Tese
Tese
Tese
UMinho|2009
Setembro, 2009
Universidade do Minho
Instituto de Ciências Sociais
Setembro de 2009
É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO PARCIAL DESTA TESE
APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE
DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE COMPROMETE
i
Agradecimentos
Ribeiro e Ana Elisa Ribeiro, agradeço pela presença, mesmo que virtual, e pela paciência ao
esperar por notícias quando eu desaparecia.
Agradeço a Diogo Ascenso Gomes por estar ao meu lado desde o desembarque em
Lisboa e por me acompanhar ao longo destes 4 anos. Obrigada por me apoiar, por ouvir meus
surtos, por deixar de lado tudo e todos para estar comigo em Braga nos momentos mais
difíceis. Por me incentivar, por acreditar em mim e por não me deixar abater frente às
adversidades. O laço que estabelecemos atravessou um oceano, sobrepôs-se às diferenças
culturais e foi responsável por nos revelar que somos mais fortes do que imaginamos e que a
construção de uma vida a dois pode e deve ser muito divertida. Obrigada por me apresentar
Portugal de um prisma diferente.
Agradeço aos amigos portugueses que fiz ao longo da trajectória académica, fazendo
com que a minha estadia aqui não se resumisse a entrar e sair dos arquivos. Conheci Portugal
e os portugueses com vocês. Agradeço às famílias Ascenso, Aguilar e Gomes por me
acolherem e me fazerem sentir como membro da família. Foi reconfortante vivenciar
momentos de família enquanto estive longe da minha grande família Castro e Pereira.
Aos funcionários dos arquivos onde investiguei, d´aquém e d´além mar, agradeço pela
paciência e gentileza com que me ajudaram ao longo da investigação.
Agradeço à grande amiga que descobri aqui, Maria Paula Paes, por me receber em sua
vida, em sua casa, desde o primeiro momento. Foi muito importante para saber que tinha para
onde “correr” quando as coisas apertassem e, não só, saber que tinha uma amiga com quem
compartilhar risadas, viagens e a vida do lado de cá do Atlântico.
E, finalmente, mas não menos importante, agradeço à minha família. Meus pais,
Helvio e Rosa, minhas irmãs, Beatriz e Clarice, pelo apoio incondicional que me deram desde
que decidi me aventurar por mares nunca dantes navegados. Ao longo destes 4 anos, estar
longe de casa não foi fácil e não teve um dia sequer que eu não tenha pensado em vocês. A
ausência em dias importantes (casamentos, aniversários, natais) foi sofrida, mas foi
consequência da opção que fiz. E acho que valeu à pena.
iii
Resumo
Abstract
ÍNDICE
Introdução ................................................................................................................................... 1
Capítulo V – Exonerar a consciência e melhorar a sorte dos frutos de seus erros ................. 148
5.1. O reconhecimento da paternidade e da maternidade ilegítima .................................... 148
5.2. Testar: salvar a alma e garantir a sustentação dos filhos naturais ................................ 154
5.3. Legitimar: prova de bondade........................................................................................ 169
SC – Secção Colonial
Lista de gráficos
Gráfico 1 – Categoria da filiação versus sexo na Paróquia de São João do Souto, p.136
1700 – 1799.
Gráfico 2 – Estatuto legal dos progenitores de filhos naturais, Paróquia de Nossa p.144
Senhora da Conceição do Sabará, 1723 – 1782.
Gráfico 3 – Estado matrimonial dos progenitores dos filhos naturais, Paróquia de p.156
Nossa Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
Gráfico 4 – Distribuição dos testadores por sexo, Paróquia de São João do p.164
Souto, 1700 – 1799.
Gráfico 5 – Distribuição do património dos inventariados da Paróquia de Nossa p.209
Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
Gráfico 6 – Percentual de dívidas activas e passivas no rol dos inventariados da p.210
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
viii
Lista de tabelas
Lista de Quadros
Lista de Mapas
Introdução
No século XVIII o Império Português foi o primeiro a ser constituído na Europa
moderna1. Sua duração abrangeu quase 6 séculos, desde a conquista de Ceuta (1415) à
anexação de Macau à República Democrática da China (1999). Nas centúrias em questão, o
Império Português era compreendido pela América portuguesa2 (parcela definida pelo Tratado
de Tordesilhas3 no ano de 1494), pelas costas oriental e ocidental da África e pelas principais
cidades do continente asiático. Pode-se dizer que os quase 6 séculos de constituição do
Império Português estiveram divididos em três momentos: o primeiro deles é aquele em que
os olhares da coroa portuguesa estiveram voltados para o Oriente4 e para o continente
africano5. Este período estendeu-se por mais de 200 anos (1415-1665) chegando ao fim
devido a uma série de factores entre os quais podemos apontar: a reorganização, por parte dos
turcos e Árabes, das suas rotas de comércio6.
Frente à redução das rotas do comércio português com o oriente iniciou-se o segundo
momento do Império Português: a conquista da América que se estendeu por mais de 300
anos (1492 a 1822) período em que adentraram pelas praças de comércio portuguesas o pau-
brasil, o tabaco, o açúcar, os diamantes e o ouro provenientes da América portuguesa. A
independência do Brasil trouxe consigo, novamente, a reorientação dos olhares portugueses
para suas colónias africanas e para as cidades asiáticas que tinha conseguido manter (Goa,
1
DIFFIE, B. W.; WINIUS, G. D., A fundação do império português: 1415-1580, Lisboa, Vega, [D.L. 1989]; AMADO, J.; FIGUEIREDO,
L. C.; CAPELATO, M. H. R., A formação do império português (1415-1580), São Paulo, Atual, 1999; BOXER, C. R., O império colonial
português, Lisboa : Edições 70, imp. 1977;
2
O uso da expressão América Portuguesa foi difundido por Sebastião da Rocha Pita em sua obra História da América Portuguesa, editada no
ano de 1730. Entre os historiadoresbrasileiros o termo foi retomado por Fernando Novais com o objectivo de evitar o uso de expressões
anacrónicas como “Brasil colónia”. A partir de então o uso da expressão tornou-se recorrente entre aqueles que se dedicam ao estudo da
História da América enquanto parte integrante do Império Português. VAINFAS, R. (org.), “América Portuguesa”, in Dicionário do Brasil
Colonial, Objetiva, Rio de Janeiro, 2000, 36-37.
3
Tratado assinado na cidade de Tordesilhas motivo pelo qual ficou assim denominado. Firmado entre Portugal e a Coroa de Castela foi
reponsável pela divisão do Novo Mundo entre as duas coroas. A Portugal couberam as áreas descobertas e por descobrir situadas 1.770 klm
antes de uma linha imaginária estabelecida e que tinha como ponto de referência as Ilhas de Cabo Verde. À coroa espanhola couberam as
áreas situadas depois desta linha. A imposição dos limites no Novo Mundo entre as duas coroas orientou a exploração e fixação dos
portugueses e espanhóis na América Meridional. Sobre o Tratado de Tordesilhas, ver PORTUGAL.; ESPANHA., Tratado de Tordesilhas,
Fac-simile do Ms. Gavetas 17, Maço 4, no 17 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Edições INAPA, 1991; COSTA, M. F., O
descobrimento da América e o Tratado de Tordesilhas, [Lisboa], Inst. de Cultura Portuguesa, 1979; CORTESÃO, A., D. João II e o Tratado
de Tordesilhas, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1973.
4
XAVIER, Â. B., “organização religiosa do primeiro Estado da Índia. Notas para uma investigação”, Anais de História de Além-Mar, ed.
João Paulo Oliveira e Costa, vol. 5, Dez. 2004, p.27-60; COSTA, J. P. O., “O Império Português em meados do século XVI”, Anais de
História de Além-Mar, ed. Artur Teodor de Matos, vol. 3, Dez. 2002, 87-121; RODRIGUES, V., “O Reforço do Poder Naval Português no
Oriente com Afonso de Albuquerque (1510-1515): suas implicações”, Anais de História de Além-Mar, ed. Artur Teodor de Matos, vol. 3,
Dez. 2002, p.155-163; COSTA, J. P. O.; GUERREIRO, M. J., O Império Português do Oriente, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministerio da
Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; SUBRAHMANYAM, S., O Império Asiático Português 1500-
1700: uma história política e económica, Lisboa, Difel, D.L. 1995; CORTESÃO, J., O Império Português no Oriente, Lisboa, Portugália,
imp. 1968;
5
COQUERY-VIDROVITCH, C., A descoberta de África, Lisboa, Edições 70, 2004, TORRES, A., O império português: entre o real e o
imaginário, Lisboa, Escher, imp. 1991.
6
Sobre a actividade comercial na época dos descobrimentos, ver GODINHO, V. M. Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Lisboa,
Presença, 2a ed., correcta e ampliada, imp. 1981-1982, 4v.
2
Damão, Diu, Macau e Timor Oriental). O terceiro e último momento do Império Português
perdurou desde 1822 até 1974, ano em que ocorreu em Portugal a Revolução dos Cravos que
acabou por enfraquecer o poder português nas colónias africanas7 e fortificar, entre os
colonos, os movimentos de libertação. A partir desta data, apenas restava do grande império a
pequena cidade de Macau, no continente asiático que tinha sido doada pelos chineses aos
portugueses, no reinado de D. João III, em retribuição aos feitos portugueses na aniquilação
dos piratas no Mar Amarelo.
Tendo em conta a extensão do Império Português tornava-se fundamental abordar a
intensa circulação8 de pessoas e mercadorias ocorrida ao longo dos 6 séculos de constituição
do mesmo. A cidade de Lisboa era a principal praça de comércio do Império Português
concentrando as mercadorias recebidas por Portugal de suas colónias e demais nações
modernas, mas também as mercadorias exportadas por Portugal. Em meados do século XVIII
chegaram a Portugal cerca de trinta e cinco produtos diferentes provenientes do Brasil e, no
final deste mesmo século eram cerca de 125 produtos9 na praça lisboeta vindos da América.
De Lisboa os produtos ganhavam o “mundo” e adentravam nas praças comerciais das grandes
nações europeias da época: Espanha, Itália, Países Baixos, Inglaterra, além de circularem
pelas demais colónias portuguesas da Ásia e África caracterizando um intenso comércio
intercolonial. O mapa 1 apresenta a composição territorial do Império Português que utilizou
o mar para estabelecer os elos de ligação entre as suas possessões: as rotas do Atlântico
(Norte e Sul), do Oceano Índico e do Pacífico foram, por um longo período, utilizadas pelas
embarcações portuguesas.
7
A colonização portuguesa na África teve início ainda no século XIV com a ocupação das Ilhas Canárias. No início da centúria seguinte, a
partir de 1415 com a conquista de Ceuta, os portugueses iniciaram a conquista de terras em África de maneira mais enérgica. As colónias
portuguesas em África foram: Guiné-Bissau, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde.
8
Sobre o conceito de circulação de mercadorias, ideias e indivíduos, ver RUSSEL-WOOD, A. J. R., Um Mundo em Movimento, Porto,
Difel, 2006; BOXER, Charles R., A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira , 2000; FURTADO, J. F. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo,
Hucitec , 1999; PEDREIRA, J. M. V., Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822), Lisboa, Universidade
Nova de Lisboa , 1995, (Tese de doutorado); ZEMELLA, M. P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII, São Paulo,
Hucitec/Edusp , 1990; RUSSELL-WOOD, A. J. R. “El Brasil colonial: el ciclo del oro, c. 1690 –1750”, in BETHELL, L. (ed.). História de
América Latina 3, Barcelona, Editorial Crítica , 1990, 260-305; GODINHO, V. M., “As frotas do açúcar e as frotas do ouro, 1670-1770”, in
GODINHO, V. M., Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, séculos XIII-XVIII, Lisboa, Difel , 1990, 477-496; CARRARA, A. A.
Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807), Rio de Janeiro, UFRJ, 1997 (Tese de doutorado); BOSCHI, C. C. “Nem
tudo que reluz vem do ouro...”, in SZMRECSÁNYI, T. (org.). História econômica do período colonial, São Paulo, Hucitec, 1996, 57-66.
9
Russel-Wood enumera, entre outros produtos: ouro (em pó, em barra e em moeda), diamantes, sacos de lã, farinha, mel, troncos de
jacarandá, cacau, café, drogas medicinais, especiarias e muitos outros. RUSSEL-WOOD, A. J. R., Um Mundo em Movimento, Difel, Porto,
2006, 199-200.
3
10
ALENCASTRO, L. F.,O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
11
Estima-se que desde finais do século XVII até finais da centúria seguinte mais de meio milhão de portugueses tenha se dirigido para a
América portuguesa. O intenso fluxo emigratório fez com que fosse imposta pelo rei a necessidade de expedição de passaportes que
registassem a saída dos portugueses do continente. Especificamente as leis de 20.03.1720 e a de 09.01.1792. Tais documentos, acredita-se,
não chegaram a ser produzidos. Em virtude disso, é difícil mensurar o quantitativo anual de portugueses que emigraram para a América
portuguesa. Cf. HIGGS, D. “Portuguese Migration before 1800”, in Portuguese Migration in Global Perspective, Toronto, edição de David
Higgs,1990, p. 18; TRINDADE, M. B. R., “Emigração”, in Dicionário Ilustrado de História de Portugal, vol. I, p. 206; SOUSA, F. A
população portuguesa nos inícios do século XIX, 2 vols, Dissertação de Doutoramento, Porto, Universidade do Porto, 1979.
12
RODRIGUES, H., Emigração e alfabetização: o Alto-Minho e a miragem do Brasil, Viana do Castelo, Governo Civil, 1995; HIGGS, D.
“Portuguese Migration before 1800”. In Portuguese Migration in Global Perspective, direcção de David Higgs, Toronto, The Multicultural
History Society of Toronto, 1990; MARTINIÉRE, G., “A emigração portuguesa na colónia”, in O Império Luso-Brasileiro, 1620-1730,
coordenação de Frédéric Mauro, vol. VII da Nova História da Expansão Portuguesa, direcção de Joel Serrão e de A.H. de Oliveira Marques,
Lisboa, Estampa, 1991, p. 212-216; BALHANA, A. P. “A população”, in O Império Luso-Brasileiro 1750-1822, coordenação de Maria
Beatriz Nizza da Silva, vol. VIII da Nova História da Expansão Portuguesa, direcção de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Lisboa,
Estampa, 1986; ARROTEIA, J. C. A emigração portuguesa; suas origens e distribuição, colecção “Breve”, Lisboa, ICALP, 1983; TELES,
M., A emigração portugueza para o Brazil, Lisboa, Ventura Abrantes, 1913.
13
Sobre a emigração portuguesa para a América Portuguesa e a sua fixação permanente naquele continente, ver SCOTT, A. S. V., “Velhos
Portugueses ou Novos Brasileiros? Reflexões sobre a família luso-brasileira setecentista”, In Anais da V Jornada Setecentista, Curitiba,
4
CEDOPE/ CNPq/ Editora UFPR, 2003; BRANDÃO, M. F., “O bom emigrante à casa torna”, in PEREIRA, M. H., e outros (eds.),
Emigração/imigração em Portugal, Lisboa, Fragmentos, 1993, pp. 163-183; BRETTEL, C. B., Homens que Partem, Mulheres que Esperam
- consequências da emigração numa freguesia minhota, Lisboa, D. Quixote, 1991.
14
Sobre as relações inter raciais no Império Português, ver BOXER, C. R. Relações raciais no império colonial português 1415-1825, Porto,
Afrontamento, 1977.
5
15
MARCILIO, M., A Cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850, 1. ed. São Paulo, EDUSP/ Pioneira, 1973.
16
COSTA, I., Vila Rica: população (1719-1826), São Paulo, IPE-USP, 1979
17
FARIA, S. S. de C, A colónia em movimento: fortuna e família no quotidiano colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
18
A Tese de Doutoramento desenvolvida por Silvia Brugger, foi defendida em 2002, posteriormente a obra foi editada pela Annablume.
BRÜGGER, S. M. J., Minas Patriarcal: Família e sociedade (São João Del Rei -Séculos XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007
19
FIGUEIREDO, L. R. A., Barrocas Famílias: Vida Familiar em Minas Colonial, São Paulo, HUCITEC, 1997.
20
RAMOS, D. “From Minho to Minas: the portuguese roots of the Mineiro family”, History of the American Historical Review, n. 4, vol.73,
1993, p. 639-662.
6
nas Minas Setecentistas21, Ana Sílvia Volpi Scott Desvios morais nas duas margens do
Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos22.
Em Portugal os estudos desenvolvidos sobre a temática da ilegitimidade apontam
tendencialmente para uma análise predominantemente demográfica. Estudos como os de
Maria Norberta Amorim Guimarães 1580-181923, António Amaro das Neves Filhos das
ervas: a ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII)24, Ana Sílvia Volpi Scott
Famílias, formas de união e reprodução social no Nordeste Português (séculos XVIII e XIX)
25
. Os estudos supracitados apontam índices de ilegitimidade relativamente altos quando
comparados com o restante do continente português e com alguns países da europeus.
Todavia, torna-se relevante ressaltar que os três investigadores desenvolveram estudos para a
Vila de Guimarães e as conclusões a que chegaram não podem ser atribuídas ao restante da
região minhota.
Seja em Portugal ou no Brasil, os estudos referentes à área da História da Família vêm
revelando que não existe um modelo fixo de estrutura familiar, mas modelos que se adaptam à
realidade social na qual seus membros estão inseridos. Homogeneizar a estrutura familiar,
atribuindo a ela comportamentos e laços, significa ignorar as especificidades de cada região. E
é nesse ponto que a existência dessas correntes historiográficas nos ajuda a perceber a
multiplicidade da família, na medida em que cada uma delas utilizará metodologias e fontes
distintas para seu estudo.
Relativamente à composição social da América portuguesa sabe que, em finais do
século XVIII, estimava-se que cerca de 31% a 34% da população26 era composta por brancos.
Mesmo que estes, em termos quantitativos, não tenham representado a maioria da população,
a sua fixação em terras do além-mar foi acompanhada pela tentativa de “recriação” dos
modelos administrativos e políticos vividos em Portugal continental. Neste contexto, o
denominador comum foi o homem português, o emigrante que deixou Portugal com destino
21
FURTADO, J. F. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, Hucitec, 1999.
22
SCOTT, A. S. V., “Desvios Morais nas Duas Margens do Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos”,
CEPESE/População e Sociedade, Porto, v.7, p.129 - 158, 2001.
23
AMORIM, M., Guimarães, 1580-1819; estudo demográfico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987.
24
NEVES, A. A., Filhos das ervas: a ilegitimidade no norte de Guimarães, séculos XVI – XVIII, Guimarães, NEPS/Universidade do Minho,
2001.
25
SCOTT, A. S. V., Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português - (Séculos XVIII e XIX), Guimarães, NEPS,
1999.
26
SILVA, M. B. N.; WESTPHALEN, C. M. História do Brasil: colónia, império, república, Porto, Univ. Portucalense, 1991; BALHAMA,
A. P., “A população”, in SILVA, M. B. N. (Coord.), O Império Luso Brasileiro, 1750-1822, Nova História da Expansão Portuguesa, vol.
VIII, direcção de SERRÃO, J.; MARQUES, A. H. O., Lisboa, Editorial Estampa, 1986, p.19-62.
7
ao desconhecido e que acabou por se adaptar ao viver na América criando, muitas vezes,
novos referenciais culturais.
Na América portuguesa foi escolhida a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, uma
das paróquias pertencentes à Vila de Sabará. Esta, por sua vez, no século XVIII, era a sede
administrativa da Comarca do Rio das Velhas27 que era uma das 4 Comarcas que compunham
a Capitania de Minas Gerais. A escolha da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará deve-se ao facto de aí ter sido identificado um significativo número de portugueses28
que imigraram para esta região e aí acabaram por se fixar, quando foi anunciada a descoberta
do ouro em finais do século XVII. A Capitania de Minas Gerais recebeu nos primeiros 40
anos do século XVIII um intenso contingente de portugueses, especialmente minhotos29, que
buscavam, na sua maioria, o enriquecimento proporcionado pela descoberta do ouro. No caso
dos portugueses fregueses da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará verificou-se
a presença de um significativo número de comerciantes e negociantes30 em sua maioria
provenientes do Arcebispado de Braga.
Do lado de cá, na Cidade de Braga, sede do Arcebispado de onde eram originários a
maioria dos emigrantes portugueses, foi escolhida a Paróquia São João do Souto que, no
século XVIII, tinha entre os seus residentes um grande contingente de tratantes, negociantes e
homens de negócio. A semelhança do perfil sócio económico dos portugueses nos dois lados
do Atlântico Sabará e São João do Souto, foi um dos argumentos nos levou a elencar ambas
as comunidades para este estudo. Ao considerar esta variável como ponto convergente entre
as duas paróquias o estudo desenvolver-se-á com o objectivo de apontar possíveis
transplantações de comportamentos sócio culturais, mas também adaptações do homem
português ao viver na América.
27
A Comarca do Rio das Velhas, assim como a de Ouro Preto, foi criada segundo o "[...] alvará ou ato régio com a data de 6 de Abril de
1714, criando comarcas; o que existe é um Termo de Ajuste, um termo de Junta, dividindo administrativamente as mesmas comarcas, só e
unicamente para a cobrança das 30 arrobas. [...] Que as Ouvidorias de Vila Rica, Vila Real e Rio das Mortes, foram as primeiras criadas na
Capitania de Minas, é ponto pacífico, incontroverso". CARVALHO, T. F., Comarcas e Termos; Creações, supressões, restaurações,
encorporações e desmembramentos de comarcas e termos, em Minas Gerais (1709-1915), Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais,
1920.
28
A identificação da origem dos portugueses domiciliados na Vila de Sabará foi feita por meio da leitura dos testamentos por eles deixados
e, também, das actas de casamento.
29
Sobre a imigração portuguesa, nomeadamente a minhota, para a América portuguesa, nos séculos XVIII e XIX, bem como os seus efeitos
nas comunidades de origem, ver FLORENTINO, M.; MACHADO, C. S., “Ensaio sobre a imigração portuguesa e os padrões de
miscigenação no Brasil (séculos XIX e XX)”, Portuguese Studies Review, Trent - Canadá, v. 10, n. 1, p. 58-84, 2002; FERRO, J. P., A
população portuguesa no final do Antigo Regime (1750-1815), 1ª Ed., Lisboa, Editorial Presença, 1995; RODRIGUES, H., Emigração e
Alfabetização; o Alto-Minho e a Miragem do Brasil, Governo Civil de Viana do Castelo, 1995; CRUZ, M. A., “Agruras dos Emigrantes
Portugueses no Brasil, contribuição para o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX”, in Revista de História, Vol.
VII, Centro de História da Universidade do Porto/INIC, 1986-1987; FREITAS, J. J. R., “A emigração portuguesa para o Brasil”, in Páginas
Avulsas, Porto, Livraria Chardron, 1984; BONILHA, J. F. M., “A contribuição minhota no contexto da emigração portuguesa para o Brasil”,
Sep. Bracara Augusta, 33, Braga, Of. Gráf. da Livr. Cruz, 1979.
30
FURTADO, J. F., Homens de negócios; a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, HUCITEC,
1999.
8
Mas na história não há analogias. Por isso, a principal função do historiador não é
buscar semelhanças, mas sim as diferenças mesmo quando elas parecem similares. Assim, se
ao iniciarmos este trabalho o fio condutor da investigação estava relacionado com a
transposição dos costumes e comportamentos sexuais e familiares de um lado para o outro do
Atlântico, à medida que a investigação se desenvolvia outras problemáticas surgiram ao
detectarmos comportamentos distintos nas duas margens do Atlântico em relação ao viver da
ilegitimidade. Em Portugal continental foram identificados altos índices de celibato feminino
definitivo, idades tardias de casamento entre as mulheres, altos índices de ilegitimidade e um
elevado número de fogos chefiados por mulheres. Na América portuguesa também foram
detectados elevados índices de ilegitimidade, mas associados, sobretudo, à presença
maioritária, na sociedade, de cativos africanos que, em geral, não tiveram acesso ao
matrimónio religioso. Neste contexto, foi elaborado um conjunto de questões que orientou a
análise da problemática que acabamos por definir como tema central do nosso estudo: eram
ou não os filhos ilegítimos aceites quer pelos seus pais quer pelas famílias materna e paterna
quer pelas comunidades onde estavam inseridos? Desde o inicio do nosso trabalho que
quisemos compreender o que significava a concepção de crianças ilegítimas nas duas
comunidades portuguesas. Estava a sua aceitação relacionada a uma maior permissividade da
sociedade? E em qual das duas sociedades se verificavam comportamentos mais permissivos?
O aparecimento destas crianças, fruto de relações ilícitas, estaria relacionado também com a
forma de ocupação da terra e de distribuição da herança? Em virtude da diferente composição
social das duas comunidades em questão temos como objectivo entender o modo como a
família luso-mineira organizava o universo que cercava os filhos ilegítimos.
Ao considerarmos o fato de que este estudo se baseia numa análise comparativa de
duas regiões díspares no que diz respeito à sociedade que as compunha algumas questões
serão específicas a cada uma delas. Ao analisarmos a problemática da ilegitimidade na
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição em Sabará, as questões enunciadas foram as
seguintes: a prole ilegítima era nascida somente do segmento cativo da sociedade? Que
impedimentos os filhos ilegítimos mulatos enfrentavam no decorrer de sua vida? A
legitimação de filhos ilegítimos de escravas com brancos era recorrente? Mesmo reconhecidos
pelos pais os filhos ilegítimos tinham acesso aos bens e honras paternas? Como se dava a
inserção dessas crianças no quotidiano mineiro?
Lançando nossos olhares para a ilegitimidade na região minhota, e analisando um
variado corpus documental da Paróquia de São João do Souto (pertencente à malha urbana da
cidade de Braga) outro tipo de questões específicas foram levantadas: quem eram os pais das
9
crianças ilegítimas? Era possível constituir uma família ilegítima na Cidade dos Arcebispos?
Qual o perfil das crianças nascidas fora do casamento? Eram inseridas no quotidiano das
comunidades minhotas? Qual o papel desempenhado pelos homens e mulheres das famílias
que foram desagrupadas em função da vinda dos pais para a América? Passaram as mulheres
a desempenhar o papel de chefes da família?
Levantadas estas questões, a análise perpassou pelo estudo do perfil desses ilegítimos,
bem como pelas relações com e por eles estabelecidas, a sua participação na vida familiar
(com seus direitos e deveres) e vice-versa. Como dissemos anteriormente, um estudo sobre a
ilegitimidade não pode basear-se apenas em análises demográficas. Vemos assim que um
estudo sobre a ilegitimidade deve pretender mais do que a contagem da representatividade
percentual dos filhos ilegítimos frente aos legítimos, devendo pautar-se com maior relevo em
análises voltadas para o perfil social, jurídico, religioso e cultural que regeram o quotidiano e
as relações de sociabilidade estabelecida pelos progenitores, pelos filhos e de todos aqueles
que directa ou indirectamente estavam ligados à prole ilegítima.
Inicialmente voltamos nossos olhares para a caracterização social e espacial das áreas
a que pertencem as comunidades analisadas. Em Portugal, relativamente à Província do
Minho, interessou-nos conhecer a sua composição populacional, os impactos das ondas
migratórias na organização da sociedade, os motivos que fizeram os homens, em sua maioria,
emigrarem para outras partes de Portugal e, até mesmo, para outras partes do reino. Num
contexto mais circunscrito deparamo-nos com a Cidade de Braga (sede do Arcebispado de
mesmo nome) e a Paróquia de São João do Souto. Sua população, a organização da sociedade,
os efeitos que a cidade dos arcebispos impingiu no viver de homens, mulheres e crianças
foram questões que nortearam o processo de elaboração do primeiro capítulo. Ao cruzarmos o
Atlântico, com destino às Minas Gerais, deparamo-nos com a descoberta do ouro, em finais
do século XVII, atraiu para aquela região os olhares da coroa portuguesa e um significativo
contingente de portugueses que viram no ouro a possibilidade de enriquecimento rápido. Os
primeiros anos do povoamento foram marcados pelas dificuldades encontradas pelo poder
administrativo português de controlar “as gentes” do sertão mineiro, dando origem a um
intenso trânsito de correspondências entre os governadores da capitania e a coroa portuguesa.
A máxima de que “quem dinheiro tiver, fará o que quiser” definiu relações sociais, políticas e
económicas na sociedade mineira. Inserida neste universo estava a Vila de Sabará e a
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Esta última foi o local de residência de
pais e mães de filhos ilegítimos que viveram de maneira peculiar a sua presença.
10
veremos é que neste contexto, foi fulcral a relação entre migração e a (re)organização dos
núcleos familiares, uma vez que a ausência da figura masculina, seja derivada da emigração,
seja das actividades profissionais exercidas e até mesmo pela morte, fizeram com que as
mulheres se tornassem administradoras dos bens e responsável pela educação e sustento dos
filhos.
E o que dizer do significado de nascer ilegítimo no Antigo Regime? Relativamente a
este aspecto analisaremos a abordagem feita pelo Direito Civil e Eclesiástico da concepção e
do nascimento de filhos ilegítimos. Quem foram os progenitores da prole ilegítima nas duas
paróquias e como viveram o seu nascimento. Qual a representatividade da ilegitimidade
infantil nas duas paróquias. A hipótese de transposição dos hábitos e costumes do além-mar
confirma-se? As altas taxas de ilegitimidade vistas na América portuguesa contrapostas com
as identificadas para comunidades do além-mar nos permitem, de facto, estabelecer alguma
analogia entre o viver da ilegitimidade nas duas margens do Atlântico?
Frente à impossibilidade de negar a descendência ilegítima os progenitores se viram
diante da necessidade de exonerar a consciência e garantir, de alguma maneira, que os filhos
ilegítimos fossem amparados. Os testamentos, as escrituras de legitimação e as cartas de
legitimação foram instrumentos por meio dos quais os pais e as mães puderam reconhecer a
sua descendência publicamente. O acto de testar, de expressar as últimas vontades, neste
aspecto, assumiu dois sentidos: primeiramente, a intenção do testador de salvar a alma
assumindo culpas e pecados cometidos ao longo da vida e, derivado disto, a intenção de
amparar os filhos ilegítimos. Estes, ora foram instituídos como herdeiros, ora receberam
legados como forma de lhes garantir o sustento. As escrituras de cartas de legitimação foram
também instrumentos utilizados pelos progenitores para reconhecerem os filhos nascidos de
relações não sacramentadas pela Igreja Católica. Legitimar, reconhecer publicamente os
frutos daquelas relações e, sobretudo, assumir o amor e afeição dispensada a eles ao longo da
vida foi a maneira encontrada por pais e mães de garantir que os filhos pudessem herdar seus
bens e “desejar que eles tenham bens com que melhor possam passar a vida”.
E, finalmente, a possibilidade efectiva de herdar os bens deixados pelos progenitores
revela-se na análise dos inventários post-mortem. A expressão das últimas vontades nos
testamentos não era, entretanto, garantia de que os bens adjudicados pelos pais aos filhos
fossem, de facto, entregues. É importante, tendo em conta a análise dos inventários,
compreender inicialmente como estava regulamentado o direito à sucessão e à herança no
código civil empregado no Antigo Regime, nomeadamente nas Ordenações Filipinas.
Considerando que o foco de análise é a possibilidade da descendência ilegítima aceder aos
12
PARTE I
14
Legenda
1 2
1 - Província de Entre
Douro e Minho
2 - Província de Trás-
os-Montes
3 3 - Província da Beira
4 - Província da
Estremadura
5 - Província do
Alentejo
6 - Província do
4 Algarve
Porto e Braga, cabendo à última, o papel de sede administrativa da Província. Cada uma das
Comarcas estava, ainda, dividida em Concelhos e, estes, em Freguesias. Nesta Província
possuíam o estatuto de Cidade: Braga, Porto e Penafiel. A província contava, ainda, com 21
vilas e 1.329 freguesias.
Todavia, antes de abordarmos a constituição da população da Província do Minho e da
Cidade de Braga (à qual pertence a Paróquia de São João do Souto), é importante que seja
analisada a população do reino. Os inquéritos populacionais levados a cabo ao longo do
século XVIII estiveram inseridos num momento singular da monarquia portuguesa
caracterizado pela necessidade de conhecer o território para, com isto, assegurar a afirmação
do poder absoluto do monarca. Fundou-se então no ano de 1720 a Academia Real de História
Portuguesa fundada nas bases do Iluminismo, e que teve como um dos principais objectivos a
escrita da História de Portugal. As Memórias para a História Eclesiástica do Arcebispado de
Braga Primaz das Espanhas32, escritas por D. Jerónimo Contador de Argote, foram a primeira
produção historiográfica empreendida pela Academia.
Inseridos neste contexto, ao longo do século XVIII, foram empreendidos 6
levantamentos populacionais: nos anos de 175833 e 1768 (de carácter eclesiástico), em 176534,
177634 e 179235 (de carácter civil e administrativo) e no ano de 1798 (de carácter militar).
Relativamente aos inquéritos de ordem eclesiástica destacamos, para além dos já
supracitados, a contagem da população empreendida no ano de 1706 pelo padre António
Carvalho da Costa e intitulado A Corografia Portuguesa e descrição topográfica do Reino de
Portugal. João Pedro Ferro, embora considere os inquéritos religiosos os que mais se
aproximaram da realidade populacional portuguesa no século XVIII, chama a atenção para o
facto de que,
[…] nenhum destes recenseamentos abrangia a população total do País,
ficando sempre excluídos alguns grupos e pessoas, que escapavam ao registo
32
ARGOTE, J. C., Memorias para a Historia Ecclesiastica do Arcebispado de Braga Primaz das Hespanhas dedicadas a El Rey D. João V,
Lisboa Occidental, Off. de Joseph Antonio da Sylva, 4 v., 1732.
33
O levantamento populacional efetuado neste ano initulado como Dicionário Geográfico de Portugal foi um inquérito ordenado pelo
Marquês de Pombal e levado a cabo pelo Padre Luís Cardoso. O inquérito foi encaminhado a todos os párocos por meio dos Bispos das
Dioceses. As informações recolhidas estavam divididas da seguinte maneira: 27 questões diziam respeito à terra (abrangendo, tais questões,
as informações referentes à população, quantidade de eclesiásticos, hospitais, conventos, etc); 13 questões eram concernentes às serras; 20
questões diziam respeito aos rios.Cf. CARDOSO, L., Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e
aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrão, assim antigas, como
modernas, Lisboa, Regia Offic. Silviana, 1747-1751.
34
O levantamento poplacional efectuado neste ano foi empreendido por Manuel José Perinlongue por ordem do Marques de Pombal. Tal
documento, cuja cópia encontra-se no British Museum, tem como título: “Mappas de Portugal, ou Padrão do Número das Freguesias,
moradores e almas, etc.” e foi datado de 29.10.1765.
35
Sobre Diogo Inácio de Pina Manique, ver BILÉU, M. M. C., Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente Geral da Polícia: inovações e
persistências, Lisboa, [s.n.], 1995, policopiado; TAVARES, A.; PINTO, J. S., Pina Manique: um homem entre duas épocas, Lisboa, Casa
Pia, 1990; MANIQUE, D. I. P., Diogo Ignacio de Pina Manique, do Conselho de S. Magestade, Intendente Geral da Polícia da Corte... ,
Lisboa, na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1791.
16
36
FERRO, J. P., A população portuguesa no final do Antigo Regime (1750-1815), Lisboa, Editorial Presença, 1995, p.27.
37
Sobre Custódio José Gomes de Vilas-Boas, ver AMÂNDIO, B., O engenheiro Custódio José Gomes de Vilas Boas e o porto de mar de
Esposende em 1800, Esposende, B. Amândio, 1958; PORTUGAL, [Carta do Príncipe Regente ao Doutor Diogo Inácio de Pina Manique,
Desembargador do Paço e Intendente Geral da Polícia da Corte e Reino], [Lisboa], Regia Off. Typ., [1801].
38
VILAS-BOAS, C.J. G., “Questões”, in CRUZ, A., Geografia e Economia da Província do Minho nos fins do século XVIII; plano de
descrição e subsídios de Custódio José Gomes de Vilas-Boas recolhidos e anotados e publicados por António Cruz, Porto, Centro de Estudos
Humanísticos/Colecção AMPHITHEATRUM, 1970, p.109.
17
Para este estudo interessa-nos os dados recolhidos referentes à Cidade de Braga. Esta, por sua
vez, era a cabeça da Comarca sendo composta por 6 freguesias: Santiago da Sé, Santiago da
Cividade, São João do Souto, São Victor, São José da Cidade, São Pedro de Maximinos.
Tabela 1 – População da Província do Minho, segundo o levantamento de Custódio José Gomes Vilas-
Boas, 1799.
Comarca Vila e/ou Fogos Homens Homens Mulheres Mulheres Almas
Cidade maiores de menores de maiores de menores
14 anos 14 anos 14 anos de 14 anos
Comarca de Vila de
320 312 542 189 145 1.188
Valença Valença
Total da Comarca 632 652 1.225 396 339 2.612
Comarca de Vila de Viana
1.752 2.426 2.927 1.390 1.732 8.475
Viana
Total da Comarca 3.005 3.937 6.208 2.422 2.671 15.890
Comarca de Vila de
686 1.220 1.196 205 220 2.841
Barcelos Barcelos
Total da Comarca 2.594 3.618 3.965 954 881 9.418
Comarca de Cidade de
4.306 5.879 6.634 2.724 2.547 16.884
Braga Braga
Total da Comarca 4.126 9.586 11.375 3.757 3.798 28.669
Comarca de Vila de
1.913 2.278 3.058 354 346 6.036
Guimarães Guimarães
Total da Comarca 1.913 2.278 3.058 354 346 6.036
Comarca de Cidade de
906 879 1.176 500 600 3.155
Penafiel Penafiel
Total da Comarca 906 879 1.176 500 600 3.155
Comarca do Cidade do
9.238 13.139 16.993 1.809 1.921 33.862
Porto Porto
Total da Comarca 9.238 13.139 16.993 1.809 1.921 33.862
Total da população da Província 19.048 25.764 32.670 6.279 6.664 71.377
Fonte: CRUZ, A., Geografia e Economia da Província do Minho nos fins do século XVIII; plano de descrição e subsídios de Custódio José Gomes de Vilas-Boas
recolhidos e anotados e publicados por António Cruz, Porto, Centro de Estudos Humanísticos/Colecção AMPHITHEATRUM, 1970.
É interessante observar que a paróquia de São João do Souto é aquela que apresenta
maior discrepância entre o número de homens e mulheres. Já na Freguesia da Sé as raparigas
acima dos 14 anos representaram a maioria entre os indivíduos contabilizados no inquérito de
Vilas-Boas, enquanto entre os menores de 14 anos (raparigas e homens) a diferença entre os
sexos foi muito pequena. Qual teria sido o significado de tal desproporção entre homens e
mulheres no quotidiano destas freguesias?
Tabela 2 – Freguesias pertencentes à Cidade de Braga, 1794/5.
Freguesia Padroeiro Dignidade Fogos Homens Homens Raparigas Raparigas Almas
do Pároco maiores menores maiores menores
de 14 de 14 de 14 de 14
anos anos anos anos
Santiago da Cabido da Sé
Vigário 731 898 1.186 1.975 1.037 3.296
Sé (Catedral) Primaz
Santiago da Cabido da Sé
Vigário 383 640 600 102 117 1.459
Cividade Primaz
São João do A Mitra
Abade 760 1.261 1.270 240 245 3.016
Souto Primaz
A Mitra
São Victor Abade 1.032 1.587 1.618 595 624 4.424
Primaz
São José da A Mitra
Vigário 1.012 1.056 1.468 493 332 3.349
Cidade Primaz
São Pedro de A Mitra
Abade 388 437 492 219 192 1.340
Maximinos Primaz
Total 4.306 5.879 6.634 3.624 2.547 16.884
Fonte: CRUZ, A., Geografia e Economia da Província do Minho nos fins do século XVIII; plano de descrição e subsídios de Custódio José Gomes de Vilas-Boas
recolhidos e anotados e publicados por António Cruz, Porto, Centro de Estudos Humanísticos/Colecção AMPHITHEATRUM, 1970.
39
Sobre a execução do recrutamento militar, ver Portugal, [Alvará com força de Lei mandando que se dê toda a assistência e auxílio, que
for requerido pelo Doutor Diogo Inácio de Pina Manique, do seu Conselho, Desembargador do Paço e Intendente Geral da Polícia da
Corte e Reino, para a pronta e eficaz execução do Recrutamento Geral do Exército de que foi encarregado], [Lisboa], Regia Off. Typ.,
[1801].
19
contabilizados (3.776) por Pina Manique esteve atrás daquele indicado para a Província da
Beira que recrutou 4.156 indivíduos.
No início do século XIX, as preocupações da coroa portuguesa com o crescimento
populacional e as implicações do mesmo foram responsáveis pela elaboração do primeiro
censo populacional ao qual se pretendia aplicar a estatística. D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
presidente do Erário Régio (1801-1803) ordenou, por meio de um aviso de 3 de Novembro de
1801, o levantamento preciso de toda a população do continente.
Tabela 3 – Levantamento do número de fogos, freguesias e recrutas militares de acordo com o Censo
de Pina Manique, 1798.
Província Comarcas Freguesias Fogos Recrutas
Lisboa e seu termo 74 54.891 2.196
Estremadura Leiria 79 21.063 656
Setúbal 50 21.436 857
Total da
203 97.390 3709
Província
Porto 200 47.782 1.911
Minho Guimarães 253 33.522 1.341
Braga 101 13.111 524
Total da
564 94.415 3.776
Província
Bragança 274 21.217 849
Trás-os-Montes Vila Real 131 21.541 862
Moncorvo 153 13.121 525
Total da
558 55.879 2.236
Província
Évora 67 13.861 544
Alentejo Beja 53 11.324 453
Ourique 49 10.881 435
Total da
169 36.066 1.432
Província
Coimbra 150 43.269 1.731
Beira Viseu 203 34.240 1.370
Guarda 193 26.372 1.055
Total da
546 103.881 4.156
Província
Faro 21 10.017 401
Algarve Tavira 26 8.796 352
Lagos 24 6.710 268
Total da
71 25.523 1.021
Província
Total Geral 2146 433.452 17.142
Fonte: SERRÂO, J. V., A população de Portugal em 1798; o censo de Pina Manique, Paris, Fundação Calouste
Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1970, p. 1-2.
40
Instruções geraes para se formar o cadastro, ou mappa arithmético-político do reino, feitas por ordem de S. A. o Príncipe Regente nosso
Senhor, Lisboa, na Regia Ofic. Tipo., 1801.
41
FERRO, J. P., A população portuguesa no final do Antigo Regime (1750-1815), Lisboa, Editorial Presença, 1995, p.31.
20
42
Sobre a população de Portugal em finais do século XVIII e início do XIX, ver SOUSA, F.; ALVES, J. F., Alto Minho: população e
economia nos finais de setecentos, Lisboa, Presença, 1997; SOUSA, F., A população portuguesa nos inícios do século XIX, 2 vols.,
(Dissertação de Doutoramento), Porto, Universidade do Porto, 1979, policopiado; SOUSA, F., Portugal nos fins do Antigo Regime: fontes
para o seu estudo, Braga, Of. Gráf. da Livr. Cruz, Sep. Bracara Augusta, 31, 1977, p.7-13.
43
Em 1765 o número de habitantes de Portugal Continental era de 2.345.339, dados referenciados em Portugal nos século XVII e XVIII, ed.
Castelo Branco, Chaves, Lisboa, 1991, p.198, nota; Três anos depois, em 1768, a população registada era de 3.167.160, dados obtidos de
SOARES; J.B. “Memória sobre as causas da diferente população de Portugal em diversos tempos da Monarchia”, p. 111.
21
arcebispado as contínuas visitas, que fez por baixo de neve e frio, não
faltando como vigilante pastor, em todo o tempo, à consolação dos seus
súbditos.44
A presença do Palácio Arcebispal na cidade de Braga, bem como da figura do
Arcebispo acabou por atribuir à cidade e aos seus moradores um viver da religiosidade
bastante específico expresso, muitas vezes, nas práticas devocionais e no elevado percentual
de eclesiásticos que residiam na cidade. Em 1709 as cinco paróquias da cidade contavam com
292 eclesiásticos, dos quais 45 eram párocos livres, 58 eram párocos responsáveis pela
regência de missas ou capelães, 144 clérigos estranhos, mas que residiam na cidade, 45
clérigos com letras.45
No que toca à cidade de Braga, no século XVIII, é possível ter acesso à divisão
administrativa da mesma a partir das informações recuperadas nas Memórias Paroquiais de
175846. O concelho de Braga era formado por seis freguesias urbanas (São Tiago da Cividade,
Sé, Maximinos, São João do Souto, São José de São Lázaro e São Victor) e 31 freguesias
rurais. As freguesias urbanas, de acordo com as Memórias Paroquiais de 1758, contavam
com um total de 4.635 fogos, 85 ruas e 32 lugares, 57 confrarias e 12 comunidades religiosas
regulares divididas entre: Hospital, Recolhimentos, Conventos e Mosteiros. Em finais do
século XVIII, como foi possível observar no quadro II (p.18), as freguesias urbanas reuniam
um total de 16.884.
O Mapa das Ruas de Braga47 foi outro tipo documental a partir do qual é possível
recuperar as informações sobre as residências de todos os habitantes da Cidade de Braga que
eram foreiros48 do Cabido da Sé. Além da localização geográfica podemos ainda identificar a
ocupação profissional e a posição social dos enfiteutas,49 traduzida no uso dos termos Dom e
Dona.
44
FREITAS, B. J. S., Memórias de Braga; contendo muitos e interessantes escriptos extrahidos e recompilados de diferentes Archivos,
assim de obras raras, como de manuscriptos ainda inéditos e descripção de pedras inscripcionais, Braga, Imprensa Católica, 1890. Tomo I,
p.133-134.
45
CAPELA, J. V.; FERREIRA, A. C., Braga triunfante ao tempo das Memórias Paroquiais de 1758, Braga, Compolito, 2002, p.170
46
Sobre as Memórias Paroquiais de 1758, ver CAPELA, J. V.; FERREIRA, A. C., Braga triunfante ao tempo das Memórias Paroquiais de
1758, Braga, Compolito, 2002.
47
O documento apresenta a cartografia do centro urbano de Braga em meados do século XVIII e foi confeccionado pelo Padre Ricardo da
Rocha com o objectivo de integrar o acervo do Cartório do Cabido da Sé de Braga, Cf. VASCONCELOS, M. A. J. (coord. e introd.), Mapa
das Ruas de Braga, Braga, Arquivo Distrital de Braga e Companhia IBM Portuguesa, 1989/91, 2 vol.
48
O verbete contido no Dicionário de História de Portugal define enfiteuse tendo como base o artigo 1653 do Código Civil em vigor que
determina que “dá-se o contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, quando o proprietário de qualquer prédio transfere o seu
domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou cânon.” Cf.
SERRÃO, J., Dicionário de História de Portugal, Porto, Figueirinhas, 1992, p.35-38.
49
De acordo com o Dicionário de História de Portugal o termo foreiro, derivado de foro, pode significar tanto um prédio rural, quanto o
indivíduo detentor do direito de uso da propriedade. Em vista disso, a opção foi de conceituar a palavra foral que significa: “o diploma
concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus
22
No que diz respeito às profissões50 e à posição social dos foreiros, os profissionais que
compunham o sector secundário (artistas e ofícios ligados ao comercio, ao vestuário, aos
metais não preciosos, ao trabalho na madeira, à construção e ao trato do couro) eram
responsáveis por um total de 286 prazos. Em seguida encontravam-se os 120 clérigos (inferior
e superior) que eram foreiros do Cabido da Sé. Em terceiro lugar aparece o sector terciário
(profissionais liberais, membros da administração e da justiça, homens de negócio,
profissionais do ensino e da saúde, profissionais que lidavam com a produção e distribuição
dos alimentos, aqueles ligados ao transporte e ao comercio) que somaram um total de 146
prazos. Fidalgos, Cidadãos, Dom e Donas somaram um total de 46 prazos. E, em último lugar,
encontravam-se os lavradores e jornaleiros que eram foreiros de 9 prazos.
Circunscrita à Cidade de Braga estava a Freguesia de São João do Souto cuja principal
rua era a de São João do Souto. Esta paróquia é composta pelas seguintes ruas: rua de S. João,
rua do Anjo, rua de São Marcos, rua da Água, rua da Porta do Souto, rua dos Chãos debaixo,
rua dos Chãos de cima, rua do Eirado, rua da Fonte da Carcova, rua do Campo da Vinha, rua
de Gatos, rua das Travessas, rua detrás do Hospital (de São Marcos), rua da Quingosta do
Colégio, rua do Campo dos Remédios, rua do Carvalhal, rua dos Penedos, rua do Souto, Paço
Arcebispal, rua de Santo António, rua das Beatas de Santo António, Seminário de São Pedro,
rua da Loura, Aljube, Castelo, Alfandega. Pertenciam ainda à Paróquia de São João do Souto
as aldeias: Lugar da Torre, lugar do Armão e lugar de Santa Barbara de Baixo51.
A sua população, de acordo com a contagem registada nas Memórias Paroquiais estava
distribuída por 80052 fogos (estando entre as maiores paróquias da cidade de Braga e seu
Termo) e sua população distribuída da seguinte maneira: 3.548 “pessoas de sacramento53”,
189 menores, 362 habitantes casados, 124 viúvos/viúvas, 40 clérigos e 15 beneficiados. Em
vista deste contingente populacional a Paróquia do Souto possuía, por volta de 1758, uma
povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante. Constitui a espécie mais significativa das chamas cartas de privilégio”.
Cf. SERRÃO, J., Dicionário de História de Portugal, Porto, Figueirinhas, 1992, p.279-281.
50
Sobre a distribuição da população pelas ruas bracarenses e sua posição sócio profissional ver BANDEIRA, M. S. M., O espaço urbano de
Braga em meados do séc. XVIII: a reconstituição da cidade a partir do mappa das ruas de Braga e dos índices dos prazos das casas do
cabido, Porto, Edições Afrontamento, 2000.
51
VASCONCELOS, M. A. J. (coord. e introd.), Mapa das Ruas de Braga, Braga, Arquivo Distrital de Braga e Companhia IBM Portuguesa,
1989/91, 2 vol.
52
No estudo feito pelo Prof. Dr. José Viriato Capela há a referência de que nas Memórias de Braga de 1747-51 foram registados 916 fogos e
3.670 habitantes. Cf. CAPELA, J. V.; FERREIRA, A. C., Braga triunfante ao tempo das Memórias Paroquiais de 1758, Braga, Compolito,
2002.
53
Segundo os autores, no que diz respeito à informação sobre a população paroquial é, sem sombra de dúvidas, a mais completa. Entretanto,
o que pode ser verificado é que entre os párocos houve alguma “confusão” no que se refere aos habitantes que, efectivamente, deveriam ser
contabilizados. O uso do termo “pessoas de sacramento” nas Memórias Paroquiais remete ao que determinavam as Constituições que
consideravam como pessoas maiores aqueles com idade superior aos 7 anos.
23
média de 4,7 habitantes por fogo, sendo a paróquia cujos fogos tinham a maior dimensão,
tanto no meio urbano, quanto no meio rural.
Embora tenhamos consultado séries completas dos registos paroquiais (actas de
casamento e assentos de baptismos) para a Freguesia de São João do Souto não é possível
assegurar que tais registos representem, na totalidade, a população da freguesia na centúria
estudada. Contundo, apesar disto, foi possível analisar tais registos de maneira a alcançar uma
leitura, aproximada, da composição da população no que se refere ao estado matrimonial,
distribuição por sexo e composição dos núcleos familiares. Para o século XVIII e referentes à
paróquia de São João do Souto, foram transcritos 2.941 registos de casamento. Destes, 8
homens eram escravos, 5 eram forros e os restantes, 2.928 eram livres. Entre as mulheres,
casaram-se na Paróquia do Souto, 7 escravas, 1 forra e 2.933 mulheres livres. De acordo com
os números acima vê-se que as mulheres e os homens livres representavam a maioria entre os
nubentes com percentagens de 99,6% e 99,7%, respectivamente. Ao longo deste trabalho
veremos que será a constituição étnica das paróquias analisadas um dos factores que as
distinguirão quanto ao viver da ilegitimidade.
Como já foi dito anteriormente os registos paroquiais de casamento e baptismos foram
aqueles por meio dos quais adentramos no universo familiar dos habitantes da Paróquia de
São João do Souto, em Braga. O que podemos adiantar é que a maioria de crianças baptizadas
na Paróquia de São João do Souto era fruto de relações sancionadas pela Igreja Católica. Seja
entre o baptismo de homens, seja entre o de mulheres o percentual de crianças rondou os 3%
o que significa, efectivamente, um índice muito baixo, principalmente quando comparado
com o de Sabará que rondou os 50%. Também a exposição de crianças teve um percentual
muito baixo, não atingindo 0,5% dos registos. Oportunamente falaremos acerca das possíveis
causas do baixo índice de exposição na Paróquia de São João do Souto, das quais sobressai a
existência de uma roda de expostos na Paróquia da Sé o que pode ter atraído para aquele local
a maioria das crianças expostas54 na Cidade de Braga.
Também numa análise preliminar das actas de casamento da Paróquia de São João do
Souto percebemos que a predominância dos filhos nascidos de legítimos matrimónios
permanece. Entre os nubentes, quer do sexo masculino, quer do feminino, aqueles frutos de
54
Sobre a exposição de crianças em Portugal no século XVIII, ver SILVA, A. M. P., O casamento dos expostos na freguesia do Santíssimo
Sacramento de Lisboa (1736-1887), Lisboa, [s.n.], 2002, (Tese dout. Antropologia Social), policopiado; GOUVEIA, M. L. F., O Hospital
Real dos Expostos de Lisboa (1786-1790): aspectos sociais e demográficos, Lisboa, [s.n.], 2001 (Tese Mestrado História Regional e Local),
policopiado; SANTOS, G. M., A assistência da Santa Casa da Misericórdia de Tomar: os expostos 1799-1823, Lisboa, [s.n.], 2001 (Tese
Mestrado História Regional e Local), policopiado; SIMÕES, J. A., Os expostos da roda de Góis, 1784-1841, Porto, [Faculdade de Letras],
1999 (Tese Mestrado História Contemporânea), policopiado; MATOS, S., Os expostos da Roda de Barcelos, 1783-1835, Porto, [s.n.], 1995;
SÁ, I. C. G. S., A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995.
24
Desde o início do século XVII que os portugueses circulavam pelos sertões mineiros
por diversos caminhos: Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Contudo, a sua
circulação não objectivava, ainda, a ocupação e povoamento do território, mas a busca por
pedras e metais preciosos. Em 1674, a bandeira paulista de Fernão Dias Pães57, em busca de
55
Tais análises, muitas vezes, têm como parâmetro de comparação os índices de ilegitimidade em outras nações européias do Antigo
Regime. Um dos estudos que apresenta as taxas de ilegitimidade para algumas nações européias no século XVIII foi aquele realizado por
Michael Flinn El Sistema Demografico Europeo. Segundo os estudos de Flinn, ao longo do século XVIII, as taxas de ilegitimidade de
algumas nações modernas eram: Alemanha 2,5% até 1750 e 3,9% até 1790; Espanha 3,8% até 1750 e 2,5% até 1790; França 2,9% até 1750 e
4,1% até 1790; Inglaterra 2,6% até 1750 e 4,3% até 1790.
56
NEVES, A. A., Filhos das ervas: a ilegitimidade no norte de Guimarães, séculos XVI – XVIII, Guimarães, NEPS/Universidade do Minho,
2001; ARAÚJO, M. M., O Pico dos Regalados e a sua população, Braga, Universidade do Minho, 1992; MIRANDA, F. A. S., Estudo
demográfico de Alvito S. Pedro e anexa; 1567-1989, Barcelos, Junta de Freguesia de Alvito, 1993; SOARES, O. C. S., Unhão: Paróquia e
Concelho; uma análise Histórica da sua População, 1515-1910, Braga, Instituto de Ciências Sociais/Universidade do Minho, 1995;
AMORIM, M. N., Rebordãos e a sua população nos séculos XVII e XVIII; estudo demográfico, Lisboa, Imprensa Nacional, 1973.
57
Fernão Dias Paes nasceu em 1608 e ficou conhecido como “O caçador de esmeraldas”. Já em 1634 integrou a bandeira de António
Raposo Tavares com destino ao sul da América, nomeadamente os actuais Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Participou ainda de 2 outras bandeiras (em 1644 e 1661) antes da expedição de 1674 quando foi acompanhado por cerca de 600 homens,
entre eles Manoel de Borba Gato. VAINFAS, R. (org.), Dicionário do Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 290.
25
esmeraldas ao pé da serra do Sabarabuçu, nos aluviões do Rio das Velhas, acabou por
descobrir os primeiros sinais da presença de ouro na região.
Um dos integrantes da bandeira, Manuel de Borba Gato 58, seu genro, tornou-se, alguns
anos mais tarde, um personagem de destaque na história da Vila de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará. Contudo, apesar da importância que a figura de Manuel de Borba Gato
teve para a descoberta do ouro nas Minas, o anúncio oficial da descoberta daquele metal
precioso somente ocorreu cerca de vinte anos depois.
António Rodrigues Arzão59 liderou uma bandeira saída de Caeté em 1687 e composta
por cerca de 50 homens. Em 1692, na baía do Rio Doce, encontrou indícios da presença de
ouro na região do rio Casca. Após a descoberta António Rodrigues Arzão continuou descendo
o rio Doce até chegar ao Espírito Santo, onde comunicou a descoberta do ouro.
A partir dos anúncios da descoberta do ouro nos sertões mineiros, esta região foi
marcada pelas frequentes ondas migratórias de homens vindos das mais diversas partes da
América portuguesa, mas também da outra margem do Atlântico. A descoberta do ouro foi
acompanhada por uma política de ocupação e povoamento da região das Minas Gerais
promovida pela coroa portuguesa com o objectivo de garantir a sua extracção e envio de
grande parte para o outro lado do Atlântico. A partir dos primeiros anos do século XVIII o
que pode ser observado é uma preocupação frequente da coroa em povoar e controlar a região
mineira.
Entre 1693 e 1709 a Capitania de Minas Gerais60 estava subordinada à Repartição Sul
que, juntamente com a de São Paulo e Rio de Janeiro, estavam sob a administração do mesmo
governador. Neste período assumiram o título de Governador da Repartição Sul 6
representantes da coroa, sendo o primeiro deles António Pães de Sande e, o último, António
de Albuquerque Coelho e Carvalho. Contudo, por meio de uma carta régia de 9 de Setembro
de 1709 foi criada a Capitania de São Paulo e Minas Gerais, desmembrada do Rio de Janeiro,
divisão esta que se estendeu até o ano de 1717. Um alvará de D. João V, em 1720, criou a
58
Manuel de Borba Gato foi um bandeirante paulista que nasceu no ano de 1649 e faleceu em 1718 ocupando, nessa época, o cargo de Juiz
Ordinário da vila de Sabará. Após integrar a bandeira do seu sogro, Manuel de Borba Gato, envolveu-se em um desentendimento com D.
Rodrigo de Castelo Branco, então administrador geral das Minas e, ao que tudo indica, foi responsável por planear o seu assassinato no
caminho do Sumidouro em 1682. Borba Gato refugiou-se nos sertões do rio Piracicaba entre os anos de 1682 e 1699. Recebeu o perdão régio
no ano de 1698 e, também, o posto de Tenente-general do Mato sendo responsável por organizar a arrecadação de ouro nas Minas com o
objectivo de trazer riqueza e prosperidade à coroa portuguesa. Os achados de Borba Gato nas águas do rio das Velhas foram bastante
valorizados pelo Rei sendo materializados na sua nomeação como Guarda-mor do Rio das Velhas. VAINFAS, R. (org.), Dicionário do
Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 450.
59
Nasceu em Taubaté, São Paulo e faleceu logo após o regresso do sertão mineiro. VAINFAS, R. (org.), Dicionário do Brasil Colonial, Rio
de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 129.
60
Revista do Arquivo Público Mineiro, Governo de Minas Geraes, Ouro Preto, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1896, p.3-8.
26
61
Revista do Arquivo Público Mineiro, Governo de Minas Geraes, Ouro Preto, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1896, p.3-8.
62
COUTO, J. V., “Memória sobre as minas da Capitania de Minas Gerais”. [1801], Revista do Arquivo Público Mineiro, 10:59-146, 1905.
63
FURTADO, J. F. ,Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, 2. ed. São Paulo, HUCITEC,
2006; PAIVA, E. F., Escravidão e Universo Cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716-1789, 2. ed. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006;
PAIVA, E. F. (Org.); ANASTASIA, C. M. J. (Org.),.O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formar de viver - séculos XVI a XIX, 2. ed.
São Paulo, Editora Annablume, 2003; FURTADO, J. F. (Org.), Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história
do Império Ultramarino português, 1. ed., Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2001; PAIVA, E. F.,Escravos e libertos nas Minas Gerais do
século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos, 2. ed. São Paulo, Annablume, 2000; FIGUEIREDO, L. R. A. , Barrocas
Famílias: Vida Familiar em Minas Colonial, São Paulo, HUCITEC, 1997; SILVEIRA, M. A., O Universo do indistinto: Estado e Sociedade
nas Minas Setecentistas (1735-1808), São Paulo, HUCITEC, 1997; SOUZA, L. M., Norma e conflito: aspectos da história de Minas no
século XVIII, 1. ed. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.; SOUZA, L. M. ,Opulência e miséria das Minas Gerais, 7. ed. São Paulo,
Brasiliense, 1997; FURTADO, J. F. (Org.); COUTO, J. V. (Org.), Memória sobre a capitania das Minas Gerais: seu território, clima e
produções metálicas (Edição crítica do livro de José Vieira Couto), 1. ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1994; FIGUEIREDO, L.
R. A., O avesso da memória: cotodiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII, Brasília, J. Olympio/Edunb, 1993; SOUZA,
L. M., Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, 1. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
27
64
Os inventários post-mortem caracterizam-se como uma importante fonte para confirmar a existência de um comércio interno colonial
actuante, concomitantemente, com a extracção do ouro. Neles eram arrolados os bens móveis, imóveis e semoventes de um indivíduo. Além
disso, elencam também as dívidas activas e passivas, o que nos permite mapear a área de actuação do inventariado no que diz respeito às
transacções comerciais por ele estabelecidas.
65
ZEMELLA, M., O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. 2ª ed. São Paulo, HUCITEC/Edusp, 1990.
66
FURTADO, J. F. (Org.), Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino
português, 1. ed. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2001; BOXER, C., O império colonial português, Lisboa, Edições 70, 1977.
67
A Repartição Sul, criada em inícios do século XVII abarcava as capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro (escolhida
como sede). Sobre a criação da Repartição Sul, ver GOUVÊA, M. F., “Administração”, In VAINFAS, R. (org.), Dicionário do Brasil
colonial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 17; HERMANN, J. “América portuguesa”. In VAINFAS, R. (org.). Dicionário do Brasil
colonial, Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 36-37; WEHLING, A., “Repartição do Sul”, In: SILVA, M. B., Dicionário da História da
Colonização Portuguesa no Brasil, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1994, p. 697; AVELLAR, H. A., História Administrativa do Brasil:
administração pombalina, vol. 5, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1970; VARNHAGEN, F. A., História Geral do Brasil, tomo IV, São
Paulo, Melhoramentos, 1959.
68
CARVALHO, D., História da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1990, p. 32.
28
tendência, uma vez considerada tal hipótese, foi de centralizar ao máximo a administração na
América e, para tanto, assistiu-se a criação de órgãos administrativos importantes voltados
para o controle do território e dos habitantes da América. Felipe III, rei de Portugal em 1608,
em carta régia justificou a necessidade de centralização do poder na América:
Dom Felippe, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, [...] faço
saber que, sendo ora informado que nas partes do Brasil havia minas de
ouro, prata, e outros metaes, [...]; e por constar serem já descobertas as ditas
minas na Capitania de São Vicente, e as havia tambem nas do Espirito Santo
e Rio de Janeiro, para com mais commodidade se poder administrar justiça
aos moradores das ditas tres Capitanias, e por outros muitos respeitos que me
a isso movem [...].
