09VS28NASCIMENTO, Aires
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Livros de Horas na Corte de Avis: Revisão de Leituras e novos contributos, em busca de formas de piedade medieval
DOI: https://doi.org/10.21747/0873-1233/spi28v1 | VS 28 (2021), p. 235 - 263
AIRES A. NASCIMENTO
ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA
CENTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DE LISBOA
https://doi.org/10.21747/0873-1233/spi28v1
[email protected]
Em memória de
Gemma Avenoza(1959-2021)
na saudade de uma partida inesperada
ABSTRACT: We take up here the study of three Books of Hours from the
15th century in Portuguese collections: the Prayer Book of D. João I, the Book of
Hours of D. Duarte, and the Book of Hours of D. João II, the latter only recently
revealed to the public. We look at less noted particularities and reflect on contexts
of cultural integration: the figure of Alfonso de Cartagena and his relations with
D. Duarte is the key and cut-off point for dating the case of D. Duarte’s Book of
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Hours, but never taken into account; we also look at details never examined in
João I’s Prayer Book which will have also passed through the hands of the prince;
we also stress some particular traits in the life of piety of King João II from traits
revealed in his Book of Hours, knowledge of which has recently been made public,
and we emphasize exceptional personal qualities of this king, called “the Man” by
Isabella the Catholic when they gave her the news of his passing. We dedicate this
study to Gemma Avenoza, a scholar who came to Lisbon to attend our classes in
Codicology at the Faculdade de Letras and who distinguished herself in identifying
and recovering manuscript fragments, integrating them in their cultural context.
KEYWORDS: Books of Hours; Readings; Portugal; XVth century.
0. Aprofundar leituras
Lemos superficialmente: a fisiologia da leitura assim o comprova, pois
habituámo-nos a percorrer apenas o terço superior dos caracteres, manuscritos ou
impressos1; tarde nos reconciliamos com o texto e mais tarde ainda com a totalidade
do documento, sobretudo quando ele é singular e único, como acontece com
qualquer manuscrito2. Há que ler, prevendo e prolongando o que só encontramos
em interiorização pessoal que integre o que faltou recolher das pontas soltas
que fomos levantando e escaparam. De facto, como se fosse num espectáculo,
habitualmente entramos a meio da acção e saímos antes do fim: apressados,
deixamos que a vida se adiante e se imponha: a atenção é oscilante ou intermitente,
dá lugar a interferências que nos obrigam a interromper a participação em acto
que devia ser exclusivo e intenso; para nos redimirmos, às vezes pedimos a outros
que nos informem sobre a parte a que não estivemos presentes, mas só mais tarde
nos convencemos a voltar à leitura para mergulharmos no texto. Revemo-nos em
Umberto Eco e com ele não temos pejo em declarar que há livros que não lemos
inteiramente, mesmo quando dizemos tê-los lido para entrarmos no coro de bem
comportados; a eles voltamos quando incentivados por outros: foi esclarecedor o
colóquio tido por U. Eco com Pierre Bayard, em confidências de fronteira sobre
“como falar de livros que nunca li”3.
1
Por alguma razão a escrita epigráfica manteve o uso da maiúscula e evitou a minúscula, que tende a ser currens
– corrente porque permite deslizar segundo o movimento da mão, que abrevia e simplifica ou até deixa supor os
traços da escrita: está comprovado que a letra maiúscula obriga o olhar e percorrer cada letra de alto a baixo para
a identificar, o que implica demora de leitura em triplicado.
2
PIC, Muriel – Constellation de la lettre. Le concept de lisibilité (Lesbarkeit) en France et en Allemagne. «Po&sie»,
vol. 137-138, no. 3-4 (2011), p. 2a50-265.
3
Cf. BAYARD, Pierre – Comment parler des livres que l’on n’a pas lus? Paris: Minuit, 2007; tomei conhecimento
do debate que teve com Umberto Eco na New York Public Library a 17 de Novembro de 2007; soube dele ao
ser reproduzido em Le Magazine Littéraire do mês de Junho seguinte e acabei por reconhecer que era importante
voltarmos à sabedoria do aforisma medieval que apostava na previsão do conhecimento como antecipação: “nihil
cognitum nisi praecognitum”; experimentei, depois, o que era imaginar o conteúdo de um livro e verifiquei no
final que havia zonas tanto mais saboreadas quanto as havíamos previsto e o outro / o autor as havia enunciado:
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1. Leituras partilhadas
O estudo de exemplares dos Livros de Horas (LH) acumulados em colecções
portuguesas (arquivos e bibliotecas) mereceu, a seu tempo, a nossa atenção, mas
às vezes confiámos noutros, sem que eles tivessem que responder pela limitação do
que fomos apreendendo: de entre todos o mais atento foi Mário Martins, insigne
pelo saber e pela acutilância de juízo ou pela prudência de se rever em passos
bem medidos5; seguiu-se-lhe o empenho de investigadores de nova geração que,
sem pôr em dúvida a novidade do outro, reconheci que é útil antecipar aquilo para que se parte em busca da
novidade que nos surpreenda.
4
A experiência está feita com os textos da tradição bíblica, assumindo que é inesgotável a leitura dos textos sagrados
que aceita medir-se criativamente com as heranças do passado; a tensão criada no triângulo de um eu insaciado
em diálogo com outros que ousaram situar-se na mesma onda leva não raro a vibrações de consonância disforme
que não é necessariamente dissonante, mas complementar, mesmo quando passa pelo processo da tradução, pois
a dimensão histórica não se limita a repetir nem a dimensão filológica se fixa sobre o passado do texto. O tema
passou recentemente para a capa de livro de MENDONÇA, José Tolentino de – Leitura infinita. Lisboa: Assírio
& Alvim / Paulinas, 2014, mas estava dado, por exemplo, em BANON, David – La Lecture infinie: les voies de
l’interprétation midrachique. préfacé par Emmanuel Levinas. Paris: Seuil, 1987.
5
Sirva de exemplo o estudo de MARTINS, Mário – Guia Geral das Horas del-Rei D. Duarte. Lisboa: Brotéria,
1982: recolho-o com a dedicatória que recebi das mãos do seu autor, em 20.05.1982; procurou ele dar conta de
dados relativos a influências do LH em obras literárias e deduzir o uso e influência que estas “Horas para leigos”
tiveram em personalidades literatas como Gil Vicente. Aquele grande erudito dedicou particular estudo ao LH
do rei D. Duarte, mas não deixou de atender aos exemplares que se guardam nas nossas bibliotecas, dedicando
o seu estudo “à memória de minha mãe que também rezava as Horas de Nossa Senhora”. Quanto ao “itinerário
português dos Livros de Horas” que ocupa o cap. II, não falta referência ao “Livro de Horas feito por D. João I”
(que também para ele falha na estrutura do LH, mas se fica por “livro de piedade”, um libellus precum, um entre
outros) nem esquece as “Horas de Confissão de D. Pedro, o de Alfarrobeira”, cujo paradeiro se desconhece: desfaz
identidades e confusões entre Breviários e Livros de Horas em que caíram homens de cultura, como Reynaldo dos
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Santos, nem esquece referências a personalidades como Santa Isabel de Portugal (Crónica de D. Dinis), mas, com
argúcia e desenvoltura, desfaz equívocos de informação. Dona Filipa de Lencastre, que rezava o Saltério, seguindo
o costume de Salisbúria (como refere Fernão Lopes, Crónica de D. João I, tomo 2, p. 226, “às sextas-feiras”,
esconde-se numa designação de maior vulto; o Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo (Zurara, Crónica
da tomada de Ceuta, cap. 41), o Infante Santo (acompanhado por Fr. João Álvares, seu confessor) e a rainha Dona
Leonor são convocados e postos onde devem continuar; há outros casos referidos que vêm das Cantigas de Santa
Maria, por Afonso X (nº 55, 87) ou em memórias como as de D. João Estevéns, bispo do Porto em 1392; são
registados exemplares, segundo cotas de arquivo: ANTT, armário dos tratados, nº 9, CF, estante nº3, P7. Ao
elenco ali referido haverá que juntar alguns, como faremos mais adiante; seja, por exemplo: BPM Évora, cod.
CXXIX /2-10; BNP, Lisboa, FG, ms. 3069: Alc. 85, etc.); trata-se de elenco disperso na composição da poikilia
que se desdobra em ramalhete florido.
6
Certa vez, em tarde adiantada, recebi uma chamada telefónica de Mário Martins: não era frequente que ele usasse
desse expediente, mas notei de imediato que o ímpeto que punha na voz implicava denúncia; intimava-me ele a que
eu tomasse partido e denunciasse alguém: fora ele consultado sobre questão de manuscritos e quem o consultara
não entender o que o Mestre tinha sustentado, mas se propunha pôr a circular como se fosse ensinamento seu…
7
NASCIMENTO, Aires A. – Legere, perlegere: da singularidade epigráfica ao sentido do texto e do monumento.
