Violencia No Brasil Final 1
Violencia No Brasil Final 1
Violencia No Brasil Final 1
NO BRASIL
desafio das periferias
Organização
Felipe da Silva Freitas
Amanda Pimentel | Artur Henrique
dos Santos | Bruno Langeani |
Dandara Tonantzin Silva Castro |
Danilo Sales do Nascimento | Dudu
Ribeiro | Felipe da Silva Freitas
| Gustavo Queiroz | Jackeline
Aparecida Ferreira Romio |
Juliana Borges da Silva | Juliana
Gonçalves | Maíra de Deus Brito |
Pablo Nunes | Paulo César Ramos |
Poliana da Silva Ferreira | Ricardo
Moura | Silvia Ramos | Sofia Helena RecoNexÃO
PeriFeriAs
Monteiro de Toledo Costa
VIOLÊNCIA
NO BRASIL
desafio das
periferias
VIOLÊNCIA
NO BRASIL
desafio das
periferias
Organização
Felipe da Silva Freitas
Amanda Pimentel | Artur Henrique dos Santos | Bruno Langeani
| Dandara Tonantzin Silva Castro | Danilo Sales do Nascimento |
Dudu Ribeiro | Felipe da Silva Freitas | Gustavo Queiroz | Jackeline
Aparecida Ferreira Romio | Juliana Borges da Silva | Juliana
Gonçalves | Maíra de Deus Brito | Pablo Nunes | Paulo César
Ramos | Poliana da Silva Ferreira | Ricardo Moura | Silvia Ramos |
Sofia Helena Monteiro de Toledo Costa
RecoNexÃO
PeriFeriAs
Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.
Diretoria:
Presidente: Aloizio Mercadante
Vice-presidenta: Vívian Farias
Elen Coutinho
Jéssica Italoema
Alberto Cantalice
Artur Henrique
Carlos Henrique Árabe
Jorge Bittar
Márcio Jardim
Valter Pomar
Conselho editorial:
Albino Rubim, Alice Ruiz, André Singer, Clarisse Paradis, Conceição Evaristo, Dainis Karepovs,
Emir Sader, Hamilton Pereira, Laís Abramo, Luiz Dulci, Macaé Evaristo, Marcio Meira, Maria Rita Kehl,
Marisa Midori, Rita Sipahi, Silvio Almeida, Tassia Rabelo, Valter Silvério
Coordenador editorial
Rogério Chaves
Assistente editorial
Raquel Costa
Revisão
Claudia Andreoti
Angélica Ramacciotti
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica
Antonio Kehl
Imagem de capa
Fernando Frazão/Agência Brasil, Operação policial após ataques às bases das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP) nas comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana (RJ).
O livro Violência no Brasil – desafio das periferias compõe a coleção Reconexão Periferias.
A coleção coordenada pelo Projeto Reconexão Periferias da FPA, lançará novos
temas brevemente, com temas relacionados ao trabalho e violência.
Coordenador do projeto
Paulo César Ramos
Coordenadora da área de violência
Juliana Borges
Equipe
Isaías Dalle, Léa Marques, Matheus Toledo, Rose Silva, Ruan Bernardo,
Sofia Helena Monteiro de Toledo, Victoria Lustosa Braga, Vilma Bokany
Apresentação.............................................................................................. 7
Paulo César Ramos e Artur Henrique dos Santos
Introdução................................................................................................... 9
Felipe da Silva Freitas
1
Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor
do Instituto Brasileiro de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento (IDP) e professor colabo-
rador do Mestrado Profissional em Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). É diretor da Plataforma Justa e assessor da Rede Liberdade.
10 Violência no Brasil
Introdução
O estudo das relações entre mortes violentas, faixa etária, pertencimento ra-
cial e condições socioeconômicas consiste num desafio bastante central para
qualquer política pública que tenha como objetivo enfrentar o problema da
violência urbana e dos seus impactos na dinâmica social e na vida nas cidades.
Como têm sublinhado os estudos sobre raça, gênero, classe e geração, resta
cada vez mais explícita a repercussão destes marcadores sociais na composição
da vulnerabilidade de determinados grupos e, ao mesmo tempo, está farta-
mente demonstrado nos estudos sobre homicídios no Brasil o quanto a condi-
ção social concorre para a especial vulnerabilidade à vitimação por agressões e
à ocorrência de mortes por causas externas.
1
A equipe foi composta pela prof. dra. Jackeline Aparecida Ferreira Romio e Juliana Borges
da Silva, com a colaboração de Danilo Sales do Nascimento França (pesquisador de pós-
-doutorado no NEPO-Unicamp), e Felipe da Silva Freitas (doutor em direito – UnB).
2
Consultora e coordenadora-geral desta pesquisa. Doutora em Demografia pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp).
3
Coordenadora do Projeto Reconexão Periferias. Consultora na área de violência, estuda
Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
18 Violência no Brasil
e dos feminicídios, além de muito se saber sobre o “perfil” das pessoas que
morrem no país, persiste o desafio de elucidar mais e melhor as características
sociodemográficas deste grupo de vítimas, aprofundando os debates acerca de
circunstâncias sociais que se associariam à violência. E este é um esforço que
buscaremos apontar mais adiante.
Metodologia
De uma forma geral, além do campo dos estudos do trabalho e desigualdade,
especialmente liderados pelos estudos de Roger Bastide e Florestan Fernandes
na década de 1960, a variável raça foi pouco explorada no país, poucos são os
estudos que a utilizaram na produção de estatísticas sobre saúde e que ana-
lisaram os diferenciais raciais no processo de adoecimento e morte. Menores
ainda são os estudos que conjugam raça e gênero como categorias de análise.
O próprio acesso às informações oficiais sobre raça na saúde e segurança
pública dificulta a abordagem e o acompanhamento do impacto do racismo
na morbi-mortalidade, pois o quesito raça/cor só foi implantado nos atestados
de óbito no ano de 1996 e as bases da segurança pública não seguiram padrão
nacional na coleta desta informação.
Este fato marca os estudos sobre mortalidade segundo raça/cor, o que é per-
ceptível ao se observar o tipo de método aplicado e pelo tipo de fonte utiliza-
da formando dois tipos de estimativas de mortalidade: as indiretas, através de
dados do Censo Demográfico até 1996; e as diretas, através de dados da saúde
pós-1996. Na revisão da literatura sobre mortalidade e diferenciais por raça/cor,
outra observação a ser feita é quanto aos temas tratados. Os mais recorrentes são
a mortalidade infantil, mortalidade materna e morte por causas externas.
Entre as poucas pesquisas que avaliaram as desigualdades raciais na mor-
talidade antes da implementação do quesito raça/cor destacam-se os estudos
protagonizadas por Maria Estela G. da Cunha, sobre mortalidade infantil e
adulta feminina. Em suas pesquisas, as metodologias de análise foram direcio-
nadas para a captura da dimensão de raça/cor por meio das informações do
Censo Demográfico, já que nos registros de saúde e civil ainda não contavam
com essa desagregação. Aplicando métodos indiretos de análise da mortali-
dade ifantil, a autora concluiu que filhos de mães negras estavam expostos
20 Violência no Brasil
4
Movimento pela Saúde da População Negra de São Paulo.
Desigualdade de raça na vitimização de jovens por feminicídios e homicídios no Brasil 21
5
M. F. T. Peres, Violência por armas de fogo no Brasil – Relatório Nacional. São Paulo, Brasil:
Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo, 2004. Ver relatório disponível no
link: https://nev.prp.usp.br/publicacao/violncia-por-armas-de-fogo-no-brasil/. Acesso em:
5 set. 2022. [N.E.]
24 Violência no Brasil
tipo de mortalidade feminina e, como pode ser visto, a violência por armas
de fogo também atinge mulheres negras, como apontado no gráfico abaixo.
Gráfico 2: Mortes violentas no Brasil, entre 2000 e 2018, por sexo, raça e
razão do óbito
Um dado que chama a atenção é a diferença encontrada nos dados sobre jo-
vens mortos por agressão (56%), considerando-se o número de jovens vítimas
de homicídio por arma de fogo (44%) no país. Não significa, de modo algum,
relativização diante da importante atenção a isso, principalmente em um cenário
político em que há apologia, flexibilização e incentivo à compra de armas. Essa
diferença pode ser um indicativo diante de vários estudos que apresentam a
violência como um “mito fundacional”, algo intrínseco às dinâmicas cotidianas
na sociedade brasileira, de modo a nos fazer aprofundar reflexões e formulação
de políticas para lidar com um fenômeno multidimensional.
Os 100 municípios selecionados, que envolvem todas as capitais e regiões
metropolitanas, regiões que concentram a maior parte dos homicídios e femi-
nicídios, concentram 61,38% ou 561.060 em números absolutos, das mortes
de jovens no país; sendo que destas mortes, 54,48% foram em decorrência de
agressão e 45,52% por armas de fogo.
Desigualdade de raça na vitimização de jovens por feminicídios e homicídios no Brasil 27
6
Dados do IBGE (2018).
28 Violência no Brasil
Na região Sudeste do país, um dado que nos chama atenção é de que, nas
cidades selecionadas do interior, jovens brancos, sejam homens ou mulheres,
foram mais vitimados por agressão e por armas de fogo do que jovens negros;
enquanto nas capitais e regiões metropolitanas, jovens negros, homens e mu-
lheres, são as maiores vítimas. Nas capitais, homens-jovens-negros são o dobro
dos vitimados por agressão e arma de fogo; sendo que essa diferença se amplia
para cinco vezes nas regiões metropolitanos, nos casos de óbitos por agressão,
sendo 36.008 homens-jovens-negros ante 7.005 de homens-jovens-brancos
vitimados. Em Belo Horizonte, homens-jovens-negros são três vezes mais ví-
timas por arma de fogo e por agressão do que homens jovens-brancos; sendo
13.601 ante 3.767 óbitos.
Em Brasília, homens-jovens-negros são seis vezes mais vitimados por agres-
são do que homens-jovens-brancos, 6.660 ante 990 óbitos. Entre as vítimas
por arma de fogo, essa disparidade se mantém, sendo 5.459 homens-jovens-
-negros vitimados ante 829 homens-jovens-brancos.
O Mapa da Violência 2015 tratou do tema dos homicídios de mulheres no
Brasil, em relatório lançado em ocasião do dia 25 de novembro, Dia de luta
pela eliminação da violência contra a mulher. Esse mapa, portanto, foi uma
30 Violência no Brasil
edição especial voltada para a análise da violência letal contra a mulher nas
suas várias faces, como na dimensão de idade, de raça e de territorialidade. No
documento, há uma explanação importante sobre como deve-se considerar o
feminicídio:
Entende a lei que existe feminicídio quando a agressão envolve violência domés-
tica e familiar, ou quando evidencia menosprezo ou discriminação à condição de
mulher, caracterizando crime por razões de condição do sexo feminino. Devido
às limitações dos dados atualmente disponíveis, entenderemos por feminicídio as
agressões cometidas contra uma pessoa do sexo feminino no âmbito familiar da
vítima que, de forma intencional, causam lesões ou agravos à saúde que levam a
sua morte (Waiselfisz, 2015:7).
delo explicativo restando dados sobre: mortes totais, mortes de pessoas negras
(jovens ou não) e mortes de mulheres (negras e não negras).
De partida, os dados levantados demonstraram que, nos municípios com
mais de 100 mil habitantes, as variáveis relativas à Informalidade Juvenil, Pro-
porção de Negrxs, Desemprego, Região Metropolitana (dez maiores), Adoles-
centes fora da escola, Mães Adolescentes, Domicílios monoparentais com chefia
feminina tendem a se associar com a elevação do total de mortes violentas. E,
em sentido contrário, que Informalidade, Proporção de Pobres, Rede de Esgoto
e Capitais tendem a se associar com a redução do total de mortes violentas.
Essas associações nos permitem especular que a raça tem um peso especial
dentro do conjunto das ocorrências de violência letal, sempre em articulação
com outros fatores – sociais, econômicos e identitários – que compõem uma
peculiar condição de vulnerabilidade que superexpõe homens-jovens-negros, re-
sidentes nas periferias urbanas. Do ponto de vista teórico, essa condição peculiar
é bem explicada pelo que um conjunto de teóricos têm designado como fenô-
meno da interseccionalidade, ou seja, pelo fenômeno de articulação de diferen-
tes fatores que se interseccionam na produção da desigualdade e da proliferação
de ideias e representações negativas sobre determinadas pessoas e grupos sociais.
34 Violência no Brasil
7
A nota técnica, de autoria de Daniel R. C. Cerqueira (Diest/Ipea) e Rodrigo Leandro de
Moura (Ibre/FGV), está disponível no link: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/nota_tecnica/131119_notatecnicadiest10.pdf. Acesso em: 5 out. 2022. [N.E.]
Desigualdade de raça na vitimização de jovens por feminicídios e homicídios no Brasil 35
regiões metropolitanas relacionam-se com uma violência maior. Isso pode ter
relação ao fato de a violência letal estar fortemente presente em periferias me-
tropolitanas, onde são mais frágeis as políticas de integração urbanística e de
proteção social. Some-se a isso a constatação de que, nestas regiões, cresce a
disputa pelo controle territorial do tráfico, das facções e das milícias, bem
como é maior a ocorrência de episódios de violência policial.
O acesso a condições urbanas adequadas (variável rede de esgoto) está as-
sociado a menores índices de violência. O acesso aos serviços urbanos pode
ser lido como uma presença do Estado, uma vez que se trata-se de uma das
mais elementares formas de prevenção de doenças, de garantia de bem-estar e
sensação de segurança nas comunidades – a instalação de redes de esgoto – ou
seja, um marcador elementar de como o estado se relaciona com os espaços
urbanos e como os jovens se relacionam com essa realidade.
Importante ressaltar que os indicadores de mães adolescentes e domicílios
monoparentais com chefia feminina estarem vinculados à violência mais alta,
não quer dizer que sejam causa da violência (ou que arranjos familiares não
tradicionais sejam celeiro de violência). Essa versão foi insistentemente repe-
tida por políticos de espectro conservador, mas não guardam relação objetiva
com a explicação do fenômeno.
Muito provavelmente, tais variáveis compõem um conjunto maior e mais
complexo de vulnerabilidades e a diferença constatada deve ser lida em pers-
pectiva e em correlação com outros fatores. Se, por um lado, arranjos fami-
liares não tradicionais podem (ou não) estar – direta ou indiretamente – re-
lacionados a condições sociais e econômicas mais desvantajosas, por outro
lado, essa condição não pode ser objetivamente referida a exposição à violência
dado que, na prática, são inúmeras as reinvenções possíveis dentro destes ar-
ranjos familiares e sendo descabida qualquer correlação dessa condição com
condutas individuais ou coletivas de vulnerabilidade.
Quanto ao quadro das mulheres negras, também aqui as variações de gê-
nero ficam bastante explícitas. De acordo com o quadro desenhado por nós
em relação às variáveis que interferem no contexto de violência letal, vemos
que a elevação do número de mortes dentro do grupo das mulheres tende a se
associar com a elevação do total de mortes violentas.
38 Violência no Brasil
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Letalidade policial no Brasil
Poliana da Silva Ferreira1
Introdução
Abordagens policiais que resultam em morte não são um fenômeno raro, tam-
pouco recente no Brasil; ao revés, mortes produzidas por policiais em serviço
constituem práticas institucionais exercidas há mais de quatro décadas, de ma-
neira recorrente. Este artigo tem o objetivo de discutir os principais desafios
para o enfrentamento da letalidade policial no Brasil, por meio das ações do
próprio Estado.
Assim, para abordar o contexto e as práticas institucionais que autorizam
a alta frequência com a qual policiais em serviço produzem mortes no país e a
ausência de responsabilização estatal por estas mortes, o texto organiza a litera-
tura sobre o tema e se concentra em costurar resultados de distintas pesquisas
publicadas no Brasil, em especial nas duas primeiras décadas deste século, para
oferecer uma revisão dos estudos no tema da letalidade policial.