Hei por bem dividir, [...], o Governo das ditas tres Capitanias [...] do districto
e Governo da Bahia, e mais partes do Brasil.69
Quando em finais do século XVII o ouro foi descoberto nas Minas Gerais, a
centralidade administrativa alcançada com a criação da Repartição Sul pode ser, finalmente,
justificada, uma vez que, segundo Hélio de Alcântara Avellar, “[…]“o motivo da criação da
Repartição do Sul residia no desejo de descobrir minas.”70 A centralidade administrativa, a
necessidade de controlo não somente dos portugueses que se fixaram nas Minas, mas também
do elevado contingente de escravos que anualmente eram desembarcados nos portos da
América, fizeram com que a coroa portuguesa visse, também, a necessidade de implementar,
naquela porção territorial, alguns valores portugueses tais como a honra e as regras de etiqueta
e educação. Segundo Marco António Silveira
[…] à proporção que as conquistas no Ultramar avançavam e tornava-se
mais evidente que a economia lusa era eminentemente mercantil, os títulos
honoríficos e a incrustação na máquina administrativa afirmavam-se como
meios de distinção. […] De outro lado, todo o aparato estético, valorativo e
comportamental relativo à honra apresentava-se como indispensável na
definição do lugar de cada um na sociedade.71
Na concepção do Estado português, que se afirmava a partir de meados do século
XVII, a sociedade era concebida como parte integrante da sua estrutura. Como tal, pode
identificar-se a tendência à super valorização dos títulos honoríficos enquanto instrumentos de
distinção social. Os títulos atribuídos passaram a ser sinónimo de civilidade e boa educação e,
na visão dos administradores, ser civilizado era também sinónimo de “bom vassalo”, de
fidelidade ao Rei.
69
“Carta régia de 2 de Janeiro de 1608”. ANTT, Livro 4º das Leis, fol. 65, publ. J.J. Andrade e Silva, Collecção Chronologica de
Legislação Portugueza (1634-1640), Lisboa, 1855, pp. 245-246.
70
AVELLAR, H. A., História Administrativa do Brasil: administração pombalina, vol. 5, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1970, p.99.
71
SILVEIRA, M. A., O Universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808), São Paulo, HUCITEC, 1997,
p.47.
29
72
Documentos históricos: “Correspondência do Conde de Assumar depois da revolta de 1720 para Aires de Saldanha de Albuquerque,
Governador do Rio de Janeiro” [28 de Janeiro de 1721], Revista do Arquivo Público Mineiro, 6:203-11, 1911, p. 206.
73
COELHO, J. J. T., “Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais” [1780], Revista do Arquivo Público Mineiro, 8: 399-581,
1903, p.483-484.
74
SANTOS, J. F., Memórias do Distrito Diamantino, 4ª ed., Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1976; ANTONIL, A. J., Cultura e
opulência do Brasil por suas drogas e minas. [1711], 3ª ed. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1982.
75
SILVEIRA, M. A., O Universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808), São Paulo, HUCITEC, 1997,
p.70.
30
social”, ou seja, uma sociedade vincada pela diversidade e por diversos referenciais sócio
culturais. Ao contrário do que tendencialmente é considerado, a descoberta do ouro e a sua
exploração nas Minas não foi sinónimo de concentração da economia local somente nessa
actividade. Ao lado da mineração desenvolveram-se as actividades comerciais, a agricultura e
os ofícios mecânicos que, em conjunto, foram responsáveis por atribuir à região mineradora
um perfil mais dinâmico76.
No que toca à formação das famílias a preocupação da Coroa nos primeiros anos de
povoamento das Minas estava voltada para o preenchimento de cargos administrativos por
homens de qualidade, pois os mesmos vinham sendo em parte preenchidos até então por
homens não qualificados, nomeadamente mulatos, devido, entre outros factores, à ausência de
fixação de famílias brancas na área. A tolerância vista no início da ocupação do sertão quanto
às uniões de homens brancos com mulheres de cor, em virtude principalmente da ausência de
mulheres brancas para contraírem o matrimónio, acabou voltando-se contra os interesses da
coroa. Tal facto não era desconhecido do Rei português, que se mostrava consciente das
dificuldades em combater o concubinato, como vemos no seguinte trecho:
[...] a maior parte dos moradores dessas terras não tratam de usar-se pela
soltura a liberdade com que nelas servisse não sendo fácil a coação para que
se apartem do concubinato das negras e das mulatas e por esta causa se vão
maculando as famílias todas é preciso se dê alguma providência pela qual se
evite este dano [e] que não possa daqui em diante se eleito vereadores ou
Juiz ordinário nem andar na governança das vilas dessa Capitania
homem algum que seja mulato dentro nos quatro graus em que o
77
mulatismo é impedimento [grifo nosso]
A preocupação que emana da fala do Rei era compartilhada pelo Governador da
Capitania, D. Lourenço de Almeida. Em carta ao Rei datada do mesmo ano, o Governador
referia que a ausência de mulheres brancas representava um grande entrave para a
constituição e manutenção das famílias honradas. Assim, Dom Lourenço de Almeida acabou
por propor ao Rei de Portugal que,
[...] um dos meios mais faceis que há para que venham mulheres casar a
estas Minas, é proibir Vossa Magestade que nenhuma mulher do Brasil
possa ir para Portugal nem ilhas a serem freiras, porque é grande o numero
que todos os anos vão […] e, se Vossa Majestade lhe não puser toda
proibição, suponho que toda a mulher do Brasil sera freira […] e me parece
que não é justo que despovoe o Brasil por falta de mulheres.78
76
Sobre a actividade feminina mas Minas Gerais ver: FIGUEIREDO, L. A. R., O avesso da memória; cotidiano e trabalho da mulher em
Minas Gerais no século XVIII, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993.
77
APM, SC 5, Carta do Rei português a D. Lourenço de Almeida, 27 de Janeiro de 1726, fl. 116.
78
AHU, Sobre casamentos entre brancos e mulatas , Cx.28, Doc.53, 1734.
31
79
Alvará de 10 de Março de 1732, Livro 2, Vol. 2, Título 2, p. 431, in Coleção Cronologica das Leis Extravagantes, posteriores à nova
compilação das ordens do Reino (…) 1603. Desde este ano ate 1761, conforme as coleções, que daquelas se fizeram e inseriram na edição
vicentina destas do ano de 1741 e seu apendix do de 1760, às quais acrescentam, nesta edição, a compilação por F. da França (…),
Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1819, [6 vols. Em 5]
80
SILVEIRA, M. A., O Universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808), São Paulo, HUCITEC, 1997,
p.107.
32
A vila de Sabará situa-se à direita do Rio das Velhas que, por sua vez, é o maior
afluente do Rio São Francisco82. No ano de 1707 foi elevada à condição de freguesia e, o
título de vila foi-lhe atribuído no ano de 1711 pelo então Governador da Capitania António de
Albuquerque. Possuía 6 igrejas: Nossa Senhora da Conceição83 (1710), Nossa Senhora do
Rosário (1713), Nossa Senhora do Ó (1717), Nossa Senhora do Carmo (1763), Nossa Senhora
das Mercês (1781), São Francisco (1781).
A Comarca do Rio das Velhas (também referenciada na documentação como Comarca
do Sabará) era, no século XVIII, uma das regiões mais povoadas da capitania de Minas
Gerais. Na década de 1776 a sua população contava com 99.576 habitantes. Destes, 50.946
(51%) eram pretos, 34.236 (34%) eram pardos e os brancos somavam 14.394 (15%).
A Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, enquanto sede administrativa
da Comarca do Rio das Velhas, desempenhou um importante papel durante o período de
extracção do ouro. A fixação da administração da capitania na Vila de Sabará trouxe consigo
a implementação de estruturas capazes de estabelecer a ligação entre as duas margens do
Atlântico. A presença do ouro, que tão logo foi descoberto transformou-se no metal precioso
mais ambicionado, impôs uma dinâmica diferenciada para a vila. A coroa portuguesa viu, de
imediato a necessidade da criação de uma casa de fundição capaz de controlar a extracção,
tributação e envio do ouro para Portugal. Juntamente com a elevação do arraial à condição de
vila e a oficialização de sua posição administrativa enquanto cabeça da comarca do Rio das
Velhas veio o estabelecimento de funções administrativas fundamentais tanto para a condução
81
FURTADO, J. F. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, Hucitec, 1999,
p.19
82
O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, atravessa o estado da Bahia e passa, ainda, pelos estados de
Pernambuco, Sergipe e Alagoas até desaguar no Oceano Atlântico. Américo Vespúcio foi o primeiro a navegar em suas águas no início do
século XVI.
83
Igreja Matriz da vila de Sabará.
33
da sociedade, quanto da extracção do ouro, tais como: tabeliães 84, escrivães85, fiscais,
tesoureiros, meirinhos86 e as milícias87.
Ainda em relação à estrutura administrativa é imprescindível mencionar a criação das
câmaras88 municipais, bem como a sua importância no quotidiano da vila. Estas estavam
incumbidas da administração local89, sendo uma extensão dos braços da metrópole nos
municípios. Sua criação foi definida nas Ordenações Filipinas e seus funcionários eram eleitos
entre os “homens bons”90 da vila.
As funções de destaque na composição das câmaras municipais setecentistas eram: o
juiz de fora91, o juiz ordinário, o juiz de órfãos, o procurador, o tesoureiro e o escrivão. Dentre
as suas atribuições destacavam-se as seguintes: publicitar as decisões e deliberações da Coroa,
a arrematação de contratos, a cobrança de impostos, a instauração de inquéritos e devassas
cíveis, a delimitação de fronteiras em propriedades privadas, a fiscalização de lojas e
estabelecimentos comerciais. No âmbito social ainda eram tarefas das câmaras municipais92 a
vigilância atenta sobre a transmissão da herança aos órfãos, a criação dos enjeitados ou
84
Oficial público a quem incumbe a função de preparar ou autenticar documentos, escrituras públicas ou registros; notário.
85
Auxiliar do juízo de primeiro grau, titular de cartório ou ofício, que escreve ou subscreve autos, termos de processo, atas e outros
documentos de fé pública.
86
Oficial de justiça cujas funções eram: prender, citar, penhorar e cumprir mandados judiciais de qualquer natureza.
87
Organização militar composta, fundamentalmente, por civis.
88
A criação da primeira câmara data de 1549, ano em que foi fundada a cidade de Salvador por Tomé de Souza. Denominadas em Portugal
de Conselhos, algumas delas, em função da importância económica e política foram elevadas ao grau de Senado da Câmara, como foi o caso
das câmaras das cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Vila Rica. Cf. BOTELHO, Â. V.; REIS, L. M., “Câmaras”, In, Dicionário Histórico:
Brasil colónia e império, Belo Horizonte, Ed. Dimensão, 1997, p.22.
89
Sobre a administração pública e o poder político implantado na América portuguesa, ver BICALHO, M. F. B.; FERLINI, V. L. A., Modos
de governar: idéias e práticas políticas no Império Português: séculos XVI a XIX, São Paulo, Alameda, 2005.
90
Designação dos elementos que, por serem proprietários de terras, de escravos e de gado, compunham e elegiam o Senado da Câmara;
excluía-se o direito de voto ao restante da população. Constituíam classe dominante colonial. BOTELHO, Â. V.; REIS, L. M, “Homens
Bons”, In, Dicionário Histórico: Brasil colónia e império, Belo Horizonte, Ed. Dimensão, 1997, p.64
91
Vale ressaltar que tal função foi instituída, na América Portuguesa, somente na segunda metade do século XVIII com a ascensão do
Marquês de Pombal como Ministro. Sobre a constituição das Câmaras Municipais na América Portuguesa, ver, GOUVÊA, M. F. S., “Dos
Poderes de Vila Rica do Ouro Preto: notas preliminares sobre a organização político-administrativa na primeira metade do século XVIII”,
Varia História, Belo Horizonte, v. 31, p. 120-140, 2004; GOUVÊA, M. F. S., “Poder, Autoridade e o Senado da Câmara do Rio de Janeiro,
1780-1820”, Tempo, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 111-155, 2002; BICALHO, M. F., “As Câmaras Municipais no Império Português: o
exemplo do Rio de Janeiro”, Revista Brasileira de História, 1998, vol.18, n. 36, p. 251-280; RUSSEL-WOOD. A. J. R. “O Poder Local na
América Portuguesa”, in Revista de História, v. 55, no. 109, São Paulo, 1977, pp. 25-79; RUSSELL-WOOD, A. J. R. "Local Government in
Portuguese America: A Study in Cultural Divergence", In Comparative Studies in Society and History, vol. 16, nº 02, march, 1974, pp. 187-
231.
92
As Câmaras Municipais tiveram um papel muito importante na ordenação da sociedade colonial portuguesa na América. Maria Fernanda
Bicalho afirma que as câmaras foram “[…] Elementos de unidade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares da sociedade
colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo, as Câmaras Municipais Ultramarinas foram igualmente órgãos fundamentais de
representação dos interesses e das demandas dos colonos.” Cf. BICALHO, M. F., “As Câmaras Municipais no Império Português: O
Exemplo do Rio de Janeiro”, in Revista Brasileira de História, vol. 18 n. 36 São Paulo 1998. Ainda sobre a criação e actuação das câmaras
municipais na América Portuguesa, ver FIGUEIREDO, L. R. .A., Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa, Rio
de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761), São Paulo, FFLCH-USP, (Dissertação de Doutoramento) 1996, policopiada; BOXER, C. R.,
O Império Colonial Português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 1981; RUSSELL-WOOD, A. J. R. "Local Government in Portuguese
America: A Study, in Cultural Divergence", In Comparative Studies in Society and History, vol. 16, nº 02, march 1974, pp. 187-231.
34
93
Delimitação territorial de uma diocese sobre a qual prevalece a jurisdição espiritual de um pároco.
94
TRINDADE, Cônego R., Arquidiocese de Mariana; subsídios para a sua História, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1952.
95
Criada em 1712 e inicialmente conhecida como vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo. Em 1745 foi elevada à condição de cidade,
a primeira de Minas Gerais, ano em que também foi criado o Bispado de Mariana. Ao que tudo indica o nome da cidade foi dado por D. João
V em homenagem à sua esposa, a rainha D. Maria Ana D´Áustria.
96
Este perfil entretanto se inverte ao analisarmos os testamentos deixados por residentes da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará. A presença maioritária de brancos acaba por confirmar que a confecção dos testamentos naquela paróquia esteve restrita a um rol de
moradores que se destacavam socialmente. Entre as mulheres, entretanto, identificamos um numero significativo de forras (cerca de 40%) o
que aponta para uma maior preocupação entre as mulheres de cor de registarem suas últimas vontades a exemplo do que ocorria com os
brancos. Sobre a prática de testar entre as forras, ver PAIVA, E. F., “Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas Gerais
setecentistas”, Anuario de Estudios Americanos, Vol 66, No 1 (2009):193-219 ; FARIA, S., “Sinhás pretas:acumulação de pecúlio e
transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista”, In SILVA, F. C.; FRAGOSO, J. L.; CASTRO, H. (orgs), Escritos sobre
história e educação: uma homenagem a Maria Ieda Linhares, Rio de Janeiro, Mauad-FAPERJ,2001; PAIVA, E. F., Escravos e Libertos nas
Minas Gerais do Século XVIII. Estratégias de resistência através dos testamentos, São Paulo, Annablume, 1995; PAIVA, E. F., “Forro nas
Minas: relações sociais e vida cotidiana”, Pós-História, Assis, n. 6, p. 135-147, 1998; PAIVA, E. F., “Mulheres, famílias e resistência
escrava nas Minas Gerais do século XVIII”, Varia História, Belo Horioznte, n. 13, p. 67-77, 1994.
35
paróquia, vale à pena ressaltar que entre os assentos de baptismos registados na Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Conceição a maioria era de filhos de escravos. O predomínio, entre os
assentos de baptismos, de filhos ilegítimos de escravos, quer do sexo masculino (25,3%), quer
do feminino (23,7%) aponta para uma tendência, entre os progenitores, de não se unirem
matrimonialmente. Tal facto pode ser analisado a partir de duas perspectivas: a primeira
estaria relacionada aos altos custos e o excesso de burocracia do rito do matrimónio podem ter
representado, efectivamente, um empecilho para os cativos (mesmo que tais encargos fossem
de responsabilidade dos proprietários); a segunda aponta para a possibilidade de o baixo
índice de uniões matrimoniais entre os cativos representar uma tentativa, entre eles, de
manutenção dos referenciais culturais africanos que não tinham o sacramento do matrimónio
como dogma de ordenação cultural. Note-se que, entre os forros e escravos, quer fossem entre
os homens, quer fossem entre as mulheres, o índice de baptismos de filhos legítimos esteve
bastante aproximado (à volta de 2%).
A região das Minas Gerais vem sendo foco de vários estudos97 sobre a formação das
famílias, o nascimento de filhos ilegítimos e a aparente transposição do comportamento sócio
familiar vivido pelo contingente português que imigrou em suas comunidades de origem. Os
estudos98 até agora desenvolvidos apontam para uma presença, maioritária, entre os homens
livres, de solteiros que se dedicavam às actividades comerciais. Frente a esta constatação, a
questão que se coloca é saber porque é que alguns homens portugueses, em sua maioria
minhotos, uma vez transposto o Atlântico, não se preocuparam em constituir famílias
legítimas? O impedimento legal quanto à união entre homens brancos e livres com mulheres
de cor (cativas ou libertas) foi, certamente, o factor que mais influenciou no estabelecimento
de uniões consensuais, já que o celibato, para estes homens, não significava abstinência
sexual e um comportamento moral irrepreensível.
Assim, torna-se importante relembrar a distinta composição das paróquias em
questão principalmente se colocarmos, lado a lado, os resultados obtidos para cada uma delas
97
Sobre a questão das uniões matrimoniais, consensuais e da ilegitimidade na América Portuguesa ver, BRÜGGER, S. M. J., Minas
Patriarcal: Família e sociedade (São João Del Rei -Séculos XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007; LEWKOWICZ, I.,“Concubinato e
Casamento nas Minas Setecentistas”, In RESENDE, M. E. L.; VILLALTA, L. C (Org.), História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, 1
ed. Belo Horizonte, Autêntica/Companhia do Tempo, 2007, v. 2, p. 531-547; BRÜGGER, S. M. J., “Família, Casamento e Legitimidade em
São João del-Rei, 1730-1850“, In BRÜGGER, S. M. J.; RESENDE, M. L. C. (Org.), Caminhos Gerais: Estudos Históricos sobre Minas
(Séculos XVIII e XIX), São João Del Rei, Gráfica Da Universidade Federal De São João Del Rei, 2005; BRÜGGER, S. M. J., “Legitimidade,
Casamento e Relações Ditas Ilícitas em São João del Rei (1730-1850)”, In PAIVA, C.; LIBBY, D.C. (Org.), 20 Anos do Seminário sobre
Economia Mineira - 1982-2002, Colectânea de Trabalhos, Belo Horizonte, UFMG / FACE / CDEPLAR, 2002, v. 2, p. 255-280.
98
FURTADO, J. F., “Teias de Negócio: conexões mercantis entre as minas do ouro e a Bahia durante o século XVIII”, In FRAGOSO, J.;
FLORENTINO, M.; SAMPAIO, A. C. J.; CAMPOS, A. P. (Org.). Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no
mundo português, 1 ed. Lisboa/Vitória, IICT/EDUFES, 2006; FURTADO, J. F., Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do
comércio nas Minas setecentistas, 2. ed. São Paulo, HUCITEC, 2006; FURTADO, J. F.; VENÂNCIO, R. P., “Comerciantes, tratantes e
mascates”, In PRIORE, M. (Org.), Revisão do paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de estado, 1 ed. Rio de Janeiro, Campus, 2000,
v. 1, p. 93-113.
36
99
Sobre o nascimento da prole ilegítima na América Portuguesa enquanto parte integrante dos estudos sobre a História da Criança, ver
FIGUEIREDO, L. R., Barrocas famílias, São Paulo, Hucitec, 1999; NADALIN, S.; GALVÃO, R., Bastardia e ilegitimidade: murmúrios dos
testemunhos paroquiais durante os séculos XVIII e XIX. UFPR, [s.d.], policopiado; PERARO, M., Fardas, saias e batina: a ilegitimidade na
paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá, 1853-1890; Tese de Doutoramento, UFPR, Curitiba, 1998, policopiado; FARIA, S., A colônia em
movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; PRIORE, M., História da criança no Brasil, São
Paulo, Editora Contexto, 1992; LEWCOWICZ, I., Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX),
Dissertação de Doutoramento, IPE/USP, São Paulo, 1992, policopiado; RAMOS, D., “A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto:
1754-1838“, In NADALIN, S. et al (Org.), História e população: estudos sobre a América Latina, São Paulo, Fundação SEDAE, 1990, p.
154-163; RAMOS, D., “City and Country: the family in Minas Gerais, 1804-1838“, Journal of Family History, Connecticut, Jai Press, v. 3,
n. 4, p. 361-375, 1986; VENÂNCIO, R., “Nos limites da sagrada família; ilegitimidade e casamento no Brasil colonial”, In VAINFAS, R.
(Org.), História e sexualidade no Brasil, São Paulo, Graal, 1986.
100
VAINFAS, R., SANTOS, G. S., NEVES, G. P., Retratos do império: trajectórias individuais no mundo português nos séculos XVI a
XIX, Niterói, EDUFF, 2006; MONTEIRO, R. B., O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América 1640-1720, São
Paulo, HUCITEC, 2002; FRAGOSO, J., BICALHO, M. F., GOUVÊA, M. F., O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001; FURTADO, J. F., Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as
novas abordagens para uma história do império ultramarino português, Belo Horizonte, UFMG, 2001; VILLALTA, L. C., SOUZA, L. M.,
SCHWARCZ, L. M., 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis, São Paulo, Companhia das Letras, 2000; RUSSEL-WOOD, A. J. R.,
Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808), Algés, Difel, 1992; BOXER, C. R. O império colonial
português, Lisboa, Edições 70, 1977.
101
Torna-se importante esclarecer que no caso da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará o acervo paroquial se encontra, em
sua maioria, em mau estado de conservação e, além disso, as séries documentais não estão completas. Para o século XVIII a documentação
sob guarda da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte (CEDIC-BH) compreende os anos de: 1723-1741; 1733-1747 e 1776-1782. Para os
assentos de casamento existe no CEDIC-BH somente um livro da Paróquia de Sabará que compreende a segunda metade do século XVIII.
102
ADB – Baptismos – Paróquia de São João do Souto – No livro 144 (1699-1713) foram registados 976 assentos; No livro 145 (1713-
1721) foram registados 641 assentos; No livro 146 (1721-1751) foram registados 2.278 assentos; No livro 147 (1751-1772) foram registados
1.590 assentos; No livro 148 (1772-1789) foram registados 1.327 assentos; No livro 149 (1789-1808) foram registados 804 assentos. O total
de assentos inseridos na base de dados já mencionada foi de 7.625 assentos.
38
foram sendo feitas, ao longo do século XVIII, contagens populacionais (sejam com fins
administrativos ou militares), para a América Portuguesa a população somente começou a ser
contabilizada de maneira um pouco mais sistemática a partir de meados do século XIX.
Contundo, sabe-se que a população da América Portuguesa, neste período, era composta,
maioritariamente, por africanos108 e seus descendentes109. Em virtude disso, o contingente
escravo representou a maioria dos assentos de baptismo na Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará e foi responsável pelos altos índices de baptismos de crianças ilegítimas
naquela comunidade.
A primeira tipologia documental analisada para este trabalho foi a paroquial composta
pelos assentos paroquiais de baptismo110 e casamento. Os assentos de baptismos embora com
registos sintéticos fornecem informações que são de extrema riqueza para este estudo. Por
isso, vimos por bem dividir a planilha de recolha de dados em três partes: a primeira diz
respeito ao baptizando e nos permite recuperar dados como: nome, local e data de nascimento,
data de baptismo, categoria de filiação a que pertence (legítima, natural111), se tinha sido
exposto ou enjeitado (e em casa de quem) e o sexo; A segunda parte da planilha recupera os
dados referentes aos pais do baptizando: nome, estatuto jurídico (livre, escravo ou forro),
ocupação profissional do pai e domicílio dos mesmos; na terceira parte aparecem os padrinhos
e madrinhas, sua ocupação profissional (no caso dos homens) e domicílio de ambos. Criamos
108
Há que se considerar que o baptismo do contingente escravo não esteve restrito apenas às crianças cativas. Há também, entre os assentos,
um elevado número de escravos adultos baptizados o que aponta para uma tentativa de inserção dos mesmos no quotidiano cristão
inclusivamente na idade adulta. Neste caso, no que diz respeito à informação sobre a origem da filiação ___ legítima ou ilegítima ___ optamos
por associar aos escravos adultos a expressão “não se aplica” ao invés de suprimi-los do registo na base de dados.
109
Frente a este panorama foi necessário que vinculássemos o estatuto legal do baptizando (escravo, forro ou livre) ao de sua mãe. Ou seja,
as crianças nascidas de ventre cativo foram consideradas escravas, e aquelas nascidas de ventre forro foram consideradas livres.
110
Sobre o estudo da História da Família tanto pelo aspecto social, quanto demográfico, a partir dos assentos de baptismo ver, BRUGGER,
S. M. J., Minas Patriarcal; família e sociedade (São João Del Rei, séculos XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, Fapesp, 2007; SOLÈ, M. G.
P. S., Meadela, Comunidade Rural do Alto Minho: Sociedade e Demografia (1593-1850), Guimarães, NEPS, 2001; NEVES, A. A., Filhos
das Ervas; a ilegitimidade no norte de Guimarães (séculos XVI - XVIII), Guimarães, NEPS, 2001; SCOTT, A. S. V., “O pecado na margem
de la: a fecundidade ilegítima na metrópole portuguesa (séculos XVIII – XIX)”, População e Família, N.3, 2000, pp.41-70; SANTOS, C. M.
F., Santiago de Romarigães, comunidade rural do Alto Minho: sociedade e demografia (1640-1872), Guimarães, NEPS, 1999; SCOTT, A.
S. V., Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português - (Séculos XVIII e XIX), Guimarães, NEPS, 1999;
BACELLAR, C. A. P., Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX, São Paulo, Annablume, Fapesp, 2001;
HIGGINS, K.J., Licentious Liberty in a Brazilian Gold-Mining Region: Slavery, Gender and Social Control in Eighteenth-Century Sabara,
Minas Gerais, University Park, The Pennsylvania State University Press, 1999; NADALIN, S. O., A demografia numa perspectiva histórica,
Belo Horizonte, Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1994.
111
O Padre Raphael Bluteau, em seu Vocabulário Português e Latino caracteriza o filho natural como aquele "[...] que o pai teve antes de
casado", distinguindo-os dos bastardos. BLUTEAU, R. Padre, Vocabulário Português e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1712. vol V, p.684. Neste ponto as Ordenações Filipinas determinavam que: "O filho natural havido de mulher que tenha
ajuntamento com muitos homens no mesmo tempo, é insucessível ao pai mesmo que peão; não por exclusão legal, pois hoje abrogado o
concubinato ele é equiparado ao filho natural, mas por não poder provar a paternidade. E portanto se no tempo suficiente para a concepção e
parto, a mãe não teve ajuntamento com outro homem, ainda que o tivesse antes ou depois, o filho podendo provar a paternidade, sucede ao
pai peão, como filho verdadeiramente natural". Ordenações Filipinas, Livro quatro, título 92, nota 1, p.941.
40
ainda um campo de observações para inserir dados que não tivessem sido contemplados pela
planilha principal em virtude da pouca recorrência.
Em relação à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará 112 alguns
esclarecimentos quanto às fontes merecem ser ditos. A documentação paroquial referente à
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará está em fase avançada de degradação o
que dificultou e, impediu a leitura de grande parte dos assentos referentes à segunda metade
do século XVIII. Alem disso, constatamos a existência de muitas lacunas ao longo do período
estudado. O registo dos assentos inicia-se no ano de 1723 e finda em 1757113 (os registos
estão distribuídos em 2 volumes). O terceiro volume data de 1776 e finda no ano de 1782114.
Percebemos assim, que a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, no que
diz respeito aos assentos de baptismo, está contemplada com apenas 40 anos de registos. As
lacunas identificadas comprometem, evidentemente, uma análise demográfica da região, mas
não impedem uma análise social das famílias que compuseram aquele universo.
Os registos da Paróquia de São João do Souto, por sua vez, encontram-se completos
para o século XVIII não somente no que diz respeito à série documental, mas também no que
toca às informações neles contidas e determinadas pelas normas do Concílio de Trento.
Recuperam-se nos livros de baptismos não somente o nome da criança, dos pais e padrinhos,
como também a actividade sócio económica do pai e do padrinho, e em alguns casos, o nome
dos avós paternos e maternos.
Sabe-se que, para a sociedade católica do século XVIII, o baptismo115 era um rito de
passagem por excelência. Este sacramento procurava integrar o recém-nascido na comunidade
cristã, significando assim “[...] um segundo nascimento, um nascimento social e religioso que
definia desde a tenra idade a religião, e que por consequência, o conjunto de valores pelos
quais o indivíduo deveria se pautar”.116 Era, portanto, a porta pela qual se entrava na Igreja
112
No caso dos registos paroquiais, especificamente os assentos de baptismo, o arquivo conta com 9 códices que contemplam os anos de
1723 a 1863.
113
Torna-se importante salientar que devido ao estado de conservação da documentação, já mencionado, constatamos que no ano de 1749
não foi feito qualquer registo de baptismo na Paróquia de Sabará. Tal facto, bastante suspeito e improvável, pode ter como explicação a perda
de folhas do mesmo códice. Tal hipótese foi levantada após confirmarmos que os volumes foram desmembrados para ser possível fazer um
trabalho de conservação e, posteriormente, reestruturado.
114
Embora haja no livro a referencia que o mesmo contemplaria os anos de 1776 a 1800, a leitura revelou que o mesmo contém somente 6
anos de registos.
115
O Padre Raphael Bluteu definiu em seu Vocabulário Portuguez e Latino o baptismo como sendo “O primeiro Sacramento dos Christãos,
que alimpa a alma do peccado original, e une os homens com Jesus Christo”. BLUTEAU, R. Padre, “Baptismo”, In Vocabulário Português e
latino, Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. vol II, p.37.
116
VENÂNCIO, R. P, “A infância abandonada no Brasil colonial: o caso do Rio do Janeiro no século XVIII”, Anais do Museu Paulista,
São Paulo, 1986/87. Tomo XXXV, p. 221-32.
41
Católica e que “[...] causa efeitos maravilhosos, porque por ele se perdoam todos os pecados,
assim original, como actuais, ainda que sejam muitos, e muito graves”.117
O Concílio de Trento (1563) representou um marco importante na história do
cristianismo, uma vez que permitiu à Igreja Católica dar início a uma nova forma de
instituição e actuação118 de seus dogmas, entre eles, a obrigatoriedade do sacramento do
baptismo a todos os recém-nascidos.
No contexto em que se insere este estudo, os códigos canónicos responsáveis pela
ordenação do viver religioso119 foram as Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga120
(1639) e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia121 (1707). Como a
regulamentação em ambos os códigos estava sustentada nas determinações conciliares de
Trento a sua base de argumentação é bastante semelhante. Contudo, acreditamos que as
comunidades em análise, apesar de fazerem parte do Império Português, eram estruturalmente
distintas o que acabou por determinar que a aplicação dos códigos canónicos fosse adaptada à
diversidade da realidade. Há contudo que considerar que, no caso da América Portuguesa, a
adaptação das determinações conciliares foi criticada e, muitas vezes, vista como desvio. A
questão do baptismo de escravos estava presente em ambos os códigos canónicos. Nas
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga as determinações estão expostas no Título
VII Do baptismo dos infiéis e filhos de escravos. No caso das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia foram adicionados títulos que tratam, especificamente, da inserção do
escravo adulto no mundo católico.
O sacramento do baptismo era o primeiro de sete sacramentos. Como já foi dito,
anteriormente, era o sacramento que representava a porta de entrada do fiel no mundo cristão
sem o qual nenhuma pessoa podia obter a salvação. No caso do baptismo de inocentes122
117
CPAB (1707), Livro Primeiro, título X, p.13.
118
GOLDSCHMIDT, E. M. R., Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista, 1719-1822, São Paulo, Annablume, 1998.
119
BOSCHI, C. C., “A presença religiosa”, In BITHECOURT, F., CHAUDHURI, K. (dir.), História da expansão portuguesa, 1ª Ed.,
Lisboa, Circulo de Leitores e Autores, 1998, v.3.
120
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga ordenadas no ano de 1639 pelo Ilustríssimo Senhor Arcebispo D. Sebastião de Matos e
Noronha. E mandadas imprimir a primeira vez pelo Illustrissimo Senhor D. João de Sousa, Arcebispo, & Senhor de Braga, Primaz das
Espanhas, do Conselho de Sua Magestade, & Seu Sumilher da Cortina, & Lisboa, Oficina de Miguel Deslandes, Impressor de Sua
Magestade. Com todas as licenças necessárias, anno de 1697. Os títulos que regulam a administração do sacramento do baptismo e do
matrimónio eram, respectivamente: título II e IX.
121
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro
da Vide, 5º Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: Propostas, e Aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito
senhor celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. Impressas em Lisboa no ano de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as licenças
necessárias, e ora reimpressas nesta Capital. São Paulo, Typographia 2 de Dezembro de António Louzada Antunes, 1853.
122
A palavra inocente, frequentemente utilizada nos registos paroquiais de baptismo para designar a administração do sacramento em
crianças, remete à palavra inocência. No Vocabulário Portuguez e Latino do Padre Raphael Bluteau a conceituação da palavra inocência está
relacionada à pureza da alma e passo a citar “[…] Pureza da alma, livre de todo o género de pecados. Neste sentido dizemos que Adão foi
criado no estado da inocência, e que a inocência baptismal restitui o homem à sua primeira pureza. A idade dourada da inocência, é a
42
infância do homem; no leite, com que se alimenta, se deriva o seu candor.” BLUTEAU, R. Padre, “Inocência”, Vocabulário Português e
latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. vol IV, p.140.
123
O não cumprimento dessa determinação acarretava o pagamento de $300 réis, devendo ser a metade para a igreja onde seria baptizada a
criança e a outra metade para o Meirinho. A continuidade dessa situação por mais 8 dias era punida com o pagamento de $600 réis
distribuídos da mesma maneira.
124
A princípio não era permitida a presença de duas pessoas do mesmo sexo no apadrinhamento das crianças. Contudo, entre os assentos de
baptismos registados em ambas as paróquias identificamos, para a Paróquia de São João do Souto, “XX” casos em que estiveram presentes
somente homens e “XX” casos somente com madrinhas. No caso da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará foram identificados
“XX” em que somente os padrinhos estiveram presentes, contra “XX” de presença das madrinhas.
43
125
CPAB, 1707. Livro I, Título XX, p. 30.
126
As Constituições da Bahia não distinguem uma categoria da outra, sendo encontrada apenas a terminologia "enjeitado". A opção em
considerá-los separadamente baseou-se no estudo feito por Renato Pinto Venâncio no qual considera como enjeitadas aquelas crianças
abandonadas em hospitais, conventos ou casas de família, factor este que era demonstrativo de preocupação dos pais com a vida de seus
filhos. Já os expostos eram geralmente deixados em terrenos distantes o que o autor considera quase como uma sentença de morte. Sobre o
abandono de crianças, ver VENÂNCIO, R. P., Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em
Salvador – séculos XVIII e XIX, Campinas, Papirus, 1999.
127
CSAB, Titulo II, Constituição VI, p. 19.
128
BRUGGER, S. M. J., Minas patriarcal; família e sociedade (São João Del Rei, século XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007;
PRAXEDES, V. L. A teia e a trama da "fragilidade humana": os filhos ilegítimos em Minas Gerais, 1770-1840, Belo Horizonte,
FAFICH/UFMG, 2003, Tese de Mestrado, policopiado; GOLDSCHMIDT, E. M. R., Convivendo com o pecado na sociedade paulista
colonial (1719-1822), São Paulo, Annablume, FAPESP, 1998; LEWKOWICZ, I. Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais
(séculos XVIII e XIX), São Paulo, USP, 1992, Dissertação de Doutoramento; FARIA, S. S. C. “Legitimidade, estratégias familiares e
condição feminina no Brasil escravista”, Anais do VIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, v.I, 1992. Pp. 297 – 317; KUZNESOF,
E. A. “A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1980)”, Revista Brasileira de História,
São Paulo, set.88/fev.89, v.9, n. 17, Pp. 37-63; VENÂNCIO, R. P., “Nos limites da sagrada família; Ilegitimidade e casamento no Brasil
Colonial”, In, VAINFAS, R. (Org.), História e sexualidade no Brasil, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986.
129
PERARO, M. A. “Mulheres de Jesus no universo dos ilegítimos”, Diálogos, DHI/UEM, v.4, n. 4: Pp. 51-75, 2000.
130
Tal distinção não foi observada nos livros de baptismo lidos e transcritos para a Vila de Sabará, sendo feito o registo de baptismo de
crianças livres, escravas e forras, bem como o de escravos adultos. Entre os 4.181 registos entre os anos de 1723-1757, 1.040 eram referentes
a escravos adultos e 3.141 foram as crianças baptizadas, não havendo aqui distinção entre naturais, legítimos ou expostos.
44
Capela mais próxima para serem baptizadas antes de completarem sete anos de idade, mesmo
sem autorização dos pais. Aos escravos adultos, o baptismo deveria ser administrado até 6
meses após sua aquisição.
No que diz respeito ao baptismo dos filhos ilegítimos é o título XI “Em que tempo, por
que pessoas e em que lugar se deve administrar o sacramento do baptismo” que regulamentou
a forma como o sacramento era administrado, especialmente no caso dos filhos sacrílegos. O
parágrafo 40 deste título determinava que:
[...] por se evitarem alguns inconvenientes, mandamos, que constando de
certo e pública notícia, sem preceder inquirição alguma, ser a criança, que se
quer baptizar, filha de Clérigo de Ordens Sacras, ou Beneficiado, se não
baptize na pia da Igreja, aonde seus pais forem Vigários, Coadjutores, Curas,
Capelães, ou fregueses, mas seja baptizada na Freguesia mais vizinha.131
Contudo, caso a igreja vizinha estivesse distante do lugar onde a criança nasceu, era
permitido que o baptismo fosse feito na igreja da paróquia de onde os pais eram fregueses,
desde que no momento da administração do sacramento “[...] na Igreja não esteja gente”.
Além disso, não era permitido que fosse feito qualquer acompanhamento salvo o do pároco.
Como pode ser observado no título acima as crianças nascidas de relações sacrílegas, assim
como as demais, deveriam ser baptizadas sem, contudo, macular a honra do seu progenitor.
Em um primeiro momento tal postura pode ser encarada como expoente da vergonha social
que cercaria a vida de um religioso ou religiosa que permitisse que viesse a público a
paternidade ou maternidade de uma criança. Mesmo que, num primeiro momento, a
concepção de uma criança sacrílega fosse sinónimo de vergonha e discriminação, veremos ao
longo deste trabalho a inversão deste aspecto quando, por meio das cartas e escrituras de
legitimação, muitos religiosos reconheceram seus filhos e, consequentemente, asseguraram o
seu acesso à herança.
Entretanto, a valorização do primeiro de todos os sacramentos cristãos não estava
relacionada apenas com a importância religiosa do rito. Na fase adulta o registo de baptismo
foi muitas vezes requerido por aquele indivíduo que se candidatava aos cargos públicos, para
se ordenar religioso ou no momento de contrair o matrimónio.
Para o estudo da ilegitimidade devemos ainda reflectir sobre a importância do registo
de baptismo como instrumento de confirmação de paternidade, uma vez que se exigia que a
nomeação dos pais fosse feita no ato do registo. Frente a esta característica do assento de
baptismo, enquanto um instrumento público de reconhecimento de paternidade, deve também
ser considerada a possibilidade de manipulação dos registos.
131
CPAB (1707), Livro Primeiro, Título XI, § 40, p. 16.
45
De acordo com o discurso jurídico, a legitimação dos filhos tinha início com a
declaração, em instrumento público, da paternidade. Em virtude disto, o primeiro destes
instrumentos era o assento de baptismo. Mas um factor apresenta-se superior a essa
obrigatoriedade do registo. O mesmo deveria ser feito desde que não houvesse escândalo com
a nomeação dos pais. Apoiando-se nessa argumentação, a omissão do nome do pai, facto
recorrente nos registos, poderia estar relacionado com a posição socioeconómica que ele
assumia na comunidade.
2.1. Legítimos ou naturais, todos deveriam ser baptizados
132
Em estudo realizado com as Memórias paroquiais de 1758 o Prof. Dr. José Viriato Capela e Dra. Ana da Cunha Ferreira dizem ser o
Concelho de Braga o espaço político-administrativo mais desenvolvido sendo composto, em meados do século XVIII, por seis paróquias
urbanas e 31 paróquias rurais. Cf. CAPELA, J. V.; FERREIRA, A. C., Braga Triunfante ao tempo das memórias paroquiais de 1758, Braga,
Compolito, 2002.
133
Segundo os autores, no que diz respeito à informação sobre a população paroquial é, sem sombra de dúvidas, a mais completa.
Entretanto, o que pode ser verificado é que entre os párocos houve alguma “confusão” no que se refere aos habitantes que, efectivamente,
deveriam ser contabilizados. O uso do termo “pessoas de sacramento” nas Memórias Paroquiais remete ao que determinavam as
Constituições que consideravam como pessoas maiores aqueles com idade superior aos 7 anos.
134
Definidos nas Ordenações Filipinas como todos aqueles cujo pai não foi possível identificar, porque "[...] não é confessável ou perante a
sociedade ou perante a lei, pela ilegalidade ou reprovação do coito de que procedem. Assim são os sacrílegos, os incestuosos, e os
adulterinos". Ordenações Filipinas, Título 93, Nota 7, p.943
46
Optamos por não inserir este grupo entre o dos filhos “naturais”, uma vez que o
assento de baptismo não revela as condições que levaram pais e mães a abrirem mão da
criação de seus filhos. Eram estas 65 crianças nascidas de uniões não legítimas? Ou foram
abandonadas por famílias que não tinham condições financeiras para criá-las? Os registos
apresentados na tabela 1 estão reunidos sem a distinção por sexo. Contudo, a partir da tabela
supracitada é possível escalonar os dados para que possamos analisá-los para além do seu
significado numérico.
Já para a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará percebemos, na tabela
acima, que a presença, maioritária, de escravos africanos e de seus descendentes imprimiu um
perfil distinto, no que se refere à ilegitimidade, daquele visto para a Paróquia de São João do
Souto (composta, maioritariamente, por homens e mulheres brancas).
135
Renato Pinto Venâncio ao analisar o abandono de crianças no Rio de Janeiro aponta para o facto de que a exposição de crianças naquela
cidade pode ter sido um instrumento de uso recorrente entre os pais que desejassem legitimar seus filhos. Tal possibilidade ocorria devido à
determinação legal de que o assento de baptismo de uma criança enjeitada lhe atribuía o status de legítima em virtude da impossibilidade de
identificar seus progenitores. Sobre o abandono de crianças na Cidade do Rio de Janeiro, ver VENÂNCIO, R. P., Famílias abandonadas;
assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador nos séculos XVIII e XIX, Campinas, SP, Papirus, 1999.
136
No cômputo da nossa base existem ainda 17 casos em que não foi possível identificar a natureza da filiação em virtude da dificuldade de
leitura do registo devido ao estado de conservação da documentação.
47
137
Os expostos eram, legalmente, considerados filhos legítimos por não ser possível determinar quem eram seus progenitores. A exposição
acabava por inseri-los no quotidiano legítimo e afastando a possibilidade de marginalização conferida pela ilegitimidade. São também filhos
legítimos os filhos de pais incógnitos, os filhos de mães casadas e aqueles que foram legitimados por subsequente matrimónio.
48
O que podemos apreender nesta primeira análise dos assentos de baptismos em ambas
as paróquias é que a composição social da população que as compunha interferiu,
directamente, nos índices de ilegitimidade registados. Entre os escravos e forros
predominaram os assentos de filhos naturais apontando, assim, para o parco acesso ao
casamento que estes segmentos tinham. Em contrapartida, entre os livres, houve o predomínio
dos filhos legítimos indicando, assim, a preocupação em manter a honra dos progenitores
imaculada.
Tabela 6 – Natureza da filiação versus sexo dos baptizados
Paróquia de São João do Souto, Braga, 1700-1799
Origem da V/a % V/a %
filiação
Legítimos 3589 92,6% 3482 92,8%
Naturais 239 6,2% 233 6,2%
Homens Mulheres
Enjeitado 10 0,2% 4 0,2%
Incógnito 29 0,7% 22 0,6%
[Ilegível] 7 0,2% 10 0,3%
Total 3874 100,0% 3751 100,0%
Os valores apresentados são baseados no total de assentos de baptismo que é de 7.625. V/a: Valor absoluto; %: Valor percentual
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Livros 144 a 149, século XVIII.
138
BRUGGER, S. M. J., Minas patriarcal; família e sociedade (São João Del Rei, século XVIII e XIX). São Paulo, Annablume, 2006;
BRUGGER, S. M. J. “Legitimidade e comportamentos conjugais – São João Del Rei (século XVIII e 1ª metade do século XIX)”, Anais de
Resumos do XII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Belo Horizonte, 2000; PRAXEDES, V. L. A teia e a trama da "fragilidade
humana": os filhos ilegítimos em Minas Gerais, 1770-1840, Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 2003, Tese de Mestrado em História; SCOTT,
A. S. V., “Desvios Morais nas Duas Margens do Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos”,
49
CEPESE/População e Sociedade, Porto, v.7, p.129 - 158, 2001; DANTAS, M. L. R., “Práticas Sucessórias e Estratégias de Manutenção de
Património na Comarca do Rio das Velhas, Século XVIII”, In: Anais XIX Reunião anual da SBPH, Curitiba, 1999; SCOTT, A. S. V.,
Famílias, formas de união e reprodução social no Nordeste Português (séculos XVIII e XIX), Guimarães, NEPS, 1999; FIGUEIREDO, L.,
Barrocas famílias; vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997; SILVA, M. B. N., “Concubinato e família
ilegítima”, In Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI, Lisboa, Estampa, 1993; RAMOS, D. “From Minho
to Minas: the portuguese roots of the Mineiro family”, History of the American Historical Review, n. 4, vol.73, 1993, p. 639-662;
LEWKOWICZ, I. Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX), São Paulo, USP, 1992, Dissertação de
Doutoramento em História; RAMOS, D. “A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754-1838”, In NADALIN, S. O. (Org.).,
História da População: estudos sobre a América Latina, São Paulo, Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990; COSTA, I. D.
N., “Ocupação, povoamento e dinâmica populacional”, In COSTA, I. D. N. & LUNA, F.V., Minas Colonial economia e sociedade, São
Paulo, Pioneira, 1982, p. 1-30.
139
O local de domicílio indicado é aquele referente ao domicílio dos pais do baptizando.
50
analisarmos somente os registos de baptismo dos filhos naturais vemos que a maioria (3,9%)
se refere a baptismos de crianças, as quais possuam que pelo menos um dos progenitores
residente na Paróquia de São João do Souto. Ao analisarmos o mesmo aspecto na Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição do Sabará aqui também predominaram, entre os assentos de
baptismos, os que pertenciam a residentes da Paróquia (73,5%). Mesmo quando analisamos o
baptismo dos filhos naturais mais de 70% deles foram baptizados na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará o que aponta para o facto de que, mesmo sob o risco de
verem a honra pessoal e familiar maculada por um nascimento ilegítimo, os progenitores
optaram por baptizar seus filhos em sua paróquia de origem.
Tabela 8 – Local de baptismo, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará,
Minas Gerais, 1723-1782
Pai
Legítimos Natural Exposto Não se aplica Total
Local de incógnito
Domicílio140 V/a % V/a (%) V/a V/a (%) V/a (%) V/a (%)
(%)
Paróquia de 1428 63,4% 1922 75,6% 38 84,4% - - 1300 91,9% 4668 75,0%
Nossa Senhora
da Conceição do
Sabará
Paróquias 761 33,8% 571 22,4% 7 15,6% - - 89 6,2% 1428 22,8%
Vizinhas
N/c 20 0,9% 17 0,6% - - - - 10 0,7% 47 0,7%
Em casa 40 1,8% 30 1,1% - - - - 15 1,0% 85 1,3%
Vila de Sabará - - - - - - - - - - - -
Total 2249 100% 2540 100% 45 100% - - 1414 100% 6248 100%
CEDIC-BH. Livros de baptismos. Paróquia de Sabará. 1723-1757. Vol. 1 e 2 livros (livres e escravos); 1776-1782. Vol.1 e 2 (livres e escravos)
Outra documentação que nos permite identificar a presença dos filhos ilegítimos nas
sociedades que compuseram o Império Português são as actas de casamento.141 Para este
trabalho elaboramos uma planilha de recolha de dados que está dividida em duas partes
principais. A primeira diz respeito a todas as informações presentes nos assentos que dizem
respeito aos nubentes. Torna-se importante referenciar aqui a riqueza dos dados apresentados
140
O local de domicílio indicado é aquele referente ao domicílio dos pais do baptizando.
141
No que se refere aos assentos de casamento da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará o volume de registos de casamento é,
consideravelmente, inferior ao colectado para a paróquia bracarense. Para o século XVIII existe somente um livro de registo de casamentos
da Paróquia de Sabará que compreende os anos de 1754 a 1795. Os registos foram lidos e transpostos para a base de dados e somaram um
total de 666 actas de casamento.
51
nas actas de casamento, uma vez que permitem a recuperação também dos nomes dos pais dos
mesmos e num conjunto de dados complementares que permitem um melhor conhecimento
não somente dos noivos como indivíduos, mas também dos seus progenitores. Como
dissemos anteriormente a planilha de recolha está dividida em duas partes: a primeira parte
diz respeito aos dados dos nubentes e seus ascendentes directos. No caso dos nubentes foram
recuperados os seus nomes, se eram aquelas as primeiras núpcias contraídas, o estatuto
jurídico (livre, escravo ou forro), a categoria da filiação (legítima ou natural), se tinham sido
expostos ou enjeitados, a data e o local de baptismo, a ocupação profissional (no caso do
noivo) e o domicílio. No que diz respeito aos seus ascendentes foi possível recuperar os
nomes, se estavam vivos ou mortos, o estatuto legal (livre, escravo ou forro) e a ocupação
profissional (também somente para os homens); a segunda parte da planilha contempla as
informações sobre a cerimónia, tais como: data em que foi celebrada, o nome do pároco
responsável, o local onde foi realizada (capela ou igreja) e a identificação de três testemunhas
(número exigido pelo código canónico em vigor) seguidas da sua ocupação profissional e
domicílio.
A união matrimonial142 é, no mundo cristão, o último rito responsável por introduzir
os indivíduos no ceio das comunidades a que pertencem. Assim como o baptismo, o
sacramento do matrimónio deveria ser administrado por um religioso e num templo católico.
De acordo com o código canónico o sagrado laço do matrimónio instituído entre os noivos na
forma de “[…] um contracto com vínculo perpétuo, e indissolúvel, pelo qual o homem e a
mulher se entregam um ao outro”143 tinha, a priori três finalidades: a propagação humana; a fé
e a lealdade que os casados deveriam ter um para com o outro; e a inseparabilidade dos
noivos.
As idades hábeis para que fosse permitido ao homem e à mulher contraírem o
matrimónio era de 14 anos para os homens e 12 anos para as mulheres. Entretanto, para
contraírem o matrimónio era necessário que fossem feitas as denunciações com o objectivo de
garantir que os nubentes não tinham impedimentos para se receberem como marido e mulher.
As “denunciações” deveriam ser feitas em 3 Domingos ou em dias Santos no decorrer da
missa do dia. Em geral, o texto das denunciações continha: nome dos noivos, de onde eram
naturais e o seu domicilio e o nome dos pais de ambos. E solicitava-se que “[…] se alguém
142
ALMEIDA, A. M., “Os manuais portugueses de casamento dos séculos XVI e XVII”, Revista Brasileira de História, v. 9, n. 17, São
Paulo, set.88/fev.89.
143
CAB – Título LXII Do sacramento do matrimónio: da instituição, matéria, forma, e ministro deste sacramento; dos fins para que foi
instituído, e dos efeitos que causa. P.107
52
souber que há algum impedimento, pelo qual não possa haver efeito o matrimónio, lhe
mandamos em virtude de obediência, e sob pena de excomunhão maior o diga.”144
Entre os impedimentos dirimentes à união de duas pessoas estavam: a condição, ou
seja, se um dos contraentes era cativo e o outro livre; a cognação, ou seja, o parentesco seja
natural, espiritual ou legal; o crime; a disparidade religiosa; força ou o medo usados para
constranger um ou outro a casar; o pertencimento a alguma Ordem Sagrada; Ligame, ou seja,
se algum dos contraentes já era casado mesmo que a união não tivesse sido consumada;
afinidade que era o laço estabelecido entre os nubentes e os parentes consanguíneos até o
quarto grau de um e de outro; a impotência de qualquer dos contraentes que fosse atestada
antes do casamento; rapto; a ausência do pároco e de duas testemunhas.
Assim como nos assentos de baptismo, também nas actas de casamento145 havia a
preocupação com a mácula que a ilegitimidade infantil poderia acarretar para seus pais. Em
virtude disso, determinava-se que sendo um dos contraentes ilegítimo o nome dos seus não
deveria ser mencionado com excepção de a mesma nomeação não causar qualquer tipo de
escândalo.
No Arquivo Distrital de Braga foram lidos e transcritos 4 livros de actas de
casamentos146 referentes à Paróquia de São João do Souto, em Braga. Os assentos totalizaram
2.941 registos para todo o século XVIII. A principal finalidade para a análise das actas de
casamento reside no facto de as mesmas oferecerem a possibilidade de conhecermos de que
modo os filhos ilegítimos foram efectivamente inseridos nos núcleos familiares aos quais
pertenciam, na medida em que lhes foi atribuído o direito de constituir sua própria família por
meio da união matrimonial. Frente a isto, a leitura dos assentos paroquiais, para além do seu
uso em estudos demográficos, teve importância fundamental para que pudéssemos analisar as
possibilidades de inserção e participação dos filhos ilegítimos no quotidiano da comunidade a
que pertenciam. Em virtude da distinta composição social da Paróquia de São João do Souto e
da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará foi necessária a inserção de variáveis
que podem não contemplar as duas comunidades.
144
CAB – Título LXII Do sacramento do matrimónio: da instituição, matéria, forma, e ministro deste sacramento; dos fins para que foi
instituído, e dos efeitos que causa. P. 110-111.
145
Sobre o estudo do casamento no Antigo Regime, ver GUIMARÃES, J. J. A., A evolução normativa do casamento nas constituições
sinodais Arcebispados de Braga e da Baía, 1505-1719, Braga, [s.n.], 1999; ALMEIDA, A. M., O gosto do pecado: casamento e sexualidade
nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII, Rio de Janeiro, Rocco, 1992; BRAGA, A. M. S. N. O., Para uma história do casamento
em Portugal nos finais do Antigo Regime: o quadro normativo, Porto, [s.n.], 1990; MARTINS, J. A. F., Casamento e sociedade no bispado
de Coimbra no primeiro quartel do século XVIII: os impedimentos de matrimónio, Coimbra, [s.n.], 1987, (Tese de Mestrado); VAINFAS, R.
Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão, São Paulo, Editora Ática, 1986; CAMPOS, A. L. A. O casamento e a família em São Paulo
colonial: caminhos e descaminhos, São Paulo, 1986, (Tese Doutoramento em História).
146
ADB – Casamentos: Livro nº 154 (1685-1701); Livro nº 155 (1701-1751); Livro nº 156 (1751-1781); Livro 157 (1781-1800).
53
Tabela 9 – Natureza da filiação nas actas de casamento148 versus sexo, Paróquia de São João do Souto,
Braga, 1700-1799
Origem da V/a % V/a %
filiação
Legítimos 2504 85,1% 2582 87,8%
Naturais 288 9,8% 233 7,9%
Homens Mulheres
Exposto 24 0,8% 34 1,1%
Incógnito 4 0,1% 9 0,3%
N/c 121 4,1% 83 2,8%
Total 2941 100,0% 2941 100,0%
Os valores apresentados são baseados no total de assentos de baptismo que é de 2.941. V/a: Valor Absoluto; %: Valor percentual. ADB – Registos Paroquiais,
Casamentos, Paróquia de São João do Souto, Livros 154 a 157, século XVIII.
Entre os assentos de casamento, assim como entre os registos de baptismo, vemos que
houve o predomínio, entre os nubentes, de filhos que nasceram do matrimónio legítimo. Seja
entre os noivos, seja entre as noivas, o índice de legitimidade esteve na casa dos 85% dos
registos.
Apesar dos registos de casamento da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará serem numericamente inferiores àqueles recolhidos para a Paróquia de São João do
Souto, a sua análise torna-se também fulcral para analisarmos a presença do contingente
minhoto149 na comunidade e os laços por ele estabelecidos na formação de suas famílias fosse
por meio do matrimónio ou não.
147
FLORENTINO, M. & GÓES, J. R., A paz das senzalas; famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790- C. 1850, Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1997; FLORENTINO, M. & GÓES, J. R., “Crianças escravas, crianças dos escravos”, In, PRIORE, M. D.
(org.), História das Crianças no Brasil, São Paulo, Contexto, 1991, 4 Ed., 1996. Pp. 177-191; BOTELHO, T. R. Famílias e escravarias:
demografia e família escrava no norte de Minas Gerais, no século XIX, São Paulo, USP, 1994, (Tese de Mestrado); BRUGGER, S. M. J.;
KJERFVE, T. M., Compadrio: relação social e libertação espiritual em sociedade escravista – Campos, 1754-1766, Rio de Janeiro, CEAA,
1991.
148
ADB – Casamentos – Paróquia de São João do Souto – No livro 154 (1684-1701) foram registados 34 assentos; No livro 155 (1701-
1751) foram registados 1613 assentos; No livro 156 (1751-1781) foram registados 795 assentos; No livro 157 (1781-1800) foram registados
494 assentos; O total de assentos inseridos na base de dados já mencionada foi de 2.941.
149
Para o século XVIII não há ainda um estudo mais sólido sabre esta questão. Contudo, para o século XIX os estudos de ALVES, Jorge
Fernandes, Os Brasileiros - Emigração e Retorno no Porto Oitocentista, Porto, 1994 e RODRIGUES, Henrique, A Emigração do Alto-
Minho e a Miragem do Brasil, 1835-60, Porto, Faculdade de Letras (dissertação de mestrado), 1991.
54
Tabela 10 – Natureza da filiação nas actas de casamento150 versus sexo, Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará, 1758-1795)
Origem da V/a % V/a %
filiação
Legítimos 298 44,9% 278 41,7%
Naturais 149 22,5% 190 28,7%
Homens Mulheres
Exposto 9 1,4% 9 1,4%
Incógnito 1 0,2% 5 0,8%
N/c 207 31,1% 183 27,5%
Total 666 100,0% 666 100,0%
CEDIC-BH. Livro de casamento. Paróquia de Sabará. 1758-1795
150
ADB – Casamentos – Paróquia de São João do Souto – No livro 154 (1684-1701) foram registados 34 assentos; No livro 155 (1701-
1751) foram registados 1613 assentos; No livro 156 (1751-1781) foram registados 795 assentos; No livro 157 (1781-1800) foram registados
494 assentos; O total de assentos inseridos na base de dados já mencionada foi de 2.941.
151
No caso das actas de casamento da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará o perfil dos nubentes apresenta uma considerável
diferença quando comparado com aquele que foi revelado nos assentos de baptismo. Quer entre os homens, quer entre as mulheres,
predominaram os nubentes cujos pais estavam unidos pelos laços sagrados do matrimónio o que, por sua vez, atribuía aos filhos o estatuto de
legítimos. Contrariamente, como já foi analisado anteriormente, nos assentos de baptismo houve o predomínio dos filhos ilegítimos entre os
baptizados. Tal distinção, no que se refere à natureza da filiação, torna-se interessante analisar, na medida em que confirma o reduzido acesso
que os escravos e os forros tiveram ao processo de contracção do laço matrimonial o que acaba por confirmar os altos índices de
ilegitimidade deste segmento da sociedade nos assentos de baptismo. Oportunamente trataremos desta questão.
152
Sobre as disposições testamentárias no Antigo Regime, ver LIMA, J. G. de, Manual dos testamentos e dos direitos de sucessão, direitos
e obrigações dos herdeiros e legatários: legislação, jurisprudência, Lisboa, Biblioteca de Educação Nacional, [1915?]; DUARTE, I. S.,
55
Tratado práctico dos testamentos: directório dos testadores e dos testamenteiros, conforme a legislação em vigor: com formulários, Lisboa,
Livr. Portugueza e Franceza, 1880; PINTO, A. J. G, Tratado regular e pratico de testamentos, e successões ou compêndio methodico das
principaes regras e princípios que se podem deduzir das leis testamentárias, Lisboa, Typ. de José Baptista Morando, 1844; COSTA, C. F.,
Discurso deduzido dos sólidos princípios dos direitos natural, e divino, em que são estabelecidas as leis próximas sobre os testamentos,
Lisboa, Off. de Caetano Ferreira da Costa, 1770; PORTUGAL, Régia Oficina Tipográfica, Carta de lei ampliando outra anterior sobre
maquinações fraudulentas de testamentos e últimas vontades, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1769.
153
No caso dos testamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará ressaltamos que a recolha dos dados foi feita por meio
da base de dados do projecto “Memória Social e Administrativa da Comarca do Rio das Velhas no século XVIII” coordenado pela Professora
Doutora Beatriz Ricardina de Magalhães e em execução no Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG
(Brasil). A consulta foi feita inicialmente na base de dados do projecto e, posteriormente, os dados recolhidos foram transpostos para a
mesma planilha utilizada para a recolha dos dados dos testadores da Paróquia de São João do Souto em Braga.
146
Sobre o estudo da família e da sociedade no Antigo Regime a partir dos testamentos em Portugal, ver DURÃES, Margarida, Herança e
sucessão: leis, práticas e costumes no termo de Braga (séculos XVIII-XIX), Braga, 2000, (Dissertação de Doutoramento); DURÃES,
Margarida, “Estratégias de sobrevivência económica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (sécs. XVIII-XIX)”, Boletim
de História Demográfica, XII:35 (Jan.2005), p. 1-24; ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu, A morte em Lisboa : atitudes e representações,
1700-1830, Lisboa, Notícias, 1997; CARVALHOSA, A., A importância dos testamentos para o estudo das mentalidades, [S.l], s.n., 1985;
RODRIGUES, M. M. B. M., Morrer no Porto durante a época barroca: atitudes e sentimento religioso, Porto, [s.n.], 1991, (Tese de
Mestrado); CARVALHOSA, A., “A importância dos testamentos para o estudo das mentalidades: estudo de dois testamentos, de um rol de
bens e de um codicilo: fins do séc. XVII, princípios do séc. XVIII”, Separata de Boletim do Arquivo Distrital do Porto, 3, Porto, [s.n.], 1986.
155
A palavra testamento vem da Latina testamentum, que segundo as Institutas, T. 20 assim se chamava por ser um ato destinado a
testemunhar a vontade de cada indivíduo. [...] O testamento, conforme define o Jurisconsulto Modestino, é uma disposição ou declaração
justa, ou solene da nossa vontade, sobre aquilo que queremos se faça depois de nossa morte". Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 80, nota
3, p. 900.
156
LOPES, E. C., O revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do Século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998, p.167.
56
intermédio do rei, a partir da concessão de uma carta régia de legitimação era, em geral, um
processo moroso e extremamente burocrático. Além disso, havia ainda a determinação legal
que somente estavam aptos a recorrer ao rei para solicitar a emissão de uma carta de
legitimação os indivíduos que possuíam estatuto, ou seja, os nobres, militares e eclesiásticos.
O homem e a mulher comuns que quisessem reconhecer os seus filhos ilegítimos acabaram
por utilizar os testamentos para tal fim, uma vez que, em geral, as últimas vontades expressas
em tal documento eram respeitadas.
Há contudo que considerar que os testamentos poderiam ser públicos ou privados. No
caso de um testamento público, este deveria ser escrito pelo Tabelião de Notas e deviam estar
presentes 5 testemunhas157 que, juntamente com o testador, assinariam no final de suas
disposições. Caso o testador não soubesse escrever, ou estivesse impossibilitado de fazê-lo,
uma das testemunhas assinaria por ele. No caso de um testamento privado, escrito pelo
próprio testador, a sua confecção estava subordinada à presença de 5 testemunhas, mas
também à sua publicação por uma autoridade de Justiça. Além disso, cabia às partes
interessadas examinarem os sinais das testemunhas. Havia ainda a distinção entre o
testamento aberto (poderia ser feito tanto pelo Testador, quanto pelo Tabelião com fé publica
ou, até mesmo, por uma pessoa em particular a pedido do Testador) e o Testamento cerrado
ou místico (de carácter secreto).