«Sylloge epigraphica Barcinonensis: SEBarc» [em línha], nº. 8 (2010), pp. 11-27.
8
Com o passar dos anos, é-me difícil rever com nitidez qual foi o primeiro encontro que tive com Gemma:
possivelmente foi no I Encontro / Congresso da Asociación Hispánica de Literatura Medieval, em Santiago de
Compostela, ou ainda antes, nas nossas visitas a Santiago para discutir problemas de investigação; o encontro mais
marcante foi o do Seminário de Paleografia e Codicologia, organizado por Josep Trenchs, em Benassal-Castelò,
em 1990, em Seminário planeado por Manuel C. Díaz y Díaz, o qual, porém, devido a motivos de saúde, não
pôde comparecer, mas em que estivemos em convívio alargado com Gullielmo Cavalo, Léon Gilissen, Denis
Muzerelle e Carlo Ornato, entre outros. No final, Gemma veio ter comigo e pediu-me que a aceitasse a frequentar
o meu Seminário de Codicologia na Faculdade de Letras de Lisboa: depois de ler o que lhe indicara como base,
para completar a formação académica, propus-lhe eu que fizesse uma aplicação em estudo da Bíblia da Ajuda,
pois havia aspectos que me faltava resolver e tinha deixado em suspenso, porque exigiam leituras para que eu não
tinha tempo disponível e para ela me pareciam acessíveis por o texto estar em linguagem romance (castelhana e
catalã) que não me era familiar: não só aceitou com entusiasmo, mas não desistiu perante as questões que foram
surgindo; demorou dez anos, mas de cada vez que nos encontrávamos ia-me dando notícias, até que considerou
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resolvidos os intricados problemas que detectou e para cuja resolução consultou especialistas de várias disciplinas;
no final, brindou-me com um estudo a todos os títulos memorável, honrando-me com dedicatória tão simples
como generosa: AVENOSA VERA, Gemma, La Biblia de Ajuda y la Megil.lat Antiochus en romance, Madrid,
CSIC, 2001; Ead., Biblias Castellanas Medievales, San Millán de la Cogolla, Cilengua, 2011. O cólofon do ms
de Ajuda, 52-XIII-1, declara: “Esta Biblia fue del Rey dom Afomso que Deus aja e deola a Pero Bentez e Pero
Bentez a vendeo a Diogo Rodriguez, almoxarife da sisa judiega, e elle a vendeo a min, mestre Fernando, por seys
cruzados. E costou me de çulfar e emquadernar e iluminar a primera folha quattrocemtos reais etc.”. Tudo Gemma
esclareceu com competência. Se me não engano, a última conferência em que veio ao meu encontro, deslocando-
se de propósito para me acompanhar, foi quando tivemos ocasião de falar de manuscritos iluminados portugueses:
NASCIMENTO, Aires A. – Libros manuscritos de la Dinastía de Avís y de otros, en Portugal (siglo XV): de la devoción
a las Crónicas. In Seminario / Coloquio, organizado por Josefina Planas, Manuscrits Il.luminats: La tardor de l’Edat
Mitjana i les noves Llums del Renaixement, Lérida, 17-18 de noviembre de 2014. Teremos aqui oportunidade de
corrigir alguns deslises em que caímos por não termos ultrapassado análises de pormenor. A última vez que estive
com ela foi no Martinho da Arcada, lugar onde o poeta Fernando Pessoa gostava de se encontrar com os amigos
mais chegados; o reencontro que agora havemos de adiar terá lugar quando nos reunirmos todos à mesa do Pai
comum, Ele que, como cantou Dante e nós retomamos em ano centenário deste, é “luce etterna che sola in te sidi,
/ sola t’intendi, e da te intelletta / e intendente te ami e arridi!” (Par. XXXIII, 124-126)
9
A primeira referência vem-nos, efectivamente, do testamento de Dona Mafalda, filha de D. Sancho I, retirada
em Arouca, onde faleceu em 1256. Publicado diversas vezes com deficiências, teve leitura apurada em VELOSO,
Maria Teresa – A questão entre Afonso II e suas irmãs sobre a detenção de direitos senhoriais. «Revista Portuguesa de
História», 18 (1980), 197‑229, doc. 8, pp. 226‑228, e daí o tomou COELHO, Maria Helena da Cruz – Arouca:
uma terra, um mosteiro, uma santa. Arouca, 1989, doc. 19: “Item mando domne Orrace Sancii sorori mee… et
unum librum horarum Beate Marie coopertum de argento”. Para mais dados sobre a rainha Dona Mafalda, cf.
COELHO, Maria Helena da Cruz – O Mosteiro de Arouca - do século X ao século XIII. Coimbra: Universidade,
1977. Sobre Arouca e seus livros, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Livros e tradições hispânicas no mosteiro cisterciense
de Arouca”. In Escritos dedicados a José María Fernández Catón, Vol. II. León : Centro de Estudio e Investigación
«San Isidoro» e Archivo Histórico Diocesano, 2004, pp. 1041-1058 ; IDEM – Écouter la voix de l’Époux: les
stratégies de la spiritualité médiévale - l’intensification de lecture du Cantique des Cantiques (à propos de rubriques
d’un manuscrit cistercien portugais du XIII.e siècle)”. In FERRARI, Jean; GRÄTZEL, Stephan (ed.) – Spiritualität
in Europa des Mittelalters: 900 Jahre Hildegard von Bingen / L’Europe spirituelle au Moyen Âge: 900 ans de l’abbaye
de Cîteaux. St. Augustin : Verlag, 1998, pp. 53-64.
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3. “Impedimenta” ou “ornamenta”?
Faria parte do enxoval das rainhas o LH? Não temos quanto a isso
informação certa. Circularam, por exemplo, indicações relativas a um LH da
rainha Santa Isabel de Portugal a que os cronistas se referiam e houve até quem
o supusesse guardado em tesouro; quanto a essa pretensão, porém, logo Mário
Martins se pronunciou, alegando impossibilidade de isso se verificar, assumindo
que os dados disponíveis obrigavam a manter distâncias14: análise posterior e
10
Assim julgamos entender a análise de VAUCHEZ, André – La spiritualité du moyen âge Occidental (viii.e-xiii.e
siècle). Paris, 1994, pp. 7-8.
11
Não pareça que o termo é peregrino: “sendal / cendal ou sandal” era um tecido de seda ou outro tecido
muito fino, usado sobretudo em vestes rituais ou bandeiras; a palavra remete para o grego σινδών (sindōn), e
está também representada no antigo francês cendal e está em Bluteau, 1712-1728, vol. II, p. 236 e vol. VII, p.
577; a referência obrigatória era o gesto de José de Arimateia e de Nicodemos que tomaram o corpo de Jesus e o
depositaram num túmulo nunca utilizado, envolvendo-o num lençol de linho fino e precioso (Ioh. 19, 38-41).
Não é raro saber-se de um mesmo Livro de Horas guardado em família ao longo de várias gerações, tão apreciado
e acarinhado ele era, desde a infância, que por ele se aprendia a ler, até à idade mais adiantada, e a partir dele as
orações eram repetidas; ainda que não fossem inteiramente entendidas eram recurso de regresso.
12
Dona Urraca era filha bastarda de D. Sancho I e de Dona Maria Aires; casada com um poderoso senhor, Lourenço
Soares de Ribadouro, Dona Urraca Sanches foi importante legatária do mosteiro de Santo Tirso e do mosteiro
de Sobrado, na Galiza, razão pela qual era lembrada com o marido nos sufrágios do cabido de Santiago de
Compostela.
13
Por dificuldade de manuseamento por parte das monjas, o saltério de Lorvão, hoje no ANTT, foi desmembrado
da Bíblia latina, em tempos que não conseguimos determinar; propusemos, a seu tempo, que fosse reintegrado no
volume respectivo, mas a administração do ANTT assim não entendeu, mantendo a separação. Quanto ao uso de
um dos códices que chegou a Lorvão a partir de comunidade galega, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Osculetur
me osculo oris sui: uma leitura a várias vozes ou dramatização do Livro dos Cantares num manuscrito cisterciense de
Arouca. In Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, vol. I. Lisboa, 1991, pp. 49-56;
em revisão, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Écouter la voix de l’Époux: les stratégies de la spiritualité médiévale –
l’intensification de lecture du Cantique des Cantiques (à propos des rubriques d’un manuscrit cistercien portugais du
XIII.e siècle)”, in ob. cit., pp. 53-64.
14
MARTINS, Mário – Livros de horas. «Itinerarium», 1 (1955), pp. 406-423; IDEM – Um livro de horas da Rainha
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Santa?. «Brotéria», 78 (1964), pp. 439-445 (= Estudos de cultura medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Verbo,1969).
15
Cf. CASORRÁN BERGES, Ester; LAFUENTE ROSALES, Carlos María; NAYA FRANCO, Carolina – El
Libro de Horas del II conde de Lemos en el Tesoro del Pilar, tradicionalmente conocido como de Santa Isabel de
Portugal”. «Ars & Renovatio», 5 (2017), pp. 3-39.
