204158-Texto Do Artigo-587661-1-10-20221105

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DOI: 10.11606/issn.2238-3999.

v11i2p108-122

MULHERES NA ATUAÇÃO, ENCENAÇÃO E


ILUMINAÇÃO: RUPTURAS NAS DINÂMICAS DO
MODELO PATRIARCAL

MUJERES EN LA ACTUACIÓN, LA PUESTA EN ESCENA Y LA ILUMINACIÓN:


RUPTURAS EN LA DINÁMICA DEL MODELO PATRIARCAL

Iassanã Martins

Iassanã Martins
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande
Paula Gotelip
Mestranda nodo Sul (PPGAC/UFRGS).
Programa E-mail:
de Pós-Graduaçãoem
Teatro da Universidade
[email protected] Pesquisa emdo Estado de Santa
andamento na
Catarina com o projeto Teatro para infância,
linha Processos de Criação Cênica. Orientação: Prof.ª
orientado pelo Prof. Dr. Vicente Concilio, com
Dr.ª Patricia Fagundes. Bolsista CAPES.
bolsa Capes. Pesquisadora Atriz, professora
e produtora cultural.
substituta no Departamento de Artes Cênicas da
E-mail: [email protected]
Universidade Estadual de Santa Catarina (DAC-UDESC),
iluminadora. Áreas de interesse: atuação, iluminação,
pedagogia do teatro e teatros feministas.
Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
patriarcal

Resumo
Este artigo é um recorte de pesquisa de doutorado em andamento e tem
por objetivo identificar a inserção das mulheres na atuação, encenação e
iluminação, trabalhos tradicionalmente exercidos somente por homens e
a eles atribuídos tácita e historicamente. A partir do diálogo com autoras
como Elaine Aston, Grada Kilomba, Dodi Leal, Lucia Romano e Elizabeth
Lobo, o trabalho é desenvolvido em Porto Alegre, sob a perspectiva de
ampliar as narrativas do teatro para além das produções do eixo Rio-São
Paulo.
Palavras-chave: Teatro, Teatros Feministas, Teatro Brasileiro, Narrativas

Abstract
This article is a part of a in progress doctoral research and aims to identify
the insertion of women in acting, staging, and lighting, jobs traditionally
performed only by men and attributed to them tacitly and historically. From
the dialogue with authors such as Elaine Aston, Grada Kilomba, Dodi Leal,
Lucia Romano and Elizabeth Lobo, the work is developed in Porto Alegre,
from the perspective of expanding the theater narratives beyond the
productions of the Rio-São Paulo axis.
Keywords: Theater, Feminist Theaters, Brazilian Theater, Narratives

Resumen
Este texto hace parte de una investigación de doctorado, en curso, y tiene
como objetivo identificar la inserción de la mujer en la actuación, la puesta
en escena y la iluminación, oficios durante mucho tiempo realizados sólo
por hombres y atribuidos a ellos tácita e históricamente. A partir del diálogo
con autoras como Elaine Aston, Grada Kilomba, Dodi Leal, Lucia Romano
y Elizabeth Lobo, el trabajo se desarrolla en Porto Alegre, en la perspectiva
de ampliar las narrativas teatrales para más allá de las producciones del
eje Rio-São Paulo.
Palabras clave: Teatro, Teatros Feministas, Teatro Brasileño, Narrativas