Entre os testamentos consultados encontramos, maioritariamente, testamentos
cerrados. Entretanto, foram identificados um pequeno numero de testamentos nuncupativos
caracterizados por serem feitos […] somente pelo Testador, declarando por palavra ao tempo
da sua morte o que quer que se faça depois dela”.158 De acordo com as Ordenações Filipinas
“[…] qualquer um poderá testar de seus bens por palavra ao tempo de sua morte, sem disso
fazer escritura; com tanto que a esta disposição assistam 6 testemunhas, ainda que sejam
mulheres.”159
Seguidas tais determinações, o testamento era validado. No que diz respeito ao tema
analisado, a presença, aceitação ou exclusão, da prole ilegítima do “viver” das famílias nas
duas margens do Atlântico, um ponto merece atenção: a distinção entre filhos espúrios e
naturais que nos testamentos era feita por meio do destaque ao estado matrimonial de seus
progenitores. Todavia deve ser considerado, o facto de que tanto os testadores da Paróquia de
157
Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 80, p.900.
158
PINTO, A. J., Tratado regular e pratico de testamentos, e successões ou compêndio methodico das principaes regras e principios que se
podem deduzir das leis testamentarias, Lisboa, Typ. de José Baptista Morando, 1844, Capitulo V, p. 28.
159
Citado por PINTO, A. J., Tratado regular e pratico de testamentos, e successões ou compêndio methodico das principaes regras e
principios que se podem deduzir das leis testamentarias, Lisboa, Typ. de José Baptista Morando, 1844, Capitulo V, p. 28.
57
160
O sacramento do baptismo atribuía aos padrinhos, pais e baptizando um parentesco espiritual que constituía um empecilho para
posteriores uniões matrimoniais.
161
A documentação referente à Vila de Sabará encontra-se dividida entre o Arquivo Casa Borba Gato/Sabará e o Arquivo Público Mineiro.
Em virtude disso, localizamos no Arquivo Borba Gato um total de 172 testamentos dos moradores da Paróquia e 61 encontram-se no
Arquivo Público Mineiro.
162
A presença feminina maioritária entre aqueles que, perante o medo da morte e o desejo de salvação da alma, expressaram suas
derradeiras vontades foi também identificada nas freguesias rurais do Concelho de Braga. O estudo desenvolvido por Margarida Durães em
sua Dissertação de Doutoramento apontou para o facto de que, entre as comunidades rurais por ela analisadas as mulheres acabaram por
recorrer com mais frequência a este instrumento para garantir que seus desejos fossem devidamente respeitados e alcançados após a sua
morte. Sobre a presença maioritária das mulheres entre os testadores de duas comunidades rurais pertencentes ao Concelho de Braga, ver
DURÃES, Margarida, Herança e sucessão: leis, práticas e costumes no termo de Braga (séculos XVIII-XIX), Braga, 2000, Dissertação de
Doutoramento.
58
163
Em virtude de não ser possível recuperar o estado matrimonial de 3 testadores (1 homem e 2 mulheres), os mesmos não foram
contabilizados nesta tabela.
59
tabela acima, representaram a maioria dos testadores. Vale à pena ressaltar que tais homens
solteiros eram naturais de Portugal.
O registo das vontades de homens e mulheres em seus testamentos e, nesse contexto, o
reconhecimento de filhos ilegítimo dava-se mesmo na presença de herdeiros que já eram
considerados legítimos, perante a legislação. Some-se a essa equiparação entre filhos
legítimos e ilegítimos a possibilidade conferida aos últimos de ocuparem posições de certo
prestígio na sociedade sabarense setecentista. Ao analisarmos os testamentos pertencentes aos
moradores das comunidades em questão o objectivo principal é compreendermos o alcance
que a concepção dos filhos ilegítimos atingiu no seio das famílias. Teria sido um o
reconhecimento em testamento um aspecto comum nas duas comunidades?
164
O título das Ordenações Filipinas que determina a confecção do inventário é o Título 88 Dos Juízes dos Órfãos, Livro I, p. 206 – 220. O
título trata, predominantemente, das obrigações dos Juízes dos Órfãos, mas faz menção às situações em que se deve confeccionar um
inventário post-mortem.
165
MADUREIRA, N. L., “Inventários: aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime”, Lisboa, [s.n.],
1989, Tese de Mestrado, policopiado; MAGALHÃES, B. R., “Inventários e sequestros: fontes para a história social”, Revista do
Departamento de História, v.9, p. 31-45, 1989; MAGALHÃES, B. R. “Inventários dos mortos de Vila Rica (1740-1770)”, Anais da IV
Reunião da SBPH, São Paulo, p. 229-234, 1987; MENESES, A. C., BASTOS, J. T. Pratica dos inventarios, partilhas e contas: primeira
parte dos juisos divisorios: com uma tabella das acções, 7ª Ed. Rio de Janeiro, Jacintho dos Santos, 1914; MENEZES, A. C., Pratica dos
juízos divisórios ou formulário dos inventários, partilhas, contas, marcações, tombos... Lisboa, Imprensa Regia, 1819.
166
PONA, A.P. Orphanologia Prática, em que se descreve tudo o que se respeita os inventários, partilhas e mais dependências dos pupilos,
Lisboa, Officina de Joseph Lopes Ferreira, 1713.
60
indivíduo falecia e não possuía herdeiros para aceitar a sua herança; a quarta razão para
intervenção do Juiz dos órfãos era no caso de um indivíduo falecer sem possuir herdeiros,
filhos naturais, aptos à sucessão.
Sabemos, entretanto, que não podemos analisá-los considerando-os como expoentes
do viver de toda a população setecentista nas duas margens do Atlântico. É assim fundamental
que deixemos claro a consciência que temos das limitações da leitura de tais fontes e que,
talvez, as mesmas representem o universo de homens e mulheres mais abastados das
comunidades em análise167. Seja como for, identificamos como fundamental o seu exame,
uma vez que representam a possibilidade de identificarmos o significado da concepção e do
nascimento de crianças ilegítimas na vida dos seus progenitores e, também, dos demais
membros, legítimos, da família. Interessa-nos identificar as oportunidades de sucessão à
herança familiar que lhes foi concedida e os efeitos acarretados pelo seu reconhecimento.
Apesar de terem sido localizados para somente uma das comunidades analisadas168, a
sua análise é fundamental para este trabalho na medida em que permite adentrar pelo universo
patrimonial de homens e mulheres e, sobretudo, identificar as possibilidades de sucessão na
herança familiar conferidas aos filhos ilegítimos. Para a recolha dos dados pertencentes aos
inventários post-mortem uma planilha em Microsoft Excell que, por sua vez, foi dividida em
quatro partes: na primeira parte é possível recuperar a identidade do inventariado: sexo,
estado matrimonial, nome do cônjuge, nome dos pais, cor, estatuto legal (livre, forro ou
escravo), ocupação profissional, religião, naturalidade e nacionalidade; na segunda parte
recolhemos as informações relativas ao património sendo possível recuperar as diferentes
categorias, seus valores e quantidades (dividas activas e passivas, objectos de uso pessoal e
___ ___
profissional, bens semoventes escravos e animais bens móveis e, por último, bens
imóveis; a terceira parte contempla as informações relativas aos descendentes directos dos
inventariados (identificação, sexo, se estava vivo/morto, se era legítimo/ilegítimo, a idade, o
nome do cônjuge caso fosse casado, local de residência e se tinha filhos); a quarta parte e
talvez a mais relevante para este estudo é aquela que diz respeito à partilha dos bens feita em
inventário. Aqui foi possível recuperar a identificação do herdeiro, seu grau de parentesco
167
Sobre a práctica de testar nas Minas Gerais e em Braga ver, DURÃES, M., Herança e sucessão: leis, práticas e costumes no termo de
Braga (séculos XVIII-XIX), Braga, 2000, Dissertação de Doutoramento, policopiado; DAVES, A. P., Vaidade das Vaidades: os Homens, a
Morte e a Religião nos Testamentos da Comarca do Rio das Velhas (1716-1755), Belo Horizonte, Departamento de
História/FAFICH/UFMG, 1998, Tese de Mestrado, policopiado; PAIVA, E. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII:
estratégias de resistência através dos testamentos, São Paulo, Annablume, 2000.
168
Para o século XVIII não foram localizados inventários orfanológicos para a Paróquia de São João do Souto somente para a centúria
seguinte.
61
partilha. A determinação jurídica de que a eles caberia somente o direito de requerer a sua
subsistência sem que isso ferisse os direitos dos herdeiros legítimos é o que pretendemos
avaliar. Interessa-nos entretanto analisar entre os inventariados da Paróquia de Nossa Senhora
da Conceição do Sabará, aqueles que foram progenitores de filhos ilegítimos e,
consequentemente, a forma encontrada por mães e pais para integrar ou excluir a prole
nascida de uniões não sacramentadas pelo ritual do matrimónio.
Torna-se fundamental frisar que não é nossa intenção, com a análise desse corpus
documental, atribuir a toda a América portuguesa, ou sequer à Comarca do Rio das Velhas, o
mesmo comportamento e o viver da ilegitimidade identificado entre os inventariados da
Paróquia. Estamos cientes que, quantitativamente, a análise dos inventários não pode ser lida
como representativa de um grupo populacional, mas acreditamos que seja indispensável para
aqueles que buscam entender o que significou a imigração minhota para a América
portuguesa. Teriam os imigrantes portugueses169 que se fixaram nas Minas transplantado o
seu modus vivendi para a outra margem do Atlântico numa tentativa de reproduzir
comportamentos e vivências? A presença de um grande contingente africano entre a
população (acima dos 50%) teria atribuído a essa sociedade novos comportamentos? O viver
na América portuguesa poderia ter sido sinónimo de adaptação?
O estudo pormenorizado a que nos propusemos ao inserir os inventários post mortem
como objecto assenta no facto de ser, por meio dos inventários, que a transmissão dos bens
era feita. A possibilidade de inserção da prole ilegítima, caso fosse considerada pelo pai ou
pela mãe, poderia ser reafirmada e garantida no momento da distribuição dos bens.
169
Sobre os efeitos da transposição do Atlântico feita pelos portugueses entre os séculos XVIII e XIX ver, SCOTT, A. S. V., “A imigração
portuguesa para o Brasil a partir de uma perspectiva microanalítica”, História Unisinos, v. 11, p. 117-122, 2007; OLIVEIRA, H. C., Minho
Gerais: dinâmicas familiares e alianças políticas dos minhotos na Comarca do Rio das Velhas (1726-1800), Niterói, Universidade Federal
Fluminense, 2007, Dissertação de Doutoramento em História; SCOTT, A. S. V., “Desvios Morais nas Duas Margens do Atlântico: o
concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos” População e Sociedade, Porto, v. 7, p. 129-158, 2001; SCOTT, A. S. V.,
“Verso e reverso da imigração portuguesa: o caso de São paulo entre as décadas de 1820 e 1930”, Oceanos, Portugal, v. 44, p. 126-142,
2000; RAMOS, D., “From Minho to Minas: The Portuguese Roots of the Mineiro Family”, Hispanic American Historical Review, vol. 73,
no. 4, (639-662), 1993.
63
reconhecimento dos filhos ilegítimos e do seu acesso à herança. No caso bracarense, a leitura
das escrituras de legitimação170 registadas na Nota Geral de Braga permitiu a elaboração de
uma base de dados em que é possível recuperar todas as informações que foram inseridas nas
escrituras de legitimação. Entenda-se como legitimador os progenitores, tanto homens, quanto
mulheres, que recorreram à legitimação pública e registada em notário para garantir aos seus
filhos “o bem viver”171. Sobre os pais ainda foi possível recuperar dados como: local de
nascimento e domicílio, estado matrimonial, se eram eclesiásticos e os motivos que levaram à
solicitação de legitimação de seus filhos. No que diz respeito aos filhos legitimados foi
possível identificar seu nome, local de nascimento e, ainda, a sua relação com os pais
expressa nas entrelinhas das escrituras. Ao que tudo indica as escrituras de legitimação foram
bastante utilizadas por mães e pais bracarenses que sentiram a necessidade de garantir amparo
aos seus filhos quando se ausentassem.
O universo dos filhos ilegítimos excede em complexidade e heterogeneidade a sua
quantificação e simples contagem. No Brasil, os estudos já desenvolvidos sobre o nascimento
dos filhos ilegítimos apontam para um alto índice de nascimento de filhos ilegítimos que, em
sua maioria, estava relacionado com a predominância da população cativa e liberta. A
desigual proporção entre homens e mulheres brancas e, destas, frente às negras e mulatas,
associada à impossibilidade legal de união matrimonial entre brancos e mulheres de cor, foi
responsável por grande parte dos nascimentos ilegítimos. Na Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará mesmo que tenha sido identificado um considerável índice de uniões
matrimoniais entre os cativos, o número de filhos ilegítimos registados entre os mesmos
rondava 50% dos registos de baptismos durante o século XVIII. Em contrapartida, na
Paróquia de São João do Souto em Braga o índice de ilegitimidade não atingiu, sequer, 6%
dos baptismos realizados durante o século XVIII172.
A legitimação por meio de escrituras públicas registadas nos notários, assim como as
cartas de legitimação concedidas pelo rei revelaram-se imprescindíveis para o estudo do
“viver” da ilegitimidade no Império Português.
170
Sobre o estudo da Legitimação ver, LOPES, E. C, O Revelar do Pecados; os filhos ilegítimos em São Paulo Colonial, São Paulo,
Annablume, 1998; GORJÃO, E., Os menores perante as leis; filhos legítimos e ilegítimos, perfilhações, reconhecimentos e legitimações,
casamentos validos, nulos e anuláveis, Pátrio poder e suas inibições, Direitos e deveres de pais e de filhos, etc, Lisboa, Tipografia de
Francisco Luís Gonçalves, 1912 (?); REBELO, S. Relações ilícitas e o processo de legitimação no inicio do século XIX: teoria e prática,
Tese de Licenciatura, Porto, Universidade Portucalense – Infante D. Henrique, 198-, policopiado; GIRALDES, M. N. Defesa da dissertação
inaugural sobre a legitimação dos filhos espúrios por subsequente matrimónio, Coimbra, Impr. Universidade, 1860.
171
Expressão bastante utilizada por pais e mães no momento do reconhecimento dos filhos ilegítimos e registo nos livros notariais da
Cidade de Braga.
172
Uma análise comparada mais aprofundada contemplando não somente os números da ilegitimidade nas duas paróquias, mas o
significado que a mesma assumiu em ambas será feita em momento posterior.
64
A partir da sua leitura é possível identificar o discurso que cercou pais e mães ao longo
do processo de reconhecimento de seus filhos. Frente a este corpus documental algumas
questões foram levantadas. O que eram as escrituras de legitimação173? Quem as podia
passar? Quais eram os direitos garantidos aos filhos que fossem legitimados mediante tal
documento? Estariam os mesmos em situação de igualdade frente à prole legítima?
Embora fossem distintas na sua origem seu objectivo convergia para um mesmo
ponto: legitimar a prole que, sem tal reconhecimento, não estaria apta a, sequer, requerer o seu
sustento alimentício. As escrituras de legitimação eram, em geral, o meio pelo qual o homem
setecentista comum reconhecia como legítimo um filho nascido de relações não confirmadas
pelos laços matrimoniais. No caso das cartas régias de legitimação, estas eram, em geral,
exigidas àqueles homens que possuíssem um status social de destaque, tal como os
eclesiásticos, militares e nobres. Destes era legalmente exigido que formalizassem um pedido
de legitimação dos seus filhos junto ao Conselho Ultramarino que, por sua vez, era
responsável por avaliá-lo e deliberar sobre o aceite ou não da legitimação.
Seja nas escrituras ou nas cartas de legitimação torna-se relevante apontar a riqueza de
informações no que diz respeito não somente aquele que solicita a legitimação, mas também
em relação às testemunhas elencadas para confirmar a paternidade e/ou maternidade. O status
social, a actividade profissional e a relação estabelecida entre todos os implicados no processo
são alguns exemplos do tipo de informação que tais fontes revelam.
Neste contexto, seja por meio de um documento régio, seja pelo registo público em
notário, as solicitações de legitimação tornaram-se elementos de grande valia para a inserção
da prole ilegítima no quotidiano. Recorrer à Coroa para que a legitimação fosse concedida
revelou que era de vital importância para o apelante apresentar testemunhas de prestígio que
comprovassem a vontade do progenitor. Os depoimentos apontaram para o laço estabelecido
com as testemunhas, bem como para o peso que a palavra exerceu no século XVIII. O uso de
expressões como: "disse que sabe pelo ouvir e dizer", "pela muita familiaridade que tinha com
sua casa" reforçaram o laço entre os envolvidos no processo significando um instrumento
forte de convencimento das pretensões de legitimação do pai. Era de conhecimento dos pais
que somente com a confirmação da paternidade feita pelo Rei os filhos teriam alguma
hipótese no acesso á herança dos pais. Porém, após a confirmação da paternidade por meio
173
A legitimação, enquanto um processo jurídico, caracteriza-se como um benefício da lei por meio do qual os filhos ilegítimos adquirem a
qualidade e os direitos dos filhos legítimos. Para que seja concedida a legitimação eram determinadas duas condições, a saber: o casamento
dos pais e o reconhecimento dos filhos pelo pai ou pela mãe, no assento de casamento, ou se feito antes do casamento, nos assentos de
baptismo e ainda poderiam os filhos ser reconhecidos em testamento ou escritura pública, anteriores ou posteriores ao casamento. Sobre o
conceito de legitimação, ver GONÇALVES, Dr. L. C., Direitos de família e direito das sucessões, Lisboa, Edições Ática, 1955.
65
das escrituras, quais eram os direitos garantidos aos filhos ilegítimos? As Ordenações
Filipinas determinavam que eles estavam habilitados apenas para solicitar o seu sustento
alimentício. E, em hipótese alguma, a lei permitia que o reconhecimento174 da prole ilegítima
prejudicasse os herdeiros legítimos.
Mas além da quantificação dos progenitores e dos filhos ilegítimos interessa-nos saber
o discurso utilizado pelos pais com o objectivo de reconhecer seus filhos publicamente
permitindo que os mesmos pudessem sucede-los. É importante que se considere ao
analisarmos as escrituras de legitimação a relevância que as boas acções representavam no
viver dos homens e mulheres do século XVIII. A morte era certa, mas certo também era que
os pais e mães de filhos ilegítimos não quiseram levar consigo o peso da imoralidade nem, tão
pouco, atribuir-lhes a marginalização acarretada pelo nascimento fora do matrimónio.
Reconhecê-los, deixá-los amparados financeira e moralmente pode ter sido o motivo de
muitos homens e mulheres que, apesar de se terem deixado levar pela “fragilidade humana”,
quiseram corrigir os seus erros.
Mas o que era necessário, juridicamente, para pais e mães expressarem sua vontade
por meio das escrituras de legitimação? O que faria com que tal acto assumisse um carácter
legal e, consequentemente, garantisse o respeito da vontade dos pais? Uma das condições
principiais era que o pai ou a mãe reconhecessem em escritura pública ou testamento a
filiação, bem como a sua intenção de perfilhar o ilegítimo. Uma vez registada a vontade
paterna/materna a lei exigia que a mesma fosse confirmada por um Alvará ou Carta Régia175.
Porém, uma outra questão surge neste contexto. Respeitados todos os procedimentos e uma
vez perfilhados, estariam os filhos ilegítimos aptos a concorrerem, igualitariamente, com os
filhos legítimos à herança176 dos pais? Frente a esta problemática torna-se necessário discorrer
sobre a interferência que a origem da filiação ilegítima teria no acesso aos bens dos pais.
Sabe-se que, segundo a legislação, o reconhecimento, quer por meio de testamento,
quer pela perfilhação, não equiparava, completamente, filhos legítimos e ilegítimos. O que se
pode constatar, por meio desta documentação, é que os filhos naturais tinham maior
possibilidade de acesso à herança que os espúrios (adulterinos, sacrílegos ou incestuosos). O
174
De acordo com o jurista João Baptista Lopes, a legitimação conferia ao filho o "[...] estado e o título de filho legítimo", podendo ser
transmitida aos seus descendentes para efeito de sucessão. Cf. LOPES, J. B., Filhos ilegítimos, Coimbra, Livraria Almedina, 1973. P. 238.
175
Durante o século XVIII cabia à Mesa do Desembargo do Paço expedir os Alvarás e Cartas Régias de confirmação de perfilhação, mas no
século XIX tal encargo passou a ser responsabilidade dos Conselhos Distritais e, posteriormente, da Secretaria dos Negócios do Reino. Ver
FREIRE, P. J. M., Instituições de Direito Civil Português, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1967.
176
Define-se herança como "A universalidade dos bens que alguém deixa por ocasião de sua morte, e que os herdeiros adquirirem. É o
conjunto de bens, o património, que alguém deixa ao morrer". BEVILÁQUA, C., O Direito das Sucessões, 5 Ed, Rio de Janeiro, Ed. Paulo
de Azevedo, 1955, p.120.
66
que a análise das escrituras de legitimação revelou é que a possibilidade conferida aos filhos
ilegítimos de sucessão esteve estreitamente relacionada a dois aspectos: o tipo de relação
estabelecida e mantida pelos progenitores no momento da concepção dos filhos; a capacidade
de inserção familiar e social conferida aos ilegítimos. Em capítulos posteriores analisaremos,
de maneira verticalizada, o uso das escrituras e cartas de legitimação, por pais, mães e filhos
ilegítimos na busca pelo acesso à herança.
Ao longo deste capítulo expusemos as variadas fontes por meio das quais foi possível
identificar, quantificar e qualificar a ocorrência da prole ilegítima entre os assentos de
baptismos e nas actas de casamento. A partir das fontes paroquiais é possível verificar, nas
comunidades investigadas, a ocorrência dos filhos ilegítimos. Devemos entretanto considerar
a possibilidade de manipulação dos registos com o objectivo de omitir o nascimento dos
filhos ilegítimos protegendo, assim, a honra dos progenitores. Além disso, é fundamental que
consideremos a distinção entre a composição social da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará e a da Paróquia de São João do Souto.
67
PARTE II
68
Fernando Pessoa
177
SERRÃO, J. V., Demografia e agricultura no Portugal do século 18, Lisboa, [s.n.], 1987 (Relatório para uma aula teorico-prática
apresentado no Inst. Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, área de História), p. 107 e 108.
69
compõe o reino de Portugal, não só pelo que respeita á sua extensão como também à sua
população, agricultura, comércio e manufacturas, que a fazem ser uma das mais ricas”178
Relativamente ao século XVIII179, apesar de não podermos contar com fontes que
representem de maneira sistemática e com carácter censitário, a contagem da população, bem
como a impossibilidade de contabilizar o contingente populacional que emigrou180 para as
mais diversas partes do Império Português é consenso entre os historiadores181 que foi elevado
o volume de portugueses naturais, principalmente, da região minhota que desembarcaram na
América portuguesa182 desde finais do século XVII até a segunda década do século XIX. O
destino destes homens (que de facto representaram a maioria entre os imigrantes) não esteve
restrito à América Portuguesa. As colónias portuguesas no Oriente183 também atraíram um
significativo número de reinóis. É difícil, no entanto, contabilizar as saídas anuais de
portugueses com destino à América. Estima-se que, nos primeiros 60 anos do século XVIII,
período que coincidiu com a descoberta do ouro nas Minas Gerais, tenham deixado Portugal
cerca de 10.000 pessoas por ano. Em finais do século XVIII a lei de 9 de Janeiro de 1792 que
tentou refrear o elevado fluxo migratório português, associada aos efeitos das investidas dos
corsários franceses no Atlântico, fizeram com que emigração sofresse algum decréscimo184
chegando, quase, à estabilização (deixavam Portugal cerca de 5.000/ano). No início do século
XIX, com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, o fluxo
migratório tendeu a aumentar.
178
VISCONDE DE BALSEMÃO, “Memória sobre o estado da Província do Minho, principalmente tocante à parte florestal e ideas geraes
sobre o estado das manufacturas, comércio e pesca”, In MENDES, José M. Amado, Memória sobre a Província do Minho, Revista
Portuguesa de História, tomo XVIII, p. 72, 1980.
179
Maria João Guardado Moreira e Tereza Rodrigues Veiga, com base nos dados apresentados por Vitorino Magalhães Godinho, pelo padre
Carvalho Costa, por José Serrão, apresentam uma estimativa da população de Portugal Continental ao longo do século XVIII. Em 1700
seriam mais de 2 milhões e 100 mil habitantes, valor este que atingiria quase 3 milhões de habitantes no último ano do mesmo século. Cf.:
MOREIRA, M. J. & VEIGA, T. R., “A evolução da população” in LAINS, P. & SILVA, Á. F. (org.), História Económica de Portugal; o
século XVIII, Lisboa, ICS/Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 35-66.
180
GODINHO, V. M., A estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, Arcádia, 1971.
181
Em 1971 Vitorino de Magalhães Godinho publicou A estrutura da antiga população portuguesa, estudo em que analisa a problemática
da imigração enquanto factor de interferência na composição demográfica de Portugal. A partir das análises tecidas por Godinho, outros
estudos, que serão oportunamente referenciados ao longo deste capítulo, têm se debruçado sobre a problemática da imigração para Brasil
considerando, não somente a interferência dessa saída das comunidades portuguesas, mas também os reflexos da presença portuguesa nas
comunidades que os receberam.
182
O século XVIII, no que toca à circulação humana, caracteriza-se por ser aquele em que os olhares da Coroa portuguesa se transferiram do
Índico para o Atlântico. A descoberta do ouro nas Minas Gerais e, posteriormente, nos sertões de Goiás, fez com que fosse necessário, por
parte do Estado Português, o empreendimento de uma politica mais sistemática relativamente à povoação daquela região. Era preciso povoar
para governar.
183
Estima-se que a Índia, na década de 1740 (período inicial das novas conquistas), tenha recebido mais de 2.000 homens. Cf. MARQUES,
A. H. de Oliveira, História de Portugal, II, p. 437.
184
Sobre as tendências de decréscimo da população portuguesa desde o século XVII até meados do século XVIII ver, MOREIRA, M. &
VEIGA, T., “A evolução da população” in LAINS, P. & SILVA, Á. (org.), História Económica de Portugal; o século XVIII, Lisboa,
ICS/Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 35-66.
70
185
Sobre o conceito de circulação de mercadorias, ideias e indivíduos, ver RUSSEL-WOOD, A. J. R., Um Mundo em Movimento, Difel,
Porto, 2006; BOXER, Charles R., A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Nova Fronteira, Rio de
Janeiro, 2000; FURTADO, J. F., Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, Hucitec, São
Paulo, 1999; CARRARA, A. A., Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807), UFRJ, Rio de Janeiro, 1997 (Tese de
doutorado); BOSCHI, C. C. “Nem tudo que reluz vem do ouro...”, in SZMRECSÁNYI, T. (org.), História económica do período colonial,
Hucitec, São Paulo, 1996, p. 57-66; PEDREIRA, J. M. V., Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822),
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1995, (Tese de doutorado); ZEMELLA, M. P., O abastecimento da capitania das Minas Gerais no
século XVIII, Hucitec/Edusp, São Paulo, 1990; RUSSELL-WOOD, A. J. R. “El Brasil colonial: el ciclo del oro, c. 1690 –1750”, in
BETHELL, L. (ed.), História de América Latina 3, Editorial Crítica, Barcelona, 1990, p. 260-305; GODINHO, V. M., “As frotas do açúcar e
as frotas do ouro, 1670-1770”, in GODINHO, V. M., Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, séculos XIII-XVIII, Difel, Lisboa,
1990, p. 477-496.
186
Neste contexto, estima-se que a população de Portugal Continental no início do século XVIII não tenha ultrapassado os 2 milhões de
habitantes, em finais da década de 1750 a população alcançou os 2,5 milhões e, em 1801 atingiu os 3 milhões de pessoas.
187
FLEURY, M. & HENRY, L., Nouveau manuel de dépouillement et d'exploitation de l'état civil ancien, 3ª Ed .Paris, Institut National
d'Etudes Démographiques , 1985.
188
Na década de 1980, Robert Rowland, tendo como referencia a metodologia desenvolvida por Peter Laslett e seu grupo, tendo como
objecto de estudo os registos produzidos pelas Companhias de Ordenanças. Cf. ROWLAND, R., “Âncora e Montaria, 1827. Duas freguesias
do Noroeste segundo os livros de registo das Companhias de Ordenanças”, in Studium Generale. Estudos Contemporâneos, Porto, 2-3, 1981,
pp. 217-220.
189
Em Portugal Maria Norberta Amorim foi a pioneira a introduzir esta metodologia, embora com alguns aspectos distintos, nos estudos
demográficos por ela desenvolvidos em Portugal. Cf. AMORIM, M., Guimarães, 1580-1819; estudo demográfico, Lisboa, Instituto Nacional
de Investigação Científica, 1987.
190
No Brasil muitos estudos vêm sendo desenvolvidos utilizando como objecto as listas de habitantes ou listas nominativas. Este material
está disponível, sobretudo, para o século XIX, fornece informações sobre as unidades domésticas. Para a Capitania de Minas Gerais, Paraná e
São Paulo o estudo coordenado pela Professora Doutora Clotilde Andrade Paiva com as listas nominativas de 1831-32. Relativamente à
Capitania de Minas Gerais, os dados recolhidos cobrem quase 60% dos distritos de paz. Os dados individuais contemplam: prenome,
condição social, cor/origem, idade. Sobrenome, estado matrimonial, ocupação, nacionalidade, relações de parentesco, foram identificados
71
para parte da população arrolada. Cf. PAIVA, C., População e economia das Minas Gerais do século XIX, São Paulo, FFLCHUSP, 1996,
(Tese de doutorado).
191
LASLETT P. & WALL, R., Household and family in past time, Cambridge, England, University Press, 1972. Recentemente foi
publicado pela Universidade de Castilla-La Mancha uma compilação de artigos que têm como temática a História da Família na Península
Ibérica. Organizado por Francisco García González a publicação conta com textos de historiadores que abordam as diversas facetas da
História da Família. Cf. GONZÁLEZ, F. (Coord.), La História de la familia en la península Ibérica, balance regional y perspectivas:
homenaje a Peter Laslett, Cuenca, Edición de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2008.
192
Inicialmente, a problemática sobre a caracterização dos modelos familiares no Antigo Regime esteve amparada na tipologia criada por
Frederic Le Play e que consistia em definir três modelos de família: família nuclear, família-tronco, e família alargada.
193
DURÃES, M., “Heranças: solidariedades e conflito na casa camponesa minhota (sécs. XVIII e XIX), Biblos Revista da Faculdade de
Letras, 1ª parte, volume LXXVI, Coimbra, 2000, p.163.
194
Sobre a estrutura da família em Portugal e seus modelos, ver SCOTT, A., “As diferentes formas de organização familiar em Portugal”,
In, SAMARA, . (Org.), Historiografia Brasileira em Debate, São Paulo, Humanitas - FFLCH/USP, 2002, p. 199-234; HESPANHA, A.,
“Fundamentos antropológicos da Família no Antigo regime”, in MATTOSO, J. (org), História de Portugal, Lisboa, Circulo de Leitores, 4º
volume, 1998, p.273-195; BACCI, M., A century of portuguese fertility, Princeton, Princeton University Press, 1971; ROWLAND, R. &
MONTEIRO, A., População, família, sociedade, Portugal, séculos XIX-XX, Oeiras, Celta, 1997; AMORIM, M., Guimarães, 1580-1819;
estudo demográfico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987.
195
Alguns estudos desenvolvidos na década de 1990 debruçaram-se sobre a especificidade da organização familiar minhota. Entre eles, ver
NEVES, A., Filhos das ervas: a ilegitimidade no norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII), Dissertação (Mestrado em História),
Universidade do Minho, 1996; SÁ, I., “Abandono de crianças, ilegitimidade e concepções pré-nupciais em Portugal; estudos recentes e
Perspectivas”, In PÉREZ M. (Coord.), Expostos e ilegítimos na realidade ibérica: do século XVI ao presente, Actas III CONGRESSO DA
ADEH, Porto, Edições Apontamento, 1996; AMORIM, M., “História da família em Portugal”, Ler História, n. 29, p. 5-17, 1995;
BRETTELL, C., Homens que partem, mulheres que esperam, Lisboa, Dom Quixote, 1991.
196
Este modelo familiar caracteriza-se, essencialmente, pela escolha de um herdeiro que será responsável pela continuidade da propriedade,
pela sua manutenção e sobrevivência do restante dos membros da família.
72
inverso do modelo visto no norte, ou seja, era marcado pelos altos índices de nupcialidade,
baixas medias de idades para o primeiro casamento e altas taxas de fecundidade, baseando-se
na neolocalidade.
Mas o que explicaria a organização das famílias portuguesas segundo os modelos
acima referenciados? No norte de Portugal dois factores interferiram directamente na
organização das famílias: o fluxo migratório contínuo, maioritariamente de homens, seja para
fora de Portugal, seja para outras partes do território197 e a forma de distribuição da terra e
transmissão da herança198 entre os herdeiros.
A problemática da transmissão da herança199 em Portugal torna-se fundamental para
entendermos as possíveis causas da emigração minhota para a América Portuguesa, mas
também a incapacidade de inserção, no seio familiar, dos filhos ilegítimos. Num
contexto em que as explorações agrícolas eram pequenas e a divisão das mesmas entre todos
os membros da família acarretaria a dilapidação do património familiar, o incentivo à
emigração foi uma das soluções encontrada pelos núcleos familiares para remediar a extinção
da propriedade familiar e da própria família. Nascer no Minho e viver na América foi, assim,
o destino de muitos portugueses que cruzaram o Oceano Atlântico. Contudo, a presença
portuguesa200 no outro lado do Atlântico não ficou circunscrita à região mineradora. No ano
de 1801, por exemplo, a Capitania de São Paulo201 era composta por 37 vilas onde foram
197
DURÂES, M., “Espírito aventureiro ou aperto de vida?” in, Estudos Regionais; Revista de Cultura do Alto Minho, nº 3, II Série, 2009,
pp. 117-145; DURÃES, M. & LAGIDO, E., “A arte de trabalhar a pedra: migrações temporárias e sazonais no Norte de Portugal (Sécs.
XVIII-XIX)”, in MENESES, A.; COSTA, J. (Coord.) O reino, as ilhas e o mar oceano: estudos em homenagem a Artur Teodoro de Matos.
Lisboa, Centro de História de Além-Mar, 2007, p. 237-263.
198
Sobre o sistema de transmissão da herança em Portugal, ver DURÃES, M., Herança e sucessão: leis, práticas e costumes no termo de
Braga (séculos XVIII-XIX), Dissertação de Doutoramento, Universidade do Minho, 2001, (Texto policopiado); BRANDÃO, M., Terra,
herança e família no Noroeste de Portugal: o caso de Mosteiro no século XIX, Lisboa, Afrontamento, D.L. 1994; DURÃES, M., “No fim,
não somos iguais: estratégias familiares na transmissão da propriedade e estatuto social”, Boletín de la Associación de Demografia Histórica,
Barcelona, Asociación de Demografía Histórica, 1992, p.125-141; DURÃES, M., “Herdeiros e não herdeiros: nupcialidade e celibato no
contexto da propriedade enfiteuta” in, Revista da História Económica e Social, nº 21, 1988, pp. 47-56.
199
No capítulo 6 desta Tese de Doutoramento institulado Ilegítimos, mas não esquecidos: a transmissão da hernaça d´aquem e d´além mar,
analisaremos com maior pormenor a problemática do acesso à herança alcançado pelos filhos ilegítimos. O objectivo será perceber se tal
acesso foi garantido aos filhos ilegítimos nas duas margens do Atlântico ou se foi configurado algum aspecto particular fruto da adaptação
portuguesa na América, uma vez que constatamos a atribuição de legítimas, de maneira igualitária, a filhos ilegítimos.
200
A presença portuguesa na América pode ser rastreada, sobretudo, a partir do século XIX quando, efectivamente, os passaportes
começaram a ser utilizados como forma de controlar o fluxo de portugueses que deixava Portugal. Sobre a presença portuguesa em outras
capitanias da América portuguesa, ver SCOTT, A., “Imigração e redes de sociabilidades: a migração portuguesa para a Nova Lousã (Brasil)
entre as décadas de 1860 e 1880”, Cadernos do Noroeste, Portugal, v. 2, p. 79-86, 2006; SCOTT, A. & TRUZZI, O., “Caminhos Cruzados:
o estudo da migração entre a Lousã (Portugal) e a Nova Lousã (Brasil) nos anos oitocentos”, Arunce Revista de Divulgação Cultural, Lousã /
Portugal, v. 17/19, p. 55-76, 2004.
201
Os estudos demográficos com base na documentação paroquial foram iniciados, no Brasil, por Maria Luiza Marcilio. Cf. BACELLAR,
Carlos de Almeida Prado, Viver e sobreviver em uma vila colonial - Sorocaba, séculos XVIII e XIX, 1ª. ed. São Paulo, Annablume/Fapesp,
2001; BACELLAR, C. A. P. ; BRIOSCHI, L. R. ; CHIACHIRI FILHO, J. ; JUNQUEIRA, E. D. ; SAMPAIO, H. M., Entrantes no sertão do
rio Pardo - O povoamento da freguesia de Batatais, séculos XVIII e XIX, São Paulo, CERU, 1990; MARCILIO, M., Historia e População,
São Paulo, Fundação SEADE, 1990; MARCILIO, M., População e Sociedade.Evolução das sociedades pré-industriais, Petrópolis, Vozes,
1984; MARCILIO, M., A Cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. 1. ed. São Paulo: EDUSP- Pioneira, 1973.
73
arrolados 966 portugueses residentes. Destes, 45% eram naturais da Província do Minho, 20%
do Arquipélago dos Açores e 16% da região de Lisboa.
Vitorino de Magalhães Godinho chega a utilizar o conceito de “constante estrutural”
para explicar o volumoso e constante fluxo de portugueses para as mais diversas partes do
Império. Frente à partida dos homens para a América e da sua permanência por um período
mais prolongado do que aquele que tinha sido inicialmente previsto, alguns estudos202 que se
debruçaram sobre a problemática da presença portuguesa na América apontam para a
possibilidade da transposição do Atlântico ter sido não só geográfica, mas também sócio
cultural.203.
[…] Aqueles que vieram para o Brasil trouxeram consigo uma experiência e
uma visão da família bem específicas, que formou a base da sociedade
daqueles que a recriaram no Novo Mundo. O elo entre o norte de Portugal e
Minas Gerais nasceu da convergência de valores e instituições sociais, não
num sentido vago de herança cultural [grifo nosso], mas no fluir constante
de colonizadores portugueses para o Brasil e, com bastante frequência, de
sua volta para Portugal.204
Uma vez cientes da importância que as correntes migratórias assumiram na
constituição e estruturação das famílias nas duas margens do Atlântico torna-se fundamental
para este estudo referenciar duas análises comparadas que tiveram como objectivo tecer
aproximações entre as famílias formadas d´aquém e d´além mar. Os estudos comparados
publicados por Donald Ramos205 (1993), Alida Metcalf & Caroline Brettel206 (1993), e Ana
202
SCOTT, A., “Velhos Portugueses ou Novos Brasileiros: reflexões sobre a família luso-brasileira setecentista”. In: PERARO, M;
BORGES, F. (Org.), Mulheres e Famílias no Brasil, Cuiabá, Carlini & Caniato, 2005, p. 15-35; SCOTT, A. “Aproximando a Metrópole da
Colónia: família, concubinato e ilegitimidade no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX)”, Trabalho apresentado no XIII Encontro da
Associação Brasileira de estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, de 4 a 8 de Novembro de 2002; SCOTT, A., Famílias, formas de
união e reprodução social no noroeste português: séculos XVIII e XIX, Guimarães, Universidade do Minho, 1999.
203
Sobre a reprodução na elite mineira colonial do modus vivendi português, ver ALMEIDA, C. M. C. ; MONTEIRO, L. N. ; RANGEL, A.
P. S. ; CUSTÓDIO SOBRINHO, J., “Os homens ricos das Minas nas malhas do Império português”, Revista Eletrônica de História do
Brasil, v. 7, p. 102-112, 2005; ALMEIDA, C., “Trajectórias imperiais: imigração e modelo de reprodução social das elites em Minas
colonial”, in Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, Lisboa, 2005; VALADARES, V.
Elites Mineiras Setecentistas: conjugação de dois mundos, Lisboa, Colibri; Portimão, Instituto de Cultura Ibero-América, 2004.
204
RAMOS, D., “From Minho to Minas: The Portuguese Roots of the Brazilian Family", Hispanic American Historical Review, 73:4
(1993): 639-662, 1993.
205
Em 1993, Donald Ramos publicou From Minho to Minas: The Portuguese Roots of the Brazilian Family numa tentativa de aproximar a
família mineira da minhota. A partir de uma compilação de dados recolhidos e analisados, separadamente, por investigadores portugueses e
brasileiros Ramos teceu uma análise comparativa a partir de algumas comunidades localizadas nas duas margens do Atlântico. Em Portugal
continental centrou-se nos dados referentes à Vila de Guimarães, bem como das freguesias de Montaria e Âncora (pertencentes à região do
Alto Minho). No que se refere às razões de masculinidade a cidade de Guimarães chegou a atingir a proporção de 88,3 homens para cada 100
mulheres em finais do século XVIII. Montaria e Âncora, na década de 1820 atingiram a razão de 89 homens para cada 100 mulheres. Ainda
segundo o autor, o quotidiano das famílias do norte de Portugal continental era caracterizado por taxas de celibato definitivo altas (seja entre
as mulheres com idades entre 50 e 54 anos, seja entre aquelas com idade entre os 20 e 24 anos), casamentos tardios, altas taxas de
ilegitimidades e de abandono infantil. Os dados referentes à Vila de Guimarães foram compilados a partir dos estudos desenvolvidos por
AMORIM, M., Guimarães de 1580 a 1819; estudo demográfico, Lisboa, INIC, 1987; AMORIM, M., Exploração dos róis de confessados
duma paróquia de Guimarães (1734 – 1760), Guimarães, Centro Gráfico, 1983. Aqueles que dizem respeito à Montaria e Âncora foram
baseados nos estudos de ROWLAND, R., “Montaria e Âncora, 1827: duas freguesias do Noroeste segundo os livros de registros das
companhias de ordenanças”, Studium Generale – Estudos Contemporâneos, v.2, N/c3, p. 199 – 242, 1982. Cf. RAMOS, Donald, “From
Minho to Minas: The Portuguese Roots of the Brazilian Family", Hispanic American Historical Review, 73:4 (1993): 639-662, 1993.
206
METCALF, A. & BRETTEL, C., “Family customs in Portugal and Brazil: transatlantic parallels”, Continuity and Change, 8, pp 365-
388, 1993.
74
Silvia Volpi Scott207 (2000) analisaram as semelhanças existentes nas duas margens do
Atlântico no que diz respeito à constituição das famílias que tinham como componente
comum o homem português. É importante salientar que o fluxo elevado de homens
portugueses em direcção à América208 influenciou directamente a organização dos membros
das famílias daqueles que ficaram. As mulheres, por exemplo, viram-se frente à necessidade
de assumir a chefia209 dos lares. Derivam ainda das intensas ondas migratórias os níveis de
nupcialidade e celibato e as idades de casamento.
É importante que se considere, todavia, a composição distinta da população em
Portugal e na América Portuguesa, uma vez que a população negra e escrava era a maioria na
América. Ao longo do século XVIII a presença maioritária de mulheres negras em
contraposição à escassez de mulheres brancas fez com que a administração portuguesa visse a
necessidade de implementar restrições tais como, por exemplo, a proibição de criação de
conventos. O objectivo era aumentar o contingente feminino branco na América, uma vez que
a união matrimonial com mulheres africanas ou suas descendentes era, legalmente, proibida.
207
Scott analisa a comunidade minhota de São Tiago do Ronfe, Concelho de Guimarães, tendo como fonte as visitas pastorais realizadas por
todo o século XVIII e princípio do XIX. SCOTT, A.“Desvios Morais nas Duas Margens do Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas
Gerais nos anos setecentos”, População e Sociedade, Porto, v. 7, p. 129-158, 2001; SCOTT, A., “O pecado na margem de lá: a fecundidade
ilegítima na metrópole portuguesa (séculos XVII-XIX)”, População e Família, São Paulo, v. 3, p. 41-70, 2001.
208
Relativamente à presença portuguesa na América Portuguesa, Ramos apresenta os dados recolhidos para a Paróquia de António Dias,
localizada em Ouro Preto, sede da Comarca de Vila de Rica. O autor analisa a documentação pertencente àquela paróquia no período que
compreende o ano de 1709 e o de 1804. Ao analisar a documentação paroquial, nomeadamente as actas de casamento, o autor constatou que
entre os nubentes, 341 naturais da Europa, 229 eram naturais das províncias do norte de Portugal (Minho e Trás-os-Montes). Entre as
mulheres, entre as 43 naturais da Europa, 6 eram naturais do norte. Cf. RAMOS, D., “From Minho to Minas: The Portuguese Roots of the
Brazilian Family", Hispanic American Historical Review, 73:4 (1993): 639-662, 1993.
209
BRETTELL, C., Homens que Partem, Mulheres que Esperam; consequências da Emigração numa Freguesia Minhota, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1991.
75
urbana bracarense, com taxas de ilegitimidade que ficaram muito abaixo daquelas
apresentadas por Amorim210, Brettel211, Scott212 e Neves213, por exemplo.
Vimos até agora a importância que os movimentos migratórios tiveram para a
constituição e reestruturação das famílias nas duas margens do Atlântico. Num segundo
momento, interessa-nos também reflectir sobre a abordagem feita pelo Direito Civil e
Canónico relativamente á estruturação das famílias. As discussões em torno da constituição e
organização das famílias (legítimas ou ilegítimas) nas duas margens do Atlântico214 abordam,
sobretudo, o modelo familiar que tinha o homem como chefe do domicilio e responsável tanto
pela manutenção do lar, quanto pela educação e criação dos filhos. No século XVIII, a
legislação civil que regia o Império Português estava consolidada nas Ordenações Filipinas
(1603). Organizadas em cinco volumes, temos, nos Livros IV e V, os títulos que regem os
direitos das pessoas que compunham essa sociedade.
A segunda metade desse século foi marcada pelo acirramento das políticas do Estado
para disciplinar a família, principalmente no que diz respeito aos direitos e deveres de pais e
filhos, tentativa esta que se estendeu à América portuguesa. O Código Filipino é claro quanto
ao papel que a família deveria desempenhar na criação de seus filhos. Cabia a ela educar,
alimentar e vestir, fossem os filhos legítimos ou não. Pode dizer-se que esse ambiente familiar
210
Maria Norberta Amorim ao estudar a Cidade de Guimarães, identificou taxas de ilegitimidade que variaram entre 14% (a mais baixa
registada entre os anos de 1680-1689) e 25,2% (a mais alta entre os anos de 1810-1819). Cf. AMORIM, M., Guimarães, 1580-1819; estudo
demográfico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987.
211
Caroline Brettel, embora tenha empreendido um estudo com uma tendência antropológica predominante, analisou os impactos da
imigração masculina para a América numa comunidade minhota cujo pseudónimo era Santa Eulália. A ilegitimidade, uma das consequências
da ausência dos homens naquela comunidade, atingiu patamares também bastante elevados. Ao longo do período de quase dois séculos
(1700-1860) a taxa de ilegitimidade variou entre 5,1% e 12,15%. Cf. BRETTELL, C., Homens que Partem, Mulheres que Esperam;
consequências da Emigração numa Freguesia Minhota, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.
212
Ana Silvia Volpi Scott ao analisar a ilegitimidade na comunidade de São Tiago de Ronfe, entre os anos de 1730-1825, chegou a
encontrar 18% de ilegítimos (1730-1739). A média encontrada pela autora rondou os 11,7% de ilegítimos para o período analisado. Cf.
SCOTT, A., Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste português (séculos XVIII e XIX), Guimarães, NEPS - Universidade
do Minho, 1999; SCOTT, A. “O pecado na margem de lá: a fecundidade ilegítima na metrópole portuguesa (séculos XVII-XIX)”, População
e Família, São Paulo, v. 3, p. 41-70, 2001.
213
António Amaro das Neves em estudo desenvolvido em onze paróquias do meio rural no norte de Guimarães no período que
compreendeu os anos de 1566 – 1799 identificou que as taxas de ilegitimidade variavam entre 11% e 22%. Cf. NEVES, A., Filhos das Ervas
A ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII), Guimarães, NEPS-Universidade do Minho, 2001.
214
BRUGGER, S., Minas patriarcal; família e sociedade (São João Del Rei, século XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007; SCOTT, A.
“Velhos Portugueses ou Novos Brasileiros: reflexões sobre a família luso-brasileira setecentista”, In PERARO, M.; BORGES, F. (Org.),
Mulheres e Famílias no Brasil, Cuiabá, Carlini & Caniato, 2005, p. 15-35; SCOTT, A., “O pecado na margem de lá: a fecundidade ilegítima
na metrópole portuguesa (séculos XVII-XIX)”, População e Família, São Paulo, v. 3, p. 41-70, 2001; SCOTT, A., “Desvios Morais nas
Duas Margens do Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos”, População e Sociedade, Porto, v. 7, p. 129-
158, 2001; SCOTT, A., “Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX)”, Guimarães, NEPS
- Universidade do Minho, 1999; LEWKOWICZ, I., “Espaço Urbano, família e domicílio – Mariana no início do século XIX”, In Termo de
Mariana: História e Documentação, Mariana, Imprensa Universitária da UFOP, 1998; FARIA, S., A colônia em movimento;fortuna e
família no cotidiano colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LEWKOWICZ, I. & GUTIÉRREZ, H., “As Viúvas em Minas Gerais
nos séculos XVIII e XIX”, In Estudos Históricos, Universidade Estadual Paulista, Franca v.4, nº1, 1997; FIGUEIREDO, L., Barrocas
famílias; vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997; FREYRE, G., Casa Grande & Senzala: formação da
família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 23 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1984; SILVA, M. B., Sistema de casamento no
Brasil colonial, São Paulo,T.A. Queiroz/Ed. da Universidade de São Paulo, 1984.
76
e doméstico se inseriu num universo de afectividade215 que, por sua vez, abrangia o discurso
social e político da sociedade do Antigo Regime. Mas devemos entender que família, no
Antigo Regime, incluía todos aqueles que estivessem ligados ao paterfamilias, fosse por laços
de parentesco, afinidade, criadagem ou escravidão.
O livro quarto das Ordenações é aquele que dispensa mais atenção às relações entre
pais e filhos, e entre os cônjuges. O regime de bens português previa que a união entre duas
pessoas poderia ser baseada no sistema de casamento por dote e arras ou naquele em que
ambos eram meeiros um do outro. Entre os inventários post-mortem que analisamos foi
possível perceber que a maioria dos casamentos216 no reino e nos domínios portugueses, era
feita com “carta de ametade”.217
Para a Coroa portuguesa existia uma associação entre a formação da família e a boa
administração, ao que António Manuel Hespanha chama "coisas públicas", " [...] sendo a casa
a primeira comunidade, as leis mais necessárias são as do governo da casa; e sendo, além
disso, a família o fundamento da república, o regime (ou governo) da casa é também o
fundamento do regime da cidade"218. Derivado desta concepção de família, o papel
desempenhado pelos pais na criação dos filhos era fundamental para garantir a estabilidade da
sociedade do Antigo Regime.
Contudo, acabamos por nos aperceber, na análise da legislação que regulava o papel
dos pais que a natureza da filiação (legítima ou ilegítima) era um dos aspectos que orientavam
o papel dos progenitores. No caso dos filhos legítimos a mãe tinha a obrigação de sustentar o
filho, em termos alimentares, somente até os 3 anos de idade. Passado esse período o sustento
da criança deveria ser garantido pela herança deixada pelo pai. No caso dos filhos naturais
também se verificava que a mãe era aquela que, primeiramente, ficava responsável pelo filho.
Contudo, na sua ausência e na impossibilidade da mãe assumir este papel a criação e sustento
das crianças acabava por ficar a cargo de instituições assistenciais.
Entretanto, entre os filhos espúrios o peso da origem das crianças, frutos de relações
moralmente desviantes e condenáveis, era sentido com mais rigidez. Sejam os adulterinos, os
sacrílegos ou os incestuosos, a sua criação e sustento não era, em momento algum, dever dos
215
Natividade, 1653, op. I, cap.1, p.2, n.10. Citado por: HESPANHA, A. História de Portugal Moderno político e institucional, Lisboa:
Universidade Aberta, 1995, p. 114.
216
SILVA, M., Sistema de casamento no Brasil colonial, São Paulo,T.A. Queiroz/Ed. da Universidade de São Paulo, 1984.
217
Entenda-se como carta de ametade a comunhão ou comunicação legal dos bens. O jurista T. de Freitas diz que: quando o regime do
casamento é o da comunhão em todos os bens, os cônjuges estão em comunhão universal de bens presentes e futuros. Citado em
ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro 4, Título 46, nota 3. p. 832.
218
Natividade, 1653, op. I, cap.1, p.2, n.10. Citado por: HESPANHA, A. História de Portugal Moderno; político e institucional, Lisboa,
Universidade Aberta, 1995, p. 114.
77
progenitores, mas das rodas das Cidades. E, naquelas localidades onde não houvesse uma
roda de expostos o destino das crianças ficava a cargo das Câmaras Municipais.
E qual teria sido o papel desempenhado por aquelas mulheres219 que, na ausência dos
maridos assumiram a chefia do lar e o sustento dos filhos? Seja pela morte do marido, ou pela
sua ausência em função da emigração, elas viram-se frente à necessidade de assumir a chefia
e manutenção dos lares, além da educação dos filhos. Além disso, o que dizer daquelas
mulheres que, além de assumirem a posição de cabeça de casal220 se viram frente à
necessidade de enfrentar a presença de filhos ilegítimos no seio das suas famílias?
Legalmente a mulher poderia assumir o papel de cabeça do casal caso o marido
falecesse conforme está determinado no Livro 4, título 95 das Ordenações Filipinas. De
acordo com este título:
Morto o marido, a mulher fica em posse e cabeça de casal, se com ele ao
tempo de sua morte vivia, em casa teúda e manteúda, como marido e
mulher: e de sua mão receberão os herdeiros do marido partilha de todos os
bens, que por morte do marido ficarem, e os legatários os legados.
Mas alem das Ordenações, também a Igreja regulava, apor meio das “Constituições”
os procedimentos, os deveres e obrigações que determinavam as relações entre os vários
membros que compunham o agregado familiar. Assim, na América Portuguesa no tocante ao
contexto religioso colonial, este era regido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia (1707), aplicadas até 1847. Sua publicação, entre 1719 e 1720, em Portugal, marcou a
afirmação da Igreja no cenário colonial e a necessidade de sua institucionalização.
Caracterizava-se como um código "padronizador das obrigações do clero e de fiéis",
responsável pela ratificação da Contra-Reforma na América portuguesa, cujos parâmetros
foram definidos no Concílio Tridentino.
Como no caso civil, a legislação eclesiástica viu a necessidade de moldar a realidade
colonial a seus dogmas para que seu desempenho fosse profícuo. Adoptadas em todo o
território, cada Diocese aplicou as Constituições Primeiras respeitando suas necessidades,
sendo obrigatório a cada pároco ter em mãos um exemplar da lei. Dividida em cinco volumes,
219
Sobre o papel ocupado pelas mulheres no seio das famílias setecentistas mineiras, ver LEWKOWICZ, I. & GUTIÉRREZ, H.. “As
Viúvas em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX”, In, Estudos Históricos, Universidade Estadual Paulista, Franca v.4, nº1, 1997;
LEWKOWICZ, I. “Espaço Urbano, família e domicílio – Mariana no início do século XIX”. In, Termo de Mariana: História e
Documentação, Mariana, Imprensa Universitária da UFOP, 1998.
220
A legislação era clara no que diz respeito ao papel que a mulher poderia desempenhar caso assumisse o papel de cabeça de casal por
ocasião do falecimento do seu marido. Todos deveriam estar sujeitos ao seu poder, ficando determinado que “Em tanto que se algum dos
herdeiros, ou legatarios, ou qualquer outra pessoa tomar posse de alguma cousa da herança depois da morte do marido, sem consentimento
da mulher, ella se pode chamar esbulhada, e ser-lheha restituida; e pois que tanto que o casamento he consummado per copula, he a mulher
feita meeira em todos os bens que hão ambos; e o marido por morte da mulher continua a posse velha, que antes tinha, justa razão he que por
morte do marido fosse provido a ella de algum remedio ácerca da posse, o qual remedio he, ficar ella em posse e cabeça de casal".
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 95, Como a mulher fica em posse e cabeça de casal por morte de seu marido, p. 949/950.
78
era o quinto responsável por tratar dos crimes praticados tanto por eclesiásticos, quanto por
leigos.
Ao basear sua acção na introdução e na administração dos sacramentos e da moral
cristã, a Igreja Católica defendia e procurava difundir a regulamentação do matrimónio por
acreditar ser este o ambiente em que seria permitida a sexualidade intitulada como lícita. Tal
postura ratificava assim o objectivo maior da união matrimonial, a " [...] propagação do
género humano, senão também para remédio da concupiscência e para evitar pecados"221.
Durante os séculos XVIII e XIX, a Igreja manteve, como um de seus pilares da acção
catequizadora na América portuguesa, o incentivo ao casamento entre seus habitantes. Tal
acção fez-se sentir por meio da perseguição aos concubinários, amancebados e desviantes,
num esforço vigoroso em implementar as directrizes do Concílio de Trento, explicitadas nas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 da seguinte forma:
Conforme o direito e Sagrado Concílio Tridentino, aos prelados pertence
conhecer dos leigos amancebados, quanto à correcção e emenda somente
para os tirar do pecado, e em ordem a este fim podem proceder contra eles
com admoestações e penas, até com efeito de se emendarem.222
A partir da normatização dos laços matrimoniais com o Concílio de Trento foi
instaurado na sociedade ocidental um modelo de casamento indissolúvel223, monogâmico e
extremamente burocratizado. Muitos são os estudos que atribuem à burocratização 224 e aos
altos custos225 do processo matrimonial a causa para os baixos índices de uniões legais. Uma
das exigências era a imposição, aos nubentes, da comunicação de sua intenção de casamento
ao pároco. De posse dessa informação, cabia ao pároco dar início ao processo matrimonial.
Para a união do casal o primeiro passo do pároco era, por três domingos consecutivos, no
221
VENÂNCIO, R. “Nos limites da sagrada família; Ilegitimidade e casamento no Brasil Colonial”, In, VAINFAS, R. (Org), História e
sexualidade no Brasil, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986, p. 109.
222
CPAB (1707), Livro Primeiro, Título 61.
223
ARIÈS, P., “O casamento indissolúvel”, In ARIÈS, P. e BÉJIN, a. (orgs.), Sexualidades Ocidentais, São Paulo, Brasilienses, 1982,
p.163-82.
224
Segundo Eliana Goldschmidt, a partir do Concílio de Trento, em 1563, a união matrimonial católica assumiu uma "[...] natureza pública e
institucional. Só era considerado legítimo, aquele celebrado pela Igreja perante o pároco e testemunhas, precedido pela publicação de três
banhos (proclamas ou pregões) e seguido nos livros paroquiais". GOLDSCHMIDT, E. Convivendo com o pecado na sociedade paulista
colonial (1719-1822), São Paulo, Annablume, FAPESP, 1998, p. 33.
225
VAINFAS, R., Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1997; VILLALTA, L. C., A
"torpeza diversificada dos vícios"; Celibato, Concubinato e Casamento no Mundo dos Letrados de Minas Gerais (1748-1801), São Paulo,
USP, 1993. (Dissertação, Mestrado História); GOLDSCHMIDT, E. “A motivação matrimonial nos casamentos mistos de escravos”, Revista
da SBPH, Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n. 3, 1986, pp. 1-16; FIGUEIREDO, L., O avesso da memória: estudo do papel,
participação e condição social da mulher no século XVIII mineiro, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1984.
79
decorrer da missa, anunciar aos fiéis o possível casamento; eram os chamados banhos
matrimoniais226.
Relativamente à região das Minas Gerais, sabe-se que, nas primeiras três décadas do
século XVIII foram recorrentes as trocas de correspondências entre o Rei de Portugal e o
Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Lourenço de Almeida que abordavam a
dificuldade de estabilizar e administrar a sociedade colonial mineira. Neste contexto, e com o
objectivo de combater as uniões ilícitas e os frutos das mesmas, uma das medidas adoptadas
pela administração portuguesa para incentivar as uniões matrimoniais foi o impedimento de
que homens solteiros pudessem ocupar cargos de destaque na administração das câmaras das
vilas. Luciano Figueiredo227 chega a apontar para o “fracasso da política familiar”, na medida
em que as uniões matrimoniais, em muitos casos, não chegaram a se aproximar do modelo
conjugal pretendido pela Igreja Católica.
Em carta datada de 1721 o então Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom
Lourenço de Almeida, solicitou extrema observância no combate às uniões ilícitas e,
consequentemente, aos frutos das mesmas.
Que os povos das Minas por não estarem suficientemente civilizados e
estabelecidos em forma de repúblicas regulares, facilmente rompem em
alterações e desobediências e se lhe devem aplicar todos os meios que os
possa reduzir a melhor forma: me parecem encarregar-vos como por esta o
faço procureis com toda diligência possível para que as pessoas principais e
ainda quaisquer outras tomem o estado de casados e se estabeleçam com
suas famílias reguladas na parte que elegeram para a sua povoação, porque
por este modo ficarão tendo mais amor à terra e maior conveniência do
sossego dela e consequentemente ficarão mais obedientes às minhas reais
ordens e os filhos que tiverem do matrimónio o façam ainda mais obedientes
[grifo nosso] e vos ordeno me informeis se será conveniente mandar eu que
só os casados possam entrar na Governança das Câmaras das vilas e se
haverá suficiente número de casados para se poder praticar esta ordem
[...].228
Percebe-se, a partir da leitura do documento acima que a necessidade de um controlo
mais sistemático na estabilização e na organização da população no território colonial para
que fosse possível a realização de seu projecto político que visava o aumento da população
226
O Padre Raphael Bluteau define os banhos matrimoniais como sendo "pregão que o pároco lança na citação, para ver se há quem ponha
impedimento, ao casamento. Chama-se pregão porque se apregoa. Estes banhos são três em três dias Santos, neste sentido Banho se deriva de
Barn, que em alemão quer dizer Publicação. Solemnis futurarum nuptiarum denunciatio ou promulgatio, onis". BLUTEAU, R., Vocabulário
Português e latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, Vol. II, p. 35.
227
FIGUEIREDO, L., Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, Hucitec, 1997.
228
Sobre casarem os homens destas minas e mestres nas vilas para ensinarem rapazes, carta do Governador Dom Lourenço de Almeida ao
rei, 28 de Setembro de 1721, Revista do Arquivo Público Mineiro, v.31, 1980, p. 95.
80
qualificada. "E tendo Sua Majestade consideração ao muito que importa a seu serviço, e
acrescentamento daquele Estado, povoar-se de gente principal e honrada, que é o intento"229.
Ao argumento do impedimento do acesso dos mulatos aos cargos administrativos,
somou-se a tradição herdada do Antigo Regime de conceder cargos públicos ou patentes
___
militares respeitando a linhagem seja em Portugal ou na América setecentista. "[...] Assim
as honras ou as mazelas derivadas do nascimento eram transmitidas de geração para
geração"230. Mais do que a “contaminação” da família, permitir que os mulatos ascendessem
socialmente ao ocuparem cargos administrativos representava a concessão de um privilégio a
pessoas que não o mereciam.
Percebe-se ainda que, mais do que uma preocupação com a instituição do casamento
no quotidiano familiar, o Estado Português estava atento ao aumento do índice de mulatos
entre a população das vilas, pois era do conhecimento do Rei que a sociedade colonial se
tornava uma espécie de "mosaico étnico", formada por portugueses, africanos, índios e pelos
seus.
