
viagem. Olha o celular e vê Jazmín dormindo. Tranquiliza-se.
Os assistentes servem uma sopa de erva-doce com anis e
depois uma entrada de dedos ao xerez com verduras confitadas.
Não são chamados de dedos, mas sim de fresh fingers, como se as
palavras em inglês conseguissem ressignificar o fato de que estão
comendo os dedos de vários humanos que, horas atrás, respiravam.
Guerrero Iraola está falando do cabaré Lulú. Fala em código
porque é sabido que o lugar é um antro dedicado ao tráfico de
pessoas, com a particularidade de que, depois de pagar por um
serviço sexual, é possível pagar também para comer a mulher com
quem dividiu a cama. A soma é milionária, porém há essa opção,
embora seja ilegal. Estão todos envolvidos: políticos, polícia, juízes.
Cada um leva sua porcentagem porque o tráfico de pessoas passou
do terceiro ao primeiro negócio mais milionário. São poucas as
mulheres que são comidas, porém acontece de vez em quando,
como o caso comentado por Guerrero Iraola, que parece haver
pagado “billions, billions” por uma loira deslumbrante que o deixou
louco e depois, lógico, “tinha de ir além”. Os caçadores riem e todos
brindam, celebrando a decisão de Guerrero Iraola.
— E aí, como foi? — pergunta um dos caçadores mais jovens.
Guerrero Iraola apenas leva os dedos à boca, fazendo um gesto
para indicar que estava saborosa. Ninguém pode admitir em público
que comeu uma pessoa com nome e sobrenome, exceto no caso do
músico que assinou seu consentimento. Porém, Guerrero Iraola
insinua só para demonstrar que pode pagar e por isso o convidou
para almoçar, para esfregar isso na cara dele. Ele escuta como um
dos caçadores, que está bem próximo dele, sussurra para outro que
a loira deslumbrante era, na verdade, uma virgenzinha de catorze
anos, que precisava ser amansada e que Guerrero Iraola a
destroçou na cama, estuprou-a durante horas. Que ele ficou ali e
que a menina estava moribunda quando a levaram para o sacrifício.
Ele pensa que o comércio carnal, nesse caso, é literal e sente
nojo. Reflete sobre isso enquanto tenta comer as verduras
confitadas, sem incluir os dedos cortados em pequenos pedaços.
Urlet, que está sentado ao seu lado, observa-o e diz ao seu
ouvido:
— Tem de respeitar o que será comido, cavaler. Em todo prato
há morte. Pense nisso como um sacrifício que alguns fizeram por
outros.
Volta a roçar a mão dele com as unhas, e ele sente um calafrio.
Acredita poder escutar o arranhão sob a pele de Urlet, a lamúria
contida, a presença que deseja sair. Engole os fresh fingers porque
quer acabar logo e ir embora o mais rápido possível. Não quer
discutir com Urlet nem com as teorias artificiais dele. Não vai dizer a
ele que um sacrifício, normalmente, exige o consentimento do
sacrificado, nem vai salientar que tudo tem morte, não apenas esse
prato, e que também ele, Urlet, está morrendo a cada segundo que
passa, como todos eles.
Surpreende-se quando sente que os dedos estão deliciosos.
Percebe quanta falta sentia de comer carne.
Um assistente traz apenas um prato e o deposita na frente do
caçador que matou o músico. O assistente diz, de forma solene:
— Língua de Ulises Vox marinhada em ervas finas, servida sobre
kimchi e batatas ao limão.
Todos aplaudem e riem. Alguém fala:
— Que privilégio comer a língua de Ulises. Depois você vai ter
que cantar uma música dele para nós, para ver se soa igual.
E todos riem às gargalhadas. Menos ele, ele não ri.
O coração, os olhos, os rins e as nádegas são servidos para o
resto dos comensais. O pênis de Ulises Vox é servido para Guerrero
Iraola, que o pediu especialmente.
— Era grande, hein — diz Guerrero Iraola.
— Agora você é bicha? Vai comer esse pedaço de pau — diz um
deles.
Todos riem.
— Não, é um afrodisíaco, me dá potência sexual — responde
com seriedade Guerrero Iraola, e encara com desprezo aquele que
o chamou de bicha.
Todos ficam em silêncio. Ninguém quer contradizê-lo porque é
um homem poderoso. Alguém pergunta, mudando de assunto para
aliviar o clima tenso:
— O que é isso que estamos comendo, esse kimchi?
Surge um silêncio. Ninguém sabe o que é kimchi, nem Guerrero
Iraola, um homem instruído, que viajou o mundo, que sabe idiomas.
Urlet dissimula bem a aversão provocada por comer com essas
pessoas sem cultura ou refinamento. Porém, não dissimula tudo.
Responde com um leve desprezo na voz:
— O kimchi é um alimento preparado com vegetais fermentados
durante um mês. É de origem coreana. Tem uma infinidade de
benefícios; dentre eles, é um probiótico. Para os meus convidados,
sempre o que há de melhor.
— Temos os probióticos das drogas pesadas que Ulises usava
— diz um deles, e todos riem às gargalhadas.
Urlet não responde. Apenas olha com um sorriso de canto
estampado no rosto. Ele sabe que a entidade, que aquilo que está
ali, raspando a pele de Urlet por dentro, quer uivar, quer desgarrar o
ar com uma algazarra cortante, afiada.
Guerrero Iraola impõe ordem com o olhar e pergunta:
— Como foi a caça de Ulises Vox?
— Peguei-o desprevenido em um lugar que parecia um
esconderijo. Teve o azar de se mexer justo quando eu passava por
ali.
— Claro, com esse seu ouvido biônico, ninguém escapa — diz o
que caçou a grávida.
— Lisandrito é um master, como todos os Nuñez Guevara. A
família dos melhores caçadores do país — diz Guerrero Iraola. — A
próxima estrela que Urlet trouxer, eu quero para mim, moleque —
continua ele, apontando-lhe o garfo cheio de carne. É uma ameaça
iminente, e Lisandrito baixa o olhar.
Guerrero Iraola levanta a taça e todos brindam por Lisandrito e
sua linhagem de caçadores de primeira linha.
— Quantos dias faltavam para ele? — pergunta alguém para
Urlet.
— Hoje era seu último dia. Restavam-lhe cinco horas.
Todos aplaudem e brindam.
Menos ele. Ele pensa em Jazmín.
Sabe que chegará tarde à sua casa. A viagem é longa, não quer
ficar em um hotel como das outras vezes, quando Jazmín não
estava lá. Está dirigindo há várias horas, sabe que chegará à noite.
Passa pelo zoológico abandonado. Segue adiante porque está
escuro e porque não quer ir ali nunca mais. Na última vez que foi,
ainda não sabia que Jazmín estava grávida. Necessitava limpar a
mente e queria ir ao aviário.
Quando estava chegando à região do aviário, escutou gritos e
risadas. Vinham do serpentário. Aproximou-se devagar, rodeando a
construção para ver se encontrava uma janela para não ter de
entrar.
Uma das paredes estava quebrada. Espiou com cuidado e viu
um grupo de adolescentes. Eram seis ou sete. Carregavam paus.
Estavam no serpentário dos filhotes. Haviam quebrado o vidro.
Viu que os filhotes estavam ali, enrolados uns nos outros, tremendo,
gemendo de medo.
Um dos adolescentes apanhou um dos cachorros, que ele tinha
acariciado semanas antes, e o atirou no ar. Outro, o mais alto,
golpeou o filhote com o pau, como se fosse uma bola. O filhote
bateu contra a parede e caiu no chão, morto, bem perto de outro.
Os adolescentes aplaudiram. Um deles disse:
— Vamos esmagar o cérebro dele na parede. Quero ver como se
sente.
Pegou o terceiro filhote e golpeou a cabeça dele reiteradas
vezes contra a parede.
— É como esmagar um melão, uma bosta. Vamos tentar com o
último.
O último tentou se defender, latir. Esse é Jagger, pensou
enquanto era invadido pela raiva porque sabia que não podia
resgatá-lo, porque ele sozinho não conseguiria enfrentá-los. O
filhote mordeu a mão do adolescente que ia atirá-lo pelo ar. Ele
sentiu prazer pela pequena vingança de Jagger.
Todos riram, primeiro, e depois ficaram quietos, calados.
— Você vai morrer, seu imbecil. Eu disse para não pegar pelo
pescoço.
O adolescente ficou em silêncio, sem saber como reagir.
— Agora você pegou o vírus.
— Você está contaminado.
— Você vai morrer.
Todos se afastaram alguns passos, temerosos.
— O vírus é uma invenção, seus idiotas.
— Mas o governo…
— O governo o quê? Você vai acreditar naquele bando de
corruptos, sanguessugas, filhos de uma puta dos governantes?
Enquanto dizia isso, chacoalhava Jagger no ar.
— Não, mas tem gente que morreu.
— Deixa de ser burro. Você não percebe que eles nos
controlam? Se a gente come uns aos outros, controlam o
superpovoamento, a pobreza, o crime… quer que eu continue? Ou
você não enxerga direito?
— Sim, sim, como aquele filme proibido, que ao final comem uns
aos outros, sem saber — disse o mais alto.
— Qual?
— Aquele… acho que o nome era “atingidos pelo destino” ou
alguma asneira do estilo. Assistimos na deep web, não é fácil de
encontrar porque é um dos filmes proibidos.
— Ah, sim, cara, eu me lembro. Aquele em que comem umas
bolachas verdes, que na verdade são pessoas amassadas.
O adolescente que segura Jagger sacode o filhote no ar com
mais força e grita.
— Eu não vou morrer por causa da porra desse bicho.
Disse isso com rancor e medo, e atirou Jagger contra a parede
com força. Jagger caiu no chão, mas continuava vivo, chorava,
queixava-se.
— E se atearmos fogo nele? — perguntou outro.
E ele não conseguiu ver mais.
De quando em quando, aparece em sua casa um inspetor da
Subsecretaria de Controle de Cabeças Domésticas. Ele conhece
todos ali dentro, todos os que importam, porque quando fecharam a
Faculdade de Ciências Veterinárias, quando o mundo era um caos,
quando seu pai começou a querer viver dentro dos livros e ligava
para ele às três da manhã para dizer que queria falar com o Barão
Rampante para que o ajudasse a entrar nas páginas, quando depois
seu pai dizia que os livros eram espiões de uma dimensão paralela,
quando os animais viraram uma ameaça, quando o mundo foi
restaurado com uma rapidez assustadora e o canibalismo se
legitimou, ele trabalhava ali, na Subsecretaria. Convocaram-no por
indicação dos funcionários do frigorífico do pai. Ele foi uma das
pessoas que redigiu as normas e regras, porém trabalhou menos de
um ano, pois o salário era ruim e ele teve que internar o pai.