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Iassanã Martins

Introdução

Compartilho a partir desse artigo um recorte da pesquisa que


desenvolvo enquanto doutoranda 1 no PPGAC/UFRGS, orientada pela Prof.ª
0F

Dr.ª Patricia Fagundes. Compreendo que o teatro é parte de seu tempo e seu
contexto social, carrega as marcas do machismo e da estrutura patriarcal que
atravessa nossa cultura, desenvolvida pelos homens, para beneficiar os
homens. O intuito não é ser sexista; ao contrário, o desafio é olhar para essa
estrutura e ampliá-la, torná-la plural a partir da contribuição e visibilidade das
mulheres nos mais variados espaços. Foi na experiência como iluminadora
que comecei a pensar sobre as diferenças entre trabalhos exercidos por
homens e mulheres no teatro, e por isso me interessei em investigar o trabalho
das artistas na atuação, encenação e iluminação. As duas primeiras funções
estão intrínsecas à artista que sou, ao exercer o trabalho de atriz e
iluminadora. Opto pela subjetividade na possibilidade de fortalecer outros
modos de pensar, agir e teorizar em nosso campo. Grada Kilomba afirma que
“Assumir a subjetividade com frequência revela a intenção, política e artística,
de propor contrapontos à lógica do universal, objetivo e impessoal, que afirma
um sistema que reflete os interesses políticos específicos de uma sociedade
branca colonial e patriarcal” (KILOMBA, 2016, p. 4). Além da atuação e
iluminação, já anunciadas como foco deste trabalho, também escolho o
exercício da encenação, por ocupar lugar relevante na cena e por sua relação
com a liderança, portanto, dissociado das mulheres artistas.
Atuar, encenar e iluminar são fazeres historicamente atribuídos aos
homens. Porém, na urdidura do tempo, as circunstâncias sociais e políticas
se modificaram a partir de importantes conquistas no campo dos direitos da
mulher. O teatro, através de artistas, pesquisadoras e pesquisadores,
acompanha as discussões do nosso tempo e contribui com elas, tornando-se
um importante agente de transformação.

1
O texto faz parte da pesquisa de doutorado em andamento.

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
patriarcal

Destaco três temas urgentes da contemporaneidade que ganham


saliência e relevância pelo teatro, seja diretamente em cena ou indiretamente,
nos estudos teóricos:
a) a participação das mulheres e o registro de seus respectivos nomes
como importantes colaboradoras do nosso fazer;
b) a reivindicação por uma cena afrocentrada, que reconheça os
saberes da cultura negra;
c) a necessária descentralização das narrativas do teatro, convocando
um olhar e uma escrita sobre o que fazemos aqui e afirmando nossa
capacidade de falarmos por nós, sobre o nosso corpo, nossas experiências e
a respeito do nosso território.
A partir desse horizonte, o teatro tece outras histórias e é sob esse
olhar que a pesquisa apresentada aqui – e na tese – se estrutura, buscando
a narrativa como recurso para a escuta e abertura de outros modos de ampliar
as narrativas do teatro. Sob essa perspectiva decolonial, falo de um lugar
específico: Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, uma cidade ao Sul do
Brasil e bem distante das duas grandes metrópoles Rio de Janeiro e São
Paulo, ou seja, apartada das cidades onde a vida econômica, social e cultural
acontece, é divulgada e validada.
Em termos de produção cultural, o eixo Rio-São Paulo é considerado o
coração do país, onde tudo pulsa, tudo acontece. Quando se fala em teatro
brasileiro, por exemplo, fala-se principalmente do teatro realizado nessas
cidades, tornando-as modelos culturais. Muitos artistas sonham em ir para
essas capitais, pois em nosso imaginário estas são as únicas e, por isso, são
os principais lugares para tornar exequíveis as possibilidades artísticas e
profissionais. Contribuem para isso a valorização e o reconhecimento, em boa
parte resultantes do maior aporte de recursos para o financiamento da
atividade artística.
Falar do teatro que se faz em Porto Alegre é uma escolha política e
descentralizada. Portanto, farei um panorama dos modos de fazer teatro nesta
cidade, buscando construir “narrativas acionadas por uma lógica diferente”
(MIGNOLO, 2003, p. 47).