Todavia, apesar da presença mulata ser interpretada pelo poder administrativo como
uma mácula para as “famílias de limpo nascimento”, nem só de fracassos foram constituídos
os núcleos familiares nas Minas Gerais. O discurso régio e eclesiástico de alegada dificuldade
em atribuir estabilidade às famílias formadas nas Minas foi contraposto à constituição de lares
tão estáveis, quanto aqueles abençoados pelos sagrados laços do matrimónio. “Muitas uniões
consensuais estabelecidas entre a população pobre no território de Minas Gerais conseguiram
reproduzir no contexto dessas famílias nucleares a estabilidade que o ideal cristão sempre
desejou que acompanhasse o casamento indissolúvel”.231
Embora os direitos Civil e Eclesiástico considerassem as uniões concubinárias como
antagonistas do sagrado matrimónio, o concubinato232 e as uniões consensuais não foram
relações estabelecidas somente entre as camadas populares da sociedade233, também os
homens bons das Câmaras Municipais se deixaram “corromper” e estabeleceram relações
229
José Justino de Andrade e Silva, Colecção cronológica da legislação portuguesa, vol.1, p.22. Citado por SILVA, M. B., Sistema de
casamento no Brasil colonial, São Paulo, T.A. Queiroz, Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. 23.
230
FURTADO, J. F., Chica da Silva e o contratador de diamantes; o outro lado do mito, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 58.
231
FIGUEIREDO, L. R. A., Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais do século XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997, p.133.
232
"Concubina é a mulher com a qual habita e coabita um homem, como se fora sua própria mulher". Cf. BLUTEAU, Raphael Padre.
Vocabulário Português e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, Vol. II, p. 442.
233
GOLDSCHMIDT, E. M. R., “A motivação matrimonial nos casamentos mistos de escravos”, Revista da SBPH: Sociedade Brasileira de
Pesquisa Histórica, n. 3, 1986, pp. 1-16; FIGUEIREDO, L. R., “O avesso da memória: estudo do papel, participação e condição social da
mulher no século XVIII mineiro”, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1984; VAINFAS, R., Trópico dos pecados: moral, sexualidade e
inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1997; VILLALTA, L. C., A "torpeza diversificada dos vícios"; Celibato, Concubinato e
Casamento no Mundo dos Letrados de Minas Gerais (1748-1801), São Paulo, USP, 1993, (Dissertação, Mestrado História).
81
moralmente condenadas pela Igreja e pouco recomendadas pelo Estado Português. Todavia,
considerando que a parcela da população "apta" a constituir uma família de acordo com os
modelos da Igreja e do Estado, na Capitania de Minas Gerais, era composta por portugueses
que, em virtude de suas actividades234, tinham uma vida com intensa mobilidade, os banhos
matrimoniais configuravam-se exigências bastante onerosas, uma vez que era necessário
percorrer todas as vilas e arraiais pelos quais o pretendente tinha passado.
Posto isto, nosso foco de análise pretende recair sobre alguns aspectos específicos da
criação e/ou reestruturação das famílias frente à emigração. Chamamos a atenção para o efeito
da emigração no seio de algumas famílias bracarenses residentes na Paróquia de São João do
Souto: os efeitos da ausência dos maridos e a necessidade da esposa 235 assumir a chefia dos
lares. A situação de abandono em que, muitas vezes, algumas mulheres, forçaram-nas, por
isso, a abrir mão do espólio da família para sustentar os filhos e garantir-lhes acesso à
educação. Após a leitura dos assentos da Paróquia de São João do Souto, em Braga,
identificamos, dentre os 7.625 registos, 6,2 % de ilegítimos236. Veremos que, ao analisarmos
comparativamente o índice de natalidade ilegítima na paróquia bracarense e na sabarense, o
distanciamento entre as duas será evidente. Se somarmos a isso a forma como a ilegitimidade
foi vivida em cada uma das paróquias, a distancia entre as duas será ainda maior. Na prática,
os emigrantes portugueses frente à significativa diferença do viver na América, para o viver
em Portugal, tiveram de enfrentar a necessidade de se adaptarem, criando novos referenciais
culturais que passaram a regular a sua vida no além-mar. Um desses referenciais que teve de
ser reequacionado foi a maneira de lidar com a prole ilegítima.
Nascer no Minho, viver e morrer na América acabou por ser o destino de muitos
portugueses que, desde finais do século XVII deixaram Portugal na esperança de um
enriquecimento rápido. A esperança de retornar pode ter sido, para muitos, um factor
determinante ao decidirem partir, mas ao fim e ao cabo, muitos foram aqueles que
transpuseram o Atlântico para nunca mais voltar. Diante da impossibilidade de retornarem
teriam os portugueses recorrido à recriação, na América, das estruturas familiares portuguesas
e do seu modus vivendi? De um lado, homens partindo e determinando a necessidade de
234
Sobre a mobilidade exigida pelo comércio nas Minas setecentistas, ver FURTADO, J. F., Homens de negócios; a interiorização da
metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, HUCITEC, 1999.
235
Sobre a chefia dos lares assumida pelas mulheres dos imigrantes, ver SCOTT, A., “Mulheres que ficam: o papel da mulher no contexto
da emigração portuguesa nos séculos XVIII e XIX”, In: LIMA, E.; ARIAS NETO, José Miguel; ALMEIDA, M. (Org.), Violência e Direitos:
500 Anos de Lutas, Curitiba, Aos Quatro Ventos, 2001, p. 117-123.
236
Uma análise pormenorizada será desenvolvida no capítulo IV. Contudo, acreditamos ser importante a apresentação, preliminar, deste
índice com o objectivo de chamar a atenção para o facto de que as altas taxas de ilegitimidade não podem ser consideradas para a região do
Minho como um todo.
82
3.2. Tecendo teias e formando famílias: a importância dos ritos cristãos na criação dos
laços sócio familiares
237
CAPELA, J. & FERREIRA, A. C., Braga triunfante ao tempo das Memórias Paroquiais de 1758, Braga, Compolito, 2002.
238
Não foi possível identificar a ocupação profissional dos pais em 6.747 registos.
83
Tabela 12 – Ocupação profissional dos pais dos baptizandos, Paróquia de São João do Souto, 1700-
1799.
Ocupação Profissional Número de ocorrências Filhos ilegítimos
Membros do clero 5 2
Oficiais mecânicos 278 1
“Profissionais liberais” 389 4
Militar 41 2
Oficial de Justiça 9 -
[ilegível] 13 -
Cidadão 4 -
Criado 2 1
Dom 8 -
Doutor 78 -
Estudante 1 1
Frei 5 -
Lavrador 3 -
“Familiar do Santo 1 -
Ofício”
Hospitaleiro 2 -
“Imaginário” 1 -
Inquiridor 1 -
Pasteleiro 8 -
Pescador 1 -
Surrador 4 -
Total 854 11
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Livros 144 – 149, século XVIII.
Infelizmente, como constatamos na tabela acima, poucos foram os pais cuja ocupação
profissional foi referenciada nos assentos de baptismo da paróquia bracarense. Ao
analisarmos então a ascendência dos filhos ilegítimos, dentre os 472 registos efectuados nos
livros paroquiais de São João do Souto ao longo do século XVIII, somente em 11 deles a
ocupação profissional dos pais foi referida. No dia 25 de Maio de 1701 recebeu os santos
óleos na Igreja Matriz de São João do Souto, Basílio239, filho natural de Ana, escrava de
Francisco Gonçalves (galinheiro) e morador na Rua da Fonte da Carcova. Passados 4 meses,
no dia 18 de Setembro daquele mesmo ano, o pároco responsável pelo registo dos assentos
anotou ao lado do assento de Basílio a seguinte declaração: "deu a mãe do baptizado por Pai
ao dito José de Sousa, Ajudante que assistiu por padrinho e para constar fiz esta declaração".
Basílio teve por padrinhos José de Sousa, também galinheiro e residente na Rua da Fonte da
Carcova e Rosa Vieira de Faria, filha de Francisco Vieira, mercador e morador na Porta do
Castelo.
239
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Basílio, filho de Ana, escrava, e José de
Sousa, Livro 144, fl. 30r, 25-05-1701.
84
240
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Manuel, filho de Brites e Frutuoso de
Freitas, Livro 144, fl. 100r, 04-12-1705.
241
Aqui o número de padrinhos cuja ocupação profissional pôde ser identificada supera, e muito, o número de pais, totalizando 3.466
indivíduos
85
Tabela 13 – Ocupação profissional dos padrinhos, Paróquia de São João do Souto, 1700-1799.
Ocupação Profissional Número de ocorrências Valor percentual
No dia 25 de Abril de 1784 recebeu os santos óleos na Igreja Matriz de São João do
Souto, Dona Maria Inácia Luísa da Costa Rubim Pereira Souto Maior242, filha do Alcaide-
Mor e Fidalgo da Casa Real, Gaspar José da Costa Vilhena Coutinho243, com Dona Maria
Casemira Luísa do Carmo Rubim Souto Maior244. Ele, natural da Vila de Arcos de Valdevez
e, ela, da Vila de Viana. Na ocasião foi escolhido para padrinho de Dona Maria Inácia o então
Príncipe do Brasil, D. José I e sua filha, Dona Maria Francisca Benedita. Como ambos
residiam nos Estados do Brasil houve a necessidade de que fossem representados por
procuração. Foi chamado a representá-los o Desembargador do Paço Manuel Nicolau Esteves
Negrão, Chanceler na relação do Porto. A menina Francisca, filha de pais incógnitos,
recebeu no dia 7 de Agosto de 1789 os santos óleos numa cerimónia presidida pelo Abade
António de Santa Maria e Silva que declarou “esta criança apareceu nesta Igreja nos braços de
Mariana Gonçalves de Miranda, parteira e moradora no Campo de Santana, pedindo-me lhe
baptizar, pois lhe fora entregue para eu a baptizar, sem lhe declararem a Rua ou sitio em que
242
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Dona Maria Inácia Luiza da Costa
Rubim Pereira Souto Maior, Livro 148, fl. 151v, 25-04-1784
243
Gaspar José da Costa Vilhena Coutinho era filho legítimo de Rodrigo Antônio da Costa Pereira (Fidalgo da Casa Real) e Dona Inácia
Clara Apolônia de Vilhena Coutinho.
244
Dona Maria Casemira Luiza do Carmo Rubim Souto Maior era filha legítima de Sebastião Pinto Rubim Souto Maior (Fidalgo da Casa
Real, Brigadeiro dos seus exercitos e governador da Praça de Valencia do Minho) com Dona Ana Bezerra.
86
nascera.”245 Nota-se assim, com base nos casos relatados, que o apadrinhamento das crianças
no momento do baptismo era cercado de um importante significado. Como dissemos no
capítulo 2 desta tese, o ritual do baptismo era o responsável por introduzir a criança no
universo cristão.
Ao analisarmos, entretanto, se a escolha dos padrinhos teve alguma relação com o
exercício da mesma actividade profissional do pai, identificamos alguns casos expoentes de
tal situação, embora quantitativamente não tenham sido vulgares. Na Paróquia de São João do
Souto 42 alfaiates apresentaram seus filhos perante o pároco e a comunidade para receberem
o primeiro sacramento cristão. A natureza da sua actividade fazia com que eles se
relacionassem com os mais diversos membros da comunidade bracarense: barbeiros, livreiros,
mercadores, reverendos, lavradores e ferreiros, os quais, acabam por ser escolhidos como
padrinhos. O ritual do baptismo que, num primeiro momento tinha como objectivo introduzir
o neófito no mundo cristão, era também responsável por estabelecer redes de sociabilidade
entre os pais e padrinhos. O casal Miguel Moreira e Leonarda de Oliveira246, residentes na
Rua de Santo António baptizaram no dia 30 de Dezembro de 1703 sua filha legítima, Agda247.
Miguel Moreira era alfaiate e escolheu para padrinho da sua filha o Desembargador Jerónimo
Saraiva e Úrsula Ferreira, moradora na Rua do Anjo.
E quando se verificava a escolha dos padrinhos no mesmo universo dos pais? Houve
casos em que os padrinhos exerciam a mesma actividade profissional do pai? E a madrinha
era residente na mesma rua dos pais do seu afilhado? Haveria uma tendência entre os pais de
escolherem para padrinhos dos seus filhos pessoas com quem tinham relações de vizinhança?
O Capitão Manuel Ribeiro Pereira e sua mulher Teresa Joaquina, moradores no Rocio
do Castelo, apresentaram sua filha Antónia na Igreja Matriz de São João do Souto para
receber os santos óleos. A cerimónia realizou-se no dia 18 de Junho de 1766, sendo padrinho
o Capitão José de Pinto e Sousa, morador na Cidade do Porto e Antónia Maria de Oliveira,
moradora na Rua das Palhoças. Dois anos antes, no dia 6 de Agosto de 1764, o Doutor Inácio
José Peixoto248 e sua mulher Dona Ana Clara da Apresentação249, moradores na Rua de
245
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Ana, filha de pais incógnitos, Livro 148,
fl. 199v, 07-08-1789.
246
Miguel Moreira e Leonarda de Olivera baptizaram ainda José (10-03-1706) que teve como padrinho o barbeiro José de Araújo, morador
na Praça do Pão.
247
ADB – Registos Paroquiais, Baptismos, Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Agda, Livro 148, fl. 151v, 25-04-1784.
248
Inácio Peixoto desde muito cedo destacou-se entre os demais bracarenses. Aos nove anos foi um dos escolhidos para catnar o Te Deum
em homenagem ao novo Arcebispo de Braga, D. José de Bragança. Aos 14 anos foi para Coimbra onde estudou Cânones, formando-se
Bacharel. Em 1770 foi ler ao Desembargo do Paço de Lisboa, dois anos depois desempenhou a função de procurador no Concelho de Braga
e, entre 1774/1775 tornou-se ministro secular da Relação. Sobre a trajetória de vida do Doutor Inácio José Peixoto, ver PEIXOTO, I. J.
Memórias particulares de Inácio José Peixoto; Braga e Portugal na Europa do século XVIII, Braga, Arquivo Distrital de Braga, 1992
87
Gatos, baptizaram seu filho legítimo João Inácio. O Reverendo Cónego João Lopes, residente
em São Sebastião, Freguesia da Sé e Rosa Joaquina Antónia, residente na Rua de Gatos foram
seus padrinhos. Neste caso, as relações de vizinhança estabelecidas com Rosa Joaquina
Antónia foram, provavelmente, os motivos que levaram o casal a escolherem-na para
madrinha do seu filho.
Ao longo de setecentos casaram-se na Paróquia de São João do Souto 2.941 pessoas.
Mas seriam todos residentes naquela paróquia? Quem testemunhou a contracção do laço
matrimonial? Qual o numero de uniões matrimoniais entre filhos legítimos e ilegítimos?
Quem eram os pais? Houve registo de casamento entre cativos? Houve casos em que ambos
os noivos eram residentes em outras paróquias? Essas e outras questões nos permitem
caracterizar o perfil daqueles que escolheram a Igreja Matriz de São João do Souto para se
unirem no sagrado laço do matrimónio. Entre os noivos, 24 eram enjeitados, 4 eram filhos de
pais incógnitos, 2.504 eram filhos legítimos e 288 eram filhos naturais. Entre as noivas 34
tinham sido enjeitadas, 9 eram filhas de pais incógnitos, 2.582 eram filhas legítimas e 233
filhas naturais. Isto posto, elaboramos o quadro abaixo em que podemos analisar os
casamentos celebrados considerando a categoria da filiação. Mas interessa-nos, neste ponto,
não somente a quantificação mas, sobretudo, a qualificação dos nubentes que no século XVIII
receberam o sacramento do matrimónio.
Embora a ocupação profissional dos nubentes não tenha sido uma informação
encontrada na maioria das actas de casamento (em 95,8% dos registos esta informação não
estava presente), acreditamos que os casos em que esta informação pode ser identificada
merecem alguma atenção numa tentativa de traçar o perfil sócio profissional daqueles que, ao
longo do século XVIII, se casaram na paróquia bracarense. Dentre os 2.941 homens que se
casaram na Paróquia de São João do Souto naquela centúria, 12 eram Doutores, 10 eram
Licenciados, 13 eram mercadores, 10 eram ourives, 9 eram sapateiros, 5 sombreireiros. Ainda
identificamos um indivíduo de cada uma das seguintes actividades profissionais: artilheiro,
(estudo introdutório de Luis A. de Oliveira Ramos; leitura e fixação do texto de José Viriato Capela). O Doutor Inácio José Peixoto e Dona
Ana Clara da Apresentação se casaram na Igreja Matriz da Paróquia de São João do Souto no dia 4 de Outubro de 1772. Foram testemunhas
o Padre José Fernandes e o Padre Manuel Soares Lopes. Na acta de casamento consta ainda a observação que Dona Ana Clara da
Apresentação era filha legitimada do Reverendo Domingos Martins Barroso. Ao que tudo indica, a história de ascendencia ilegítima de Dona
Ana Clara da Apresentação repetiu-se com seus filhos. Dos 9 filhos que o Doutor Inácio José Peixoto e Dona Ana Clara da Apresentação
tiveram, 8 nasceram antes da contracção dos laços matrimoniais. O subsequente matrimónio, como previsto nas Ordenações Filipinas,
acabou por legitimar os filhos. Ver a acta de casamento do Doutor Inácio José Peixoto e Dona Ana Clara da Apresentação em ADB –
Registos Paroquiais, Casamentos, Paróquia de São João do Souto, Actas de casamento de Inácio José Peixoto e Dona Ana Clara da
Apresentação, Livro 156, fl. 87r, 04-10-1772.
249
O casal Inácio José Peixoto e Dona Ana Clara da Apresentação baptizaram ainda os filhos: Apolinário Caetano, legítimo (26-07-1763);
António, legítimo (05-03-1766); Manoel Joaquim, legítimo (22-02-1767); José Caetano, legítimo (12-08-1768); Maria Engracia, legítima
(25-03-1770); Miguel Antônio, legítimo (25-03-1770); Miguel Feliciano, legítimo (21-10-1771); Francisco Borja, legítimo (09-10-1773).
88
Com base na tabela acima percebemos que, tanto entre os homens (56,5%), quanto
entre as mulheres (57,4%), a maioria dos nubentes residia na Paróquia de São João do Souto.
No dia 7 de Janeiro de 1701 o mercador Manuel Ferreira Pinto254, morador na Rua do Souto
250
No capítulo 4 analisaremos novamente a distribuição dos nubentes de acordo com o seu domicílio, com os olhos voltados para os
nubentes nascidos de uniões não sacramentadas pela Igreja Católica.
251
Os noivos estrangeiros eram provenientes da Galiza (13) e Brasil (1).
252
Em outras localidades introduzimos todas as Paróquias localidas fora do termo da Cidade de Braga, bem como Vilas e Cidades de
Portugal.
253
Foram consideradas Paróquias Vizinhas aquelas pertencentes à Cidade de Braga e seu termo.
254
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Paróquia de São João do Souto, Acta de casamento de Manuel Ferreira Pinto e Isabel da Silva,
Livro 154, fl. 155r, 07-01-1701.
89
apresentou-se perante o Padre Gaspar Antunes, juntamente com Isabel da Silva, moradora na
Rua da Fonte da Carcova, para se unirem nos sagrados laços do matrimónio. O noivo era filho
legítimo de Marta Ferreira e António Fernandes (lavrador) e a noiva era filha natural de Isabel
da Silva com Baltazar da Silva. Aqui, como no caso dos padrinhos de baptismo, podemos
perceber a presença de testemunhas que exerciam ou a mesma actividade profissional que o
noivo, ou actividades que estavam directamente relacionadas com a sua. No caso do mercador
Manuel Pinto, a sua união com Isabel da Silva foi testemunhada pelo Padre José de Oliveira
(residente no Campo de Santana) e pelos sapateiros João Mendes e André da Costa residentes,
respectivamente, na Rua de Janes e na Rua dos Chãos.
Embora tenham representado valores percentuais inferiores a 1% dos registos de
casamento da paróquia bracarense, não poderíamos deixar de considerar a presença de noivos
e noivas provenientes do estrangeiro255. Tanto entre os homens, quanto entre as mulheres, os
galegos256 representaram a maioria dos nubentes. Paulo da Silva257 (natural e residente no
Reino da Galiza) e Angélica Ribeira da Costa (presa no Aljube) apresentaram-se perante o
Padre Manuel Soares Lopes para se casarem. Paulo era filho natural de Maria Afonso e
Domingos da Silva e Angélica era filha legítima de Ana da Costa e Tomé Ribeiro. A
cerimónia foi realizada no dia 26 de Outubro de 1733 e contou com a presença de João de
Brito Rabelo de Sá, Meirinho-Geral e Diogo Francisco, morador na Rua do Ginteiro. Mas não
foram somente casamentos mistos de estrangeiros e residentes na paróquia que foram
registados. No dia 14 de Outubro de 1714, Gabriel da Silva258 e Ana Maria de Araújo, ambos
residentes no Reino da Galiza apresentaram-se perante o Padre Custódio de Arantes com o
objectivo de contraírem o matrimónio. Gabriel era filho legítimo de Domingas de Figueiredo
com João Pires, e Ana Maria, era filha legítima de Maria Fernandes com Domingos de
Carvalho. A união foi testemunhada pelo Doutor João Esteves de Carvalho e por Mateus
Rodrigues. Mas o que teria feito o casal optar pela celebração da cerimónia na Paróquia de
São João do Souto? Estariam de passagem pela cidade ou seriam os próximos residentes de
255
Sobre o papel desempenhado pelas migrações internas na constituição da sociedade minhota, ver DURÃES, M.; LAGIDO, E. “A arte de
trabalhar a pedra:
migrações temporárias e sazonais no Norte de Portugal (Sees. XVIII-XIX)”, in O reino, as ilhas e o mar oceano; Estudos em homenagem a
Artur Teodoro de Matos, Lisboa, CHAM, DATA, p. 237 – 263; OUVRIRA. A. de “Migrações internas e de mèdia distância em Portugal de
1500 a 1900” In EIRAS R. A. (coord.) Migraciones internas y médium-distance en Esparìa en la Edad Moderna, Santiago de Compostela,
1993.
256
Sobre os efeitos das ondas migratórias no contexto galego, ver PÉREZ C. J. D. “La emigración portuguesa a Jerez”, in EIRAS R., O
(coord.) Migraciones intentas v médium-distance en España en la Edad Moderna, Santiago de Compostela, 1993, pp. 733,746;
257
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Paróquia de São João do Souto, Acta de casamento de Paulo da Silva e Angélica Ribeira da
Costa, Livro 155, fl. 369r-369v, 26-10-1733.
258
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Paróquia de São João do Souto, Acta de casamento de Gabriel da Silva e Ana Maria de Araújo,
Livro 155, fl. 146r, 14-10-1714.
90
Braga? Caso Gabriel e Ana Maria tivessem filhos a fixação do casal na paróquia bracarense
poderia ser confirmada. Todavia, não localizamos qualquer registo de crianças baptizadas na
paróquia tendo Gabriel e Ana Maria como progenitores.
Atravessamos o Atlântico, assim como o fizeram muitos portugueses e africanos no
século XVIII e deparamo-nos com a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
Marcada pela diversidade, assim como outras paróquias das Minas Gerais, esta era composta
por portugueses, africanos e seus descendentes. Na paróquia sabarense, a presença maioritária
do contingente africano cativo e/ou forro acabou por redefinir alguns comportamentos: o
acesso dos mulatos a cargos representativos do poder municipal, a inserção dos filhos
ilegítimos nos núcleos familiares, a paridade dos filhos ilegítimos frente aos legítimos no que
se refere à partilha dos bens dos pais, o aparecimento de mulheres forras capazes de gerenciar
com bastante desenvoltura seus bens sendo responsáveis, até mesmo, pela compra da alforria
de seus cônjuges.259 Tais factos, na verdade, traduzem a fluidez e a capacidade de adaptação
dos moradores daquela comunidade à presença africana em quantidade muito superior à
portuguesa.
Na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará qual foi o comportamento dos
portugueses que lá se fixaram relativamente às famílias constituídas? Já dissemos
anteriormente que, as uniões matrimoniais e a estabilidade familiar foram os pilares da acção
do Estado Português e da Igreja Católica numa tentativa de controlar politica e socialmente
não somente a região das Minas, mas os demais domínios portugueses no período colonial
moderno. Neste contexto, como se encaixaram os imigrantes portugueses que se fixaram em
Sabará? Sabe-se que a sociedade260 que se constituiu na América Portuguesa, era composta
por portugueses, africanos, indígenas, em proporções bastante desiguais, e os descendentes
nascidos das relações estabelecidas entre eles. Tal mescla étnica e racial fez com que o modus
vivendi de cada cultura sofresse adaptações que possibilitaram o seu convívio. Entre o
261
segmento africano a introdução dos sacramentos religiosos católicos representou a
259
PAIVA, E. F., Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos, 2ª ed. São
Paulo, Annablume, 2000.
260
Sobre a composição e a diversidade da sociedade luso-brasileira no século XVIII ver, PAIVA, E. F. (Org.); IVO, I. P. (Org.), Escravidão,
Mestiçagem e Histórias Comparadas, São Paulo, Annablume, 2008; PAIVA, E. F., Escravidão e Universo Cultural na Colônia; Minas
Gerais, 1716-1789, 2. ed. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006; SOUZA, L. (org.), “Cotidiano e vida privada na América portuguesa”, in
NOVAIS, F. A. (org), História da Vida Privada no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, vol. 1; HOLANDA, S. B., Raízes do
Brasil, 26a ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1995; FREYRE, G., Casa-grande e Senzala, 16a edição, Rio de Janeiro, José Olympio,
1973.
261
Sobre a introdução dos rituais católicos do baptismo e casamento no segmento cativo, ver OLIVEIRA, P. P., Baptismo de escravos
adultos e as estratégias de sociabilidade lidas nos assentos de baptismo da Paróquia do Pilar, 1712-1750, UFMG, Departamento de
História (Tese de Mestrado em andamento); PRIORE, M. D., “A maternidade da mulher negra no período colonial brasileiro”, Estudos
CEDHAL, São Paulo, n. 4, 1999; GOLDSCHMIDT, E. M., “Os limites da igualdade; um aspecto dos casamentos mistos de escravos em São
Paulo Colonial”, Ler História, n. 29, 1995, p.105-119; FIGUEIREDO, L., Barrocas famílias; vida familiar em Minas Gerais no século
91
possibilidade de controlo dos mesmos pelos seus senhores. Inseri-los no mundo cristão,
incentivar a união matrimonial e o baptismo dos seus filhos era uma forma de buscar garantir,
entre os plantéis, a sua permanência nas propriedades. Assim, o que veremos em alguns
plantéis é o incentivo262 para que os escravos constituíssem uma família dentro da propriedade
dos seus senhores. A concessão de uma habitação, para as novas famílias que se formavam,
era uma das consequências advindas da união matrimonial entre os cativos. Entre os
portugueses a decisão de deixar as comunidades onde nasceram, seus entes queridos, suas
noivas, suas esposas, em busca de uma posição económica mais segura263 e que garantisse o
bem-estar familiar acabou por se transformar numa longa espera pelo retorno que, em muitos
casos, acabou por não se concretizar.
Relativamente à presença portuguesa na paróquia sabarense, embora não tenha
representado a maioria nos registos, quando comparada com a africana, aponta para a
necessidade de considerar que as estruturas familiares criadas nas Minas Gerais não foram
totalmente recriadas segundo os moldes portugueses, tendo sido o resultado de mesclas
culturais que deram origem a mais de um modelo familiar264.
Embora estejamos cientes que para o período em que está centrado este estudo,
nomeadamente o século XVIII, não existam contagens populacionais que permitam saber,
com alguma exactidão, qual era a população da vila de Sabará sabe-se que no ano de 1778 a
Vila de Sabará contava com 850265 fogos e a freguesia era composta de 7.656 almas e um
XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997; GOLDSCHMIDT, E. M., “A motivação matrimonial nos casamentos mistos de escravos”, Revista da
SBPH, Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n. 3, 1986, pp. 1-16.
262
Sobre a constituição de famílias no segmento escravo, ver SLENES, R. “Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade
familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)”, Estudos Económicos, USP, São Paulo, n.17, 1987, SLENES, R., Na Senzala
uma flor: Esperanças e recordações na Formação da Família Escrava, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; MOTTA, J. F., Corpos escravos,
vontades livres: estrutura de posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829), São Paulo, Annablume, 1999;
GRACA FILHO, A.; PINTO, Fábio Carlos Vieira; MALAQUIAS, C., “Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registos de
casamento o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850”, Varia História, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, Junho, 2007; BOTELHO, T.
“Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais, no século XIX”, População e família, São Paulo,
Humanitas, v. 1, n. 1, Jan./Jun. 1998, p. 211-234. 1994; FLORENTINO, M. & GÓES, J., A paz das senzalas; famílias escravas e tráfico
atlântico (c. 1790-c. 1850), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997; PAIVA, E., Escravidão e universo cultural na colónia: Minas
Gerais, 1716-1789, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001; LEWKOWICZ, I., Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais
(séculos XVIII e XIX), São Paulo, USP, 1992 (Tese, Doutorado História).
263
PRADO Jr., C., Formação do Brasil contemporâneo; Colónia, São Paulo, Brasiliense, 1979.
264
Sobre as diversas estruturas da famílias luso-brasileira, ver BRUGGER, S., Minas patriarcal; família e sociedade (São João Del Rei,
século XVIII e XIX), Niterói, UFF, 2002 (Tese, Doutorado História); FARIA, S., A colónia em movimento; fortuna e família no quotidiano
colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; FIGUEIREDO, L., Barrocas famílias; vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, São
Paulo, HUCITEC, 1997; FREYRE, G., Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 23 ed.
Rio de Janeiro, J. Olympio, 1984; KUZNESOF, E., “A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo,
1700-1980)”, Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n. 17, p. 37-63, set.88/fev.89; RAMOS, D., “A mulher e a família em Vila Rica
do Ouro Preto: 1754-1838”, In NADALIN, S. (Org.), História da População: estudos sobre a América Latina, São Paulo, Fundação Sistema
Estadual de Análise de Dados, 1990.
265
RESENDE, M. E., Geografia Histórica da Capitania de Minas Gerais: um estudo crítico, Belo Horizonte, Fundação João
Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994, p. 110.
92
266
Cabia aos Vigários da Vara administrar e fiscalizar o bom cumprimento das normas eclesiásticas das obrigações litúrgicas. Em função
disso, era considerado como a maior autoridade da Comarca Eclesiástica. Cf. SALGADO, G. (coord), Fiscais e meirinhos: a administração
no Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
267
No capítulo 4 veremos, com mais pormenor, o que representou a ilegitimidade infantil nos assentos paroquiais da Paróquia de São João
do Souto e Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
268
Sobre as relações de compadrio estabelecidas a partir do ritual cristão de baptismo, ver RAMOS, D. “Teias Sagradas e Profanas: O lugar
do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica durante o século do ouro”, in Varia História - Vila Rica do Pilar – Reflexões sobre Minas
Gerais e a Época Moderna, vol.31, Janeiro de 2004, p.41-68; SILVA, V. A. “Aspectos da função política das elites na sociedade colonial
brasileira: O „parentesco espiritual‟como elemento de coesão social”, ”, in Varia História - Vila Rica do Pilar – Reflexões sobre Minas
Gerais e a Época Moderna, vol.31, Janeiro de 2004, p.97-119.
93
Entre as crianças escravas baptizadas somente 123 eram legítimas o que aponta para o
facto de que seus progenitores estavam unidos matrimonialmente. No dia 25 de Outubro de
269
Sobre a reprodução espontânea no segmento escravo enquanto estratégia para manutenção dos plantéis de escravos nas Minas Gerais, ver
FURTADO, J. “Quem nasce, quem chega: o mundo dos escravos no Distrito Diamantino e no arraial do Tejuco”, in LIBBY, D., FURTADO,
J. Trabalho livre, trabalho escravo,; Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX, São Paulo, Annablume, 2006, p.223 – 250.
270
Os aspectos da origem da filiação, bem como a sua ocorrência nas duas comunidades serão analisados com maior pormenor no capítulo
4.
94
1749 nasceu Josefa filha legítima de António e Isabel. Quase 1 mês depois, no dia 24 de
Novembro Josefa recebeu os santos óleos na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os pais de Josefa eram provenientes de Angola e eram escravos de Francisco Gonçalves
Torres. Os padrinhos de Josefa foram Inácio Fernandes, escravo de Natália do Nascimento e
Clara Vieira de Sousa, livre.
Já vimos no capítulo 2 os efeitos sociais e familiares do apadrinhamento. O parentesco
espiritual271 criado atribuía aos padrinhos a responsabilidade de criação dos afilhados na
ausência dos pais.
O sacramento do baptismo possibilitava a ampliação do círculo de
parentesco entre pessoas das mais variadas classes sociais, ao tempo em que
reforçava os vínculos entre indivíduos de uma mesma família. Em uma
sociedade escravista como a de Mato Grosso, o parentesco espiritual
permitia uma aproximação entre livres e escravos, assim como entre homens
de posse e livres pobres.272
Um dos efeitos dos laços de compadrio estabelecidos talvez tenha sido a atribuição do
prenome do padrinho ou da madrinha ao baptizando. Entre os 4.178 assentos de crianças e
escravos adultos, 407 (9,7%), dos baptizandos receberam o mesmo prenome daqueles que os
apadrinhavam, que eram seus pais espirituais. No caso dos filhos naturais, isso pode ser
explicado em parte, porque na figura do padrinho poderia estar escondido seu verdadeiro pai.
Tabela 16 – Baptizandos com mesmo prenome dos padrinhos,
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, 1723 – 1782.
No dia 3 de Maio de 1745 Maria, filha natural de Luísa recebeu os santos óleos em pia
baptismal. Sua mãe, assim como Maria, eram escravas de António Francisco de Sá. Maria,
também escrava de António Francisco de Sá foi a madrinha e o padrinho Manuel Ferreira
Veiga, livre. Este mesmo comportamento foi detectado noutros estudos o que permite inferir
que o aceite do convite para figurarem como padrinhos de uma criança poderia ser
recompensado com a atribuição ao baptizando do prenome de um dos seus padrinhos.
271
Maria Adenir Peraro utiliza a expressão “toque de fé” para caracterizar o laço estabelecido entre progenitores, criança e padrinhos, pois
cabia aos últimos ensinar a doutrina cristã e os bons costumes para seu afilhado. Contudo, a autora não descarta a estratégia utilizada pelas
mães ao escolher os padrinhos de seus filhos. "A nomeação dos padrinhos podia presumir, de alguma forma, que mães e crianças fossem
amparadas, que filhos de escravas pudessem ganhar a alforria e que filhos naturais pudessem conviver com filhos legítimos, como usufruto
do parentesco espiritual". PERARO, M. A., Mulheres de Jesus no universo dos ilegítimos, Diálogos, DHI/UEM, v.4, n. 4, 2000. p. 51-75.
272
PERARO, M. A., Mulheres de Jesus no universo dos ilegítimos, Diálogos, DHI/UEM, v.4, n. 4, 2000. p. 51-75, p. 67.
95
273
GUDEMAN, S. & SCHWARTZ, S., “Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”, In.
REIS, João José (Org.), Escravidão e invenção da liberdade; estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1988..
274
Mesmo que a documentação da paróquia não esteja completa, faltando os registos referentes à primeira metade do século XVIII, a sua
análise e interpretação não poderia ser desconsiderada. Entre os anos de 1758 e 1801 foram registados 666 matrimónios na paróquia.
275
CEDIC-BH, Livro 1 de casamentos, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Apolinário Martins da
Fonseca e Luiza Maria de Mendonça, 91v, 02-10-1786.
96
se casaram na paróquia, 7 deles tiveram pelo menos uma testemunha que também era membro
do corpo militar.
Relativamente à origem dos nubentes, seria a maioria natural da paróquia sabarense,
assim como o que constatamos para a paróquia bracarense?
A tabela abaixo revela aspectos interessantes. Tanto entre os noivos, quanto entre as
noivas, a maioria tinha sido baptizada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará,
assim como no caso dos nubentes bracarenses. Todavia, verificamos que entre os noivos
pouco mais de 10% era natural de Portugal e Ilhas (dos 58 noivos naturais de Portugal
Continental, 2 eram de Lisboa, 2 eram de Beja e o restante do Arcebispado de Braga).
Tabela 17 – Local de baptismo dos nubentes da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará,
1758 - 1795
Local de Baptismo dos Número de Valor Local de Baptismo das Número de Valor
noivos ocorrências percentual noivas ocorrências percentual
África 1 0,15% África 0 0
N/c 31 4,65% N/c 30 4,50%
Outras localidades 96 14,41% Outras localidades 39 5,86%
Portugal Continental 58 8,71% Portugal Continental 0 0
Portugal, Ilhas 10 1,50% Portugal, Ilhas 0 0
Paróquias vizinhas 74 11,11% Paróquias vizinhas 49 7,36%
Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição 396 59,46% Paróquia de Nossa Senhora 548 82,28%
do Sabará da Conceição do Sabará
Total Geral 666 100,00% Total Geral 666 100,00%
CEDIC-BH. Livro1 de casamento, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. 1758-1795.
Os portugueses naturais das Ilhas eram todos dos Açores, sendo 5 de Angra do
Heroísmo e 5 da Ilha Terceira. Entre as noivas, por sua vez, as naturais da paróquia sabarense
representaram mais de 80% dos casos, além de não identificarmos a presença de qualquer
mulher portuguesa ou africana entre as nubentes. A sua ausência acaba por confirmar, por um
lado, que as mulheres portuguesas solteiras eram realmente escassas e que, provavelmente, os
casais portugueses que se estabeleceram na paróquia já cruzaram o Atlântico unidos nos
sagrados laços do matrimónio. E a ausência de mulheres africanas corrobora o que dissemos
anteriormente que o ritual do casamento talvez não tenha sido tão acessível ao segmento
escravo.
Uma vez identificada a origem dos noivos, o que dizer das uniões matrimoniais? É
importante ressaltar que o matrimónio era, no século XVIII, sobretudo uma união estratégica
entre duas famílias. Além disso, a mobilidade geográfica, aspecto característico da sociedade
mineira colonial pode ter sido um factor de interferência nas uniões matrimoniais. E neste
sentido, o que nos interessa é promover o cruzamento dos dados relativos ao local de
baptismo de noivos e noivas numa tentativa de tentar perceber como se deram as uniões
97
276
CEDIC-BH, Livro 1 de casamentos, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Domingos Francisco da
Costa e Josefa Maria da Costa, 17r, 15-09-1760.
99
principalmente, o papel desempenhado pelas mulheres277 teve que ser reequacionado, uma vez
que a ausência dos homens, em muitos casos, passou de temporária a definitiva. A ideia de
retorno com a qual muitos homens partiram do Minho com destino à América acabou não
sendo vivenciada sendo necessário, deste modo, que o quotidiano dos actores sociais em
ambas as margens do Atlântico fosse sensivelmente modificado, adaptado.
No século XVIII foram 969 indivíduos residentes na Paróquia de São João do Souto
que deixaram suas últimas vontades registadas em testamentos. Destes, 545 foram deixados
por mulheres e o restante, 424 por homens. É interessante notar a maioria feminina entre
aqueles que deixaram testamento e, ainda, o facto de terem sido as solteiras aquelas que
reuniram cerca de 40% dos testamentos, percentagem que só foi ultrapassada pela dos homens
casados (46%). Ao longo das próximas páginas analisaremos situações de mulheres que, em
função da ausência dos maridos (seja por ocasião da morte, seja em função da emigração) se
viram frente à necessidade de assumirem a chefia dos lares e a gerência dos bens.
Ao analisarmos, separadamente, homens e mulheres podemos ainda identificar quais
as suas actividades profissionais, o domicílio, de quem eram filhos, se eram legítimos ou
naturais, quem eles instituíram como herdeiros e se tinham filhos. Entre as solteiras, que
somaram um total de 195, 26 delas eram criadas, 1 beata e 1 porteira de fora do Convento.
Para as demais não constava referencia à actividade profissional. Seja entre as solteiras,
casadas ou viúvas a residência da maioria das mulheres distribuiu-se entre as ruas de São
Marcos, do Souto, Chãos de Baixo, do Carvalhal, da Fonte da Carcova e no Campo da Vinha.
Apenas 8 mulheres solteiras declaram em seus testamentos serem mães. Assim o fez
Francisca Vieira, moradora na Rua do Carvalhal que declarou, em seu testamento no ano de
1755, que era:
[…] solteira e não tenho ascendentes vivos nem filhos legítimos, e somente
um filho ilegítimo que houve do Dr. Custódio Barroso de Carvalho que se
acha monge de São Jerónimo e se chama Padre Mestre Dr. Frei Bernardo
Salvador de Santa Teresa o qual instituo por meu universal herdeiro de todos
os meus bens e herança e se para haver de suceder-me for necessário
legitimação não obstante estar ele legitimado por parte de seu pai peço a sua
majestade e a sua santidade o legitimem e hajam por legitimado pois eu
assim o quero e assim é minha vontade. 278
Sobre a presença de familiares “nos Estados do Brasil” 4 mulheres fazem a referencia
á ausência de algum membro da família no outro lado do Atlântico. Maria Caetana, moradora
na Rua de São Marcos, declarou em seu testamento no ano de 1779 que “[…] tenho dois
277
SCOTT, A. S., “Mulheres que ficam: o papel da mulher no contexto da emigração portuguesa nos séculos XVIII e XIX”, In LIMA, .,
José Miguel; ALMEIDA, M. (Org.), Violência e Direitos: 500 Anos de Lutas, Curitiba, Aos Quatro Ventos, 2001, p. 117-123.
278
ADB, Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, Testamento de Francisca Vieira, cota 4494, 11.03.1755.
100
irmãos nos Estados do Brasil para onde foram há muitos anos um é o Padre José Pinto e o
outro António Pinto Braga e este tenho noticia é falecido da vida presente"279.
Ao analisar o perfil das viúvas, dentre as 150 residentes na Paróquia de São João do
Souto que deixaram testamento 109 tinham filhos, sendo todos legítimos. Mas é a
problemática da ausência dos homens em função da emigração para o Brasil que atribuiu às
viúvas um papel, até então pouco ou nada vivenciado, o de administradoras dos bens da
família. Em 11 testamentos de viúvas houve o registo da ausência de algum membro da
família no Brasil. Os filhos representaram a maioria, aparecendo em 10 casos. É interessante
observar que para enviar os filhos para o Brasil era necessário um alto investimento financeiro
da família. A supressão da legítima que, por direito cabia a esses filhos, foi bastante frequente
em função de já terem sido gastas altas quantias no envio e sustento dos mesmos no Brasil.
Assim o fez Teresa de Araújo, viúva que ficou de Bento Soares, moradora na Rua dos Chãos
debaixo. Mãe de três filhos: Miguel Soares, Francisco Soares e José Soares. O primeiro tinha
sido enviado para Lisboa e os demais para o Brasil. A testadora declara então em seu
testamento que os filhos não receberiam a legítima por já ter sido “[…] gasto muito mais do
que lhes cabe para envia-los para Lisboa e Brasil”280.
A ausência no Brasil foi uma das problemáticas abordadas no testamento de Maria
Madalena Alves de Araújo, casada com Jerónimo Ferreira da Paz e moradora na Rua dos
Chãos, em Braga. A testadora deixou expressas suas últimas vontades em documento aberto
na última década do século XVIII. A partida do marido para o Brasil, conforme declaração de
Maria Madalena Alves, acabou atribuindo a ela a responsabilidade pela criação dos filhos
como podemos ver na declaração por ela feita:
[…] para haver de se ordernar o meu filho padre Manoel José de Alvares fiz
património em uma morada de casas em que de presente moro citas na rua
dos chãos debaixo desta cidade por procuração autentica que meu marido me
mandou para o efeito de ele se ordenar e nela lhe nomeou o seu terço. [...]
declaro mais que por causa das minhas moléstias e não poder trabalhar fui
vendendo pouco a pouco alguns móveis do meu casal que tinha e juntamente
as minhas peças de ouro e a prata que me pertencia por meu marido me não
mandar nada.
A declaração de Maria Madalena feita em testamento possui, na verdade, dois pontos a
serem observados e que estão ligados directamente à presença do marido no Brasil: a
necessidade imposta à mulher de assumir a chefia do lar, assim como a educação dos filhos, o
estado de abandono em que a mesma se encontrava na altura em que fez seu testamento ao
279
ADB, Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, Testamento de Francisca Vieira, cota 6225, 10.03.1779.
280
ADB, Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, Testamento de Tereza de Araújo, cota 8724, 22.12.1731.
101
apresentar a necessidade de vender os seus bens pessoais para manutenção do lar. Há ainda a
dependência legal da mulher casada que, para gerenciar os bens do casal na ausência do
marido, somente poderia actuar com uma procuração do mesmo. Vemos assim, que a
emigração esteve presente no quotidiano das famílias bracarenses alterando,
significativamente, o seu viver. Mas, como dissemos anteriormente muitos foram os
portugueses que cruzaram o Atlântico para nunca mais retornarem para suas famílias em
Portugal. A incerteza da morte ou a sua certeza fez com que as suas mulheres assumissem,
momentaneamente ou definitivamente, a chefia dos lares. Em 29 de Janeiro de 1773 foi aberto
o testamento com que faleceu Maria da Cunha, viúva de José Pereira da Costa Castelo Branco
e moradora na Rua do Anjo, na Paróquia de São João do Souto. Da sua união com José
Castelo Branco não nasceram herdeiros, motivo pelo qual Maria da Cunha instituiu como
herdeira a sua sobrinha, Teresa Maria da Cunha. Mas, ao longo da leitura do seu testamento
percebemos que o destino de José Castelo Branco no Brasil era do conhecimento de Maria da
Cunha, na medida em que a testadora declarou, em determinada altura, que "[…] por
informação certa de seus procuradores da Vila de São João Del Rei, Rio das Mortes consta a
meação que me pertence por falecimento de meu marido 3.500 cruzados"281
Tendo como enfoque o universo quotidiano que cercou os filhos ilegítimos nas duas
margens do Atlântico, o que dizer da actuação das mães que, na iminência da morte, tiveram
que amparar seus filhos e garantir-lhes o bem-estar? Seis mulheres assumiram, em
testamento, a maternidade ilegítima, sendo 5 solteiras e 1 casada. Ana Domingues foi uma das
mulheres solteiras residentes na paróquia sabarense que assumiu, em testamento, que era mãe
de uma filha natural que, na altura do falecimento de Ana Domingues, já também tinha filhos.
Declaro tive uma filha natural por nome Isabel Álvares casada que foi com
Bento Pereira da dita Freguesia de São João Batista de Lamas de Mouro da
qual lhe ficaram sete filhos a saber: quatro raparigas e 3 rapazes cujos nomes
não declaro por não estar deles certa; e sendo coisa que por qualquer via me
pertença haver ou herdar alguma coisa instituo por meus herdeiros os ditos
meus netos.282
Apesar de Ana Domingues declarar que “[…] de meu não tenho senão duas saias a
saber uma de camelão verde, e outra de baeta azul, um capote curto de baeta azul e umas
roupinhas” a testadora instituía seus netos como herdeiros de quaisquer bens que, após o seu
falecimento, pudessem haver. E tal somente se tornou possível porque Ana Domingues
perfilhou, por meio do seu testamento, sua filha Isabel. A perfilhação da filha em um
281
ADB, Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, Testamento de Maria da Cunha, cota 6230, 29.01.1773, fl. 2v.
282
ADB, Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, Testamento de Ana Domingues, cota 882, 03.11.1797, fl. 1v.
102
instrumento público acabou por garantir aos seus netos o direito de serem nomeados como
herdeiros.
As mulheres casadas representaram, depois das solteiras, a maioria dos testamentos
(172). Neste grupo houve uma testadora, Ana Maria, casada com José de Araújo e moradora
no Campo dos Remédios, que declarou em testamento ser mãe de uma filha ilegítima, D.
Josefa Maria. Segundo Ana Maria, “[…] antes de casar e no tempo de solteira tive por
fragilidade humana uma filha chamada D. Josefa Maria a qual houve de Manuel José de
Araújo e Vasconcelos sendo também solteiro já defunto morador que foi na Rua dos Pelames
desta cidade.” D. Josefa Maria foi instituída como herdeira dos bens de Ana Maria e a terça
parte, da qual Ana Maria poderia dispor livremente, ficou para o seu marido, desde que
respeitasse as seguintes condições: “[…] deixo o dito terço a meu marido não se tornando ele
a casar porque casando segunda vez lhe não deixo o tal terço e em tal caso o deixo a dita
minha filha e com mais condição que ele dito meu marido dará um habito de São Francisco a
meus pais Manuel de Sepúlveda e outra a minha mãe Teresa Gomes por suas mortes”. É
interessante observar a forma como Ana Maria impôs suas vontades condicionando a
atribuição da terça ao marido à satisfação das mesmas.
Na outra margem do Atlântico, algumas mulheres também assumiram a gerência do
seu lar. Neste caso, entretanto, perceberemos que mais uma vez a composição étnica das duas
paróquias se reflectiu entre as mulheres que deixaram expressas suas últimas vontades em
testamento. No caso da paróquia sabarense veremos algumas mulheres forras utilizando um
instrumento do quotidiano cristão e branco para registar suas últimas vontades. O dizer então,
frente à presença das forras entre as testadoras, da posição que assumiram enquanto
mantenedoras do lar?
No universo dos testamentos de residentes da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará que analisamos neste trabalho que totalizaram 196 documentos, 15283
foram registados por mulheres. Ao descortinarmos o perfil dessas mulheres verificamos que,
somente 1 era natural da Paróquia de Sabará, 3 naturais da África, 3 naturais da Bahia, 1 da
Cidade de São Paulo, 2 do Rio de Janeiro, 2 portuguesas (sendo 1 da Madeira e a outra dos
Açores), 1 de Pernambuco. É interessante observar a diversidade relativamente à naturalidade
das testadoras. Relativamente ao estado matrimonial dessas mulheres, 7 eram solteiras, 7
casadas e 1 viúva.
283
Duas testadoras não informaram em seus testamentos a sua origem.
103
consensuais apresentavam-se, muitas vezes, tão estáveis quanto aquelas oficializadas pela
legislação civil e eclesiástica. No seu seio os bens eram acumulados 287 e a prole beneficiada
com suas legítimas288. Apesar dos esforços da Igreja em oficializar as relações conjugais, vê-
se um clero relativamente flexível nas aplicações das normas conciliares.
Embora não esteja entre o rol de testadoras que analisamos, não poderíamos deixar de
referenciar a relação estável, apesar de ilegítima, que foi vivida entre o Contratador de
Diamantes, João Fernandes de Oliveira e Chica da Silva como um caso exemplar de como um
casal concubinado podia estabelecer uma relação estável. A união durou 17 anos (1753 a
1770) e deu origem a 13 filhos naturais. O nome que Chica da Silva passa a assinar poucos
anos depois de se unir a João Fernandes de Oliveira, Francisca da Silva de Oliveira, pode ser
um dos sinais de que sua relação estava longe de ser instável e passageira.
As atitudes de João Fernandes demonstram sua intenção em conferir à
relação com Chica da Silva os ares de um matrimónio estável mas não legal
___
o qual deveria somente ser constituído entre indivíduos de mesmo status
___
, como a alforria precoce, a promoção para que ela acumulasse
património, o uso que Chica fez do sobrenome Oliveira, o número elevado
de filhos, cujos nomes se ancoraram nas tradições familiares dos pais, e a
longevidade do relacionamento.289
Apesar de alguns casais conseguirem atribuir às suas uniões características que em
muito se aproximavam daquelas pretendidas para as uniões conjugais sancionadas pela Igreja,
as visitações episcopais foram responsáveis pela introdução de uma estratégia familiar vista
em várias partes das Minas Gerais. A família fraccionada, conceito utilizado por Luciano
Figueiredo, é utilizado para caracterizar os membros de núcleos familiares que, receosos da
punição que lhes podia ser atribuída em função da ausência de laços matrimoniais, optaram
por fragmentar o relacionamento por mais de um domicílio.
A disseminação dessa forma de organização entre famílias de tipo nuclear,
por sua vez, vem caracterizar o que possivelmente pode representar um novo
sentimento de família, desligado do domicílio e um pouco mais acanhado
em tornar de domínio público os mais simples rituais familiares. Empurrar
287
A respeito da preservação dos bens acumulados pelos indivíduos, na Lei de 25 de Junho de 1766, vê-se o Rei "preocupado" com a
maneira como estavam sendo feitos e administrados os Testamentos do seu Reino. "[...] me foi presente o excesso, a que tem chegado
sucessivos, e frequentes abusos de ultimas vontades, feitos nestes meus Reinos, e domínios pelas muitas pessoas que se arrogaram a direcção
dos Testamentos, insinuando-se artificiosamente no espírito dos testadores; umas vezes inabilitados pelas suas decretas idades, outras
enfraquecidas pela agravação das suas doenças; e outras vezes iludidos debaixo de pretextos na aparência pios, e na realidade dolosos, e
incompatíveis com a humanidade e caridade Cristã das quais é sempre inseparável o afecto entre as pessoas conjuntas pelo sangue para se
prestarem recíprocos socorros, e alimentos com preferência aos que são estranhos". A lei determina que os bens deixados pelo Testador
passem aos herdeiros legítimos, e na ausência deles sejam transferidos para a Câmara Real. A preocupação é que os bens não sejam
dilapidados por maus administradores, ou até mesmo que sejam adjudicados à alma, sendo a Igreja a maior beneficiária. Ordenações
Filipinas, Lei de 25 de Junho de 1766.
288
FIGUEIREDO, L., Barrocas famílias; vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997; PRAXEDES, V., A
teia e a trama da "fragilidade humana": os filhos ilegítimos em Minas Gerais, 1770-1840, Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 2003,
(Dissertação, Mestrado História); PEREIRA, A., O sangue, a palavra e a lei: faces da ilegitimidade na Vila de Sabará (1713-1770), Belo
Horizonte, Departamento de História, FAFICH/Universidade Federal de Minas Gerais, 2004, (Tese de Mestrado).
289
FURTADO, J. F., Chica da Silva e o contratador dos diamantes; o outro lado do mito, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 119.
105
290
FIGUEIREDO, L. R., Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais do século XVIII, São Paulo, HUCITEC, 1997, p.157.
291
ACBG/MO/IPHAN, CPO, Testamento de Joana Luísa do Vale, Códice 32, fls. 60 - 64, 22-05-1777.
106
africanas deram origem a um contingente considerável de mulatos. Estes, por sua vez,
vivenciaram os dois lados da moeda que envolve o nascimento com o estigma da
ilegitimidade e da escravidão. Foram, num primeiro momento aceites, ou melhor dizendo,
tolerados. Num segundo momento, sofreram o desamparo, a marginalização expressa,
sobretudo, na proibição de ocuparem postos na administração municipal das câmaras. E como
não poderíamos analisar a problemática da ilegitimidade e seus efeitos no quotidiano
bracarense e sabarense sem percorrermos a trajectória de homens e mulheres que estiveram
directamente relacionados com a prole ilegítima por serem seus progenitores abordamos os
assentos paroquiais, neste sentido, os quais forneceram informações preciosas para tentarmos
descobrir quem foram os pais dos filhos ilegítimos que analisaremos nos próximos capítulos.
As relações de compadrio e sociabilidade estabelecidas entre pais, padrinhos, afilhados (no
caso dos assentos de baptismo) e das testemunhas (no caso das actas de casamento), podem
ter influenciado o destino daquelas crianças.
107
Com base nas definições quanto à categoria da filiação presente nas Ordenações
Filipinas elaboramos o quadro acima com o objectivo de apresentar, claramente, as categorias
de filiação legítima e ilegítima. Nota-se as diferenciações significativas que existiam entre os
108
filhos ilegítimos naturais292 e espúrios293. Os primeiros, por serem frutos da relação entre
solteiros que, por sua vez, não tinham impedimento para contraírem matrimónio e
legitimarem os filhos nascidos antes do acto, conferia-se-lhes a possibilidade de integração na
vida familiar. Já os espúrios tinham um caminho mais difícil a trilhar. Devido à
impossibilidade dos progenitores se unirem pelo sagrado laço do matrimónio, a sua inserção
no quotidiano familiar e social tornava-se muito dificultada. Ainda dentro da categoria dos
espúrios existiam três variações de crianças. As relações estabelecidas entre religiosos ou
mesmo aquelas em que um dos membros fosse religioso davam origem às crianças sacrílegas.
Quando um ou ambos os progenitores eram casados o fruto desta relação era intitulado
adulterino. E aquelas crianças nascidas de relações entre pessoas com parentesco até o 4º grau
ou mesmo com parentesco por afinidade eram chamadas incestuosas.
Veremos que, legalmente, as distinções dentro da categoria de filhos ilegítimos, foram
determinantes para garantir ou vetar o acesso à herança. Neste contexto, a legitimação por
subsequente matrimónio ou por meio de escrituras e/ou cartas de legitimação e, até mesmo,
por meio dos testamentos foram alguns dos meios encontrados pelos progenitores para tentar
garantir aos filhos ilegítimos algum bem-estar. Além dos aspectos enunciados veremos que
também nas questões relativas ao reconhecimento e acesso à herança pelos filhos ilegítimos a
diferenciação social entre nobres e plebeus, característica do Antigo Regime foi fundamental.
Em alguns casos, o veto do filho ilegítimo aos bens e honras dos pais foi determinado pelo
grupo social ao qual estes pertenciam. Assim, aqueles pais que possuíam ao estatuto de nobres
dependiam do parecer Régio para reconhecer como legítimos seus filhos naturais, uma vez
que somente estes eram passíveis de serem reconhecidos. Tal processo exigia a apresentação
de pedidos de Legitimação à Mesa do Desembargo do Paço 294, em Portugal. O
reconhecimento da prole ilegítima por intermédio do Rei e seus conselheiros era um processo
292
O Padre Raphael Bluteau caracteriza o filho natural como aquele "[...] que o pai teve antes de casado", distinguindo-os dos bastardos.
BLUTEAU, R. (Padre), “Filho Natural”, in Vocabulário Português e latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, vol.
V, p. 684.
293
O padre Raphael Bluteau definiu espúrio como sendo aquele que é filho de mulher pública e cujo pai se ignora. “O autor da Nobiliarquia
Portuguesa com razão, fundada na Ordenação pag. 177, mostra que os filhos espúrios pela mesma razão que bastardos gozao da nobreza de
seus pais e avos.” Cf. BLUTEAU, R. (Padre), “Espúrio”, in Vocabulário Português e latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de
Jesus, 1712, vol. III, p. 191.
294
Segundo as Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 3, § 1, cabia aos desembargadores do Paço despachar "[...] cartas de legitimação,
confirmações de perfilhamento e de doações que algumas pessoas fizerem a outras". Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, foi
criada uma outra Mesa do Desembargo do Paço (adaptada à colónia), que passou a reunir as cartas de legitimação, somando um total de 114
processos, até o ano de 1822. Para a Capitania de Minas Gerais foram contabilizadas pela equipe da professora Maria Beatriz Nizza da Silva
10 petições de legitimação. Cf. SILVA, M. B., "A documentação do Desembargo do Paço no Arquivo Nacional e a história da família",
Revista Acervo, Rio De Janeiro, Arquivo Nacional, v. 3 (1988), N. 2, p. 37 - 53.
109
que, às vezes, poderia dar origem a litígios familiares, devido à herança295 envolvida e às
possibilidades de divisão da mesma entre muitos herdeiros o que, por sua vez, acabaria por
acarretar a dilapidação dos bens. Ressalta-se, entretanto, que a legitimação à qual se refere a
legislação é somente a que for atribuída pelo rei, conhecida como carta de legitimação296.
[...] a perfilhação, chamada também nas nossas leis de legitimação, é o ato,
pelo qual um pai, ou mãe, voluntariamente reconhece seus filhos ilegítimos,
e um favor concedido aos filhos, e um meio, oferecido aos pais, de exonerar
a sua consciência e de melhorar a sorte dos inocentes frutos de seus erros.297
As cartas de legitimação apresentam-se, neste sentido, como um instrumento capaz de
atribuir aos filhos naturais o acesso à herança dos pais. É interessante observar, na análise
desta documentação, o discurso proferido pelos pais para justificar o reconhecimento do filho.
E, ainda, as testemunhas por eles escolhidas para confirmar a paternidade. Oportunamente
analisaremos o uso feito pelos progenitores das cartas e escrituras de legitimação, nas duas
paróquias analisadas. O objectivo é perceber as razões que levaram pais e mães a utilizarem
este documento como forma de garantir aos filhos ilegítimos o acesso à herança.
Todavia, os filhos naturais de plebeus tinham maior flexibilidade no tratamento e no
acesso à herança. O seu reconhecimento, na maior parte das vezes, poderia ser feito por meio
de testamento ou qualquer outro instrumento público. Na ausência de herdeiros legítimos
(ascendentes ou descendentes) o testador poderia dispor livremente dos seus bens atribuindo-
os, inclusivamente, aos filhos naturais, como podemos constatar no trecho abaixo.
E se o pai for peão, suceder-lhe-ão, e virão à sua herança igualmente com os
filhos legítimos, se o pai os tiver. E não havendo filhos legítimos, herdarão
os naturais todos os bens e herança de seu pai, salvo se ao pai tomar, da qual
poderá dispor, como lhe aprouver. E isto mesmo haverá lugar no filho, que o
homem solteiro peão houver de alguma escrava sua, ou alheia se por morte
de seu pai ficar forro.298
O título acima requer uma análise minuciosa não só do seu conteúdo, mas da
terminologia nele utilizada e dos aspectos sociais e morais inseridos no texto. O trecho aborda
na verdade dois aspectos importantes no que toca à filiação intitulada natural: a possibilidade
295
Define-se herança como "A universalidade dos bens que alguém deixa por ocasião de sua morte, e que os herdeiros adquirirem. É o
conjunto de bens, o património, que alguém deixa ao morrer". BEVILÁQUA, C., O Direito das Sucessões, 5 ed. Rio de Janeiro, Ed. Paulo de
Azevedo, 1955, p.120.
296
Por meio dos pedidos de legitimação é possível analisar aspectos como: estatuto legal do pai (nobre, plebeu ou eclesiástico); condição
étnica e social da mãe; a circunstância em que se deu a concepção do filho (concubinato, adultério, incesto ou sacrilégio); existência de
ascendentes ou descendentes (os chamados herdeiros forçados); tipo de bens a serem herdados pelo filho legitimado; as testemunhas
arroladas, bem como o seu status e relação existente com o legitimador.
297
ROCHA, M. A. C., Instituições de Direito Civil Portuguez, Rio de Janeiro, Livraria Cruz Monteiro/Jacintho Ribeiro dos Santos Editor,
1914, p. 203.
298
Ordenações Filipinas, Livro IV, título 92, p. 939/940.
110
299
"O filho natural havido de mulher que tenha ajuntamento com muitos homens no mesmo tempo, é insucessível ao pai mesmo que peão;
não por exclusão legal, pois hoje ab-rogado o concubinato ele é equiparado ao filho natural, mas por não poder provar a paternidade. E
portanto se no tempo suficiente para a concepção e parto, a mãe não teve ajuntamento com outro homem, ainda que o tivesse antes ou depois,
o filho podendo provar a paternidade, sucede ao pai peão, como filho verdadeiramente natural". Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 92,
nota 1, p.941.
300
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 92, § 2, p. 943
301
Cf. Ordenações Filipinas, LIVRO 4, Título XCII, Como o filho peão sucede a seu pai, p. 939-941.
302
Sobre as alterações introduzidas no Direito de Família na América Portuguesa com a ascensão do Marquês de Pombal, ver WEHLING,
A.; WEHLING, M., “O direito de família no mundo luso-brasileiro; Período pombalino e pós-pombalino”, Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 404, p. 537-546, 1999; WEHLING, A.; WEHLING, M., “Racionalismo ilustrado e prática jurídica
colonial. O direito das sucessões no Brasil”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro - Brasília, v. 401, p. 1607-
1625; WEHLING, A.; WEHLING, M., “Despotismo Ilustrado e Uniformização Legislativa: O Direito Comum Pombalino e Pós-
Pombalino”, Ciências Humanas, Rio de Janeiro, v. 20, p. 143-160, 1997.
303
WEHLING, A.; WEHLING, M., “Racionalismo ilustrado e prática jurídica colonial. O direito das sucessões no Brasil”, Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro - Brasília, v. 401, p. 1607-1625, p. 1067.
111
orfanológicos304 voltados para as questões relativas às partilhas dos bens nos inventários entre
os herdeiros descendentes fossem eles legítimos ou ilegítimos. A Orphanologia Pratica de
António de Paiva e Pona e as Adicções305 impressas em 1761 são obras de referência para
aqueles que se dediquem à análise das partilhas entre os herdeiros no século XVIII.