16
Cf. NASCIMENTO, Aires A. – Santa Isabel de Portugal – a menina de Aragão coroada rainha em terras
portuguesas. Lisboa: Colibri, 2019, p. 75, nota 40.
17
Já atrás mencionámos o Seminario / Coloquio, organizado por Josefina Planas, Manuscrits Il.luminats: La tardor
de l’Edat Mitjana…
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18
MARTINS, Mário – Ob. cit., pp. 40 ss., considera que se “trata de um apógrafo do final de quatrocentos (ou
mesmo de dos começos de quinhentos”: se os elementos de língua conduzem a isso, havemos de reconhecer que,
quanto à inserção do nome dos santos não canonizados, vêm de trás e, pelos dados que já aduzimos, quanto a
S. Nuno e Santa Iria, eles são anteriores e sobretudo quanto ao primeiro nos reporta aos Infantes de Avis; seja
apógrafo, mas isso só pode demonstrar continuidade num percurso que não está identificado.
19
Sobre Santa Iria, cf. NASCIMENTO, Aires A. – Santa Iria: de virgem a mártir – memória fundante do nome
de Santarém. Santarém: Centro de Investigação Prof. J. Veríssimo Serrão, 2017; IDEM – Lenda de Santa Iria,
de virgen a mártir (a dificuldade de retomar os tempos que se atrasam). In RUIZ ARZALLUZ, Iñigo et al. (ed.) –
Estudios de Filología e Historia en Honor del Profesor Vitalino Valcácer. Vitoria: Publicaciones Universitarias del País
Vasco, 2014, vol. II, pp. 751-760.
20
Remetemos para monografia que dedicámos a essa figura: cf. NASCIMENTO, Aires A. – Nuno de Santa Maria.
Fragmentos de Memória Persistente. Lisboa: ARM, 2010. Resumindo: Nuno Álvares Pereira, herói das batalhas da
independência portuguesa, em 1385, faleceu em 1 de Abril de 1431; no primeiro aniversário da morte, é o Infante
D. Duarte quem entrega ao pregador franciscano, Mestre Francisco, o esquema detalhado do elogio a desenvolver,
exaltando “a avondança de virtudes que Deus lhe [a Nun’Álvares] outorgou”, e por isso “assim é de concluir que
Nosso Senhor Deus o coroou de coroa d’honra em esta via e segundo seus feitos e sua fim assim cremos que o é
e sempre o será na outra”; estava-se em Abril de 1432; cinco anos mais tarde, a 21 de Julho de 1437, D. Duarte,
então na sua qualidade de rei, procura saber junto do Abade beneditino de Florença, Dom Gomes, como vai o
processo de canonização do “do santo Condestabre per que se tire inquiriçom sobr’esto costumada”; nessa mesma
altura anuncia o rei o envio de uma oração composta em latim por seu irmão o Infante D. Pedro, em forma de
responsório latino. Também Dona Isabel, duquesa da Borgonha, tomou a iniciativa de o invocar dessa maneira,
ao inserir o seu nome num calendário organizado na Flandres para um Breviário, que por alguma razão tem sido
denominado “carmelitano”, mas que nos parece ter passado por Lisboa antes de chegar a Parma, levado por uma
princesa portuguesa, para nós Dona Maria de Portugal, descendente de Nun’Álvares Pereira, que casou com o
Duque de Parma, Alessandro Farnese.
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Outros dados remetem para personalidade conhecedora dos cultos da igreja local: é o caso da trasladação de
S. Vicente, colocada a 15 de Setembro, em Lisboa, e a festa de Santa Eyria em Santarém, precedida de jejum
obrigatório, em 20 de Outubro, ou também a festa de S. Crispim, a 24, em Lisboa, a comemorar a tomada da
cidade aos mouros em 1143; tem de ser assumidos como formas e usos locais outras referências a tradições de 2 de
Novembro, na celebração dos Fiéis Defuntos, com o costume de “pedir pão por Deus”.
22
Comenta Sousa Viterbo, loc. cit.: “Talvez o mesmo que vem mencionado na livraria de D. Duarte sob o seguinte
título Livro de rezar em que está a confissão geral: fazemos esta atribuição de um modo dubitativo, porque podia ser
do próprio D. Duarte sem ter pertencido ao pae”. Razão tinha aquele erudito e ilustre académico para exprimir
dúvidas; pela nossa parte, emitimos a hipótese de que quem caracteriza as invocações dos dois santos na ladainha
terá sido D. Duarte.
23
Haja dúvidas quanto ao trabalho realizado pelo rei (tradução ou adaptação por apropriação), o seu exemplo,
em acompanhamento de sua esposa, Dona Filipa, deve ter contagiado outros, sobretudo seus filhos: assim já
interpretava Mário Martins, que não deixa de trazer à colação a lembrança de D. Duarte relativamente a seu pai,
que “fez huũ livro de oras de santa Maria e salmos certos por os finados” (Leal Conselheiro, pp. 109-110). Quanto
ao Infante D. Pedro, a quem se atribuem umas “oras da confissom” por ele compostas, admite-se que dele seriam
algumas das que o seu filho, o Condestável D. Pedro, rei da Catalunha, regista nos seus livros “ab las quals lo dit
Senyor fahía lo offici” que na encadernação tinham as armas portuguesas. Quanto ao Infante D. Henrique, dele
escreve Gomes Eanes de Zurara, Crónica da tomada de Ceuta: “E ouvimos depois a Luis de Sousa, claveiro d’ordem
de Christo e seu camareiro moor e filho de Gonçallo Roiz de Sousa que, quando o dito Iffante [se] finou, lhe tirara
o dito lenho da Cruz e o dera a el-Rey em Evora com o sinete e o seu livro de rrezar” (o rei era D. Afonso V).
Quanto ao Infante D. Fernando, o cronista refere a recitação diária do ofício divino completo, segundo o que era
prática dos sacerdotes, incluindo as matinas: cf. ÁLVARES, João – Trautado da vida e feitos do muito virtuoso S.or
Ifante D. Fernando. Ed., introd. e notas de Adelino de Almeida Calado. Coimbra, Universidade, 1960.
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seja o Il. 4, pois é livro de devoção e não tem estrutura de Livro de Horas: aliás,
segundo refere o cronista, a rainha Dona Filipa rezava as horas (Ofício) segundo
o costume de Salisbúria e tão cumpridora era que, quando não o podia fazer,
ela própria procurava que à Sexta-feira alguém o fizesse por ela (ib., p. 226);
admitimos que o seu exemplo terá levado o marido a imitá-la, acompanhando-
se mutuamente.
10) Enfim, fosse por rotina fosse por convicção, houve entre nós quem
procurasse o LH para ser instrumento de piedade e devoção; se era procurado,
haveria que indagar as razões da procura, tanto mais que o LH só era acessível a
algumas bolsas; hoje consideramos os exemplares que ficaram como estrelas do
nosso céu: interrogamos esses códices como expressão de piedade e de cultura24.
11) No entanto, como já advertimos, a rigor, o Il. 4 não é um Livro de
Horas propriamente dito; na realidade trata-se de um livro de orações: começa
pela Missa de Santa Maria e segue por orações em português para a missa e para
outras ocasiões, em honra do Anjo da Guarda, em honra das Dores de Maria,
etc., umas dispersas e outras associadas, umas compostas de versículos de salmos
e de antífonas, outras individualmente dirigidas à Virgem Maria e a vários santos.
Livro de orações devotas não tem a estrutura do LH nem tinha de obedecer aos
requisitos dele; quanto ao calendário, podia admitir invocações fora dos “usos”
aprovados; a forma de apresentação mantém a forma convencional, mas é mais
simples e menos profissional a desse Livro de orações, quanto à delimitação
do texto, ao recorte da letrina inicial, às regras de empaginação, ao modo de
constituir versículos e indicar a resposta a eles25.
24
As motivações não são evidentes embora possam ser pressentidas pois eram mais supostas que declaradas. Apenas
para compor quadro recortamos algumas referências a pessoas afeiçoadas a Livros de Horas em documentação
medieval: é o caso de Afonso Eanes, em 1426, ou de João Vasques, que acompanhou Dona Isabel de Avis à
Flandres, 1428. Quanto ao primeiro, sabemos que Afonso Eanes era contador régio: em carta a D. Gomes Eanes,
abade de Florença, preocupa-se como os custos de execução das iluminuras no seu Livro de Horas e revela o
desejo de incluir nele um santoral, mas, depois, de terminar o trabalho de iluminuras, prescinde do trabalho de
encadernação do livro: está-se em 1426-11-22 (cf. Monumenta Henricina, Vol. III, doc. 83, pp.169-171). João
Vasques, do Bombarral, por lugar de origem, serviu D. Duarte e acompanhou a princesa Dona Isabel à Flandres,
para o casamento com o Duque da Borgonha.
