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NASCIMENTO, Aires. A.

Livros de Horas na Corte de Avis: Revisão de Leituras e novos contributos, em busca de formas de piedade medieval
DOI: https://doi.org/10.21747/0873-1233/spi28v1 | VS 28 (2021), p. 235 - 263

LIVROS DE HORAS NA CORTE DE AVIS: REVISÃO DE


LEITURAS E NOVOS CONTRIBUTOS, EM BUSCA DE
FORMAS DE PIEDADE MEDIEVAL

AIRES A. NASCIMENTO
ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA
CENTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DE LISBOA
https://doi.org/10.21747/0873-1233/spi28v1
[email protected]

Em memória de
Gemma Avenoza(1959-2021)
na saudade de uma partida inesperada

RESUMO: Retomamos aqui o estudo de três Livros de Horas do século XV


de colecções portuguesas: o Livro de Orações de D. João I, o Livro de Horas de
D. Duarte, e o Livro de Horas de D. João II, este apenas recentemente revelado
a público. Atendemos a particularidades menos advertidas e detemo-nos em
contextos de integração cultural: a figura de Alfonso de Cartagena e suas relações
com D. Duarte é charneira e ponto limite para datar o Livro de Horas de D.
Duarte, mas nunca foi tomado em conta; atemo-nos também a pormenores nunca
atendidos no Livro de Orações de D. João I, que terá passado também pelas mãos
daquele Príncipe; acentuamos alguns traços particulares da vida de piedade do rei
D. João II a partir de traços revelados no Livro de Horas deste rei recentemente
dado a conhecimento público e sublinhamos qualidades dessa personalidade de
excepção daquele rei, a quem Isabel, a Católica chamou “o Homem” quando lhe
deram a notícia do seu falecimento. Dedicamos este estudo a Gemma Avenoza,
estudiosa que veio a Lisboa para frequentar as nossas lições de Codicologia na
Faculdade de Letras e se notabilizou em identificar e recuperar fragmentos de
manuscritos, integrando-os no seu contexto cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Livros de Horas; Leituras; Portugal; Século XV.

ABSTRACT: We take up here the study of three Books of Hours from the
15th century in Portuguese collections: the Prayer Book of D. João I, the Book of
Hours of D. Duarte, and the Book of Hours of D. João II, the latter only recently
revealed to the public. We look at less noted particularities and reflect on contexts
of cultural integration: the figure of Alfonso de Cartagena and his relations with
D. Duarte is the key and cut-off point for dating the case of D. Duarte’s Book of
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Hours, but never taken into account; we also look at details never examined in
João I’s Prayer Book which will have also passed through the hands of the prince;
we also stress some particular traits in the life of piety of King João II from traits
revealed in his Book of Hours, knowledge of which has recently been made public,
and we emphasize exceptional personal qualities of this king, called “the Man” by
Isabella the Catholic when they gave her the news of his passing. We dedicate this
study to Gemma Avenoza, a scholar who came to Lisbon to attend our classes in
Codicology at the Faculdade de Letras and who distinguished herself in identifying
and recovering manuscript fragments, integrating them in their cultural context.
KEYWORDS: Books of Hours; Readings; Portugal; XVth century.

0. Aprofundar leituras
Lemos superficialmente: a fisiologia da leitura assim o comprova, pois
habituámo-nos a percorrer apenas o terço superior dos caracteres, manuscritos ou
impressos1; tarde nos reconciliamos com o texto e mais tarde ainda com a totalidade
do documento, sobretudo quando ele é singular e único, como acontece com
qualquer manuscrito2. Há que ler, prevendo e prolongando o que só encontramos
em interiorização pessoal que integre o que faltou recolher das pontas soltas
que fomos levantando e escaparam. De facto, como se fosse num espectáculo,
habitualmente entramos a meio da acção e saímos antes do fim: apressados,
deixamos que a vida se adiante e se imponha: a atenção é oscilante ou intermitente,
dá lugar a interferências que nos obrigam a interromper a participação em acto
que devia ser exclusivo e intenso; para nos redimirmos, às vezes pedimos a outros
que nos informem sobre a parte a que não estivemos presentes, mas só mais tarde
nos convencemos a voltar à leitura para mergulharmos no texto. Revemo-nos em
Umberto Eco e com ele não temos pejo em declarar que há livros que não lemos
inteiramente, mesmo quando dizemos tê-los lido para entrarmos no coro de bem
comportados; a eles voltamos quando incentivados por outros: foi esclarecedor o
colóquio tido por U. Eco com Pierre Bayard, em confidências de fronteira sobre
“como falar de livros que nunca li”3.
1
Por alguma razão a escrita epigráfica manteve o uso da maiúscula e evitou a minúscula, que tende a ser currens
– corrente porque permite deslizar segundo o movimento da mão, que abrevia e simplifica ou até deixa supor os
traços da escrita: está comprovado que a letra maiúscula obriga o olhar e percorrer cada letra de alto a baixo para
a identificar, o que implica demora de leitura em triplicado.
2
PIC, Muriel – Constellation de la lettre. Le concept de lisibilité (Lesbarkeit) en France et en Allemagne. «Po&sie»,
vol. 137-138, no. 3-4 (2011), p. 2a50-265.
3
Cf. BAYARD, Pierre – Comment parler des livres que l’on n’a pas lus? Paris: Minuit, 2007; tomei conhecimento
do debate que teve com Umberto Eco na New York Public Library a 17 de Novembro de 2007; soube dele ao
ser reproduzido em Le Magazine Littéraire do mês de Junho seguinte e acabei por reconhecer que era importante
voltarmos à sabedoria do aforisma medieval que apostava na previsão do conhecimento como antecipação: “nihil
cognitum nisi praecognitum”; experimentei, depois, o que era imaginar o conteúdo de um livro e verifiquei no
final que havia zonas tanto mais saboreadas quanto as havíamos previsto e o outro / o autor as havia enunciado:
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Em retoma de leituras, frequentemente reconhecemos que há surpresas que


nos reconfortam e nos reconciliam: será assim em ciclos de leituras de textos que
pertencem à tradição, mas devemos admitir que nunca se olha para uma obra
de arte duas vezes do mesmo modo, pois o encontro com ela, quando sincero e
comprometido, é sempre de encanto e este é renovação pessoal4.
Assim nos aconteceu com alguns livros (manuscritos ou impressos) que
aceitáramos receber da mão de pessoas muito estimadas e por isso déramos por
adquirido que o seu juízo era definitivo e o que aprendêramos chegara para os
nossos gastos: arriscando, porém, a refazer o caminho de quem nos havia precedido,
recebemos em troca o que nunca havíamos suspeitado e devemos apresentar como
contributo pessoal para leitura colectiva; avançámos, às vezes, desprevenidos e
em percurso próprio. Se partimos em esforço, o estudo, que é acto de decisão e
tenacidade (porque studium), acabou por se revelar pleno de recompensas: seja ela
bíblica que garante voltar em alegria quem parte em lágrimas, porque conta com
Deus que põe os olhos no pobre e a ele garante a colheita (Ps. 126, 5). “Scrutamini
scripturas” (Iohan. 5, 39) é conselho bíblico: nunca está cumprido!

1. Leituras partilhadas
O estudo de exemplares dos Livros de Horas (LH) acumulados em colecções
portuguesas (arquivos e bibliotecas) mereceu, a seu tempo, a nossa atenção, mas
às vezes confiámos noutros, sem que eles tivessem que responder pela limitação do
que fomos apreendendo: de entre todos o mais atento foi Mário Martins, insigne
pelo saber e pela acutilância de juízo ou pela prudência de se rever em passos
bem medidos5; seguiu-se-lhe o empenho de investigadores de nova geração que,

sem pôr em dúvida a novidade do outro, reconheci que é útil antecipar aquilo para que se parte em busca da
novidade que nos surpreenda.
4
A experiência está feita com os textos da tradição bíblica, assumindo que é inesgotável a leitura dos textos sagrados
que aceita medir-se criativamente com as heranças do passado; a tensão criada no triângulo de um eu insaciado
em diálogo com outros que ousaram situar-se na mesma onda leva não raro a vibrações de consonância disforme
que não é necessariamente dissonante, mas complementar, mesmo quando passa pelo processo da tradução, pois
a dimensão histórica não se limita a repetir nem a dimensão filológica se fixa sobre o passado do texto. O tema
passou recentemente para a capa de livro de MENDONÇA, José Tolentino de – Leitura infinita. Lisboa: Assírio
& Alvim / Paulinas, 2014, mas estava dado, por exemplo, em BANON, David – La Lecture infinie: les voies de
l’interprétation midrachique. préfacé par Emmanuel Levinas. Paris: Seuil, 1987.
5
Sirva de exemplo o estudo de MARTINS, Mário – Guia Geral das Horas del-Rei D. Duarte. Lisboa: Brotéria,
1982: recolho-o com a dedicatória que recebi das mãos do seu autor, em 20.05.1982; procurou ele dar conta de
dados relativos a influências do LH em obras literárias e deduzir o uso e influência que estas “Horas para leigos”
tiveram em personalidades literatas como Gil Vicente. Aquele grande erudito dedicou particular estudo ao LH
do rei D. Duarte, mas não deixou de atender aos exemplares que se guardam nas nossas bibliotecas, dedicando
o seu estudo “à memória de minha mãe que também rezava as Horas de Nossa Senhora”. Quanto ao “itinerário
português dos Livros de Horas” que ocupa o cap. II, não falta referência ao “Livro de Horas feito por D. João I”
(que também para ele falha na estrutura do LH, mas se fica por “livro de piedade”, um libellus precum, um entre
outros) nem esquece as “Horas de Confissão de D. Pedro, o de Alfarrobeira”, cujo paradeiro se desconhece: desfaz
identidades e confusões entre Breviários e Livros de Horas em que caíram homens de cultura, como Reynaldo dos
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no fervor das descobertas, se dedicaram sobretudo à interpretação iconográfica:


não há que recear a agudez do olhar de iuniores, pois, a juízo de Quintiliano,
eles podem ser perspicaciores, contanto que, no fulgor do jogo de espelhos, a
perspicuitas mantenha a genuinidade do encontro com leituras intensas trazidas
da longa duração6.
Contudo, às vezes ocorrem contratempos de não pouca monta: o exame
material para a análise codicológica está sujeito a restrições bem-intencionadas que
criam condicionamentos e obrigam a hipóteses que não podem ser dispensadas.
Outras vezes, porém, é a rotina do déjà vu que nos tolhe… A vários participantes
de leitura convivial somos devedores de avanços representativos no conhecimento
de espécies, algumas delas esquecidas e outras pouco estudadas: a leitura é um acto
de partilha, em convívio – lente legere et perlegere7.
Cientes de também sermos chamado a leituras inteiras e responsáveis,
trazemos algumas reflexões que aqui oferecemos em memória de pessoa que se
afeiçoou ao nosso modo de trabalhar e pela qual ganhámos carinho nos breves dias
que connosco conviveu, em alegria sempre contagiante e na afabilidade irradiante,
como o olhar dela, Gemma Avenoza8. Ler acompanhado tem encanto renovado!

Santos, nem esquece referências a personalidades como Santa Isabel de Portugal (Crónica de D. Dinis), mas, com
argúcia e desenvoltura, desfaz equívocos de informação. Dona Filipa de Lencastre, que rezava o Saltério, seguindo
o costume de Salisbúria (como refere Fernão Lopes, Crónica de D. João I, tomo 2, p. 226, “às sextas-feiras”,
esconde-se numa designação de maior vulto; o Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo (Zurara, Crónica
da tomada de Ceuta, cap. 41), o Infante Santo (acompanhado por Fr. João Álvares, seu confessor) e a rainha Dona
Leonor são convocados e postos onde devem continuar; há outros casos referidos que vêm das Cantigas de Santa
Maria, por Afonso X (nº 55, 87) ou em memórias como as de D. João Estevéns, bispo do Porto em 1392; são
registados exemplares, segundo cotas de arquivo: ANTT, armário dos tratados, nº 9, CF, estante nº3, P7. Ao
elenco ali referido haverá que juntar alguns, como faremos mais adiante; seja, por exemplo: BPM Évora, cod.
CXXIX /2-10; BNP, Lisboa, FG, ms. 3069: Alc. 85, etc.); trata-se de elenco disperso na composição da poikilia
que se desdobra em ramalhete florido.
6
Certa vez, em tarde adiantada, recebi uma chamada telefónica de Mário Martins: não era frequente que ele usasse
desse expediente, mas notei de imediato que o ímpeto que punha na voz implicava denúncia; intimava-me ele a que
eu tomasse partido e denunciasse alguém: fora ele consultado sobre questão de manuscritos e quem o consultara
não entender o que o Mestre tinha sustentado, mas se propunha pôr a circular como se fosse ensinamento seu…
7
NASCIMENTO, Aires A. – Legere, perlegere: da singularidade epigráfica ao sentido do texto e do monumento.
«Sylloge epigraphica Barcinonensis: SEBarc» [em línha], nº. 8 (2010), pp. 11-27.
8
Com o passar dos anos, é-me difícil rever com nitidez qual foi o primeiro encontro que tive com Gemma:
possivelmente foi no I Encontro / Congresso da Asociación Hispánica de Literatura Medieval, em Santiago de
Compostela, ou ainda antes, nas nossas visitas a Santiago para discutir problemas de investigação; o encontro mais
marcante foi o do Seminário de Paleografia e Codicologia, organizado por Josep Trenchs, em Benassal-Castelò,
em 1990, em Seminário planeado por Manuel C. Díaz y Díaz, o qual, porém, devido a motivos de saúde, não
pôde comparecer, mas em que estivemos em convívio alargado com Gullielmo Cavalo, Léon Gilissen, Denis
Muzerelle e Carlo Ornato, entre outros. No final, Gemma veio ter comigo e pediu-me que a aceitasse a frequentar
o meu Seminário de Codicologia na Faculdade de Letras de Lisboa: depois de ler o que lhe indicara como base,
para completar a formação académica, propus-lhe eu que fizesse uma aplicação em estudo da Bíblia da Ajuda,
pois havia aspectos que me faltava resolver e tinha deixado em suspenso, porque exigiam leituras para que eu não
tinha tempo disponível e para ela me pareciam acessíveis por o texto estar em linguagem romance (castelhana e
catalã) que não me era familiar: não só aceitou com entusiasmo, mas não desistiu perante as questões que foram
surgindo; demorou dez anos, mas de cada vez que nos encontrávamos ia-me dando notícias, até que considerou
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2. Livros de Horas em horizontes medievais e tempos marcados