Embora a temática da partilha dos bens entre os herdeiros descendentes (legítimos ou
ilegítimos) seja abordada posteriormente, cabe-nos adiantar que também neste aspecto
perceberemos mais distanciamentos do que aproximações na maneira de viver a ilegitimidade
nas duas paróquias analisadas. Os moradores de Sabará e de São João do Souto enfrentarão de
maneira bastante distinta a presença dos filhos ilegítimos, sobretudo no que toca às questões
das partilhas dos bens.
No contexto religioso as Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1697) e as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1703) foram os códigos eclesiásticos
responsáveis por regulamentar o viver religioso em Portugal e na América Portuguesa,
respectivamente. Ambos os códigos derivam do décimo nono Concílio ecuménico realizado
entre os anos de 1545 e 1563, chamado Concílio de Trento306 que, foi considerado por alguns
estudiosos do tema como “[…] o acontecimento de maior projecção histórica do século
XVI”307
Num contexto em que a regulação dos corpos estava relacionada com a boa gerência
não somente da sociedade, mas também da política e da economia, veremos que uma das
aspirações de maior peso no seio da Igreja Católica foi o sacramento do casamento, sendo este
o rito que mereceu algumas modificações. A partir da normalização dos laços matrimoniais
com o Concílio de Trento vê-se instaurar na sociedade ocidental um modelo de casamento
indissolúvel, monogâmico e extremamente burocratizado308. Os banhos matrimoniais309 eram
304
PONA, A. P., Orphanologia practica em que se descreve tudo o que respeyta aos inventários, partilhas, e mais dependências dos
pupillos, Lisboa, Joseph Lopes Ferreyra, 1713.
305
PONA, A. P., Addicçoens à orphanologia pratica... Porto, Manoel Pedroso Coimbra, 1761.
306
Num primeiro momento pode-se pensar que a ocorrência do Concílio de Trento foi uma resposta católica à ameaça protestante. Por outro
lado, a reunião dos religiosos cristãos pode ser vista como a confirmação de que já há algum tempo a Igreja Católica ressentia de algumas
mudanças.
307
GUIMARÃES, J., A evolução normativa do Casamento nas Constituições Sinodais: Arcebispado de Braga e da Baía, 1505 – 1719,
Braga, Universidade do Minho/ICS, 1999, Dissertação de Doutoramento, p. 49.
308
Muitos são os estudos que atribuem à burocratização e aos altos custos do processo matrimonial a causa para os baixos índices de uniões
legais. Uma das exigências era a imposição, aos nubentes, da comunicação de sua intenção de casamento ao pároco. De posse dessa
informação, cabia ao pároco dar início ao processo matrimonial. Cf. GOLDSCHMIDT, E., “A motivação matrimonial nos casamentos mistos
de escravos”, Revista da SBPH: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n. 3, 1986, pp. 1-16; FIGUEIREDO, L., O avesso da
memória..., 1999; VAINFAS, R., Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1997;
VILLALTA, L.; A "torpeza diversificada dos vícios"; Celibato, Concubinato e Casamento no Mundo dos Letrados de Minas Gerais (1748-
1801), São Paulo, USP, 1993, (Dissertação, Mestrado História).
112
uma das exigências estabelecidas e que deveriam ser rigorosamente cumpridas com o
objectivo de que os nubentes não cometessem o adultério ou a bigamia. Para a união do casal
o primeiro passo do pároco era, por três domingos consecutivos, no decorrer da missa,
anunciar aos fiéis o possível casamento. Eram os chamados banhos matrimoniais310. Na visão
religiosa, a constituição de famílias nos preceitos cristãos era uma das maneiras de combater e
afastar a luxúria tão disseminada entre a população. Disciplinar a sexualidade significava
voltá-la para a "[...] propagação humana, ordenada para o culto e honra de Deus"311
A partir do Concílio de Trento, Segundo Eliana Goldshimidt o sacramento do
matrimónio assumiu uma "[...] natureza pública e institucional. Só era considerado legítimo,
aquele celebrado pela Igreja perante o pároco e testemunhas, precedido pela publicação de
três banhos (proclamas ou pregões) e seguido nos livros paroquiais"312
A bigamia, o adultério313 e o incesto causado pela consanguinidade e afinidade em
alguns graus de parentesco314 eram alguns dos desvios punidos com a pena da excomunhão.
Neste contexto, qual seria o destino das crianças nascidas de pais bígamos, adúlteros ou
incestuosos? Como era aceite, no foro religioso, o nascimento de uma criança fora dos laços
matrimoniais?
Em Portugal continental foi por meio das Constituições Sinodais do Arcebispado de
Braga que as determinações tridentinas foram introduzidas, mesmo que de maneira bastante
morosa. É nas normativas que regulavam o baptismo, um dos momentos em que é possível
identificar a natalidade ilegítima, que se podem encontrar os entraves colocados aos filhos
ilegítimos, tendo merecido uma especial atenção os filhos de clérigos:
[…] Acontecendo, que se haja de baptizar o filho de pessoa Eclesiástica,
havido por tal, por evitar escândalo, se não baptize na Igreja onde o tal
Eclesiástico servir de Beneficiado, Abade, Capelão ou Cura […] e será
309
Sobre os banhos matrimoniais na América Portuguesa, ver FARIA, ., “O casamento Tridentino na Colónia - Os processos de banhos
matrimoniais do século XVIII”, In: Anais do I Seminário Internacional sobre Fontes Documentais para a História do Brasil Colonial, Rio
de Janeiro, UERJ, 1998 (Resumo).
310
O Padre Raphael Bluteau conceitua os banhos matrimoniais como sendo "pregão que o pároco lança na citação, para ver se há quem
ponha impedimento, ao casamento. Chama-se pregão porque se apregoa. Estes banhos são três em três dias Santos, neste sentido Banho se
deriva de Barn, que em alemão quer dizer Publicação. Solemnis futurarum nuptiarum denunciatio ou promulgatio, onis". Cf: BLUTEAU, R.
(Padre), “Diocese”, in Vocabulário Português e latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, Vol. II, p. 35.
311
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), Livro Primeiro, Título 57, p. 107.
312
GOLDSCHMIDT, E., Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista 1719-1822, São Paulo, Annablume, 1998, p. 33.
313
Relativamente a este pecado, ver Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1697), Título LX, Do Adultério, Constituição Única,
p. 657/659.
314
Vale à pena relembrar que o baptismo era um dos rituais religiosos a partir do qual era criado um parentesco espiritual entre o
baptizando, seus padrinhos e seus pais, que, por sua vez, se configurava como um impedimento para que posteriores relações afectivas
fossem estabelecidas. Cf: CSAB (1697), Título II, Do Sacramento do Baptismo, Constituição II, Onde e em que modo se há de ministrar o
Santo Baptismo, p. 14.
113
baptizado em outra Igreja Paroquial que mais perto estiver sem pompa e sem
mais acompanhamento que dos padrinhos e de quem o levar.315
É interessante observar, nas determinações eclesiásticas, o facto de que as crianças
sacrílegas seriam baptizadas sem pompa ou acompanhamento, cabendo às crianças o essencial
do ritual que era receber, pelas mãos de um religioso, o sacramento por imersão sendo ditas as
palavras: Ego te baptizo in nomine Patris, Filis et Spiritus Sancti: Ámen. Na América
portuguesa, tanto a legislação eclesiástica, como a civil assumiram a necessidade de moldar a
realidade colonial aos seus dogmas para que o seu desempenho fosse profícuo. No entanto, a
sua tentativa de implementação em todo o território, no âmbito das Dioceses316 nem sempre
atingiu o objectivo pretendido.
[...] o Código Filipino e as Constituições Primeiras impuseram
juridicamente, no Brasil, as determinações tridentinas que alteraram
profundamente os princípios ocidentais no que diz respeito à moral e à
sexualidade. Portugal estabeleceu, em terras brasileiras, uma linha legislativa
derivada do Concílio de Trento na qual o que não era virtude, era pecado, o
que não competia ao espírito, pertencia à carne, envolvendo a humanidade
em um combate maniqueísta em torno da salvação.317
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a Igreja Católica manteve, como um de seus
pilares da acção catequizadora na América portuguesa, o incentivo ao matrimónio entre os
seus fiéis. Tal acção fez-se sentir por meio da perseguição aos concubinários, amancebados e
desviantes, como podemos constatar no Título 61 do Livro Primeiro:
Conforme o direito e Sagrado Concílio Tridentino, aos prelados pertence
conhecer dos leigos amancebados, quanto à correcção e emenda somente
para os tirar do pecado, e em ordem a este fim podem proceder contra eles
com admoestações e penas, até com efeito de se emendarem.318
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia eram compostas por cinco
volumes. No quinto livro tratavam-se os crimes praticados tanto por eclesiásticos, quanto por
leigos e onde podemos identificar os efeitos da natalidade ilegítima naquela sociedade. Deste
modo, pode-se comprovar que no tocante ao tratamento dispensado aos filhos ilegítimos
existe uma aproximação entre os preceitos do Direito Canónico, e as regras jurídicas inseridas
nas Ordenações Filipinas.
Tanto a regulamentação, como o discurso da Igreja Católica assentava na
culpabilização. Por isso, a imoralidade e a determinação de que alguns comportamentos
315
CSAB (1697), Título II, Do Sacramento do Baptismo, Constituição II, Onde e em que modo se há de ministrar o Santo Baptismo, p. 12.
316
Termo ou território da jurisdição espiritual do Bispo ou Arcebispo. Cf. BLUTEAU, R. (Padre), “Diocese”, in Vocabulário Português e
latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, vol. III, p. 233.
317
GOLDSCHMIDT, E., Convivendo com o pecado na sociedade paulista colonial (1719-1822), São Paulo, Annablume, 1998, p. 27.
318
CPAB (1707), Livro Primeiro, Título 61.
114
tinham um peso pecaminoso foram um dos principais veios da orientação católica. Neste
contexto, o combate ao concubinato foi um dos principais objectivos do catolicismo pós-
tridentino. Sabe-se que quatro eram as finalidades do casamento: 1ª) a procriação e educação
da prole; 2ª) a mútua fidelidade e sociedade nas coisas domésticas; 3ª) a comunhão espiritual
dos cônjuges; 4ª) o remédio para a concupiscência. Uma vez que a procriação era a finalidade
prima do casamento, as relações sexuais que não a tivessem como objectivo eram
classificadas como pecado e deveriam ser punidas.
O que ficou claro com a análise das legislações eclesiástica e civil é que, na prática,
ambas acabaram por dar um enquadramento complementar no contexto civil e religioso à
categorização e distinção das crianças entre legítimas ou ilegítimas (e nesta categoria entre
naturais ou espúrios). O estado matrimonial, um dos sete sacramentos da religião católica, era
o responsável por determinar a que categoria pertenceria a criança. As crianças cujos pais
eram unidos in face ecclesia eram, perante a lei dos homens e a lei de Deus, filhos legítimos.
As crianças cujos progenitores não estivessem unidos nos sagrados laços do matrimónio eram,
portanto, ilegítimas. Entre os ilegítimos vimos, no quadro VI (p. 109), que esta categoria se
dividia ainda em dois tipos: os naturais e os espúrios que, por sua vez, alcançavam direitos
bastante distintos, sendo os filhos naturais, em alguns aspectos, equiparados aos legítimos.
Uma vez cientes da abordagem feita sobre a ilegitimidade no contexto civil e religioso
passamos para uma analise pormenorizada dos nascimentos ilegítimos no quotidiano familiar
dos residentes da Paróquia de São João do Souto e da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará. Num primeiro momento a intenção é quantificar os filhos ilegítimos nas
duas paróquias e, num segundo momento, analisar a extensão que o nascimento dessas
crianças assumiu não somente no quotidiano das famílias mas também nos das comunidades
às quais pertenciam. É necessário relembrar que as duas paróquias analisadas tinham
composições sociais bastante distintas. Apesar de ambas pertencerem ao Império Português e
estarem sujeitas aos mesmos códigos civil e religioso, a representatividade do nascimento
ilegítimo bem como a forma como tais crianças circulavam no quotidiano de ambas as
paróquias foi marcado pela alteridade.
319
MARCILIO, M., “Levantamentos censitários da fase proto-estatistica do Brasil”, Anais de Historia, Assis-SP, v. 9, p. 63-75, 1977;
MARCILIO, M., “Industrialização e População”, Estudos Históricos, Marilia-SP, v. 9, p. 1-8, 1973; MARCILIO, M., “Dos registos
paroquiais à Demografia Histórica do Brasil”, Anais de Historia, Assis-SP, v. 2, p. 81-100, 1970.
320
MARCILIO, M., “Tendências e estruturas dos domicílios na Capitania de S. Paulo (1765-1828), segundo as listas nominativas de
habitantes”, Revista de Estudos Económicos, IPE-USP, v. 2, n. 6, p. 131-143, 1972.
321
O conceito de patriarcalismo introduzido no Brasil por Gilberto Freyre foi largamente difundido pelos historiadores por longo tempo, não
se mostrou adequado para a análise das famílias encontradas em muitas regiões da América portuguesa. Com a introdução desse conceito, a
família brasileira passou a ser associada como resultado da adaptação da família portuguesa ao ambiente colonial, cercada de características
patriarcais e conservadoras. Somando-se a isso, tem-se a correlação entre família patriarcal e família extensa. O padrão de família do período
colonial era aquela em que a figura do pai/senhor era omnipotente e omnisciente, em suas mãos concentrava-se a administração dos bens e
das pessoas que compunham seu núcleo familiar (fossem aqueles ligados a ele por laços consanguíneos ou não). FREYRE, Gilberto, Casa
Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 23 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1984.
322
SAMARA, E., “A família negra no Brasil”, Revista de Historia, São Paulo, n. N. 120, p. 27-44, 1989; SAMARA, E., “Relações do
quotidiano: as famílias e seus escravos e agregados”, Leopoldianum, Santos, v. XV, n. 42, p. 15-25, 1988.
323
SILVA, M. B., Cultura no Brasil Colônia, Petrópolis, Vozes, 1981. FIGUEIREDO, L., O avesso da memória: estudo do papel,
participação e condição social da mulher no século XVIII mineiro, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1984. CORRÊA, M. (Org.), Colcha
de retalho: estudos sobre a família no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1982; COSTA, I., “Ocupação, povoamento e dinâmica populacional”,
In COSTA, I. & LUNA, F.V. Minas Colonial economia e sociedade, São Paulo, Pioneira, 1982, p. 1-30; LONDOÑO, F., “El concubinato y
la iglesia en el Brasil Colonial”, Estudos CEDHAL, n.2, São Paulo, 1988.
324
"A palavra testamento vem da Latina testamentum, que segundo as Institutas, T. 20 assim se chamava por ser um ato destinado a
testemunhar a vontade de cada indivíduo. [...] O testamento, conforme define o Jurisconsulto Modestino, é uma disposição ou declaração
justa, ou solene da nossa vontade, sobre aquilo que queremos se faça depois de nossa morte". Cf: Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 80,
nota 3, p. 900. Sobre o uso dos testamentos, no Brasil, como fonte para a História da Família, ver CAMPOS, A., Casamento e Família em
São Paulo colonial, 1. ed. São Paulo, Paz e Terra, 2003; FARIA, ., A Colónia em Movimento, Fortuna e Família no Cotidiano Colonial, 1.
ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LEWKOWICZ, I., Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais, Séculos XVIII E
XIX, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1994, Dissertação de Doutoramento; MATTOSO, K., Família e sociedade na Bahia do século
XIX, São Paulo, Corrupio, 1988; SAMARA, E., A Família na sociedade paulista do século XIX, São Paulo, Universidade de São Paulo,
1980, Dissertação de Doutoramento.
325
MARCILIO, M., A Cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850, 1ª ed. São Paulo, EDUSP- Pioneira, 1973; MARCILIO,
M. (org.), Demografia Histórica, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1977; MARCILIO, M., População e Sociedade: Evolução das
sociedades pré-industriais, Petrópolis, Vozes, 1984; MARCILIO, M., Caiçara: Terra e População. Estudo de Demografia Histórica e da
História Social de Ubatuba, 1ª ed. São Paulo, Paulinas, 1986.
116
de Mesquita Samara326, Iraci Del Nero da Costa327, Maria Beatriz Nizza da Silva328, entre
outros foram responsáveis por modificar a imagem da família brasileira.
Se num primeiro momento o uso das fontes seriadas direccionou os estudos sobre a
família329 para uma vertente marcadamente demográfica, actualmente, os trabalhos têm se
dedicado ao estudo da vida doméstica e dos laços de parentesco e afinidade estabelecidos por
todos aqueles que compunham o grupo doméstico. Enquanto pela vertente demográfica
podem ser recuperadas informações sobre o número de casamentos realizados, a incidência de
filhos legítimos e ilegítimos, ou os índices de masculinidade nas comunidades, relativamente
aos aspectos sociais a análise permeia o âmbito das relações sociais, religiosas e económicas
estabelecidas pelos membros da comunidade e não somente do grupo doméstico. Faz parte
ainda dessa vertente a análise da família num contexto privado, ou seja, relativamente às
questões relacionadas às sucessões patrimoniais, deserdações, etc.
Relativamente à concepção e nascimento ilegítimos330 a documentação contemplada
por este estudo demonstrou que algumas vilas pertencentes à região das Minas Gerais foram
aquelas que apresentaram índices mais elevados, atingindo quase 50% dos baptismos de
crianças.
Ao compararmos os índices de ilegitimidade identificados nesses 59 anos de registos
da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará (1723-1757 e 1770-1782), com
aqueles encontrados para as outras paróquias da América Portuguesa nos séculos XVIII e XIX
é possível perceber a extensão que a ilegitimidade teve naquela paróquia. Veremos a seguir
que a elevada taxa de natalidade ilegítima esteve relacionada com a composição da população
residente não somente na paróquia, mas na Capitania de Minas Gerais. A maioria africana
326
SAMARA, E., “Las familias brasileras y su historia”, In RODRIGUEZ, P. (Org.), La familia em Iberoamerica 1550-1980, Bogotá,
Convénio Andrés Bello, Universidad Externado De Colômbia, 2004, P. 468-491; SAMARA, E., “A História da família”, In SAMARA, E.
(Org.), Historiografia Brasileira em debate, 1 Ed., São Paulo, Humanitas, 2002, p. 195-197; SAMARA, E., “Demografia histórica, História
da Família e relações de género”, In JOBSON, J.J.; FONSECA, L.A. (Org.), Brasil-Portugal: História, Agenda para o milénio, 1 Ed.,
Bauru/São Paulo; Portugal, EDUSC; FAPESP; ICCTI, 2001, p. 461-471; SAMARA, E. (Org.) & LOPES, E. (Org.), “História da Família no
Brasil: Bibliografia comentada”, In CEDHAL - Série fontes de pesquisa, n. 1. 1, Ed. São Paulo, CEDHAL, 1998; SAMARA, E., Família e
grupos de convívio, São Paulo, Marco Zero/ANPUH, 1989; SAMARA, E., A Família Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1983;
327
COSTA, I., Minas Gerais: estruturas populacionais típicas, São Paulo, EDEC, 1982; COSTA, I., Vila Rica: população (1719-1826), São
Paulo, IPE-USP, 1979; COSTA, I., As populações das Minas Gerais no século XVIII: um estudo de demografia histórica, São Paulo, FEA-
USP, 1978.
328
SILVA, M. B., Sexualidade, Família e Religião na Colonização do Brasil, Lisboa, Livros Horizontes, 2001; SILVA, M. B., História da
Família no Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; SILVA, M. B., Vida Privada e Quotidiano no Brasil - Na Época de D.
Maria I, Lisboa, Editorial Estampa, 1996; SILVA, M. B., Sistema de casamento no Brasil Colonial, São Paulo, T a Queiroz / Edusp, 1984.
329
SAMARA, E., “A família no Brasil: História e Historiografia”, História Revista, Goiânia, v. II, n. 2, p. 07-21, 1997; SAMARA, E.,
“Tendências actuais da História da Família no Brasil”, In ALMEIDA, Â. (Org.). Pensando a Família no Brasil, Rio de Janeiro, Espaço e
Tempo/ UFRRJ, 1989, p. 25-36; LEWKOWICZ, I., Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX), São
Paulo, USP, 1992, (Tese, Doutorado História); FARIA, S., A colónia em movimento: fortuna e família no quotidiano colonial, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998; SILVA, M. B., História da família no Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
330
A documentação que nos permitiu identificar a filiação ilegítima residente na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará é
composta, essencialmente, de registos paroquiais. Para este estudo utilizamos os assentos de baptismo e as actas de casamento.
117
que, na prática, pouco ou nenhum acesso teve ao ritual do matrimónio fez com que as taxas de
ilegitimidade estivessem, quase sempre, superiores a 40%.
Relativamente à questão da ilegitimidade numa perspectiva comparada com outras
paróquias da América portuguesa, percebemos, com base no quadro abaixo, que a Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição do Sabará esteve entre aquelas com maior número de baptismos
de crianças ilegítimas.
Vemos na tabela abaixo que Vila Rica, em 1804, e a Paróquia Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, na segunda metade do século XIX, são as que têm percentuais de ilegitimidade mais
próximos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Contudo, em ambas o
fenómeno ocorre no século XIX. Para o século XVIII, os dados da tabela demonstram que a
Paróquia de Raposos, também em Minas Gerais, foi a que teve índices de ilegitimidade mais
próximos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
É importante ressaltar que o termo “ilegítimo” não foi utilizado nos assentos de
baptismos. O termo “natural” é aquele que sistematicamente aparece em todos os registos já
que a identificação do filho como natural não comprometia a honra da mãe. Tal possibilidade
de registo estava prevista no código canónico em vigor: "E quando o baptizado não fora
havido de legítimo matrimónio também se declarará no mesmo assento do livro o nome de
seus pais, se for coisa notória, e sabida, e não houver escândalo"331.
331
CPAB (1707), Livro Primeiro, Título XX, p. 30.
118
Nota-se que a preservação da honra dos pais era uma das maiores preocupações frente
à concepção e ao nascimento de filhos ilegítimos. As Constituições da Bahia determinavam
que "[...] havendo escândalo em se declarar o nome do pai, só se declarará o nome da mãe, se
também não houver escândalo, nem perigo de o haver"345. Além disso, os espúrios
(sacrílegos, adulterinos ou incestuosos) também não foram citados como tais, como era
determinado no título XI, § 40 das Constituições da Bahia:
[...] Por se evitarem alguns inconvenientes, mandamos, que constando de
certo e publica notícia, sem preceder inquirição alguma, ser a criança, que se
332
A Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará manteve, ao longo do século XVIII, um valor percentual bastante elevado no que
se refere ao baptismo de crianças ilegítimas. Seja para a primeira metade do século, ou para a segunda (apesar das constantes e prolongadas
lacunas documentais), cerca de 48% das crianças baptizadas na paróquia era fruto de relações não sancionadas pela Igreja Católica. Eram,
por isso, filhos ilegítimos. Cf. PRAXEDES, V. A teia e a trama da fragilidade humana: os filhos ilegítimos em Minas Gerais 1770/1840,
Belo Horizonte, Departamento de História/FAFICH, 2003, (Tese de Mestrado); PEREIRA, A., O sangue, a palavra e a lei: faces da
ilegitimidade na Sabará setecentista, 1713-1770, Belo Horizonte, Departamento de História/FAFICH, 2004, (Tese de Mestrado).
333
PRAXEDES, V. A teia e a trama da fragilidade humana: os filhos ilegítimos em Minas Gerais 1770/1840, Belo Horizonte,
Departamento de História/FAFICH, 2003, (Tese de Mestrado), p. 92 e 93.
334
COSTA, I., Minas Gerais: estruturas populacionais típicas, São Paulo, EDEC, 1982. p. 44.
335
PERARO, M., Bastardos no Império; família e sociedade em Mato Grosso no século XIX, São Paulo, Contexto, 2001, p. 129.
336
KUBO, E., Aspectos demográficos de Curitiba, 1801-1850, Curitiba, 1974, Tese Mestrado em História, Curitiba, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, p. 76.
337
SBRAVATI, M., São José dos Pinhais, 1776-1853: uma paróquia paranaense em estudo, Tese Mestrado em História, Sector de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 1980, p. 95.
338
O estudo pioneiro empreendido por Maria Luiza Marcílio para a cidade de São Paulo, tendo como base os registos paroquiais que
contemplavam os anos de 1750 a 1850, revelou que, entre os 21.681 assentos de baptismos analisados, 23,2% se referiam a filhos ilegítimos.
Cf.: MARCILIO, M., A Cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850, 1ª ed. São Paulo, EDUSP- Pioneira, 1973, p. 157.
339
VENÂNCIO, R., “Ilegitimidade e concubinato no Brasil colonial: Rio de Janeiro e São Paulo”, São Paulo, CEDHAL-USP, 1986,
(Estudos Cedhal) nº 01, p. 12.
340
MARCÍLIO, M., Caiçara: terra e população - estudo de demografia histórica e da história social de Ubatuba, São Paulo,
Paulinas/CEDHAL, 1986, p. 210
341
BACELLAR,, Família e sociedade em uma economia de abastecimento interno (Sorocaba, séculos XVIII e XIX), Doutorado em
História, São Paulo, FFLCH/USP, 1995.
342
VENÂNCIO, R., “Ilegitimidade e concubinato no Brasil colonial: Rio de Janeiro e São Paulo”, São Paulo, CEDHAL-USP, 1986,
(Estudos Cedhal nº 01), p. 12.
343
KUSNESOF, ., "Ilegitimidade, raça e laços de família no Brasil do século XIX: uma análise da informação de censos e baptismos para
São Paulo e Rio de Janeiro", In NADALIN, Sérgio Odilon (et alii), História e população: estudos sobre a América Latina, São Paulo,
ABEP, 1990, p. 171.
344
LOPES, Eliane Cristina, O Revelar do Pecado: Filhos Ilegítimos na São Paulo do Século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998, p. 204.
345
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), Livro Primeiro, Título XX, §73, p. 30.
119
Nota-se, a partir da tabela acima, que o baptismo de filhos naturais até meados do
século XVIII sofreu significativos aumentos, estando, até este período, sempre muito superior
ao baptismo de crianças legítimas. Entre os anos de 1723 e 1732 a escassez de mulheres
brancas aptas para a contracção do casamento (queixa apresentada com bastante recorrência
ao Rei) pode ser a explicação para o baixo índice de baptismo de filhos legítimos. Este
movimento somente sofre uma inversão entre os anos de 1742 e 1757 quando o baptismo de
crianças legítimas passa de 131 (no período anterior) para 962 naquela época.
A alteração verificada no momento dos baptismos do segundo para o terceiro período
merece ser analisado pormenorizadamente. Vale a pena lembrar que o casamento entre
pessoas de estatuto diferente não era permitido, ou seja, um homem livre não poderia, no
346
CPAB (1707), Livro Primeiro, Título XI, §40, p. 16
120
século XVIII, casar-se com uma mulher escrava ou forra. Também o registo de baptismos de
filhos naturais apresentou um significativo aumento. A partir da tabela abaixo é possível
analisar, isoladamente, os assentos de baptismo tendo em conta os segmentos da sociedade
(livres, escravos ou forros) sabarense que, por meio daquele ritual, introduziu seus filhos na
comunidade cristã.
Enquanto nos períodos entre 1723-1732 e 1733 – 1741 o número total de baptismos
rondou à volta de 513 e 1.137, respectivamente, vemos que foram baptizados 2.736 crianças
entre 1742 e 1757. A alta do número de baptizados ocorreu nos três segmentos da sociedade,
sendo entretanto mais expressivo entre os livres. Enquanto entre os anos de 1723 e 1741
foram baptizadas 243 inocentes, somente no período de 1742 a 1757 receberam o primeiro
sacramento 936 crianças. Este aumento relaciona-se directamente com o aumento do número
de uniões sacramentadas pela igreja o que, por sua vez, indica um aumento da população
feminina livre e branca na Vila de Sabará. Entre 1723 – 1732 foram 437 registos, entre 1733 –
1741 o número cresceu para 956 registos e, finalmente, atingiu 1735 registos entre os anos de
1742 e 1757. Estes dados revelam que a população da paróquia aumentou entre os primeiros
anos da década de 1740 e os últimos da década de 1750, embora este período seja apontado
como aquele em que a extracção aurífera sofreu uma significativa diminuição. O facto é que,
ao que tudo indica, este foi o período de fixação de um elevado contingente de pessoas na
vila.
A partir da tabela abaixo é possível perceber a distribuição dos registos de baptismos
entre livres, cativos e forros, já que recupera além da origem da filiação, também a sua
distribuição por sexo e estatuto legal. É importante ressaltar que a exposição de crianças, no
contexto escravista, era uma maneira de garantir à criança a liberdade. Isso porque em função
da impossibilidade de determinar a maternidade e a paternidades da crianças, todos aqueles
que eram expostos eram considerados, a posteriori como livres. A utilização desta
prerrogativa explica o não aparecimento de expostos nas categorias de cativo e forro.
121
347
Optamos por incluir neste estudo as actas de casamento da Paróquia de Sabará apesar da série documental não estar completa, abarcando
somente o período que compreende os anos de 1758 – 1795.
122
contracção dos laços matrimoniais obtinha-se a união dos grupos domésticos aos quais
pertenciam os nubentes. Mas a grande questão que queremos abordar é saber até que ponto as
crianças nascidas de uniões não sacramentadas pela Igreja Católica, ao atingirem a idade de
casar, tiveram a oportunidade de, por meio do matrimónio, apagar o estigma da ilegitimidade
inserindo-se plenamente nas vivências quotidianas da comunidades. Ou o estigma da
ilegitimidade impossibilitou-os de contrair matrimónio, prolongando-se, por essa razão, a
marginalização destes indivíduos a sua não assumpção no convívio comunitário?
No que toca à ilegitimidade a leitura das actas de casamento justifica na medida em
que a origem da filiação era uma das informações presentes naquele registo. Foram registados
666 casamentos no livro paroquial, dos quais 154 ocorreram entre os anos de 1758 – 1767;
somente 1 foi registado entre os anos de 1768 – 1777; 193 foram registados entre os anos de
1778 – 1787 e no último período, entre os anos de 1788 – 1795 foram registadas 193 actas de
casamento.
Em relação à filiação dos nubentes podemos observar alguns aspectos interessantes
que apontam para a maneira como os filhos ilegítimos poderiam ser integrados no quotidiano
setecentista mineiro.
Tabela 23 – Perfil dos nubentes no que toca à categoria da filiação, Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará, 1758 – 1795
Noiva
Noivo
Natural Legítima Enjeitada Incógnita n/c
A partir da tabela acima percebe-se que, a união entre noivos de categorias de filiação
distintas não foi tão invulgar e impossível. A união entre um noivo intitulado como natural e
uma noiva de origem legítima abarcou cerca de 9,9% dos registos. Manuel Torres de
123
Araújo348, natural e baptizado do Lugar do Pombal, Freguesia de São Lourenço (Braga) foi
um dos que dentre os filhos naturais se uniu nos sagrados laços do matrimónio com uma
noiva cuja origem da filiação era legítima. Manuel de Araújo era filho natural de Domingas
Martins e casava-se, pela primeira vez, com Mariana Gouveia da Conceição. Esta, por sua
vez, era nascida e baptizada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Filha
legítima de Bartolomeu Gonçalves de Melo e Felipa da Silva ambos, ainda vivos. A união foi
celebrada no dia 16 de Janeiro de 1760 pelo Padre Manuel Leite Vieira e teve como
testemunhas: o Capitão Manuel Teixeira Coelho, José Ferreira Guimarães e luís Teixeira
Coelho. A presença entre os nubentes de homens e mulheres cujo estatuto legal era livre
também se verifica entre aqueles homens (filhos naturais) que se uniram matrimonialmente
com mulheres (filhas legítimas). Dentre os 149 noivos identificados 125 eram livres, 21 eram
forros e somente 3 eram escravos.
Ao analisarmos a possibilidade inversa, ou seja, a união matrimonial entre um filho de
origem legítima e a noiva intitulada natural, esta representou cerca de 13,8% dos
matrimónios. Bernardo José Freire349 foi um dos casos que nos chamou atenção. Era filho
legítimo do Doutor Manuel Freire Rocha e de Maria Pedroso Freire (ambos falecidos) natural
e baptizado na Freguesia de Santo André de Castelo, Comarca de Penafiel, Bispado do Porto,
mas residente na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Casou-se no dia 31 de
Julho de 1759 com Luísa Rodrigues da Cruz, mulher forra filha natural de Domingos
Rodrigues da Cruz e Luísa Rodrigues. Entre aqueles que testemunharam a união estava o
Alferes Manuel Vieira Duarte. A partir dos casos relatados percebemos que houve uma
tendência da sociedade sabarense para integrar no quotidiano sócio familiar alguns daqueles
que nasceram de relações não oficializadas pela Igreja Católica. A presença, entre as
testemunhas, de homens detentores de patentes militares aponta para uma tendência, entre os
nubentes e suas famílias, de escolher como testemunhas figuras de algum destaque na
comunidade o que poderia implicar numa maior aceitação daquela união no seio da sociedade
sabarense.
Mas, na pratica, o que significou a concepção e o nascimento de filhos ilegítimos nos
três segmentos sociais da população da paróquia, nomeadamente entre os livres, escravos e
forros? É interessante observar que enquanto nos assentos de baptismos a maioria das crianças
348
CEDIC-BH, Livro 2 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Manuel Torres de
Araújo e Mariana Gouveia da Conceição, fl 14r, 16-01-1760.
349
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Bernardo José Freire e
Luísa Rodrigues da Cruz, fl 10r, 31-07-1759.
124
intituladas como naturais tinha nascido de ventre escravo, entre os nubentes constatamos a
maioria livre entre aqueles que assumiram, no momento do matrimónio, não serem frutos de
relações conjugais legítimas. Este facto revela, sobretudo, a impossibilidade dos cativos de
aceder ao ritual do matrimónio com a mesma frequência com que acederam ao primeiro
sacramento católico.
Embora os nubentes expostos350 tenham representado, percentualmente, um numero
bastante reduzido (1,9% das actas de casamento consultadas), é interessante observar que o
facto de terem sido enjeitados não os impediu de aceder ao casamento, constituírem um outro
grupo doméstico e se integrarem no quotidiano social dos residentes da paróquia sabarense.
No dia 3 de Outubro de 1745 foi baptizado351 na Capela da Lapa, Francisco Teixeira Pinto de
Morais352 que tinha sido exposto em casa de Manuel de Andrade, tendo como padrinhos o
Alferes Francisco Homem del Rei e Perpetua Maria de Vasconcelos. Passados mais de 40
anos Francisco Teixeira Pinto de Morais apresentou-se juntamente com Francisca Gonçalves
perante o Coadjutor António Gonçalves Pimentel para que pudessem então casar-se. A origem
desconhecida de Francisco Teixeira Pinto de Morais foi confrontada com a de sua noiva, uma
vez que Francisca Gonçalves era filha legítima de Manuel Gonçalves Barbosa e Domingas
Nunes. Apesar disso, ao que tudo indica, tal distinção entre os nubentes não foi empecilho
para que a união matrimonial acontecesse, sendo ainda uma das testemunhas o Intendente do
Ouro em Sabará António José Godinho Caldeira353. A análise do perfil desses nubentes fica
ainda mais completa ao agregarmos à variável estatuto legal com a origem da filiação.
Percebemos, então, com base na tabela abaixo que, tanto entre as mulheres, quanto
entre os homens, houve o predomínio dos nubentes livres e legítimos. Em seguida vê-se os
noivos e noivas que eram filhos naturais e também com estatuto legal livre. Há, entretanto,
entre as noivas casos que se tornam merecedores de uma análise pormenorizada. A presença
de noivas frutos de uniões legítimas e escravas (em contraposição à ausência de noivos nas
mesmas condições), bem como de noivas ilegítimas e também escravas.
350
É importante salientar, entretanto, que os nubentes enjeitados (9 mulheres e 9 homens) foram considerados livres, visto que, como antes
referimos, pois como se sabe por não ser possível determinar quem eram os progenitores, tornava-se também sem efeito a tentativa de
determinação do estatuto legal.
351
CEDIC-BH, Livro 2 Baptismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Assento de baptismo de Francisco Teixeira
Pinto de Morais, fl 35r, 03-10-1745.
352
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Francisco Teixeira
Pinto de Morais e Francisca Gonçalves, fl 87r, 14-02-1786.
353
Intendente do Ouro na Comarca do Rio das Velhas.
125
Tabela 24 – Origem da filiação versus estatuto legal entre os nubentes da Paróquia de Nossa Senhora
da Conceição do Sabará, 1758 - 1795
Noivo Ocorrências Noiva Ocorrências
Legítimo/livre 287 Legítimo/livre 265
Legítimo/Escravo - Legítimo/Escravo 7
Legítimo/Forro 12 Legítimo/Forro 6
Natural/Livre 126 Natural/Livre 151
Natural/Escravo 3 Natural/Escravo 14
Natural/Forro 21 Natural/Forro 26
Enjeitado/Livre 9 Enjeitado/Livre 9
Incógnito/Livre 1 Incógnito/Livre 5
Não
Não consta/Escravo 149 consta/Escravo 140
Não consta/Forro 29 Não consta/Forro 27
Não consta/Livre 29 Não consta/Livre 16
Total 666 Total 666
CEDIC-BH, Livro de Casamentos, 1758-1795, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
354
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Basilio de Sousa
Cabral e Justiniana de Sousa Cabral, fl 67v, 04-03-1783.
355
A adjudicação do apelido do proprietário ao escravo era um comportamento bastante vulgar como forma de identificar o cativo dentro de
um determinado plantel.
356
Os estudos que vêm sendo desenvolvidos a respeito da inserção dos cativos no quotidiano branco e cristão apontam para o facto de que a
união matrimonial entre cativos do mesmo plantel pode ter sido uma estratégia utilizada pelo proprietários para impedir fugas e
manifestações de desagrado dos cativos com a escravidão. Entre os privilégios concedidos aos escravos unidos pelos sagrados laços do
matrimónio estava a atribuição de moradias exclusivas para o novo casal, além do direito de cultivarem alimentos para a subsistência do
novo grupo doméstico constituído. Sobre as possibilidades conferidas aos escravos de formação de núcleos familiares, ver SLENES, R., Na
Senzala Uma Flor: Esperanças e recordações na Formação da Família Escrava. Brasil Sudeste, Século XIX , Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999.
357
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Pedro e Josefa, fl 81r,
25-05-1785.
126
modus vivendi branco, cristão. A união matrimonial seria uma escolha dos cativos? Ou uma
imposição do seu senhor?
Ao considerar o perfil dos nubentes retratado e ainda tendo em conta o facto de que 92
homens, filhos legítimos, se uniram nos sagrados laços matrimoniais com filhas naturais seria
interessante mapear a origem geográfica dos noivos. Ao debruçarmo-nos sobre este aspecto,
constatamos que a maioria dos nubentes (48) foi baptizada na própria Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará. Todavia, foi possível identificar 29 homens naturais de
paróquias mineiras vizinhas a Sabará. Também se casaram na paróquia 9 homens naturais de
Portugal (Continental e Ilhas) e 6 homens que tinham sido baptizados em outras regiões da
América Portuguesa. Nota-se, portanto, a presença de 44 noivos que não pertenciam,
inicialmente, à comunidade da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. A
mobilidade humana, nomeadamente a masculina, característica bastante marcante dos
habitantes das Minas é, também aqui, confirmada. E talvez seja justamente o facto de não
serem naturais da paróquia que tenha facilitado a união de filhos legítimos com filhas
naturais.
Todavia, se não considerarmos somente a extensão da ilegitimidade na Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição do Sabará, mas também o acesso ao matrimónio obtido por
escravos, forros e livres, não podemos deixar de concluir que no universo dos nubentes, se
verificaram uniões entre noivos que pertenciam a estatutos diferentes, ou seja, uniões
matrimoniais entre escravos e livres; escravos e forros; livres e forros; escravos e forros. A
fluidez social de que tanto se fala ao abordar o comportamento quotidiano dos moradores das
Minas também se verificou no momento das uniões matrimoniais. Em relação a esta temática,
é importante ter em conta que as uniões matrimoniais no século XVIII não estavam
circunscritas à união dos nubentes. A realização de um matrimónio, alem de consagrar a união
de duas pessoas, dava origem à união de duas famílias por meio dos laços de compadrio e à
formação de um novo núcleo doméstico inserido numa teia de redes familiares e de
vizinhança.
358
Foi possível identificar mais 4 actas de casamento entre homens escravos e mulheres livres.
359
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de José Pinto de Araújo e
Domingas Alves do Espírito Santo, fl 40v, 01-08-1764.
360
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Bento e Faustina, fl 3r,
01-08-1764.
128
contraíram o matrimónio Pedro Ferreira da Costa361 e Joaquina de Oliveira. Ele era forro,
filho natural de Josefa Maria de Azevedo, morador na Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição de Sabará apesar de ter sido baptizado na paróquia vizinha Santa Luzia. A noiva
tinha sido baptizada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará onde também
residia e era filha natural de Rita Lopes. A cerimónia foi realizada na Igreja Matriz da
paróquia e celebrada pelo Coadjutor António Gonçalves Pimentel e teve como testemunhas
José Correia Silva e Francisco António Martinho. O caso de Pedro e Joaquina encaixa entre
aqueles que buscaram estabelecer uniões matrimoniais com pessoas que tinham a mesma
origem da filiação, neste caso ambos eram filhos naturais mesmo que com estatuto legal
distinto.
Mas vimos que foram registados ainda 5 uniões matrimoniais entre homens forros e
mulheres livres e filhas legítimas. Entre os casais identificados estão António Machado
Pinto362 e Maria Lopes de Brito que se casaram no dia 15 de Outubro de 1764 na Igreja
Matriz da paróquia. A noiva era filha legítima de Jacob Lopes de Brito e Helena Maria Lopes
de Brito. Ambos tinham sido baptizados na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará onde também residiam. Nesta cerimónia estiveram presentes os Alferes Francisco
Pinto Moreira e José Isidoro. Nota-se assim, um perfil mais permissivo das famílias no que
tocava, essencialmente, à sua união com homens escravos ou forros.
Houve ainda 23 homens livres que se casaram com mulheres escravas e forras. Entre
eles esteve Florêncio Pereira Guimarães363 que se uniu, in face eclesia, no dia 21 de Fevereiro
de 1789, com Narciza Pacheco da Conceição. Ambos moradores na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará. Ele, era filho natural de António Pereira Guimarães e de
Maria, sua escrava. Ela, era escrava e filha natural de Felipa (cativa de Mariana Pacheco). A
consulta ao assento de baptismo364 de Florêncio Pereira Guimarães indica-nos um aspecto
interessante. Florêncio foi baptizado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará no dia 10 de Abril de 1737. Apesar de na acta de casamento Florêncio declarar ser
filho natural de António Pereira Guimarães, esta informação não se confirma no assento de
baptismo, onde somente consta o nome de sua mãe, Maria. Mas o interessante é constatar que
361
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Pedro Ferreira da
Costa e Joaquina de Oliveira, fl 59r, 20-06-1782.
362
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de António Machado
Pinto e Maria Lopes de Brito, fl 41r, 15-10-1764.
363
CEDIC-BH, Livro 1 Casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Acta de casamento de Florêncio Pereira
Guimarães e Narciza Pacheco da Conceição, fl 108r, 21-02-1789.
364
CEDIC-BH, Livro 1 Baptismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Assento de baptismo de Florêncio Pereira
Guimarães, fl 277v, 10-04-1737.
129
António Pereira Guimarães, a quem Florêncio nomeou como pai era, não somente
proprietário de sua mãe como também era possuidor de Florêncio. Todavia, a consulta ao
testamento de António Pereira Guimarães365 acabou por confirmar a suspeita que tínhamos.
Florêncio era filho da escrava Maria, e foi reconhecido como filho e alforriado em testamento
pelo pai. Tal facto confirma-se na medida em que Florêncio Pereira Guimarães declarou-se
como forro no assento de casamento. O facto de ambos carregarem consigo tanto o estigma da
escravidão, quanto o da ilegitimidade poderia levar-nos a concluir que a sociedade mineira
colonial não era tão permissiva quanto se propaga. Contudo, a alteração no perfil de Florêncio
acabou por confirmar tal hipótese. È certo que Florêncio Pereira Guimarães era escravo e
filho natural ao nascer, mas tal situação modifica-se quando seu pai, António Pereira
Guimarães assumiu a paternidade de Florêncio e seus irmãos. Embora tenham permanecido
com o estigma da ilegitimidade (pois seus pais não se uniram nos sagrados laços do
matrimónio, situação que os legitimaria), o estigma da escravidão foi suspenso com o
reconhecimento da paternidade, uma vez que o Direito Natural impedia que um pai livre
tivesse um filho como cativo.
A finalidade deste estudo é analisar comparativamente os impactos da natalidade
ilegítima em duas comunidades pertencentes ao Império Português. Se, num primeiro
momento se tende a considerar que as comunidades analisadas aproximavam-se,
principalmente no que toca à formação das famílias e à vivência quotidiana, a análise da
documentação revelou que as mesmas tinham mais pontos de distanciamento do que de
convergência, sobretudo na vivência da natalidade ilegítima. Vimos que na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará a proporção de crianças ilegítimas dentro do universo dos
que foram baptizados era bastante elevada, atingindo quase 50% dos registos. Neste contexto,
o viver da ilegitimidade no quotidiano dos membros daquela paróquia, embora regulado por
códigos civil e religioso bastante rígidos apresentou uma tendência à tolerância dos filhos
ilegítimos. Teria sido este comportamento também vivenciado pelos residentes da Paróquia de
São João do Souto, em Braga? O viver da ilegitimidade na paróquia sabarense teria sido um
ponto de aproximação com a paróquia bracarense?
365
António Pereira Guimarães era português natural da Freguesia de São Romão, Termo da Vila de Guimarães, Arcebispado de Braga. Ele
era solteiro e filho legítimo de Marco Francisco e Maria Francisca. Teve ao todo 10 filhos naturais: João, Veríssimo, Manuel, Serafim,
Josefa, Joana Pereira e Eusébia Pereira eram filhos da escrava Teresa de nação Mina. Florêncio e António eram filhos da escrava Maria. Com
excepção do filho Manuel, deserdado pelo pai por ter atentado contra a sua vida, os demais filhos receberam parte da legítima do seu pai.
ACBG/MO/IPHAN, Testamento de António Pereira Guimarães, Códice 10, fls. 01 - 07v, 09-07-1755.
130
media de 6,2% de baptismo de ilegítimos no total dos baptizados, enquanto que na vizinha
zona urbana de Guimarães essa media chegou a 13,04%.
132
Tabela 26 – Percentual de ilegítimos sobre o total de baptismos em Portugal
Décadas Guimarães Guimarães São Pico dos Alvito Cambeses371 Bougado372 Lanheses373 Rebordãos Poiares Cardenha S. Pico
(zona (zona João do Regalados369 (Alentejo)370 (Trás-os- (Trás-os- (Trás-os- Catarina (Açores)378
urbana)368 rural) Souto, Montes)374 Montes)375 Montes)376 (Lisboa)377
Braga
1700 13,4 5,9 5,9 9,9 20,0 14,4 5,7 6,7 2,3 6,2 6,5 9,9 3,1
1710 14,3 13,1 4,1 9,9 20,0 19,2 5,0 11,0 4,2 7,3 11,3 10,7 3,1
1720 12,3 18,8 6,1 9,9 26,0 9,5 6,0 9,8 6,7 7,2 2,5 13,7 3,1
1730 15,7 17,4 8,3 9,9 23,0 12,0 10,6 5,8 5,2 3,7 8,1 - 3,1
1740 14,6 13,6 6,2 9,9 21,0 14,9 7,3 6,6 5,0 3,2 14,1 - 3,1
1750 13,4 9,5 8,5 6,6 9,0 8,7 8,9 10,1 4,9 6,2 15,4 - 4,0
1760 14,0 10,4 7,5 6,6 10,0 9,9 6,3 11,5 6,3 8,3 12,5 - 4,0
1770 12,5 7,6 4,7 6,6 14,0 6,0 9,6 6,4 12,6 11,3 16,9 - 4,0
1780 11,8 7,0 6,4 6,6 16,0 11,5 6,2 12,1 6,0 9,9 6,0 - 4,0
1790 8,1 5,8 4,0 6,6 5,0 16,8 3,3 8,9 - 9,7 7,0 - 5,9
Média 13,01 10,91 6,2 8,25 16,4 12,29 6,89 8,89 5,91 7,3 10,03 11,43 3,74
Fonte: AMORIM (1987); ARAÚJO (1992); MIRANDA (1993); SILVA (1993); ALVES (1986); BRETTEL (1991); AMORIM (1983); AMORIM (1980); NETO (1959); AMORIM (1992)
368
AMORIM, Maria Norberta, Guimarães de 1580 a 1819; estudo demográfico, Lisboa, INIC, 1987.
369
ARAÚJO, Maria Marta de, O Pico de Regalados e a sua população, policopiado, Braga, Universidade do Minho, 1992.
370
MIRANDA, Fernando António da Silva, Estudo demográfico de Alvito S. Pedro e anexa, Junta de Freguesia de Alvito, Barcelos, 1993.
371
SILVA, Maria Manuela Teixeira Ferreira, “A ilegitimidade em Cambeses S. Tiago”, Actas da 3ª Sessão do Congresso da ADEH, Braga, 1993.
372
ALVES, Jorge Fernandes, Uma comunidade rural no Vale do Ave; S. Tiago de Bougado 1650 – 1849 (Estudo Demográfico), Faculdade de Letras do Porto, 1986.
373
BRETTEL, Caroline B, Homens que partem, mulheres que esperam; consequências da emigração numa freguesia minhota, Lisboa, Dom Quixote, 1991.
374
AMORIM, Maria Norberta, Rebordãos e a sua população nos séculos XVII e XVIII; estudo demográfico, Lisboa, Imprensa Nacional, 1973
375
AMORIM, Maria Norberta, “São Pedro de Poiares de 1561 a 1830”, in Brigantia, Bragança, 1983.
376
AMORIM, Maria Norberta, Método de exploração dos livrps de registos paroquais e Cardanha e a a sua população de 1573 a 1800, Lisboa, Centro de Estudos Demográficos do INE, 1980.
377
NETO, Maria de Lourdes Akola da Cunha Meira do Carma da Silva, A Freguesia de Santa Catarina de Lisboa no 1º quartel do século XVIII (Ensaio de Demografia Histórica), Lisboa, Centro de Estudos
Demográficos, 1959.
378
AMORIM, Maria Norberta, Evolução Demográfica de Três Paróquias do Sul do Pico, 1680-1980, Braga, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 1992.
133
Mesmo em Pico dos Regalados, no meio rural, a taxa de natalidade ilegítima esteve
acima daquela encontrada para São João do Souto. Quando comparamos então a paróquia
com as demais localidades portuguesas vemos que a taxa de natalidade da Paróquia de São
João do Souto só foi ligeiramente mais elevada do que aquela encontrada para as localidades
de Rebordãos (Trás-os-Montes), Coruche (margem sul do Tejo) e na Ilha do Pico.
Embora os estudos desenvolvidos por Maria Norberta Amorim379 (para Guimarães),
António Amaro das Neves380 (para o norte de Guimarães) e Ana Sílvia Volpi Scott381 (para
São Tiago do Ronfe) apontem para elevados índices de ilegitimidade, o viver da ilegitimidade
nas zonas analisadas difere em muito daquele identificado em Sabará, onde filhos legítimos e
ilegítimos frequentam a mesma mesa, recebem a mesma educação e acedem aos mesmos bens
no momento da partilha. Ao considerarmos este aspecto que, para o estudo que nos
propusemos a desenvolver é fundamental, na medida em que nos permite compreender a
vivência da ilegitimidade no quotidiano sócio familiar setecentista, o estudo desenvolvido por
Paulo Matos382, para a Paróquia da Ribeira Seca, na Ilha de São Jorge, é aquele com o qual
melhor dialogamos. A ilegitimidade na Paróquia da Ribeira Seca chegou a atingir, na década
de 1860, os 24,5% dos baptismos. Embora o estudo compreenda os anos de 1800 a 1910, é
interessante observar, por exemplo, o acolhimento promovido pelos avós maternos de
algumas crianças ilegítimas, apontando para o facto de que a prole ilegítima não teria ficado,
naquela paróquia, completamente desamparada. Também na Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará veremos o comportamento invulgar de alguns moradores da
relativamente à inserção, no seio familiar, da prole ilegítima.
Ao voltarmos nossos olhares para a paróquia bracarense de São João do Souto, dentre
os 7.625383 registos de baptismos recolhidos para todo o século XVIII, 7.604 eram crianças e
21 eram adultos. Dentre as crianças 483 eram filhos naturais. A ilegitimidade nesta paróquia
urbana de Braga representava, portanto, 6,2% das crianças baptizadas naquela paróquia no
período de setecentos. O baptismo de adultos foi de tal modo invulgar que vale à pena
referimo-nos a eles, uma vez que demonstram, em alguns casos, a mobilidade dos moradores
da paróquia. Entre os 21 adultos baptizados na Paróquia de São João do Souto, em Braga, ao
379
AMORIM, M., Guimarães de 1580 a 1819; estudo demográfico, Lisboa, INIC, 1987.
380
NEVES, A., Filhos das ervas: a ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII), Guimarães, NEPS, 2001.
381
SCOTT, A., Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX), Guimarães,
NEPS/Universidade do Minho, 1999.
382
MATOS, P., O nascimento fora do matrimónio na Freguesia da Ribeira Seca da Ilha de São Jorge (Açores): 1800 – 1910, Braga,
Núcleo de Estudos de População e Sociedade, Universidade do Minho, 2007.
383
Foram baptizados, em média, 476 crianças por quinquénio.
134
longo do século XVIII, 4 eram ingleses, 1 galego, 1 indiano, 9 eram escravos 384, 2 eram
enjeitados, 1 filho de “pai incógnito” e 4 eram portugueses adultos que não tinham ainda sido
baptizados.
Um dos ingleses baptizado foi Tomás, filho de Jorge [Talazão] e Joana [Talazão]. Seu
assento de baptismo, feito em conjunto com o do irlandês Tomás Stuart, e registado no livro
paroquial aos 16 de Fevereiro de 1710 dizia que:
Aos dezasseis dias do mês de Fevereiro de mil setecentos anos nas mãos do
Ilustríssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Teles Arcebispo dessa Cidade
de Braga Primor das Hespanhas na sua Capela fizeram solene abjuração da
herética seita de protestantes que seguiam Tomas Palerco[?] inglês de nação
filho de Jorge Talazão[?] e Joana Talazão[?] e Tomas Estuarde irlandês de
nação filho de João Estuarde e Isabel Estuarde e logo depois de feita a dita
abjuração o mesmo Ilustríssimo senhor os baptizou a ambos subcondicione
foi padrinho de Tomas Palerco[?] o senhor João de Mendonça sobrinho do
mesmo senhor Arcebispo e de Tomas Estuarde Domingos Correia da Silva
estribeiro do sobredito senhor Arcebispo a qual função toda Eu o Padre
Francisco Vilella Penna assisti em ausência do Reverendo Abade de São
João como Pároco em fé de que fiz este assento que o mesmo senhor
Arcebispo assinou e os baptizados padrinhos.385
É interessante observar que, embora tenham representado, quantitativamente, a
minoria dos registos a ocorrência do baptismo de adulto demonstra a importância que este
ritual tinha no viver quotidiano do século XVIII. Ao que tudo indica a inserção dos ingleses
na comunidade bracarense passava pela adopção do catolicismo como religião e na abjuração
do protestantismo, uma vez que era considerado como uma seita herética. Dentre os adultos
baptizados foram também identificados 5 escravos adultos. Em 28 de Março de 1744 foi
baptizada Maria386 na Igreja Matriz de São João do Souto. Maria era filha natural de Maria,
moradora na Rua do Souto, mas seu pai não foi referido no assento. Seus padrinhos foram
Mariana de Freitas, moradora no Lameiro e Bento Lopes, morador no Rocio de São João.
Todavia, o que mais nos interessa para este estudo são os registos de baptismo das
crianças ilegítimas e a sua representatividade frente ao baptismo de filhos legítimos. A
intenção é além de quantificar a presença ilegítima entre os baptizados da Paróquia de São
João do Souto, tentar compreender a extensão que a concepção e o nascimento ilegítimo
representaram naquela paróquia. Houve a possibilidade dos filhos ilegítimos bracarenses
384
Vale à pena ressaltar que foram baptizados na Paróquia de São João do Souto somente 36 escravos ao longo de todo o século XVIII, dos
quais 28 eram crianças. Dessas, 18 eram filhos naturais, 8 eram filhos legítimos e em 2 assentos não foi possível identificar se a criança era
legítima ou não.
385
ADB – Registos Paroquaisi Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Tomás, Livro 144 , fl. 224v, 16-02-1710.
386
ADB – Registos Paroquaisi Paróquia de São João do Souto, Assento de baptismo de Maria, Livro 146, fl. 508r, 28-03-1744.
135
Tabela 27 – Evolução dos baptismos da Paróquia de São João do Souto, Braga, 1700 – 1799.
Período Legítimo Natural Exposto N/c Pai incógnito
1700 - 1710 732 46 - 2 -
1711 - 1721 801 34 1 1 -
1722 - 1731 756 49 - 3 -
1732 - 1741 703 64 - 6 -
1742 - 1751 675 45 6 1 -
1752 - 1761 685 64 1 3 -
1762 - 1771 739 60 2 - -
1772 - 1781 686 35 - - 18
1782 - 1791 743 51 - 1 8
1792 - 1799 551 24 4 - 25
ADB, Registos Paroquiais, Assentos de Baptismo, Paróquia de São João do Souto, Livro nº 144 (1699 – 1713);
Livro nº 145 (1713 – 1721); Livro nº 146 (1721 – 1751); Livro nº 147 (1751 – 1772); Livro nº 148 (1772 - 1789); Livro nº 149 (1790 – 1799).
baptizandos (6,2%) apontando para o facto de que, provavelmente, o nascer ilegítimo que era
escondido no baptismo acabava por vir ao de cima no momento do casamento. Os nubentes
que tinham sido enjeitados387 e aqueles cujo pai não foi identificado (intitulados na
documentação paroquial como “filho de pai incógnito”) tiveram uma representatividade
bastante diminuta não chegando a atingir 2% e 0,5%, respectivamente.
Gráfico 1 – Categoria da filiação versus sexo na Paróquia de São João do Souto, 1700 – 1799.
87,8%
85,1%
90,0%
80,0%
70,0%
60,0%
50,0%
Homem
40,0% Mulher
30,0%
20,0% 9,8%
7,9%
0,8%1,2% 0,1%0,3% 4,1%2,8%
10,0%
0,0%
Legítimo Natural Enjeitado Filho de pai N/ c
incógnito
ADB, Registos Paroquiais, Assentos de Casamento, Paróquia de São João do Souto, Livro nº 154 (1685 – 1701); Livro nº 155 (1702 – 1751);
Livro nº 156 (1752 – 1781); Livro nº 157 (1782 – 1799).
387
É importante que se diga, relativamente aos enjeitados, a Paróquia da Sé era aquela que possuía um livro paroquial para registo do
baptismo das crianças enjeitadas. É provável que, em função disso, a maioria das crianças enjeitadas tenha sido baptizada naquela paróquia.
137
quando conseguido, tenha sido utilizado como estratégia dos nubentes para minimizar os
efeitos que a ilegitimidade poderia causar na sua trajectória de vida.
Tabela 28 – Perfil dos nubentes de acordo com a origem da filiação, Paróquia de São João do Souto,
1700 – 1799.
Total
Noiva
Noivo
388 noivos
Natural % Legítima % Enjeitada % Incógnita % n/c
Natural 27 11,6% 253 9,8% 6 17,6% 0 0,0% 2 288
Legítimo 197 84,5% 2234 86,5% 21 61,8% 8 88,9% 44 2504
Enjeitado 4 1,7% 16 0,6% 2 5,9% 1 11,1% 1 24
Incógnito 0 0,0% 3 0,1% 0 0,0% 0 0,0% 1 4
n/c 5 2,1% 76 2,9% 5 14,7% 0 0,0% 35 121
Total
233 2582 34 9 83
noivas
ADB, Registos Paroquiais, Actas de casamento, Paróquia de São João do Souto, Livro nº154 (1700 – 1701); Livro nº 155 (1701 – 1751); Livro nº 156 (1751 –
1778); Livro nº 157 (1778 – 1799).
Tal recurso pode ter sido uma maneira de buscar a integração e o aceite de uma
sociedade constituída numa das paróquias da cidade de Braga que, no século XVIII, era
considerada o berço da Igreja Católica. Uma união matrimonial em que um filho legítimo
tivesse como esposa uma filha ilegítima poderia representar, para esta, a possibilidade de
diminuir socialmente ou, até mesmo, apagar a sua origem.
Uma vez analisada, no cômputo geral, a presença dos filhos naturais entre os nubentes
da Paróquia de São João do Souto, interessa-nos observar pormenorizadamente o perfil dos
nubentes. Entre os homens identificamos 288 indivíduos nomeados como naturais. Para a
maioria, 275, não foi possível identificar a ocupação profissional. Todavia, entre aqueles em
que essa informação esteve disponível identificamos: 3 alfaiates, 1 Doutor, 1 ferrador, 1
latoeiro, 1 licenciado, 1 obreiro, 1 ourives, 1 padre, 2 sapateiros e 1 sombreireiro. O ferrador
Vicente Francisco389 e Batista Ribeira receberam o sacramento do matrimónio na Igreja
Matriz da Paróquia do Souto no dia 24 de Janeiro de 1708. A cerimónia foi celebrada pelo
Padre Gaspar Antunes. Todavia, ao que tudo indica, o facto de Vicente Francisco ser filho
natural de Josefa de Sousa e Simão Francisco não se configurou como empecilho para que ele
se casasse apesar de sua noiva, Batista Ribeira, ser filha legítima de Paula Cerqueira com
Manuel Ribeiro. A cerimónia foi testemunhada pelo lavrador André Dias, morador na
388
Entre os nubentes da Paróquia de São João do Souto em Braga foram encontrados, entre os homens, 8 cativos e 5 forros. Entre as
mulheres, 7 eram cativas e 3 forras. Foram encontrados, assim, 15 escravos e 8 forros. Vale à pena lembrar que entre os baptizandos
localizamos 36 cativos. Teriam esses escravos acedido ao casamento? Ao que tudo indica, não ou, se o fizeram, não ficou registado entre os
residentes da paróquia.
389
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Acta de casamento de Vicente Francisco e Batista Ribeira, Livro 155, fl. 51r, 24-01-1708.
138
390
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Acta de casamento de Vicente Francisco e Batista Ribeira, Livro 155, fl. 109v-110r, 01-03-
1711.
391
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Acta de casamento de Ricardo Pereira e Antónia Felgueiras, Livro 155, fl. 303r, 110r, 11-06-
1727.
392
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Acta de casamento de Vicente Francisco e Batista Ribeira, Livro 155, fl. 265v-266r, 28-02-
1725.
139
residiam em paróquias vizinhas pertencentes à Cidade de Braga e em 3 casos não foi possível
identificar o local de residência. Entre as mulheres também havia 6 que estavam presas no
Aljube e 1 no Castelo. Entre as noivas nascidas de relações ilícitas Natália Pereira de
Magalhães393 foi uma das mulheres que provavelmente conseguiu transpor o estigma da
ilegitimidade no momento do matrimónio. Filha natural de Maria de Faria com o Padre José
Pereira de Magalhães, Natália casou-se, no dia 10 de Abril de 1701 com o mercador Jerónimo
Ferreira Portela, morador na Porta do Castelo e filho legítimo de Maria Gomes com
Domingos Novais. A cerimónia, celebrada pelo Padre Gaspar Antunes foi testemunhada pelo
Padre Manuel de Araújo, pelo ourives Custódio Teixeira e por Jacinto Coelho, todos
moradores na Rua dos Chãos Debaixo.
Podemos perceber que, entre as noivas394 nascidas de uniões não sacramentadas pela
Igreja Católica, a maioria delas residia na Paróquia de São João do Souto. Ainda assim, foi
elevado o número de noivas que tinham o domicílio em paróquias vizinhas, algumas delas
pertencentes a vilas vizinhas (tais como Amarante, Barcelos, Guimarães, Caminha e Viana)
demonstrando a mobilidade dessas mulheres no momento de contraírem os sagrados laços do
matrimónio. A presença, mesmo que seja de dois noivos provenientes do Reino da Galiza
aponta para o trânsito existente seja do Minho para a Galiza e vice-versa395.