25
Não nos detemos a acentuar contrastes: cada um, a seu modo, é livro de devoção, um menos formal e outro
mais estruturado segundo um padrão aceite, ainda que não imutável e com sequência obrigatória; um, livre na
progressão dos elementos acumulados, outro integrado em padrão comum. Entenda que o Livro de Horas era
um instrumento difundido entre os leigos como meio de seguir de perto o Ofício celebrado nos claustros, onde
monges e cónegos entoavam os louvores divinos.
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26
MARTINS, Mário – Livros de horas. Art. cit., pp. 406-423; IDEM – Um livro de horas da Rainha Santa?. Art.
cit., pp. 439-445: a pergunta é legítima e o ilustre conhecedor de cultura medieval conclui pela negativa: IDEM
– Estudos de cultura medieval. Vol. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1969.
27
São múltiplos os contributos que devemos a Mário Martins: não se esquece das “Horas de Confissão de D.
Pedro, o de Alfarrobeira”, desfaz identidades e confusões entre Breviários e Livros de Horas em que caíram homens
de cultura, como Reynaldo dos Santos; tem em conta casos como os de Santa Isabel de Portugal (Crónica de D.
Dinis), relativamente a quem desfaz equívocos de informação; aponta que Dona Filipa de Lencastre rezava o
Saltério, segundo o costume de Salisbúria (como refere Fernão Lopes, Crónica de D. João I, tomo 2, p. 226, “às
sextas-feiras”), nem do Infante D. Henrique, Mestre da Ordem de Cristo (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta,
cap. 41), não deixa de apontar o Infante Santo (acompanhado por Fr. João Álvares, seu confessor) ou a rainha
Dona Leonor; lembra também outros casos como o que recolhe das Cantigas de Santa Maria por Afonso X (nº 55,
87); traz a juízo memórias como a de D. João Estevéns, bispo do Porto, em 1392; percorre outros casos segundo
cotas de arquivo: ANTT, armário dos tratados, nº 9, CF, estante nº3, P7; Évora, BPM, cod. CXXIX /2-10; BNP,
Lisboa, FG, ms. 3069: Alc. 85.
28
Entre os nomes mais sonantes são de citar Reynaldo dos Santos, E. Panofsky, Maurits Smeyers, referidos por
LEMOS, Ana – Um novo olhar sobre o Livro de Horas de D. Duarte. In BARREIRA, Catarina Fernandes; SEIXAS,
Miguel Metelo de (ed.) – D. Duarte e a sua época: arte, cultura, poder e espiritualidade. Lisboa: Univ. Nova, IEM
– CLEGH, 2014, pp. 211-240; esta investigadora, aliás, condensa e ajusta as reflexões que recolhe, sem analisar
por conta própria.
29
No caso concreto do Livro de Horas de D. Duarte, por certo, o estado de conservação do códice exige cuidados,
mas tem sido maior o respeito por uma “relíquia” recebida e falta identificar o estado primitivo e responder por
uma análise consiste de dados; efectivamente, os fólios foram materialmente marcados com números de rotulador
e com carimbos de arquivo, sem previamente garantir a idoneidade da sequência codicológica. Pela nossa parte,
não ousámos contrariar o que encontrámos e não tivemos ensejo para constituir um “mono” que nos permitisse
simular a ordenação primitiva, como seria de regra, perante uma encadernação fragilizada. Aceite-se agora o
que acentuamos quanto a intervenção que consideramos devida a D. Duarte, legítimo proprietário. Porém, não
se tome isso como autógrafo o resultado que admiramos, pois existem indicações de que ele, D. Duarte, tinha
escrivães ao seu serviço, como era Vicente Domingues, vassalo que foi depois de el-rei que D. Afonso V e este
aposentou a 25 de Janeiro de 1446 (cf. VITERBO, Sousa – A livraria real, especialmente no reinado de D. Manuel
I”. In Mem. Acad. Sciências, 2ª clas., tom. 9, fasc. 1) e como era João Gonçalves, escrivão da puridade do mesmo
D. Duarte, que escreveu parte da Vita Christi, que depois passou para o scriptorium de Alcobaça, levado por Dom
Estêvão de Aguiar, em tempo do governo do Infante D. Pedro, a quem continuou a servir.
30
Este registo acompanha no fundo do fólio o escudo do príncipe, que está dentro da letrina inicial: não se leia,
porém, o genitivo de posse como dativo de oferta, pois seria trair os dados patentes.
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31
Temos reticências a levantar às propostas: só a análise deveria demonstrar ou infirmar traços de solidariedade
material ou escrita, convergentes ou divergentes num todo bem definido. Mais adiante, analisaremos as orações
que D. Duarte dirige a S. Sebastião e a S. Jorge: respeite-se, porém, a formalidade do texto e não se ajuste o latim
a concepção moderna. Algumas reservas nos merecem as considerações feitas por CUSTÓDIO, Delmira M. R.
M. S. Espada – Relações artísticas entre Portugal e Flandres através dos Livros de Horas conservados em instituições
portuguesas. Lisboa, Universidade Nova, 2017. Tese de Doutoramento. Seguidamente, apontaremos outros dados
de situação.
32
A ausência para estrangeiro por parte do Infante D. Pedro sempre foi um enigma para historiadores e usada
como deriva fácil para fantasias novelescas; que tivesse sido em expiação por um homicídio de um miles deixa
cair sobre ele uma mancha que não tem sido comentada ou se tem evitado fazer. Ora, não há que esconder o
que está numa reacção à passagem do príncipe por corte estrangeira; cf. RATISBONENSIS, Andreas – Diarium
Sexennale. Vol. I, p. 27, ed. A. F. Oefele, in Rerum Boicarum Scriptores, Augustae Vindelicorum, 1763: “Dicebatur,
quod dictus Petrus filius Regis Portugalie quendam militem occiderit. Ob hoc pater suus volens in eum proferre
sentenciam intercessione procerum fuit liberatus et tali pene subiectus, quod tribus annis terras alienas peragraret,
quibus transactis in terram propriam posset redire”.
33
“Carta que o Jfante dom pedro emujou a el rey de Bruxas”. In Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Livro da
Cartuxa (ed. J. Alves Dias). Lisboa: Estampa, 1982, pp. 27-39.
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irmão, por parecer fácil encontrar explicação para a recolha por ele, apenas ficar
despertos para outra hipótese34.
2) Menos consta ainda relativamente ao relacionamento dos embaixadores
com D. Duarte quando vêm tratar do casamento do Duque da Borgonha com
Dona Isabel de Avis35; em concreto, não parece que as circunstâncias fossem
adequadas para isso: efectivamente, os embaixadores, que chegaram a Lisboa,
foram encaminhados para Avis, onde o rei se refugiara por motivo de peste
e onde esperava a noiva de D. Duarte, filha do rei de Aragão, Dona Leonor.
Segundo consta, esta princesa de Aragão tinha estado nas intenções directas
de Filipe da Borgonha para casamento, mas, segundo se pode ler em relato
contemporâneo, o atraso dos embaixadores do Duque tinham levado o rei de
Aragão, Alfonso V, a decidir o casamento com o Príncipe português: disso o rei
pede desculpa ao Duque da Borgonha, alegando atraso dos seus embaixadores
e impaciência da noiva36; nessas circunstâncias, havendo informação do que se
está a passar, não era de admitir que houvesse oferta de livro em momento em
que o Duque da Borgonha mandava pedir o retrato de Dona Isabel de Avis para
tratar do pedido de casamento: a princesa, obviamente, devia ser pedida ao pai e
não ao irmão (que estava a receber a mão da princesa de Aragão)37.
34
A irmos pela intermediação de D. Pedro, esperaríamos que ele se tivesse interessado por LH em circunstâncias
como as que se documentam para outros seus acompanhantes quando passam por Florença, como aconteceu com
Afonso Eanes, referido atrás. Quanto a exemplares de livros que fizeram parte da biblioteca de D. Duarte, não há
dados que comprovem terem alguns pertencido ao Infante D. Pedro antes de passarem para o irmão.
35
O casamento de D. Duarte tinha ocorrido antes do de Dona Isabel, como era previsível para o primogénito
real: cf. “Contrato de casamento do rei D. Duarte, sendo infante, com a Infanta D. Leonor de Aragão, aprovado,
ratificado e confirmado pelo rei D. João I. 1428-11-04 / 1428-12-02”: Lisboa, ANTT, Gav. 17, mç. 7, n.º 19.
36
Cf. Monumenta Henricina, vol. 3, doc. 81, pp.164-165: “Preuijs vestris ambassiatoribus, pro longa mora
detentis, accrescente cothidie inclite infantisse, nostre germane dilectissime, etate jllamque iam maritali iugo
porrigi exposcente, cum illustri principe Odoardo, primogenito et futuro rege regni Portugalie, de ea paucis
antehac diebus coniugium tractauimus atque fecimus, quod huiusmodi contextum vestre illustri magnificentie
notum deducimus, vt exinde sitis plenarie aduisatus”.
