15 Artigo - GOMES, Andriele de Jesus
15 Artigo - GOMES, Andriele de Jesus
15 Artigo - GOMES, Andriele de Jesus
10.5935/2177-6644.20230040
Andriele de Jesus Gomes *
0009-0005-2692-9971
Rosemeri Moreira **
0000-0002-6221-4405
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a participação de mulheres no setor madeireiro em Guarapuava, nos
anos 1980-2007, a partir de rememorações de antigas operárias da madeira IBEMA/Coralplac. Buscamos
historicizar a entrada de mulheres neste setor e como eram as relações de trabalho e familiar. As memórias aqui
apresentadas são sobre o cotidiano e as relações de gênero vivenciadas por mulheres trabalhadoras que
buscavam sobreviver e melhorar as condições de vida, de si e de familiares. Essas mulheres construíram sua
identidade como operárias, se identificam desta forma e se posicionam de maneira orgulhosa que são. Para
tanto, apresentamos a situação do setor madeireiro na década de 1980, período de contratação destas mulheres
pela empresa madeireira, a fim de contextualizar a situação das primeiras operárias que adentraram no setor.
Palavras-chave: Operárias. Memórias. Gênero.
Abstract: The aim of this article is to discuss the participation of women in the wood sector in Guarapuava, in
the years 1980-2007, based on recollections of former wood workers IBEMA/Coralplac. We seek to historicize
the entry of women into this sector and what work and family relationships were like. The memories presented
here are about everyday life and gender relations experienced by working women who sought to survive and
improve their living conditions, themselves and their families. These women built their identity as workers,
identify themselves in this way and proudly position themselves as they are. Therefore, we present the situation
of the timber sector in the 1980s, when these women were hired by the timber company, in order to
contextualize the situation of the first female workers who entered the sector.
Key-words: Workers. Memories. Gender.
Resumen: El objetivo de este artículo es discutir la participación de la mujer en el sector de la madera en
Guarapuava, en los años 1980-2007, a partir de los recuerdos de ex trabajadores de la madera
IBEMA/Coralplac. Buscamos historizar el ingreso de la mujer a este sector y cómo eran las relaciones laborales
y familiares. Las memorias que aquí se presentan son sobre la vida cotidiana y las relaciones de género vividas
por mujeres trabajadoras que buscaban sobrevivir y mejorar sus condiciones de vida, ellas mismas y sus
familias. Estas mujeres construyeron su identidad como trabajadoras, se identifican así y se posicionan
orgullosamente como son. Por ello, presentamos la situación del sector maderero en la década de 1980, cuando
estas mujeres eran contratadas por la empresa maderera, con el fin de contextualizar la situación de las primeras
trabajadoras que ingresaron al sector.
Palabras-clave: Trabajadores. Memorias. Género.
________________________
* Mestra em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).
7627826052262148 - E-mail: [email protected].
** Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Associada
da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em História da mesma Instituição de Ensino Superior. 3145859349644085 -
E-mail: [email protected].
1
Transportadas e comercializadas na cidade de Ponta Grossa – PR, pólo do setor do estado no período, a 165 km
de Guarapuava.
2
As entrevistadas trabalhavam na fábrica entre os anos 1980-2007. Realizamos entrevistas flexíveis sobre sua
vida e rotina de trabalho na época. As entrevistas foram realizadas entre 2021 e 2022. Devido se tratar do
período pandêmico, algumas foram online e as demais presenciais.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
252
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
êxodo rural3. Sete das entrevistadas nasceram na zona rural, em famílias que trabalhavam na
roça, donas de pequenas propriedades ou que arrendavam terras para plantio.
Dessas sete, três delas migraram para a cidade já adultas e as demais eram crianças ou
adolescentes. Dona Maria Cândida4, conhecida como Candinha, nasceu na zona rural do
município de Laranjeiras do Sul-PR5. Aos 34 anos de idade e recém separada do marido, sem
condições de se sustentar na roça e nunca ter frequentado a escola, veio para Guarapuava em
busca de trabalho. Entrou nas primeiras vagas da madeireira abertas às mulheres. Em situação
parecida, Dona Vilka6 também migrou para Guarapuava, aos 25 anos de idade, recém viúva e
com três filhos (dois meninos e uma menina), proveniente do interior do Distrito de
Guairacá7, onde havia vivido desde o nascimento. Começou a trabalhar na indústria
madeireira em 1980 e ficou até 2005, quando se aposentou. Por sua vez, Dona
Saloméa/Marta8, nasceu e trabalhou na roça, no interior de São Matheus do Sul-PR, e migrou
quando moça, com a família, passando por algumas cidades. Sem nunca ter frequentado a
escola, trabalhou como empregada doméstica. Em Guarapuava, começou a trabalhar na
madeireira, onde ficou por 32 anos (de 1982-2006).
Também vindas da zona rural, porém com menos de 18 anos, as senhoras Aguina,
Marli, Maria Helena e Geralda, vieram para a cidade com a família. Dona Aguina9, saiu de
3
A zona rural tem sido definida como as ocupações humanas que tem por base a coleta, cultivo de plantas e
criação de animais, acompanhada ou não de povoados com comércio e instituições religiosas e administrativas.