A emigração frequente e, até certo ponto, volumosa de portugueses para a América a
partir de finais do século XVII até às duas primeiras décadas do século XIX vem sendo
objecto de muitos estudos que buscam, sobretudo, aproximar as duas margens do Atlântico. A
constituição das famílias e, em alguns casos, a natalidade ilegítima foram pontos de
convergência em alguns estudos comparados até o presente publicados. Contudo, vimos que o
nascer ilegítimo foi vivenciado de maneiras bastantes distintas nas duas paróquias analisadas.
O distanciamento entre elas no que tocou, sobretudo, à quantificação da natalidade ilegítima
apontou para a cautela que deve ter o investigador que se dedique aos estudos comparados
entre o Brasil e Portugal. Embora a presença portuguesa na América Portuguesa e, sobretudo,
393
ADB – Registos Paroquiais, Casamentos, Acta de casamento de Vicente Francisco e Batista Ribeira, Livro 154, fl. 155v -110r, 10-04-
1701.
394
Entre as noivas foram identificadas mulheres de proveniência estrangeira, sobretudo do Reino da Galiza 8.
395
DURÃES, M.; LAGIDO, E.; CARIDADE, C., “Une population qui bouge: les migrations temporaires et saisonnières à partir de Viana do
Castelo (XVIIIe – XIXe siècles)”, Obradoiro de História Moderna, nº 15, 2006, pp. 29 – 76; DURÃES, M.; LAGIDO, E. (2007), “A arte de
trabalhar a pedra: migrações temporárias e sazonais no Norte de Portugal (sécs. XVIII – XIX)”, in O reino, as ilhas e o mar oceano. Estudos
em homenagem a Artur Teodoro de Matos, vol. 1. Lisboa, CHAM, 2007, pp. 237 – 263; DURÃES, M.; LAGIDO, ., “Migrações.
Trajectórias e impactos na reprodução e organização da família e sociedade camponesa minhota (séc. XVIII-XIX)”, Texto apresentado no
XXIV Congresso Nacional de História da ANPUH. Unisinos, S. Leopoldo – RS, 2007; DURÃES, M.; LAGIDO, E., “Mobilidade interna :
migrações socioprofissionais dos alto minhotos (séculos XVIII-XIX)”, Congresso Internacional de História. Territórios, Culturas e Poderes,
Actas Noroeste, Revista de História, Vol. I, 2, 2006; DURÃES, M. “Espirito de aventura ou aperto da vida? As migrações internas e os seus
impactos na organização familiar e social das comunidades rurais do Alto-Minho (sécs. XVIII-XIX)”, (artigo no prelo); DURÃES, M.;
LAGIDO, E., “Là où vont les eaux vont les hommes”, Trajectoires et impacts des migrations des ruraux du Haut-Minho (Portugal, 18e - 19e
siècles)”, (artigo no prelo).
140
nas Minas Gerais, se tenha constituído como uma importante peça na constituição da
sociedade mineira, imprimindo traços da sociedade portuguesa, é necessário considerar que a
presença africana e indígena também tiveram um importante papel na constituição daquela
sociedade. A presença maioritária de africanos em Sabará que, por sua vez, tiveram um acesso
restrito ao matrimónio católico fez com que a maioria das crianças baptizadas na Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição do Sabará fosse ilegítima.
Vimos, ao longo deste capítulo que relativamente à quantificação da natalidade
ilegítima nas paróquias analisadas (Paróquia de São João do Souto e na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará) os valores percentuais foram bastante distintos. Quase 50%
dos baptismos registados nos livros da paróquia sabarense eram de filhos naturais ao passo
que, na paróquia bracarense, o valor não ultrapassou os 6,2%. A composição social das
paróquias, associadas a factores específicos de cada uma delas (a intensa mobilidade
masculina na paróquia sabarense e a presença da mão visível e/ou invisível da Igreja Católica
na paróquia bracarense) fez com que os perfis de pais e filhos fossem significativamente
diferentes. Apesar das diferenças, alguns comportamentos semelhantes foram verificados em
ambas as paróquias. Relativamente aos nubentes nascidos de relações não legitimadas pela
Igreja percebemos uma tendência, seja na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, seja na
de São João do Souto, de se unirem com filhos legítimos numa tentativa, provavelmente, de
ocultar a sua origem. E entre os filhos legítimos, a maioria manteve como padrão de cônjuge
aquele também era fruto de uniões legítimas.
4.2. Pais, mães e o viver do nascimento ilegítimo nas duas margens do Atlântico
Sabe-se ainda que, a integração ou não da prole ilegítima esteve, maioritariamente, nas
mãos dos seus progenitores. Sendo um fenómeno comum nas duas margens do Atlântico,
mesmo que em proporções bastante desiguais, interessa-nos neste tópico descortinar o viver
da ilegitimidade relativamente ao comportamento dos progenitores. Quem foram os pais e
mães dessas crianças que, em muitos casos, foram responsáveis por intensos e prolongados
litígios familiares? Qual o perfil social dos progenitores? Teria sido a ilegitimidade um
comportamento que se repetiu em mais de uma geração da família? Qual o papel
desempenhado pelas mães na criação dessas crianças? Houve alguma preocupação por parte
dos pais com a garantia do bem-estar dos filhos ilegítimos?
Na matriz minhota, na Paróquia de São João do Souto, quem foram os progenitores
dos filhos ilegítimos? Onde residiam? Houve o recurso de baptizar na Paróquia de São João
do Souto crianças de paróquias vizinhas como estratégia para escapar à marginalização da
criança? Ou terá sido um recurso que tinha como único objectivo proteger a honra dos pais?
A partir da tabela abaixo percebe-se que o baptismo de crianças cujos pais residiam
fora da Paróquia de São João do Souto não foi um recurso utilizado para mascarar a
natalidade ilegítima. A maioria dos pais de filhos naturais baptizados naquela paróquia era
composta de fregueses. Num primeiro momento poderíamos tender a interpretar estes dados
como reveladores de uma tendência para a inclusão dos filhos ilegítimos no quotidiano sócio
familiar. Vale à pena relevar que, entre os 483 registos de baptismos de filhos naturais
registados nos livros paroquiais de São João do Souto, em 451 não foram identificados os pais
o que significa dizer que a maioria dos filhos naturais baptizados foram apresentados por suas
mães sem a nomeação do pai.
Porém, a nomeação do pai pela mãe também foi um recurso utilizado na paróquia
bracarense. Assim o fez Joana da Costa, moradora na Rua de Janes, que no dia 18 de Agosto
396
Como na maioria dos assentos não foi identificada a paternidade das crianças, a maioria dos domicílios identificados foi o das mães.
142
de 1702 apresentou seu filho João para receber os óleos bentos do baptismo. O pai, o
licenciado Miguel Pereira do Lago, era Juiz de Fora na Cidade de Braga. E, provavelmente, a
posição sócio profissional ocupada por Miguel Pereira do Lago foi um dos motivos que o
fizeram não reconhecer o filho tido com Joana da Costa sendo necessário que esta se
apresentasse sozinha perante o pároco da Igreja do Souto e, no acto do baptismo, nomeasse o
pai do seu filho com a expressão “e deu por pai”.
O que dizer, entretanto, dos pais e mães bracarenses que se apresentaram
conjuntamente perante o pároco e perante a sociedade para baptizar seus filhos naturais?
Relativamente ao perfil sócio profissional foi possível identificar a presença de: oficiais
mecânicos, criados, licenciados, mercadores, padres e militares. A nomeação do pai pela mãe
e os efeitos que daí derivavam foi também um comportamento identificado nos assentos de
baptismo bracarenses. Contudo, a estratégia de nomeação do pai pela mãe não foi a regra
entre as mulheres que se viram frente à necessidade de registarem sozinhas seus filhos. A
maioria delas assumiu a maternidade e o sustento dos filhos sozinha.
Na outra margem do Atlântico embora a presença portuguesa na América Portuguesa
e, sobretudo, nas Minas Gerais, se tenha constituído como uma importante peça na
constituição da sociedade mineira, imprimindo traços da sociedade portuguesa, é necessário
considerar que a presença africana e indígena também tiveram um importante papel na
constituição daquela sociedade. A transposição do Atlântico nos leva à Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará. Na busca por desvendar quem foram os homens e mulheres
que figuravam no quotidiano setecentista sabarense veremos que aqui, mais uma vez, a
diferença no que tocou à composição social das duas paróquias fará com que as histórias
desvendadas dos homens e mulheres que deram origem aos filhos ilegítimos, bem como a
maneira como estas crianças foram integradas ou excluídas do quotidiano familiar sejam
significativamente distintas. Na paróquia sabarense a presença, no seio da população, de um
contingente africano que correspondia à maioria da população e que, por sua vez, pouco ou
nenhum acesso teve ao sacramento do matrimónio foi responsável por inúmeros nascimentos
ilegítimos. Acrescente-se a isto, a recorrência com que homens brancos, amancebados com
suas escravas, deram origem a um elevado número de filhos ilegítimos.
Ao analisarmos o perfil dos progenitores de filhos naturais nos assentos de baptismos
da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, detectamos a predominância dos
cativos397 entre os pais de filhos naturais contraposta à predominância dos livres como pais
397
Mesmo que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia não determinassem que livres e escravos fossem registados em livros
diferentes no ato do baptismo, em algumas regiões da América portuguesa houve tal distinção, talvez em razão da exigência do imposto da
143
dos filhos legítimos. Tal constatação leva-nos a crer que, se por um lado o ritual do
baptismo398 foi amplamente disseminado entre os cativos, o mesmo não ocorreu com o
sacramento do casamento399. O elevado índice de filhos naturais entre os escravos aponta para
o facto de que a maioria dos casais de escravos estava unida sem a sanção da igreja. Também
entre os forros os filhos naturais representaram a maioria dos registos com 550 assentos.
Quando abordamos a questão do estatuto legal dos progenitores das crianças
baptizadas na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará verificamos, a partir do
gráfico abaixo, que as crianças nascidas de ventre cativo representaram a maioria dos
assentos, seguidas das livres, enquanto as crianças forras ocuparam o terceiro lugar no
ranking dos baptismos. Ao analisarmos, conjuntamente, o estatuto legal dos progenitores e as
categorias de filiação (legítimos, naturais e expostos) percebemos que os filhos naturais de
escravos foram os que receberam, com maior frequência, o sacramento do baptismo. Ainda
relativamente aos filhos naturais, as crianças nascidas de ventre alforriado estiveram em
segundo lugar seguidas pelos filhos naturais de livres. Ao voltarmos nossos olhares para as
crianças legítimas, a predominância é verificada entre os livres, confirmando que, apesar de
extremamente burocrático e dispendioso, o ritual do matrimónio esteve mais acessível para o
segmento livre e branco da sociedade. Os filhos legítimos de escravos e forros tiveram mais
ou menos a mesma representatividade entre os baptizados. No que toca às crianças expostas o
número foi de tal modo diminuto, entre os registos de baptismos da paróquia, que não
mereceu, no contexto da problemática do nosso estudo, uma atenção especial.
A partir do gráfico abaixo algumas ilações podem ser tiradas. Em primeiro lugar o que
se torna mais evidente, que a união matrimonial nos moldes como pretendia a Igreja Católica
não esteve acessível à maioria dos indivíduos pertencentes aos segmentos cativo e forro, uma
captação. Para a Vila de Sabará, pelo menos para o período estudado, não houve a distinção de um livro de baptismo para escravos e outro
para o restante da população da Vila. Nos dois volumes lidos e transcritos, crianças brancas, forras ou escravas, além de cativos adultos,
foram registadas em conjunto. Também na Paróquia do Pilar, em Ouro Preto, não houve o registo de escravos e livres em livros separados.
398
BRÜGGER, S., “Poder e Compadrio: Apadrinhamento de Escravos em São João del Rei (séculos XVIII e XIX)” In ALMEIDA, C. &
OLIVEIRA, A. (Org.), Nomes e Números: Alternativas Metodológicas para a História Económica e Social, Juiz de Fora, Editora da UFJF,
2006, p. 195-216; BACELLAR, ., “Criando porcos e arando a terra: família e compadrio entre os escravos de uma economia de
abastecimento (São Luis do Paraitinga, 1773-1840)”, In III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2007, Florianópolis
(Caderno de Resumos), São Leopoldo, RS, Oikos, 2007, p. 27-28; BACELLAR, ., “Livres e escravos nos laços de compadrio em São Paulo
colonial” In: XI Congreso Latinoamericano sobre Religión y Etnicidad, 2006, São Bernardo do Campo, SP, Universidade Metodista de São
Paulo, 2006; OLIVEIRA, P., Baptismos de escravos adultos na Paróquia do Pilar de Ouro Preto 1712-1750, Belo Horizonte,
FAFICH/UFMG, Tese de Mestrado, 2004.
399
Sobre o casamento entre escravos, na América Portuguesa, nos século XVIII e XIX, ver LOTT, M., Na forma do ritual romano:
casamento e família - Vila Rica (1804-1839), São Paulo, Annablume, 2007; SLENES, R., Na Senzala, Uma Flor: Esperanças e Recordações
Na Formação da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século XIX), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; FARIA, S., A Colônia em Movimento,
Fortuna e Família no Cotidiano Colonial, 1. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; SLENES, R., “Escravidão e Família: Padrões de
Casamento e Estabilidade Familiar numa Comunidade Escrava (Campinas, Século XIX)”, In: Anais do IV Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, 1984, v. IV. p. 2119-2134.
144
vez que é clara a predominância nos assentos de baptismo dos cativos sobre os demais
segmentos sociais.
Gráfico 2 – Estatuto legal dos progenitores de filhos naturais, Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará, 1723 – 1782.
1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
Homens Mulheres
Ainda assim, mesmo que tenha sido restrita a uma parcela reduzida de cativos e
forros, a contracção dos laços matrimoniais pode ser confirmada com a presença de 206
cativos e 162 forros legítimos. Pedro e Teresa400, casados e escravos do Capitão Manuel
Lopes Machado baptizaram sua filha Inácia na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição
do Sabará no dia 16 de Agosto de 1735. Inácia teve como padrinho Custódio, forro e, como
madrinha, Teresa Maria, escrava de António Gonçalves. É interessante observar a escolha de
um dos padrinhos do segmento forro. Sabemos que os padrinhos, no ritual do baptismo,
assumem a posição de pais espirituais dos seus afilhados assumindo a sua responsabilidade na
ausência dos pais. Neste contexto, a escolha de Custódio como padrinho representa a
preocupação dos pais com o futuro da sua filha.
Em 2 de Junho de 1755 nasceu Marcelino401, filho de Francisco da Costa de Araújo e
Antónia Maria da Conceição, ambos forros. Passados 8 dias Marcelino foi baptizado na Igreja
Matriz da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Seus padrinhos foram o Licenciado
Parreiras e Gertrudes Monteiro. Assim como os pais de Inácia, também os pais de Marcelino
400
CEDIC-BH, Livro 1 Baptismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Assento de baptismo de Inácia, fl. 205r, 16-08-
1735.
401
CEDIC-BH, Livro 2 Baptismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Assento de baptismo de Marcelino, fl 104v,
10-06-1755.
145
402
CEDIC-BH, Livro 2 Baptismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Assento de baptismo de Teresa, fl 45r, 10-08-
1747.
403
Sobre a mobilidade exigida pelo comércio nas Minas setecentistas, ver FURTADO, J., Homens de negócios; a interiorização da
metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, HUCITEC, 1999.
146
vizinhas, cujo acesso à sede da Comarca era difícil? Seriam homens casados ou eclesiásticos
que, frente à presença de filhos ilegítimos teriam sua honra maculada?
Dos 16 homens cuja paternidade dos filhos foi atribuída não foi possível recuperar o
estatuto legal, de 11 deles, 3 eram escravos e 2 forros. O caso de Brízida, baptizada em 22 de
Março de 1745, chamou-nos atenção. Filha de Quitéria e Inácio, ambos escravos de Manuel
Antunes Viana, teve como padrinho João, escravo do mesmo proprietário de seus pais. Se os
pais de Brízida eram escravos do mesmo plantel porque Quitéria "deu por pai Inácio"? Seria a
paternidade notória a ponto de, mesmo na ausência de Inácio, Quitéria ser capaz de nomeá-lo
como pai de sua filha?
Infelizmente, a maioria dos registos de baptismos que tem a nomeação da paternidade
feita pelas mães concentrou-se na primeira metade do século XVIII, período para o qual não
existem registos de contagem de população sistemáticos. Outra possibilidade seria a análise
das devassas eclesiásticas que aconteceram na vila para tentar identificar esses casais, pois
alguns deles provavelmente foram denunciados por concubinato. Como podemos averiguar,
___
além das fontes aqui analisadas testamentos, inventários post mortem e cartas de
legitimação ___, outras auxiliariam nesse rastreamento da ilegitimidade muitas vezes expressão
da formação de famílias fora dos padrões morais, mas aceitas no quotidiano ao qual
pertenciam.
Vimos, ao longo deste capítulo, que o nascimento da prole ilegítima atingiu
proporções bastante distintas nas paróquias analisadas. O facto de pertencerem ao mesmo
império, de estarem subjugadas aos mesmos códigos de leis (civil e eclesiástico) e, sobretudo,
de terem o homem português como componente social não significou, entretanto, que as taxas
de ilegitimidade nas duas paróquias se aproximassem, mas se distanciassem. Nos próximos
capítulos interessa-nos perceber se a distância constatada ao compararmos quantitativamente
os dados das duas paróquias também se verificou ao analisarmos o viver da ilegitimidade nas
duas comunidades. Quer os moradores da Paróquia de São João do Souto, quer os moradores
da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará tiveram acesso aos mesmos
instrumentos para reconhecimento dos seus filhos ilegítimos. Todavia, terão sido utilizados da
mesma forma? A legitimação dos filhos, por quaisquer dos meios disponíveis, foi uma
preocupação de homens e mulheres residentes nas duas margens do Atlântico?
147
PARTE III
148
Vimos ao longo deste trabalho que a natalidade ilegítima pode ser identificada por
meio das mais diversas fontes documentais. No que tocou à quantificação da natalidade
ilegítima, essa foi feita, essencialmente, por meio dos registos paroquiais. A partir dos registos
de baptismos e de casamento vimos que a concepção e o nascimento da prole ilegítima
registada na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, na América Portuguesa, e
na Paróquia de São João do Souto, em Portugal Continental, atingiu índices bastante distintos.
No além-mar, a presença maioritária de africanos, o sistema escravista, a fluidez da sociedade,
a mobilidade de boa parte dos homens que habitavam as aldeias e vilas foram responsáveis
pela criação de novos referenciais culturais que influenciaram o viver da natalidade ilegítima,
bem como o seu reconhecimento pelos pais. Em Portugal Continental, na Cidade dos
Arcebispos, o controlo moral e social era acompanhado de perto pelos párocos. Neste
contexto, a natalidade ilegítima, mesmo que viesse a ocorrer, acabou por ser escondida e
pouco ou nada vivenciada pelos bracarenses. Todavia, para além da quantificação da prole
ilegítima, nos próximos capítulos tentaremos compreender o significado, no quotidiano sócio
familiar, do nascimento e, posteriormente, do reconhecimento dos filhos ilegítimos nas duas
margens do Atlântico.
Os mecanismos utilizados pelos progenitores para reconhecerem a paternidade e a
maternidade dos filhos ilegítimos foram, sobretudo, os testamentos, as escrituras e as cartas de
legitimação404. Após o reconhecimento dos filhos ilegítimos, por qualquer desses
instrumentos, a efectiva atribuição dos direitos de acesso à herança dos pais, poderia ser
confirmada por meio dos inventários post-mortem.
404
A legitimação, enquanto um processo jurídico, caracteriza-se como um benefício da Lei por meio do qual os filhos ilegítimos adquirem a
qualidade e os direitos dos filhos legítimos. Para que seja concedida a legitimação eram determinadas duas condições, a saber: o casamento
dos pais e o reconhecimento dos filhos pelo pai ou pela mãe, no assento de casamento, ou se feito antes do casamento, nos assentos de
baptismo e ainda poderiam os filhos ser reconhecidos em testamento ou escritura pública, anteriores ou posteriores ao casamento. "Os
legitimados por subsequente matrimónio são, para todos os efeitos, considerados filhos legítimos e como tais se denominam. [...] os filhos
legítimos são tais desde a sua concepção; ao passo que para os legitimados os efeitos da legitimação principiam desde a data do matrimónio
dos pais. Daqui resulta que, por exemplo, abrindo-se uma sucessão antes do casamento dos pais, tendo estes filhos legítimos e legitimados, se
um testador deixar certos legados aos filhos legítimos, daqueles pais, os legitimados não poderão receber". GONÇALVES, L. C., Direitos de
família e direitos das sucessões, Lisboa, Edições Ática, 1955, p. 295.
149
405
"A palavra testamento vem da Latina testamentum, que segundo as Institutas, T. 20 assim se chamava por ser um ato destinado a
testemunhar a vontade de cada indivíduo. [...] O testamento, conforme define o Jurisconsulto Modestino, é uma disposição ou declaração
justa, ou solene da nossa vontade, sobre aquilo que queremos se faça depois de nossa morte". Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 80, nota
3, p. 900.
406
Apesar da promulgação de várias leis voltadas, sobretudo, para a confecção dos testamentos, um problema se manteve intocado: a
jurisdição eclesiástica no que tocava à execução do mesmo. Assim, continuou a ser alternada a jurisdição do poder eclesiástico e civil ao
longo dos meses do ano. A Lei da Alternância manteve-se em vigor até 1836 quando foi publicado o Código Administrativo que atribuiu,
definitivamente, que a execução das disposições testamentárias ficariam a cargo do poder civil. Cf. DURÃES, Margarida, Herança e
Sucessão: Leis, Práticas e Costumes no Termo de Braga (Séculos XVII-XIX), Braga, Universidade do Minho, 2000, Dissertação de
Doutoramento, p.50-52.
407
PORTUGAL; GALHARDO, A., Collecção das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado del rey fidelissimo D. Jozé, o I
nosso senhor..., Lisboa, Officina de António Rodrigues Galhardo, 1790, t.2.
408
PORTUGAL; GALHARDO, A., Collecção das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado del rey fidelissimo D. Jozé, o I
nosso senhor..., Lisboa, Officina de António Rodrigues Galhardo, 1790, t.3.
409
PORTUGAL; GALHARDO, A., Collecção das leys, decretos, e alvarás, que comprehende o feliz reinado del rey fidelissimo D. Jozé, o I
nosso senhor..., Lisboa, Officina de António Rodrigues Galhardo, 1790, t.3.
410
As leis publicadas nos anos de 1761, 1765, 1766 e 1769 foram analisadas por Luís Cabral de Moncada. Cf. MONCADA, L., “O século
XVIII na legislação de Pombal”, in Estudos de História do Direito, vol.1, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1948, p. 83-126.
150
411
PORTUGAL; GALHARDO, A., “Preâmbulo da Lei de 9 de Setembro de 1769”, in Collecção das leys, decretos, e alvarás, que
comprehende o feliz reinado del rey fidelissimo D. Jozé, o I nosso senhor..., Lisboa, Officina de António Rodrigues Galhardo, 1790, t.3.
412
Do latim "tertia" (a terceira parte, o terço), na forma substantiva designa o quociente da divisão por três, exprimindo, assim, o terço, ou a
terça parte de alguma coisa. Relativamente ao testamento, caracterizava-se por ser a terça parte da herança, sobre a qual o testador poderia
dispor livremente.
413
É importante ter em conta, entretanto, que a fracção dos testamentos analisados neste trabalho representam a minoria da população de
ambas as paróquias. Contudo, para o estudo ora proposto que pretende analisar o viver da ilegitimidade em duas paróquias do Império
Português a sua análise tornou-se fundamental por ter sido um dos instrumentos de legitimação utilizados pelos progenitores. Margarida
Durães aponta para o facto de os testamentos se caracterizarem como uma “fonte socialmente selectiva”, não somente por ter sido um
documento produzido por poucos, mas também pela própria acção do tempo que pode ter sido responsável pelo desaparecimento ao longo
dos anos.
414
LOPES, E., O Revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo, FAPESP/Annablume, 1998, p. 167.
151
415
DURÃES, M., Herança e Sucessão: Leis, Práticas e Costumes no Termo de Braga (Séculos XVII-XIX), Braga, Universidade do Minho,
2000, Dissertação de Doutoramento.
416
Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título 80, p.900.
152
No caso dos filhos sacrílegos a maioria dos progenitores afirmou que a concepção do seu
descendente tinha sido anterior à sua ordenação. Este comportamento dos progenitores pode
ser lido de duas maneiras: primeiramente pode ter sido um recurso utilizado pelos pais no
intuito de salvaguardar a sua honra. Num segundo momento, pode ter sido um recurso
utilizado pelos pais para garantir algum acesso dos filhos, mesmo que restrito, à sua herança.
As crianças identificadas como naturais estavam, legalmente, aptas para aceder à herança dos
pais o que não ocorria para com aqueles nascidos de relações adulterinas, incestuosas ou
sacrílegas. Embora não fosse o ideal católico a concepção de crianças sem que os pais
estivessem unidos nos sagrados laços do matrimónio, os filhos naturais acabaram por ser,
parcialmente, aceites. Haja visto o facto de que, o seu direito de acesso à herança dos pais
estava amparado nas Ordenações Filipinas.
Sabe-se que no Direito Civil, cujas directrizes regulamentaram a vida das pessoas que
viveram no século XVIII, existiram duas formas possíveis para os filhos ilegítimos serem
reconhecidos pelos pais: 1ª) Por meio da legitimação por subsequente matrimónio; 2ª) por
meio da perfilhação417 solene, mais conhecida como legitimação.
Contudo, após a confirmação da paternidade por meio das escrituras quais eram os
direitos garantidos aos filhos ilegítimos? As Ordenações do Reino determinavam que eles
estavam habilitados apenas para solicitar o seu sustento alimentício. E, em hipótese alguma, a
lei permitia que o reconhecimento da prole ilegítima prejudicasse os herdeiros legítimos.
Pascoal José de Melo Freire418 define legitimação solene como sendo o “[…] ato pelo qual um
pai ou mãe voluntariamente reconhece seus filhos ilegítimos. É um favor concedido aos
filhos, e um meio oferecido aos pais para exonerar a sua consciência e de melhorar a sorte dos
inocentes frutos de seus erros”.419 A partir de tal definição a legitimação dos filhos beneficiou
não somente os filhos, mas também os pais. Além da importância de garantir aos filhos que
“eles tenham bens em que melhor possa passar a vida”, havia também a preocupação de se
redimirem do mal que tinham legado aos seus filhos e, com isso, aliviarem a sua consciência.
417
Segundo Dr. Luís da Cunha Gonçalves, "A perfilhação é ato essencialmente pessoal, que só pode ser praticado pelo próprio pai ou pela
própria mãe, pessoalmente ou por meio de mandatário, com poderes especiais e exacta indicação do filho, de modo a não haver equívocos ou
substituição de pessoas. Nenhuma outra pessoa pode realizá-la em nome do pai ou da mãe, por exemplo, os avós ou o tutor, visto não se
tratar de ato de administração". Para saber mais ver, GONÇALVES, Dr. L., Direitos de família e direitos das sucessões, Lisboa, Edições
Ática, 1955. p. 287/288. Ver também: LOPES, J., Filhos ilegítimos, Coimbra, Livraria Almedina, 1973.
418
FREIRE, P. J., Instituições de Direito Civil Português, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1967.
419
FREIRE, P. J., Instituições de Direito Civil Português, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1967. p. 176.
153
420
Para efeito de contagem das escrituras de legitimação identificadas foi necessário considerar que em 64 delas os pais e/ou mães
reconheceram mais de um filho(a) sendo contabilizados somente uma vez.
421
Em relação ao local de domicílio dos legitimadores constatamos que do total de 223 escrituras de legitimação registadas nos livros
notariais, 58 delas eram de habitantes das diversas freguesias de Braga.
422
O Projecto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco foi criado em 1995 por meio de um protocolo assinado Portugal e
Brasil no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do Património Documental (COLUSO). Tem como
principal objectivo permitir o acesso a documentos históricos que dizem respeito à História do Brasil e que se encontram em arquivos de
outros países, sobretudo Portugal e demais países europeus com os quais o Brasil teve relação directa por meio da história colonial. A
documentação reunida diz respeito às 18 capitanias da América Portuguesa que se encontra sob guarda do Arquivo Histórico Ultramarino em
Lisboa.
423
Por meio dos processos de legitimação é possível analisar aspectos como: estatuto legal do pai (nobre, plebeu ou eclesiástico); condição
étnica e social da mãe; em que circunstância se deu a concepção do filho (concubinato, adultério, incesto ou sacrilégio); existência de
ascendentes ou descendentes (os chamados herdeiros forçados); tipo de bens a serem herdados pelo filho legitimado (sendo necessária aqui a
análise conjunta dos inventários); o estatuto legal das testemunhas convocadas para confirmar a paternidade declarada: entre outros. Quem
eram as testemunhas? Seu estatuto legal influenciava nesse momento? Tratando-se dos pais desses ilegítimos, qual a proporção de homens e
mulheres, estatuto legal, cor, estado matrimonial?
154
424
O acesso à herança e a possibilidade de sucessão conferida aos filhos ilegítimos serão analisados, pormenorizadamente, no capítulo 6
quando utilizarmos os inventários post-mortem dos residentes sabarenses.
425
ARIÈS, P., O homem perante a morte, 2 vols., Lisboa, Europa-América, 1988. Citado por ARAÚJO, A., A morte em Lisboa atitudes e
representações, 1700-1830, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p.271.
426
De acordo com as Ordenações Filipinas existiam 4 modelos de testamentos: o primeiro era o testamento público caracterizado,
sobretudo, por ser redigido directamente no livro de notas, no notário público, devendo ser assinado pelas testemunhas e pelo testador, caso
este saiba assinar; o testamento cerrado era aquele em que o testador, depois de redigir ou que alguém o fizesse por ele, assinava perante,
pelo menos 6 testemunhas, sendo posteriormente cerrado e cosido e entregue ao tabelião. O instrumento de aprovação do mesmo era feito
imediatamente e nas costas do testamento para evitar adições indevidas; o testamento aberto por pessoa privada era aquele que poderia ter
sido feito tanto pelas mãos do próprio testador, quanto de outra pessoa. Não possuía, entretanto, a aprovação, tão pouco era feito em presença
de testemunhas. E, por último, o testamento nuncupativo era caracterizado por ter sido feito pelo testador, oralmente, sem registo de qualquer
155
fraccionada” são expressões desse viver quotidiano que, mesmo indo de encontro às regras
impostas pelos direitos civil e canónico, acabaram por coexistir com as relações matrimoniais
oficializadas. Derivam desta multiplicidade a forma de união dos progenitores, as formas de
tratamento dispensadas aos filhos ilegítimos. Tal contradição no tratamento dispensado aos
filhos ilegítimos pode ser identificado no momento em que pais e mães enfrentavam a
necessidade de registar suas últimas vontades em testamento. Reconhecimento e exclusão
serão as duas faces da moeda vividas por muitos filhos ilegítimos no quotidiano setecentista,
tanto na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, quanto na Paróquia de São João
do Souto.
Já constatamos a importância assumida pelo testamento no quotidiano sócio religioso
do século XVIII. Interessa-nos, num segundo momento, descortinar a representação assumida
pelo ritual da confecção do testamento quando estavam envolvidos pais e mães de filhos
ilegítimos. Quantos foram os testadores reconheceram, em testamento, a paternidade
ilegítima? O que representou, de facto, tal reconhecimento para os progenitores e para os
filhos?
Ao longo do século XVIII 172 indivíduos, residentes na Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará registaram suas últimas vontades nos testamentos. Interessam-nos,
todavia, apenas aqueles que indicaram ter filhos ilegítimos. Estes somaram um total de 55
testadores que tiveram, ao todo, 120 filhos.
Gráfico 3 – Estado matrimonial dos progenitores dos filhos naturais, Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
30
25
20
15
10
0
Homens Mulheres
430
AHU, Carta de Domingos Nunes Vieira, desembargador e intendente da Comarca do Sabará, informando Diogo de Mendonça Corte-
Real sobre a remessa da relação das fazendas que entravam nas Minas, assim como sobre a relação dos homens casados da referida
Capitania.
158
duas margens do Atlântico era muito semelhante. Ao estudar a actuação dos "homens de
negócios" nas Minas setecentistas, Júnia Ferreira Furtado431 identificou alguns portugueses
que, vindos do Reino para a América portuguesa, acabaram por se fixar nas Minas Gerais. A
maioria era originária da região norte lusitana, em especial do Minho, Trás-os-Montes, Porto,
Douro e as Beiras. Importante perceber que esses imigrantes portugueses, ao atravessarem o
Atlântico com destino à Capitania de Minas Gerais, traziam consigo seus costumes, modos de
vida e organização familiar que acabaram por ser resignificados fazendo parte de novos
referencias culturais criados não somente entre os portugueses, mas também entre os africanos
e os indígenas.
O pintor e também português Miguel Lobo de Sousa, natural da Cidade de Lisboa,
filho legítimo de José Lobo e Máxima Francisca, mas residente em Sabará reconheceu em seu
testamento aberto no ano de 1751 a paternidade de um filho natural residente na sua cidade
natal.
Declaro que sou natural da Cidade de Lisboa baptizado na Freguesia de
Santa Catarina de Monte Sinai filho legitimo de José Lobo e de Marina
Francisca já defuntos. Item declaro que não sou casado nem nunca fui, mas
sim tenho hum filho natural por nome Justiniano Lobo, o qual ouve na
cidade de Lisboa de uma moça de servir chamada Josefa Maria432.
Interessante é perceber que, nem mesmo a presença de Justiniano Lobo na outra
margem do Atlântico impediu que seu pai o reconhecesse como filho e o instituísse como
universal herdeiro. Caso o filho não fosse localizado o testador determinava que ficava sua
alma como universal herdeira.
E o que dizer daqueles testadores que, amancebados com suas escravas, deram origem
a uma prole ilegítima que poderia ser marginalizada não somente pela origem da filiação, mas
também por sua etnia? Em 14 de Agosto de 1750 Manuel Antares Viana, natural da Vila de
Viana, Arcebispado de Braga, declarou em seu testamento que era:
[…] casado nesta vila com Quitéria Caetana Barbosa da Costa filha legitima
de Veríssimo Correia da Costa e de sua mulher Rosa Barbosa da Costa e
Silva de cujo matrimónio tenho até o presente cinco filhos entre machos e
fêmeas a saber, Francisco, Eusébia, Bernarda, Manuel e José e outro sim
também uma filha natural e por tal a reconheço por nome Potenciana parda,
a qual tive de uma mulatinha a houve no estado de solteiro antes de contrair
o matrimónio com a dita minha mulher, e aos ditos meus filhos, tanto os
legítimos, como a natural instituo por meus universais herdeiros das duas
partes que tocarem a minha meação.
431
FURTADO, J. F., Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas, São Paulo, Hucitec, 1999.
432
APM, CMS, Testamento de Miguel Lobo de Sousa, Códice 20, fl. 26r – 28v.
159
433
ANASTASIA, C., Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII, Belo Horizonte, C/Arte, 1998,
p.16
160
A política portuguesa, voltada para a povoação das Minas a todo e qualquer custo,
acabou por favorecer tal integração, suplantando, até mesmo, os fundamentos da sociedade do
Antigo Regime, baseada nos privilégios que sustentavam a hierarquia social. Nas primeiras
décadas do século XVIII o que veremos em muitas vilas mineiras foi a inserção dos filhos
ilegítimos mulatos nas estruturas administrativas, sobretudo nas Câmaras Municipais, apesar
das ordens contrárias emanadas da Corte.
Passada a fase em que a povoação da região mineradora ocupou o centro das atenções
régias, a situação dos mulatos foi marcada por uma revisão da postura dos organismos de
poder metropolitanos nas Minas. Os mulatos passaram a ser vistos como aqueles que
ameaçavam o ambiente privado das famílias de "puro nascimento" que se estabeleciam nas
Minas. Neste contexto, o que veremos será a alteração do discurso real e administrativo
relativamente à presença dos mulatos nos órgãos administrativos.
[...] a muita desenvoltura com que vivem os mulatos sendo tal a sua
actividade que não reconhecendo superioridade nos brancos se querem
igualar a eles faltando-lhe com aquelas atenções que a baixeza do seu
nascimento lhes permite trajando galas, e ostentando luzimentos que são
impróprios ao seu estado.434
Vemos assim que o universo que cercou os filhos ilegítimos mulatos nas Minas
setecentistas foi bastante conturbado passando de uma fase de aceite e inclusão, para uma de
exclusão e de mácula social. Contudo, ao longo da leitura dos testamentos de residentes da
paróquia sabarense o que foi possível perceber é que apesar das restrições sócio familiares
que os mulatos podem ter enfrentado, houve casos em que foram reconhecidos por seus pais
acedendo, de facto, à sua herança.
É o caso do filho natural que Bartolomeu Gonçalves Bahia declarou em seu
testamento no ano de 1752. Bernardo Gonçalves Bahia era filho do testador com Maria
Gonçalves Bahia, que foi sua escrava.
[...] Declaro que não sou; nem nunca fui casado, mas tenho um filho natural
de Maria Gonçalves Bahia preta solteira que foi minha escrava, a qual já é
falecida tendo a eu forrado há muitos anos antes do seu falecimento, o qual
filho é o Padre Abade Bernardo Gonçalves Bahia que assiste em minha
companhia.435
Ao estatuto legal de forro conferido a Bernardo Gonçalves Bahia, enquanto filho de
Maria Gonçalves Bahia, preta forra, somava-se o mulatismo aspecto que, como já foi
discutido anteriormente, era bastante combatido pela administração portuguesa. Contudo, isso
não o impediu de ser ordenado Padre. Interessante seria levantar o processo de genere et vitae
434
AHU, Sobre a forma com que vivem os mulatos nas Minas, Cx.68 – Doc.98.
435
APM, CMS 20. Testamento de Bartolomeu Gonçalves Bahia, 1752, fl.106v – 109v.
161
ao qual Bernardo teve que ser submetido para alcançar o título de Padre. Em princípio, aos
olhos da Igreja, Bernardo Gonçalves Bahia não poderia requerer uma batina por ser filho
ilegítimo e mulato. Dessa forma reunia dois aspectos considerados como impuros para
aqueles que queriam ser inseridos no ministério da igreja. Quais teriam sido os argumentos
utilizados por ele ou por seu pai, Bartolomeu Gonçalves Bahia, para que esses elementos
fossem desconsiderados e sua ordenação, permitida? A região das Minas criava espaços de
fluidez social, onde homens brancos usavam sua influência e pediam dispensas aos
impedimentos de mulatismo e ilegitimidade que eram obstáculos à ascensão dos seus
descendentes mulatos.
Todavia, destinos diferentes tiveram os filhos ilegítimos e mulatos de homens que
acabaram por falecer nas Minas Gerais sem testamento. Pouco mais de uma década antes de
Bartolomeu Gonçalves Bahia declarar em seu testamento ser pai do mulato Padre Abade
Bernardo Gonçalves Bahia, os oficiais da Câmara de Vila do Príncipe enviaram a D. João V,
então Rei de Portugal, um requerimento onde relatavam o estado de desamparo em que se
encontravam os filhos ilegítimos e mulatos de muitos portugueses abintestados.
[…] falecendo nesta Comarca muitos plebeus naturais de Portugal
abintestados com filhos mulatos e ilegítimos, que notoriamente tratam e são
havidos por filhos, e como tais seus herdeiros na forma da lei, são privados
das heranças em razão dos oficiais da Provedoria dos defuntos e ausentes se
intrometerem na arrecadação dos bens, não consentindo, que o Juiz dos
órfãos, ou ordinário, em semelhantes casos façam inventários dizendo toca
ao seu Juízo por Provisão.436
Nota-se que os filhos ilegítimos e mulatos vivenciaram os dois lados da moeda no que
tocou, sobretudo, ao acesso à herança dos pais. Aqueles cujos pais registaram em testamento a
paternidade foram, de alguma maneira, amparados, quer por meio do recebimento da sua
legítima, quer por meio da atribuição de legados. Destino diferente tiveram, entretanto, os
filhos ilegítimos cujos pais faleceram sem testamento, pois seus bens, uma vez administrados
pela provedoria dos defuntos e ausentes, pouco ou nada foram destinados a ampará-los,
mesmo que estes fossem notoriamente tratados como filhos pelos pais. Vemos, assim, que a
vivencia da presença de filhos ilegítimos quer no âmbito social quer no familiar, não foi
somente de aceitação ou exclusão.
Interessa-nos, entretanto, analisar o discurso empreendido por pais e mães no
momento do reconhecimento dos filhos ilegítimos. Em Fevereiro de 1748 Francisco de Ávila
436
AHU, Representação dos oficiais da Câmara da Vila do Príncipe, a D. João V, expondo a lamentável situação dos filhos mulatos e
ilegítimos não poderem herdar de seus pais, e solicitando decisão régia permitindo o poderem habilitar-se localmente, 1746. Cx. 47, doc.
26.
162
Monteiro redigiu o testamento que António Ribeiro de Miranda ditou e assinou437. Natural da
Freguesia de Santo Adrião, Arcebispado de Braga, era filho legítimo de José Ribeiro e Maria
Ribeira. Teve, ao todo, nove testamenteiros438, entre eles, Manuel Ribeiro de Miranda e José
Ribeiro de Carvalho, seus irmãos. António de Miranda foi sepultado na Capela da Ordem
Terceira de São Francisco, numa tumba, sendo seu corpo envolto numa mortalha439 do hábito
de São Francisco.
Solteiro, António Ribeiro de Miranda declarou, entretanto, ser pai de quatro filhos
naturais, dos quais três moravam em Portugal e um em Sabará:
Declaro que tenho uma filha natural por nome Josefa Maria de Miranda
casada com Manuel Teixeira morador na Freguesia de São Thomé de
Flandre do dito Concelho e Arcebispado. E assim mais digo que a dita é
filha de Josefa Ferreira. Declaro que tenho mais outra filha por nome Jacinta
ou Maria que não estou certo no nome filha de Jacinta da Costa moradora de
Vila Verde do mesmo Arcebispado. E declaro mais que com uma moça por
nome Maria filha de Francisco Martins do lugar das Fontainhas Freguesia de
Arantes tive um filho ou filha natural a qual criança, a enjeitaram na Roda
dos enjeitados do hospital da Cidade do Porto.440
No que tocou às filhas Josefa Maria de Miranda441 (casada com Manuel Teixeira e
residente na Freguesia de São Tomé, Portugal) e Jacinta Coelha (moradora na Freguesia de
Vila Verde), estas foram instituídas como herdeiras de António Ribeiro de Miranda recebendo
cada uma a sua legítima. A terceira criança, nascida da relação com Maria, António Ribeiro
solicitou que tentassem localizá-la para que a herança fosse devidamente entregue. O quarto
437
A questão da alfabetização no século XVIII vem sendo bastante estudada a partir dos testamentos, na medida em que a redacção ou, até
mesmo, a assinatura do testador poderiam ser considerados indícios de algum nível de instrução. Não se deve, entretanto, apoiar na premissa
de que todos que sabiam ler eram capazes de assinar, uma vez que na sociedade do Antigo Regime as pessoas aprendiam a escrever
posteriormente ao aprendizado da leitura. Cf. ARAÚJO, A., A morte em Lisboa; atitudes e representações (1700-1830), Lisboa, Editorial
Notícias, 1997, p. 101. Sobre a educação no Antigo Regime, ver FERREIRA, A., “A educação no Portugal barroco: séculos XV a XVIII”, in
STHEPHANOU, M.; BASTOS, M. (orgs), Histórias e memórias da educação no Brasil – vol.1 – Séculos XVI-XVIII, Petrópolis / Rio de
Janeiro, Vozes, 2004; SILVA, M. B., “A educação da mulher e da criança no Brasil colónia”, in STEPHANOU, M.; BASTOS, M., Histórias
e Memórias da Educação no Brasil, Vol. I – Séculos XVI-XVIII, Petrópolis, Editora Vozes, 2004; FONSECA, T., “Historiografia da
Educação na América portuguesa: balanço e perspectivas”, In Anais do II Congresso Mineiro de História da Educação em Minas Gerais,
Uberlândia, EDUFU, 2003; VILLALTA, L., “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”, in SOUZA, L. (org), História da vida
privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997; ALGRANTI, L., “Educação
Feminina: vozes dissonantes no século XVIII e a prática colonial”, in MONTEIRO, J.; BLAJ, L., História e Utopias, São Paulo, ANPUH,
1996; FERNANDES, R., Os caminhos do ABC: sociedade portuguesa e ensino das primeiras letras – do pombalismo a 1820, Porto, Porto
Editora, 1994; ARIÈS, P., CARVALHO, L., As reformas pombalinas da instrução pública, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo
/ Editora Saraiva, 1978; CARRATO, J., Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968.
438
A nomeação do testamenteiro é um dos momentos mais significativos do acto de testar por apontar para as redes de sociabilidades
estabelecidas pelo testador ao longo da vida. Irmãos, cunhados, esposas, membros de destaque da sociedade, eclesiásticos, qualquer um
poderia ser nomeado testamenteiro. Dentre as obrigações do testamenteiro estavam: a responsabilidade pelo enterro e funeral do testador,
bem como pelo pagamento das despesas e dos sufrágios correspondentes; era também responsável pelo registo do testamento no prazo de 8
dias a contar da morte do testador; deveria ainda estar bastante observante para o cumprimento das disposições testamentárias e, ainda,
deveria facultar a consulta ao testamento daqueles que se apresentem interessados. Cf: LIMA, J. G., Manual dos Testamentos, Lisboa,
Biblioteca de Educação Nacional, 1915, p.42.
439
João José Reis analisa não somente a escolha das mortalhas, como também outros aspectos relacionados ao bem morrer, na América
portuguesa. Cf.: REIS, J. J., “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”, In ALENCASTRO, L. (org.), História da vida privada. Império: a
corte e a modernidade nacional, São Paulo, Companhia das Letras, vol. 2, 1997, p. 97-141.
440
APM, CMS 20. Testamento de António Ribeiro de Miranda, 1748, fl.26v – 28v.
441
Josefa Maria de Miranda já tinha recebido 400$000 réis de dote para poder se casar na forma de um legado.
163
filho, Manuel, residente em Sabará, era fruto de uma relação de António Miranda com a parda
Bernarda do Porto Alves. Todos foram instituídos como universais herdeiros e, aquele sobre o
qual o testador pouco ou nada sabia e que tinha sido enjeitado na Cidade do Porto, António de
Miranda solicitou que, caso o mesmo fosse localizado lhe atribuíssem a sua parte na herança.
Vale à pena ressaltar o facto de que todos os herdeiros descendentes citados no testamento de
António de Miranda eram filhos ilegítimos e tratados de maneira igualitária pelo pai no
momento de atribuição da herança. Tal comportamento adoptado pelo pai, além de colocar os
filhos em situação de igualdade, ainda os colocava à frente dos possíveis herdeiros colaterais
que pudessem reclamar a herança deixada por António de Miranda.
Na outra margem do Atlântico, na Paróquia de São João do Souto, entre os 969
testadores que registaram suas últimas vontades naquele solene instrumento, somente 18
reconheceram serem pais de filhos ilegítimos. Já dissemos que, ao contrário do que foi
observado no cômputo dos testadores da paróquia sabarense, cuja maioria era do sexo
masculino, entre os testadores da paróquia bracarense a maioria era do sexo feminino
(56,2%).
Margarida Durães442, em estudo desenvolvido sobre o sistema de transmissão da
herança no Termo de Braga, também verificou a presença maioritária das mulheres 443 entre os
testadores. Foram analisados 1663 testamentos dos quais 57,3% pertenceram às mulheres. Ao
analisar o estado matrimonial, verificou-se que as mulheres (solteiras e viúvas) superaram aos
homens no mesmo estado. As solteiras representaram 29% e as viúvas 30%, enquanto os
homens solteiros representaram 25% e os viúvos 28%. Pode dizer-se, no caso da sociedade
bracarense, que os efeitos das ondas migratórias (tanto para outras partes de Portugal, quanto
para outras partes do Reino) pode ser sido um factor que alterou consideravelmente o seu
perfil podendo ser analisado como uma tendência para a feminização daquela sociedade.
A partir do gráfico abaixo nota-se a predominância feminina quer entre as mulheres
solteiras, quer entre as viúvas. Os homens somente assumiram a dianteira quando analisamos
o perfil dos testadores casados, neste caso os homens casados representaram 20,2% e as
mulheres casadas 17,8%. Os eclesiásticos, caracteristicamente celibatários, foram
contabilizados separadamente e representaram 10,3% dos testadores. A maioria feminina
442
DURÂES, M., Herança e Sucessão; leis, práticas e costumes no Termo de Braga (séculos XVIII – XIX), Braga, Universidade do
Minho/Instituto de Ciências Sociais, 2000, Dissertação de Doutoramento.
443
Já Ana Cristina Araújo, ao analisar as atitudes e as representações individuais diante da morte no século XVIII, encontrou para algumas
paróquias que compunham a Cidade de Lisboa naquela época, uma maioria masculina entre os testadores, cerca de 59%. Cf: ARAÚJO, A., A
morte em Lisboa; atitudes e representações (1700-1830), Lisboa, Editorial Noticias, 1997, p. 98; Considere-se também o pioneiro estudo
desenvolvido por Michel Vovelle e que utilizou os testamentos de Provença como objecto de análise. Neste caso, a maioria masculina atingiu
os 80% dos testamentos analisados. Cf: VOVELLE, M., Piété baroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle. Les attitudes
devant la mort d'après les clauses de testaments, Paris, Seuil, 1978.
164
entre os testadores da Paróquia de São João Souto terá sido repetida entre aqueles que
reconheceram os filhos naturais? O reconhecimento da prole ilegítima entre os testadores da
paróquia bracarense foi bastante diminuto reflectindo uma tendência para a ocultação da
natalidade ilegítima comportamento já constatado nos assentos de baptismo. Ao
confrontarmos o perfil dos testadores da Paróquia de São João do Souto, ao longo do século
XVIII, com aquele apresentado no estudo desenvolvido por Custódio José Gomes de Vilas-
Boas444, a superioridade feminina permaneceu, ainda que se registe uma diferença numérica
menor. Os homens com idade superior aos 14 anos somaram 1261 indivíduos e as mulheres
na mesma faixa etária 1270.
Gráfico 4 – Distribuição dos testadores bracarenses por estado matrimonial, Paróquia de São João do
Souto, 1700 – 1799.
10%
23%
8%
20%
18%
6%
15%
444
VILAS-BOAS, C. J., Geografia e economia da província do Minho nos fins do século XVIII, Porto, Centro de Estudos Humanísticos da
Faculdade de Letras, 1970, Colecção Amphitheatrum.
165
Tabela 30 – Reconhecimento da prole ilegítima entre os testadores, Paróquia de São João do Souto,
1700 - 1799
Filhos Ilegítimos
Categoria V/A % %
(V/A)
Mulheres Solteiras 223 23,0% 5 0,5%
Homens Solteiros 55 5,7% 4 0,4%
Mulheres Casadas 172 17,8% 1 0,1%
Homens Casados 196 20,2% 3 0,3%
Mulheres Viúvas 150 15,5% - 0,0%
Homens Viúvos 73 7,5% 2 0,2%
Eclesiásticos 100 10,3% 1 0,1%
Total de testamentos
969 100,0% 16 1,7%
consultados
ADB - Testamentos da Provedoria, Paróquia de São João do Souto, século XVIII.
445
ADB, Testamentos da Provedoria, Testamento de Francisca Vieira, 11/05/1775, cota 4494.
166
tocou às disposições terrenas o que mais nos interessou no seu testamento foi aquela
declaração em que ela faz referencia aos filhos que teve no estado de solteira.
Declaro que sou solteira e não tenho ascendentes vivos nem filhos legítimos
somente tenho um filho ilegítimo que houve do Doutor Custódio Barroso de
Carvalho que se acha Monge de São Jerónimo e se chama o Padre Mestre
Doutor Frei Bernardo Salvador de Santa Teresa o qual instituo por meu
universal herdeiro de todos os meus bens e herança; e se para haver suceder-
me for necessária legitimação não obstante estar ele legitimado por parte de
seu pai, peço a Sua Majestade e a Sua Santidade o legitimem e hajam por
legitimado pois eu assim o quero e assim é minha vontade.446
O reconhecimento feito por Francisca Vieira do filho ilegítimo que teve com o Doutor
Custódio Barroso de Carvalho, Monge de São Jerónimo, revela dois aspectos interessantes: a
possibilidade conferida ao seu filho de aceder a uma ordem religiosa; e ainda a disposição de
Francisca Vieira para legitima-lo com aprovação régia do rei, caso fosse necessário para
garantir a sucessão do seu filho. A ordenação do filho de Francisca Vieira, assim como a
ordenação do filho de Maria Gonçalves Bahia, em Sabará, merece uma análise
pormenorizada, uma vez que o processo de inquirição de genere et vitae para a ordenação
religiosa era bastante rígido sendo investigada a origem dos candidatos que pretendiam tomar
ordens. A pureza de sangue, exigida para a concretização da ordenação religiosa, era
alcançada desde que o “candidato”, entre outras características, fosse nascido de legítimo
matrimónio. Ora, tanto Frei Bernardo Salvador de Santa Teresa (filho de Francisca Vieira),
quanto Bernardo Gonçalves Bahia (filho de Maria Gonçalves Bahia) eram filhos ilegítimos e,
mesmo assim, conseguiram alcançar a sua ordenação. Casos como estes não foram tão
invulgares quanto se imagina. Nas Minas Gerais, o filho primogénito de Chica da Silva com
Manuel Pires Sardinha acabou por se ordenar Cavaleiro da Ordem de Cristo o que, segundo
Júnia Furtado, “[…] era a maior honraria que um indivíduo não nobre poderia almejar no
Reino português.”447 Teria sido importante, nestes casos, a qualidade social dos pais?
Margarida Durães448, ao analisar os processos de Inquirição para a Congregação Beneditina
(uma das mais elitistas) verificou que a qualidade social dos pais foi fundamental apagando
toda e qualquer mancha que o candidato pudesse ter consigo.
Entre os homens casados destacamos o testamento do Doutor Custódio Barroso de
Carvalho, já mencionado no testamento de Francisca Vieira como pai do seu filho. È
446
ADB, Testamentos da Provedoria, Testamento de Francisca Vieira, 11/05/1775, cota 4494, fl.2v.
447
FURTADO, J. F., Chica da Silva e o contratador de diamantes; o outro lado do mito, São Paulo, Cia das Letras, 2003, p. 58.
448
DURÃES, M, “Draineurs d‟hommes et de rentes du monde rural. Les monastères bénédictins du nord-ouest du Portugal (XVIe – XIXe
siècles)”, in BRUNET, S. et LEMAITRE, N. (dir.), Clergés, communautés et familles des montagnes d’Europe, Publications de la Sorbonne,
Paris, 2005.
167
449
O Doutor Custódio Barroso de Carvalho menciona que foi feito um acordo nupcial que determinava que, na ausência de descendentes
cada um dos nubentes ficaria com o dote que adquiriram com o matrimónio. Neste caso, Maria Ferreira era possuidora de uma quinta
chamada São Julião de Passos (com todas as suas pertenças e adjacências); uma morada de casas na Rua do Souto, em Braga; e, ainda,
200$000 provenientes da herança deixada pelo seu pai, fruto de uma fazenda que tinha no Brasil. Arquivo Distrital de Braga, Testamentos da
Provedoria, Testamento do Doutor Custódio Barroso de Carvalho, 07/01/1739, cota 2148, fl.2r/2v.
168
450
Declaração prestada por uma viúva que, ao assumir a gerência dos bens dos filhos após o falecimento do marido, declarou em inventário
os filhos ilegítimos lado a lado dos filhos legítimos. Veremos no capítulo 6 os efeitos deste acto, bem como o acesso efectivo dos filhos
ilegítimos à herança dos pais.
169
Já vimos que a legitimação451 dos filhos acabaria por beneficiar não somente os filhos
ilegítimos, mas também seus herdeiros. Também para os pais a legitimação de seus filhos
assumia não somente a possibilidade de lhes garantir que “eles tenham bens em que melhor
possa passar a vida”, como também representava a sua preocupação em se redimirem do mal
que tinham legado aos seus filhos e, com isso, aliviarem a sua consciência.
[…] naturais, adulterinos, incestuosos e sacrílegos, vivendo só com o pai ou
com a mãe, ou mesmo sendo expostos, escondendo a vergonha da
imoralidade ou fugindo à imperante miséria, eram alvo da bondade dos pais
arrependidos, que os reconheciam, de modo a purificar a alma manchada
pelos acontecimentos passados.452
É importante que se considere, neste ponto, a relevância que as boas acções tiveram no
viver dos homens e mulheres do século XVIII. Segundo Ana Cristina Araújo, “ […] de facto a
morte marcava de um modo constante o quotidiano das sociedades do Antigo Regime. […]
Desse contacto estreito com o imponderável, nasceu uma das divisas mais sólidas e
homogéneas do discurso testamentário das populações do Antigo Regime, isto é, a lapidar
afirmação, de inspiração pública, da morte certa e da hora incerta.”453 A morte era certa, mas
certo também era que os pais e mães de filhos ilegítimos não quiseram levar consigo o peso
da imoralidade nem, tão pouco, atribuir-lhes a marginalização acarretada pelo nascimento fora
do matrimónio. Reconhecê-los, deixá-los amparados financeira e moralmente pode ter sido o
motivo que levou muitos homens e mulheres, a reconhecerem seus erros corrigindo-os por
meio da legitimação, apesar de se terem deixado levar pela “fragilidade humana”.
Mas o que era necessário, juridicamente, para pais/mães utilizarem o recurso da
legitimação para garantir o “bem-viver aos seus filhos”? Uma das condições principiais era
que o progenitor reconhecesse em escritura pública ou testamento a filiação, bem como a sua
intenção de perfilhar o ilegítimo. Este foi o procedimento escolhido por Catarina Teresa de
Moura, moradora na Rua Verde, no ano de 1763, ao reconhecer seus filhos Mariana Teresa e
Manuel José, frutos da relação com o Padre João Lopes de Araújo. Catarina Teresa declarou
que “[…] de sua livre vontade e sem constrangimento de pessoa alguma perfilhava e
legitimava e havia por perfilhado e legitimado aos ditos seus filhos Mariana Teresa e Manuel
José para que possam ambos sucederem em todos os seus bens." A vontade de Catarina estava
451
FREIRE, P. J., Instituições de Direito Civil Português, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1967.
452
LOPES, E. C., O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998, p. 156.
453
ARAÚJO, A., A morte em Lisboa; atitudes e representações (1700-1830), Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p. 49.
170
expressa na escritura que foi, devidamente, registada em Cartório. Uma vez registada a
vontade paterna/materna a lei exigia que a mesma fosse confirmada por um Alvará ou Carta
Régia454. Porém, uma outra questão surge neste contexto. Respeitados todos os procedimentos
e uma vez perfilhados, estariam os filhos ilegítimos aptos a concorrerem, igualitariamente,
com os filhos legítimos à herança455 dos pais? Frente a esta problemática torna-se necessário
discorrer sobre a interferência que a origem da filiação ilegítima teria no acesso aos bens dos
pais.
Sabe-se que, segundo a legislação, quer o reconhecimento seja por meio de
testamento, quer seja pela perfilhação, não equiparava, completamente, filhos legítimos e
ilegítimos. O que se pode verificar é que os filhos naturais tinham maior possibilidade de
acesso à herança que os espúrios (adulterinos, sacrílegos ou incestuosos). Vimos que para
uma criança que fosse inserida na categoria de filho natural, principalmente de plebeus, houve
a possibilidade de inserção no quotidiano familiar, como determina o título abaixo das
Ordenações Filipinas:
Se o pai for peão, suceder-lhe-ão, e virão à sua herança igualmente com os
filhos legítimos, se o pai os tiver. E não havendo filhos legítimos, herdarão
os naturais todos os bens e herança de seu pai, salvo a terça se ao pai tomar,
da qual poderá dispor como lhe aprouver.456
Ainda neste título regem as Ordenações Filipinas que, para os efeitos da lei, eram
considerados filhos naturais aqueles nascidos "[...] de qualquer mulher solteira com homem
solteiro sem embaraço para se casarem". Há contudo clara diferenciação entre os filhos
naturais de pais solteiros e aqueles nascidos de uniões concubinarias. Aos primeiros, além da
possibilidade de serem legitimados com subsequente matrimónio, ainda existia a possibilidade
de, uma vez legalmente reconhecidos, acederem à herança de seus pais e, em alguns casos,
poderiam sucedê-los. Aos filhos de concubinas que se relacionavam com mais de um homem,
a legislação era clara ao determinar que:
O filho natural havido de mulher que tenha ajuntamento com muitos homens
ao mesmo tempo, é insucessível ao pai mesmo [que] peão; não por exclusão
legal, porque hoje ab-rogado o concubinato ele é equiparado ao filho natural,
mas por não poder provar a paternidade.457
454
Durante o século XVIII cabia à Mesa do Desembargo do Paço expedir os Alvarás e Cartas Régias de confirmação de perfilhação, mas no
século XIX tal encargo passou a ser responsabilidade dos Conselhos Distritais e, posteriormente, da Secretaria dos Negócios do Reino. Ver
FREIRE, P. J. M., Instituições de Direito Civil Português, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1967.
455
Define-se herança como "A universalidade dos bens que alguém deixa por ocasião de sua morte, e que os herdeiros adquirirem. É o
conjunto de bens, o património, que alguém deixa ao morrer". BEVILÁQUA, C., O Direito das Sucessões, 5 Ed. Rio de Janeiro, Ed. Paulo
de Azevedo, 1955, p.120.
456
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 92, p. 940/941.
457
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 92, p. 941.
171
458
Definidos nas Ordenações Filipinas como todos aqueles cujo pai não foi possível identificar, porque "[...] não é confessável ou perante a
sociedade ou perante a lei, pela ilegalidade ou reprovação do coito de que procedem. Assim são os sacrílegos, os incestuosos, e os
adulterinos". Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 93, Nota 7, p. 943.
459
Helena Machado, em estudo desenvolvido sobre a problemática da paternidade e os efeitos sociológicos da sua investigação percebeu
que, nos processos de investigação judicial de paternidade levados a cabo no Tribunal do Vale entre os anos de 1893 a 2000, o recurso à
desqualificação moral da mãe, conjugado com a impossibilidade de provar, de maneira irrefutável a paternidade, foram argumentos bastante
utilizados nos processos. Esta situação, entretanto, foi resignificada com a utilização dos testes de ADN nos processos judiciais. Cf.
MACHADO, H., Tribunais, Género, Ciência e Cidadania; uma abordagem sociológica da investigação judicial da paternidade, Braga,
Universidade do Minho, 2002, (Dissertação Doutoramento).
460
O Padre Raphael Bluteau define Meretriz como sendo “Mulher que faz mercê, mulher pública, mulher prostituta e posta a ganho. Cf.
BLUTEAU, Raphael (Padre), “Meretriz”, in Vocabulário Português e Latino, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712,
vol. 5, p. 437. Ainda sobre a classificação e a diferenciação entre os filhos naturais de concubina teúda e manteúda e os filhos de meretrizes,
ver o conteúdo da Nota 7, Irmãos de danado coito, Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 93, p. 943.
461
Em toda a documentação analisada para este trabalho pertencentes às duas paróquias: registos paroquiais, testamentos, cartas e escrituras
de legitimação, inventários post-mortem, o termo utilizado para caracterizar os filhos nascidos de relações não sancionadas pela Igreja foi
natural.
462
LOPES, E., O revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998.
463
Criada no reinado de D. João II foi somente a partir da publicação das Ordenações Manuelinas que a Mesa do Desembargo do Paço
assumiu a condução de assuntos relacionados à justiça. A regulamentação das atribuições do Desembargo do Paço está presente nas
Ordenações Filipinas, Livro I, Título III “Dos Desembargadores do Paço”. Dentre as atribuições dos Desembargadores do Paço estavam:
“[…] despachar as petições de graça, que nos for pedida, em causa, que à Justiça possa tocar, assi como Cartas de Privilégios e liberdades às
pessoas, a que per nossas Ordenações forem outorgadas, que não sejam, nem toquem a direitos, rendas ou tributos.” Ordenações Filipinas,
Livro I, Título III, “Dos Desembargadores do Paço”, p. 12 – 14. Dentre as atribuições da Mesa do Desembargo do Paço estava a concessão
de Cartas de Legitimação, confirmações de perfilhamento, e de doações, que algumas pessoas fizeram a outras. Sobre a estrutura da Mesa do
Desembargo do Paço, ver SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes, O Desembargo do Paço (1750-1833), Lisboa, Universidade Autónoma de
Lisboa, 1996.