O pessoal da Subsecretaria apareceu, pela primeira vez, poucos
dias depois da chegada da fêmea à casa dele. A fêmea que,
naquele momento, não tinha nome, era um número de registro, um
problema, uma cabeça doméstica como tantas outras.
O inspetor era jovem e não sabia que ele tinha trabalhado na
Subsecretaria. Foram juntos até o galpão onde a fêmea estava
deitada sobre um edredom, amarrada e nua. O inspetor não
pareceu surpreso e só perguntou se ele estava com todas as
vacinas em dia.
— Foi um presente, ainda estou me adaptando a sua presença.
Mas, sim, está vacinada, já pego os papéis.
— Pode vendê-la. É uma PGP, vale uma fortuna. Tenho uma lista
de compradores interessados.
— Ainda não sei o que vou fazer com ela.
— Não vejo irregularidades. Sugiro que a mantenha mais limpa,
para evitar doenças. Lembre-se de que, se decidir abatê-la, você
tem que entrar em contato com um especialista, para se certificar de
que o trabalho foi realizado e notificar o sacrifício da cabeça para os
nossos registros. A mesma orientação se quiser vendê-la ou se ela
escapar ou qualquer fato eventual para registrar, assim não haverá
reclamações no futuro.
— Sim, eu sei disso. No caso de abatê-la, estou certificado para
isso. Trabalho em um frigorífico. Como está o Gordo Pineda?
— O sr. Alfonso Pineda?
— Sim, o Gordo.
— Ninguém o chama assim, é nosso chefe.
— O Gordo, chefe? Não acredito. Trabalhamos juntos quando
éramos moleques. Mande lembranças da minha parte.
Depois da primeira visita, o Gordo Pineda, pessoalmente, ligou
para ele e avisou que, na próxima inspeção, só iriam solicitar uma
assinatura, para não o incomodar.
— Oi, Tejito. Até parece que justo você faria algo com essa
fêmea.
— Gordo, querido, quanto tempo.
— Olhe, eu já não estou mais gordo. A bruxa me obriga a tomar
sucos e essas besteiras que as pessoas saudáveis comem. Agora
sou um magrelo feliz. Temos que marcar um churrasco, Tejito.
O Gordo Pineda havia sido seu colega nas primeiras inspeções
feitas aos donos das primeiras cabeças domésticas. As pessoas
sabiam o que era proibido e o que não era, porém, não esperavam
por uma inspeção e assim testemunharam todo tipo de situações.
As normas foram se ajustando conforme o trabalho era feito. Ele
se lembra de um caso em que foram atendidos por uma mulher.
Perguntaram-lhe pela fêmea, precisavam ver os documentos,
comprovar as vacinas e as condições habitacionais. A mulher ficou
alterada e disse que o marido, o dono da fêmea, não estava, que
teriam de voltar mais tarde. Ele olhou para o Gordo e os dois
pensaram o mesmo. Afastaram a mulher que tentava fechar a porta
e entraram na casa. A mulher gritava que não podiam entrar, que
era ilegal, que chamaria a polícia. O Gordo disse a ela que estavam
autorizados, que ligasse para a polícia se quisesse. Verificaram os
quartos e a fêmea não estava. Então, ele teve a ideia de abrir os
guarda-roupas, olhar embaixo das camas. Até que encontraram,
debaixo da cama matrimonial, uma caixa de madeira com rodinhas,
grande o suficiente para caber uma pessoa deitada. Abriram a caixa
e ali estava a fêmea, dentro do que parecia um ataúde, sem poder
se mexer. Não sabiam o que fazer porque, de acordo com a norma,
um caso como esse não estava contemplado. A fêmea estava
saudável e o ataúde de madeira não era um lugar convencional para
que fosse mantida, mas não podiam multar o dono por conta disso.
Quando a mulher entrou no quarto e viu que tinham descoberto a
fêmea, desmontou. Começou a chorar, a dizer que o marido fazia
sexo com a fêmea e não com ela, que estava cansada, que a
tinham substituído por um animal, que não suportava a ideia de
dormir com esse bicho nojento embaixo da cama, que se sentia
humilhada e que, se acabasse no Matadouro Municipal como
cúmplice, não se importaria, porque só queria voltar à sua vida
normal, à vida de antes da Transição. Com essa declaração,
chamaram a equipe encarregada de inspecionar as cabeças e
comprovar se, efetivamente, a fêmea tinha sido “gozada”, a palavra
oficial usada nesses casos. A norma especifica que o único meio de
reprodução é o artificial, que o sêmen deve ser comprado em
bancos especiais, que a implantação da amostra deve ser realizada
por profissionais idôneos e que todo o processo deve ser registrado
e certificado, de tal forma que, caso a fêmea fique prenhe,
imediatamente fosse providenciado um número de identificação
para esse feto. Portanto, as fêmeas deveriam ser virgens. Fazer
sexo com uma cabeça, gozar nela, é ilegal, e a condenação é a
morte no Matadouro Municipal. A equipe especial foi até a casa e
confirmou que a fêmea tinha sido gozada “de todas as formas
possíveis”. O dono, um homem de cerca de sessenta anos, foi
condenado e o mandaram direto ao Matadouro Municipal. A mulher
recebeu uma multa, a fêmea foi confiscada e vendida em um leilão a
um preço menor devido à, segundo a terminologia, “gozação
proscrita”.
Depois de dormir poucas horas por conta da longa viagem de
volta da reserva de caça, acorda assustado. Escuta a buzina de um
carro. Jazmín está a seu lado e o olha com olhos bem abertos. Está
acostumada a permanecer quieta, observando-o, porque ela dorme
durante o dia e à noite ele necessita que ela fique tranquila, por isso
a acostumou amarrando-a à cama. Não quer que ela fique
deambulando pela casa sem controle. Não quer que ela se
machuque ou que aconteça algo com seu filho.
Levanta-se de um pulo e abre a cortina. Vê um homem de terno,
em pé com a porta do carro aberta e que, por vezes, se abaixa e
toca a buzina.
“É um inspetor”, pensa.
Abre a porta de entrada, de pijama, com o rosto desfigurado de
sono.
— O sr. Marcos Tejo?
— Sim, sou eu.
— Venho da parte da Subsecretaria de Controle de Cabeças
Domésticas. A última inspeção foi há quase cinco meses. Certo?
— Sim, deixe-me assinar que preciso dormir.
O inspetor olha surpreso, depois, com autoridade e elevando a
voz, diz a ele:
— Como disse? Onde está a fêmea, sr. Tejo?
— Olhe só, o Gordo Pineda me ligou dizendo que só precisa de
uma assinatura. O inspetor anterior não reclamou por isso.
— Refere-se ao sr. Pineda? Ele não trabalha mais neste setor.
Ele sente um calafrio percorrendo sua coluna vertebral. Tenta
pensar no que fazer. Se o inspetor descobrir que Jazmín está
grávida, vão mandá-lo para o Matadouro Municipal, mas, pior que
isso, vão tirar seu filho.
Tenta ganhar um tempo para pensar no que fazer. Diz:
— Entre, tome um chimarrão, que ainda estou com sono, me dê
alguns minutos para que eu possa acordar.
— Eu agradeço, mas preciso continuar. Onde está a fêmea?
— Vamos, entre, me conte o que aconteceu com o Pineda.
O inspetor hesita. Ele transpira, tenta disfarçar o nervoso.
— Está bem, mas não posso ficar por muito tempo.
Sentam-se na cozinha. Ele acende o fogo e coloca a chaleira.
Apronta o chimarrão enquanto fala de qualquer coisa, do clima, do
péssimo estado das estradas da região, se ele gosta do trabalho.
Quando lhe serve o chimarrão, diz:
— Me dá alguns minutos? Vou lavar o rosto. Voltei ontem de
uma longa viagem e quase nem dormi. Você me acordou com a
buzinada.
— Mas antes da buzina, bati palmas por um bom tempo.
— Sério? Me desculpe. Tenho o sono pesado, nem ouvi.
O inspetor está desconfortável. Quer ir embora, dá para
perceber, porém entrou e ficou quando ele falou em Pineda.
Vai até o quarto e vê que Jazmín está na cama, quieta. Fecha a
porta, vai até o banheiro e lava o rosto. O que fazer? O que dizer?
Volta à cozinha e oferece bolachas. O inspetor aceita
desconfiado.
— O Gordo Pineda foi mandado embora?
O inspetor demora a responder. Fica apreensivo.
— De onde o conhece?
— Trabalhei com ele, quando éramos moleques. Somos amigos.
Fomos inspetores juntos. Fazíamos seu trabalho quando ainda
quase nenhuma norma estava definida, fomos adaptando-as.
O inspetor parece relaxar um pouco e o olha com outros olhos.
Com certa admiração. Pega outra bolacha e esboça algo que se
parece com um sorriso.
— Eu estou começando ainda, há menos de dois meses que
trabalho aqui. E o sr. Pineda foi promovido. Não foi meu chefe, mas
disseram que era muito bom.
Ele sente alívio, mas dissimula.
— Sim, o Gordo é um cara legal. Espere-me um segundo.
Vai ao quarto e busca o celular. Procura o número do Gordo. Vai
à cozinha.
— Gordo, como vai? Olhe só, estou aqui com um dos seus
inspetores. Quer que eu mostre a fêmea, estou sem dormir, ela está
no galpão, preciso abri-lo, dá um trabalhão. Não era só assinar?
Passa o telefone para o inspetor.
— Sim, senhor. Claro. Não estava informado. Sim, certamente.
Não se preocupe.
O inspetor deixa o chimarrão, vasculha na pasta e entrega-lhe
um formulário e uma caneta. Sorri artificialmente, tenso. É um
sorriso que esconde muitas perguntas e uma ameaça: o que está
fazendo com a fêmea? Está gozando? Usufruindo dela para algo
ilegal? Vai ver só quando o Gordo Pineda não estiver mais. Vai ver,
você e seus privilégios, você vai pagar por isso.
Ele vê claramente as perguntas e a ameaça velada, mas não se
importa. Sabe que pode falsificar um certificado de abate domiciliar,
que no frigorífico tem tudo de que precisa. Que já não pode
depender do Gordo Pineda, não depois dessa visita. Quer que o
inspetor vá embora, quer voltar a dormir, embora saiba que já não
será possível. Devolve o formulário e pergunta:
— Quer outro chimarrão?