1
Doutoranda em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade do Estado da Bahia,
do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena e do Núcleo de Justiça Racial e Direito, ambos
da FGV. Diretora da Plataforma Justa.
42 Violência no Brasil
2
Projeto SIP/Uneb/DCHI-187/2015/2019, desenvolvido sob a coordenação do professor
Riccardo Cappi.
3
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Proc. n.
2019/24756-3), desenvolvida no Programa de Pós-graduação da Escola de Direito de São
Paulo da Fundação Getúlio Vargas, sob orientação da professora Maíra Rocha Machado.
Letalidade policial no Brasil 43
da Saúde e das Secretarias de Segurança Pública e/ou Defesa Social dos estados
permitirão um diálogo com os estudos brasileiros que apontam para elemen-
tos estruturais da composição do contexto da letalidade policial no país.
Só nas últimas duas décadas mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de
“homicídios”4 no Brasil e outras 200 mil integraram a modalidade de “mortes
por causa indeterminada”5 no país, conforme se infere das informações pu-
blicadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2021) com
dados referentes ao período de 2000 a 2019. Esse fato nos faz lembrar que a
relativa estabilidade política, com a qual a democracia brasileira funcionou en-
tre a década de 1990 e o ano de 2016, conviveu com altos índices de violência
letal. Nesse sentido, a leve queda da taxa de homicídio entre 2017 e 2019 foi
ofuscada pela elevação da taxa de mortes violentas por causas indetermina-
das6. Essas duas modalidades de violência letal alocam o debate da letalidade
policial dentro de um contexto no qual os parâmetros da normalidade são
mediados por episódios recorrentes de morte violenta.
Além da alta frequência com a qual a violência letal se manifesta, outro
elemento que integra o contexto e as discussões referentes à letalidade policial
é a produção de uma vitimização específica. No Brasil, o perfil das vítimas
de homicídios tem encontrado na população jovem, masculina e negra seu
melhor desenho. Como lembram Daniel Cerqueira e outros autores, “a morte
violenta de jovens cresce em marcha acelerada desde os anos 1980” (2016, p.
19) e quanto aos homens7, esses sempre estiveram mais vulneráveis à violência
física, letal e não letal (Schraiber et al., 2012), sendo os homens negros a
4
Registros de “homicídios” identificados a partir do agrupamento das “categorias agressões
(110) e intervenções legais (112) da 10ª revisão da Classificação Internacional de Doen-
ças adaptada à realidade brasileira (CID-BR-10), segundo o Sistema de Informação sobre
Mortalidade/Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde (SIM/SVS/MS)” (Cer-
queira, 2021, p. 11).
5
Óbitos cuja causa é indeterminada e os dados são adquiridos pelos códigos da CID-10:
Y10-Y34, que correspondem a eventos (fatos) cuja intenção é indeterminada (Ipea, 2021).
6
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada apontam que entre 1989 e 2019, o
Brasil registrou 1.532.441 homicídios e 320.501 ocorrências registradas de mortes por causa
indeterminada.
7
Neste texto os homens estão equiparados ao sexo masculino por mero efeito pedagógico,
posto que os dados estatísticos oficiais referentes aos homicídios não são coletados e produ-
zidos considerando o gênero das vítimas (Ferreira, 2016, 2017).
44 Violência no Brasil
8
Expressão utilizada pela socióloga Vilma Reis para registrar a dimensão geracional, racial e
de gênero que envolvem a produção destas mortes (2005).
Letalidade policial no Brasil 45
9
Para uma compreensão aprofundada dos limites e desafios neste tema impostos pelo regime
de governo e pela forma de Estado adotados pelo Brasil, ver Arthur Costa (2004) e Domício
Proença Júnior e outros (2009). Para entender melhor os conflitos normativos e institucio-
nais oriundos do desenho institucional brasileiro, relativos, especificamente, à letalidade
policial, ver Ferreira (2020).
50 Violência no Brasil
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As raízes do conflito social –
construindo uma tipologia das
chacinas
Sofia Helena Monteiro de Toledo Costa1
Paulo César Ramos2
Introdução
Apresentaremos, neste texto, uma proposição de tipos de chacinas a partir de
um esforço de coleta de dados a partir de notícias de jornais. O nome, que
se origina do abate de porcos e gados, no cotidiano brasileiro, em especial
nos noticiários, ganha outros sentidos e passa a se referir à execução de várias
pessoas na mesma localidade, evento mais recorrente do que gostaríamos de
admitir. Como em ocasiões anteriores (SILVA et al., 2019), tratamos aqui esta
expressão radical de uma violência letal que acomete pelo menos três vítimas
fatais a cada ocorrência como uma demonstração pública de poder, uma ação
coletiva utilizada por agentes estatais ou não estatais, em contextos de conflito
institucional e disputas por mercado e território. Nossa intenção é contribuir
para a reflexão de alternativas de atuação e compreensão nesse campo da segu-
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora na área
de violência do projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo (FPA). Pesquisa-
dora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).
2
Coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo (FPA). Doutor
em Sociologia pela USP. Mestre e bacharel em Sociologia pela UFSCar. Foi pesquisador de
pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia. Também é pesquisador do Núcleo Afro do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e pesquisador do Núcleo de Justiça Racial e
Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV).
54 Violência no Brasil
3
Com exceção de alguns casos que tiveram baixíssima repercussão e foram noticiados por
apenas um veículo de imprensa.
56 Violência no Brasil
4
“Chacinas e politização das mortes no Brasil”, dossiê publicado em 2019 pela editora da
Fundação Perseu Abramo, pelo projeto Reconexão Periferias, sob autoria dos pesquisado-
res Paulo César Ramos, coordenador do Reconexão Periferias; Jaqueline Lima dos Santos,
consultora do Reconexão Periferias; e Uvanderson Vitor da Silva, pesquisador colaborador
da pesquisa. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/chacinas-e-a-poli-
tizacao-das-mortes-no-brasil/. Acesso em: 5 out. 2022.
As raízes do conflito social 57
entre 2015 e 2019, um total de 126 casos cuja suposta motivação apresentada
foi envolvimento com tráfico de drogas ou facção criminosa. Essa categoria exi-
ge cuidado, pois é frequentemente apresentada antes de qualquer investigação
e, por vezes, baseada no local onde ocorreu a chacina e no perfil das vítimas. Os
casos sob essa tipificação ocorrem nos mais variados locais, no entanto, a maior
quantidade de vítimas fatais por ocorrência foram casos de chacina em presídios.
Essas disputas envolvem o mercado ilegal de drogas e o domínio de terri-
tórios, vitimizam jovens que ocupam posições subalternas nesses grupos, mas
também afetam a vida de familiares dos envolvidos e da comunidade local (Sil-
va et al., 2019, p. 16). Um caso que bem exemplifica essa dinâmica é a chacina
ocorrida em 01 de janeiro de 2017 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim
(Compaj), localizado em Manaus, no estado do Amazonas. Essa rebelião durou
cerca de 17 horas, vitimou 56 pessoas e ficou conhecida como a segunda maior
chacina do país5. Não foram encontradas informações nas notícias sobre a idade
das vítimas, a maioria foi identificada apenas como filiada à facção Primeiro
Comando da Capital (PCC); o mesmo em relação aos acusados, que foram
referidos como filiados à facção Família do Norte (FDN). O que se seguiu foi a
mobilização de familiares, em especial mulheres6, por informações sobre as víti-
mas e também sobre 280 detentos acusados de participar da chacina que foram
transferidos para a Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, que
foi palco de outra chacina uma semana após Compaj. Não só há o elemento
de invisibilidade de quem morre, que nas notícias são retratados apenas como
detentos filiados à determinada facção, mas também a invisibilidade da mobili-
zação dos familiares em torno do caso, bem como os desdobramentos que têm
na comunidade, uma vez que no mesmo período foram coletados outros casos
de chacinas na mesma região7 e que não tiveram grande repercussão midiática.
5
“Segunda maior chacina do país faz de Manaus notícia mundial. BNC Amazonas. 02 de
janeiro de 2017”. BNC. Disponível em: https://bncamazonas.com.br/ta_na_midia/segun-
da-maior-chacina-do-pais-faz-de-manaus-noticia-mundial/. Acesso em: 20 abril 2022.
6
M. BRANDÃO, “Mães e mulheres de presos aguardam notícias em frente à cadeia pública
de Manaus”. Agência Brasil, Manaus, 12 jan. 2017. Disponível em: https://agenciabrasil.
ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-01/maes-e-mulheres-de-presos-aguardam-noti-
cias-em-frente-cadeia Acesso em: 20 abril 2022.
7
Uma semana após o massacre, três corpos foram encontrados em uma mata ao lado do
presídio.
58 Violência no Brasil
8
Segundo a perícia, foram disparados 81 tiros de fuzis e 30 de revólver; 63 tiros atingiram o
carro e boa parte deles foi parar na região do tronco dos jovens, que estavam desarmados.
Nenhum disparo saiu do carro.
As raízes do conflito social 59
9
Fogo Cruzado. “Relatório anual 2021: região metropolitana do Rio de Janeiro”. Rio de
Janeiro, jan. 2022. Disponível em: https://fogocruzado.org.br/relatorio-anual-grande-
-rio-2021/ Acesso em: 2 de maio de 2022.
60 Violência no Brasil
tros casos que envolvem esses mesmos agentes, mas fora de serviço, casos cuja
suposta motivação apresentada foi atuação de grupos de extermínio e milícias.
A última tipificação apresentou, como hipótese, casos envolvendo conflito
agrário. A ausência de uma reforma agrária que reforçou a distribuição desi-
gual de terras é um dos fatores que contribui para o alto número de casos que
temos envolvendo conflitos por terra. Segundo relatório Last line of defence10
da Global witness, o Brasil é o 4º país do mundo que mais matou ativistas
do clima no mundo e o terceiro na América Latina em 2020. Nesse cenário,
povos tradicionais travam luta por demarcação de seus territórios e enfrentam
uma onda de violência letal e conflitos por terra.
Um dos casos emblemáticos, envolvendo conflito agrário, ocorreu em 19
de abril de 2017, em um assentamento rural em Colniza, no Mato Grosso.
Foram nove vítimas fatais, cujos corpos apresentavam sinais de tortura. A área
era ocupada por cerca de 100 famílias desde os anos 2000, segundo a Comis-
são Pastoral da Terra (CPT). A região é alvo de madeireiros e disputada por
fazendeiros que buscam áreas para criação de gado. Quatro suspeitos foram
identificados e acusados de compor um grupo de extermínio denominado “os
encapuzados”, conhecidos localmente como “guaxebas” e foram denunciados
por homicídio triplamente qualificado. Segundo a polícia, a intenção do man-
dante era assustar os moradores e expulsá-los das terras para que ele pudesse,
futuramente, ocupá-las. As informações disponíveis sobre o caso afirmam que
as testemunhas tiveram receio de depor com medo de retaliação. Um dos
agressores, acusado de ser o mandante, é proprietário de empresas em Colniza
e interior de Rondônia e atua com exportação de madeira para diversos países
da América e da Europa11. Esse caso reforça a hipótese de que os conflitos
agrários são, muitas vezes, praticados por cidadãos a mando de proprietários
de terra (Silva et al., 2019, p. 17).
10
Disponível em: https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/last-
-line-defence/
11
P. Araújo. “Madeireiras de acusado de ser o mandante de chacina em Colniza (MT) conti-
nuam funcionando a pleno vapor, diz ONG”. G1, Mato Grosso, 23 nov. 2017. Disponível
em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/madeireiras-de-acusado-de-ser-o-man-
dante-de-chacina-em-colniza-mt-continuam-funcionando-a-pleno-vapor-diz-ong.ghtml.
Acesso em: 5 out. 2022.
As raízes do conflito social 61
12
“Massacre de Colniza (MT): cinco anos de impunidade”. Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra, Mato Grosso, 19 abril 2022. Violência. Disponível em: https://mst.org.br/2022/04/19/
massacre-de-colniza-mst-cinco-anos-de-impunidade/. Acesso em: 5 out. 2022.
13
“Inquérito de chacina em Campinas encerra sem definir origem da arma”. Uol, São Paulo, 27
jan 2017. Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/
1853591-inquerito-de-chacina-em-campinas-encerra-sem-definir-origem-da-arma.shtml.
Acesso em: 5 out. 2022.
62 Violência no Brasil
filho “quanto mais ela distanciar ele de mim, mais ódio eu fico dela e menos
peso na minha consciência eu vou ter”, ele declarou em um dos áudios, ende-
reçado “aos policiais”14.
Apesar da lei do feminicídio (13.104/2015) estar em vigor há dois anos,
quando ocorreu o caso, ele não foi tipificado enquanto tal, mesmo com as
cartas com forte teor de ódio às mulheres deixadas pelo agressor, foi registrado
inicialmente enquanto um caso de “homicídio simples e suicídio”. A mobi-
lização pela mudança foi iniciada em parceria com movimentos feministas
como Marcha Mundial das Mulheres Campinas e coletivo Parajás. Foram
realizados atos em repúdio ao caso e à forma como a violência de gênero estava
sendo invisibilizada na exposição do ocorrido. Foi realizado um evento com a
Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica para discutir, a fundo,
a categoria feminicídio, além de uma petição com mais de setecentas assina-
turas, exigindo a mudança na tipificação. A Entidade das Nações Unidas para
a Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) se
manifestou em repúdio à chacina. O órgão também reiterou compromisso em
defesa da Lei Maria da Penha. A alteração da tipificação do caso de homicídio
simples para feminicídio ocorreu depois de protestos realizados em Campinas
durante o ano de 2017 e de uma petição pública com 700 assinaturas, entre-
gue ao Setor de Homicídio de Proteção à Pessoa de Campinas (SHPP) pela
rede “Minha Campinas”, responsável pela campanha “IssoÉFeminicídio”, que
solicitou a alteração da tipificação do caso. A SHPP alterou a tipificação da
chacina e incluiu o crime de feminicídio no inquérito.
Utilizando-se dos espaços de discussão alternativos à mídia hegemônica
para mobilizar a sociedade civil em torno da temática do feminicídio, esses
movimentos conseguiram, por meio de suas redes, repercutir suas exigências,
tornando a discussão sobre feminicídio uma questão de interesse comum. A
movimentação se estendeu durante um ano até ter sua demanda atendida e
após a alteração do caso, a discussão sobre feminicídio ganhou ainda mais
espaço nos veículos jornalísticos, demonstrando um adentramento, ainda que
tímido, do discurso desses grupos na esfera pública.
14
“Autor de chacina em Campinas na noite de Réveillon deixou carta, veja trechos”. G1,
São Paulo, 02 de jan. de 2017. Último segundo. Disponível em: <https://ultimosegundo.
ig.com.br/brasil/2017-01-02/campinas-chacina.html>. Acesso em: 31 de jan. de 2021
As raízes do conflito social 63
Tabela 1:
CATEGORIAS INICIAIS CATEGORIAS ATUAIS
Disputas oriundas de dinâmicas que envolvem
Facções criminosas e/ou
facções criminosas de origem prisional e que se
tráfico de drogas
manifestam nos eventos de rebeliões em presídios
Considerações finais
Esse primeiro levantamento dos casos, utilizando como fonte a imprensa,
foi eficiente para dimensionar a cobertura dos casos, qualificar as vítimas e
ocorrências, e identificar as lacunas que a própria fonte carrega. Os grandes
veículos de cobertura nacional, assim como os jornais locais, foram lidos com
uma frequência diária e durante essa busca se ressaltavam as tendências dessa
imprensa, em especial, as que detêm maior alcance.