Em fontes portuguesas, o Livro de Horas (que é tipologicamente uma espécie
estruturalmente bem definida, mas nem sempre bem atendida) aparece-nos
mencionado pela primeira vez no testamento da rainha Dona Mafalda Sanches,
filha do rei D. Sancho I (+1256), 2º rei português, nos alvores da nacionalidade.
Menciona-se aí unum librum horarum Beate Marie coopertum de argento que
ela entrega a sua irmã Dona Urraca Sanches9; a anotação de encadernação de
prata remete-nos para carácter luxuoso (como pertencia a uma rainha), mas
não nos proporciona informação sobre a sua origem ou proveniência: fica-nos
a incerteza, sem que possamos alicerçá-la em hipótese de que fosse livro que,
na qualidade de rainha, já a acompanhasse quando se movimentava por León e
Castela ou Galiza, onde os livros corriam mais depressa que na parte ocidental
de onde ela partira: a posse do Livro de Horas podia ter vindo desses dias. Se o
foi, no testamento, deixou ela o seu exemplar a sua irmã que vivia no século com
vida familiar consolidada.
Sabemos que, nesses tempos ominosos, na expressão de vontades maiores,

resolvidos os intricados problemas que detectou e para cuja resolução consultou especialistas de várias disciplinas;
no final, brindou-me com um estudo a todos os títulos memorável, honrando-me com dedicatória tão simples
como generosa: AVENOSA VERA, Gemma, La Biblia de Ajuda y la Megil.lat Antiochus en romance, Madrid,
CSIC, 2001; Ead., Biblias Castellanas Medievales, San Millán de la Cogolla, Cilengua, 2011. O cólofon do ms
de Ajuda, 52-XIII-1, declara: “Esta Biblia fue del Rey dom Afomso que Deus aja e deola a Pero Bentez e Pero
Bentez a vendeo a Diogo Rodriguez, almoxarife da sisa judiega, e elle a vendeo a min, mestre Fernando, por seys
cruzados. E costou me de çulfar e emquadernar e iluminar a primera folha quattrocemtos reais etc.”. Tudo Gemma
esclareceu com competência. Se me não engano, a última conferência em que veio ao meu encontro, deslocando-
se de propósito para me acompanhar, foi quando tivemos ocasião de falar de manuscritos iluminados portugueses:
NASCIMENTO, Aires A. – Libros manuscritos de la Dinastía de Avís y de otros, en Portugal (siglo XV): de la devoción
a las Crónicas. In Seminario / Coloquio, organizado por Josefina Planas, Manuscrits Il.luminats: La tardor de l’Edat
Mitjana i les noves Llums del Renaixement, Lérida, 17-18 de noviembre de 2014. Teremos aqui oportunidade de
corrigir alguns deslises em que caímos por não termos ultrapassado análises de pormenor. A última vez que estive
com ela foi no Martinho da Arcada, lugar onde o poeta Fernando Pessoa gostava de se encontrar com os amigos
mais chegados; o reencontro que agora havemos de adiar terá lugar quando nos reunirmos todos à mesa do Pai
comum, Ele que, como cantou Dante e nós retomamos em ano centenário deste, é “luce etterna che sola in te sidi,
/ sola t’intendi, e da te intelletta / e intendente te ami e arridi!” (Par. XXXIII, 124-126)
9
A primeira referência vem-nos, efectivamente, do testamento de Dona Mafalda, filha de D. Sancho I, retirada
em Arouca, onde faleceu em 1256. Publicado diversas vezes com deficiências, teve leitura apurada em VELOSO,
Maria Teresa – A questão entre Afonso II e suas irmãs sobre a detenção de direitos senhoriais. «Revista Portuguesa de
História», 18 (1980), 197‑229, doc. 8, pp. 226‑228, e daí o tomou COELHO, Maria Helena da Cruz – Arouca:
uma terra, um mosteiro, uma santa. Arouca, 1989, doc. 19: “Item mando domne Orrace Sancii sorori mee… et
unum librum horarum Beate Marie coopertum de argento”. Para mais dados sobre a rainha Dona Mafalda, cf.
COELHO, Maria Helena da Cruz – O Mosteiro de Arouca - do século X ao século XIII. Coimbra: Universidade,
1977. Sobre Arouca e seus livros, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Livros e tradições hispânicas no mosteiro cisterciense
de Arouca”. In Escritos dedicados a José María Fernández Catón, Vol. II. León : Centro de Estudio e Investigación
«San Isidoro» e Archivo Histórico Diocesano, 2004, pp. 1041-1058 ; IDEM – Écouter la voix de l’Époux: les
stratégies de la spiritualité médiévale - l’intensification de lecture du Cantique des Cantiques (à propos de rubriques
d’un manuscrit cistercien portugais du XIII.e siècle)”. In FERRARI, Jean; GRÄTZEL, Stephan (ed.) – Spiritualität
in Europa des Mittelalters: 900 Jahre Hildegard von Bingen / L’Europe spirituelle au Moyen Âge: 900 ans de l’abbaye
de Cîteaux. St. Augustin : Verlag, 1998, pp. 53-64.
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contavam os gestos como prolongamento de afecto mantido com alguém


mediante objecto de apreço: confiá-lo a outrem era prolongar a vida a dois,
através do que parecia era instrumento sensível10. Interpretemos o gesto: para
o tempo, evitar que fosse colocado em bolsa de seda (o cendal11) e entregá-lo a
alguém significava que essa pessoa se constituía em testamenteira e prolongava
pelo tempo o que era testemunho de piedade. No caso concreto, tratava-se de
duas irmãs, uma a viver em comunidade monástica e outra a manter a sua vida
no século12; a comunidade monástica podia dispensar aquele livro, uma vez que
as monjas se serviam de livros corais (diferentes na estrutura e distribuídos por
momentos diversos13): entregue a pessoa secular, com ele significavam-se laços
que uniam para além do tempo, mas transferiam para tempo profano, em forma
abreviada, o que se celebrava por inteiro no espaço reservado do claustro.

3. “Impedimenta” ou “ornamenta”?

Faria parte do enxoval das rainhas o LH? Não temos quanto a isso
informação certa. Circularam, por exemplo, indicações relativas a um LH da
rainha Santa Isabel de Portugal a que os cronistas se referiam e houve até quem
o supusesse guardado em tesouro; quanto a essa pretensão, porém, logo Mário
Martins se pronunciou, alegando impossibilidade de isso se verificar, assumindo
que os dados disponíveis obrigavam a manter distâncias14: análise posterior e

10
Assim julgamos entender a análise de VAUCHEZ, André – La spiritualité du moyen âge Occidental (viii.e-xiii.e
siècle). Paris, 1994, pp. 7-8.
11
Não pareça que o termo é peregrino: “sendal / cendal ou sandal” era um tecido de seda ou outro tecido
muito fino, usado sobretudo em vestes rituais ou bandeiras; a palavra remete para o grego σινδών (sindōn), e
está também representada no antigo francês cendal e está em Bluteau, 1712-1728, vol. II, p. 236 e vol. VII, p.
577; a referência obrigatória era o gesto de José de Arimateia e de Nicodemos que tomaram o corpo de Jesus e o
depositaram num túmulo nunca utilizado, envolvendo-o num lençol de linho fino e precioso (Ioh. 19, 38-41).
Não é raro saber-se de um mesmo Livro de Horas guardado em família ao longo de várias gerações, tão apreciado
e acarinhado ele era, desde a infância, que por ele se aprendia a ler, até à idade mais adiantada, e a partir dele as
orações eram repetidas; ainda que não fossem inteiramente entendidas eram recurso de regresso.
12
Dona Urraca era filha bastarda de D. Sancho I e de Dona Maria Aires; casada com um poderoso senhor, Lourenço
Soares de Ribadouro, Dona Urraca Sanches foi importante legatária do mosteiro de Santo Tirso e do mosteiro
de Sobrado, na Galiza, razão pela qual era lembrada com o marido nos sufrágios do cabido de Santiago de
Compostela.
13
Por dificuldade de manuseamento por parte das monjas, o saltério de Lorvão, hoje no ANTT, foi desmembrado
da Bíblia latina, em tempos que não conseguimos determinar; propusemos, a seu tempo, que fosse reintegrado no
volume respectivo, mas a administração do ANTT assim não entendeu, mantendo a separação. Quanto ao uso de
um dos códices que chegou a Lorvão a partir de comunidade galega, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Osculetur
me osculo oris sui: uma leitura a várias vozes ou dramatização do Livro dos Cantares num manuscrito cisterciense de
Arouca. In Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, vol. I. Lisboa, 1991, pp. 49-56;
em revisão, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Écouter la voix de l’Époux: les stratégies de la spiritualité médiévale –
l’intensification de lecture du Cantique des Cantiques (à propos des rubriques d’un manuscrit cistercien portugais du
XIII.e siècle)”, in ob. cit., pp. 53-64.
14
MARTINS, Mário – Livros de horas. «Itinerarium», 1 (1955), pp. 406-423; IDEM – Um livro de horas da Rainha
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circunstanciada confirmou o seu juízo15: se havia que atender à Vida de Santa


Isabel onde se celebra a piedade da princesa que, em tenra idade, “liia mui bem
em latim e lingoagem” para atender a suas “horas”, havemos hoje de saber, por
análise directa de um pretenso testemunho, obrigamo-nos a reconhecer que o
códice apontado não pertence aos tempos da rainha16.
Também Fernão Lopes, Crónica de D. João I, II, 199, assinala que Nuno de
Santa Maria, o Condestável de Portugal, rezava diariamente pelo seu Livro de
Horas: em matéria de facto não podemos reportar-nos a qualquer testemunho
chegado até nós e o Condestável, depois de dar entrada como donato na vida
regular, certamente se ajustou à recitação coral dos carmelitas a quem confiara o
convento por ele fundado.
Admitamos, enfim, que ninguém gosta de andar de mãos desocupadas, mas
em momento derradeiro, que é o de as depor nas mãos de Deus, preferimos que
elas estejam a segurar naquilo que simboliza o que prende e segura…

4. Distinguir o que andou por várias mãos


Informação a escrutinar é a que diz respeito ao rei D. João I, que foi Mestre
da Ordem Militar de Avis / Calatrava, e teve entre mãos um Livro de orações que
tem andado confundido com Livro de Horas na própria Biblioteca Nacional de
Lisboa, onde ele se encontra (Iluminado 4).
Já noutra ocasião tivemos oportunidade de apontar a falta de pertinência na
designação17. Avancemos agora com algo mais que, sendo elemento mínimo,
nos havia escapado e recuperamos.
1) O Il, 4 da BNP não apresenta nome de proprietário nem revela oficina de
execução (scriptorium) nem ostenta data de elaboração: gostaríamos de suprir
esses dados, ainda que de forma aproximada.
2) Quanto à data do pequeno códice, adiantaremos que o texto é
documentalmente em português; ora, não parece possível discernir tempos de
uso da língua que nos permitam determinar datas: aliás, por ser em vulgar e
ser susceptível de actualizações, já Mário Martins suspeitou que o códice fosse
apógrafo (não original) e por isso preferiu supor que, sendo livro de família,
tenha permitido ajustamentos linguísticos quando se procedia a uma nova

Santa?. «Brotéria», 78 (1964), pp. 439-445 (= Estudos de cultura medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Verbo,1969).
15
Cf. CASORRÁN BERGES, Ester; LAFUENTE ROSALES, Carlos María; NAYA FRANCO, Carolina – El
Libro de Horas del II conde de Lemos en el Tesoro del Pilar, tradicionalmente conocido como de Santa Isabel de
Portugal”. «Ars & Renovatio», 5 (2017), pp. 3-39.
16
Cf. NASCIMENTO, Aires A. – Santa Isabel de Portugal – a menina de Aragão coroada rainha em terras
portuguesas. Lisboa: Colibri, 2019, p. 75, nota 40.
17
Já atrás mencionámos o Seminario / Coloquio, organizado por Josefina Planas, Manuscrits Il.luminats: La tardor
de l’Edat Mitjana…
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cópia, necessária para preservação do códice18.