37
O rei português D. João I correspondia-se com o duque da Borgonha: conhece-se, aliás, um presente de quatro
cavalos enviados ao duque por D. João I, em 1423 (desde que o duque ficou viúvo da segunda esposa, também
o rei português se interessou por saber quem viria a ser a sua pretendida e é nesse âmbito que passa a entrar em
consideração a princesa portuguesa, Dona Isabel). Os embaixadores de Filipe da Borgonha chegaram antes do
Natal de 1428, quando o rei D. João I se encontrava em Extremoz a fim de esperar Dona Leonor de Aragão que
vinha celebrar casamento com D. Duarte; os flamengos, chegados a Lisboa, foram encaminhados para o Alentejo,
trazendo com eles o pintor Jan van Eyck, encarregado de pintar o retrato de Isabel; foram recebidos no castelo
de Avis, em 1428; para executar o retrato, o pintor se demorou nove meses; o casamento de Dona Isabel de Avis
/ Portugal foi decidido, após a aceitação do Duque borgonhês e foi realizado por procuração em Lisboa, a 29 de
Julho de 1429; a noiva partiu para Bruges (Écluse), onde chegou a 6 de Dezembro: o casamento foi ratificado a
10 de Janeiro de 1430. Conclui-se, pois, que o casamento de D. Isabel é posterior ao de D. Duarte (cujo contrato
de casamento tem a data de 16-2-1428, mas veio a ser realizado em vésperas de Natal anterior). Revendo os factos
importa situar os acontecimentos: 1) à hora da morte, Dona Filipa de Lencastre, ao ser-lhe recordado por Beatriz
Gonçalves de Moura, sua aia, que esta tinha uma filha e devia ser encomendada ao herdeiro, ela lhe respondeu que
o irmão sabia assumir as responsabilidades perante a sua irmã Isabel. 2) A recomendação de Dona Filipa quanto
ao casamento atrasou-se: o duque da Borgonha apareceu tarde, pois andava perdido em aventuras (nada menos
que 24 amantes conhecidas e 3 casamentos, incluindo o de Isabel de Avis) e procurou uma esposa em terras mais
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próximas, incluindo o reino de Aragão, mas sem sucesso. 3) O príncipe herdeiro, D. Duarte, jura pela memória
da mãe que respeitará os direitos da irmã, mas não a forçou a escolhas. 4) O rei D. João I, por motivos de peste,
deslocara-se para Avis e para aí se dirigiram os embaixadores a entabular negociações e a receber a promessa de
aceitação de desponsórios em Estremoz. 5) O quadro com o retrato, que se perdeu e hoje se conhece apenas por
cópia, tinha a acompanhá-lo a inscrição, em francês: “L’INFANTE DAME ISABIEL – C’est la pourtraiture qui fu
envoiié à Ph[ilipp]e duc de bourgoingne et de brabant de dame Ysabel fille de Roy Jehan de portugal et d’algarbe
seigneur de Septe (Ceuta) par luy conquise qui fu depuis fem[m]e et espeuse du desus dit duc ph[ilipp]e”.
38
No LH de D. Duarte: Comemoração de Santa Cruz e de Santo Eduardo (fl.1); Oração a São Sebastião e Oração
a São Jorge (fl.1v); Sufrágios por alma do pai e da mãe de D. Duarte (fl.50v). Quanto a Santo Eduardo, tenha-se
em conta o texto de Mathew Paris (m. 1259), La Estoire de Seint Aedward le Rei, redigido em anglo-normando (A
Vida do Rei Santo Eduardo, ms Cambridge, BU): a S.to Eduardo dedicou algumas orações: cf. GOUTTEBROZE,
Jean-Guy – Structure et sens des textes de prières contenus dans la Estoire de seint Aedward le rei. In La prière au Moyen
Âge. Presses Universitaires de Provence, 1981, pp. 299-314.
39
A Infanta Dona Catarina, filha de D. Duarte e de sua mulher, Dona Leonor de Aragão, nasceu em Lisboa a
25 / 26 de Novembro de 1436 e faleceu na mesma cidade a 17 de Junho de 1463; é plausível a hipótese de a
estampa de Santa Catarina ter sido inserida no Livro de Horas no Livro de Horas de seu pai, à distância de dois
anos da morte do rei. Quando faltou o pai, cuidou da sua edução o tio, D. Pedro e este entregou-a aos cuidados
dos arcebispos de Lisboa, D. Afonso Nogueira, primeiro, e D. Jorge da Costa, depois. Quanto à estampa, é de
perguntar se a inclusão da iluminura tem marcas falantes: também nisto será necessária análise material da inclusão
dessa estampa, solidariedade material e ajustamento de situação.
40
ANTT, CF 140 / liv. 65: “fame, peste, morbo, grandula, rabie, tempestate, infirmitate tocius corporis et anime”.
248
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41
Conhecem-se pelo menos dois documentos de Maio e Junho, de ano indeterminado, em que o Infante D.
Duarte, associado ao governo de seu pai desde 1421, determina que seja observado um período de quarentena
ao largo de Lisboa por navios suspeitos de trazerem tripulantes empestados e censura o concelho de Lisboa por
ter permitido que um navio inglês aportasse com tripulantes atingidos pela doença que originaram um surto de
peste na cidade e propõe medidas sanitárias para a combater: AML-AH, Chancelaria Régia, Livro dos Pregos, doc.
331 (data incerta: 1421-1433, Maio, 3, Santarém). Outro tanto determina em Julho, 10, Santarém: /CMLSB/
ADMG-E/09/333 ARQUIVO HISTÓRICO, Livro dos Pregos, doc. 333. O Príncipe devia, aliás, lembrar que sua
mãe, a rainha Dona Filipa de Lencastre, falecera vítima de peste, em 1415, e que seu pai. D. João I, prestes a partir
para a viagem a Ceuta, estava fora de Lisboa, por motivo de peste na cidade, e por essa mesma razão os Infantes D.
João e D. Fernando tinham sido impedidos de se aproximarem da mãe no leito de morte.
42
ANTT, CF 140 / liv. 65: “Miles Christi gloriose, / laus, spes, tutor Portugalie, / fle[c]te gentis ceruicose / dum
corda contrarie / fac discordes graciose / reduci concordie / ne sternatur plebs clamose / empta Christi sanguine”.
Repare-se nas rimas, recurso que era resultante de elaboração poética: não presumimos que a formulação rimada
fosse do próprio D. Duarte, mas foi certamente aceite por ele.
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43
Como diremos, apoiados em análise já elaborada por outros, a embaixada castelhana pretende garantir o apoio
de Portugal na ofensiva que Castela pretende manter contra Granada e que o rei português não pode assumir,
pois isso punha em causa a presença em Ceuta e as acções que estão em curso na ocupação das Ilhas atlânticas.
44
Grande erudito, Alfonso de Cartagena, no período em que esteve em Portugal, conviveu com D. Duarte, que o
trata como deão de Santiago (funções que tinha, de facto, desde 1415): diplomaticamente, era homem inflexível,
mas, em privado, as relações tornaram-se frutuosas para ambos os lados e o jurisconsulto que era Cartagena cedeu
o lugar a negociações culturais com o príncipe: em 1421-22, em Lisboa, o Príncipe solicitou-lhe o Memoriale
virtutum e ele não recusou escrevê-lo, pois ficara edificado com o seu interlocutor e pudera testemunhar que
ele era exemplo de virtudes, tanto teologais como cardiais e apenas lhe faltava uma exposição que as formulasse
em língua romance; aí começa a vida literária de Alfonso: cf. La traducción castellana del Memoriale virtutum de
Alfonso de Cartagena (ed. Mar Campos Souto). Burgos: Instituto Municipal de Cultura, Ayuntamiento, 2004 (a
partir de cópia póstuma que o editor coloca entre 1474-96); melhor outra edição: CARTAGENA, Alfonso de –
Memoriale virtutum (ed. Jeremy N. H. Lawrance e María Morrás). Leiden: Brill, 2019 (ed. sobre versão de 1422):
a obra é apresentada pelo autor como “primogenita scripturarum mearum”; noutro plano, em anos posteriores, D.
Duarte solicitou também a Cartagena a tradução do De inuentione de Cícero, depois de terem trocado reflexões
sobre o modo de traduzir; seguidamente, terá havido lugar para a tradução do De senectute (datado de 1422, em
Montemor-o-Novo, 10 de Janeiro) e do De officiis de Cícero (primavera de 1422); por outro caminho terá o
Infante D. Pedro, tentando ler esse último texto ciceroniano sob orientação de Frei João Verba, quando D. Duarte
pedia o tratado de retórica a Cartagena: cf. NASCIMENTO, Aires A. – Traduzir, verbo medieval: as lições de
Bruni Aretino e Alonso de Cartagena. In Actas - II Congreso Hispánico de Latín Medieval (León, 11-14 Noviembre de
1997). León, 1998, vol. I, pp. 133-156; MORRÁS, María – Sic et non: en torno a Alfonso de Cartagena y los studia
humanitatis. «Euphrosyne», 23 (1995), pp. 333-346; VALERO MORENO, Juan Miguel – Alfonso de Cartagena
intérprete de Séneca, sobre la clemencia: el presente del pasado. «Atalaya» [En ligne], 16 | 2016, mis en ligne le
13 juillet 2017, consulta em 09 Março 2021. URL : http://journals.openedition.org/atalaya/1883. Consideram
outros que os denominados “Cinco livros de Séneca”, que compreendem a “De providentia, De vita beata, De
artibus liberalibus, De admonitionibus, De clementia”, foram traduzidos por encomenda de Juan II e se tornaram
tratados de leitura frequente por parte dos nobres castelhanos da época, quer em actos de leitura colectiva na corte
quer reflexões feitas em privado sobre exemplares tomados a partir da tradução primitiva. A embaixada a Lisboa
foi culturalmente muito frutífera, apesar das negociações políticas difíceis.