Entre os problemas apontados, destacam-se: ausência de informações so-
bre perfil racial; ausência de falas de especialistas que possam contribuir em
termos de soluções e políticas públicas; reforço, por vezes, de um punitivismo
no discurso e do reforço de estereótipos raciais; ausência da narrativa de fa-
miliares de vítimas, dos moradores dos territórios e dos movimentos sociais
que se encontram em conflitos institucionais em torno dos casos. Vale res-
saltar o importante papel que têm as mídias alternativas com viés racial em
seu trabalho, buscando investigar e acompanhar os casos de violência policial
que rompem com os parâmetros tradicionais da imprensa, ao priorizar outros
sujeitos e narrativas.
Por fim, um caso pode passar semanas ocupando as principais manche-
tes dos maiores jornais e isso não irá, necessariamente, se refletir em melhor
apuração do caso ou responsabilização e reparação para os familiares. O que
se vê, com frequência, é o uso extremo e recorrente da violência, sem respon-
sabilização e sem um projeto que evite que outras mortes violentas ocorram
futuramente. São os movimentos sociais que anunciam as denúncias de vio-
lação do Estado, o genocídio de juventude negra, o extermínio de travestis e
pessoas trans e o encarceramento em massa. É importante que essas vozes e
66 Violência no Brasil
suas narrativas ocupem espaços midiáticos e de imprensa. Por fim, cabe refletir
sobre o quanto a repercussão midiática de casos de chacinas contribuem para
responsabilização das mortes e o quanto fornece espaço para versões diferentes
dos fatos narrados que não sejam as dos policiais, bem como o quanto contri-
bui para tornar público o problema da violência letal que vitimiza a população
negra e periférica do país.
A busca pela construção de uma tipologia das chacinas, tomando-a como
a ponta de um imenso bloco de gelo que flutua no oceano, é tanto para poder
observar a massa sólida que a água esconde como para observar e compreender
a massa líquida que a acolhe. Isto é, interessa-nos compreender a sociedade
que produz tais fenômenos tópicos e extremos, bem como seu processo. Há
muito mais nas chacinas do que as próprias ocorrências policiais registradas
nos boletins de ocorrência, e do que as manchetes de notícias parecem indicar.
A face visível da chacina talvez seja a que mais impressiona porque é a mais
visível e eloquente.
Dada a sua loquacidade, ela possui um conteúdo conflituoso que necessita
ser explorado em seu contexto, agentes, interesses, históricos e significado.
Também por isso, as chacinas são o tipo de evento que mais adequadamente
aproxima a realidade brasileira do que Achile Mbembe chama de necropolí-
tica. A transposição da lógica da biopolítica para contextos de ocupação co-
lonial que não só possui um modo de produção de morte em razão industrial
– para isto não é necessária a explicação de Mbembe – mas, isto sim, contextos
em que a morte adquire um sinal positivo de afirmação, em que a produção
da morte é um ritual expressivo e intencional – e não o funeral –, em que a
autoria não é atribuída, mas assumida.
Referências bibliográficas
AUTOR de chacina em Campinas na noite de Réveillon deixou carta, veja trechos. G1, São
Paulo, 02 de jan. de 2017. Último segundo. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.
br/brasil/2017-01-02/campinas-chacina.html> Acesso em: 5 de maio de 2022.
ARAÚJO, Pollyana. “Madeireiras de acusado de ser o mandante de chacina em Colniza (MT)
continuam funcionando a pleno vapor, diz ONG”. G1, Mato Grosso, 23 nov. 2017. Dis-
ponível em:<https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/madeireiras-de-acusado-de-ser-
-o-mandante-de-chacina-em-colniza-mt-continuam-funcionando-a-pleno-vapor-diz-ong.
ghtml> Acesso em: 5 de maio de 2022.
As raízes do conflito social 67
Introdução
Na antiga cidade grega de Tebas uma tragédia se fez eterna através dos desastres
que encontram sua plenitude na figura mitológica do homem patriarcal em sua
tríade de pai, filho e esposo. O arquétipo de Édipo é o antagônico caminho en-
tre os extremos do poder patriarcal: de rei a mendigo, de resgatado a despojado,
de virtuoso a profano, do visionário ao cegado. Sua narrativa trágica ajuda a
entender o desequilíbrio de poder nas relações humanas até os dias atuais. Aos fi-
lhos e filhas de Édipo sobram, como herança, o trauma e a mortalidade violenta.
Protagonista de sua própria opinião e senso de justiça social, surge com
muito força a figura mitológica de Antígona, filha de Édipo e sua esposa-mãe
Jocasta. Ela era irmã de Etéocles e Polinices, jovens que se matam por poder
e envaidecidos do rancor e inveja, e também irmã de Ismênia, jovem que
encontra no calar a rota para sua salvação. Todos enfrentam, a sua maneira,
o Estado representado por seu Rei-tio Creonte, o poder de vida e morte em
Tebas. Lutar por justiça e dignidade a seus familiares é o lume de Antígona,
a perseguição política e a morte uma possibilidade que ela enfrentou mesmo
tendo consciência sobre o risco.
1
Doutora em demografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
70 Violência no Brasil
2
Em referência ao conceito de Amefricanidade de Lélia Gonzalez, 1988. Uso no sentido das
mulheres racializadas da América Latina e Caribe.
A perseguição e o feminicídio político das Antígonas afro-ameríndias 71
lógico ao incluir o Estado como agente indireto, por sua demora, negligência
e omissão diante das mortes. O caso emblemático ocorreu, ainda na década
de 1990, na Ciudad de Juárez, onde houve um crescimento do número de
denúncias de assassinatos de mulheres jovens trabalhadoras relacionados ao
contexto das Maquiladoras, na região fronteira entra o México e os EUA. A
violência sexual, mutilação, desfiguração e abandono dos corpos em vias e lo-
cais públicos causou muita revolta na população, dando início a uma série de
mobilizações pela solução dos crimes e em prol da memória das vítimas que
estavam sendo culpabilizadas pelas próprias mortes através de argumentos
misóginos, racistas e desrespeitosos contra essas jovens e suas famílias.
O caso mexicano também adicionou de forma contundente o foco nas
questões de classe social e raça/etnia no padrão de vulnerabilidade das víti-
mas, majoritariamente racializadas e das classes trabalhadoras. Desta época em
diante nota-se um movimento crescente de ativistas e intelectuais feministas
latino-americanas e caribenhas em estabelecer parâmetros locais para a análise
dos feminicídios/femicídios. Existe um esforço para entender a relação destas
mortes com os contextos geopolíticos como as fronteiras, guerras, ditaduras,
golpes políticos, conflitos por terra e perseguição às lideranças dos movimen-
tos feministas, indígenas e negros.
Nos anos 2000, o ativismo feminista se reformulou na região e as denún-
cias e força da voz das mulheres em defesa da vida e da dignidade na memória
da vítimas da violência de gênero começaram a multiplicar-se e a incomodar a
sociedade patriarcal que reagiu com mais violência. Nos últimos anos muitas
mulheres vêm sendo assassinadas devido a sua atividade política, o que pode
ser entendido como feminicídio político, um tipo estritamente vinculado à
condição de gênero da mulher e a retaliação à luta pela liberdade de defender
suas próprias pautas políticas. O conceito de feminicídio político está ligado
diretamente ao extermínio de mulheres ativistas e defensoras de direitos hu-
manos, seja qual for seu campo de atuação, estes feminicídios estão ligados
ou silenciamento das vozes representantes dos direitos coletivos das mulheres,
por isso se relaciona também ao conceito de epistemicídio, morte do símbolo
e saber coletivo da luta dos grupos oprimidos.
Tomando como exemplo o ativismo de mulheres no México, é visível a
reação violenta contra as experiências de denúncia e ativismo destas mulhe-
72 Violência no Brasil
3
“Dos veces asesinada Marisela Escobedo: por su asesino y por el Estado que la traicionó en
su búsqueda por justicia https”. Disponpivel em: //www.youtube.com/watch?v=tMhN-
8S8e-OQ. Acesso em: 24 nov. 2022.
A perseguição e o feminicídio político das Antígonas afro-ameríndias 73
4
Fonte: https://www.google.com/maps/d/edit?mid=19eFitd7HbdDG9nomRPbBo613sEp-
4G7Yg&ll=31.353927471225962%2C-71.58571555&z=4
78 Violência no Brasil
7. Emilse Manyoma, líder afrodescendente peça paz com justiça social, am-
biental e de gênero (Colômbia, 2017).
8. Luz Neyi Montaño, líder comunitária e religiosa de Tumaco (Colômbia,
2017).
9. Cristina Bautista Taquino, liderança indígena de Valle del Cauca (Colôm-
bia, 2019).
10. Carmen Ofelia Cumbalaza, foi um liderança indígena do Resguardo del
Gran Cumbal, cujo trabalho se caracterizou por atuar a favor das comuni-
dades, sua organização e seus conhecimentos de medicina ancestral (Co-
lômbia, 2021).
11. Sandra Liliana Peña, líder indígena da reserva indígena La Laguna-Sibéria
(Colômbia, 2021).
12. Martina Carrillo, foi uma ativista equatoriana que defendeu os direitos do
povo negro e se rebelou contra a escravidão (Equador, 1750).
13. Marianita Minda, Mariana de Jesús Minda, dirigente das organizações do
povo afro-equatoriano, foi Coordenadora da Coordenadoria Nacional de
Mulheres Negras do Equador (Equador, 2020).
14. Maribel Pinto. Liderança afro-equatoriana, cofundadora do Movimento
Afro de Azuay (Equador, 2020).
15. Marielle Franco. Liderança feminista negra (Brasil, 2018).
O quadro averiguado com o mapeamento é desesperador e não deixa dú-
vidas sobre a letalidade da violência política de gênero contra mulheres que
doam suas vozes, e vidas, para o bem comum de suas comunidades e para a
construção da paz na América Latina. São necessários fóruns permanentes e
mecanismos de defesa da vida das lideranças negras e indígenas em toda região.
Considerações finais
O feminicídio político é o assassinato de lideranças mulheres no exercício da
defesa dos direitos humanos e políticos das suas comunidades, ele tem au-
mentado na América latina e vem atingido, de maneira brutal, as lideranças
negras e indígenas.
A perseguição e o feminicídio político das Antígonas afro-ameríndias 79
Referencias bibliográficas
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www.dianarussell.com/origin_of_femicide.html. Acesso em: 24 nov. 2022.
PARTE 2
Mercados ilegais, dinâmicas
criminais, territórios e
violências
Violência armada no Brasil
e a performance do Estado
brasileiro no combate ao tráfico
de armas e munições
Bruno Langeani1
1
Mestre em Administração Pública e Políticas Públicas pela Universidade de York (Reino
Unido) e gerente do Instituto Sou da Paz.
2
Relatório “Global Burden of Armed Violence” (2015, p.2) da organização suíça Geneva
Declaration que compilou mortes por arma de fogo no mundo.
3
Atlas da Violência (2021, p.95). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/ar-
quivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf .
4
“Violência Armada e Racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial” (2021,
p.6). Instituto Sou da Paz. Disponível em: https://soudapaz.org/o-que-fazemos/mobilizar/
sistema-de-justica-criminal-e-seguranca-publica/participacao-no-debate-publico/contro-
le-de-armas/?show=documentos#5618. Acesso em: 24 nov. 2022.
84 Violência no Brasil
Mas não se trata apenas de violência letal, a arma de fogo está presente no as-
salto que atinge a trabalhadora doméstica no ponto de ônibus indo ao trabalho
de madrugada, impacta na decisão da universitária que abandona os estudos à
noite por medo de ser atacada na volta para casa. Nos roubos comuns, as armas
de fogo são utilizadas em 56% dos casos. No roubo de veículos, chega a 80%5.
Em 2018, a candidatura de Jair Bolsonaro na corrida presidencial fez com
que o tema fosse alçado ao centro do debate e, com a sua vitória em outubro
do mesmo ano, o tema não mais saiu de cena. Isso porque Bolsonaro não tira
a arma da boca. Se o questionam sobre a fome ou o preço do feijão, ele fala de
armas, caso o questionamento seja sobre o desmatamento da Amazônia, ele
arranjará um jeito de falar de armas. Se fosse apenas um elemento de discurso
seria menos danoso, mas o presidente editou mais de 30 atos normativos para
desmontar a política de controle de armas e munições do Brasil, facilitando
a compra de um número maior e mais potente de armas de fogo e munições.
Simultaneamente, ajudou a desmontar estruturas que ajudam as forças de se-
gurança a fiscalizar e retirar armas de circulação.
Antes de falarmos do que foi desmontado, é importante dar um passo atrás
para entender um breve histórico do controle de armas do país.
No início da década de 1980, uma portaria6 foi criada para regular a aqui-
sição e registro de armas para a população civil. Ela definia um limite de até
seis armas por cidadão. Estabelecia, também, que o comerciante de armas
passaria a funcionar como um despachante, intermediando a documentação
junto aos governos estaduais para emissão do registro. Não se previa, portan-
to, uma rede nacional integrada: a informação dos cidadãos com armas ficava
de posse das secretarias estaduais. Para adquirir uma arma, era necessário ser
maior de 21 anos e ter profissão definida, além de apresentar atestados de an-
tecedentes criminais e de conduta político-social adequada.
Em 1997, já no período democrático, a Lei 9.437 criou o Sistema Nacional
de Armas (Sinarm). Administrado pela Polícia Federal, o sistema passou a con-
centrar todos os registros nacionais em um banco único. Ficavam de fora dele
apenas as armas sob controle do Exército. A Lei trouxe também novos requisitos
5
Pesquisa nacional de vitimização – questionário SENASP. Pesquisa de vitimização. Centro
de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais
(CRISP, 2013, p. 78, 124).
6
Portaria Ministerial 1.261/1980.
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 85
7
“Armas recolhidas em campanha viram escultura em São Paulo”. Folha de S.Paulo, 10/12/1997.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/10/cotidiano/19.html. Acesso
em: 24 nov. 2022.
8
Plebiscito e referendos são formas de consultar formalmente a população para assuntos de
relevância. A diferença entre os dois é que no plebiscito a população opina sobre uma maté-
86 Violência no Brasil
ria que ainda será votada pelo Congresso. No referendo, como ocorreu no Estatuto, a con-
sulta é feita posteriormente à lei já aprovada. A convocação de um plebiscito ou referendo é
prerrogativa do Congresso Nacional (artigo 49, XV, Constituição Federal/1988).
9
Para saber mais sobre os bastidores da aprovação do Estatuto do Desarmamento e campanha
ao redor do referendo, recomendo o livro do sociólogo Antônio Rangel Bandeira: Armas
para quê?” (2019).
10
“66% são contra posse de armas e 70% rejeitam flexibilizar porte”. Datafolha, 12/07/2019,
disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2019/07/1988232-66-
-sao-contra-posse-de-armas.shtml. Acesso em: 5 out. 2022. Em outra pesquisa do mesmo
Instituto, em 2020, 72% dos brasileiros discordaram da frase do presidente “Eu quero todo
mundo armado. Que o povo armado jamais será escravizado”. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/frase-de-bolsonaro-sobre-dar-armas-para-po-
pulacao-e-rejeitada-por-72.shtml?origin=folha. Acesso em: 5 out. 2022.
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 87
O Exército define quais armas são de uso restrito e quais podem ser com-
pradas e usadas por civis. É ele quem fiscaliza e executa as duas pontas do ciclo
de vida da arma: a fabricação e a destruição. Cabe ainda ao Exército autorizar
as compras de armas e munições feitas pelas polícias e forças de segurança do
país, bem como administrar o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas
(Sigma). Trata-se de um banco de dados com os registros das armas das Forças
Armadas e das polícias militares, além das armas de uso privado dos seus in-
tegrantes. Colecionadores de armas, caçadores e atiradores esportivos também
têm suas armas cadastradas neste sistema.