3) Falantes são, no entanto, alguns dados do calendário com que abre o Il.
4: advertimos nele alguns nomes de santos inscritos na ladainha com apodos
claros de santidade: assim acontece com Santa Iria / Eyria, de Santarém19, e com
São Nuno, um e outro inscritos com o designativo específico: se o primeiro
caso se compreende por o culto estar no uso de Lisboa e não podemos atribuir-
lhe data precisa, o segundo caso leva-nos a uso específico dos Infantes de Avis,
especificamente de D. Duarte e seus irmãos maiores, que assim se referiam ao
“santo Conde”, ainda antes de sobre isso haver decisão canónica20.
4) Ao repararmos nesses dados, consideramos que eles nos situam em
fronteira cronológica: sabemos que Nuno de Santa Maria faleceu em 1 de Abril
de 1431 e que, um ano depois, D. Duarte, que estava associado ao trono, deu
instruções a Mestre Francisco sobre o modo como havia de pregar acerca das
virtudes do Condestável; se bem interpretamos, significa isso que foi também o
Príncipe quem se ocupou de incluir o designativo de culto no calendário. Essa
fronteira dá-nos azo a colocar o nosso Livro em torno de 1431-1432.
5) Seja apógrafo, como considerou Mário Martins, o manuscrito Il. 4,
não perde a qualidade de testemunho: D. Duarte tentou depois desencadear
o processo de canonização oficial de S. Nuno em Roma, através de D. Gomes
Eanes, abade de Florença, que tinha por missão acompanhar as questões

18
MARTINS, Mário – Ob. cit., pp. 40 ss., considera que se “trata de um apógrafo do final de quatrocentos (ou
mesmo de dos começos de quinhentos”: se os elementos de língua conduzem a isso, havemos de reconhecer que,
quanto à inserção do nome dos santos não canonizados, vêm de trás e, pelos dados que já aduzimos, quanto a
S. Nuno e Santa Iria, eles são anteriores e sobretudo quanto ao primeiro nos reporta aos Infantes de Avis; seja
apógrafo, mas isso só pode demonstrar continuidade num percurso que não está identificado.
19
Sobre Santa Iria, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Santa Iria: de virgem a mártir – memória fundante do nome
de Santarém. Santarém: Centro de Investigação Prof. J. Veríssimo Serrão, 2017; IDEM – Lenda de Santa Iria,
de virgen a mártir (a dificuldade de retomar os tempos que se atrasam). In RUIZ ARZALLUZ, Iñigo et al. (ed.) –
Estudios de Filología e Historia en Honor del Profesor Vitalino Valcácer. Vitoria: Publicaciones Universitarias del País
Vasco, 2014, vol. II, pp. 751-760.
20
Remetemos para monografia que dedicámos a essa figura: cf. NASCIMENTO, Aires A. – Nuno de Santa Maria.
Fragmentos de Memória Persistente. Lisboa: ARM, 2010. Resumindo: Nuno Álvares Pereira, herói das batalhas da
independência portuguesa, em 1385, faleceu em 1 de Abril de 1431; no primeiro aniversário da morte, é o Infante
D. Duarte quem entrega ao pregador franciscano, Mestre Francisco, o esquema detalhado do elogio a desenvolver,
exaltando “a avondança de virtudes que Deus lhe [a Nun’Álvares] outorgou”, e por isso “assim é de concluir que
Nosso Senhor Deus o coroou de coroa d’honra em esta via e segundo seus feitos e sua fim assim cremos que o é
e sempre o será na outra”; estava-se em Abril de 1432; cinco anos mais tarde, a 21 de Julho de 1437, D. Duarte,
então na sua qualidade de rei, procura saber junto do Abade beneditino de Florença, Dom Gomes, como vai o
processo de canonização do “do santo Condestabre per que se tire inquiriçom sobr’esto costumada”; nessa mesma
altura anuncia o rei o envio de uma oração composta em latim por seu irmão o Infante D. Pedro, em forma de
responsório latino. Também Dona Isabel, duquesa da Borgonha, tomou a iniciativa de o invocar dessa maneira,
ao inserir o seu nome num calendário organizado na Flandres para um Breviário, que por alguma razão tem sido
denominado “carmelitano”, mas que nos parece ter passado por Lisboa antes de chegar a Parma, levado por uma
princesa portuguesa, para nós Dona Maria de Portugal, descendente de Nun’Álvares Pereira, que casou com o
Duque de Parma, Alessandro Farnese.
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portuguesas junto da Santa Sé – sem sucesso, porém, neste caso21.


6) Deve ser este o livro que, atribuído a D. João I, deu entrada na biblioteca
de D. Manuel I, onde está registado: “It. Outro livro de rezar de limgoajem
emlumynado e esprito (sc. escrito) em purgaminho, que foy delRey dom
Joham o primeiro, cuberto de veludo cremesim com huũs porbeens com
quatro charneiras de prata dourada sem brochas”22. A julgarmos pelo exemplar
conservado, há elementos primitivos que se perderam: entretanto, há dúvidas
quanto à genuinidade de alguns elementos primitivos. Da nossa parte,
julgamos que a data a atribuir deve ser colocada em tempos em que se assumia
a qualificação Nuno Álvares como santo, o que acontecia em dias em que D.
Duarte era ainda príncipe.
7) De D. João I escreve Fernão Lopes, Crónica de D. João I, t. 2, p. 2: “sendo
muito devoto da priçiosa Virgem em que avia symgular e estremada devação,
elle tornou em seu louvor as suas devotas oras em lingoajem, apropriamdo
as palavras dellas à Virgem Maria e ao seu bemto Filho, de guisa que muitos
tomarão devação de as rezar que antes delas não avião renembranças”.
8) O facto de haver um Livro de orações do rei D. João I não impedia
que o rei tivesse outro Livro de Horas de padrão normal, por sintonia e por
proximidade ou sobretudo por acompanhamento de grupos de piedade que
adoptavam modelo comum de devoção23.
9) Embora Fernão Lopes diga que o rei D. João I “pôs em linguagem” um
livro de horas da Virgem (CDJ, ed. 1990, II, 2), nada obriga a considerar que

21
Outros dados remetem para personalidade conhecedora dos cultos da igreja local: é o caso da trasladação de
S. Vicente, colocada a 15 de Setembro, em Lisboa, e a festa de Santa Eyria em Santarém, precedida de jejum
obrigatório, em 20 de Outubro, ou também a festa de S. Crispim, a 24, em Lisboa, a comemorar a tomada da
cidade aos mouros em 1143; tem de ser assumidos como formas e usos locais outras referências a tradições de 2 de
Novembro, na celebração dos Fiéis Defuntos, com o costume de “pedir pão por Deus”.
22
Comenta Sousa Viterbo, loc. cit.: “Talvez o mesmo que vem mencionado na livraria de D. Duarte sob o seguinte
título Livro de rezar em que está a confissão geral: fazemos esta atribuição de um modo dubitativo, porque podia ser
do próprio D. Duarte sem ter pertencido ao pae”. Razão tinha aquele erudito e ilustre académico para exprimir
dúvidas; pela nossa parte, emitimos a hipótese de que quem caracteriza as invocações dos dois santos na ladainha
terá sido D. Duarte.
23
Haja dúvidas quanto ao trabalho realizado pelo rei (tradução ou adaptação por apropriação), o seu exemplo,
em acompanhamento de sua esposa, Dona Filipa, deve ter contagiado outros, sobretudo seus filhos: assim já
interpretava Mário Martins, que não deixa de trazer à colação a lembrança de D. Duarte relativamente a seu pai,
que “fez huũ livro de oras de santa Maria e salmos certos por os finados” (Leal Conselheiro, pp. 109-110). Quanto
ao Infante D. Pedro, a quem se atribuem umas “oras da confissom” por ele compostas, admite-se que dele seriam
algumas das que o seu filho, o Condestável D. Pedro, rei da Catalunha, regista nos seus livros “ab las quals lo dit
Senyor fahía lo offici” que na encadernação tinham as armas portuguesas. Quanto ao Infante D. Henrique, dele
escreve Gomes Eanes de Zurara, Crónica da tomada de Ceuta: “E ouvimos depois a Luis de Sousa, claveiro d’ordem
de Christo e seu camareiro moor e filho de Gonçallo Roiz de Sousa que, quando o dito Iffante [se] finou, lhe tirara
o dito lenho da Cruz e o dera a el-Rey em Evora com o sinete e o seu livro de rrezar” (o rei era D. Afonso V).
Quanto ao Infante D. Fernando, o cronista refere a recitação diária do ofício divino completo, segundo o que era
prática dos sacerdotes, incluindo as matinas: cf. ÁLVARES, João – Trautado da vida e feitos do muito virtuoso S.or
Ifante D. Fernando. Ed., introd. e notas de Adelino de Almeida Calado. Coimbra, Universidade, 1960.
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seja o Il. 4, pois é livro de devoção e não tem estrutura de Livro de Horas: aliás,
segundo refere o cronista, a rainha Dona Filipa rezava as horas (Ofício) segundo
o costume de Salisbúria e tão cumpridora era que, quando não o podia fazer,
ela própria procurava que à Sexta-feira alguém o fizesse por ela (ib., p. 226);
admitimos que o seu exemplo terá levado o marido a imitá-la, acompanhando-
se mutuamente.
10) Enfim, fosse por rotina fosse por convicção, houve entre nós quem
procurasse o LH para ser instrumento de piedade e devoção; se era procurado,
haveria que indagar as razões da procura, tanto mais que o LH só era acessível a
algumas bolsas; hoje consideramos os exemplares que ficaram como estrelas do
nosso céu: interrogamos esses códices como expressão de piedade e de cultura24.
11) No entanto, como já advertimos, a rigor, o Il. 4 não é um Livro de
Horas propriamente dito; na realidade trata-se de um livro de orações: começa
pela Missa de Santa Maria e segue por orações em português para a missa e para
outras ocasiões, em honra do Anjo da Guarda, em honra das Dores de Maria,
etc., umas dispersas e outras associadas, umas compostas de versículos de salmos
e de antífonas, outras individualmente dirigidas à Virgem Maria e a vários santos.
Livro de orações devotas não tem a estrutura do LH nem tinha de obedecer aos
requisitos dele; quanto ao calendário, podia admitir invocações fora dos “usos”
aprovados; a forma de apresentação mantém a forma convencional, mas é mais
simples e menos profissional a desse Livro de orações, quanto à delimitação
do texto, ao recorte da letrina inicial, às regras de empaginação, ao modo de
constituir versículos e indicar a resposta a eles25.

5. Momentos de angústia de D. Duarte datam o LH que tem as suas


armas
Ao estudo do Livro de Horas de D. Duarte se dedicou Mário Martins,
com a sageza de erudito que, mesmo sem formação codicológica estrita

24
As motivações não são evidentes embora possam ser pressentidas pois eram mais supostas que declaradas. Apenas
para compor quadro recortamos algumas referências a pessoas afeiçoadas a Livros de Horas em documentação
medieval: é o caso de Afonso Eanes, em 1426, ou de João Vasques, que acompanhou Dona Isabel de Avis à
Flandres, 1428. Quanto ao primeiro, sabemos que Afonso Eanes era contador régio: em carta a D. Gomes Eanes,
abade de Florença, preocupa-se como os custos de execução das iluminuras no seu Livro de Horas e revela o
desejo de incluir nele um santoral, mas, depois, de terminar o trabalho de iluminuras, prescinde do trabalho de
encadernação do livro: está-se em 1426-11-22 (cf. Monumenta Henricina, Vol. III, doc. 83, pp.169-171). João
Vasques, do Bombarral, por lugar de origem, serviu D. Duarte e acompanhou a princesa Dona Isabel à Flandres,
para o casamento com o Duque da Borgonha.
25
Não nos detemos a acentuar contrastes: cada um, a seu modo, é livro de devoção, um menos formal e outro
mais estruturado segundo um padrão aceite, ainda que não imutável e com sequência obrigatória; um, livre na
progressão dos elementos acumulados, outro integrado em padrão comum. Entenda que o Livro de Horas era
um instrumento difundido entre os leigos como meio de seguir de perto o Ofício celebrado nos claustros, onde
monges e cónegos entoavam os louvores divinos.
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(porque é anterior a ela), sabia entender o que


observava26: esquadrinhou as mais diversas
orações que o compõem e só lhe terá escapado
a situação concreta que enquadraria o livro27.
Outros desenvolveram sobretudo perspectivas
iconográficas28. Pretendemos aqui regressar à
lição retirada dos textos para os entendermos
na situação a que se reportavam29. De base
comprovada deduz-se que o proprietário
primitivo foi D. Duarte, ainda Infante. Falantes
são dois dados imediatamente patentes: 1) a inicial D (eus), capital habitada
com o escudo de Avis e com o lambel ou banco de pinchar de príncipe; 2) a
declaração, em baixo do fólio, de que o livro é illustrissimi Principis Eduardi
Joannis Portugalie et Algarbii regis serenissimi Cepteque domini filii primogeniti30.

26
MARTINS, Mário – Livros de horas. Art. cit., pp. 406-423; IDEM – Um livro de horas da Rainha Santa?. Art.
cit., pp. 439-445: a pergunta é legítima e o ilustre conhecedor de cultura medieval conclui pela negativa: IDEM
– Estudos de cultura medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1969.
27
São múltiplos os contributos que devemos a Mário Martins: não se esquece das “Horas de Confissão de D.
Pedro, o de Alfarrobeira”, desfaz identidades e confusões entre Breviários e Livros de Horas em que caíram homens
de cultura, como Reynaldo dos Santos; tem em conta casos como os de Santa Isabel de Portugal (Crónica de D.
Dinis), relativamente a quem desfaz equívocos de informação; aponta que Dona Filipa de Lencastre rezava o
Saltério, segundo o costume de Salisbúria (como refere Fernão Lopes, Crónica de D. João I, tomo 2, p. 226, “às
sextas-feiras”), nem do Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta,
cap. 41), não deixa de apontar o Infante Santo (acompanhado por Fr. João Álvares, seu confessor) ou a rainha
Dona Leonor; lembra também outros casos como o que recolhe das Cantigas de Santa Maria por Afonso X (nº 55,
87); traz a juízo memórias como a de D. João Estevéns, bispo do Porto, em 1392; percorre outros casos segundo
cotas de arquivo: ANTT, armário dos tratados, nº 9, CF, estante nº3, P7; Évora, BPM, cod. CXXIX /2-10; BNP,
Lisboa, FG, ms. 3069: Alc. 85.
28
Entre os nomes mais sonantes são de citar Reynaldo dos Santos, E. Panofsky, Maurits Smeyers, referidos por
LEMOS, Ana – Um novo olhar sobre o Livro de Horas de D. Duarte. In BARREIRA, Catarina Fernandes; SEIXAS,
Miguel Metelo de (ed.) – D. Duarte e a sua época: arte, cultura, poder e espiritualidade. Lisboa: Univ. Nova, IEM
– CLEGH, 2014, pp. 211-240; esta investigadora, aliás, condensa e ajusta as reflexões que recolhe, sem analisar
por conta própria.
29
No caso concreto do Livro de Horas de D. Duarte, por certo, o estado de conservação do códice exige cuidados,
mas tem sido maior o respeito por uma “relíquia” recebida e falta identificar o estado primitivo e responder por
uma análise consiste de dados; efectivamente, os fólios foram materialmente marcados com números de rotulador
e com carimbos de arquivo, sem previamente garantir a idoneidade da sequência codicológica. Pela nossa parte,
não ousámos contrariar o que encontrámos e não tivemos ensejo para constituir um “mono” que nos permitisse
simular a ordenação primitiva, como seria de regra, perante uma encadernação fragilizada. Aceite-se agora o
que acentuamos quanto a intervenção que consideramos devida a D. Duarte, legítimo proprietário. Porém, não
se tome isso como autógrafo o resultado que admiramos, pois existem indicações de que ele, D. Duarte, tinha
escrivães ao seu serviço, como era Vicente Domingues, vassalo que foi depois de el-rei que D. Afonso V e este
aposentou a 25 de Janeiro de 1446 (cf. VITERBO, Sousa – A livraria real, especialmente no reinado de D. Manuel
I”. In Mem. Acad. Sciências, 2ª clas., tom. 9, fasc. 1) e como era João Gonçalves, escrivão da puridade do mesmo
D. Duarte, que escreveu parte da Vita Christi, que depois passou para o scriptorium de Alcobaça, levado por Dom
Estêvão de Aguiar, em tempo do governo do Infante D. Pedro, a quem continuou a servir.
30
Este registo acompanha no fundo do fólio o escudo do príncipe, que está dentro da letrina inicial: não se leia,
porém, o genitivo de posse como dativo de oferta, pois seria trair os dados patentes.
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Ao encontro desses dados têm-se repetido hipóteses que importa verificar:


1) partindo da origem flamenga de alguns dados, acentuou-se que o Livro
teria sido oferecido por Dona Isabel de Avis (irmã de D. Duarte), depois de ter
chegado à Flandres, por casamento com Filipe o Bom, em 1429;
2) em alternativa, sugeriu-se que o LH teria chegado em data anterior,
como oferta do próprio Duque da Borgonha, em 1428, quando enviou os seus
embaixadores a contratar casamento com aquela princesa;
3) em contraponto, na tentativa de evitar factos menos coerentes, imaginou-
se que teria sido o Infante D. Pedro (o das Sete partidas) quem, tendo andado
pelo estrangeiro, no ano em que regressava a Lisboa para tomar parte nas festas
do casamento do irmão, D. Duarte, teria tomado a iniciativa de se adiantar e
oferecer-lhe o LH31.
A multiplicação das hipóteses comprova a insegurança de qualquer uma
delas: mantém-se apenas o facto de que D. Duarte era ainda príncipe quando
era já possuidor do LH. Há que estreitar o tempo e sobretudo encontrar no
próprio livro disposições que nos aproximem dos factos.
1) Quanto à hipótese de ser o Infante D. Pedro (ausente do reino, por três
anos, desde 142432) quem teria oferecido o exemplar em 1427, há que contrapor
várias circunstâncias: se isso tivesse acontecido, esperaríamos que houvesse
declaração do gesto em momento tão solene como o do casamento do irmão;
tinha D. Pedro relações directas com o irmão, como depreendemos pela carta
de Bruges (aliás “Carta que o Jfante dom Pedro emujou a elrey de Bruxas”)33,
a expender reflexões acerca da vida intelectual e cultural que seu irmão devia
programar já que partilhava com o pai responsabilidade de governação; ora,
nada consta que D. Pedro tivesse feito reflexões bibliográficas; se do elenco
da biblioteca de D. Duarte constam livros que têm sido postos na conta do

31
Temos reticências a levantar às propostas: só a análise deveria demonstrar ou infirmar traços de solidariedade
material ou escrita, convergentes ou divergentes num todo bem definido. Mais adiante, analisaremos as orações
que D. Duarte dirige a S. Sebastião e a S. Jorge: respeite-se, porém, a formalidade do texto e não se ajuste o latim
a concepção moderna. Algumas reservas nos merecem as considerações feitas por CUSTÓDIO, Delmira M. R.
M. S. Espada – Relações artísticas entre Portugal e Flandres através dos Livros de Horas conservados em instituições
portuguesas. Lisboa, Universidade Nova, 2017. Tese de Doutoramento. Seguidamente, apontaremos outros dados
de situação.
32
A ausência para estrangeiro por parte do Infante D. Pedro sempre foi um enigma para historiadores e usada
como deriva fácil para fantasias novelescas; que tivesse sido em expiação por um homicídio de um miles deixa
cair sobre ele uma mancha que não tem sido comentada ou se tem evitado fazer. Ora, não há que esconder o
que está numa reacção à passagem do príncipe por corte estrangeira; cf. RATISBONENSIS, Andreas – Diarium
Sexennale. Vol. I, p. 27, ed. A. F. Oefele, in Rerum Boicarum Scriptores, Augustae Vindelicorum, 1763: “Dicebatur,
quod dictus Petrus filius Regis Portugalie quendam militem occiderit. Ob hoc pater suus volens in eum proferre
sentenciam intercessione procerum fuit liberatus et tali pene subiectus, quod tribus annis terras alienas peragraret,
quibus transactis in terram propriam posset redire”.
33
“Carta que o Jfante dom pedro emujou a el rey de Bruxas”. In Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Livro da
Cartuxa (ed. J. Alves Dias). Lisboa: Estampa, 1982, pp. 27-39.
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irmão, por parecer fácil encontrar explicação para a recolha por ele, apenas ficar
despertos para outra hipótese34.
2) Menos consta ainda relativamente ao relacionamento dos embaixadores
com D. Duarte quando vêm tratar do casamento do Duque da Borgonha com
Dona Isabel de Avis35; em concreto, não parece que as circunstâncias fossem
adequadas para isso: efectivamente, os embaixadores, que chegaram a Lisboa,
foram encaminhados para Avis, onde o rei se refugiara por motivo de peste
e onde esperava a noiva de D. Duarte, filha do rei de Aragão, Dona Leonor.
Segundo consta, esta princesa de Aragão tinha estado nas intenções directas
de Filipe da Borgonha para casamento, mas, segundo se pode ler em relato
contemporâneo, o atraso dos embaixadores do Duque tinham levado o rei de
Aragão, Alfonso V, a decidir o casamento com o Príncipe português: disso o rei
pede desculpa ao Duque da Borgonha, alegando atraso dos seus embaixadores
e impaciência da noiva36; nessas circunstâncias, havendo informação do que se
está a passar, não era de admitir que houvesse oferta de livro em momento em
que o Duque da Borgonha mandava pedir o retrato de Dona Isabel de Avis para
tratar do pedido de casamento: a princesa, obviamente, devia ser pedida ao pai e
não ao irmão (que estava a receber a mão da princesa de Aragão)37.
34
A irmos pela intermediação de D. Pedro, esperaríamos que ele se tivesse interessado por LH em circunstâncias
como as que se documentam para outros seus acompanhantes quando passam por Florença, como aconteceu com
Afonso Eanes, referido atrás. Quanto a exemplares de livros que fizeram parte da biblioteca de D. Duarte, não há
dados que comprovem terem alguns pertencido ao Infante D. Pedro antes de passarem para o irmão.
35
O casamento de D. Duarte tinha ocorrido antes do de Dona Isabel, como era previsível para o primogénito
real: cf. “Contrato de casamento do rei D. Duarte, sendo infante, com a Infanta D. Leonor de Aragão, aprovado,
ratificado e confirmado pelo rei D. João I. 1428-11-04 / 1428-12-02”: Lisboa, ANTT, Gav. 17, mç. 7, n.º 19.
36
Cf. Monumenta Henricina, vol. 3, doc. 81, pp.164-165: “Preuijs vestris ambassiatoribus, pro longa mora
detentis, accrescente cothidie inclite infantisse, nostre germane dilectissime, etate jllamque iam maritali iugo
porrigi exposcente, cum illustri principe Odoardo, primogenito et futuro rege regni Portugalie, de ea paucis
antehac diebus coniugium tractauimus atque fecimus, quod huiusmodi contextum vestre illustri magnificentie
notum deducimus, vt exinde sitis plenarie aduisatus”.
37
O rei português D. João I correspondia-se com o duque da Borgonha: conhece-se, aliás, um presente de quatro
cavalos enviados ao duque por D. João I, em 1423 (desde que o duque ficou viúvo da segunda esposa, também
o rei português se interessou por saber quem viria a ser a sua pretendida e é nesse âmbito que passa a entrar em
consideração a princesa portuguesa, Dona Isabel). Os embaixadores de Filipe da Borgonha chegaram antes do
Natal de 1428, quando o rei D. João I se encontrava em Extremoz a fim de esperar Dona Leonor de Aragão que
vinha celebrar casamento com D. Duarte; os flamengos, chegados a Lisboa, foram encaminhados para o Alentejo,
trazendo com eles o pintor Jan van Eyck, encarregado de pintar o retrato de Isabel; foram recebidos no castelo
de Avis, em 1428; para executar o retrato, o pintor se demorou nove meses; o casamento de Dona Isabel de Avis
/ Portugal foi decidido, após a aceitação do Duque borgonhês e foi realizado por procuração em Lisboa, a 29 de
Julho de 1429; a noiva partiu para Bruges (Écluse), onde chegou a 6 de Dezembro: o casamento foi ratificado a
10 de Janeiro de 1430. Conclui-se, pois, que o casamento de D. Isabel é posterior ao de D. Duarte (cujo contrato
de casamento tem a data de 16-2-1428, mas veio a ser realizado em vésperas de Natal anterior). Revendo os factos
importa situar os acontecimentos: 1) à hora da morte, Dona Filipa de Lencastre, ao ser-lhe recordado por Beatriz
Gonçalves de Moura, sua aia, que esta tinha uma filha e devia ser encomendada ao herdeiro, ela lhe respondeu que
o irmão sabia assumir as responsabilidades perante a sua irmã Isabel. 2) A recomendação de Dona Filipa quanto
ao casamento atrasou-se: o duque da Borgonha apareceu tarde, pois andava perdido em aventuras (nada menos
que 24 amantes conhecidas e 3 casamentos, incluindo o de Isabel de Avis) e procurou uma esposa em terras mais
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3) A supor que a oferta tivesse passado pelas mãos de Dona Isabel de


Lencastre, as relações entre irmãos situá-los-iam a nível familiar e permitiriam
a cordialidade de quem encontrara na Flandres algo que à princesa despertara
atenção e considerara oferta que agradaria ao irmão. No entanto, seria estranho
que nada estivesse declarado a esse respeito. Facto é que vem de antes a posse do
LH por parte de D. Duarte. Examinemos os dados e detenhamo-nos sobretudo
em algumas circunstâncias que retiramos do exame das orações:
1) Há elementos que se relacionam com o próprio D. Duarte: assim, a
referência a Santo Eduardo que é o patronímico do Príncipe38; assim também
os sufrágios por alma dos pais: no entanto, quanto a estes, há que situar a morte
da mãe, Dona Filipa de Lencastre, que é de 1415, enquanto a morte do pai,
D. João I, é de 1433; neste distanciamento precisamos de elementos mais
específicos que delimitem tempo aceitável; também não parece pertinente a
estampa de Santa Catarina (fl.14v), que costuma relacionar-se com o baptizado
da Infanta, filha de D. Duarte: trata-se de elemento tardio que é susceptível até
de ser interpretado como devido a uso da própria princesa, que eventualmente
se tivesse servido do LH deixado pelo pai39.
Circunstâncias mais concretas havemos de deduzir da leitura de algumas
preces que consta do LH.
2) Tomemos a oração dirigida a S. Sebastião, pois se destina a pedir protecção
contra “fome, peste, doença, granizo, raiva, tempestade, enfermidade de todo o
corpo e da alma”40: motivação encontramo-la pelo menos quanto à situação de
peste, pois sabemos que o Infante foi constrangido a tomar medidas contra a

próximas, incluindo o reino de Aragão, mas sem sucesso. 3) O príncipe herdeiro, D. Duarte, jura pela memória
da mãe que respeitará os direitos da irmã, mas não a forçou a escolhas. 4) O rei D. João I, por motivos de peste,
deslocara-se para Avis e para aí se dirigiram os embaixadores a entabular negociações e a receber a promessa de
aceitação de desponsórios em Estremoz. 5) O quadro com o retrato, que se perdeu e hoje se conhece apenas por
cópia, tinha a acompanhá-lo a inscrição, em francês: “L’INFANTE DAME ISABIEL – C’est la pourtraiture qui fu
envoiié à Ph[ilipp]e duc de bourgoingne et de brabant de dame Ysabel fille de Roy Jehan de portugal et d’algarbe
seigneur de Septe (Ceuta) par luy conquise qui fu depuis fem[m]e et espeuse du desus dit duc ph[ilipp]e”.
38
No LH de D. Duarte: Comemoração de Santa Cruz e de Santo Eduardo (fl.1); Oração a São Sebastião e Oração
a São Jorge (fl.1v); Sufrágios por alma do pai e da mãe de D. Duarte (fl.50v). Quanto a Santo Eduardo, tenha-se
em conta o texto de Mathew Paris (m. 1259), La Estoire de Seint Aedward le Rei, redigido em anglo-normando (A
Vida do Rei Santo Eduardo, ms Cambridge, BU): a S.to Eduardo dedicou algumas orações: cf. GOUTTEBROZE,
Jean-Guy – Structure et sens des textes de prières contenus dans la Estoire de seint Aedward le rei. In La prière au Moyen
Âge. Presses Universitaires de Provence, 1981, pp. 299-314.
39
A Infanta Dona Catarina, filha de D. Duarte e de sua mulher, Dona Leonor de Aragão, nasceu em Lisboa a
25 / 26 de Novembro de 1436 e faleceu na mesma cidade a 17 de Junho de 1463; é plausível a hipótese de a
estampa de Santa Catarina ter sido inserida no Livro de Horas no Livro de Horas de seu pai, à distância de dois
anos da morte do rei. Quando faltou o pai, cuidou da sua edução o tio, D. Pedro e este entregou-a aos cuidados
dos arcebispos de Lisboa, D. Afonso Nogueira, primeiro, e D. Jorge da Costa, depois. Quanto à estampa, é de
perguntar se a inclusão da iluminura tem marcas falantes: também nisto será necessária análise material da inclusão
dessa estampa, solidariedade material e ajustamento de situação.
40
ANTT, CF 140 / liv. 65: “fame, peste, morbo, grandula, rabie, tempestate, infirmitate tocius corporis et anime”.
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passividade de outros em momentos nos quais a cidade de Lisboa se defrontou


justamente com a calamidade da peste41.
3) Mais marcada, porém, é a oração dirigida a S. Jorge: tal é a veemência que
D. Duarte colocou nas suas palavras para referir uma situação humana com que
se defrontou que a havemos de tomar como determinante e decisiva. Atenda-
se ao texto, que vertemos para português, na sequência de Mário Martins,
mas por ele não integrada em contexto de origem; escapou à sua análise o
reconhecimento das circunstâncias que circunscrevem melhor o estado de alma
do Príncipe: a ele advertimos nós, pela primeira vez, porque alertados por outros
factores que envolvem a presença de Alfonso de Cartagena na embaixada que
veio negociar o tratado de paz.
Rezava o Príncipe:

Cavaleiro glorioso de Cristo,


louvor, esperança, patrono de Portugal:
dobra os corações da gente de cerviz dura,
quando contrários;
faz que ao discordarem sejam afáveis,
que se prestem à concórdia
e não entre em clamor todo um povo,
que foi comprado pelo sangue de Cristo42.