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Iassanã Martins

Antes mesmo de sermos acometidos pela pandemia da covid-19, o


panorama geral da cultura teatral em Porto Alegre já estava estremecido, mas
se desenvolvia a partir de alguns movimentos: políticas públicas, festivais,
universidades e coletivos de artistas, diante do arrefecimento das medidas
sanitárias a situação piorou.
Vivemos em um momento político conturbado e preocupante, no qual
as instituições democráticas estão sob constante ameaça e por consequência
a cultura torna-se alvo de ataques e da precarização. O teatro está longe de
ocupar um lugar de destaque em relação às demais atividades artísticas. Não
é de hoje que a cultura é marginalizada. Ainda assim, por mais precárias que
sejam as políticas públicas, elas são responsáveis por garantir subsídios
mínimos para a vida cultural de uma cidade.
Em Porto Alegre, contamos com a Secretaria Municipal de Cultura,
responsável por implementar a política cultural de diversas áreas. O teatro
conta com um órgão de orientação e execução de atividades, a Coordenação
de Artes Cênicas (CAC). O município é responsável por algumas propostas
para o setor teatral através de editais de fomento, cada vez mais escassos, e
três edifícios teatrais. Dos três, um está desativado desde 2014 e os outros
dois se encontram em situações bastante precárias, pois o processo de
deterioração acelerou-se com a pandemia. Através do edital de ocupação
Usina das Artes, a prefeitura seleciona grupos de artistas para desenvolverem
seus trabalhos por um determinado período em uma sede própria do
município, nomeado Centro Cultural. A prefeitura também faz parceria com
dois festivais independentes e privados: Porto Verão Alegre e Porto Alegre
em Cena.
O Porto Verão Alegre ocorre há 22 anos, geralmente em janeiro e
fevereiro. É um festival que contempla a cena local e trabalhos do interior do
Rio Grande do Sul, e conta com um público específico e assíduo, diferente
daquele que frequenta o Porto Alegre em Cena, que ocorre em setembro e já
está na sua 28ª edição. É um festival internacional, e por este motivo
contempla mais espetáculos de fora da cidade e do país do que os
espetáculos locais.

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
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Outro festival que movimenta o setor teatral na cidade é o Palco


Giratório – SESC/RS, que acontece em maio e está na 15ª edição. Este
também é um festival que contempla espetáculos de Porto Alegre, do interior
do Estado e dos mais variados lugares do país.
Há também a iniciativa do Instituto Goethe, que desde 2017 propõe o
Projeto Transit através de um edital que contempla a montagem de uma
dramaturgia contemporânea alemã por duas companhias de teatro da cidade,
que encenam o texto escolhido em cada edição.
Tanto a iniciativa pública, através da Secretaria Municipal de Cultura,
como a iniciativa privada, como as citadas, movimenta o mercado de trabalho
para um grupo de artistas. Apesar de poucos grupos serem agraciados nos
editais, há um movimento e uma parcela de empregos oferecidos nos festivais
que contemplam principalmente trabalhos de produção, iluminação,
fotografia, videomaker e na técnica, além de possibilitarem um campo de
inserção para quem está iniciando na carreira artística.
Em relação à formação como artista, são diversos os meios para iniciar
e dar continuidade à carreira. No entanto, Porto Alegre tem como
especificidade o Curso de Graduação em Teatro, oferecido pelo
Departamento de Arte Dramática (DAD) do Instituto de Artes (IA) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com as possíveis
titulações: Licenciatura em Teatro, Escrita Dramatúrgica, Bacharelado em
Teatro com habilitações em Direção Teatral e Interpretação Teatral. Além da
formação acadêmica, alunos e alunas que ingressam na Graduação em
Teatro ou já têm aproximação com o campo de trabalho ou, durante o curso,
iniciam suas experiências artísticas junto aos eventos teatrais da cidade.
Ademais, destacamos a relevante contribuição de docentes da graduação que
são também artistas e que, com seus grupos e companhias de teatro,
colaboram para a movimentação artística da cidade ao articularem propostas
de trabalhos dentro e fora da Universidade.
Há também artistas sem formação acadêmica e que estão inseridos em
seus grupos ou que fazem parcerias de trabalho com uma ou mais
companhias. Em sua maioria, os grupos se autogerem através de