A Polícia Federal (PF), por sua vez, teve suas competências expandidas com
a lei, passando a ser a principal responsável pelo controle do fluxo de armas nas
mãos da população brasileira. É de sua competência, por meio do Sistema Nacio-
nal de Armas (Sinarm), a emissão de autorizações de compra, porte e registro de
armas para civis, quando solicitadas para defesa pessoal. A PF é ainda responsável
por registrar no Sinarm suas armas institucionais, bem como as das polícias civis
e das guardas municipais, além das ocorrências vinculadas a elas. É também a PF
quem fiscaliza as armas e vigilantes das empresas de segurança privada.
Tanto o Exército quanto a PF têm o dever de fiscalizar lojas especializa-
das em armas e munições. Os estabelecimentos são obrigados a credenciar-se
junto a estes órgãos, além de enviar à Polícia Federal os relatórios de vendas.
A Polícia Militar e a Polícia Civil de cada estado, que estão mais próximas
da realidade das pessoas nas cidades, têm o dever de informar em seus boletins
de ocorrência as características e circunstâncias de todas as armas apreendidas
e desviadas. Estes dados alimentam o Sinarm. Apesar de não estar explícito
no texto da Lei, estas polícias estaduais têm papel de destaque no controle
de armas do país. São elas que, na prática, fazem a fiscalização diária e geram
informações sobre as armas encontradas regularmente nas ruas, apreendendo
as que forem envolvidas em situações ilegais e entregando para o Judiciário.
A partir da chegada de Bolsonaro à Presidência, esta estrutura criada pela
Lei de 2003 passou a ser alvo de um intenso ataque. Ele se deu em três fren-
tes: primeiro houve a facilitação de acesso às armas e ao porte, com retirada
de requisitos para compra e alteração de regras para acessos de adolescentes a
atividades com armas; em segundo lugar, o governo aumentou substancial-
mente o número de armas e munições que podem ser compradas por cada
88 Violência no Brasil
pessoa, além de ter ampliado em quatro vezes a potência das armas acessadas
por civis (permitindo que, em alguns casos, estes possam ter armas iguais ou
mais potentes que as da própria polícia); em terceiro, estas medidas foram
acompanhadas da perda de capacidade de fiscalização, já que institutos pensa-
dos para aperfeiçoar a marcação e rastreabilidade de armas e munições foram
revogados, facilitando o cometimento de desvios e ampliando a impunidade.
Em apenas dois anos dobrou-se o número de armas em mãos de civis (que no
final de 2020 já ultrapassava 1,2 milhão11). E qual o impacto disso para o país?
Em primeiro lugar, há um impacto individual das pessoas e famílias que
adquirem a arma, acreditando que esta servirá para protegê-las. Inúmeras pes-
quisas nacionais e internacionais apontam que a difusão de armas está associada
ao aumento da violência letal. Em sua tese de doutorado12, o pesquisador Da-
niel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dedica um
capítulo inteiro a demonstrar como o aumento de armas aumenta, também, o
número de homicídios. A conclusão das análises estatísticas, por região paulista,
é que o aumento de 1% nas armas de fogo em circulação eleva em até 2% a taxa
de homicídios. Nos Estados Unidos, um estudo13 que recuperou dados de 1977
a 2014 concluiu que, 10 anos depois de ampliar o porte de armas na lei, houve
um aumento de 13 a 15% nos crimes violentos dos 33 estados que liberaram
que cidadãos andassem armados. Os estados que nunca adotaram leis, permitin-
do o porte de armas, por sua vez, tiveram redução de 42% nos crimes violentos.
Em segundo lugar, há um impacto coletivo. As pesquisas de identificação
de perfil e rastreamento de armas do crime mostram que a arma utilizada em
roubos e homicídios, no Brasil, é majoritariamente uma arma curta, revólver
ou pistola e nacional, armas fabricadas em nosso território e desviadas de
11
“Brasil dobra o número de armas nas mãos de civis em apenas 3 anos, aponta Anuário”. G1,
15/07/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/07/15/bra-
sil-dobra-o-numero-de-armas-nas-maos-de-civis-em-apenas-3-anos-aponta-anuario.ghtml.
Acesso em: 5 out. 2022.
12
Intitulada Causas e consequências do crime no Brasil, a tese foi premiada pelo BNDES como
a melhor de 2013 em sua categoria. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/
bitstream/1408/1922/2/Concurso0212_33_premiobndes_Doutorado_P.pdf. Acesso em: 5
out. 2022.
13
Artigo “Right-to-Carry Laws and Violent Crime: A Comprehensive Assessment Using Panel
Data and a State-Level Synthetic Control Analysis”. Disponível em: https://www.nber.org/
papers/w23510. Acesso em: 5 out. 2022.
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 89
14
“De onde vêm as armas do crime apreendidas no Sudeste?” (2016). Instituto Sou da Paz. Dis-
ponível em: https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/controle-de-armas/as-
armas-do-crime/?show=documentos#3563
15
“De onde vêm as armas do crime apreendidas no Nordeste?” (2018) .Disponível em:
http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/controle-de-armas/as-armas-do-
crime/?show=documentos#1656. Acesso em: 5 out. 2022.
16
“Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 – ano 14”, p.218. Disponível em: https://
forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf.
Acesso em: 5 out. 2022.
90 Violência no Brasil
São Paulo
Pesquisas de Rastreamento – recorte regional Goiás Ceará
(capital)
Total de armas industriais apreendidas 4.289 7.483 7.752
Rastreadas (numeradas e consultadas no Sinarm) 2.031 4.775 5.966
Quantidade de armas registradas no Sinarm 774 2.073 1.984
Participação de armas registradas (%) entre o total
18% 28% 26%
de armas apreendidas
Participação de armas registradas (%) entre o total
38% 43% 33%
de armas rastreadas
Fonte: Elaboração própria.
ilegal. Engrossam este caldo as armas de polícias e forças armadas (do Brasil e
de países vizinhos, como Argentina, Paraguai e Bolívia) que são desviadas dos
arsenais e vendidas a criminosos.
As rotas de entrada mais conhecidas para as armas traficadas internacio-
nalmente para o Brasil são pela fronteira seca, nas divisas com Paraguai, Ar-
gentina, Bolívia e Uruguai. Um relatório de inteligência da Polícia Federal18,
cuja base são rastreamentos de armas apreendidas, mostra que, entre 2014 e
2017, as principais portas de entrada para carregamentos de armas vindos do
Paraguai foram as cidades de Foz do Iguaçu (PR) Ponta Porã (MS) e Guaíra
(PR). Quando vem da Argentina, o tráfico de armas entra no Brasil por Foz
do Iguaçu (PR). Da Bolívia, por Corumbá (MS). E do Uruguai, por Santana
do Livramento (RS). Porém, dois casos recentes mostraram que a rota aérea,
direta dos Estados Unidos, também é responsável por grandes volumes.
Em junho de 2017, foram apreendidos 60 fuzis no terminal de carga do
Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão)19, no Rio de Janeiro. Eram 45
17
Ver B. Langeani, “Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência” (2021, p. 116).
18
Relatório de diagnóstico produzido pela Divisão de Repressão a crimes contra o Patrimônio e
o Tráfico de Armas (Dicor), com dados de Inteligência da própria Polícia Federal e Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), além de dados obtidos com rastreamento, junto a autorida-
des internacionais, de aproximadamente 10 mil armas apreendidas (entre 2014 e 2017).
19
“Polícia Civil apreende 60 fuzis de guerra no Aeroporto Internacional do Rio”. G1,
01/06/2017. Disponível em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/policia-civil-apreen-
de-60-fuzis-de-guerra-no-aeroporto-internacional-do-rio.ghtml. Acesso em: 5 out. 2022.
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 91
20
“Polícia apreende 117 fuzis na casa de amigo de Ronnie Lessa”. R7, 12/03/2019. Disponível
em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/policia-apreende-117-fuzis-na-casa-de-amigo-
-de-ronnie-lessa-12032019 . Acesso em: 5 out. 2022.
21
Pedido de lei de acesso à informação. Protocolo nº 08198.015908/2021-01 (Ministério da
Justiça e Segurança Pública).
22
O Sistema Único de Segurança Pública, lei 13.675/2018, incluiu entre seus objetivos: ‘forta-
lecer as ações de e fiscalização de armas de fogo e munições, com vistas à redução da violên-
cia armada’ (XXV). Já o Plano, publicado também em 2018 incluiu um objetivo ainda mais
específico (objetivo 9): ‘Ampliar o controle e o rastreamento de armas de fogo, munições e
explosivos’.
92 Violência no Brasil
23
Esta estrutura segue vigente, conforme Decreto 9.662 de 2019.
24
Instrução Normativa 148-DG-PF/2019.
25
“Dificuldade de rastreamento afeta metade do arsenal de armas no Brasil”, Folha de S.Paulo.
29/7/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/dificuldade-
-de-rastreamento-afeta-metade-do-arsenal-de-armas-no-brasil.shtml. Acesso em: 5 out. 2022.
26
A Integração dos bancos de armas da Polícia Federal (Sinarm) e Exército (Sigma) foi deter-
minada por decreto de 2004, e só foi implementada em 2021 após ações promovidas pelo
Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União e forte pressão da sociedade civil,
como as realizadas pelo Instituto Sou da Paz.
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 93
Fonte: Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (14º e 15º edições), lei de acesso à informação
para detalhamento de apreensões da PF e PRF.
27
O gráfico foi produzido pelo autor com dados dos Anuários do Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública (14º e 15º edições) e pedidos de lei de acesso à informação para detalhamento
de apreensões da Polícia Federal (protocolo 08198.020741/2021-91) e Polícia Rodoviária
Federal (protocolo 8850000501201662).
94 Violência no Brasil
28
Dado obtido junto ao Ministério Público Federal, via lei de acesso à informação (protocolo:
20210042981).
Violência armada no Brasil e a performance do Estado brasileiro 95
Introdução
O Brasil é um país violento e autoritário. A estrutural desigualdade econômica
e social, expressa na desigual distribuição de renda entre a população e nas di-
ferentes condições para o acesso a direitos, bem como os escandalosos índices
de mortes violentas experimentados pelos grupos populacionais brasileiros,
especialmente a partir dos anos 2000, confirmam que vivemos em país de
baixa densidade democrática e com sérios problemas no campo do exercício
da cidadania e da relação com o espaço público.
Em termos históricos, o Brasil é um país radicalmente marcado pela expe-
riência do colonialismo e da escravidão que produziu formas de subcidadania
política – para pessoas negras e indígenas – e de exclusão econômica e social
para os demais segmentos sociais não proprietários. O ambiente social e po-
lítico brasileiro é marcado por longos períodos autoritários e curtos ensaios
democráticos produzindo a naturalização de processos de corrupção, patrimo-
nialismo e violência política, ao passo em que também é marcado pela nor-
1
Pesquisador na área de direito, violência e política. É doutor em Direito, Estado e Constitui-
ção pela Universidade de Brasília (UnB), Professor do Programa de Pós-Graduação em Di-
reito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)
e diretor da Plataforma Justa.
98 Violência no Brasil
Considero que é hora de assumir, talvez com um grão de sal e outro de ousadia,
a hipótese de que a versão da “herança maldita” repousa mais na retórica do que
na análise cuidadosa dos fatos; de que o caso Amarildo [desaparecido após ser
preso pela Polícia Militar do Rio de Janeiro na comunidade da Rocinha em 2013]
praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua ferocidade,
na via inversa, não servem para iluminar o evento na Rocinha. Minha hipótese é
a de que as torturas, as execuções e os desaparecimentos perpetrados pelo regime
dos generais não antecipam o que aconteceu no Rio de Janeiro em 14 de julho
do ano da graça de 2013 [dia do desaparecimento de Amarildo], porque o que
aí aconteceu acontecia antes e durante, e continuou acontecendo depois que o
general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto em 1985.
Como veremos, já havia ferocidade bastante na sociedade brasileira dos dourados
anos 1950 e começo dos anos 1960 para, com ou sem ditadura militar, produzir
máquinas mortíferas estatais como a Rota de São Paulo e o Bope do Rio de Ja-
neiro; semiestatais, como os esquadrões da morte; e civis como os “justiceiros”.
(Oliveira, 2018, p. 208)
Desde que surgiu [o grupo] passou a ser conhecido como Esquadrão da Morte, em-
bora negue as mortes que lhe são atribuídas. A exemplo deste, criaram-se outros em
alguns estados, tornando-se mais atuante no Rio, na Baixada Fluminense, onde já se
matou [através de monitoramento das organizações de direitos humanos] mais de 200
pessoas. Há cerca de um ano, o Esquadrão ressurgiu em São Paulo, para vingar a morte
de um detetive, eliminado por um bandido durante um tiroteio. Consequentemente
mais de 50 marginais foram imediatamente executados (O Globo, 8/3/1969).
2
Na Câmara dos Deputados ocorreram, nos últimos anos, cinco CPIs tratando do tema do
extermínio no espaço urbano e rural – CPI da Pistolagem (1994); CPI do Tráfico de Armas
102 Violência no Brasil
(2006); CPI dos Grupos de Extermínio no Nordeste (2005); CPI da Violência Urbana
(2010) e CPI da Violência contra Juventude Negra (2015). No Senado Federal foi realizada,
em 2015, a CPI sobre o assassinato de jovens negros e, no Congresso Nacional, ocorreu em
2003 a CPI da Terra investigando os casos de violência no campo.
Morte, poder, território e dinheiro 103
Considerações finais
O Brasil formou-se sobre grandes cemitérios clandestinos repletos de cadáve-
res não identificados. Os massacres e chacinas que descrevem grande parte da
história do Brasil exemplificam a profundidade da violência no tecido social
brasileiro ao tempo em que alertam para a urgência de uma significativa mu-
dança de prioridades nos debates estabelecidos no campo do governo e da
sociedade civil.
A velocidade e intensidade com que, nos últimos anos, milícias e grupos
de extermínio avançaram na estrutura do Estado revela como tais dinâmicas
interagem com as perturbações do atual momento político. Assim, de que
maneira a ascensão ao poder de um governo autoritário e declaradamente
truculento incrementa dinâmicas criminais já tão profundamente arraigadas
em nosso tecido social? Quais os desafios políticos e intelectuais neste campo?
Certamente o governo Bolsonaro não inaugurou propriamente este mo-
delo de gestão das cidades e de estruturação do crime e das suas dinâmicas,
porém não há que se duvidar que o bolsonarismo estimula, promove e incre-
menta este modelo e o eleva à condição de discurso público de campanha. O
bolsonarismo sepultou as metáforas e, como todo governo de viés declara-
damente autoritário, publica autoritarismo em estado bruto, fomentando o
incremento letal das armas no cardápio das práticas políticas utilizadas.
Portanto, o que fazer? Como tocar novas margens para o debate público
sobre o tema e permitir um mergulho real no oceano das práticas sociais defi-
nidas como crimes? Essa é uma questão urgente da criminologia, da sociologia
e do direito e, ao mesmo tempo, um imperativo da luta política e da agenda
histórica contra o racismo, o sexismo e em defesa dos direitos humanos.
São questões que animam uma vultosa agenda de pesquisa e que também
estimulam uma pauta de lutas políticas em defesa das populações vitimizadas
por estes grupos e ameaçadas por toda sorte de violência pública e privada.
Que não nos falte coragem para travar esta luta e para, corajosamente, arrolar
novas questões.
108 Violência no Brasil
Referências
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para apuração da atuação de grupos de extermínio e milícias no estado do Pará”. CPI das
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OLIVEIRA, Luciano. “De Rubens Paiva a Amarildo. ‘E Nego Sete’? O regime militar e as vio-
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PIRES, Thula. “Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de Janeiro”. Direito & Práxis,
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SOU DA PAZ, Instituto. Onde Mora a impunidade? Porque o Brasil precisa de um indicador
nacional de esclarecimento de homicídios. Edição – 2022, São Paulo.