Outro elemento importante nessa caracterização é a proximidade com a natureza e a dependência das condições
climáticas para realização das atividades laborais. Além disso, as zonas rurais geralmente são caracterizadas
como tendo baixa densidade populacional e com certa homogeneidade de características culturais tais como a
linguagem, crenças religiosas, opiniões, tradições, etc. (BISPO; MENDES, 2012). É na relação comparativa que
rural e urbano se transformam em categorias. As zonas urbanas são características com maior complexidade nas
relações, com uma elevada estratificação social, uma densidade populacional maior em comparação com o
campo. E suas formas de trabalho são especializadas de maneira mais abrangente e com maior mobilidade social
(GOMES; VESTENA, 2008).
4
Entrevistada no ano 2021, aos 80 anos de idade. Atualmente é divorciada, aposentada e mãe de sete filhos(as):
cinco homens e duas mulheres. Trabalhou na indústria madeireira desde a instalação da empresa em
Guarapuava, até próximo ao seu fechamento: de 1980 a 2002. Começou a trabalhar na madeireira como auxiliar
de produção, sem experiência ou qualquer tipo de instrução na época. Trabalhou como operária na mesma
madeireira até se aposentar em 2002.
5
Pequeno Município na região centro sul do Estado do Paraná, a 113 km de Guarapuava.
6
Com 74 anos de idade no momento da entrevista, começou a trabalhar na indústria madeireira em 1980 e ficou
até 2005, quando se aposentou.
7
À 36,9 km da cidade de Guarapuava.
8
Aos 70 anos, concedeu entrevista em 2021. Atualmente é separada, não teve filhos e está aposentada. Ficou na
madeireira até se aposentar em 2006. Ela é conhecida como Marta “[...] Na minha época, quando se fazia
Crisma, não se crismava sem ter nome de santo no nome, daí foi colocado o Marta “no meio” e ficou Saloméa
Marta. O nome Marta não está nos meus documentos, apenas foi falado na época para que eu recebesse o
sacramento... mas depois eu me identifiquei como Marta! É um nome curto e bem mais fácil de lembrar”
(SALMOÉ/MARTA, 2021).
9
Tinha 53 anos de idade no momento da entrevista. Atualmente trabalha em casa e faz peças de crochê e
bordado, por encomenda.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
254
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
Campina do Simão10, quando criança, com os pais. Aos 20 anos de idade, já casada, começou
como operária na madeireira na função de auxiliar de produção, de 1990 a 1992. Narrou ter
saído da madeireira após o nascimento do primeiro filho e que nunca mais trabalhou com
carteira registrada. Dona Marli, ainda menina, veio do distrito de Palmeirinha com a família11.
Começou a trabalhar na madeireira aos 16 anos, em 1980, onde ficou até 2007. Na época
estava cursando o 2º ano do Ensino Médio, mas, relatou que parou de estudar para trabalhar
na madeireira, pois precisava ajudar em casa e queria ter seu próprio dinheiro, não
dependendo dos pais. Outra entrevistada que migrou ainda jovem para a cidade é a senhora
Maria Helena. Ela veio com a família do interior de Guamiranga-PR12. Entrou na madeireira
aos 18 anos de idade, em 1985, mas precisou sair do emprego para cuidar da mãe que estava
doente. Voltou a trabalhar na madeireira em 1997, e ficou até o fechamento da empresa, em
2007. Por fim, das entrevistadas nascidas na zona rural, temos a senhora Geralda13, que
nasceu em Mato Verde-MG14 e migrou com a família em busca de trabalho e emprego,
passando por diversas cidades. Em algumas delas, o pai conseguiu emprego em madeireiras.
Em Guarapuava, já casada, foi contratada pela madeireira no final de 1989. Relatou ter
estudado até a 3ª série do Ensino Fundamental:
Eu não lembro de praticamente nada de quando morava de Mato Verde, só sei que
era no interior, fia! Meu pai sempre foi de trabalhar para os outros, em serrarias
viemos embora ainda tudo criança para o Paraná para o pai trabalhar na serraria
(GERALDA, 2022).
10
Município de pequeno porte, à 70,3 km de Guarapuava.
11
À 20,4 km. Tinha 57 anos no momento da entrevista. Casada, tem três filhas e um filho.
12
Município de pequeno porte, à 70,3 km de Guarapuava. Atualmente com 55 anos de idade. Atualmente está
casada e trabalha em casa.
13
No momento da entrevista estava com 58 anos, se divorciou por volta de 1991, quando tinha uma filha de
cinco anos.
14
À 1.818,4 km de Guarapuava-PR. Ela narrou que a família morou em Ivaiporã e Candói. Municípios do
Paraná, respectivamente a 160,9 km e 75,1 km de Guarapuava.
15
Viúva, não casou novamente e mora com o filho caçula.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
255
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
solteira quando começou a trabalhar na empresa. Posteriormente casou-se e teve dois filhos.
No caso da senhora Anadir16, aos 31 anos e com três filhos, começou a trabalhar na
madeireira em 1990 e ficou até 2007. Teve o quarto filho enquanto era operária da empresa.