Examinemos o que podemos reconhecer como dados de situação, pois o


patrono de Portugal é invocado contra uma ofensa que o príncipe deve remover
e para a qual invoca concretamente a protecção celestial:
a) Os termos devem reportar-nos seguramente ao momento em que D.
Duarte se vê confrontado com negociadores castelhanos que, tendo vindo para

41
Conhecem-se pelo menos dois documentos de Maio e Junho, de ano indeterminado, em que o Infante D.
Duarte, associado ao governo de seu pai desde 1421, determina que seja observado um período de quarentena
ao largo de Lisboa por navios suspeitos de trazerem tripulantes empestados e censura o concelho de Lisboa por
ter permitido que um navio inglês aportasse com tripulantes atingidos pela doença que originaram um surto de
peste na cidade e propõe medidas sanitárias para a combater: AML-AH, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, doc.
331 (data incerta: 1421-1433, Maio, 3, Santarém). Outro tanto determina em Julho, 10, Santarém: /CMLSB/
ADMG-E/09/333 ARQUIVO HISTÓRICO, Livro dos Pregos, doc. 333. O Príncipe devia, aliás, lembrar que sua
mãe, a rainha Dona Filipa de Lencastre, falecera vítima de peste, em 1415, e que seu pai. D. João I, prestes a partir
para a viagem a Ceuta, estava fora de Lisboa, por motivo de peste na cidade, e por essa mesma razão os Infantes D.
João e D. Fernando tinham sido impedidos de se aproximarem da mãe no leito de morte.
42
ANTT, CF 140 / liv. 65: “Miles Christi gloriose, / laus, spes, tutor Portugalie, / fle[c]te gentis ceruicose / dum
corda contrarie / fac discordes graciose / reduci concordie / ne sternatur plebs clamose / empta Christi sanguine”.
Repare-se nas rimas, recurso que era resultante de elaboração poética: não presumimos que a formulação rimada
fosse do próprio D. Duarte, mas foi certamente aceite por ele.
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acertarem um tratado definitivo de paz, se mostram sobranceiros e intratáveis43:


surpreendido com tal atitude, o Príncipe sente-se obrigado a invocar o santo
patrono para que o salve do embaraço em que se encontra: a angústia passe a
escrito e serve-nos agora de documento.
b) Era um facto: os embaixadores castelhanos traziam à sua frente o jurista
Alfonso de Cartagena44.
c) Foram quatro as vezes em que o deão de Santiago esteve em Portugal
acompanhado pelo secretário de Juan II de Castela, o doutor Juan Alfonso de
Zamora: a primeira vez, entre Outubro ou Dezembro de 1421 e Dezembro
de 1422; a segunda, em 1423, de Janeiro a Abril; a terceira, em Dezembro de
1424 até Abril de 1425; finalmente, pela quarta vez, em 1427, entre Setembro
e Dezembro. A paz definitiva só seria assinada pelo Tratado de Medina del
Campo, em 30 de Outubro de 143145.

43
Como diremos, apoiados em análise já elaborada por outros, a embaixada castelhana pretende garantir o apoio
de Portugal na ofensiva que Castela pretende manter contra Granada e que o rei português não pode assumir,
pois isso punha em causa a presença em Ceuta e as acções que estão em curso na ocupação das Ilhas atlânticas.
44
Grande erudito, Alfonso de Cartagena, no período em que esteve em Portugal, conviveu com D. Duarte, que o
trata como deão de Santiago (funções que tinha, de facto, desde 1415): diplomaticamente, era homem inflexível,
mas, em privado, as relações tornaram-se frutuosas para ambos os lados e o jurisconsulto que era Cartagena cedeu
o lugar a negociações culturais com o príncipe: em 1421-22, em Lisboa, o Príncipe solicitou-lhe o Memoriale
virtutum e ele não recusou escrevê-lo, pois ficara edificado com o seu interlocutor e pudera testemunhar que
ele era exemplo de virtudes, tanto teologais como cardiais e apenas lhe faltava uma exposição que as formulasse
em língua romance; aí começa a vida literária de Alfonso: cf. La traducción castellana del Memoriale virtutum de
Alfonso de Cartagena (ed. Mar Campos Souto). Burgos: Instituto Municipal de Cultura, Ayuntamiento, 2004 (a
partir de cópia póstuma que o editor coloca entre 1474-96); melhor outra edição: CARTAGENA, Alfonso de –
Memoriale virtutum (ed. Jeremy N. H. Lawrance e María Morrás). Leiden: Brill, 2019 (ed. sobre versão de 1422):
a obra é apresentada pelo autor como “primogenita scripturarum mearum”; noutro plano, em anos posteriores, D.
Duarte solicitou também a Cartagena a tradução do De inuentione de Cícero, depois de terem trocado reflexões
sobre o modo de traduzir; seguidamente, terá havido lugar para a tradução do De senectute (datado de 1422, em
Montemor-o-Novo, 10 de Janeiro) e do De officiis de Cícero (primavera de 1422); por outro caminho terá o
Infante D. Pedro, tentando ler esse último texto ciceroniano sob orientação de Frei João Verba, quando D. Duarte
pedia o tratado de retórica a Cartagena: cf. NASCIMENTO, Aires A. – Traduzir, verbo medieval: as lições de
Bruni Aretino e Alonso de Cartagena. In Actas - II Congreso Hispánico de Latín Medieval (León, 11-14 Noviembre de
1997). León, 1998, vol. I, pp. 133-156; MORRÁS, María – Sic et non: en torno a Alfonso de Cartagena y los studia
humanitatis. «Euphrosyne», 23 (1995), pp. 333-346; VALERO MORENO, Juan Miguel – Alfonso de Cartagena
intérprete de Séneca, sobre la clemencia: el presente del pasado. «Atalaya» [En ligne], 16 | 2016, mis en ligne le
13 juillet 2017, consulta em 09 Março 2021. URL : http://journals.openedition.org/atalaya/1883. Consideram
outros que os denominados “Cinco livros de Séneca”, que compreendem a “De providentia, De vita beata, De
artibus liberalibus, De admonitionibus, De clementia”, foram traduzidos por encomenda de Juan II e se tornaram
tratados de leitura frequente por parte dos nobres castelhanos da época, quer em actos de leitura colectiva na corte
quer reflexões feitas em privado sobre exemplares tomados a partir da tradução primitiva. A embaixada a Lisboa
foi culturalmente muito frutífera, apesar das negociações políticas difíceis.
45
Para nos reportarmos à situação vivida em Portugal, permitimo-nos remeter para MORENO, Humberto
Baquero – Balanço de um século no Portugal anterior ao encontro do Brasil. «Arquipélago» – História, 2ª série, 5
(2001), pp. 545-560. Efectivamente, “a paz entre Portugal e Castela foi assinada em Ayllon no dia 31 de Outubro
de 1411; a sua validade manter-se-ia até quando João II de Castela, que era menor, alcançasse a maioridade;
nascido o monarca em 1405, de acordo com as leis de Castela, seria apenas em 1420, quando cumprisse quinze
anos, que alcançaria esse estatuto”. As coisas prolongaram-se até à data referida acima, em boa parte devido à
questão de Granada, para a qual o rei de Castela pretendia garantir apoio por parte do rei de Portugal e este
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d) Sabe-se que Alfonso de Cartagena era intelectualmente brilhante, mas


de temperamento difícil e intransigente; o Príncipe terá hesitado na reacção,
mas foi hábil em captar a simpatia do castelhano e não deixou de registar o
incómodo que lhe causavam as atitudes de Cartagena.
e) Apesar de contraditores, príncipe e deão da catedral aproximaram-se; os
dois tornaram-se amigos, à medida que partilhavam reflexões e que os interesses
culturais se revelavam, com ganhos mútuos: o primeiro a ganhar terreno foi o
Príncipe frente ao embaixador castelhano; este (“orator”) sentiu que tudo tinha
a ganhar na abertura a uma personalidade que se lhe revelava culta e virtuosa
que lhe dava ensejo de saber em Lisboa notícias que circulavam por mais longe46.
f ) Relendo a oração a S. Jorge, a essa luz, entendemos que ela foi escrita em
momentos de tensão, possivelmente logo no início das conversações: o Leão
de Castela entra de rompante, certamente porque convencido de que pode
dominar a situação: estaríamos assim por 1422 e teria sido nessa data que D.
Duarte registou a oração no LH.
g) Entretanto, D. Duarte abre a sua biblioteca a Cartagena e este toma
conhecimento de livros e textos doutrinários que despertam o seu interesse:
o deão, vergado perante a nobreza e a generosidade do Príncipe, concordou
em colaborar com ele, embora mantendo intransigência política em aspectos
jurídicos; essa intransigência, aliás, prolongou-se para o concílio de Basileia,
onde o jurisconsulto se ocupou do domínio das Canárias, assunto sensível para
Portugal47.

orientava para Ceuta as forças que conseguira reunir, canalizando-as depois para a empresa dos Descobrimentos
nas Ilhas Atlânticas, questão que não agradava a Castela, pelo que houve embates na Grã-Canária.
46
Comprova-se hoje que, em 1422, já Alonso de Cartagena iniciara a tradução de algumas obras de Cícero (De
officiis, De senectute, De amicitia), pedidas por Juan Alfonso de Zamora, a rogo do rei castelhano Juan II, Trastâmara
(1405-1454). No final de 1421, terá escrito um De concordia pacis (que não se conservou). A pedido de D.
Duarte, como assinalámos, traduziria o De inventione de Cícero e para o mesmo escreveria o Memoriale virtutum,
esta “primogenita scripturarum mearum”, como acentuámos atrás. Maior eco tiveram, depois, as polémicas que
sustentou com o humanista Leonardo Bruni de Arezzo (Aretino) sobre a tradução latina da Ética de Aristóteles em
defensa da antiga tradução de Roberto Grossatesta, entrando então em conflito com Bruni, Poggio, Decembrio
(entre outros), e, nesse contexto, escreveu Declinationes super translationem Ethicorum (c. 1432); não é de menor
importância saber-se que Cartagena conheceu a obra de Aristóteles na sua embaixada a Lisboa, em 1426, por
ter ouvido falar dela a um jurisconsulto português, Vasco Rodrigues, então regressado de Bolonha e em trânsito
para Braga (possivelmente o mesmo que foi chantre bracarense em 1431), a quem teria ouvido falar de um
manuscrito precioso de Aulo Gélio na biblioteca da Alcobaça. Entretanto, entregara-se também a traduzir o
De clementia de Séneca e outros textos clássicos. Cf. M. SALAZAR, Abdón – El impacto humanístico de las
misiones diplomáticas de Alonso de Cartagena en la corte de Portugal entre medievo y renacimiento (1421-1431)”.
In DEYERMOND, A. D. (ed.) – Medieval hispanic studies presented to Rita Hamilton. Londres: Tamesis Books,
1976, pp. 215-226; CARTAGENA, Alonso de – Libros de Tulio: De Senetute, De los Ofiçios (ed., prol., notas de
María Morrás). Alcalá de Henares: Universidad, 1996; LAWRANCE, Jeremy N. H. – Humanism in the Iberiam
Peninsula. In GOODMAN, Anthony; MACKAY, Angus (ed.) – The impact of Humanismo n Western Europe.
London: Longman, 1989, pp. 220-258.
47
Cf. COSTA, António Sousa – Alfonsi de Sancta Maria, episcopi Burgensis, allegationes super conquesta insularum
Canariae. In Monumenta Henricina, VI, 1964, pp. 139-199.
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4) Concluímos daí também que o príncipe está de posse do seu LH em


tempo anterior às conversações com os embaixadores castelhanos: ou seja, em
1422 está D. Duarte a servir-se dele para ali deixar uma das suas orações dirigida
à protecção de S. Jorge48.
Em conclusão, ficamos com um dado irrefutável: D. Duarte está de posse
do seu LH em momento anterior à chegada dos embaixadores castelhanos
e permitiu-se utilizar o seu exemplar como instrumento para lançar nele
confidências que marcam tempos. Registamos que o LH era de facto um livro
vivo onde eram lançados gritos de alma: assim o devemos interpretar.