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financiamentos coletivos, editais de fomento (municipais, estaduais e federais)


ou, na maioria dos casos, pagam de seu próprio bolso.
Esse breve panorama contextualiza a cultura teatral e a dinâmica do
setor de teatro na cidade de Porto Alegre. Observa-se a partir dele que, apesar
de haver um movimento que garante trabalho para uma parcela de artistas
em alguns meses do ano, o restante do tempo trabalha-se em condições
precárias, seja pelas poucas horas de trabalho, seja pela escassez de
recursos financeiros, ambas interligadas; sob tais condições, na maioria das
vezes a equipe ou é a última a receber ou não recebe – “trabalha no amor”,
como se costuma dizer.
Ampliando a visão para o teatro no Brasil, de Norte a Sul, a profissão
de artista está na linha tênue entre a formalidade e a informalidade: um artista
não deixa de ser um profissional por não ser formado em teatro ou por não ter
registro na Delegacia Regional do Trabalho (DRT). Sua trajetória e suas
experiências o formam e lhe concedem o título de artista. Ninguém ousaria
dizer que Fernanda Montenegro não é atriz porque não é graduada em teatro.
Por outro lado, compreende-se a importância da profissionalização do
teatro – que pode ser através de um curso superior, de cursos técnicos ou
com a comprovação de certo período de experiência – pois ela garante direitos
básicos que devem ser respaldados pelo Estado, como aposentadoria ou
direito ao auxílio-doença, por exemplo. Caso contrário, artistas se veem à
deriva, submetidos ao acúmulo de funções que, muitas vezes, se dá pela
precariedade da profissão.
Muitos artistas têm mais de uma profissão dentro da área artística, seja
pela falta de dinheiro que impossibilita aumentar a equipe, seja pela
necessidade de sobrevivência ou pela curiosidade e pelo desejo surgidos na
abertura que o próprio trabalho oferece, proporcionando que tenham diversas
experiências.
O que impulsiona cada artista a escolher e exercer seu trabalho acaba
sendo subjetivo; nessa perspectiva, podemos pensar que tanto a escolha
quanto o exercício são influenciados pelo contexto social, político e
geográfico. No desejo de contribuir com a pluralidade das narrativas sobre o
teatro brasileiro, busco identificar, no contexto da cena artística de Porto

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
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Alegre, como atrizes, encenadoras e iluminadoras se inserem como tais à


medida que esses papéis passam a ser desempenhados também por elas.
Entendo que narrar é pertencer. A partir dessa afirmação evoco a
multiplicidade das ações das mulheres no mundo: sua participação na política,
nas decisões econômicas e sociais, nas escolhas sobre seu modo de viver e
na deliberação sobre seu próprio corpo. Enquanto apenas os homens
puderem escrever suas histórias, não haverá diversidade de discursos e de
ações que coloquem as mulheres em lugares de poder, de conquistas e
igualdade.
As narrativas são procedimentos de lembrança e organização de
acontecimentos passados, tornando-se, como diz a pesquisadora em Letras
e Comunicação Mariléia Sell, “um recurso valioso na reconstrução da própria
realidade” (SELL, 2012, p. 99), e por isso são tão disputadas entre os vários
setores da sociedade, inclusive nas lutas feministas. Ao contar, narrar e
publicar suas histórias, as mulheres passam a participar efetivamente da vida
pública e ter autonomia sobre si, sobre suas trajetórias, sugerindo
possibilidades de pertencimento a outras mulheres: “Isso porque também nós
só ganhamos o estatuto da existência quando somos reconhecidos pelas
narrativas dos outros, quando o outro nos nomeia” (SELL, 2019).
É preciso reconhecer que a História do Teatro se apresenta como um
legado masculino. Dionísio, Aristóteles, Sófocles, Shakespeare, Artaud,
Stanislavski, Brecht, Meyerhold, Antunes Filho, Zé Celso… A lista é enorme:
deuses, dramaturgos, encenadores, iluminadores, cenógrafos – “os homens
de teatro”. A crítica não recai sobre seus respectivos trabalhos, que admiro e
reconheço como fundamentais, mas por acreditarmos por muito tempo em
uma única história, sem questionar, ou por desconhecer o legado das
mulheres de teatro, aceitando-as meramente no papel de coadjuvantes ou
divas. As mulheres foram impedidas de fazer parte da história do teatro e as
que participaram tiveram suas narrativas ocultadas. Para Adichie (2019,
p. 26), “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos
não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma
história se torne a única história”.