O inspetor se levanta devagar. Guarda o formulário e diz:
— Não, obrigado. Vou continuar.
Ele o acompanha até a porta e estende-lhe a mão. O inspetor
não aperta a mão, deixa-a frouxa, sem vida, para que ele faça o
esforço de cumprimentá-lo, de segurar aquela mão que parece uma
massa amorfa, um peixe morto. Antes de virar as costas, o inspetor
olha em seus olhos e diz:
— Que fácil seria o trabalho se todos só assinassem, não é?
Ele não responde. Acha impertinente, mas entende. Sabe da
importância desse inspetor jovem que precisa de alguma
irregularidade para que o dia valha a pena, desse inspetor que sabe
que há algo estranho na cena e que tem de renunciar a cumprir seu
trabalho, desse inspetor que se percebe que não é corrupto, que
nunca teria aceitado uma propina, que é um sujeito honesto porque
ainda não entende algumas coisas, desse inspetor que faz lembrar
dele mesmo quando era jovem (antes do frigorífico, das dúvidas, de
seu bebê, da morte diária, em série) e pensava que cumprir as
normas era o mais importante e que em algum lugar inatingível de
sua mente se alegrava da Transição, desse trabalho novo, de fazer
parte dessa mudança histórica, de estar pensando regras que as
pessoas teriam de cumprir muito tempo depois de ele desaparecer
do mundo, porque as normas, pensava, “são meu legado, minha
marca”.
Nunca imaginou que ele mesmo iria ignorar a própria lei.
Quando se certifica de que o inspetor já foi embora, de que o carro
já ultrapassou a porteira, volta a seu quarto, desamarra Jazmín e a
abraça. Abraça-a forte e toca sua barriga.
Chora um pouco e Jazmín o observa sem compreender, mas
toca seu rosto devagar, acariciando-o.
Está de folga.
Prepara alguns sanduíches, pega uma cerveja e um pouco de
água para Jazmín. Busca o velho rádio, aquele que usava quando
Koko e Pugliese ainda viviam, e vai com Jazmín para debaixo da
árvore onde estão enterrados. Ficam os dois, à sombra, ouvindo
jazz instrumental.
Tocam músicas de Miles Davis, Coltrane, Charlie Parker, Dizzy
Gillespie. Não há palavras, só a música e o céu de uma cor azul tão
imensa que resplandece, e as folhas das árvores mal se mexem, e
Jazmín está apoiada sobre seu peito em silêncio.
Quando toca uma música de Thelonious Monk, ele se levanta e
levanta Jazmín devagar. Abraça-a com cuidado e começa a se
mover, a se balançar. De início, Jazmín não entende e parece
incomodada, porém depois se deixa levar e sorri. Ele a beija na
testa, na marca de fogo. Dançam lentamente, embora a música seja
rápida.
Ficam o restante da tarde debaixo da árvore e ele acredita sentir
que Koko e Pugliese dançam com eles.
Acorda com a ligação de Nélida.
— Olá, Marcos. Como vai, querido? Seu pai está um pouco
descompensado, nada grave, mas precisamos de você aqui, se for
possível venha hoje.
— Hoje não é possível, amanhã é melhor.
— Você não está entendendo. Precisamos que venha hoje.
Ele não responde. Sabe o que significa a ligação de Nélida, mas
não quer falar, não tem palavras para isso.
— Já estou de saída, Nélida.
Deixa Jazmín no quarto. Sabe que vai demorar. Prepara-lhe
comida e água para o dia todo. Liga para Mari e diz que não irá ao
frigorífico.
Dirige a toda a velocidade. Não porque pensa que as coisas vão
mudar ou porque acha que poderá ver seu pai ainda com vida, mas
porque a velocidade o ajuda a não pensar. Acende um cigarro e
dirige. Começa a tossir, forte. Joga o cigarro pela janela, mas
continua tossindo. Sente algo no peito, como se fosse uma pedra,
golpeia-o e tosse.
Para na beira da estrada e apoia a cabeça no volante.
Permanece em silêncio tentando respirar. Está bem na entrada do
zoológico. Olha o cartaz quebrado e desbotado, com os animais
desenhados, quase apagados, rodeando a palavra “zoo”. O cartaz
está sobre o arco plano construído com pedras díspares. Sobe nas
pedras porque não é muito alto, e fica em pé atrás do cartaz.
Começa a chutar, a bater nele, move-o até conseguir tirá-lo. O som
do cartaz batendo contra a grama é seco, como um golpe.
Agora esse lugar não tem nome.
Chega ao asilo, Nélida o espera na porta e o abraça. Olá,
querido, você já imagina, né? Não queria falar pelo telefone, mas
precisávamos de você hoje aqui para fazer os trâmites. Sinto muito,
querido, muito mesmo.
Ele só diz: “Quero vê-lo agora”.
— Sim, querido, venha, vamos ao quarto.
Nélida o acompanha até o quarto do pai. Há muita luz natural e
está perfeitamente ordenado. Sobre a mesinha de cabeceira, há
uma foto da mãe com ele nos braços, quando era bebê. Há frascos
de remédios e uma luminária.
Senta-se em uma cadeira ao lado da cama onde o pai está
deitado, com as mãos cruzadas sobre o peito. Está penteado e
perfumado. Morto.
— Quando aconteceu?
— Hoje, bem cedo. Faleceu enquanto dormia.
Nélida fecha a porta e o deixa só.
Toca as mãos dele — estão geladas — e não pode evitar tirar
suas mãos. Não sente nada. Quer chorar, abraçá-lo, porém, olha
aquele corpo como se fosse o de um estranho. Pensa que agora
seu pai está livre da loucura, do mundo atroz, e sente algo parecido
com alívio, mas na verdade é a pedra no peito que cresce.
Assoma-se pela janela que dá para o jardim. Vê um beija-flor
bem na altura de seus olhos. Por alguns segundos, parece que o
pássaro olha para ele. Gostaria de tocá-lo, mas o beija-flor se move
rápido e desaparece. Pensa que não é possível que algo tão bonito
e pequeno cause algum dano. Pensa que talvez esse beija-flor seja
o espírito do pai que está se despedindo.
Sente que a pedra se mexe no peito e desaba a chorar.
Sai do quarto. Nélida pede que a acompanhe, para assinar os
papéis. Entram no escritório dela. Oferece-lhe um café que ele
rejeita. Nélida está nervosa, mexe nos papéis, toma um pouco de
água. Ele pensa que isso deveria ser uma rotina para ela e que não
precisaria atrasar o trâmite como está fazendo.
— O que há com você, Nélida?
Ela olha para ele desconcertada. Nunca havia sido tão direto
nem tão grosso.
— Não, nada, querido, tive que chamar sua irmã.
Olha com culpa, mas com decisão.
— São as regras do asilo, não há exceção, querido. Você sabe
que eu gosto muito de você, mas não posso pôr em risco meu
trabalho. E se sua irmã vier depois e fizer um escândalo? Já
passamos por essa experiência.
— Está bem.
Em outro momento, ele teria a consolado com alguma frase do
tipo “não se preocupe” ou “não tem problema”, mas nesse dia, não.
— Precisa assinar o consentimento da cremação. Sua irmã já o
enviou assinado de forma virtual, mas disse que não poderá assistir
à cremação. Nós podemos entrar em contato com a casa funerária,
se você preferir.
— Sim, acho melhor.
— Certamente, você precisará assistir à cremação, para
testemunhar. Ali eles darão a urna para você.
— Está bem.
— Vai querer fazer um simulado de funeral?
— Não.
— Certo, quase ninguém faz mais. Mas a reunião de despedida
sim?
— Não.
Nélida olha para ele, surpresa. Bebe mais água e cruza os
braços.
— Sua irmã quer fazer uma reunião e, legalmente, está no seu
direito. Entendo que você se negue, mas ela está decidida a se
despedir do seu pai.
Ele respira fundo. Sente um cansaço demolidor. A pedra, agora,
ocupa todo o seu peito. Não discutirá com ninguém. Nem com
Nélida, nem com sua irmã, nem com todas as pessoas que irão a
esse simulacro de velório, chamado de “despedida”, para ficar bem
com sua irmã, essas pessoas que nunca conheceram seu pai, que
jamais se ocuparam de perguntar como ele estava. Depois ri e
responde:
— Bom. Que faça isso, que se ocupe de algo, ao menos. Que
seja disso.
Nélida olha para ele surpresa e com alguma pena.
— Entendo sua irritação e você tem razão, aliás, mas é sua irmã.
Família é uma só.
Ele tenta pensar quando foi o momento em que Nélida deixou de
ser uma funcionária de um asilo para ocupar o lugar de uma pessoa
que acha que tem direito de opinar, de dar conselhos e cair,
frequentemente, em frases feitas, em clichês irritantes.
— Me dê os papéis, Nélida. Por favor.
Nélida se retrai, olha para ele atônita. Ele sempre foi amável com
ela, até carinhoso. Entrega-lhe os papéis em silêncio. Ele assina e
diz:
— Quero que o cremem hoje, agora.
— Sim, querido. Depois da Transição tudo se acelerou. Me
espere na sala que eu tomo conta disso. Vão buscá-lo em um carro
comum, viu? Já não se usam mais carros fúnebres.
— Sim, todo mundo sabe disso.
— Não, bom… eu te esclareço porque tem muita gente distraída,
que acha que as coisas, nesse sentido, não mudaram.
— Como não vão mudar depois dos ataques? Foi notícia em
todos os jornais. Ninguém quer que um familiar morto seja comido a
caminho do cemitério, Nélida.
— Me desculpe, estou estressada. Não estou pensando direito.
Eu gostava muito do seu pai e tudo isso está sendo bem difícil.
Faz-se um longo silêncio. Ele não concederá a ela essa
desculpa, tampouco. Olha para Nélida com impaciência. Ela fica
chateada.
— Sei que não é assunto meu, Marcos, mas você está bem? É
uma notícia muito triste, certo, mas faz um tempo que venho
notando você estranho, com olheiras, cara de cansado.
Ele olha para ela sem responder, mas Nélida continua:
— E é isso, depois você vai no carro, vai ficar do lado do seu pai
a todo momento, inclusive na hora da cremação.
— Eu sei, Nélida. Já passei por isso.
Ela fica pálida. Lógico, não tinha pensado e agora volta à razão.