6. O LH do Príncipe perfeito: do livro ao “Homem”

Aos poucos, alargou-se-nos, entretanto, a lista dos LH hoje conhecidos


que passaram por individualidades portuguesas (singulares ou colectivas): 78
exemplares (documentados ou em referências) têm sido apresentados em registo
e outros se poderão eventualmente vir a acrescentar49. Neste contexto, ganha
relevo o aparecimento recente de um LH, esquecido no tempo, mas guardado
em colecção particular de um alfarrabista, depois de ter passado por gente de
devoção. Está datado de 1483 e tem indicações de ter pertencido ao rei D. João
II, depois de nele ter intervindo gente da sua corte.
A sua elaboração foi acompanhada por um homem de ciência cosmográfica,

48
Em nota complementar, acentue-se que, entretanto, Alfonso de Cartagena foi nomeado bispo de Burgos e
voltaria a ocupar-se de questões portuguesas no Concílio de Basileia, onde se bateria pelo direito de Castela às
Canárias, mas onde ouviria da parte dos representantes portugueses, D. Antão Martins, bispo do Porto, a proposta
do Infante D. Henrique como candidato ao Papado; cf. PRADO, André do – Horologium Fidei - Diálogo com o
Infante D. Henrique (ed., tradução e notas de Aires A. Nascimento). Lisboa: IN-CM, 1994.
49
Importa acrescentar o conjunto de 9 LH manuscritos, do século XV, que pertenceram à Casa do Infantado
(criada por D. João IV, em 1654) e passaram ao Brasil quando a Coroa para ali se deslocou, em 1807: cf.
FAILLACE, Vera Lúcia Miranda (org.) – Catálogo dos livros de horas da Biblioteca Nacional do Brasil. Rio de
Janeiro: FBN, 2016: de particular importância é a análise feita por François Avril, que identifica as atribuições
a fazer aos iluminadores, aos quais identifica na sua origem flamenga, alguns, e outros na sua origem francesa, a
maior parte (ib., pp. 13-20), 4 denunciados por calendário de uso francês (mss. 50,1,010; 50,1,016; 50,1,019;
50,1,022 e 50,1,023). Retenha-se, como já referimos, que, como lemos em CASORRÁN BERGES, Ester;
LAFUENTE ROSALES, Carlos María; NAYA FRANCO, Carolina – El Libro de Horas del II conde de Lemos en el
Tesoro del Pilar, tradicionalmente conocido como de Santa Isabel de Portugal. «Ars & Renovatio», 5 (2017), pp. 3-39,
“las “horicas guarnecidas” habían convivido con otra tipología de libritos, los “libritos-relicario”, expandiendo su
morfología hacia las joyas pinjantes denominadas como “capricho” o reproducciones en metal de las formas de
objetos cotidianos en miniatura”. Em VITERBO, Sousa – loc. cit., colhemos referências a outros manuscritos
guardados na Biblioteca Real: no tempo de D. Manuel I, “huũ liuro de rezar que tem Álvaro da Costa…”, “cem
liuros de oras de nosa senhora grandes em linguagem encadernados de tauoas, meos cobertos de coiro”. Era tempo
da chegada da imprensa e por isso se multiplicaram os livros de oração em novo formato e tão fácil era obter
exemplares que a rainha os enviou à “molher do Preste” um “lyvro de purgaminho de letra de mão enluminado
todo de images e cuberto o dito lyvro de borcado de pello pardo rico forrado de cetym carmesym cõ hũ registo
douro douro fyado e aquayrelado cõ hũa traça douro e com quatro enxarrafos de prata e ouro e duas brochas
de prata de fyllagrana douradas em que estam senhos escudos en que siã en cadhũ deles dous lobos por armas”.
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Diego Ortiz de Villegas, ao menos no desenho do seu calendário e na conjugação


dos adereços complementares. Hão-de apurar-se os traços de solidariedade
material e a forma da escrita no manuscrito como recurso para julgar dos modos
de trabalho e para apreciar a unidade e sequência do todo: aos elementos de
base (os cadernos com o respectivo texto) vieram juntar-se dados iconográficos
(iluminuras) que terão sido encomendados a scriptorium de qualidade e depois
montados em carcelas50.
*
Sendo livro de oração do rei, presume-se que se deverão depreender
nele traços de qualidades devocionais de D. João II. Os historiadores têm-se
debruçado sobre as suas qualidades de governação: aberto sobre o mar, esteve
também atento a ameaças que havia que prevenir, fosse em África51, fosse no
reino, em resposta a tensões incertas vindas de reacções familiares52.
É, de facto, de apreciar a sua personalidade de homem astuto para gerir
assuntos de governo, empreendedor e atento para não ser surpreendido53: os
seus contemporâneos reviam-se certamente nos juízos que Vasco Fernandes
de Lucena levou à Europa e expôs, em 1485, em Oração de obediência de D.
João II ao Papa Inocêncio VIII54: traçou-lhe ele um retrato que não deve ser
50
A edição e estudo encontram-se em processo no qual participamos.
51
Cf. CRUZ, Maria Augusta Lima – A Península Ibérica e o Norte de África (séculos XV a XVII., «História e
Património», vol. 7, Lisboa, CHAM / Lab2pt, 2019, pp. 77-106.
52
Tão temido como respeitado pela nobreza do país, a quem se impôs para evitar veleidades e imprevistos, teve
boas relações com outros reis, principalmente com os reis de Espanha, a ponto de aprazar casamento dos príncipes
(de seu filho D. Afonso com a filha deles, em concorrência com o filho do imperador dos romanos, Maximiliano);
ganhou o respeito de homens de ciência pelos empreendimentos que dirigiu e atraiu as atenções de humanistas,
como Ângelo Policiano, numa carta enviada a D. João II em 1491, ofereceu-se para lhe celebrar as gestas: cf.
BRANCO, Manuel Bernardes – Portugal e os Estrangeiros. Lisboa: Livraria de A. M. Pereira,1879, pp. 415-417 (a
tradução da carta para latim é de Teófilo Braga); sem que houvesse referência, a comunicação do florentino
confirmava o interesse que chegara aos homens do Renascimento: já antes, em carta ao Infante D. Henrique,
Poggio Braciollini sublinhara serem dignos de celebração os descobrimentos levados a cabo pelos portugueses;
D. João II prometeu enviar crónica ao humanista para que ele a trabalhasse para latim, mas essa crónica não
terá sido feita a tempo e o rei deixou que a sua fama corresse a cargo dos jovens alunos, filhos do chanceler João
Teixeira, que transmitiam as informações mais convenientes que o rei lhes comunicava; os serviços oferecidos por
Policiano tinham um concorrente em Cataldo Sículo, que chegara em 1485, contratado pelo rei para educador
de D. Jorge, seu filho bastardo. Do tema se ocupou a seu tempo por RAMALHO, Américo da Costa (Cataldo
e André de Resende. Actas do Congresso Internacional do Humanismo Português, Centro de Estudos Clássicos,
Lisboa, 2002), e dele se ocupou também FONSECA, Luís Adão da – D. João II. S.l.: Círculo de Leitores, [2005].
53
Manteve a acção militar em África e alargou a acção africana, com presença em Benim (ainda que com surpresas,
como comprovou o caso de Bermohi, que teve final trágico); com os resultados colhidos (recolha da pimenta),
criou e desenvolveu a feitoria na Flandres, tendo com isso mediado conflitos entre o imperador Maximiliano,
preso em Bruges, e o rei de França, em 1488; avançou no reconhecimento da costa africana e preparou a acção
da viagem à Índia.
54
O Papa Inocêncio VIII, que tomou posse em 1484, teve vários momentos no seu curto pontificado: institui
o tribunal da Inquisição contra a bruxaria, aprova a actuação da Inquisição espanhola contra os marranos, mas
permite apelo para o bispo de Sevilha, concede aos reis católicos de Espanha a possibilidade de nomearem
sucessor de Tomas Torquemada, Inquisidor-mor, em 1486, condena 400 proposições de Pico della Mirandola,
considerando-as heréticas, pretende congregar as nações católicas contra os turcos, mas não consegue fazê-lo, e, a
253
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interpretado como simples elogio retórico, pois, se de elogio se trata, assenta em


factos reais que historicamente podem ser comprovados e cuja versão o próprio
rei certamente terá conhecido, já que se tratava de representação protocolar e
por isso preparada de antemão na corte de Lisboa.
Frente ao Papa e aos Cardeais da Cúria, em passo de “praeteritio” ou
“apophasis” – também dita parasiopesis (παρασιώπησις), como quem não
quer demorar mas também não deve esquecer, declara Lucena: “Passo à frente,
deliberadamente, os muitos e admiráveis dotes de espírito, nunca suficientemente
exalçados, e os de corpo – ascendência ilustre, figura insigne, grandeza de alma,
liberalidade, vida sem falha, moderação extrema, lealdade, constância; na acção
militar, denodo, em tudo prudência; para com Deus espírito de religião; para o
reino e para os súbditos, sentido de dedicação / piedade; omito louvores à sua
coragem e à sua acção; passo à frente considerações relativas à sua fama e às suas
vitórias; passo adiante [notícias] propaladas quanto a estratégias, avisamento,
prudência, fortaleza de ânimo: por assentimento divino, esquiva-se às ciladas de
dois duques, castiga os inimigos”55.
Como processo retórico de praeteritio, ao declarar que passa adiante, o
discurso acentua quando diz estar a esconder conteúdos: estes, certamente
conhecidos por quem os ouvia proclamar, destinavam-se deliberadamente a
causar sensação e provocar perguntas nos bastidores.
Ao rei chamaram-lhe Príncipe perfeito: assim o designa já Garcia de
Resende56; el Hombre lhe chamou Isabel, a Católica, como relata o mesmo
Garcia de Resende, ao referir a resposta da rainha a quem lhe comunicou o
passamento do rei: “Agora morreo ho homem que eu em tanta estima tinha”57.

troco de soma pecuniária, dá acolhimento em Roma, em 1492, ao sultão turco Bajazet II, que foge de Bizâncio, e
recebe dele a dita lança de São Longuinho (com a qual o ladoflanco de Cristo teria sido perfurado).
55
Atenda-se ao original latino, para que não restem dúvidas e se possam ultrapassar dúvidas de tradução anterior
(aliás, como assinalamos, notamos perda de uma palavra que julgamos passível de reconstituição e importa
assinalar que é fácil ler a forma latina como se ela fosse forma portuguesa, mas pouco explica, mesmo que se diga
“ínclito”): “Pretereo consulto multas admirandas incliti animi et copia dotes: proceritatem, formam insignem,
animi magnitudinem, libertatem, integritatem, integerrimam vitam, moderationes, fidem, constantiam. In re
militari virtutem, in administrando regno iustitiam, et omni genere prudentiam, in deum religionem, in regnum
et in subditos pietatem. Pretereo virtutis et industrie laudes, pretereo glorie et victoriarum monimenta, pretereo
[notitias] quo astu, quo consilio, qua prudentia, qua animi fortitudine propalatas: diuino nutu duorum ducum
factiones dissimulat et factiosos castigat”
56
RESENDE, Garcia de – Liuro que tracta da vida & grandissimas virtudes & bõdades, magnanimo esforço, excelentes
costumes & manhas & muy craros feitos do christianissimo... el rey dom Ioam ho segundo deste nome..., vay mais
acrescentado nouamente a este liuro hũa Miscellanea em trouas do mesmo auctor. Évora: Andree de Burgos, Mayo,
1554; para outros aspectos mais alargados, cf. SANCEAU, Elaine – O príncipe perfeito (trad. Álvaro Dória). Porto:
Livraria Civilização, 1952.
57
Contrariamente ao que foi alvitrado por Manuela Mendonça, bastaria um pouco de reflexão histórica e de
sensibilidade humana para perceber que, na voz de Isabel de Castela, o epíteto não era depreciativo, como se
entende pelas palavras do cronista: exprimia dor e respeito por quanto D. João de Portugal sofrera (com a morte do
filho, casado com a filha dos reis de Castela) e significava também respeito por quem, em vida, soubera merecê-lo;
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Manteve Lope de Vega esse epíteto de honra58. Quanto a nós, a antonomásia


era qualificativo não só nobre, mas também piedoso, pois tem referência maior
no Ecce Homo, com que Pilatos apresentou Cristo aos judeus, quando estes
lhe exigiram a condenação de Jesus. Para a rainha de Castela a expressão não
podia ser depreciativa (como alguém ajuizou, sem atender ao que estava em
causa); o homem, por antonomásia, era título de piedade e compaixão que não
podia ignorar a doença (provavelmente a gota) que acometera o rei nos últimos
anos de vida e para a qual procurara remédio nas termas do Algarve, sem o
conseguir59. O seu desaparecimento lembrava à rainha de Castela que a vida é
breve e merece respeito – tanto maior quanto é atravessada por sofrimento (com
o rei português partilhara ela tempos de dor, com a morte do príncipe herdeiro
casado com a sua filha).
O retrato de D. João II por Garcia de Resende apresenta traços convencionais
e procede de um serviçal da corte, que transfigura o rei em considerações
hagiográficas; não é de um literato a exposição, mas tem qualidades para