Relatou ter trabalhado como auxiliar de produção e no final do emprego foi para o
almoxarifado e depois para a portaria. Dentre as entrevistadas é a única que concluiu o
Ensino Médio. A senhora Marilda17, por sua vez, começou a trabalhar na indústria madeireira
aos 37 anos. Solteira, teve uma filha e nunca se casou. Estudou até a 4ª série do Ensino
Fundamental. Segundo ela, sempre trabalhou na indústria madeireira, pois não tinha estudo
suficiente para ocupar outras profissões na época. Por fim, a senhora Rozana18 trabalhou na
madeireira de 2003 até 2007. Ela relatou ter estudado até os anos iniciais do Ensino
Fundamental. Atualmente é confeiteira trabalhando por encomenda.
Nos relatos das cinco entrevistadas que começaram a trabalhar na madeireira em 1980
(Maria Cândida; Vilka; Marta, Marli e Maria Helena) é recorrente nas narrativas o “sonho de
mudar de vida”, delas ou dos pais. As expectativas, na época, eram de conseguir um emprego
fixo, ter “carteira assinada”, para sustentar o sonho de comprar uma casa própria. Os relatos
indicam que a pouca oportunidade de estudo ia ao encontro da oferta da indústria madeireira,
que na época não exigia escolaridade nem experiência anterior. Sendo uma das formas de
sustento viável às classes populares, principalmente àqueles(as) vindas da lida do campo.
Nesse período, o Estado do Paraná estava em pleno processo de urbanização.
Intensificado, a partir da década de 1970, devido ao intenso fluxo migratório de grupos
provenientes da zona rural para aglomerações urbanas (GOMES; VESTENA, 2018).
Processo que se perpetuou até os anos 1990. Sobre a região de Guarapuava, segundo Silva
(1995), algumas mudanças na agricultura contribuíram para que várias famílias que moravam
no campo, abandonassem a zona rural e migrassem para centros urbanos. Dentre essas
mudanças, destacamos o aperfeiçoamento de novas técnicas agrícolas, oriundas de imigrantes
de mão de obra europeia e a transferência significativa de propriedades para esses grupos19.
Aprofundando o debate, o êxodo do campo para as cidades, para Lazzari & Souza
(2017), está vinculado a mudanças relacionadas à chamada “Revolução Verde”, levada a cabo
no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1970. Segundo essas autoras, essa “revolução” foi feita
16
Foi entrevistada no de ano 2021 casada e com 70 anos de idade.
17
No momento da entrevista estava com 57 anos de idade.
18
No momento da entrevista estava com 45 anos de idade, casada, com três filhos.
19
Segundo Silva, no de ano de 1970 a estimativa é que existiam 2.729 proprietários de terras divididos em:
2.384, eram descendentes de alemães, italianos e eslavos (40,32%); 131 eram brasileiros naturalizados (2, 22%);
e 214 eram estrangeiros (3,63%) totalizando os 2.729 proprietários (SILVA, 1995, p. 60).
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
256
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
20
Em contrapartida, nos anos 1980 foi construído em Guarapuava um discurso, submetido a bases tradicionais e
conservadoras, pautado na ideia de representar uma “cidade nova”, e/ou “cidade moderna” seguindo a lógica do
progresso (LOBODA, 2008, p. 10; TEMBIL, 2007). Discurso postulado pela elite política de Guarapuava de
uma cidade moderna, em vias de progresso.
Eu não tinha quase estudo, estudei até a 4ª série apenas. Lá na roça não estava
dando mais para se sustentar, e naquela época eu ainda não tinha conseguido uma
aposentadoria por ser viúva. Tive que sair do interior em busca de emprego, e que
mesmo se eu tivesse aposentada pela morte do meu marido o salário não ia dar
conta de pagar todas as despesas de casa (VILKA 2021).
Dentro desse contexto de êxodo rural, dona Vilka reconhece e relembra as muitas
dificuldades de quem era lavrador(a) para se adaptar ao trabalho em uma indústria, pois não
tinham o conhecimento técnico adequado. Em suas palavras existe uma responsabilização
(culpabilização) pela situação. O “eu não tinha quase estudo” indica ainda a crença da
trabalhadora que a escolaridade poderia ser um meio de melhoria de emprego e salário.
Segundo Luz (1980), registros de empresas da época, apontam que as madeireiras e serrarias,
de maneira geral, não exigiam contratação de funcionários com experiência, ou até mesmo
com escolaridade específica. Normalmente aprendiam a trabalhar nos setores a partir do
trabalho com os (as) colegas, os quais tinham o hábito de indicar pessoas conhecidas
(familiares e amigos) para trabalharem na empresa.
A senhora Vilka também narrou que: “Meus filhos começaram a trabalhar ainda
meninos, não lembro exatamente que idade tinham, mas eram novinhos. Eu, sendo viúva e da
roça precisava aumentar a renda do sustento da casa” (VILKA, 2022). Para Margareth Rago
(1985), a situação de precisar colocar os (as) filhos (os) para trabalhar apresentava duas
situações bem específicas:
[...] Os próprios pais operários desejavam que seus filhos trabalhassem em seus
estabelecimentos, pois isso representaria um alívio no orçamento doméstico. Os
dois lados seriam beneficiados deste contrato: os patrões economizariam ao
empregar uma força de trabalho não-especializada e mais econômica; os pais
lucrariam, completando seu rendimento financeiro. O emprego de uma mão de obra
tão jovem não deveria então chocar, apelava o discurso patronal, pois atendia aos
interesses dos próprios operários (RAGO, 1985, p. 139).