Levanta-se com rapidez e diz “me desculpe, sou uma velha idiota,
me desculpe”. E continua pedindo desculpas até chegarem à sala,
ele se senta e ela oferece-lhe algo para tomar, e depois se afasta
em silêncio.
Volta para casa com as cinzas do pai no carro. Estão no assento do
acompanhante porque ele não sabia onde pôr a urna. O trâmite foi
rápido. Viu o corpo do pai entrando no forno, devagar, no ataúde
transparente. Não sentiu nada — ou talvez alívio.
A irmã já ligou para seu celular quatro vezes. Não atendeu. Sabe
que ela é capaz de ir até sua casa buscar as cinzas, sabe que é
capaz de qualquer coisa para cumprir a convenção social de se
despedir do pai. Em algum momento, terá de atender.
Passa pelo que foi o zoológico, esse que agora não tem nome. É
tarde, mas estaciona. Ainda há alguma luz natural.
Desce do carro e leva a urna carregando-a com as duas mãos.
Olha o cartaz no chão e entra.
Vai direto para o aviário. Nem sequer pensa na jaula dos leões.
Escuta gritos, porém distantes. Devem ser adolescentes, pensa,
devem ser aqueles que mataram os filhotes.
Chega ao aviário e sobe a escada que dá acesso à ponte
flutuante. Deita-se olhando o teto de vidro, o céu laranja e rosa, a
noite que se aproxima.
Lembra-se de quando o pai o levou ao aviário. Sentaram-se bem
juntos nos bancos que havia lá embaixo e o pai falou durante horas
sobre as diferentes espécies de aves, seus costumes, das cores das
fêmeas e dos machos, das que cantavam à noite ou de dia, das que
migravam. A voz do pai era como um algodão de cores brilhantes,
suave, enorme, belíssima. Nunca o escutara assim, não desde a
morte da mãe. E quando subiram à ponte flutuante, o pai apontou o
vitral do homem com asas acompanhado de pássaros. E disse:
“Todos dizem que caiu porque voou muito perto do sol, mas ele
voou, viu, filho? Pôde voar. Não importa cair, se você foi um
pássaro, ao menos, por alguns segundos”.
Permanece por um tempo assobiando uma música que seu pai
cantava: “Summertime”, de Gershwin. O pai sempre ouvia a versão
de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. Dizia: “É a melhor, me
emociona até as lágrimas”. Um dia, viu seus pais dançando ao ritmo
do trompete de Armstrong. Estavam na penumbra, e ele
permaneceu um longo tempo observando-os em silêncio. O pai
acariciou a bochecha da mãe e ele, sendo um menino, sentiu que
isso era amor. Não podia colocá-lo em palavras, não naquele
momento, porém o soube no corpo, como quando se reconhece
algo verdadeiro.
Sua mãe foi quem tentou ensiná-lo a assobiar, mas ele não
conseguia. Um dia, seu pai o levou para caminhar e ensinou. Disse
que da próxima vez que sua mãe tentasse, ele tinha de disfarçar,
tinha de fazer parecer difícil e depois, então, conseguir. Quando
pôde assobiar na frente da mãe, ela deu pequenos pulos de alegria,
aplaudindo. Lembra-se de como, a partir desse dia, os três
assobiavam juntos, como um trio bagunçado, mas alegre. A irmã,
que era um bebê, sorria e os observava com os olhos brilhantes.
Fica em pé, abre a tampa da urna e joga as cinzas da ponte. Vê
como elas caem devagar. Diz: “Tchau, papai, vou sentir saudades”.
Desce, sai do aviário e anda até os brinquedos para crianças.
Abaixa-se e junta areia suficiente para encher a urna. É areia com
lixo, porém não se esforça em limpá-la.
Senta-se em um dos balanços e acende um cigarro. Quando
acaba, apaga-o dentro da urna e fecha a tampa.
Será isso o que sua irmã vai receber: uma urna com areia suja
de um zoológico abandonado e sem nome.
Volta para casa com a urna no porta-malas. A irmã já ligou para ele
muitas vezes. Volta a ligar. Ele olha o celular com impaciência. Põe
no viva-voz:
— Olá, Marquitos, não consigo te ver.
— Estou dirigindo.
— Ah, certo. Como você está com isso do pai?
— Bem.
— Liguei para te dizer que estou organizando a despedida aqui
em casa. Acho que é mais prático.
Ele não responde. A pedra em seu peito se move, cresce.
— Queria te pedir que trouxesse a urna hoje, ou amanhã.
Também posso passar pela sua casa e buscá-la, mas não seria o
melhor, pela distância, viu?
— Não.
— Não o quê?
— Não. Nem hoje nem amanhã. Quando eu disser.
— Mas, Marqui…
— Mas nada. Vou levar a urna quando eu quiser e a despedida
será quando for bom para mim. Entendeu?
— Bom, sim, entendo que você está triste, mas poderia me falar
em outro to…
Ele encerra a ligação.
Chega à casa tarde. Está cansado. Monitorou Jazmín pelo celular o
dia todo. Sabe que está dormindo.
Não abre a porta do quarto.
Vai à cozinha e pega uma garrafa de uísque. Fica na rede
deitado, bebendo. Não há estrelas no céu. A noite está fechada.
Tampouco há vaga-lumes. Parece que o mundo inteiro havia sido
desligado e silenciado.
Acorda com o sol batendo em seu rosto. Olha a garrafa vazia,
jogada de lado. Não entende onde está até se mexer e a rede
balançar um pouco.
Sai da rede aos trancos e se senta na grama com o sol da
manhã no corpo. Segura a cabeça com as mãos, sente dor. Deita-se
na grama e olha o céu. É de cor azul incandescente. Não há
nuvens, e ele pensa que se esticar os braços pode tocar o azul, de
tão próximo que o sente.
Sabe que sonhou e se lembra do sonho perfeitamente, mas não
quer pensar, só quer se perder naquele azul radiante.
Desce os braços, fecha os olhos e deixa que as imagens e
sensações do sonho se projetem em seu cérebro, como um filme.
Está no aviário. Sabe que é antes da Transição, que ainda não
há nada quebrado. Está em pé na ponte flutuante sem vidros de
proteção. Olha o teto e vê a imagem do homem voando no vitral. O
homem olha para ele. Ele não se surpreende de ver a imagem com
vida, mas deixa de olhar porque sente o barulho ensurdecedor de
milhares de batidas de asas. Porém não há pássaros. O aviário está
vazio. Volta a olhar o homem, Ícaro, que já não está no vitral. Caiu,
pensa, desabou, mas voou. Abaixa o olhar e vê, no entorno da
ponte, no ar, beija-flores, corvos, pintarroxos, pintassilgos, águias,
melros, rouxinóis, morcegos. Também há borboletas. Porém, estão
todos estáticos. Parecem vitrificados, como as palavras de Urlet.
Como se estivessem dentro de um âmbar transparente. Sente que o
ar se torna mais leve, mas os pássaros não se mexem. Todos olham
para ele com as asas abertas. Estão muito perto, mas ele os vê
longe, ocupando todo o espaço, todo o ar que ele respira. Aproxima-
se de um beija-flor e o toca. O pássaro cai no chão e se estilhaça
como se fosse de cristal. Aproxima-se de uma borboleta com as
asas azul-claras quase fluorescentes. As asas tremem, vibram, mas
a borboleta está quieta. Apanha-a com as duas mãos, com muito
cuidado para não machucá-la. A borboleta vira pó. Aproxima-se de
um rouxinol, vai tocá-lo, mas não o faz. Deixa seu dedo bem perto
porque o acha muito lindo e não quer destruí-lo. O rouxinol se mexe,
bate um pouco as asas e abre o bico. Não canta, grita. Grita de
forma estridente e desesperada. É uma lamúria carregada de ódio.
Ele corre, foge, vai embora. Sai do aviário e o zoológico está escuro,
mas consegue ver silhuetas de homens. Percebe que esses
homens são ele mesmo repetido ao infinito. Todos estão com a boca
aberta e nus. Ele sabe que dizem algo, mas o silêncio é absoluto.
Aproxima-se de um dos homens e o sacode. Precisa que fale, que
se mexa. O homem, ele mesmo, se desloca com uma lentidão
exasperante e, enquanto anda, vai matando o resto. Não bate neles
com uma marreta, não os estrangula, não os esfaqueia. Apenas fala
e eles, ele mesmo, vão caindo um por um. Depois esse homem, ele
mesmo, aproxima-se dele e o abraça. O abraço é tão apertado que
ele não pode respirar e se debate até conseguir se soltar. O homem,
ele mesmo, tenta se aproximar e dizer algo em seu ouvido, mas ele
sai correndo porque não quer morrer. Enquanto corre, sente que a
pedra no peito balança e golpeia seu coração. Do zoológico, passa
para um bosque. Nas árvores, suspensos, há olhos, orelhas
humanas e bebês. Sobe em uma das árvores para apanhar um dos
bebês, porém, quando consegue, quando o tem em seus braços, o
bebê desaparece. Sobe em outra árvore e o bebê se transforma em
uma fumaça preta. Sobe em outra árvore e as orelhas grudam em
seu corpo. Tenta tirá-las como se fossem sanguessugas, mas
arranca sua própria pele. Ao chegar perto do bebê dessa árvore, vê
que está coberto de orelhas e que já não respira. Então ruge, uiva,
coaxa, berra, late, mia, cacareja, relincha, orneja, grasna, muge,
chora.
Abre os olhos e só vê o azul deslumbrante. Então, grita de
verdade.
Precisa ir embora. Deixa comida e água para Jazmín. Assim que
abre a porta, ela o abraça com força. Fazia tempo que não ficava
sozinha tantas horas. Beija-a rápido, senta-a nos colchões com
cuidado e tranca a porta com chave.
Entra no carro. Precisa ir ao Laboratório Valka. Liga para o
número de Krieg.
— Olá, Marcos, Mari me contou. Sinto muito.
— Obrigado.
— Não precisa ir ao laboratório. Posso avisar que você vai outro
dia.
— Eu vou, mas será a última vez.
O silêncio de Krieg é pesado. Não está acostumado com esse
tom de voz.
— Sob nenhuma circunstância. Preciso que você vá.
— Hoje eu vou. Depois vou treinar outra pessoa para ir no meu
lugar.
— Você não está entendendo. O laboratório é um dos clientes
que mais pagam, preciso do melhor.
— Estou entendendo perfeitamente. Não irei mais.
Por alguns segundos, Krieg não fala nada.
— Bom, talvez este não seja o melhor momento para discutir,
devido às circunstâncias.