significava também admiração por quem sabia governar: a Crónica de Garcia de Resende, cap. 163-167, é factual
e mostra isso à saciedade. Assim, a recusa dos embaixadores castelhanos em Lisboa que vinham mal preparados
(“um, Pedro de Ayala, manco de uma perna, e outro, Garcia de Carvajal, muy vão”), foram despedidos sem
perda de tempo; pelo contrário, para discutir questões desse calibre, aos embaixadores de D. João II, enviados a
Medina del Campo nada puderam contrapor: percebendo que as condições de entendimento eram ditadas pelo
rei de Portugal, já senhor de domínios que se pretendiam dividir, reconheceram os castelhanos que os tema não
admitiam discussão: de facto, D. João II já tinha tomado medidas com vista a saída de uma armada sob comando
de D. Francisco de Almeida e apenas havia que ratificar o que o rei assinalava…
58
VEGA, Lope de – Comedia famosa del Principe Perfeto, fl. 130 (ap. Onzena Part de las Comedias de Lope de
Vega Carpio. Madrid: Viúda de Alonso Martin de Balboa, fl. 122v-147v; SAMPAIO, Cristóvão Ferreira e – Vida
y Hechos del Principe Perfeto Don Juan Rey de Portugal segundo deste nombre. Madrid, 1626; MARTINS, J. P. de
Oliveira – O Principe Perfeito. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1896. Cf. RODRIGUES, Maria Idalina
Resina – Simpatias, inimizades e algumas confusões: D. João II, no teatro de Lope de Vega. «Revista de Filología
Románica», 11-12, Univ. Complutense, 1994-95, pp. 63-80.
59
Efectivamente, as relações da rainha Isabel de Castela com D. João II eram familiares e não evitavam título
de dignidade e nobreza: não apenas o casamento dos seus filhos o demonstrava, mas também os modos de tratar
questões de Estado ultrapassavam o plano diplomático, pois combinavam embaixadas e defendiam interesses
comuns, quer fosse em política concertada contra o rei de França quer fosse em resolução de questões de interesse
que envolvia os dois países, como foi a assinatura do Tratado de Tordesilhas, a 7 de Junho de 1494: cf. FONSECA,
Luís Adão da; CUNHA, Cristina – O Tratado de Tordesilhas e a diplomacia luso-castelhana no século XV. Lisboa:
INAPA, 1991. Bem sabiam os reis de Castela que D. João II tinha por ele a navegação até ao Cabo de África; o
cronista João de Barros regista: “Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa
dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso, mas el-rei D. João II lhe chamou cabo
da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada”. Os cosmógrafos do rei
D. João II julgaram improcedentes as propostas de Colombo de chegar à Índia viajando para Ocidente e o rei
respondeu-lhe com pundonor à sua arrogância, mantendo-o a distância e poupando-lhe a vida quando outros
queriam atentar contra ela para se desfazerem de mais um importuno. Quanto ao conceito que outros reis tinham
de D. João II, baste o testemunho do rei Carlos de França: se tinha contra ele a cristandade inteira, como lhe
queriam fazer crer, respondeu que bastava-lhe ter por ele o rei de Portugal (RESENDE, Garcia de – Cronica…
Ob. cit., fl. 89, cap. 153).
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NASCIMENTO, Aires. A.
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demonstrar que é epidíctico, ainda que sem encobrir defeitos: o rei não era
galante, talvez, mas tinha elegância na sua estatura que era graciosa, i. é,
proporcionada; o seu porte era grave, mas cheio de humor, quando estava com
fidalgos mais chegados; tinha afabilidade de trato e gostava de ser agradável,
se a situação o permitia; quando se entregava a negócios da administração
procurava que eles fossem entregues a gente de virtude, pois deixava entender
que “o rey trabalhava quanto nelle era de buscar pera hos ofícios de justiça & da
sua fazenda homens virtuosos, de boa tençam & de bom saber” (Crónica, cap.
177); cuidava da defesa e era precavido: assim, para a entrada de Lisboa previu
caravelas ligeiras que servissem para acorrerem ao perigo e foi ele que concebeu
a Torre de Belém para esse efeito, embora quem viesse a executar a obra fosse
D. Manuel (cap. 180). Era o rei moderado em folguedos, embora não os
enjeitasse; era comedido nas palavras e nos prazeres da mesa, astuto e inteligente
para não se deixar enredar por influências e amizades, mesmo que vindas de
familiares; recto nos julgamentos, fiel aos amigos; no casamento, excedeu-se
em alguns deslises (com Ana Furtado de Mendoça, “muito fidalga e de mui
nobre geração”, senhora da corte da Beltraneja, com a qual teve um filho, D.
Jorge, que procurou proteger e educar60; de outra, de nome Boa Dona, pouco
sabemos61); destro em terçar armas, foi também amigo das letras; ponderado
e sobretudo reflectido, não hesitou em arrepiar caminho na primeira ocasião,
a ponto de se arrepender de alguma palavra menos ponderada e se levantar de
noite para ir pedir desculpa (um caso ocorreu com Ruy de Sousa, cap. 172);
do rei diz o cronista que era justo na atribuição de cargos e mercês sem atender
a intermediários. Era homem, sujeito a falhas, mas capaz de tentar redimir-se
delas…
Retenhamos do cronista os predicados de piedade e o quadro das devoções
e práticas mantidas pelo rei D. João II: a

foy muy catolico & en grande maneira amigo de deos e temente a elle &
muito devoto da Paixão de Nosso Senhor Jesu Christo & da Sagrada Virgem

60
Um ilustre comentador universitário chega a aventar a hipótese de a concepção de D. Jorge ter tido a
concordância de Dona Leonor, à maneira patriarcal bíblica: cf. RAMALHO, A. Costa – Cataldo, a Infanta D.
Joana e a educação de D. Jorge. «Humanitas», 41-42 (1990), pp. 3-22.
61
O rei tentou legitimação de D. Jorge junto do Papa, mas não a conseguiu, embora nisso se empenhasse D.
Fernando de Almeida, bispo de Lamego: suspeita A. Costa Ramalho que nisso entrou mão de D. Jorge da Costa,
cujas relações com D. João II eram enviesadas; relativamente a D. Jorge, sempre a rainha Dona Leonor manteve
relutância e distanciamento, a ponto de a sua educação, depois dos primeiros rudimentos escolares na corte, vir
a ser entregue a sua tia, Santa Joana, que vivia no convento de Aveiro, e foi entregue depois a Cataldo Sículo,
humanista mandado vir de Itália por D. João II, parar servir de educador oficial. Não era o único caso em que o
rei se envolveu, pois, como dissemos acima, aponta-se-lhe também uma aventura com Brites Anes, a Boa Dona,
de quem teve Brites Anes de Santarém (c. 1485).
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Maria Nossa Senhora &, confessado por elle na ora da sua morte, nunca em
sua vida lhe pediram cousa aa honra das Cinco Chagas que nã fizesse; &
todolos dias ouvia muy devotamente missa & em qualquer casa que esteuesse
tinha oratório fechado em que todollas noites, depois de despejado & despido,
se recolhia com muita devaçam a rezar os sete salmos e se encomendava
a Deos & afirmava-se que com os joelhos nus postos em terra & muitas
vezes tardava tanto que era muito trabalho aos que o aguardavam: de isto
todallas noites por ordenãça & pollas manhãas na cama & aa mesa rezava
sempre as oras de Nossa Senhora & outras muitas orações. E em hũa boeta
que elle tinha ha chave se achou depois de sua morte hũo confissionario &
hũo áspero celicio que muitas vezes trazia debaixo da camisa de vestiduras
reaes. E, pera se hos ofícios divinos fezerem em grande perfeiçam & muito
acatamento, trazia sempre em sua capella riquíssimos ornamentos & muitos
& bõs capelães & has suas missas em pontifical erã ditas cõ mais deuaçam
acatamento & cerimonias que em outra nenhuma parte. E ho lauar dos
pees aos pobres & todalas outras cerimonias fazia cõ tanto acatamento &
lagrimas que aos bõs religiosos daua singular exempro quanto mais aos seus
familiares.

Sublinhemos as devoções principais do rei, que, nem por serem privadas,


deixariam de constar em público: Paixão de Cristo, em especial as Chagas;
recitação dos Sete Salmos penitenciais; recitação das Horas de Nossa Senhora;
uso de cilício directamente sobre as carnes…
São muito concretas as anotações deixadas pelo cronista, tão concretas
que se poderiam estranhar algumas omissões da Crónica relativamente ao
que deduzimos do LH: ora, havemos de notar que nem o cronista serviu de
modelo ao LH nem o cronista diz que se serviu de exemplar do LH para traçar
as devoções do rei; todavia, em confirmação de tudo, Resende assinala que no
momento da morte do soberano esteve com ele o bispo de Tânger, D. Diogo
Ortiz, que sustentava nas mãos um quadro “com o vulto do Senhor”; em
complemento, acentua que ao serviço da capela real havia bons capelães.
Relativamente à devoção das Chagas de Cristo, é documento específico o LH:

Aue uulnus lateris nostri redemptoris,


Ex quo fluxit fluminis fons quoque cruoris,
Medicina miseris esto nunc doloris,
Sana simul criminis plagas et erroris.

*
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Aue plaga lateris larga et fecunda:


Laua multitudinis sordes et emunda,
Ne ledat Infernus tuos mors secunda:
Sed et uisu numeris fiat mens jocunda.
Papa Inocentius concessit quattuor milia annorum indulgentiarum dicentibus
hanc salutationem plage domini nostri Ihesu Christi.
¶ Esta medida duas vezes he a medida da chaga de Nosso Senhor: (3cm x 2 =
6cm).
Traduzimos:

Avè, chaga do lado / Do nosso Redentor,


De onde manou a fonte de um rio / Que é também de fluente
cruor,
Remédio para infelizes, / Seja-o agora de dor.
Sare ela tanto as chagas do crime / Como também as do error!
*
Avè, chaga do lado, / larga e fecunda:
Lava de gente infinda / as impurezas e as refunda!
Não faça dano o Inferno / aos teus morte segunda,
Mas com prémio à vista / a mente se torne jucunda!62
(O papa Inocêncio [VI] concedeu 4 mil anos de indulgência a
quem rezar esta saudação à chaga de Nosso Senhor Jesus Cristo)63.
*
Acentuemos que a devoção às Chagas de Cristo ganha incremento a partir

62
A oração Aue vulnus lateris nostri redemptoris” foi assinalada pela primeira vez, que saibamos, em nota de artigo
por Dom André Wilmart, in Mélanges Mandonnet, Paris, ‎J. Vrin, 1930, II, pp. 145-161, a partir de um fragmento
recolhido em Bethleem de Shene (ou Sheen), perto de Richmond, nos arredores de Londres, no Surrey, em
mosteiro fundado em 1414 pelo rei Henrique V: faria parte de uma miscelânea, em que a terceira parte seria
formada por textos goliárdicos e devocionais: Ms. British Museum, CottonVespasian D. IX – 3 ° fol.48-49,
onde constava justamente: “Mensura plage lateris domini nostri, Ihesu Cristi”; assinala o ilustre beneditino: “avec
figure, legende et double quatrain: Aue uulnus lateris nostri redemptoris..., Aue plaga lateris larga et fecunda”.
Interpretando A. Wilmart, estaremos em contexto cartusiano, indício que nos leva a oração divulgada pela devotio
moderna, em que se integrava a Vita Christi de Ludolfo da Saxónia.
63
Junto do registo da iconografia do códice “Mensura plage lateris domini nostri Ihesu Cristi”, uma imagem vem
acompanhada de explicação: “Esta medida duas vezes he a medida da chaga de Nosso Senhor”: 3cm x 2 = 6cm.
Consta essa oração também do Livro de Horas de Álvaro da Costa (Ms. Pierpont Morgan Library, M.399, fl.
197v (na iluminura de Cristo, Homem das Dores); segundo informação de catálogo, esse LH foi encomendado
c. 1515 a Simon Bening para um membro da família Sá (Saa), da cidade do Porto, provavelmente a de João
Rodrigues de Sá (cujas armas da família estão no fl. 1v); foi adquirido por 1520 por D. Álvaro da Costa, homem
da Casa de D. Manuel I (embaixador e conselheiro); por herança, o LH passou à família do Duque de Mesquitela;
em 1882 esteve em Lisboa (Exposição retrospectiva de arte ornamental Portugueza e Hespanhola, cat. no. 17)
e seguidamente terá sido vendido (post 1890), por intermédio de Quaritch (1905) a George C. Thomas de
Filadélfia (cat. 1907, pp. 37-38), sendo depois adquirido por J. Pierpont Morgan (1837-1913) aos herdeiros de
G. C. Thomas, em 1910.
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dos estigmas de Francisco de Assis, mas a memória das Cinco Chagas na liturgia
tinha já expressão na unção de cinco cruzes no rito da sagração das igrejas; nos
missais da Idade Média havia uma missa especial em honra das Santas Chagas
com texto cuja composição se reportava ao Apóstolo S. João e que teria sido
revelada no ano de 532 ao Papa Bonifácio II: conhecida como “Missa Dourada”,
teria recebido indulgências de João XXII em 1334 e de Inocêncio VI, em 1362:
corresponde à missa “Humiliavit” do Missal Romano. Primeiros traços de
comemoração pública das Chagas de Cristo encontram-se no século XIV nos
Breviários (franciscano, dominicano, carmelita). Também no nosso LH, como
noutros, é atribuída a um Papa Inocêncio a concessão de indulgência de quatro
mil anos pela recitação da prece transcrita; ora, para ser minimamente pertinente,
essa atribuição terá de avançar para tempos de 1240, o que leva no mínimo a
Inocêncio IV64. Porém, segundo as melhores referências, a indulgência deverá
ser posta sob o nome de Inocêncio VI, em 1362. Por influência dos Franciscanos
a devoção estava implantada na corte ducal da Bretanha no século XV65: sabe-
se que a veneração do sangue de Cristo toma relevo depois das Cruzadas, em
Bruges (“Saint-Sang”), Gand (Saint-Bavon), a que se segue Mântua, cujo lugar
foi tornado peregrinação depois de cura obtida pelo Papa Pio II.
Em Portugal a celebração das Cinco Chagas de Cristo, na Idade Média,
tinha lugar a 6 de Fevereiro ou, em Lisboa, na Sexta-feira depois das Cinzas:
era certamente o fim de um processo que começou muito antes e no qual o
desenho do escudo nacional deve ter tomado expressão concreta; a cronologia
de que dispomos não é precisa, mas encontramos a primeira formulação na
pena de um arauto, em 1416, em moldes que faz supor registo elaborado e por
isso remonta a tempos anteriores e nos leva a perceber que a narrativa se terá
desenvolvido em torno da celebração da Vera Cruz, após a vitória do Salado66,
mas entretanto reportada à proclamação do primeiro rei, Afonso Henriques, na
batalha de Ourique, em 1139, a partir de literatura heráldica67.
Em tempos posteriores, terá recebido influências de pregadores e homens de