172
A tabela acima apresenta a quantificação, por sexo, dos pais que reconheceram seus
filhos por meio das escrituras de legitimação. Percebe-se a predominância masculina que
somou um total de 130 documentos. Neste número não podemos deixar de considerar que,
entre os pais que legitimaram seus filhos e/ou filhas, foram encontrados um total de 64
eclesiásticos que representaram 49%.
Ao analisarmos, de maneira conjugada, o estado matrimonial e o sexo dos
progenitores elaboramos a tabela abaixo onde se nota, com maior clareza, a composição do
quadro de pais e mães que legitimaram seus filhos nas escrituras públicas. Os homens e
mulheres solteiras predominavam, mesmo que com pequena diferença, compreendendo,
respectivamente, 77% e 87% do total de pais e mães. Contudo, o quadro modificou-se
bastante quando analisamos o estado conjugal de homens e mulheres casadas que
expressaram suas vontades nos livros de notas bracarenses. Regista-se um predomínio dos
homens, com 18%, enquanto as mulheres somaram apenas 2%. O quadro novamente se
inverte ao analisarmos os viúvos. Neste caso, as mulheres predominam com 6%
representando os homens viúvos apenas 1% do universo das escrituras de legitimação.
464
Ordenações Filipinas, Quarto Livro, Provisão de 18 de Janeiro de 1799, p. 1053/54
465
Para efeito de contagem das escrituras de legitimação identificadas foi necessário considerar que em 64 delas os pais e/ou mães
reconheceram mais de um filho(a) sendo contabilizados somente uma vez.
173
466
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga, ordenadas no ano de 1639 pelo Ilustríssimo Senhor Arcebispo D. Sebastião de Matos e
Noronha, Lisboa, Oficina de Miguel Deslandes, 1697.
467
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga, ordenadas no ano de 1639 pelo Ilustríssimo Senhor Arcebispo D. Sebastião de Matos e
Noronha, Lisboa, Oficina de Miguel Deslandes, 1697. Título XII, Constituições XXII, p. 209.
175
[…] por não ter nem pai nem mãe nem avô nem avó nem herdeiro forçoso
que precisamente haja de suceder em seus bens e ter muito amor e afeição
aos ditos seus quatro filhos José Manuel, António José, Maria Josefa e Rosa
Maria e desejar que eles tenham bens com que melhor possam passar a vida;
por outros justos motivos e honestos respeitos do serviço de Deus Nosso
Senhor que a isso o movia; […] para que eles possam suceder em seus
bens.469
Ainda no ano de 1747 o Doutor e Reverendo Serafino Cerqueira Leitão, morador na
Rua de São João do Souto, apresentou-se no cartório localizado no largo da Praça do Pão com
objectivo de registar uma escritura de legitimação de Gracia Maria (que na altura do registo
da escritura tinha 21 anos). Gracia Maria era fruto de uma relação que ele tivera, por
“fragilidade humana”, com Ana Maria de Sousa quando já era clérigo de missa e advogado
nos auditórios da Cidade de Braga. O padre Serafino Cerqueira Leitão, como os demais que
legitimaram seus filhos e registaram o mesmo desejo nos livros de notas de Braga, fê-lo por
não ter herdeiros e desejar que seus bens fossem transmitidos, legalmente, aos seus filhos. E
fundamentou sua vontade utilizando as seguintes palavras:
469
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 823, fl.30v-31r. Escritura de legitimação passada pelo reverendo padre António José de
Sousa aos seus filhos José Manuel, António José, Maria Josefa e Rosa Maria, 21.10.1778.
470
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 704, fl.117v. Escritura de legitimação passada por Serafino Cerqueira Leitão à sua filha
Gracia Maria, 13.07.1747
177
Mas o aspecto que confere ao caso uma análise interessante é o facto de que na mesma
escritura o Reverendo Padre Felipe Correia da Silva471 declarar que a legitimação que naquele
dia 13 de Janeiro de 1779 ele fazia se devia aos seguintes factores: o primeiro deles era o
facto de que ele não possuía herdeiros forçosos ascendentes ou descendentes para os quais
poderia deixar seus bens; mas o segundo motivo que o fez legitimar as duas filhas torna mais
relevante o processo, já que o Reverendo Padre Felipe Correia da Silva declarava que por sua
livre e espontânea vontade e sem constrangimento de pessoa alguma legitimava suas filhas
por lhes ter “[…] muito amor e afeição” para que as mesmas pudessem herdar e suceder em
todos os seus bens.
Ainda analisando casos de eclesiásticos que decidiram legitimar seus filhos e enfrentar
os problemas que tal atitude poderia causar, um terceiro apresenta-se bastante interessante
para que possamos avaliar os significados da legitimação na sociedade bracarense do século
XVIII. O Reverendo Francisco de Paiva Leite Brandão, no dia 11 de Maio de 1797, registou
uma escritura de legitimação em que reconhecia como filha a Dona Maria Delfina de Paiva
Leite Brandão, filha que teve
[…] por fragilidade humana […] com certa mulher honesta e recolhida cujo
nome por decências e honestidade mais circunstancias particulares não pode
declarar [e] que ela concebeu e pariu uma menina da qual ele outorgante
tomou conta por conhecer clara e distintamente e sem a menor duvida era
sua filha e fez baptizar por ele e por sua conta a fez criar de leite e logo
depois a fez conduzir para sua própria casa e na sua companhia a conserva e
tem educado ao presente.472
O caso do Reverendo Francisco de Paiva Leite Brandão torna-se emblemático uma vez
que, ao que tudo indica, a filha, Dona Maria Delfina de Paiva Leite Brandão era fruto de uma
relação que teve com uma mulher que se encontrava em um recolhimento religioso. A
preocupação do Reverendo em não divulgar o nome da mãe e, ainda, a certeza que o mesmo
tem de que a criança era sua filha, pois “[…] no tempo de concepção nem um nem outro
algum foi infamada a mãe dela de desonesta com homem algum antes sempre foi tida e
havida por reputada […] e recolhida sem fama nem rumor em contrário."473
O reconhecimento dos filhos ilegítimos feito por eclesiásticos mostra-nos que apesar
da recorrente preocupação em apresentar a “fragilidade humana” justificativa de seus actos
471
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 823, fl.150v-151r. Escritura de legitimação passada por Felipe Correia da Silva às suas
filhas Joaquina Rosa e Inácia Rosa, 13.01.1779.
472
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 145, fl.93v-94r. Escritura de legitimação passada por Felipe de Paiva Leite Brandão à sua
filha Dona Maria Delfina de Paiva Leite Brandão, 11.05.1797. fl. 93r.
473
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 145, fl.93v-94r. Escritura de legitimação passada por Felipe de Paiva Leite Brandão à sua
filha Dona Maria Delfina de Paiva Leite Brandão, 11.05.1797. fl. 93r.
178
houve, por outro lado, por parte dos pais uma tentativa de impedir que seus filhos fossem, de
alguma maneira, marginalizados pela comunidade.
O que dizer, entretanto, dos filhos ilegítimos reconhecidos por suas mães? A
paternidade poderia sim ser motivo de dúvida, mas a maternidade não. Então, o que as teria
levado a utilizar este instrumento público para reconhecer seus filhos?
Entre as escrituras de legitimação localizadas, 93 foram registadas por mulheres. Este
número significativo de mulheres preocupadas com a legitimação de seus filhos despertou-nos
a curiosidade para conhecer as razões por elas mencionadas que justificassem a necessidade
de um processo de reconhecimento e legitimação de seus filhos perante um notário público.
Antónia Maria de Barros, viúva e moradora na Rua da Ponte, na cidade de Braga, no dia
quatro de Janeiro de 1774 reconheceu e legitimou os filhos que tivera com João da Costa. Seu
filho, João António, que tinha pouco mais ou menos 7 anos de idade e Ana Maria que tinha 4
ou 5 anos. O problema que se colocou na legitimação dos filhos de Antónia Maria de Barros e
João da Costa foi o facto de o pai ser seu cunhado, irmão do seu falecido esposo, José João da
Costa.
Contudo, o que levou Antónia Maria de Barros a enfrentar os possíveis problemas que
sua atitude causaria, bem como a marginalização que poderiam sofrer seus filhos após o seu
reconhecimento foi o fato de a mesma ter: “[…] muito amor e afeição aos ditos seus filhos e
desejar que eles tenham bens com que melhor possam passar a vida.”474 Em virtude disso,
destaca-se no documento que “[…] Por este presente publico instrumento disse ela dita
Antónia Maria de Barros que de sua livre vontade e sem constrangimento de pessoa alguma
perfilhava e legitimava […] aos ditos seus filhos João António e Ana Maria para que possam
suceder em todos os seus bens."475
Entre os homens que legitimaram seus filhos perante o notário público, o caso de
Paulo da Fonseca Coutinho, morador no lugar de Passos, Freguesia de São Miguel de
Monção, termo da Vila de Guimarães, tem um discurso que vale a pena ser analisado. No ano
de 1775, Paulo da Fonseca Coutinho, solteiro, declarou, perante as testemunhas, que teve uma
filha chamada Custódia Maria fruto da comunicação ilícita que tivera com Senhorinha da
Costa, solteira, já falecida e moradora que foi na mesma freguesia. Sua filha já estava casada
474
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 805, fl.46v-47r. Escritura de legitimação passada por Antónia Maria de Barros a seu filho
João António, 04.01.1774.
475
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 805, fl.46v-47r. Escritura de legitimação passada por Antónia Maria de Barros a seu filho
João António, 04.01.1774.
179
com Francisco José Mendes, cirurgião do lugar da Cruz, freguesia de São Torquato do dito
termo de Guimarães quando ele registou sua legitimação.
Assim como os demais progenitores de filhos ilegítimos que decidiram pelo
reconhecimento público e legal dos seus descendentes Paulo da Fonseca Coutinho declarou
que por não ter herdeiros forçosos ascendentes ou colaterais que pudessem herdar e suceder
em seus bens fazia-se necessário a legitimação do filho que teve com Senhorinha da Costa.
Contudo, além dessa razão Paulo da Fonseca Coutinho declarava também que por ter “[…]
muito amor e afeição a dita sua filha deseja que ela tenha bens com que melhor possa passar a
vida, atendendo aos muitos e bons benefícios que dela tem recebido assim no decurso de vinte
e cinco anos que com ele assistiu em cujo tempo sempre ele a reconheceu por sua filha como
depois de ela casada com o dito seu marido, espera receber.”476
Entre as 223 escrituras identificadas no Arquivo Distrital de Braga deparamo-nos com
7 casos de pais e mães que legitimaram filhos nascidos durante a ausência de um deles no
Brasil. Interessante observar que o impacto da imigração minhota para o Brasil também surtiu
efeito no nascimento de ilegítimos na região do Minho, devido às prolongadas ausências de
um dos cônjuges, mais frequentemente o esposo.
Um dos casos a ser analisado é o de Helena Teresa, moradora na Rua da Água, na
cidade de Braga que, no ano de 1757 reconheceu e legitimou as duas filhas que tivera com o
Reverendo Vasco Martinho Falcão. O aspecto interessante contido na escritura de legitimação
passada por Helena Teresa é o fato dela ser casada com Francisco Ferreira que “[…] se
encontrava ausente nos Estados do Brasil” quando manteve relações com o Reverendo Vasco
Martinho Falcão. As filhas reconhecidas por Helena eram assim frutos de uma relação
sacrílega, mas também eram a prova do adultério que a mãe cometera na ausência do cônjuge.
Ao que tudo indica Francisco Ferreira esteve ausente no Brasil por cerca de 15 anos uma vez
que a filha mais velha de Helena e Vasco, Joaquina, tinha mais ou menos 16 anos. Além
disso, o fato de Helena e o Reverendo Vasco terem mais outra filha, Clara, de 8 anos faz-nos
concluir que a sua relação era continuada. Para nossa surpresa identificamos, também, as
escrituras de legitimação passadas, no ano de 1756, pelo Reverendo Vasco Martinho Falcão
às suas filhas Joaquina e Clara. O que demonstra é que a identificação das escrituras de
legitimação passadas pelos pais aponta para o desejo de ambos em reconhecer as filhas e,
além disso, o fato de ambos assumirem a relação que mantiveram enquanto o cônjuge de
Helena, Francisco Ferreira, estava ausente.
476
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 812, fl.71r, Escritura de legitimação passada por Paulo da Fonseca Coutinho à sua filha
Custódia Maria, 11.10.1775.
180
As razões que Helena deu para o reconhecimento das filhas foi, mais uma vez,
[…] que por não ter pai nem mãe nem avô nem avó nem herdeiro forçoso
que precisamente haja de suceder em seus bens por este presente publico
instrumento disse ela dita Helena Teresa perfilhava e legitimava e havia por
perfilhadas e legitimadas as ditas suas duas filhas Joaquina e Clara para que
possam suceder em todos os seus bens assim moveis como de raiz.477
Mas o caso que melhor expõe o que significou a ida de portugueses para o Brasil é o
de Julião Rodrigues da Cruz478, morador na Freguesia de São Salvador do Couto de Arentim,
Arcebispado de Braga, que no ano de 1786 apareceu perante o notário público para
reconhecer as duas filhas que tivera com Maria Rosa. Até aqui, em pouco difere o caso de
Julião Rodrigues dos demais até agora apresentados. Contudo, no mesmo documento utilizado
por ele para reconhecer suas filhas, Julião Rodrigues discorreu sobre sua vida até aquele
momento e é esse ponto que será objecto de análise. Segundo Julião Rodrigues ele foi casado,
in face eclesia, com Ângela Ferreira, mas não chegou a coabitar com a mesma partindo em
seguida para o Brasil onde viveu por cerca de quinze anos. Ao voltar para Portugal encontrou
a esposa, Ângela Ferreira, “[…] com alguns filhos de diversos homens por cujo motivo mais
se afastou ele outorgante da comum casa dela”. Após seu afastamento Julião Rodrigues
passou a “[…] ter comunicação com Custodia Fernandes solteira da mesma freguesia e couto
hoje falecida de que resultou ter uma filha por nome Custodia” e também com “[…] Maria
Rosa solteira da freguesia do Couto de Cambeses [de quem teve uma filha] por nome Ana as
quais reconhece ele outorgante e das sobreditas Custodia Fernandes e Maria”.
Assim como Julião Rodrigues, muitos outros portugueses, deixaram seus lares, suas
esposas, e partiram rumo ao Brasil. Apesar dos planos de voltarem a Portugal passado algum
tempo, a maioria acabou por ficar no Brasil e estabelecer lá novas famílias, novas redes de
sociabilidades. Julião Rodrigues acabou por voltar a Portugal e aqui chegando deparou-se
com sua esposa, Ângela Ferreira, cercada de filhos que não eram dele o que comprovava a sua
infidelidade. Contudo, assim como Ângela Ferreira, Julião Rodrigues da Cruz também
estabeleceu outros laços familiares ao voltar para Portugal. E são as filhas que teve de suas
relações fortuitas e não legalizadas, que ele pretende legitimar “[…] por causas e certezas que
disso tem e as ditas suas filhas para descargo de sua consciência quer perfilhar e habilitar por
477
ADB – Nota Geral de Braga – 1ª Série, livro 742, fl.144r-144v, Escritura de legitimação passada por Helena Teresa às suas duas filhas
Joaquina e Clara, 15.04.1757.
478
ADB – Nota Geral de Braga – 2ª Série, livro 742, fl.47v-48r, Escritura de legitimação passada por Julião Rodrigues Cruz às suas duas
filhas Custódia e Ana, 27.02.1786.
181
suas legitimas herdeiras de seus bens, direitos para o que pede a Sua Real Majestade
Fidelíssima que Deus Guarde lhe faça autorizar essa perfilhação e habilitação."479
Até agora observamos alguns dos casos de nascimento de filhos ilegítimos de plebeus,
embora alguns deles fossem possuidores de certas qualidades e privilégios sociais. Mas, além
destes, interessa-nos conhecer como se processava a legitimação dos filhos ilegítimos de
nobres. Qual era o procedimento para alcançar o seu reconhecimento? Que documento era,
originalmente, utilizado para este fim? As cartas de legitimação eram, usualmente, utilizadas
para a legitimação de filhos ilegítimos de nobres480.
Nas próximas páginas, analisaremos, alguns processos de legitimação de nobres
residentes na paróquia sabarense. É interessante observar que não foram somente os
progenitores que se apresentaram frente ao rei e seus conselheiros para solicitar a legitimação
dos seus filhos. Vimos, em alguns casos, os próprios filhos enviarem a solicitação de
legitimação alegando, na maioria das vezes, que a brevidade da morte do seu progenitor o
tinha impedido de efectivar o pedido de legitimação. Passaremos à análise de três casos que
julgamos emblemáticos no estudo das facetas que a ilegitimidade atingiu no quotidiano das
famílias setecentistas mineiras: o primeiro deles é o processo de legitimação que deu entrada
no Conselho Ultramarino em Lisboa no ano de 1748 e que foi empreendido por Caetano
Rodrigues Soares481; o segundo caso é a solicitação de legitimação de seis filhos adulterinos
apresentada ao Rei D. José I e seus conselheiros pelo Mestre de Campo Manuel da Silva
Rosa482; o terceiro, e último caso, foi o pedido de legitimação enviado por Francisca de Paula
Ribeiro de Miranda483, no ano de 1788. A apresentação destes três casos têm como objectivo
lançar luzes sobre a vivência das várias formas de ilegitimidade no quotidiano sócio jurídico.
Veremos que filhos naturais, adulterinos e espúrios enfrentaram, de maneira bastante distinta,
o peso que a origem do seu nascimento acarretava.
479
ADB – Nota Geral de Braga – 2ª Série, livro 742, fl.47v-48r, Escritura de legitimação passada por Julião Rodrigues Cruz às suas duas
filhas Custódia e Ana, 27.02.1786.
480
Já vimos no capítulo 2 relativo às fontes e a metodologia empregada na sua análise que, por meio dos pedidos de legitimação é possível
analisar aspectos como: estatuto legal do pai (nobre, plebeu ou eclesiástico); condição étnica e social da mãe; em que circunstância se deu a
concepção do filho (concubinato, adultério, incesto ou sacrilégio); existência de ascendentes ou descendentes (os chamados herdeiros
forçados); tipo de bens a serem herdados pelo filho legitimado (sendo necessária aqui a análise conjunta dos inventários o estatuto legal das
testemunhas convocadas para confirmar a paternidade declarada, entre outros.
481
AHU, Pedido de Legitimação de Caetano Rodrigues Soares, cx.51, doc.5, 1748.
482
AHU, Solicitação do Mestre de Campo Manuel da Silva Rosa para legitimação dos filhos que teve com Eugénia Rodrigues Santiago, cx.
39, doc.55, 1740.
483
AHU, Requerimento de Francisca de Paula Ribeiro de Miranda filha ilegítima de Severino de Miranda Ribeiro, solicitando a D. Maria
I mercê de ordenar se lhe passasse carta de legitimação para disputar os bens de seu pai com suas irmãs, Cx.129, doc. 10, 1788.
182
484
AHU, Capitania de Minas Gerais, Pedido de Legitimação de Caetano Rodrigues Soares. Cx.51, doc.5, CD 16, 1748.
485
O Mestre de Campo Manuel Rodrigues Soares era natural da Freguesia de Nossa Senhora de Monserrat, da Vila de Viana e filho
legítimo de Pedro Rodrigues Soares e Ana de Almeida.
486
Interessante observar que, em estudo feito sobre as famílias do nordeste do Brasil no período colonial, Maria Beatriz Nizza da Silva
aponta a raridade com a qual os filhos ilegítimos de senhores de engenhos eram legitimados. "Dificilmente aceitavam as famílias dos
senhores de engenho, morgados ou não, a participação da prole ilegítima na herança, sobretudo se essa prole resultava de uma relação com
pessoa de diferente condição social. SILVA, M. B., História da família no Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 67.
487
ACBG/MO, Testamento de Manuel Rodrigues Soares, Códice 6, fl. 126-143, 1736.
183
488
AHU, Capitania de Minas Gerais, Pedido de Legitimação de Caetano Rodrigues Soares, cx.51, doc.5, 1748.
489
AHU, Capitania de Minas Gerais, Pedido de Legitimação de Caetano Rodrigues Soares, cx.51, doc.5, 1748.
184
mesmo tinha na legitimação do filho em testamento foram argumentos utilizados para que
fosse confirmada a informação passada por Caetano Rodrigues Soares.
A segunda testemunha do processo foi José Vieira Lima, português, natural da Vila de
Viana, Arcebispado de Braga, morador na Fazenda do Jequitaí, que disse ter "pouco mais ou
menos" quarenta e cinco anos e declarou "viver de seu negócio". José Vieira também
confirmou a vontade que Manuel Rodrigues Soares tinha de legitimar seu filho, tratando-o
sempre como tal. Acrescenta, em seu testemunho, que:
[...] apertando-lhe a doença de que morreu [Manuel Rodrigues Soares] lhe
pediu a ele testemunha que visse por brevidade possível a esse Arraial de
São Romão buscar Tabelião porque queria aprovar seu testamento sendo a
maior razão a vontade que tinha de declarar nele deferido o que com efeito
fez ele testemunha e por mais pressa que se deu como vinha em canoa por
estarem os campos alagados do Rio São Francisco e serem sessenta léguas
por ele acima quando chegou o Tabelião digo chegou a tábua como Tabelião
Bernardo da Silva para isso e efeito havia dois dias que havia falecido.490
A terceira e última testemunha convocada foi Francisco dos Santos, brasileiro, natural
dos Campos da Cachoeira, Arcebispado da Cidade da Bahia, de idade "pouco mais ou menos"
de sessenta anos e que disse viver de "criar gado". Sendo perguntado sobre a paternidade de
Caetano Rodrigues Soares, a testemunha disse que "sabe pelo ver e por assistir muitos anos
até achara da sua morte em casa do defunto o Mestre de Campo Manuel Rodrigues Soares que
esse sempre teve e tratou ao suplicante Caetano Rodrigues Soares por seu filho".
Percebe-se que, antes de as testemunhas darem o depoimento para o qual haviam sido
convocadas, alguns dados pessoais foram registados para que a idoneidade do processo fosse
garantida. Das três testemunhas convocadas, dois eram portugueses naturais do Arcebispado
de Braga, fato este que confirma o que vem sendo dito ao longo desta dissertação sobre a
presença considerável de minhotos na Vila de Sabará e como a origem portuguesa conferia
idoneidade ao testemunho.
Neste contexto, não podemos deixar de trazer à colação o caso do Mestre de Campo
Manuel da Silva Rosa, morador em Vila Rica das Minas. No ano de 1746, declarou sua
intenção em reconhecer os seis filhos que teve com Dona Eugénia Rodrigues Santiago. Sua
declaração apresenta aspectos interessantes para serem analisados, requerendo, para isso, sua
transcrição integral.
Diz o Mestre de Campo Manuel da Silva Rosa morador em Vila Rica das
Minas que ele se acha recebido e casado na forma do Sagrado Concílio
Tridentino com Dona Eugénia Rodrigues de Santiago, e sendo essa casada
ouve dela seis filhos a saber [grifo nosso]: Quitéria ao presente de idade de
23 anos, Maria ao presente de idade de 21 anos, Manuel ao presente de idade
490
AHU, Capitania de Minas Gerais, Pedido de Legitimação de Caetano Rodrigues Soares, cx.51, doc. 5, 1748, fl.15.
185
491
AHU, Solicitação do Mestre de Campo Manuel da Silva Rosa para legitimação dos filhos que teve com Eugénia Rodrigues Santiago, cx.
39, doc.55, 1740.
492
AHU, Solicitação do Mestre de Campo Manuel da Silva Rosa para legitimação dos filhos que teve com Eugénia Rodrigues Santiago, cx.
39, doc.55, 1740.
493
AHU, Requerimento de Francisca de Paula Ribeiro de Miranda filha ilegítima de Severino de Miranda Ribeiro, solicitando a D. Maria
I mercê de ordenar se lhe passasse carta de legitimação para disputar os bens de seu pai com suas irmãs, Cx.129, doc. 10, 1788.
186
pai com seus irmãos. Francisca de Paula Ribeiro de Miranda anexa à sua petição o trecho do
testamento de seu pai494 no qual declara os filhos naturais que tem.
[...] me acho no estado de solteiro por nunca ser casado porem tenho quatro
filhos dois machos e duas fêmeas a saber: Manuel de Miranda e José de
Miranda pardos e filhos de uma negra por nome Rosa já defunta e Josefa
filha de Florência Ferreira mulher parda e Francisca filha de Maria Ferreira
os quais ditos quatro nomeados os instituo por meus universais herdeiros.495
Aproximadamente 12 anos depois, Francisca de Paula Ribeiro de Miranda 496, assistida
por seu marido, Manuel Coelho dos Santos e Silva, ambos naturais das Minas Gerais,
declarou ter recebido do Conselho Ultramarino e do Rei uma carta de legitimação que
confirmava ser ela filha de Severino de Miranda Ribeiro. O reconhecimento de Francisca de
Paula deu-se por meio do testamento, o que a tornou apta a concorrer aos bens do pai,
juntamente com os demais irmãos, também filhos naturais.
Francisca de Paula Ribeiro de Miranda era filha natural de Severino de Miranda
Ribeiro e de Florência Ferreira, parda forra. Após sua habilitação, Francisca entrou com um
libelo de nulidade de uma escritura de venda que seu pai havia feito, na hora da morte, para
Manuel de Miranda Ribeiro, um de seus filhos. Francisca, se sentido lesada com tal escritura,
solicitou que a mesma fosse anulada, baseando-se no Título 12, Das vendas e trocas, que
alguns fazem com seus filhos e netos, Livro 4º, das Ordenações do Reino, que determinava:
Por evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem causar
das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros
descendentes, determinamos, que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou
neto, nem a outro descendente. [...] e por morte do vendedor, a coisa que
assim for vendida, ou trocada, será partida entre os seus descendentes, que
seus herdeiros forem, como que estivera em poder do vendedor, e fora sua
ao tempo da sua morte, sem por isso pagarem algum ao que a comprou.497
O que Francisca pretendia, ao pedir uma declaração ao Conselho Ultramarino de que
havia sido legitimada, era competir igualmente à herança deixada por seu pai. Ela dirigiu-se
ao Rei argumentando:
[...] para Vossa Alteza Real, que pelo seu Supremo poder e inata clemência
em atenção que a suplicante não é culpada em ser havida de coito punível,
quando por graça especial se acha habilitada para suceder em morgados, se
digne facultar-lhe a nova mercê de mandar por este régio tribunal a
494
Note-se que Manuel Simões de Azevedo teve quatro filhos, sendo três deles filhos de mulheres diferentes, o que denota a ausência de
uma relação estável com qualquer uma delas.
495
AHU, Requerimento de Francisca de Paula Ribeiro de Miranda filha ilegítima de Severino de Miranda Ribeiro, solicitando a D. Maria
I mercê de ordenar se lhe passasse carta de legitimação para disputar os bens de seu pai com suas irmãs, Cx.129, doc. 10, 1788, fl. 6.
496
Arquivo Histórico Ultramarino, Requerimento de Francisca de Paula Ribeiro de Miranda filha ilegítima de Severino de Miranda
Ribeiro, solicitando a D. Maria I mercê de ordenar se lhe passasse carta de legitimação para disputar os bens de seu pai com suas irmãs,
Cx.129, doc. 10, CD 37, 1788.
497
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 12, p. 792.
187
498
Arquivo Histórico Ultramarino, Requerimento de Francisca de Paula Ribeiro de Miranda, natural das Minas Gerais, pedindo
declaração e "retriotramento"[?] de uma carta de legitimação que obteve para a herança de seu pai, Severino de Miranda Ribeiro, Cx. 154,
doc.29, 1800.
188
Vimos ao longo deste trabalho que, tanto a legislação eclesiástica, quanto a civil
ocupou papel fundamental na ordenação quotidiana da sociedade do Antigo Regime,
inclusivamente no que tocou à ilegitimidade. Embora as Ordenações Filipinas499 e as
determinações do Concílio de Trento500 tenham sido aplicadas em todo o Império
Português501, vale a pena ressaltar o facto de que a aplicação prática de ambos os códigos foi
acompanhada pela necessidade de considerar a interferência do quotidiano sócio familiar, ou
seja, veremos em muitas situações a introdução do aparato legal em conjunto com os
referenciais sócio culturais criadas ou recriadas em cada região do Império.
Neste contexto, antes de adentrarmos no universo sócio jurídico que cercou o viver de
pais, mães e filhos ilegítimos no século XVIII, importa-nos compreender o significado que a
família assumiu naquele período e as relações estabelecidas entre os seus membros. Veremos
que o papel assumido pela família, bem como os sentimentos familiares ocuparam um papel
fundamental na regulação do viver social e económico das famílias setecentistas.
Em estudo feito sobre os aspectos políticos e institucionais da formação do Estado
Moderno Português, António Manuel Hespanha502 analisou a importância que a família
assumiu naquele contexto. Segundo o autor, na literatura da época moderna as discussões em
torno da noção de família, bem como das hierarquias do amor503 existentes no seu seio
tiveram origem na teologia moral do Antigo Regime responsável por re-significar os
sentimentos vivenciados dentro das famílias, nomeadamente os estabelecidos pelos cônjuges
entre si e, destes, com seus filhos. Com base nisso, os sentimentos familiares pautavam-se,
499
Na América Portuguesa as Ordenações Filipinas vigoraram até o ano de 1916, quando foi promulgado o Código Civil Brasileiro. Em
Portugal Continental a substituição das Ordenações Filipinas ocorreu em 1867 com a promulgação do código civil elaborado pelo Visconde
de Seabra.
500
No caso de Portugal as determinações conciliares foram aplicadas por meio das Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga. Já na
América Portuguesa, vimos a aplicação das normas conciliares materializadas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
501
Ao longo do século XIX no Brasil houveram quatro tentativas de elaboração do Código Civil: a primeira em 1845 com o Barão de
Penedo; a segunda em 1864 um esboço de Augusto Teixeira de Freitas; a terceira em 1881 com Felício dos Santos e a última em 1890 com o
projecto de Coelho Rodrigues. Somente com a presidência de Campos Sales é que o jurista Clóvis Beviláqua apresentou um projecto de
Código Civil em 1901 que tinha, sobretudo, forte influência do Código Civil Alemão. Após varias modificações, foi aprovado em 1916
quando, então, entrou em vigor.
502
HESPANHA, A., História de Portugal Moderno; político e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
503
Sobre as questões relacionadas à hierarquia do amor, ver HESPANHA, A., História de Portugal Moderno; político e institucional,
Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
189
504
HESPANHA, A., História de Portugal Moderno; político e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 103.
505
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como o filho do peão sucede ao seu pai, p. 939 – 943.
506
Definidos nas Ordenações Filipinas como todos aqueles cujo pai não foi possível identificar, porque "[...] não é confessável ou perante a
sociedade ou perante a lei, pela ilegalidade ou reprovação do coito de que procedem. Assim são os sacrílegos, os incestuosos, e os
adulterinos". Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCIII, Como os irmãos de danado coito sucedem uns aos outros, Nota 7, p. 943.
507
É importante nos remetermos, neste aspecto, para o estudo desenvolvido por Frederic Le Play ao considerar os 3 tipos de organizações
familiares presentes no mundo moderno. A família patriarcal (caracterizada pela presença de uma propriedade familiar colectiva e pela
subordinação de todos os membros da família ao poder do chefe, na maioria das vezes personificada na figura do pai); na família troncal um
herdeiro era escolhido para receber toda a herança paterna e continuar os negócios do pai. Os demais filhos eram incentivados a se
desvincularem da sua casa, seja por meio do casamento ou da carreira religiosa. Em qualquer das opções, recebiam um dote relativo à sua
parte da herança; a família instável era aquela em que todos os filhos tinham acesso igualitário à herança do pai. Neste modelo familiar a
propriedade rapidamente se dissipava e a família acabava por seguir também o mesmo caminho.
190
Marido e mulher, por sua vez, vivenciavam simultaneamente uma relação igual e
desigual. Por meio do laço matrimonial marido e mulher eram considerados “carne de uma só
carne”, mas essencialmente a relação conjugal entre eles era desigual, isto é, a mulher estava,
sempre, subalterna aos desejos e determinações do marido508. Apesar disso, o que vemos no
contexto legislativo é a capacidade, por exemplo, da mulher substituir o seu marido na
gerência dos bens e na educação dos filhos ao assumir a sua tutela. As Ordenações Filipinas
eram claras ao determinarem que cabia à mulher, enquanto responsável pela partilha dos bens
do falecido marido509:
[…] trazer tudo a partilha, quando lha mandarem, assim o que ficou por
morte do marido, como o que depois comprou, ou ganhou, antes de ter
partido com os herdeiros do marido a herança, ou frutos dela: e isto, quer se
ela case, quer não.510
Frente ao tipo de relação estabelecida entre os cônjuges interessa-nos, num segundo
momento, analisar o tipo de “acordo matrimonial” estabelecido entre eles. A referência feita
nas Ordenações Filipinas a este respeito é a de que “Todos os casamentos feitos em nossos
Reinos511 e senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade”.512 Para que tal
regulamentação fosse garantida, a lei exigia que a união entre os cônjuges estivesse
sacramentada pela Igreja Católica.
E quando marido e mulher forem casados, por palavras de presente à porta
da Igreja, ou por licença do Prelado fora dela, havendo cópula carnal serão
meeiros em seus bens e fazenda. E posto que eles queiram provar, e provem
que foram recebidos por palavras de presente, e que tiveram cópula, se não
provarem que foram recebidos à porta da Igreja ou fora dela, com licença do
Prelado, não serão meeiros.513
Nota-se no trecho acima a mescla entre o Direito Civil e o Canónico relativamente à
questão da união matrimonial514 que somente era considerada válida aos olhos dos homens se
508
Segundo Hespanha “Já em relação aos poderes sobre os filhos, a inferioridade da mulher decorre, como reconhecem os juristas na
segunda metade do século XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que com a natureza do
casamento”. Cf. HESPANHA, A., História de Portugal Moderno; político e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, nota 4, p. 111.
509
Tal possibilidade será oportunamente abordada ao longo deste capítulo a partir da análise dos inventários post-mortem deixados por
habitantes da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
510
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCVI Como se hão de fazer as partilhas entre os herdeiros, § 7, p. 958.
511
Para a América Portuguesa, estudos como o de Maria Beatriz Nizza, sobre o sistema de casamento no período colonial apontam para o
facto de que a maioria das uniões era feita com base na carta de ametade. Cf. SILVA, M. B., Sistema de casamento no Brasil Colonial, São
Paulo, T.A. Queiroz/EDUSP, 1984.
512
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título XLVI, Como marido e mulher são meeiros em seus bens, p. 832.
513
Ordenações Filipinas, Título XLVI, Como o marido e mulher são meeiros em seus bens, § 1, p. 832/33.
514
“Conforme no decreto do Sagrado Concilio Tridentino, para valer o matrimónio, se requer, que se celebre em presença do Pároco, ou de
outro sacerdote de licença sua, ou do Ordinário, e em presença de duas, ou três testemunhas. E as pessoas que de outra forma quiserem casar,
são pelo mesmo Concilio havidos por inábeis para assim contraírem, e os tais contratos julgados, e declarados por nulos e de nenhum vigor.”
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título XLVI, Como o marido e mulher são meeiros em seus bens, p. 832, nota (3) Por palavras de presente à
porta da Igreja.
191
515
O casamento presumido também estava previsto no título XLVI das Ordenações Filipinas que considerava “[…] outrosim são meeiros,
provando que estiveram em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em publica voz e fama de marido e mulher por tanto
tempo, que, segundo Direito, baste que para presumir matrimónio entre eles, posto se se não provem as palavras de presente.” Ordenações
Filipinas, Título XLVI, Como o marido e mulher são meeiros em seus bens, § 2, p. 834/35.
516
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 65 Da doação feita pelo marido à mulher ou pela mulher ao marido, nota 4, p. 968.
517
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 65, Da doação feita pelo marido à mulher ou pela mulher ao marido, nota 4, p. 968.
518
A partilha dos bens de um indivíduo se dava da seguinte maneira: primeiro os descendentes, legítimos ou legitimados, recebendo estes
quantias iguais. Na falta destes, a divisão dos bens era feita entre os demais descendentes, nomeadamente os netos. Por fim, os ascendentes
de grau mais próximo e os parentes colaterais. Na ausência de todos estes o destino da herança ficava à escolha do testador. Cf. Ordenações
Filipinas, Livro IV, Aditamentos, Decreto de 17 de Julho de 1778, p. 1036 a 1038; Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCVI, Como se
hão de fazer as partilhas entre os herdeiros, p. 954 a 968. Embora a legislação estabelecesse que os filhos legítimos tinham a prioridade no
que tocava ao acesso à herança, este direito foi, paulatinamente, sendo estendido aos filhos ilegítimos (devidamente reconhecidos seja por
meio do testamento, seja por meio de escrituras publicas de legitimação) desde que não prejudicasse aos herdeiros legítimos. Sabe-se,
entretanto, que ao longo do século XVIII e XIX a legislação sofreu modificações, ora avançando, ora recuando no que tocava aos direitos dos
filhos ilegítimos.
192
519
Ordenações Filipinas, Livro 4, Título XCII, Como o filho peão sucede ao seu pai, p. 939 - 943.
520
Era dever dos filhos garantir que o pai fosse sepultado conforme solicitado em testamento. Segundo António Manuel Hespanha “Em
alguns aspectos fundamentais, o Concílio de Trento veio minar este dever de obediência dos filhos, ao sublinhar o carácter essencialmente
voluntário dos actos relativos à fé, no numero dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo externo”. Cf, HESPANHA, António
Manuel, História de Portugal Moderno; político e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 108.
521
Sobre o discurso da Igreja Católica sobre a união matrimonial e suas derivações, nomeadamente a procriação, ver FLANDRIN, Jean-
Louis, Parentesco, casa e sexualidade na Sociedade Antiga, Lisboa, Editorial Estampa, 1994.
522
BRUGGER, S., Minas Patriarcal, família e sociedade (séculos XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007, p. 153.
523
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título LXXXII, Quando no testamento o pai não faz menção do filho, ou o filho do pai, e dispõem
somente da terça, p. 911 – 915.
524
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título LXXXVIII, Das causas porque o pai, ou mãe podem deserdar seus filhos, p. 927 – 934.
525
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título LXXXIX, Das causas, porque poderá o filho deserdar o pai, ou mãe, p. 934 – 935.
526
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XC, Em que casos poderá o irmão querelar o testamento do irmão, p. 935 – 936.
527
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCI, Como o pai e mãe sucedem na herança do filho, e não o irmão, p. 936 – 939.
193
exemplo, tem como objectivo deliberar a forma como poderia ser disposta a terça530
determinando que o testador tinha livre arbítrio na confecção de seu testamento, podendo não
mencionar e delegar bens, inclusive aos filhos legítimos.
O momento de atribuição da herança531 entre os herdeiros era o de maior expectativa
após o falecimento de um dos progenitores. O processo de descrição e avaliação dos bens era
feito, geralmente, por louvados que tinham como objectivo calcular o valor de cada bem
pertencente ao espólio. Devido à minuciosidade com que era feita a descrição dos bens, este
era o momento em que os demais membros da família tomavam conhecimento do real valor e
volume dos bens deixados por um de seus pais.
Todavia, ao analisarmos este momento de fulcral importância para a continuidade do
núcleo familiar é importante que façamos referência aos tipos de sucessão532 existentes no
direito português. Essencialmente, no Direito Civil Português, encontramos três tipos de
sucessão: a legítima ou necessária, a testamentária e a pactícia. O cômputo de normas que
definem o direito sucessório português ficou estabelecido e consignado a partir da publicação
das Ordenações Afonsinas533, no século XV, durante o reinado de D. Afonso V, passando
estas normas, a partir de então, a ter a primazia em relação a qualquer norma consuetudinária.
Quando, em 1603, foram impressas as Ordenações Filipinas, ficou estabelecido pelos
legisladores que, relativamente à questão da sucessão e á distribuição da herança cada um dos
herdeiros legítimos tinha direito à sua parte na herança. Determinou-se, ainda, que o
património a ser repartido era composto por 2/3 da herança534 depois de quitadas as dívidas; o
restante, equivalente a 1/3 dos bens, podia ser disposto livremente pelo testador; a legítima
528
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como filho peão sucede a seu pai, p. 939 – 943.
529
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCIII, Como irmãos de danado coito sucedem uns aos outros, p. 943 – 948.
530
Dá-se o nome de "[...] terça à terça parte dos bens móveis, imóveis, disponíveis, e direitos e ações, que o Testador possuir na época da
sua morte. Esta cota dos bens só se julga apurada depois de paga a despesa do enterro e funeral, que sabe do cúmulo da herança, assim como
as dívidas ativas". Ordenações Filipinas, Livro 4º, Título LXXXII, Quando no testamento o pai não faz menção do filho, ou o filho do pai, e
dispõem somente da terça , nota 3, p. 912.
531
A sucessão legítima ou necessária era caracterizada pela convocação dos herdeiros legítimos para que pudessem suceder. Poderia ocorrer
mesmo contra a vontade do testador. A sucessão testamentária, como o próprio nome sugere, consiste na convocação dos herdeiros listados
em testamento. E, finalmente, a sucessão pactícia era aquela em que era confeccionado um contrato em que o indivíduo determinava os
critérios para sua sucessão. Cf. FRANCO, J.M. & MARTINS, H.A., Conceitos e princípios jurídicos na Doutrina e na Jurisprudência,
Coimbra, Almedina, 1983, p.665-667.
532
Margarida Durães afirmou que “Todo o direito sucessório assenta em dois critérios fundamentais: família e propriedade.” Partindo deste
pressuposto teórico, a autora identificou que nos períodos em que os laços familiares sobrepunham-se à propriedade foram identificados
casos de sucessão necessária ou legítima. Em contrapartida, nos momentos em que as preocupações com a propriedade se sobrepuseram às
questões de ordem familiar, foram identificados casos de sucessão testamentária. Cf. DURAES, M., Herança e sucessão; Leis, práticas e
costumes no Termo de Braga (séculos XVIII e XIX), Braga, Universidade do Minho, 2000, vol. II, p. 323.
533
Segundo Margarida Durães, até o momento em que foram publicadas estas ordenações, existiam em Portugal três modelos de sucessão: a
sucessão única (forçada ou obrigatória); a sucessão obrigatória, que admitia, entretanto, relativa liberdade no momento de testar; e a sucessão
legítima ou voluntária caracterizada pela liberdade, plena, no registo das vontades do testador. Cf. DURAES, M., Herança e sucessão; Leis,
práticas e costumes no Termo de Braga (séculos XVIII e XIX), Braga, Universidade do Minho, 2000, Dissertação de Doutoramento.
534
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título LXXXII, Das substituições dos herdeiros, p. 911-912.
194
destinada aos herdeiros não podia sofrer a aplicação de qualquer encargo; os filhos que
recebessem a sua parte da herança em forma de dote de casamento, por exemplo, poderiam
reinseri-la no monte-mor dos progenitores por meio da colação535 passando a concorrer
igualitariamente com os demais herdeiros legítimos; a possibilidade do cônjuge herdar
somente se verificava caso o defunto não tivesse parentes (ascendentes ou descendentes) até o
10º grau ou, se o testador tiver determinado tal possibilidade536 em testamento; não havendo
herdeiros descendentes legítimos sucederiam primeiro os ascendentes537; e, na ausência de
ascendentes ou descendentes legítimos, a sucessão era feita pelos parentes colaterais 538; a
deserdação dos herdeiros deveria ser devidamente justificada.
Ao que tudo indica as regulamentações relativas às questões sucessórias inseridas nas
Ordenações Afonsinas perduraram até o século XVIII. Somente com a ascensão do Marques
de Pombal539, em meados do século XVIII, o Direito Sucessório português, sob a influência
do jusnaturalismo, sofreu algumas modificações. Estas, por sua vez, recaíram sobretudo na
restrição da liberdade individual de testar, ou seja, a partir das determinações pombalinas
estava proibido que a alma figurasse nos testamentos como “herdeira universal”540. Garantia-
se, assim, a sucessão dos parentes directos.
No século XVIII, a primazia do direito nacional estava conquistada em todos
os sectores da vida politica, social e económica, sendo as compilações das
Ordenações as nossas principais fontes de direito.541
535
Determinava-se que, “Se o pai, ou mãe, ou ambos juntamente derem alguma coisa móvel, ou de raiz a algum de seus filhos, quer em
casamento, quer em outra qualquer maneira, será obrigado tornar tudo a colação aos outros seus irmãos depois da morte do pai ou mãe, que
os bens que assim tiver em seu poder, e trouxer à colação, renderem depois da morte dos doadores ate o tempo das partilhas”, Cf.
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCVII, Das Colações, p. 968-972.
536
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCIV, Como o marido e mulher sucedem um ao outro, p. 947-950.
537
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCI, Como o pai e mãe sucedem na herança do filho, e não do irmão, p. 936-937.
538
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XC, Em que casos poderá o irmão querelar do testamento do irmão, p. 935-936 e Título
XCIII, Como os irmãos de danado coito sucedem uns aos outros, p. 943-947.
539
Sebastião José de Carvalho e Mello, também conhecido como Marques de Pombal ou Conde de Oieiras iniciou sua carreira política
quando foi nomeado embaixador de Portugal em Londres no ano de 1738. Retornou a Portugal em 1749, sendo nomeado Ministro dos
Negócios Estrangeiros. A confiança depositada no Marquês de Pombal pelo rei D. José I (1750 – 1777) fez com que ele fosse designado
Secretário de Estado assumindo assim o controlo do Estado. O período em que o Marques de Pombal esteve à frente da política portuguesa
foi marcado, sobretudo, pela aproximação de Portugal com Estados importantes do norte da Europa. Relativamente à política interna, o
período distinguiu-se, entre outras coisas, pela racionalização da administração sem, contudo, diminuir o poder régio. O Absolutismo e o
Racionalismo ilustrado foram, portanto, doutrinas que constituíram, conjuntamente, o governo do Marques de Pombal. No aspecto religioso
o governo de Pombal foi marcado pela expulsão dos jesuítas tanto de Portugal, quanto do Brasil; pela subordinação do Tribunal da
Inquisição ao Estado; e pela promulgação de uma lei que extinguia as diferenças entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Relativamente à
América Portuguesa a presença do Marques de Pombal à frente do Estado Português esteve associado à: criação da Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão e da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba. Pombal foi responsável por extinguir,
definitivamente, o sistema de Capitanias Hereditárias e a Capital dos Estados do Brasil foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.
Sobre o Marquês de Pombal, ver MAXWELL, K., Marques de Pombal: Paradoxo do iluminismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
540
Ordenações Filipinas, Livro IV, Lei de 9 de Setembro de 1769, que ampliou as disposições da Lei de 25 de Julho de 1766, Aditamento
do Livro 4, p.1038 – 1041.
541
DURAES, M., Herança e sucessão; Leis, práticas e costumes no Termo de Braga (séculos XVIII e XIX), Braga, Universidade do Minho,
2000, vol. II, p. 345, Dissertação de Doutoramento.
195
No universo quotidiano que cercou a prole ilegítima, constatamos por um lado, a sua
dificuldade no acesso à herança quando considerado o tipo de relação mantida pelos seus
progenitores (derivando esta, da distinção dos filhos ilegítimos, entre naturais ou espúrios),
bem como os meios utilizados pelos herdeiros legítimos para embargar as decisões dos pais
na atribuição das legítimas e, ainda, o desamparo a que estavam sujeitos por parte dos
representantes da autoridade. Por outro lado, conseguimos identificar casos em que os direitos
de acesso à herança544 dos filhos ilegítimos545 foram equiparados aos dos filhos legítimos,
sendo-lhes atribuída a parte na herança que a lei determinava.
A atribuição da herança, entretanto, estava também condicionada à origem da mesma,
ou seja, os bens acumulados ao longo da vida de um indivíduo e que eram fruto do seu
esforço e trabalho individual, chamados nas Ordenações Filipinas de bens comuns, eram
distribuídos de maneira distinta daqueles adjudicados pela Coroa, nomeadamente os feudos
ou morgados. Com base neste pressuposto, percebe-se a restrição imposta aos filhos
ilegítimos no acesso aos bens que compunham a herança e que tinham sido fruto de doações
542
WHELING, A. e WEHLING, M., “Racionalismo Ilustrado e prática jurídica colonial; o direito das sucessões no Brasil (1750-1808)”,
Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 159 (401), Out./Dez. 1998, p. 1607-1623, p. 1067; WEHLING, A. e WEHLING, M., “O direito de família
no mundo luso-brasileiro períodos pombalino e pós pombalino”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico, ª160, n. 404, 1999.
543
WEHLING, A. e WEHLING, M., O direito de família no mundo luso-brasileiro períodos pombalino e pós pombalino. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico, a.160, n. 404, 1999. p. 537.
544
Eliane Cristina Lopes ao analisar a participação na herança da prole ilegítima na Cidade de São Paulo no período colonial percebeu uma
tendência, entre os paulistas, de “indivisibilidade” do património manifestado na concessão de privilégios a um dos herdeiros em detrimento
dos demais. Cf. LOPES, E., O Revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998.
545
Scarlett O'Phelan Godoy ao analisar a realidade peruana no que tocava ao acesso dos filhos ilegítimos no quotidiano das famílias no
período colonial verificou que, alguns filhos ilegítimos acabaram por se beneficiar económica e socialmente da influência dos seus
progenitores na comunidade à qual pertenciam. Cf. O'PHELAN G., “Hijos naturales "Sin impedimento alguno". La ilegitimidad en el
mineral de Hualgayoc, Cajamarca (1780-1845)”, in El norte en la historia regional, siglos XVIII-XIX, Travaux de l'IFEA 108, 1998, Lima, p.
215-240
196
da Coroa, embora esteja claro que, a diferença no que tocava à origem do nascimento dos
filhos ilegítimos, interferia consideravelmente no que tocava à atribuição dos bens concedidos
pela Coroa. Neste caso, enquanto os filhos naturais ainda poderiam herdar os bens por meio
de uma autorização escrita, no momento da legitimação, aos expostos e àqueles que tinham
sido adoptados não era facultada a possibilidade de herdar os bens deixados pelos pais.
Quadro 2 – Origem da filiação, direitos e restrições à herança de acordo com o tipo de legado,
Ordenações Filipinas.
Natural Filho peão ilegítimo participava juntamente com os Deserdados caso fossem legitimados.
Bens acumulados
legítimos. Os filhos de nobres não herdariam, mesmo Inexistência de reconhecimento;
por esforço
legitimados, caso houvessem legítimos. Na falta destes, falecer abintestado e existência de
próprio
apenas com legitimação. filhos legítimos, para os nobres.
Bens adjudicados Apenas por autorização escrita, no momento do Falta da autorização; deserdação,
pela Coroa reconhecimento. quando legitimado.
Espúria Obrigação do reconhecimento do pai para herdar com ou Deserdação, caso reconhecidos. Os
Bens acumulados sem testamento; Para os filhos de livres com escravas, filhos adulterinos e os sacrílegos, por
por esforço deveria haver legitimação seguida da alforria. Os filhos de ser prejudicial à legitimação. Falta de
próprio mãe solteira concorriam directamente a seus bens, como alforria para os filhos escravos.
dos parentes mais próximos, dessa linhagem.
Bens adjudicados
Não poderiam herdar.
pela Coroa
Exposta Bens acumulados Participavam na distribuição da herança, mesmo frente à Não poderiam prejudicar os legítimos
por esforço existência de filhos legítimos; Herdavam da terça. sucessores.
próprio
Bens adjudicados
Não poderiam herdar, como os expostos.
pela Coroa
Perfilhada
(adoptada) Bens acumulados Afastados caso não tivessem adopção
por esforço Concorriam como se fossem legítimos. legal.
próprio
Fonte: LOPES, Eliane Cristina, O revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo, Annablume/FAPESP, 1998. (p.226-227)
546
Sobre a possibilidade de deserdação dos filhos pelos pais, ver “Alvará de 13 de Novembro de 1651”, in Colleção Chronologica de Leis
Extravagantes, posteriores à nova compilação do Reino, publicada em 1603…, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1819, Tomo I, v.
1, p. 550-553; Ordenações Filipinas, Livro IV, Título LXXXII, Quando no testamento o pai não faz menção do filho, ou o filho do pai, e
dispõe somente da terça, notas 1 e 5, p. 913 e 914; Título LXXXVII, Das substituições dos herdeiros, nota 1, p. 924 a 927; Título Das
causas, por que o pai ou mãe, podem deserdar seus filhos, § 1 e 5, nota 1, p. 928 e 931, Título LXXXIX, Das causas, porque poderá o filho
deserdar seu pai ou mãe, p. 934 e 935.
197
547
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como filho peão sucede a seu pai, p. 939/940.
548
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como o filho peão sucede a seu pai, p. 939-941.
549
Caracterizados como sendo aqueles que serviam na guerra a cavalo.
550
Caracteristicamente eram peões ou vilãos que serviam aos cavaleiros como pajens levando seus escudos e suas armas. Poderiam,
entretanto, por bons serviços, serem consagrados cavaleiros de contia. Podem ser caracterizados também como aqueles andavam a pé
armados com espada e escudo. Cf.: Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como o filho do peão sucede a seu pai, p. 941-942, nota3.
551
O jurista Clóvis Beviláqua se refere a duas formas de partilha: a amigável, caracterizada como um acordo entre os co-herdeiros e a
judicial, que acontece perante o Juiz, a quem cabe a citação de todos os co-herdeiros. Cf. BEVILÁQUA, C., O Direito das Sucessões, 5ª Ed.,
Rio de Janeiro, Ed. Paulo de Azevedo, 1955.
552
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCII, Como o filho do peão sucede a seu pai, p. 942
198
553
Sobre a política tributária no período imperial, ver DEVEZA, G., “Politica tributária no período imperial”, in HOLANDA, S., História
Geral da Civilização Brasileira, Rio De Janeiro, DIFEL, 1977, nº 2, v.4, p. 60-62.
554
Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXIII, Dos Juízes de Órfãos, p.207-208.
199
555
Já dissemos no capítulo 2 que, relativamente aos inventários post-mortem, somente conseguimos localizar aqueles pertencentes aos
moradores da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Vimos no título anterior que legalmente todos os indivíduos que, ao
morrer, deixavam órfãos menores de 25 anos estavam obrigados a fazer inventários. Todavia, para a Paróquia de São João do Souto os
registos de inventários post-mortem somente iniciam no século XIX. Sobre o uso do inventários post mortem para estudo da vida material e
quotidiana, ver: MAGALHÃES, B. R..”A demanda do trivial vestuário, alimentação e habitação”, Revista Brasileira de Estudos Políticos
Rbep, Belo Horizonte, v. 65, p. 153-199, 1987; MOTA, António da Silva, “Aspectos da Cultura material e inventários post-mortem da
capitania do Maranhão, séculos XVIII e XIX”, Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades,
Lisboa 2 a 5 de Novembro de 2005, FCSH/UNL, Portugal; FARIA, Sheila de Castro, A Colônia em movimento, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1998; MAGALHÃES, Beatriz R., “Inventários e Sequestros: Fontes para a História Social”, In: Revista do Departamento de
História UFMG, Belo Horizonte, v. 9, 1989, p. 31-45.
556
Sobre o uso dos inventários post-mortem como fonte de estudo para a História Social destacamos a obra pioneira de Alcântara Machado.
Cf. MACHADO, A., Vida e morte do bandeirante, São Paulo, Martins, 1943.
557
As Ordenações Filipinas determinavam que após feito o inventário dos bens caberia ao cônjuge vivo metade dos bens daquele que tinha
falecido, assumindo este a administração dos bens, inclusive as mulheres. A outra metade dos bens, um terço poderia ser disposto livremente
pelo defunto, desde que devidamente registado em testamento. Os dois terços restantes seriam divididos entre os filhos legítimos e
reconhecimento. Ordenações Filipinas, Livro 4, Título XCV, Como a mulher fica em posse e cabeça de casal por morte de seu marido, p.
949-954.
200
558
As actuações do Tutor e do Curador estavam regulamentadas no mesmo título das Ordenações Filipinas Dos tutores e curadores que se
dão aos órfãos. Tal título determinava que “O Juiz dos Órfãos terá cuidado de dar Tutores e Curadores a todos os órfãos menores, que não os
tiverem, dentro de um mês do dia, que ficarem órfãos; aos quais Tutores e Curadores fará entregar todos os bens móveis e de raiz, e dinheiro
dos ditos órfãos e menores, por conto e recado, e inventário feito pelo escrivão de seu carrego, sob pena de privação do Ofício.” Cf.
Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, Dos Tutores e Curadores que se dão aos órfãos, p. 994-1004.
559
Estava determinado nas Ordenações Filipinas que “Os escrivães dos Órfãos das cidades e vilas principais serão obrigados, antes de
começarem a servir, darem fiança de duzentos mil réis. E dos outros lugares será fiança de cento e cinquenta mil réis, ou de cem mil réis.
[…] e tanto que os inventários fores feitos, assentará no fim deles as tutórias, declarando se são testamentárias, se legitimas ou dativas. […] e
no fim dos inventários escreverá todos os arrendamentos, que o Juiz fizer, dos bens dos Órfãos, e contratos sobre suas pessoas, que não
passarem de três anos. Cf. Ordenações Filipinas, Livro 1, Título LXXXIX, Dos Escrivães dos Órfãos, p. 220-222.
560
A nomeação feita pelo rei (no caso do Ouvidor e do Juiz de Órfãos), bem como para os cargos de escrivão, avaliador, partidor ou
porteiro dos auditórios significava, no universo colonial, a possibilidade de ascensão social. Ida Lewkowicz ao analisar a vida familiar em
Minas Gerais tendo como exemplo o viver dos moradores de Mariana verificou que as maiores fortunas da cidade pertenciam a indivíduos
que, ao longo de sua vida, tinham exercido essas funções. Cf. LEWKOWICZ, I., Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais
(séculos XVIII e XIX), São Paulo, Universidade de São Paulo, 1992, Dissertação de Doutoramento.
561
SALGADO, G. (org.), Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p.262-263.
562
Sobre a necessidade de criação do cargo de Juiz dos Órfãos, bem como das suas atribuições, ver Ordenações Filipinas, Livro 1, Título
LXXXVIII, Dos Juízes dos Órfãos.
563
“A Justiça na Capitania de Minas Gerais”, Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. 4, Janeiro de 1899, p.14.
201
564
COELHO, J. J., “Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais, 1780”, Revista do Arquivo Público Mineiro, 8(1-2), 562.
202
565
SALGADO, G. (org.), Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p.262-263.
566
COELHO, J. J., “Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais, 1780”, Revista do Arquivo Público Mineiro, 8(1-2), 562.
567
AHU, Carta de José Correia de Miranda, juiz de Órfãos de Vila Real, para D.João-V, dando conta da situação dos órfãos ilegítimos e
das dificuldades que tinham em se como herdeiros de seus pais, 1730. Cx.16, doc.85.
203
568
AHU, Representação dos oficiais da Câmara da Vila do Príncipe, a D.João-V, expondo a lamentável situação dos filhos mulatos e
ilegítimos não poderem herdar de seus pais, e solicitando decisão régia permitindo o poderem habilitar-se localmente, 1746, Cx. 47, doc.
26.
204
capítulo não nos prenderemos à análise quantitativa dos inventários569 post-mortem, uma vez
que nos interessa ouvir as vozes de pais, mães e filhos naquele que era o momento de
definição da direcção a tomar pela família após o falecimento de um dos progenitores.
Para este estudo interessa-nos, todavia, os inventários pertencentes aos residentes na
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará e, neste caso, também se mantém a
tendência de predomínio dos homens. Dentre os 95 inventários pertencentes a moradores da
paróquia sabarense, 61 eram de homens e 34 de mulheres. Ao agregarmos a esta variável a
informação sobre o estado matrimonial dos inventariados e o seu estatuto legal, o perfil dos
inventariados da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará para a elaboração da
tabela abaixo.
O perfil dos inventariados segue a tendência daquele já detectado entre os testadores.
Ou seja, entre as mulheres foram as solteiras que predominaram entre as inventariadas. As
mulheres livres, como pode ser constatado, somaram um total de 14 inventariadas, sendo a
maioria de mulheres casadas. É interessante observar, entretanto, a presença de 16 mulheres
forras (8 solteiras, 3 viúvas, 3 casadas e 2 em que o estado matrimonial não pode ser
confirmado).
Tabela 35 – Perfil dos inventariados de acordo com o sexo, estado matrimonial e estatuto legal,
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
Estado matrimonial / Mulheres Homens
estatuto legal Casada Solteira Viúva N/c Casado Solteiro Viúvo N/c
9 4 20 19 2 2
Livre - -
(9,5%) (4,2%) (21,1%) (22,1%) (2,1%) (2,1%)
3 8 3 2 1 1 1 1
Forro(a)
(3,2%) (8,4%) (3,2%) (2,1%) (1,1%) (1,1%) (1,1%) (1,1%)
2 1 1 4 5 3
N/c - -
(2,1%) (1,1%) (1,1%) (4,2%) (5,3%) (3,2%)
14 13 3 3 25 24 3 6
Total parcial
(14,7%) (13,7%) (4,2%) (3,2%) (26,3%) (28,4%) (3,2%) (6,3%)
34 61
Total geral
(35,8%) (64,2%)
ACBG/MO/IPHAN – Inventários dos Cartórios do Primeiro e Segundo Ofício, Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, século XVIII, Os valores
percentuais foram calculados a partir do total de 95 inventários pertencentes aos moradores da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
569
Para todo o século XVIII e abarcando toda a Comarca do Rio das Velhas foram localizados 804 processos de inventários. Ao
considerarmos este volume de inventariados, o número de homens excedeu ao de mulheres, representando 71,5% dos processos.
570
Entre os inventários analisados pertencentes aos residentes da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará o da preta forra Joana
Carneiro chamou a atenção no que toca à questão da educação dispensada aos filhos. Solteira, Joana Carneiro faleceu em meados do século
205
sustento dos filhos. Passaram a figurar como chefes de domicílio com responsabilidades que
extrapolavam o meio doméstico, ganhando as ruas da paróquia sabarense.
Posterior à caracterização do perfil dos inventariados, interessa-nos analisar o
conteúdo do seu espólio. Qual era a composição do património destes homens e mulheres
residentes na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará? Bens semoventes
(escravos e animais), imóveis, objectos de uso pessoal e profissional, bem como créditos e
débitos faziam parte do espólio dos inventariados sabarenses. Mas qual a representatividade
destes bens no cômputo geral dos bens?
Ainda no universo feminino, a presença em destaque das forras acaba por corroborar
os estudos571 que vêm sendo desenvolvidos sobre a possibilidade dos forros, sobretudo as
mulheres, acumularem patrimónios num universo em que predominava a figura do branco. No
Brasil, o estudo desenvolvido por Eduardo França Paiva572 tendo como enfoque a Capitania
de Minas Gerais aponta para a necessidade de considerar a presença dos libertos na sociedade
mineira não somente como aqueles que estiveram subjugados ao sistema escravista, mas
como actores sociais que participaram na constituição da sociedade mineira. De acordo com
Paiva, a possibilidade de alguns cativos terem acesso à liberdade, fosse por meio da compra
(coartação573) da sua alforria, fosse pela concessão do dono na forma de legado, era um
demonstrativo de que a sociedade mineira setecentista era, de certa forma permissiva a ponto
de inserir no seu quotidiano homens e mulheres que, um dia, tinham sido subjugados ao
sistema escravista. Paiva enfoca, a partir dessa consideração, o universo feminino, atribuindo
às mulheres574 a habilidade para alcançar a liberdade.
XVIII deixando 6 filhos (4 homens e 2 mulheres). Os bens de Joana Carneiro foram avaliados em 559$725 réis que foram distribuídos entre
os herdeiros. Relativamente à educação dos mesmos, no auto de contas prestado pelo tutor, constatamos a preocupação de Joana Carneiro em
habilitar seus filhos em algum ofício mecânico capaz de garantir a sua subsistência. Manuel tinha aprendido o ofício de alfaiate e Joaquim o
de sapateiro.