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Em consonância com essa narrativa única, predominantemente branca


e masculina, o teatro também excluiu, diversas vezes, as mulheres do foco,
da cena, do jogo, da ação, das atividades criativas, sociais, políticas e
econômicas que o fazer teatral envolve. Por isso a importância de
atualizarmos as ações das mulheres enquanto artistas desse tempo,
rompendo a lógica de histórias únicas que ocultam fatos, reconstroem
memórias e reescrevem eventos sem inseri-las.

ATUAÇÃO: de proibidas a protagonistas

No teatro ocidental, durante os períodos clássicos, como o grego e o


elisabetano, as mulheres não tinham lugar no teatro, e os homens atuavam
nos papéis masculinos e femininos. Eram proibidas de atuar e excluídas pelo
sistema patriarcal, pois a literatura atribuía valor ao que era considerado
“universal”, ou seja, masculino, deixando de fora as experiências das
mulheres, como restritas, específicas e apenas “femininas”. Quando
apareciam na dramaturgia, o faziam ocupando lugares submissos, a serviço
dos homens, mesmo quando identificadas como heroínas (ASTON, 1995).
No Brasil da ditadura militar, era obrigatório o registro de artistas na
Polícia Federal, no mesmo setor onde se registravam as prostitutas, daí as
histórias sobre a “carteirinha de prostituta”. Fernanda Montenegro (2019,
p. 74) afirma que devemos à Dulcina de Moraes “entre tantas conquistas, a
extinção da infame carteira de Segurança Pública, expedida pela polícia, que
as prostitutas, os tipos marginais e as atrizes e os atores eram obrigados a
portar”.
Na década de 1970, diversas criações cênicas se propuseram a pensar
a mulher na sociedade, principalmente com trabalhos biográficos e
autobiográficos, evidenciando em cena questões urgentes para as mulheres
naquele momento. Em consonância ao conhecido conceito feminista dos anos
1970, de que “o pessoal é político”, atrizes e performers passaram a valorizar
a história pessoal sob a perspectiva feminista de considerar o subjetivo como
matéria de criação. Em outro contexto, artistas continuam a falar de suas

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
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experiências e subjetividades, como podemos ver na montagem de No te


pongas flamenca! 2 em Porto Alegre, 2019.
1F

Em No te pongas flamenca! a atriz e bailaora Juliana Kersting une sua


experiência teatral com sua vivência no flamenco ao contar histórias suas e
das mulheres da sua família. A avó Olga, as tias-avós Teresa, Tila, Zena, Ana
e Nema, sua mãe Beatriz e sua filha Elis são inspirações para contar sobre
uma geração de mulheres atravessadas por diferentes exigências e padrões
sexistas, em períodos históricos diferentes e ainda assim interpeladas pelas
histórias umas das outras. A peça propõe um olhar sobre questões feministas
de maneira crítica, séria e, às vezes, bem-humorada.
A cena feminista e o teatro têm explorado a realização e os registros
de narrativas biográficas que permitem ampliar a historiografia das mulheres,
que são múltiplas, são brancas, negras, indígenas, cisgênero, transgênero
etc. Assim como os feminismos são múltiplos, é importante reconhecer que
não somos iguais: como atrizes, falamos de um lugar, de uma experiência
específica. Por mais que se proponha a pensar coletivamente, é impossível
dar conta de experiências que não nos atravessam diretamente.
Isso não quer dizer que não devemos reconhecer outras singularidades
e experiências que, junto à compreensão e ao compartilhamento das nossas
limitações, nos empenha a evitar a armadilha de pensar que abordamos a
historiografia, a existência, a memória e os desejos de todas as mulheres.
Todavia, “‘Atuar como uma mulher’ também é pensar a cena e o mundo como
uma mulher… e não estar mais sozinha e, assim, sentir-se mais fortalecida
para fazer qualquer teatro que se queira fazer” (ROMANO, 2019, p. 14-15),
nos tornando protagonistas de nossas histórias, que passam a ser de outras
pessoas quando compartilhadas em cena.