64
Esse Papa que interferência nas actuações do imperador Federico II e na vida de Sancho II, rei de Portugal; este
rei português foi deposto por ele, no seguimento de acusações graves feitas por membros da nobreza e do clero,
nomeadamente das Ordens religiosas
65
Cf. “Isabelle Stuart, duchesse de Bretagne, et ses deux filles Marguerite et Marie en prière devant une Pietà,
miniature extraite d’un manuscrit de La Somme-Le roi de Laurent d’Orléans”: BNF, FR 958 (a. 1464). Para uma
visão mais alargada do tema, cf. CHARBONNEAU-LASSAY, Louis – Le vulnéraire du Christ - La mystérieuse
emblématique des plaies du corps et du cœur de Jésus-Christ. Guntenberg reprints, 2018.
66
Cf. RAMOS, Manuel Francisco – Memória De victoria Christianorum (Salado – 1340) (ed., trad., e introd. do
manuscrito Alc. 114 (fl. 354-363)). Porto: FLUP, 2019.
67
NASCIMENTO, Aires A. – O milagre de Ourique num texto latino-medieval de 1416. «Revista da Faculdade
de Letras de Lisboa», 4ª série, nº 2 (1978), pp. 365-274; CINTRA, L. F. Lindley – Sobre a formação e evolução
da lenda de Ourique (até à Crónica de 1419)”. «Revista da Faculdade de Letras de Lisboa», 4.ª série, nº 2 (1978),
pp. 365-374.
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vida espiritual que viviam da contemplação das Chagas de Cristo68: a narrativa


da aparição de Cristo com as suas chagas ao primeiro rei português faz parte da
Oração de obediência de Vasco Fernandes de Lucena, embaixador do monarca
português D. João II ao Papa Inocêncio VIII, em 1485, com intenção de
enunciar a memória nacional69.
*
Não se limitou a devoções maiores o rei D. João II e disso dá conta também
o LH. Além das festas de preceito, o calendário dos diversos meses inclui os
nomes de santos que, pela distribuição nos dias, tomamos como traduzindo
leituras do rei, sem vinculação devocional: de facto, o elenco corresponde, salvo
excepção pontual, ao da Legenda Aurea de Jacopo de Varazze e tal circunstância
faz-nos suspeitar de dependência a partir desse texto hagiográfico70.
68
Cf. MÂLE, Emile – L’art religieux de la fin du moyen âge en France. Paris: Lib. A. Colin, 1908; sintetiza esse
eminente homem de história de arte: “La dévotion au Précieux Sang, qui fut toujours très vive, s’accrut encore
à la fin du moyen âge. À Bruges, ce fut seulement au XIVe siècle que la confrérie du Saint Sang prit naissance
et que commença la fameuse procession du mois de mai. Ce fut au XVe siècle que s’éleva, au-dessus de la vieille
crypte romane de Thierry, la haute chapelle gothique, plus digne de l’insigne relique. Au XVe siècle, le culte du
Saint Sang s’organise, et on voit apparaître des proses écrites en son honneur. Ce fut alors aussi que les peintres
imaginèrent le thème de la Fontaine de vie, qui est, à sa manière, une sorte d’hymne au Précieux Sang. On peut
presque affirmer, je crois, que ce motif nouveau est né dans une des villes qui rendaient un culte à la sainte relique.
On sait que la Fontaine de vie du Musée de Lille, œuvre de Jean Bellegambe, fut peinte pour l’abbaye d’Anchin.
Or l’abbaye d’Anchin possédait depuis 1239 quelques gouttes du Précieux Sang”. O sentido das relíquias não tem
hoje o valor que tinha no período medieval.
69
Cf. Oração de Obediência ao Sumo Pontífice Inocêncio VIII, dita por Vasco Fernandes de Lucena, em Roma, em
1485 (ed. Martim de Albuquerque, trad. Miguel Pinto de Meneses). Vol. 3. Lisboa: Inapa, 1988. Só no século
XVIII, o patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida solicita ao Papa Bento XIV a concessão ao clero português
do ofício e missa das Cinco Chagas, que se usava desde 1733; Roma concedeu autorização em 1753. A petição
escudava-se na obrigação real imposta aos membros da Academia Real da História de não porem em causa a
veracidade do milagre de Ourique nem a das Cortes de Lamego nem o carácter primacial da diocese de Braga. Cf.
BUESCU, Ana Isabel – A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa (séculos XV-XVIII).
In D. Afonso Henriques e a sua Época – 2º Congresso Histórico de Guimarães. Guimarães: Câmara Municipal, 1996,
vol. 3, pp. 197-210.
70
O conhecimento da Legenda aurea, em versão latina, está confirmado em Alcobaça, onde deu entrada em
manuscrito comprado em Paris, por 1265, quando havia já monges alcobacenses a frequentarem o Colégio
de S. Bernardo; o manuscrito tem ordenação de pécias, assinadas nas suas treze partes, constitui o Alc. 40: cf.
FERNANDES, Catarina Barreira – Manuscritos universitários para o estudo da Teologia na livraria do Mosteiro
de Alcobaça. «Lusitania Sacra», 33 (Janeiro-Junho 2016), pp. 99-128. A tradução em língua vulgar deve ter
sido constituída no decurso do século XV: VIEGAS, Artur – Um códice português da legenda áurea: (fragmento
duma versão inédita do séc. XV). Lisboa: Tip. José Soares & Irmão, 1916; MARTINS, Mário – Os fragmentos da
«Legenda Áurea» em medievo-português. «Itinerarium», 7 (Jan.-Mar. 1962), pp. 47-51; SOBRAL, Cristina – O
Flos Sanctorum de 1513 e as suas adições portuguesas. «Lusitania Sacra», 2ª série, 13-14 (2001-2002), pp. 531-568.
Recordaremos que o fragmento identificado por Artur Viegas no Arquivo de Santiago de Compostela procedia
de um códice perdido, do qual restavam apenas dois bifólios de pergaminho, em alguma momento aproveitados
para capa de encadernação e depois recuperados: apesar das lacunas e das dificuldades de leitura resultantes de
aparo e da degradação de material, a escrita denotava ordenação profissional, ou seja, texto a duas colunas, 34 / 35
linhas, letrinas para iniciais de capítulo a duas cores, títulos de segmentos textuais rubricados. Seguindo critérios
paleográficos, A. Viegas datava o texto da primeira metade do século XV, o que a análise linguística confirma:
opinião diversa sustentou LÓPEZ, Anastácio – Códice en gallego de la «Legenda aurea» o «Flos Sanctorum». «Boletín
de la Real Academia Gallega», 9 (1916), pp. 97-107, 121-32, 145-47, que reclamava origem e representação de
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Há, porém, alguns santos que devem ter merecido devoção específica, pois
têm estampa própria no final do LH, na secção dita de “sufrágios”: Santos Reis
Magos, Arcanjo S. Miguel, Santo António de Lisboa, S. Cosme e S. Damião.
Os reis eram tomados como patronos do seu povo que os olhavam tanto mais
quanto lhes cabia o título de “homens santos – “holy man”71 e se mostravam
como taumaturgos em favor das suas gentes72. O rei D. João II assumiu
particularmente essa função, pois se empenhou em responder às necessidades
do seu povo: assumiu a construção do grande hospital de Todos-os-Santos, no
centro da cidade de Lisboa, onde procurava reunir as 43 instituições de assistência
espalhadas pela cidade e seus arredores; não teve vida o rei para acompanhar a
sua esposa, a rainha Dona Leonor, no lançamento das Misericórdias, mas no
seu testamento não esquecia o Hospital de Todos-os-Santos, acentuando que
queria que ele se regesse de forma idêntica à dos grandes hospitais de Florença e
de Sena. Nesse Hospital, a uma das grandes enfermarias foi dado como patrono
S. Cosme.
Para os outros santos dos “sufrágios” não é difícil encontrar motivo para
a devoção prestada: ao arcanjo S. Miguel confiava-se o patrocínio da pátria; a
Santo António entregava-se a protecção de Lisboa, pelo facto de ser natural da
cidade e tão próximo o rei se reconhecia que se interessou pela reconstrução da
casa onde ele nascera e a entregou aos cuidados do seu sucessor; não é difícil de
adivinhar o motivo de ter os Reis Magos como patronos, com a novidade de
a representação deles fugir a imagens comuns e escolher dois acompanhantes
como assistentes na governação que sob as vestes profanas assumem funções
régias delegadas. O LH espelha a vida real, sob máscaras específicas…

7. Novos tempos, novos Livros: um resgate a continuar...

Um Livro de Horas pode ser tomado como relíquia ou como reflexo


e testemunho de vida do seu possuidor. Não foi como relíquia (a não ser
nalgum caso particular) que os LH foram recebidos na tradição portuguesa;

língua galega; a análise de língua, porém, confirma o juízo de A. Viegas.


71
Cf. BROWN, Peter – The Cult of the Saints: Its Rise and Function in Latin Christianity. Oxford: Clarendon,
1981 (ed. francesa: Le Culte des Saints. Son essor et sa fonction dans la chrétienté latine (trad. Aline Rousselle). Paris:
Cerf, 1984); IDEM – The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity. «The Journal of Roman Studies»,
61 (1971), pp. 80-101. Em contraste com P. Brown, BEAUJARD, Brigitte – Le Culte des saints en Gaule. Les
premiers temps. D’Hilaire de Poitiers à la fin du VI.e siècle. Paris: Cerf, 2000, põe em destaque a origem aristocrática
e eclesiástica do culto dos santos, primeiro como modelos, depois como salvadores das cidades, enfim, como
patronos e beneméritos, porque intercessores; em funções disso explica que se tenham multiplicado as suas festas e
tenham dedicado igrejas em sua honra e se multiplicado também as narrativas dos seus milagres.
72
BLOCH, Marc Bloch – Les rois thaumaturges: Étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale,
particulièrement en France et en Angleterre. Paris: Gallimard, 1963.
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pelo contrário, tendemos a vê-los como espelho e prolongamento de vivências


pessoais dos seus possuidores: reagem eles a situações concretas, seja em
momentos de perplexidade seja em relações com algum mistério mais concreto.
Assim descobrimos D. Duarte quer quanto ao seu LH (que hoje nos aparece
vivencialmente mais integrado do que parecia) quer quanto ao Livro de orações
que tinha de seu pai e julgamos poder interpretar como exemplar que terá
passado pelas suas mãos (em renovação de texto). No caso do LH de D. João II, o
pequeno códice que recentemente foi identificado (e esperamos que brevemente
seja posto a público), revela-se como testemunho de um novo mundo em
mudança nas mãos do rei: este serve-se de um livro em que colabora um homem
de ciência (Diogo Ortiz) que traça inclusive coordenadas geográficas e que
acompanha o desenho do calendário do LH, mas deixa a mestre competente o
cuidado das iluminuras e das orações: andou esquecido esse livros, mas está em
vias de reintegração na comunidade científica e os estudiosos da personalidade
do rei podem reter nele traços espirituais de uma personalidade de excepção.
Com os LH apontados, mantemo-nos no século XV e a ele regressamos
para ganharmos horizontes de vida. Ao tempo, o livro manuscrito estava a
ser confrontado com o livro impresso, mas mantinha para oferecer encantos
próprios em tempos em que o homo typographicus interpretava novos anseios de
resposta à multiplicação de exemplares: Aldo Manúcio consegue aliar elegância
com sobriedade, mas confia a outrem o traço do desenho e da cor que retém o
encanto da experiência de tempos anteriores. Conviveram esses recursos durante
séculos: de um momento para o outro, nos nossos dias, saiu-nos a caminho o
homo digitalis que se deixou seduzir pelo instante e, no efémero do novo traço,
se debate com a fixação do registo para que não se perca a reverberação da
fantasia, mas salve as versões de texto que vão surgindo ao ritmo das batidas
do teclado: merece a versão poética ser transmitida quando encerra sentido
pleno. Com isso novos desafios se abrem ao Filólogo: em nome da Memória dos
Textos haveremos de saber articular os vários testemunhos da escrita e reter o
que merece fugir ao efémero dos dias para guardar o que permanece no coração
do Homem. Na diversidade das formas, muitos são os passos da História breve
da humanidade, mas o espanto de todos está no Homem que é capaz de viver
a esperança de responder à voz do divino, no encontro com o Homo Deus: fá-
lo, oferecendo a Palavra “transumanada” que, sendo plena, merece ecoar pela
eternidade73.

73
O termo “transumanar” como “exaltação dos valores humanos” lemo-la na carta apostólica Candor Lucis
aeternae que o Papa Francisco escreveu para celebrar o 7º centenário de Dante, poeta do divino e da esperança
humana: o divino é o limite aberto ao humano, em lealdade e sem concorrência, pelo que a atitude poética e
contemplativa significa disponibilidade para chegar à vida em plenitude e aspirar à transcendência do humano.
262
NASCIMENTO, Aires. A.
Livros de Horas na Corte de Avis: Revisão de Leituras e novos contributos, em busca de formas de piedade medieval
DOI: https://doi.org/10.21747/0873-1233/spi28v1 | VS 28 (2021), p. 235 - 263

Artigo recebido em 21/03/2021


Artigo aceite para publicação em 11/05/2021

Responderemos assim às questões de Yuval Noah Harari, tanto no Sapiens - História Breve da Humanidade como
em Homo Deus, onde brotam os anseios, sonhos e pesadelos que alimentam as fantasias do homem do nosso
tempo, atribulado com a luta contra a morte, mas tentado a fabricar a vida, em artifícios em que o criador corre
o risco de ser preterido em favor da criatura. Digno de atingir a luminosidade do divino é o Homem que o
procura nos caminhos da vida: em qualquer Livro de Horas, que a Idade Média nos legou, vibram fulgores da
luminosidade que são antecipação do que nos espera no termo dos dias breves que passamos na terra. Ao longo
deste ano de Dante, aberto à peregrinação celestial, vimos partir amigos queridos, quase todos imprevistamente:
voltarmos a estar juntos para partilharmos as alegrias em que eles foram recebidos e lhes dão plenitude que
também nós esperamos.
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