Guerra às drogas no Brasil – a
atualização do genocídio
Dudu Ribeiro1
1
Eduardo Ribeiro (Dudu Ribeiro) é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordena a INNPD e é membro da Rede Lati-
no-Americana e do Caribe de Pessoas que Usam Drogas (Lanpud).
110 Violência no Brasil
O longo percurso narrado nos trouxe até aqui, e por isso, cada vírgula,
palavra e rima são fundamentais no projeto de refundação do modelo. Apro-
fundar diagnósticos e propostas nos permitiram consolidar a inescapável con-
dição de um país antinegro. É fundamental, para esse momento, compreender
e ampliar ainda mais o nosso repertório para enfrentar os desafios, e nosso caso
em particular, especialmente os que se apresentam no campo das políticas so-
bre drogas, segurança pública, justiça criminal e direitos humanos.
Nos propomos a pensar a partir do paradigma da guerra às drogas como
uma engrenagem transnacional, que financia e colabora com o genocídio ne-
gro na diáspora, atuando de forma decisiva na distribuição desigual de possi-
bilidades de vida, na concentração da riqueza, na espoliação dos estados nacio-
nais e na elaboração de um capital humano restrito, no qual a humanidade é
o que mais possa se aproximar da branquitude, e os demais povos racializados
são subjulgados à lógica desta supremacia.
O consumo de substâncias capazes de alterar o estado de consciência sem-
pre esteve presente na humanidade. O termo ‘droga’ teria variado do holandês
antigo droghe vate, expressão que significaria “barris de coisas secas”, encon-
trada ainda no século XIV, segundo Vargas (2008). Escohotado (2004) nos
lembra que a ágape, ou banquete sacramental da era pagã, era “quase infalivel-
mente relacionada com drogas”. No contexto das Cruzadas, surge uma nova
demanda por mercadorias especiais, “exóticas”, alimentícias ou medicinais e
uma busca por especiarias, das quais, a partir do “gosto fisiológico, poderia se
experimentar as relações sociais, de poder riqueza e prestígio, um gosto social e
cultural”**. Ao longo dos séculos, as diversas sociedades foram ampliando seus
conhecimentos sobre o uso das substâncias psicoativas e incorporando em seus
contextos, na religiosidade, festas e terapias.
A história da humanidade é, portanto, também a história do uso de drogas.
Não há sequer registro de um momento histórico onde não houvesse qualquer
utilização de substâncias equivalentes ao que hoje denominamos droga. Pense
que o início dessas experiências se dá com a alimentação. Afinal, desta for-
ma descobrimos a maioria das drogas, bem como também dos venenos e das
curas. Até o século XIX, as restrições ao acesso de determinadas substâncias
se davam, sobretudo, a partir de práticas culturais e ritualísticas reservadas,
muitas vezes aos nobres, podendo também ser exclusividade de indivíduos
Guerra às drogas no Brasil 111
2
Mesmo que me negue sou parte de você: racialidade, territorialidade e (re)existência em
Salvador. Ana Miria Carinhanha et al. São Paulo: Iniciativa negra por uma nova política sobre
drogas, 2021. Disponível em: https://iniciativanegra.org.br/wp-content/uploads/2021/12/
relatorio_web_pagina_simples.pdf. Acesso em: 15 fev. 2022.
112 Violência no Brasil
3
Ibidem.
Guerra às drogas no Brasil 113
4
As leis Jim Crow foram medidas estaduais e locais que institucionalizaram a segregação ra-
cial nos Estados Unidos entre os anos de 1876 e 1965. Para a escritora e advogada Michelle
Alexander, a guerra às drogas é a nova “Jim Crow”. M. Alexander, The New Jim Crow. Mass
incarceration in the age of colorblindness. New York: The New Press, 2011.
114 Violência no Brasil
5
E. Ribeiro dos Santos. “Não importa se dendê ou se maconha, não importa se explosivo ou
pinho sol”. Disponível em: https://jornalistaslivres.org/nao-importa-se-dende-ou-se-maco-
nha-nao-importa-se-explosivo-ou-pinho-sol/. Acesso em: 15 de fev. 2022.
Guerra às drogas no Brasil 115
6
W. R. Albuquerque, O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
7
Ibidem.
8
Ibidem.
9
Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil – 1870-1930. São Paulo, Cia das Letras, 1993.
10
Rodolfo Arruda Leite de Barros, Os dilemas da sociedade punitiva. Reflexões sobre os Debates
em torno da Sociologia da Punição. Dissertação de mestrado. Marília, 2007.
116 Violência no Brasil
a raça (negra) outrora cativa, trouxera bem guardado consigo para ulterior vingan-
ça, o algoz que deveria mais tarde escravizar a raça opressora. […] O vício de fu-
mar a erva maravilhoso, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias
ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também
o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e
lhe sugaram a seiva reconstrutiva13.
11
Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida
do Estado brasileiro. Dissertação de mestrado. Brasília: UnB, 2006.
12
Fábio Pavão, Entre o Batuque e a navalha. 2004. 65f. Dissertação (Monografia). Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Curso de Pós-Gradua-
ção em Sociologia Urbana. Disponível em: <www.scholar.google.br> Acesso em: 6 fev. 2007.
13
Sobre o tema, ver Luísa Gonçalves Saad, “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no
Brasil. (c. 1890-1932). Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2013.
Guerra às drogas no Brasil 117
A maconha seria, assim, uma vingança dos negros contra os brancos por
terem nos roubado a liberdade preciosa e sugado a seiva reconstrutiva.
E a perseguição à planta deveria ser por todo o Brasil: “Uma luta sem tré-
guas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco,
Maranhão, Piauí, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fa-
zendo cada vez mais enérgica e poderá permitir crer-se no extermínio comple-
to do vício”, comemoravam os proibicionistas. A polícia sempre como agente
de destaque para a manutenção da ordem e dos bons hábitos na cena urbana.
Nas zonas rurais, outras milícias menos institucionalizadas, por assim dizer.
A patologização da figura do criminoso, bem como a patologização do uso
de drogas, chega ao Brasil a partir de uma geração de médicos que promoviam o
estabelecimento do campo científico psiquiátrico no país14. Em 1923, é fundada
a Liga Brasileira de Higiene Mental, que traz ao centro do debate um projeto
eugênico de nação. Aportado em saberes e práticas higienistas, autoridades po-
liciais, jurídicas e sanitárias buscarão exercer funções complementares e conjun-
tas, em busca da suposta proteção à saúde pública e a assepsia da raça. E a partir
da década de 1930, através do Decreto 20.930, a toxicomania passa a ser consi-
derada como doença, com prescrição de notificação compulsória. A publicação
do decreto organiza um conjunto de iniciativas anteriores no campo do controle
de substâncias psicoativas no Brasil, mas, sobretudo, consolida a criminalização
e os dispositivos de controle de populações, seguida pela Consolidação das Leis
Penais ainda em 1932 e o novo Código Penal, aprovado em 1940.
Em 1938, diversas autoridades se reúnem em Salvador para discutir a ela-
boração de instrumentos para coibir o comércio, o consumo e a produção da
planta, no I Convênio Interestadual da Maconha, e assim, pôr em prática a
decisão editada na lei de seis anos antes. O primeiro expositor na abertura dos
trabalhos era membro da Comissão Estadual de Fiscalização de Entorpecen-
tes (Cefe), e da Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da
Bahia, Professor João Inácio de Mendonça. Dois anos antes, em apresentação
dirigida à Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia,
Mendonça afirmara que nordestinos e nortistas teriam “caracteres étnicos que
14
Sobre o tema, ver Júlio César Adiala, Drogas, medicina e civilização da primeira república. Tese
de doutorado. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2011 e Fernando Sérgio Dumas dos
Santos, Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de mestrado. Unicamp, 1995.
118 Violência no Brasil
15
João Mendonça, “Os perigos sociais da maconha”. In: Ministério da Saúde, Serviço Nacio-
nal de Educação Sanitária, Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de Janeiro,
Oficinas Gráficas do IBGE, 1958.
16
A diamba, ou maconha, no entanto, apesar de criminalizada desde 1932, estava, também,
na “Tabela D” das “Instruções” para a execução do Decreto-Lei 891, de 1938, que estabe-
lecia a “Relação dos entorpecentes de existência obrigatória nas farmácias” e onde vamos
poder encontra três de suas preparações. Ou seja, segundo o pesquisador Jorge Emanuel Luz
de Souza, “toda farmácia era obrigada a guardar, manipular e vender maconha, ainda que
transformada, contribuindo, assim, para a perpetuação da espécie”. Jorge Emanuel Luz de
Souza, Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha
no Brasil republicano. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2012.
17
Eleyson Cardoso, “Convênio Interestadual da Maconha”. In: Ministério da Saúde, Serviço
Nacional de Educação Sanitária, Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros, 2. Ed, Rio de
Janeiro, Oficinas Gráficas do IBGE, 1958.
Guerra às drogas no Brasil 119
18
Demosthenes Madureira de Pinho, “As novas tendências do Código penal”. Revista da Fa-
culdade de Direito da UFBA, Salvador, v.16, p.56-62, 1941.
19
Utilizaremos o modelo proposto pelo jurista Nilo Batista e complementado por Ana Lui-
za Pinheiro Flauzina, que compreende quatro tipos de sistemas penais brasileiros: colo-
nial-mercantilista, imperial-escravista, republicano-positivista e neoliberal. In: Ana Luiza
Pinheiro Flauzina, Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado
brasileiro. Dissertação de mestrado. Brasília: UnB, 2006.
20
SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças. Op. Cit.
21
Ibidem.
120 Violência no Brasil
22
A. Mbembe. Necropolitics. Duke, Public Culture, 2003.
23
Ministério da Justiça. Infopen, 2019.
124 Violência no Brasil
24
Natalia Cardoso Amorim Maciel, “A criminalização da favela por meio da categoria ‘lugar
da ação’ em sentenças de crime da Lei de Drogas no Rio de Janeiro”. Revista da Plataforma
Brasileira de Política de Drogas, São Paulo, v.4, n.4, 2020. Disponível em: https://pbpd.org.
br/revistaplato/. Acesso em: 8 fev. 2022.
25
Gabriel Elias; Nathalia Oliveira; Eduardo R. Santos, “Justiça de transição como chave pa-
cificadora e reparadora da Guerra às Drogas”. In: Platô. Revista da Plataforma Brasileira de
Guerra às drogas no Brasil 125
Política de Drogas, São Paulo, v.4, n.4, 2020. Disponível em: https://pbpd.org.br/pbpd-lan-
ca-revista-plato-n-4/ . Acesso em: 15 fev. 2022.
126 Violência no Brasil
26
Nathalia Oliveira; Eduardo Ribeiro, O massacre negro brasileiro na guerra às drogas. Disponí-
vel em <https://sur.conectas.org/o-massacre-negro-brasileiro-na-guerra-as-drogas/>. Acesso
em: Dez/2020.
A emergência das milícias e
facções criminais no estado do
Pará (2000-2019)
Amanda Pimentel1
Gustavo Queiroz2
1
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), advogada, pesquisadora do
Núcleo de Justiça Racial e Direito da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
de São Paulo.
2
Doutorando e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Di-
reito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador na área de violência urbana,
polícias e desigualdades na Amazônia.
128 Violência no Brasil
3
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/dez-anos-apos-retomada-complexo-do-alemao-
perde-servicos-o-trafico-volta-dominar-24759604#:~:text=Tr%C3%AAs%20dias%20
depois%2C%20num%20domingo,pessoas%20do%20dom%C3%ADnio%20do%20
tr%C3%A1fico. Acesso em: 24 nov. 2022.
130 Violência no Brasil
4
Os mercados ilegais são, na definição dada por Michel Misse (2007), espécie do gênero
“mercados informais”, para o qual se reserva o peso preferencial da criminalização e um tra-
tamento social distinto de outras práticas ilícitas que são socialmente toleradas. O exemplo
mais comum de mercados ilegais é o comércio de tráfico de drogas. Diferentemente de prá-
ticas como o comércio de jogos de azar e pirataria, o tráfico de drogas recebe um tratamento
diferenciado tanto pela legislação penal, que o considera um crime de maior gravidade,
como pela sociedade em geral, que o concebe como um “mal” a ser combatido.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 131
5
Em seu sentido técnico são as normas ou guia de conduta da relação do policial e uma dada
circunstância. Na bibliografia especializada é colocado como o continuum de força necessá-
rio à produção da obediência do recalcitrante, mas em perspectiva madura “não se trata de
um gradiente nem obrigatório e nem inexorável, mas de uma palheta de alternativas que
busca produzir obediência em sintonia com a dinâmica do evento em curso. A definição das
diversas normas e procedimentos que uma dada força considera corretos para seu pessoal
132 Violência no Brasil
em suas relações com o público é uma das variáveis centrais quer de uma doutrina de poli-
ciamento quer da política de segurança de uma dada região” (Muniz, 1999, p. 4).
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 133
Senhores, sério, por favor, façam o que for preciso, mas não vão para o Guamá,
não vão pro Canudos, nem pra Terra Firme hoje à noite. É uma questão de segu-
rança dos senhores, tá? Mataram um policial nosso, e vai ter uma limpeza na área.
Ninguém segura ninguém, nem coronel das galáxias. E os meninos tão soltos. Por
favor, fiquem em casa, não fiquem em esquina6.
Logo após, houve uma intensa circulação de policiais militares nos bairros
citados no áudio, e ao amanhecer do dia 5 foram confirmados dez assassinatos
ocorridos durante o intervalo de algumas horas. Como se confirmou poste-
riormente, o Cabo Pety possuía um serviço de vigilância eletrônica, prestando
serviços para comerciantes dos bairros do Guamá e Terra Firme, e era conhe-
cido por assassinar aqueles que assaltavam esses estabelecimentos. O policial
controlava os pontos de vigilância eletrônica de sua casa, e mesmo estando
em licença da Polícia Militar, ainda possuía relações diretas com policiais da
Rotam, que periodicamente compareciam à sua casa. Hoje sabemos que parte
dos assassinatos foi cometido por membros de seu negócio de vigilância, que,
na realidade, era um grupo de assassinos de aluguel.
Como resposta à “chacina de novembro”, como se nomeou o morticínio,
a Comissão Parlamentar de Inquérito para Apuração da Atuação de Grupos de
Extermínio e Milícias no Estado do Pará (daqui em diante, CPI das milícias)
6
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141106_salasocial_be-
lem_whatsapp_cc. Acesso em: 24 nov. 2022.
136 Violência no Brasil
foi formada para investigar a lógica de grupos como o do Cabo Pety no estado
do Pará e de eventos similares às “chacinas” ocorridas em na Região Metropo-
litana de Belém e nas cidades de Marabá e Igarapé-Miri, no interior do estado.
A investigação realizada pela comissão nomeou oficialmente os grupos
considerados similares aos do ex-policial da Rotam como milícias. O termo
milícia foi transplantado do relatório final da CPI da Assembleia Legislativa
do Rio de Janeiro (CPI das milícias [Alerj], 2009), publicado em 2008 e
utilizado como modelo de compreensão para o caso paraense:
7
Disponíve em: https://www.brasildefato.com.br/2016/11/18/marcha-funebre-lembra-dois-
-anos-da-chacina-de-belem. Acesso em: 24 nov. 2022.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 137
do roubo, furto ou tráfico de drogas. Dito de outra forma, as vítimas desses as-
sassinatos seriam os “bandidos” ou “vagabundos”, como os policiais militares
se referem a eles, em “resposta”8 à morte de um policial. No entanto, a seleção
aleatória das vítimas por seus assassinos na “chacina de novembro” pôs à prova
a leitura costumeira de assassinatos nas periferias urbanas de Belém.
A gente sente não que o cara queira pegar a gente que eles tem medo, também.