2
Espetáculo desenvolvido por Juliana Kersting na pesquisa de mestrado No te pongas flamenca:
corpo memória de uma atriz bailaora; orientação: Prof.ª Dr.ª Patricia Fagundes. Ficha Técnica:
Atuação e Concepção: Juliana Kersting; Dramaturgia: Juliana Kersting, com colaboração da equipe;
Direção Cênica: Larissa Sanguiné; Iluminação: Iassanã Martins; Operação de Som: Victória
Sanguiné; Captação, Criação e Mixagem de Sons: Marcelo Armani e Jimi Melo; Colaboração:
Patricia Fagundes.

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ENCENAÇÃO: as mulheres assumem lugares de liderança

A encenação como função específica na produção teatral é


acompanhada de nomes dos importantes encenadores da história, os
chamados “grandes homens de teatro”. No início do século XX, o encenador
tornou-se figura principal no teatro, sua função ganhou autoridade e status,
relacionando-se a um lugar de liderança. Hoje, século XXI, ainda que a
encenação continue ocupando espaços de poder, já não pode estar
dissociado das mulheres. “É necessário dessacralizar uma tendência redutora
e preconceituosa, imposta à artista, de que as funções de autoridade, técnica
e coordenação no teatro não são destinadas à mulher” (OLIVEIRA, 2018,
p. 160).
Em Porto Alegre, é instigante observar o expressivo número de
diretoras, incluindo as que já não mais o são – embora muito presentes na
nossa memória recente pela qualidade de seus trabalhos – e as que ainda
estão dirigindo peças teatrais. Em pesquisa realizada no blog da Secretaria
de Cultura de Porto Alegre, desde a primeira edição do Prêmio Açorianos, em
1977, até 2019, ano em que a pesquisa foi realizada, temos um período de 42
anos. Nesse tempo, 26 encenadores foram premiados na categoria Melhor
Direção, enquanto 16 mulheres foram vencedoras na mesma categoria: Irene
Brietzke (1978, 1980, 1984), Maria Helena Lopes (1987), Vanise Carneiro
(1998), Deborah Finocchiaro (2003), Jezebel de Carli (2005), Patricia
Fagundes (2006, 2011), Daniela Carmona (2007), Adriane Mottola (2008),
Inês Marocco (2009, 2018), Carlota Albuquerque (2014) e Liane Venturella
(2017). Além da premiação dessas diretoras, Adriane Mottola, Inês Marocco,
Jezebel de Carli e Patricia Fagundes foram mais de uma vez indicadas à
categoria. Consideramos pouco, se comparado aos 61% de encenadores
homens vencedores na categoria. Porém, em uma sociedade sexista, é
preciso destacar a importância de cada uma dessas encenadoras que fazem
parte do legado teatral da cidade de Porto Alegre. Além dessas encenadoras
que tiveram seus trabalhos reconhecidos com a premiação – entendida aqui
como uma das instâncias legitimadoras da qualidade do trabalho –, há outras

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
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diretoras em exercício na cidade, incluindo uma nova geração cuja produção


se destaca em Porto Alegre.