45
Para nos reportarmos à situação vivida em Portugal, permitimo-nos remeter para MORENO, Humberto
Baquero – Balanço de um século no Portugal anterior ao encontro do Brasil. «Arquipélago» – História, 2ª série, 5
(2001), pp. 545-560. Efectivamente, “a paz entre Portugal e Castela foi assinada em Ayllon no dia 31 de Outubro
de 1411; a sua validade manter-se-ia até quando João II de Castela, que era menor, alcançasse a maioridade;
nascido o monarca em 1405, de acordo com as leis de Castela, seria apenas em 1420, quando cumprisse quinze
anos, que alcançaria esse estatuto”. As coisas prolongaram-se até à data referida acima, em boa parte devido à
questão de Granada, para a qual o rei de Castela pretendia garantir apoio por parte do rei de Portugal e este
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orientava para Ceuta as forças que conseguira reunir, canalizando-as depois para a empresa dos Descobrimentos
nas Ilhas Atlânticas, questão que não agradava a Castela, pelo que houve embates na Grã-Canária.
46
Comprova-se hoje que, em 1422, já Alonso de Cartagena iniciara a tradução de algumas obras de Cícero (De
officiis, De senectute, De amicitia), pedidas por Juan Alfonso de Zamora, a rogo do rei castelhano Juan II, Trastâmara
(1405-1454). No final de 1421, terá escrito um De concordia pacis (que não se conservou). A pedido de D.
Duarte, como assinalámos, traduziria o De inventione de Cícero e para o mesmo escreveria o Memoriale virtutum,
esta “primogenita scripturarum mearum”, como acentuámos atrás. Maior eco tiveram, depois, as polémicas que
sustentou com o humanista Leonardo Bruni de Arezzo (Aretino) sobre a tradução latina da Ética de Aristóteles em
defensa da antiga tradução de Roberto Grossatesta, entrando então em conflito com Bruni, Poggio, Decembrio
(entre outros), e, nesse contexto, escreveu Declinationes super translationem Ethicorum (c. 1432); não é de menor
importância saber-se que Cartagena conheceu a obra de Aristóteles na sua embaixada a Lisboa, em 1426, por
ter ouvido falar dela a um jurisconsulto português, Vasco Rodrigues, então regressado de Bolonha e em trânsito
para Braga (possivelmente o mesmo que foi chantre bracarense em 1431), a quem teria ouvido falar de um
manuscrito precioso de Aulo Gélio na biblioteca da Alcobaça. Entretanto, entregara-se também a traduzir o
De clementia de Séneca e outros textos clássicos. Cf. M. SALAZAR, Abdón – El impacto humanístico de las
misiones diplomáticas de Alonso de Cartagena en la corte de Portugal entre medievo y renacimiento (1421-1431)”.
In DEYERMOND, A. D. (ed.) – Medieval hispanic studies presented to Rita Hamilton. Londres: Tamesis Books,
1976, pp. 215-226; CARTAGENA, Alonso de – Libros de Tulio: De Senetute, De los Ofiçios (ed., prol., notas de
María Morrás). Alcalá de Henares: Universidad, 1996; LAWRANCE, Jeremy N. H. – Humanism in the Iberiam
Peninsula. In GOODMAN, Anthony; MACKAY, Angus (ed.) – The impact of Humanismo n Western Europe.
London: Longman, 1989, pp. 220-258.
47
Cf. COSTA, António Sousa – Alfonsi de Sancta Maria, episcopi Burgensis, allegationes super conquesta insularum
Canariae. In Monumenta Henricina, VI, 1964, pp. 139-199.
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48
Em nota complementar, acentue-se que, entretanto, Alfonso de Cartagena foi nomeado bispo de Burgos e
voltaria a ocupar-se de questões portuguesas no Concílio de Basileia, onde se bateria pelo direito de Castela às
Canárias, mas onde ouviria da parte dos representantes portugueses, D. Antão Martins, bispo do Porto, a proposta
do Infante D. Henrique como candidato ao Papado; cf. PRADO, André do – Horologium Fidei - Diálogo com o
Infante D. Henrique (ed., tradução e notas de Aires A. Nascimento). Lisboa: IN-CM, 1994.
49
Importa acrescentar o conjunto de 9 LH manuscritos, do século XV, que pertenceram à Casa do Infantado
(criada por D. João IV, em 1654) e passaram ao Brasil quando a Coroa para ali se deslocou, em 1807: cf.
FAILLACE, Vera Lúcia Miranda (org.) – Catálogo dos livros de horas da Biblioteca Nacional do Brasil. Rio de
Janeiro: FBN, 2016: de particular importância é a análise feita por François Avril, que identifica as atribuições
a fazer aos iluminadores, aos quais identifica na sua origem flamenga, alguns, e outros na sua origem francesa, a
maior parte (ib., pp. 13-20), 4 denunciados por calendário de uso francês (mss. 50,1,010; 50,1,016; 50,1,019;
50,1,022 e 50,1,023). Retenha-se, como já referimos, que, como lemos em CASORRÁN BERGES, Ester;
LAFUENTE ROSALES, Carlos María; NAYA FRANCO, Carolina – El Libro de Horas del II conde de Lemos en el
Tesoro del Pilar, tradicionalmente conocido como de Santa Isabel de Portugal. «Ars & Renovatio», 5 (2017), pp. 3-39,
“las “horicas guarnecidas” habían convivido con otra tipología de libritos, los “libritos-relicario”, expandiendo su
morfología hacia las joyas pinjantes denominadas como “capricho” o reproducciones en metal de las formas de
objetos cotidianos en miniatura”. Em VITERBO, Sousa – loc. cit., colhemos referências a outros manuscritos
guardados na Biblioteca Real: no tempo de D. Manuel I, “huũ liuro de rezar que tem Álvaro da Costa…”, “cem
liuros de oras de nosa senhora grandes em linguagem encadernados de tauoas, meos cobertos de coiro”. Era tempo
da chegada da imprensa e por isso se multiplicaram os livros de oração em novo formato e tão fácil era obter
exemplares que a rainha os enviou à “molher do Preste” um “lyvro de purgaminho de letra de mão enluminado
todo de images e cuberto o dito lyvro de borcado de pello pardo rico forrado de cetym carmesym cõ hũ registo
douro douro fyado e aquayrelado cõ hũa traça douro e com quatro enxarrafos de prata e ouro e duas brochas
de prata de fyllagrana douradas em que estam senhos escudos en que siã en cadhũ deles dous lobos por armas”.
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troco de soma pecuniária, dá acolhimento em Roma, em 1492, ao sultão turco Bajazet II, que foge de Bizâncio, e
recebe dele a dita lança de São Longuinho (com a qual o ladoflanco de Cristo teria sido perfurado).
55
Atenda-se ao original latino, para que não restem dúvidas e se possam ultrapassar dúvidas de tradução anterior
(aliás, como assinalamos, notamos perda de uma palavra que julgamos passível de reconstituição e importa
assinalar que é fácil ler a forma latina como se ela fosse forma portuguesa, mas pouco explica, mesmo que se diga
“ínclito”): “Pretereo consulto multas admirandas incliti animi et copia dotes: proceritatem, formam insignem,
animi magnitudinem, libertatem, integritatem, integerrimam vitam, moderationes, fidem, constantiam. In re
militari virtutem, in administrando regno iustitiam, et omni genere prudentiam, in deum religionem, in regnum
et in subditos pietatem. Pretereo virtutis et industrie laudes, pretereo glorie et victoriarum monimenta, pretereo
[notitias] quo astu, quo consilio, qua prudentia, qua animi fortitudine propalatas: diuino nutu duorum ducum
factiones dissimulat et factiosos castigat”
56
RESENDE, Garcia de – Liuro que tracta da vida & grandissimas virtudes & bõdades, magnanimo esforço, excelentes
costumes & manhas & muy craros feitos do christianissimo... el rey dom Ioam ho segundo deste nome..., vay mais
acrescentado nouamente a este liuro hũa Miscellanea em trouas do mesmo auctor. Évora: Andree de Burgos, Mayo,
1554; para outros aspectos mais alargados, cf. SANCEAU, Elaine – O príncipe perfeito (trad. Álvaro Dória). Porto:
Livraria Civilização, 1952.