Eu me sentia muito fraca, não dormia direito, sofria com insônia e tinha medo de
chegar atrasada no trabalho ou na escola. Nessa época eu estava bem magra, e
estava emagrecendo cada vez mais, até ir ao médico e descobrir que estava com
anemia, por não ter tempo de se alimentar direito e dormir muito pouco. Eu estava
ficando exausta! (MARLI, 2022).
Essa situação exigiu à escolha entre trabalhar ou estudar, pois estava ficando inviável
a situação da saúde para dar conta de ambos. Depois de algum tempo, decidiu largar a escola
e continuou com o emprego. Com orgulho, relembra como conquista – sozinha - o emprego
na madeireira:
Eu fui sozinha procurar serviço, eu precisava muito! Eu lembro que na época não
queriam me dar serviço lá... porque achavam que eu não iria aguentar por ser muito
novinha e ter que trabalhar no pesado, mas eu não tinha outra opção. Naquele tempo
não era fácil de achar serviço, até no comércio tentei achar serviço e não deu certo
(MARLI, 2021).
Nos anos de 1980 a empresa estava ainda em seus primeiros anos de atividade e
atuava apenas com madeira laminada, setor em que ela começou a trabalhar. Somente no
final dos anos 1980, a empresa passou a produzir a madeira compensada21. Segundo ela:
21
A madeira compensada é a junção de madeiras, que formam uma única placa de madeira.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
261
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
O salário não era ruim, dava para fazer bastante hora extra. Muitas pessoas
compraram seus terrenos, construíram suas casas com o dinheiro das horas extras,
assim como foi o meu caso. Eu me casei em 1984, e meu marido também começou
a trabalhar na empresa e com os dois salários fomos construindo a nossa vida
(MARLI, 2021).
Poder trabalhar para muito além do horário ordinário é relembrado como algo
positivo, pois possibilitou sonhar - e conseguir - um terreno e casa própria22.
Como dito, as narrativas embaralham e entremeiam as conquistas possíveis e o
orgulho da própria história às dificuldades enfrentadas na vida na cidade. Dona Vilka
relembra a pequena e antiga casa de madeira que a família alugou: ‘‘[...] havia apenas uma
cozinha, uma sala, um banheiro e dois quartos’’. Os filhos começaram a estudar em um
colégio que ficava em outro bairro, distante da casa, o que dificultava a rotina de conciliar o
trabalho com a necessidade de levar (e buscar) os(as) filhos(as) à escola. Na medida em que
foi se familiarizando com a localidade, os(as) maiores começaram a levar os(as) mais novos
à escola, a arrumar a casa, a cozinhar. Com o passar do tempo, fazendo muitas horas extras
no trabalho, orgulhosa, ela relata que conseguiu comprar uma casa de madeira, no loteamento
Recanto Feliz, bairro próximo a madeireira e onde mora até hoje:
Meu neto fica me fazendo companhia, durante o dia, ele vem brincar aqui em casa
ele tem 9 anos de idade. Eu gosto, assim não fico sozinha, principalmente quando
meu filho o deixa posar comigo. Eu gosto de ficar em casa, sou caseira agora, mas
tenho saudade da época em que trabalhava, principalmente de conversar com as
pessoas que eram meus amigos e amigas (VILKA, 2022).
22
Entre os anos de 1989-1990 o governo local trouxe alguns investimentos para programas habitacionais de
moradias populares. De acordo com Lisandro Schmidt (2009), às condições de moradias de bairros populares
desde o calçamento até as próprias residências estavam em situações precárias, desse modo algumas ações de
tentativa de mudança foram premeditadas pelo Instituto de Planejamento e Pesquisas Urbanas de Curitiba
(IPPUC). E que por conta do envolvimento com esse instituto houve o repasse de recursos do governo do estado
aos órgãos municipais, essa medida tinha a intenção de ampliar os loteamentos populares e que ficassem mais
acessíveis.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
262
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
Para mulher, ter um emprego, significa, embora isso nem sempre se eleve a nível de
consciência, muito mais do que receber um salário. Ter um emprego significa
participar da vida comum, ser capaz de construí-la, sair da natureza para fazer a
cultura, sentir-se menos insegura na vida. Uma atividade ocupacional constitui,
portanto, uma fonte de equilíbrio. Todavia, o equilíbrio da mulher não pode ser
pensado exclusivamente como o resultado do exercício de atividade ocupacional.
Seu papel na família é a contrapartida necessária de suas funções profissionais, nas
sociedades capitalistas (SAFFIOTI, 1976, p. 30).
É perceptível que dona Vilka sente saudade de ter uma vida mais ativa, de conviver
com mais pessoas e da época que era jovem. Ser operária, por mais difícil que fosse,
contribuiu para dar um significado à vida, e a dignidade da conquista em viver na cidade e
criar os filhos.