— Este é o momento, sim, e é a última vez que eu vou, ou
amanhã peço as contas.
— O quê?! Não, de forma alguma. Marcos, pode treinar uma
pessoa. Comece quando quiser. Assunto encerrado. Tire o tempo
que precisar para descansar. Nós nos falamos em outro momento.
Ele desliga sem se despedir. Odeia a dra. Valka e seu laboratório
de horrores.
Para ingressar no laboratório, precisa entregar seu documento,
fazem um scan retinal, tem de assinar vários papéis e é revistado
em um quarto especial para garantir que não leve câmeras ou
qualquer objeto que comprometa a confidencialidade dos
experimentos que fazem ali.
Um guarda de segurança o acompanha até o andar onde a
doutora se encontra. Ela não deveria fazer esse trabalho, falar com
funcionários de um frigorífico para que façam a seleção dos
melhores espécimes, porém a dra. Valka é obsessiva, detalhista e,
segundo ela mesma sempre afirma, “os espécimes são tudo,
necessito de precisão se quero ter sucesso”. Exige que sejam PGP,
os mais difíceis de conseguir. Descarta os modificados sem rodeios.
Pede as coisas mais ridículas, como medidas exatas de
extremidades, olhos juntos ou separados, com a testa afundada,
grande capacidade orbitária, com cicatrização rápida ou lenta,
orelhas grandes ou pequenas, e a lista é alterada, com pedidos
insólitos, a cada vez que a visita. Se um espécime não cumpre com
as solicitações, ela o devolve e pede um desconto geral pela perda
de tempo e dinheiro. Naturalmente, ele não erra mais.
A saudação sempre é fria. Ele estende sua mão, mas ela,
sistematicamente, olha para ele como se não entendesse e faz um
gesto com a cabeça, algo parecido com um “oi”.
— Dra. Valka, como está?
— Acabei de receber um dos prêmios mais prestigiosos em
pesquisa e inovação. Portanto, estou ótima.
Ele olha para ela sem responder. Só pensa que essa é a última
vez que a verá, que é a última vez que a escutará, que é a última
vez que entrará nesse lugar. Como ele não a parabeniza e ela
espera ser parabenizada, pergunta-lhe:
— O quê?
— Não disse nada.
Ela olha desconcertada. Em outro momento, ele a teria
parabenizado.
— Acontece que o trabalho que fazemos no Laboratório Valka é
de vital importância porque, ao experimentarmos com espécimes, os
resultados são outros. Com avanços significativos que nunca
teríamos atingido com animais. Oferecemos um conceito diferente e
avançado sobre o manejo dos espécimes, e nossos protocolos de
trabalho são cumpridos rigidamente.
Ela continua falando, como sempre, com o mesmo discurso
formatado por uma equipe de marketing, com palavras parecidas à
lava de um vulcão que nunca para, mas é uma lava fria e viscosa.
São palavras que grudam em seu corpo e ele só sente repulsa.
— O quê? — pergunta a doutora, porque em algum momento do
monólogo estava esperando uma resposta que ele nunca dará, pois
deixou de escutá-la.
— Não disse nada.
Ela olha com estranheza. Ele sempre foi tão atencioso, sempre a
escutou e falou o justo e necessário para que ela sentisse que tinha
interesse. A dra. Valka nunca perguntará se ele está bem, se está
acontecendo algo, porque ele é só um reflexo dela, um espelho para
que continue falando sobre suas conquistas.
Ela se levanta e faz o itinerário de sempre, esse itinerário que,
nas primeiras vezes, causava-lhe náuseas, dor de barriga,
pesadelos. É um itinerário inútil porque ele só precisa da lista do
pedido e que ela explique os casos mais difíceis de conseguir.
Porém, seu interesse é que ele entenda com precisão cada
experimento para que consiga os exemplares mais adequados.
A dra. Valka segura sua bengala e fica de pé. Teve um acidente
com um espécime faz alguns anos. Segundo o que é sabido, um
assistente se descuidou e deixou a porta de uma jaula entreaberta.
Quando a doutora, que fica trabalhando até tarde, foi fazer a ronda
de controle, o espécime a atacou e comeu parte de sua perna. Ele
acha que o assistente não se descuidou, na verdade se vingou,
porque Valka é famosa por maltratar e exigir demais de seus
funcionários, por fazer comentários grosseiros; porém, como seu
laboratório é o maior e mais prestigioso, os funcionários resistem até
não poder mais. Ele sabe que, no início, a chamavam pelas costas
de “dra. Mengele”, porém experimentar com humanos também foi
naturalizado e ela passou a ganhar prêmios.
Enquanto caminha, ela se balança e fala. Parece que para se
sustentar precisa das palavras que saem de sua boca sem
descanso. Repete sempre os mesmos discursos: o quanto é difícil,
ainda neste século, ser mulher e profissional, que as pessoas têm
preconceito com ela, que só agora está conseguindo que falem com
ela e não com seu assistente, um homem, pensando que ele é o
diretor do laboratório, que ela escolheu não constituir uma família e
é cobrada socialmente por isso, porque as pessoas continuam
pensando que as mulheres têm de cumprir com algum desígnio
biológico, que sua maior conquista na vida foi seguir adiante, nunca
desistir, que ser homem é muito mais fácil, que essa é sua família, o
laboratório, mas ninguém a compreende, não realmente, que ela
está revolucionando a medicina e as pessoas ainda olham se os
sapatos que ela usa são femininos ou se aparecem as raízes do
cabelo porque não teve tempo de ir ao cabeleireiro ou se ganhou
peso.
Ele concorda com tudo o que ela fala, mas não suporta suas
palavras, que são como girinos minúsculos se arrastando e
deixando um rastro pegajoso, rastejando até se acumular uns sobre
os outros e apodrecer, viciando o ar com um cheiro fétido. Não
responde porque também sabe que ela tem poucas funcionárias
mulheres e, se alguma delas fica grávida, ela as despreza
ignorando-as.
Ela lhe mostra uma jaula e diz que esse espécime é viciado em
heroína, há anos que administram a droga nele para estudar as
causas que produzem o vício. “Quando o anularmos, vamos estudar
seu cérebro.” Anularmos, pensa, outra palavra que silencia o
espanto.
A dra. Valka continua falando, porém ele já não a escuta. Vê
espécimes sem olhos, outros conectados a tubos pelos quais
respiram nicotina o tempo todo, outros com aparelhos na cabeça,
grudados ao crânio, outros que parecem famintos, outros com
fiações saindo de todas as partes do corpo, vê assistentes
realizando vivissecções, outros extraindo pedaços de pele de
espécimes sem anestesia, vê exemplares em jaulas onde sabe que
o chão está eletrificado. Pensa que o frigorifico é um lugar melhor
que esse, pelo menos lá a morte é rápida.
Passam por uma sala em que se pode ver um espécime em uma
mesa. Está com o peito aberto e o coração batendo. Há várias
pessoas ao seu redor estudando-o. A dra. Valka fica olhando pela
janela e diz que é maravilhoso registrar o funcionamento dos órgãos
com o exemplar ainda vivo e consciente. Deram-lhe um sedativo
leve para que não desmaiasse de dor e, acrescenta empolgada,
“que beleza esse coração batendo! Não é uma maravilha?”.
Ele não responde.
Ela pergunta:
— O quê?
— Não disse nada — mas, dessa vez, responde olhando-a nos
olhos, com aborrecimento e impaciência.
Ela olha para ele de cima a baixo, como se o escaneasse. É um
olhar que pretende emanar autoridade, mas ele a ignora. Como se
não soubesse o que fazer diante da indiferença dele, leva-o até uma
sala nova, onde ele nunca entrou. Há fêmeas em jaulas com seus
bebês. Ficam de frente a uma jaula onde há uma fêmea que parece
morta e uma criança, entre dois ou três anos, que chora sem parar.
Ela explica que sedaram a mãe para ver as reações da cria.
— Qual o sentido disso? A reação não é evidente? — pergunta-
lhe.
Ela não responde e continua andando batendo no chão com a
bengala, marcando cada passo com ira contida. Ele não se importa
que ela esteja perdendo a paciência, embora não saiba como reagir
diante de todos os seus descasos. Tampouco se incomoda em
saber que reclamará dele para Krieg. Se ela reclamar, melhor,
pensa. É uma garantia de não voltar de forma definitiva.
Passam por uma sala nova, que não se lembra de ter visto. Não
entram. Vê através das janelas que há animais em jaulas. Chega a
distinguir cachorros, coelhos, algum gato. Então, pergunta:
— Estão buscando a cura para o vírus? Digo, porque têm
animais. Não é perigoso?
— Tudo o que fazemos aqui é confidencial. Por isso, a cada vez
que alguém pisa neste laboratório assina um acordo de
confidencialidade.
— Sim, claro.
— Só me interessa falar sobre os experimentos para os quais
preciso de espécimes que vocês podem conseguir.
A dra. Valka nunca o chama pelo nome, porque não tem
interesse em decorá-lo. Ele suspeita que os animais enjaulados são
uma fachada. Enquanto houver alguém os estudando, buscando a
cura, o vírus é real.
— É estranho que ninguém tenha achado a cura, não é? Com
laboratórios tão avançados, fazendo experimentos de vanguarda…
A doutora não o encara nem responde, mas ele sente que os
pequenos girinos na garganta dela estão prestes a explodir.
— Preciso de espécimes fortes. Deixe eu mostrar para você.
Leva-o para uma sala no outro andar, onde os exemplares são
todos machos, estão sentados em assentos que se parecem com os
dos carros. Estão imobilizados e com a cabeça dentro de um tipo de
capacete que parece uma estrutura quadrada formada por barras
metálicas. Um assistente toca um botão e a estrutura se move a alta
velocidade, batendo a cabeça do espécime sobre um tabuleiro
sensível que registra a quantidade, a velocidade e o impacto desses
golpes. Alguns exemplares parecem mortos, porque não reagem
quando os assistentes tentam acordá-los, outros olham
desorientados e com expressões de dor. Valka diz:
— Simulamos acidentes automobilísticos e registramos os dados
para construir carros mais seguros. Por isso preciso de mais
espécimes machos que sejam fortes, para que resistam a várias
provas.
Sabe que ela pretende ouvir de sua boca algo sobre o
maravilhoso trabalho que fazem, um trabalho que pode salvar vidas,
porém ele só sente a pedra apertando seu peito.
Um assistente se aproxima e entrega algo para que a doutora
assine.
— O que é isso? Como é possível que eu esteja assinando isso
agora? Por que não o trouxe antes?