57
Contrariamente ao que foi alvitrado por Manuela Mendonça, bastaria um pouco de reflexão histórica e de
sensibilidade humana para perceber que, na voz de Isabel de Castela, o epíteto não era depreciativo, como se
entende pelas palavras do cronista: exprimia dor e respeito por quanto D. João de Portugal sofrera (com a morte do
filho, casado com a filha dos reis de Castela) e significava também respeito por quem, em vida, soubera merecê-lo;
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significava também admiração por quem sabia governar: a Crónica de Garcia de Resende, cap. 163-167, é factual
e mostra isso à saciedade. Assim, a recusa dos embaixadores castelhanos em Lisboa que vinham mal preparados
(“um, Pedro de Ayala, manco de uma perna, e outro, Garcia de Carvajal, muy vão”), foram despedidos sem
perda de tempo; pelo contrário, para discutir questões desse calibre, aos embaixadores de D. João II, enviados a
Medina del Campo nada puderam contrapor: percebendo que as condições de entendimento eram ditadas pelo
rei de Portugal, já senhor de domínios que se pretendiam dividir, reconheceram os castelhanos que os tema não
admitiam discussão: de facto, D. João II já tinha tomado medidas com vista a saída de uma armada sob comando
de D. Francisco de Almeida e apenas havia que ratificar o que o rei assinalava…
58
VEGA, Lope de – Comedia famosa del Principe Perfeto, fl. 130 (ap. Onzena Part de las Comedias de Lope de
Vega Carpio. Madrid: Viúda de Alonso Martin de Balboa, fl. 122v-147v; SAMPAIO, Cristóvão Ferreira e – Vida
y Hechos del Principe Perfeto Don Juan Rey de Portugal segundo deste nombre. Madrid, 1626; MARTINS, J. P. de
Oliveira – O Principe Perfeito. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1896. Cf. RODRIGUES, Maria Idalina
Resina – Simpatias, inimizades e algumas confusões: D. João II, no teatro de Lope de Vega. «Revista de Filología
Románica», 11-12, Univ. Complutense, 1994-95, pp. 63-80.
59
Efectivamente, as relações da rainha Isabel de Castela com D. João II eram familiares e não evitavam título
de dignidade e nobreza: não apenas o casamento dos seus filhos o demonstrava, mas também os modos de tratar
questões de Estado ultrapassavam o plano diplomático, pois combinavam embaixadas e defendiam interesses
comuns, quer fosse em política concertada contra o rei de França quer fosse em resolução de questões de interesse
que envolvia os dois países, como foi a assinatura do Tratado de Tordesilhas, a 7 de Junho de 1494: cf. FONSECA,
Luís Adão da; CUNHA, Cristina – O Tratado de Tordesilhas e a diplomacia luso-castelhana no século XV. Lisboa:
INAPA, 1991. Bem sabiam os reis de Castela que D. João II tinha por ele a navegação até ao Cabo de África; o
cronista João de Barros regista: “Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa
dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso, mas el-rei D. João II lhe chamou cabo
da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada”. Os cosmógrafos do rei
D. João II julgaram improcedentes as propostas de Colombo de chegar à Índia viajando para Ocidente e o rei
respondeu-lhe com pundonor à sua arrogância, mantendo-o a distância e poupando-lhe a vida quando outros
queriam atentar contra ela para se desfazerem de mais um importuno. Quanto ao conceito que outros reis tinham
de D. João II, baste o testemunho do rei Carlos de França: se tinha contra ele a cristandade inteira, como lhe
queriam fazer crer, respondeu que bastava-lhe ter por ele o rei de Portugal (RESENDE, Garcia de – Cronica…
Ob. cit., fl. 89, cap. 153).
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demonstrar que é epidíctico, ainda que sem encobrir defeitos: o rei não era
galante, talvez, mas tinha elegância na sua estatura que era graciosa, i. é,
proporcionada; o seu porte era grave, mas cheio de humor, quando estava com
fidalgos mais chegados; tinha afabilidade de trato e gostava de ser agradável,
se a situação o permitia; quando se entregava a negócios da administração
procurava que eles fossem entregues a gente de virtude, pois deixava entender
que “o rey trabalhava quanto nelle era de buscar pera hos ofícios de justiça & da
sua fazenda homens virtuosos, de boa tençam & de bom saber” (Crónica, cap.
177); cuidava da defesa e era precavido: assim, para a entrada de Lisboa previu
caravelas ligeiras que servissem para acorrerem ao perigo e foi ele que concebeu
a Torre de Belém para esse efeito, embora quem viesse a executar a obra fosse
D. Manuel (cap. 180). Era o rei moderado em folguedos, embora não os
enjeitasse; era comedido nas palavras e nos prazeres da mesa, astuto e inteligente
para não se deixar enredar por influências e amizades, mesmo que vindas de
familiares; recto nos julgamentos, fiel aos amigos; no casamento, excedeu-se
em alguns deslises (com Ana Furtado de Mendoça, “muito fidalga e de mui
nobre geração”, senhora da corte da Beltraneja, com a qual teve um filho, D.
Jorge, que procurou proteger e educar60; de outra, de nome Boa Dona, pouco
sabemos61); destro em terçar armas, foi também amigo das letras; ponderado
e sobretudo reflectido, não hesitou em arrepiar caminho na primeira ocasião,
a ponto de se arrepender de alguma palavra menos ponderada e se levantar de
noite para ir pedir desculpa (um caso ocorreu com Ruy de Sousa, cap. 172);
do rei diz o cronista que era justo na atribuição de cargos e mercês sem atender
a intermediários. Era homem, sujeito a falhas, mas capaz de tentar redimir-se
delas…
Retenhamos do cronista os predicados de piedade e o quadro das devoções
e práticas mantidas pelo rei D. João II: a
foy muy catolico & en grande maneira amigo de deos e temente a elle &
muito devoto da Paixão de Nosso Senhor Jesu Christo & da Sagrada Virgem
60
Um ilustre comentador universitário chega a aventar a hipótese de a concepção de D. Jorge ter tido a
concordância de Dona Leonor, à maneira patriarcal bíblica: cf. RAMALHO, A. Costa – Cataldo, a Infanta D.
Joana e a educação de D. Jorge. «Humanitas», 41-42 (1990), pp. 3-22.
61
O rei tentou legitimação de D. Jorge junto do Papa, mas não a conseguiu, embora nisso se empenhasse D.
Fernando de Almeida, bispo de Lamego: suspeita A. Costa Ramalho que nisso entrou mão de D. Jorge da Costa,
cujas relações com D. João II eram enviesadas; relativamente a D. Jorge, sempre a rainha Dona Leonor manteve
relutância e distanciamento, a ponto de a sua educação, depois dos primeiros rudimentos escolares na corte, vir
a ser entregue a sua tia, Santa Joana, que vivia no convento de Aveiro, e foi entregue depois a Cataldo Sículo,
humanista mandado vir de Itália por D. João II, parar servir de educador oficial. Não era o único caso em que o
rei se envolveu, pois, como dissemos acima, aponta-se-lhe também uma aventura com Brites Anes, a Boa Dona,
de quem teve Brites Anes de Santarém (c. 1485).
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Maria Nossa Senhora &, confessado por elle na ora da sua morte, nunca em
sua vida lhe pediram cousa aa honra das Cinco Chagas que nã fizesse; &
todolos dias ouvia muy devotamente missa & em qualquer casa que esteuesse
tinha oratório fechado em que todollas noites, depois de despejado & despido,
se recolhia com muita devaçam a rezar os sete salmos e se encomendava
a Deos & afirmava-se que com os joelhos nus postos em terra & muitas
vezes tardava tanto que era muito trabalho aos que o aguardavam: de isto
todallas noites por ordenãça & pollas manhãas na cama & aa mesa rezava
sempre as oras de Nossa Senhora & outras muitas orações. E em hũa boeta
que elle tinha ha chave se achou depois de sua morte hũo confissionario &
hũo áspero celicio que muitas vezes trazia debaixo da camisa de vestiduras
reaes. E, pera se hos ofícios divinos fezerem em grande perfeiçam & muito
acatamento, trazia sempre em sua capella riquíssimos ornamentos & muitos
& bõs capelães & has suas missas em pontifical erã ditas cõ mais deuaçam
acatamento & cerimonias que em outra nenhuma parte. E ho lauar dos
pees aos pobres & todalas outras cerimonias fazia cõ tanto acatamento &
lagrimas que aos bõs religiosos daua singular exempro quanto mais aos seus
familiares.