Se eles sabem que tu é um, ele não vai assim. Mas tanto prova que os policiais
8
A “resposta” é o correlato da “chacina” no documento da comissão, como forma de “vingança”
pela morte de um policial militar: “Do ponto de vista da análise desta CPI, a Chacina do Ta-
panã interessa pela mudança no procedimento de “RESPOSTA” até então empregado contra
a morte de policiais ela submerge na escuridão e só volta a tona vinte anos depois através da
postagem no Facebook do Sgt. Rossicley Silva, Presidente da Associação dos Praças da Polícia
Militar do Pará” (CPI das milícias [Alepa], p. 152). O citado convocou os policiais militares
a “dar resposta” pela morte do Cabo Figueiredo, que foi sucedida pela chacina do ano de 2014.
138 Violência no Brasil
militares que morreram da Rotam, eles tavam à paisana. Os caras não sabiam
que eles eram da Rotam, e se soubessem não tinham ido lá. Eles tinham medo.
O último que morreu da Rotam, tu viu quantos morreram né. Aí cara diz assim
“Ah, eles não podem fazer isso”. O povo todinho, ali não morreu nenhum santo.
Não to dizendo que foi o Tático, que foi alguém do Tático que matou, mas ali só
morreu bandido. Porque o seguinte, muitas vezes o policial, ele não é conhecido
só dentro do Batalhão dele, ele também é conhecido por outros batalhões, ele é
conhecido até por civil. E todo mundo quer matar. Sabe, “Olha, o fulano de tal tá
lá na casa dele. Parece que ele tava no meio, coisa e tal”, e sai matando. Não é que
eu concorde com isso, eu não concordo, mas infelizmente é isso mesmo [...] Pois
é, eu te digo que tem muita coisa disso. Tem muito bandido aí que se prevalece
também. “Mataram um policial, bora matar fulano de tal, fulano de tal, que ele tá
vendendo na nossa área droga”. Ai se veste, pa pa pa, bota um capacete, pow pow,
mata os cara. De ponto 40, roubada, a pistola fica mesmo, o cartucho no chão9.
9
As entrevistas com policiais militares do estado do Pará, expostas neste artigo, foram realiza-
das no âmbito da pesquisa de dissertação realizada por Gustavo Ferreira de Queiroz intitula-
da Família e honra: recrutamento e mobilidade social na polícia militar do Pará, defendida no
programa de pós-graduação em sociologia da Universidade de São Paulo, USP.
10
Uma das características dos eventos que são classificados enquanto “chacina”, ou mortes por
execução, é o anonimato de seus autores através do ocultamento da face, por isso são chama-
dos de “encapuzados”: “Encapuzados matam 5 e ferem 15 pessoas na Condor [...] De acordo
com vários áudios compartilhados nas redes sociais, tanto os moradores da área quanto as
testemunhas do crime acreditam na ação de milicianos. Os encapuzados chegaram em três
carros, fecharam o bar onde as vítimas estavam e dispararam várias vezes em direção da
população. Ainda segundo as testemunhas, aparentemente, não havia um alvo específico”.
Disponpivel em: http://www.diarioonline.com.br/noticias/policia/noticia-421672-encapu-
zados-matam-4-e-ferem-15-pessoas-no-condor.html. Acesso em: 08 ago. 2018.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 139
11
As 12 chacinas identificadas são as seguintes: 1. “Chacina de Santa Izabel”, ocorrida em 27
agosto de 2011; 2. “Chacina de Icoaraci”, ocorrida em 09 de novembro de 2011; 3. “Cha-
cina de Belém”, ocorrida nos dias 04 e 05 de novembro de 2014. 4. Chacina em bairros de
Belém, Ananindeua e Marituba, ocorrida 20 e 21 de janeiro de 2017; 5. Chacina em bairros
de Belém e Ananindeua, ocorrida em 04 de abril de 2017; 6. Chacina no Distrito de Ico-
araci, ocorrida em 04 de maio de 2017; 7. Chacina no bairro da Condor, ocorrida em 06
de junho de 2017; 8. Chacina nos bairros Distrito Industrial, 40 horas e Icuí-Guajará, em
Ananindeua, e bairro do Tapanã e Conjunto Satélite, em Belém, ocorrida em 09 de abril de
2018; 9. Chacina no bairro do Tapanã, em Belém, ocorrida em 29 de outubro de 2018; 10.
140 Violência no Brasil
O PCC, hoje em dia, chega aqui, quem comando o tráfico aqui em Belém do
Pará? Não tem uma facção “Ah o FDN”, que é Família do Norte. Hoje que tá se
ouvindo falar isso, mas antes não. E o Rio de Janeiro, quem comando o tráfico
lá? Comando Vermelho. Então, é uma diferença grande dessa situação aí de quem
comanda, ou deixa de comandar. Aqui são pequenos traficantes.
Chacina de Pau D’Arco, ocorrida em 24 de maio de 2017; 11. Chacina no bairro do Guamá,
em Belém, ocorrida em 19 de maio de 2019; 12. Chacina em presídio de Altamira, sudoeste
do Pará, ocorrida em 29 de julho de 2019; e execução de quatro presos durante transferência
de presídio, ocorrida em 31 de julho de 2019.
12
Disponível em: http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2017/01/rebeliao-no-compaj-
-chega-ao-fim-com-mais-de-50-mortes-diz-ssp-am.html.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 141
13
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/migracao-de-bandidos-para-rio-se-acentuou-
-com-aliancas-entre-faccoes-em-presidios-federais-25068589.
14
O estudo apontou que o Comando Vermelho é predominante na Região Metropolitana de
Belém, enquanto o PCC atua mais na região em torno do município de Altamira.
142 Violência no Brasil
15
O Baixo Tocantins é uma mesorregião do Estado do Pará, composto por 11 municípios:
Abaetetuba, Acará, Baião, Barcarena, Cametá, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba, Moju, Oeiras
do Pará e Tailândia.
16
Além da Região Metropolitana de Belém, os casos investigados pela CPI das Milícias e Gru-
pos de Extermínio do Estado do Pará estenderam-se para os municípios de Igarapé-Miri e
Marabá.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 143
É assim, eles não querem que se matem mais, eles querem que vendam as drogas
deles. Eles não querem que roubem, por isso que está pichado ali ‘Proibido Rou-
17
Segundo relatos coletados no âmbito da pesquisa conduzida por Pimentel (2020), morado-
res de outros bairros da cidade se referiam aos moradores do barro da África como “pretos
salientes” e “violentos”, afirmando mesmo que era necessário ter um certo “cuidado” quando
cruzassem com eles pelas ruas.
144 Violência no Brasil
bar’. Eles não querem que roubem pra não chamar atenção da polícia. Se a polícia
vir, empata a venda das drogas deles. No caso, esses caras que vendem aqui, ven-
dem pra eles, esses caras de presídios, esses caras. [...] Olha, aqui da África, acho
que faz uns anos que não morre ninguém, assim de morte matada, o crime assim
parou. Eu, só eu assisti umas cinco mortes, do cara cair assim na minha frente.
A última que vi veio de uma ordem do presídio. Veio de ordem da prisão, dessa
coisa do CV [Comando Vermelho], da conferência, que eles decidiram lá que ele
ia morrer, porque ele tinha matado um casal de ribeirinhos daqui. Quando foi,
esse rapaz acabou com a vida dele.
18
Apesar das semelhanças, no caso paraense, a entrada das facções criminosas no cenário da
violência na região não implicou eiminuição dos homicídios, como o que foi identificado
em São Paulo na virada dos anos 2000.
A emergência das milícias e facções criminais no estado do Pará 145
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146 Violência no Brasil
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PARTE 3
Políticas de segurança pública
e o enfrentamento à violência
contra a juventude negra
O desafio das políticas de
controle a homicídios no Brasil:
como sair da montanha-russa
das estatísticas?
Ricardo Moura1
Introdução
A violência letal se apresenta como um desafio permanente aos governos e à
sociedade. Nos últimos dez anos, os índices de homicídios bateram recordes,
afetando, principalmente, as populações negras e periféricas. Talvez, até mes-
mo pelo recorte racial e socioeconômico de suas vítimas preferenciais, o tema
ainda não mereça a atenção devida por parte do poder público. O presente ar-
tigo discute o papel do governo federal no controle e na prevenção dos homi-
cídios na última década, a partir da análise dos planos nacionais de segurança
pública e dos programas governamentais executados no período.
Para tanto, traçamos um recorte temporal de 2011 a 2020, um decênio, a
fim de obter uma visão mais longitudinal sobre a dinâmica dos assassinatos. Na
primeira seção do artigo, será realizada uma breve discussão dos números da vio-
lência letal no período para, em seguida, apresentarmos um levantamento das
propostas, políticas e programas oriundos do governo federal com foco nesse
problema ao longo desse período. Por fim, enumeramos algumas proposições e
reflexões tendo em vista a construção de uma plataforma de políticas públicas,
visando o controle e a prevenção dos homicídios para os próximos anos.
1
Jornalista, cientista social e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
152 Violência no Brasil
2
O Atlas cita alguns exemplos de ações e programas bem-sucedidos: “o Infocrim (2000), em
São Paulo; o Fica Vivo (2003) e o Igesp – Integração e Gestão de Segurança Pública (2008),
em Minas Gerais; o Pacto pela Vida (2007), em Pernambuco; as Unidades de Polícia Paci-
ficadoras (UPPs) (2008), no Rio de Janeiro; o Paraíba Unidos pela Paz (2011), na Paraíba;
o Estado Presente (2011), no Espírito Santo; além de ações e planos de segurança pública
municipais em cidades do Sul, de São Paulo e em alguns outros estados” (Cerqueira et al.,
2021, p.13).
O desafio das políticas de controle a homicídios no Brasil 153
Fonte: Atlas da Violência 2021, Ipea. Os números de 2020 são do “Monitor da Violência”, do G1 e do NEV/USP
Podemos afirmar que essa alternância entre os números da violência letal su-
gere o desenho de uma curva sinuosa nos índices de assassinatos, no que deno-
minamos, de modo figurado, como uma espécie de “montanha-russa” dos indi-
cadores. Isso é ainda mais visível em se tratando de estados como o Ceará, como
será exposto adiante, em que as curvas de descida e subida são mais acentuadas.
As dinâmicas de homicídios, de estado por estado, certamente possuem suas
próprias características e motivações. Diversos estudos analisam de forma deta-
lhada as causas que levam tanto ao crescimento quanto à redução dos números
de mortes violentas.
Os mapas da violência são os mais diversos no país. No entanto, a expec-
tativa é que a execução de uma política de segurança pública mais consistente,
sustentável e integrada seja capaz de fazer com que essa trajetória de redução dos
índices apresente maior constância. O governo federal possui um papel muito
importante nesse sentido, em especial a partir da entrada em vigor do Sistema
Único de Segurança Pública (Susp), em junho de 2018.
Vale ressaltar que a própria criação de um sistema integrado para a segurança
pública é um bom exemplo de uma política de Estado. Proposta ainda no primei-
ro governo Lula, a legislação passou por sucessivas etapas até vir a ser aprovada
154 Violência no Brasil
no governo Temer. Sua devida implementação é uma medida urgente para o fu-
turo das políticas de segurança pública do país.
Visto à distância, o Susp desponta como uma medida isolada em meio a um
vazio de ações governamentais consequentes. Em se tratando de segurança públi-
ca, a trajetória do governo federal, de modo geral, é errática, tendo sido marcada,
como veremos a seguir, por ações fragmentadas, programas de alcance limitado
e, mais recentemente, por uma política de estímulo ao armamento da população.
No período analisado, quatro mandados presidenciais se sucederam: o pri-
meiro (2010-2014) e o segundo (2015-2016) de Dilma Rousseff, interrompi-
do pelo impeachment; o de Michel Temer (2016-2018) e o de Jair Bolsonaro
(2019). Trata-se, certamente, de projetos políticos bastante distintos cujas
concepções de segurança pública incidiram diretamente nas ações e programas
governamentais. Dentro da proposta do presente texto, enfocaremos apenas as
iniciativas relacionadas ao controle e à prevenção de homicídios. Também não
temos a mínima pretensão de fazer um resgate exaustivo de todas as medidas
governamentais do período em questão, mas sim apontar as linhas de atuação de
cada uma, bem como suas lógicas internas.
É difícil fazer um balanço crítico do PNRH à luz do que veio a ocorrer depois.
Como pensar em um programa governamental fortemente dependente de um
pacto federativo em meio à erosão do capital político da presidenta Dilma, que
veio a resultar em um processo de golpe parlamentar?
3
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-01/veja-os-principais-
-pontos-do-plano-nacional-de-seguranca-publica. Acesso em: 24 nov. 2022.
O desafio das políticas de controle a homicídios no Brasil 157
4
De forma resumida, os objetivos do PNSP de 2018 são os seguintes:
I – reduzir os homicídios e os demais crimes violentos letais;
II – reduzir todas as formas de violência contra a mulher, em especial as violências doméstica
e sexual;
III – promover o enfrentamento às estruturas do crime organizado;
IV – aprimorar os mecanismos de prevenção e de repressão aos crimes violentos patrimo-
niais;
V – elevar o nível de percepção de segurança da população;
VI – fortalecer a atuação dos Municípios nas ações de prevenção ao crime e à violência,
sobretudo por meio de ações de reorganização urbanística e de defesa social;
VII – aprimorar a gestão e as condições do sistema prisional, para eliminar a superlotação e
garantir a separação dos detentos;
VIII – fortalecer o aparato de segurança e aumentar o controle de divisas, fronteiras, portos
e aeroportos;
IX – ampliar o controle e o rastreamento de armas de fogo, munições e explosivos;
X – promover a revisão, a inovação e o aprimoramento, considerados os aspectos norma-
tivo, financeiro, material e humano, dos meios e dos mecanismos de combate aos crimes
ambientais e aos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores e de corrupção
que envolvam crimes ambientais como antecedentes;
XI – buscar fontes contínuas, previsíveis e suficientes de financiamento das ações de segu-
rança pública e regular a sua utilização por meio de modelos científicos;
158 Violência no Brasil
uma vez, não será possível avaliar os resultados do plano, haja vista que o governo
que lhe sucedeu não deu continuidade às ações previstas, optando por reelaborar
o plano decenal, como se verá a seguir.
Referências bibliográficas
BERTINI, L.; FROTA, H. “Estado, políticas públicas e segurança no Pronasci: ascensão e queda”.
In: Conhecer: debate entre o público e o privado. V. 08, nº 20, 2018, p. 67-87.
BRASIL. Ministério da Justiça. Diagnóstico dos homicídios no Brasil: subsídios para o Pacto
Nacional pela Redução de Homicídios. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional
de Segurança Pública, 2015.
162 Violência no Brasil
1
Cientista social com doutorado pela Fundação Oswaldo Cruz em Violência e Saúde, coor-
dena pesquisas sobre violência urbana e segurança pública, atuando principalmente nos
temas juventude, polícia, mídia e movimentos sociais. É coordenadora geral da Rede de
Observatórios da Segurança Pública.
2
Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). É
coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), coordena a área de
pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança e o projeto Panóptico.
3
Jornalista e pesquisadora, Juliana é coordenadora de comunicação da Rede de Observató-
rios da Segurança, cofundadora e diretora de conteúdo da Firma Preta e é integrante do
coletivo feminista Minas da Baixada. É graduada pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), tem especialização em Comunicação e Imagem na PUC-Rio e atualmente
é mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). As autoras e o autor deste artigo são coordenadores do CESeC. Ver: http://
observatorioseguranca.com.br/.
164 Violência no Brasil
4
Parte dos argumentos deste capítulo foi desenvolvida em Silvia Ramos, “Violência e polícia:
Três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro”. Boletim Segurança e Cidadania, n.
21, março de 2016.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 165
mens tinham como missão subir morros, invadir barracos, desentocar assal-
tantes e “limpar a cidade” (Ventura, 1994, p. 34-35).