Dona Saloméa/Marta entrou na madeireira em 1982, após perder o emprego como
doméstica. Assim como Maria Cândida, aprendeu a ler, escrever e fazer contas com as
colegas, trabalhando na madeireira. Nos anos 1980, o índice nacional de analfabetismo era de
25,5%, e 19,3% no Paraná. De acordo com Oliveira (2000), a preocupação em diminuir esses
índices começou a ser colocado em prática somente a partir da Constituição de 1988, com
projetos voltados aos anos iniciais do Ensino Fundamental. A escolarização passou a ser
exigida concomitante ao processo de industrialização, que precisava de uma escolarização
maior de trabalhadores(as). Segundo Oliveira (2000), o ano de 1990 foi marcado por
reformas educacionais referentes ao Ensino Fundamental e combate ao analfabetismo.
Como já apontado, com pouca ou nenhuma escolaridade, para sobreviver, a classe
trabalhadora era obrigada a aceitar empregos com duras condições de horários e salários.
Dona Saloméa/Marta, rememora a busca pelo emprego com riqueza de detalhes, em maio de
1982:
Lembro bem, que naquele dia que cheguei aqui estava muito frio, foi no forte do
inverno no mês de maio, estava chuvoso e viemos para cá mesmo assim ... não
tínhamos escolha. Precisávamos de emprego. Eu e minha irmã viemos para a cidade
primeiro. Chegamos aqui roxas de frio no dia 01 de maio, às 23h00 da noite. Na
época, a empresa não tinha teste ou entrevista, a conversa acontecia com os próprios
gerentes que faziam perguntas simples e iam mostrando os setores para mim. As
atividades relativas a um cargo superior, como de operar máquinas, por exemplo,
começaram a ocorrer no período da administração da Coralplac. O emprego era para
mim e meu marido, só que ele não estava aceitando trabalhar no local. Eu fiquei
aqui e criei raízes, todos os meus serviços eu criava raízes, porque sempre fui
honesta com o meu trabalho e fiz praticamente de tudo na vida! Aos poucos meus
irmãos também vieram em busca de trabalho e conseguiram também na firma
(SALOMÉA/MARTA, 2021).
Ela vinha de regiões que fazem em média 23,3ºC no verão e 15,4ºC no inverno. Na
região do 3º planalto, as temperaturas no inverno chegam facilmente abaixo de 0º. A
memória vívida - data e horário exatos – indicam o choque de uma mudança climática e
cultural necessária e sem possibilidade de escolhas, como ela menciona. O “criar raízes” se
refere ao tempo em que trabalhou na empresa – por 24 anos. Com a separação do marido,
voltou a morar com a mãe. Logo após a vinda dela, mãe e irmãos seguiram da roça para a
cidade também. Nos 24 anos que trabalhou na madeireira foi servente por dois anos, passou a
função de “encarregada”, chegou a ser gerente do setor de expedição e acabamento, e foi uma
das primeiras operadoras de máquinas de empilhadeira da empresa. Nas palavras dela:
23
no período da 2ª administração da empresa (Ângela Napoli e José Arthur Gomes), arrumar completar
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
264
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
Eu entrei lá! Porque precisava ajudar os meus pais, e meu cunhado já trabalhava lá,
desde os 14 anos, sabe? Então foi ele que me indicou para trabalhar lá. Na época ele
era um dos encarregados e me colocou para trabalhar na laminadora, no secador, na
bolacheira e nas capas. Bem no final da firma, quando estava quase fechando, me
colocaram para fazer o café da tarde, mas eu não gostava, só que era preciso
naquela época né (MARIA HELENA, 2021).
[...] Naquele tempo eu não era casada e morava com a mãe, então precisei ficar um
tempo sem trabalhar fixo para cuidar dela, meus irmãos e minha irmã já eram
casados e tinham suas famílias, e como eu ainda morava com ela precisei cuidar
dela, eles também ajudavam na medida do possível (MARIA HELENA, 2021).
Em sua narrativa parece precisar explicar que não era casada - aos 14 anos – e por isso
cabia a ela o cuidado com a mãe. Também de forma saudosa e orgulhosa, Dona Marli, ao
longo dos 16 anos que trabalhou na empresa, narrou ter cumprido vários turnos e passado por
diversas funções: auxiliar de produção (trabalhava no processo de laminação da madeira);
encarregada de produção (fiscalização de produção feita pelos auxiliares, onde verificava a
quantidade e a qualidade da produção); gerente e operadora de máquinas (atuava fazendo a
fiscalização dos auxiliares e dos encarregados e passava as informações aos superiores, sobre
a produtividade, qualidade da produção e tempo de produção) e foi chefe do turno da noite da
empresa. Essa última consistiu nas mesmas atividades do encarregado da produção, apenas
mudava o turno para a noite. Fez isso por nove anos.
Lembranças dos “bons patrões” também estão embaralhadas na sutileza de pequenas
reclamações em falas menos edulcoradas. Dona Saloméa/Marta, se refere de forma afetuosa
(diminutivo) ao gerente geral:
Seu Pedrinho é muito boa pessoa até hoje! Na época ele estava como gerente geral
da firma e o dono era o pai da dona Ângela. O seu Renato era muito gente boa
também, e era calmo para conversar e mandar nos funcionários...quando ele passou
a empresa para filha ele continuou na empresa, sabia? Ele ficou tipo um vendedor
externo. Ele pegava as madeiras que eram produzidas na Coralplac e vendia para o
mercado externo (SALOMÉA/MARTA, 2021)24.