571
PAIVA, E., Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos, São Paulo,
Annablume, 2000; FIGUEIREDO,L., “Mulheres nas Minas Gerais”, In: PRIORE, M. (org), História das mulheres no Brasil, 5.ed. São
Paulo, Contexto, 2001; FARIA, S., “Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista”,
In: SILVA, F.; FRAGOSO, J.; CASTRO, H. (orgs), Escritos sobre história e educação: uma homenagem a Maria Ieda Linhares, Rio de
Janeiro, Mauad-FAPERJ, 2001; PANTOJA, S., “Dimensão Atlântica das Quitandeiras”, In: FURTADO, J. (org.), Diálogos Oceânicos:
Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Português, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001; MOL, C., “Vendendo
desordens e comprando a liberdade: a inserção das mulheres forras em Vila Rica, 1750-1800”, Anais do XI Seminário sobre a Economia
Mineira, Belo Horizonte, CEDEPLAR, 2004, p. 1-18.
572
PAIVA, E.. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos, São Paulo,
Annablume, 1995, 2000, p. 194
573
Caracterizava-se como o pagamento parcelado da alforria, efectuado pelo próprio escravo
574
Sheila de Castro Faria constatou uma tendência, entre as mulheres forras, de beneficiarem com a alforria os filhos de suas cativas,
sobretudo as filhas. Tal comportamento seria a reprodução de um padrão africano, principalmente dos cativos “mina”, caracterizado pelo
facto de as mulheres não serem vistas como herdeiras de suas pais e maridos. Eram portanto “forçadas” a acumularem o património que
quisessem ver ser transmitidos para suas filhas. Cf. FARIA, Sheila de Castro, “Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens
de mulheres forras no Sudeste Escravista (séculos XVIII e XIX)”, In, SILVA, Francisco C.T. da; MATTOS, H. &FRAGOSO, J. (org),
Escritos sobre a História da Educação: homenagem à Maria Yedda Leite Linhares, Rio de Janeiro, Mauad/FAPERJ, 2001.
206
575
PAIVA, E., Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos, São Paulo,
Annablume, 1995, 2000, p. 194
207
gamelas, bacias de arame, colheres e garfos de latão, almofariz, bacia de pé de cama, candeias
de folhas de flandres, mantimentos.
Os objectos em ouro e prata também tiveram uma participação significativa no espólio
de Luísa Rodrigues. Neste rol encontramos além de jóias, objectos de uso doméstico (garfos e
facas). No guarda-roupa, Luísa Rodrigues possuía: colchas de algodão, capote de pano fino
forrado de brilhante da França, camisas de linho de mulher, lençóis de linho, saias de vários
tecidos (camelão, baeta, droguete, olanda, chita), plumas pretas, chapéu de braga, colcha de
serafina de França, entre outros. E, por último, mas não menos importante na composição do
espólio de Luísa Rodrigues, encontramos os móveis: catres em jacarandá, caixas para guardar
mantimentos, bancos, tamboretes, espreguiceiro de couro e estrado, caixa de guardar roupa
foram listados entre os bens de Luísa Rodrigues.
A minuciosa e rica descrição dos bens que pertenceram à Luísa Rodrigues da Cruz
revela um aspecto interessante a ser observado: a intensa e diversificada circulação de
mercadorias por todo o Império Português e que se revela nas casas de pessoas como Luísa
Rodrigues da Cruz. Objectos em prata, ouro e tecidos finos vindo de França, por exemplo,
apontam para o facto de que até mesmo uma mulher forra como Luísa Rodrigues da Cruz
poderia ter acesso a estes produtos. E, ao que tudo indica, a posse de tais mercadorias poderia
ser um factor de aproximação de Luísa Rodrigues da Cruz com o viver e com o quotidiano
branco. A posse desses objectos pode ser lida como a reprodução que uma mulher forra576
fazia do viver de uma mulher branca.
Por ser o inventário um documento de descrição do espólio dos inventariados para,
num segundo momento, serem feitas as partilhas entre os herdeiros, nas próximas páginas
pretendemos analisar o tipo de espólio acumulado por esses indivíduos, bem como seu perfil
sócio profissional, a constituição das suas famílias, a distribuição da herança entre os
herdeiros, o papel desempenhado pelo cônjuge que ficou responsável pela criação dos filhos e
pela herança, entre outros aspectos. Ao voltarmos nossos olhares para o perfil dos homens
cujos bens foram inventariados percebemos que os solteiros e os casados tiveram a mesma
representatividade, cerca de 22,4% do total de inventários. Aqui, ao contrário do que
aconteceu no caso das mulheres, a maioria dos inventariados era livre, cabendo aos forros um
percentual que esteve à volta de 1%.
576
A exemplo disso temos o caso de Chica da Silva que, vivendo concubinada com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira
reproduziu o viver branco no uso de indumentárias e jóias. Cf. FURTADO, J., Chica da Silva e o contratador dos diamantes - o outro lado
do mito, São Paulo, Cia das Letras, 2003.
208
577
Torna-se necessário ressaltar que para a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará a documentação analisada nesta previa
análise para determinação das comunidades a serem analisadas era composta por inventários e testamentos. Estamos cientes que tais
documentos foram produzidos, em sua maioria, por homens e mulheres que tinham património a legar, não podendo, por isso, serem
considerados como fontes que forneçam o perfil de todos os habitantes da paróquia. Contudo, no conjunto de fontes documentais de que
dispúnhamos eram as que nos permitiam construir o perfil sociológico destes homens e mulheres.
578
Junia Furtado em seu estudo sobre os homens de negócios residentes e que actuaram na Capitania de Minas Gerais identificou um
elevado contingente de minhotos. Cf. FURTADO, J., Homens de Negócio; a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas
Setecentistas, São Paulo, Hucitec, 1999.
209
15% dos itens arrolados. A partir do gráfico abaixo percebemos que, pelo menos entre os 95
inventariados seleccionados para este estudo a actividade creditícia579 representou a maioria
das transacções apontando para uma ampla rede de transacções entre os inventariados e os
demais habitantes da vila de Sabará, da Capitania de Minas e, até mesmo, de outras
Capitanias (Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo) confirmando a intensa mobilidade,
característica dos habitantes das Minas.
Gráfico 5 – Distribuição do património dos inventariados da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição
do Sabará, 1700 – 1799.
3% 1%
10%
15%
71%
579
Os estudos já desenvolvidos e aqueles ainda em curso apontam para o importante papel desempenhado pela actividade creditícia na
economia colonial. Cf. SANTOS, R. F., “Dívida e endividamento”, In: ROMEIRO, Adriana e BOTELHO, Â., Dicionário Histórico das
Minas Gerais – Período Colonial, Belo Horizonte, Autêntica, 2003; SAMPAIO, A., Crédito e circulação monetária na colônia: o caso
fluminense, 1650-1750, Caxambu, ABPHE, 2003; SAMPAIO, A., “O mercado carioca de crédito: da acumulação senhorial à acumulação
mercantil (1650-1750)”, In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 29, 2002; SANTOS, R., “Usuras paliadas e práticas creditícias na comarca
do Rio das Velhas no século XVIII”, In: XIV Encontro Regional de História, Juiz de Fora, ANPUH-MG/UFJF, 2004; SANTOS, . “Trânsito
material e práticas creditícias na América Portuguesa – Comarca do Rio das Velhas, Minas Gerais, século XVIII”, In: Anais da V Jornada
Setecentista, Curitiba, CEDOPE/UFPR, 2003.
210
Gráfico 6 – Percentual de dívidas activas e passivas no rol dos inventariados da Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
41%
47%
12%
581
Além disso, os legados poderiam ser também utilizados como forma de favorecimento de um filho perante os demais. Sílvia Brugger ao
analisar os testamentos dos moradores de São João del Rei identificou 14 em que houve a predilecção de um filho em detrimento dos outros
manifestada pela atribuição de legados, sendo uma prática mais comum entre as mulheres. Cf. BRUGGER, S., Minas Patriarcal; família e
sociedade (São João del Rei – Séculos XVIII e XIX), São Paulo, Annablume, 2007.
582
Havia outro momento em que o estabelecimento da igualdade entre os herdeiros se fazia presente: a atribuição de um dote a um filho ou
filha. Relativamente à América Portuguesa a historiografia brasileira é unânime ao admitir que a maioria dos dotes concedidos foram às
mulheres. Em estudo feito sobre a prática do dote na Capitania de São Paulo, Muriel Nazzari afirma que o momento de atribuição do dote às
filhas acabava por representar uma importante estratégia familiar, na medida em que vinculava o casal à família da noiva e o marido, neste
contexto, passava a ser mais um membro da família, importante sobretudo nas expedições pelos sertões. Cf. NAZZARI, M. O
Desaparecimento do Dote, São Paulo, Cia das Letras, 2001.
583
ROCHA, M. A. Coelho da, Instituições do Direito Civil Português, Rio de Janeiro, Livraria Cruz Monteiro/Jacintho Ribeiro dos Santos
Editor, 1914, p. 230-231.
212
possibilidade que lhes foi conferida de acessar aos bens dos progenitores acabou sendo a
causa de muitos conflitos familiares no momento da partilha dos bens. Ao considerar a
presença africana, no quotidiano português, ao longo do século XVIII, sobretudo na América
portuguesa onde, quantitativamente, representavam a maioria da população, o acesso dos
filhos ilegítimos nascidos da relação de homens livres com mulheres escravas mantinha-se
desde que estivessem livres quando o pai falecesse584. Segundo Eliane Cristina Lopes, “[…]
nesse sentido, concorrer à herança, para o mulato, atrelava-se, ao mesmo tempo, à alforria e
ao reconhecimento.”585
No caso das partilhas feitas nos inventários dos residentes da Paróquia de Sabará, aqui
analisados, os descendentes (legítimos e ilegítimos586) foram os mais citados, como podemos
verificar na tabela abaixo. A transmissão do património, neste contexto, era sinónimo de
continuidade da unidade familiar, mesmo que no momento de distribuição dos bens, os filhos
fossem contemplados com partes específicas do espólio. Analisaremos tal possibilidade,
posteriormente, quando nos debruçarmos sobre o tipo de bens adjudicados a cada herdeiro.
Nota-se, na tabela abaixo, que em 17 inventários os descendentes e o cônjuge repartiram a
herança. A atribuição da herança maioritariamente entre os descendentes poderia representar a
preocupação dos pais com a manutenção da casa, da propriedade, sobretudo quando um dos
filhos assumia a gerência dos bens dos pais.
Tabela 37 – Destinatários da herança dos inventariados sabarenses,
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, 1700 – 1799.
Destinatário da herança V/a
Descendentes 43
Ascendentes 1
Ascendentes/Descendentes 0
Cônjuge 2
Descendentes/Cônjuge 17
Descendentes/Cônjuge/Outros 4
Não houve partilha587 28
Total 95
Os valores percentuais foram calculados a partir do total de 95 inventários
pertencentes aos moradores da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará.
584
O momento do baptismo foi utilizado por muitos pais para alforriarem seus filhos, uma vez que o Direito Natural impedia que o pai
mantivesse um filho como escravo. Entre os assentos de baptismos da Paróquia de Sabará encontramos 10 filhos ilegítimos de escravas que,
ao serem baptizados, foram alforriados. No assento de baptismo utilizavam a expressão “alforriado em pia baptismal” para caracterizá-los.
João, filho da escrava Juliana, foi baptizado em 1745 a pedido do seu proprietário Capitão Manuel Gonçalves de Ramos. Este, por sua vez,
pediu que a criança fosse alforriada em pia baptismal. Embora o nome do Capitão Manuel Gonçalves de Ramos não figure como pai de João,
a solicitação de que o mesmo fosse alforriado pode apontar para isso.
585
LOPES, E. C., O Revelar do pecado; os filhos ilegítimos na São Paulo do Século XVIII, São Paulo, Annablume, 1998, p.228.
586
Entre os 95 inventários analisados neste estudo em 35 deles foram citados os filhos ilegítimos como herdeiros.
587
Os inventários cuja partilha de bens não foi feita eram, sobretudo, inventários negativos, ou seja, as dívidas passivas do inventariado
superavam a quantia de bens por ele deixada. Nestes casos, os bens eram colocados em praça pública para venda e o valor arrematado era
utilizado para amortizar a dívida.
213
588
Arno Wheling, em estudo sobre o direito das sucessões no período pombalino aponta que os processos relativos ao direito sucessório que
tramitaram no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro permitem acompanhar a maneira como a legislação era aplicada no reconhecimento de
filhos ilegítimos como legítimos. Os processos estudados por ele encontram-se no Arquivo Nacional, na Secção Jurídica. Cf. WHELING, A.;
WEHLING, M. J., “Racionalismo Ilustrado e prática jurídica colonial; o direito das sucessões no Brasil (1750-1808)”, Revista do IHGB, Rio
de Janeiro, 159 (401), (1607-1623), 1998.
589
BACELLAR, C., Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os Senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855,
Campinas, UNICAMP, 1997, p.133.
590
ACBG/MO/IPHAN, CSO 24(13), Inventário de Joana Carneiro, 26 Setembro de 1758.
214
declarou ao longo do processo de confecção do inventário de sua mãe que não desejava
participar na distribuição dos bens de sua mãe, pois já lhe tinha sido atribuído um escravo,
equivalente ao dote, por ocasião do seu matrimónio com Cipriano José da Cruz. Fez-se então
nova avaliação do escravo para confirmar se o valor atribuído à herdeira era equivalente ao
que fora adjudicado aos demais herdeiros.
Todavia, para este estudo, interessa-nos analisar o viver da ilegitimidade no momento
de distribuição da herança. Embora seja um documento descritivo, amparado na legislação, a
confecção de um inventário figurou, para muitas famílias, como um momento em que
ouvimos as vozes de pais, filhos, mães e, até mesmo parentes colaterais ao serem
confrontados com a presença da prole ilegítima. Do ponto de vista dos herdeiros legítimos o
reconhecimento de um filho ilegítimo pelo seu progenitor representava, no momento de
distribuição da herança, a possibilidade de fraccionar ainda mais o património, a dilapidação
dos bens que poderia acarretar o fim de uma família. Neste contexto, o que significou, de
facto, a presença dos filhos ilegítimos no momento da partilha? Como reagiram os herdeiros
legítimos, frente à possibilidade de divisão da herança com a prole ilegítima? Essas e outras
questões foram analisadas com base em alguns casos em que os filhos ilegítimos tiveram
acesso à herança e/ou naqueles em que foram sumariamente retiradas tais possibilidades.
6.3. Acesso e exclusão, igualdade e desigualdade no acesso à herança dos filhos ilegítimos
No mês de Julho de 1749 foi aberto o inventário dos bens do Capitão-mor João
Ferreira dos Santos591, homem branco e livre, casado com Maria Isabel de Bettencourt e Sá.
Coube a esta, por sua vez, o papel de cabeça de casal 592 assumindo tanto as funções de
inventariante, quanto a de tutora dos órfãos. O Juiz responsável pelo processo foi o Capitão
Bartolomeu Gonçalves Bahia, o escrivão Jacinto Ferreira Proença e o curador, o Advogado
José Pinheiro. Em função do avultado património acumulado pelo Capitão-mor João Ferreira
dos Santos, o processo de inventário foi dividido em três partes de acordo com o local em que
se encontravam os seus bens. A primeira parte foi feita em Sabará, a segunda, na Vila do
591
CSO 19(02), Inventário do Capitão Mor João Ferreira dos Santos, 02-07-1739, 279fls. Arquivo Casa Borba Gato, Museu do
Ouro/IPHAN, Sabará; Banco de Dados Inventários pertencente ao Projecto Memória Social e Administrativa da Comarca do Rio das Velhas
no século XVIII, coordenado pela Professora Dra. Beatriz Magalhães, FAFICH/UFMG/BRASIL.
592
Cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XCV Como a mulher fica em posse e cabeça de casal por morte de seu marido, p. 949. Sobre
o papel desempenhado pelas viúvas nas Minas setecentistas enquanto administradoras dos bens de seus falecidos maridos, ver CHEQUER,
R., Negócios de família, gerência de viúvas. Senhoras administradoras de bens e pessoas (Minas Gerais1750-1800), Tese de Mestrado –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/FAFICH, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002; LEWKOWICS, I. e
GUTIÉRREZ, H., “As viúvas em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX”, Revista do curso de pós-graduação em História, Franca, v.4 nº 1,
p.129-146, 1997.
215
593
Traslado, datado de 3 de Agosto de 1739, anexado ao processo de inventário dos bens localizados em Sabará.
594
Traslado, datado de 11 de Agosto de 1739, anexado ao processo de inventário dos bens localizados em Sabará.
595
CSO 19(02), Inventário do Capitão Mor João Ferreira dos Santos, 02-07-1739, 279fls, fl. 1. Arquivo Casa Borba Gato, Museu do
Ouro/IPHAN, Sabará; Banco de Dados Inventários pertencente ao Projecto Memória Social e Administrativa da Comarca do Rio das Velhas
no século XVIII, coordenado pela Professora Dra. Beatriz Magalhães, FAFICH/UFMG/BRASIL.
216
Percebe-se assim que a posição assumida pela viúva ao reconhecer como filhos de seu
falecido marido os dois filhos naturais que este teve foi um facto fundamental para que a prole
ilegítima recebesse parte da herança do pai. Nos processos judiciais anexados ao inventário
não encontramos qualquer documento em que os filhos legítimos questionassem a distribuição
dos bens do seu pai também entre os filhos legítimos. Tal postura representa a inserção plena
dos filhos ilegítimos no quotidiano daquela família. Maria Isabel de Bettencourt e Sá, imbuída
de uma "ética familiar", de respeito e amor, utilizou argumentos bastante caros para a
sociedade da época: a educação596 que lhes deu e o convívio "à sua mesa" foram os pilares da
argumentação da cabeça de casal para que os direitos dos ilegítimos fossem respeitados,
apesar de seu marido em testamento não os ter reconhecido.
596
Segundo Vanda Praxedes, a preocupação com a educação esteve presente em várias camadas da população. Era uma preocupação
apresentada não somente pelos pais, como também por aqueles que acolhiam em suas casas os expostos. Eduardo França Paiva, ao se
debruçar sobre o estudo do universo cultural que cercou cativos e mestiços na Comarca do Rio das Mortes também verificou este fenómeno.
Cf. PAIVA, E. Escravidão e universo cultural na Colónia; Minas Gerais (1716-1789), Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.
218
Bem diferente foi o destino dos filhos naturais de Manuel Dias Borges. No dia 8 de
Fevereiro de 1734 foi aberto o inventário post-mortem de Manuel Dias Borges, homem
branco, livre e casado com Maria Pereira da Silva, que, por sua vez, assumiu a função de
inventariante dos bens. Outro residente da Paróquia de Sabará que teve a prole ilegítima
citada em inventário. Neste caso, ao contrário do que vimos acontecer aos filhos de João
Ferreira dos Santos, os filhos ilegítimos de Manuel Dias Borges enfrentaram duros obstáculos
ao seu acesso à herança do pai. A natureza da filiação teve um papel fundamental na exclusão
dos filhos ilegítimos que estavam associados a um comportamento moralmente condenado de
Manuel Dias Borges.
Relativamente ao espólio de Manuel Dias Borges este somava a quantia de 6:003$710
distribuídos em bens semoventes (escravos e animais), móveis e objectos de uso doméstico e
profissional. Há ainda um extenso rol de dívidas activas e passivas que deveriam ser honradas
pelos herdeiros. Pagas as dívidas e retirado o valor da terça (640$161), o montante a ser
repartido entre os herdeiros (os filhos e a viúva) era de 3:307$742.
A citação dos herdeiros descendentes foi o passo seguinte na confecção do inventário
de Manuel Dias Borges. Neste momento, a fala da viúva Maria Pereira da Silva trouxe ao de
cima a presença, entre os herdeiros, de filhos ilegítimos que ela não queria ver reconhecidos e
inseridos no rol de herdeiros. Disse Maria Pereira da Silva que:
Por falecimento do dito seu marido se declara prenha de dois para três
meses. E assim mais declarou ficara do dito seu marido uma filha natural por
nome Maria que terá de idade de quinze ou dezasseis anos a qual teve de
uma sua escrava em solteiro. Declarou mais ela inventariante que o dito
defunto seu marido declarou no testamento com que faleceu [que] tinha dois
filhos de uma mulher liberta por nomes Gonçalo, e Francisco, [mas]
declarava ela inventariante serem filhos de uma mulher casada [grifo
nosso] e que protestava ela inventariante em que eles herdassem a
herança.597
A intervenção de Maria Pereira da Silva ao contestar a declaração feita por seu marido,
Manuel Dias Borges, sobre a origem dos filhos ilegítimos foi fulcral para que os mesmos
fossem excluídos da partilha dos bens. É importante que consideremos no estudo deste caso a
distinção legal e moral entre filhos naturais e adulterinos, referida pela viúva. Enfatizamos, ao
longo deste trabalho, a distinção legal feita nas Ordenações Filipinas, sobre a origem dos
filhos ilegítimos. Aqueles que fossem frutos de adultério598, enquanto prova da imoralidade
597
ACBG/MO/IPHAN,MG, Inventário de Manuel Dias Borges, CSO 01(09), 08 de Fevereiro de 1734.
598
Deriva desta determinação legal o facto de não terem sido encontradas quaisquer referências aos filhos espúrios (adulterinos, incestuosos
e sacrílegos) nos registos paroquiais de ambas as paróquias. Ora, sabe-se que os registos paroquiais eram bastante utilizados nos processos de
reconhecimento da prole ilegítima. Frente a isto, a sua nomeação como espúrio poderia ter um efeito directo no acesso aos bens, por
exemplo.
219
dos pais, era pouco provável que, por ocasião do falecimento dos progenitores, conseguissem
aceder à sua herança.
A argumentação desenvolvida por Maria Pereira da Silva, como pode ser constatado,
baseia-se no facto de dois dos filhos citados na confecção do inventário de seu falecido
marido serem fruto de uma relação moralmente condenada na sociedade daquela época. Ao
todo foram citados 4 herdeiros descendentes: Ana de 14 anos de idade e filha legítima,
Francisco, Gonçalo e Maria filhos declarados como naturais. Nota-se assim que, ao longo do
processo de inventário a realidade sobre a concepção de Francisco e Gonçalo foi descortinada.
Maria Pereira da Silva, mãe, viúva e administradora dos bens de Manuel Dias Borges
pronunciou-se contra os filhos adulterinos que seu marido tencionava incluir na partilha. Em
resposta à declaração de Maria Pereira da Silva o Juiz dos Órfãos proferiu a seguinte
sentença:
Vistos estes autos de inventario, e como deles consta estarem as partilhas
bem feitas, e os bens do casal legitimamente adjudicados aos herdeiros com
igualdade que em Direito requer, as julgo por findas, firmes e valiosas e
mando se cumpra, […] para mais validade delas interponho minha
autoridade e direito judicial; e […] que se deparou contra os dois órfãos
Gonçalo e Francisco aos quais declarou a cabeça de casal por filhos
adulterinos havidos de coito danado, punível, e reprovado por direito,
qualidade que se não acha justificada e não devem ser privados da herança
paterna somente pela observação da mesma cabeça. Vila Real 18 de Outubro
de 1737.599
Nota-se que, num primeiro momento, a argumentação de Maria Pereira da Silva não
foi aceita pelo Juiz dos Órfãos, uma vez que este considerou o que havia sido declarado por
Manuel Dias Borges em testamento. A viúva, insatisfeita com o primeiro parecer do Juiz dos
Órfãos que tinha deliberado a favor dos órfãos entrou com uma petição afirmando que a
inclusão dos filhos adulterinos no auto de partilhas do inventário de seu marido era uma
afronta à sua honra. Dessa vez a argumentação de Maria Pereira da Silva foi aceita pelo Juiz
dos Órfãos sendo deliberado que se procedesse a
[…] sobre-partilha em observância da sentença que alcançada contra os dois
órfãos Gonçalo e Francisco para efeito de serem excluídos da herança de seu
pai Manuel Dias Borges por serem havidos de mulher casada coito punível,
danado e reprovado por direito conforme ao qual não devem suceder na
herança o dito seu pai.600
A partilha dos bens, após determinação do Juiz dos órfãos, foi feita com base na sua
decisão de exclusão sumária de Gonçalo e Francisco, filhos adulterinos de Manuel Dias
Borges. Do monte-mor já referido e que tinha sido calculado pelos louvados, coube à viúva
599
ACBG/MO/IPHAN,MG, Inventário de Manuel Dias Borges, CSO 01(09), 08 de Fevereiro de 1734, fls. 25v a 26r
600
ACBG/MO/IPHAN,MG, Inventário de Manuel Dias Borges, CSO 01(09), 08 de Fevereiro de 1734, fl. 27v
220
1:980$484 que, em bens, era o equivalente a: “metade do Sítio, créditos, dois porcos, um
canhão, um forno, sete colheres, seis garfos, um anel, três pares de botões de ouro, sete
escravos”. À filha legítima, Ana, coube a quantia de 660$129 o equivalente à sexta parte do
sítio, créditos e dois escravos. E, Maria Quitéria, a filha natural coube o mesmo valor
adjudicado à filha legítima, 660$129 que equivalia, em bens, à “sexta parte do sítio, créditos,
um par de botões de ouro, quatro escravos”. Nota-se assim, pela leitura da partilha dos bens
de Manuel Dias Borges que os filhos adulterinos foram, de facto, impedidos de acessar aos
bens do pai.
O que a análise deste processo nos permite concluir é que a categoria de filiação
determinava o acesso ou não do filho aos bens deixados pelos pais. No caso dos herdeiros de
Manuel Dias Borges, embora este os tenha reconhecido em testamento, ou seja, num
documento público onde expunha suas últimas vontades, a argumentação da viúva de que os
filhos eram fruto de adultério foram suficientes para, perante a Lei, serem excluídos da
partilha, por ser este um crime “contra a moral”. E foi com base no argumento de que o
adultério, era uma prática moral e religiosamente degradantes, que Maria Pereira da Silva
requereu a exclusão daqueles que eram a prova da imoralidade de Manuel Dias Borges.
Permitir que os filhos adulterinos fossem citados no inventário de seu falecido marido
representava a macula moral da sua família mas, sobretudo, era prejudicial aos demais
herdeiros: uma filha legítima e outra natural. Neste contexto, era, na visão da viúva,
inconcebível que filhos legítimos, naturais e espúrios viessem a exercer os mesmos direitos.
Assim, numa região onde a ilegitimidade atingiu quase 50% das crianças baptizadas há um
sem número de situações distintas que nos podem surgir. Por isso não podemos deixar de
chamar à colacção um outro exemplo, desta vez de tratamento igualitário entre todos os filhos
ilegítimos, provenientes de relações distintas.
Vemos, assim, que muito além da dissociação entre os filhos legítimos e ilegítimos,
várias eram as faces da ilegitimidade. Filhos naturais, adulterinos, incestuosos e sacrílegos
dividiam as atenções não só dos pais e das mães, mas também dos herdeiros ascendentes,
quando o assunto era a distribuição dos bens. Vimos, no caso dos filhos do Capitão Manuel da
Rocha Castro que nem sempre a perfilhação em testamento era suficiente para o acesso dos
filhos aos bens e honras dos pais. Em contrapartida, os filhos do Capitão-mor João Ferreira
dos Santos, mesmo não tendo sido reconhecidos em testamento pelo pai, foram-no pela viúva
devido ao tempo que conviveram e viveram como filhos legítimos.
O que fica claro é que, muito mais que o aceite legal da ilegitimidade, era necessário
um aceite social, familiar, que nem sempre acontecia. A presença da prole ilegítima poderia
221
Conclusão
sócio cultural das comunidades analisadas foi um factor fulcral na determinação das taxas de
ilegitimidade.
Num segundo momento, aquele que mais nos interessava, partimos para a análise da
problemática da ilegitimidade e as influências que a concepção de crianças fora de relações
matrimoniais poderiam ter no quotidiano das famílias às quais pertenciam. Se, na paróquia
sabarense detectamos o aceite e a integração das crianças ilegítimas, na paróquia bracarense a
marginalização e o ocultamento foram comportamentos mais vulgares. Exclusão e aceitação,
marginalização e inserção, reconhecimento e ocultamento, foram conceitos opostos que
cercaram a vida de homens, mulheres e crianças relacionados com a ilegitimidade nas duas
paróquias. Com base nestes dois pontos fundamentais para o nosso estudo: a impossibilidade
de comparação quantitativa dos números levantados nas duas paróquias e a contradição entre
aceite e negação da prole ilegítima, tivemos que repensar o estudo e buscar analisar as
diferenças e os distanciamentos no viver da ilegitimidade e não as semelhanças e
aproximações.
A documentação de natureza qualitativa foi aquela que nos permitiu adentrar no
quotidiano das famílias que tiveram, no seu seio, crianças ilegítimas. Neste contexto, as
escrituras e cartas de legitimação representaram documentos fulcrais para a inserção da prole
ilegítima no quotidiano jurídico e social que os cercava. As escrituras de legitimação foram as
vozes de pais e mães que buscaram no reconhecimento público dos filhos, uma maneira de
garantir o seu bem-estar. Tal recurso permitia aos filhos legitimados acederem aos bens dos
progenitores em situação de igualdade com os demais herdeiros ascendentes ou colaterais.
Relativamente às cartas de legitimação, a necessidade dos nobres recorrerem à Coroa para
reconhecer os filhos revelou dois aspectos fundamentais: primeiramente, a relação directa
entre a natureza da filiação e a possibilidade de reconhecimento, ou seja, a concepção no
estado de solteiro foi o argumento utilizado em todas as cartas de legitimação que
consultamos. Em segundo lugar, percebemos que foi de vital importância para o apelante
(fosse o legitimador ou o legitimado) apresentar testemunhas de prestígio que comprovassem
a vontade de legitimar. Os depoimentos apontaram para o laço estabelecido com as
testemunhas, bem como para o peso que a palavra exercia no século XVIII. O uso de
expressões como: "disse que sabe pelo ouvir e dizer", "pela muita familiaridade que tinha com
sua casa" reforçava o laço entre os envolvidos no processo e representava um forte
instrumento de convencimento das pretensões de legitimação. Era de conhecimento dos pais
que somente com a confirmação da paternidade feita pelo Rei, os filhos teriam alguma
possibilidade de disputar a herança e as honras dos pais com os demais filhos legítimos.
226
permite-nos concluir que seus moradores foram capazes de aceitar no seu quotidiano as
crianças nascidas de relações à margem da lei. E, apesar da inserção ter sido cercada de
muitas dificuldades, desamparo legal e social, não abalaram, efectivamente, o quotidiano
daqueles homens e mulheres. A família luso-mineira que se estabeleceu em Sabará criou laços
e espaços de sociabilidades capazes de aceitar, no dia-a-dia, as relações consensuais e os
filhos nascidos dessas uniões. Já na paróquia bracarense, pertencente à Cidade dos
Arcebispos, os moradores não tiveram o mesmo comportamento, permissivo, no que tocou à
prole ilegítima. A incidência, de pouco mais de 6,2% de filhos ilegítimos baptizados na
paróquia, não deve ser lida como sinónimo de moralidade e de ausência de relações
consensuais, mas como expoente da tendência da comunidade em ocultar o nascimento
ilegítimo, recorrendo até mesmo ao baptismo das crianças em paróquias vizinhas. É certo que
essa possibilidade somente poderia ser confirmada com a consulta aos assentos paroquiais de
paróquias vizinhas à de São João do Souto, o que no momento não seria possível. O facto é
que a pertença à malha urbana da Cidade de Braga e a presença da mão invisível na Igreja no
controlo da vida social dos residentes, foi responsável por um viver da ilegitimidade baseado
na marginalização.
Nomeada ou ocultada, reconhecida ou excluída, várias foram as faces que a
ilegitimidade assumiu nas comunidades pertencentes às duas margens do Atlântico. Os
___
diversos tipos documentais analisados os inventários post-mortem, os testamentos, as
___
cartas e escrituras de legitimação e os assentos paroquiais de baptismo e casamento
permitiram adentrar no universo da ilegitimidade de maneira diferenciada e complementar.
Além de quantificá-los e perceber a grande diferença na presença da prole ilegítima nas duas
paróquias analisadas, foi possível traçar o perfil de homens e mulheres identificados como
seus pais, ressaltando estado matrimonial, estatuto legal e origem. Buscamos assim apresentar
a temática da ilegitimidade em suas diversas nuances e contextos, considerando inclusive o
universo dos pais e todos aqueles que cercavam o quotidiano dessas crianças.
228
Fontes Manuscritas
Registos Paroquiais
Assentos de Baptismo
Livro nº 144 (1699 – 1713)
Livro nº 145 (1714 – 1721)
Livro nº 146 (1722 – 1751)
Livro nº 147 (1752 – 1772)
Livro nº 148 (1773 - 1789)
Livro nº 149 (1789 - 1799)
Actas de Casamento
Livro nº 154 - 1685-1701
Livro nº 155 - 1701-1751
Livro nº 156 - 1751-1781
Livro nº 157 - 1781-1799
Livros de Notas
Cotas
1) 61 31) 4538 61) 156 91) 1699 121) 2667 151) 4469 181) 6732 211) 7830 241) 8693 271) 137 301) 5667 331)
3100
2) 161 32) 4541 62) 195 92) 1748 122) 2684 152) 4482 182) 6733 212) 7831 242) 8694 272) 198 302) 5701 332)
3118
3) 175 33) 5019 63) 199 93) 1779 123) 2717 153) 4533 183) 6747 213) 7868 243) 8696 273) 292 303) 5703 333)
3443
4) 254 34) 5084 64) 216 94) 1781 124) 2967 154) 4560 184) 6756 214) 7897 244) 8752 274) 387 304) 5757 334)
4142
5) 287 35) 5203 65) 220 95) 1816 125) 3028 155) 4563 185) 6762 215) 7931 245) 8951 275) 391 305) 6238 335)
4146
6) 320 36) 5228 66) 221 96) 2151 126) 3061 156) 4583 186) 6782 216) 8051 246) 8955 276) 407 306) 6248 336)
4216
7) 563 37) 5343 67) 246 97) 2157 127) 3113 157) 4705 187) 6795 217) 8058 247) 8958 277) 415 307) 6276 337)
4243
8) 613 38) 5585 68) 259 98) 2228 128) 3393 158) 4801 188) 6811 218) 8185 248) 8959 278) 478 308) 6302 338)
4368
9) 622 39) 5618 69) 271 99) 2235 129) 3435 159) 4814 189) 6835 219) 8210 249) 8963 279) 568 309) 6381 339)
4394
10) 657 40) 5657 70) 286 100) 2244 130) 3447 160) 4827 190) 7328 220) 8213 250) 8967 280) 999 310) 5420 340)
4847
11) 1774 41) 4605 71) 330 101) 2259 131) 3460 161) 4863 191) 7395 221) 8218 251) 8983 281) 1700 311) 6440 341)
5017
12) 1778 42) 5785 72) 338 102) 2264 132) 3461 162) 4890 192) 7403 222) 8229 252) 8986 282) 1806 312) 6786 342)
5510
13) 1794 43) 6262 73) 350 103) 2282 133) 3462 163) 4891 193) 7443 223) 8230 253) 9030 283) 1835 313) 6809 343)
5679
14) 2256 44) 6219 74) 389 104) 2300 134) 3464 164) 4901 194) 7445 224) 8233 254) 9046 284) 2422 314) 6838 344)
5689
15) 2593 45) 6330 75) 409 105) 2319 135) 3479 165) 4913 195) 7463 225) 8251 255) 9053 285) 2942 315) 8239 345)
5709
16) 2601 46) 6430 76) 411 106) 2320 136) 3543 166) 5048 196) 7499 226) 8258 256) 9254 286) 2996 316) 8751 346)
5768
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3629 7006
235
Registos Paroquiais
Testamentos
Códices (intervalo de folhas dos testamentos)
1) CPO 01(12v-32v) 32) CPO 13(117v-124) 63) CPO 25(115v-119) 94) CPO 42(90-97v) 125) CPO 01(172v-
175v)
2) CPO 01(33-47v) 33) CPO 16(73v-80) 64) CPO 25(119v- 95) CPO 42(220-223) 126) CPO 01(195v-200)
123v)
3) CPO 01(47v-51v) 34) CPO 16(94-98) 65) CPO 25(127v- 96) CPO 42(238v-245v) 127) CPO 01(200v-204)
131v)
4) CPO 01(77v-82) 35) CPO 16(113v- 66) CPO 25(131v-138) 97) CPO 15(13-18) 128) CPO 01(224v-
129v) 230v)
5) CPO 01(129- 36) CPO 16(160v-169) 67) CPO 25(168-172) 98) CPO 15(80-85) 129) CPO 06(61v-65v)
132v)
6) CPO 01(133 -136) 37) CPO 16(233-237) 68) CPO 25(193-201) 99) CPO 15(135-140) 130) CPO 08(77v-81)
7) CPO 01(161v- 38) CPO 16(305v-308) 69) CPO 25(219-225) 100) CPO 15(186-193) 131) CPO 09(129v-
166) 135v)
8) CPO 01(230v- 39) CPO 16(345-348v) 70) CPO 25(245-249) 101) CPO 45(17-19) 132) CPO 11(104v-113)
235)
9) CPO 01(235v- 40) CPO 16(361v-369) 71) CPO 25(263v-267) 102) CPO 45(227-235) 133) CPO 12(63-70v)
244v)
10) CPO 06(43v-48) 41) CPO 16(369-373v) 72) CPO 28(61v-76) 103) CPO 16(135-138) 134) CPO 16(44v-58v)
11) CPO 06(52v-57) 42) CPO 16(426-437) 73) CPO 28(76v-86v) 104) CPO 40(153v-156) 135) CPO 16(225v-
229v)
12) CPO 06(91v- 43) CPO 16(510v- 74) CPO 28(157v- 105) CPO 41(8v-12v) 136) CPO 16(337-340v)
97v) 516v) 168v)
13) CPO 08(81v-85) 44) CPO 16(522-527v) 75) CPO 28(168v-175) 106) CPO 41(39v-47) 137) CPO 18(170-173)
14) CPO 09(34-40) 45) CPO 16(620v- 76) CPO 29(51-55) 107) CPO 41(57-62) 138) CPO 21(77-80)
627v)
15) CPO 09(65v- 46) CPO 19(110-115) 77) CPO 29(66-70) 108) CPO 41(157v- 139) CPO 22(107-109v)
71v) 163v)
16) CPO 09(97-101) 47) CPO 18(01-07v) 78) CPO 29(186-194) 109) CPO 42(6-11v) 140) CPO 241(70-73)
17) CPO 09(125v- 48) CPO 18(30-39) 79) CPO 32(148v-151) 110) CPO 51(219-223v) 141) CPO 26(184v-187)
9v)
18) CPO 11(11-16) 49) CPO 18(91v-98) 80) CPO 32(230-234) 111) CPO 48(42-45) 142) CPO 34(22-27)
19) CPO 11(20v-29) 50) CPO 18(154-156v) 81) CPO 32(234-236) 112) CPO 48(193-196) 143) CPO 34(68v-71v)
20) CPO 11(50-58) 51) CPO 24(103-106) 82) CPO 33(39-44v) 113) CPO 48(196-200) 144) CPO 34(89-96v)
21) CPO 12(17-24) 52) CPO 26(54-62) 83) CPO 33(45-50v) 114) CPO 50(27v-32v) 145) CPO 34(121-125v)
236
22) CPO 12(43v-51) 53) CPO 34(27-34v) 84) CPO 33(75-79) 115) CPO 49(62-66) 146) CPO 35(33-36)
23) CPO 13(1-6v) 54) CPO 34(96v-103) 85) CPO 36(02-14) 116) CPO 49(80-84) 147) CPO 35(39v-44v)
24) CPO 13(22v-25) 55) CPO 34(130-137) 86) CPO 36(79v-83v) 117) CPO 49(138-141) 148) CPO 25(85-90)
25) CPO 13(39-43) 56) CPO 34(167-174v) 87) CPO 35(1-4v) 118) CPO 49(141-146) 149) CPO 25(101-104v)
26) CPO 13(72-87) 57) CPO 35(65-68) 88) CPO 36(140v-146) 119) CPO 50(128v-132) 150) CPO 28(147v-152)
27) CPO 16(650- 58) CPO 01(03) 89) CPO 36(146-153v) 120) CPO 52(9-14) 151) CPO 29(110-114)
656)
28) CPO 16(674- 59) CPO 35(73-80v) 90) CPO 40(34-38) 121) CPO 52(55-57) 152) CPO 32(110-114v)
678v)
29) CPO 19(314) 60) CPO 35(90-95) 91) CPO 40(48-54) 122) CPO 54(158v-161) 153) CPO 32(127v -
133)
30) CPO 26(84v- 61) CPO 48(175-179) 92) CPO 40(54v-58) 123) CPO 01(118v- 154) CPO 33(83 - 87v)
89v) 24v)
31) CPO 26(100v- 62) CPO 25(60-71) 93) CPO 42(60-63v) 124) CPO 01(147- 52) 155) CPO 33(108v-
105) 112v)
156) CPO 36(45 – 54)
157) CPO 37(87v -
91v)
158) CPO 37(119v -
125)
159) CPO 37(134 -
137v)
160) CPO 40(91v –
106)
161) CPO 42(224 -
228v)
162) CPO 48(60 - 64)
163) CPO 48(69 - 73)
164) CPO 48(123 -
126)
165) CPO 48(234 -
238)
166) CPO 01(157 -
161)
167) CPO 11(113v -
118)
168) CPO 20(53v -
58v)
169) CPO 41(33v -
39v)
170) CPO 41(77 - 82v)
171) CPO 19(81 - 84)
172) CPO 20(23 - 26v)
Inventários post-mortem
Secção Colonial
Códice 5, fl. 116, Carta do Rei português a D. Lourenço de Almeida, 27 de Janeiro de 1726.
Projecto Resgate – Barão do Rio Branco - Inventário dos manuscritos avulsos relativos à
Minas Gerais existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
Arquivo Histórico Ultramarino. Sobre casamentos entre brancos e mulatas. Cx.28, doc.53, CD
9, 1734.
Arquivo Histórico Ultramarino. Sobre a forma com que vivem os mulatos nas Minas. Cx.68 –
doc.98, CD 20, 1755.
Arquivo Histórico Ultramarino. Representação dos oficiais da Câmara Municipal de Vila Rica
sobre as despesas com a criação dos enjeitados. Cx.103, doc.47, CD 30, 1772.
Arquivo Histórico Ultramarino. Mapa geral dos fogos, filhos, filhas, escravos e escravas,
pardos forros e pretos forros, agregados. Clérigos, almas, freguezias, vigários, com declaração
do que pertence a cada termo e total, e geral de toda a capitania de Minas Geraes, tirado no
anno 1767. Cx.93, doc.58, CD 27.
Arquivo Histórico Ultramarino. Solicitação do Mestre de Campo Manuel da Silva Rosa para
legitimação dos filhos que teve com Eugenia Rodrigues Santiago. Cx. 39, doc.55, CD 12,
1740.
Arquivo Histórico Ultramarino. Solicitação do Padre Manuel Machado Dutra para legitimar
seus três filhos. Cx.48, doc.10, CD 15, 1747.
Arquivo Histórico Ultramarino. Carta de José Correia de Miranda, juiz de Órfãos de Vila
Real, para D. João-V, dando conta da situação dos órfãos ilegítimos e das dificuldades que
tinham em se como herdeiros de seus pais, 1730. Cx.16, doc.85, CD 6, 1730.
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261
ANEXO I
262
Em nome de Deus amem. Eu Ana Vieira solteira da Freguesia de Santo Adrião de Soutello e
assistente nesta cidade de Braga freguesia de São João do Souto estando na cama doente de
doença que nosso Senhor me deu e com todo o meu perfeito juízo e entendimento e temendo a
morte tributo da vida, quero fazer meu testamento como de fato faço na forma e modo
seguinte:
Primeiramente encomendo minha alma a Sereníssima Trindade Padre Filho e Espírito Santo
três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro que a criou e renunciou com seu preciosíssimo
sangue a quem peço por sua infinita piedade e misericórdia me queira receber na ultima hora
da minha vida intercedendo a Virgem Senhora Nossa a quem tomo nesta hora e sempre por
minha advogada e ao meu Anjo da Guarda Santo do Meu nome e a todos os Anjos, Santos e
Santas da Corte do Céu para que todos roguem a Deus Nosso Senhor por mim agora e quando
deste mundo for; E também deixo que sendo Deus Nosso Senhor servido levar-me da vida
presente que meu corpo seja amortalhado em habito de Santa Teresa e sepultado na Igreja de
minha paróquia aonde de presente sou freguesa e que acompanhem meu corpo até o
sepultamento dez padres com a esmola costumada; E também deixo mais (fim da fl.1r) /
Deixo mais me farão no dia do meu enterro me digam um ofício de corpo presente de dez
padres a esmola costumada; E também instituo e deixo por meu herdeiro universal de todos os
meus bens que ficaram por meu falecimento depois de satisfeitos meus legados a meu filho
João Batista ainda menor; E também deixo por meu testamenteiro a meu irmão Romão Vieira
morador na mesma Freguesia de Santo Adrião de Soutelo e pelo seu trabalho lhe deixo 3$000
que abaterá da quantia que estava obrigado a dar-me em dinheiro e alem disso lhe perdoo os
juros que me devia pagar ate o presente dia de hoje e quando ele não queira aceitar nomeio
por meu testamenteiro a João Rodrigues da Freguesia de Soutelo a quem deixo em tal caso os
3$000 acima e os juros que deixam perdoados do meu irmão se aceitasse ser meu
testamenteiro; E também deixo a minha sobrinha Maria que é minha afilhada filha de meu
irmão Romão Vieira uns pelicanos de ouro que tenho; e também deixo a Jerônima Pereira por
bom serviço que me fez assistência a minha enfermidade 5$000; E também declaro que os
bens móveis que tenho alem do que tenho já disposto são os seguintes a saber: 20 libras de
linho fiado cru ou as que na verdade forem pouco mais ou menos, 4 lençóis de estopa e 2 de
linho, 1 travesseiro de estopa e outro de linho, 1 cobertor, 1 manta e todos os mais trastes de
roupa assim branca como de cor que se me acharem por minha morte que disser a dita
Jerónima Pereira acima nomeada serem meus; E também tudo aquilo que constar me
pertencer ou por herança ou por divida, ou de qualquer outro modo, que tudo (fim da fl.2v) /
que tudo deixo a meu filho satisfeitos meus legados pios e profanos acima ditos na forma
referida; e também declaro que também deixo uma vestia de droga que tenho a minha prima
Maria filha de Maria Angélica viúva da mesma freguesia de Santo Adrião de Soutelo. E nesta
forma ei este meu testamento por bem feito e acabado e assim é minha ultima vontade que só
este valha e tenha vigor e por este revogo todo e outro qualquer testamento ou codicilo que
tenha feito e assim quero se cumpra e guarde e peço muito da mercê a todas as Justiças
Eclesiásticas como seculares o cumpram e façam inteiramente cumprir e guardar como nele se
contem para o que roguei ao Padre Constantino de Oliveira Gomes que este me fizesse e a
meu rogo assinasse o que eu sobredito a seu rogo fiz e com testemunha assinei hoje aos
23.06.1749.
Aprovado em 23.06.1749
263
264
ANEXO II
265
Pedido de Legitimação apresentado por Caetano Rodrigues Soares, filho natural do Mestre de
campo Manuel Rodrigues
Arquivo Histórico Ultramarino – Projecto Resgate Barão do Rio Branco – Capitania de Minas
Gerais
CX. 51 - ROLO: 2 GAV. 1 DOC.15
Diz Caetano Rodrigues Soares natural do distrito da Villa Real do Sa/bará que elle suplicante
he filho natural do Mestre de campo Manoel Rodrigues / Soares que o houve com hua irman
do mesmo suplicante de Antonia de / Mendonça mulher donzela com quem o dito seu pay
teve illicito trato / não havendo impedimento entre os concubinarios para constrahirem
ma/trimonio por serem ambos solteiros e como filho do Mestre de Campo / foi sempre o
mesmo suplicante por elle tratado e nomeado com tal / excesso que teve desejo de legitimar
chegando para esse fim a escre/verlhe a carta incluza no tempo da sua infermidade e naquela
expos / claramente a sua vontade e porque pella grande distancia em que asis /tia e brevidade
da morte não pode conseguir efectuando o seu desejo / e nos ultimos termos ratificou a sua
vontade rogando as mesmas que / prezentes estavão quiserem ser desta testemunhas para o
futuro como consta / do instrumento incluzo pretende o suplicante que Vossa Magestade o
legitime / na melhor forma de direito para poder succeder em seus bens e poder / gozar de
todas as honras e liberdades visto falecer o dito seu Pai / com aquella vontade e sem herdeiros
ascendentes e descendentes legi/timos.
Vossa Magestade lhe faça mercê mandar passarlhe / sua carta de legitimação legitimando na
melhor / forma do direito para poder o suplicante succeder nos bens do / dito seu pai e gozar
de todas s honras e liberdades com /petentes [ilegível] a expressa vontade deste e não lhe / dar
a distancia e brevidade da morte rogo a effectuar o seu / deliberado desejo como tudo se
mostra da Carta / justificação [ilegível] incluzos e falecer o mesmo Pai do / suplicante sem
herdeiros ascendentes ou descendentes legi/timos não havendo impedimento
(fl.3r) A Caetano Rodrigues Soares se há de passar carta / de legitimação e para pagar o novo
direito que dever lhe deu / este bilhete.
(Fl.4r) [ilegível] Caetano Rodrigues. Com grande alegria recebi esta / carta principal nunca [?]
por me dizeres [ilegível] com Santo Deos se / continue que por vosso gosto [leitura muito
ruim, olhar no documento]
(fl.5r) Do Mestre de campo Manoel Rodrigues Soares pello / termo visto escrever repetidas
vezes em sua / vida e termos em que poder cartas e le /tras suas o que juramos aos Santos
Evangelhos / [ilegível] em juizo se necessario for / Vila Real do Saberá hoje treze de Junho /
de mil setecentos e quarenta e dois annos. Reconhesso a letra asima retro
(fl.7) Sentença civel de justificação que neste / Juizo ordinario de S. Romão a seu favor
/alcançou Caetano Rodrigues Soares
Joze Ribeyro Vellozo juiz ordinario / e comisario de orphãos neste Arra/yal de São Romão e
todos os seus com /tinentes Vossa Magestade. A todos os senhores Dou /tores
Dezembargadores corregedores / Provedores ouvidores contadores / julgadores Juizes de Fora
orphãos / e ordenarios e mais Minsitros de / Justiça e pessoas della destes Rei /nos e senhorios
de Portugal aque /lles a quem perante quem e a cada / hum dos quoaes esta minha mais /
verdadeira carta de sentença ci /vel de justificação em forma for a/presentada e o seu
verdadeiro co/nhecimento deva e haja de erten /ser com direito direitamente se / pedir e
266
requerer por qualquer via / titulo forma maneira ou razão que / seja. Faço a saber que neste /
Pelo ver e asistir
/ muitos annos Juizo Ordinario de São Romão e / perante mim se correrão matarão e prosesarão huns autos
em casa do de couza / e materia civel de justificação / entre partes justificantes carta. (fim da fl. 7)
defunto Manoel
/ Rodrigues Caetano Rodrigues Soares isto so/bre a cauza e por razão da cauza que pello / discurso desta
Soares / athé a minha carta de sentença / civel de justificação se hera fazando / mais larga expressa declarada
hora da / sua
morte / que este men/ção e logo dos mesmo autos se via / e mostrava por seu principio o seu / autuamento que
sempre teve, / sendo no anno / do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil setecentos e Qua/renta e
ao justificante /
por seu filho, tres annos aos quinze dias / do mês de Agosto do dito anno nesse / Arrayal de São Romão em
elle / disse que cazas / de morada do escrivam aodiante / nomeado e sendo ahy por parte de Caetano
tinha tem/ção de
legitimar / no Rodrigues Soares lhe fo/ra dada huma sua petição para / justificação a qual hera a que ao
testamento, o /diante se seguia e para constar fi/zera termo de autuamento Lou/renço Ferreyra da Silva
que no / entanto
tivesse / elle Tabeli /ão que o servirá he não se conti /nha mais em o dito autuamento / depois do qual
testemunha servia e [ilegível] dos / mesmo autos estar hua petição / (fim da fl.8) petição do justificante da
lembrança da
dita vontade qual / se via nella que dizia Caetano / Rodrigues Soares que elle tinha /tificado e julgado por
pois / sobre a sentença ser / filho do defunto o Mestre de campo / Manoel Rodrigues Soares e agora / para
materia / tinha
ao dito seu / serto requerimento que tem / que fazer perante sua Magestade / que Deos Guarde lhe
filho escripto à precizava jus/tificar o item seguinte // item / o dito defunto não só pelllo do [ilegível] / que o
Ci/dade da
Bahia suplicante conservava ser / seu poder de propria letra e signal / do defunto declara que he seu
gosto / que o suplicante fosse seu legi /timo herdeiro e que sua Magestade / houvesse por
legitimalo sem embar/go disso não declarar no testamento (fim da fl. 9) mandarlhe passar seu
instrumento / não se continha mais em a ditta / petição que sendome assim feita e por / mim
vista nella proferio meu des/pacho do theor e forma seguinte // Justi /fique // Velozo // E não
se constinha mais / em a dita petição e meu despacho em / observancia do qual se procedeu
pe/rante mim a hua fiel e verdadeira / Inquirição pella qual se via e mostra /va dos termos
della seguir se ao dito seu / principio cujo he o do theor seguinte / Asentada // Aos quinze dias
do mês / de Agosto de mil setecentos e quaren /ta e tres annos nesse Arrayal de São / Romão
em cazas de aposentadoria do / Juiz ordinario Joze Ribeiro Velozo / adonde eu tabelião
aodiante no /meado fui vindo para efeito de se / inquirirem e perguntarem as testemunhas que
para esta justifi/cação fosse aprezentadas de cujos / seus nomes cognomes terras mora/da
oficios idades e costumes são / os que aodiante se seguem de que (fim da fl. 10) para constar
fiz esse termo / de asentado eu Lourenço Ferreyra / da Silva Tabelião que o escrevi/ o
Sargento-mor Antonio Nunes / natural de Vila Real Arcebispado / de Braga morador na
fazenda do / Jaquitahy de idade que dise ser de / trinta e seis anos pouco mais / ou menos
testemunha jurada aos / santos evangelhos sobre os quais / pos sua mão direita e prometeu /
dizer verdade digo direita em hum / livro delles que prezente estava / cujo juramento lhe
deferio o dito / Juiz ordinario e prometeu dizer / verdade do que soubesse e lhe foi /
perguntado e do costume dise na/da // E perguntado a elle testemu/nha pello cotheudo do item
do / justificante da petição retro dela / Cartano Rodrigues Soares disse que / sabe pello ver e
ouvir dizer ao de/funto Mestre de campo Manoel / Rodrigues Soares pella muita
fami/liaridade que tinha em sua caza (fim da fl.11) em sua caza por ser parente do mestre de
campo Manoel Nunes Viana / socio em todos os bens do referido de/funto Manoel Rodrigues
Soares / que o suplicante justificante hera / seu filho e tanto assim que o deter/minava e queria
legitimallo no / futuro testamento que determina/va fazer porem que cazo que fale /sese sem o
efectuar por morar em / parages remotissimas que o tivesse / elle testemunha assim entendido
/ para servir algum dia ao dito seu / filho se elle disso necessitasse e que so/bre esta meteria
tinha elle defun/to já escrito huma carta ao ditto / seu filho de sua letra e signal a / qual elle
testemunha ao depois / vio e o reconheseu ser da propria le/tra do defunto em que lhe diria
que / a sua ultima vontade hera que / fosse seu legitimo herdeiro que a/sim requeresse as
justiças de sua / Magestade e que elle testemunha / disse o dito defunto varias vezes por / (fim
da fl.12) porque asistia nas povoações que / se handavão fazendo na perna que / tivesse bem
267
conta no Novo Morgado / que andava cultivando para seo / filho Caetano e alnão [?] disse do
item / justificativo // Eu Lourenço Ferrei/ra da Silva que o escrevo // Antonio Nunes Alves
Velozo // Jose Vieira / Lima natural da Vila de Viana / Arcebispado de Braga e morador /
nesta fazneda do Jaquitahy de i/dade que disse ser de quarenta e sin/co anos pouco mais ou
menos que / vive de seu negocio testemunha / a quem o Juiz ordinario deferio / o juramento
aos santos evangelhos / em que pos sua mão direita e pro/meteu dizer verdade do que
soube/sse e perguntado lhe fosse aos costu/mes disse nada // E perguntado / a elle testemunha
pello contheudo / no item justificativo do justifi/cante Caetano Rodrigues Soares / disse que
sabe pello ver e por asistir / muitos anos em caza do defunto / (fim da fl.13) e digo muitos
annos athe a hora da sua / morte em caza do defunto Manoel Ro/drigues Soares que esse
sempre teve / e tratou ao justificante Caetano Rodri/gues Soares por seu filho e que varias /
vezes lhe disse a elle testemunha que / a sua tenção era legitimallo no fu/turo testemnto que
havia de fazer / porem que entre tanto como não / podia fazer de proximo o tivesse elle /
testemunha assim emtendido para / servir algum dia ao dito seu filho / se necesario fosse e
que sobre essa ma/teria tinha elle dito defunto escrito / a Bahia ao dito seu filho em que lhe /
declarava o mesmo e o rogava as jus/tiças de sua Magestade assim lhe / cumprissem cuja
carta elle testemu/nha vio ao depois e achou ser da propria / letra e signal do mesmo defunto /
e que outra ahy sabe elle testemunha / pello vir que dandolhe e apertandolhe / a doença de que
morreu lhe pedio a elle / testemunha que visse com a mayor / brevidade posivel a este Arrayal
de / (fim da fl. 14) São Romão buscar Tabeli/am porque queria aprovar seu testa/mento sendo
a mayor razão a vonta/de que vinha de declarar nelle refe/rido o que com efeito fez elle
testemu/nha e por mais preça que se deu como / vinha em canoa por estarem os cam/pos
alagados do Rio de São Francisco / e serem secenta legoas por elle asi/ma quando chegou o
Tabelião digo / chegou a tabua como Tabelião Ber/nar do da Silva para seu efeito há /via dous
dias que havia falecido / e alnão disse do item justificativo / do suplicante e se asignou eu
Lou/renço Ferreyra da Silva qye o es/crevi // Joze Vieira Lima // Velozo § Francisco dos
Santos natural dos / campos da Caxoeira Arcebispado / da Cidade da Bahia asistente no /
Paraná que viu de criar gado de ida /de que disse ser de sesenta annos / pouco mais ou menos
testemunha / jurada aos Santos evangelhos [ilegível] / o dito juiz deu juramento em hum /
(fim da fl. 15) em, hum livro delles em que pos / sua mão direita e prometeu dizer / verdade di
que soubesse e perguntado / lhe foi dos costumes disse nada // e per/guntado a elle testemunha
pello com/theudo no item justificativo do supli/cante Caetano Rodrigues Soares / disse que
sabe pello ver e por asistir / muitos annos athe a hora da sua / morte em caza do defunto o
Mestre / de campo Manoel Rodrigues Soares / que elle sempre teve e tratou ao su/plicante
Caetano Rodrigues Soares / por seu filho e que varias vezes lhe / disse a elle testemunha que a
suain/tenção hera legitimalo no futuro / testamento que havia de fazer po/rem que entretanto
como não podia / fazer de proximo o tivesse elle testemu/nha assim entendido para servir
al/gum dia ao dito seu filho se necessario / sobre e que sobre esta materia tinha / elle
testemunha digo tinha elle dito / defunto escrito a Bahia ao dito / seu filho em que declarava o
mesmo / (fim da fl. 16) o mesmo rogava as justiças / de sua Magestade assim lhe era posi/vel
cuja carta elle testemunha vio / ao depois e achou ser da propria le/tra e signal do mesmo
defunto e / outro [ilegível] sabe elle testemunha pe/lo [ilegível] que apertandolhe ao ditto /
defunto a doença de que morreu / mandou a toda a preça a sou viu /ra acima a buscar o
tabelião por / que queria aprovar o testamento / sendo a mayor razão a vontade / que tinha de
nelle declarar o re/ferido porem quando chegou com elle / já não foi a tempo pella grande
di/lação que lhe cauzou a cheya do Rio / de São Francisco [ilegível] / justificativo do
justificante e asi/gnou eu Lourenço Ferreira da Sil/va que o escrevi // Francisco dos San/tos
Vellozo // Vellozo // Segundo que tu/do isso assim se continha e hera con/theudo escrito e
declarado eo os di/tos autos de justifica/cão que sendo / esta por mim tirada tãobem / (fim da
fl. 17) na minha prezença inquirida / as ditas testemunhas logo prezente / mim nesse Arrayal
268
de São Ro/mão aos quinze dias do mês de A/gosto de mil setecentos e quaren/ta e tres annos
nas cazas de minha / aposentadoria por parte do justi/ficante me fora dito e requerido / que na
inquirição se lansase da / mayor prova e qye não tinha mais / testemunhas que dar do que as
que / tinha produzido e dado o que man /dasse se fizerem ao autos concluzoz / de que de tudo
fizera termo Louren/ço Ferreira da Silva escrivam / que o escrevi // Segundo que tu/do assim
e não cumpridamente / hera escrito e como lhe [ilegível] decla/rado em os ditos autos em
virtude do requerimento do justificante / que por sua parte se fizera no Ter/mo de lansamento
logo no mês /mo dia mês e anno o escrivam / dos autos me fizera concluzoz / para a elles
deferir como o que foy / (fim da fl. 18) fosse de justiça de que fizera termo / o escrivão dos
autos Lourenço Ferrei/ra da Silva que o escrevera // e não se continha mais em os ditos autos /
de justificação que sendo essa / feita [ilegível] tão bem / os autos concluzos os quais sendo /
assim aprezentados por mim / bem vistos examinados e nelles / proferi a vista do seu
merecimen/to a minha sentença do theor foi / o seguinte // julgo a justifica /ção por sentença
cumprase co/mo nella se contem e pague / o justificante as casas São Romão / a primeiro de
outubro de mil se/tecentos e quarenta e tres annos / José Ribeiro Velozo // E não se com /tinha
mais em a dita minha sen/tença que sendo assim proferida / e da nos autos tão bem por mim /
fora publicada em o mesmo dia / mês e anno de sua data do que fi/zera e continuara termo de
sua / publicação o escrivão dos autos (fim da fl. 19) Dos autos em qual mandei que / se
cumprise e guardase na forma / e que nella se contem declara/do que de tudo continuara seu
ter/mo Lourenço Ferreira da Silva/ escrivão que o escrevera // Segundo L.7/ que tudo assim e
tão cumprida/mente se continha em os ditos au/tos de justificação inquirição do / justificante a
minha sentença / proferida a ella dada da parte / de Sua Magestade que Deos Guar/de faço a
saber aos todos por senho/res no principio desta minha car/ta a sentença civel de justifica/ção
fação em tudo cumprir e guar/dar como nelle se contem em / fação observância [ilegível]
tenha/ ao justificante Caetano Rodrigues / Soares por filho legitimado do Mes/tre de campo
Manoel Rodrigues / Soares visto ter mostrado perante / mim ao filho do dito elle ser jul/gado
por sentença a qual o podeio do / proseço para seu titulo e com ser / (fim da fl. 20). E
conservação de seu direito o que / vendo em ser justo e con/nforme a ra/zão e direito e de
justiça lhe mandei / dar e passar que he aprezente a qual / sendolhes apresentada indo
pri/meiro por mim asignada e sellada / com o filho que neste meu juizo se / observa [ilegível]
elle excauza a fa/ção em tudo verdadeiramente cum/prir e guardar assim [ilegível] que / nelle
se conthem e declara o que assim / cumprão. Dada e passada neste / Arrayal de São Romão
aos dois / dias do mês de outubro do anno / do nascimento de Nosso Senhor Je/sus Christo de
mil setecentos e / quarenta e tres annos. Pagouse de/ feitio dessa minha carta de senten/ça da
justificação ao todo na forma / do regimento que se observa neste / meu juizo a quantia de hua
oitava [ilegível] de ouro ilegível] / hum quarto de ouro [ilegível] (fim da fl. 21)