— Trouxe, sim. Mas a senhora disse para voltar depois.
— Você não pode me responder isso. Se eu digo depois, é
agora, ainda mais com algo dessa importância. Pago para você
pensar. Vá embora.
Ele não está olhando para ela, mas a doutora diz:
— A incompetência dessa gente não tem nome.
Ele não responde porque acha que trabalhar com essa mulher
deve ser insuportável. Gostaria de dizer que “depois” é depois e que
falar mal dos funcionários só demonstra como ela é uma chefe
desleal. Pensa melhor e diz:
— Incompetência? Mas não é a senhora que os contrata?
Ela olha para ele furiosa.
Ele sente que a lava vulcânica, fria e viscosa vai entrar em
erupção a qualquer momento. Porém, ela respira fundo e responde:
— Vá embora, por favor. Enviarei a lista para Krieg, diretamente.
Isso soou como uma ameaça, mas ele a ignora. Gostaria de
responder a ela umas outras tantas coisas, porém a cumprimenta
com um sorriso, enfia as mãos nos bolsos da calça e dá meia-volta.
Vai embora assobiando pelo corredor, enquanto escuta como os
golpes indignados da bengala se afastam pouco a pouco.
No momento em que está entrando no carro, o telefone toca. É sua
ex-mulher.
— Olá, Marcos. Está tudo pixelado. Olá, você me escuta, pode
me ver?
— Olá, Cecilia. Sim, olá. A ligação está ruim.
— Marc.
A ligação caiu. Ele dirige por um tempo, para e volta a ligar.
— Olá, Cecilia. Estava em um lugar sem sinal.
— Soube do seu pai. Nelly me contou. Como você está? Quer
que nos encontremos?
— Estou bem. Obrigado, mas prefiro ficar só.
— Está certo. Vai fazer a despedida?
— Marisa vai fazer.
— Claro, era de se esperar. Você quer que eu vá?
— Não, obrigado. Ainda nem sei se eu vou.
— Sinto sua falta, viu?
Ele fica em silêncio. É a primeira vez que ela diz que está com
saudades desde que foi para a casa da mãe. Ela continua:
— Você está diferente, estranho.
— Sou a mesma pessoa.
— Faz tempo que sinto que você está distante.
— Você não quer voltar para casa. Você quer que eu te espere a
vida toda?
— Não, tudo bem, mas eu gostaria de falar com você.
— Quando eu estiver mais tranquilo, te ligo, pode ser?
Ela olha com aquele olhar que tinha cada vez que não conseguia
entender uma situação ou quando algo era inatingível. Um olhar
alerta, porém triste, um olhar parecido com o daquelas fotos antigas
em sépia.
— Está bem, como você preferir. Qualquer coisa que precisar,
me avise, viu, Marcos?
— Certo. Fique tranquila.
Chega à sua casa. Abraça Jazmín e assobia “Summertime” no
ouvido dela.
A irmã ligou para ele inúmeras vezes para organizar a despedida do
pai. Esclareceu que ela se ocuparia de tudo, “até dos gastos”.
Quando ele a ouviu dizer isso, primeiro sorriu e depois sentiu uma
vontade enorme de não a ver nunca mais.
Acorda cedo porque tem de chegar no horário à cidade. Toma
banho com Jazmín, para que ela não se machuque. Organiza o
quarto, limpa-o, deixa-lhe comida e água para que fique tranquila
por várias horas. Controla o pulso e a pressão dela. Desde que
soube que ela estava grávida, montou um kit de primeiros socorros,
comprou livros sobre o assunto, trouxe do trabalho um USG portátil
usado para controlar as fêmeas prenhes que depois enviam para a
reserva de caça, e se capacitou para poder atendê-la e acompanhar
a gravidez. Sabe que não é o ideal, mas é sua única opção, pois
para chamar um especialista deveria atestar a gravidez e mostrar os
documentos da inseminação artificial.
Veste um terno e sai.
Enquanto dirige, sua irmã liga de novo.
— Marquitos. Está a caminho? Por que não estou te vendo?
— Estou dirigindo.
— Ah, está bem. Que horas você chega?
— Não sei.
— As pessoas estão começando a chegar. Eu gostaria de ter a
urna, viu? Porque sem a urna isso não tem sentido.
Ele desliga sem responder. Ela liga outra vez, mas ele desliga o
aparelho. Começa a reduzir a velocidade. Vai demorar o tempo que
necessitar.
Chega à casa da irmã. Vê um grupo de pessoas entrando com
guarda-chuvas. Sai do carro, pega a urna prateada dentro do porta-
malas e a leva debaixo do braço. Toca a campainha e sua irmã
atende.
— Até que enfim. Aconteceu algo com seu celular? Não
consegui ligar de novo.
— Está desligado. Tome a urna.
— Entre, entre logo que você está sem guarda-chuva de novo.
Quer morrer?
Enquanto fala, a irmã olha para o céu. Em seguida, pega a urna.
— Coitado do pai. Uma vida de tantos sacrifícios. Afinal de
contas, não somos nada.
Observa sua irmã e percebe algo estranho. Observa melhor e vê
que está maquiada, que foi ao cabeleireiro e que está usando um
vestido preto colado ao corpo. Nada muito estridente, para não faltar
completamente com o respeito, mas está arrumada o suficiente para
se exibir no que, sem dúvida, é seu evento.
— Entre. Sirva-se do que quiser.
Ele entra no salão onde os convidados estão reunidos ao redor
da mesa de jantar. Encostaram-na na parede e dispuseram pratos
variados com comida para que as pessoas se servissem. Vê a irmã
levando a urna para uma mesa pequena, na qual há uma caixa
transparente que parece ser de vidro lavrado. Coloca a urna dentro
dessa caixa com cuidado e com um jeito solene para que as
pessoas percebam o respeito que ela tem pelo pai. Ao lado, há um
porta-retratos digital com fotos do pai que vão se alternando, um
vaso com flores e, dentro de uma cesta, lembrancinhas com a foto
do pai e a data de nascimento e morte. As fotos do pai foram
editadas. Ele não lembra do pai tirando fotos com a irmã e a família
dela, nem tem registro do pai abraçando os netos, porque os netos
nunca o visitaram no asilo. Em outras fotos aparecem a irmã e o pai
no zoológico. A irmã o apagou e substituiu pelo rosto dela. As
pessoas se aproximam dela e a confortam. Ela pega um lenço e o
passa pelos olhos sem lágrimas.
Ele não conhece ninguém. Tampouco está com fome. Senta-se
em uma poltrona e começa a olhar as pessoas. Vê seus sobrinhos
vestidos de preto num canto, mexendo no celular. Eles veem o tio,
mas não o cumprimentam. Ele tampouco tem vontade de ir até eles
e conversar. As pessoas parecem entediadas. Comem coisas da
mesa, falam em voz baixa. Escuta um sujeito alto, de terno, com
aspecto de advogado ou contador, que diz a outro: “O preço da
carne baixou muito nesses últimos tempos. O bife especial, que
antes valia tanto, agora está bem mais barato. Li uma matéria em
que relacionam a baixa do preço da carne com o fato de que a índia
entrou oficialmente no mercado de venda e exportação de carne
especial, que antes era proibida no país, e a vendem bem barata
agora”. O outro, um careca de rosto esquecível, ri e diz: “Claro, se
são milhões. Espere que eles se comam, aí os preços vão se
estabilizar”. Uma senhora idosa fica em pé em frente à urna do pai e
olha a foto. Pega uma das lembrancinhas e a observa, cheira-a e a
joga de novo na cesta em que estava. A senhora vê uma barata
andando pela parede, bem perto do porta-retratos digital com as
fotos falsas do pai que continuam se alternando. Leva um susto,
afasta-se e sai. A barata entra na cesta das lembrancinhas.
À exceção dele, não há ninguém que saiba o quanto o pai
gostava de pássaros, o quanto amava sua mulher com paixão e
que, quando ela morreu, algo nele se apagou completamente.
Sua irmã anda de um lado a outro, com passos curtos e rápidos,
atendendo às pessoas. Ele a escuta dizer para alguém: “Usamos a
técnica de morte por mil cortes. Sim, do livro que lançaram há
pouco. Claro, esse best-seller. Eu não sei nada disso, meu marido é
quem toma conta”. O que sua irmã pode saber sobre a tortura
chinesa? Levanta-se e se aproxima para ouvir melhor, mas a irmã
vai para a cozinha. Quando se aproxima da mesa na qual está a
comida, vê uma bandeja de prata com um braço sendo fatiado. Ao
redor do braço, assado no forno certamente, há alfaces e rabanetes
cortados como se fossem pequenas flores de lótus. As pessoas
provam e dizem: “Que delícia. Está tão fresco. Marisa é uma ótima
anfitriã. Dá para ver o quanto gostava do pai”. Então, lembra-se do
quarto refrigerado.
Caminha em direção à cozinha, mas no corredor se depara com
a irmã:
— Aonde você vai, Marquitos?
— Para a cozinha.
— O que você vai fazer na cozinha? Posso trazer o que me
pedir.
Ele não responde e continua andando. Ela segura seu braço,
mas o solta quando uma pessoa, que a chamava do salão, se
aproxima para falar com ela.
Chega à cozinha. Sente um cheiro fétido, como se fosse um
golpe, mas é fugaz. Anda em direção à porta do quarto refrigerado.
Espia e lá dentro vê uma cabeça sem um braço. “Conseguiu, essa
vadia”, pensa. Ter uma cabeça doméstica na cidade é um símbolo
de status, dá prestígio. Olha melhor e percebe que é uma PGP,
porque pode distinguir algumas siglas. Do lado, sobre a bancada, vê
um livro. A irmã dele não tem livros. O título é Guia para realizar a
morte por mil cortes em cabeças domésticas. O livro tem manchas
vermelhas ou amarronzadas. Sente vontade de vomitar. Claro,
pensa, vai esquartejá-la aos poucos a cada evento, e isso da morte
por mil cortes deve ser algo da moda, para que todas essas
pessoas tenham um assunto do que falar. Todos em família
cortando o ser vivo que está na geladeira, usando uma tortura
chinesa milenar. A cabeça doméstica olha-o com tristeza. Ele tenta
abrir a porta, mas está trancada.
— O que você está fazendo?
É a irmã dele que o olha com uma bandeja vazia nas mãos e
golpeia o chão com o pé direito. Ele se vira e a vê. Sente a pedra no
peito explodir.
— Tenho nojo de você.
Ela olha para ele surpresa e indignada.