Em 1959, Kruel, o exterminador de bandidos “duro contra o crime” foi
descoberto como o principal beneficiário de caixinhas do bicho, lenocínio, ho-
téis, cartomantes, ferro-velho, aborto, drogas e cassinos. O operador era seu
filho, Nei Kruel. As denúncias foram feitas pelo jornalista Edmar Morel, que
as sustentou diante de uma CPI e afirmou que o general inaugurava “a invasão
do crime nos quadros do Departamento Federal de Segurança Pública” (p. 49).
Kruel acabou demitido, mas recebeu a solidariedade de delegados, detetives e
de seu substituto, o coronel Crisanto Figueiredo. À saída da Secretaria, desceu
as escadarias do prédio carregado nos ombros de comissários e investigadores.
O mesmo general voltaria à cena com o golpe de 1964, quando ocupava o
poderoso comando do II Exército em São Paulo. Era amigo pessoal de Jango,
foi seu chefe de gabinete e seu ministro da Guerra. Jango acreditava em sua
lealdade, mas na noite de 31 de março, Kruel aderiu ao golpe. Cecil Borer,
antigo auxiliar de Kruel, era o homem forte no setor de segurança no governo
Carlos Lacerda (Ventura, 1994, p. 52).
Poucos meses depois do golpe militar, em agosto de 1964, um dos membros
do grupo que formava o chamado Esquadrão da Morte, o detetive Milton Le
Cocq, foi morto quando tentava matar o criminoso conhecido como Cara de
Cavalo. Após esse episódio, a perseguição ao criminoso mobilizou 2 mil ho-
mens de todas as delegacias e divisões da Secretaria de Segurança. Na noite de
3 de outubro de 1964, quando Cara de Cavalo foi apanhado nos arredores de
Cabo Frio, de bermudas e sandália, sem carro e sozinho, recebeu cem tiros de
metralhadora. Importante notar que esse tipo de armamento já era ostentado
por policiais nesta época e era um dos símbolos da força contra o crime. Alguns
dos policiais que estavam na tropa de fuzilaria eram Sivuca, Hélio Vígio, Luis
Mariano e Euclides Nascimento (Ventura, 1994, p. 46). Vários personagens
que participaram da caçada ao Cara de Cavalo reapareceriam em postos impor-
tantes no poder Executivo, em comando nas polícias, ou no Legislativo, como
deputados e vereadores do Rio de Janeiro nas décadas seguintes.
Quem quer entender o que aconteceu com o Rio de Janeiro para termos
nos tornado campeões de histórias de violências que se suplantam, e por que
esse quadro vem se agravando, precisa antes de mais nada lembrar que a au-
166 Violência no Brasil
torização para a violência nas favelas vem dos anos dourados, de antes da
ditadura, do Rio Bossa Nova, em meados do século passado. A autorização
vem da época em que o Rio não tinha problemas com a violência e as casas
dormiam de portas abertas. A autorização para policiais matarem, desde que
fosse dentro das favelas, nunca foi revogada, exceto em pequenos períodos que
não se transformaram em políticas duradouras5.
Quem quer entender a segurança pública no Rio tem que olhar para o fato
de que a combinação entre corrupção e violência policial praticada dentro das
favelas contra negros e pobres tem autorização tácita ou explícita de governos,
principalmente das autoridades de segurança e de chefes de polícia, além de
grande parte das elites empresariais e de boa parte da mídia há décadas6. A
autorização para matar, desde que se dê nos limites das favelas e dos bairros
mais pobres da região metropolitana e que suas vítimas sejam jovens negros (“é
tudo bandido”), é anterior a fenômenos como o Comando Vermelho, à exis-
tência de donos dos morros, aos sequestros, aos fuzis nas favelas, ao Batalhão
de Operações Especiais (Bope) ou aos caveirões ou blindados aéreos, às milí-
cias ou a Bolsonaro, Witzel ou Castro. A autorização para matar nas favelas,
a prática de milhares de operações que se repetem por anos, em que policiais
saem dos batalhões pendurados em veículos blindados, com coletes e fuzis e
se dirigem diariamente para as franjas das favelas para guerrear com grupos
armados locais e fazer mortos, sem que isso altere em nada as condições de
segurança, não tem a ver diretamente com indicadores de criminalidade nem
5
Pelo menos dois períodos precisam ser mencionados: o primeiro ano da gestão de Anthony
Garotinho, de janeiro de 1999 a março de 2000, quando a segurança pública foi coordenada
pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares (naquele ano as mortes chegaram ao menor número
da série de mais de 20 anos, 289 ocorrências). O segundo período foram os primeiros anos
de implantação das UPPs, quando os autos de resistência caíram para 523 em 2011, 419 em
2012 e 416 em 2013. O início da política de implantação das Unidades foi precisamente
uma interdição da matança como método de ação policial. Ver Silvia Ramos, “Violência e
polícia: três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro”, em que a autora defende
que as UPPs fracassaram precisamente por resistências dentro das polícias.
6
Os textos de referência sobre a articulação entre corrupção e violência policiais são de Luiz
Eduardo Soares: “Meu casado general” (Cia. das Letras, 2000) e do mesmo autor “Des-
militarizar” (Boitempo, 2019). O livro Cidade partida, de Zuenir Ventura também é uma
referência obrigatória. Mais recentemente, Bruno Paes Manso, em A república das milícias
(Todavia, 2020) faz uma revisão do tema corrupção e violência dos primórdios do jogo do
bicho às milícias dos dias atuais.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 167
com respostas contra um determinado tipo de crime. Também não tem a ver
com dinâmicas específicas de criminalidade. A despeito do fato de que algu-
mas operações policiais se caracterizam como operações-vingança.
A matança policial é um método adotado há décadas pela polícia fluminen-
se e independe de haver roubos a bancos, roubos de cargas ou de transeuntes,
homicídios, feminicídios ou estupros. O momento atual, momento da chacina
de Jacarezinho, é típico desse fenômeno: todos os indicadores de segurança es-
tão controlados, os crimes contra o patrimônio e os crimes contra a vida estão
em seus níveis “normais” e alguns estão nos níveis mais reduzidos dos últimos
anos. Mas a polícia sai de suas unidades para as favelas com a intenção de matar
criminosos e anunciar mais um recorde na luta contra o crime.
7
Sobre esse tema, é inspirador o livro de Michele Alexander, A nova segregação: racismo e
encarceramento em massa, Cia. das Letras, 2018. Retomaremos esse assunto na última parte
desse artigo.
8
Veja o documento “A cor da violência policial: a bala não erra o alvo”. Rede de Observató-
rio de segurança Pública. Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/
uploads/2020/12/A-Cor-da-Viol%C3%AAncia-Policial-A-Bala-N%C3%A3o-Erra-o-Al-
vo.pdf
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 169
9
Anistia Internacional, 2015. “Você matou meu filho!”: Homicídios cometidos pela Polícia
Militar na cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/
Documents/AMR1920682015BRAZILIAN%20PORTUGUESE.PDF. Ver também: ht-
tps://twitter.com/rede_seguranca/status/1412084419687497729?s=20.
170 Violência no Brasil
10
Números do Instituto de Segurança Pública em junho de 2021.
11
Rede de Observatórios da Segurança, “A Vida resiste: além dos dados da violência”. Dispo-
nível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/07/REDE-DE-
-OBS_2_A-VIDA-RESISTE-_ALEM-DOS-DADOS-DA-VIOLENCIA.pdf.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 171
nas últimas décadas tem sido discutida em vários trabalhos a partir de diver-
sos pontos de vista. Os observadores concordam num ponto: não há tráfico
e domínio territorial do tráfico sem participação policial. Seja na forma de
omissão, negociação de meios, seja com informação ou proteção. Na verdade,
as formas de participação da polícia no negócio do crime no Rio de Janeiro
foram se sofisticando. No contexto das favelas, as mais frequentes são a pri-
são e o sequestro de traficantes para serem vendidos a facções inimigas ou à
própria facção e a revenda a traficantes de armas capturadas em operações
policiais. A mais universal é a propina semanal apanhada na boca de fumo
por policiais que distribuem a semanada entre colegas do Batalhão, na mais
fiel tradição das antigas “caixinhas” do jogo bicho. A criação de grupos de
milicianos, no princípio em algumas áreas da cidade, como Rio da Pedras
na Zona Oeste, se expandiu e mudou a escala de relações entre corrupção e
violência policial, alterando lógicas de patrulhamento e policiamento de ba-
talhões inteiros não só na cidade, mas no estado. O estudo “Controle Territo-
rial Armado no Rio de Janeiro”, assinado pela Rede Fluminense de Pesquisas
(2020) conclui que “as conexões entre milícia e polícia estão se tornando
estruturais. Com presença crescente em favelas e bairros suburbanos, bem
como nas cidades do Grande Rio, a expansão das milícias foi redefinindo os
termos da própria metáfora da guerra”12.
Historicamente, as doses de violência e letalidade para sustentar os mé-
todos foram aumentando ao longo dos anos. O crescimento do número de
autos de resistência, categoria que passou a ser nomeada “morte decorrente de
ação de agente do Estado” em 201813, é expressivo da escalada. O “arrego”,
ou melhor, a “quebra de arrego”, foi a causa principal de chacinas, banhos de
12
Controle Territorial Armado no Rio de Janeiro. Rede Fluminense de Pesquisas (2020):
http://www.ineac.uff.br/index.php/noticias/item/610-controle-territorial-armado-no-
-rio-de-janeiro#:~:text=%E2%80%9CControle%20Territorial%20Armado%20no%20
Rio%20de%20Janeiro%E2%80%9D%20ser%C3%A1%20lan%C3%A7ada%20oficial-
mente,territoriais%20no%20Rio%20de%20Janeiro.
13
A categoria é problemática, porque corresponde ao título conferido pelo delegado após o
registro de policiais em delegacias. Quando não houve “resistência à prisão” (o que é patente
no caso de policiais matarem crianças, mulheres e idosos) o caso não é contabilizado como
morte decorrente de ação policial e entra na categoria de homicídios. Por outro lado, ao
ser categorizada como “decorrente de ação de agente de estado”, aquela morte conta quase
automaticamente com o excludente de ilicitude.
172 Violência no Brasil
Região Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Baixada
58 48 26 65 34 10 13 14 14 62 30 28
Fluminense
Capital 59 59 42 67 45 2 21 12 19 38 21 27
Grande
21 31 36 40 33 5 11 16 8 19 21 8
Niterói
Interior 18 26 11 7 18 17 7 9 13 26 8 16
Total geral 156 164 115 179 130 34 52 51 54 145 80 79
Fonte: Instituto de Segurança Pública – ISP/RJ
14
Em 5 de junho de 2020, Fachin decretou medida cautelar proibindo operações policiais em
comunidades durante a pandemia, exceto em casos excepcionais. O ministro atendeu a um
pedido feito por entidades de favelas, por meio do partido PSB, no contexto da ADPF 635.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 173
15
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as taxas de mortes decor-
rentes de ações policiais por 100 mil habitantes nos estados próximos ao estado do RJ são:
0,6 em Minas Gerais, 1,1 no Espírito Santo e 1,8 em São Paulo. Em 2019 o Rio de Janeiro
registrou a taxa de 7,2.
174 Violência no Brasil
16
O maior orçamento de segurança do país coincide com a polícia que mais mata. Alexandre
Ciconello, “A política de segurança pública do Rio de Janeiro é ineficiente e financeiramente
insustentável”. Rede de Observatórios da Segurança, 2019. Disponível em: http://observa-
torioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2019/12/ESTUDO-ORC%CC%A7AMEN-
TO_REDE-DE-OBSERVATORIOS.pdf.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 175
17
Chacinas são ocorrências com 3 mortes ou mais na mesma operação.
18
Ver Rede de Observatórios. “A vida resiste: além dos dados da violência”. 2021. Dispo-
nível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/07/REDE-DE-
-OBS_2_A-VIDA-RESISTE-_ALEM-DOS-DADOS-DA-VIOLENCIA.pdf.
Mãe é quem cuida. E quem
cuida das mães cujos filhos
foram exterminados pelo
Estado?
Maíra de Deus Brito1
1
Jornalista, mestra e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de
Brasília (UnB). Professora de Direitos Humanos e Gênero e Raça no Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Integrante do Maré – Núcleo de Estudos em
Cultura Jurídica e Atlântico Negro e do projeto Lélia Gonzalez Vive.
2
“Nem o coronavírus freou os homicídios”. G1, Rio de Janeiro, 20 de ago. 2021. Disponível
em: <https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/08/21/nem-o-coronavirus-
-freou-os-homicidios.ghtml>. Acesso em: 9 dez. 2021.
178 Violência no Brasil
3
ADPF das favelas. Disponível em: <https://www.adpfdasfavelas.org/>. Acesso em: 9 dez. 2021.
4
A violência contra pessoas negras no BRASIL 2021. Fórum Brasileiro. de Segurança Pública.
Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/infografico-
-violencia-desigualdade-racial-2021-v3.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2021.
5
Idem.
6
Idem.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 179
Se olhar para o rosto dele, dá para ver claramente que ele foi agredido. Deixaram
ele todo deformado. [...] Meu filho não estava fazendo nada. Aqui é que é sempre
assim: abordagem é chute no saco. Para as pessoas, morador de favela é sempre
bandido, traficante ou drogado. Se for adolescente, nem se fala.
Foi do encontro de Ana Paula e Fátima, na missa de sétimo dia, que nasceu
a urgência dessas mulheres de Manguinhos em se organizar e lutar por justiça e
memória – não apenas de Johnatha e Paulo Roberto, mas de todos jovens negros
periféricos que seguem engrossando as estatísticas de mortes violentas no Brasil.
7
“‘Não é o primeiro filho que se enterra em Manguinhos’, diz mãe de jovem”. G1, 18 de
out.2013. Disponível em:<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/nao-e-o-
-primeiro-filho-que-se-enterra-em-manguinhos-diz-mae-de-jovem.html>. Acesso em: 12
dez. 2021.
8
Idem.
180 Violência no Brasil
9
“Mães que perderam filhos em chacina há seis anos no Ceará narram lutas em livro: ‘mãe
nenhuma pare um filho pro estado matar”. G1, 11 de nov. 2021. Disponível em: <https://
g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/11/11/maes-que-perderam-filhos-em-chacina-ha-seis-
-anos-no-ceara-narram-lutas-em-livro-mae-nenhuma-pare-um-filho-pro-estado-matar.ght-
ml>. Acesso em: 12 dez. 2021.
10
André Camarante (org.). Mães de Maio: Dez anos dos crimes de maio de 2006. São Paulo:
Nós Por Nós, 2016.
11
“Vera Lúcia Gonzaga, uma das fundadoras do Mães de Maio, morre em Santos”. Cláudia,
10 de mai. 2018. Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/noticias/morre-vera-lucia-
-gonzaga-maes-de-maio/>. Acesso em: 12 dez. 2021.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 181
contrada morta em casa ao lado de fotos da filha Ana12. Ainda que a causa
da morte não tenha ficado totalmente esclarecida, fica a certeza que a dor da
morte da filha, da neta e do genro foi tamanha que desencadeou tal tragédia.
Outra mãe, vítima das consequências nefastas do extermínio da juventu-
de negra, é Janaína Soares, mãe de Christian Soares, morto aos 13 anos. De
acordo com a jornalista, cineasta e antropóloga Natasha Neri13, Janaína era
moradora de Manguinhos e passou a criar os filhos Christian e Caique sozinha
após a morte do pai das crianças. O homem foi vítima de um assalto enquanto
exercia suas funções de segurança no metrô do Rio.
Em 2015, Christian foi assassinado, enquanto jogava bola, por uma ope-
ração da Divisão de Homicídios e da Polícia Militar na comunidade carioca14.
Desde então, a depressão se instalou na vida de Janaína, que nos primeiros
dias de novembro de 2018 teve seis paradas cardíacas, não resistiu e morreu.