*
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62
A oração Aue vulnus lateris nostri redemptoris” foi assinalada pela primeira vez, que saibamos, em nota de artigo
por Dom André Wilmart, in Mélanges Mandonnet, Paris, J. Vrin, 1930, II, pp. 145-161, a partir de um fragmento
recolhido em Bethleem de Shene (ou Sheen), perto de Richmond, nos arredores de Londres, no Surrey, em
mosteiro fundado em 1414 pelo rei Henrique V: faria parte de uma miscelânea, em que a terceira parte seria
formada por textos goliárdicos e devocionais: Ms. British Museum, CottonVespasian D. IX – 3 ° fol.48-49,
onde constava justamente: “Mensura plage lateris domini nostri, Ihesu Cristi”; assinala o ilustre beneditino: “avec
figure, legende et double quatrain: Aue uulnus lateris nostri redemptoris..., Aue plaga lateris larga et fecunda”.
Interpretando A. Wilmart, estaremos em contexto cartusiano, indício que nos leva a oração divulgada pela devotio
moderna, em que se integrava a Vita Christi de Ludolfo da Saxónia.
63
Junto do registo da iconografia do códice “Mensura plage lateris domini nostri Ihesu Cristi”, uma imagem vem
acompanhada de explicação: “Esta medida duas vezes he a medida da chaga de Nosso Senhor”: 3cm x 2 = 6cm.
Consta essa oração também do Livro de Horas de Álvaro da Costa (Ms. Pierpont Morgan Library, M.399, fl.
197v (na iluminura de Cristo, Homem das Dores); segundo informação de catálogo, esse LH foi encomendado
c. 1515 a Simon Bening para um membro da família Sá (Saa), da cidade do Porto, provavelmente a de João
Rodrigues de Sá (cujas armas da família estão no fl. 1v); foi adquirido por 1520 por D. Álvaro da Costa, homem
da Casa de D. Manuel I (embaixador e conselheiro); por herança, o LH passou à família do Duque de Mesquitela;
em 1882 esteve em Lisboa (Exposição retrospectiva de arte ornamental Portugueza e Hespanhola, cat. no. 17)
e seguidamente terá sido vendido (post 1890), por intermédio de Quaritch (1905) a George C. Thomas de
Filadélfia (cat. 1907, pp. 37-38), sendo depois adquirido por J. Pierpont Morgan (1837-1913) aos herdeiros de
G. C. Thomas, em 1910.
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dos estigmas de Francisco de Assis, mas a memória das Cinco Chagas na liturgia
tinha já expressão na unção de cinco cruzes no rito da sagração das igrejas; nos
missais da Idade Média havia uma missa especial em honra das Santas Chagas
com texto cuja composição se reportava ao Apóstolo S. João e que teria sido
revelada no ano de 532 ao Papa Bonifácio II: conhecida como “Missa Dourada”,
teria recebido indulgências de João XXII em 1334 e de Inocêncio VI, em 1362:
corresponde à missa “Humiliavit” do Missal Romano. Primeiros traços de
comemoração pública das Chagas de Cristo encontram-se no século XIV nos
Breviários (franciscano, dominicano, carmelita). Também no nosso LH, como
noutros, é atribuída a um Papa Inocêncio a concessão de indulgência de quatro
mil anos pela recitação da prece transcrita; ora, para ser minimamente pertinente,
essa atribuição terá de avançar para tempos de 1240, o que leva no mínimo a
Inocêncio IV64. Porém, segundo as melhores referências, a indulgência deverá
ser posta sob o nome de Inocêncio VI, em 1362. Por influência dos Franciscanos
a devoção estava implantada na corte ducal da Bretanha no século XV65: sabe-
se que a veneração do sangue de Cristo toma relevo depois das Cruzadas, em
Bruges (“Saint-Sang”), Gand (Saint-Bavon), a que se segue Mântua, cujo lugar
foi tornado peregrinação depois de cura obtida pelo Papa Pio II.
Em Portugal a celebração das Cinco Chagas de Cristo, na Idade Média,
tinha lugar a 6 de Fevereiro ou, em Lisboa, na Sexta-feira depois das Cinzas:
era certamente o fim de um processo que começou muito antes e no qual o
desenho do escudo nacional deve ter tomado expressão concreta; a cronologia
de que dispomos não é precisa, mas encontramos a primeira formulação na
pena de um arauto, em 1416, em moldes que faz supor registo elaborado e por
isso remonta a tempos anteriores e nos leva a perceber que a narrativa se terá
desenvolvido em torno da celebração da Vera Cruz, após a vitória do Salado66,
mas entretanto reportada à proclamação do primeiro rei, Afonso Henriques, na
batalha de Ourique, em 1139, a partir de literatura heráldica67.
Em tempos posteriores, terá recebido influências de pregadores e homens de
64
Esse Papa que interferência nas actuações do imperador Federico II e na vida de Sancho II, rei de Portugal; este
rei português foi deposto por ele, no seguimento de acusações graves feitas por membros da nobreza e do clero,
nomeadamente das Ordens religiosas
65
Cf. “Isabelle Stuart, duchesse de Bretagne, et ses deux filles Marguerite et Marie en prière devant une Pietà,
miniature extraite d’un manuscrit de La Somme-Le roi de Laurent d’Orléans”: BNF, FR 958 (a. 1464). Para uma
visão mais alargada do tema, cf. CHARBONNEAU-LASSAY, Louis – Le vulnéraire du Christ - La mystérieuse
emblématique des plaies du corps et du cœur de Jésus-Christ. Guntenberg reprints, 2018.
66
Cf. RAMOS, Manuel Francisco – Memória De victoria Christianorum (Salado – 1340) (ed., trad., e introd. do
manuscrito Alc. 114 (fl. 354-363)). Porto: FLUP, 2019.
67
NASCIMENTO, Aires A. – O milagre de Ourique num texto latino-medieval de 1416. «Revista da Faculdade
de Letras de Lisboa», 4ª série, nº 2 (1978), pp. 365-274; CINTRA, L. F. Lindley – Sobre a formação e evolução
da lenda de Ourique (até à Crónica de 1419)”. «Revista da Faculdade de Letras de Lisboa», 4.ª série, nº 2 (1978),
pp. 365-374.
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Há, porém, alguns santos que devem ter merecido devoção específica, pois
têm estampa própria no final do LH, na secção dita de “sufrágios”: Santos Reis
Magos, Arcanjo S. Miguel, Santo António de Lisboa, S. Cosme e S. Damião.
Os reis eram tomados como patronos do seu povo que os olhavam tanto mais
quanto lhes cabia o título de “homens santos – “holy man”71 e se mostravam
como taumaturgos em favor das suas gentes72. O rei D. João II assumiu
particularmente essa função, pois se empenhou em responder às necessidades
do seu povo: assumiu a construção do grande hospital de Todos-os-Santos, no
centro da cidade de Lisboa, onde procurava reunir as 43 instituições de assistência
espalhadas pela cidade e seus arredores; não teve vida o rei para acompanhar a
sua esposa, a rainha Dona Leonor, no lançamento das Misericórdias, mas no
seu testamento não esquecia o Hospital de Todos-os-Santos, acentuando que
queria que ele se regesse de forma idêntica à dos grandes hospitais de Florença e
de Sena. Nesse Hospital, a uma das grandes enfermarias foi dado como patrono
S. Cosme.
Para os outros santos dos “sufrágios” não é difícil encontrar motivo para
a devoção prestada: ao arcanjo S. Miguel confiava-se o patrocínio da pátria; a
Santo António entregava-se a protecção de Lisboa, pelo facto de ser natural da
cidade e tão próximo o rei se reconhecia que se interessou pela reconstrução da
casa onde ele nascera e a entregou aos cuidados do seu sucessor; não é difícil de
adivinhar o motivo de ter os Reis Magos como patronos, com a novidade de
a representação deles fugir a imagens comuns e escolher dois acompanhantes
como assistentes na governação que sob as vestes profanas assumem funções
régias delegadas. O LH espelha a vida real, sob máscaras específicas…
73
O termo “transumanar” como “exaltação dos valores humanos” lemo-la na carta apostólica Candor Lucis
aeternae que o Papa Francisco escreveu para celebrar o 7º centenário de Dante, poeta do divino e da esperança
humana: o divino é o limite aberto ao humano, em lealdade e sem concorrência, pelo que a atitude poética e
contemplativa significa disponibilidade para chegar à vida em plenitude e aspirar à transcendência do humano.
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Responderemos assim às questões de Yuval Noah Harari, tanto no Sapiens - História Breve da Humanidade como
em Homo Deus, onde brotam os anseios, sonhos e pesadelos que alimentam as fantasias do homem do nosso
tempo, atribulado com a luta contra a morte, mas tentado a fabricar a vida, em artifícios em que o criador corre
o risco de ser preterido em favor da criatura. Digno de atingir a luminosidade do divino é o Homem que o
procura nos caminhos da vida: em qualquer Livro de Horas, que a Idade Média nos legou, vibram fulgores da
luminosidade que são antecipação do que nos espera no termo dos dias breves que passamos na terra. Ao longo
deste ano de Dante, aberto à peregrinação celestial, vimos partir amigos queridos, quase todos imprevistamente:
voltarmos a estar juntos para partilharmos as alegrias em que eles foram recebidos e lhes dão plenitude que
também nós esperamos.
263