24
Período que a empresa estava sob administração de Renato Napoli.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
265
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
Seus relatos sobre os chefes indicam uma visão paternal. De acordo com Rago (1986),
“[...] a auto imagem paternalista que alguns industriais constroem [...], visa reforçar sua
autoridade, simbolizada na figura do pai, e assegurar a integração do trabalhador ao aparato
produtivo” (RAGO, 1986, p. 34). Essa ideia faz com que haja uma aproximação do chefe
com o funcionário, e até mesmo pode fazer com que os próprios operários aceitem ordens e
orientações e condições de trabalho sem grandes questionamentos. Isso também pode ser
associado a compreensão que a empresa é a segunda casa das operárias e que todos(as) que
trabalhavam faziam parte da mesma família:
Nessa fase da firma, creio eu, que a empresa já tinha muitos funcionários se duvidar
passava 300 nos anos 1990. As mulheres eram em sua maioria auxiliares de
produção, mas aos poucos passaram a ser encarregadas, porteiras, telefonistas,
operadoras de máquinas entre outros. Eu acho que na época homens e mulheres já
contabilizavam aproximadamente 50% de cada (ANADIR, 2022).
Em 1995 foi preparada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a IV Conferência
Mundial Sobre a Mulher. Neste evento foram discutidas questões sociais e políticas
referentes a mulheres no mercado de trabalho, com o intuito de propor a possibilidade de
cotas para mulheres nas empresas e no judiciário. O reflexo que essa conferência trouxe para
o Brasil foi a realização de uma campanha chamada “mulheres sem medo no poder”.
Segundo Leila Machado Coelho & Marisa Batista (2009):
Mudanças necessárias para que, cada vez mais, as mulheres pudessem ocupar novas
posições na sociedade, seja no mercado de trabalho ou na política. Infelizmente, nem tudo
que foi colocado em pauta foi posto em prática, apesar de que era a primeira vez que haviam
começado a falar sobre a possibilidade de cotas para mulheres.
Nas memórias dessas mulheres a dureza da vida operária está intercalada às
amizades, a aprendizagem, a capacidade produtiva, o manejo com as máquinas, a conquista
da casa própria e a criação de filhos(as). Mulheres das classes populares e de um estado em
franco êxodo rural e que tiveram poucas oportunidades de trabalho e de renda, e que com
Mãe operária
A expressão de dona Geralda “[...] mas eu esperei ‘firmar lá’ [...]”, expressa o temor
da demissão que uma gravidez poderia acarretar. A partir das falas das entrevistadas,
observamos que as mulheres que foram mães durante o período que trabalharam na empresa,
esperaram entre cinco a dez anos para “firmar” no emprego.
Anteriormente já apontamos a condição de precariedade daquelas que já tinham
filhos(as) quando entraram na madeireira, nos anos 1980. A necessidade de sobrevivência
implicava em deixar filhos(as) sozinhos (as) em que os maiores cuidavam dos mais novos e à
medida que iam crescendo, também precisavam encontrar emprego. Segundo Lucila Scavone
(2001, p. 49):
A tripla jornada de trabalho era parte da dificuldade em ser operária e mãe: o dilema
dos cuidados com os(as) filhos(as), com a casa e o trabalho na fábrica. Cinco das onze
operárias entrevistadas tiveram ao menos um filho durante o período que foram operárias na
madeireira. Quatro delas já entraram na empresa sendo mães: Vilka, Cândida, Marilda e
Rozana.
A senhora Rozana relata que tinha dois filhos quando entrou na empresa. Contou que
na época eram pequenos e teve dificuldades em relação ao seu horário de trabalho, por conta
de trabalhar o dia todo: “Meus filhos ficavam de manhã na casa da minha mãe, a partir das 7
horas da manhã, ficavam a manhã inteira lá. Depois que almoçavam iam para escola,
conseguiam ir sozinhos, já eram grandinhos” (ROZANA, 2022).
As legislações sobre licença maternidade foram configuradas a partir da Constituição
de 1988. A partir da Lei nº 8.213/1991, mulheres passaram a ter direito a licença
(remunerada) maternidade, por 90 dias, na condição biológica ou adotiva (TAVAREZ, 2020).
As operárias que tiveram filhos declaram que tiveram direito a licença maternidade, contudo,
a expressão utilizada por dona Geralda - “firmar no trabalho” - , indica que nem tudo estava
assegurado.
Uma delas relatou que quando grávida executava as mesmas atividades, mesmo
horário e hora extra que as demais operárias. Dona Aguina também trouxe em seu relato as
dificuldades. Ela relembra que: “Independente de estar grávida ou não, o serviço era o
mesmo! Era cansativo, andava bastante, e ficava muito tempo em pé, tinha dias que não era
fácil, ainda mais no final da gestação” (AGUINA, 2021). Assim que o primeiro filho nasceu,
saiu do emprego:
Abdicar do trabalho, negociar com o marido, foi a solução encontrada por ela, uma
vez que as dificuldades de ser mãe e operária a forçaram a escolher pela família. Segundo
Scavone, entre o modelo reduzido de maternidade e a variedade crescente de tipos de mães
(mães dona de casa, mães chefes de família, mãe de “produção independente”, “casais
igualitários”) e as diversas soluções encontradas para os cuidados da criança (creches
públicas, babás, escolas, vizinhas que dão uma olhadinha, crianças entregues a seus próprios
cuidados e aos avós), a maternidade foi se transformando: seguindo tanto as pressões
demográficas, as diferentes pressões feministas e os desejos de cada mulher (SCAVONE,
2001).