Nos dias anteriores, ela viu um adolescente morrer próximo a sua casa e o Ca-
veirão (carro blindado usado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro)
espalhar terror em Manguinhos. O coração de Janaína não resistiu a tantas
atrocidades.
Outras mulheres que não se calaram diante das injustiças, mas que infeliz-
mente tiveram finais trágicos, foram Edmea da Silva Euzébio, Vera Lúcia Flores
Leite e Marilene Lima de Souza. As três – mães dos adolescentes Luiz Henrique
da Silva Euzébio, Cristiane Souza Leite e Rosana Souza Santos, respectivamente –
integraram o Mães de Acari, movimento pioneiro na luta por justiça e memória.
Elas se reuniram após o desaparecimento de 11 jovens, em julho de 1990.
O grupo foi abordado/sequestrado por supostos policiais em Magé, na Baixa-
da Fluminense (RJ). Os corpos nunca foram encontrados e, segundo o jornal
O Globo15, a ausência de provas levou ao encerramento do inquérito em 2010,
sem indiciados.
12
Idem.
13
“O Rio não amanheceu: mortes a tiros e uma mãe que tombou”. Ponte, 06 de nov. 2018.
Disponível em: <https://ponte.org/artigo-o-rio-nao-amanheceu-mortes-a-tiros-e-uma-mae-
-que-tombou/>. Acesso em: 12 dez. 2021.
14
Idem.
15
“Mães de Acari inspiram luta por justiça 30 anos após chacina”. O Globo, 17 de ago. 2020.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/celina/maes-de-acari-inspiram-luta-por-justica-
-30-anos-apos-chacina-24584840>. Acesso em 12 de dez. 2021.
182 Violência no Brasil
A ideia é fazer também uma formação política, elas terem o entendimento do por
que nós somos vítimas. Então, a gente discute várias coisas. A violência policial, o
encarceramento em massa. Tem mulheres que não perderam seus filhos, mas eles
foram encarcerados. Algumas não são mães, mas são parentes. Essa conversa vem
no meio do bordado. É um espaço para ouvir e falar também. A gente costuma
dizer que é uma cura mútua.19
19
“Bordado e saudade unem mães que perderam filhos para a violência policial”. Elle, 7 de
mai. 2021. Disponível em: <https://elle.com.br/bordado-e-saudade-unem-maes-que-perde-
ram-filhos-para-a-violencia-policial>. Acesso em: 12 dez. 2021.
184 Violência no Brasil
vizinha a Manguinhos) e, em 2021, foi morto aos 31 anos, após levar um tiro
no abdômen.
Em outra reportagem, uma fala de Ana Paula deixa evidente outra carac-
terística essencial dos grupos de mães: a solidariedade. Estar juntas na luta é o
que faz a diferença nessa militância. Quando Ana afirma que “Juntas constru-
ímos um futuro com mulheres fortes, mulheres capazes de resistir. Um futuro
melhor para os nossos filhos, para os nossos filhos que ainda estão aqui e para
todos os filhos de todas as mulheres desse lugar”20, ela mostra que a militância
sozinha não faz sentido e que todas as conquistas provenientes de uma organi-
zação coletiva têm alcance maior, mais simbólico e mais expressivo.
Ainda destaco a preocupação de Ana Paula com o futuro dos jovens. Quan-
do um deles é morto de maneira violenta e inesperada, essa morte impacta não
só a família, mas todo comunidade, e afeta a noção de futuro desse grupo. No
Brasil das desigualdades, ter direito ao futuro é privilégio.
O que parece ser um simples bordado é a materialização de lembranças e
emoções que deve ganhar o mundo em breve. De acordo com Ana Paula, elas
querem juntar os bordados e fazer uma bandeira para levar para os atos. “Levar
para onde a gente estiver presente, onde formos falar dos entes queridos. Para
simbolizar todo o nosso amor e a nossa dor que andam juntas”21, conta Ana.
20
“Mães que perderam filhos por violência em Manguinhos, Rio, se unem para bordar e curar
o trauma”. G1, 12 de mai. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/
noticia/2021/05/12/maes-que-perderam-filhos-por-violencia-em-manguinhos-rio-se-u-
nem-para-bordar-e-curar-o-trauma.ghtml>. Acesso em 12 dez. 2021.
21
Idem.
“É tudo bandido”: a morte na favela como política de segurança pública 185
natha, mostrar que a história dele não terminou22. Desde então, busco incan-
savelmente ecoar a história de Johnatha, de Luciano e de outros tantos jovens
assassinados no nosso país. Foi Ana Paula quem me ensinou a importância de
citar os nomes desses jovens e suas memórias. A cada vez que evocamos cada
um deles, fazemos da luta por justiça um processo um pouco menos solitário
e mais solidário.
O extermínio da juventude negra é a principal frente do genocídio antine-
gro e seu debate deve passar necessariamente pelos dados sistematizados em
documentos como Mapa da Violência, Atlas da Violência e as publicações do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Por isso, sempre inicio os debates com
números: é urgente não deixar qualquer margem de dúvidas sobre quem são
as vítimas de mortes violentas no Brasil.
Inclusive, é necessário destacar que apesar de o nosso país ter números
semelhantes àqueles encontrados em países em guerras declaradas23, o que
vemos e vivemos não é uma guerra. Também foi com o movimento de mães,
sobretudo com as Mães de Manguinhos, que aprendi que as estatísticas assus-
tadoras refletem um cenário de massacre, não de guerra.
Caso contrário, o que explica e justifica o que aconteceu no Complexo do
Salgueiro, em São Gonçalo, Zona Metropolitana do Rio de Janeiro? De acor-
do com reportagem do portal G124, o pesadelo começou na na madrugada do
dia 20 de novembro de 2021, Dia da Consciência Negra25.
Oito corpos, com sinais de espancamento, foram encontrados no mangue
da região. Um dos trechos mais desconcertantes da reportagem revela o depoi-
22
Maíra de Deus Brito, Não. Ele não está. Curitiba: Appris, 2018.
23
Idem.
24
“Oito corpos são retirados de mangue em São Gonçalo; moradores falam em outros mortos
pela PM”. G1, Rio de Janeiro, 22 de nov. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/
rio-de-janeiro/noticia/2021/11/22/corpos-sao-goncalo.ghtml>. Acesso em: 10 dez. 2021.
25
Em 2020, o Dia da Consciência Negra foi marcado pela morte de João Alberto Freitas, 40 anos.
Ele foi espancado por dois seguranças em um supermercado de Porto Alegre (RS). “Morte de
João Alberto em supermercado do RS completa oito meses e reconstituição é marcada para
agosto”. G1, Rio Grande do Sul, 19 de jul. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/rs/
rio-grande-do-sul/noticia/2021/07/19/morte-de-joao-alberto-em-supermercado-do-rs-com-
pleta-oito-meses-e-reconstituicao-e-marcada-para-agosto.ghtml>. Acesso em: 10 dez. 2021.
186 Violência no Brasil
mento de uma fonte anônima: “As mães estão entrando dentro do mangue.
Com o mangue acima do joelho para poder tentar puxar os corpos”26.
As fotografias comprovam que os corpos foram retirados por civis.
Por fim, reforço a relevância dos movimentos sociais na luta contra o ge-
nocídio antinegro e contra o extermínio da juventude negra, especialmente
o movimento de mães – não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo Brasil.
Esses movimentos têm fortalecido e mobilizado familiares vítimas da violência
de Estado, com apoio físico, emocional e até mesmo financeiro. Apesar de
todo racismo, machismo, preconceito de classe e violências de diversas ordens,
essas mulheres têm deixado ensinamentos importantes.
Sendo assim, ao cuidar dessas mães, cuidamos de uma rede de proteção e
apoio que alcança outros familiares e toda uma comunidade. Se há dúvidas
de como fortalecer as redes já existentes, basta ouvir essas mulheres – que
têm feito trabalhos valiosos, mesmo com pouco dinheiro e quase nenhum
auxílio do Estado.
Ao compreender que “nossos mortos têm voz”, a luta se torna coletiva e
nominal. Apesar de suas mortes precoces e violentas, esses jovens não serão
esquecidos ou silenciados. “Sem justiça, não há paz”.
Referências bibliográficas
ADPF das favelas. Disponível em: <https://www.adpfdasfavelas.org/>. Acesso em: 09 dez. 2021.
BORDADO e saudade unem mães que perderam filhos para a violência policial. Elle, 7 de mai.
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OITO corpos são retirados de mangue em São Gonçalo; moradores falam em outros mortos
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VERA Lúcia Gonzaga, uma das fundadoras do Mães de Maio, morre em Santos. Cláudia, 10 de
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Pele alva e pele alvo: o
desmonte da juventude negra
no Brasil
Dandara Tonantazin Silva Castro1
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social
da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui graduação em Pedagogia pela Universida-
de Federal de Uberlândia (2017). Conselheira Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(CNPIR) 2014/2018, membro do Coletivo Nacional de Juventude Negra- ENEGRECER.
Deputada federal eleita pelo PT-MG, em 2022.
190 Violência no Brasil
de pena e cera, mas ao voar perto do sol teve as asas derretidas, culminando na
sua queda – para interseccionar o personagem branco com a realidade da juven-
tude negra no Brasil. A alusão ao mito da antiguidade interfere, diretamente, na
realidade contemporânea de crianças e adolescentes negros que têm suas vidas
ceifadas quando buscam, a qualquer custo, o “topo” e a suposta liberdade que
dizem existir, mas que, de fato, é apenas a cláusula de um contrato de uma so-
ciedade escravista e racista que faz vigília para roubar-lhes tudo, inclusive a vida.
Vida esta que é discorrida na canção pelo paralelismo que se faz entre o
poema simbolista “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens, que representa a
loucura de uma mulher branca do século XIX, com as linhas que constroem
o RAP de Emicida e transpõem essa figura rudimentar para a experiência da
pessoa negra no Brasil, representando, assim, o adoecimento mental da po-
pulação negra, mais especificamente da juventude, ao confrontar o racismo
estrutural e todas as roldanas que movimentam um sistema que quando não
nos mira, nos sussurra o lugar do tiro: o descarte da nossa existência.
O racismo, sentimento motor das políticas genocidas e de encarceramento,
vive arraigado nas estruturas sociais que organizam quem vive e quem morre.
Nas décadas de 1980 e 1990 houve a aparição de dados sobre a violência letal
contra crianças e adolescentes no Brasil. Estudos apresentados pelo Dossiê do
Menor, realizado pelo Defense for Children International (ONU, 1987), o de
Minayo (1990), ou nos primeiros Mapas da Violência, divulgados pela Orga-
nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
(Waiselfiz, 1998) já apresentavam números expressivos sobre os altos índices
de homicídios de crianças e adolescentes. Importante se apropriar e ter cons-
ciência que os números alarmantes sobre o genocídio da juventude no Brasil
tem um recorte específico: crianças e adolescentes negros.
A questão racial é um campo fértil para análise sobre o comportamento
do Estado quando se trata do manejo com a juventude. Enquanto crianças e
adolescentes brancos são respaldados pela cor da sua pele, tendo, inclusive, um
suposto suporte do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) com
promoção de direitos e estratégias de combate às violações sofridas por esse
público; crianças e adolescentes negros ainda têm sua juventude negada, uma
vez que o olhar social compreende a criança preta, pobre e periférica como
“menor”. Em todos os sentidos.
Pele alva e pele alvo: o desmonte da juventude negra no Brasil 191
Tirando das suas mãos pipas e bolas de futebol, livros e acesso à educação
e cultura, para encarregá-los de responsabilidades que os invisibiliza e as trans-
forma em condutores da violência, “futuro” do crime, suspeitos e “trombadi-
nhas”. Ao invés de oferecerem a elas alegorias da infância, as tratam com a tru-
culência dos gestos: seja fechar o vidro do carro, travar as portas, esconder as
bolsas, atravessar a rua, treinar o olhar para diferenciar que entre uma criança
branca e uma criança negra existe um abismo; enquanto umas transmitem
inocência, outras funcionam como um broto fértil da violência.
Ao enxergar a juventude negra como engrenagem promissora para a ma-
nutenção de um sistema violento, se anula a humanidade que lhes é garantida
pela Constituição. E nesse vício, o Estado e todas as instituições que prestam
serviços para a higienização e preservação da “ordem”, seguem seus planos de
trabalho, mesmo que para isso seja preciso desintegrar famílias, ocultar cadáve-
res, tratar com truculência e balas essa juventude que vive às margens da socie-
dade. Segundo informações extraídas do Portal Juventudes Contra a Violência:
Ao observar esses dados, fica evidente que o alvo do Estado tem cor. Mas,
os fatos são ainda mais agravantes quando tomamos outras vias interceptadas
pelo racismo para a morte da nossa juventude. Engana-se quem pensa e afir-
ma que só as armas de fogo estão apontadas para nós, uma vez que existem
outros aparelhos que contribuem para o desmonte da juventude negra, ascen-
dendo nas subjetividades e entrelinhas, políticas eugenistas que tomam corpos
negros como inimigos de um “controle de qualidade” populacional.
192 Violência no Brasil
o risco de mortalidade por Covid-19 foi 1,5 vezes maior na população negra,
apesar de haver uma maior taxa de incidência entre a população branca, e negros e
pardos brasileiros internados em hospitais tinham 1,3 vezes a 1,5 vezes mais risco
de mortalidade em comparação com brasileiros brancos.
Trajetórias de luta
Em 2011, as demandas da Juventude Negra chegaram ao debate de Políticas
Públicas do Brasil, através do Plano Juventude Viva (PJV). O Plano teve como
objetivo enfrentar a alta de homicídios entre jovens negros do Brasil e, no
contexto, havia uma resistência por parte de cargos políticos relevantes, como
integrantes do Congresso Nacional, além da opinião pública que tratava o Ge-
nocídio da Juventude Negra com desdém e, por assim ser, não acreditava na
necessidade de políticas que apresentassem soluções para o problema. “O PJV
é considerado como a primeira política pública com o objetivo de enfrentar
os elevados níveis de homicídios entre os jovens negros no Brasil, a despeito
do conhecido histórico do problema.” O PJV, além de apresentar dados sobre
a inacessibilidade a direitos e o racismo estrutural que rege a vida de pessoas
negras, apresentou o argumento que coloca o Estado no alvo do problema: a
violência policial como razão para o homicídio de jovens negros.
Diversos nomes com suas idades prematuras entre parênteses poderiam com-
por esse parágrafo, mas no fim todos estariam personificando um fato recorrente
194 Violência no Brasil
Conclusão
Diante das batalhas propostas e enfrentadas pela Juventude Negra no Brasil,
se torna possível argumentar que a liberdade do povo preto está sendo tecida
pelas mãos do movimento negro, que articula, entre lágrimas, suor e coragem,
saídas para emancipação. Sendo que esta, para a juventude negra, é uma cor-
rida em que as costas podem ser alvejadas, os obstáculos são maiores e a luta é
sempre em uma visão panorâmica, uma vez que todos os lados da sociedade e
do Estado estão aptos a desmontar o levante do povo preto.
196 Violência no Brasil
São muitas dúvidas que pairam sobre nossas cabeças e muitas outras que
interditam o pensamento sobre o futuro. Diante de fatos como o genocídio,
o nutricídio, o epistemicídio, cabe a nós, jovens negros, articular espaços para
que nossa voz esteja erguida nas políticas públicas que regem este país. Só
quando nós estivermos falando sobre nós em todos os espaços, e impondo
nossos limites e demandas urgentes, é que a realidade da juventude negra
começará a mudar para o futuro que sonhamos construir. Sem o desmonte da
Juventude, sem que a nossa pele seja alvo, sem que a nossa liberdade, confun-
dida com a de Ícaro, seja ceifada pelas mãos daqueles que têm o sol na barriga.
Referências
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