ILUMINAÇÃO: mulheres em rede

Por muito tempo, a iluminação foi considerada uma função masculina,


mais próxima de uma habilidade técnica que exige força e envolve certo
perigo, por se tratar de um trabalho com eletricidade que, supostamente,
apenas os homens podiam exercer. Ao fazer uma avaliação sobre a
participação das mulheres nos diversos setores do teatro, a historiadora e
pesquisadora Tania Brandão lembra que por volta dos anos de 1970, na
Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro
(FEFIERJ), “[…] as mulheres não podiam fazer as aulas práticas de
iluminação. A pequena cabine de luz, quase toda ocupada pela resistência de
sal, exigia a nudez quase total do operador e uma enorme força muscular para
as manobras” (BRANDÃO, 2021). A exclusão que marca diversos setores de
trabalho, outrora demarcados apenas pela experiência masculina, tem
passado por modificações significativas, inclusive no teatro. A professora e
pesquisadora Dodi Leal afirma que “a área da iluminação teatral na cena
brasileira, marcada pelo domínio masculino, passa a ser problematizada por
outros vieses a partir da presença das mulheres fazendo, pensando e
ensinando a luz” (LEAL, 2018, p. 16).
É sob essa perspectiva que atua o Mulheres na Luz, formando uma
rede de apoio entre um grupo de iluminadoras de todo o Brasil. Neste grupo,
do qual faço parte, nos comunicamos através do WhatsApp. Somos 164
iluminadoras com experiências distintas e disponíveis para trocar
conhecimento, divulgar trabalhos e cursos, fortalecendo e difundindo o
trabalho de mulheres iluminadoras no país.
Em Porto Alegre, atualmente somos poucas profissionais na
iluminação: Marga Ferreira, Nara Maia, Carol Zimmer, Fabiana Santos,
Luciana Tondo, Bruna Casali, Thaís Andrade e eu, Iassanã Martins. Como a
iluminação é uma profissão que se aprende na prática, que exige um lugar
adequado com material adequado, há poucos cursos disponíveis.

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Aprendemos a partir de uma oficina ou outra, acompanhando as artistas mais


experientes e também na prática de nossas próprias montagens.
Em minha primeira montagem, cheguei ao teatro bastante insegura, e
me deparei com dois técnicos (homens). Um deles teve sensibilidade e
paciência, compreendendo que estava trabalhando com uma iniciante; já o
outro foi o oposto, não atendia minhas escolhas e sempre que podia
desdenhava minhas decisões. Fui descobrindo que este segundo tipo de
tratamento era comum – e, diga-se de passagem, o são em quaisquer que
sejam os espaços de trabalho para onde se olhe –, portanto, em cada
experiência como iluminadora, fui construindo um modo mais incisivo de me
portar, pois compreendi que não se pode atribuir o tratamento recebido – me
ignorar, desdenhar – apenas à minha inexperiência, mas também ao fato de
ser mulher. Assim, a vivência como iluminadora, principalmente nos
momentos de preconceito e assédio velado de gentileza, me levaram a
perceber mais conscientemente relações de gênero no teatro.
Mesmo considerando o avanço e a inserção das mulheres na atuação,
encenação e na iluminação, a pesquisa, em andamento, pretende reconhecer
e dar publicidade aos processos das mulheres trabalhadoras dessas áreas,
contribuindo com a reflexão sobre as dinâmicas do modelo patriarcal e as
rupturas provocadas pelas mulheres nessas estruturas.
Para Margareth Rago (2000), as mudanças na esfera da produção de
conhecimento rompem com o modo social pré-definido de pensar a “mulher”
como sexo frágil, desatam os modelos hierárquicos de funcionamento da
ciência criando uma linguagem, dissolvendo o enquadramento conceitual
normativo, não só nas ciências, mas em diversos ambientes, sobretudo, nas
narrativas que se perpetuam no decurso da história e excluem as mulheres
no vestígio do tempo.

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Mulheres na atuação, encenação e iluminação: rupturas nas dinâmicas do modelo
patriarcal

Bibliografia

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Revistas Aspas | Vol. 11 | n.2 | 2021 122

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