Dona Marli, quando se casou, conforme narra, conseguiu comprar um terreno no
Jardim Los Angeles, a uma quadra e meia da antiga madeireira. Seu marido passou a
trabalhar também na empresa, em turnos alternados aos dela. Ou seja, quando ela trabalhava
no turno da noite, ele trabalhava no turno do dia. Essa foi uma estratégia adotada pelo casal
por conta da dinâmica do cuidado da casa e logo que tiveram filhos(as). O casal teve quatro
filhos durante o período em que ela trabalhava na empresa. Sobre a rotina com a família e o
cuidado com os filhos pequenos, ela rememora:
Aqui em casa tinha que ser tudo dividido, se eu trabalhava a noite, meu marido
tinha que ficar em casa no horário que eu não estivesse, por conta dos filhos. As
atividades precisavam ser divididas, quando eram pequenos ele precisava ficar com
eles, fazer a comida e organizar as coisas em casa. E sempre precisamos trabalhar
em horários alternados, até começarem a ter idade suficiente de irem para escola e
ou de ficarem sozinhos (MARLI, 2021).
Eu trabalhei com o pai dos meus filhos na madeireira, e aos poucos, durante 13 anos
de trabalho juntamos dinheiro para empreender, para montar uma lanchonete era o
nosso sonho. Quando conseguimos, meu casamento começou a entrar em crise e
começamos a nos se desentender e me separei dele, depois ele veio a falecer. Eu
sinto um pouco de falta, é estranho as vezes, sabe?! (ROSILENE, 2021).
O esforço dedicado ao sonho por longos anos e seu fim, são mesclados as lembranças
sobre as funções que executava na madeireira: “Eu fazia de tudo um pouco, pois eu era
auxiliar né” (ROSILENE, 2021). Narrou que sua gravidez foi planejada. Teve o primeiro
filho após dez anos de casada e sete como operária. Quando seu filho mais novo fez seis anos
de idade, pediu demissão para abrir a lanchonete, que funcionou por cerca de 15 anos. Depois
ela se aposentou e a vendeu .
A senhora Anadir relatou que teve quatro filhos enquanto trabalhava na madeireira,
assim como seu marido:
O meu marido trabalhou lá, e fez de tudo um pouco como eu fazia, trabalhávamos
em turnos de até 12 horas por dia. Eu fazia o turno de dia e ele a noite, fazíamos
isso para poder ficar com os filhos, sem precisar de ajuda de avós ou para precisar
contratar baba. A minha filha mais velha na época deveria ter uns 12 anos na época,
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
270
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
não lembro com precisão das idades, mas sim da rotina de ter essa estratégia em
casa para cuidar deles (ANADIR, 2022).
Dominar as máquinas
Conforme observado por dona Anadir, houve diversificação das funções das operárias
ao longo da década de 1990. Nesse momento a empresa contava com cerca de 320
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
271
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
funcionários e seus proprietários resolveram fazer uma espécie de seleção interna para
organizar “uma nova turma de operadores de máquinas”, segundo dona Marli.
A máquina em questão era a empilhadeira. Esse tipo de maquinário desenvolvido e
utilizado em fábricas desde 1927, tem a capacidade de elevar os produtos a serem
transportados por até 15m. Um tipo de máquina que exigia alta concentração e cuidado em
seu manuseio, pois não tinha segurança em sua utilização25.
Nesse período, a preocupação do mercado era otimizar o trabalho, aumentar e
destinar parte da produção ao mercado externo, por isso precisou aumentar o número de
operadores. De 1980 a 1989, a madeireira tinha uma ou duas máquinas empilhadeiras
trabalhando entre os setores, segundo as entrevistadas. Com a nova direção, novas
empilhadeiras foram compradas e a empresa passou a ter quatro ou cinco máquinas.
Segundo dona Saloméa/Marta (2021), um dos critérios para assumir a empilhadeira
era o tempo de trabalho na empresa. Os recém-contratados não eram chamados, pois tinha
que ser encarregado(a) de setor, ou gerente, para fazer os treinamentos e testes. Duas delas
foram convocadas para realizar esse treinamento: dona Saloméa/Marta e dona Marli, que
estavam trabalhando na empresa desde os anos 1980. Segundo dona Marli, cerca de dez
funcionários foram convocados26 para testes e treinamentos com a empilhadeira, pelo diretor
da empresa. Ele mesmo fez a convocação para que as duas participassem: “Na hora eu senti
medo! O medo era de fazer errado, de não conseguir. O seu José Arthur me pediu para fazer o
teste e não recusei, eu era encarregada na época e os encarregados também poderiam ser
operadores, e eu fiz o teste e passei!” (MARLI, 2021). O medo da falha, dos erros, de não
dominar a empilhadeira e até questionar a própria capacidade, aparecem nas rememorações
dela, frente a novidade de ocupar essa função, até então desempenhada só por homens. Além
disso, apenas ela e Saloméa/Marta conseguiram conquistar tal espaço. Sobre isso,
Saloméa/Marta, afirmou:
As máquinas tinham tamanhos diferentes, tinha 30, 40 e 50. Esses tamanhos eram
com relação a quantidade de cargas que as empilhadeiras suportavam. Eu conseguia
da menor até a maior! Lembro que fiz o teste e passei, e que na época até precisava
de carteira de motorista, até hoje precisa na verdade, mas eu nunca tive e me tornei
operadora mesmo assim! (SALOMÉA/MARTA,2021).