— Como você se atreve a falar isso justo hoje? Aliás, o que está
acontecendo com você ultimamente? Seu rosto está abatido.
— Acontece que você é uma hipócrita e seus filhos, dois bostas.
Ele mesmo se surpreende com o insulto. Ela arregala os olhos e
abre a boca. Por alguns segundos, não responde.
— Eu entendo que você esteja estressado com isso do papai,
mas não dá para você me ofender assim, ainda mais na minha
própria casa.
— Entende que você não tem pensamento próprio, que tudo o
que você faz é seguir as normas impostas? Que tudo isso que você
está fazendo é vazio? Você consegue sentir algo de verdade?
Alguma vez amou o papai?
— Acredito que ele merece uma despedida, não? É o mínimo
que podemos fazer por ele.
— Você não entende nada.
Ele sai da cozinha e ela o persegue falando que não pode ir
embora, o que as pessoas vão pensar, que ele não pode levar a
urna bem agora, que faça esse favor, pelo menos, que os colegas
de trabalho de Esteban estão ali, que o chefe está ali, que ele não
pode envergonhá-la dessa maneira. Ele para, segura o braço dela e
diz ao seu ouvido: “Se você continuar me enchendo assim, vou dizer
para todos que você nunca me ajudou em nada com o pai,
entendeu?”. A irmã o observa com medo e se afasta alguns passos.
Abre a porta da casa e sai. Ela o persegue correndo com a urna.
Chega perto dele alguns instantes antes que ele abra a porta do
carro.
— Leve a urna, Marquitos.
Por alguns segundos, ele a olha em silêncio. Entra no carro e
fecha a porta. A irmã fica em pé sem saber o que fazer até que se
dá conta de que está ao ar livre sem guarda-chuva. Olha para o céu
com temor, cobre a cabeça com a mão e volta correndo para casa.
Ele liga o carro e sai, mas não sem antes ver como a irmã entra
na casa com uma urna cheia de areia suja de um zoológico
abandonado e sem nome.
Volta para casa. Acelera e liga o rádio.
Toca o celular, é Mari. Acha a ligação estranha, porque Mari
sabe que ele está na despedida do pai. Sabe disso porque Mari
ligou para ele pedindo-lhe autorização para dar à irmã a lista de
seus contatos para convidá-los para a despedida. Obviamente, ele
não quis e disse a Mari que não gostaria de ver ninguém conhecido
lá.
— Oi, Mari. O que aconteceu?
— Preciso de você agora aqui no frigorífico. Eu sei que não é o
momento, desculpe, mas estamos com uma situação incontrolável.
Por favor, venha agora.
— Mas o que houve?
— Não posso explicar, você tem que ver.
— Estou perto, estava voltando para casa. Chego em dez
minutos.
Acelera. Nunca ouviu Mari tão preocupada.
Quando está chegando, avista de longe o que parece ser um
caminhão parado no meio da estrada. Quando está a poucos metros
vê, no asfalto, manchas de sangue. Quando se aproxima mais um
pouco, não acredita no que está vendo.
Um dos caminhões-jaula está capotado na beira da estrada,
destruído. As portas quebraram com o impacto ou foram quebradas.
Vê Carniceiros com facões, pedaços de paus, facas, cordas,
matando as cabeças que estavam sendo transportadas ao
frigorífico. Vê o desespero, a fome, uma loucura furiosa, um
ressentimento conquistado, assassinato, vê um Carniceiro cortando
o braço de uma cabeça viva, vê outro correndo e tentando laçar
uma cabeça que foge como se fosse um bezerro, vê mulheres com
bebês nas costas esfaqueando, cortando membros, mãos, pés, vê o
asfalto cheio de vísceras, vê um menino de cinco ou seis anos
arrastando um braço. Acelera quando um Carniceiro, com o rosto
transtornado e manchado de sangue, grita algo para ele, levantando
o facão.
Sente que os pedaços da pedra que tinha no peito percorrem
seu corpo. Queimam, são incandescentes.
Entra no frigorífico. Mari, Krieg e vários funcionários estão
assistindo ao espetáculo. Mari se aproxima dele correndo e o
abraça.
— Ai Marcos, desculpe, sério, mas tudo está uma loucura.
Nunca tinha acontecido nada igual com os Carniceiros.
— O caminhão capotou ou o capotaram?
— Não sabemos. Mas isso não é o pior.
— O que é pior, Mari, o que pode ser pior que isso?
— Atacaram Luisito, o motorista. Estava ferido e não conseguiu
sair a tempo. Eles o mataram, Marcos! Mataram Luisito!
Mari o abraça e não para de chorar.
Krieg se aproxima e estende a mão a ele.
— Sinto muito pelo seu pai. Desculpe ligar para você hoje.
— Fizeram o certo.
— Essas pragas mataram Luisito.
— Temos que ligar para a polícia.
— Já ligamos. Quero ver como vão fazer para lidar com esses
marginais de merda.
— Têm carne suficiente para semanas, se quiserem.
— Disse ao pessoal para atirar sem matar, só para dar um susto
neles.
— E no que deu?
— Em nada. Parece que estão em transe. Como se tivessem se
transformado em monstros selvagens.
— Vamos conversar no escritório. Mas antes vou fazer um chá
para Mari.
Entram no frigorífico. Ele abraça Mari, que não para de chorar e
dizer que, de todos os motoristas, Luisito era um de seus prediletos,
que era um amorzinho, que não tinha nem trinta anos, tão
responsável, que era pai de família, que tinha um bebê lindo, que a
mulher, o que ia fazer a mulher agora?, que a vida era injusta, que
aqueles sujos, miseráveis, que há tempos deveriam ter matado, que
são marginais de merda, sempre rondando como baratas, que não
são humanos, são pragas, são animais selvagens, que era uma
barbárie morrer assim, que a esposa não conseguiria cremar seu
próprio marido, que ninguém tinha pensado naquilo antes, que a
culpa é de todos eles, que não sabe para qual deus rezar se seu
deus permite que aconteçam essas coisas.
Ele a senta e serve-lhe um chá. Ela parece recuperar-se um
pouco e toca a mão dele.
— Você está bem, Marcos? Há tempos que você anda com o
olhar diferente, mais cansado. Está dormindo bem?
— Sim, Mari, Obrigado.
— Seu pai era um amor de pessoa. Tão honesto. Eu contei que
o conheci antes da Transição?
Ela tinha contado isso várias vezes, porém ele diz que não e
finge surpresa, como toda vez.
— Sim, quando era moça. Eu trabalhava como secretária em um
curtume e falei várias vezes com ele quando vinha às reuniões com
meu ex-chefe.
E volta a contar que o pai era bonitão, “como você, Marcos”, que
todas as funcionárias flertavam com ele, mas ele nada, nem as
olhava, “porque se notava que seu pai só tinha olhos para sua mãe,
ele parecia apaixonado”, que sempre foi muito atencioso e
respeitoso, que dava para ver de longe que era uma boa pessoa.
Ele segura as mãos dela com cuidado e as beija.
— Obrigado, Mari. Você está melhor, se importa se eu for falar
com Krieg?
— Pode ir, querido, temos que resolver isso que é urgente.
— Qualquer coisa, me avise.
Mari fica em pé, dá um forte beijo na bochecha dele e o abraça.
Ele entra no escritório de Krieg e se senta.
— Que tragédia. As cabeças são uma perda milionária, mas o
que aconteceu com Luisito é um absurdo.
— Sim. Temos que ligar para a mulher dele.
— Isso é tarefa da polícia. Vão avisar pessoalmente.
— Soube o que aconteceu? Se o caminhão capotou ou o
capotaram?
— Temos que monitorar as gravações da segurança, mas
acreditamos que o capotaram. Não houve tempo para reagir.
— Foi Oscar que avisou?
— Sim, Oscar está de plantão, viu o que aconteceu e me ligou.
Não tinham se passado nem cinco minutos e esses merdas já
estavam matando todo mundo.
— Então, foi planejado.
— Parece que sim.
— Vão fazer isso de novo, agora que sabem que é possível.
— Sim, esse é meu medo. O que você sugere?
Ele não sabe o que responder, ou sim, sabe bem, mas não quer.
Os pedaços da pedra ardem em seu sangue. Lembra-se do menino
arrastando o braço pelo asfalto. Fica em silêncio. Krieg olha para ele
com ansiedade.
Tenta responder, mas começa a tossir. Sente os pedaços da
pedra se acumulando na garganta. Gostaria de fugir com Jazmín.
Gostaria de desaparecer.
— A única coisa que me ocorre é matar todo mundo, agora. A
praga tem que ser exterminada — diz Krieg.
Ele o observa e sente uma tristeza contaminada, furiosa. Não
para de tossir. Sente que as pedras se tornaram grãos e são areias
em sua garganta. Krieg lhe serve um copo de água.
— Você está bem?
Quer dizer que não está bem, que as pedras o calcinam por
dentro, que não consegue tirar da cabeça aquele menino morto de
fome. Toma a água, não quer responder, mas diz:
— Temos que pegar várias cabeças, envenená-las e dar para
eles.
Fica calado, hesita, mas continua:
— Vou passar essa ordem daqui a algumas semanas.
Precisamos esperar que eles comam a carne que roubaram, para
que não desconfiem. Seria estranho dar carne agora, quando
acabam de nos atacar.
Krieg o observa ansioso. Pensa por vários segundos, depois
sorri.
— Sim, é uma boa ideia.
— Assim, quando começarem a morrer envenenados, será
evidente que foi pela carne que roubaram. Ninguém poderá pôr a
culpa na gente.
— Tem que ser feito por gente de confiança.
— Eu me ocupo disso, quando for o momento.
— Agora a polícia vai chegar, é bem provável que sejam detidos.
Acredito que, agora, não é necessário.
Odeia ser tão eficiente. Porém, não deixa de responder, de
resolver, de buscar a melhor solução para o frigorífico.
— Quem vai ser detido? Mais de cem pessoas que passam
necessidade, marginais? Como podem saber quem matou Luisito,
quem vai levar a culpa? Se aparecer nas gravações da segurança
quem o matou, aí sim, mas até chegar a esse ponto vai levar muito
tempo.
— Você está certo. Podem prender dois ou três e continuaremos
tendo problemas com o resto. Mas de quantas cabeças precisamos
para matar a todos?
— Todos não, mas morrerá o número suficiente para que o resto
vá embora.
— Claro.
— Essa gente está à margem da lei. Não devem ter nem
documentos. A apuração pode levar anos. E enquanto isso, vão
capotar mais caminhões, pois já sabem como fazer.