25
Segundo o Instituto Ergon (2021), somente nos anos 1960 projetistas passaram a aperfeiçoar essa máquina,
construindo cobertura para reduzir o risco de queda de materiais sobre o operador e evitando o desmoronamento
de produtos durante o processo de carregamento. Preocupação legais com a segurança exigiam que os
operadores passassem por treinamentos técnicos para aprender como operar, desde 1970, e a realização de
treinamentos de segurança com orientações ao encarregado(a) do setor.
26
Dona Marli não conseguiu recordar com exatidão o número de funcionárias que fizeram os treinamentos, mas
se recorda que havia apenas ela e mais uma colega de trabalho mulher, os demais eram todos homens.
Revista TEL, Irati, v. 14, n. 2, p. 251-277, jul./dez. 2023 - ISSN 2177-6644
272
Andriele de Jesus Gomes & Rosemeri Moreira
Operárias da madeira: trabalho, memórias e identidade
27
A indústria madeireira se aperfeiçoou na produção de compensados a partir de quatorze etapas: 1 - Cozimento
de toras: as toras, ainda no pátio, são cobertas e aquecidas por um sistema de vapor que a prepara para a
laminação; 2 - Laminação: já na entrada do barracão, as toras são colocadas em um torno que as transforma em
lâminas; 3 - Corte das lâminas: nesse momento as lâminas vão a guilhotina para serem cortadas do tamanho
adequado, conforme a demanda de produção; 4 - Secagem: as lâminas são colocadas em secadores que são
alimentados em uma extremidade, as lâminas percorrem o interior do secador em esteiras, e são recebidas na
outra extremidade, já secas; 5 - Classificação das lâminas: nesse momento as lâminas são classificadas e
separadas conforme a produção; 6 - Colagem: as lâminas são colocadas em máquinas chamadas Passadeiras,
entre dois rolos recebem a cola; 7 - Montagem: as lâminas são recebidas das Passadeira acomodadas em
camadas. 8 - Assemblagem: as lâminas são acomodadas na prensa; 9 - Pré-prensagem: nessa fase ocorre a
uniformização da montagem; 10 - Prensagem: é o momento em que ocorre a colagem definitiva das lâminas, em
chapas de espessura que variam conforme os pedidos dos clientes; 11 - Amassamento: é o momento em que se
aplica massa para corrigir pequenas falhas que porventura existam na superfície da chapa; 12 - Usinagem: já é a
fase de acabamento. 13 - Lixamento: polimento; 14 - Enfardamento: as chapas são enfadadas para serem
enviadas aos clientes (NEIVERTH, 2011, p. 96).
28
Segundo o Art. 461 da CLT.
rememorada com altivez e dignidade. Mulheres que foram alimentadas por sonhos de
melhoria de vida, e que não sem receios, cansaço, angústias e aflições (criação de filhos(as) e
perder emprego), sobreviveram com suas famílias em meio a um processo violento de êxodo
rural, urbanização e desenvolvimento e declínio da indústria madeireira no Paraná.
Considerações finais
Fontes - Entrevistas
Referências
BRAVIN, Jeronimo R, GÓIS, Sandra Lucia Videira; BRAIN, Suellen Miranda Ribeiro. A
formação industrial no Paraná: do desenvolvimento e formação de aglomerados a distribuição
desigual do espaço. Revista Eletrônica de Geografia, v. 7, n. 18, p. 48-66, 2015.
LAZZARI, Francini Meneghini: SOUZA, Andressa Silva. Revolução Verde: impactos sobre
os conhecimentos tradicionais. In: 4º Congresso Internacional de Direito e
Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede, Santa Maria: Anais do 4º
CIDC, 8 a 10 de novembro de 2017.
NEVES, Magda de Almeida. Anotações sobre trabalho e gênero. In: NEVES, Magda de
Almeida. Cadernos de pesquisa. 43. Ed. - São Paulo: Scielo, 2013. p. 404-421.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História:
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 10, 1993.
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica.
História, v. 24, n. 1, p.77-98, 2005.
PERROT, Michelle. As mulheres, o poder, a história. Rio de Janeiro. In: PERROT, Michelle.
Os excluídos da história, operários, mulheres e prisioneiros: Paz e Terra, 1988. p.
165-185.
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar 1830-1930. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
TEIXEIRA. Cintia Maria. As Mulheres no Mundo do Trabalho: Ação das Mulheres, no Setor
Fabril, para a Ocupação e Democratização dos Espaços Público e Privado. Teoria e
Pesquisa, v. 25, n. 2, p. 237-244, 2009.
VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Memórias de uma ausência: mulheres sem filhos e
suas narrativas sobre a maternidade no Paraná do século XX. História Regional, v. 21, n. 2,
p. 338-363, 2016.