— Sim, isso também. Embora eu acredite que não vão se
arriscar.
— Você não viu o rosto desses selvagens.
— Sim, vi. Mas estarão cansados e alimentados. Mesmo assim,
acho necessário ter gente armada.
— Bom. Confio que isso funcione.
Ele não responde. Estende-lhe a mão e diz que vai voltar para
casa. Krieg responde que sim, que volte, definitivamente, e pede
desculpas por chamá-lo justo nesse momento.
Quando está saindo do frigorífico, volta para ver o caminhão
destruído, as luzes da polícia se aproximando e o sangue no asfalto.
Quer sentir pena dos Carniceiros e do azar de Luisito, mas não
sente nada.
Chega em casa e vai direto para o quarto de Jazmín. Não olhou
para o celular para controlá-la durante o dia inteiro. É a primeira vez,
desde que instalou as câmeras, que se esqueceu de monitorá-la.
Abre a porta do quarto e vê que Jazmín está deitada, com cara
de dor. Está tocando a barriga e a camisola está manchada. Vai até
ela correndo e vê que o colchão está encharcado de um líquido
verde amarronzado. Grita: “Não!”.
Sabe que, por conta de tudo o que já leu, se o líquido amniótico
for verde ou marrom há algum problema com o bebê. Não sabe o
que fazer, só levar Jazmín no colo até sua cama, para que fique
mais confortável. Então, pega o celular e liga para Cecilia.
— Preciso que você venha aqui agora.
— Marcos?
— Pegue o carro da sua mãe e venha já para casa.
— Mas o que aconteceu?
— Venha já, Cecilia. Preciso de você aqui agora.
— Não estou entendendo. Sua voz está diferente, não estou te
reconhecendo.
— Não posso explicar pelo telefone, entenda que preciso que
você venha já.
— Sim, está bem, já vou.
Ele sabe que ela vai demorar. A casa da mãe não fica na cidade,
mas também não fica muito perto.
Corre até a cozinha, pega alguns panos de chão e os molha.
Bota os panos frios na testa de Jazmín. Tenta fazer uma
ultrassonografia, mas não consegue detectar o problema. Toca a
sua barriga e diz: “Tudo vai ficar bem, bebê, tudo bem, você vai
nascer bem, vai dar tudo certo”. Serve um pouco de água a ela. Não
pode deixar de repetir que tudo vai dar certo, quando sabe que seu
filho corre risco de morte. Não pode se levantar e preparar o
necessário para o parto, como ferver água. Fica quieto, abraçando
fortemente Jazmín que, a cada minuto, fica mais pálida.
Olha o quadro que está sobre sua cama. O quadro de Chagall,
que sua mãe tanto gostava. De alguma forma, reza para ele. Pede à
sua mãe que o ajude, de onde estiver.
Escuta o motor de um carro e sai correndo. Abraça Cecilia. Ela
se afasta e olha para ele com desconfiança. Segura seu braço e,
antes de levá-la para dentro, diz:
— Preciso que você tenha a mente aberta. Preciso que você
deixe de lado qualquer coisa que possa sentir e seja a enfermeira
profissional que eu conheço.
— Não entendo do que você está falando, Marcos.
— Venha, vou te mostrar, me ajude, por favor.
Entram no quarto e ela vê uma mulher grávida na cama. Olha
para ele com tristeza, com certo espanto e com alguma
perplexidade, até que se aproxima mais e vê a marca de fogo que a
mulher tem na testa.
— O que uma fêmea está fazendo na minha cama? Por que
você não chamou um especialista?
— É meu filho.
Ela olha para ele com nojo. Afasta-se alguns passos, fica de
cócoras e segura sua cabeça, como se tivesse uma queda de
pressão.
— Você está louco? Quer acabar no Matadouro Municipal?
Como pôde ficar com uma fêmea? Você é doente.
Ele se aproxima, levanta-a devagar e a abraça. Depois diz a ela:
— O líquido amniótico está verde, Cecilia. O bebê vai morrer.
Como se ele tivesse pronunciado palavras mágicas, ela se
levanta e diz para começar a ferver água, que traga toalhas limpas,
álcool, mais travesseiros. Ele corre pela casa buscando as coisas
que ela pediu, enquanto Cecilia examina Jazmín e tenta acalmá-la.
O parto dura várias horas. Jazmín empurra instintivamente, mas
Cecilia não consegue se fazer entender. Ele tenta ajudar, mas sente
o medo de Jazmín e fica paralisado, só consegue falar: “Tudo vai
ficar bem, tudo vai dar certo”. Até que Cecilia grita que consegue ver
um pé. Ele entra em desespero. Cecilia pede que ele saia, que está
deixando as duas estressadas, que o parto pode ter complicações.
Que espere lá fora.
Ele fica atrás da porta do quarto com a orelha grudada na
madeira. Não há gritos, só Cecilia dizendo “vamos, mãezinha,
empurre, empurre, isso, vamos lá que você consegue, mais forte
que já está vindo, vamos, mãe, isso, vamos”, como se Jazmín
pudesse entender algo do que ela diz. Depois o silêncio é absoluto.
Passam-se alguns minutos e ele escuta Cecilia gritar: “Não! Vamos,
neném, se vire, vamos, mãezinha, empurre, vamos que está quase,
quase. Meu Deus, me ajude. Você não vai morrer, caralho, não
enquanto eu estiver aqui. Vamos, mãe, vamos lá que você
consegue”. Não escuta nada durante alguns minutos, até que ouve
um choro, então entra.
Vê seu filho nos braços de Cecilia, que transpira, toda
descabelada, mas com um sorriso que ilumina seu rosto.
— É um menino.
Ele se aproxima e o segura, aninha-o, beija-o. O bebê chora. Ela
diz que tem de cortar o cordão umbilical, limpá-lo e agasalhá-lo. Diz
isso chorando, emocionada, feliz.
Quando o bebê já está preparado e tranquilo, Cecilia o entrega.
Ele olha sem acreditar, é muito lindo, diz, é tão lindo. Sente que os
pedaços da pedra diminuem, perdem espessura.
Jazmín está na cama e estica os braços. Os dois a ignoram, mas
ela abre a boca e mexe as mãos. Tenta se levantar e, quando
consegue, bate com o quadril na mesinha de cabeceira e a
luminária cai.
Os dois a observam em silêncio.
— Traga mais toalhas e mais água para limpá-la antes de levá-la
para o galpão — diz Cecilia.
Ele se levanta e entrega seu filho a Cecilia, que o aninha e canta
para ele. Ele diz “agora é nosso”, e ela o olha sem poder responder,
emocionada, confusa.
Cecilia só olha para o bebê, chora em silêncio. Acaricia-o e diz:
“Que neném mais bonito, que pequenininho mais bonito. Como
vamos te chamar?”.
Ele vai à cozinha e volta com algo na mão direita.
Tudo que Jazmín consegue fazer é esticar os braços para tocar
seu filho, desesperada. Tenta se levantar de novo, mas se machuca
com os pedaços do vidro da luminária quebrada no chão.
Ele se posiciona atrás de Jazmín, que o olha com desespero.
Primeiro abraça-a e beija a marca de fogo. Tenta acalmá-la. Depois
se ajoelha e diz “fica tranquila, tudo vai ficar bem, fica tranquila”.
Passa os panos molhados por sua testa para limpar o suor. Canta
“Summertime” em seu ouvido.
Quando ela se acalma um pouco, ele fica em pé e segura a
cabeça dela pelo cabelo. Jazmín só mexe as mãos, tentando
abraçar seu filho. Quer falar, gritar, mas não há sons. Ele levanta a
marreta que trouxe da cozinha e bate na testa dela, bem no centro
da marca de fogo. Jazmín cai atordoada, desmaiada.
Cecilia se assusta com o golpe e o olha sem entender. Ela grita:
“Por quê? Ela podia nos dar mais filhos”. Enquanto arrasta o corpo
da fêmea até o galpão para abatê-lo, ele responde com uma voz
radiante, tão branca que machuca: “Tinha o olhar humano do animal
domesticado”.
A Liliana Díaz Mindurry, Félix Bruzzone, Gabriela Cabezón Cámara,
Pilar Bazterrica, Ricardo Uzal Garcia, Camila Bazterrica Uzal, Lucas
Bazterrica Uzal, Juan Cruz Bazterrica, Daniela Benítez, Antonia
Bazterrica, Gaspar Bazterrica, Fermín Bazterrica, Fernanda Navas,
Rita Piacentini, Bemi Fiszbein, Pamela Terlizzi Prina, Alejandra
Keller, Laura Lina, Mónica Piazza, Agustina Caride, Valeria Correa
Fiz, Mavi Saracho, Nicolás Hochman, Gonzalo Gálvez Romano,
Diego Tomasi, Alan Ojeda, Marcos Urdapilleta, Valentino Cappelloni,
Juan Otero, Julián Pigna, Alejo Miranda, Bernardita Crespo, Ramiro
Altamirano, Vivi Valdés.
Aos meus pais, Mercedes Jones e Jorge Bazterrica.
A Mariano Borobio, sempre.
AGUSTINA BAZTERRICA nasceu em Buenos Aires em 1974. É
formada em Artes (UBA). Em 2013 publicou o romance Matar a la
Niña, e em 2016 o volume de contos Antes del encuentro feroz
(reeditado em 2020 como Diecinueve Garras y un pájaro oscuro).
Saboroso Cadáver ganhou o Premio Novela de Clarín de 2017 e o
Ladies of Horror Fiction Award como melhor romance de 2020.
Bazterrica é organizadora e curadora cultural, trabalhando com
Pamela Terlizzi Prina no Ciclo de Arte ‘Siga al Conejo Blanco’
(www.sigaalconejoblanco.com) e coordena oficinas de leitura com
Agustina Caride.
“A crueldade é um presente que
a humanidade deu a si mesma.”
— DR. HANNIBAL LECTER —
DARKSIDEBOOKS.COM
1. “Cadáver exquisito”, no original, também o título do livro, refere-se a um jogo coletivo
inventado por poetas e artistas surrealistas franceses em 1925, chamado cadavre exquis.
Partindo de uma estrutura frasal preestabelecida (por exemplo “substantivo-adjetivo-verbo-
substantivo-adjetivo”), cada participante deve acrescentar um termo à frase,
desconhecendo o termo anterior. Na primeira vez em que foi jogado, os surrealistas
formaram a frase “O cadáver saboroso bebeu o vinho novo” [Le cadavre exquis boira le vin
nouveau]. [NE]

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